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conceito1
1. Introdução
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Artigo apresentado à disciplina Políticas Sociais e Cidadania, ministrada pelo professor Rogério de
Souza Medeiros como requisito de avaliação.
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Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba.
As mudanças ocorridas nos modos de vida produzidos pela modernidade, durante os
últimos três ou quatro séculos, foram tão dramáticas e abrangentes em seu impacto, que
uma das características marcantes desse processo é exatamente a afirmação e expansão
de uma nova concepção e de novas práticas da cidadania.
No entanto, contemporaneamente, o tema das relações entre cidadania e
modernidade assume na literatura acadêmica uma preocupação constante e disputa
teórica pela fixação do seu significado e de seus limites. E é, diante deste cenário, que o
tema referência para a construção do presente artigo é a crise do paradigma da cidadania
moderna - esta que foi formulada pelo sociólogo inglês T.H. Marshall em seu clássico
estudo sobre cidadania e classe social – e a eventual evolução do conceito e da prática
da cidadania que provoca hoje uma série de debates que apontam para uma
ressignificação da cidadania num contexto configurado pela multiplicidade de formas de
sociabilidade e avanços das políticas da diferença.
Desde a Grécia antiga, até os dias atuais, o conceito assumiu diferentes funções e
aplicações, respondendo hoje a um conjunto de interesses, desejos e aspirações que
passou a incluir boa parte da população, no que diz respeito à conquista de direitos.
Mas, apesar do conceito remontar à Antiguidade 3, a noção de cidadania encontra no
mundo moderno a sua máxima expressão, tanto teórica quanto prática.
É com a modernidade – “estilo, costume de vida ou organização social que
emergiu na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornou mais ou menos
mundial em sua influência” (GIDDENS, 1991, p.11) – e as transformações nos modos
de vida produzidas pela mesma, que o papel da cidadania passa a ser considerado
fundamental para um bom funcionamento de regras e normas da sociedade.
Nessa nova configuração social, a concepção de cidadania moderna adquire um
caráter próprio, possuindo duas categorias: a formal e a substantiva. Enquanto a
dimensão formal da cidadania é indicativa de nacionalidade, sendo definida em termos
de “pertencimento a um Estado-nação”, a dimensão substantiva é definida como a posse
de direitos civis, políticos e sociais.
A compreensão e ampliação da cidadania substantiva foi formulada pelo sociólogo
britânico T. H. Marshall (1967)4 em Cidadania, classe social e status – um clássico da
sociologia contemporânea que fornece importante contribuição acerca da temática
cidadania. Para ele, a substância da cidadania corresponde aos componentes de bem-
estar que forma parte do patrimônio cultural e material de cada comunidade, a qual
julga tais componentes como indispensáveis para garantir uma vida digna (LAVALLE,
2003, p.80 apud MARSHALL, 1967).
Nesse sentido, a cidadania seria uma instituição, que na Inglaterra estava em
desenvolvimento desde a segunda metade do século XVII, correspondendo não só aos
complexos processos de edificação dos Estados-nação, mas também ao
desenvolvimento do capitalismo, este que transferiu para a esfera da cidadania toda uma
gama de desajustes oriundos do sistema de classes. Nesse contexto, ao analisar as
transformações normativas na Inglaterra moderna, T. H. Marshall desenvolve o conceito
de cidadania moderna5:
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Na verdade, as primeiras teorias sobre a cidadania - sobre o que significa ser cidadão - surgiram na
Grécia clássica, correspondendo ao fato de que os gregos conheceram na prática as primeiras formas de
democracia, nas quais um número relativamente amplo de pessoas interferia ativamente na esfera pública,
contribuindo para a formação do governo. E foi precisamente com base nisso que Aristóteles definiu o
cidadão: para ele, “cidadão era todo aquele que tinha o direito (e, consequentemente, também o dever) de
contribuir para a formação do governo, participando ativamente das assembleias nas quais se tomavam as
decisões que envolviam a coletividade e exercendo os cargos que executavam essas decisões”
(COUTINHO, 1999, p.42 -43).
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Marshall foi o primeiro estudioso que criou um conceito fixo e linear de cidadania, mas outro influente
estudioso do tema foi Reinhard Bendix, judeu alemão radicado nos Estados Unidos, que em sua clássica
obra, Construção nacional e cidadania (1964), se aproxima de um viés mais histórico, no qual cada país
pode trilhar seu próprio caminho em busca do ideal da cidadania (DOMINGUES, 2001).
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Importante lembrar que junto com a cidadania moderna nascem os direitos naturais (vida, propriedade,
liberdade) do homem liberal burguês, garantidos pelas consecutivas “Declarações de Direitos” elaboradas
A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de
uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com
respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum
princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas
as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento
criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode
ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida”. (MARSHALL,
1967, p. 76).
De acordo com Marshall (1967), ao longo do curso da história e como parte dos
processos de modernização, um conjunto de normas ganharam autonomia e se
institucionalizaram em torno de três noções de direitos: os civis, os políticos e os
sociais.
a partir das revoluções liberais na Inglaterra (Revolução Gloriosa 1688-89), Estados Unidos
(emancipação política 1776), França (Revolução Francesa, 1789) (DOMINGUES, 2001).
sociais – favorecendo, assim, um processo de mobilização em busca da efetividade da
cidadania.
Acompanhando através de uma perspectiva histórica-sociológica o desenvolvimento
da cidadania na Inglaterra até o século XIX, o sociólogo inglês constatou que até o fim
daquele século, o impacto da cidadania exerceu pouca influência direta sobre a
desigualdade social. Isso porque, apesar do crescente interesse pela igualdade como um
princípio de justiça social, o reconhecimento formal de uma capacidade igual no que diz
respeito a direitos ainda não era suficiente, tendo em vista que a igualdade perante a lei
não existia de fato:
(...) o direito lá estava, mas o remédio jurídico estava muitas vezes fora do
alcance do indivíduo. As barreiras entre os direitos e os remédios eram de
duas espécies: a primeira se originava nos preconceitos de classe e
parcialidade; a segunda, nos efeitos automáticos de distribuição desigual de
renda que operava através do sistema de preços (MARSHALL, 1967, p.80).
Marshall percebeu que apesar dos benefícios recebidos pelos cidadãos não ter se
originado em um enriquecimento do status da cidadania, ao menos ajudaram a guiar o
progresso para o caminho que conduzia diretamente às políticas igualitárias do século
XX. Para ele, essa seria a tendência moderna em direção da igualdade social, seria uma
fase de evolução da cidadania.
Nesse contexto, a cidadania moderna passou a exigir da sociedade um
sentimento direto de participação. Para o sociólogo, o progresso de integração de uma
comunidade dependeria de uma cidadania que “compreende a lealdade de homens
livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum, sendo seu
desenvolvimento estimulado tanto pela luta para adquirir tais direitos quanto pelo gozo
dos mesmos, uma vez adquiridos” (MARSHALL, 1967, p.84).
Diante do exposto, pode-se caracterizar sinteticamente o pensamento
marshalliano da cidadania moderna em quatros elementos: a) universalidade da
cidadania, ou seja, o status de cidadania assume termos de direitos universais; b)
territorialização da cidadania, que delimita através do território os alcances da
cidadania, ou seja, se o indivíduo pertence ao território, pode gozar dos seus direitos; c)
princípio plebiscitário da cidadania ou individualização da cidadania, que liga o
indivíduo ao Estado, e este como forma legítima de reconhecimento e subordinação
política; d) índole estatal-nacional da cidadania, ou seja, a constituição da cidadania é
vinculada à constituição do Estado-nação (LAVALLE, 2003, p.77).
A percepção de Marshall (1967) acerca da cidadania ganhou ampla difusão entre
os estudiosos do tema, vindo a se tornar a concepção mais influente da cidadania
moderna. Além disso, o sociólogo britânico foi um dos pioneiros no campo de uma
nova tradição que inaugurou a “Sociologia do Desenvolvimento”, esta que centra sua
análise na suposição de que muitos dos processos e problemas 6 das “velhas nações” se
repetem ou vão se repetir nas “novas nações” (p.9).
No entanto, as ideias do sociólogo não ficaram isentas de controvérsias, e nas
últimas décadas do século XX, a concepção tradicional da cidadania formulada por
Marshall, suscitou alguns debates críticos tanto no terreno da teoria social como no
âmbito das práticas políticas e institucionais. É o que veremos na próxima seção.
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Alguns desses processos e problemas são: a reestruturação dos estratos sociais, a implantação de novos
valores sociais, a adoção de novos padrões de comportamento, a formulação de novas identificações
políticas, a incorporação de novos grupos sociais ao sistema político, o estabelecimento de um novo tipo
de legitimidade política (MARSHALL, 1967, p.9).
Além da indevida generalização do caso inglês, que fez a noção de cidadania
proposta por Marshall ser denunciada como eurocêntrica, (TAVOLARO, 2008), outras
críticas são: o desenho de roteiro histórico altamente estilizado quanto à gênese e
transformação da cidadania; a simplificação da emergência dos direitos nas sociedades
modernas em três subconjuntos indevidamente homogêneo; certo evolucionismo e
linearidade em relação à trajetória efetivamente seguida pelas sociedades europeias,
inclusive a inglesa (LAVALLE, 2003). Em perspectiva mais abrangente, o caráter
liberal da concepção tradicional da cidadania foi questionado da ótica dos marxismos
pela “ausência de formulações quanto ao papel desse status sócio-político moderno
dentro da lógica de dominação do Estado-nação, e pela escassa atenção prestada ao
conflito social no reconhecimento de novos direitos” (LAVALLE, 2003, p.79).
O ensaio de Marshall também é alvo de críticas mais recentes como:
negligenciar assimetrias de gênero, tanto na sua periodização quanto na sua
diferenciação conceitual; desconsiderar questões de geopolítica; tomar a condição dos
cidadãos brancos como referência na definição do universo da cidadania moderna;
enfocar o nível nacional, deixando de lado as peculiaridades de conflitos regionais e
locais (TAVOLARO, p.125).
Há ainda restrições também no que tange à temporalidade e à linearidade na
implementação dos direitos, pois a rígida periodização do esquema evolutivo dos
direitos em Marshall, desconsidera a implementação e institucionalização de direitos
civis, políticos e sociais de outros países que tiveram sequências bastantes singulares
(TAVOLARO, 2008).
Para o sociólogo político Sergio Tavolaro, são problemáticas interpretações
como as de Marshall (1967), que ao servir de ponto de aferição no que tange ao status
da normatividade de outras sociedades, acaba delimitando fronteiras entre os chamados
países do “centro” e da “periferia”, nos quais a fidelidade ou não fidelidade à sequência
histórica direitos civis/ direitos políticos/direitos sociais, conceberia países mais
modernos ou menos modernos.
O ponto central que marca a da discussão de Tavolaro (2008) reside na
constatação de cunho sociológico de que os tempos hodiernos são marcados por um tipo
de sociedade tendencialmente global. Sendo, por isso, preciso ter uma imagem menos
essencialista da sociabilidade moderna. Tavolaro então assume uma postura crítica em
relação ao modelo analítico-interpretativo de T.H.Marshall a respeito da construção da
cidadania moderna, confrontando-o com a produção contemporânea no interior da
sociologia política.
Para ele, apesar de Marshall não ter inaugurado a preocupação da sociologia
com a temática da cidadania, esta tal qual definida por ele apresenta as mesmas ideias
presentes no “imaginário sociológico hegemônico da modernidade”, no qual os autores
chaves são clássicos como Marx, Durkheim, Weber e Simmel. Em tal imaginário, o tipo
de sociabilidade peculiar da modernidade é concebido em torno do tripé
diferenciação/complexificação social, secularização da normatividade, separação entre
os âmbitos de ação públicos e os domínios privados. Para o sociólogo Tavolaro, essa
episteme codifica a sociabilidade moderna e compõe a concepção de cidadania de T.H.
Marshall:
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O uso analítico do termo remete de forma sintética a processos longos e conflituosos de sedimentação de
direitos civis, políticos e sociais, mediante os quais equacionaram-se nas sociedades ocidentais os dilemas
da subordinação política e da integração social. Se em cada caso histórico os usos práticos - políticos e
ideológicos - da idéia de cidadania englobam o valor da vida digna presente nessa sociedade, a
reconstrução analítica do conceito, do ponto de vista da teoria social, não pressupõe a aceitação ou
prescrição de qualquer conteúdo necessário à substância da cidadania (LAVALLE, 2003, p.78).
denominadas ‘modernas’” (TAVOLARO, 2008, p.118-119) – o sociólogo político
Sergio Tavolaro problematiza a referência analítico-interpretativa de T.H. Marshall
confrontando-a com a literatura contemporânea da sociologia política no que tange à
construção da cidadania moderna.
Para Tavolaro, é preciso afastar a ideia de que uma certa configuração de
sociabilidade moderna seria a referência a partir da qual outras seriam mensuradas. Na
modernidade, tendo em vista a multiplicidade de formas de sociabilidade, torna-se
também concebível a existência de configurações múltiplas de cidadania moderna, estas
passíveis de variação não só entre diferentes sociedades mas também no interior e ao
longo da história de uma mesma sociedade. Nesse contexto, pode-se conceber diferentes
cenários normativos na modernidade:
5. Considerações Finais
6. Referências Bibliográficas