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Cidadania e Ética

Cidadania e Ética

1ª edição
2019
Autoria Francesco Napoli
Parecerista Validador Homero Nunes Pereira

*Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência.

Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte


desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Unidade 3
3. Existencialismo

Para iniciar seus estudos


3
Nesta unidade, você verá os diferentes conceitos acerca do existencialismo,
essa instigante corrente filosófica que fez tanto sucesso entre a juventude
da década de 1960, ampliando o conhecimento da nossa condição de
seres humanos e nossas responsabilidades neste mundo. Nosso principal
foco será a obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Objetivos de Aprendizagem
• Enunciar questões ontológicas da condição humana.

• Explicar o conceito de má-fé para Sartre.

• Elucidar o conceito de liberdade a partir de uma perspectiva


existencialista.

• Discutir o conceito de crise a partir do existencialismo.

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Cidadania e Ética | Unidade 3 - Existencialismo

Introdução da unidade
Existir, viver e sentir, em suma ser uma pessoa no mundo muitas vezes nos coloca diante de inúmeros dilemas,
ou seja, de escolhas que devemos lidar de uma forma ou de outra. Nesta unidade, os dilemas enfrentados pelo
ser humano ganham contornos aprofundados, demonstrando como temos certas responsabilidades, bem como
nos definimos enquanto seres humanos, justamente pelas escolhas que fazemos. Veremos que, inevitavelmente,
somos os únicos responsáveis pelas nossas próprias decisões.

3.1 A existência

3.1.1 Antecessores do existencialismo

O existencialismo é uma das abordagens filosóficas e culturais que estiveram em destaque em meados do
século XX: somos, absoluta e radicalmente, responsáveis por todas as nossas ações. Como bem nos diz o filósofo
francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), estamos sós no mundo, sem desculpa. Não há a quem recorrer, mesmo
que seja no plano divino, para nos dizer exatamente qual a melhor escolha. Tampouco o nosso comportamento é
determinado pelo nosso passado, nossas paixões ou nossa natureza. Somos forçados, desde o primeiro momento
em que existimos neste mundo, a nos criar por meio das escolhas livres que fazemos, pelas quais teremos
responsabilidade absoluta e inevitável. Aqui temos um traço fundamental do existencialismo: a inevitabilidade
do ato da escolha. Tem-se que agir e decidir inevitavelmente, já que é impossível não decidir. A escolha é algo
do qual não se escapa: mesmo escolhendo-se não escolher, uma escolha será feita. Diz-nos Sartre: “A escolha é
possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não escolher” (SARTRE, 1973).

Figura 13 – Sartre

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018

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Apesar de esta unidade se debruçar sobre o pensamento de Sartre, o termo existencialismo antecede o século XX,
sendo particularmente explorado pelos filósofos Søren Kierkegaard (1813-1855) e Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Kierkegaard foi, por excelência, o filósofo do indivíduo. A ênfase do seu pensamento estava nas dimensões
subjetivas da experiência vivida, que pode ser vista como precursora do existencialismo. Já o pensamento de
Nietzsche não compartilha do entusiasmo de Kierkegaard pelo cristianismo, rotulando-o de uma moralidade
escrava e declarando que o cristianismo é, essencial e fundamentalmente, náusea e fastio contra a vida, sentidos
pela própria vida e, também, uma repulsa a ela. Segundo Nietzsche (1983), o cristianismo, por ter suas origens
no platonismo, reproduz o dualismo psicofísico, ou seja, a separação entre corpo e alma, colocando o corpo em
um lugar inferior, negando-o em prol da alma. O corpo passa a ser a entrada para o pecado e o próprio símbolo
da decadência, pois, na mitologia cristã, um dos castigos pelo gesto de desobediência cometido por Adão e Eva
ao optarem por morder o fruto do bem e do mal é justamente a expulsão do paraíso e a vinda para este nosso
mundo. “Com o suor do teu rosto produzirás o alimento.” O corpo passa a ser visto como parte do castigo divido,
pois é por meio dele que o homem passa a conhecer o bem e o mal nessa condição pós-edênica. Nietzsche
afirma que:

Platão, antes, como médico, poder-se-ia perguntar: “por que uma tal moléstia no produto mais
belo da Antiguidade, em Platão? Seria então verdadeiro que Sócrates o tivesse corrompido? Seria
Sócrates efetivamente o corruptor da juventude? Mereceu, na verdade, a sua cicuta?” Porém a luta
contra Platão, ou para dizê-lo de modo mais inteligível e popular, a luta contra a milenar opressão
clerical cristã — uma vez que o Cristianismo é um Platonismo para a povo — produziu, na Europa,
uma maravilhosa tensão dos espíritos até então nunca vista na terra (NIETZSCHE, 1983).

Dessa forma, segundo Nietzsche (1983), o cristianismo nega a vida, o corpo e os sentidos, e um movimento
necessário de emancipação seria a afirmação da vida. Já Kierkegaard desenvolve sua argumentação existencialista
incorporando o cristianismo como uma forma de conceber o absurdo da própria vida por meio do mistério da
revelação divina. O filósofo que escolhemos nesta unidade, Jean Paul Sartre, parte do pressuposto de que não há
deus, nem nada que possa dar conta do vazio de nossa existência; portanto, o desafio é assumir que a existência
precede a essência e que todo sentido da vida é inventado por nós. Ou seja, primeiro existimos no mundo, depois
criamos os sentidos das coisas e da própria vida.

3.1.2 Ontologia e metafísica

Dentro da filosofia, existem vários campos do conhecimento filosófico, áreas de especialização que os
filósofos adentram, tais como: a ética, que estuda questões relativas ao comportamento humano a partir da
moral; a lógica, que estuda a linguagem; a estética, que estuda o belo e a arte; e a epistemologia, que estuda
o conhecimento. O campo do conhecimento que estuda a existência, ou o ser, é a ontologia (do grego ontos
+ logoi = “conhecimento do ser”). Ontologia é a parte da filosofia que trata da natureza do ser, da realidade,
da existência dos entes e das questões metafísicas em geral. A ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do
ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres. A ontologia,
algumas vezes, porém, impropriamente, costuma ser confundida com outro campo do conhecimento filosófico,
chamado metafísica (meta = além, e física vem do grego physis, que quer dizer natureza). Ou seja, enquanto a
ontologia estuda o “ser”, a metafísica debruça-se sobre as questões que vão além da física, aquilo que não pode
ser explicado naturalmente. Conquanto tenham, ambas, certa comunhão ou interseção em objeto de estudo,
é também inescrutavelmente claro que nenhuma das duas áreas é subconjunto lógico da outra, ainda que na
identidade.

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3.1.3 O existencialismo

O existencialismo é uma corrente do pensamento filosófico contemporâneo que aborda a nossa própria
existência a partir do pressuposto, segundo o qual cada homem é um ser único, mestre de seus atos e daquilo
que chamamos de destino.

O termo “existencialismo” tem sua origem na palavra “existência”. Sartre, depois de ter feito estudos sobre
fenomenologia na Alemanha, formulou o conceito de existencialismo a partir da palavra francesa existence. Na
Alemanha, Sartre estudou o pensamento de Martin Heidegger (1889-1976) e traduziu o conceito de dasein para
existence. Há um diálogo muito intenso entre o existencialismo e a fenomenologia, cujo principal representante,
o filósofo Edmund Husserl (1859-1938), propõe que a descrição de todos os fenômenos deve ser efetuada tal
como eles aparecem ou parecem ser ou seja, os fenômenos da consciência precisam ser estudados em si mesmos.
Portanto, para o existencialismo, a fenomenologia de Husserl representou um interesse, até então inédito, para
compreender a consciência.

Fique atento!

Ainda que Sartre seja o grande nome do Existencialismo de sua época, sua obra e pensamento
não são os únicos a perpassar pelo assunto e contribuir para a nossa reflexão. Também
podemos citar a filósofa Simone de Beauvoir, companheira de Sartre, e o filósofo Albert
Camus, que possuiu certo desafeto com o filósofo principal do existencialismo do século
XX. Outros nomes também podem ser associados a essa lista, como Karl Jaspers, Martin
Heidegger, Hannah Arendt e Maurice Merleau-Ponty.

3.2 Crises
Segundo Sartre (1987), nossas preocupações existencialistas começam com uma crise. No vocabulário
filosófico do existencialismo, o termo “crise” significa um momento no qual o ser humano questiona os próprios
fundamentos de sua vida: se esta vida possui algum sentido, propósito ou valor. Essa questão sobre o sentido e
propósito da existência é o principal tema da escola filosófica do existencialismo.

A mais famosa obra de Sartre a respeito do tema existencialismo intitula-se O ser e o nada, publicado pela
primeira vez durante a Segunda Guerra Mundial. Uma obra densa, complexa e muito sofisticada em termos
filosóficos. Outra via de acesso ao existencialismo sartreano é o artigo do filósofo intitulado O existencialismo
é um humanismo, que, com uma linguagem mais simples, por se tratar de um texto fruto de uma conferência,
tenta explicar a complexidade e a sofisticação filosófica presentes na obra O ser e o nada, defendendo o
existencialismo das inúmeras críticas recebidas e o associando ao humanismo.

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Saiba mais

Procure o texto O existencialismo é um humanismo em PDF, que você o encontrará


facilmente! Outra opção é a ótima tradução de Rita Correira Guedes, Luiz Roberto Salinas
Forte e Bento Prado Júnior.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo e um humanismo; imaginação; Questão de


método. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Trad. Rita Correira Guedes, Luiz
Roberto Salinas Forte, Bento Prado Júnior. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

Nessa crise, o homem, então, desperta para a sua condição enquanto um ser que existe, tal como descobre a
artificialidade de sua essência e a imensa responsabilidade por sua própria existência. Sartre discute a questão
das relações entre essência e existência a partir de comparações exemplificadas. Pensemos em uma escultura.
Um artista, antes de lapidar e gerar a estátua, deve imaginá-la em sua mente, com todos os detalhes necessários
à sua apreciação. Neste exemplo, dizemos que a essência da estátua precede a sua existência e a sua própria
função de existir, pois o artista concebe essa essência por meio da sua imaginação, antevendo em pensamento
como aquela estátua seria antes de executá-la e fazê-la existir. Já no caso da nossa existência humana, não é
possível afirmar que ela tenha um propósito que a preceda, ou seja, primeiro existimos, depois criamos a essência
que estaria por detrás dessa existência. No caso do exemplo da estátua, a essência precede a existência, pois o
escultor pensa o que a estátua seria antes de efetivá-la, mas, no caso do homem, isso seria impossível, pois o
homem primeiro existe e tem consciência disso, depois inventa aquilo que ele chama de essência.

O argumento de Sartre pode ser, portanto, compreendido da seguinte forma: quando fazemos algo, fazemos com
um propósito. O propósito ou essência de algo criado vem antes da sua existência. Em paralelo, para Sartre, não
há um Deus que nos criou ou possa nos dizer algo sobre a existência. Portanto, não somos feitos para qualquer
propósito, o que significa que a nossa existência precede a nossa essência e, por causa disso, ainda temos que
criar um propósito para nós mesmos. Deixemos agora que o filósofo fale por si mesmo:

O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira
instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define.
O homem, tal como existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de
início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo.
Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-
somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe
após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do
que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo (SARTRE, 1973).

Essa ruptura com o pensamento filosófico tradicional, que sempre buscou uma essência humana e um sentido
transcendental para a vida, é típica da pós-modernidade. Nietzsche, no século XIX, foi o primeiro a anunciar a
morte de Deus como uma libertação:

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o Velho Deus morreu” nos
sentimos como iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto,
pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja
limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente

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é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente
aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto” (NIETZSCHE, 2009).

O existencialismo sartreano parte desse pressuposto, transferindo toda a responsabilidade da existência para
o próprio homem, que, desprovido da tutela divina, tem de se afirmar de modo mais verdadeiro e, assim, não
haveria como escapar de sua responsabilidade diante da existência.

3.3 Responsabilidade
Aqui entra uma questão muito importante para Sartre, a responsabilidade, pois há em nós uma tendência a
atribuir a responsabilidade de nossa existência às coisas e pessoas externas a nós, como se nossos erros, mazelas,
destino etc. estivessem vinculados a essa suposta essência que determinaria nossa existência; porém, Sartre
afirma, categoricamente, que somente nós somos responsáveis por nossas escolhas e que não há nada que
anteceda a existência e permita que possamos transferir nossa responsabilidade.

O ser humano é senhor de si mesmo e de sua própria existência, pois a “existência precede a essência”; sendo
assim, ele é responsável por aquilo que é. Isso também significa que não há nenhum destino ou propósito exterior
à realização humana. É interessante perceber a universalidade do pensamento de Sartre, pois, na medida em que
o ser humano escolhe a si, ele está também escolhendo todos os demais seres humanos. Nenhum dos nossos
atos, os quais definem o ser humano que queremos ser, não deixa de significar que também projetamos uma
imagem do homem, tal como julgamos que ele deva ser. Nas palavras do filósofo:

O homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas
também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não
consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade (SARTRE, 1973).

As implicações, no âmbito da moral, das escolhas individuais, nos conduzem à questão do engajamento, conforme
visto na citação anterior. O engajamento se constitui como um projeto existencial, no qual cada ato livre é uma
adesão completa à humanidade, ou seja, para o ser humano, engajar é assumir-se como um ser inacabado, que
encontra nas relações humanas e na vivência no mundo a direção e o significado para a sua existência. Podemos
tanto acertar quanto errar, e isso faz parte do existencialismo.

Segundo Sartre (1987), não importa aquilo que fizeram com você, mas, sim, aquilo que você vai fazer com o que
fizeram de você, ou seja, Sartre desenvolve um pensamento que transfere toda a responsabilidade da existência
para o próprio homem de modo universal. Dessa forma, as escolhas que fazemos a todo o momento implicam,
necessariamente, o conceito de responsabilidade, pois, a partir do existencialismo sartreano, nos vemos obrigados
a lidar com nossa liberdade, e nossa existência passa a ser, também, nossa própria responsabilidade.

3.4 Má-fé
Partindo do pressuposto segundo o qual homem não tem uma essência que o define, mas deve inventar essa
essência e assumi-la diante do vazio de não haver tal essência, Sartre insere o conceito de má-fé. A má-fé seria
uma reação a esse vazio, a partir do qual a liberdade se revela. O homem, ao experimentar a liberdade e ao
sentir-se como um vazio, vive a angústia da escolha. A maioria das pessoas não suporta essa angústia, fugindo
dela. Isto é o que Sartre chama de má-fé.

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Má-fé é a atitude característica do homem que finge, para si mesmo, escolher sem escolher autenticamente. O
homem que age de má-fé acha que seu destino está traçado, que os valores lhe são dados, aceitando as verdades
que vêm do exterior, aceitando, sem críticas, a verdade dada. Então, ele acredita ser o autor de seus próprios atos.
A má-fé não é necessariamente uma mentira, mas uma espécie de dissimulação para si mesmo para fugir da
responsabilidade e do peso de ter de assumir suas escolhas. Segundo Sartre, o homem que recusa a si mesmo
se torna objeto, coisa. Tal comportamento é chamado, por Sartre, de espírito de seriedade. O homem sério vive
na ordem estabelecida da tradição na medida em que recusa a liberdade. Sartre se destacou também por sua
produção literária. Em um famoso conto, intitulado A infância de um chefe, o filósofo ilustra o comportamento
de má-fé a partir do exemplo de um garçom, que, para servir, tem de se colocar em uma condição de objeto,
a serviço de algo que não é ele mesmo, de modo que ele se vê com os olhos dos outros. Na sua principal obra,
O ser e o nada, Sartre afirma que:

Consideremos esse garçom de café. Tem um gesto vivo e apurado, preciso e rápido; dirige-se
aos consumidores num passo demasiado vivo, inclina-se com demasiado zelo, sua voz e seus
olhos experimentam um interesse demasiado cheio de solicitude para o pedido do freguês (...) Ele
representa, brinca. Mas representa o quê? Não é preciso observá-lo muito tempo para perceber:
ele representa ser garçom de café (SARTRE, 1998).

Outro exemplo de “má-fé” citado por Sartre é o de uma mulher que, estando com um homem, “deixa-se seduzir”
por ele a partir de um processo no qual ela, desde o início, dissimula para si mesma o aspecto sexual do encontro.

Reconhecer que devemos escolher e que, justamente por isso, também somos livres nos conduz a certa angústia
e desamparo, pois não há quem possa nos ajudar nisso. Nem mesmo alguma figura divina, tampouco um coach.
Nesse sentindo, para Sartre, estamos em perpétua fuga de nossa liberdade. Sentimos angústia na medida
em que temos consciência de sermos fundamentalmente livres, de precisarmos sempre fazer escolhas e que,
também, não podemos confiar na permanência, nem na validade dessas escolhas. Nesse ponto, dois conceitos
interligados surgem no pensamento de Sartre: a vertigem e a má-fé.

A vertigem é a angústia na medida em que “tenho medo, não de cair no precipício, mas de
me atirar nele”, como nos afirma Sartre.

Para melhor lidar com a vertigem, imagine, por exemplo, a experiência de andar por um caminho estreito e muito
inclinado num dos lados. Nessa situação, você pode sentir certo medo, assim como terá consciência de que os
seres humanos são objetos no mundo e, portanto, sujeitos às leis físicas (como a gravidade nos puxando para
baixo). É possível que você escorregue, caia ou morra. É de se esperar que você tratará de minimizar o riacho,
talvez andando o mais afastado possível da inclinação. Ao tomar essa decisão, você se livra do medo impondo o
seu próprio futuro à situação ou, como diria Sartre, você substitui a simples possibilidade objetiva – que você pode
cair e morrer – pelas suas próprias possibilidades. Contudo, entre o momento agora e o futuro, existe um nada a
ser preenchido, o que também significa que evitar cair agora não o salvará de cair mais à frente. A angústia surge,
portanto, no reconhecimento de que o futuro é sempre duvidoso e de que a escolha se faz sempre necessária.

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Figura 14 – Abismo

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018

Saiba mais

A obra de Sartre intitulada O ser e o nada contém alguns exemplos impressionantes de


má-fé; contudo, é no romance A náusea, também de Sartre, que encontramos o que
podemos definir como um magnífico romance existencialista.

3.5 Liberdade
Como foi apresentado anteriormente, ao fazer escolhas, também criamos um modelo para imaginarmos como
uma vida humana deve ser. Se escolho ser um cientista, filósofo ou professor, então estou não apenas decidindo
por mim mesmo, como também afirmo que ser cientista, filósofo ou professor são atividades que valem a pena.
Nossas escolhas têm impacto sobre nós e sobre a humanidade. Como não existem princípios ou regras externas
para justificar nossas ações, não temos desculpas que nos eximem das escolhas feitas. Aqui surge outra famosa
frase de Sartre, de que todo ser humano está “condenado a ser livre”.

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Figura 15 – Liberdade

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018

Sartre reúne, portanto, liberdade com responsabilidade, o que fez com que muitos o considerassem pessimista,
algo que ele mesmo rejeitou ainda em vida. Apesar de assumirmos a responsabilidade pelo impacto de nossas
ações sobre os outros, podemos escolher exercer um controle estrito sobre o modo como moldamos nosso
mundo e a nós mesmos.

Saiba mais

Sartre influenciou toda uma geração a assumir suas responsabilidades e desafiar as atitudes
tradicionais e autoritárias. Ele é considerado um dos principais influenciadores do movimento
de maio de 1968 que lotou as ruas de Paris com jovens em protesto. Tal movimento também
teve influência no Brasil inspirando o combate à nefasta ditatura militar.

De acordo com Sartre, a liberdade é algo do qual não há como renunciar, pois ela se impõe de modo que essa
opção inexiste, já que optar por renunciar à liberdade seria renunciar a si mesmo. Sartre desenvolveu uma
argumentação, a partir da qual a liberdade se torna o principal alicerce da moral, que é compreendida como algo
que é inventada e aceita pelo próprio homem e se manifesta em seu agir concreto.

Dessa forma, o ser humano, segundo Sartre, estaria condenado à liberdade pelo simples fato de existir. Portanto,
existir significa, inevitavelmente, escolher. Como toda liberdade de escolha implica escolher alguma coisa, temos
um compromisso com a responsabilidade, pois nossa escolha sempre envolve toda a humanidade. Mas escolher
é sempre difícil, e algumas escolhas geram angústia. Nesse sentido, não há como indicar culpados. Você, e mais
ninguém, é o responsável por suas escolhas. Nas palavras do Sartre:

[...] o que se poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a angústia ética. Há angústia ética
quando me considero em minha relação original com os valores. Estes, com feito, são exigências

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que reclamam um fundamento. Mas fundamento que não poderia ser modo algum o ser, pois
todo o valor que fundamentasse sua natureza ideal sobre seu próprio ser deixaria por isso de ser
valor e realizaria a heteronomia de minha vontade (SARTRE, 1998, p. 82).

Essa angústia ética, que é excluída pela moralidade cotidiana, seria, justamente, uma característica da má-fé.
A moral, com suas regras, tradições, crenças, costumes etc., é adquirida de modo impensado, cotidiano, como
se bastasse seguir a moral para sermos justos e corretos. Porém, a ética, esse campo do conhecimento que tem
a moral como objeto de estudo, nos mostra que nem toda tradição é sinônimo de justiça. A angústia ética seria
a postura de colocar-se de forma crítica diante da moral, mas, mais do que isso, seria perceber o caráter artificial
de toda a moral e compreender que somos também responsáveis por essa invenção. Portanto, segundo Sartre,
por mais que os valores reclamem um fundamento, este não poderia ser, de modo algum, “o ser”, ou seja, esses
valores não existem por si mesmos, são criações humanas e falhas como tudo o que é humano. Se me subordino
a eles, renuncio à minha possibilidade de escolher autenticamente e pratico a má-fé.

Síntese da unidade
Nesta unidade, você pôde conferir como é o pensamento de Sartre a respeito do existencialismo. Como vimos,
ele não foi o único a escrever sobre esse assunto, mas suas ideias foram as que mais influenciaram boa parte
do século XX. Para Sartre, somos completamente livres e responsáveis por nossas escolhas, sem qualquer
ajuda externa. Criar uma situação que escape a essa responsabilidade é recair numa má-fé, bem como em um
rompimento com os ideais de ser humano.

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Considerações finais
Para que você possa compreender melhor Sartre, o ideal é sempre
buscar as palavras originais do filósofo, sempre lendo cada trecho e se
perguntando o que poderia significar cada palavra e frase. É um trabalho
árduo, mas essencial para que possamos compreender melhor a nossa
responsabilidade neste mundo. Boas leituras!

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