Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO
ABSTRACT
This article intends to approach the Heideggerian notion of freedom, which is not
only a means of diagnosing normal and pathological experiences, but also the very horizon
of the Daseinsanalitical therapy itself. According to Heidegger, freedom is our
transcendental opennes for existential possibilities. This notion of freedom is so
fundamental that is the ontological condition for many others experiences and definitions of
freedom, such as the free will, the negative, and the positive freedom.
This text intends to ilumminate the peculiarities of the freedom as the horizon of
Daseinsanalysis. It does that based on a phenomenological approach on the freedom
experienced through Dasein’s temporalitly, and on the freedom enhanced through the
therapeutic meeting.
1
Da-sein é o termo usado por Heidegger para nomear o ser-aí que nós mesmos somos.
Heideggeriana de liberdade vinculada a temporalidade de Dasein, para então pensá-la como
(4) referência para o trabalho clínico em Daseinsanalise.
1. ‘Liberdade’ na filosofia
2
Berlim, 1958, Two Concepts of Liberty
3
Thiele, Leslie, 1994, Heidegger on Freedom: political not metaphysical, p. 3
4
Tugendhat, Ernest, 1991, Philosophische Aufsatze, p. 356
5
Boss, Medard, Existential Foundations of Medicine and Psychology, p. 123
6
Heidegger, Martin, Zollikoner Seminare, p. 272
nem mesmo as coisas que agora estamos vendo ao nosso redor. A abertura é a condição
para nossa resposta perceptiva ao fenômeno do mundo, pois ela permite nosso
envolvimento com o sentido do mundo encontrado, que pode revelar-se como o que ele é.
Esta noção de liberdade como abertura é tão fundamental que é a condição necessária para
todas as outras perspectivas de liberdade poderem se manifestar.
Liberdade como abertura é o fundamento não apenas para o conceito de liberdade
de Tugendhat (escolha, capacidade e oportunidade), mas também para a liberdade positiva
e negativa de Berlin. Nosso ser-aberto para perceber diferentes possibilidades de ação é a
condição para nossa liberdade de escolha. Nossa capacidade de agir no mundo só pode se
manifestar por termos um mundo no qual atuar, e nossa possibilidade de “ter mundo” é
dada através de nossa abertura. É também através de nossa abertura que nós descobrimos as
oportunidades que nos são oferecidas. A liberdade negativa definida por Berlin (livrar-se
de restrições) existe apenas se as restrições do mundo puderem aparecer como restrições,
fato sustentado por nossa possibilidade de ser-aberto. Finalmente, a liberdade positiva
(livrar-se para algo) é possibilitada em nossa abertura para a perspectiva do futuro, que
orienta o presente e ilumina o passado. Segundo Heidegger, nós somos livres tanto em
nossa abertura para os entes mundanos, incluindo nós mesmos, quanto através de nosso
próprio poder-ser7. Liberdade é nosso ser-aberto para estas solicitações existenciais, que
motivam nossas ações mas não se configuram como causa8. Heidegger afirma que nossa
liberdade como abertura não tem qualquer relação com a cadeia causal determinista.
Uma das principais razões para a obscuridade do conceito de liberdade é a aparente
contradição entre liberdade e determinismo. Hannah Arendt diz que, se por um lado,
sabemos que somos livres, portanto responsáveis por nossos atos, por outro, constatamos
que nosso cotidiano é também orientado pelo principio da causalidade 9. Arendt afirma que,
no âmbito prático e político, a existência da liberdade parece ser considerada uma verdade
óbvia, mas que no campo das ciências, nós tendemos a acreditar que, em última análise,
nossas vidas são sujeitadas à lei da causalidade.
Neste sentido, a Psicologia, procurando o seu lugar entre as ciências, tende a buscar
com freqüência na esfera da psique as causas para as diversas condutas humanas. Mas
como as teorias psicológicas combinam liberdade e causalidade? Como elas compreendem
a própria liberdade humana? Como o conceito de liberdade repercute no próprio trabalho
psicoterapêutico? Não pretendo aqui aprofundar esta discussão, mas apenas focar o modo
como a Daseinsanalise compreende e aborda estas questões.
Para pensarmos o lugar da liberdade no fazer terapêutico da Daseinsanalise, pretendo
primeiro aproximar algumas compreensões de liberdade que estão sedimentadas em nosso
viver cotidiano. De fato, as pessoas que procuram a psicoterapia costumam estar
experimentando algum modo peculiar de restrição, e vêem no processo terapêutico a
possibilidade de encontrar um modo mais livre de ser-no-mundo. Entretanto, julgo
fundamental questionarmos quais perspectivas de liberdade são comumente esperadas
como resultado do processo terapêutico, bem como pensarmos qual é a possibilidade de
liberdade que rigorosamente se legitima como o horizonte e o critério diagnóstico para
Daseinsanálise.
7
Em Being and Time, p. 264, Heidegger fala sobre a projeção de Dasein, abertura para seu
poder-ser.
8
Heidegger, Martin, Zollikoner Seminare, p. 272
9
Arendt, Hannah, 1968, Between the past and the future, p. 143
Liberdade e poder
10
Boss, 1994, p.124
11
Heidegger, The Essence of Reasons, p. 129
12
Aprofundarei esta compreensão de liberdade no capítulo Liberdade em Heidegger.
tem apenas a possibilidade de se revelar em movimento e de ser acolhida como um modo
de ‘fundar mundo’ possível num dado tempo daquela história.
13
Este termo “circulo hermenêutico virtuoso” foi utilizado por Carlos Eduardo Freire, em uma
palestra sobre as peculiaridades da Daseinsanálise, realizada em outubro de 2010.
14
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p. 99
15
Borges, Jorge Luis, The Unending Gift
Agora, em New England, sei que morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos. (Só os
deuses podem prometer porque são imortais)
Pensei em um lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa mais, uma coisa, uma
das vaidades ou hábitos da casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e
qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o
fim. Obrigado Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, pois na promessa há algo immortal.)”
16
Guimarães Rosa, Noites do Sertão: Buriti, Ficção Completa, v.1 p.940
17
Heidegger, 1929, A essência do fundamento, em Marcas do Caminho, p. 177
18
Idem, p. 177-184
(limitação do mundo que vem ao encontro) que legitima a história de Dasein e funda
mundo. Este movimento de transcendência de Dasein, o fundar da liberdade dos homens,
se realiza em três momentos interligados, transitórios e cíclicos. O primeiro deles é o
fundar que nos projeta no futuro, que nos permite estar à frente de nós mesmos, excedendo
o solo firme do presente para tecer no abismo do futuro. Heidegger chama este modo de (1)
fundar como erigir. O segundo modo do fundar da liberdade humana é o próprio ato de
fazer chão. Fazer chão é diferente de projetar chão. O projeto se faz no excesso e o ato se
dá na restrição do mundo em que é realizado. O processo de (2) fundar como tomar-chão é
limitado tanto pela afinação do momento em que se realiza, quanto pelas circunstâncias de
mundo que vem ao nosso encontro no momento de tomar-chão. O terceiro modo é o fundar
que possibilita o desvelamento da verdade ôntica, que legitima a história de cada Dasein em
particular. Os projetos que tomam chão viram história, que no fundar da liberdade humana
pode ser revelada a partir de diferentes tonalidades no transcorrer do tempo. Legitimar cada
verdade da história é fundamentar o fundamento transitório que possibilita nossa abertura
ao futuro e ao presente. Este modo de exercício da liberdade é nomeado por Heidegger de
(3) fundar como fundamentar.
Tanto o movimento de erigir, quanto os de tomar-chão e fundamentar são
necessários para o fundar da liberdade humana como transcendência. Estes três modos de
fundar fazem parte de um único circulo virtuoso, que só é possível como temporalidade que
integra em movimento presente-passado-futuro. Fundando a própria liberdade, Dasein se
projeta no futuro (excesso), cai jogado no chão do mundo presente de modo afinado
(limitação) e se torna história do passado legitimada, que fundamenta o projeto futuro, e
assim sucessivamente. É a fluidez deste percurso circular transcendente, a medida possível
para a liberdade de Dasein.
4. Liberdade na Daseinsanálise
“Terapia é pro-cura, via poiesis, pela verdade que liberta para a dedicação ao sentido.”19
19
Pompéia, João Augusto, 2000, Uma caracterização da terapia, revista ABD n. 9, p. 19
Dasein) de modo a guardar o espaço de sua escuridão. Os gregos nomearam de aletheia
esta verdade que se liberta na clareira envolta em escuridão.
Heidegger diz que “a liberdade é a própria essência da verdade” 20, já que o vir-a-
ser da verdade só pode acontecer a partir da abertura de liberdade de Dasein. É a abertura
(liberdade) de Dasein que fundamenta a possibilidade de aparecimento da verdade que se
procura na terapia. Entretanto, a aparição ou não da verdade não está sob o livre arbítrio
dos homens, não pode ser voluntariamente provocada por pacientes ou terapeutas. O que
podemos fazer como terapeutas é guardar um espaço aberto (livre) que possa acolher o
aparecimento, ou não, da verdade singular que ‘quer’ ser des-velada para o paciente e
testemunhada pelo terapeuta.
A guarda deste espaço pode ser confundida com uma postura exclusivamente passiva,
indiferente, mas de modo algum o é. Guardar este espaço de “liberdade que deixa que
cada ente seja o que ele é” 21é tarefa intensa e trabalhosa. Em terapia, o paciente atua
revelando o seu mundo a si mesmo e a seu terapeuta, compartilhando a familiaridade com
que habita sua própria existência. Entretanto, os homens não habitam apenas no mundo
cuja existência concreta é um consenso, os homens habitam naquilo que não-é – os homens
habitam poeticamente22. Esta afirmação não pensa a poesia como literatura, nem a
habitação como construção de tijolos. Os homens habitam em poiesis, que em grego
significa “fazer”. Os homens habitam “fazendo”, fundando mundo, construindo via poiesis
a medida do seu existir. É através desse “fazer poiesis” que os homens pro-curam a verdade
que liberta em terapia. Heidegger, em A origem da obra de arte (1936) diz que “Quando a
verdade se põe-em-obra na obra, aparece”. A terapia pode ser um lugar onde a verdade do
mundo do paciente se põe-em-obra e pode, assim, aparecer compartilhada com o terapeuta.
Na terapia se abre um espaço fértil para acompanhar este processo singular de fundar
mundo mais atentamente, procurando a verdade que aparece (é libertada), quando é
colocada em obra através da linguagem da poiesis – da palavra, do gesto, das artes ou do
brincar (predominante na terapia com crianças).
Penso ser importante esclarecer que as verdades que pro-curamos na terapia são
transitórias, dizem respeito ao Dasein singular que se coloca como paciente, e sempre
abrangem clareira e escuridão, mesmo sendo esta última comumente esquecida. Heidegger
chama este esquecimento de errância. Diz que a errância pertence à própria constituição de
Dasein, sendo um aspecto essencial em sua abertura. Nossa abertura não apenas revela a
verdade sobre os entes, mas também impõe uma região de encobrimento. Em errância,
tendemos a transitar de revelação em revelação, focando na verdade delas, esquecendo-nos
do encobrimento de seu encobrimento. Entretanto, não temos a liberdade de evitar a
errância em nossa existência. Este esquecimento do encobrimento precisa existir para que
possamos construir uma aproximação positiva da nossa história. Quando contamos nossa
história para outra pessoa, a tendência não é a de mostrar as situações que não vivemos, os
lugares para onde não fomos, os conhecimentos que não alcançamos. Ao contrário, quando
descrevemos nossa história, enfatizamos os contextos experimentados como verdades. “Se
não houvesse a errância de Dasein, não poderia existir a história dos homens.” 23 Neste
sentido, a errância não se configura como um erro, mas sim como a possibilidade que
temos de participar da história, projetando nosso próprio destino. A liberdade que nos cabe
é a abertura de preservar um espaço para escutar e acolher o modo da nossa própria verdade
aparecer em errância, dedicando-nos ao sentido que ela aponta. Em terapia, o terapeuta
20
Heidegger, 1930, A essência da verdade, em Marcas do Caminho, p. 198
21
Idem, p. 200
22
Heidegger, 1951, “...Poeticamente o homem habita...”, em Ensaios e Conferências, p. 165-181
23
Haar, Michel, 1993, Heidegger and the Essence of Man, p. 138
deve acompanhar a experiência originária de errância de seu paciente e tornar-se
testemunha das possibilidades de significado descobertas através desta jornada.
A escuta do modo de aparecimento da verdade, a escuta de sua afinação
(stimmung), tem um papel crucial neste exercício de liberdade que fundamenta a terapia. O
por-se-em-obra da verdade singular e o seu aparecimento na clareira envolta em escuridão
(aletheia) acontecem em Dasein apenas em alguns momentos peculiares, quando aquilo que
parecia familiar encontra surpresa24. Esta surpresa chega a partir situações limite, quando
alguma afinação fundamental (angustia, tédio, etc..) suspende o horizonte hermenêutico até
então operante25. Neste sentido, o revelar-se das verdades mais singulares de Dasein não é
sempre confortável, podemos ser surpreendidos pelo aparecimento de verdades afinadas,
recordadas e sonhadas, que abalam a estrutura de sentido que até então mostrava a direção.
Deixar-ser e acolher as tonalidades afetivas por meio das quais o mundo se revela,
deixar-ser e acolher os próprios sonhos e deixar-ser e acolher os significados transitórios da
própria historia, implicam, simultaneamente em liberdade e restrição. A abertura de
liberdade que é por um lado ampliada na revelação da verdade, por outro, delimita e
configura as possibilidades legitimas de dedicação ao sentido. Uma vez que a verdade
aparece em aletheia, Dasein não pode mais ser a ela indiferente – pode apenas acolhe-la ou
negá-la. A negação da verdade existencial que se revela pode gerar uma nova restrição, que
pode até ser patológica, comprometendo mais severamente a fluidez do movimento
temporal de fazer mundo. Apenas o acolhimento da verdade permite a liberdade de Dasein
dedicar-se ao sentido, ainda que este se imponha de modo involuntário e delimite as
possibilidades mais singulares de futuro.
Há pacientes que procuram a terapia por estarem ‘perdidos’, restritos na liberdade
de encontrarem, em sua própria clareira, a verdade sobre os próprios projetos, sobre os
significados transitórios da própria história e sobre as tonalidades afetivas que determinam
o modo da história, do futuro e do presente aparecerem. Outros pacientes procuram a
terapia após se depararem com alguma verdade que veio ao seu encontro revolucionando o
antigo horizonte hermenêutico. A restrição pode então se apresentar na dificuldade diante
da tarefa de dedicação a um sentido novo que se apresenta desorganizando a prévia
orientaçao da vida como um todo. A liberdade de dedicar-se ao sentido é o próprio
horizonte da terapia Daseinsanalítica.
Penso que a dedicação ao sentido pode ser compreendida de dois modos diversos,
mas inclusivos. No primeiro, a dedicação ao sentido pode significar disponibilidade para se
comprometer com a ‘direção a seguir’, ou com o ‘para que’ de algo que hoje se estrutura.
Neste modo, o sentido está intimamente vinculado às possibilidades futuras que se
apresentam em convocação. A liberdade neste caso é a possibilidade de rumar para uma
determinada direção projetada. Outro modo de compreender a dedicação ao sentido é
tomando ‘sentido’ como o próprio fluir do movimento transcendente do fundar da liberdade
dos homens, que envolve não apenas a instancia futura, mas presente-passado-futuro em
constante transitoriedade. Dedicar-se ao sentido é então cuidar da efetivação da própria
liberdade: orientando-se pelo projeto que se excede no futuro, atuar no presente afinado e
restrito, legitimando a própria história como sempre-minha. E assim sucessiva e
constantemente, como num movimento caleidoscópico de presente-passado-futuro, que
nunca retorna ao mesmo desenho, mas que enquanto se move constrói a morada de Dasein.
É na liberdade para dedicação ao sentido que Dasein constrói a morada que ele não possui.
24
Gadamer desenvolve em Philosophical Hermeneutics a idéia de que as obras de arte são
aquelas onde a familiaridade encontra surpresa.
25
Idéia apresentada por Marco Antonio Casanova em aula na ABD sobre Heidegger em Carta
Sobre o Humanismo.
Para a Daseinsanalise, a liberdade se realiza no próprio exercício de dedicação ao sentido
fundante do humano singular.
Enxergar este movimento de fundar mundo acontecendo na própria vida exige uma
certa distância, que permite contemplar concomitantemente os sonhos e projetos, os
significados da própria história e as afinações presentes. A terapia é uma oportunidade de
trazer ao palco, em cada sessão, o modo singular cada paciente dedicar-se ao sentido e
habitar nele. Heidegger diz que “o homem livre é um ser ao longe” e que “somente por
meio de distancias originárias começa a ascender nele a verdadeira proximidade para com
as coisas”. A liberdade que se vislumbra na terapia é esta que, através da distância
originária da linguagem da poiesis, favorece a proximidade do paciente em relação ao seu
próprio movimento de fundar mundo, em relação a transitoriedade errante de sua própria
história.
Concluindo, o horizonte de liberdade na Daseinsanalise não é o poder para fazer
aquilo que se quer, não é o desapego liberal que afrouxa as restrições das relações e do
compromisso com os próprios sonhos. A Daseinsanalise não almeja mudar o mundo
restrito de seus pacientes. O horizonte de liberdade na Daseinsanalise é o morar na
abertura, que possibilita a proximidade livre da complexidade poética e transitória de
Dasein, que liberta a existência humana para a dedicação ao sentido, deixando ser e
acolhendo o fundar possível da própria história.