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APOSTILA DE FILOSOFIA JURÍDICA E ÉTICA

3° BIMESTRE - 2022
LIVRO: CRÍTICA À SUBJETIVIDADE JURÍDICA: REFLEXÕES A PARTIR DE
MICHEL VILLEY (Contracorrente, 2022)
Alysson Mascaro
(...) o pensamento jurídico do século XX conheceu um avassalador domínio juspositivista,
sempre próximo de orientações políticas capitalistas liberais. Para muitos, desde então até hoje,
nem haveria outras formas de pensar o direito. O enredo da filosofia do direito em vários países
se passa apenas no âmbito reduzido do embate entre variadas acepções de juspositivismos –
ecléticos, estritos ou ‘éticos’.

Juliana Magalhães
“Precisamos de uma perspectiva crítica sobre o Direito no sentido de percebermos o quanto ele
está atrelado ao próprio capitalismo. (...) O Direito está no coração de toda a lógica capitalista.
Entender o que é o Direito é algo fundamental”,

PRINCÍPIO BÁSICO DO CAPITALISMO


Noam Chomsky
Um princípio básico do capitalismo moderno é que o custo e o risco são socializados, enquanto o
lucro é privado.

TUDO VIRA MERCADORIA


Leonardo Boff
No capitalismo tudo vira mercadoria, coisa que dá dinheiro: desde as realidades mais sagradas
como a religião e a mística até os objetos mais comezinhos como arroz e feijão. Toda a atividade
humana e o que ela produz se medem em valor monetário. Os objetos viram sujeitos (fetichismo
da mercadoria) e os sujeitos objetos (reificação do homem). Quer dizer, atribuem-se aos objetos
produzidos características do sujeito, como vida, força, poder, e ao sujeito características do
objeto: seu trabalho vale caro, barato etc.

O capitalismo se caracteriza pela exacerbada exploração da força de trabalho, pela utilização dos
saberes produzidos pela tecnociência, pela pilhagem dos bens e serviços da natureza, pela
colonização e ocupação de todos os territórios acessíveis. Por fim, pela mercantilização de todas
as coisas. De uma economia de mercado passamos para uma sociedade de mercado.
Nela, as coisas inalienáveis se transformaram em mercadoria. Karl Marx em sua Miséria da
Filosofia de 1874 profetizou: “Tudo o que os homens consideravam inalienável, coisas trocadas
e dadas, mas jamais vendidas…. tudo se tornou venal como a virtude, o amor, a opinião, a
ciência e a consciência… tudo foi levado ao mercado e ganhou seu preço”. A isso ele denominou
o “tempo da corrupção geral e da venalidade universal” (ed. Vozes 2019, p. 54-55). É o que
estamos vivendo desde o fim da segunda guerra mundial.

DIREITO E CAPITALISMO
Sílvio de Almeida
... o que chamamos hoje de direito vai ganhar a forma atual apenas com o advento das
sociedades capitalistas contemporâneas. Antes do mundo contemporâneo, as relações sociais
eram pautadas pelos privilégios de origem feudal e, antes disso, pelo escravagismo.

A NATUREZA CAPITALISTA DO DIREITO E DO ESTADO


Alysson Mascaro
O direito é forma social capitalista. Sua materialidade se funda nas relações entre portadores de
mercadorias que se equivalem juridicamente na troca. A forma jurídica é constituinte da
sociabilidade capitalista. O mesmo quanto à forma política estatal, terceira necessária em face
dos agentes da exploração capitalista. O Estado, mesmo quando governado por agentes e classes
não-burguesas, é capitalista pela forma. Direito e Estado se arraigam nas relações sociais
capitalistas, estando atravessados pelas vicissitudes e contradições de tal sociabilidade da
mercadoria. Legalidade e política estão submetidas à dinâmica da acumulação, nacional e
internacional.
O direito moderno começa a operar segundo mecanismos de equivalência, portanto, de troca
mercantil.

POLÍTICA NO SENTIDO AMPLO 


Helder Câmara
Política não é só política partidária. Política é antes de tudo, preocupação com os grandes
problemas humanos e com os direitos fundamentais do homem.

A VERDADEIRA REVOLUÇÃO
Pedro Casaldáliga
A verdadeira revolução definitivamente transformadora da sociedade humana é tanto psicológica
como sócio-político-econômica. Devemos transformar simultaneamente —sublinhem o advérbio
para evitar escapismos dualistas— tanto as pessoas como as estruturas.

RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E POLÍTICA   


Antônio J. Severino
A ética adquire um dimensionamento político, uma vez que a ação do sujeito não pode mais ser
vista e avaliada fora da relação social coletiva. Para julgar se uma determinada ação é boa ou má,
não se pode mais deixar de avaliar se ela é justa ou não, ou seja, se ela contribui ou não para
diminuir o coeficiente de poder dos homens entre si. É que nenhuma ação é mais puramente
individual, todo agir é solidário no tecido histórico-social. Só é boa a ação que efetivamente
contribuir para o aumento da igualdade entre os homens.

Portanto, para que uma ação seja eticamente boa, é preciso que ela seja também politicamente
boa, ou seja, que ela contribua para o aumento da justiça, entendida esta como a condição de
distribuição equitativa dos bens materiais, culturais e ‘espirituais’ (âmbito da dignidade humana).
A gravidade de uma ação praticada contra as pessoas é diretamente proporcional às
consequências que lhes acarreta na sua situação no contexto social, prejudicando-as no exercício
de sua cidadania, degradando seu ser quer na esfera do trabalho, quer na esfera da convivência
social, quer ainda na esfera de sua identidade subjetiva.

CONCEPÇÃO DIALÉTICA:
poder – condição humana – Homem= ser histórico-social – ser político
– saber emancipatório – ética da responsabilidade social – direito como
poder e direito como relação social

- Heráclito: tudo flui X Parmênides: o ser é imóvel

- Hegel: dialética idealista X Marx: dialética materialista histórica – Tese x Antítese = Síntese >
Tese x Antítese ....

- Todas as relações humanas são relações de poder: micro relações (Foucault) – macro relações
(Marx) / Massa e Poder (Elias Canetti)

- Condição humana: ser do aqui (espaço social) e agora (momento histórico) (existencialismo)

- Ser político no sentido restrito e no sentido amplo (antropológico); ex.: movimento feminista

- Saber emancipatório: engajando na transformação das condições de maior liberdade, justiça,


igualdade; ampliação e aprofundamento da democracia / Socialismo como Democracia Radical –
Rosa Luxemburgo

- Ética e política são indissociáveis

- Direito como poder (C. Schmitt); Direito como relação social no capitalismo (E. Pachukanis)

- Forma jurídica corresponde a uma forma social

 CONDIÇÃO HUMANA:
- Prática produtiva: relação com a natureza, trabalho e tecnologia; dimensão econômica e
universo do fazer;

 - Prática social: relação com os outros; sociedade: estrutura funcional e hierárquica, Estado:
bem comum, constituição; dimensão política e universo do poder;

 - Prática simbolizadora: relação consigo mesmo, linguagem e educação; níveis: representação


e valoração; dimensão cultura e universo do saber

 -Homem como um ser de relações

MARX E A DIALÉTICA
Leonardo Boff
Para o capitalismo, o que efetivamente conta é a produção e o consumo na forma da apropriação
privada. A posição que cada um ocupa no processo produtivo define a classe social. Como há
várias posições, há também várias classes. E cada classe representa também um conjunto de
interesses, próprios de cada classe, e elabora do seu jeito a subjetividade coletiva dos
pertencentes àquela classe. Como os interesses entre as classes são conflitantes, surge, como
dissemos, a luta de classe. Por isso, as sociedades capitalistas são intrinsecamente conflitivas e
tensas. Cada classe projeta também um modo de conhecer, de sentir, de alegrar-se e de
relacionar-se na família, na comunidade e na sociedade, pois a cabeça pensa a partir de onde
pisam os pés, e o coração sente a partir do tipo de sensibilidade que desenvolveu socialmente.
Marx não foi apenas um analista do capitalismo e um arquiteto do socialismo. Ele alimentou
também uma perspectiva filosofante; queria sempre saber como se constrói a sociedade humana.
Projetou uma representação dela das mais consistentes na história do pensamento; todos os
cientistas sérios (também os teólogos) são desafiados a dialogar com Marx; o estômago analítico
não conseguiu digeri-lo completamente até os dias de hoje, porque ele viu dimensões
fundamentais da construção social da realidade, de uma forma processual e flexível (dialética).
Assim Marx percebeu que em cada sociedade entram em ação, de forma sempre articulada, três
forças fundamentais (cada força exige, pressupõe e envolve a outra: é o que significa a dialética):
- A econômica (prática produtiva): responsável pela produção e reprodução da vida material;
- A política (prática social): as formas como distribuímos o poder e organizamos as relações
sociais, especialmente com referência ao acesso aos bens necessários à vida humana;
- A cultural (prática simbolizadora): as maneiras de significar o mundo através de símbolos,
ideias, religiões, místicas e valores.
Na forma de relacionar estas três forças, devemos, segundo Marx, partir sempre da econômica.
Ela é como um fundamento que sustenta todas as demais partes. Por isso ela condiciona, em
última instância, a política e as significações ou ideologias que circulam na sociedade.
BOFF, L. Ecologia, Mundialização e Espiritualidade. São Paulo: Ática,1993

CONCEPÇÃO ANTROPOLÓGICA DE MARX


Antônio Joaquim Severino

É certamente na obra de Karl Marx (1818-1883) que o caráter determinante da essência humana
pelo social é mais assumido teoricamente e justificado, questionando, de vez, qualquer referência
metafísica de caráter essencialista. Herdeiro da tradição dialética hegeliana, Marx e Engels
(1997) vê o homem se constituindo historicamente mediante seu agir prático coletivo. Em que
pese seu idealismo metafísico exacerbado e romântico, Hegel já havia integrado em sua síntese
filosófica a participação do processo histórico real da sociedade humana e de sua manifestação
política sob a forma do Estado, como figuras substanciais da realização do Espírito Absoluto.
Escoimando o hegelianismo dessas dimensões metafísicas, que entende ser puras ilusões
ideológicas, Marx incorpora a dialeticidade do processo histórico real que se realiza na história
da sociedade humana. Muito sensível, por outro lado, à dura realidade histórica e social de sua
época, quando o modo de produção capitalista já se encontra em pleno vigor, Marx adentra-se,
sob a perspectiva da ciência histórica, no estudo da economia política, solo da efetiva realização
dos seres humanos. Analisando as condições reais em que se dá a produção concreta da
existência humana sob os ditames da economia capitalista, Marx explicita a tragédia da
existência histórica do homem como despossuído de sua essência pela alienação do trabalho
imposta pelas 'leis' da produção material. E para chegar à realização de si mesmo como homem
inteiramente emancipado e totalmente humano, a partir de sua condição de ser natural, de ser
sensível num mundo sensível, os homens que se alienam em sua história coletiva só podem
engendrar-se como homens por meio de seu trabalho humano. O trabalho, dinâmica responsável
pela efetiva condição do modo de ser humano, só é realizável no contexto histórico-social. Se, de
um lado, ele é o lugar da alienação, da perda da essência, ele é também o único espaço para a
realização do humano. Os homens são seres ativos, práticos, produtores de objetos sensíveis, não
em sua condição de gênero universal, mas em sua existência histórica e social, em sua realidade,
constituída pelo conjunto de suas relações sociais. O trabalho, como força engendradora do
indivíduo humano e meio de produção e reprodução da existência, pressupõe a presença efetiva
dessa rede de relações sociais com um mínimo de equidade e liberdade, o que exige a
permanente luta política revolucionária contra todas as formas históricas de opressão, numa
sociedade burguesa e capitalista, hierarquizada e cristalizada em classes sociais, com interesses
objetivos conflitantes. Para Marx, o homem se define em sua humanidade pela relação com a
natureza e com a sociedade. Ele não é um indivíduo solitário nem um elemento avulso da
humanidade em geral, mas um ser histórico e social, cujo perfil concreto é definido pelas leis
provisórias de um determinado modo de produção. Marx pensa a reificação e a alienação como
consequências de modos históricos de produção e não como determinações essenciais do homem
em geral, pois aceitar isso seria recair na reificação e na alienação. A concreta realidade humana
não é resultante nem da realização da Ideia ou do Espírito Absoluto (Hegel) nem da consciência
racional dos homens, de suas vontades puras e reflexões abstratas (Metafísica clássica e
Idealismo moderno), mas do real movimento histórico das forças produtivas, desencadeado e
sustentado pelos homens a partir das contradições permanentes que devora suas entranhas.

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022006000300013

MARX, CAPITALISMO E SOCIALISMO


Leonardo Boff
Marx nunca entendeu o socialismo como uma pura e simples oposição ao capitalismo, mas como
a realização dos ideais proclamados pela revolução burguesa: a liberdade e a dignidade do
cidadão, o seu direito ao livre desenvolvimento e à participação na construção da vida coletiva e
democrática. A preocupação de Marx era esta: por que a sociedade burguesa não consegue
realizar para todos os ideais que ela proclama? Ela produz o contrário do que quer. O trabalhador
deveria ser sujeito do trabalho; ele se transforma em objeto, porque sua força de trabalho vira
mercadoria; é um objeto que é oferecido no mercado e é pago em salários. A economia política
deveria satisfazer às necessidades humanas (comer, vestir, morar, comunicar-se etc.) mas na
realidade ela atende às necessidades do mercado, em grande parte artificialmente induzidas. No
capitalismo tudo vira mercadoria, coisa que dá dinheiro: desde as realidades mais sagradas como
a religião e a mística até os objetos mais comezinhos como arroz e feijão. Toda a atividade
humana e o que ela produz se medem em valor monetário. Os objetos viram sujeitos (fetichismo
da mercadoria) e os sujeitos objetos (reificação do homem). Quer dizer, atribuem-se aos objetos
produzidos características do sujeito, como vida, força, poder, e ao sujeito características do
objeto: seu trabalho vale caro, barato etc.
Para Marx a não consecução dos ideais da revolução burguesa não se deveu à má vontade dos
indivíduos ou dos grupos sociais; é consequência inevitável do modo de produção capitalista.
Este modo de produção se baseia, em primeiro lugar, na apropriação privada dos meios de
produção (capital como terras, fábricas, tecnologias) com os reflexos que daí se derivam para a
organização da política, do direito, da educação e das ideias na sociedade; e, em segundo lugar,
na subordinação do trabalho aos interesses do capital. Esta situação esfacela a sociedade em
classes sociais. Elas têm interesses antagônicos. Quanto mais altos forem os salários dos
operários, menor será o lucro do patrão e vice-versa; aqui se revela o antagonismo dos interesses,
o que origina a luta de classes.
As pessoas na ordem capitalista tendem fatalmente, quer queiram quer não, a se tornar
desumanas e estruturalmente “más” umas para com as outras, pois cada qual deve cuidar de seus
interesses.
Qual é a saída excogitada por Marx? Vamos trocar o modo de produção! Em vez da propriedade
privada, vamos introduzir a propriedade social. Mas cuidado! observa Marx — a troca de modo
de produção não é ainda a solução do problema. A socialização não garante a nova sociedade;
ela cria as condições para ela. A propriedade social é apenas meio para a modificação das
relações humanas e oferece tão-somente as chances de desenvolvimento dos indivíduos. Através
das novas relações e do desenvolvimento, os indivíduos não seriam mais meios e objetos, mas
fins e sujeitos, irmãos e irmãs solidários que se complementam mutuamente na construção da
sociedade verdadeiramente humana.
Os cidadãos, mesmo dadas as precondições, têm que querer a nova sociedade e viver
efetivamente as novas relações. Caso contrário, a revolução não se fará. Para isso não basta
considerar apenas o funcionamento das estruturas, mas principalmente os sujeitos humanos
coletivos e também pessoais. Cabe recordar a famosa frase de Marx: “A história não faz nada...
ela não tinha nenhuma peleja. E muito mais o ser humano, o ser humano concreto e vivo que
tudo faz, possui e luta; não é simplesmente a ‘história’, como se fora uma pessoa à parte, que usa
os seres humanos como meios para alcançar os seus objetivos. A história não é outra coisa que a
atividade dos seres humanos buscando seus próprios objetivos” (Marx/Engels, Werke, v. 18, p.
98).
Isso é o socialismo para Marx e Engels, como etapa última, antes do advento da grande utopia do
comunismo, no qual cada cidadão colabora consoante suas capacidades e recebe conforme as
suas necessidades. Mas isso é o grande sonho político da humanidade, cuja possível realização
histórica não cabe aqui discutir.
Para Marx, os primeiros interessados nesta transformação seriam as vítimas do sistema
capitalista, os assalariados. Eles, portanto, seriam os portadores naturais, junto com outros
aliados, desta bandeira do socialismo. Por que não foi triunfante? Sem querer discutir os vários
obstáculos, podemos aduzir um poderoso: a criação do partido único, obra de Lenin. O partido
único entende-se a si mesmo como “o guia e educador das massas”; organizou sozinho toda a
sociedade e o Estado, cortou a participação popular autônoma, substituída por um corpo
considerável de quadros, impediu a democracia social, introduziu uma imensa máquina de
controle, gerou um Estado burocrático e beneficente mas nada participativo. Honecker, o
governante da outrora República Democrática Alemã (DDR), cunhou a expressão ‘‘socialismo
real” (der real existterender Sozialismus).
Retomando o tema: quão socialista era semelhante sociedade que a si mesma se chamava de
socialista? Muito pouco pelos critérios dos fundadores dos ideais socialistas. Estes sonhavam
com um socialismo democrático a partir das maiorias populares, que incorporasse todos os
valores da revolução burguesa, criasse novos e os universalizasse. Isso não ocorreu.
Não devemos perder estes grandes ideais cristalizados na ideia do socialismo. Eles pertencem
aos sonhos mais ancestrais da humanidade. Não será a crise de um tipo do socialismo (o
autoritário e estatal) que engolirá as esperanças por uma sociabilidade mais humana. O
capitalismo não triunfou. Triunfou, sim, a vontade de participar e de conviver democraticamente.
Ninguém será tão inimigo de sua própria humanidade a ponto de aceitar como veredito final da
história a condenação de sermos lobos e não amigos uns dos outros.
Hoje, depurados de seus vícios, fora do poder hegemônico, os ideais socialistas não foram ao
exílio. Eles encontrarão seu lugar lá onde é o seu hábitat natural, nas nações pobres e oprimidas
do Terceiro e do Quarto mundos.
Dever-se-á aprender a lição da história. A sociedade que se quer construir deverá ser adequada à
multifacetada natureza do ser humano. Esse possui uma dimensão pessoal, familiar, comunitária
social, transcendente. O regime de propriedade deverá corresponder a estas dimensões. Não só
propriedade privada, nem só social, mas os vários tipos e combinações que melhor atendam às
demandas humanas. Dada a relevância do social hoje, certamente a propriedade social terá a
hegemonia, mas conviverá com outras formas, com as correspondentes incidências nas várias
instâncias da sociedade, como a política, a cultural etc.
BOFF, L. Ecologia, Mundialização e Espiritualidade. São Paulo: Ática,1993

RACISMO E DIREITO
Sílvio Almeida

O DIREITO COMO NORMA


(HANS KELSEN – TEORIA PURA DO DIREITO)
Essa é a mais comum entre todas as concepções. O direito é, ainda que no plano científico,
definido como o conjunto das normas jurídicas, ou seja, com as regras obrigatórias que são
postas e garantidas pelo Estado. As inúmeras leis, códigos, decretos e resoluções, ou seja, as
normas estatais, seriam a expressão do que chamamos de direito.
Essa concepção do direito como norma se denomina de juspositivismo, e os seus críticos
afirmam que essa visão impossibilita uma real compreensão do direito, uma vez que é um
fenômeno complexo, que envolve aspectos éticos, políticos e econômicos que nem sempre estão
contemplados nas normas jurídicas.
Se notarmos, as críticas ao juspositivismo são bastante parecidas com aquelas feitas às
concepções individualistas do racismo. E não é uma coincidência: vimos que a perspectiva
individualista trata o racismo como um problema jurídico, de violação de normas, as quais, por
sua vez, são tidas como parâmetros para a ordenação racional da sociedade. Tanto o racismo
quanto o próprio direito são retirados do contexto histórico e reduzidos a um problema
psicológico ou de aperfeiçoamento racional da ordem jurídica de modo a eliminar as
irracionalidades – como o racismo, a parcialidade e as falhas de mercado.
O DIREITO COMO PODER
(CARL SCHMITT – TEOLOGIA POLÍTICA)
Há ainda os que identificam o direito com o poder. De acordo com essa concepção, ainda que o
direito contenha normas jurídicas, elas são apenas uma parte do fenômeno jurídico, porque a
essência do que chamamos de direito é o poder. Sem o poder, as normas jurídicas não passariam
de abstrações sem realidade, diriam alguns autores. O poder não é um elemento externo, mas o
elemento preponderante, que concede realidade ao direito.
A concepção do direito enquanto manifestação do poder admite que a criação e a aplicação das
normas não seriam possíveis sem uma decisão, sem um ato de poder antecedente. Por exemplo: é
o poder que criaria e revogaria as normas jurídicas, e somente ele permitiria que, dentre as várias
interpretações possíveis de uma norma, o juiz escolhesse apenas uma.
Essa concepção do direito alarga as possibilidades de compreensão do fenômeno jurídico, para
além do legalismo e do normativismo juspositivista. O direito, portanto, apresenta-se como
aquilo que Michel Foucault denominou como “mecanismo de sujeição e dominação”, cuja
existência pode ser vista em relações concretas de poder que são inseparáveis do racismo, como
nos revelam cotidianamente as abordagens policiais, as audiências de custódia e as vidas nas
prisões.
As concepções institucionalistas parecem compatíveis com o direito visto como manifestação do
poder. Se o direito é produzido pelas instituições, as quais são resultantes das lutas pelo poder na
sociedade, as leis são uma extensão do poder político do grupo que detém o poder institucional.
O direito, nesse caso, é meio e não fim; o direito é uma tecnologia de controle social utilizada
para a consecução de objetivos políticos e para a correção do funcionamento institucional, como
o combate ao racismo por meio de ações afirmativas, por exemplo.
Mas, da mesma forma que podemos analisar a relação entre direito e poder na direção do
antirracismo, a história nos mostra que, na maioria dos casos, a simbiose entre direito e poder
teve o racismo como seu elemento de ligação. A ascensão ao poder de grupos políticos racistas
colocou o direito à serviço de projetos de discriminação sistemática, segregação racial e até de
extermínio, como nos notórios exemplos dos regimes colonial, nazista e sul-africano.
Contemporaneamente, a chegada ao poder de grupos de extrema direita em alguns países da
Europa e nos Estados Unidos tem demonstrado como a legalidade coloca-se como extensão do
poder, inclusive do poder racista, na forma de leis anti-imigração direcionadas a pessoas
oriundas de países de maioria não branca, ou da imposição de severas restrições econômicas às
minorias. A conclusão é que o racismo é uma relação estruturada pela legalidade.
A crítica feita a essa concepção é que ela não dá especificidade ao direito. Ou seja, identificar o
direito ao poder sem as devidas mediações estruturais não nos permitiria diferenciar o direito de
outras manifestações de poder, como a política, por exemplo.
O DIREITO COMO RELAÇÃO SOCIAL
(EVIGUIÊNI PACHUKANIS – TEORIA GERAL DO DIREITO E MARXISMO)
Nessa concepção, o direito não é avistado apenas nos textos legais ou especificamente nas
relações de poder, mas de forma bem mais abrangente, nas relações sociais como um todo.
Porém, a sociedade é composta de muitas relações, e obviamente nem todas são jurídicas. O
desafio, portanto, é saber quais dessas várias relações sociais podem ser chamadas de jurídicas.
Questão inicial: o que define uma relação como jurídica? Talvez o seu objeto ou tema. Mas
novamente estaríamos diante de uma indefinição, pois o direito trata dos mais variados assuntos:
política, religião, futebol, artes, família, saúde, raça etc. Mas esses mesmos assuntos também
podem ser objeto da medicina, teologia, estética, ética etc.
Como ensina Alysson Leandro Mascaro, o que define o direito não é sua quantidade, mas, sim,
sua qualidade. Em outras palavras: não são os conteúdos ou objetos de uma relação que
determinam se ela é jurídica ou não, mas, sim, a forma da relação. Por exemplo, o casamento é
um tema caro às religiões, mas no direito o casamento assume a forma de um negócio jurídico,
de um verdadeiro contrato.
Para que isso fique mais claro, façamos uma pequena, mas essencial, excursão pela história a fim
de compreendermos o funcionamento de uma sociedade e como se desenvolvem as relações e
seu contexto histórico. Assim, o que chamamos hoje de direito vai ganhar a forma atual apenas
com o advento das sociedades capitalistas contemporâneas. Antes do mundo contemporâneo, as
relações sociais eram pautadas pelos privilégios de origem feudal e, antes disso, pelo
escravagismo.
Em sociedades escravagistas ou feudais, o direito é facilmente suplantado pelo poder em estado
bruto, pela violência pura e simples. Não é necessária uma norma jurídica que diga quem tem
direitos. O senhor de escravos ou o senhor feudal simplesmente impõe a sua vontade pela força,
porque o direito e sua aplicação estão diretamente relacionados aos seus poderes pessoais.
A partir da idade moderna, os ventos do liberalismo começam a desvincular o direito do poder
pessoal dos nobres, o que atinge o ápice na idade contemporânea. Com o desenvolvimento do
capitalismo – baseado na troca mercantil –, o uso da força e da violência na reprodução
econômica da sociedade é substituído pelo trabalho assalariado, cujo fundamento é o contrato.
O contrato, e não mais a servidão ou supostas hierarquias naturais que estabelecem o vínculo
entre as pessoas, pressupõe que as partes que o firmaram são, pelo menos do ponto de vista
formal, livres e iguais. A liberdade e a igualdade são formais porque não se materializam
necessariamente no cotidiano dos indivíduos. Por exemplo, embora juridicamente livres, a
maioria das pessoas não pode escolher se quer trabalhar ou não. O direito, portanto, se
materializa em uma relação entre sujeitos de direito, ou seja, entre indivíduos formalmente livres
e iguais, cuja finalidade básica é a troca.
No mundo contemporâneo, a garantia da liberdade e da igualdade dos indivíduos – valores
fundamentais no capitalismo – não mais poderia ser dada por um poder pessoal, advindo de um
rei, por exemplo. Seria uma contradição que um poder pessoal convivesse com um discurso de
que todos são livres e iguais, além de serem sujeitos de direito. Por esse motivo, o poder político
na contemporaneidade deixa de ser pessoal e passa a ser exercido por um ente impessoal,
supostamente neutro e afastado da sociedade: o Estado. E é o Estado que irá impor a ordem
social por meio das normas jurídicas.
As relações que se formam a partir da estrutura social e econômica das sociedades
contemporâneas é que determinam a formação das normas jurídicas. O direito, segundo essa
concepção, não é o conjunto de normas, mas a relação entre sujeitos de direito.
E será através disto que o direito como relação social apontará para a dimensão estrutural do
racismo, que não pode ser dissociado do direito, embora nem todas as manifestações racistas
sejam jurídicas. É certo que atos de discriminação racial direta – e, às vezes, até indireta – são,
na maioria das sociedades contemporâneas, considerados ilegais e passíveis de sanção
normativa. Entretanto, principalmente a partir de uma visão estrutural do racismo, o direito não é
apenas incapaz de extinguir o racismo, como também é por meio da legalidade que se formam os
sujeitos racializados.
A Lei que criminaliza os corpos pretos e empobrecidos condiciona um enquadramento marcado
pela construção dos comportamentos suspeitos. E se a Lei é o Estado, o suspeito “padrão” é
também um suspeito para o Estado.
Apresentada uma síntese das definições de direito e suas relações com a análise estrutural do
racismo, podemos reduzir a duas as visões correntes sobre a relação entre direito e racismo:
1. o direito é a forma mais eficiente de combate ao racismo, seja punindo criminal e
civilmente os racistas, seja estruturando políticas públicas de promoção da igualdade;
2. o direito, ainda que possa introduzir mudanças superficiais na condição de grupos
minoritários, faz parte da mesma estrutura social que reproduz o racismo enquanto prática
política e como ideologia.

BIBLIOGRAFIA:
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen,
2019.

IDEOLOGIA JURÍDICA E IDEOLOGIA DOS JURISTAS


Alysson Mascaro

Nas injunções das classes e frações do capital latino-americano contemporâneo, o direito tem
servido como seu instrumento privilegiado. A ideologia jurídica conduz golpes que não aceitam
ser narrados como tais e, ao mesmo tempo, a mesma ideologia jurídica tem sido a bandeira
requerida por governos e movimentos sociais progressistas latino-americanos. Até mesmo
aqueles depostos por golpe, como o caso do PT no Brasil, conclamam pelo respeito às leis e às
instituições…
A ideologia jurídica tem tal primazia porque é constituinte da própria ideologia capitalista. Ser
sujeito de direito, cidadão, contratar livremente entre iguais formalmente, respeitar as
instituições, cumprir as normas e jungir-se à legalidade, tudo isso é o campo de condições pelo
qual a subjetividade se estrutura na sociabilidade do capital. Por isso, da direita à esquerda, as
posições políticas disputam a legalidade, mas não rompem com tal horizonte ideológico. No
entanto, como a forma jurídica é espelho da forma mercadoria, a ideologia jurídica só se presta à
reprodução do capital, não para sua superação.

Os juristas são constituídos pela mesma ideologia jurídica geral, mas portam discursos e
formulações que modulam e exacerbam a relevância da juridicidade. Profissionais do direito
pertencem à classe média, distinguindo-se então da população apenas no campo econômico, sem
maior lastro intelectual que não seja aquele da técnica da dogmática jurídica. O ambiente de
convivência dos juristas e dos agentes dos poderes judiciários é a classe média que partilha dos
espaços do capital. Por isso, o interesse imediato da burguesia passa a ser o horizonte prático da
ideologia dos juristas. No caso da América Latina, o recente alinhamento do capital gera também
uma classe de juristas e de agentes dos poderes judiciários que capitaneia uma injunção jurídica
regressista.

Com a recente integração tecnológica e de comportamento das classes médias mundiais, os


juristas latino-americanos são formados em horizontes de pensamento norte-americanos e
capitalistas. A common law, a segurança do capital e dos contratos e um moralismo legalista são
louvados mundialmente. Nesse ambiente, eventuais projetos nacionais contrastantes com a
movimentação do capital mundial encontram, nos juristas latino-americanos, oponentes ativos.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/25/alysson-mascaro-todo-direito-e-um-
golpe/

FORMA JURÍDICA E FORMA MERCANTIL: ENTENDA O CONCEITO


Alysson Mascaro

Evguiéni Pachukanis, um importante pensador do direito do século XX, a partir dos estudos de
Karl Marx, estabeleceu uma identidade entre a forma jurídica e a forma mercantil. Com tal
afirmação, queria ele dizer que toda vez que se estabelece uma economia de circulação mercantil
na qual tanto os bens quanto as pessoas são trocáveis, um conjunto de formas sociais se
estabelece e uma série de ferramentas jurídicas precisa ser construída em reflexo e apoio a
essa economia mercantil.

Para que alguém compre e alguém venda, é preciso que exista, juridicamente, a liberdade
de contratar. É preciso que os contratantes sejam sujeitos de direito. É preciso que os sujeitos de
direito tenham direitos e deveres. É preciso que um terceiro, o Estado, execute os contratos não
cumpridos e garanta a propriedade privada das partes.

No pré-capitalismo, esse conjunto de formas sociais não existia. O escravagismo e o feudalismo


se organizam a partir da própria relação pessoal constituída, pela força ou pela posse da terra,
entre explorador e explorado. No capitalismo, dado o regime impessoal que determina a
produção e a circulação das mercadorias, formas sociais contíguas à forma-mercadoria e uma
determinada tecnicidade se impuseram como seus reflexos necessários. Essas formas e técnicas
jurídicas específicas se alastram universalmente conforme se desenvolvem as relações
capitalistas. Não se trata mais do vínculo de exploração limitado e ensejado por um senhor a seus
escravos ou servos. Agora, o capital, indistintamente, explora o trabalho de quem quer que
seja.

Também no comércio, o lucro se dá mediante a venda a qualquer um que queira comprar. As


trocas mercantis passam a ser universais e, portanto, uma forma e uma técnica que lhes dão
sustento se esparramam universalmente também. Essas formas e suas correspondentes técnicas
são o direito em seu núcleo mais profundo e específico.

O capitalista explora o trabalhador valendo-se do artifício de que este, formalmente, trabalha


para aquele porque quis, isto é, porque assinou um contrato de trabalho. Ou seja, o vínculo da
exploração advém de um instrumento jurídico. O trabalho só passa a ser vendido pelo
trabalhador por absoluta necessidade, na medida em que ele é afastado dos meios de produção,
mas, formalmente, isso se compreende mediante o artifício jurídico do uso de sua própria
vontade.

Nascendo as atividades mercantis capitalistas, nascem em conjunto as instituições jurídicas que


lhes dão amparo. As concretas relações de produção capitalistas geram uma instância de
práticas jurídicas, controles e repressões. Embora o jurista argumente que seus institutos surgem
de um impulso ético ou moral, na verdade o direito advém de concretas relações sociais. Alguns
dizem que o instituto jurídico do sujeito de direito nasceu dos imperativos morais e religiosos da
dignidade humana. Falso. Muito mais determinante que a eventual dignidade do trabalhador é a
sua condição de nada possuir e, portanto, ter de se vender autonomamente à exploração
capitalista. É daí que surgiu a noção de sujeito de direito: todos são sujeitos livres para se
venderem ao mercado.
Mais do que uma simples tecnicalidade, o conceito de sujeito de direito é uma forma necessária
ao tipo de relação social capitalista que foi se forjando com a contínua reprodução da troca de
equivalentes. O direito subjetivo, a autonomia da vontade e tantos outros conceitos técnicos do
direito moderno surgem como formas reflexas imediatas dessas relações fundamentais do
capitalismo.

Quando se estabelece, por meio do direito moderno, que todos são livres e iguais formalmente,
isto se dá como única forma possível para que todos possam ser, indistintamente, capitalistas ou
trabalhadores explorados. Todos podem a princípio comprar e vender, e, portanto, o lucro se
torna possível. Mais garantias ou menos garantias ao trabalhador não abolem o fato de que ele é
um sujeito de direito tomado no sentido frio e formal da palavra: é mais alguém que pode
explorar ou ser explorado na grande engrenagem da movimentação do capital.

É por isso que se pode dizer que o direito moderno seja capitalista. Não só porque suas
normas protejam o capital de maneira explícita ou total, porque até mesmo é possível que haja
algumas normas contra o capital. Não porque o trabalhador nunca ganhe alguns benefícios. É até
possível que haja umas tantas garantias ao trabalhador nas leis. O direito moderno é capitalista
porque a forma do direito se equivale à forma capitalista mercantil.

Não é apenas o conteúdo das normas jurídicas que garante o capitalismo. É a própria forma
jurídica que o faz. Desde o momento em que os indivíduos são tratados como átomos e que o
Estado garante a propriedade de alguns contra todo o resto, a transação que garante o lucro e a
mais valia está respaldada em determinadas formas como a do sujeito de direito. Ferramentas
normativas estatais indistintas, usadas em todas as relações jurídicas, possibilitam exatamente
que se constituam todas as relações econômicas capitalistas. A forma jurídica é uma forma de
sujeitos de direito atomizados que se submetem ao poder estatal e transacionam conforme
mercadorias. A estrutura do capitalismo mercantil enseja as formas do direito, que então passam
a possibilitar as próprias relações do capital. As normas e as atitudes específicas dos juristas,
muitas delas podem até mesmo se dirigir contra o capitalismo. A forma do direito não.

Para as atividades mercantis, a estrutura jurídica lhe é um dado necessário e imediatamente


correlato. Tal estrutura jurídica – técnica, normativa, fria e impessoal, apoiada em categorias
como o sujeito de direito, o direito subjetivo e o dever –, que vem a ser o fenômeno jurídico tal
como o conhecemos modernamente, nasceu apenas com o capitalismo, como sua forma correlata
necessária. No passado, o direito não era uma estrutura técnica específica. No mesmo
conglomerado de relações estavam o direito, o poder bruto ou ocasional e a religião, por
exemplo.

Por isso, no mundo pré-capitalista o jurista era uma espécie de artesão do direito. Não havia
uma técnica jurídica impessoal e universalizada que correspondesse a uma atividade mercantil
também impessoal e universalizada. Se no passado, então, não se fazia diferença entre arte
jurídica e técnica jurídica, no mundo capitalista tal indistinção cai por terra. O direito não é mais
o artesanato de uma avaliação da justeza nas coisas e nas situações e nas atitudes das pessoas.

Agora o direito é um elemento mecânico, estrutural, técnico, que por sua vez reflete a própria
mecanicidade das relações capitalistas. Daí que por jurídicos não se chamarão diretamente mais
os fatos, as coisas e as situações concretas, e sim as normas e os procedimentos que, imparciais e
mecânicos, servem de sustentáculo à circulação mercantil e à exploração capitalista do trabalho.
Tais técnicas, pelas quais imediatamente o jurista costuma identificar o direito, são constituídas
pelas formas sociais.

Por isso é que se pode dizer que o fenômeno jurídico, no capitalismo, deu um salto qualitativo.
O direito é requalificado. Não mais trata das coisas, dos fatos, das situações, das pessoas e de sua
justeza, e sim trata de formas sociais, entremeadas no mais das vezes por normas. Mas como é
verdade que essas normas tratam, na sua imediatez, das coisas, dos fatos, situações e pessoas,
para alguém que veja com olhar desatento parecerá que tudo continuou o mesmo. Não, porque o
jurista não mais chegará às coisas por elas mesmas ou pela sua arte de jurista, ou pela justiça ou
injustiça que ele julgue intrínsecas à natureza das coisas. Ele somente chegará às coisas por meio
das normas técnicas do Estado, intermediadas por uma série de ferramentas e instrumentais do
direito, que giram em torno de formas jurídicas, como os conceitos de sujeito de direito e direito
subjetivo.

As relações capitalistas de troca tornam todas as coisas e todos os homens mercadorias, produtos
aptos a se transacionarem no mercado. Para estruturar de modo necessário essas relações
mercantis, surgem as instituições jurídicas modernas. É o conjunto de instâncias e dispositivos
estatais que correspondem imediatamente às relações mercantis capitalistas que identifica
especificamente o direito nos tempos modernos. Só por meio dessa especificidade se consegue
entender a diferença entre o direito, a religião, a filosofia ou a medicina, por exemplo. Esses
quatro campos poderiam regular e tratar de um mesmo assunto, como a dignidade humana, por
exemplo.
Quando se abre a Constituição Federal do Brasil, verifica-se que a dignidade humana é um
princípio jurídico. Mas há religiões que também consideram a dignidade humana um dos seus
princípios, e algumas até mesmo reputam essa dignidade ao fato de que o homem é criado à
imagem e semelhança de Deus. Quando um pensador da filosofia pura escreve uma obra sobre a
dignidade humana, dá-lhe tratos e fundamentos teóricos. Quando um médico ministra certo
remédio para minorar a dor do paciente, assim o faz buscando preservar a dignidade humana do
doente.

O mesmo tema, a dignidade humana, fala a vários fenômenos e setores da atividade social. Mas
o direito chega à dignidade humana por meio de certas vias, de tal sorte que o afazer do jurista
busca logo de início descobrir, em algum caso concreto no qual se trate de desrespeito à
dignidade humana, os direitos subjetivos, os deveres, as normas e os sujeitos de direito que se lhe
correlacionem. O direito do passado não.
Se chegasse à dignidade humana, ainda que fosse para livrar um homem das mãos de um
carrasco, assim não o faria baseado num “direito subjetivo” da vítima. Antes, utilizar-se-ia de
armas bastante parecidas com as da religião, ou então a partir de um mero arbítrio. Só a
modernidade capitalista deu ao direito sua própria forma, suas armas específicas, como a noção
de sujeito de direito. E a razão dessa forma específica é a forma mercantil que lhe corresponde e
dá origem. Por isso, se alguém desrespeita a dignidade humana de alguém, o jurista pensa em
uma pena equivalente ao desrespeito para ser aplicada ao primeiro e em uma compensação
pecuniária em prol do segundo.

O direito moderno começa a operar segundo mecanismos de equivalência, portanto, de


troca mercantil.
Fonte: http://genjuridico.com.br/2020/10/15/forma-juridica-forma-mercantil-conceito/

VÍDEOS:
Vídeo 1: "NÃO HÁ DIREITO SEM CAPITALISMO!"
Silvio Almeida fala sobre Pachukanis
O filósofo do direito e presidente do Instituto Luiz Gama, Silvio Luiz de Almeida explica, com
base na da obra "Teoria geral do direito e marxismo", de Evguiéni Pachukanis, por que o direito
propriamente dito é um fenômeno especificamente capitalista.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=l5UlZJ5FxRE&t=97s
Vídeo 2: CURSO DE INTRODUÇÃO À OBRA DE PACHUKANIS
Com o filósofo e jurista Alysson Leandro Mascaro - Aula 1: Marxismo
Link: https://www.youtube.com/watch?v=vv_Mr4xJNEw&list=PLHiE8QPap5vT-
4gGfjaxSzkZNcyxxQJpJ&index=1

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