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Cidadania na modernidade: dilemas e paradoxos na construção de um

conceito1

Raissa Soares Lustosa2

Resumo: Com o objetivo de revisar a concepção marshalliana de cidadania moderna


bem como as consequências dessa forma de teorização para a reflexão sobre o mundo
contemporâneo, este trabalho busca dialogar com parte da literatura acadêmica que
discute acerca do paradigma da cidadania moderna. Para isso, recorre-se à
fundamentação teórica de Lavalle (2003) e Tavolaro (2008), reconhecidos estudiosos do
tema, que apontam em seus trabalhos alguns elementos da discussão contemporânea
acerca da cidadania moderna, enfatizando temas e problemas da perspectiva de T. H.
Marshall além de trazerem reflexões que apontam para uma ressignificação da
cidadania num contexto configurado pela multiplicidade de formas de sociabilidade e
avanços das políticas da diferença.

Palavras-chave: cidadania; modernidade;

1. Introdução

A noção de cidadania ocupa um lugar central na sociedade, principalmente no


ideário e na institucionalidade de democracias representativas, principalmente por sua
associação com valores fundamentais como a liberdade, a justiça social, a igualdade e a
solidariedade. Ela se tornou fundamental no que tange ao engajamento necessário à vida
em comunidade e passou a assumir uma posição central na agenda intelectual e política
de diversos países. Porém, tanto no campo do pensamento político moderno e
contemporâneo como na história das sociedades, um longo percurso foi trilhado para
que se definissem o alcance desses valores fundamentais ao indivíduo.
A partir do século XVIII, com o surgimento das modernas sociedades industriais,
transformações no campo das relações humanas organizadas – social, moral e
juridicamente – legaram ao mundo novas visões sobre a economia, a sociedade e a
política. Nesse novo contexto, alargaram-se os horizontes da noção de cidadania,
ampliando-se, consequentemente, os direitos dos cidadãos nos seus expoentes civis,
políticos e sociais.

1
Artigo apresentado à disciplina Políticas Sociais e Cidadania, ministrada pelo professor Rogério de
Souza Medeiros como requisito de avaliação.
2
Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba.
As mudanças ocorridas nos modos de vida produzidos pela modernidade, durante os
últimos três ou quatro séculos, foram tão dramáticas e abrangentes em seu impacto, que
uma das características marcantes desse processo é exatamente a afirmação e expansão
de uma nova concepção e de novas práticas da cidadania.
No entanto, contemporaneamente, o tema das relações entre cidadania e
modernidade assume na literatura acadêmica uma preocupação constante e disputa
teórica pela fixação do seu significado e de seus limites. E é, diante deste cenário, que o
tema referência para a construção do presente artigo é a crise do paradigma da cidadania
moderna - esta que foi formulada pelo sociólogo inglês T.H. Marshall em seu clássico
estudo sobre cidadania e classe social – e a eventual evolução do conceito e da prática
da cidadania que provoca hoje uma série de debates que apontam para uma
ressignificação da cidadania num contexto configurado pela multiplicidade de formas de
sociabilidade e avanços das políticas da diferença.

2. Cidadania moderna: a concepção tradicional de T. H. Marshall

No decorrer da história, a concepção de cidadania foi modificando-se conforme


a sociedade, o tempo e o contexto em que esteve inserida. Segundo André Botelho e
Lilia Moritz Schwarcz (2012, p.8), “não existe uma definição consensual ou mesmo
análises definitivas de sua história”, mas sabe-se que sua origem está ligada ao
desenvolvimento das polis gregas, entre os séculos VIII e VII a.C:

(...) a palavra cidadão vem do latim civitas, o conceito remonta à


Antiguidade, e na civilização grega adquiriu os significados de liberdade,
igualdade e virtudes republicanas, ainda hoje a ele associados (BOTELHO
e SCHWARCZ, 2012, p. 8).

Desde a Grécia antiga, até os dias atuais, o conceito assumiu diferentes funções e
aplicações, respondendo hoje a um conjunto de interesses, desejos e aspirações que
passou a incluir boa parte da população, no que diz respeito à conquista de direitos.
Mas, apesar do conceito remontar à Antiguidade 3, a noção de cidadania encontra no
mundo moderno a sua máxima expressão, tanto teórica quanto prática.
É com a modernidade – “estilo, costume de vida ou organização social que
emergiu na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornou mais ou menos
mundial em sua influência” (GIDDENS, 1991, p.11) – e as transformações nos modos
de vida produzidas pela mesma, que o papel da cidadania passa a ser considerado
fundamental para um bom funcionamento de regras e normas da sociedade.
Nessa nova configuração social, a concepção de cidadania moderna adquire um
caráter próprio, possuindo duas categorias: a formal e a substantiva. Enquanto a
dimensão formal da cidadania é indicativa de nacionalidade, sendo definida em termos
de “pertencimento a um Estado-nação”, a dimensão substantiva é definida como a posse
de direitos civis, políticos e sociais.
A compreensão e ampliação da cidadania substantiva foi formulada pelo sociólogo
britânico T. H. Marshall (1967)4 em Cidadania, classe social e status – um clássico da
sociologia contemporânea que fornece importante contribuição acerca da temática
cidadania. Para ele, a substância da cidadania corresponde aos componentes de bem-
estar que forma parte do patrimônio cultural e material de cada comunidade, a qual
julga tais componentes como indispensáveis para garantir uma vida digna (LAVALLE,
2003, p.80 apud MARSHALL, 1967).
Nesse sentido, a cidadania seria uma instituição, que na Inglaterra estava em
desenvolvimento desde a segunda metade do século XVII, correspondendo não só aos
complexos processos de edificação dos Estados-nação, mas também ao
desenvolvimento do capitalismo, este que transferiu para a esfera da cidadania toda uma
gama de desajustes oriundos do sistema de classes. Nesse contexto, ao analisar as
transformações normativas na Inglaterra moderna, T. H. Marshall desenvolve o conceito
de cidadania moderna5:
3
Na verdade, as primeiras teorias sobre a cidadania - sobre o que significa ser cidadão - surgiram na
Grécia clássica, correspondendo ao fato de que os gregos conheceram na prática as primeiras formas de
democracia, nas quais um número relativamente amplo de pessoas interferia ativamente na esfera pública,
contribuindo para a formação do governo. E foi precisamente com base nisso que Aristóteles definiu o
cidadão: para ele, “cidadão era todo aquele que tinha o direito (e, consequentemente, também o dever) de
contribuir para a formação do governo, participando ativamente das assembleias nas quais se tomavam as
decisões que envolviam a coletividade e exercendo os cargos que executavam essas decisões”
(COUTINHO, 1999, p.42 -43).
4
Marshall foi o primeiro estudioso que criou um conceito fixo e linear de cidadania, mas outro influente
estudioso do tema foi Reinhard Bendix, judeu alemão radicado nos Estados Unidos, que em sua clássica
obra, Construção nacional e cidadania (1964), se aproxima de um viés mais histórico, no qual cada país
pode trilhar seu próprio caminho em busca do ideal da cidadania (DOMINGUES, 2001).
5
Importante lembrar que junto com a cidadania moderna nascem os direitos naturais (vida, propriedade,
liberdade) do homem liberal burguês, garantidos pelas consecutivas “Declarações de Direitos” elaboradas
A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de
uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com
respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum
princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas
as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento
criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode
ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida”. (MARSHALL,
1967, p. 76).

De acordo com Marshall (1967), ao longo do curso da história e como parte dos
processos de modernização, um conjunto de normas ganharam autonomia e se
institucionalizaram em torno de três noções de direitos: os civis, os políticos e os
sociais.

O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual –


liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à
propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça; (...)Por
elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do
poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade
política ou como um eleitor dos membros de tal organismo; (...) O elemento
social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar
econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança
social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que
prevalecem na sociedade (MARSHALL, 1967, p.63-64).

Para Marshall, é através da formalização desses direitos que se forma o conceito de


cidadania, na qual a divisão da mesma em distintas categorias tem o intuito de
demonstrar o desenvolvimento desigual de cada uma delas e a quais setores pertencia.
Neste sentido, o desenvolvimento da cidadania deu-se numa sequência evolutiva e
histórica de direitos civis, políticos e sociais, no qual Marshall atribui o período de
formação de cada direito a um século diferente: primeiramente veio no século XVIII, a
conquista dos direitos civis, que ensejou no século XIX, a conquista dos direitos
políticos, e, o exercício destes, que, por fim, permitiu os direitos sociais no século XX
(MARSHALL, 1967).
Segundo Domingues (2001), essa percepção evolutiva de cidadania, localizada em
um contexto europeu bastante particular, originou do conceito de Marshall uma visão de
cidadão como a figura que possui a titularidade dos três direitos – civis, políticos e

a partir das revoluções liberais na Inglaterra (Revolução Gloriosa 1688-89), Estados Unidos
(emancipação política 1776), França (Revolução Francesa, 1789) (DOMINGUES, 2001).
sociais – favorecendo, assim, um processo de mobilização em busca da efetividade da
cidadania.
Acompanhando através de uma perspectiva histórica-sociológica o desenvolvimento
da cidadania na Inglaterra até o século XIX, o sociólogo inglês constatou que até o fim
daquele século, o impacto da cidadania exerceu pouca influência direta sobre a
desigualdade social. Isso porque, apesar do crescente interesse pela igualdade como um
princípio de justiça social, o reconhecimento formal de uma capacidade igual no que diz
respeito a direitos ainda não era suficiente, tendo em vista que a igualdade perante a lei
não existia de fato:

(...) o direito lá estava, mas o remédio jurídico estava muitas vezes fora do
alcance do indivíduo. As barreiras entre os direitos e os remédios eram de
duas espécies: a primeira se originava nos preconceitos de classe e
parcialidade; a segunda, nos efeitos automáticos de distribuição desigual de
renda que operava através do sistema de preços (MARSHALL, 1967, p.80).

Marshall percebeu que apesar dos benefícios recebidos pelos cidadãos não ter se
originado em um enriquecimento do status da cidadania, ao menos ajudaram a guiar o
progresso para o caminho que conduzia diretamente às políticas igualitárias do século
XX. Para ele, essa seria a tendência moderna em direção da igualdade social, seria uma
fase de evolução da cidadania.
Nesse contexto, a cidadania moderna passou a exigir da sociedade um
sentimento direto de participação. Para o sociólogo, o progresso de integração de uma
comunidade dependeria de uma cidadania que “compreende a lealdade de homens
livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum, sendo seu
desenvolvimento estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo
dos mesmos, uma vez adquiridos” (MARSHALL, 1967, p.84).
Diante do exposto, pode-se caracterizar sinteticamente o pensamento
marshalliano da cidadania moderna em quatros elementos: a) universalidade da
cidadania, ou seja, o status de cidadania assume termos de direitos universais; b)
territorialização da cidadania, que delimita através do território os alcances da
cidadania, ou seja, se o indivíduo pertence ao território, pode gozar dos seus direitos; c)
princípio plebiscitário da cidadania ou individualização da cidadania, que liga o
indivíduo ao Estado, e este como forma legítima de reconhecimento e subordinação
política; d) índole estatal-nacional da cidadania, ou seja, a constituição da cidadania é
vinculada à constituição do Estado-nação (LAVALLE, 2003, p.77).
A percepção de Marshall (1967) acerca da cidadania ganhou ampla difusão entre
os estudiosos do tema, vindo a se tornar a concepção mais influente da cidadania
moderna. Além disso, o sociólogo britânico foi um dos pioneiros no campo de uma
nova tradição que inaugurou a “Sociologia do Desenvolvimento”, esta que centra sua
análise na suposição de que muitos dos processos e problemas 6 das “velhas nações” se
repetem ou vão se repetir nas “novas nações” (p.9).
No entanto, as ideias do sociólogo não ficaram isentas de controvérsias, e nas
últimas décadas do século XX, a concepção tradicional da cidadania formulada por
Marshall, suscitou alguns debates críticos tanto no terreno da teoria social como no
âmbito das práticas políticas e institucionais. É o que veremos na próxima seção.

3. “Crise” do paradigma da cidadania moderna: as críticas à concepção


marshalliana da cidadania

As mudanças ocorridas no seio da sociedade entre os séculos XVII e XX,


impulsionaram o desenvolvimento científico da sociologia, que enquanto disciplina
envolvida com o estudo da vida social moderna, passou então a explorar de forma
crescente, no último quartel do século XX, a temática da cidadania.
A cidadania passou então a assumir posição de destaque no debate acadêmico,
em especial na agenda da filosofia política e da teoria social. Nessa época, a concepção
tradicional da cidadania formulada por Marshall passa por uma revisão no corpus dessa
literatura acadêmica, na qual o eixo das críticas reside principalmente no fato de ele ter
generalizado uma trajetória histórica particular - o modo de desenvolvimento da
cidadania na Inglaterra – para além do seu país.
A concepção de cidadania formulada por Marshall se transformou num
paradigma, com a qual tenderiam a operar outros autores que adotaram o se esquema,
especialmente no que tange ao desenvolvimento social do conceito como uma sequência
que iria de um estágio mais simples até chegar a um mais complexo, desconsiderando as
questões históricas, as especificidades de cada sociedade e às questões intrínsecas à
transformação social.

6
Alguns desses processos e problemas são: a reestruturação dos estratos sociais, a implantação de novos
valores sociais, a adoção de novos padrões de comportamento, a formulação de novas identificações
políticas, a incorporação de novos grupos sociais ao sistema político, o estabelecimento de um novo tipo
de legitimidade política (MARSHALL, 1967, p.9).
Além da indevida generalização do caso inglês, que fez a noção de cidadania
proposta por Marshall ser denunciada como eurocêntrica, (TAVOLARO, 2008), outras
críticas são: o desenho de roteiro histórico altamente estilizado quanto à gênese e
transformação da cidadania; a simplificação da emergência dos direitos nas sociedades
modernas em três subconjuntos indevidamente homogêneo; certo evolucionismo e
linearidade em relação à trajetória efetivamente seguida pelas sociedades europeias,
inclusive a inglesa (LAVALLE, 2003). Em perspectiva mais abrangente, o caráter
liberal da concepção tradicional da cidadania foi questionado da ótica dos marxismos
pela “ausência de formulações quanto ao papel desse status sócio-político moderno
dentro da lógica de dominação do Estado-nação, e pela escassa atenção prestada ao
conflito social no reconhecimento de novos direitos” (LAVALLE, 2003, p.79).
O ensaio de Marshall também é alvo de críticas mais recentes como:
negligenciar assimetrias de gênero, tanto na sua periodização quanto na sua
diferenciação conceitual; desconsiderar questões de geopolítica; tomar a condição dos
cidadãos brancos como referência na definição do universo da cidadania moderna;
enfocar o nível nacional, deixando de lado as peculiaridades de conflitos regionais e
locais (TAVOLARO, p.125).
Há ainda restrições também no que tange à temporalidade e à linearidade na
implementação dos direitos, pois a rígida periodização do esquema evolutivo dos
direitos em Marshall, desconsidera a implementação e institucionalização de direitos
civis, políticos e sociais de outros países que tiveram sequências bastantes singulares
(TAVOLARO, 2008).
Para o sociólogo político Sergio Tavolaro, são problemáticas interpretações
como as de Marshall (1967), que ao servir de ponto de aferição no que tange ao status
da normatividade de outras sociedades, acaba delimitando fronteiras entre os chamados
países do “centro” e da “periferia”, nos quais a fidelidade ou não fidelidade à sequência
histórica direitos civis/ direitos políticos/direitos sociais, conceberia países mais
modernos ou menos modernos.
O ponto central que marca a da discussão de Tavolaro (2008) reside na
constatação de cunho sociológico de que os tempos hodiernos são marcados por um tipo
de sociedade tendencialmente global. Sendo, por isso, preciso ter uma imagem menos
essencialista da sociabilidade moderna. Tavolaro então assume uma postura crítica em
relação ao modelo analítico-interpretativo de T.H.Marshall a respeito da construção da
cidadania moderna, confrontando-o com a produção contemporânea no interior da
sociologia política.
Para ele, apesar de Marshall não ter inaugurado a preocupação da sociologia
com a temática da cidadania, esta tal qual definida por ele apresenta as mesmas ideias
presentes no “imaginário sociológico hegemônico da modernidade”, no qual os autores
chaves são clássicos como Marx, Durkheim, Weber e Simmel. Em tal imaginário, o tipo
de sociabilidade peculiar da modernidade é concebido em torno do tripé
diferenciação/complexificação social, secularização da normatividade, separação entre
os âmbitos de ação públicos e os domínios privados. Para o sociólogo Tavolaro, essa
episteme codifica a sociabilidade moderna e compõe a concepção de cidadania de T.H.
Marshall:

1. No tocante aos processos de complexificação e diferenciação social,


afirma-se que em sociedades plenamente modernas, os direitos civis,
políticos e sociais tornam-se elementos normativos-chave (cada qual com sua
lógica e âmbito de atuação), responsáveis pela mediação entre sociedade
civil, Estado e mercado (tidos, por sua vez, como esferas consideravelmente
independentes e auto-reguladas). 2. No que se refere à secularização, tem-se
que os direitos civis, políticos e sociais são o resultado de transformações
normativas alavancadas pelo alto grau de generalização e
"destradicionalização" de valores; 3. Por fim, quanto à separação entre os
domínios sociais públicos e privados, coloca-se que, em sua dimensão
subjetiva, os componentes da cidadania moderna operam como um tipo de
elo normativo conectando esferas públicas e âmbitos privados de
sociabilidade de tal forma a preservar as particularidades de cada um desses
domínios (TAVOLARO, 2008, p.123-124).

Tendo em vista que o esquema de Marshall pretende descrever um processo


linear de institucionalização da normatividade moderna, e em tais circunstâncias, os
componentes da cidadania moderna passam a assumir funções normativas particulares
de uma dada sociedade, tal perspectiva se revela mais uma vez problemática, pois além
de desconsiderar o que vem a ser a sociabilidade moderna, não reconhece a variedade
de percursos do Estado-nação e, por isso, da cidadania, ignorando que a mudança social
opera com fatores independentes do percurso histórico de cada sociedade.
No entanto, para Lavalle (2003), é importante destacar que não apenas a
concepção tradicional da cidadania formulada por Marshall, mas a mesma enquanto
categoria incorporada pela teoria social do século XX, não operou enquanto categoria
normativa, operou apenas no plano cognitivo como conceito sintético-descritivo7, ou
seja, a formulação de Marshall forneceu apenas uma síntese histórica do processo de
edificação do status moderno da cidadania na Inglaterra, sem assumir qualquer
afirmação sobre a substância ou dever ser da cidadania (LAVALLE, 2003, p.78).
Assim, dos anos 90 para cá, em uma época que a sociologia passa a atribuir à
modernidade o status de tipo de sociabilidade tendencialmente global e multifacetada,
as críticas à concepção de cidadania de Marshall emergem sob um novo contexto. Os
novos estudos, ao tecer reflexões sobre as relações entre cidadania e modernidade,
chamam atenção para a diversidade de padrões de sociabilidade moderna bem como a
existência de uma variedade de constelações de cidadania moderna.
Nessa perspectiva, nos últimos anos, a categoria cidadania vem expressando a
necessidade de um redimensionamento teórico diante da multiplicidade da
modernidade, na qual um novo estatuto teórico e político se ergue tendo como principal
característica, a expansão de uma nova concepção e de novas práticas da cidadania.

4. Para repensar a cidadania moderna: os apontamentos de Lavalle (2003) e


Tavolaro (2008)

Como já expresso anteriormente, as críticas ao modelo formulado por Marshall


incidem sobre a enorme variedade de configurações que a cidadania moderna assumiu
de algumas décadas até hoje, e não somente em sociedades ditas "periféricas", mas
também nos países comumente denominados de "países centrais da modernidade"
(COUTINHO, 1999). É nessa variedade que o esquema de T. H. Marshall, uma vez
generalizado para além da Inglaterra, se mostrou insuficiente, necessitando de novos
ajustes teóricos que garantam maior escopo analítico e interpretativo à experiência
moderna.
Assim, a partir do debate atual em torno da noção de modernidades múltiplas –
“expressão utilizada para se codificar a percepção da existência de uma grande
variedade de configurações sociais no mundo contemporâneo passíveis de serem

7
O uso analítico do termo remete de forma sintética a processos longos e conflituosos de sedimentação de
direitos civis, políticos e sociais, mediante os quais equacionaram-se nas sociedades ocidentais os dilemas
da subordinação política e da integração social. Se em cada caso histórico os usos práticos - políticos e
ideológicos - da idéia de cidadania englobam o valor da vida digna presente nessa sociedade, a
reconstrução analítica do conceito, do ponto de vista da teoria social, não pressupõe a aceitação ou
prescrição de qualquer conteúdo necessário à substância da cidadania (LAVALLE, 2003, p.78).
denominadas ‘modernas’” (TAVOLARO, 2008, p.118-119) – o sociólogo político
Sergio Tavolaro problematiza a referência analítico-interpretativa de T.H. Marshall
confrontando-a com a literatura contemporânea da sociologia política no que tange à
construção da cidadania moderna.
Para Tavolaro, é preciso afastar a ideia de que uma certa configuração de
sociabilidade moderna seria a referência a partir da qual outras seriam mensuradas. Na
modernidade, tendo em vista a multiplicidade de formas de sociabilidade, torna-se
também concebível a existência de configurações múltiplas de cidadania moderna, estas
passíveis de variação não só entre diferentes sociedades mas também no interior e ao
longo da história de uma mesma sociedade. Nesse contexto, pode-se conceber diferentes
cenários normativos na modernidade:

1.Contextos históricos em cujas ordens normativas os direitos civis ocupam


posição mais acentuada do que os direitos políticos e sociais;
2.Situações em que os direitos políticos se mostram mais preponderantes;
3. Casos em que os direitos sociais revelam-se mais proeminentes na ordem
normativa;
4.Contextos em que os três componentes convivem de forma relativamente
equilibrada;
5.Situações em que os direitos não têm presença significativa na dinâmica
social (TAVOLARO, 2008, p.127-128).

Tendo em vista as várias possibilidades de construção da cidadania em uma dada


ordem social, política e normativa, é que Tavolaro (2008) propõe que se lide com as
possíveis configurações da cidadania moderna como um “resultado de disputas
envolvendo demandas, anseios, projetos sociais e interesses que por vezes convergem,
outras vezes divergem entre si, na busca de se institucionalizarem e de se transformarem
em normas jurídicas” (p.132-133).
No entanto, atualmente, novos desafios colocam a cidadania moderna em uma
encruzilhada de caminhos incertos. Assim, para além das polêmicas que envolvem o
esquema conceitual de T.H.Marshall, para o sociólogo político Adrián Lavalle (2003),
os modelos ideais e arranjos institucionais que definiram no século XX o
reconhecimento de novos direitos e de novos setores da população, acarretando assim o
aprofundamento e a universalização da cidadania, hoje parecem estar comprometidos.
O futuro da cidadania pede uma readequação às exigências dos novos tempos, estes
marcados por dois conjuntos de fatores que causaram efeitos corrosivos para o
funcionamento da cidadania: o primeiro deles diz respeito à capacidade do Estado para
institucionalizar os interesses conflitantes da população, que atualmente, com a
exigência de fatores complexos, ocorre uma limitação na efetividade e alcance do
Estado para a institucionalização desses direitos (LAVALLE, 2003). Alguns exemplos
seriam: a vulnerabilidade financeira e migratória das fronteiras nacionais, o acirramento
da desigualdade social sob formas inéditas (ex.: desemprego estrutural), a redefinição
do papel do Estado e sua consequente retração no plano da intervenção social,
limitações fiscais à ação pública. Para Lavalle (2003, p.81), tais pressupostos macro
institucionais ou estatais compõem um “panorama crivado de restrições não apenas para
a ampliação da cidadania, senão também para preservação de sua substância já
cristalizada em direitos”.
Já o segundo conjunto de fatores presentes na desestabilização da cidadania diz
respeito à diferenciação social e a mudanças socioculturais: a emergência e proliferação
de identidades restritas, o desencanto da política, a multiplicação de formas associativas
civis a reivindicarem novos princípios de representatividade, a proliferação da chamada
política da diferença, entre outras manifestações que acarretam efeitos corrosivos para o
funcionamento da cidadania.
As consequências desses fenômenos, em boa medida inéditos, provocam tendências
de transformação da cidadania que juntamente com as crescentes discussões em torno
da existência de múltiplos formatos da sociabilidade moderna jogam luz sobre a
necessidade de se ajustar as referências teóricas e políticas na construção conceitual da
cidadania.
Quanto a isso, é importante destacar a notável centralidade que a cidadania ganhou
no debate teórico e político das últimas décadas do século XX. Nesse contexto, Lavalle
(2003) cita duas posições de confluência no debate acadêmico que ocasionaram
mudanças na construção do significado da cidadania: grandes tendências socioculturais
– avanços da política da diferença - sobre os pressupostos universalizantes que atentam
para as complexas dinâmicas da diferenciação cultural contemporânea; e, “centralidade
da própria cidadania enquanto categoria normativa capaz de alicerçar em novos termos
a complexa problemática da solidariedade social” (LAVALLE, 2003, p. 84).
Tal panorama inaugura a cidadania enquanto categoria normativa para além de sua
compreensão jurídica-institucional. Essa nova ênfase normativa engendra novos
problemas:

(...) a disputa intelectual e política entre as linguagens da solidariedade e das


obrigações, a redefinição do sentido e alcances funcionais da cidadania e, é
claro, o debate pela ressignificação do lócus político das exigências e
reclamos normativos nas sociedades contemporâneas (LAVALLE, 2003,
p.85).

Para Lavalle (2003), o deslocamento do sentido clássico da cidadania e a sua


reconstrução como categoria normativa surge como uma escolha analítica impregnada
da força do apelo moral, gerando desafios para a análise social, principalmente no que
tange à conciliação prática entre igualdade e diferença.
Especificamente no que diz respeito à igualdade, seu fundamento opera em dois
eixos: na substância da cidadania, ou seja, na determinação das desigualdades que não
podem ser admitidas em determinada comunidade política; e na cobertura da cidadania,
na qual a igualdade remete ao plano da identidade, ou seja, na delimitação do status de
quais os indivíduos poderão ter acesso, participação ou usufruto de um direito. O pólo
da igualdade, ao privilegiar o cidadão como categoria formal, com padrões de
convivência aceitos como civilizados e legítimos, deixa de fora o pólo da diferença,
como as de gênero, cultura ou preferência sexual, que são efetivamente ativas na vida
das comunidades, porém, não usufruem dos padrões satisfatórios de bem-estar para uma
vida digna (LAVALLE, 2003).
Nesse sentido, nas tendências atuais da cidadania, o maior desafio segundo Lavalle
(2003), é encontrar novos modelos de cidadania que contemplem a universalização da
equidade, sem abrir mão do reconhecimento dos reclamos da diferença.
No atual momento, diante de tais dilemas e paradoxos, que parecem caminhar para
uma ressignificação da cidadania de forma desafiante, torna-se essencial pensarmos o
conceito de cidadania como categoria relativa, que esteve e está em permanente
construção. É preciso analisá-la de acordo com o contexto social que a produz - seja em
relação aos fenômenos, instituições e grupos que a engendram -, sendo capaz de
articular a multiplicidade de dimensões da sociabilidade moderna, que nas sociedades
contemporâneas, integram hoje a noção de uma nova cidadania que luta pela construção
da democracia e a busca por mais direitos, maior liberdade e melhores garantias
individuais e coletivas.

5. Considerações Finais

Este artigo procurou apresentar de maneira resumida, as ideias do sociólogo


britânico T.H. Marshall. Este que situando os processos de mudança social e as suas
consequências para as instituições, as normas, os valores sociais e políticos - no
contexto histórico e político-cultural da Inglaterra nos séculos XVIII, XIX e XX -
formulou a concepção da cidadania considerada a mais influente nos estudos acerca da
temática.
A trajetória de lutas por direitos contada por Marshall, através da experiência
inglesa, indica a sequência direitos civis, direitos políticos e direitos sociais como fatos
marcantes nas transformações normativas da Inglaterra moderna. No entanto, como
vimos, diante de um contexto moderno cada vez mais multifacetado, tal perspectiva se
mostrou problemática e insuficiente como forma de teorização para a reflexão sobre o
mundo contemporâneo.
Apesar das críticas e dos limites do seu esquema conceitual, a síntese proposta
por Marshall foi uma importante contribuição para a compreensão da dimensão
histórica, processual e da prática da cidadania na modernidade. Ainda hoje, as
repercussões acerca do seu clássico estudo permanecem como pontos de referência
obrigatórios no debate acerca do futuro da cidadania.
Seguimos no artigo, buscando dialogar com parte da literatura acadêmica que
discute acerca do paradigma da cidadania moderna. Para isso, utilizamos a
fundamentação teórica de Lavalle (2003) e Tavolaro (2008), reconhecidos estudiosos do
tema, que apontam em seus trabalhos alguns elementos da discussão contemporânea
acerca da cidadania moderna, enfatizando temas e problemas da perspectiva de T. H.
Marshall além de trazerem reflexões que apontam para uma ressignificação da
cidadania num contexto configurado pela multiplicidade de formas de sociabilidade e
avanços das políticas da diferença.
Por fim, neste artigo, buscamos discutir a noção de cidadania a partir de uma
perspectiva histórica, mas ao mesmo tempo, mutável de acordo com o tempo, o espaço,
e o contexto – as múltiplas configurações espaço-temporais da modernidade – na qual a
conquista de direitos não se encontra presa a um único caminho, ao contrário, torna-se
efetiva na multiplicidade de novos paradigmas de inclusão e justiça social. Dessa forma,
a articulação entre direitos ganha uma relevância singular no processo de construção de
um conceito contemporâneo de cidadania, à qual é alicerçada nas liberdades individuais
e especialmente na associação do binômio igualdade/diferença, tornando-se assim uma
questão fundamental ao exercício democrático e à participação política cotidiana.

6. Referências Bibliográficas

BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). Cidadania, um projeto em


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