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POLÍTICA DOS AFETOS E SUAS REVERBERAÇÕES EM SALA

DE AULA: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM


DE ESPANHOL NA REDE ESTADUAL DE ENSINO

Maria Luana Caminha Valois1

RESUMO

Podemos afirmar que o ensino-aprendizagem, significa, entre outras coisas, desenvolver aptidão
para habitar o conflito nas relações com os outros e consigo mesmo. É nesse sentido que
afirmamos que eliminando sumariamente os conflitos, as contradições, e as diferenças,
acabamos nos enveredando pela dominação do um que sabe. Mais do que isso, Espinosa (2009)
nos propõe uma maneira de conhecer que precisa ser em si mesma um remédio para nossa
existência, trata-se do gozo de certa forma de afetividade que se dá num jogo de forças afetivas,
e sempre políticas, portanto. Isso posto, este texto tem como objetivo investigar as relações
entre mente, corpo, conhecimento e afetividade. Bem como as possibilidades didáticas
viabilizadas para converter a sala de aula em ferramenta para politizar nossos afetos. Assim
sendo, esta proposta surge de observações e práticas implementadas no NEL - núcleo de estudos
de línguas - que está vinculado ao EREM Eleanor Roosevelt - Recife - PE. E se fundamenta
teoricamente em autores como FREIRE (2015), HOOKS (2013), WALSH (2015) e ALVES
(1994), levantando as implicações desses pensadores para a prática pedagógica. Por extensão,
afirmamos que esta proposta trata-se, pois, de uma alternativa a perspectivas e
interpretações que historicamente nos encarceraram em categorias homogêneas. Logo,
este ato político, nos apresenta outras formas de construir relações humanas, e por isso,
confiamos que esta pesquisa corrobora na direção de práticas educacionais mais
generosas.

Palavras-chave: ensino-aprendizagem, afetividade, politizar as emoções;

G 18 Educação Emocional

Refletir sobre as bases teórico-metodológicas da Educação Emocional e seus


desdobramentos no cotidiano escolar e não-escolar. Analisar as experiências de Educação
Emocional. Discutir a questão da formação docente em Educação Emocional.
Compreender as relações entre Educação Emocional e Práticas Integrativas e
Complementares. Compreender a relação saúde e Educação Emocional. Examinar a
Educação Emocional como instrumento de empoderamento de grupos populares e pessoas
em situação de vulnerabilidade.
Coordenador(a): Adriana Gaião e Barbosa (UFPB​​)

1
Doutoranda em Letras da Universidade Federal de Pernambuco- PE, luanavalois30@gmail.com
uso politico das emocoes - nao e contrio a razao - estao juntos
lembrar é uma militancia
pedacos da minha alma
safatle medo como fundamento do facismo
paulo freire e a esperanca de esperancar
hana arent
historizizar os afetos
os afetos nos moldam
devemos politizar nossos afetos
Entendemos que pesquisar línguas, linguagens e literaturas como prática transformadora e
cidadã.

Educar é um processo constante, diálogico e dialético - ver significado dessas palavras.

Ifem prever relação.

Poéticas - abre canais de diálogo/ e tem marcas da alteridade. e éticas - todo ato deve ser ético.

Qual a ética está encarnada em nós ? - linguagem verbal e não verbal estão encarnadas do
colonial.

Antes de Espinosa, podemos citar dois filósofos que julgaram responder à questão mente-corpo.
Platão definiu a mente, ou alma [Psykhé], como “o piloto do navio”, dando preferência para a
alma que devia guiar o corpo. Aristóteles definia o corpo como órganon da alma, mero
instrumento no seu aperfeiçoamento, dando preferência e supremacia para esta e não àquele.
Todo sistema cristão e posteriormente a filosofia de Descartes foram influenciados por esse
pensamento. A alma como guia do corpo, sua mestra e condutora. O corpo como “morada da
alma”, algo perecível, até mesmo sujo, descartável, pecador, inferior. Desta forma, a consciência
estava salva e a religião cristã também. Ainda hoje estas ideias correspondem à visão da maioria
das pessoas.

Mente e corpo são um só: modificações de uma mesma substância que se mostra ora como
mental, ora como material. A filosofia de Espinosa pode ser definida como um monismo
irrestrito. Espinosa pretende responder à pergunta “o que pode o corpo?” ( ), mas nós aqui nos
perguntamos: o que pode a mente? Como é possível e para que serve a mente? Através da
definição de Espinosa do conceito de podemos chegar à resposta. Tudo que existe quer
manter-se em si mesmo, e realiza um esforço nesta direção. O objetivo do corpo é continuar
existindo, ele é natureza (mesmo aparentemente separado dela através da pele) e procura manter
sua forma própria. Cada corpo é singular e define sua causa interna de existência, rompendo
com causas exteriores ou finalismos de qualquer tipo. A veja aqui “O pensamento é um atributo
de Deus, ou seja, Deus é uma coisa pensante” Espinosa, Ética II, prop 1 “A extensão é um
atributo de Deus, ou seja, Deus é uma coisa extensa” – Espinosa, Ética II, prop 2
A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas”

A potência de Deus é igual à sua potência de pensar. O mesmo pode ser dito de nós,
modificações dos atributos divinos, a potência de nosso corpo é simultaneamente a nossa
potência de pensar. Deus não produz de maneira desordenada, há uma correspondência entre os
atributos, há uma igualdade porque a mesma substância se expressa de diversas maneiras. Não
há superioridade da alma sobre o corpo como imaginaram vários pensadores antes de Espinosa.
Mente e alma são ativos ou passivos juntos, estão em igualdade de condições sem que haja a
possibilidade de um reinar sobre o outro.

O que, primeiramente, constitui o ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma coisa
singular existente em ato” – Espinosa, Ética II, prop 11

Todas as informações que a mente recebe vêm dos estímulos corporais. Tudo que a mente sabe,
ela sabe através de um corpo que é afetado, que existe em ato. Ou seja, o que é percebido na
mente humana é exclusivamente o que acontece com o corpo. A mente é ideia do corpo, o
pensamento só acontece por força dos corpos que nos afetam. Não poderíamos ser, como
gostariam alguns, cabeças flutuantes, almas incorpóreas. Precisamos estar mergulhados na vida,
plenamente. A modificação no nosso corpo corresponde a uma modificação na alma. A ordem e
a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas” – Espinosa, Ética II, prop
7 “ O que, primeiramente, constitui o ser atual da mente humana não é senão a ideia de uma
coisa singular existente em ato” – Espinosa, Ética II, prop 11 “ Quanto mais um corpo é capaz,
em comparação com outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, ou de “
padecer simultaneamente de um número maior de coisas, tan mais sua mente é capaz, em
comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas”

A mente conhece seu corpo através das ideias das afecções dele. E ao mesmo tempo em que tem
ideias deste corpo, tem simultaneamente ideias destas ideias. Mas estas ideias envolvem a
natureza do nosso corpo e do corpo externo. Por isso não podemos conhecer adequadamente os
corpos exteriores, suas essências, porque sabemos apenas dos efeitos que estes corpos nos
causam. O conhecimento que temos é definido por Espinosa como de ou imaginativo. Este
conhecimento é inadequado porque tem acesso ao mundo exterior apenas através de seu corpo,
ou seja, o conhecimento dos objetos se mistura com o estado de nosso próprio corpo. Conforme
a Ética de Espinosa se desenvolve, ele nos indica o modo mais adequado de sair do primeiro
gênero do conhecimento e entrar no segundo, o racional, que só é possível com as . A intenção é
sair da imperfeição das ideias confusas para entrar nas ideias que exprimam o máximo possível
nossa essência. O objetivo de Espinosa é alcançar o conhecimento adequado de nosso corpo e
dos corpos que nos cercam, e com isso pôr fim à ignorância, à miséria humana, sua servidão,
seus medos, suas superstições que negam o prazer e a felicidade. O caminho para a razão
acontece apenas com as experiências do corpo, pelos encontros que convêm e que nos
preenchem de alegria. A união mente-corpo se torna clara quando o corpo não é mais afetado de
tristeza. Quanto mais triste estamos, pior nossa capacidade de pensar e pior nossa capacidade de
agir. Podemos concluir que a mente pode pensar tanto quanto o corpo pode agir, um vale tanto
quanto o outro. Mente e corpo sofrem variações simultaneamente. A capacidade de pensar
envolve a capacidade de agir, os dois com o fim único de alcançar a liberdade, a felicidade, a
virtude e a beatitude. Em Espinosa, mente e corpo seguem juntos, duas retas paralelas que se
encontram no infinito. mais sua mente é capaz, em comparação com outras, de perceber,
simultaneamente, um número maior de coisas” – Espinosa, Ética II, prop 13, esc primeiro
gênero, Nathalie Maquet noções comuns Sobre Fundamentos Filósofos Podcast Loja Assine
Login 19/04/2023, 17:23 Espinosa - relação mente/corpo • Razão Inadequada
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receba benefícios, seja um assinante! A teoria da potência, segundo a qual as ações e paixões do
corpo são paralelas às ações e paixões da alma, forma uma visão ética do mundo. A substituição
da moral pela ética é a consequência do paralelismo, e manifesta sua verdadeira significação” –
Deleuze, Espinosa e o Problema da Expressão, p. 176

Vivendo de amor - o amor cura - bel hoos


III – Desejo e liberdade O corpo humano é uma unidade estruturada: não é um agregado de
partes nem uma máquina de movimentos, mas um organismo, ou unidade de conjunto, e
equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos. É um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio
interno é obtido por mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas, formando
um sistema de ações e reações centrípeto e centrífugo, de sorte que, por essência, o corpo é
relacional: é constituído de relações internas entre seus órgãos, de relações externas com outros
corpos e de afecções, isto é, da capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se
destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, estrutura complexa de ações e
reações, pressupõe a intercorporeidade como originária. De fato, não só o corpo está exposto à
ação de todos os outros corpos exteriores que o rodeiam e dos quais precisa para conservar-se,
regenerar-se e transformar-se, como ele próprio é necessário à conservação, regeneração e
transformação de outros corpos. Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente e mais apto
à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas
relações com outros corpos, isso é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções
corporais. A mente humana é uma força pensante ou um ato de pensar, isso é, uma ideia. Pensar
é perceber ou imaginar, raciocinar, desejar e refletir. A mente humana é uma atividade pensante
que se realiza como percepção ou imaginação, razão, desejo e reflexão. O que é pensar, nessas
várias formas? É afirmar ou negar alguma coisa, tendo dela consciência (na percepção ou
imaginação e na razão) e tendo consciência dessa consciência (na reflexão). Isto significa que a
mente, como ideia ou potência pensante, é uma ideia que tem idéias (as idéias que a mente tem
são os ideados, isto é, os conteúdos pensados por ela). Em outras palavras, porque é um ser
pensante, a mente está natural e essencialmente voltada para os objetos que constituem os
conteúdos ou as significações de suas idéias. É de sua natureza estar internamente ligada a seu
objeto (ou o ideado), porque ela não é senão atividade de pensá-lo. Ora, demonstra Espinosa, o
primeiro objeto que constitui a atividade pensante da mente humana é o seu corpo e, por isso, a
mente não é senão ideia do corpo. E porque ela é o poder para a reflexão, a mente, consciente de
ser consciente de seu corpo, é também idé ia da ideia do corpo, ou seja, é ideia de si mesma, ou
ideia da ideia. 19/04/2023, 17:20 Espinosa, uma subversão filosófica: o homem e a liberdade
https://revistacult.uol.com.br/home/baruch-espinosa/ 6/17 A mente humana não é uma
substância anímica independente, uma alma meramente alojada no corpo para guiá-lo, dirigi-lo
e dominá-lo. Modo finito do pensamento, atividade pensante definida como conhecimento de
seu corpo e dos corpos exteriores por intermédio de seu corpo próprio (pois ela os conhece pela
maneira como afetam seu corpo e pela maneira como este os afeta) e como conhecimento de si
mesma, a mente humana não está alojada numa porção bruta de matéria, mas está unida ao seu
objeto, ao seu corpo vivente. Isso significa que quanto mais rica e complexa for a experiência
corporal (ou o sistema das afecções corporais), tanto mais rica e complexa será a experiência
mental, ou seja, tanto mais a mente será capaz de perceber e compreender uma pluralidade de
coisas, pois, demonstra Espinosa, nada acontece no corpo de que a mente não forme uma
imagem ou uma ideia (mesmo que estas sejam confusas, parciais e mutiladas). E quanto mais
rica a experiência mental, mais rica e complexa a reflexão, isto é, o conhecimento que a mente
terá de si mesma. O corpo não causa pensamentos na mente, nem a mente causa as ações
corporais: ela percebe e interpreta o que se passa em seu corpo e em si mesma. Assim, as
afecções corporais são os afetos da mente, seus sentimentos e suas idéias. Em outras palavras, a
relação originária entre o corpo é a mente é afetiva e as idéias da mente são afetos. Unidos,
corpo e mente constituem um ser humano como singularidade afetiva e individualidade
complexa em relação contínua com todos os outros. A intersubjetividade é, portanto, originária.
Porque são expressões da potência da substância, os indivíduos singulares são potências de
existir – aquilo que Espinosa, usando a terminologia da época, designa com a palavra conatus.
São uma força interna que unifica todas as suas operações e ações para permanecer na
existência, permanência que não significa apenas permanecer em seu próprio estado (como a
pedra, por exemplo), mas regenerar-se continuamente, transformar-se e realizar-se (como os
vegetais e os animais). O conatus, ou a potência de autoperseverança na existência, é a essência
do corpo e da mente e essa essência, diz Espinosa, é o desejo. Somos desejo. A potência interna
(o conatus) que define a singularidade individual é uma força que pode aumentar ou diminuir,
dependendo da maneira como cada singularidade se relaciona com outras ao efetuar seu trabalho
de autoconservação. A intensidade da força da potência de existir e agir diminui se a
singularidade for afetada pelas outras de tal maneira que se torna inteiramente dependente delas;
e aumenta se a singularidade não perder independência e autonomia ao ser afetada por outras e
ao afetá-las. A diminuição e o aumento da força da potência existencial indicam que o desejo
pode realizar-se inadequadamente ou adequadamente. A realização é inadequada quando a
potência individual é apenas uma causa parcial das operações do corpo e da mente, que ficam
determinadas pela potência de causas externas que impelem o indivíduo nessa ou naquela
direção, dominando-o e diminuindo sua força. A realização é adequada quando a potência
existencial aumenta sua força por ser a causa total e completa das ações que realiza,
relacionando-se com as forças exteriores sem ser impelida, dirigida ou dominada por elas.
Espinosa pode, então, distinguir os 19/04/2023, 17:20 Espinosa, uma subversão filosófica: o
homem e a liberdade https://revistacult.uol.com.br/home/baruch-espinosa/ 7/17 afetos em
passivos e ativos. Um afeto é passivo ou uma paixão quando o que se passa no corpo e na mente
decorre do poderio das forças externas; um afeto é ativo ou uma ação quando decorre
exclusivamente de nossa potência interna de existir e agir. Espinosa é um racionalista – a
realidade é inteiramente inteligível e pode ser plena e totalmente conhecida pela razão humana
–, mas não é um intelectualista, pois não admite que basta ter uma ideia verdadeira de alguma
coisa para que isso nos leve da paixão à ação, ou seja, para que se transforme a qualidade de
nosso desejo. Além disso, também não admite que passemos da paixão à ação por um domínio
da mente sobre o corpo – somos passivos de corpo e mente ou somos ativos de corpo e mente. A
um corpo passivo corresponde uma mente passiva e a um corpo ativo, uma mente ativa. Nem
passamos da paixão à ação por um domínio que a razão possa ter sobre o desejo, pois, como
demonstra na Ética, uma paixão só é vencida por outra paixão mais forte e contrária e não por
uma ideia verdadeira. A passagem da paixão à ação depende do jogo afetivo e da força do
desejo. Imagens e idéias são interpretações de nossa vida corporal e mental e do mundo que nos
rodeia. Ora, o que se passa em nosso corpo – as afecções – é experimentado por nós sob a forma
de afetos (alegria, tristeza, amor, ódio, medo, esperança, cólera, indignação, ciúme, glória) e,
por isso, não há imagem alguma nem ideia alguma que não possua conteúdo afetivo e não seja
uma forma de desejo. São esses afetos, ou a dimensão afetivo-desejante das imagens e das
idéias, que aumentam ou diminuem a intensidade do conatus. Isso significa que somente a
mudança na qualidade do afeto pode nos levar ao conhecimento verdadeiro, e não o contrário, e
é por isso que um afeto só é vencido por outro mais forte e contrário, e não por uma ideia
verdadeira. Uma imagem-afeto ou uma ideia-afeto são paixão quando sua causa é uma força
externa, e são ação quando sua causa somos nós mesmos, ou melhor, quando somos capazes de
reconhecer que não há causa externa para o desejo, mas apenas interna. Os afetos ou desejos não
possuem todos a mesma força ou intensidade: alguns são fracos ou enfraquecedores do conatus,
enquanto outros são fortes e fortalecedores do conatus. São fracos todos os afetos nascidos da
tristeza, pois esta é definida por Espinosa como o sentimento de que nossa potência de existir e
agir diminui em decorrência de uma causa externa; são fortes os afetos nascidos da alegria, isso
é, do sentimento de que nossa potência de existir e agir aumenta em decorrência de uma causa
externa. Assim, o primeiro movimento de fortalecimento do conatus ocorre quando passa de
paixões tristes a paixões alegres e é no interior das paixões alegres que, fortalecido, ele pode
passar à ação, isto é, ao sentimento de que o aumento da potência de existir e agir depende
apenas de si mesmo como causa interna. Quando o conhecimento racional e reflexivo é
experimentado como uma alegria maior do que qualquer outra, essa alegria é o primeiro instante
da passagem ao verdadeiro e à ação. Como a mente é ideia do corpo, será ativa ou passiva
juntamente com ele. Isto significa que a liberdade, entendida como atividade cuja causa é a
força autônoma do conatus, se refere não só à mente, mas também ao corpo, e é definida como a
capacidade do corpo e da mente para a pluralidade simultânea. Isso é, a liberdade é a
complexidade e a riqueza de afecções, afetos e idéias simultâneos, que têm no próprio corpo e
na própria mente sua causa eficiente necessária. 19/04/2023, 17:20 Espinosa, uma subversão
filosófica: o homem e a liberdade https://revistacult.uol.com.br/home/baruch-espinosa/ 8/17
Podemos, agora, avaliar a subversão ética realizada por Espinosa. Para a tradição, paixão e ação
eram termos reversíveis: a paixão era o lugar de recepção de uma ação, seu terminus ad quem; a
ação, o lugar de onde partia uma operação, seu terminus a quo, posições que podem inverter-se,
de sorte que, por exemplo, uma paixão da alma será uma ação do corpo e uma ação da alma,
paixão do corpo. Com Espinosa, paixão e ação deixam de ser termos reversíveis para se tornar
intrinsecamente distintas, de tal maneira que a uma mente passiva não corresponde um corpo
ativo, nem a um corpo passivo corresponde uma mente ativa, pois corpo e mente são passivos
ou ativos juntos e simultaneamente. Essa subversão conceitual é o que permite a Espinosa
identificar dois conceitos que a tradição sempre distinguira e opusera: necessidade e liberdade.
Sendo a mente ideia do corpo, aquele que tem um corpo apto à pluralidade de afecções
simultâneas tem uma mente apta à pluralidade de idéias simultâneas, de maneira que a liberdade
humana, deixando de identificar-se com o exercício do livre arbítrio como escolha voluntária
entre possíveis, é potência para o múltiplo simultâneo, quando este se explica apenas pelas leis
necessárias de nossa natureza. A liberdade não se encontra, portanto, na distância entre mim e
mim mesma – distância que, usando a razão e a vontade, eu procuraria preencher com algo que
não sou eu mesma, isso é, com o objeto de uma escolha ou com um fim. Ao contrário, é a
proximidade máxima de mim comigo mesma, a identidade do que sou e do que posso. Porque a
liberdade é a identidade de si consigo, Espinosa pode demonstrar que o conatus (ou o esforço de
autoperseverança no ser) é o único fundamento da virtude, uma vez que esta não é senão a força
do corpo e da mente para afirmar-se como causa eficiente interna total de suas ações, isso é,
para ser plenamente uma potência de agir que encontra em si mesma a causa total de suas ações.
A liberdade é a proximidade plena de si consigo mesmo e poder do corpo e da mente para o
múltiplo simultâneo.

O filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677) foi responsável por uma revolução na maneira
de encarar os afetos, propondo uma ética dos afetos como uma alternativa à moral normativa.
Desde Platão, no século IV a.C., as paixões e os afetos eram entendidos como vícios e fracassos
que deveriam ser corrigidos por meio da razão, esta controlando os sentimentos, impulsos e
prazeres. No século XVII, René Descartes (1596-1650) estabeleceu uma separação entre mente
e corpo, uma filosofia dualista, entendendo que a mente racional tinha um poder absoluto sobre
as ações do corpo e um domínio sobre os afetos e as paixões. O corpo, na filosofia antiga e
moderna, inclusive no cristianismo, foi entendido como fonte de erro, irracionalismo e pecado,
tendo de ser continuamente controlado pela razão. Spinoza se colocou contrário a esta tradição,
entendendo que os afetos não são irracionalidade. Para ele, a felicidade não dependia do bom
uso da razão, mas de uma libertação das potências afetivas, em especial da alegria.

Assim podemos pensar uma ética dos afetos, diferente de uma moral normativa, para uma
transformação da atividade do desejo, saindo de um estado passivo para o ativo. A partir desta
ética, nossa ação seria justa e verdadeira quando primeiramente desejamos tal ação. Sua ética
não parte de valores transcendentes, como o "bom" ou o "ruim", mas propõe uma relação
imanente, que busca conhecer aquilo que nos faz bem ou mal. Neste sentido, bom é aquilo que
possibilita a passagem de um estado inferior a um estado superior. Aquilo que é bom está no
campo das paixões alegres, possibilita um elogio à vida, contrariando tudo o que nos separa
dela, como por exemplo os julgamentos e normativas morais que nos colocam contra a nossa
felicidade. O caminho para um bom uso das paixões propõe o pensamento mais ativo,
juntamente com o corpo, determinando ao invés de ser determinado.

"O caminho para se alcançar uma vida feliz implica necessariamente no aperfeiçoamento das
emoções. Há muitas paixões que diminuem o nosso conatus. E outras, por outro lado, o
aumentam. A libertação das paixões escravizadoras se encontra na substituição dessas paixões,
assegurando assim a independência e a serenidade ante as adversidades do meio." (Lima, em 'O
conceito de felicidade em Espinosa')
A ética de Spinoza não sugere o controle dos desejos, mas o uso destes de uma maneira mais
interessante. Um afeto não pode ser controlado pela razão, mas pode ser vencido por outro mais
forte, superando assim a tristeza, o ódio ou o medo, fortalecendo a potência de agir do corpo e
da mente, que passa a pensar e agir por si mesmo, passando da passividade à atividade. Spinoza
propõe utilizar a razão em favor do corpo, ao invés de controlar ou dominar os afetos. Assim
podemos deixar de buscar pautar nossas ações a partir das noções de "bom" ou "ruim", e
partimos de nossos afetos constatando aqueles que torna ativa ou passiva nossa potência de agir.
Uma vida livre consiste em substituir os afetos que diminuem nossa potência de agir pelos que
ampliam.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad.: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

L. S. Vygotski fez recorrentes citações das obras do filósofo holandês Baruch Espinosa. Foi
desse pensador que emanou, dentro das concepções vygotskianas, a noção de corpo e sua
relação com a mente. Essa concepção repercutiu diretamente naquilo que o bielorrusso entedia
como funções psicológicas e emoções. Este artigo tem o propósito de fazer um cotejo dos
pensamentos espinosianos e vygotskianos, a fim de mostrar as influências do primeiro pensador
sobre o segundo. Conceitos como intelectualismo, os instrumentos intelectuais e o determinismo
que são encontrados na psicologia vygotskiana procedem da filosofia de Espinosa. As
aproximações entre a filosofia panteísta de Espinosa e a teoria histórico-cultural de Vygotski
permitem elucidar a constituição de um caminho alternativo para a compreensão não dicotômica
das emoções humanas. Palavras-chave: Teoria histórico-cultural, Ética, Funções psicológicas,
Emoções.

Elementos da filosofia de Espinosa: uma crítica ao dualismo mentecorpo A teoria


histórico-cultural foi resultante de estudos empreendidos por L. S. Vygotski e colaboradores. As
maiores elaborações ocorrem a partir de meados da década de 20 do século passado, a partir de
estudos realizados no campo das funções cognitivas em consonância com teorias adotadas por
esses estudiosos soviéticos (Rey, 2002). Entre as contribuições filosóficas, está a teoria dos
afetos, do filósofo holandês Baruch Espinosa. Vygotski fez diversas referências à filosofia
espinosiana no que diz respeito à concepção da regulação do comportamento ou intelectualismo.
A modalidade de organização da conduta e sua relação com a formação cultural do fenômeno
humano inserem-se no macroprojeto espinosiano entendido este, afirma Scruton (2000), como
representante da modernidade racionalista. Conquanto seja necessário ponderar que a proposta
racionalista espinosiana não se insere no modelo cartesiano. Aliás, para o próprio Vygotski
(2004), não há que se pensar nem em semelhança nem em antítese, uma vez que a teoria de
Descartes sobre as paixões e a teoria de Espinosa sobre as emoções seriam amplamente
distintas. Na busca pelo fundamento de um conhecimento verdadeiro, Descartes formula um
método baseado na dúvida. Algo para ser aceito como verdade precisará ser claro e distinto, sem
a possibilidade de ser questionado. O resultado desse caminho é o Cogito. O puro pensamento é
a substância primordial (res cogitans), solo de origem de toda verdade. Isso exclui, de imediato,
como sendo claramente verdadeira qualquer coisa relativa à corporeidade (res extensa). Aqui se
encontra o fundamento do dualismo mente-corpo em Descartes. Espinosa prefere se basear na
geometria euclidiana, com seu método demonstrativo. Ao contrário de Descartes, Espinosa toma
como ponto de partida os próprios axiomas por ele elaborados e, com base nisso, realiza
proposições e demonstrações. É dessa forma, por exemplo, que discute Deus como causa de si
mesmo. Isso pode ser observado nos dois primeiros axiomas da primeira parte da Ética: I. “Tudo
o que existe, existe em si ou noutra coisa.” II. “O que não pode ser concebido por outra coisa
deve ser concebido por si” (Espinosa, 1983, p. 77). Para Espinosa (1983), Deus é causa de si
mesmo e tudo deriva dele, as demais coisas são modificações da substância divina, ou seja, seus
atributos. Disso deriva que Deus está em todas as coisas, inclusive na natureza ou corporeidade.
Para Espinosa, Deus e natureza seriam a mesma substância, marca do panteísmo de sua filosofia
- Deus Sive Natura (Vaz, 2006). Espinosa posiciona-se de uma forma diversa da concepção
cartesiana acerca do dualismo mente-corpo. Em seu entendimento, há a concepção de que “[...]
Alma e corpo são um só e mesmo indivíduo, concebido ora sob o atributo do pensamento, ora
sob o da extensão” (p. 152). É dessa diferença na relação corpo e alma presente nas duas
filosofias que procede a compreensão de liberdade humana e de como a razão governa a
emoção. Na filosofia cartesiana, a alma governa as afecções conforme consegue se livrar das
paixões do corpo e de suas necessidades. Não há nada mais ilusório do que isso para Espinosa,
pois liberdade não é estar livre das necessidades e sim ter consciência delas por intermédio da
razão. “Tudo aquilo por que nos esforçamos pela Razão não é outra coisa que conhecer; e a
alma, na medida em que usa da Razão, não julga que nenhuma outra coisa lhe seja útil, senão
aquela que conduz ao conhecimento” (Espinosa, 1983, p. 240). Para Espinosa, o esforço ou
conatus em viver sob a direção da razão faria o homem conduzir-se ao bem supremo, que é
Deus ou a natureza. Sendo que a emoção é resultante do aumento ou diminuição da potência,
entendida esta como perfeição. Na segunda parte da Ética, enfatiza-se que o homem é uma
unidade do corpo e da alma. Embora sejam aspectos distintos um do outro, relacionam-se entre
si. A ligação interna entre eles está no fato de que a essência do corpo é o objeto a ser pensado
pela alma, ao passo que a essência da alma é pensar o corpo. Por meio da relação de
interioridade e simultaneidade, reafirma-se, como destaca Ferreira (2001), a unidade na
diversidade entre o corpo e a alma, uma vez que o corpo não se sobrepõe à alma e a alma não se
sobrepõe ao corpo. Em realidade, ambos exprimem, conjunta e simultaneamente, um mesmo
acontecimento na atividade do conhecer: [...] a alma está unida ao corpo pelo fato de que o
corpo é objeto da alma; por consequência, por essa mesma razão, a ideia da alma deve estar
unida com o seu objeto, isto é, com a própria alma, da mesma maneira que a alma está unida ao
corpo (Espinosa, 1983, p. 154). Portanto, o homem é a unidade do corpo e da alma, haja vista
que ambos constituem a própria essência do homem enquanto um todo. A causa, por sua vez, da
união da alma e do corpo é Deus (Natureza Naturante e substância única). Corpo e alma são
modos, desdobramentos da substância divina. “Daí 138 Psicologia em Revista, Belo Horizonte,
v. 18, n. 1, p. 134-147, abr. 2012 Hamilton Viana Chaves, Osterne Nonato Maia Filho, Juliano
Cordeiro da Costa Oliveira, Francisco Edmar Pereira Neto resulta que o homem consta de uma
alma e de um corpo, e que o corpo humano existe exatamente como o sentimos” (Espinosa,
1983, p. 146). Então, a alma só pode existir enquanto o corpo também existe, havendo uma
interdependência entre corpo e alma na filosofia de Espinosa, diferentemente da concepção de
Descartes do penso, logo existo. Nesse caso, em Descartes, há uma primazia do sujeito (mente)
isolado dos sentidos, e o conhecimento verdadeiro, por sua vez, consistirá justamente na
separação da alma e do corpo. Posto isso, pode-se dizer que, em Espinosa, pensamento (alma) e
extensão (corpo) são atributos da substância única, Deus, constando de infinitos atributos dos
quais conhecemos apenas dois: o pensamento, pelo qual a substância produz a alma, e a
extensão, pela qual produz o corpo. Dessa forma, diferentemente da filosofia de Descartes, não
há como separar e hierarquizar alma e corpo no processo do conhecimento, nem de submeter
um ao outro. A mente (inteligência), nesse contexto, interliga-se com os sentidos, a experiência
vivida, a linguagem e a cultura. Isto é, ela forma-se dentro de um todo.

Espinosa acreditava que: [...] Também o intelecto, por sua força nativa, faz para si instrumentos
intelectuais e, por meio deles, adquire outras forças para outras obras intelectuais, graças às
quais fabrica outros instrumentos ou poder de continuar investigando, e assim prosseguindo
gradativamente até atingir o cume da sabedoria (Espinosa, 1983, p. 48-49). Vygotski,
parafraseando Espinosa, discutiu sobre uso da memória natural e demonstrou que o espírito
humano elaborou formas mais complexas, que se apresentam como instrumentos intelectuais.
Quando, culturalmente, o homem se empreende a criar diversas estratégias mnemotécnicas,
produzemse formas alternativas de memorização não dependentes exclusivamente das
condições naturais. O homem experimentaria a verdadeira liberdade; ou seja, deixar-se-ia
conduzir pela razão com a finalidade de formar funções
pelo menos é o que pensava Vygotski em relação à Espinosa quando afirmava que a: [...] teoria
fundamental de Espinosa é a seguinte. Ele era um determinista e, diferente dos estoicos,
afirmava que o homem tem poder sobre os afetos, que a razão pode alterar a ordem das
conexões das emoções e fazer com que concordem com a ordem e as conexões dadas na razão.
Espinosa manifestava uma atitude genética correta. No processo de desenvolvimento
ontogenético, as emoções humanas entram em conexão com as normas gerais relativas tanto à
autoconsciência da personalidade como a consciência da realidade (Vygotski, 1997, p. 87).

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(1996). Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Porto
Alegre: Artmed.

Porém, a nosso ver, o que há por trás destas três denúncias é o corpo, mas não somente o corpo
que temos ou o corpo que nos constitui, mas sim o corpo como um modelo para a filosofia. Eis
o escândalo de Espinosa. Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhe
instituir o corpo como modelo: ‘não se sabe o que pode o corpo...’ Esta declaração de
ignorância é uma provocação. Fala-se da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus
efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões – mas nós nem sequer
sabemos de que é capaz um corpo. (DELEUZE, 2002, p. 24)

Espinosa e a educação: apropriações contemporâneas Escritores, poetas, músicos, cineastas e


também pintores, inclusive leitores ocasionais, podem se tornar espinosistas, mais do que
filósofos de profissão [...] (DELEUZE, 2002, p. 134).

_________________________________________________ Revista Interinstitucional Artes de


Educar. Rio de Janeiro, V. 5, N.3- pág. 401-422 set-dez de 2019: “Educação: Corpo em
movimento.” – DOI: 10.12957/riae.2019.45273 409 [...] a mente não é uma substância, por ser
inserida numa rede de ideias que a determinam a pensar. Mas a mente não é apenas uma ideia
ligada a outras ideias: ela também é uma ideia cujo objeto é o corpo; ela é a consciência, embora
geralmente muito limitada, do corpo [...] Posto isso, as ideias (ou os pensamentos que a mente é
determinada a formar) têm sim algo do corpo como conteúdo [...] Se o spinozismo é uma
verdadeira filosofia do corpo, é porque ele promove este de forma tão nítida que não se pode
mais compreender o que uma mente pode, sem compreender simultaneamente o que um corpo
pode (e, como se sabe, até agora, ninguém pode determinar o que pode o corpo) (p.160-161). De
forma bastante similar, num texto que se destina a “contribuir para o debate pedagógico na
América Latina”, Tatián (2015) vai dizer que se existe uma filosofia espinosana da educação,
voltada para a emancipação intelectual e, portanto, ética, esta filosofia espinosana da educação
consistiria numa compreensão voltada precisamente para o modelo do corpo do qual falamos
acima. Nadia, hasta ahora, ha determinado lo que puede la Mens [...] Lo que puede decirse del
cuerpo puede decirse de la mente, no porque sean entidades paralelas sino precisamente porque
son lo mismo [...] esa naturaleza pensante está sin embargo abierta a una indeterminación
radical, a una vulneración, a un despojo, también a una aventura y una construción. No sabemos
lo que puede una inteligência, La inteligência de cualquiera (p.1).

Dada esta segunda característica da mente, desse modelo que vai de par com o que pode o
corpo, Espinosa vai dizer então que seu conhecimento está condicionado a uma compreensão
precisa da natureza do corpo, e, para além disso, que a própria diferença entre uma ideia e outra,
bem como a superioridade de uma mente sobre outra mente, está sujeita ao conhecimento da
natureza de seu objeto que é o corpo (EII, P13, esc.). Digo, porém, que, em geral, quanto mais
um corpo é capaz, em comparação com outros, de agir simultaneamente sobre um número maior
de coisas, ou de padecer simultaneamente de um número maior de coisas, tanto mais sua mente
é capaz, em comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas
[...] É por esses critérios que podemos reconhecer a superioridade de uma mente sobre as outras,
bem como compreender por que não temos de nosso corpo senão um conhecimento muito
confuso, além de muitas outras coisas, as quais deduzirei, a seguir, do que acabo de expor (EII,
P13, esc.).

Um corpo não é uma substância ou uma coisa separada das outras, mas um modo, uma parte
intensiva de um todo do qual depende seu esforço de perseverar no ser, seu movimente e seu
repouso, sua velocidade e sua lentidão. Essa diferenciação relativa ao movimento, segundo
Espinosa, é aquilo que se refere sobretudo aos corpos mais simples (que, embora em graus
variados, são todos animados, isto é, possuem pensamento). Todavia, há ainda os corpos mais
compostos, cuja distinção, por sua vez, darse-á pelo seu grau de composição. Quando corpos
quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou
se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de
velocidade, de maneira a comunicarem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção
definida, diremos que esses corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo
ou indivíduo, que se distingue dos outros por essa união de corpos (EII, P13, Def.).

A dimensão afetiva da relação pedagógica e a produção do conhecimento como fabricação do


comum Se considerarmos apenas a mente dos homens, pode-se dizer que, sem dúvida, eles não
erram; se parecem, entretanto, errar, é porque julgamos que eles têm na mente exatamente os
mesmos números que estão no papel. Se não fosse essa última circunstância, não acharíamos
que eles erram, exatamente como não julguei que estivesse errado alguém que ouvi,
recentemente, gritar que o seu pátio tinha levantado vôo em direção à galinha do vizinho, pois
sua mente me parecia suficientemente clara(EII, P46, escol.).

A primeira forma, a partir de um modo específico de se relacionar com verdade, produz um


“discurso sem respostas”, com tendências ao silenciamento do outro, diz Alves (1980). “Isso
não está correto”, “isso é falso”, “isso é um absurdo”, “isso é verdadeiro”, são alguns de seus
enunciados. Já a segunda, a forma conversa, persegue um tipo de verdade que é da ordem da
continuidade e da composição, uma questão de “gosto”, no sentido de fazer valer alegrias
relacionadas aos diversos sentidos do corpo, como no caso da geleia que se busca “provar” em
Deleuze e Guattari. Questão de experimentação. Conversa é pra quem gosta, nos lembra Rubem
Alves, e deste ponto de vista o provar não mais se reduz aos rigores assépticos das ciências
tradicionais, isto é, daquelas que privilegiam a mente em detrimento do corpo, a cognição em
relação aos afetos. É nesse sentido que o mesmo autor vai dizer que neste outro estilo de
condução em relação à verdade, não se diz “isso é mentira” ou “isso é verdade”, mas sim que
aquilo que o outro diz pode ser melhorado, acrescentado, donde os anunciados do tipo: “isso
ainda não é nada”, “nem te conto”, “e tem mais”, “e não para por aí”. Ou seja, são maneiras de
se compor com o outro, dando continuidade a uma relação como obra aberta, cujo efeito é a
construção de planos existenciais cada vez mais complexos e alargados13 . “Aquele que começa
oferece um tema, dá um ponto, e passa a agulha ao outro... E assim a coisa vai sendo feita, como
tarefa de muitos” (ALVES, 1980, p. 3). O que se nos apresenta aqui é, ao mesmo tempo, uma
indicação de cunho pedagógico, ético e epistemológico. Ou, dito de outro modo, ao mesmo
tempo em que estas colocações desenham o horizonte de um certo modo de se relacionar com a
verdade, esboçam também um certo tipo de relação interpessoal que seria necessário estabelecer
para que dela possamos nos aproximar, ou seja, um tipo de relação pedagógica. A condição de
possibilidade de uma relação de aprendizado mútuo bem como da construção do próprio
conhecimento passa então por um certo regime afetivo de composição dos corpos, sendo a ideia
verdadeira, no sentido espinosano, seu correlato. É a partir desse ajuste de corpos que surge a
possibilidade de expansão da mente, uma vez que ela é a ideia do corpo. Trata-se, portanto, de
uma questão de método, e não de uma moral do respeito mútuo, ou de indulgência para com
aquilo que o outro traz, como se costuma dizer no meio educacional escolarizado. A partir dos
três afetos primários, quais sejam o desejo (cupiditas), a alegria e a tristeza (EIII, P11, esc.),
Espinosa construirá toda uma arquitetura de nossa existência. Nosso desejo, ou nossa potência
de agir, de afetar e ser afetado varia em função dos encontros que vamos fazendo com os outros
entes, uma vez que só existe desejo agenciado. À medida que esses encontros aumentam nossa
potência de agir, vivenciamos uma alegria (composição), caso contrário, experimentamos
tristeza (decomposição). O sentir e o pensar relacionados a essa experiência são indissociáveis,
uma vez que a mente é a ideia do corpo. Habitamos relações de forças afetivas que
necessariamente contrariam ou contribuem para a nossa perseveração em nosso próprio ser, para
nosso esforço (conatus) de agir. Somos, portanto, uma potência de afecção, uma potência de
encontro, uma capacidade de afetar e ser afetado, e quanto mais elevado é esse poder, maior será
nossa capacidade de agir e de pensar (EIV, P38). Mas o que se passa entre esse plano afetivo, no
qual somos atingimos de formas variadas, e a nossa capacidade de pensar, de inteligir? Ou seja,
como podemos pensar melhor?
Obviamente, nos afetando melhor, isto é, fazendo composições que aumentem tal disposição de
nosso corpo a afetar e a ser afetado, a agir. É por isso que dissemos acima que para Espinosa a
superioridade de uma mente está ligada a seu grau de composição. Como comenta Bove (2010),
dependendo do grau de aumento dessa capacidade de afetação, “pode ocorrer um fenômeno de
complexificação, de multiplicação, de variação: essa rede se torna mais densa e mais articulada.
Rede de que? Das nossas aptidões de afetar e sermos afetados, simultaneamente. Quando isso
acontece a partir de um limiar, podemos ter um tipo de ideia a que Espinosa denomina ‘ideias
verdadeiras’” (p.29-30). Caso contrário, quando essa potência de agir é constrangida ou
diminuída, experimentamos tristeza, cujo correlato intelectual é o que Espinosa chama de “ideia
inadequada”14. Toda ideia expressa um estado afetivo de nosso corpo, do modo como este é
afetado em ato (pedagogos ou psicólogos bem experimentados costumam saber disso). Não
mais garantia de verdades universais, a razão em Espinosa significa então essa potência de
afetar, de produção de efeitos e afetos em meio a outros entes singulares, “significa ser
mobilizado, modificado, transformado, tocado” (BOVE, 2010). Ora, na medida que nossa
potência de agir é uma questão de agenciamento - já que somos sempre com o outro- o
pensamento será sempre concebido como construção de estratégias no plano do coletivo, e
nunca uma questão relacionada a faculdades privadas. Tais características ficam bem nítidas nos
extratos das entrevistas de Deleuze e Guattari reunidas por Maggiori (2015), relativas às
maneiras de instruir-se mutuamente, onde aparece a imagem da geleia de groselha: “A questão
não é saber se a opinião é minha ou dele [...] Guattari estava dizendo: trata-se de uma ‘afinação’,
de um ajuste. Feito o ajuste, nascem então todos os conceitos que estão fervilhando” (p. 167).
Como se pode ver aqui, o ato pedagógico, quando acontece, é como efeito de uma certa
composição de corpos que aumenta a potência e, simultaneamente, expande a capacidade de
inteligir. O acontecimento pedagógico constitui-se, portanto, como uma qualidade intensiva
(aumento de potência) que se passa entre os corpos, num plano sempre comum, incitando-os a
ação, ao pensar ativo. Entretanto, uma das principais características dessa expansão, que em
Espinosa pode também ser definida como um maior grau de perfeição ou de liberdade, é que ela
não é redutível aos fins pré-estabelecidos pelas políticas pedagógicas de Estado que, como
afirmaram Deleuze e Guattari (2012), só admitem uma imagem do pensamento, qual seja,
aquela que se identifica com ele mesmo, transformando as singularidades compositivas em uma
unidade, rebatendo-as sobre a imagem representativa de um povo submetido a um poder
separado, isto é, transcendente a esta dinâmica mesma das forças em composição15. Como
definiu Rancière (2002) a propósito de uma educação emancipadora, Quem ensina sem
emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o
emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez. Ele saberá que pode
aprender porque a mesma inteligência está em ação em todas as produções humanas, que um
homem sempre pode compreender a palavra de um outro homem (p. 30) Acontece que essa
sintonia intensiva, ou estes estados afetivos comuns de aumento da potência articulada a uma
experiência compositiva do pensar, são mais fáceis de ser concebidos do que encontrados no
cotidiano. Como pensou Espinosa, isso acontece justamente por sermos seres afetivos, e por
estarmos geralmente submetidos a paixões tristes engendradas por um campo social
desfavorável, como é o caso do capitalismo contemporâneo, por exemplo. Daí que os humanos,
por mais que precisem uns dos outros para cultivar o corpo e a mente, e apesar de não
duvidarem dos benefícios advindos da concórdia, costumam ser mais invejosos que generosos,
mais afeitos à disputa e à competição do que à generosidade e à ajuda mútua, como acontece em
nossas escolas e academias. É nesse sentido que este pôde dizer que os homens combatem por
sua servidão como se fosse por sua liberdade (TTP, prefácio, p. 08), ou então que, apesar de
viverem entre muitos, experimentam uma solidão, ou um deserto de sociabilidade (TP, V, §4)
,aquilo que Espinosa concebe como uma animalização (TTP, cap. XX, p. 302). Para Espinosa, é
importante explicitar, não é a falta de conhecimento que embrutece e faz o rebanho, mas sim um
regime afetivo que implica um deserto de sociabilidade (EIV, P70). Ou seja, mesmo na mais
profunda ignorância, os homens demonstram ser capazes de ajuda e aprendizado mútuo, sendo
esse seu vetor de humanidade e, por consequência, o valor de uma educação. O conhecimento
pelo conhecimento não possui valor ético, nem tampouco potência de transformação. A esta
dificuldade político-social, e do ponto de vista da relação pedagógica propriamente dita, pode-se
ainda ser acrescentado o fato de os corpos-mentes serem compostos por uma multiplicidade de
corpos-mentes que se ligam a outros corpos-mentes e assim até o infinito (EIII, P13).
Caracterizada por uma relação de aliança e confronto, de composição e decomposição, a ligação
entre estes é marcada então por amplas variações, a ponto de serem levados até mesmo a sua
própria destruição, como é o caso das doenças autoimunes, onde alguns corpos-mentes em
conjunto passam a ser reconhecidos como estranhos ao todo do qual faziam parte. Isso quanto a
um indivíduo humano considerado particularmente. Se considerarmos agora a complexidade
envolvida num encontro de dois16 , de uma sala de aula ou quem sabe de uma instituição
educativa inteira, podemos imaginar as dificuldades de ajuste envolvidas nessas relações,
quando nosso horizonte é o de promover bons encontros, aumentando assim nossa potência de
pensar. Sem contar que, devido à natureza múltipla, variável e transitória de tais agenciamentos
de corpos-mentes, aquilo que compõem ou que alegra parte de um corpo-mente pode não
alegrar outras partes deste mesmo corpo-mente, ou então que um contentamento de hoje pode já
não ser o de amanhã, e viceversa. A partir do exposto acima, podemos pensar então que essa
pedagogia do comum, baseada na potência, na sensibilidade e na generosidade, tal como a vida
social em geral, é mais fácil de ser concebida que encontrada. Mas esse é, em todo caso, o
próprio desafio de uma pedagogia pensada a partir da ética espinosana, onde se diz que o
caminho que conduz à beatitude é tão difícil quanto raro. Do contrário, diz Espinosa, como se
explica que este caminho seja negligenciado por quase todos?17 Dada a dificuldade exposta
acima, relativa a esta dimensão conflitiva e indeterminada inerente às relações humanas,
Espinosa, inspirado em sua leitura de Maquiavel18, que ele denominou “arguto florentino”, nos
oferece uma passagem que, a nosso ver, pode ser transposta para nossas práticas pedagógicas,
sejam elas em uma sala de aula, em uma roda de conversa, em um conselho de classe, em um
grupo de estudos, de discussão de casos, entre outros. Remetendo-nos a história romana,
Espinosa nos diz: Porque se é verdade que enquanto os romanos deliberam Sagunto perece,
também é por outro lado verdade que, se forem poucos a decidir tudo de acordo apenas com o
seu afeto, perece a liberdade e o bem comum. Os engenhos humanos são, com efeito, demasiado
obtusos para que possam compreender tudo de imediato; mas consultando, ouvindo e
discutindo, eles aguçam-se e, desde que tentem todos os meios, acabam por encontrar o que
querem, que todos aprovam e em que ninguém havia pensado antes (TP, IX, 14). Ora, o que se
pode ver aqui, mais uma vez, é o elogio da multiplicidade como garantia da liberdade, da
produção do comum e, sobretudo, como metodologia de fabricação do impensado. E isso vale
tanto para um único indivíduo humano considerado particularmente quanto para um grupo
destes. A multiplicação dos sentidos e das diferenças, por mais

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Diego. Homo cogitat: igualdad spinozista de las inteligências. XIIº Colóquio Internacional
Espinosa e as Américas. Córdoba-ARG, 2015. (comunicação oral). i Doutor em psicologia pela
Universidade Federal Fluminense e psicólogo do quadro efetivo da Secretaria Municipal de
Educação da Cidade do Rio de Janeiro. Rj, Brasil. E-mail: renatogivigi@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-4896-5461. 2 No endereço http://spinozamericas.blogspot.com.br/ o
leitor pode encontrar reunidas as informações a respeito dos principias eventos, grupos de
estudo e publicações existentes em torno da filosofia de Espinosa. Acesso em: 10 Set. 2019.
_____________________________________________________________________ Revista
Interinstitucional Artes de Educar. Rio de Janeiro, V. 5, N.3- pág. 401-422 set-dez de 2019:
“Educação: Corpo em movimento.” – DOI: 10.12957/riae.2019.45273 421 3Esta publicação
encontra-se disponível no endereço eletrônico:
https://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/rfe/issue/view/262. Acesso em: 10 Set. 2019. 4 Vale
ressaltar que o “antes” aqui não diz respeito a um exercício de preparação que antecede a vida
mesma, como é o caso da moratória social produzida pela escolarização moderna. Curar a
inteligência diz respeito a uma maneira de viver, no sentido de uma dietética na relação com
pessoas e coisas. 5 O sistema de referenciação dos estudos espinosanos convencionado por seus
estudiosos e indicado pelo próprio Espinosa se organiza da seguinte forma: E – Ética
Demonstrada em Ordem Geométrica (P – Proposição; A – Apêndice; Ax. – Axiomas; Cor. –
Corolário; Def. Af. – Definição dos Afetos; Def. – Definição; Dem. – Demonstração; Ex. –
Explicação; Pref. – Prefácio; L – Lema; Esc. – Escólio); TP – Tratado Político (Cap. e
parágrafos); TIE – Tratado da Emenda do Intelecto (parágrafos), TT-P – Tratado Teológico
Político (Cap. e páginas). 6 EII, P10, esc. 7 Segundo Chauí (1990, p. 60), a grande novidade do
espinosismo seria esta, ou seja, a de imprimir o infinito no finito, de conceber os modos finitos
como determinações do próprio infinito. 8 EII, P5, Cor. e EII, Def. 3, onde se diz: “Por ideia
compreendo um conceito da mente, que a mente forma porque é uma coisa pensante.
Explicação. Digo conceito e não percepção, porque a palavra percepção parece indicar que a
mente é passiva relativamente ao objeto, enquanto conceito parece exprimir uma ação da
mente”. 9TIE §12 e §13. 10 “É, pois, por um único movimento que chegaremos, se for possível,
a captar a potência do corpo para além das condições dadas do nosso conhecimento, e a captar a
força da mente, para além das condições dadas da nossa consciência” (Deleuze, 2002, p 24).
11EII, P15, esc. 12 Esses trechos compõem um texto montado de conversas com Deleuze e
Guattari, recolhidas por Robert Maggiori, no jornal parisiense Libération (12 de setembro
1991), p. 17-19. Estes foram traduzidos para o português e publicados em Revista Trágica:
estudos de filosofia da imanência (MAGGIORI, 2015). 13 Cabe-nos ao menos fazer notar, uma
vez que esta inflexão nos faria ultrapassar o escopo de um artigo, que este modo específico de se
relacionar com o saber e com os outros pode também ser extraído dos eventos cotidianos da
vida de Espinosa, ou seja, na forma como ele mesmo se comunicava com seus pares, seus
opositores intelectuais, e também com pessoas comuns. Espinosa não está alinhado com a
tradicional imagem do filósofo solitário e sisudo. Seu pensamento e sua obra foram constituídos
e constantemente reformulados à base de comunicações intensas. Numa de suas inúmeras trocas
epistolares, por sinal com um de seus opositores, um teólogo calvinista de nome William de
Blyenbergh, Espinosa deu a esta relação o nome de “erudição mútua” (erudire possimus), daí
nos utilizarmos desta noção ao longo do texto (Obra Completa II, p. 129, Ep. 21). Foram muitos
aqueles com que o pensador de Amsterdã pode estabelecer tal relação. Albert Burgh, Oldenburg,
Boxel, De Vries, Tschirnhaus, Boreel, Balling, Koerbagh, Bouwmeester, Meyer, Jelles, apenas
para citar alguns que fizeram parte daquilo que podemos chamar de círculo de amigos de
Espinosa. A título de exemplo, gostaríamos de mencionar, todavia, o famoso episódio da viúva
Van Velden, uma pessoa comum. Indo morar em Haia, Espinosa ficou alojado em sua pensão
por um curto período de tempo. Já tendo notícias da posição crítica de Espinosa com relação às
escrituras sagradas, esta o questiona se poderia ser salva através da religião que seguia.
Espinosa, mesmo tendo uma maneira diversa de pensar esta questão, não busca persuadi-la às
suas opiniões, respondendo apenas: “Vossa religião é boa, vós não deveis procurar outra nem
duvidar que vós não obtenhais vossa salvação, contanto que ao vos dedicar à piedade, vós leveis
ao mesmo tempo uma vida agradável e tranquila” (Colerus, 2015). Como podemos perceber,
essa não seria a imagem típica de um professor, que tradicionalmente, como um pastor, se
esforça em transmitir aquilo que acredita ser a verdade, ainda que de formas mais abrandadas,
lúdicas, pseudodemocráticas, ou ao gosto do freguês, como se passa no contemporâneo. Ora,
como já o vimos, a atitude de Espinosa assenta-se em sua concepção imanente de conhecimento,
relativa a um afetar-se melhor que corresponde a própria noção de verdade. Desse modo,
enquanto a Sra. Van Velden o questiona sobre as consequências de se substituir uma verdade
transcendente por outra, Espinosa, como um exímio educador, a responde de forma imanente,
compositiva. Ou seja, se aquilo em que acredita a faz bem, não há porque mudar. Em Espinosa,
o sábio é aquele que alcançou o gozo de uma certa forma de afetividade, enquanto o vulgo é
aquele que vive oscilando de uma verdade transcendente a outra, acreditando apenas aquilo que
ainda não o enganou, coisa que as religiões, os políticos e os marqueteiros sabem muito bem
como aproveitar. 14 “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de
agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas
afecções. Explicação. Assim, quando podemos ser
_____________________________________________________________________ Revista
Interinstitucional Artes de Educar. Rio de Janeiro, V. 5, N.3- pág. 401-422 set-dez de 2019:
“Educação: Corpo em movimento.” – DOI: 10.12957/riae.2019.45273

Vivendo de Amor (por Bell


Hooks)

O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar. Meu trecho
favorito do Evangelho segundo São João é o que diz: "Aquele que não ama
ainda está morto".

Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum
amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida
em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente
falam abertamente sobre isso.

Não tem sido simples para as pessoas negras desse país entenderem o que
é amar. M. Scott Peck define o amor como "a vontade de se expandir para
possibilitar o nosso próprio crescimento ou o crescimento de outra pessoa",
sugerindo que o amor é ao mesmo tempo "uma intenção e uma ação".
Expressamos amor através da união do sentimento e da ação. Se
considerarmos a experiência do povo negro a partir dessa definição, é
possível entender porque historicamente muitos se sentiram frustrados como
amantes.

O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis


para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições
difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a
exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar.

Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos


negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do
racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação
são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós
negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, "feridos até o
coração", e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade
de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos
naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade
de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos.
Mas ao fazer
essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber
amor.

O Impacto da Escravidão no Ato de Amar

Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram a partir


do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já que nossos
ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus amantes,
companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que viveram em
extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famílias e
comunidades, não poderiam ter saído desse contexto entendendo essa coisa
que a gente chama de amor. Elas sabiam, por experiência própria, que na
condição de escravas seria difícil experimentar ou manter uma relação de
amor.

Imagino que, após o término da escravidão, muitos negros estivessem


ansiosos para experimentar relações de intimidade, compromisso e paixão,
fora dos limites antes estabelecidos. Mas é também possível que muitos
estivessem despreparados para praticar a arte de amar. Essa talvez seja a
razão pela qual muitos negros estabeleceram relações familiares espelhadas
na brutalidade que conheceram na época da escravidão. Seguindo o mesmo
modelo hierárquico, criaram espaços domésticos onde conflitos de poder
levavam os homens a espancarem as mulheres e os adultos a baterem nas
crianças como que para provar seu controle e dominação. Estavam assim se
utilizando dos mesmos métodos brutais que os senhores de engenho usaram
contra eles. Sabemos que sua vida não era fácil; que com a abolição da
escravatura os negros não ficaram imediatamente livres para amar.

Depoimentos de escravos revelam que sua sobrevivência estava muitas vezes


determinada por sua capacidade de reprimir as emoções. Num documento
datado em 1845, Frederick Douglass lembra que foi incapaz de se sensibilizar
com a morte de sua mãe, por ter sido impedido de manter contato com ela. A
escravidão condicionou os negros a conter e reprimir muitos de seus
sentimentos. O fato de terem testemunhado o abuso diário de seus
companheiros- o trabalho pesado, as punições cruéis, a fome- fez com que se
mostrassem solidários entre eles somente em situações de extrema
necessidade. E tinham boas razões para imaginar que, caso contrário, seriam
punidos. Somente em espaços de resistência cultivados com muito cuidado,
podiam expressar emoções reprimidas. Então, aprenderam a seguir seus
impulsos somente em situações de grande necessidade e esperar por um
momento "seguro" quando seria possível expressar seus sentimentos.

Num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam
juntos, que forma o amor tomaria? Praticar o amor nesse contexto poderia
tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável. De forma geral,
era mais fácil para os escravos se envolverem emocionalmente, sabendo que
essas relações seriam transitórias. A escravidão criou no povo negro uma
noção de intimidade ligada ao sentido prático de sua realidade. Um escravo
que não fosse capaz de reprimir ou conter suas emoções, talvez não
conseguisse sobreviver.

Emoções Reprimidas: A Chave da Sobrevivência

A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de sobrevivência


continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo depois da escravidão.
Como o racismo e a supremacia dos brancos não foram eliminados com a
abolição da escravatura, os negros tiveram que manter certas barreiras
emocionais. E, de uma maneira geral, muitos negros passaram a acreditar que
a capacidade de se conter emoções era uma característica positiva. No
decorrer dos anos, a habilidade de esconder e mascarar os sentimentos
passou a ser considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os
sentimentos era uma bobagem.

Tradicionalmente, as famílias do Sul do país ensinavam as crianças ainda


pequenas que era importante reprimir as emoções. Normalmente as crianças
aprendiam a não chorar quando eram espancadas. Expressar os sentimentos
poderia significar uma punição ainda maior. Os pais avisavam: "Não quero ver
nem uma lágrima". E se a criança chorava, ameaçavam: "Se não parar, vou te
dar mais uma razão para chorar." Como é possível diferenciar esse
comportamento daquele do senhor de engenho que espancava seu escravo
sem permitir que ele experimentasse qualquer forma de consolo, ou mesmo
que tivesse um espaço para expressar sua dor? E se tantas crianças negras
aprenderam desde cedo que expressar as emoções é sinal de fraqueza, como
poderiam estar abertas para amar? Muitos negros têm passado essa idéia de
geração a geração: se nos deixarmos levar e render pelas emoções, estaremos
comprometendo nossa sobrevivência. Eles acreditam que o amor diminui
nossa capacidade de desenvolver uma personalidade sólida.

Em Algum Momento Você Nos Amou?

Quando eu era criança, percebia que fora do contexto da religião e do


romance, o amor era visto pelos adultos como um luxo. A luta pela
sobrevivência era mais importante do que o amor. Somente as pessoas mais
velhas - nossas avós e bisavós, nossos avôs e bisavôs, nossos padrinhos e
madrinhas -pareciam dedicadas a arte e ao ato de amar. Elas nos aceitavam,
cuidavam de nós, nos davam atenção e principalmente, afirmavam nossa
necessidade de experimentar prazer e felicidade. Eram carinhosas e o
demonstravam fisicamente. Nossos pais e sua geração, que só pensavam em
subir na vida, geralmente passavam a impressão de que o amor é uma perda
de tempo, um sentimento ou um ato que os impedia de lidar com coisas mais
importantes.

Quando eu dava aulas sobre o livro Sula, de Toni Morrison, reparava que
minhas alunas se identificavam com um trecho no qual Hannah, uma mulher
negra já adulta, pergunta a sua mãe, Eva: "Em algum momento você nos
amou?" E Eva responde bruscamente: "Como é que você tem coragem de me
fazer essa pergunta? Você não tá aí cheia de saúde? Como não consegue
enxergar?" Hannah não se satisfaz com a resposta, pois sabe que a mãe
sempre procurou suprir suas necessidades materiais. Ela está interessada num
outro nível de cuidado, de carinho e atenção. E diz para Eva: "Alguma vez você
brincou com a gente?" Mais uma vez, Eva responde como se a pergunta fosse
totalmente ridícula: Brincar? Ninguém brincava em 1895. Só porque agora as
coisas são fáceis, você acha que sempre foram assim? Em 1895 não era nada
fácil. Era muito duro. Os negros morriam como moscas... Cê acha que eu ia
ficar brincando com crianças? O que é que iam pensar de mim?

A resposta de Eva mostra que a luta pela sobrevivência não significava


somente a forma mais importante de carinho, mas estava acima de tudo.
Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é
sinônimo de amar. Mas é claro que mesmo quando se possui privilégios
materiais, o amor pode estar ausente.

E num contexto de pobreza, quando a luta pela sobrevivência se faz


necessária, é possível encontrar espaços para amar e brincar, para se
expressar criatividade, para se receber carinho e atenção. Aquele tipo de
carinho que alimenta corações, mentes e também estômagos. No nosso
processo de resistência coletiva é tão importante atender as necessidades
emocionais quanto materiais.

Não é por acaso que o diálogo sobre o amor no livro Sula se dá entre duas
mulheres negras, entre mãe e filha. Sua relação simboliza uma herança que
será reproduzida em outras gerações. Na verdade Eva não alimenta o
crescimento espiritual de Hannah, e Hannah não alimenta o crescimento
espiritual de sua filha, Sula. Mas Eva simboliza um modelo de mulher negra
"forte", de acordo com seu estilo de vida, por sua capacidade de reprimir
emoções e garantir sua segurança material. Essa é uma forma prática de se
definir nossas necessidades, como naquela canção de Tina Turner: "O que é
que o amor tem a ver com isso?"

Se Conhecêssemos o Amor

O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas


as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em
nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos,
desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das
mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na
sociedade que nos permitam viver plenamente.

Geralmente enfatizam nossa capacidade de "sobreviver" apesar das


circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos
amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar
condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras
não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor.

Para conhecermos o amor, primeiro precisamos aprender a responder as


nossas necessidades emocionais. Isso pode significar um novo aprendizado,
pois fomos condicionadas a achar que essas necessidades não eram
importantes. Por exemplo, no seu livro, O Hábito da Sobrevivência: Estratégias
de Vida das Mulheres Negras, Kesho Scott relata uma experiência importante
que a ensinou a sobreviver: Medindo treze anos, permaneci parada em frente a
porta da sala. Minhas roupas estavam molhadas. Meus cabelos pingando.
Estava chorando, chocada, precisando do colo da minha mãe. Ela me olhou de
cima a baixo, devagar, levantou-se do sofá e caminhou ao meu encontro com o
corpo carregado de críticas. Parada, com as mãos na cintura, sua sombra
caindo sobre meu rosto, perguntou sem conseguir esconder a raiva: "O que
aconteceu?" Hesitei como se surpresa por sua raiva e respondi: "Elas
colocaram minha cabeça na privada. Disseram que não posso nadar com
elas". "Elas" eram oito meninas brancas da escola. Tentei abraçá-la, mas ela se
afastou bruscamente dizendo: "Que inferno! Pegue seu casaco e vamos
embora".

Naquele momento Keshno estava aprendendo que suas necessidades


emocionais não eram importantes. Logo depois ela escreve: "Minha mãe me
ensinou uma valiosa lição naquele dia. Aprendi que deveria lutar contra a
discriminação racial e sexual". É claro que essa é uma lição importante para as
mulheres negras. Mas Keshno estava também aprendendo uma lição dolorosa,
ao sentir que não merecia ser consolada após uma experiência traumática,
como se não devesse nem mesmo esperar por isso, como se suas
necessidades individuais não fossem tão importantes quanto a luta de
resistência coletiva contra o racismo e o sexismo. Imaginem como essa história
seria diferente se, ao entrar na sala tão abalada, Keshno tivesse recebido o
consolo de sua mãe, e se primeiro sua mãe a ajudasse a se pentear e arrumar,
para depois então explicar a necessidade de confrontar (talvez não naquele
momento, se Keshno não estivesse preparada emocionalmente para o
confronto) as alunas brancas que a atacaram. Dessa forma Keshno teria
aprendido, aos treze anos, que sua saúde emocional era tão importante quanto
o movimento contra o racismo e o sexismo - que na verdade essas duas
experiências estavam interligadas.

Muitas de nós, mulheres negras, aprendemos a negar nossas necessidades


mais íntimas, enquanto Desenvolvíamos nossa capacidade de confrontar a
vida pública. É por isso que constantemente parecemos ter sucesso no
trabalho, mas não na vida privada. Vocês entendem o que estou querendo
dizer. Quando vemos uma mulher negra aparentemente segura de si, de seu
trabalho, é bem provável que se formos visitá-la sem avisar, com exceção da
sala, todo o resto da casa vai estar a maior bagunça, como se tivesse passado
um furacão. Creio que esse caos representa uma reflexão de seu interior, da
falta de cuidado consigo própria. A partir do momento que acreditarmos, de
preferência desde crianças, que nossa saúde emocional é importante,
poderemos suprir nossas outras necessidades.

Muitas vezes confundimos o reconhecimento de nossas emoções com o desejo


de se manter em controle. Quando ignoramos nossas reais necessidades, a
tendência é nos fragilizarmos, nos tornarmos vulneráveis e emocionalmente
instáveis. As mulheres negras se esforçam muito para esconder essa situação.

Voltando a falar da mãe de Keshno, é provável que a dor de sua filha tenha
trazido recordações de suas próprias feridas, nunca reveladas. Será que
assumiu aquela atitude crítica, dura, ou mesmo cruel, para não se expor,
chorar, e deixar de ser "uma mulher negra forte"? Mas se tivesse chorado, sua
filha saberia que ela se identificava com aquela dor, que seria possível falar
sobre o assunto, que não precisaria guardar essa dor.
Essa atitude representa o que muitas de nós presenciamos em circunstâncias
semelhantes - ela mantinha o controle. Até mesmo sua postura física
significava que mantinha o domínio da situação. Claro que, como mulher negra,
essa mãe queria que sua presença fosse mais poderosa do que as meninas
brancas. Um modelo de mãe que sabe como apoiar sua filha numa situação de
sofrimento é representado no romance Sassafrass, Cypress e Indigo, de
Ntozake Shange. Esse livro retrata mulheres negras como personagens
fortalecidos pelo amor de sua mãe. Mesmo quando não concorda com certas
opções de suas filhas, essa mãe as trata com respeito e oferece consolo. Esse
é um trecho de uma carta que ela escreve para Sassafrass, que passa por
dificuldades e quer voltar para casa. A carta começa assim: "Claro que você
pode voltar pra casa! Aconteça o que acontecer, nunca vou deixar de te amar".
Primeiro ela demonstra seu amor, depois aconselha, e volta a expressar seu
amor: Você e Cypress me deixam louca com seu estilo de vida alternativo.
Vocês precisam parar de nadar contra a corrente. Você sabe o que quero
dizer... Lembre-se disso. Volte para casa e vamos resolver essa situação. Você
terá muitas opções e ninguém vai te chatear ou te enganar. Nada como um dia
depois do outro. Você acorda. Você come, vai trabalhar, volta pra casa, come
outra vez, descansa, e vai dormir. Nossa situação melhorou. Continuo me
perguntando onde foi que errei. Mas no fundo sinto que não estou errada.
Estou certa. O mundo está de cabeça pra baixo e está tentando enlouquecer
as minhas filhas. Agora chega. Eu te amo muito. Você está se tornando uma
mulher adulta e sei o que isso significa. Volte para casa. Sei que vai descobrir
algo mais sobre você. Com amor, Mamãe.

Amando Aquilo Que Vemos

A arte e a prática de amar começam com nossa capacidade de nos conhecer e


afirmar. É por isso que tantos livros de auto-ajuda dizem que devemos mirar-
nos num espelho e conversar com nossas próprias imagens. Tenho percebido
que às vezes não amo a imagem ali refletida. Eu a inspeciono. Desde que
acordo e me vejo no espelho, começo a me analisar, não com a intenção de
me afirmar, mas de me criticar. Isso era comum lá em casa. Quando eu e
minhas cinco irmãs descíamos as escadas em direção àquele território
ocupado por meu pai, minha mãe e meus irmãos, entrávamos no mundo da
"crítica". Tudo era observado e tudo estava errado conosco. Raramente uma de
nós era elogiada.

Quando substituo a crítica negativa pelo reconhecimento positivo, sinto-me


mais forte para começar o dia. A afirmação é o primeiro passo para cultivarmos
nosso amor interior. Uso a expressão "amor interior" e não "amor próprio"
porque a palavra "próprio" é geralmente usada para definir nossa posição em
relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não
aprende a reconhecer que sua vida interior é importante.

A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que


outros entendam a importância de sua vida interior. Se passarmos a explorar
nossa vida interior, encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. E se
nos permitirmos sentir, afirmaremos nosso direito de amar interiormente. A
partir do momento em que conheço meus sentimentos, posso também
conhecer e definir aquelas necessidades que só serão preenchidas em
comunhão ou contato com outras pessoas.

Onde está o amor, quando uma mulher negra se olha e diz: "Vejo uma pessoa
feia, escura demais, gorda demais, medrosa demais - que não merece ser
amada, porque nem eu gosto do que vejo" Ou talvez: "Vejo uma pessoa tão
ferida, que é pura dor, e não quero nem olhar pra ela porque não sei o que
fazer com essa dor". Aí o amor está ausente. Para que esteja presente é
preciso que essa mulher decida se olhar internamente, sem culpa e sem
censura.

E ao definir o que vê, talvez perceba que seu interior merece ou precisa de
amor. Nunca ouvi uma mulher negra dizer num grupo de apoio que não precisa
de amor. Ela pode até querer esconder essa necessidade, mas não é preciso
muito tempo de análise para que reconheça isso. Se perguntarmos diretamente
a uma mulher negra se ela precisa de amor, a resposta provavelmente será
positiva. Para nos amarmos interiormente, precisamos antes de tudo prestar
atenção, reconhecer e aceitar essa necessidade. Se acreditarmos que não
seremos punidas por reconhecermos quem somos ou o que sentimos,
poderemos entender melhor nossas dificuldades.

Normalmente entrevisto a mim mesma e acho que outras mulheres devem


fazer o mesmo. Às vezes é difícil entrar em contato com meus sentimentos,
mas ao me fazer uma pergunta, geralmente encontro a resposta.

Algumas vezes a gente se olha e vê tanta confusão, tanta dor, que não
sabemos o que fazer. Então precisamos procurar ajuda. Às vezes ligo para
meus amigos e digo: "Não consigo entender o que sinto e não sei o que fazer,
você pode me ajudar?" Muitas mulheres negras não têm coragem de pedir
ajuda, pois isso significaria um sinal de fraqueza. Precisamos nos livrar desse
condicionamento. Ter capacidade de pedir ajuda significa que temos poder.
Cada vez que buscamos ajuda nosso poder aumenta, ao invés de diminuir.
Experimente. Geralmente buscamos ajuda em momentos de crise. Mas
podemos evitar a crise se reconhecermos nossa dificuldade em lidar com uma
determinada situação. Para as mulheres negras acostumadas a manter o
controle das situações, pedir ajuda pode significar a prática do amor, da
confiança, reconhecendo que não precisamos resolver tudo sozinhas. A prática
de se amar interiormente nos revela o que o nosso espírito necessita, além de
nos ajudar a entender melhor as necessidades das outras pessoas.

As mulheres negras que escolhem ( e aqui enfatizo a palavra "escolhem")


praticar a arte e o ato de amar, devem dedicar tempo e energia expressando
seu amor para outras pessoas negras, conhecidas ou não. Numa sociedade
racista, capitalista e patriarcal, os negros não recebem muito amor. E é
importante para nós que estamos passando por um processo de
descolonização, perceber como outras pessoas negras respondem ao sentir
nosso carinho e amor. Outro dia minha amiga T. me contou que faz questão de
visitar e conversar com o senhor de idade que trabalha numa loja perto de sua
casa. E recentemente ele expressou sua gratidão pelo carinho que recebe
dela. Anos atrás, quando ela passava por um processo de autodestruição, não
tinha "vontade" de mostrar seu carinho. Hoje ela passa para ele o mesmo
carinho que espera receber de outras pessoas.
Quando eu era criança algumas mulheres negras me amaram de forma
"incondicional". Assim aprendi que o amor não precisa ser conquistado. Elas
me ensinaram que eu merecia ser amada; seu carinho nutriu meu crescimento
espiritual.

Muitos negros, e especialmente as mulheres negras, se acostumaram a não


ser amados e a se proteger da dor que isso causa, agindo como se somente as
pessoas brancas ou outros ingênuos esperassem receber amor. Uma vez disse
para algumas mulheres negras que gostaria de viver em um mundo onde
existisse amor, onde pudesse amar e ser amada. Depois disso elas passaram
a rir de mim sempre que nos encontrávamos. Para que esse mundo possa
existir é preciso acabar com o racismo e todas as formas de dominação. Se
escolho dedicar minha vida à luta contra a opressão, estou ajudando a
transformar o mundo no lugar onde gostaria de viver.

O Amor Cura

O "Poema da Mulher" de Nikki Giovanni foi importante para que eu percebesse


o processo de autodestruição das mulheres negras. Publicado no livro, A
Mulher Negra, editado por Toni Cade Bambara, esse poema termina assim:
"olhe para aquela que teve toda sua vida marcada pela infelicidade porque é a
única verdade que conheço". Nesse poema, Giovanni não apenas sugere que
as mulheres negras foram socializadas para cuidar dos outros e ignorar suas
necessidades, como também mostra como a autodestruição nos faz abandonar
aqueles que nos querem. A mulher negra diz: "Como você se atreve a me
querer - isso não faz sentido - porque se eu sou uma merda, você deve ser pior
ainda".

Esse poema foi escrito em 1968. Algumas décadas depois, as mulheres negras
continuam lutando para reconhecer sua dor e encontrar formas de curá-la.
Aprender a amar é uma forma de encontrar a cura. A idéia de que o amor
significa a nossa expansão no sentido de nutrir nosso crescimento espiritual ou
o de outra pessoa, me ajuda a crescer por afirmar que o amor é uma ação.
Essa definição é importante para os negros porque não enfatiza o aspecto
material do nosso bem-estar. Ao mesmo tempo que conhecemos nossas
necessidades materiais, também precisamos atender às nossas necessidades
emocionais. Gosto muito daquele trecho da bíblia, nos "Provérbios", que diz:
"Um jantar de ervas, onde existe amor, é melhor que uma bandeja de prata
cheia de ódio".

Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do


amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente
as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para
enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e
crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível
enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e
sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura.

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