Você está na página 1de 14

Daseinsanálise e Liberdade

Danielle Pisani de Freitas

RESUMO

Este artigo pretende aproximar a noção Heideggeriana de liberdade, que se revela


como medida diagnóstica da experiência normal ou patológica e como o horizonte mais
próprio do percurso da terapia Daseinsanalitica. Para Heidegger, liberdade é nossa abertura
transcendente para possibilidades existenciais. Esta concepção de liberdade fundamenta, é
a condição ontológica, para outras experiências e definições de liberdade, tais como o livre-
arbítrio, a liberdade positiva e a negativa.
Através de uma aproximação fenomenológica da experiência de liberdade vivida a
partir da temporalidade de Dasein e da experiência de liberdade possibilitada no encontro
terapeutico, o texto procura explicitar as peculiaridades da liberdade que orienta o trabalho
Daseinsanalitico.

Palavras-chave: Liberdade, Heidegger, Daseinsanalise, Terapia, Diagnóstico

ABSTRACT

This article intends to approach the Heideggerian notion of freedom, which is not
only a means of diagnosing normal and pathological experiences, but also the very horizon
of the Daseinsanalitical therapy itself. According to Heidegger, freedom is our
transcendental opennes for existential possibilities. This notion of freedom is so
fundamental that is the ontological condition for many others experiences and definitions of
freedom, such as the free will, the negative, and the positive freedom.
This text intends to ilumminate the peculiarities of the freedom as the horizon of
Daseinsanalysis. It does that based on a phenomenological approach on the freedom
experienced through Dasein’s temporalitly, and on the freedom enhanced through the
therapeutic meeting.

Key words: Freedom, Heidegger, Daseinsanalysis, Therapy, Diagnosis

Para a Daseinsanalise, a experiência humana de ‘liberdade’, além de ser um critério


para o diagnóstico fenomenológico existencial da experiência normal e patológica, é
também o horizonte mais próprio do percurso da psicoterapia. Os pacientes que buscam a
psicoterapia estão de algum modo peculiar, sofrendo de restrição de liberdade; a
psicoterapia Daseisanalitica busca, através da linguagem da poiesis, favorecer a liberdade
existencial dos pacientes.
A proposição acima afirmada requer primeiramente a clarificação do modo como
compreendemos a liberdade própria de Dasein1. Como compreender esta ‘liberdade’ que
orienta o trabalho Daseinsanalítico? Para aproximar esta questão, proponho um caminho
que se divide em quatro etapas. Após uma introdução a respeito de algumas compreensões
(1) filosóficas e (2) cotidianas de liberdade, pretendo apresentar e discutir a (3) noção

1
Da-sein é o termo usado por Heidegger para nomear o ser-aí que nós mesmos somos.
Heideggeriana de liberdade vinculada a temporalidade de Dasein, para então pensá-la como
(4) referência para o trabalho clínico em Daseinsanalise.

1. ‘Liberdade’ na filosofia

O conceito de liberdade é extensivamente discutido no âmbito filosófico, mas nem


mesmo na história da filosofia chegou-se a um consenso a este respeito. Berlin 2, em seu
trabalho “Two Concepts of Liberty”, descreve duas principais concepções de liberdade:
liberdade negativa e positiva. Dito de modo simples, liberdade negativa é o libertar-se de
alguma restrição3; já a liberdade positiva é o libertar-se para algo, a realização de ideais.
Esta distinção explicita a diferença radical entre a liberdade como possibilidade de
ultrapassar a restrição do presente (dado) e a liberdade como possibilidade de projetar-se no
futuro, de sonhar e realizar.
Tugendhat usa em um de seus artigos4 uma classificação de liberdade que diz que
“uma ação é livre se, dado que nós temos a capacidade e a oportunidade de realizá-la, nós o
fazemos, se assim escolhemos”. Tugendhat aponta para três condições para a liberdade
acontecer na ação: escolha, capacidade e oportunidade. Se uma pessoa é coagida a fazer
algo - teve a capacidade e a oportunidade de fazê-lo, mas não teve escolha de fazer de outra
forma - ela não agiu livremente. Se uma pessoa escolhe agir de determinada maneira,
enxerga no mundo a oportunidade de fazê-lo, mas não tem capacidade para tanto, terá sua
liberdade de ação restrita. Finalmente, mesmo que alguém seja capaz de realizar algo e
escolha fazê-lo, pode não lhe ser concedida oportunidade de realizá-la, condição que
impede a sua ação livre.
Esta concepção de liberdade me parece interessante por não julgar suficiente
‘vontade e poder’ para a liberdade ser alcançada. A noção de oportunidade retira a
possibilidade de um fazer livre independentemente do fato de que somos no mundo, e
portanto, nossas ações acontecem no tempo, tem repercussões na história. Oportuna é
aquela ação cujo tempo, espaço e modo são favoráveis. Para percebermos se aquilo que
queremos e podemos é oportuno, nos é exigida uma sensibilidade afinada com as condições
do nosso mundo e da nossa história. A oportunidade abarca a projeção do fazer no tempo.
A noção de liberdade para Heidegger abrange os aspectos descritos por Berlim e
Tungendhat, mas se caracteriza por apontar para o fundamento mesmo da liberdade, que é
o fato de a liberdade ser um fenômeno essencialmente humano. Heidegger afirma que nós
seres humanos somos diferentes das coisas da natureza por não sermos determinados por
redes causais, mas sim por nossas possibilidades-de-ser, por aquilo que ainda não é. Nós
somos abertos tanto para as coisas existentes no nosso mundo quanto para aquilo que ainda
não existe: o futuro, os projetos e o sentido dos fatos vividos. Nossa abertura inclui não
apenas a possibilidade de ter a oportunidade, a escolha e a capacidade para agir no mundo,
mas também a possibilidade de sonhar com o futuro e de escutar o sentido dos fatos da
nossa história, a possibilidade de descobrir os modos em que estes fatos são revelados para
nós no curso do tempo presente, mudando nossa perspectiva de futuro.
Para Heidegger, liberdade dos homens é nossa abertura para possibilidades
existenciais5. É o nosso ser-aí (aberto) que nos traz a oportunidade para perceber as coisas
no mundo6. Se nós não fossemos esta abertura, nada no mundo poderia aparecer para nós,

2
Berlim, 1958, Two Concepts of Liberty
3
Thiele, Leslie, 1994, Heidegger on Freedom: political not metaphysical, p. 3
4
Tugendhat, Ernest, 1991, Philosophische Aufsatze, p. 356
5
Boss, Medard, Existential Foundations of Medicine and Psychology, p. 123
6
Heidegger, Martin, Zollikoner Seminare, p. 272
nem mesmo as coisas que agora estamos vendo ao nosso redor. A abertura é a condição
para nossa resposta perceptiva ao fenômeno do mundo, pois ela permite nosso
envolvimento com o sentido do mundo encontrado, que pode revelar-se como o que ele é.
Esta noção de liberdade como abertura é tão fundamental que é a condição necessária para
todas as outras perspectivas de liberdade poderem se manifestar.
Liberdade como abertura é o fundamento não apenas para o conceito de liberdade
de Tugendhat (escolha, capacidade e oportunidade), mas também para a liberdade positiva
e negativa de Berlin. Nosso ser-aberto para perceber diferentes possibilidades de ação é a
condição para nossa liberdade de escolha. Nossa capacidade de agir no mundo só pode se
manifestar por termos um mundo no qual atuar, e nossa possibilidade de “ter mundo” é
dada através de nossa abertura. É também através de nossa abertura que nós descobrimos as
oportunidades que nos são oferecidas. A liberdade negativa definida por Berlin (livrar-se
de restrições) existe apenas se as restrições do mundo puderem aparecer como restrições,
fato sustentado por nossa possibilidade de ser-aberto. Finalmente, a liberdade positiva
(livrar-se para algo) é possibilitada em nossa abertura para a perspectiva do futuro, que
orienta o presente e ilumina o passado. Segundo Heidegger, nós somos livres tanto em
nossa abertura para os entes mundanos, incluindo nós mesmos, quanto através de nosso
próprio poder-ser7. Liberdade é nosso ser-aberto para estas solicitações existenciais, que
motivam nossas ações mas não se configuram como causa8. Heidegger afirma que nossa
liberdade como abertura não tem qualquer relação com a cadeia causal determinista.
Uma das principais razões para a obscuridade do conceito de liberdade é a aparente
contradição entre liberdade e determinismo. Hannah Arendt diz que, se por um lado,
sabemos que somos livres, portanto responsáveis por nossos atos, por outro, constatamos
que nosso cotidiano é também orientado pelo principio da causalidade 9. Arendt afirma que,
no âmbito prático e político, a existência da liberdade parece ser considerada uma verdade
óbvia, mas que no campo das ciências, nós tendemos a acreditar que, em última análise,
nossas vidas são sujeitadas à lei da causalidade.
Neste sentido, a Psicologia, procurando o seu lugar entre as ciências, tende a buscar
com freqüência na esfera da psique as causas para as diversas condutas humanas. Mas
como as teorias psicológicas combinam liberdade e causalidade? Como elas compreendem
a própria liberdade humana? Como o conceito de liberdade repercute no próprio trabalho
psicoterapêutico? Não pretendo aqui aprofundar esta discussão, mas apenas focar o modo
como a Daseinsanalise compreende e aborda estas questões.
Para pensarmos o lugar da liberdade no fazer terapêutico da Daseinsanalise, pretendo
primeiro aproximar algumas compreensões de liberdade que estão sedimentadas em nosso
viver cotidiano. De fato, as pessoas que procuram a psicoterapia costumam estar
experimentando algum modo peculiar de restrição, e vêem no processo terapêutico a
possibilidade de encontrar um modo mais livre de ser-no-mundo. Entretanto, julgo
fundamental questionarmos quais perspectivas de liberdade são comumente esperadas
como resultado do processo terapêutico, bem como pensarmos qual é a possibilidade de
liberdade que rigorosamente se legitima como o horizonte e o critério diagnóstico para
Daseinsanálise.

2. ‘Liberdade’ em compreensões cotidianas

7
Em Being and Time, p. 264, Heidegger fala sobre a projeção de Dasein, abertura para seu
poder-ser.
8
Heidegger, Martin, Zollikoner Seminare, p. 272
9
Arendt, Hannah, 1968, Between the past and the future, p. 143
Liberdade e poder

É freqüente relacionarmos no cotidiano a liberdade com o poder. Neste sentido, a


liberdade tem o caráter de conquista. Na história da humanidade, as nações que tem como
meta conquistar a liberdade são aquelas que se encontram subjugadas, submissas a um
poder externo, impotentes para tomar decisões com independência. A conquista da
liberdade nestes casos parece ser uma disputa que visa a posse de um estado livre
permanente. A liberdade torna-se um bem de uso e consumo que não pode ser roubado,
pois é um direito das nações ditas livres, bem como de seus cidadãos.
Poder ‘ser livre’ é também sonho de consumo da maioria dos adolescentes e jovens
adultos. A independência financeira dos pais é vista como uma conquista de liberdade para
fazer o que se quer com o dinheiro que se ganha (liberdade positiva), livrando-se dos
limites e regras impostos pelos adultos dos quais dependia (liberdade negativa). A liberdade
também pode ser ‘conquistada’ no cotidiano através do domínio da técnica. Dizemos que
um músico toca com liberdade quando ele já se apossou da técnica do seu instrumento a
ponto de usá-la a favor de uma interpretação mais pessoal da música que executa. O
domínio da técnica também aumenta a eficiência para a realização das solicitações
cotidianas e permite maior controle das variáveis do mundo, fatos que trazem a sensação de
maior liberdade.
Esta liberdade como poder também pode fazer parte da expectativa dos pacientes que
procuram a psicoterapia. É comum pacientes se queixarem das restrições impostas pelo
mundo que os cerca, pelas pessoas com as quais convive, culpando-os pela restrição de
liberdade que sofrem. Pode então surgir o desejo de livrar-se dos males que o mundo
impõe, valendo-se de uma liberdade ‘conquistada’ através da terapia. Em contextos como
este, a terapia corre o risco de se tornar um lugar onde se ‘vende’ ao paciente a conquista
de mais recursos de liberdade, habilitando-o tecnicamente para poder resolver os problemas
de seu mundo.
Apesar de a Daseinsanálise compreender a liberdade do paciente como o horizonte do
processo terapêutico, a liberdade que se vislumbra aqui não pode ser objeto de conquista ou
posse. “Os homens não possuem a liberdade como uma de suas propriedades. O que se dá é
o contrário: a liberdade, abertura de mundo de Dasein, possui o homem” 10 Dasein é jogado
no mundo com a necessidade de cuidar de sua liberdade. Não nos é oferecida a escolha:
nos é impelida esta tarefa. Como Dasein, não possuímos a abertura como uma de nossas
propriedades, mas somos esta abertura original que fundamenta a liberdade dos homens.
Esta condição de Dasein, como jogado no mundo com a possibilidade obrigatória da
liberdade, ao mesmo tempo que oferece as suas próprias possibilidades existenciais de ser-
no-mundo, encolhe o seu poder. Apesar da liberdade como abertura fundamentar todas as
nossas possibilidades de ser-no-mundo, a liberdade mesma é o abismo de Dasein, “its
groundless or absent ground”11. Em outras palavras, a liberdade dos homens é a
possibilidade que lhes é dada para o cultivo (cuidado) de seu próprio chão (fundamento). A
liberdade em si não possui um fundamento, um solo que a sustente. A liberdade humana é a
possibilidade e a necessidade do movimento constante de ‘fundar mundo’ que orienta a
nossa existência, revelando e acolhendo seu sentido12. Como uma possibilidade fadada a
incompletude e a transitoriedade temporal de Dasein, a liberdade humana não pode ser
possuída, não pode ser um estado permanente, não pode ser conquistada através da técnica.
Como horizonte da Daseinsanálise, a liberdade do ser-no-mundo peculiar de cada paciente

10
Boss, 1994, p.124
11
Heidegger, The Essence of Reasons, p. 129
12
Aprofundarei esta compreensão de liberdade no capítulo Liberdade em Heidegger.
tem apenas a possibilidade de se revelar em movimento e de ser acolhida como um modo
de ‘fundar mundo’ possível num dado tempo daquela história.

Liberdade e ausência de restrição

A vontade de liberdade aparece no cotidiano do homem também como um desejo da


ausência de restrições. Como se fosse possível uma liberdade plena, sem barreiras. Esta
sensação de liberdade pode ser buscada nas experiências em que os limites humanos são
desafiados a ponto de se tornarem quase imperceptíveis. O mito de Ícaro pode ilustrar este
desejo de experimentar a liberdade como plenitude irrestrita quando conta da sensação
inebriante de Ícaro, voando em todas as direções do horizonte, livre na amplitude do céu
que ‘parecia’ infinito.
Quando nos sentimos presos, restritos em uma possibilidade de vida que nos acarreta
sofrimento, parece-me compreensível sonharmos com a não restrição, com a liberdade do
vôo livre, com a abertura plena de Dasein. Pacientes que procuram a terapia também
podem ter esta expectativa em relação ao resultado deste processo. Mesmo pensando na
psicopatologia de Boss, na qual ele define a doença como restrição e a saúde como a
possibilidade de liberdade, corre-se o risco de interpretar este pensamento de modo
equivocado, almejando devolver ao paciente a sua condição de liberdade para realizar todas
suas possibilidades. Se analisarmos com mais rigor, segundo Boss, a condição humana de
liberdade como abertura nunca é eliminada, ainda que possa se revelar muito encolhida nos
casos de patologias severas. Entretanto, a abertura plena de Dasein seria o caos absoluto
que acolheria em onipresença todas as possibilidades humanas, trazendo uma ansiedade
insuportável e paralisante em relação ao futuro. A busca desta experiência plena de
liberdade é um desejo ingênuo - parece ignorar a própria condição necessariamente finita e
errante dos homens. Quando Ícaro ganha as asas construídas por seu pai, fica fascinado
pela sensação ‘plena’ de liberdade ao voar, mesmo sabendo que tem o calor do sol e os
respingos da água do mar como supostos limites de seu vôo. Custa-lhe a vida a descoberta
de que nem com asas é possível encontrar esta liberdade na plenitude do ilimitado.
Mesmo a experiência humana mais plena de liberdade tem como condição necessária o
acolhimento de limites. O próprio fato de sermos mortais, fadados a cuidar de nossa
existência, jogados num mundo que nos impõe seus próprios limites e possibilidades,
inviabiliza a experiência humana de liberdade como ausência de privação. Segundo
Heidegger em A essência do Fundamento (1969), a liberdade humana é a unidade entre
excesso e privação que funda mundo. Neste sentido, a Daseinsanálise não tem como
horizonte de seu trabalho a liberdade como ausência de restrições.

Liberdade e ausência de vínculos

Outra maneira cotidiana de compreender a liberdade humana é relacionando-a com


ausência de vínculos que a comprometam ou restrinjam. Esta compreensão de liberdade
parte do pressuposto de que “a liberdade de um acaba quando começa a do outro”. Esta é
uma frase que costuma ser muito empregada nos ambientes jurídicos ou educacionais, onde
a exigência de regras de convivência se faz necessária. O respeito a liberdade do outro é,
neste sentido, a origem do meu espaço de liberdade. Assim, quanto menos eu esbarrar na
liberdade do outro, maior será meu terreno de liberdade.
A busca de mais “espaço de liberdade” pode se realizar através do movimento de
distanciamento dos outros, da possibilidade do desapego em relação aos vínculos afetivos
ou hierárquicos presentes no mundo. Livres então, seriam os humanos que se relacionam
menos, que não se comprometem com os outros ou correspondem às leis do mundo
compartilhado. A escolha de um caminho andarilho pode ser um exemplo da liberdade
buscada através da desoneração dos laços afetivos com os outros. Para as pessoas
envolvidas em relações mais estáveis, esse modo de liberdade costuma aparecer nas
negociações presentes nos contratos de ‘ser-com-os-outros’: vincular-se com os outros
implica em negociar os espaços de liberdade individual. É a partir deste sentido cotidiano
de liberdade que num relacionamento dizemos que damos ao outro liberdade, recebemos do
outro liberdade, renunciamos nossa própria liberdade em nome de uma relação.
É possível que pacientes esperem que a terapia seja uma oportunidade para avaliar a
legitimidade e a justiça dos espaços de liberdade dados, recebidos ou renunciados no
convívio com os outros. Entretanto, mesmo a terapia sendo um espaço de reflexão que
poderia acolher questionamentos deste gênero, não é este o horizonte de liberdade que ela
contempla. Apesar desta perspectiva de liberdade nortear muitas das relações humanas no
cotidiano, não é a partir daí que a Daseinsanalise orienta o seu trabalho. A ausência de
vínculos, situação utópica na qual este modo de liberdade estaria no ápice, não é uma
possibilidade dos homens. Nos termos de Heidegger, Dasein é lançado na condição de ter
que ser-aí no-mundo-com-os-outros. A própria liberdade como abertura de Dasein tem
como condição o vinculo com os outros, não nos é concedido um espaço de liberdade
puramente ‘individual’.

Liberdade e ausência de rumo

A ausência de um rumo, o vagar diante de inúmeras possibilidade de escolha, pode


também se configurar como o sonho de liberdade de algumas pessoas, em determinados
momentos. Esta liberdade pode, por exemplo, ser desejada por aquele que se sente preso a
uma dolorida escolha de caminho e que almeja estar diante novas possibilidades aleatórias.
Situações de viagem em que não se tem um destino pré estabelecido também podem trazer
uma sensação de liberdade específica, através da qual tem-se a impressão de que ser livre é
ficar no suspenso do possível e que a escolha de um rumo aprisiona.
Entretanto, a liberdade de escolher ou acolher o próprio caminho diante de muitas
opções pode ser confundida com a não escolha de um caminho, para não abdicar das muitas
opções. É evidente que a escolha de um rumo impede a possibilidade de infinitos outros,
mas não temos como não rumar, mesmo o rumo não sendo uma escolha necessariamente
nossa. Experimentar o abismo inerte das possibilidades futuras pode trazer uma sensação de
liberdade momentânea, mas que não pode sobreviver às exigências da nossa condição
temporal que nos joga no mundo com a tarefa de ter-que-ser-aí, ter que rumar. Pensando
deste modo, a ausência de um rumo, de um sentido para caminhar, se revela como uma
experiência mais aprisionadora do que libertária. A depressão é um exemplo de restrição na
qual o sentido da própria vida não se revela, a ausência de rumo neste caso se impõe a
revelia do controle de quem a vive. As infinitas possibilidades de rumo se mostram sem
graça, sem o frescor da incompletude que nos move. Nestes casos a ausência de um rumo
acolhido torna a vida do depressivo um fardo longo rumo a morte. Nas palavras de Guto
Pompéia: “Sem sonho, nada se articula”. A sensação de ausência de rumo só pode ser
experimentada como liberdade momentânea se é alimentada pela vontade de rumar.
Com ou sem vontade, temos que rumar. Segundo Heidegger, Dasein é projeto jogado
no mundo. É a nossa possibilidade de projetar, ainda que a partir da condição de jogados no
mundo, que nos faz humanos. Mesmo que o projeto de Dasein não esteja claro, que o
sentido da vida tenha sido perdido, a possibilidade de projetar continua existindo no
humano. Quando refletimos acerca da liberdade de Dasein, tanto mais livre é aquele para
quem é possível encontrar e acolher o próprio rumo, o sentido da própria historia. Deste
modo, a liberdade para Daseinsanalise não poderia ser compreendida como ausência de
rumo, mas sim o contrário: a descoberta e o acolhimento do rumo favorecem a liberdade de
Dasein.

3. Liberdade e a temporalidade de Dasein

A liberdade dos homens, segundo Heidegger, mora na abertura originaria de Dasein


(ser-aí), que possibilita o mundo aparecer para nós como mundo. Todas as possibilidades
existenciais de Dasein, inclusive a liberdade, se originam através de seu modo fundamental
de ser abertura.
Dasein como abertura é essencialmente temporal: encontra-se no mundo agindo no
presente transitório, norteado pelas possibilidades de um futuro que ainda-não-é e pela
facticidade do passado que já não-é-mais. Dasein é assim, fundamentalmente caracterizado
pelo que não-é, condição peculiar que impede que Dasein seja compreendido através das
leis da causalidade. Mas de que modo essa abertura, que engloba - concomitante e
continuamente - presente, passado e futuro, se mostra como o fundamento da liberdade dos
homens? A liberdade dos homens tem um fundamento?
Para tentar responder a estas questões, proponho aproximar o modo como o presente, o
passado e o futuro são revelados através da experiência humana (ôntico) de liberdade, bem
como pensar sobre os fundamentos que tornam possível a nossa familiaridade com o modo
temporal de nossa existência como abertura (ontológico). Para tal fim, pretendo pensar as
possibilidades ontico-ontologicas de liberdade e restrição no presente, no futuro e no
passado, separando estas instâncias apenas para fins didáticos, mas sempre tendo como
pano de fundo o movimento temporal de Dasein, onde presente-passado-futuro estão em
concomitante transição.

Liberdade e restrição no presente

São muitos os modos de experimentarmos liberdade e restrição no presente. É através


de nossa abertura para o presente que nos é dada a possibilidade obrigatória de atuar no
mundo, a liberdade de ter que acolher e escolher a todo instante uma das possibilidades de
cultivo de mundo que vêm ao nosso encontro. A oportunidade de abertura para o presente
possibilita também a revelação das tonalidades afetivas, que colorem o não apenas o
momento presente, mas também re-significam os fatos da história passada e os projetos de
futuro. Seria, portanto, impossível pensar em liberdade no presente desarticulado de suas
repercussões no futuro e na historia.
Entretanto, na maioria das vezes, experimentamos o presente distraídos em afazeres
cotidianos, migrando de instante em instante seguindo um roteiro sobre o qual não
questionamos o sentido. Este modo de experimentar o presente é denominado por
Heidegger de queda. O presente na queda é vivido como rotina estável, distante do seu
caráter efêmero e transitório. Nos momentos em que estamos absorvidos no cotidiano, não
nos damos conta do movimento temporal inerente à nossa existência, restringindo portanto
nossa liberdade de cultivar mundo, de deixar-ser e acolher - presente, passado e futuro - em
sua transitoriedade inerente.
Um outro modo mais intenso de experimentar o presente é aquele que acentua o seu
caráter efêmero, encolhendo nossa possibilidade de perceber e acolher as implicações de
nossas ações na construção de nossa própria história e na possibilidade de lançarmo-nos
num projeto de futuro. A ordem torna-se então aproveitar o presente, pois o futuro é incerto
e o passado já passou: Carpe Diem. Exercer a liberdade de cultivar cuidadosamente o
presente, desconsiderando o rastro que este deixa na historia e as possibilidades de futuro
que este abre, parece ser uma tarefa praticamente inviável. Nas palavras de Guto Pompéia,
“liberdade não é fazer o que se quer, mas querer o que se fez” – possibilidade que na
perspectiva deste modo de Carpe Diem se dá somente por mero acaso.
Como mencionei anteriormente, é através de nossa abertura presente que as tonalidades
afetivas (stimmung) tem a oportunidade de se revelarem. São as tonalidades afetivas que
colorem, que trazem o clima que permeia as situações presentes e o modo da história e do
futuro se mostrarem agora. Quando a tonalidade afetiva predominante é, por exemplo, o
tédio, o presente costuma ser experimentado de modo a parecer lento, extenso e sem graça.
Se a tonalidade afetiva predominante é a ansiedade, o presente se revela inquieto, já
atropelado pela indeterminação das possibilidades de futuro. São as tonalidades afetivas
que caracterizam o modo de desvelamento do mundo para cada Dasein, em cada momento
particular de sua vida. Entretanto, não nos é dada a liberdade para controlar ou escolher as
tonalidades afetivas que experimentamos – elas vem ao nosso encontro indiferentes à nossa
vontade. A liberdade que nos é possível é a de deixar-ser e acolher as tonalidades afetivas
que vem ao nosso encontro, gesto que muitas vezes nos exige coragem, pois podem
transformar radicalmente os significados de nossa história e o sentido do futuro.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, diz: “o correr da vida embrulha tudo, a vida
é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela
quer da gente é coragem”.
Acolher a transitoriedade necessária do existir requer coragem, mas oferece aos
homens a oportunidade de exercer sua liberdade mais própria que é a de fundar mundo na
precariedade do aí. A liberdade “do presente” no movimento do tempo é o cultivar possível
e afinado de mundo, que se torna historia e se lança em projeto, que orienta o presente, que
vem ao encontro sempre banhado em tonalidades afetivas, que colorem, a cada presente, a
história e o projeto de cada Dasein de modo único e singular. A fluidez ou não deste
movimento cíclico da abertura temporal de Dasein poderia ser um critério diagnóstico para
pensar as nuances de liberdade e restrição de uma existência em particular.

Liberdade e Restrição no passado.

É difícil vislumbrar a liberdade humana como uma possibilidade quando focamos de


modo cronológico a nossa abertura para o passado. A irreversibilidade dos fatos do passado
nos coloca na condição de jogados, como prisioneiros de uma história da qual não podemos
escapar por não termos a possibilidade de voltar no tempo. É inegável o desejo humano de
poder voltar no tempo, o desejo de concretamente voltar a uma determinada situação da
vida e agir hoje diferente do modo que agimos naquele contexto passado. Entretanto, não
nos é dada a possibilidade de realizar este desejo tão humano. O que passou, passou: não é
mais. Não é possível reverter o acontecido dos fatos. Nossa abertura de liberdade para o
passado se restringe a possibilidade da recordação - “re-cordio”, de religar os fatos
passados ao coração afinado no presente e iluminado pelo projeto futuro.
Exercer esta liberdade é, no entanto, uma tarefa difícil, que em determinados momentos
da vida de uma pessoa pode ficar impossibilitada. Este modo de restrição de liberdade é
presente nas experiências neuróticas, quando Dasein se encontra prisioneiro da própria
história passada, restrito em suas respostas perceptivas aos fenômenos do mundo e fechado
de modo a não deixar que o passado se re-signifique e o presente apareça de modo arejado.
Uma pessoa sofrendo de depressão, por exemplo, pode deixar de se envolver com os
fenômenos do mundo que vem ao seu encontro, estes passam a não fazer mais sentido, a
não ter mais graça. O Dasein que sofre de depressão tende a se prender a alguns fatos do
passado, retornando constantemente a eles em forma de nostalgia, arrependimento, culpa,
desilusão em relação às possibilidades de transformação do futuro, já que tudo em seu
mundo aparece como aprisionado nos fatos que desencadearam o sofrimento presente. A
“recordação” melancólica que se vive nos estados depressivos parece não favorecer que o
significado dos fatos do passado se renove. A procura do sentido transitório e arejado do
existir pode abrir um espaço para a revelação do significado renovado de uma história
singular. Está procura pode favorecer a ampliação da abertura de liberdade daquele que se
encontra deprimido.
É na circularidade virtuosa13 do sentido hermenêutico do passado, iluminado no
presente a partir do futuro, que os homens exercem a liberdade de deixar-ser e acolher os
significados transitórios da própria historia. Nossa liberdade em relação ao passado existe
apenas quando estamos livres para conceber o passado em sua constante transição e
conexão com o presente e o futuro. Não somos livres para mudar voluntariamente o
significado de nossa história, mas podemos, sim, acolher a transitoriedade temporal deste
significado de modo a legitimar esta história singular como “sempre minha”, ainda que
independa da minha vontade. Guimarães Rosa escreve, em uma passagem do Grande
Sertão: Veredas14, uma frase que julgo ser uma descrição ôntica de um modo bastante livre
de abertura para o passado. O personagem faz o seguinte depoimento: “De cada vivimento
real que eu tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquele hoje vejo que eu era como se
fosse diferente pessoa”.

Liberdade e Restrição no Futuro

É a nossa possibilidade de abertura ao futuro a que parece mais evidentemente


relacionada a condição de liberdade humana. É a perspectiva do futuro que permite que
possamos projetar, sonhar, prometer, vislumbrar as possibilidades de escolha que se
apresentam, que podem-ser mas que ainda-não-são. Estas são ações essencialmente
humanas que nos trazem a sensação de que somos livres, apesar de sabermo-nos mortais.
Dasein está lançado em sua condição de poder-ser, tendo o futuro aberto para acolher as
escolhas e realizações que estão vindo-a-ser.
Entretanto, essa mesma abertura para o futuro, que traz a experiência de liberdade,
pode nos conduzir a experiências extremamente aprisionadoras como os ataques de pânico
e ansiedade. O poder-ser de Dasein, ao mesmo tempo em que oferece o poder para nos
projetarmos no tempo, revela a impotência humana para controlarmos aquilo que vem do
futuro ao nosso encontro. O poder-ser nos remete ao abismo das possibilidades, que
dependendo da afinação em que o encontramos, pode ser extremamente vertiginoso ou
angustiante. A única certeza que temos em relação ao futuro é o fato de que um dia vamos
morrer, de que a finitude humana é inexorável. Todo o resto é incerto.
Guto Pompéia costuma ilustrar, através de um texto de Borges15, a possibilidade
humana de exercer a liberdade de projetar e prometer, apesar de sua condição finita. O
texto parece mostrar um percurso pessoal de reflexão acerca da condição de liberdade e
restrição em relação ao futuro. Borges escreve assim:

“Um pintor prometeu-nos um quadro.

13
Este termo “circulo hermenêutico virtuoso” foi utilizado por Carlos Eduardo Freire, em uma
palestra sobre as peculiaridades da Daseinsanálise, realizada em outubro de 2010.
14
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, p. 99
15
Borges, Jorge Luis, The Unending Gift
Agora, em New England, sei que morreu. Senti, como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho. Pensei no homem e no quadro perdidos. (Só os
deuses podem prometer porque são imortais)
Pensei em um lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo uma coisa mais, uma coisa, uma
das vaidades ou hábitos da casa; agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e
qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o
fim. Obrigado Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, pois na promessa há algo immortal.)”

Angustiante e libertária é a descoberta de que também é inexorável a transitoriedade do


sentido apontado pelo futuro enquanto estamos existindo como seres no mundo. Neste
texto, nem se revela o sentido que motivou Borges a encomendar o quadro de Jorge Larco.
Seja ele qual for, foi interrompido pela morte do pintor. Guimarães Rosa escreveu que “um
sonho era o desenho de uma coisa possível, querendo vir a ser verdade” 16. É como se o
quadro prometido não quisesse mais vir a ser verdade, como se esse desenho sonhado não
fosse mais uma coisa possível. Somos tocados pela revolta do autor ao constatar que o
quadro com o qual sonhava, e que o pintor havia prometido, não terá mais a possibilidade
de se realizar como obra acabada. A interrupção de um sonho e a perda do sentido que nos
orienta é, muitas vezes, involuntária – nesta história, foi originada na própria condição de
finitude que se realizou, em Jorge Larco, a revelia da sua promessa. Saber que aquilo que
hoje faz sentido pode, no futuro, vir ao nosso encontro como algo absurdo é muito
angustiante. Tendemos a nos agarrar no sentido, nas promessas, nos sonhos, como quem se
encontra em terra firme, longe do abismo indeterminável de nosso poder-ser. Entretanto, é
justamente na beirada deste abismo que podemos exercer a liberdade de deixar que novos
sentidos apareçam. Borges, à beira deste abismo, percebeu que morte de Jorge Larco
deixou de ser uma frustração frente a interrupção de um sonho e passou a ser a origem da
descoberta de que a liberdade humana de prometer tem algo que transcende a própria
finitude.
No texto A essência do fundamento (1969), Heidegger concebe a liberdade como
originada a partir da abertura transcendente de Da-sein (ser-aí). Neste modo de liberdade
como transcendência, parece existir uma primazia do aí, do futuro como instância que nos
coloca sempre a frente de nós mesmos, como que planando num abismo enquanto tecemos
um chão para pisarmos. A liberdade é, em si mesma, o abismo (groundless) de Dasein,
jogado no mundo como livre poder-ser. A transcendência oferece a liberdade de avançar
no abismo das possibilidades, exercendo a tarefa constante de fundar mundo. Heidegger
argumenta que Dasein, ao contrário das outras coisas da natureza, habita em
transcendência, este modo particular de liberdade, que é a origem dos fundamentos em
geral e que está além do âmbito da causalidade. “Liberdade é liberdade para o
fundamento”17. Vale esclarecer que a liberdade originada através da abertura transcendente
de Dasein não é a possibilidade de conquistar um fundamento. A liberdade dos homens é o
próprio processo de Dasein fundar mundo.
De acordo com Heidegger 18, a liberdade originada a partir da transcendência é esta
unidade transitória entre excesso (avanço no abismo, projeto de futuro) e privação

16
Guimarães Rosa, Noites do Sertão: Buriti, Ficção Completa, v.1 p.940
17
Heidegger, 1929, A essência do fundamento, em Marcas do Caminho, p. 177
18
Idem, p. 177-184
(limitação do mundo que vem ao encontro) que legitima a história de Dasein e funda
mundo. Este movimento de transcendência de Dasein, o fundar da liberdade dos homens,
se realiza em três momentos interligados, transitórios e cíclicos. O primeiro deles é o
fundar que nos projeta no futuro, que nos permite estar à frente de nós mesmos, excedendo
o solo firme do presente para tecer no abismo do futuro. Heidegger chama este modo de (1)
fundar como erigir. O segundo modo do fundar da liberdade humana é o próprio ato de
fazer chão. Fazer chão é diferente de projetar chão. O projeto se faz no excesso e o ato se
dá na restrição do mundo em que é realizado. O processo de (2) fundar como tomar-chão é
limitado tanto pela afinação do momento em que se realiza, quanto pelas circunstâncias de
mundo que vem ao nosso encontro no momento de tomar-chão. O terceiro modo é o fundar
que possibilita o desvelamento da verdade ôntica, que legitima a história de cada Dasein em
particular. Os projetos que tomam chão viram história, que no fundar da liberdade humana
pode ser revelada a partir de diferentes tonalidades no transcorrer do tempo. Legitimar cada
verdade da história é fundamentar o fundamento transitório que possibilita nossa abertura
ao futuro e ao presente. Este modo de exercício da liberdade é nomeado por Heidegger de
(3) fundar como fundamentar.
Tanto o movimento de erigir, quanto os de tomar-chão e fundamentar são
necessários para o fundar da liberdade humana como transcendência. Estes três modos de
fundar fazem parte de um único circulo virtuoso, que só é possível como temporalidade que
integra em movimento presente-passado-futuro. Fundando a própria liberdade, Dasein se
projeta no futuro (excesso), cai jogado no chão do mundo presente de modo afinado
(limitação) e se torna história do passado legitimada, que fundamenta o projeto futuro, e
assim sucessivamente. É a fluidez deste percurso circular transcendente, a medida possível
para a liberdade de Dasein.

4. Liberdade na Daseinsanálise

Para pensar o lugar da liberdade na terapia Daseinsanalitica, gostaria de iniciar o


capítulo com uma definição de terapia de Guto Pompéia, que julgo estar rigorosamente em
conexão com os elementos do pensamento de Heidegger que elucidam o sentido da
liberdade no fazer terapêutico Daseinsanalítico.

“Terapia é pro-cura, via poiesis, pela verdade que liberta para a dedicação ao sentido.”19

Nesta definição, aparecem, ao meu ver, dois modos da liberdade em Dasein se


mostrando no contexto terapêutico. O primeiro modo é a liberdade que acontece quando a
verdade que se pro-cura via poiesis na terapia é revelada, libertada em seu significado mais
próprio, para ser acolhida por Dasein e compreendida como verdade em sua clareira. O
segundo modo é a liberdade de dedicar-se ao sentido, deixando-ser o movimento
transcendente de fundar mundo que orienta o ser-aí dos homens.
A verdade que se procura na terapia não é encontrada através de métodos lógicos ou
científicos, já que esta verdade não é passível de ser testada nem comprovada. A verdade
que se procura não tem uma existência ‘concreta’, como as coisas dotadas de propriedades
que encontramos na natureza. O que acontece é justamente o inverso: procuramos a
verdade daquilo cuja existência é inefável. Procuramos a verdade dos sonhos e projetos, das
tonalidades afetivas e dos significados transitórios e arejados da história de cada Dasein que
aparece em nossos consultórios. Verdades desta qualidade exigem um modo de acesso
peculiar, que permite que algo que não-é apareça, se des-vele na clareira (abertura de

19
Pompéia, João Augusto, 2000, Uma caracterização da terapia, revista ABD n. 9, p. 19
Dasein) de modo a guardar o espaço de sua escuridão. Os gregos nomearam de aletheia
esta verdade que se liberta na clareira envolta em escuridão.
Heidegger diz que “a liberdade é a própria essência da verdade” 20, já que o vir-a-
ser da verdade só pode acontecer a partir da abertura de liberdade de Dasein. É a abertura
(liberdade) de Dasein que fundamenta a possibilidade de aparecimento da verdade que se
procura na terapia. Entretanto, a aparição ou não da verdade não está sob o livre arbítrio
dos homens, não pode ser voluntariamente provocada por pacientes ou terapeutas. O que
podemos fazer como terapeutas é guardar um espaço aberto (livre) que possa acolher o
aparecimento, ou não, da verdade singular que ‘quer’ ser des-velada para o paciente e
testemunhada pelo terapeuta.
A guarda deste espaço pode ser confundida com uma postura exclusivamente passiva,
indiferente, mas de modo algum o é. Guardar este espaço de “liberdade que deixa que
cada ente seja o que ele é” 21é tarefa intensa e trabalhosa. Em terapia, o paciente atua
revelando o seu mundo a si mesmo e a seu terapeuta, compartilhando a familiaridade com
que habita sua própria existência. Entretanto, os homens não habitam apenas no mundo
cuja existência concreta é um consenso, os homens habitam naquilo que não-é – os homens
habitam poeticamente22. Esta afirmação não pensa a poesia como literatura, nem a
habitação como construção de tijolos. Os homens habitam em poiesis, que em grego
significa “fazer”. Os homens habitam “fazendo”, fundando mundo, construindo via poiesis
a medida do seu existir. É através desse “fazer poiesis” que os homens pro-curam a verdade
que liberta em terapia. Heidegger, em A origem da obra de arte (1936) diz que “Quando a
verdade se põe-em-obra na obra, aparece”. A terapia pode ser um lugar onde a verdade do
mundo do paciente se põe-em-obra e pode, assim, aparecer compartilhada com o terapeuta.
Na terapia se abre um espaço fértil para acompanhar este processo singular de fundar
mundo mais atentamente, procurando a verdade que aparece (é libertada), quando é
colocada em obra através da linguagem da poiesis – da palavra, do gesto, das artes ou do
brincar (predominante na terapia com crianças).
Penso ser importante esclarecer que as verdades que pro-curamos na terapia são
transitórias, dizem respeito ao Dasein singular que se coloca como paciente, e sempre
abrangem clareira e escuridão, mesmo sendo esta última comumente esquecida. Heidegger
chama este esquecimento de errância. Diz que a errância pertence à própria constituição de
Dasein, sendo um aspecto essencial em sua abertura. Nossa abertura não apenas revela a
verdade sobre os entes, mas também impõe uma região de encobrimento. Em errância,
tendemos a transitar de revelação em revelação, focando na verdade delas, esquecendo-nos
do encobrimento de seu encobrimento. Entretanto, não temos a liberdade de evitar a
errância em nossa existência. Este esquecimento do encobrimento precisa existir para que
possamos construir uma aproximação positiva da nossa história. Quando contamos nossa
história para outra pessoa, a tendência não é a de mostrar as situações que não vivemos, os
lugares para onde não fomos, os conhecimentos que não alcançamos. Ao contrário, quando
descrevemos nossa história, enfatizamos os contextos experimentados como verdades. “Se
não houvesse a errância de Dasein, não poderia existir a história dos homens.” 23 Neste
sentido, a errância não se configura como um erro, mas sim como a possibilidade que
temos de participar da história, projetando nosso próprio destino. A liberdade que nos cabe
é a abertura de preservar um espaço para escutar e acolher o modo da nossa própria verdade
aparecer em errância, dedicando-nos ao sentido que ela aponta. Em terapia, o terapeuta

20
Heidegger, 1930, A essência da verdade, em Marcas do Caminho, p. 198
21
Idem, p. 200
22
Heidegger, 1951, “...Poeticamente o homem habita...”, em Ensaios e Conferências, p. 165-181
23
Haar, Michel, 1993, Heidegger and the Essence of Man, p. 138
deve acompanhar a experiência originária de errância de seu paciente e tornar-se
testemunha das possibilidades de significado descobertas através desta jornada.
A escuta do modo de aparecimento da verdade, a escuta de sua afinação
(stimmung), tem um papel crucial neste exercício de liberdade que fundamenta a terapia. O
por-se-em-obra da verdade singular e o seu aparecimento na clareira envolta em escuridão
(aletheia) acontecem em Dasein apenas em alguns momentos peculiares, quando aquilo que
parecia familiar encontra surpresa24. Esta surpresa chega a partir situações limite, quando
alguma afinação fundamental (angustia, tédio, etc..) suspende o horizonte hermenêutico até
então operante25. Neste sentido, o revelar-se das verdades mais singulares de Dasein não é
sempre confortável, podemos ser surpreendidos pelo aparecimento de verdades afinadas,
recordadas e sonhadas, que abalam a estrutura de sentido que até então mostrava a direção.
Deixar-ser e acolher as tonalidades afetivas por meio das quais o mundo se revela,
deixar-ser e acolher os próprios sonhos e deixar-ser e acolher os significados transitórios da
própria historia, implicam, simultaneamente em liberdade e restrição. A abertura de
liberdade que é por um lado ampliada na revelação da verdade, por outro, delimita e
configura as possibilidades legitimas de dedicação ao sentido. Uma vez que a verdade
aparece em aletheia, Dasein não pode mais ser a ela indiferente – pode apenas acolhe-la ou
negá-la. A negação da verdade existencial que se revela pode gerar uma nova restrição, que
pode até ser patológica, comprometendo mais severamente a fluidez do movimento
temporal de fazer mundo. Apenas o acolhimento da verdade permite a liberdade de Dasein
dedicar-se ao sentido, ainda que este se imponha de modo involuntário e delimite as
possibilidades mais singulares de futuro.
Há pacientes que procuram a terapia por estarem ‘perdidos’, restritos na liberdade
de encontrarem, em sua própria clareira, a verdade sobre os próprios projetos, sobre os
significados transitórios da própria história e sobre as tonalidades afetivas que determinam
o modo da história, do futuro e do presente aparecerem. Outros pacientes procuram a
terapia após se depararem com alguma verdade que veio ao seu encontro revolucionando o
antigo horizonte hermenêutico. A restrição pode então se apresentar na dificuldade diante
da tarefa de dedicação a um sentido novo que se apresenta desorganizando a prévia
orientaçao da vida como um todo. A liberdade de dedicar-se ao sentido é o próprio
horizonte da terapia Daseinsanalítica.
Penso que a dedicação ao sentido pode ser compreendida de dois modos diversos,
mas inclusivos. No primeiro, a dedicação ao sentido pode significar disponibilidade para se
comprometer com a ‘direção a seguir’, ou com o ‘para que’ de algo que hoje se estrutura.
Neste modo, o sentido está intimamente vinculado às possibilidades futuras que se
apresentam em convocação. A liberdade neste caso é a possibilidade de rumar para uma
determinada direção projetada. Outro modo de compreender a dedicação ao sentido é
tomando ‘sentido’ como o próprio fluir do movimento transcendente do fundar da liberdade
dos homens, que envolve não apenas a instancia futura, mas presente-passado-futuro em
constante transitoriedade. Dedicar-se ao sentido é então cuidar da efetivação da própria
liberdade: orientando-se pelo projeto que se excede no futuro, atuar no presente afinado e
restrito, legitimando a própria história como sempre-minha. E assim sucessiva e
constantemente, como num movimento caleidoscópico de presente-passado-futuro, que
nunca retorna ao mesmo desenho, mas que enquanto se move constrói a morada de Dasein.
É na liberdade para dedicação ao sentido que Dasein constrói a morada que ele não possui.

24
Gadamer desenvolve em Philosophical Hermeneutics a idéia de que as obras de arte são
aquelas onde a familiaridade encontra surpresa.
25
Idéia apresentada por Marco Antonio Casanova em aula na ABD sobre Heidegger em Carta
Sobre o Humanismo.
Para a Daseinsanalise, a liberdade se realiza no próprio exercício de dedicação ao sentido
fundante do humano singular.
Enxergar este movimento de fundar mundo acontecendo na própria vida exige uma
certa distância, que permite contemplar concomitantemente os sonhos e projetos, os
significados da própria história e as afinações presentes. A terapia é uma oportunidade de
trazer ao palco, em cada sessão, o modo singular cada paciente dedicar-se ao sentido e
habitar nele. Heidegger diz que “o homem livre é um ser ao longe” e que “somente por
meio de distancias originárias começa a ascender nele a verdadeira proximidade para com
as coisas”. A liberdade que se vislumbra na terapia é esta que, através da distância
originária da linguagem da poiesis, favorece a proximidade do paciente em relação ao seu
próprio movimento de fundar mundo, em relação a transitoriedade errante de sua própria
história.
Concluindo, o horizonte de liberdade na Daseinsanalise não é o poder para fazer
aquilo que se quer, não é o desapego liberal que afrouxa as restrições das relações e do
compromisso com os próprios sonhos. A Daseinsanalise não almeja mudar o mundo
restrito de seus pacientes. O horizonte de liberdade na Daseinsanalise é o morar na
abertura, que possibilita a proximidade livre da complexidade poética e transitória de
Dasein, que liberta a existência humana para a dedicação ao sentido, deixando ser e
acolhendo o fundar possível da própria história.

Você também pode gostar