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Cidadania e Ética

Cidadania e Ética

1ª edição
2019
Autoria Francesco Napoli
Parecerista Validador Homero Nunes Pereira

*Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência.

Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte


desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Unidade 7
7. Cidadania e Responsabilidade
Social

Para iniciar seus estudos


7
Nesta unidade, você conseguirá relacionar os conceitos de cidadania,
responsabilidade social e sustentabilidade. Veremos os obstáculos que a
cidadania enfrenta para se efetivar por meio da autêntica participatividade
e como o contexto histórico nos permite visualizar essas questões de
modo ampliado e crítico.

Objetivos de Aprendizagem
• Contextualizar o conceito de cidadania.

• Problematizar o conceito de responsabilidade social.

• Relacionar o conceito de sustentabilidade com cidadania e


responsabilidade social.

• Identificar o conceito de socialismo.

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Introdução da unidade
Cidadania é uma coisa que precisa ser conquistada. Não há como a participação ser compulsória, “de cima para
baixo”. Só há autêntica participatividade quando há mobilização, e isso só se dá de modo legítimo quando ocorre
“de baixo para cima”. Nesta unidade, você vai perceber a necessidade de pensarmos a cidadania a partir da noção
de sustentabilidade, que implica responsabilidade social. Por se tratar de termos tão próximos e interdependentes,
analisaremos de modo a contextualizá-los historicamente, trazendo-os para nosso tempo por meio de exemplos.

A cidadania é uma conquista de nossa época, que precisamos praticar e aperfeiçoar cada vez mais. Quando um
grupo de pessoas humildes percebe sua condição desprivilegiada e se sente no dever de se manifestar, há algo
legítimo e importante em termos de cidadania. Imaginemos uma comunidade que está situada na periferia da
cidade, que é servida por linhas de ônibus precárias e caras. Essas pessoas começam a se questionar sobre o
caráter público desse serviço, que é uma concessão do estado a uma empresa, e buscam saber como são as
regras de concessão. Descobrem que a empresa em questão está operando esta linha há décadas e que é uma
doadora de campanhas eleitorais dos últimos prefeitos. Diante dessa situação, percebem, por meio de uma
associação de bairro, que podem fiscalizar, cobrar e até mesmo denunciar essas irregularidades em licitações.

Esse pequeno exemplo nos mostra a essência do conceito de cidadania. A percepção de que fazemos parte de
um todo e que precisamos de representatividade para sermos ouvidos por meio dispositivos democráticos. A
sustentabilidade se torna um fator crucial para esse processo, de modo que a responsabilidade social passa a ser
uma demanda para alcançarmos o tão almejado nível global de sustentabilidade.

7.1 Cidadania
A cidadania está relacionada à vida em sociedade. Sua origem, no mundo ocidental, está, certamente, ligada ao
desenvolvimento das poleis gregas, entre os séculos VIII e VII a.C. O conceito de cidadania vem sendo moldado
de acordo com as necessidades de cada época. Na idade antiga, confundia-se o conceito de cidadania com o
de naturalidade. Dessa forma, originalmente, cidadão é aquele nascido em determinada cidade, sendo assim,
os estrangeiros eram proibidos de praticar política. Com o passar do tempo, os gregos modificam sua estrutura
política e os estrangeiros passam a ser aceitos nela, de modo que a aristocracia cedesse espaço para assembleias
e conselhos com participação popular. Mesmo assim, a participação política na democracia grega, para os
parâmetros atuais, certamente é considerada muito restrita.

Com a formação dos estados nacionais na modernidade, a cidadania volta a ser um tema recorrente nas questões
políticas. Cyro de Barros Rezende e Isnard de Albuquerque, no artigo intitulado “A evolução do conceito de
cidadania”, afirmam que:

Hoje, uma variedade de atitudes caracteriza a prática da cidadania. Assim, entendemos que
um cidadão deve atuar em benefício da sociedade, bem como esta última deve garantir-lhe os
direitos básicos à vida, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre outros.
Como consequência, cidadania passa a significar o relacionamento entre uma sociedade política
e seus membros. Os reflexos dessa condição no direito internacional, por outro lado, emulsiona
esse conceito ao de nacionalidade. Mas foi apenas com as guerras mundiais e com o temor à
extrema violência dos conflitos e de seus subprodutos, como foram os regimes totalitários, que
a sociedade civil e os órgãos internacionais, como a ONU, entenderam ser os direitos humanos
uma questão de primeira ordem para o tema da cidadania contemporânea (REZENDE FILHO;
CÂMARA NETO, 2001, p. X).

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São mais de 2.500 anos do conceito de cidadania na história do mundo ocidental e este sempre esteve vinculado
às mudanças nas estruturas sociais. Contudo, não há como negar que houve muitas transformações nos campos
da técnica e da política que impactaram radicalmente em nossa sociedade e influenciaram indiretamente os
direitos e deveres de todos os cidadãos. Pela primeira vez na história, o conceito de cidadania está vinculado ao
de direitos humanos, e isso é algo muito recente.

Como foi dito, nossa noção de cidadania tem sua mais remota origem na Grécia Antiga, mas é na formação das
democracias modernas que ela se delineia nos moldes que a conhecemos hoje. Cyro de Barros Rezende e Isnard
de Albuquerque afirmam que:

A necessidade de compreender o conceito atual de cidadania à luz dessas questões sociais


veio-nos como herança do processo de formação das democracias modernas. Como sabemos,
a Independência dos Estados Unidos e o processo revolucionário francês acabaram por delinear
um novo tipo de Estado. Os ideais de liberdade e de igualdade, embora tivessem uma origem
propriamente burguesa, contribuíram para a inclusão de um maior número de indivíduos no corpus
político das sociedades. Contudo, os anseios da população economicamente menos favorecida
ainda não estavam vinculados ao campo dos direitos sociais (REZENDE FILHO; CÂMARA NETO,
2001, p. X).

Os autores destacam que a maioria dos estudos contemporâneos sobre cidadania têm, nas desigualdades de
classe, o componente fundamental. E citam os trabalhos de Marshall e Barbalet. (MARSHALL, 1967; BARBALET,
1989). Esses autores afirmam que a intensificação dos direitos dos indivíduos nas sociedades contemporâneas
provocou uma maior diversidade de pautas e reivindicações, mas, ao mesmo tempo, também gerou uma
contrapartida conservadora, que procura conter as lutas travadas por direitos legítimos. Normalmente, esses
grupos conservadores são formados pelas classes sociais mais abastadas, que já se encontram em posições
privilegiadas, ou seja, a alta burguesia.

Figura 42 – Homem na rua

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

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A história política, social e econômica do mundo ocidental é marcada por uma vitória da classe burguesa em
cima da nobreza. Porém, essa relação entre nobreza e burguesia nunca foi antitética, ou seja, em várias situações
houve conchavos entre a burguesia e a nobreza, e é bom lembrar que burgueses sempre quiseram ser nobres.
Um exemplo disso está no fato de haver muitos relatos de compras de títulos de nobreza por parte de burgueses.

Theodor Adorno (1903-1969), filósofo alemão integrante da escola de Frankfurt, ao lado de Walter Benjamin
e Marcuse e Hokheimer, desenvolveu uma argumentação que denunciou o caráter ideológico do capitalismo
tardio e cunhou o conceito de Indústria Cultural. Segundo Adorno, o capitalismo tardio reproduz esse desejo
de ser nobre na classe média, que passa desfrutar de condições e “luxos”, antes restritos à nobreza, que, agora,
com a cultura de massa, passam a ser acessíveis por eles. Verlaine Freitas, estudioso do filósofo alemão Theodor
Adorno, nos diz que:

A cultura de massa é a da resignação perante a onipotência coletiva. Da mesma maneira que


o indivíduo sabe que a ordem econômica não segue seus desejos, que é preferível tentar se
adaptar a ela do que estabelecer uma vida que lhe seja indiferente, todos os grandes heróis,
mocinhas, ricaços, símbolos sexuais etc., da indústria cultural estipulam imagens e ideais com
que as pessoas podem se identificar, como se todos eles dissessem respeito a alguma coisa que
o indivíduo pode perceber em si mesmo, seja em seus desejos e fantasias mais onipotentes, seja
em suas idiossincrasias menos nobres (FREITAS, 2005, p. X).

Figura 43 – Homem rico

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Essa alienação que a cultura de massa provoca nas pessoas é, sem dúvidas, um obstáculo à cidadania, pois
produz resignação diante da impossibilidade de realização do ideal democrático. Verlaine freitas nos explica
como Adorno denuncia essa situação:

(...) Como diz Adorno, as pessoas não são tão estúpidas o suficiente para achar que elas têm o
direito de se colocar no lugar de seus ídolos. A indústria cultural sempre conta com um resto
de bom senso por parte de seus consumidores, que, sabendo usar o princípio de realidade,
percebem com clareza que este mundo fantástico não está a seu dispor, como se dependesse

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de sua vontade realizar este céu de bem-aventurança aqui na terra. Desse modo, a conjugação
desse ideal apreendido pela imaginação e um mínimo senso de realidade resulta na resignação,
na consciência de que é preferível riscar de uma vez por todas a esperança de participar desse
mundo das estrelas e se contentar com este gozo imaginário de pertencer a ele. Assim, a indústria
cultural produz incessantemente uma catarse dos ímpetos revolucionários, subversivos, críticos
e libertadores. Todos eles solicitam do indivíduo a consciência de que a felicidade somente é
alcançada pelo esforço de superação do estado de miséria, através do trabalho sistemático
e contínuo do pensamento crítico, que é virtualmente negado pela série de associações entre
imagens grandiosas que se oferecem sem cessar à mente dos consumidores (FREITAS, 2005, p. X).

Figura 44 – Tickets de shows de bandas de punk e pós-punk das décadas de 1980 e 1990

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

A burguesia é essa classe social que apareceu no período de decadência da Idade Média, se instalando nesse
território fora do feudo. Grosso modo, feudo é aquele “fazendão” ou latifúndio medieval no qual tudo acontecia
durante a Idade Média. Os donos dos feudos, chamados senhores feudais (suseranos e vassalos), eram sempre
nobres, ou seja, tinham título de nobreza (conde, visconde, barão, marquês, rei, etc.). É bom lembrar que, mesmo
dentro da nobreza, existia uma hierarquia de títulos, que tinha o título de rei como o mais alto. Durante a Idade
Média, o poder está fragmentado e cada feudo tinha sua moeda, leis, etc. Quem geria, julgava e determinava as leis
era o próprio dono da terra, ou seja, o senhor feudal. A burguesia surge como uma nova classe social que não aderiu
à lógica do sistema servil, no qual as pessoas eram pagas por meio de favores e acumulavam dívidas geracionais.

Fique atento!

Os burgos eram pequenas vilas, que estavam fora dos feudos e da lógica feudal, e tinham, no
comércio, sua principal forma de sustento.

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Como o mercantilismo se desenvolveu enormemente com o Renascimento no séc. XV, essa classe social recém-
formada se viu muito bem-sucedida com o comércio de especiarias e promoveu toda uma rede de rotas e
embarcações que as buscavam no oriente. Os feudos passaram por séculos sendo autossuficientes. Todas as
necessidades de alimentação, vestuário e demais objetos e ferramentas eram produzidos dentro do próprio
feudo ou conseguido, por meio de escambo, com outro feudo em uma transação entre nobres. Por isso, qualquer
coisa diferente daquilo que era usual nos feudos despertava o interesse dos nobres, desde pedras preciosas e
seda até temperos, como cravo da Índia, canela, etc. Esses são exemplos de produtos que tinham uma enorme
demanda por parte da nobreza. Nesse contexto, a burguesia nasce, ao mesmo tempo em que essa demanda de
mercado é forjada por ela.

Em um primeiro momento, o interesse da burguesia é a formação dos Estados nacionais, pois, com os reis
tomando o poder político dos Estados, haveria uma padronização das moedas (até então, cada feudo tinha sua
própria moeda), o que fomentaria o comércio e a beneficiaria e, inclusive a própria nobreza, com a arrecadação
de impostos.

Dessa forma, a burguesia, na condição de classe social, surge apoiando a nobreza em busca dessa estrutura
política que fornecesse condições para sua prática comercial. Era comum burgueses fazerem o papel de mecenas,
ou seja, patrocinadores de artistas e escritores que tivessem esse ideal renascentista em suas obras. Maquiavel,
por exemplo, escreveu uma obra que tinha como escopo a efetivação do poder dos reis e a formação dos Estados
nacionais e foi patrocinado por meio de mecenato.

Saiba mais

Nicolau Maquiavel foi um filósofo renascentista, historiador, poeta, diplomata e músico de


origem florentina. Escreveu uma obra intitulada “O príncipe”, na qual descreve como um
rei deve se portar para exercer seu poder. Nessa obra, está contida a polêmica frase “Os fins
justificam os meios”, que permitiria que os reis fizessem qualquer coisa, inclusive o mal, para
justificar um bem maior, que seria a formação do Estado nacional.

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Figura 45 – Nicolau Maquiavel

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Depois que os Estados nacionais se formam e a Europa entra no período das grandes monarquias, a burguesia,
agora já tão rica quanto a própria nobreza, passa a reivindicar poder político. Estamos falando do Iluminismo,
movimento do séc. XVIII que promove o combate ao poder absoluto e a defesa dos ideais republicanos,
democráticos e igualitários. Agora há uma defesa do Estado laico e uma separação entre religião e Estado. É aqui
que o nosso conceito de cidadania aparece na história do ocidente. Pensado por filósofos, como Montesquieu,
Voltaire, Rousseau, Locke, Diderot e D’Alembert.

A partir de então, a cidadania se tornou uma pauta reivindicatória e uma necessidade constante. Mas a Segunda
Guerra Mundial marcou enormemente nossa concepção de cidadania. Cyro de Barros Rezende e Isnard de
Albuquerque afirmam que:

Contudo, foi somente após a Segunda Guerra Mundial que se observou uma nova relação entre os
direitos sociais e o poder público. A criação, na década de 1940, dos estados de Bem-Estar Social
(welfare state), confirma o pressuposto de que o temor à revolução é que propicia as reformas
sociais. Entretanto, foi a própria estrutura previdenciária desses órgãos, aliada às oscilações
na economia mundial, que os tornaram um fardo para o Estado. Assim sendo, a falência deste
estado de Bem-Estar Social, na década de 1970, revelou a fragilidade dessas reformas. Estas,
aplicadas como meros paliativos, não favoreceram alterações nas estruturas responsáveis pelas
desigualdades sociais (REZENDE FILHO; CÂMARA NETO, 2001, p. X).

Diferentemente de uma relação passiva por parte dos súditos, que esperavam receber “pão e circo” das mãos do
adorado rei, a cidadania aparece colocando o indivíduo em um lugar de ação, de modo que sua participação se
torne essencial para a gestão do Estado, que passa a ser uma coisa pública, e não mais propriedade de um rei.
Porém, sabemos que temos muitos legados monárquicos, mesmo sendo uma república democrática. A cidadania
ainda é uma busca e já entendemos que ela é um processo, fruto de exercício diário, que se mostra cada vez mais
necessário.

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Nossa sociedade tem uma época e um lugar para existir e se faz imprescindível compreendermos essa
historicidade, para termos condição de abordar o tema da cidadania a partir dessa perspectiva histórica, de modo
que consigamos trazê-la para a realidade e pensar formas efetivas de colocá-la em prática. Na modernidade, o
Estado laico é um elemento essencial para a prática da cidadania. A Índia, por exemplo, se diz um Estado laico,
mas tem pena legal para quem consumir ou estocar carne bovina. A proibição do consumo de carne bovina, na
Índia, tem fundamentos estritamente religiosos e culturais. Já aqui no Brasil, a maioria das pessoas consome
carne bovina diariamente e não há nenhuma questão legal, nem religiosa, envolvida nesse ato.

O que não quer dizer que não tenhamos, em nossas legislações, elementos que sejam herança de um passado
monárquico, no qual a igreja católica era parte integrante do Estado brasileiro. Por exemplo, até hoje nossa
legislação isenta as igrejas de impostos e nosso congresso exibe um crucifixo na parede principal. Essa analogia
do Brasil com a Índia revela o quão complexas são as questões éticas ligadas à cidadania. Enquanto na Índia
proíbe-se algo que, aqui no Brasil, fazemos corriqueiramente, podemos perceber que, em ambos os países, as
leis estão repletas de elementos ligados aos costumes, crenças e tradições e que a base da ética contemporânea,
que é o Estado laico, é algo que não se efetivou em nenhum dos dois países.

Figura 46 – Vacas na rua na Índia

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

7.2 Responsabilidade social


Karl Marx (1818–1883) foi um dos primeiros pensadores a denunciar a insustentabilidade do sistema capitalista
e a propor, por meio de uma teoria intitulada socialismo científico, o estabelecimento das bases de uma outra
possibilidade de sistema econômico que substituísse o capitalismo. De acordo com Marx, o socialismo é baseado
em uma defesa da classe dominada, já que a classe dominante prefere sempre manter seus privilégios, a partir de
discursos conservadores, ou seja, que defendem a conservação do status quo. Aos menos favorecidos, cabe lutar
por seus direitos e transformar a história.

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Porém, a classe dominante tem o controle dos meios de produção e de comunicação, o que faz com que seu
discurso prevaleça. Marx chama isso de ideologia da classe dominante, que tende a ser repetida pela classe
dominada. A ideologia da sociedade capitalista é o próprio status quo, que hierarquiza as classes, colocando cada
um em seu lugar. Esse discurso, que reflete os interesses da classe dominante, predomina na grande mídia e é
repetido pela classe dominada.

Para ilustrar esse conceito, você pode pensar em uma notícia veiculada por um telejornal da tevê aberta.
Normalmente, o modo como as notícias são tratadas já contém as bases das reações que os telespectadores
devem ter. Por exemplo, o apresentador anuncia uma má notícia, então, ele, com uma entonação que explicita
o caráter negativo da notícia, diz que os pátios das montadoras estão lotados, pois as vendas de automóveis
caíram, porque a renda diminuiu e a economia está estagnando. Esta é uma notícia que é apresentada como algo
ruim, pois o repórter alerta para o risco de demissões e o aumento do desemprego.

Mas um olhar crítico pode levantar algumas questões: primeiro, que o consumo de automóveis zero quilômetro é
restrito a uma parcela muito pequena da população, que, em sua maioria, utiliza transporte público. Segundo, que
a cidade já está com um número elevadíssimo de veículos, que geram um caos de engarrafamentos em horários
de rush. Terceiro, que, se seguirmos essa lógica do discurso da classe dominante, que afirma que as vendas de
carro devem sempre ser maiores do que no mês anterior, teremos um mundo dominado apenas por quem tem o
poder aquisitivo para ter e manter um automóvel e, demandas de mobilidade urbana, como transporte público
de qualidade, meios alternativos de locomoção, como ciclovias e metrô, são preteridos das pautas jornalísticas.
Como o telejornal já fornece a notícia “enlatada”, que já vem até mesmo com o sentimento que devemos ter
sobre ela, ou seja, uma opinião formada, não temos a oportunidade de questionar e criticar. Essa notícia é ruim
pra quem, afinal?

Em outro exemplo, imagine: William Bonner anuncia, em tom de denúncia e com a entonação sutilmente raivosa,
que a notícia da vez é mais um caso de corrupção e, junto de sua fala, aparecem imagens de canos imundos, com
notas de dinheiro “sujo” saindo deles. Imediatamente estamos com raiva, sem nem ao menos sabermos quais os
pormenores do caso. Dessa forma, um tipo de discurso acaba prevalecendo e as pessoas o repetem sem pensar
por si mesmas. Segundo Marx, no capitalismo, a classe dominada repete o discurso da classe dominante sem
perceber os elementos opressivos desse discurso.

Aqui está o gargalo da responsabilidade social. As sociedades capitalistas desenvolvem-se de modo desigual,
o que cria abismos entre as classes sociais, gerando violência e insegurança, que, por sua vez, provocam
discursos discriminatórios, ufanistas e anti-imigração, fomentando, em alguns, um desejo antidemocrático de
autoritarismo. No Brasil, o melhor exemplo disso é a crise migratória da Venezuela no Norte do país, em 2018,
ou, neste mesmo ano, a greve dos caminhoneiros, que pediam “intervenção militar”. Na Europa, a guerra da Síria
também provocou uma crise migratória com esses mesmos efeitos políticos. A responsabilidade social implica as
demandas de toda a sociedade, e não apenas da classe dominante.

Em seus estudos econômicos, Marx demonstrou o caráter autodestrutivo do capitalismo, que daria as próprias
condições para sua destruição, por meio da crescente exploração dos trabalhadores e do aumento incessante do
consumo, que esgotaria os recursos naturais. Atualmente, é possível verificar essa tese muito facilmente. Basta
pensarmos sobre os padrões de consumo dentro das gerações em nossas próprias famílias. Nossos filhos têm
muito mais coisas (produtos/serviços) que nós, que tivemos muito mais que nossos pais, que, por sua vez, tiveram
mais que nossos avós. Os níveis de consumo estão cada vez maiores, e isso implica cada vez mais recursos naturais
para sua produção e cada vez mais lixo sendo produzido de maneira explicitamente insustentável. Estima-se
que, se todas as pessoas do planeta Terra tivessem o mesmo padrão de consumo de um cidadão médio norte-
americano, precisaríamos de cinco planetas Terra para obter toda a matéria-prima necessária para sustentar essa
hipotética situação. Uma certeza nós temos: existe apenas um planeta no qual evoluímos e a modernidade é o
momento de tomada de consciência desse fato.

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Figura 47 – Planeta Terra – imagem original da Nasa

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

A questão é que o termo sustentabilidade sempre foi visto pelas corporações privadas como “sustentabilidade de
si mesmas”. Uma empresa é considerada sustentável, na medida em que tem mais receita que despesa, logo se
sustenta. Foi assim durante séculos de exploração mercantilista e capitalista.

As origens do capitalismo remontam ao período das grandes navegações, quando o sistema feudal entra
em colapso e a burguesia entra em cena. Esse proto-capitalismo ou capitalismo embrionário é chamado de
mercantilismo. O contexto de surgimento do que veio a ser o capitalismo é um momento em que o europeu está
desbravando o restante do mundo, por meio de sofisticada tecnologia marítima (para a época) e impondo sua
cultura e economia à praticamente todos os continentes. O espírito é de domínio da natureza, e esta se mostra
como um desafio a ser superado. É necessário vencer a selvageria e impor a civilização. Tudo na natureza parece
muito grande e infindável. O homem se vê pequeno e vulnerável e precisa vencer todas as intempéries. Imagine
os desafios de cruzar os oceanos em caravelas ao sabor das marés e ventos. Imagine as incertezas e perigos que
a natureza reserva. O momento é o de enfrentamento e a natureza se mostra uma ameaça.

Esse espírito de enfrentamento para com a natureza, ainda está muito presente em nós, pois foi somente no
final do século XX que começamos a discutir a sustentabilidade de modo global. Até então, a sustentabilidade
era compreendida como algo que não envolvia todo o globo e, agora, está ficando claro que dependemos dos
ecossistemas, das outras espécies e dos outros seres humanos. Darwin explicitou nossa condição animal e provou
que somos apenas mais uma espécie nesse planeta. Diante disso, o discurso da sustentabilidade ganha uma
dimensão global e implica a necessidade de responsabilidade social.

Portanto, a responsabilidade social parte do pressuposto segundo o qual todos nós estamos inseridos em um
contexto que necessita ser sustentável em níveis globais. Aquela mentalidade de sustentabilidade entendida
como “receita maior que a despesa”, que só se aplica a uma empresa ou a um Estado, já não caberia mais no
mundo do séc. XXI. Porém, isso nunca foi tão simples assim. Atualmente vemos discursos crescentes que, de
forma reacionária, repetem os jargões do século passado, ignorando a necessidade de sustentabilidade e de
responsabilidade social.

Por exemplo, o presidente norte-americano Donald Trump afirmou categoricamente que governaria de modo
protecionista, a partir do slogan “a América para os americanos”, com políticas econômicas baseadas naquela

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velha lógica da sustentabilidade compreendida como “receita maior que despesa”, chegando a afirmar, de modo
extremamente irresponsável, que pautas ligadas à sustentabilidade global, como o próprio aquecimento global,
seriam invenções dos democratas (seu partido opositor). É claro que o aquecimento global é uma tese científica
que tem suas controvérsias, mas o presidente de uma das maiores potências econômicas do mundo tratar um
tema tão importante como se fosse uma farsa, já demonstra a complexidade do conceito de responsabilidade
social na atualidade.

Figura 48 – Donald Trump

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Outro aspecto importante da responsabilidade social, que está além do econômico, é a questão dos lugares de
fala de determinados grupos sociais, que sempre estiveram à margem da sociedade e que, hoje, ocupam lugares
distintos, pois se empoderaram e estão buscando se fazer respeitar. Temas que antes não tinham vez, passaram
a frequentar as pautas de reivindicação. Feminismo, movimento LGBTQI, movimentos negros, feministas negras,
associações de deficientes em busca de soluções de mobilidade, etc. Toda essa gama de pautas ganhou seu lugar
no mundo contemporâneo e não há mais como ignorá-las, como fizemos por séculos.

Portanto, há agora uma série de costumes que são colocados em xeque, como o hábito de fazer piadas
discriminatórias e determinadas “tradições”, tais como “black face” e a apropriação cultural, que começaram a
ser denunciadas pelas minorias.

Black face

Pessoas brancas pintavam o rosto de negro para representá-los em peças teatrais,


normalmente de modo exagerado, ridicularizando e oprimindo os negros. Ainda hoje vemos
resquícios dessa prática, que ocorreu em quase todos os países que participaram do tráfico
negreiro.

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A responsabilidade social é a conscientização da necessidade de sustentabilidade no sentido mais amplo que


este termo possa conter. Stephen Viederman, em seu artigo intitulado “A economia da sustentabilidade”, define
o termo da seguinte maneira:

Sustentabilidade é um processo participatório que cria e persegue uma visão de comunidade


que respeite e faça uso prudente de todos os seus recursos - naturais, humanos, criados pelos
humanos, sociais, culturais, científicos, etc. A sustentabilidade busca garantir, até onde possível,
que as gerações presentes atinjam um alto grau de segurança econômica, e possam realizar a
democracia e a participação popular no controle de suas comunidades, enquanto mantêm a
integridade dos sistemas ecológicos dos quais toda vida e toda produção dependem, enquanto
assumem responsabilidade pelas gerações futuras para prover-lhes de meios para sua realização,
esperando que elas tenham a prudência e a inteligência de usar o que lhes é provido de maneira
apropriada (VIEDERMAN, 1995, p. X).

Perceba que Viederman aborda todas os aspectos dos recursos utilizados por nós no planeta Terra, desde recursos
naturais até nós mesmos, compreendidos como recursos humanos, passando por recursos sociais, culturais,
científicos, etc. O autor nos diz que a sustentabilidade é um processo que envolve sempre uma comunidade
como um todo e tem um caráter essencialmente participatório, além de envolver todas as dimensões da condição
humana.

Síntese da unidade
Nesta unidade, foram abordados os conceitos de cidadania e responsabilidade social, como a cidadania depende
da participatividade e da busca por uma sustentabilidade global. Vimos como a responsabilidade social está
atrelada a essa compreensão do conceito de sustentabilidade e como o séc. XXI precisa coadunar capitalismo e
sustentabilidade. Esse desafio, para alguns, apocalípticos, é impossível, mas para outros, mais integrados, é uma
meta.

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Considerações finais
Cidadania é um conceito essencial para a contemporaneidade.
Historicamente, vivemos o resultado da aplicação dos ideais iluministas,
que deram as bases das repúblicas democráticas do ocidente. Contudo,
esses ideais não se efetivaram por completo, e o capitalismo tardio, com
sua imediatez, apressa todos os prognósticos possíveis, gerando uma
sensação de desgaste do discurso iluminista, aflorando uma série de
posturas autoritárias e discursos reacionários, em pleno século XXI.

A filósofa Márcia Tiburi, certa feita, em uma entrevista, afirmou que não
podemos deixar de levar em conta o fato de sermos primatas, pois o
comportamento comum de todos os primatas é a imitação. Imitamos uns
aos outros, como sempre fizeram nossos ancestrais mais longínquos. E a
filósofa nos chama a atenção para o fato de essa imitação se dar, também,
no âmbito do discurso. Ou seja, imitamos os discursos uns dos outros e
o fascismo é sempre fascinante para alguns, por isso ele nunca morre,
apenas adormece e retorna em momentos de incertezas.

Para que haja cidadania participativa e a prática de responsabilidade social,


é necessário combater o fascismo e não tolerar a intolerância, como bem
colocou o filósofo Karl Popper, em seu célebre paradoxo da tolerância:

Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os


intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante
contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e
com eles a própria tolerância (POPPER, 1974, p. X).

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