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INTRODUÇÃO
A cidadania e a democracia são conceitos que caminham juntos desde a
Antiguidade Clássica grega, tida como o berço de tais experiências. Embora seja
possível a existência da cidadania em Estados autoritários, como demonstrado por
Viscardi e Perlatto (2018), para fins de análise do objeto, tais conceitos serão
observados de maneira alinhada.
Dessa forma, a cidadania será pensada de acordo com as definições de Coutinho
(1999), Viscardi e Perlatto (2018), que a definem enquanto um espaço de confronto e
inconstância, uma vez que os grupos sociais precisam atuar ativamente para garantir a
efetivação de seus direitos pelo Estado. Além disso, a democracia será pensada de
acordo com Coutinho (2018) que define a democracia enquanto soberania popular,
dependente de condições sociais e institucionais favoráveis à participação pública no
governo.
No Brasil, os direitos de cidadania vivenciam influxos e refluxos, sendo
marcados pela provisoriedade, derivada da não consolidação da democracia ou do
Estado de bem-estar social. Apesar dos avanços conquistados com a Constituição, nada
impede que tais direitos sejam retirados ou reduzidos por agentes estatais, mediante a
pressão de setores dominantes.
A democracia brasileira, assim como a cidadania, nunca se efetivou, estando sob
constante ameaça da tradição autoritária, própria das nossas instituições políticas.
Contudo, a presença dos movimentos sociais progressistas pleiteava a questão dos
direitos sociais. Após as "Jornadas de Junho de 2013", entretanto, essas reinvindicações
tomaram outro sentido ao incorporarem demandas conservadoras em seu discurso. A
partir disso, tem fim, um ciclo de avanços sociais e consolidação da democracia, com a
ascensão de políticas de extrema direita, que demonstram a ideia de um ciclo de
recessões.
Dado o exposto, pretendesse discutir nesse artigo, como o avanço de discursos
de extrema direita, refletidos nas manifestações antidemocráticas de 2022, demonstram
que os direitos de cidadania, principalmente aqueles que se referem à liberdade de
expressão e o avanço de direitos de minorias, não estão dados e representam disputas
socialmente e politicamente vivas, no Brasil.
Com isso, intenciona-se demonstrar como a cidadania e a democracia são
questões frutos das disputas sociais. Apesar dos paradigmas do século XX,
estabelecidos com as duas Guerras Mundiais e a ascensão do Totalitarismo, que abriram
espaço para discussões acerca de visões dissidentes de mundo, sobre os direitos de
cidadania e sobre a própria democracia. No Brasil, essas questões ainda não estão
sedimentadas, justamente pela má consolidação da democracia ou do Estado de Bem-
Estar social. Contudo, observa-se também que esse movimento não é exclusivo do
Brasil, ele acontece em escala mundial, mesmo em países que países que passaram por
regimes totalitários. Dessa forma, nota-se como a cidadania e a democracia se
constituem como espaços de contestação e confrontos.
Dessa forma, a cidadania entre os gregos clássicos estava longe de possuir uma
dimensão universal, pois mulheres, escravos e estrangeiros estavam excluídos dos
direitos políticos de cidadania. Essa característica universal dos direitos, apesar de
limitada também, só surge na modernidade a partir da Revolução Francesa.
Assim como para os gregos, o conceito de cidadania durante a modernidade se
articulará profundamente com o de democracia. Democracia aqui deve ser
compreendida segundo a definição dada por Coutinho:
“(...) democracia é sinônimo de soberania popular. Ou seja: podemos defini-
la como a presença efetiva das condições sociais e institucionais que
possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do
governo e, em consequência, no controle da vida social”. (COUTINHO,
1999, p. 42)
Com isso, a participação popular torna-se inerente a própria cidadania. Embora, como
demonstrado por Viscardi e Perlatto (2018, p. 229), “o usufruto de um conjunto de
direitos por parte dos cidadãos não seja necessariamente um atributo exclusivo de
Estados democráticos de direitos”, nos ateremos a análise da cidadania relacionada a
democracia, como nos casos clássico e moderno.
A Revolução Francesa pôs fim ao Antigo Regime e as monarquias absolutistas, e
deu forma a um novo tipo de Estado na França, ainda que provisório. As mudanças
resultantes do processo revolucionário não se restringiram ao território francês se
expandindo por todo o Ocidente. No campo da cidadania, em 1789, foi publicada a
Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, fortemente influenciada pelos ideais
iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, proclamava como universal o direito
dos homens, e apenas deles, pois as mulheres permaneciam excluídas. Além disso, a
declaração postulava sobre direitos individuais e coletivos, civis e políticos, que serão
restritos pelo sufrágio universal. A declaração lançou as bases para o estado
democrático atual e inspirou as legislações acerca dos direitos mais primordiais do
homem.
Outrossim, para Marshall (1967 apud FILHO; NETO, 2015) a cidadania, até o
século XIX, teria progredido de maneira fragmentada, relacionando-se com setores
específicos e obedecendo a normas próprias de desenvolvimento. Por exemplo, a
cidadania civil estaria ligada a promoção do direito à liberdade e à justiça, vinculava-se
à burguesia. A cidadania política seria a universalização de seu próprio conceito,
juntamente a ampliação dos direitos civis. Os direitos civis ou sociais aparecem mais
fortemente, principalmente, nos séculos XIX e XX, período de efervescência dos
conflitos sociais, que cobravam do poder público uma atuação no sentido de:
“... suavizar o mal que as desigualdades econômicas causam aos indivíduos,
colocando uma rede de proteção de política social por baixo dos
desfavorecidos” (BARBALET, 1989, p. 76 apud FILHO; NETO, 2015, p. 6).
Sobre o século XX, mais especificamente sobre o período entre guerras, Daniel
Schönfplug (2018) destaca que, paralelamente a um momento de profunda crise
política, econômica e social, surgiu uma diversidade imensa de novos modelos para o
futuro. Tornando-se necessário defender e lutar pelas próprias visões.
“Novas ideias políticas, uma nova sociedade, uma nova arte, uma nova
cultura e um novo pensamento foram concebidos. Um novo homem, o
homem do século XX, que nascera a partir das chamas da guerra, livre das
amarras do antigo mundo, foi proclamado”. (SCHÖNFPLUG, 2018, p. 14-
15)
Havia uma nova atmosfera, na qual os grupos buscavam se firmar e reafirmar suas
visões de mundo. A forma como as pessoas se comportavam foi terminantemente
alterada com o advento dos meios de comunicação em massa, a pílula anticoncepcional
e a própria sexualidade, além das drogas (RIDENTI, 2008). Ridenti demonstra que:
“Travavam-se lutas radicais de negros, mulheres e outras minorias pelo
reconhecimento de seus direitos. Grupos da chamada nova esquerda
sonhavam com a construção de uma nova sociedade alternativa, de um
homem novo, nos termos de Che Guevara, recuperando o jovem Marx.
Enfim, os sentimentos e as práticas de rebeldia contra a ordem e de revolução
por uma nova ordem fundiam-se criativamente”. (2008, p. 136)
Nessa definição, Coutinho (1999) retoma a ideia defendida nesse artigo de que a
cidadania é um espaço de confronto entre os grupos sociais, que reivindicam seus
direitos a todo momento, e a instituição políticas, responsáveis por estabelecer
legislações que assegurem tais direitos e a sua aplicabilidade. Longe de ser uma
concessão dos Estado para os grupos, essa relação se dá de maneira conflituosa e passa
por momentos de fluxos e refluxos.
No caso do Brasil, e de outros países que não estabeleceram definitivamente
nem a democracia ou o Estado de Bem-Estar Social, observa-se, como sinalizado por
Viscardi e Perlatto (2018), uma certa provisoriedade no que diz respeito aos direitos –
sociais, políticos, trabalhistas, LGBTQIA+ etc.- demandando uma mobilização
constante dos grupos sociais.
CIDADANIA E DEMOCRACIA NO BRASIL: ESPAÇOS DE CONTRADIÇÕES
A polarização se acentua de forma mais evidente neste momento, uma vez que o
movimento de retorno aos valores conservadores dá vazão à circulação de discursos que
figuram um caos no país brasileiro. O partido de Rousseff passa a ser compreendido
como um partido corrupto formado por pessoas desprovidas de valores e então, cabia
aos cidadãos a defesa de seu país.
Dentre as particularidades dos protestos pró-impeachment, destacam Signates e
Leal (2021) que, as cores da bandeira do Brasil foram apropriadas pelos manifestantes
para representar o “cidadão de bem”. Este cidadão seria o verdadeiro, patriota e
nacionalista, passando a assumir gradativamente novas especificidades, como o cunho
conservador, cristão e autoritário. Por outro lado, sublinhando a animosidade do cenário
que sustentaria os discursos de ódio nas eleições de 2018, algumas narrativas passaram
a ser naturalizadas pelos eleitores de oposição aos partidos de esquerda, como
designações pejorativas - “esquerdopatas” -, promovendo o silenciamento do cidadão
dissemelhante (SIGNATES; LEAL, 2021, p.16).
O ano de 2018 significou um marco no conservadorismo social. A emergência
da extrema direita apontou-se para além de um fenômeno nacional, pois também esteve
imbuída das reflexões dos movimentos internacionais, tendo em vista as eleições
estadunidenses marcada por discursos de xenofobia, elegendo Donald Trump, bem
como a questão da França, que levou Marie Le Pen ao segundo turno contra Emmanuel
Macron, que pregava severamente contra a imigração islâmica (GRANJEIRO, 2021).
As Novas Direitas se articularam em sua insatisfação, transformando suas
manifestações políticas em um corpo robusto que, inclusive, investiu em recursos
tecnológicos e financeiros como a máquina das Fake News no processo eleitoral de
Trump, na promoção do Brexit na Inglaterra e, no Brasil, a efervescência das fake news
pelas redes sociais, destacando-se o aplicativo WhatsApp, culminando na eleição de Jair
Bolsonaro. Neste sentido, é válido ressaltar a fragilidade da população, uma vez que
processos eleitorais foram fortemente influenciados pelo compartilhamento de notícias
falsas e desinformações envolvendo os candidatos e seus oponentes (GRANJEIRO,
2021).
Posteriormente, o ano de 2020 alargou a polarização entre os apoiadores e
opositores do governo Bolsonaro. A pandemia do novo coronavírus, quando significada
pelo presidente, se traduzia em falácias negacionistas, além de promover o uso
precipitado de outros medicamentos para o tratamento precoce do vírus (GRANJEIRO,
2021). Bolsonaro influenciou fortemente as movimentações de narrativas negacionistas
nas redes sociais, incentivando o seu eleitorado à organização pública aglomerada sem
as medidas sanitárias necessárias, protestando por temas como o anti-isolamento, o
avanço da economia e o movimento antivacina. Em contraposição a isso, acirrou-se
ainda mais o movimento de oposição, sobretudo intelectual, que propunha a defesa e o
avanço da ciência.
Finalmente, os brasileiros, no processo eleitoral democrático de 2022, elegeram
Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da República. O fato gerou grande
insatisfação entre conservadores e bolsonaristas de todo o Brasil, fazendo-os,
novamente, se articularem em manifestações públicas por toda a parte do país
declarando não aceitarem o resultado das urnas, levantando a hipótese - ou certeza - de
fraude no processo eleitoral, e reivindicando a dissolução da atual composição do
Supremo Tribunal Federal. As manifestações foram convocadas através da internet, e
feitas através de bloqueios nas rodovias e ocupações em pontos estratégicos, como
Comandos Militares e Quartéis Generais. Para além disso, acentua-se, outra vez, a
defesa de um golpe por meio de intervenção militar no governo, ameaçando tanto a
Constituição brasileira, quanto a democracia, visto que os manifestantes têm a pretensão
de regredir nos direitos outrora já alcançados pelo exercício da cidadania.
Em uma análise da democracia dada por Coutinho (1999), entende-se que a
democracia enquanto soberania popular depende de condições sociais e institucionais
favoráveis à participação pública no governo. Uma vez que um grupo - ainda que
usufruindo das condições sociais para se manifestar num exercício cidadão - clama
contra as instituições e ameaça a existência delas, é possível denotar uma desinformação
a respeito do regime democrático, e a incompletude das noções democráticas em vigor
na sociedade brasileira.
O combate à corrupção, pauta principal abraçada pelo conservadorismo, deve ser
entendido como um anseio legítimo, desde que respeite as instituições democráticas e
não promova uma regressão de modelos políticos de liberdade evocando o uso da
coerção política. Um dos frutos do combate anticorrupção quando movido por paixões
políticas, é o negacionismo. Instaura-se, dessa forma, um solo fértil para colocar a
história a favor das próprias indignações, voltando-se ao passado para buscar uma
narrativa mítica, sem tanta preocupação com a comprovação por meio de dados e fatos,
transformando os “tempos de antes” numa espécie de idade do ouro, evocando uma
memória inexistente, mas que projeta uma civilização ideal e uma harmonia social a fim
de assegurar a continuidade de um mundo que, na realidade, não existiu (SCHWARCZ,
2019, p. 225) As manifestações da Nova Direita ocorridas no Brasil e pelo mundo,
vestidas de um populismo autoritário têm, assevera Schwarcz (2019, p. 226-227):
“(...) recorrido a uma profusão de estratégias comuns: a seleção de um passado
mítico e glorioso; a criação de um anti-intelectualismo e um antijornalismo de
base; um retorno à sociedade patriarcal de maneira a elevar conceitos como
hierarquia e ordem; o uso da polícia do Estado (...); uma verdadeira histeria
sexual que acusa mulheres, gays e travestis (...) de serem responsáveis pela
degeneração moral de suas nações; (...) o incentivo à polarização que divide a
população entre “eles” e “nós” (...); o uso extensivo da propaganda política
que não preza a realidade pois prefere inventá-la; (...) a manipulação do
Estado, de suas instituições e leis, visando perpetuar o controle da máquina e
garantir um retorno nostálgico aos valores da terra, família e das tradições,
como se esses fossem sentimentos puros (...)”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS