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A filosofia da existência

Profª Gênice Aragão

Século XX Uma era de incertezas


O século XIX foi um período marcado, de modo geral, por grandes convicções. Os
cientistas, por exemplo, acreditavam enormemente no progresso tecnocientífico; os
capitalistas, nas vantagens da expansão industrial; os românticos, no valor da pátria e dos
sentimentos nacionais; os socialistas, na construção de um mundo menos desigual
moldado pelo socialismo. e, no âmbito da filosofia, muitos pensadores continuavam
confiantes no poder da razão.
No entanto, poucas dessas convicções subsistiriam intactas durante o século XX,
pois os resultados esperados não se concretizaram e várias dúvidas se abriram. por isso,
esse período recente de nossa história foi caracterizado como uma era de incertezas.
Além disso, durante o século XX ocorreram eventos especialmente trágicos, nos
quais a irracionalidade alcançou dimensões gigantescas: as duas guerras mundiais, que
derramaram sangue
em uma escala jamais vista na história da humanidade; a barbárie nazista, que assombrou
o mundo por sua imensa crueldade; a guerra fria entre os estados unidos e a união
Soviética, que polarizou grande parte do planeta e só terminou com o fim desta última.
Em termos positivos, depois da Segunda Guerra Mundial, houve um salto
vertiginoso no campo da tecnologia, dando início a uma era de realizações grandiosas
para o ser humano: telescópios hiperpotentes exploraram os confins do universo; naves
espaciais iniciaram a conquista do cosmo; a engenharia genética registrou avanços antes
restritos aos livros de ficção; a tecnologia da informação e diversos novos aparatos
chegaram à vida cotidiana de milhões de usuários em todo o mundo.
EXISTENCIALISMO A aventura e o drama de existir
O termo existencialismo designa o conjunto de tendências filosóficas que, embora
divergentes em vários aspectos, têm na existência humana o ponto de partida e o objeto
fundamental de suas reflexões. por isso, podemos designá-las também como filosofias da
existência, no plural. As filosofias da existência propriamente ditas surgiram no século
XX, mas sofreram grande influência do pensamento de alguns filósofos do período
anterior – como arthur Schopenhauer, Sören Kierkegaard e Friedrich Nietzsche
(abordados no capítulo anterior) –, que por isso são considerados pré-existencialistas.
Problema de existir
Mas o que é existir? Se refletirmos sobre o tema, junto com os pensadores existencialistas,
veremos que existir implica a relação do ser humano consigo mesmo, com outros seres
humanos, com os objetos culturais e com a natureza. São relações múltiplas, concretas
e dinâmicas. algumas dessas relações são determinadas (como aquelas que resultam de
leis da física) e indeterminadas (como aquelas que resultam de nossa liberdade ou do
acaso, sendo passíveis ou não de acontecer).
Sobre esses temas, os filósofos existencialistas elaboraram diversas interpretações, cujo
denominador comum é certa visão dramática da condição humana. O filósofo e escritor
francês Albert Camus (1913-1960) ilustrava bem essa interpretação quando dizia que a
única questão filosófica séria é o suicídio.
Vejamos algumas concepções características do existencialismo:
• ser humano – é entendido como uma realidade imperfeita, aberta e inacabada, que
foi “lançada” ao mundo e vive sob riscos e ameaças;
• liberdade humana – não é plena, pois está condicionada às circunstâncias históricas
da existência. Nesse sentido, querer não se identifica com poder. Homens e mulheres
agem no mundo superando ou não os obstáculos que se lhes apresentam;
• vida humana – não é um caminho seguro em direção ao progresso, ao êxito e ao
crescimento. ao
contrário, é marcada por situações de sofrimento, como doença, dor, injustiças, luta pela
sobrevivência, fracassos, velhice e morte. assim, não podemos ignorar o sofrimento
humano, a angústia interior, a exploração social. É preciso considerar esses aspectos
adversos da vida e encará-los
Abbagnano (2007, p. 402-406) destaca que, por existencialismo, costuma-se
indicar um conjunto de correntes filosóficas cuja marca comum é a análise da existência
entendida como o modo de ser do próprio homem. Para o existencialismo a existência é
o único fundamento do real, portanto, a existência é o ponto de partida da reflexão
filosófica. A filosofia deve refletir sobre o homem no mundo, sobre o ser-no-mundo. A
filosofia tem uma função eminentemente prática. O existencialismo destaca o valor da
pessoa, da existência, da liberdade; acentua mais a vivência do que o ser; a existência é
mais importante que a essência; insiste na autonomia do indivíduo. E a existência é o
lançar-se contínuo às possibilidades sempre renovadas.
Sõren Kierkegaard (1813-1855)
No século XIX, o filósofo dinamarquês Sõren Kierkegaard (1813-1855) foi o
primeiro a descrever a angústia como experiência fundamental do ser livre ao se colocar
em situação de escolha. Mais tarde, no século seguinte, os existencialistas continuaram o
caminho por ele aberto, buscando compreender a singularidade da escolha livre.
Para os historiadores da filosofia, Kierkegaard é considerado o pai do
existencialismo, cujo pensamento nasceu principalmente das experiências de sua própria
existência. Reale e Antiseri (2005, p. 223) destacam que a filosofia existencial de
Kierkegaard é um verdadeira teologia experimental ou uma autobiografia teológica que
se desdobra em uma imponente literatura e Marilena Chauí (apud KIERKEGAARD,
1979, p. 10) reforça como a filosofia existencial de Kierkegaard surge da luta de sua
própria consciência, de sua própria existência, intensa e exigente, e não de uma existência
em geral.

Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir não é apenas uma filósofa feminista existencialista,
conhecida principalmente pela publicação de sua obra O Segundo Sexo. Simone é
também uma escritora que tem como característica levar seus leitores a refletir sobre
conceitos filosóficos existenciais em suas narrativas literárias, o que faz com que seja
necessário uma certa iniciação filosófica para ter uma plena compreensão de seus
romances. Não que seja necessário conhecer filosofia para tal, mas esse conhecimento
permite mergulhar nas narrativas beauvoireanas de forma mais aprofundada.

Cada sujeito, isto é, homem ou mulher, é livre e responsável por suas escolhas,
mas é inegável que as contingências sociais têm negado à mulher a condição de exercer
sua vontade livremente e contra a qual é necessário lutar. É inegável que a condição da
mulher é radicalmente diferente da condição masculina. Há condicionamentos sociais,
históricos, culturais e até psicológicos que impõem essa diferença de condição.

Cabe então perguntar: por que as mulheres aceitaram essa


opressão? Se elas são livres, dado que um sujeito humano deve
ser livre, por que têm de viver vidas tão restritas? A resposta de
Beauvoir era invocar a noção sartriana de má fé em todas as suas
muitas formas. Os seres humanos são livres, mas podem impedir
essa liberdade e, infelizmente, uma situação da mulher permite-
lhe mais e melhores meios de enganar-se do que quaisquer outros
grupos oprimidos (NYE, 1995, p. 108).

Os homens sempre quiseram a mulher na sua condição de objeto, de inferior, um


ser sem vontade, por isso estimulam sua fraqueza, tornam-na dependente. Não admitir a
responsabilidade que os homens têm pela condição de opressão e submissão das mulheres
é um ato de má-fé, mas que não explica por si só a falta de liberdade das mulheres, pois
há aqui uma cumplicidade da vítima que é preciso salientar

Heidegger
Embora tenha abordado a questão da existência, o filósofo Martin Heidegger (1889-
1976) recusa ser enquadrado entre os filósofos existencialistas, argumentando que as
reflexões acerca da existência são, na sua filosofia, apenas introdução à análise do
problema do ser, e não propriamente da existência pessoal. Mas não resta dúvida de que
inspirou o pensamento dos existencialistas. Heidegger, discípulo de Husserl, na obra Ser
e tempo segue o método fenomenológico para discutir e elaborar uma teoria do ser.
Assim, parte da análise do ser, que ele denomina Dasein no caso do ser humano. Esta
expressão alemã significa justamente o "ser-aí", isto é, um ser-no-mundo: o ser humano
não constitui uma consciência separada do mundo; ser é "estourar", "eclodir" no mundo.
De acordo com o filósofo, há três etapas que caracterizam a vida humana, as quais, para
a maioria
dos indivíduos, culminam em uma existência inautêntica. São elas:
• o fato da existência – o ser humano é “lançado” ao mundo, sem saber por quê. ao
despertar para a consciência da vida, já está aí (Dasein), sem ter pedido para nascer; ou
seja, a consciência ocorre já aqui, na vida.
• o desenvolvimento da existência – o ser humano estabelece relações com o mundo
(ambiente natural e social historicamente situado). para existir, projeta sua vida e procura
agir no campo de suas possibilidades. Move uma busca permanente para realizar aquilo
que ainda não é. em outras
palavras, existir é construir um projeto; O desenvolvimento da existência ocorre em um
tempo histórico e limitado.
• a destruição do eu – tentando realizar seu projeto, o ser humano sofre a interferência
de uma série de fatores adversos que o desviam de seu caminho existencial. trata-se do
confronto do eu com os outros, confronto no qual o indivíduo comum geralmente é
derrotado. O seu “eu” é destruído, arruinado, dissolve-se na banalidade do cotidiano, nas
preocupações da massa humana. em vez de se tornar si-mesmo, torna-se o que os outros
são; assim, o eu é absorvido no com-o-outro e para-o-outro.
Na concepção de Heidegger, o sentimento profundo que nos faz despertar da existência
inautêntica é a angústia, pois se trata de um estado afetivo que revela o quanto nos
dissolvemos em atitudes impessoais, o quanto somos absorvidos pela banalidade do
cotidiano, o quanto anulamos nosso eu para inseri-lo alienadamente no mundo do outro.
Na angústia, sentimo-nos como um ser a caminho do nada, um ser-para-a-morte. Na
tentativa de sair desse estado, geralmente buscamos meios para esquecer aquilo que o
causa. Fugimos. essa é uma solução provisória, pois – conforme apontou o filósofo –
somente quando o indivíduo enfrenta seu sentimento e transcende o mundo e a si mesmo,
conferindo um sentido a seu ser, é que consegue superar sua angústia.

A autenticidade
A autenticidade ou a inautenticidade da sua vida decorre do sentido que o ser humano
imprime à sua ação. O indivíduo inautêntico é o que se degrada vivendo de acordo com
verdades e normas dadas; a despersonalização o faz mergulhar no anonimato, que anula
qualquer originalidade. É o que Heidegger chama mundo do "se", ao designar a
impessoalidade da ação: come-se, bebe-se, vive-se, como todos comem, bebem, vivem.
Ao contrário, a pessoa autêntica é aquela que se projeta no tempo, sempre em direção ao
futuro. A existência é o lançar-se contínuo às possibilidades sempre renovadas.
Entre as possibilidades, a pessoa vislumbra uma delas, privilegiada e inexorável: a
morte. O "ser-aí" é um "ser-para-a-morte". A máxima "situação-limite", que é a morte, ao
aparecer no cotidiano, possibilita-lhe o olhar crítico sobre sua existência. É característica
da inautenticidade abordar a morte como "morte na terceira pessoa", ou seja, a morte dos
outros, evitando tematizar a própria finitude e, portanto, nunca questionando a própria
existência.
Jean-Paul Sartre
Jean-Paul Sartre foi um filósofo e escritor consagrado que viveu no século XX
conhecido por suas obras filosóficas, literárias e suas reflexões sobre a existência humana
com ênfase na liberdade, responsabilidade e no engajamento político (BEAUFRET, 1976;
GIORDANI, 1997; HUISMAN, 2001).
A existência humana foi alvo de profundas reflexões literárias e filosóficas, desde
o século XIX até o século XX, tendo em Sartre um de seus principais expoentes. Para o
existencialismo a existência é o ponto de partida da reflexão filosófica. A filosofia deve
refletir sobre o homem no mundo, sobre o ser-no-mundo e, por isso, tem uma função
eminentemente prática. O existencialismo destaca o valor da pessoa, da existência, da
liberdade; acentua mais a vivência do que o “ser”. O cerne do pensamento existencialista
é de que “a existência precede a essência” (SARTRE, 1987), no sentido de que o ser
humano é aquilo que quiser ser. O homem é livre sendo ele o único responsável pelo que
faz de si mesmo.
A orientação individualista da filosofia da existência de Kierkegaard foi renovada
por Sartre que se diferencia do filósofo dinamarquês por seu ateísmo. Além de postular a
liberdade como um fundamento existencial Sartre parte do princípio de que não existe
nenhum Deus que tenha criado o homem e por isso o homem é o único responsável pelo
que faz de si mesmo.
Sartre identifica o homem com a sua liberdade: a vida do homem não está de modo
algum determinada como em uma planta, cujo futuro já está “inscrito” na semente; o
homem é o artífice do seu futuro. E não há como se desculpar: somos responsáveis por
nossas glórias e por nossas tragédias; se falirmos ou vencermos, falimos ou vencemos
porque escolhemos a derrota ou a vitória. Ninguém nasce covarde ou herói, diz Sartre. O
covarde se fez covarde, assim como o herói se torna herói. O homem escolhe livremente
o seu futuro. Ele pode escolher ter ou não ter filhos, se alistar ou desertar em caso de
guerra, mas não pode deixar de escolher. Não escolher já é escolher, mesmo sendo uma
atitude de fuga provocada por algum medo (SARTRE, 1987 e 1997).
Uma das afirmações mais conhecidas de Sartre é que o ser humano está condenado
à liberdade. Isso significa que cada pessoa pode a cada momento escolher o que fará de
sua vida, sem que haja um destino previamente concebido. Para Sartre o homem foi
lançado num mundo que não escolheu: não escolheu seu nome, sua classe social, sua
compleição física etc. Mas, desde que foi lançado no mundo, está condenado a escolher:
escolher sua vida, sua liberdade. Ao homem só resta a liberdade. E é ela que determina a
escolha.

Outro aspecto central do pensamento do filósofo francês é que a realidade humana


é um projeto e não pode ser definida como permanência. O homem é um ser-no-mundo,
surge no mundo, e só se define a partir de sua existência, tal como a si próprio se fizer.
Não há uma natureza humana que o defina. O homem é o que projeta ser. É o homem que
se escolhe; a sua liberdade é incondicional e em si está o poder de mudar o seu projeto a
qualquer momento. Abbagnano (2007, p. 404 – grifos do autor) destaca como no
existencialismo de Sartre,

a possibilidade última da realidade humana, a sua escolha


originária, é o projeto fundamental em que se inserem todos os
atos e as volições de um ser humano. Tal projeto é fruto de uma
liberdade sem limites, absoluta e incondicionada: de uma
liberdade que faz do homem uma espécie de Deus criador do seu
mundo e o torna responsável pelo mundo

Todos temos o sonho de sermos pessoas que já realizaram todas as suas potencialidades,
todos os projetos. Sartre nos diz que o projeto fundamental é tornar-se um ser que já
realizou tudo, mas preserva sua consciência. A liberdade é que torna possível escolher
dentre todas as alternativas possíveis, aquela que vai nos levar a um caminho mais curto
em direção ao projeto fundamental. Todo projeto humano contém em si um certo futuro.
Se decido me casar, estou ciente de que minha decisão irá afetar uma boa parte da minha
vida futura, senão a vida inteira. Se me lanço na política, crio alguma expectativa de como
posso intervir na vida em sociedade ou, ao contrário, de como a vida política pode me
beneficiar pessoalmente. Se sou um camponês minha vida existe em função daquilo que
resolvi semear e projeto um ano inteiro de expectativa diante dos meus olhos.

Referências
ARANHA, Maria Lúcia Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:
Introdução à Filosofia. 6ª ed. São Paulo: Moderna, 2016.
COTRIM, Gilberto Fundamentos de filosofia / Gilberto Cotrim, Mirna Fernandes. -- 4.
ed. -- São Paulo : Saraiva, 2018.

GALLO, Sílvio Filosofia : experiência do pensamento : volume único / Sílvio Gallo. --


2. ed. -- São Paulo : Scipione, 2016.

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