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DESAFIOS

CONTEMPORÂNEOS
CAPÍTULO 1 – SOMOS TODOS
CIDADÃOS?
Luísa Maria Silva Dantas

INICIAR
Introdução
Ao ouvir as palavras cidadão e cidadania, é comum nos remetermos às
ideias de cidade e de participação dos indivíduos em sua sociedade. Além
disso, cidadania também está associada à concepção de direitos que
conformam uma vida digna, ou seja, o cidadão vive em uma coletividade,
a sociedade, participa dela e possui direitos e deveres que lhe garantem
uma vida digna. Essa poderia ser uma maneira de definir o que é
cidadania, ligada à um coletivo de pessoas que atuam na sociedade de
forma democrática e igualitária. Contudo, ao olhar ao nosso redor, será
mesmo que todos os indivíduos de nossa sociedade participam
ativamente das decisões que envolvem suas cidades, estados e a nação
brasileira? Ou ainda, todas essas pessoas, que poderiam ser consideradas
cidadãos, exercem de fato a cidadania? Em outras palavras, possuem as
condições necessárias a uma vida digna? A igualdade, tão clamada e
defendida pela sociedade moderna está de fato sendo defendida e
praticada em nossa sociedade?
Neste capítulo, vamos estudar as origens dessas ideias que parecem tão
naturalizadas em nosso dia a dia, entender como foram instituídas e quais
são os principais desafios para uma sociedade justa e igualitária na
contemporaneidade.
Acompanhe esse capítulo com atenção e bons estudos!

1.1 Construção da Cidadania


A palavra cidadania ou o que ela representa, nem sempre existiu ou teve o
mesmo significado em diferentes lugares e ao longo do tempo. A
concepção de cidadania a qual nos referimos é localizada no mundo
ocidental e teve sua consolidação com o surgimento do mundo moderno,
pautado nos ideais da razão, da ciência e da ampliação da participação
política, que motivaram importantes revoluções, inicialmente, no
contexto europeu, nos séculos XVIII, XIX e XX.
Outra ideia e valor importante, também surgido na modernidade, é o
próprio conceito de indivíduo, entendido enquanto um sujeito de direitos
e envolto aos ideais de igualdade e liberdade que configuraram os
Estados democráticos e capitalistas, com a formação da sociedade civil e
a proteção da propriedade privada. O antropólogo francês Louis Dumont
(1911-1998) identifica o individualismo como a ideologia da modernidade,
ou seja, o conjunto de ideias em que o indivíduo é colocado como um
valor central, posto que a ideologia é o modo como diferentes grupos
sociais atribuem sentido às suas experiências no mundo. Vamos, a seguir,
apresentar uma breve história da cidadania no contexto mundial.

1.1.1 Breve história da cidadania


As possíveis origens da cidadania remetem à antiguidade e aos contextos
de Roma e Grécia, posto que nas cidades-estados desses países foram
identificadas as primeiras formas de participação da população nas
decisões da cidade. Apesar de cada integrante ter direito de voz e voto,
apenas os considerados como cidadãos tinham este privilégio. Cidadãos
eram apenas os homens, livres e com propriedades. Mulheres, escravos,
artesãos e comerciantes estavam excluídos dessa classificação.
Contudo, um conjunto de transformações ocorridas desde o século XV
com a Expansão Marítima, Reforma Protestante no século XVI, além da
Revolução Científica (século XVII), Independência dos Estados Unidos
(1776), Revolução Francesa (1789), Revolução Industrial (final do século
XVIII) e urbanização do mundo ocidental, provocaram mudanças
profundas que promoveram o fim da Idade Média e o advento da
Modernidade.
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Figura 1 - Revolução Francesa, quando burgueses e camponeses uniram-se para depor o


Estado Absolutista. Fonte: Oleg Golovnev, Shutterstock, 2018.

O momento que instaura a modernidade pode ser caracterizado pela


consolidação da burguesia enquanto grupo central, pois além do poder
econômico acumulado com a expansão marítima e a posterior compra de
fábricas, este grupo também conquistou o poder político, antes
concentrado na aristocracia rural e na igreja católica. A mudança de
gestão e organização política trouxe o surgimento do Estado Moderno,
que concentrou o aparato administrativo, jurídico e de segurança das
novas Nações. E também os ideais de liberdade e igualdade para todos os
indivíduos inseridos em cada território.
VOCÊ O CONHECE?
Os filósofos ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), e o franco-suíço
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) são conhecidos como contratualistas por defenderem
que o surgimento do Estado Moderno é resultado de um contrato social, em que os homens
viveriam em um estado de natureza e decidiram abrir mão de sua total liberdade para a
constituição da sociedade civil. Contudo, estes filósofos divergiam quanto ao estado de
natureza e a função do Estado. Para Hobbes, esta instituição viria para evitar uma guerra de
todos contra todos; para Locke, atuaria como um juiz, já para Rousseau foi a instituição da
propriedade privada que provocou o surgimento do Estado, posto que o estado de natureza
seria o Éden, da felicidade plena.

Então, desde a noção de cidadania que apenas abarcava homens


abastados em Roma e Grécia, passando por quase nenhuma incidência no
período feudal, é na modernidade, principalmente com a elaboração da
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), elaborada na
França, que a cidadania, na forma como é pensada e vivenciada por nós
atualmente, foi inaugurada.
Juntamente às transformações políticas, a sociedade e a economia
também foram bastante abaladas com a possibilidade de participação
nas decisões que envolviam estados, regiões e países e com a
industrialização e urbanização que o mundo ocidental experimentava a
partir do século XVIII. O modo de produção capitalista, pautado pela
formação de um grupo que vendia a sua mão de obra para os donos das
máquinas e fábricas em troca de um salário, gerou a classe trabalhadora,
primeiro grupo que passou a organizar-se coletivamente para a conquista
de direitos visando melhorar suas condições de vida e trabalho. Portanto,
praticando uma das dimensões da cidadania, que é a luta por direitos
civis, políticos e sociais.
O sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall (1893-1981), em sua
obra “Cidadania, classe social e status”, de 1950, (ARAÚJO, BRIDI e
MOTIM, 2013), focada no contexto industrial inglês, defendia que a busca
pela efetivação dos direitos era a condição principal para a cidadania, e os
classificou em três grupos:
1. Direitos civis – relacionados à liberdade de expressão, de prática
religiosa e direito de propriedade;
2. Direitos políticos – relacionados à possibilidade de opinar e de ocupar
cargos políticos;
3. Direitos sociais – voltados para a garantia de dignidade de cidadãos à
margem da sociedade.

VOCÊ SABIA?
O marxismo contribui bastante para a construção da cidadania, é o que afirma
Maria de Lourdes Manzini-Covre em seu livro “O que é cidadania?” Numa
constante briga com a burguesia no que se refere a forma do uso dos direitos
aplicados a sociedade na dominância de grupos sociais, o marxismo é base de
uma teoria usada para transformar a sociedade burguesa, expressando a ideia do
trabalho como forma de opressão e exploração. Marx (1818-1883) avança na
questão da cidadania ao ser sufocado por esta luta. (MANZINI-COVRE, 2013).
A denúncia de Marx vai de encontro a questão do trabalhador. Por exemplo, o
operário é obrigado a vender sua força e habilidades no trabalho, mas não escolhe
suas condições trabalhistas, percebendo que na maioria das vezes não tem o
retorno esperado nos aspectos de alimentação, educação, mobilidade e saúde, a
chamada exploração capitalista. Perceba que a influência do marxismo tem
impacto relevante na construção da lei em oferecer um melhor sistema de
trabalho, sendo que na ascensão do capitalismo se tem uma ideia de exploração
ao operário que trocava suas horas de trabalho por remunerações baixíssimas.
Agora você consegue perceber o ponto onde Marx quer chegar, é isso mesmo! O
sistema socialista, onde o estado perde forças e a sociedade trabalhadora que dita
o planejamento de todos ao trabalho e aos bens necessários a vida. Note que a
imagem do socialismo ideal é aparentemente linda, mas no leste Europeu este foi
destruído por suas próprias mazelas. Mas não podemos negar que o “poderoso”
Estado procura na atualidade se mostrar como um órgão de todos, porém no
fundo visa favorecer os que estão no poder.
Veja que todo esse ideal tem impacto na cidadania, que hoje é usada como arma
para combater a exploração do Estado, esse tipo de cidadania sempre é sufocada
pela cidadania pautada no consumo, herança capitalista, assim como a cidadania
mais plena é uma herança marxista, que de forma aparente é benéfica ao
trabalhador e a sociedade oprimida, mas que no fundo não funciona plenamente.

Com isso, temos uma pequena contextualização da cidadania de modo


global, mas e quanto ao Brasil? Acompanhe no próximo tópico.

1.1.2 Cidadania no Brasil


A cidadania no Brasil é um assunto bastante delicado, mas como em
qualquer outro contexto, é importante saber a história de nosso país e os
caminhos que foram e continuam sendo traçados a favor ou contrários à
ampliação da cidadania dos brasileiros. Diferentemente do contexto
europeu, em que as revoluções burguesas, a valorização da ciência e da
razão e os movimentos operários contribuíram para a consolidação da
igualdade e participação política de sua população desde o século XVIII,
por aqui o percurso se deu posteriormente, influenciado pelos
acontecimentos do além-mar, ou seja, pela expansão marítima europeia.
Se a cidadania diz respeito à participação popular na vida política de um
Estado-Nação e o exercício de direitos civis, políticos e sociais, nosso país
esteve bastante aquém de alcançá-la. Primeiro, porque africanos e
indígenas foram escravizados durante pelo menos três séculos, tendo a
escravidão abolida apenas um ano antes da Proclamação da República,
em 1888. Além disso, para ficarmos apenas no exemplo de direitos
políticos, no Brasil, apenas em 1934 foi permitido às mulheres votar e
somente com a Constituição de 1988 os analfabetos conquistaram este
direito.
Desde a primeira Constituição (1891) até a atual (1988), o Estado
brasileiro assumiu várias feições, de ser sustentado e ocupado apenas por
ruralistas, quando o voto era aberto e vigiado (“voto de cabresto”),
passando pela Era Vargas (1930-1945), uma iniciante democracia, 20 anos
de ditatura militar (1964-1984), até alcançarmos o retorno ao regime
democrático de direito (1985). Nesse percurso, os direitos políticos foram
conquistados por grande parte da sociedade, mas os direitos civis e
sociais ainda se manifestam como um grande desafio para os
movimentos sociais e os indivíduos que defendem uma ampla cidadania
como condição para um mundo mais justo e igualitário.
Vamos tomar como exemplo a população negra. Apesar da liberdade de
culto religioso ser um direito civil garantido pela Constituição de 1988, é
comum as mídias registram casos de assassinatos e violências a líderes e
casas de religião de matriz africana. Quanto aos direitos sociais, institutos
de pesquisa, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
divulgam dados que comprovam o assassinato de grande parte da
juventude, o encarceramento da população negra e a violência contra as
mulheres, principalmente negras.

VOCÊ SABIA?
Educação, saúde, moradia, trabalho, lazer, esporte e segurança são
direitos garantidos a todos os cidadãos brasileiros pela Constituição
Federal de 1988. Ainda que na teoria isso seja de conhecimento, na
prática, esses direitos estão longe de serem garantidos pelo Estado,
fazendo com que uma parcela da população recorra aos serviços
privados, e a maioria simplesmente viva cotidianamente sem acessá-los,
ainda que a existência dos impostos seja justificada para garanti-los.
Na resistência a favor da vida e da dignidade da população excluída dos
meios de subsistência e integração social, o Brasil conta com extenso
número de movimentos sociais, sindicatos, associações e organizações
não governamentais, que atuam questionando e pressionando projetos e
leis aprovados e postos em prática pelos poderes legislativo, executivo e
também judiciário, visando a efetivação de políticas públicas e sociais que
de fato reconheçam a cidadania da maioria da população brasileira.

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Figura 2 - Exemplo de ocupação irregular muito comum no Brasil devido à falta de


moradia em melhores condições. Fonte: De Visu, Shutterstock, 2018.

Ao longo do tempo, os movimentos sociais também foram mudando sua


organização e forma de atuação. Se na metade do século XX se proliferou
grande número de sindicatos representativos da classe trabalhadora, com
forte estrutura hierárquica e práticas de panfletagem para a organização
de passeatas e greves, atualmente, com o desenvolvimento de novas
tecnologias, os movimentos encontram-se cada vez mais horizontais e
abarcando maiores escalas via mídias digitais que tem capacidade para
conectar pessoas nos mais distantes lugares do globo. As manifestações
de junho de 2013, bem como outras da contemporaneidade, foram
articuladas e disseminadas de tal modo. Vamos continuar nossos estudos
com o tema direitos humanos.

1.2 Os Direitos Humanos


Para entender o que são e como surgiu os direitos humanos, precisamos
contextualizar historicamente de qual momento e local estamos falando.
Vimos que o conceito de cidadão foi se transformando, pois nem sempre
abarcou todas as pessoas que compunham determinada sociedade, já
que durante muito tempo apenas eram considerados cidadãos os
homens, livres e com propriedades.
A concepção de direitos humanos, que nos referimos com tanta
naturalidade, foi desenvolvida na modernidade, quando as revoluções
burguesas depuseram os regimes absolutistas e a democracia,
caracterizada pela soberania popular, foi estabelecida. O surgimento dos
Estados Democráticos, a partir do século XVII no contexto europeu,
institucionalizou a sociedade civil e impulsionou o surgimento de direitos
e deveres para a manutenção e organização da sociedade. A ideia de
cidadania está atrelada a este cenário de ampliação da participação
política e da conquista de direitos: “na sua acepção mais ampla,
cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia” (PINSKY;
PINSKY, 2010, p.10).
Historicamente, os direitos foram associados e restritos aos grupos
dominantes e a ampliação para o conjunto maior da sociedade está
ligada à modernidade e suas transformações políticas, sociais e
econômicas. Os direitos humanos da contemporaneidade se pretendem
universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.
A seguir, vamos apresentar e discutir alguns aspectos históricos e
sociológicos dos direitos humanos.

1.2.1 Aspectos históricos e sociológicos dos Direitos


Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada originalmente
em 10 de dezembro de 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU,
2009), é considerada o marco regulatório decisivo para a implementação
e fiscalização dos direitos humanos no mundo ocidental moderno. A ONU
surgiu em 1945, ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial, com o
intuito de incentivar o diálogo entre as nações e evitar novas catástrofes
mundiais. Nesse sentido, a declaração dos direitos humanos foi um
documento importante para enfatizar o caráter universal dos direitos,
levando em consideração a pluralidade dos povos, bem como a sub-
representatividade de determinados grupos nas esferas de poder e
prestígio.
A defesa pela igualdade e liberdade dos indivíduos foi uma das principais
bandeiras ainda nas revoluções liberais-burguesas nos séculos XVII e XVIII.
Àquela época, o grupo que conseguiu acumular renda, mas que ainda era
desprovido de poder e participação política, uniu-se ao povo, os
desprovidos de privilégios, mas obrigados a pagar altos impostos para os
nobres, para o rei e para a igreja, para ter mais forças e conseguir realizar
tais revoluções. Ao garantirem sua vitória, a burguesia aos poucos foi
agindo contrariamente à consolidação de direitos para o povo, posto que
não mais precisava de seu apoio, mas agora da exploração de suas vidas e
trabalho para desenvolver o sistema capitalista.
Nesse período, começaram a ser disseminadas as correntes do socialismo
e do comunismo entre a classe trabalhadora, que passou a organizar-se
na forma de partidos e sindicatos e lutar por melhores condições de
trabalho A primeira metade do século XX foi marcada então pela divisão
do globo entre países capitalistas e socialistas, culminando no
surgimento de estados fascistas e totalitários e na Segunda Guerra
Mundial.
VOCÊ QUER VER?
No filme Norma Rae (FRANK JR; RAVETCH, 1979), a protagonista vem de uma família com
gerações de trabalhadores da indústria têxtil e a partir do contato com um ativista passa a
questionar as condições de trabalho e propor a organização de um sindicato.

Nas práticas de colonização promovidas pela Europa na América Latina,


África e Ásia também podemos identificar a desumanização dos povos
dominados, que tiveram sua cultura, língua, economia e religião
negligenciados e combatidos em prol da ocidentalização do mundo.
Outro exemplo de violência contra a universalidade da humanidade pôde
ser observada no regime nazista alemão que, baseado em uma ideia de
supremacia racial, também dizimou milhões de pessoas e implementou
os campos de concentração.

VOCÊ SABIA?
No Brasil foi instituída uma Comissão Nacional da Verdade (CNV), em
2011, durante o governo de Dilma Rousseff, para investigar violações aos
direitos humanos cometidos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de
outubro de 1988, abarcando o primeiro período democrático do país
(1946-1964), a ditadura militar (1964-1984), o retorno à democracia
(1985) e a instituição da atual Constituição Federal (1988).

Outro desafio a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos é de


que todos os indivíduos “são iguais perante a lei”, além de livres para
expressarem suas opiniões e cultuarem a religião que escolherem. Bom,
basta olharmos qualquer reportagem e/ou relato do cotidiano para
percebermos que a justiça não se aplica de maneira igualitária,
independente da cor/etnia, classe social, gênero, nacionalidade,
orientação sexual, opção política-ideológica etc. Também temos os casos
de “prisioneiros da consciência”, ou seja, pessoas que foram presas por se
manifestarem contrariamente a governos totalitários, como durante a
ditadura militar no Brasil. E quanto à religião, casos de repressão às suas
manifestações, como o uso no véu na França por muçulmanas, que foi
repreendido, ou os casos de depredação de casas de religião de matriz
africana no Brasil.

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Figura 3 - Praticante de religião de matriz africana, que apesar de estar garantida pela
constituição brasileira, continuam sofrendo violência. Fonte: Vitoriano Junior,
Shutterstock, 2018.

Então, é pertinente nos determos na afirmação de John Dewey que o


historiador Marco Mondaini (2009, p. 159) nos traz à tona: “Se você quer
estabelecer a concepção de uma sociedade, descubra quem está na
prisão”. Essa afirmação é importante para que possamos avaliar se os
ideais de justiça social, paz, diversidade cultural e respeito aos direitos
humanos estão sendo exercidos nos diferentes países.
No próximo tópico, vamos discutir as assimetrias entre o Brasil de direito,
caracterizado pelas leis, e o de fato, fundamentado na prática cotidiana.

VOCÊ QUER VER?


Ouvimos e falamos muito em direitos humanos, em diversas lutas, protestos, nas mídias em casa. Sim eles
estão por toda parte, inclusive na sua mente. Mas afinal de conta O que são direitos humanos? Como surgiu
este conceito e como na prática esses direitos são aplicados na sua vida? Se fizessem a você estas perguntas
o que responderia? Pense por alguns instantes e assista o pequeno documentário disponível no site unidos
pelos direitos humanos clicando no link <https://www.unidospelosdireitoshumanos.org.br/what-are-human-
rights/>, mergulhe nas páginas da história e no mundo do conhecimento deste aspecto tão importante para
sua vida, ao final reflita, seus direitos são os direitos dos outros.

1.2.2 Brasil Legal x Brasil Real


O caminho percorrido pelos Estados Unidos, Inglaterra e França, é de
conquista de direitos civis – as liberdades individuais (século XVII e XVIII),
depois direitos políticos – igualdade política (século XIX), e direitos sociais
– igualdade social (século XX). No Brasil, houve inicialmente, alguns
ganhos sociais, como a consolidação das leis trabalhistas (CLT), em 1943,
durante o governo de Getúlio Vargas, para que posteriormente fossem
conquistados direitos civis e políticos, principalmente após a ditadora
militar, em 1984, quando foi (re)instituído no Brasil o Estado Democrático
de Direito.
Em termos legais, o Brasil se coloca como um dos países com legislação
mais avançada da América Latina, contudo percebemos grande
contradição entre o campo “legal” e o “real”, ou seja, apesar de uma
constituição e leis que garantem a igualdade, liberdade e dignidade de
todos os cidadãos, os direitos fundamentais como saúde, moradia,
segurança, transporte, lazer e educação são escassos a ampla parcela da
população.
A dinâmica social contemporânea, ainda que imbuída em um cenário de
direitos e normas jurídicas estabelecidas, se passa como se ainda
vivêssemos na idade média, quando o poder econômico e político eram
determinados pelo nascimento, já que mesmo com a igualdade presente
nas leis, não há meios adequados para que pessoas de diferentes estratos
sociais alcancem os lugares mais prestigiados da sociedade. Mesmo que a
justificativa não seja mais os “desígnios de deus”, a estratificação ou
desigualdade social é uma das características mais evidentes de nosso
país.
VOCÊ QUER LER?
“Quarto de Despejo – Diário de uma favelada” (JESUS, 2014) é um livro em que são editados
os diários de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, migrante de Minas Gerais,
papeleira e moradora de uma favela em São Paulo, na década de 1950. O livro retrata o
cotidiano de miséria, privações e a sociabilidade da escritora, sua família e vizinhos,
explicitando as trajetórias de pessoas à margem da cidadania e dos direitos fundamentais
no Brasil.

Pessoas são tratadas de forma distinta conforme os marcadores de


diferença, classe, cor e gênero, por exemplo. O aparato público é utilizado
com fins privados e o coronelismo ainda se apresenta como uma das
principais práticas políticas. Esse clientelismo que deveria ter acabado
com a instituição da democracia e ampliação da cidadania ainda não foi
exterminado, já que os políticos atuais são os mesmos ou, então,
descendentes dos antigos coronéis. Assim, os direitos humanos ainda não
conseguiram garantir a emancipação real da maioria da população
brasileira.

VOCÊ QUER VER?


No filme Quanto vale ou É por quilo? (BIANCHI; BENAIM; CANITTO, 2005) é retratado os
trâmites entre política e filantropia, além de fazer uma analogia entre o comércio de
escravos e a atual exploração da miséria por vários agentes sociais.
É inegável que desde a abertura política já tivemos inúmeros avanços,
mas infelizmente estes também chegam acompanhados por retrocessos.
A reforma agrária que possibilitaria a permanência dos agricultores no
campo, a manutenção de identidade e cultura de quilombolas e indígenas
ainda não foi realizada. Ao mesmo tempo em que houve a universalização
de crianças nas escolas, também enfrentamos uma taxa de mais de 10
milhões de brasileiros desempregados (GOMES, 2018). Vivemos, então,
em um Brasil em que uns são mais humanos do que outros? Enfrentar
essas disparidades se constitui como um desafio urgente para
construirmos um lugar realmente plural e digno para todos, onde a paz, a
segurança coletiva, o desenvolvimento e os direitos humanos sejam
indissociáveis.
Agora, vamos apresentar a situação de grupos que permanecem à
margem de parte ou integralmente dos direitos humanos.

1.3 Mulheres e Minorias


Este tópico diz respeito aos avanços, desafios e entraves para o exercício
da cidadania e do respeito aos direitos humanos de grupos
subalternizados, também chamados de minorias. O primeiro ponto que
precisamos elucidar se relaciona justamente a palavra minorias. Quando
a ouvimos, a primeira ideia que nos vem a cabeça tem a ver com um
número reduzido, ou seja, com quantidade. No entanto, essa imagem
pode gerar equívocos quando a palavra minorias está associada a
políticas públicas ou direitos humanos. Isso porque grupos compostos
por milhões de pessoas – que, muitas vezes, podem constituir a maioria
em termos numéricos da população de determinada sociedade -, mas
que, contrariamente à sua presença numérica, estão sub-representados
em espaços de poder, prestígio, educação, renda, saúde e lazer. Além
disso, são hiper-representados entre o grupo com menor poder
aquisitivo, ocupando os empregos menos valorizados e prestigiados,
deficitários de saúde, educação, moradia, segurança, lazer e respeito aos
direitos humanos.
Nesse sentido, as mulheres e outros grupos como homossexuais,
transexuais e transgêneros, deficientes, idosos, jovens e crianças, são
estratos da sociedade considerados minorias justamente por estarem
mais vulneráveis a violências e carentes de respeito aos seus direitos
humanos mais fundamentais. Em contraponto às minorias, está o grupo
hegemônico, provido de privilégios e vantagens historicamente
perpetuadas. Esse lugar é ocupado por homens, brancos, heterossexuais,
que moram nos lugares mais caros das cidades, ocupam profissões bem
remuneradas e respeitadas e estão menos sujeitos às violências
criminosas e institucionais, fazendo com que pessoas que não
correspondem a este perfil sejam vistas e tratadas como não tão
“humanas” assim.

VOCÊ QUER VER?


Vamos lá, você deve se perguntar as vezes se no meio de tantas leis que promovem a igualdade, por que
ainda existe tanta desigualdade? O site believe.earth/pt-br trás de forma simples e objetiva 10 ações diárias
para promover a igualdade entre homens e mulheres clique <https://believe.earth/pt-br/10-acoes-do-dia-dia-
que-promovem-igualdade-de-genero/>; após a leitura e anotações, você é desafiado a pensar em fatos
sociais e profissionais que geram desigualdade entre homens e mulheres, ai você percebera que a situação
ainda tem muito a ser trabalhada, quer ver? Vou adiantar um dos fatos, o analfabetismo é um deles, dos 750
milhões de pessoas sem habilidades básicas em leitura, mais da metade são meninas. No link a seguir você
encontrará a leitura ilustrada desses fatos sobre estas desigualdades listadas pela ONU (Organização das
Nações Unidas). <https://nacoesunidas.org/onu-16-fatos-sobre-desigualdades-entre-homens-e-mulheres/>.

Será que diferenças são o mesmo que desigualdades? É o que vamos


abordar no próximo tópico.

1.3.1. (Des)naturalização das desigualdades


Enquanto seres coletivos, vivendo em sociedade, nossa socialização
desde a infância se dá por meio de instituições sociais, como família,
escola, igreja e Estado, que, frequentemente, disseminam o modelo
hegemônico sobre o que é normal ou anormal para a contribuição da
ordem social. Entretanto, nesta “ordem”, normalmente alguns grupos são
privilegiados, enquanto outros são inferiorizados. Portanto quem detêm
o poder político e econômico não pretende perder seus privilégios e, para
isso, faze uso do aparato ideológico para manter a estrutura social no
modelo que mantém sua posição de dominação sobre outros.
Isso acontece, por exemplo, em relação ao conceito, características e
significados de mulher e homem em nossa sociedade. Somos ensinados
que quem nasce com uma vagina é do sexo feminino e devem ser
socializados como mulheres, enquanto quem nasce com pênis, devem
aprender a ser homem. Essa associação, que durante tanto tempo foi
vista como natural e disseminada pelas instituições sociais, atualmente
começa a ser tensionada por estudiosos que irão defender que a própria
biologia é uma construção cultural (MARILYN STRATHERN, 1992 apud
CARVALHO, 2012), portanto não é natural ou imutável.
Mas, seguindo o modelo sexo-gênero (GAYLE RUBIN, 1975 apud
CARVALHO, 2012), tão difundido ao longo dos tempos, a genitália
determinaria o comportamento social das pessoas e também o papel que
estas deveriam desempenhar nos seus contextos sociais. Podemos
perceber que essa estrutura binária contribuiu para a dominação
masculina e a opressão das mulheres.
Alguns autores vão justificar que as mulheres estariam ligadas à natureza
e à reprodução da família e do lar, enquanto os homens estariam
atrelados à cultura, ao espaço público e ao sustento de suas famílias e
lares, como se homens e mulheres estivessem limitados a apenas um
destino estabelecido pela natureza.
Várias pesquisas em diferentes sociedades (MARGARETH MEAD, 2000 apud
CARVALHO, 2012) contrapuseram este quadro, demonstrando que
existem vários modelos sobre o que é ser homem ou mulher e nem
sempre ligados à constituição biológica dos seres. Além disso, hoje se
sabe que a maneira dicotômica de classificar o mundo em macho/fêmea,
alto/baixo, mente/corpo, é apenas uma das possibilidades de
entendimento, dentre várias outras, cada vez mais múltiplas.
Em relação especificamente às mulheres, que se constitui como uma
minoria por não gozar de plena cidadania e respeito aos direitos
humanos, foi justamente durante as revoluções liberais, que elas
passaram a questionar sua ausência no grupo dos cidadãos. A Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, por exemplo, não incluía as
mulheres. Desde o início da modernidade, as mulheres passaram a lutar
por sua efetiva inserção na sociedade civil, reclamando seu direito de
voto e também de poderem assumir cargos políticos.
VOCÊ SABIA?
A Arábia Saudita é um país em que as diferenças entre os direitos e
papéis de homens e mulheres é bastante desigual, visto sob o contexto
dos direitos humanos. As mulheres precisam da autorização de um
parente masculino para viajarem, trabalharem ou casarem. Foi o último
país no mundo a negar as mulheres o direito de voto, conquistado
apenas em 2015, e ainda assim, a representatividade das mulheres é
irrisória, apenas 1 em cada 10 eleitores.

A luta pelo direito do voto, quando da consolidação dos Estados


democráticos no ocidente, se constituiu como a “primeira onda” na
história oficial do feminismo – movimento acadêmico e ativista que atua
em prol das mulheres. Posteriormente, com a industrialização e
urbanização, as mulheres também passaram a se organizar para
exercerem direitos iguais aos dos homens como o de ocupar o emprego
que lhes desse vontade e ter a mesma remuneração que seus pares
masculinos. Além disso, também passaram a questionar seus papéis
sexuais enquanto apenas esposas, mães e responsáveis pelos afazeres
domésticos, e a reivindicar por liberdade sexual, o que foi facilitado com a
invenção da pílula anticoncepcional na década de 1950, a prática sexual
não mais estaria atrelada somente à reprodução.
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Figura 4 - Dilma Rousseff foi, até o momento, a primeira e única mulher presidente do
Brasil (2011 a 2016). Fonte: Shutterstock, 2018.

Enquanto ferramenta de produção de conhecimento científico, após o


conceito de papéis sexuais, na década de 1980, a feminista estadunidense
Joan Scott (1985) introduziu o conceito de gênero para estudar o caráter
cultural dos papéis de homens e mulheres. Partindo dessa ferramenta
analítica, muitas pesquisas foram desenvolvidas, mas inicialmente
apenas chamando atenção para as trajetórias sociais e dificuldades que
as mulheres enfrentavam/enfrentam em seus cotidianos. Depois, houve o
entendimento de que a categoria gênero seria relacional, se trataria das
relações sociais constituídas por homens e mulheres e suas
peculiaridades. Nesse momento, surgem trabalhos que também
interpelam e manifestam a existência de masculinidades e feminilidades
no plural.
Isso significa que de categorias que antes foram determinadas
biologicamente, homens e mulheres passaram a ser constructos sociais
e,portanto, passíveis de mudanças, já que a cultura está em contínua
transformação.

VOCÊ QUER LER?


O livro “O conto da aia” (ATWOOD, 2017), em inglês The Handmaid’s Tale, é um romance da
canadense Margaret Atwood lançado originalmente em 1985. A partir de uma cidade fictícia
dos Estados Unidos, a história retrata um golpe em que um grupo conservador toma o
poder, destruindo o país e impondo papéis sexuais para diferentes grupos de mulheres, que
remetem às ideias de natureza e submissão.

Além das recentes discussões sobre o caráter cultural da natureza, as


perspectivas de feministas afro-estadunidenses, desenvolvidas pelos
menos desde os anos 1960, juntamente com as abordagens de mulheres
do “terceiro mundo”, passaram a ter maior visibilidade a partir dos anos
1990. Autoras como Angela Davis, Bel Hooks, Kimberlé Crenshaw,
Chandra Mohanty e Lélia Gonzalez chamaram atenção para a
heterogeneidade da categoria mulher, defendendo que as experiências e
opressões variam de acordo com o lugar que determinada mulher ocupa
e da sociedade em que está inserida. Desse modo, salientam que classe
social, cor, orientação sexual e religião não podem ser entendidas de
forma separada ou hierarquizada, pois, muitas vezes, atuam de forma
simultânea nas trajetórias de diferentes mulheres. Então, levantaram
críticas a respeito de apenas um discurso feminista, pautado nas
experiências de mulheres, brancas, heterossexuais, norte-americanas e
europeias.

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Figura 5 - Mulher protestando em ato público pela garantia de direitos civis, políticos e
sociais. Fonte: arindambanerjee, Shutterstock, 2018.

Para enfrentar as desigualdades e violências que diferentes mulheres


ainda enfrentam, os movimentos sociais, organizações não
governamentais e partidos sensibilizam a opinião pública por meio de
campanhas e protestos, visando o estabelecimento de leis de proteção e
políticas afirmativas para que as mulheres possam ser respeitadas em
seus direitos humanos e ocupem diferentes espaços sociais.
No Brasil, em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha -
Lei 11.340 (BRASIL, 2006) que visa criminalizar e punir a violência contra
as mulheres. Há também a Lei do Feminicídio – Lei 13.104 (BRASIL, 2015) –
que classifica como crime os assassinatos cometidos em razão de serem
mulheres.
Qual seria o outro seguimento social que também permanece em
desigualdade em nossa sociedade? Veja a resposta no tópico a seguir.

1.4 A questão étnica racial


Para justificar a colonização, exploração e dominação de povos e países,
os europeus ancoraram-se em teorias pseudocientíficas que abalizavam
diferenças étnico-raciais enquanto desigualdades intelectuais e morais.
Isto é, utilizaram a teoria da evolução das espécies desenvolvida por
Charles Darwin (1809-1882) para explicar a manutenção e proliferação de
certos tipos de animais e vegetais, e construíram a teoria da evolução
social, pautando-se pelo argumento de que povos também deveriam
passar por estágios evolutivos para progredirem. Iriam da selvageria,
passando pela barbárie, até chegar na civilização, que seria a cultura
ocidental europeia.
Assim, o argumento moralmente defendido para a colonização era de que
os europeus iriam “civilizar” o novo mundo, enquanto uma “missão de
ajuda humanitária”. Não é preciso adivinhar que para tal intento, no caso
brasileiro, trataram como selvagens e bárbaros indígenas, africanos e
seus descendentes. Era preciso tornar inferior estes grupos, juntamente
às suas culturas e religiões, para que o projeto “civilizatório” desse certo.
Com isso, foram aplicadas na sociedade brasileira teorias raciais que
surgiram na Europa desde o século XIX, e pregavam a ideia de supremacia
e pureza raciais. Então, além do genocídio da população indígena e a
escravização de africanos, também foram postos em práticas políticas
públicas para o embranquecimento da população, sob o argumento que o
desenvolvimento da nação estaria diretamente relacionado com o fim da
população negra e indígena.

VOCÊ O CONHECE?
O psiquiatra e filósofo martinicano, de ascendência francesa e africana, Franz Fanon (1925-
1961), escreveu sobre os efeitos do racismo na subjetividade de homens racializados e lutou
pela independência da Argélia. Suas obras “Pele negra, máscaras brancas” (1952) e “Os
condenados da terra” (1961) são referências dos estudos culturais e pós-coloniais.

Como você pode subentender, durante muitos séculos o conceito de


cidadão brasileiro não incluía a população negra ou indígena. Por serem
considerados “menos humanos” que os brancos, não eram reconhecidos
como sujeitos dos direitos humanos, logo, o país vem perpetuando uma
dívida com esses grupos, que podem ser considerados minorias, e que,
infelizmente, apesar de alguns direitos já reconhecidos, continuam tendo
que resistir aos efeitos da discriminação racial que estrutura a sociedade
brasileira.
Surge, então, a pergunta: como consolidar a cidadania e a democracia
plena em um país fundado na desigualdade social e no preconceito
racial? A resposta passa por uma grande revolução em todas as esferas da
vida social, com a prioridade dos direitos humanos universais. Com isso,
poderemos pensar em nos desenvolvermos e constituirmos em um povo
harmônico e miscigenado de fato, enquanto isso, ainda temos muita
estrada pela frente.
VOCÊ QUER VER?
Racismo é um assunto delicado, é necessário sair um pouco da teoria e ver como acontece na realidade
cotidiana das pessoas, acompanhe agora um pequeno vídeo produzido pela GNT onde três mulheres negras,
incluindo a filósofa Djamila Ribeiro, discutem o que é o racismo. Um dos contextos é a educação, o acesso
as escolas e universidades. Vamos lá? <https://youtu.be/dU-hqu7aqj4> talvez você passe por estas situações
citadas ou conheça alguém que vive estes dramas raciais.

Já no próximo tópico, vamos estudar a sociedade brasileira, posto que a


partir da identificação, é possível buscar soluções para os problemas.
1.4.1 Enxergando a sociedade brasileira
A década de 1930 ficou conhecida como o período em que surge a
sociologia no Brasil. O início foi marcado por perguntas que buscavam
entender a sociedade e a cultura brasileira, “afinal, o que faz o Brasil,
Brasil?”. Nesse momento, surgiram obras importantes com o intuito de
responder tal questionamento como “Casa Grande e Senzala” (FREYRE,
1992 [1933]), do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), em que
podemos perceber uma crítica à supremacia racial das teorias raciais do
século XIX. O autor aborda a miscigenação entre europeus, africanos e
indígenas como o traço central da sociedade brasileira, mas defende o
que ficou conhecido como o “mito da democracia racial”, como se no
Brasil não existisse conflitos raciais e todos os povos vivessem com
respeito, igualdade e harmonia. Desse modo, o mito da democracia racial
corresponde à ideia de que no Brasil não existem conflitos raciais e todos
os segmentos sociais tem a mesma oportunidade de acesso a direitos,
bens e serviços, ou seja, uma falácia.
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Figura 6 - A capoeira é uma arte marcial brasileira, desenvolvida por africanos e brasileiros
escravizados e durante muito tempo sua prática foi proibida. Fonte: Val Thoermer,
Shutterstock, 2018.

Por décadas e mesmo nos dias atuais, o mito de que no Brasil não existem
conflitos raciais ainda é disseminado quando se deseja discorrer sobre a
sociedade brasileira. O problema é que ele mascara e invisibiliza a
realidade de grupos brasileiros (negros e indígenas), contribuindo assim
para a perpetuação de violências, desigualdades e segregações.

VOCÊ QUER LER?


O livro “Um defeito de cor” (GONÇALVES, 2006), escrito por Ana Maria Gonçalves, é a história
de uma africana trazida à força para ser escravizada no Brasil, seus antepassados e os
eventos que vivencia no “novo mundo”. É uma obra prima que reflete o horror da escravidão
e do racismo na sociedade brasileira, mas também um documento histórico sobre
resistência, solidariedade e espiritualidade.

No Brasil, metade da população é negra ou não branca (SARAIVA, 2017),


mas estes estão sub-representados nos locais de prestígio e poder da
sociedade e hiper-representados nas profissões de menor valorização e
remuneração, como o trabalho doméstico, de portaria e segurança.
Ocupam os bairros menos valorizados, distantes do centro das cidades,
muitas vezes, com falta de saneamento básico e serviços. Assim como as
mulheres, a população negra ou não branca, sobretudo, mulheres negras,
ganham menos que os homens brancos ao realizarem o mesmo serviço.
CASO
No Brasil, existem aproximadamente 6 milhões de
trabalhadores domésticos. Destes, mais de 95% são mulheres, e
em torno de 70% mulheres negras. Apenas 30% destas
trabalhadoras possuem a carteira de trabalho registrada e
contribuem para a previdência social. Isso quer dizer que
durante décadas essas mulheres trabalharam sem a garantia de
um salário mínimo, uma jornada de trabalho estabelecida e a
garantia de aposentadoria. Somente em 2015, foi
regulamentada a “lei das domésticas”, LCP 150 (BRASIL, 2015),
que visa equiparar os direitos das trabalhadoras domésticas aos
demais trabalhadores. A lei abarca somente trabalhadoras
mensalistas, enquanto cresce o número de diaristas, que
trabalham várias vezes por semana. Algumas trabalhadoras
preferem o trabalho na forma de diaristas, pois podem
flexibilizar seus horários, porém com isso apenas recebem
quando estão trabalhando, além de que os danos para a saúde a
longo prazo podem ser bem maiores.

Atualmente, o Ministério do Trabalho busca fiscalizar e punir os


empregadores que não estão obedecendo a lei 150/15. Os
movimentos sociais continuam se organizando para
conseguirem mais direitos para as diaristas, que já representam
aproximadamente 30% do grupo.

Os indígenas são os povos originários de nossas terras e bastantes


heterogêneos, organizados em diferentes etnias, com língua e cultura
próprias. De acordo com o censo de 2010 (BRASIL, 2012) do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem aproximadamente
817.963 indígenas, falando 274 línguas distintas e divididos em torno de
305 povos.
É comum achar que eles fazem parte do passado, de uma cultura
selvagem e que vivem apenas na Floresta Amazônica. Essas ideias
etnocêntricas foram disseminadas durante a colonização justamente para
colaborar com a exploração e dizimação dos povos indígenas e,
atualmente, são usadas por empresários que visam o uso ilimitado das
terras para fins privados e comerciais.
Como o número do censo em relação à diversidade nos mostra, os índios
persistem e estão cada vez mais ocupando diferentes lugares na
sociedade sem perderem suas identidades.
As culturas indígenas são parte constitutiva da sociedade brasileira, seja
no vocabulário, nas práticas alimentares ou medicinais, e suas influências
estão presentes no cotidiano de qualquer cidadão, bem como a influência
das culturas africanas, europeias e, em menor medida, asiáticas.

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Figura 7 - Exemplo do sincretismo que forma a sociedade brasileira, mulher negra


performatiza uma dança com influências indígenas. Fonte: ostill, Shutterstock, 2018.

Como mecanismo para promover a igualdade de segmentos sociais


historicamente discriminados, políticas públicas diferenciadas
começaram a ser desenvolvidas, de ações afirmativas, com intuito de
implantar mecanismo de cotas para que os grupos minoritários possam
alcançar de maneira mais rápida igualdade de oportunidades nas
sociedades.
De acordo com a antropóloga Ana Paula Comin de Carvalho (2012),
citando o etnólogo Carlos Moore Wedderburn (2005), diferentemente da
ideia de que as políticas de ação afirmativa surgiram nos Estados Unidos,
na década de 1960, no contexto da luta pelos direitos civis de afro-
americanos, as ações afirmativas teriam sido originadas na Índia, já no
pós-PrimeiraGuerra Mundial, quando as castas inferiores começaram a
clamar por mais representatividade nas esferas de poder. Esse
movimento teria se intensificado após a Segunda Guerra Mundial, com as
lutas de independência dos países da África e Ásia, para então servirem
como forte instrumento em busca de igualdade pelas mulheres norte-
americanas e europeias, pelas populações negras diaspóricas
(populações oriundas da África que se estabeleceram em outros lugares
do globo), e também na América Latina.
Em especial no Brasil, as políticas de ação afirmativas, que visam resgatar
a equidade de segmentos sociais de maneira rápida e eficaz, passaram a
ter maior incidência a partir dos anos 2000, quando não apenas a
representação feminina foi estimulada na esfera governamental, mas
outras minorias organizaram-se na luta pela igualdade de direitos. Desse
modo, atualmente existem cotas para diferentes grupos nas esferas da
política, do trabalho e da educação. Porém, estão em risco quando
grupos conservadores põem em cheque sua importância, como acontece
em relação à política de cotas para negros e indígenas nas universidades
brasileiras.

Síntese
Concluímos a unidade introdutória aprendendo que o conceito de
cidadão nem sempre abarcou todos os indivíduos de uma determinada
sociedade, assim como a consolidação dos direitos humanos continua
sendo um desafio diário, sobretudo, para minorias sociais.
Neste capítulo, você teve a oportunidade de:
• aprender que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
se constitui como o documento de referência para a implementação
dos direitos humanos nas constituições dos mais diversos países;
• estudar os percursos históricos para o surgimento da cidadania e a
garantia dos direitos humanos no contexto brasileiro, chamando
atenção para os desafios que persistem na consolidação da
igualdade e justiça social em nosso país.

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