Você está na página 1de 141

Conversa com notas de rodapé

Questões para a filosofia africana

1
2
Marcos Carvalho Lopes

Conversa com notas de rodapé

Questões para a filosofia africana

3
Copyright © Marcos Carvalho Lopes

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos da autora.

Marcos Carvalho Lopes

Conversa com notas de rodapé. Questões para a filosofia africana.


São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. 139p. 14 x 21 cm.

ISBN: 978-65-5869-990-3 [Impresso]


978-65-5869-985-9 [Digital]

1. Filosofia africana. 2. Reflexões. 3. Conversas. 4. Diálogos. I. Título.

CDD – 100/370

Capa: Petricor Design


Ficha Catalográfica: Hélio Márcio Pajeú – CRB - 8-8828
Diagramação: Diany Akiko Lee
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/ Brasil);
Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura
(UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil);
Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia Bortolozzi
(UNESP/Bauru/Brasil); Mariangela Lima de Almeida (UFES/Brasil); José
Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco de Mello (UFF/Brasil); Camila
Caracelli Scherma (UFFS/Brasil); Luis Fernando Soares Zuin (USP/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 – São Carlos – SP
2022

4
Sumário

Introdução 7
Questões para a filosofia africana 11
Como a filosofia africana pode ser 17
definida?
A etnofilosofia é realmente filosofia? 45
A filosofia africana é única? 55
Qual seria a linguagem ou quais seriam as 61
linguagens da filosofia africana?
Quais as conexões entre a filosofia 77
africana, afro-brasileira e feminista?
Identidade racial 89
Indicações 95

Anexos 99
Questões para a filosofia africana 101
O Brasil e a filosofia africana 105
A filosofia africana e “falar no lugar de 111
outras pessoas”
O hip-hop entre o Muntu e o Kintu 115
(Mais ou menos) 10 livros para estudar a 121
filosofia (luso)africana
Ementas 127
Adinkras 135
Links 137
O autor 139

5
6
Introdução

A filosofia pop e a filosofia africana se encontram


numa mesma esquina do pensamento. Nessa
encruzilhada, estão em questionamento a relação
entre a filosofia como uma forma de vida/plano de
imanência, incorporada em uma determinada
cultura, e a filosofia como atividade acadêmica
rigorosa e crítica. A tensão entre essas descrições da
filosofia pede uma redescrição da atividade filosófica.
Por conta desse lugar frágil, exposto, existem
muitas dificuldades e disputa quando se trata de
determinar como desenvolver uma disciplina de
filosofia africana na academia. O cuidado para não
repetir a busca metafísica de uma identidade
reificada sobre o que seria o sujeito autêntico
africano é uma necessidade, para não cair numa
posição dogmática e redentora. Por isso mesmo, a
articulação de uma série de questões como
referência para o debate (com abertura para diversas
respostas – mas não para todas ou qualquer uma),
servem para situar algumas chaves interpretativas,
sugerir direções nas quais desenvolver pesquisas,
interrogações que vão ser pertinentes para quem
estuda temas relacionados à África.
Apresento aqui a transcrição de uma conversa –
com Murilo Ferraz – para o podcast filosofia pop
realizada no segundo semestre de 2019. O texto
transcrito foi revisado para diminuir as
redundâncias, adequar e corrigir termos no sentindo

7
de melhorar o entendimento. Mantivemos uma
estrutura próxima da fala, com algumas construções
que podem causar estranhamento ao leitor. É o caso
do uso coloquial de “a gente” no lugar de “eu-nós”,1
artifício que também foi utilizado na edição do livro
filosofia pop - ano 1: ensaios de diálogo filosófico
(2019) para marcar uma aproximação com o ouvinte
na construção de uma comunidade de investigação.
Neste caso, espero que as pessoas que vão ler este
texto tenham certa indulgência com sua forma e
estrutura, que segue o ritmo e disposições do
contexto de interlocução.
O acréscimo de notas explicativas e de
referências, indicações e outros textos, pretende
justificar a própria publicização deste “diálogo”,
considerando sua possível utilidade como material
didático, para aproximação inicial de temas e
questões da filosofia africana contemporânea.
Cabe ressaltar que nesta conversa fiz um recorte
que abarca o desenvolvimento da filosofia africana
acadêmica entre 1945 e 1990, quando a busca de
identidade/autenticidade foi seu mote principal. A
partir dos trabalhos de autores como Valentin
Mudimbe 2 , Kwame Anthony Appiah 3 e Dismas
Masolo 4 a busca por identidade deu lugar a uma
diversidade de questionamentos que se alinham ao

1 Essa escolha, no entanto, possui um bom precedente na


autobiografia de Vilém Flusser, Bondelos (FLUSSER, Vilém.
Bobenlos: uma autobiografia filosófica. Annablume, 2007.).
2 MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção da África: gnose, filosofia e

a ordem do conhecimento. Editora Vozes, 2019.


3 APPIAH, Kwame Anthony; RIBEIRO, Vera. Na casa de meu pai: a

África na filosofia da cultura. Contraponto Editora, 2020.


4 MASOLO, Masolo DA. African philosophy in search of identity.

Edinburgh University Press, 2019.

8
horizonte pós-colonial, com a entrada em cena de
novos atores e problemas, como o desenvolvimento
da filosofia africana lusófona, o debate sobre o pós-
apartheid e ubuntu, interrogações metodológicas e
epistemológicas, questionamentos sobre gênero etc.5
Por isso mesmo, a narrativa aqui apresentada
precisa ser complementada e recontextualizada com
os debates contemporâneos. No entanto, sem o
conhecimento desta narrativa essa mesma
recontextualizaçao fica prejudicada. Para seguir no
caminho de aproximação da filosofia africana
contemporânea desenvolvi duas iniciativas
complementares: (1) uma série de entrevistas chamada
Djemberém (cabana de conversação) no podcast filosofia
pop com pessoas que desenvolvem a filosofia africana nos
países lusófonos6; e (2) uma série de 32 entrevistas com
questionário fechado, com pessoas que desenvolvem a
filosofia africana fora do contexto da lusofonia, no projeto
que denominei Tcholonadur (uma espécie de mediador
entre disputas, um tradutor intercultural). 7 Mais

5 Em 2016 em participação do professor numa mesa-redonda na


Universidade Católica de Salvador tratei da “Filosofia africana em
busca da diversidade”. O registro da fala está aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=D4ON_vjtQmc
6 Os episódios com Severino Ngoenha (Moçambique), Filomeno Lopes

(Guiné-Bissau), José Paulino Castiano (Moçambique) , Luiz Kandjimbo


(Angola), Arminda Filipa (Angola) e Ergimino Mucale (Moçambique) podem
ser acessados aqui: https://filosofiapop.com.br/tag/djemberem . Indico
também a série de entrevistas sobre a Covid-19 em África do podcast Vozes
da UNILAB, com episódios com Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Elisio
Macamo e Maria Paula Meneses: http://vozesdaunilab.edu.br/index.php/
tag/covid-19/ .
7 Foram realizadas 36 entrevistas, com nomes com Ada Agada

(Nigéria), Adeshina Afolayan (Nigéria) Albert Aoussine (Camarões),


Antonio de Diego Gonzales (Espanha); Ayodeji Ogunnaike (Nigéria);
Bayibayi Molongwa (Congo -); Bruce Janz (Canada); Delphine Abadie
M. (Canadá); Fernando Potro Gutierrez (Argentina); Godfrey Tangwa

9
importante que o número de pesquisadores entrevistados
é a abrangência geográfica (pesquisadores de diversos
países africanos, da América do Norte, América do Sul e
Europa), temática (de abordagens e metodologias
diversas, desde autores que trabalham a filosofia africana
da educação, aplicada ao Direito, egiptologia,
afrocentristas etc.) e linguística (traduções do inglês,
francês, espanhol e italiano).
Este texto ganhou uma atenção surpreendente,
gerando uma versão em francês feita pelo filósofo belga
Herman Lodewyckx 8 . Isso reforçou a necessidade de
registro deste trabalho, ainda que reforçando sua posição
de incompletude, ainda que em uma pequena tiragem.9
Gostaria de deixar registrado a agradecimento a
Severino Ngoenha e Filomeno Lopes, pelo diálogo e
confiança. Ao professor Luis Kandjimbo

(Camarões); Grivas Muchineripi Kayange (Malawi); Herman


Lodewyckx (Bélgica); Issiaka-P. Latoundji Lalèyê (Senegal); Jonathan
Chimakonan (Nigéria); Kasereka Kavwahirehi (Congo); Leonhard
Praeg (África do Sul); Louise Muller (Holanda); Mechthild Nagel
(USA/German); MSC Okolo (Nigéria); Mofefi Kete Asante (EUA);
Muyiwa Falaiye (Nigéria); Nathalie Ethoke (Camarões); Omatade
Adgbibdin (Nigéria); Phambu Ngoma-Binda (República Democrática
do Congo); Polikarp Ikuenobe (Nigéria); Romuald Bambara (Burkina
Faso); Samuel Wolde-Yohannes (Etiopia); Sanya Osha (Nigéria);
Seloua Luste Boulbina (França/Algéria); Tanella Boni (Costa do
Marfin); Yusef Waghid (África do Sul) etc. Veja em: https://
filosofiapop.com.br/category/texto/tcholonadur/
8 c.f. https://www.academia.edu/62081044/Quest%C3%B5es_para_a_filoso

fia_africana_Questions_pour_la_philosophie_Africaine
9 Em Janeiro de 2022, por motivos pessoais, por meio de um processo

de redistribuição, saí da UNILAB para trabalhar na Universidade


Federal de Jataí (UFJ).

10
Questões para a
filosofia africana10

10Transcrição da conversa com Murilo Ferraz para o podcast filosofia


pop. Murilo Ferraz (murilo@filosofiapop.com.br) é natural de Ja-
taí/GO, graduado em Ciência da Computação pela UFG, especialista
em Engenharia de Sistemas pela ESAB e em Assessoria de Comunica-
ção e Marketing pela FIC/UFG. É apresentador do podcast Filosofia
Pop, um dos mais ouvidos do Brasil, e Analista de TI na UFG. Pedala
todos os dias e tem duas cachorrinhas, a Lola e a Laika.

11
12
Murilo: ... o tema de hoje é Questões Para a Filosofia
Africana. Vou começar perguntando aqui para o Marcos
de onde que veio essa ideia, que vai ser um programa em
formato diferente do que a gente já está acostumado. De
onde vem essa ideia, Marcos?

Marcos: Bem, essas questões eu geralmente uso no


meu curso de filosofia africana na UNILAB [Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira] 11 . São perguntas mais gerais... que
problematizam os horizontes de como a gente define e
pensa a filosofia africana. Essas questões partem de um
livro do Samuel Olouch Imbo, intitulado An Introduction
to African Philosophy (Uma introdução à filosofia
africana12 e servem para situar um panorama do que seria,
do que não seria, de como é que a gente pode
recontextualizar ou pensar a filosofia africana. Geralmente,
essas questões são temas de debate. A gente vai
conversando sobre elas em sala de aula e [...] peço que os
alunos se posicionem em relação a elas. Então, [...] eu não
trago as definições ou as respostas, mas eu situo essas
perguntas no horizonte maior, para que a pessoa possa ter
sua opinião sobre elas, ou se colocar em relação a elas. Isso
é mais ou menos o que acontece em cursos de filosofia
[ocidental], mas nesse caso a cobrança da filosofia
africana é a mesma... porque geralmente [no final do
curso] a pessoa fala assim: “ah, professor, terminou o
curso e eu não sei o que é filosofia africana.” Eu respondo

11 Ver as ementas em anexo das disciplinas “filosofia africana” e


“filosofia africana pós-colonial”.
12 IMBO OLUOCH, Samuel. An Introduction to African Philosophy,

Lanham, MD. Bowman and Littlefield, 1998.

13
lembrando que [...] “geralmente, na [introdução à] filosofia
[ocidental] é a mesma coisa.”13

Murilo: Não é à toa que a gente sempre pergunta


aqui para os convidados “o que é filosofia”, porque é um
negócio que você estuda Filosofia e sai sem saber “o que
é”. É sempre assim.

Marcos: É, quando você tem respostas fechadas, uma


resposta que acaba com a conversação, você tem mais é
que desconfiar desse tipo de resposta do que seguir, né?
A filosofia pede essa desconfiança. Eu acho que faz parte
do “jogo” essa inquietude. Você vai falar “poxa, mas não

13 A ideia de uma resposta final que termine com o diálogo vai contra
a própria concepção de filosofia como uma busca, uma forma de
amizade à sabedoria que se diferenciaria da percepção daqueles que
tem o saber. No entanto, essa busca na modernidade ocidental tende a
ser tomada como uma Odisseia pessoal que esquece ou menospreza o
saber prévio. Por isso mesmo a dimensão intersubjetiva e
intergeracional dessa busca deve ser relembrada. Autores africanos
como Theophile Obenga, que dialogam com a filosofia egípcia,
negritam a origem da palavra grega sophia no termo egípcio seboyet ou
seba. Já Mubabinge Bilolo descreve a atividade filosófica, concebida de
um ponto de vista africano, estaria ligada a atividade de servir a
verdade, a justiça, ao conhecimento e a harmonia: aqueles que
filosofam seriam servidores de maat. Esta última palavra, se refere a
uma deusa egípcia “figurada como mulher sentada com os joelhos
dobrados, tendo nas mãos apoiada o signo da vida ānkh, (...) e
ostentando na cabeça a pluma de avestruz com que se escreve seu
nome. Além de encarnar noções como ordem, regularidade, verdade,
justiça e retidão, a ela devia-se o equilíbrio do cosmo e a relação
harmoniosa dos seus elementos, além da coesão social” (ARAUJO,
Emanuel. Escritos para a eternidade. Brasília: UNB, 2000. p.403). Neste
sentido, o filósofo bissau-guineense Filomeno Lopes se alinha com o a
descrição dada por Jean Phillippe Omotunde, para quem servir a
verdade é a tarefa de quem filosofa (e não ser amigo da verdade).
(LOPES, Filomeno. E se l'Africa scomparisse dal mappamondo?: una
riflessione filosofica. 2009. p.18-19)

14
tem uma resposta final.” Mas você vai poder falar mais
coisas, tem uma visão mais complexa e é esse jogo de
complexificar que a filosofia, muitas vezes, faz.

15
16
Como a filosofia africana
pode ser definida?

17
18
1

Murilo: Bom, vamos começar com as perguntas aqui


que você definiu. A primeira pergunta que é: como a
filosofia africana pode ser definida?

Marcos: Bem, vamos lá: quando a gente fala de


filosofia africana, tem, já nos termos, dois problemas.
Primeiro: o que significa filosofia em seu sentido estrito,
como é que vou definir a filosofia? Dependendo da
concepção que eu tenho de filosofia, vou ter uma
diferente concepção do que é ou do que seria a filosofia
africana. Essa questão de como concebo filosofia está
articulada com outro problema que é do adjetivo
“africana”. O que eu chamo de africano? Quando eu falo
que algo é africano eu estou me remetendo ao continente
como um todo? À população da parte subsaariana, a
população negra da África? Ou todos os negros na
diáspora? Quando eu falo que algo é africano eu tenho
que definir qual é o horizonte de conversação que eu
estou trabalhando. Existem várias possibilidades de
diferenciação, com vantagens e desvantagens. Até a
própria ideia do que é África também é algo que pode ser
questionado. Se você tem mapas antigos que colocam, por
exemplo, a Espanha como parte da África, você tinha o
norte da África e Península Ibérica sendo colocado como
África. Então a definição do que é África também é uma

19
coisa histórica, uma construção histórica. Essa ideia de o
que seria uma filosofia africana tem duas partes. Vamos
colocar assim, a parte da filosofia e a parte da África.
Vamos primeiro mexer com esse negócio da África.

Murilo: Primeiro da África, não da filosofia?

Marcos: Não, eu acho que quando a gente tiver uma


ideia do que vai chamar de África, depois pode voltar
para pensar a definição de filosofia. Mas vamos lá:
quando a gente pensa, por exemplo, uma definição de
filosofia a partir do continente: qualquer pessoa que
nasceu ou qualquer tema referente àquele espaço do
continente africano entra como filosofia africana. Isso
significa que o Egito ou populações muçulmanas do norte
da África, Madagascar, que não são populações negras,
entrariam como praticantes da filosofia africana. Então o
continente seria a definição do horizonte da filosofia
africana? Quando eu penso africana como se referindo à
população negra, eu estou pensando que a ideia de África
surge junto com a construção das narrativas sobre
escravidão. A construção dessa narrativa vai ter a sua
origem justamente no renascimento europeu. A Europa
começa a construir uma narrativa em que ela se coloca no
centro, renascendo, retomando a tradição grega,
retomando a tradição romana e a Europa se coloca como
o centro da humanidade e o seu Outro passa a ser a África.
Esse jogo de construção de uma alteridade coloca o
africano como o Outro, e o africano negro como o Outro.
Todo o peso da escravidão e a construção da
modernidade em cima desse racismo vai ser colocado.
Fazer filosofia africana, nesse sentido, é fazer uma
filosofia que vai combater essa construção. Nesse sentido,
a gente pode pensar a África como se referindo à

20
população negra e sendo algo construído ao mesmo
tempo que a ideia de Europa se constrói. Assim, você teria
uma outra perspectiva para pensar a África. Nessa
perspectiva mais ampla, você pode dividir ou não a
relação entre as pessoas negras que estão no continente
africano ou as pessoas negras que estão espalhadas pelo
mundo, pela diáspora forçada. O problema que a gente
encontra, pelo menos em sala de aula na UNILAB, e é um
problema importante, é que a perspectiva panafricanista
que coloca todos os que são negros fora da diáspora como
dentro da classificação de africanos, parte de questões
diferentes em lugares diferentes. Por exemplo, a questão
do racismo, ela é muito mais importante para quem está
fora da África do que para quem está dentro do
continente africano.14

Murilo: E eu acho que tem uma coisa também de a


própria ideia de pensar “o que é a África”. Para quem está
aqui no Brasil, por exemplo, e pensar no continente,
parece que tem um pensamento um pouco idealizado
também do que é, fica diferente o pensamento de quem
vive no continente.

Marcos: Em sala de aula geralmente eu provoco os


meus alunos perguntando: “quem é africano aqui na sala?”
E eu tenho a metade dos alunos que são dos países
lusófonos, da África lusófona. E somente eles levantam a
mão. Os brasileiros que são panafricanistas não levantam
a mão nesse momento. Depois eles se assustam “não, mas
eu sou africano também.” Então tem uma dimensão de

14Essa é uma generalização problemática que já se mostra


falsa quando pensamos na África do Sul, mas tem validade
na maioria dos países da África lusófona, parceiros da
UNILAB.

21
uma reivindicação política. Mas eu aperto mais a questão
chamando a atenção de que a ideia de ser africano, ela vai
ser construída, para a maior parte deles no momento que
eles saem do continente africano. Quando eles chegam no
Brasil e têm que assumir essa identidade como africanos.
Dentro do continente geralmente não existe essa
primeira identidade como africano. As pessoas vão ser
bissauguinenses, vão ser angolanos, vão ser papel, vão ser
manjaco, são bakongo. Vão ter as suas identidades
relacionadas a povos, a nações, a estados. E,
surpreendentemente, para a gente que está aqui no Brasil,
a identidade negra não é um pressuposto. Então, por
exemplo, dentro de Guiné-Bissau, na cidade de Bissau,
você [no período colonial] tinha uma zona em que as
pessoas só podiam atravessar se elas tivessem papéis que
permitiam ela viver naquele espaço. Era, pois, como se
houvesse uma espécie de apartheid. As pessoas, mesmo de
cor negra da pele, que falavam português ou tinham
modos europeus, elas não são consideradas, no cotidiano,
como negras.15 A definição de ser negra é contextual. O
que acontece é que a maior parte dos meus alunos
africanos vai se descobrir negra no Brasil.

15 Na região da Chapa na cidade de Bissau: “Havia um posto de


controlo que exigia a chamada “guia de marcha”, autorização onde se
descrevia o motivo da deslocação. Ninguém podia atravessar descalço
a fronteira que dava acesso a Bissau, cidade que em 1941 substitui
Bolama como capital”. A reportagem completa acerca do Racismo de
Guiné Bissau, de Joana Gorjão Henriques, está disponível na internet
( https://acervo.publico.pt/mundo/noticia/a-colonia-onde-todas-as-
fatumata-tinham-de-se-chamar-maria-1716239) e deu origem ao livro:
HENRIQUES, Joana Gorjão; JERÓNIMO, Miguel Bandeira. Racismo
em português: o lado esquecido do colonialismo. Tinta da China,
2016. Vale consultar o site https://acervo.publico.pt/racismo-em-
portugues em que as matérias presentes no livro foram originalmente
publicadas.

22
Aqui, quando a gente foi construir o grupo de hip-
hop botAfala pedi para que o grupo fizesse uma letra
sobre preconceito. E a letra começa com a afirmação de
identidade, a afirmação de que são negros. A letra começa
“eu sou negro, eu sou preto, eu sou africano.”16 Antes de
pensar a questão do racismo, ou para pensar a questão do
racismo, é preciso assumir a identidade racial. E essa
questão da identidade racial vai se impor como problema
nesse horizonte da diáspora, vai se impor com a questão
proeminente. Dentro dessa postulação de onde você
define o que é ser negro ou como você pensa a África, a
partir de que perspectiva, dentro ou fora, o continente
africano como o lugar que você quer voltar, ou o
continente africano como o lugar que você quer construir,
você tem um problema.
Aqui, dentro da UNILAB, no currículo que eu
montei, preferi me ater à ideia do continente, partindo do
continente africano, da parte negra do continente
africano. 17 Pensar a filosofia africana partindo dali para
que pudesse pensar os autores daquele espaço e os
problemas que vêm dali. Porque, geralmente, quando a
gente fala de filosofia africana no Brasil, o que se trata é
de problemas afro-brasileiros. Os problemas dos negros
do Brasil se sobrepõem aos problemas que estão no
continente africano. Isso não quer dizer que você não
possa pensar de modo pan-africanista ou que você não
possa pensar [a partir] de outros recortes. Mas acho que,
estrategicamente, se você não faz essa divisão os
problemas (afro)brasileiros engolem [os temas africanos].

16 A trajetória do grupo botAfala está registada no livro LOPES,


Marcos Carvalho (ed.). botAfala: Ocupando a Casa Grande. São
Carlos: Pedro & João, 2019. As canções, informações e o livro
estão disponíveis no site http://botafala.unilab.edu.br/
17 Veja em Anexo na seção de Ementas em que comento a situação do

currículo do Bacharelado em Humanidades e a posição da filosofia africana.

23
O que acontece geralmente? Os brasileiros que entram na
sala de aula, muitas vezes, pensam “não, eu já conheço a
cultura africana, eu jogo capoeira, ou eu sou do
candomblé.” E chegam muitos dos alunos [africanos] que,
ou nunca ouviram falar de capoeira, ou se ouviram falar
de capoeira, (...) foi porque encontraram um brasileiro em
Angola, que estava dando aula ou em Moçambique etc. E
em relação ao candomblé, também não tinham
conhecimento da religião. 18 Isso não significa que não
existem semelhanças, há semelhanças, mas há diferenças
também. E muito dos alunos [africanos] são muçulmanos
ou são evangélicos ou são católicos. E você pressupõe que
a religião de matriz africana que existe no Brasil é a
mesma que é praticada por todos [estudantes de África],
ou pela maioria da população, e cria um tipo de
incapacidade para pensar essa diferença, uma dificuldade
para pensar essas diferenças.
Situar primeiro o que é África é o grande problema.
Já dei um caminho de como a gente faz lá essa divisão e
porque a gente toma essa estratégia: porque a tendência é

18 O historiador Alberto da Costa e Silva explica que “a religião dos


orixás não se expandiu na África. Não conta com adeptos entre sereres,
banhus, ibos, andongos, iacas, angicos, xonas, macuas, zulus ou outros
povos africanos, que a desconhecem. E se retraiu no próprio Iorubo,
sob o impacto do cristianismo e do islamismo. Foi nas Américas, a
partir sobretudo do Brasil e de Cuba, que ela se tornou uma religião
universal, com deuses que não pertencem exclusivamente a um povo,
mas a toda a humanidade. No Brasil, a religião dos orixás fez adeptos
não só entre os originários de outras nações africanas, mas também
entre descendentes de guaranis, cariris, pataxós, fulniôs, portugueses,
espanhóis, italianos e muitos outros povos.
Sua história não é, assim, diferente da história do cristianismo e do
islamismo, que começaram como religiões locais – de um punhado de
judeus, num caso, e de um grupo de árabes, no outro – e se expandiram
pelo mundo”. (COSTA E SILVA, Alberto da. A África explicada aos
meus filhos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013., p.64).

24
não pensar a África como um continente, que tem os seus
problemas e que tem o seu contexto específico. A gente
geralmente volta as coisas para o nosso umbigo, volta a
pensar o Brasil. E é curioso porque transforma em outro o
outro, em outro outro. Muitas vezes os estudantes, as
estudantes africanas, são chamadas para ir nas escolas,
para dar palestras etc., e uma coisa que acontecia e
acontece de vez em quando é que o pessoal reclama que
eles não estavam vestidos de africanos. Há a ideia de que
seja necessário se vestir de determinada forma para poder
assumir a identidade africana. Isso é bem problemático.
Qual relação que a gente tem com essa alteridade, com
esse outro? Esse problema da definição de africano, a
gente não fecha a questão, mas situa o recorte. Em relação
à concepção de filosofia…

Murilo: [...]você fecha essa definição de africano ali,


no continente geográfico, é uma questão um pouco
geográfica então.

Marcos: Sim, mas eu acho que é geográfico, mas é a


população negra que você leva em conta: a construção da
África a partir do racismo, a partir da exploração do
continente em relação ao racismo, esta construção cultural.
Essa divisão pode ser questionada, você pode ter outra
divisão. Mas o problema continua: se você fala de filosofia
africana, como é que você divide? Se você fala filosofia
latino-americana parece existir uma divisão muito clara,
né? Mas só parece, porque eu não sei se o Brasil faz parte
da América Latina... Eu estou brincando.

Murilo: Não, mas essa é uma questão interessante


mesmo.

25
Marcos: É, porque como a gente fala português. Essas
divisões são sempre problemáticas, são recortes. Neste
caso, eu acho que tem uma justificativa no lugar em que
eu estou trabalhando, né?

Murilo: [Sim]. Mas o que eu estava pensando… bom,


você coloca essa divisão, acho o que vem na pergunta é: o
que é África? O que pensam ser África essas pessoas desse
lugar, se é a mesma coisa? Não sei se…

Marcos: Entendi. Então, o ideal do panafricanismo,


de uma unidade dos povos africanos geralmente existe,
mas para uma população que é educada [em termos
ocidentais], que já tem o olhar de fora para dentro. A
construção da ideia de África tem muito a ver com um o
tipo de solidariedade, com uma forma de vivência em
comum. E a gente vai ter que pensar na possibilidade de
ser visto também. As identidades são muito construídas a
partir do momento em que você se vê e você se espelha.
Por exemplo, torcer para a seleção da França é até fácil
para o africano porque ele vê lá muitos franceses que não
são tão franceses assim. Esse jogo de identificação é meio
paradoxal e interessante. Qualquer seleção africana que
esteja na Copa do Mundo parece representar todo
continente. Claro, existem lealdades, deslealdades, há
países que são mais próximos, países que são mais
distantes..., mas essa autoimagem tem que ser pensada
como um problema, porque não há uma África só, há
várias Áfricas. Se a gente pensa, por exemplo “África
lusófona”, são alguns países que falam português, mas é
uma minoria, e você tem a maior parte do continente
ligado à cultura francesa ou a cultura inglesa. Às vezes, a
fronteira cultural [não se assemelha] a fronteira do país,
[que] é tão arbitrária que as pessoas que falavam a mesma

26
língua e faziam parte da mesma etnia, foram separadas
por fronteiras nacionais arbitrárias, que de um lado,
tiveram a colonização francesa e do outro lado a
colonização inglesa. Mas por conta disso, já do período de
colonização, a distância parece ser muito maior.
Precisamos pensar na forma como houve essa colonização,
a forma como foi pensada ou instituída essa relação. Isso
é interessante, por exemplo, como os ingleses não se
colocavam contra a cultura local (os ingleses colocavam
chefes locais para comandar e não mexiam muito na
cultura local) havia algum espaço de “liberdade”, esse
espaço de liberdade cerceada. Mas os franceses queriam
civilizar à francesa, queriam colocar a civilização francesa
como modelo. E você tem um outro tipo de relação, em
que as pessoas chegavam na sala de aula e iam ter aula
sobre sua origem bretã, colocando a civilização francesa
como matriz deles mesmos, como seus próprios
ancestrais. 19 Era uma coisa muito esquisita. Esses
modelos diferentes de colonização acabam repercutindo
em formas diferentes de se relacionar com o racismo ou
com a própria cultura?20

19 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na


filosofia da cultura. Contraponto, 1997.
20Na descrição do filósofo nigeriano Muyiwa Falaiye os franceses são

mais arrogantes culturalmente, “recusando-se a misturar culturas nas


escolas coloniais e insistindo na supremacia da civilização francesa”; e
os ingleses são mais arrogantes racialmente, “insistindo na segregação
das raças entre as escolas, mas permitindo a mistura de culturas no
currículo” (FALAIYE, Muyiwa. A Philosopher Interrogates African
Polis: How can we get it right?. Inaugural Lecture, University of Lagos,
2012. P.19.). Deste modo, o movimento francófono da negritude pare-
ceu deslocado e fez menos sentido para as pessoas que sofriam a colo-
nização inglesa. Por exemplo, na crítica feita pelo nigeriano Wole
Soyinka de que o tigre não proclama sua tigritude, mas se lança no
ataque sobre sua presa; o que suscitou a réplica do senegalês Leopold
Senghor: “O tigre não fala de sua tigritude porque é um animal. Mas o

27
Murilo: É, mas o que eu fico pensando é o seguinte:
parece que essa ideia da África como um todo é uma coisa
muito mais europeia, do europeu definir o lugar que eles
iam… igual ao que você falou antes, de que os alunos que
vêm de países diferentes da África e têm a sua identidade
muito maior com seus respectivos países ou povos etc. mais
do que com uma África geral. Para quem é do continente,
essa África é pensada e é concreta, para os negros que estão
fora da África é mais importante pensar a África como um
todo … é nessa diferença que eu estou pensando.

Marcos: Ótimo, essa questão a gente vai ver na frente,


porque a [próxima questão] é o que você está
perguntando. As questões que eu coloquei vão todas se
concatenando e vão se repetindo, de certo modo, e são
questões metafilosóficas. E há uma questão sobre se a
filosofia africana é única. Depois a gente fala sobre isso de
forma mais completa...

Murilo: Então, [vamos] prosseguir com a nossa parte


da filosofia...

Marcos: Vamos lá, vamos tentar ser mais rápidos, se


for possível. Quando a gente pensa em filosofia… eu vou
colocar duas tendências que se contrapõem: uma
tendência a pensar a filosofia como algo universal ou como
algo situado. Você pode pensar a filosofia a partir de
perspectivas em que a filosofia africana só é filosofia se

homem fala de sua humanidade porque é homem e pensa.” MIGLIA-


VACCA, Adriano Moraes. “A negritude e o universal africano. In: Es-
tado da Arte. Disponível em: https://estadodaarte.esta-
dao.com.br/negritude/. Consultado em 20/03/2021. C.f textos do
mesmo autor na revista estado da Arte como “O Mundo africano de
Wole Soyinka”. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/
o-mundo-africano-de-wole-soyinka/ Consultado em 20/03/2021.

28
fizer parte da filosofia ocidental; ou noutra perspectiva
em que existem filosofias regionais ou filosofias a partir
de contextos específicos, a partir de problemas específicos.
A primeira opção seria uma que a gente pode pensar
universalista, a segunda pode ser chamada de
pragmatista ou pode ter outro nome, como até
etnofilosófica. É interessante que, no Século XX, a filosofia
africana vai começar a ser debatida de forma mais intensa
a partir da publicação, em 1945, de um livro chamado A
Filosofia Bantu. Esse livro foi publicado por um padre
belga, Plácide Tempels (1906-1977)21, que não tinha a
formação, não era um “doutor” em filosofia, colocou o
nome filosofia como… mas se ele tivesse colocado outro
nome talvez o livro dele não tivesse alcançado tanta
repercussão, porque ele poderia ter escolhido
“pensamento” ou algo assim. Mas ele queria defender
justamente que existia uma filosofia, porque geralmente
os antropólogos acabavam diminuindo ou pensando os
negros a partir de uma perspectiva em que os colocavam
como menores, como incapazes de ter aquele tipo de
pensamento mais complexo que a filosofia faz. Hegel, no
século XIX, dizia que os negros, os africanos ficam presos
ao momento, ficam tão presos ao agora que são incapazes
de pensar algo maior que eles. 22 Assim, a religião, essa

21 Placide Tempels foi missionário franciscano belga, atuou na


provín- cia de Katanga no Congo Belga (atualmente,
República Democrática do Congo) entre 1933 e 1962. Ganhou
fama a partir dos debates sobre a filosofia africana com a
repercussão da publicação em 1945 do livro La philosophie
bantoue (traduzido para o inglês em 1959).
22 Na coletânea de preconceitos que são os textos de Hegel sobre a

África, esse trecho define sua posição: “Nos negros, o característico é


que sua consciência ainda não chegou à intuição de qualquer
objetividade firme como, por exemplo, Deus, lei, na qual o homem
estaria com a sua vontade e teria assim a intuição da sua essência. O
africano, na sua unidade indiferenciada e compacta, ainda não chegou

29
religião “que a gente tem” monoteísta, seria impossível
para os negros, a própria religiosidade em sentido lato.23
E o próprio padre Tempels vai tentar mostrar que, pelo
contrário, Hegel, nesse sentido, não entendeu nada da
cultura africana... porque Tempels mostra que a religião
está presente em todas as práticas, no cotidiano das
populações bantu. Eu preciso explicar um pouquinho
mais sobre o Tempels, e é importante porque vai ser um
autor ao qual os outros pensadores vão reagir. Tempels,
não é negro, é belga e trabalhou no Congo Belga durante
vinte anos, morava junto à comunidade, aprendeu a
língua e percebia que as pessoas não se convertiam,
diziam que estavam convertidas e de repente voltavam
para as práticas tradicionais. Ele tentou escrever um livro
para melhor colonizar, melhor catequizar: “se a gente
conseguir colocar as coisas nos termos dos negros a
vamos conseguir convertê-los com mais facilidade.”24 O

à distinção entre ele mesmo como indivíduo e a sua universalidade


essencial, pelo que falta inteiramente o conhecimento de uma essência
absoluta, eu é um outro, superior face ao Si mesmo. Encontramos, pois,
aqui apenas o homem na sua imediatidade; tal é o homem em África”
(HEGEL, Friedrich. A razão na história: introdução à filosofia da
história universal. Lisboa: Edições 70, 1995. p.206.).
23 A ideia de religião pede a religação entre dois planos de existência

que na concepção bantu nunca estiveram desconectados. Sem essa


cisão não haveria “religião” nos termos universalistas criados pelo
cristianismo e comum ao islamismo. Então aqui queria dizer que a
própria noção que temos de religião é marcada pelo monoteísmo e
pelo pressuposto universalista.
24 Por exemplo, no último capítulo do livro Tempels descreve para

quem fala e qual é seu objetivo: “É aos colonizadores de boa vontade


que se endereça essa obra”. Acrescente ainda que poder-se-ia civilizar
os bantus de um modo autêntico somente partindo de suas crenças,
sua ontologia: “Os Bantu podem ser educados se, se tomar como ponto
de partida a sua indescritível aspiração ao reforço vital; se não, não
será possível civilizá-los. A massa soçobrara, cada vez mais, nas
aplicações falsas da sua filosofia, quer dizer, nas humilhantes práticas

30
objetivo dele era esse. A partir desse objetivo você já pode
jogar a obra pela janela, falar “não serve.” Mas não foi isso
o que aconteceu. Dentro dessa visão, ele vai tentar
mostrar que havia uma lógica ou um sistema de
pensamento, uma ontologia, que é bem diferente da
ontologia ocidental: muitas das coisas que pareceriam
irracionais, não são; simplesmente funcionam a partir de
outras questões de mundo. A base dessa perspectiva,
segundo Tempels é a ideia de que, para os bantu, e ele fala
dos povos luba do Congo, mas às vezes escreve “os bantu
ou os negros”, o que criou a possibilidade de uma
generalização para todos os povos negros da África... ele
vai dizer que, para os bantus, ou para os negros, o ser é
igual à força vital. No lugar onde o Ocidente coloca o ser,
os bantus colocam a força vital. Todas as coisas que
existem são ou têm força vital, o mundo é composto e as
coisas são compostas de força vital. Essa ideia modifica a
forma como a gente pensa as relações, porque, se todas as
coisas têm força vital, há uma interação constante entre
essas forças. E essa interação acontece… mesmo que você
não faça nada, vai ser influenciado por essa interação de
forças. A ideia se vincula a uma concepção em que os
primeiros fundadores tinham mais energia e criaram o
mundo a partir dessa energia. O deus que criou o mundo
tinha mais potência, mais força vital. E, dessa forma, de
geração em geração, você vai diminuindo a sua energia, a
sua potência. Por isso os mais velhos são sagrados, por
terem mais potência, terem mais energia. Mas essa ideia
da força vital traz junto nova concepção do que é a pessoa.
Talvez seja aí que está o nó da coisa, que é a ideia de que
a pessoa é pensada com um termo bantu para pessoa.

“mágicas”. Durante esse tempo os outros, os evoluídos, constituirão


uma classe de pseudoeuropeus, sem princípios, sem carácter, sem
objetivo, sem sentido” (p.134).

31
Bantu significa “humanidade”, muntu significa “pessoa”.
A pessoa, se a gente fosse traduzir homem ou mulher,
seria o muntu. Só que essa tradução já é péssima porque
homem e mulher já colocam uma definição de gênero e
faz pensar numa pessoa viva, e o muntu inclui todos os
seres que têm intencionalidade, todos os seres que têm
vontade. Nessa perspectiva, os antepassados mortos
continuam presentes como força vital ou energias que
influenciam no mundo, continuam presentes como
muntu. Algumas vezes, animais são considerados muntu,
algumas árvores sagradas etc. Resumindo: todos os seres
dotados de intencionalidade são muntu. Há, pois, essa
condição de manipular força vital. Os seres que têm
vontade têm essa condição de manipular força vital.
Assim, a grande questão é que nossa interação…25

25 Masolo (Masolo, Dismas A. African philosophy in search of iden-


tity. Indiana University Press, 1994. p.54) sumariza os principais pon-
tos para o entendimento da “filosofia bantu de Tempels”: 1. Primeiro,
existe a crença de que todas as coisas em ou são forças e que há uma
constante interação entre elas; 2. Essa interação é uma propriedade pas-
siva existencial que une todos os seres; 3. O homem somente, por vir-
tude de sua inteligência, e capaz de transformar essa passividade
numa interação de forças dentro de um envolvimento ativo, do tipo
causa e efeito, alcançando o tipo de resultado que é desejado por ele.
Esses desejados podem ser bons, como no caso da medicina protetiva,
ou maus, como no caso do assassinato por magia. Aquelas pessoas que
efetivamente usam sua inteligência para conseguir estes resultados na
vida de outras pessoas ou na vida delas mesmas, são genericamente
chamados de feiticeiros ou curandeiros. 4. Para alcançar estes resulta-
dos os feiticeiros ou curandeiros voluntariamente escolhem e organizam
para interação entre uma força específica que vai agir como causa efi-
ciente e a força daquele que vai ser vítima. Neste caso, a causa eficiente
pode ser de muitas formas possíveis, como uma cobra, árvore, amule-
tos, objetos inanimados ou até outros humanos. Mas o agente causal
“real”, aquele a quem deve se atribuir a responsabilidade pelo evento,
permanece sendo o sujeito da vontade por trás da cadeia de eventos.

32
O grande problema é como construir uma
comunidade equilibrada. A busca dessa harmonia para a
comunidade faz com que você tenha uma ética implícita,
uma ética de equilíbrio de energias, equilíbrio de
potências também. Aquilo que você deve fazer deve ser
de acordo com essa perspectiva da força vital. Vamos
pensar aqui só no exemplo, que eu acho bem
paradigmático, sobre como no cotidiano talvez as pessoas
no Brasil ainda trabalham com esse conceito ou até que
ponto essa percepção é uma espécie de senso comum,
quando a gente fala, por exemplo, “eu estou morto de
cansaço” na perspectiva bantu você estar “morto de
cansaço” seria explicado porque você está com pouca
força vital, está com pouca energia, né? Uma doença vai
ser vista como uma diminuição da sua energia. A morte é
o apagamento dessa energia, dessa força vital [no corpo].
Há, portanto, toda uma explicação daquilo que acontece
no mundo a partir da lógica de um jogo de forças. Quando
alguém vai trabalhar algum material, por exemplo, um
ferreiro, ele está manipulando força vital de um tipo
específico. São vários tipos de força vital e você tem
especializações no uso da força vital, é uma outra forma
de conceber o mundo e as relações. Quando Tempels fala
isso, ele destaca que existe hierarquia entre as pessoas na
comunidade e que os brancos foram colocados pelos
próprios negros como estando acima deles.26

26Sete princípios ontológicos da filosofia Bantu segundo Leo Apostel:”


“1. Uma coisa existe na medida em que ela é uma força e a essência de
todas as coisas é ser uma força; 2. Todas as forças são específicas; 3.
Diferentes tipos de seres se caracterizam por diferentes intensidades e
tipos de força; 4. Qualquer força pode ser intensificada ou diminuída; 5.
As forças podem influir umas sobre as outras e agir umas sobre as
outras em virtude de leis naturais internas. Todas as forças são
radicalmente independentes de maneira interna; 6. O universo é uma
hierarquia de forças ordenadas segundo o seu poder; e 7. Os seres que

33
Murilo: Isso já é uma coisa problemática.

Marcos: É, porque ele já fala assim “olha só, existe


todo esse jogo aqui, a gente pode usar a nosso favor,
podemos começar a falar nesses termos para colonizar ou
catequizar melhor.” Eu acho interessante a história do
Tempels porque ele tem toda essa descrição da
perspectiva da força vital bem complexa: localiza uma
ética, uma concepção de justiça etc. O livro dele é
questionado pela Igreja, ele é obrigado a ficar um tempo
na Bélgica, depois volta para o Congo e começa a pensar
a Igreja de uma forma em que você não questionasse
diretamente a crença das pessoas. Criou um grupo para
que as pessoas interpretassem os sonhos que têm dentro
da Igreja, ou seja, é como se, para entrar na Igreja Católica,
você não tivesse que renunciar a todas as suas crenças.
Essa abertura que ele dá, a gente vai ver que vai no
mesmo caminho para tendências religiosas que estão
muito fortes em África e no Brasil também, que não
pedem tanta transformação para conversão. A pessoa
entra na Igreja com as crenças que ela tem: você abre o
funil para entrar mais gente na sua Igreja, diminui o preço
dessa entrada. É uma tática que está sendo, cada vez mais,
utilizada. E é curioso como tem origem lá, nessas
pesquisas e nesse começo da filosofia africana.

ocupam uma instância superior na hierarquia podem influenciar


diretamente e, não importa a qual distância, os seres de instância inferior;
os seres de instância superior podem influenciar os seres de instancia
inferior ou igual, indiretamente, utilizando os seres de instância inferior
[...] Os seres de instância igual podem diminuir ou reforçar de maneira
direta e interna a força de um outro ser de instância igual” (APEL,
APUD: DIAGNE, Souleymane Bachir. L'encre des savants :
réflexions sur la philosophie en Afrique. Paris : Présence africaine,
2013. P.32).

34
Figura 1 Bantu: Família de línguas africanas. [Imagem:
http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Niger-Congo.png]

35
A questão é a seguinte: Tempels descreveu algo que
ele via de fora. Depois dele, um filósofo e historiador
chamado Alexis Kagame27, que era de Ruanda, também
era padre, vai falar assim “não, Tempels apontou para
uma coisa interessante. Ele estava certo na sua intuição só
que não foi científico, deveria ter examinado as coisas a
partir da linguagem, percebendo como na linguagem
acontece essa ideia de força vital.” E o Kagame vai
analisar várias línguas de origem bantu. Porque a
definição de bantu é de povos que pertencem a um grupo
linguístico que existe em grande parte da África, numa
área que vai desde a África do Sul até o Congo. Hoje a
gente fala de grupo níger-congo, que iria até a região da
Nigéria. Esse grupo linguístico tem semelhanças nas suas
construções. Kagame vai, por exemplo, dividir os grupos
de palavras em quatro, aquelas que designam força com
intencionalidade, que a gente já falou, que é o muntu, e
aquelas, por exemplo, que designam coisas que não têm
intencionalidade, que são os objetos, que ele chama de
kintu. Existem ainda uma definição para coisas que são
do espaço e do tempo ou para modos, mas eu não vou
complexificar a esse ponto.28 O que é interessante é, por

27Abbé Alexis Kagame (1912-1981) foi um historiador ruandense,


etnó- logo e filósofo que se tornou um líder intelectual Tutsi ao
apresentar a cosmologia deles em termos contemporâneos.
Kagame nasceu em uma família de historiadores da Corte e logo
se familiarizou com a tradição oral do povo Tutsi. A sua família
se converteu ao catolicismo depois da Primeira Guerra Mundial
e Kagame frequentou a Escola Missionária assim como a Escola
para os filhos dos chefes. Ingressou no Seminário em 1929 e foi
ordenado em 1941.
28As categorias são: MUNTU, existente com inteligência, plural:

BANTU; KINTU, existente sem inteligência (coisa), plural:


BINTU; HANTU, existente que determina espaço-tempo;
KUNTU, existente que determina modalidade ou modo de

36
exemplo, que a ideia de coisas com intencionalidade e
coisas como objetos que são manipulados vivem numa
espécie de tensão: você é muntu, um ser com
intencionalidade, mas, de repente, pode se comportar
como se você não tivesse vontade, como se você estivesse
sendo dirigido, então você vai ser chamado de kintu. Se
você analisar as línguas bantu vai ver que, muitas vezes,
um nome positivo vai ser negativado a partir do prefixo
ki. Assim, bom pai tem determinado nome, o mau pai
coloca o prefixo ki na frente.29 É como se você se tornasse
objeto. Para quem viu lá o desenho animado do Kiriku,
em os homens se tornam fetiche, todos se tornam objetos,
deixam de ser humanos para se tornarem objetos sob o
feitiço de Karabá. 30 Eu já estou cometendo um pecado
muito comum: estou transformando, transferindo de uma
região bantu uma descrição, para aplicar numa região que
não é bantu. O Senegal não teria nada a ver com isso (por
não ser uma região bantu). Mas esse jogo é o que vai se
tornar mais comum. Eu estou fazendo isso, mas o
presidente do Senegal, o primeiro presidente do Senegal,
o Léopold Senghor, foi um dos entusiastas do Tempels.
Ele ia falar “o Tempels acertou, o Tempels é um caminho
para a gente pensar a filosofia africana.” O Léopold
Senghor já era um poeta famoso e, junto com Aimé

existência. A partir dessa di- visão, Kagame identifica o sufixo


Ntu como sendo a designação do ser como força vital.
29 Essa referência sobre a tensão entre Muntu e kintu está em:

NKULU- N’SENGHA, Mutombo. Bumuntu paradigm and


gender Justice: Sexist and anti-sexist trends in African
traditional religions. What men owe to women: Men’s voices
from world religions, p.69-107, 2001. Vejaem anexo o texto “O hip-
hop entre o muntu e o kintu”.
30 Para uma reflexão sobre a concepção de infância africana a partir do

filme Kiriku c.f. NOGUERA, Renato Noguera Renato. Pinóquio e


Kiriku: infância (s) e educação nas filosofias de Kant e Ramose. Revista
Aú, v. 2, n. 02, 2017.

37
Césaire, tinha fundado o Movimento Negritude. Só que
ele vai tentar transformar a Negritude em uma filosofia,
trazer a carga de filosofia da Negritude. Ele vai falar “oh,
o Tempels falou em força vital, mas é melhor a gente falar
em ritmo.” Dessa maneira, todas as coisas têm ritmos, a
cultura negra seria marcada por essa ideia de uma
concepção de universo rítmico. E ao invés de reduzir
todas as coisas a um ritmo comum, você aceita a
polirritmia, a multiplicação dos ritmos. Isso é bem
interessante, quando você pensa que na década de 50 a
influência do jazz, da música, e tem uma ideia comum a
essas concepções, é a ideia de que o sagrado está presente
em todas as coisas, a religiosidade está presente o tempo
todo. Isso é uma coisa interessante porque o Tempels, por
exemplo, falava “olha, a civilização europeia, ela perdeu
o contato com o sagrado, então a gente pode aprender
com os bantus a retomar o contato com o sagrado, porque
em tudo que eles fazem manipulam força vital, assim,
estão manipulando energia e têm que pedir licença a deus
e pensar em termos religiosos. Tudo que acontece tem
uma relação com o sagrado.” Essa ideia de que “olha só,
a contribuição dos negros pode se equilibrar a civilização
e trazer de volta a espiritualidade, trazer de volta a
concepção do sagrado.” Só para a gente falar um
pouquinho mais do Senghor, ele vai tentar pensar uma
filosofia a partir do Tempels, dialogando com Tempels,
ele vai tentar pensar a Negritude como filosofia, e o
companheiro dele de Negritude, um dos fundadores da
Negritude, Aimé Césaire, que não é propriamente do
continente africano, é da Martinica, vai rejeitar totalmente
Tempels e falar “não, isso daqui não tem nada que sirva
para a gente, é só um livro colonialista.” Ele vai ressaltar
essa ideia de que o Tempels colocava uma hierarquia em
que os brancos estavam em cima. Mas o Senghor vai achar

38
que esse passo é interessante, que o Tempels estava na
direção correta e vai resumir a perspectiva dele…
geralmente o pessoal resume a perspectiva dele com a
frase “a emoção é negra, assim como a razão é grega.”
Porque, segundo o Senghor, os negros aprenderiam por
participação, eles teriam que se aproximar daquilo que
eles querem conhecer e se integrar naquilo que eles
querem conhecer. Não há como ter um conhecimento
externo da cultura africana, você tem que entrar dentro
dela. Essa perspectiva acaba sendo uma hierarquização
porque deixa a razão com os gregos e coloca só a emoção
com os negros. Hoje em dia, com certeza, as pessoas não
aceitam essa definição. E muita gente que é do Senegal,
principalmente, principalmente os senegaleses vão falar
“não, mas vocês estão avaliando muito mal o Senghor, ele
é muito mais do que essa frase.” E eu vou responder assim
“realmente ele é muito mais do que essa frase”. Ele veio
aqui no Brasil na década de 60 e falou assim “olha, o
Gilberto Freire estava certo, o Brasil pode ser um modelo
para o Senegal.” Pode-se concluir que as ideias do
Senghor vão na direção da construção da civilização do
universal e todo mundo que ele gostava ele incluía na
Negritude. Então, por exemplo, ele fala que Arthur
Rimbaud fazia parte da Negritude, Henri Bergson fazia
parte da Negritude e Carlos Lacerda, era o exemplo do
homem universal que ele queria construir. Então, diga
com quem andas... é bem complicado, você pegar o Carlos
Lacerda como exemplo. Mas vamos lá. Esses autores
acabam apontando para uma perspectiva meio regional
da filosofia, a gente pode dizer como etnofilosofia. Essa
definição de etnofilosofia não foram eles que deram, a
gente vai ver depois que essa definição é muito
importante. Um dos autores que inventaram essa ideia de
etnofilosofia vai ser uma das referências para a gente

39
pensar a filosofia africana como algo universal, vai ser o
Paulin Hountondji. Ele é do Benim. Em 1968, ele inventou
esse termo etnofilosofia ao mesmo tempo que um autor
do Camarões chamado Marcien Towa, sobre quem a
gente já fez um programa com o Luiz Tiago Freire Dantas.
É curioso que os dois autores, ao mesmo tempo, criaram
essa palavra etnofilosofia, mas com definições ou
perspectivas diferentes sobre ela. Para o Paulin
Hountondji, a ideia de que exista uma filosofia africana e
de que ela não é individual, não faz sentido. Para ele a
filosofia tem que ser pensada a partir de alguém que
escreve, alguém que responde, alguém que pode pedir e
dar razões. A ideia de filosofia coletiva acaba
pressupondo que todo mundo aceita aquela filosofia, o
que ele chama de unanimismo. É como se você pensasse
“se eu fizer a filosofia dos brasileiros, será que todos os
brasileiros vão concordar? A filosofia de quem fala
português... só por falar a mesma língua todas as pessoas
teriam a mesma concepção filosófica?” Hountondji vai
relativizar essa relação entre uma população e uma
filosofia, ele vai pensar que não, as pessoas estão
confundindo as coisas, estão confundindo antropologia e
religião com filosofia. E ele dá outro passo, vai falar que
“a filosofia tem que ser escrita.”

Murilo: E é uma coisa complicada, né?

Marcos: É complicado, porque…, mas ele… você tem


que levar em consideração que o cara se formou na
Europa está voltando para o país dele e o pessoal está
falando “não, o sábio da esquina é filósofo.” Se o sábio da
esquina é filósofo, não precisaria de formação acadêmica.
É como se estivesse valorizando a formação dele também.
Tanto ele como Marcien Towa vão ter essa caraterística,

40
são pessoas marxistas, que têm a formação em filosofia e
estão voltando para o seu país nas recém-fundadas
universidades e têm que justificar o seu emprego,
precisam justificar porque têm aquele posto. Esse ponto é
de grande controvérsia, ele vai falar “olha, quem faz
filosofia africana é quem é africano e escreveu filosofia.”
Mas você pode olhar para trás, para o passado, e vai ver
lá, por exemplo, no Século XVI na Etiópia, com o contato
com os portugueses... na Etiópia você tinha a divisão da
Igreja Católica Ortodoxa (o cristianismo já estava na
Etiópia há muito tempo, já a partir do Século II, e antes,
os judeus estavam lá antes de Cristo); quando eles têm
contatos com os portugueses, começam a repensar seu
horizonte religioso, e um autor no Século XVI escreve
meditações sobre como encontrar o verdadeiro deus. O
escritor se chama Zera Yacob (1599-1692). Os textos dele
estavam numa língua local e só há pouco tempo foi
traduzido para o inglês e a gente ainda não tem esses
textos em português..., mas se filosofia africana é aquela
que se escreve, até que ponto esse autor, que não tinha
formação acadêmica em filosofia, que pensou essas
relações sobre a descoberta do verdadeiro deus, faria
filosofia? Está escrita, mas não entra em diálogo direto
com a tradição ocidental. Isso é um problema sobre como
situar, porque você vai ter um outro autor no Século XVIII,
um filósofo chamado Wilhelm Amo que foi levado da
região de onde hoje é Gana para Alemanha. Ele foi levado
no começo do Século XVIII, mais ou menos em 1800 e ele
é um experimento iluminista do tutor dele. O tutor dele
era uma pessoa muito importante na Alemanha, tinha
uma vasta biblioteca e era tão rico que o bibliotecário dele
era o Leibniz. O tutor levou um negro da África para fazer
um experimento, como o czar da Rússia tinha “adotado”
também um negro. Será que se a gente educar um negro

41
ele vai conseguir? O que vai acontecer com o negro se a
gente der educação para ele? É interessante o seguinte:
você já pode pressupor o racismo, mas ainda não está no
nível que a gente conhece. A ideia de que você pode
educá-lo e colocá-lo dentro de um mesmo nível de um
branco, no começo do Século XVIII, era factível; na
metade do Século XVIII já não. O racismo científico já
colocava isso como impossível: são raças diferentes que
têm visões de mundo diferentes e hierarquicamente os
negros são inferiores, então, não seria possível. Mas o que
acontece com Wilhelm Amo é que ele tem toda a
formação acadêmica, faz mestrado, faz doutorado e vira
professor universitário. Ele fez teses rebatendo Descartes,
falando da importância do corpo. Há outro trabalho sobre
Direito Romano que é muito interessante, porque os
povos conquistados pelos romanos se tornavam romanos.
Eles não eram escravizados automaticamente. Então,
você pondera “será que ele estava pensando, levando em
consideração o que acontecia na África?” Ele era chamado
de Wilhelm Afro Amo. E esse nome Afro já estava ali por
conta de ele ser negro. As obras dele não foram totalmente
preservadas, e ele voltou para Gana quando tinha mais ou
menos 40 anos. Nessa época, o racismo começava a
colocar as manguinhas para fora, o racismo científico, e
você vai ter textos satíricos sobre um tal de Professor Amo
que se apaixona por uma branca e é rejeitado. A gente não
sabe se é o próprio Wilhelm Amo, mas é bem curiosa a
história do Wilhelm Amo e podemos questionar
“Wilhelm Amo fez filosofia africana?”31 Quais os critérios?

31Sobre Zero Yacob, Wilhelm Amo e outros pensadores negros


na modernidade ver: HERBJORNSRUD, Dag. Os africanos que
propuseram ideias iluministas antes de Locke e Kant. Folha de
S. Paulo, 24/12/2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.
com.br/ilustrissima/2017/12/1945398-os-africanos-que-propuseram-

42
Até que ponto é só escrever e ser africano? Agostinho de
Hipona, o santo Agostinho, escreveu e nasceu no
continente africano; Tertuliano escreveu e nasceu no
continente africano. [Albert] Camus também, [Jacques]
Derrida também. Assim, a definição do Hountondji acaba
para muita gente sendo demasiadamente reducionista,
para o próprio Hountondji mais tarde, que vai falar que
não propos uma definição, mas uma descrição, a filosofia
é feita em primeira pessoa e é escrita.” Ele vai se sair com
essa: “eu não estava definindo, eu estava descrevendo.”
Mas a concepção por trás de sua definição/descrição é
uma concepção universalista do que é atividade do
filósofo. Outros autores vão partir de outras perspectivas
sobre o que é filosofia e o caminho para definir a filosofia
africana. O Marcien Towa que também criou o termo
etnofilosofia, avaliou que esses autores não estariam
querendo pensar o próprio contexto, eles estão tentando
provar para os brancos, para os europeus, que eles
pensam. Eles estão partindo do próprio racismo. Eles
chamam de silogismo do racismo, raciocínio do racismo.
Se os europeus disseram que os negros são incapazes de
fazer filosofia, eles querem mostrar que são capazes. Essa
tentativa de mostrar que são capazes de fazer filosofia
levaria a não fazer filosofia propriamente. Porque para o
Towa fazer filosofia significa resolver os seus próprios
problemas, pensar o seu contexto. E ele vai falar... essa é a
diferença dele grande em relação ao Hountondji, que para
o Towa existe filosofia africana, por exemplo, nos contos
tradicionais da lebre e do jabuti ou na filosofia egípcia,
porque você tinha ali a perspectiva de pensar o seu
próprio contexto. Para ele, a filosofia africana é aquela que
resolve problemas africanos. Você só vai ter filosofia

ideias-do-iluminismo-antes-de-locke-e- kant.shtml Acesso em: 18 de


novembro de 2018.

43
africana, só tem filosofia africana, quando você resolve
problemas africanos.

Murilo: De certa forma, ele está voltando lá para o


sábio que estava falando e não escrevia.

Marcos: Mas entra em questão essa posição dele


como filósofo. Você vai dialogar com essa sabedoria
tradicional para tirar dela a resolução dos problemas, mas
não significa que as pessoas, com a sabedoria tradicional,
não tivessem já resolvendo os problemas. Mas é
necessário esse diálogo, é necessária essa aproximação.
Acaba sendo uma nova concepção, uma nova percepção
do que é filosofia africana e do que é propriamente
filosofia, porque a questão da oralidade entra no jogo.
Mas vamos lá, vamos passar para a segunda questão sem
responder a primeira porque é assim que a gente caminha.

44
A etnofilosofia é
realmente filosofia?

45
46
2

Murilo: Tá, a segunda questão que você colocou, que


estava falando da etnofilosofia. A questão é: a
etnofilosofia é realmente filosofia?

Marcos: É, aí entram já muitas outras coisas que a


gente já debateu, mas a ideia de que será que essas
perspectivas que são etnofilosóficas, elas são,
automaticamente, inválidas como o Hountondji tinha
colocado? O Hountondji vai falar “olha, você aponta para
um tipo de percepção de mundo que seria atemporal e
acrítico, como se fosse uma cosmologia, está desenhando
cosmologias. Isso está mais próximo da antropologia e da
religião do que propriamente de uma filosofia.” Mas a
gente pode voltar ao argumento e pensar o seguinte,
considerar o seguinte: até que ponto a filosofia ocidental
também não é etno ou ela deixa de ser etnofilosófica?32
Porque você pensa na narrativa que construíram sobre o
começo da filosofia na Grécia antiga, que foi construída
junto com o conceito de raça na época do Renascimento
quando tinha a história das filosofias falavam de vários
começos da história da filosofia de vários lugares, do

32BERNASCONI, Robert. Etnicidade, cultura e filosofia. Compêndio


de Filosofia. 2ª ed. Trad. por Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Ed.
Loyola, 2002.

47
Egito, da Índia. Havia vários começos da história da
filosofia. A partir do momento que surge o conceito de
raça, você vai falar “não, a filosofia surgiu na Grécia
antiga!” E você cria uma linha de história que conecta a
Grécia antiga com Alemanha, com a França como os
herdeiros dessa tradição. Indaga-se: até que ponto que
essa narrativa não étnica? Até que ponto dá para separar
a percepção, a narrativa da filosofia ocidental, da sua
ontologia de uma perspectiva teológica monoteísta. Dessa
forma, pode-se retroceder a questão e questionar até que
ponto as filosofias não são todas elas mais ou menos ou
acabam sendo vinculadas a um espaço e têm a sua
dimensão étnica, né, os pressupostos nós não
questionamos por que são nossos pressupostos. Mas esse
argumento é interessante, mas eu acho que a gente pode
pensar um autor que foi mais radical em relação a isso,
mais radical em termos, também, políticos que é o Cheikh
Anta Diop. O Cheikh Anta Diop na década de 50, antes
da década de 50 mesmo, em 1948, ele já tinha escrito
textos propondo um renascimento africano. 33 Essa ideia
de renascimento africano seria retomar às origens da
África, retomar às tradições africanas. Para ele significava
buscar as raízes da civilização africana que estariam no
Egito antigo. O Cheikh Anta Diop viu falar “olha, existe
um apagamento total da cultura egípcia e do fato de que
os egípcios eram negros”. Por conta desse fato de que os
egípcios eram negros desconsideraram toda a sabedoria
dos egípcios, todo o conhecimento que os egípcios
legaram para os gregos e para toda a humanidade, porque
a primeira grande civilização é a civilização egípcia.
Retomar essa tradição é uma forma também de retomar a

33DIALLO, Alfa Oumar; SANTOS, Cíntia. Vida e obra de Cheikh Anta


Diop: o homem que revolucionou o pensamento africano. Identidade!
2008, 13: 13-25.

48
própria ideia de África. Olha só como a ideia do Cheikh
Anta Diop está ligada ao renascimento da… ou o
renascimento, na verdade, é uma criação também dessa
África, porque para ele as tradições egípcias não
desapareceram do nada, o Egito não desapareceu do nada.
Você vai ter uma influência da história do Egito dentro de
todo o continente africano. O que a gente precisa é
reconstruir essa influência e repensar essas raízes da
África. Essa perspectiva do Anta Diop, ela, claro, que ela
tem problemas pela linearidade da história que ela
concebe, ela não questiona que a história tem rupturas. É
como se ela falasse “olha, a narrativa iluminista de
progresso da razão não começa na Grécia, começa no
Egito, mas a narrativa iluminista continua valendo.” Mas
seria falar “a razão, ela não é grega, a razão é negra e é
egípcia.” Mas você continua falando que existe uma fonte
só, você continua criando uma narrativa só, né. E você
acaba… também, a filosofia do Cheikh Anta Diop pode
ser considerada por muitos autores, vai ser classificada
como sendo também uma etnofilosofia. Apesar de
dialogar com a história ela vai apontar para um tipo de
perspectiva de pensamento que seria a resolução para os
problemas de hoje, mas que está (dela) no passado. Pode
ver que a perspectiva do Cheikh Anta Diop traz coisas
interessantes e tem progressões. Há outros autores que
desenvolvem ela hoje em dia, por exemplo, a tentativa de
mostrar que há conexões entre as línguas bantu e as
línguas do Egito antigo. É interessante esse trabalho
porque a gente fala, por exemplo, da relação entre o
português e o latim, que é uma língua morta, né. Por que
que as línguas egípcias desapareceram do nada, né? Há
pessoas tentando fazer trabalhos interessantes, até
chamam o Egito Antigo de BuKam, outros chamam o

49
Egito Antigo de Kemet,34 ou seja, há outras denominações
para pensar o Egito Antigo. E para quem parte de um
paradigma em que o Cheikh Anta Diop é a referência, a
história do Egito Antigo tem que ser colocada no início de
todo pensamento da filosofia africana, pensar a filosofia
africana é pensar o Egito Antigo. Todos esses autores que
eu citei, tanto o Tempels, como o Kagame, quanto o
Senghor, quanto o Anta Diop podem ser acusados e são
acusados de caírem na etnofilosofia. A ideia de uma
percepção de uma filosofia de um povo que seria de certa
forma, a histórica e que não teria uma evolução crítica
também dela mesma. Mas o Cheikh Anta Diop, ele talvez
não se encaixe totalmente nisso porque ele fala o seguinte:
ele acha que houve um desenvolvimento próprio de uma
perspectiva africana, mas esse desenvolvimento se
modifica à medida que o modo de produção se modifica.
Para ele, se havia um coletivismo ou uma percepção
coletiva, uma forma de vida determinada, a partir do
momento que o capitalismo chega, essa forma de vida

34 Egito é nome dado pelos gregos, que guardaria na sua própria


escolha o apagamento da referência original do nome KMT ou Kemet,
que descreveria a “terra dos negros” ou “nação negra”. Por isso,
autores ligados as afrocentricidade defendem o uso do termo Kemet,
embora também utilizem o termo Egito, reconhecendo a necessidade
de um período de transição (ASANTE, Molefi Kete e MAZAMA, Ama.
(ed.) Egypt vs. Greece and the American Academy. The debate over
the birth of civilization. African American Images, 2002). Jesus
Molongwa defende que o estudo da filosofia africana deve partir da
recuperação do paradigma epistemológico de BuKam/CiKam. Em sua
descrição o nome Kemet seria uma denominação derivada do copta
que teria sua denominação bantu como BuKam ou Ba/WaKam, que
significa “os de Kame”. Essa última concepção tem como pressuposto
a continuidade entre as línguas bantu e a língua egípcia. O projeto de
reconstrução (MOLONGWA BAYIBAYI, Jesús. Epistemología
africana y concepciones teóricas: reevaluar el impacto de los
presupuestos sobre la filosofía de lo real. 2018).

50
pode estar sendo destruída ou delapidada. Voltando à
vaca fria, então, etnofilosofia é realmente filosofia? A
gente pode pensar em contextualizar essa questão. Será
que a gente pode falar em filosofias de povos indígenas
específicas? Será que uma cosmologia, cosmologia dos
tupis-guaranis é filosofia? Bem, quando a gente olha para
a filosofia japonesa, para a filosofia hindu, não há
separação entre o aspecto religioso e o aspecto filosófico.
Por que a gente tem que cobrar essa separação?

Murilo: E, será que essa separação existe [...] na


filosofia dita filosofia ocidental e tal, da filosofia europeia
ali, será que a religião não está ali por trás, ou seja, a
presença do cristianismo etc.?

Marcos: É, não existe, tipo, os textos do Tales de


Mileto, dos pré-socráticos estavam em templos sagrados.
Essa narrativa de uma separação entre filosofia e religião,
ela é bem questionável. E quem olha de fora questiona
mais ainda. Quando você pensa em pressupostos iniciais
da filosofia, você tem uma coisa interessante sim, porque
a filosofia ocidental pressupõe um tipo de autonomia e de
liberdade. Ela vai estar ligada a essa construção de
autonomia e de liberdade. Enquanto a filosofia africana,
assim como filosofia chinesa, hindu etc. vão buscar essa
harmonia da comunidade, o pressuposto geral da
harmonia da comunidade. É curioso como o filósofo no
ocidente vai ser aquele que se afasta da comunidade, que
rompe com a comunidade para olhá-la de fora, para fazer
teoria. Aquele cara que está fora da comunidade, de certa
forma, é o banido, como Sócrates foi condenado pela
comunidade, torna-se um marginal, ele estaria na
perspectiva do revolucionário, do filósofo, do poeta,
daquele que modifica as coisas. Uma comunidade

51
africana, numa perspectiva, acredito que também vale o
mesmo para perspectiva chinesa, japonesa, a integração
na comunidade, o conhecimento daquilo que é passado
pelos antepassados é uma condição para você se colocar
como um sábio ou alguém que tem conhecimento,
alguém que está em busca do conhecimento. A integração
da comunidade, fazer parte da comunidade é muito
importante para você poder falar e ser respeitado pela sua
fala. É como se houvesse posições bem diferentes, de onde
você fala e a sua relação com a comunidade. Para alguns
autores… eu já li autores africanos que falam assim “essa
diferença talvez seja incomensurável”. 35 Talvez, a gente
precise falar “não existe filosofia africana, existe
pensamento africano” como o pensamento sendo maior
do que a filosofia, como o pensamento sendo mais
importe que a filosofia. Mas eu acho que isso é jogar fora
o bebê junto com a água suja. Eu acho que é interessante
pensar que, para você aprender filosofia africana, é
necessário pensar em outra relação com o conhecimento.
O professor Muniz Sodré, que a gente entrevistou sobre o
livro dele Pensar Nagô36, ele fala que o livro dele sobre
pensamento nagô é um etnofilosofia, e ele vai descrever
como a aproximação da comunidade do candomblé é
uma aproximação por vivências, deve-se integrar na
comunidade para entender ou para captar o
conhecimento37, não é algo dado simplesmente, não é algo
que vai estar num papel ou escrito, você tem que

35 WAMBA-DIA-WAMBA, Ernest. Philosophy and African


intellectuals: mimesis of Western classicism, ethnophilosophical
romanticism or African self-mastery? Quest: An International African
Journal of Philosophy, 1991, 5.1: 5-17.
36 No episódio: #053 – Pensamento Nagô, com Muniz Sodré

– Filosofia Pop. Disponível em: https://filosofia-


pop.com.br/podcast/filosofia-pop-053-pensamento-nago/
37 SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Editora Vozes Limitada, 2017.

52
vivenciar também. E vem uma diferença grande em
relação à filosofia ocidental. Isso vai ser uma diferença
também que a gente vai ter que pensar em termos
pedagógicos: Como é que você vai poder ensinar uma
filosofia que pede vivência? Até que ponto a gente
consegue fazer isso? E é até curioso pensar até que ponto
meus alunos também podem ter acesso a essa filosofia
tradicional ou esse saber tradicional porque a maioria
deles não conseguiram passar pelos rituais de iniciação.
Os estudantes africanos, as estudantes africanas estão
aqui frequentaram a escola tradicional e não tiveram
tempo de vivenciar os saberes tradicionais. Essa é a
grande questão. Se a gente pode pensar a etnofilosofia, ou
vamos pensar o muntu como o homem tradicional
africano, o muntu hoje está em crise, ele só existe em crise
como pensa o autor chamado Eboussi Boulaga 38 , lá em
1968 ele fala “o muntu existe, mas existe em crise.” Ele
está se confrontando com outras narrativas sobre como a
pessoa deve ser. A questão, entretanto, se a etnofilosofia
é ou não filosofia não está bem respondida também.

38 EBOUSSI-BOULAGA, Fabien. La crise de Muntu: authenticité


africaine et philosophie : essai. Présence africaine, 1977.

53
54
A filosofia africana
é única?

55
56
3

Murilo: Assim, depois da segunda questão não


respondida, a gente vai para uma terceira questão a não
ser respondida também, que é: a filosofia africana é única?

Marcos: Pois é, dessa forma, a gente podia pensar em


dois autores para tentar defender que a filosofia africana
é única. Pode-se pensar, por exemplo, no Cheikh Anta
Diop 39 , que vai falar da unidade cultural da filosofia
africana a partir do seu passado egípcio. Você tem uma
diversidade de povos, mas tem um elemento cultural
comum que une todos esses povos, que seria essa herança
egípcia. Essa herança egípcia vai repercutir também…
você pode pensar, que o Tempels, quando ele fala do
pensamento bantu, as pessoas tendem a extrapolar esse
pensamento bantu e pensar toda a África negra como
tendo a mesma forma de pensamento. Mas é curioso
como nem toda a África negra fala línguas bantu, então
essa extrapolação é bem problemática. Mas você pode
pensar essa unidade, não como requisito cultural, mas
como uma construção política. Você pode falar “olha, a
filosofia africana é única, assim como filosofia europeia é
única. É um projeto.” E como é um projeto de poder, é um

39DIOP, Cheikh Anta. A unidade cultural da África negra: esferas do


patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica. Edições Pedago, 2014.

57
projeto político. É interessante politicamente pensar nessa
unidade ou postular essa unidade. Mas quando a gente
fala que a Europa é única, isso só [faz sentido] … talvez
dois séculos atrás, não muito mais do que isso.

Murilo: É, e assim, é um negócio que parece que o


questionamento quanto a isso, quando você fala da
filosofia europeia, é muito pequeno. [...] ninguém acha
estranho, ninguém tem um estranhamento inicial quando
você fala disso, de filosofia europeia. E deveria ter um
estranhamento bem maior, porque cada lugar lá vai
produzir uma coisa bem diferente da outra.

Marcos: E seria interessante até fazer o outro


questionamento que o Kwame Anthony Appiah 40 faz,
que é falar sobre o Ocidente mesmo. O Ocidente também
tem dois séculos. A ideia que existe um Ocidente também,
essa narrativa é bem recente. Ela não é necessária.
Questionar a unidade da filosofia africana talvez seja um
tipo de pergunta que é feita por quem é hegemônico, já
tentando deslegitimar outras formas de pensar, outras
formas de conceber o conhecimento. Porém, acho
interessante considerar que, como existem várias línguas,
mais de 50 países em África, a ideia de uma unidade pode
ser também contraproducente. Talvez seja interessante ter
filosofias africanas múltiplas, porque há espaços
diferentes e concepções cosmológicas também distintas,
formas de vida diferentes. 41 A ideia de uma unidade
acaba sendo empobrecedora em muitos aspectos.
Pressupor a unidade de início pode ser um projeto da
filosofia, mas talvez seja uma negação dessa realidade, da

40 APPIAH, Kwame Anthony. The lies that bind: rethinking identity.


Profile Books, 2018.
41 Sévérine, K. G. Philosophies africaines. Paris, Presence Africaine, 2013.

58
multiplicidade. Por exemplo, quando eu estou na sala de
aula e conto um exemplo “ah, segundo fulano de tal os
balanta consideram isso e isso como sagrado.” Aí tem um
aluno meu que é balanta e é de outra tabanca, é de outra
comunidade, e fala assim “não, mas na minha
comunidade não é assim.” Essa construção de um
universal, a pressuposição de uma universalização talvez
seja só um jogo que a gente… o olhar de fora está
colocando. Desse modo, alguns autores vão falar “não,
talvez seja melhor pensar em filosofias africanas ao invés
de cometer o mesmo tipo de reducionismo que os
europeus cometem ou cometeram, essa ideia de
pressupor um universal de início e fazer todo mundo se
curvar a esse universal.”
A multiplicidade pode ser uma vantagem. Talvez
não seja um problema a existência de diversas filosofias
africanas, que não seja uma só filosofia africana. Porque,
eu acho que é interessante também pensar como a busca
de uma filosofia africana está ligada à busca de uma
identidade africana. Toda filosofia moderna é a
construção de uma identidade europeia. O que é o
homem? Descartes responde, Kant responde, Hegel
responde, antes dele, Rousseau responde. Afinal, são
várias respostas de filósofos europeus sobre o que é o
homem. Por que a filosofia africana tem que dar uma
resposta fechada sobre o que é o africano ou o que é a
África? Seria repetir o projeto moderno, que é o projeto
que deu em toda essa construção colonial de racismo,
preconceito, machismo, dessa estrutura do capital, que
deve ser questionada. Essa questão de a filosofia africana
ser única ou não ser única pode ser pensada em termos
estratégicos, de acordo com o espaço, como se pretende
responder a ela. Eu acho que a reivindicação
panafricanista, como você colocou bem no início, sobre a

59
questão de como as pessoas pensam sua identidade no
cotidiano: “Será que as pessoas pensam a África unificada
quando estão em África?”. Não sei, mas será que é
interessante pensar na união das pessoas negras para
além dos países, uma solidariedade que não se limite aos
espaços. Essa construção do panafricanismo não é
interessante politicamente? A solidariedade não precisa
ser baseada em qualquer ideia de raça, mas pode ser
construída a partir de narrativas. Assim, para essa
unicidade da filosofia africana, a resposta deve ser
pensada de forma estratégica, para ver onde você está
falando e para quem você está falando, qual é a audiência
dessa resposta.

Murilo: Ou seja, é mais uma pergunta não


respondida.

Marcos: Claro.

60
Qual seria a linguagem
ou quais seriam as
linguagens da filosofia
africana?

61
62
4

Murilo: É. E agora vamos à quarta pergunta a não ser


respondida que é: qual seria a linguagem ou quais seriam
as linguagens da filosofia africana?

Marcos: Há dois aspectos para a gente dividir


grosseiramente, primeiro, linguagem em termos de
língua europeia ou língua nativa, língua tradicional,
língua indígena: qual dessas linguagens é a linguagem da
filosofia africana? É possível fazer filosofia africana numa
língua colonizada ou colonial? Ou para pensar a filosofia
africana eu tenho que usar uma língua que seja realmente
do continente africano, que não seja colonizada? Alguns
autores vão bater o pé e defender que só é possível fazer
filosofia africana em línguas africanas. A partir do
momento que você começa a pensar e desenvolve seu
pensamento em outra língua, começa a estruturar seu
mundo de forma diferente. A linguagem já estrutura seu
mundo. Assim, se quer fazer filosofia africana ou pensar
a cultura dos povos africanos, é necessário pensar em
línguas africanas. Temos, por exemplo, um autor
chamado Ngugi Wa Thiong’o que é um romancista
importante, que afirma que o Renascimento africano,
assim como o Renascimento europeu, deve passar pela

63
recuperação da língua que as pessoas falam.42 Na Europa,
quando houve o Renascimento, as pessoas começaram a
escrever em italiano, francês em vez de escrever em latim.
Na África, para haver um Renascimento da cultura local
e valorização da cultura endógena, deve-se passar pela
valorização da língua que as pessoas falam [no cotidiano].
Vou dar um exemplo grosseiro aqui, a UNILAB foi
construída para ser uma universidade dos países
lusófonos, aqueles que falam português. Mas se você
avalia a realidade dos países localmente, constata-se que
em Guiné-Bissau pequena parte da população fala
português. A maior parte da população fala a língua
crioula, que é uma língua que foi construída, híbrida, mas
nem toda população fala crioulo. Há uma parte da
população que não tem essa língua também. Qual é a
língua de Guiné-Bissau? Com certeza não é o português,
uma vez que a menor parte da população fala português,
mas esta é a língua oficial. 43 Isso traz um monte de
problema no ensino, na forma de se expressar. Às vezes,
a pessoa consegue responder alguma coisa se for descrita
em crioulo, mas se colocada em português haverá mais
dificuldade para se expressar. Há, portanto, inúmeras
dificuldades quando a gente pensa nesse tipo de tradução.
Aí entra uma coisa interessante, um filósofo chamado

42 THIONG’O, Nhugi Wa “Lembrando da África: memória,


restauração e renascimento africano”. In: LEUER, Helen e Anyidoho,
Kofi (org.) O resgate das ciências humanas e das humanidades
através de perspectivas africanas Brasília: FUNAG, 2016.
Disponível em: http://funag.gov.br/biblioteca/download/resga
te-das-ciencias- humanas-colecao.pdf. Consultado em 06/11/2019.
p.2663-2692.
43 SEMEDO, Odete. A língua e os nomes na Guiné-Bissau.

Disponível: em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubri


cas/lusofonias/a-língua-e-os-nomes-na-guine-bissau/109
Consultado em 6/11/2019.

64
Kwasi Wiredu, que defende uma espécie de tradução
conceitual, ele pede que a gente pense até que ponto
certos conceitos ocidentais-europeus podem ser
traduzidos em línguas africanas? Por exemplo, quando
Descartes fala “eu penso logo existo.” Wiredu vai mostrar
que em diversas línguas africanas você não pode separar
pensamento e existência. Essas duas coisas estão
conectadas, o que tornaria a frase quase intraduzível. A
gente falou intraduzível, mas quando o cara está
explicando, ele já está traduzindo.

Murilo: E eu acho interessante também porque você


não consegue separar, já tem na própria linguagem o que
o Descartes está afirmando, que, [...] que não dá para
separar essas duas coisas?

Marcos: Mas você conseguiria separar assim: eu sou


a coisa pensante, de um lado, e do outro lado, a coisa física.
Elas já são conectadas, você não teria essa distinção
radical. Esse tipo de colocação é uma colocação comum,
depois a própria filosofia vai questionar com Descartes…

Murilo: É, ela é uma colocação comum também


depois de Descartes?

Marcos: Sim, sim. Mas a ideia de que o experimento


mental seria um experimento universal pode ser
questionada a partir do momento em que a linguagem
não permite uma tradução tão fácil. Por exemplo, na
língua iorubá a ideia de conhecimento depende de uma
vivência pessoal, aquilo que você lê nos livros é
considerado crença simplesmente. Você só conhece aquilo

65
que você experimenta efetivamente44. É outra percepção
do que é conhecimento, mas isso não significa que as
descrições do Ocidente [..] estão totalmente erradas. Elas
podem ser adaptadas e podemos pensar qual o critério
que está sendo colocado? O critério da vivência. Até que
ponto esse critério também pode ser aplicado no contexto
ocidental? Essa questão da tradução ou da tradutibilidade
é séria, porque quantas vezes as pessoas falam aqui no
Brasil que a filosofia só é possível em alemão, a filosofia
só é possível em francês ou em grego. Isso acaba sendo

44 Esta é uma pesquisa desenvolvida por Barry Hallen e J. O Sodipo no


livro Knowledge, belief, and witchcraft: Analytic experiments in
African philosophy (Stanford University Press, 1997), posteriormente
aprofundada pelo primeiro no sentido de avaliação de valores (HALLEN,
Barry. The good, the bad, and the beautiful: discourse about values in
Yoruba culture. Indiana University Press, 2000). No livro A short history
of African philosophy (2ª ed. Indiana University Press, 2009) Hallen
resume este ponto assim: “Por exemplo, no discurso iorubá,
"conhecimento" e "verdade" ou “certeza” podem surgir apenas da
experiência em primeira mão. Informações obtidas com base em fontes de
segunda mão, como outras pessoas, a mídia etc., apenas como "crença" e
como possivelmente verdadeiras ou possivelmente falsas. Se um
indivíduo é capaz de testar uma parte dessas informações de segunda mão
e verificá-las em primeira mão, estas podem ser elevadas para
"conhecimento" que é "verdadeiro". Se estas permanecem não testadas e
não verificadas, devem permanecer como uma "crença" que é
possivelmente verdadeira ou possivelmente falsa.
Para aqueles acostumados a pensar nos termos do idioma inglês, as
diferenças entre as duas culturas sobre a confiança das informações de
segunda mão devem ser aparentes. A esmagadora maioria do
conhecimento que uma pessoa instruída na cultura Ocidental
considera "verdadeira", seja científica, histórica, factual etc., é recebido
pelos iorubás como sendo de segunda mão e, portanto, do ponto de
vista deles, devem ser reclassificadas como "crenças". Se os falantes de
inglês persistirem em suas afirmações de que essas informações (que a
grande maioria nunca testou e não poderá testar) são conhecimentos,
os iorubas provavelmente as veriam como ingênuo e ignorante”
(HALLEN, 2009, p.53).

66
um tipo de percepção que tem a língua como forma viva,
não como instrumento de comunicação. E aí outros
autores vão falar “não, olha só, o Ngugi Wa Thiong’o está
exagerando, até porque ele escreveu os livros dele em
gikuyu (que é uma língua do Kenya, que é a língua
tradicional, a sua língua materna) depois ele mesmo
traduziu esses livros para o inglês”. Ele teve que traduzir
esses livros para o inglês para falar para mais gente, ou
seja, a língua toma dimensão instrumental…

Murilo: É, isso é outro ponto que eu estava pensando,


você falar que... tudo bem, você só vai poder fazer
filosofia africana falando uma língua africana etc., não
colonizada, mas para quem você quer falar? Porque você
acaba se limitando bastante: quem vai poder entender o
que você está falando? Não tem o diálogo para fora
daquele grupo… não consegue ter um maior alcance.

Marcos: Por isso que a gente tem que fazer o nosso


podcast em inglês.

Murilo: Mas é verdade também, isso é uma verdade


também.

Marcos: Pois é, mas acaba que esse é um pressuposto


também político, é uma divisão política que você está
fazendo. O gikuyu é a língua que o Ngugi Wa Thiong’o
defende no Kenya, mas você tem que ver que a população
gikuyu é o grupo maioritário no país. Então, se ele fala
“vamos defender o gikuyu como língua nacional” ele está
submetendo outras pessoas também, está colocando
muita gente, a partir daquela posição dele de poder,
abaixo deles. Em 2008 houve um massacre no Kenya dos
gikuyu em relação a outros povos minoritários, depois de

67
uma eleição conturbada.45 É bem problemática a ideia de
adoção das linguagens indígenas. Deve ser uma coisa
bem pensada, a partir dessa questão de como adotar a
linguagem de um povo significa não adotar a linguagem
de um outro povo? Como fazer conviver essas duas
línguas dentro do país? A gente tem que pensar também
em outros problemas, mas, com certeza, se você perde
uma língua, perde também um modo de vida. E, nessa
mesma direção, você pode considerar até que ponto as
línguas do colonizador podem ser descolonizadas,
porque, por exemplo, a gente fala português, mas o
português que a gente fala no Brasil já passou de
brasileiro, né? Já tem muita influência de outros lugares e
uma dicção tão diferente que os próprios escritores
africanos, no processo de independência, procuravam
inspiração na literatura brasileira para poder se apropriar
da língua portuguesa. Talvez a gente tenha que repetir o
mesmo processo ou a mesma construção. A gente pensa
em autores como, por exemplo, Mia Couto lendo
Guimarães Rosa. São processos de apropriação da língua,

45 O escritor Byniavanga Wainaina descreve como a sedutora


promessa de descolonização a partir da língua gikuyu tornou-se uma
conversa “em Gykuyu, para os gikuyu, e sobre os gikuyus”, sendo que
“o resto do Quênia se tornou as Tribos”, que precisariam ser
controladas: “Ser gikuyu, dizem agora todos os dias, em quase todos
os fóruns onde gikuyus se reúnem, é ser racional. Nós somos a
objetividade da classe média invisível do Quênia. Para os outros
pertencerem entre nós, devem se comportar como nós. Não
precisamos examinar a nós mesmos” (WAINAINA, B. Um dia vou
escrever sobre este lugar. Memórias. Trad. Carolina Kuhn Facchin.
São Paulo: Kapulana, 2018. p.249). A construção desse “tribalismo
positivo” foi o prenúncio das crises de 2007-2008, e se anunciava no
discurso de que “Ser gikuyu é não ser uma tribo. E ser queniano é não
ser gikuyu. Estamos dizendo que somos o padrão do Quênia, e vocês,
outras pessoas, é melhor que se encaixem. Se você se comportar,
seremos legais com você” (Idem. p.251).

68
transformando a língua em outra coisa, se apropriando
mesmo, instrumentalmente.

Murilo: E tem uma coisa que eu também achei


interessante. O que você falou, de defender de usar uma
língua não colonizada para pensar o próprio povo e o
próprio lugar. E aqui no Brasil, há algumas pessoas na
academia que escrevem em português e não querem
escrever em outros idiomas em que seriam mais lidas. É
uma coisa parecida com isso, de defender que a gente tem
que escrever e falar em português etc., sendo que o
português já é um idioma de colonizador.

Marcos: A gente tem dois aspectos, a ideia de que a


linguagem, ou é modo de vida, de um lado do espectro,
ou, de outro lado do espectro, a linguagem como
instrumento de comunicação. 46 Eu acho que se pode
puxar para um lado ou para o outro, mas é como se fosse
uma luta inglória quando se coloca a linguagem somente
como uma coisa e não como outra. Geralmente as pessoas
partem dessas duas concepções, como se elas fossem
diametralmente opostas. Você tem também pessoas que
só escrevem em inglês e só publicam em inglês. Isso é uma
construção que pressupõe uma outra questão: “com
quem você quer dialogar?”, “para quem você está
trabalhando?”. Se você pensa em termos políticos, a
construção de uma esfera pública onde a filosofia é
importante não depende então da construção da filosofia
em português. A gente tem diversos autores que são
importantes e fazem filosofia em inglês, mas que não
dialogam, não estão interessados em fazer parte desse

46C.f. Tangwa, G. “Revisiting the Language Question in African


Philosophy”. In The Palgrave Handbook of African Philosophy
Palgrave Macmillan, New York, 2017. pp. 129-140.

69
diálogo em português. E são importantes, e estão
dialogando… são reconhecidos pela academia
internacional, mas vem aquela questão meio política
também, da contribuição com a construção de uma esfera
pública e de uma esfera de diálogo. Será que, quando as
pessoas, por exemplo, cantam músicas em inglês ou
cantam músicas em português… tem sempre um jogo [de
poder], né? O pessoal fala sempre da qualidade da música
brasileira, a importância da música brasileira, mas a
hegemonia continua sendo norte-americana e continua
sendo da língua inglesa. Têm-se, assim, um jogo de poder
político que está implícito, e de identidades também. Qual
a identidade que é mais importante e em que contexto que
ela é mais importante? No caso de línguas, só para a gente
considerar essa relação do unanimismo, quando a gente
pensa no massacre de Ruanda. Houve toda uma
construção de narrativas sw oposição a partir do
colonialismo, mas é interessante só pontuar que os dois
povos que estavam lutando, tutsis e hutus, falavam a
mesma língua. E, geralmente, as brigas mais acirradas são
entre povos que se entendem, por exemplo, dentro da
casa, dentro da família, a gente tem as brigas mais
intestinais. Exemplo: eu estou trabalhando numa
universidade que tem como pressuposto a língua
portuguesa como construção de um ponto em comum, de
conversação entre os povos africanos lusófonos e o Brasil.
Mas até que ponto que a gente está partindo de um
pressuposto que não respeita como as próprias pessoas se
veem ou qual é a língua que elas reivindicam para elas
mesmas? Isso já é muito complicado. A gente pode pensar
que essas mesmas questões que estamos fazendo em
relação à filosofia africana valem quando vamos pensar
na relação que temos com os povos indígenas brasileiros.
Se perdemos uma língua também perdemos uma visão de

70
mundo, uma relação com o mundo que talvez não seja
recuperada. E se existe um conceito que seria muito
importante, uma relação, uma percepção de mundo que
seria muito importante? [Eduardo] Viveiros de Castro
está tentando traduzir esse tipo de vivência e percepções
de mundo em filosofia e tem resultados interessantes. O
que a gente sabe é que a cosmovisão de que temos
domínio da natureza, de relação predatória, não está
dando resultados muito legais. Então, a podemos ter que
rever. Mas em relação a concepção de em qual linguagem
deve ser pensada a filosofia africana, seria interessante
colocar também o seguinte: hoje quando se pega a
bibliografia, tem muito material de filosofia africana em
inglês. E há, também, uma quantidade relevante de
material em francês. Em português é pouca coisa, em
italiano tem mais coisa provavelmente do que em
português, porque o Vaticano está muito interessado na
construção de filosofia africana.

Murilo: Será por quê? Não sei.

Marcos: Pois é. Então, geralmente os filósofos


africanos do Vaticano… Filósofos africanos do Vaticano é
uma construção bem bacana. Mas quando você pega um
filósofo africano que é padre, não sei por que, sempre tem
um Deus único lá no final das contas, sabe. Tem um Deus
único escondido, né, e o pessoal descobre esse Deus único
e descobre que, na verdade, todos os povos têm a sua
concepção de Deus lá, só que eles esconderam esse Deus
no politeísmo, é preciso só mostrar para eles “aquele Deus
lá é o verdadeiro, os outros são falsos.”47 Conclui-se que

47Avaliandoo que chama de teologia da adaptação, de autores como


John Mbiti, Vincent Mulago ou Dominique Nothomb, Valentin
Mudimbe identifica que seu método de análise “sugere uma política

71
há projetos políticos sim, projetos que estão ligados à qual
língua você está falando. Por exemplo, quando a gente
começa a falar muito da filosofia bantu como a unidade
da filosofia africana, a gente tem que lembrar que o Congo
adotou essa perspectiva de uma filosofia bantu porque foi
lá que surgiu e o governo do Congo tomou o bantu como
a sua identidade, para tanto, criaram-se universidades ou
centros de estudos dos povos bantus. De certa forma, é o
nacionalismo ligado a essa percepção de que há uma
filosofia bantu. E é uma perspectiva de construção do
pan-africanismo a partir dos povos bantus. Se você
considera a África do Sul, ela ficou para atrás na corrida
da filosofia africana, demorou muito tempo para poder
produzir uma filosofia africana. Mas economicamente ela
é muito importante. Existe a ideia de ubuntu. O ubuntu
vai surgir na África do Sul e tem todo um lobby também
em torno dessa perspectiva. Qual é a palavra que a gente
vai usar para pensar esse senso comunitário que faz parte
da filosofia africana? Qual que é a palavra que a gente vai
utilizar? É bisoidade como o Bas’Ilele Malomalo 48 usa?,

de “retrodicção” (retrodiction), ou seja, o oposto de previsão. Estabelece


um paralelo análogo entre o desempenho missionário sob o domínio
colonial e o futuro do cristianismo sob a iniciativa africana. Insiste na
necessidade de buscar nos sistemas tradicionais de crenças sinais ou
harmonias unânimes que possam ser incorporados ao cristianismo,
afim de africanizá-lo sem modificá-lo fundamentalmente.
Politicamente, o método aceita a universalidade de um Deus
Christianorum mas questiona os resultados, tanto estatísticos quanto
psicológicos, do desempenho missionário. De fato, dado o espírito e a
força global desta teologia da adaptação, a empresa missionária
poderia e deveria ter tido mais sucesso se seu objetivo fosse elevar
o Deus Abscondito africano à sua realização no Deus Christianorum”
(MUDIMBE, V. Y. Parables and fables: Exegesis, textuality, and
politics in central Africa. Univ of Wisconsin Press, 1991. p.13-14).
48 MALOMALO, Bas'ilele. Filosofia do Ubuntu: Valores civilizatórios

das ações afirmativas para o desenvolvimento. Curitiba: CRV, 2014

72
ou Ubuntu49? Qual vai ser a palavra, em qual idioma? Há,
assim, uma disputa que é de localização, entre esses
lugares. É bem interessante ver também as relações de
poder entre Gana, Nigéria, Senegal. São disputas para ver
quem é que vai contar essa história. Lá atrás, na rabeira
desse jogo, estão os filósofos moçambicanos
principalmente, os bissaguinenses, angolanos, são-
tomenses, os que produzem em português.
Principalmente a escola de Moçambique que é a mais
importante na África. Volta novamente a questão da
hegemonia e da própria possibilidade de produção
filosófica. Existe outra parte da questão que a gente não
levou em conta, agora entra em jogo: porque essa questão
de qual linguagem deve ser empregada, tem um outro
lado, da oralidade e da escrita. Como você vai pensar a
filosofia? Vai ser só a parte dos escritos? E você vai ter a
questão da oralidade, mas também a questão que não está
só na oralidade, que está nas roupas, na música, nos
objetos, que estão ligados a uma simbolização do mundo
e uma construção do mundo que tem significação.

Murilo: É no corpo, na expressão corporal, na dança


que também é muito importante.

Marcos: Sim, sim. A percepção de quais linguagens


tem que levar em conta nessa diferença, se o
conhecimento também está ligado à vivência, a vivência
depende de um tipo de interação com elementos que
geralmente a filosofia não dá conta, porque são não-
linguísticos. O conhecimento de uma cultura tem muito a
ver muito com o conhecimento dos símbolos que aquela
cultura está utilizando. Por exemplo, os asantes tentaram
entrar em contato duas vezes com os ingleses mandando

49 Em Ioruba poderíamos falar em Eniyan ou Ywapele

73
para eles um machado, um machado que tinha um
símbolo importante para eles, junto com alguns outros
símbolos, vinculados a provérbios que a gente conhece
como adinkras. E os ingleses, de início, perguntaram para
os povos do litoral lá o que significava o gesto e a
explicação era de que “estariam chamando para a guerra.”
Quando o inimigo traduz… eram povos rivais, que, ao
invés de traduzir aquilo e falar esse símbolo é o símbolo
de paz, a construção da paz que eles estão fazendo.”
Deram outra traduçã50 A própria possibilidade de diálogo

50 Esse incidente do machado de ouro (sika akuma) mostra bem as


dificuldades e perigos de más interpretações. Em 1880, Owusu
Taseamandi conseguiu escapar da justiça dos asante e procurou
proteção junto aos ingleses. O fugitivo era um nobre asante por parte
de pai e por parte de mãe pertencia a realeza dos Gyaman. O
Asantehene (rei asante) Mensa Bonsu (1840-1896), que depois da guerra
contra os ingleses entre 1873-74 procurava restaurar o seu reino,
precisava se prevenir contra novos conflitos, mas também precisava
capturar o fugitivo. A solução que encontrou foi enviar para comissão
de nobres levando um machado de ouro para os ingleses. Mas o que
significava aquele machado? O governador britânico W. Brandford
Griffith precisava decifrar o significado daquele presente.
Perguntando a um príncipe Gyaman obteve a explicação de que se
tratava de um aviso de ataque: o Rei abriria o caminho para a
realização de seu objetivo; também um linguista de outro rei
consultado indicou a ameaça de cortar as arvores que estavam no
caminho para que o rei chegasse ao objetivo de resgatar o fugitivo
protegido pelos ingleses. Griffith em reunião com reis em Axim e
Elmina obteve a explicação unanime de que se tratava de um ultimato.
No entanto, o rei de Winneba indicou que o machado não era um
símbolo de conflito, mas a indicação de que se queria cortar quaisquer
obstáculos que pudessem levar ao conflito. Os asante do litoral
também reforçaram esse sentido de construção da paz através da
diplomacia para contornar a situação, relataram as crenças mágicas em
torno do machado, que faria o portador ter seus pedidos atendidos e
alertaram o governador do erro que seria seguir a interpretação dada
pelos Fanti , indicando que não queriam que o presente fosse
repassado para esse povo rival, mas enviado diretamente para a corte
inglesa da Inglaterra, como presente para a rainha Vitória. Peggy

74
intercultural depende dessa percepção de uma linguagem
que vai além da linguagem falada. Em Guiné-Bissau você
tem uma imagem, uma figura que é a do tcholonadur. É
uma espécie de tradutor intercultural. Ele é convidado ou
é chamado a comparecer quando existe uma disputa e é
necessário traduzir o que uma pessoa fala para outra que,
às vezes, têm línguas distintas. Ele tem essa posição de
intermediário em disputas. Eu acho que, dentro dessa
percepção de linguagens diferentes, a filosofia também
tem que ocupar esse lugar de intermediário ou ela não
consegue sair desse lugar de intermediário, de fazer
diálogo intercultural. E a música, os filmes, a dança, tudo
isso se tornam elementos muito importantes da
construção cultural. Isso vale também para a diáspora,
quando você pensa na filosofia negra nos Estados Unidos
ou na filosofia negra no Brasil, se você deixar de
considerar as práticas que foram feitas com o corpo –
porque só tinham o corpo para construir práticas
culturais – não vai conseguir entender quantas riquezas
foram construídas em termos de música, de dança e de
significado. Assim, aqui entra outra ruptura. Geralmente
a filosofia ocidental é muito marcada pela linguagem,
renega-se aquilo que não é linguístico, aquilo que não
pode ser colocado em linguagem é desprezado.

Appiah identifica dois provérbios asantes que mostram como o


Machado de Ouro indicaria o caminho da diplomacia: "Por mais difícil
que seja uma situação, não usamos um machado para cortá-la, mas
resolvemos com a boca" e "Seja qual for o problema que você encontre
no caminho, será que é necessário um machado para cortá-lo?".
APPIAH, Peggy. “Akan Symbolism”. African Arts, Vol. 13, No. 1
(Nov., 1979), pp. 64-67. Imagens do Machado de ouro objeto dessa
controvérsia estão aqui (embora a explicação dada para o artefato
mantenha a ambiguidade de seu sentido): https://www.rct.uk/
collection/62821

75
Murilo: E linguagem pensada em texto...

Marcos: Sim, sim.

Murilo: Não há uma visão ampliada da linguagem,


da linguagem corporal e outras expressões como sendo
coisas linguísticas também, né?

Marcos: Geralmente quando alguém dança, o


filósofo fecha a boca. Ele não consegue dar conta de
expressões corporais. É curioso que Sócrates era
dançarino e Nietzsche queria que os deuses dançassem,
acreditaria num Deus que dança. Cornel West, que é um
filósofo negro norte-americano, fala: “eu sou esse Sócrates
que dança!” A cultura negra nos Estados Unidos tem esse
elemento da dança, que se a gente for pensar no Brasil
existe também. Mas eu queria destacar que não é
interessante prender a ideia do corpo ao negro como se
fosse “temos que pensar o corpo porque é negro.” E
pensar em termos de atividades físicas simplesmente.
Não é por aí, não podemos fazer esse reducionismo, que
acaba sendo entrar em outro tipo de preconceito na
perspectiva de que o Senghor falava, de que o negro tem
o ritmo dentro de si etc., aquela ideia “os negros sabem
dançar etc.” Esse tipo de afirmação generalizante acaba
trazendo também uma carga de preconceito que é bem
problemática.

76
Quais as conexões entre
a filosofia africana, afro-
brasileira e feminista?

77
78
5

Murilo: Depois vamos para a quinta questão a não


ser respondida que é: existem conexões entre filosofia
africana afro-brasileira e feminista.

Marcos: Essa questão, ela é muito extensa, então a


gente vai continuar não respondendo. Mas vamos lá. Em
primeiro lugar, há conexões.

Murilo: Já respondeu, pronto, acabou.

Marcos: Pronto, acabou. Há conexões. Quais são as


conexões? Todas essas filosofias são filosofias contra-
hegemônicas. Tanto a filosofia africana, como a filosofia
afro-brasileira e filosofia feminista vão se opor ao modelo
padrão daquilo que é conhecimento, que está ligado ao
homem branco europeu, cis [gênero] etc. Você vai ter uma
caracterização de quem vai ser o falante que tem
conhecimento. E todas essas perspectivas filosóficas vão
apontar para essa pressuposição e questionar essa
pressuposição de quem teria o conhecimento. Nisso há
uma unidade. Só que fazer filosofia africana e
desconsiderar que todos os autores que eu falei até agora
são homens fica difícil. Por exemplo, vou falar de duas
pensadoras. Elas são sociólogas, mas elas vão entrar aqui
dentro desse universo da filosofia africana. Quando a

79
gente pensa na filosofia africana, na década de 80, tem
dois nomes, de sociólogas ou antropólogas, mas que
funcionam dentro do jogo da filosofia africana, que são a
Ife Amadiume 51 e a Oyeronké Oyewumi 52 . Essas duas
autoras são nigerianas e vão fazer um trabalho que, de
certa forma, é complementar. A Ifi Amadeumi é igbo e
estudou os povos igbo e vai mostrar que, dentro desses
povos, a relação entre gêneros não funciona como a
relação entre os gêneros que se dão no ocidente. Você teria
a possibilidade de esposas masculinas, maridos
femininos, você poderia ter a união de várias pessoas do
mesmo sexo, em que a relação sexual não estava
vinculada a essa união de casamento, que os filhos eram
considerados parte daquela aliança de poder. Você tem
várias possibilidades de arranjo e de configuração das
relações entre os gêneros. E ela vai analisar e mostrar que
a relação de gêneros e papéis não eram muitos
identificadas, não eram muito marcadas. E com a
colonização houve uma desconstrução desse lugar, dessa
articulação em que as mulheres ocupavam espaços
políticos e que elas tinham também funções ou tinham
uma construção no espaço público diferenciada. E aí já
começa um problema. Um grande problema, porque ela
vai mostrar que, na linguagem, não existiam esses
gêneros definidos. E eu vou ter que falar disso e vou usar
os gêneros definidos. Isso é bem problemático e ela vai
mostrar que o pressuposto da divisão entre masculino e
feminino é algo do ocidente. O que acontece? Em

51 AMADIUME, Ifi. Male daughters, female husbands: Gender and sex


in an African society. Zed Books Ltd., 2015. Ver também: SCHOLL,
Camille Johann. Matriarcado em África: uma análise sobre o pensamento
de Cheikh Anta Diop e Ifi Amadiume. Revista de História Bilros.
História(s), Sociedade(s) e Cultura(s), 2019, 6.13: 174-189.
52 OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. The invention of women: Making an African

sense of western gender discourses. U of Minnesota Press, 1997.

80
determinado momento, a colonização chega e as
mulheres que estão no poder têm que se masculinizar
para ocupar aquele espaço. Olha só, ela olha para a
Inglaterra e fala “Margareth Thatcher, ela é a Dama de
Ferro, mas tem que se masculinizar para poder ocupar o
espaço de poder. A Câmara dos Lords não deixa de ser a
Câmara dos Lords porque as mulheres que estão lá não
podem ter o papel feminino. No lugar do poder não seria
aceito o papel feminino.” Ife Amadeumi vai mostrar
como essa configuração entre os povos igbo seria
complexa e a Oyewumi vai defender que a ideia de
gênero aconteceria dentro da sociedade iorubá. Ela vai
mostrar que a sociedade iorubá vai se dividir muito mais
por outros aspectos, ligados à idade, a senioridade, a
quem é mais velho e as divisões dos papéis não vão ser
baseadas na visão da genitália. Você vai ter divisão de
papéis baseadas em outros pressupostos, não somente
desse de a pessoa ter determinado sexo que faz com que
ela ocupe determinado papel ou determinada função. As
duas autoras apontam para um grande problema dessa
aliança também entre as mulheres africanas e o
feminismo. Até que ponto o feminino dá conta dessa
afirmação de lugares diferentes para os gêneros? Até que
ponto você tem uma conexão? até que ponto eles podem
ser aliados ou podem ser mais um passo dentro do jogo
de colonização? E há vários outros movimentos
feministas, várias outras perspectivas feministas em
África que vão estar ligadas a vários aspectos de
emancipação que não querem somente afirmar a posição
das mulheres, mas querem uma transformação política.53

53Por exemplo, enquanto Clenora Hudson-weem, fala de um


mulherismo africano (Africana Womanism); Omolara
Ogundipe, desenvolve um movimento denominado
STIWAnism (Social Transformations Including Women in

81
De qualquer forma, vê-se que há uma tensão entre o
feminino e a filosofia africana, de dois modos, (1) até que
ponto as mulheres em África vão se identificar com o
feminino e (2) até que ponto que a filosofia africana se
coloca como patriarcal e reproduz esses lugares de poder
que do Ocidente. Existem, hoje, no Brasil um
reavivamento desses estudos; os estudos de gêneros estão
cada vez mais importantes e essa tradição africana é
muito rica por trazer novos questionamentos e novos
posicionamentos. Mas quando você pensa o que elas têm
em comum e o que têm de diferente, algumas filósofas
africanas começam a falar em mulherismo54 africano, para
pensar outra relação entre as mulheres. Quando a gente
pensa a relação entre filosofia africana e a afro-brasileira,
existem conexões, claro, mas há diferenças que são
importantes. Eu vou falar uma diferença importante. O
racismo já é um pressuposto, uma questão central no

Africa); já Catherine Achonulu fala de Motherism; e Obioma


Nnaemeka, defende um Feminismo de negociação ou “nego-
feminism” (Oyeleye, Olayinka. "Feminism (s) and oppression:
Rethin- king gender from a Yoruba perspective." The
Palgrave Handbook of African Philosophy. Palgrave
Macmillan, New York, 2017. p.354-355). Essa multiplicação de
“ismos” marca uma grande resistência e rejeição ao feminismo
como uma “perspectiva ahistórica e universalista sobre
mulher e gênero que se tornam justificativa para posições
paternalistas” e outras formas de distorção na interpretação
de sociedades africanas, em que “as agendas feministas
tomam uma direção neocolonial e ra- cista” em relação ao
pensamento indígena (DU TOIT, Louise; COET- ZEE, Azille.
Gendering African Philosophy, or: African Feminism as
Decolonizing Force. In: The Palgrave handbook of African
philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017.p.334).
54 C.f.: COLLINS, Patricia Hill. O que é um nome? Mulherismo,

feminismo negro e além disso. Cadernos Pagu, 2017, 51: 1-24, e NJERI,
Aza; RIBEIRO, Katiúscia. MULHERISMO AFRICANA: práticas na
diáspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, 2019, 19.2: 595-608.

82
Brasil, mas não é tão importante dentro dos países
africanos. Por exemplo, um estudante angolano estava
trabalhando com a saúde das mulheres negras aqui na
Bahia etc. É importante que no Brasil a gente tenha esses
trabalhos específicos que tratem da saúde de uma
população que tem determinadas doenças com mais
incidência, uma posição social de fragilidade etc. Mas
quando você pensa em Angola, quando alguém fala
“estou estudando a saúde da mulher negra.” Aí você
questiona “o que é isso?” Não faz sentido, em Angola
pensar a saúde da mulher negra separada. É como se o
ponto de partida do universalizável fosse outro. São
problemas distintos, são lugares distintos. Algumas
questões se colocam de forma distinta. Mas eu queria
destacar uma questão que é muito interessante, a ideia de
ancestralidade que é interessante e é polêmica. Porque
quando se pensa a ancestralidade em termos africanos
você tem uma construção diferente. Por exemplo, dentro
de África, cada orixá estava ligado a um espaço, as
pessoas nasciam naquele espaço eram filhas daquele
orixá. Cada orixá estava ligado a um determinado
território. Quando você pensa a ancestralidade, a partir
do candomblé, por exemplo, todos os deuses de vários
espaços se reuniram em um lugar, no terreiro.55 Assim,
aquela perspectiva, que era local, acabou sendo
transformada em algo universal, porque qualquer pessoa
que entra no terreiro vai poder ver ou qualquer pessoa
que entra na religião ou se aproxima da religião vai poder
ver qual a sua relação com qual orixá e qual a sua
construção de identidade também com qual orixá etc. Mas
vamos lá. Quando a gente pensa em outros povos
africanos (e acho bom ressaltar que na UNILAB temos

55C.f. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negra-


brasileira.Mauad Editora Ltda, 2019.

83
gente de vários lugares, de Guiné-Bissau, de Angola etc.)
geralmente você tem divisões sociais a partir de
ancestralidades diferentes: os filhos de determinada
ancestralidade ocupam tal posição social. Por exemplo,
entre os bijagós há quatro ancestrais, são quatro mulheres
que são ancestrais. É interessante que são quatro
mulheres. E os ancestrais de uma determinada deusa vão
ser os que vão pescar, de outra deusa vão governar etc.
Tem-se, assim as divisões de trabalho social de acordo
com a ancestralidade. Entre os papéis existem dez
ancestralidades, só uma governa. Essas ancestralidades
que governam têm alguns privilégios e algumas
responsabilidades inerentes à sua posição. Podemos
pensar que antes do contexto colonial havia até um
equilíbrio social em torno dessa divisão social de poder.
Mas a partir do momento em que você tem a colonização
essa estrutura também está se rompendo por conta do
capitalismo. Certamente, a maior parte dos meus alunos
africanos são filhos de pessoas que estão ligadas a grupos
que governam. A ancestralidade está ligada à divisão de
poder, à divisão social de poder. Em diversos povos isso
acontece. Existem sociedades que são mais horizontais e
que não têm esse tipo de visão, mas olha só, são valores e
estruturas diferentes. Quando a gente fala em
ancestralidade aqui na diáspora estamos tentando
construir identidades, falar de uma construção da
identidade racial a partir do reconhecimento de um
passado, de um pertencimento cultural, que vai além
desse espaço do continente americano, de uma relação
com um passado africano. Quando a Appiah comenta
essa relação, ele tem um textinho bem interessante que
descreve um determinado evento em que havia uma
parente distante que nunca o olhava nos olhos. O Appiah
é de Gana, descendente de um dos fundadores de Kusami,

84
e o antepassados dele chegaram para fundar a cidade
junto com trezentos escravizados. E o que aconteceu? Ele
pegou e perguntou para seu pai, “por que fulana não olha
para mim?” O pai o reprendeu porque você não pode
fazer esse tipo de pergunta publicamente e, em privado,
explicou “é que ela é descendente de escravizado, tem
vergonha e não olha diretamente para você por causa
disso.” E o Appiah diz que todo dia na porta da casa deles
em Kusami tem uma série de pessoas que vão, que são
descendentes de escravizados que querem pegar comida,
que querem fazer parte de um... tipo de clientelismo que
faz parte de uma tradição. 56 E ele comenta que, assim

56Por conta da relevância, cito os dois primeiros parágrafos deste texto:


“Certa vez, quando eu era criança em Kumasi, Gana, perguntei a meu
pai, em uma sala cheia de pessoas, se uma das mulheres era realmente
minha tia. Ela morava em uma das casas da família, e eu sempre a
chamava de tia. Na memória, eu a vejo abaixando os olhos quando
meu pai afastou a pergunta com raiva. Mais tarde, quando estávamos
sozinhos, ele me disse que nunca deveria perguntar sobre a
ascendência das pessoas em público. Existem muitos provérbios
Asante sobre isso. Diz-se simplesmente: revelar demasiadamente as
origens estraga uma cidade. E eis por que meu pai mudou de assunto:
minha "tia" era, como todos as outras pessoas conhecidas da sala,
descendente de um escravo da família.
Meu pai estava tentando evitar envergonhá-la, embora eu não ache
que ele tenha visto a ascendência dela como uma vergonha. Ao
contrário de seus ancestrais, ela não podia ser vendida; ela não podia
ser separada contra a vontade de seus filhos; ela estava livre para
trabalhar onde podia. No entanto, aos olhos da comunidade - e aos
seus próprios olhos - ela era de status inferior ao resto de nós. Se ela
não conseguisse encontrar um marido para a prover (e é improvável
que um marido próspero se case com uma mulher com seu status), o
lugar mais seguro para ela estar era com a família à qual pertence.
Então ela ficou”.
No último parágrafo desse mesmo texto Appiah conclui: “A mulher
sobre quem perguntei ao meu pai não é uma escrava. Mas ela carrega
algo crucial por conta da escravização de seus antepassados. Para além
da possibilidade de se afastar e da impossibilidade de tomar suas

85
como na Europa, houve uma ampliação da ideia de
dignidade humana que deu origem aos direitos humanos
(já que, de início, só os nobres eram dignos, e você vai
ampliar esse conceito para falar que todas as pessoas têm
esse tipo de dignidade) dentro dos povos Asante, houve
uma ampliação de conceito semelhante, que todas as
pessoas deveriam ter um tipo de dignidade, um tipo de
reconhecimento. 57 Mas ainda subsististe este tipo de
divisão. Eu acho que é melhor avaliar caso a caso e é
melhor situar de lugar para lugar. Por exemplo, ao
analisar o livro Questão Ancestral, do Fábio Leite, vê-se
que ele estudou quatro populações dentro do continente
africano e ele não autoriza qualquer generalização que vá

próprias decisões, a escravidão significava que algumas pessoas eram


hereditariamente inferiores. Você pode abandonar o mercado de
escravos e pedir que todos que trabalham recebam pelo trabalho que
fazem e que sejam livres para abandoná-lo, mas mesmo se você
conseguir isso, o estigma e o status não cederão tão facilmente. Por isso
não mencionei o nome dela. A emancipação é apenas o começo da
liberdade. (APPIAH, Kwame Anthony. “A slow emancipation”. New
York Times Magazine, 2007, 18).
57 Para Appiah “o pensamento ganense moderno sobre política

depende, em parte, da compreensão prévia de conceitos como


animuonyam (respeito). Alguns provérbios conhecidos dos Akan
deixam claro que, no passado, o respeito não era precisamente
algo que pertencia a todos: Agya Kra ne Agya Kwakyereme , emu
biara mu nni animuonyam. (O pai Alma e o pai escravo Kyereme,
não é de nenhuma das duas formas respeitadas; isto é, não
importa como você o chama, um escravo ainda é um escravo.)
Mas, assim como a dignitas, que já foi, por definição, propriedade
de uma elite, tem sido ampliada para se transformar em
dignidade humana, que é propriedade de todo homem e de toda
mulher, de modo que animuonyam pode ser a base do respeito a
todos os outros que está no centro de um compromisso com os
direitos humanos” (APPIAH, Kwame Anthony. The ethics of
identity. Princeton University Press, 2010. P.265).

86
para fora do continente africano.58 Dessa maneira, eu acho
que a gente precisa levar em conta as diferenças que
fazem diferença.

58Explicou o professor Fábio Leite: “Em minhas falas, aulas e escritos


publicados ou copiados, venho enunciando certos conceitos –
preenchidos com as devidas explicações – como, por exemplo,
“ancestralidade”, “africanidade”, “valores civilizatórios em
sociedades negro-africanas”, “elementos estruturadores de processos
sociais”, “África profunda” (encontrada mesmo em ambiente urbano),
“Brasil segundo país negro do mundo, só perdendo para a Nigéria” e
vários outros. Mais, ressalto ter tomado conhecimento de quase
verdadeiras cópias e plágios, produzidos no Brasil, falados ou escritos,
usados com pressa, remetendo-os erroneamente a uma África pré-
colonial ou às bases de uma religião africana típica, sem citações
bibliográficas convenientes ou mesmo sem créditos e, pior,
transpondo-os para certos aspectos de identidade e problemas do
negro brasileiro ou, ainda, como instrumento de comparações com as
práticas do Candomblé. Esse tipo de abordagem não-diferencial,
levando em nenhuma ou pouca conta processos históricos diversos,
parece-me trazer mais prejuízos do que benefícios” (LEITE, Fábio
Rubens da Rocha. A questão ancestral: África Negra. São Paulo: Palas
Athena: Casa das Áfricas, 2008. p. XXI).

87
88
Identidade racial

89
90
6

Murilo: Eu acho que tenho, pelo menos, mais uma


pergunta para você. Eu queria perguntar se você se
identifica como negro, se sim, se você tem essa visão de se
identificar também com essa ancestralidade africana?

Marcos: Qualquer identidade é uma narrativa,


qualquer identidade você a assume e narra as coisas a partir
dela e quando assume, tem determinados comportamentos
a partir daquela identidade. Assim, politicamente, eu tenho
muito bem definido a identidade negra, isso dentro da
Unilab, dentro dos projetos políticos, dentro da perspectiva
de trabalho. Essa é uma identidade política que ela depende
da minha assunção. No olhar do outro que você tem o
grande problema. Aqui no Brasil essa identidade não é
reconhecida automaticamente, você não tem essa
perspectiva de construção de identidade como algo político
simplesmente. E aí, por exemplo, por mais que eu tenha
uma narrativa de ter um pai negro que foi adotado, algo que
era uma coisa comum no Brasil, adotar uma criança negra
para mostrar a sua solidariedade e, de repente, aquela
criança não vai ter o nome da família e vai descobrir que a
mãe não gosta de negros e essa relação que ela tem com os
pais vai ser herdada numa narrativa problemática que vem
de todo o racismo, de toda estrutura de opressão. Essa
narrativa é minha herança e é a herança em que eu

91
reconheço essa ideia de uma identidade racial necessária
para você pensar o país e pensar uma reconstrução da
sociedade brasileira. Esse é o ponto de vista que eu tenho,
mas acho que tem um problema em relação a qualquer
perspectiva que vai se sempre situada e, nesse caso, eu sei
que, quando você não tem uma imersão dentro de culturas
que estão relacionadas a determinas identidades, você pode
ser questionado. Eu tenho um aluno que é fula, mas ele não
fala a língua fula. Até que ponto ele pode falar que é fula se
não fala a língua fula? As identidades são sempre
contestáveis e contextualizáveis. [..] Quando se pensa a
identidade racial, é a mesma coisa, ela é contestável e é
contextualizável e só existe em termos políticos. Ela
depende do reconhecimento também da pessoa em relação
a forma com que vai agir a partir do momento em que
assume aquela identidade, a forma como se comporta a
partir daquela identidade. Mas nem todo tempo você vai
querer agir a partir de uma identidade, você não vai querer
se fechar em uma identidade. Esse que é o grande pulo do
gato. E, aí, é interessante só colocar [um exemplo]: o Appiah,
que é um filósofo africano, geralmente tem problemas em
ser reconhecido [em sua identidade racial], porque [...] o pai
dele era o nobre asante e a mãe dele era inglesa, o que faz
com que as pessoas tendam a colocá-lo no limbo, como se
não fosse nem inglês o suficiente, porque é de família nobre
inglesa, e nem asante o suficiente. Só que quem faz essa
divisão é quem está fora do jogo, porque em Kumasi as
pessoas o reconhecem, ele faz parte dos rituais tradicionais,
está lá dentro do jogo de poder e dentro do jogo de
reconhecimento. Mas eu queria acrescentar: o Appiah
lançou um livro há pouco tempo que se chama “As Mentiras
que nos Entrelaçam” ou “As Mentiras que nos Unem” em
que ele fala de todos os tipos de identidade e vai comentar
como essa ideia de identidade é recente. Ele fala do sexo,

92
classe, gênero, religião. Ele fala de todos os tipos de
identidade e chega a uma conclusão que é bem interessante,
de que há uma virada na política norte-americana na
direção de um tribalismo. É mais fácil um negro se casar
com uma branca, uma branca se casar com um negro do que
um republicano se casar com um democrata. As identidades
se tornaram a referência para a política. A única política que
existe hoje é a política de identidade.59 Se você levar isso ao
extremo, você vai ver que as pessoas, no Brasil, também, na
última eleição, não votaram muito em projeto, votaram em
identidades. Essa questão é importante, mas eu acho que ela
deve ser pensada, não como um fechamento, mas sempre
com essa ideia de papéis e representações também. E elas
são sempre contingentes também. Respondi?

Murilo: Está suficiente. [...] acho que é uma coisa que


é importante para situar de quem que está falando, tipo,
quem está falando sobre a filosofia africana.

Marcos: É, mas eu posso falar que eu sou da filosofia


goiana, né? É, essa resposta não é uma piada
propriamente, eu acho que é situar. A pessoa fala “eu vou
fazer a filosofia dos Igbo.” Não acho que seja etnofilosofia.
Eu acho que você tem um lugar e pode pensar esse lugar.
Se a pessoa fala “eu vou fazer filosofia daquele espaço...”
tem coisas para ser pensadas, tem problemas que são
mensuráveis a partir de espaços diferentes.60 [...]

59 APPIAH, Kwame Anthony. The lies that bind: rethinking


identity. Profile Books, 2018.
60 O filósofo camaronês Godfrey B. Tangwa separa dois sentidos para

o termo filosofia: um primeiro sentido que se relaciona com modos de


vida e um segundo sentido que é acadêmico e técnico. Propõe então
uma perspectiva pragmática de círculos de lealdade epistemológica
para pensar os diferentes horizontes das questões que a filosofia, em
segundo sentido, pode abordar: “Considero as culturas como

93
formando círculos concêntricos. Por exemplo, existe uma cultura pe-
culiar à linhagem da minha família. Além disso, o grupo de famílias
que compõem a minha aldeia compartilha uma certa cultura em co-
mum. Então, há a cultura da minha tribo, a Nso, que é comum a todos
os povos falantes de Lamno. Mas o que chamamos de cultura Nso é
um subconjunto de uma cultura que é claramente comum a todos os
chamados povos graffi dos Camarões. Camarões como um todo tem
uma cultura peculiar que pode não ser muito marcante para aqueles
camaronenses que nunca tiveram o privilégio desse distanciamento
oferecido por viagens no exterior. De dentro, pode parecer que não
existe cultura camaronense além das de várias culturas tribais ou regi-
onais. E, no entanto, a cultura dos Camarões é apenas um subconjunto
da cultura africana, o que nenhum africano que foi residente ou viveu
no exterior colocaria em dúvida. Mas a cultura africana é apenas um
subconjunto do que podemos chamar de cultura humana em geral.
Parece-me que a importância de um tópico ou problema pode ser vista
como sendo diretamente proporcional ao diâmetro do círculo cultural
sobre o qual se estende. Eu poderia fazer uma contribuição para tópi-
cos ou problemas peculiares à minha cultura tribal. Mas, mas essa seria
relativamente menos importante do que uma contribuição simular que
diz respeito à cultura camaronense em geral teria, por sua vez, é menos
importante quando comparada a uma contribuição para cultura afri-
cana. Desse modo, a mais importante contribuição seria relevante para
a cultura humana em geral e, se alguma coisa é relevante para a cultura
humana em geral, então é também relevante para todas as culturas
particulares. Então, se uma contribuição é feita por um filósofo afri-
cano, esta pode não ser classificada como filosofia africana, mas, no
entanto, continua a ser relevante e pode facilmente se tornar filosofia
africana a segunda vista, quando reconhecida e utilizada por um filo-
sofo africano especificamente para propósitos africanos. Anarquistas
culturais extremos podem não se convencer com essa linha de raciocí-
nio. Mas esta é inevitável desde que nos admitimos que a filosofia não
é sua própria justificativa, nem um prêmio no vácuo, e que o propósito
geral no segundo sentido em que nos delimitamos é torná-la filosofia
em um primeiro sentido.” (Tangwa, G. African philosophy: Appraisal
of a recurrent problematic. In The Palgrave Handbook of African Phi-
losophy (pp. 19-33). Palgrave Macmillan, New York.2017, p.31-32)

94
Indicações

95
96
7

Em português as grandes referências são o site filosofia pop (seguindo


a tag filosofia africana: https://filosofiapop.com.br/tag/filosofia-
africana/)e o site organizado pelo professor Wanderson Flor da UNB:
https://filosofiaafricana.weebly.com/

Existe já alguma bibliografia em português, mas gostaria de indicar


um material acessível e ainda pouco explorado, que essa coletânea em
4 volumes de quase 3 mil páginas:

LEUER, Helen e Anyidoho, Kofi (org. ) O resgate das ciências


humanasedashumanidadesatravésde perspectivas africanas Brasília:
FUNAG, 2016. Disponível em:http://funag.gov.br/biblioteca/
download/resgate- das-ciencias-humanas-colecao.pdf. Consultado
em 06/11/2019.

Indico alguns episódios do podcast filosofia pop que dialogam com o


tema:
#011 – Filosofia Africana: Ancestralidade e Encantamento Adilbênia
Machado
#015 – Filosofia Africana: Ubuntu Wanderson Flor Nascimento
#022 – Filosofia Africana: Marcien Towa Luís Thiago Freire Dantas
#028 – Filosofia Africana: Afroperspectiva, com Renato Noguera
#030 – Filosofia Africana: Ancestralidade, com Eduardo Oliveira
#040 – Pretagogia, com Sandra Haydée Petit
#050 – Filosofia Indígena: Tupy-Guarani, com Kaká Werá
#053 – Pensamento Nagô, com Muniz Sodré
#058 – Filosofar desde África, com Luís Thiago Freire Dantas
#068 – Filosofar em África (ou Bisoidade), com Bas’Ilele Malomalo
outros podcasts:
antiCast podcast 368 Narrativas Africanas, entrevista com Ale Santos,

97
podcast Raízes Negras – De Ale Santos

podcast Lado Black

Vira Casacas número 83, A História Que Não Contam, com o Ale
Santos.

Filmes

Desobediência.Direção:LicínioAzevedo. Mo çambique: Ébano


Multimedia, 2002. 1 vídeo (92 min.).

I AM NOT a Witch. Direção: Rungano Nyon, Reino Unido; França;


Zâmbia, Clandestine Films, Soda Pictures, 2017, (93 min).

XALA. Direção Osmane Sembène. Senegal, 1974, (128 min.)

98
Anexos

99
100
Questões para a filosofia africana
Publicado em 29 de maio de 2016

O livro de Samuel Oluch Imbo An introduction to


african philosophy (Rowman & littlefield Publishers, Inc.
1998) é um bom guia para quem quer se aproximar da
filosofia africana ou pensar um curso de iniciação ao
tema. Em muitos aspectos, o livro de Imbo segue o
caminho de Dismas A. Masolo em seu clássico African
philosophy in search of identity, propondo uma
narrativa comparativa, contudo, oferece recortes mais
didáticos ao partir de cinco questões específicas:

Como a Filosofia africana pode ser definida?


Apresenta as possibilidades da definição a partir da
tripartição: etnofilosofias (Placide Tempels, Leopold
Senghor, Alexis Kagame), universalistas (Kwasi Wiredu,
Paulin Hountondji, Henry Odera Oruka) e hermenêuticas
(Tsenay Serequeberhan, Marcien Towa, Okanda Okolo).

A etnofilosofia é realmente filosofia?


Apresenta e avalia as contribuições da historiografia de
Anta Diop, da etnografia religiosa de Mbiti, da
cosmologia de Marcel Griaule/Ogotemmeli, criticando
em todos elas o apela para uma espécie de essencialismo,
voltado para o passado, acrítico em sua apreensão da
cultura oral, não atendendo a questionamentos atuais (de
liberação política, social e cultural, feminina etc.) e dos
parâmetros de discurso europeus.
A filosofia africana é única?

101
Revisita Tempels, um discurso positivo sobre a
univocidade da filosofia africana na negritude de Senghor
e sua crítica em Paulin Houtondji e um meio termo em
Appiah.

Qual seria a(s) linguagem/linguagens da filosofia


africana?
A memória oral, o conflito oral-escrito, as línguas
africanas ou as línguas dos colonizadores?

Existem conexões entre filosofia africana, afro-


americana e feminista?
Imbo mostra a convergência de interesses entre a filosofia
africana, a filosofia afro-americana e o feminismo no
questionamento dos padrões da filosofia ocidental.

A primeira parte do livro “Definições de filosofia


africana”, se prende à primeira pergunta; a parte dois,
“Etnofilosofia e seus críticos” aborda a segunda e a
terceira perguntas; e as duas últimas interrogações são
tema da terceira e última parte do livro, “A filosofia
africana fazendo conexões”. Para cada questão Imbo,
desenvolve um capítulo, que, se por vezes precisa ser
reducionista, oferece as indicações bibliográficas para que
o especialista se aprofunde e questões de estudo para
guiar a leitura do iniciante. O livro de Imbo é corajoso por
desenvolver a oposição entre etnofilosofia e filosofia
africana em termos semelhantes ao da oposição entre
sofística e filosofia: “Vincular etnofilósofos, tais como
Tempels, Kagame e Senghor, com sofistas, como
Protágoras, Górgias e Hípias é inevitavelmente soar para
alguns leitores como algo bizarro. Eu não quero dizer que
aqueles etnofilósofos constroem somente argumentos
retóricos tais como os sofistas eram acusados de fazer.
Nem serve a comparação para retratar os etnofilósofos

102
como habilidosos manipuladores da linguagem que
tentariam fazer o pior argumento aparecer como o
melhor. O que eu quero focar com essa comparação é a
conotação pejorativa do ataque a ambos, “sofistas” e
“etnofilósofos”. As semelhanças estão na conotação
negativa a que são confinados por seus oponentes. De
fato, o apelido “etnofilósofo” é algo como um insulto,
porque ser um etnofilósofo é ser visto pelos filósofos
universalistas como se estes praticassem a filosofia de
uma maneira que desvia da forma convencional” (p.54).
A etnofilosofia seria o Outro da Filosofia, tomada em
sentido universal, tradicional. Na filosofia africana,
teríamos a orientação etnofilosófica como a busca por
descrições da africanidade, pressuposições de uma
essência africana a-histórica e unanimista que poderia ser
decantada a partir dos saberes e religiosidades
tradicionais; já seus críticos, defenderiam as perspectivas
e padrões profissionais da filosofia ocidental, renegando
a possibilidade de tomar concepções coletivas e orais
como filosóficas, sem colocar em questão sua perspectiva
europeia e reivindicação de universalidade. A construção
de uma oposição “maniqueísta” abre espaço para uma
terceira opção, que desenvolve, tanto uma crítica aos
extremos pressupostos pelas outras vertentes, quanto
uma aproximação melhorista em diálogo com o saber
tradicional, o que Imbo chama de “orientação
hermenêutica”.
Imbo procura mostrar como a adesão acrítica aos
valores tradicionais pode significar a manutenção de
formas de desigualdade de gênero tomadas como coisas
naturais (cita como fonte dessa crítica teólogas feministas
como Mercy Oduyoye, de Gana; Rose Zoe-Obianga, de
Camarões; e Dorothy Ramodibe, da África do Sul). A
leitura de Imbo nos alerta para o problema da adesão a

103
perspectivas essencialistas, que ao reivindicar
politicamente uma “africanidade” comum e
incomensurável, fecham a possibilidade de diálogo e
repõe o lugar de excentricidade exclusivista. A filosofia
africana, ao assumir sua especificidade e diversidade de
questões, não deveria substituir o eurocentrismo pelo
afrocentrismo, mas desenvolver uma perspectiva
transcultural de comunicação. A tentativa de resposta
para a pergunta sobre a existência de uma filosofia
africana configurou-se como uma busca por identidade,
que atualmente pode e deve ser superada com a aliança
com perspectivas que questionam as concepções
tradicionais de pensamento do ocidente, como as
filosofias feministas e diaspóricas. Para Imbo, é a partir
desses diálogos que se projeta um cânone de textos e
narrativas que desconstroem a filosofia tradicional,
situando e dando corpo para seus novos
questionamentos.
O livro de Imbo funciona bem como um manual e
nesse funcionamento está seu defeito: o reducionismo
didático necessário tende a proporcionar uma aparência
de consenso que está longe de ser justificada. O livro de
Masolo, African Philosophy in search of identity,
mantém uma abordagem mais ampla e cuidadosa. Tanto
Imbo quanto Masolo não avaliam o legado político dos
“reis filósofos africanos” dentro do processo de
descolonização, mas o último aborda problemas
epistemológicos e a própria construção da ideia de África
(com Eboussi Boulaga, Mudimbe e Towa). Wiredu
continua justificando ao afirmar que, na filosofia africana,
existe mais para se pesquisar do que para ensinar. Cabe
complementar: e isso é bom!

104
O Brasil e a filosofia africana
21 de fevereiro de 2017.

O filósofo norte-americano Cornel West definiu a


filosofia afro-americana como “a interpretação da história
afro-americana, sob as luzes de sua herança cultural e lutas
políticas, como fonte de normas desejáveis que possam
regular respostas para os desafios que hoje os afro-
americanos enfrentam”. Podemos nos apropriar dessa
definição narrativa e pragmática de West substituindo
“afro-americana” por “brasileira”, “africana”,
“afrodiaspórica”, “indígena” etc. Isso nos dá um ponto de
partida interessante para afirmar que a possibilidade de
uma filosofia brasileira depende de um questionamento
profundo do processo de colonização, do massacre contínuo
da população indígena, da herança escravagista e do
racismo estruturante, da desigualdade extrema, do
patrimonialismo, patriarcalismo, clientelismo,
academicismo etc. numa genealogia de nós mesmos que
propicie enfrentar os desafios de nosso tempo. Os termos
dessa afirmação são sabidamente reducionistas (não abriga
e nem pretende abarcar todas as formas de fazer filosofia), o
que os fazem suficientemente polêmicos para inviabilizar
qualquer debate amplo, já que traria como consequência
uma grande modificação dos currículos de graduação em
filosofia, com a inclusão de disciplinas sobre filosofia
indígena, africana, decolonial, feminista etc. assim como, a
promoção da reflexão sobre a cultura brasileira (popular e
erudita). Vou me concentrar na defesa de uma disciplina
sobre filosofia africana, seguindo numa direção diferente e

105
complementar àquela proposta por Renato Noguera em
recente coluna deste espaço.
No final da década de noventa, lembro-me de ouvir
uma das minhas professoras de graduação na
Universidade Federal de Goiás (UFG) reclamar do pouco
espaço para estudar filosofia analítica. Em verdade, volta
e meia na USP ela tinha que lidar com a desqualificação
de W. V. Quine em questionamentos que colocavam a
filosofia norte-americana como um oximoro: e isso existe?
Juntamente com essa dificuldade, ausente a internet,
estudar filosofia analítica era difícil porque faltavam
textos em português (por vezes, era preciso trazer alguma
bibliografia em espanhol e/ou deixar os debates
contemporâneos – e autores como Wittgenstein, Carnap,
Quine, Putnam, Davidson etc. – como parte de uma
conversa distante da graduação). Hoje, esse quadro
mudou muito, pelo menos em termos de hegemonia, mas
é curioso que, quando alguém fala em “filosofia africana”,
precisa lidar com as mesmas perguntas sobre a existência,
problemas de bibliografia etc. Desse modo, a ignorância
de uma determinada tradição filosófica podia petrificar-
se em dogma, que impedia qualquer diálogo.
A filosofia africana, segundo Robert Bernasconi, é
refém de um dilema em relação ao pensamento ocidental:
ou é muito semelhante a ele, não justificando sua
especificidade; ou é tão diferente que tem suas credenciais
negadas como filosofia. Podem tentar mediar este dilema,
atendendo os anseios narcisistas das paróquias da razão,
mostrando que existem companheiros de crença e
linguagem também na filosofia africana.
Em 1997, foi publicada a segunda edição do livro
Knowledge, Belief, and Witchcraft: Analytic Experiments in
African Philosophy de Barry Hallen e J. Olubi Sodipo, com
prefácio de W.V. Quine, que destacava a relevância desse

106
trabalho que usava a análise conceitual para pensar o lugar
de termos como verdade, crença, conhecimento e evidência,
na língua yoruba. Os autores se valiam da tese da
indeterminação, proposta pelo filósofo norte-americano,
para questionar a concepção de linguagem presente nos
primeiros trabalhos “etnofilosóficos” desenvolvidos sobre a
filosofia africana, que se contentariam em atribuir aos
falantes de línguas africanas uma mentalidade pré-lógica,
sem desconfiar que sua interpretação é que seria pré-lógica.
Outros filósofos africanos de formação analítica que
escrevem em inglês, como Kwane Anthony Appiah, Dismas
A. Masolo, Emmanuel Chukwudi Eze e Kwasi Wiredu
também se utilizam as ferramentas da análise conceitual ou
da filosofia da mente para pensar seu contexto e desfazer
preconceitos sobre a África.
Já V.Y. Mudimbe, na década de 80, descreveu uma
genealogia foucaultiana sobre o modo como a África foi
inventada como um paradigma de alteridade radical. Paulin
J. Hountondji, que foi aluno de Althusser e Derrida,
desenvolveu uma crítica radical da concepção unanimista,
que considerava que, por compartilhar determinada matriz,
linguística, automaticamente os africanos coincidiriam em
suas crenças e valores. Já Tsenay Serequebererhan se vale da
hermenêutica para pensar os horizontes de sentido da
África, problematizando e procurando superar a dinâmica
da violência colonial e emancipatória, enquanto Bruce Janz,
Lucius Outlaw pensam a filosofia africana como
necessariamente vinculada ao processo de Desconstrução –
nos termos de Derrida – de preconceitos do pensamento
ocidental. Achille Mbembe articula em sua crítica da razão
negra a ideia de um devir negro que nos remete
inevitavelmente a Deleuze.
Desse modo, diversos filósofos africanos
contemporâneos se utilizam da sua formação (analítica

107
e/ou continental) como ferramenta para pensar seu
contexto (outras abordagens dispensam a filosofia
ocidental em favor de métodos e paradigmas específicos).
De todo modo, a filosofia na África não pode ser uma
abstração escapista e tende a procurar se justificar numa
direção pragmática. A divisão mesma entre analíticos e
continentais se desvanece quando o objetivo é questionar
os preconceitos do pensamento ocidental, sem cair no
essencialismo, quanto a uma africanidade incomensurável.
Questões metafilosóficas sobre a especificidade da filosofia
africana, sua unidade, a linguagem em que deve ser escrita
ou sua articulação com o pensamento feminista e
diaspórico desvelam a problematização do tipo de
expectativa filosófica que fez com que, no processo de
descolonização africana, diversas nações surgissem com
seus respectivos “reis-filósofos”. A promessa de que uma
perspectiva teórica e filosófica que oferecesse consciência
para a nação em sentido amplo (por vezes, falando em pan-
africanismo), seria a liga necessária para a emancipação da
violência colonial, reencenou como farsa a ideia da elite
iluminada que espalha suas luzes. Mas, para sair da grande
noite, essa filosofia essencialista mostrou-se cega. O desafio
de construir outras possibilidades e caminhos traz novas
questões e problemas para a filosofia africana, que em
muito são semelhantes àqueles que o Brasil enfrenta. Por
isso, a filosofia africana pode nos ensinar bastante sobre
como suplantar as diferenças de formação encarando e
buscando soluções para problemas efetivos. Por que não
fazemos o mesmo uso contextualizado de nossa formação?
Existe uma dificuldade específica nesta disciplina de
filosofia africana que não acontece quando tratamos de
filosofia europeia: é que ninguém se pergunta se pode ou
não falar pelos “gregos”, afinal a Grécia Antiga é a fonte da
Civilização Ocidental. Mas é fácil perceber que não estou

108
autorizado a fazer filosofia africana (african philosophy),
mas estaria para fazer filosofia afrodiaspórica (africana
philosophy), afinal esta última é parte da filosofia
brasileira. O importante é ter em vista com quem queremos
conversar (ou até mesmo, se queremos conversar). A
possibilidade de diálogos Sul-Sul, em que nossa autonomia
e responsabilidade intelectual sejam pressupostos, é
diferente da busca por reconhecimento na tentativa de
herdar e continuar uma conversação que não nos
reconhece como aptos a falar, como tocados pelo espírito
da filosofia (em sua tradição europeia).
Nesse momento em que a filosofia perde espaço no
ensino médio, não podemos nos acomodar nas críticas em
relação ao governo. É importante perguntar o que a
academia filosófica tem feito para responder aos anseios e
demandas da sociedade? Como os currículos de filosofia
foram modificados para atender à necessidade de
compreensão da filosofia indígena, africana e
afrodiaspórica? Se não existem ainda modificações
importantes nesse sentido, os egressos do curso de filosofia
chegam nas salas de aula incapazes de exercer sua função
docente nos termos que a legislação define. Então uma
“especializaçãozinha” pode valer mais que essa graduação
descontextualizada. Vale ressaltar, que muitos dos que
desenvolvem trabalhos sobre filosofia africana e
afrodiaspórica no Brasil precisam sair dos departamentos de
filosofia, porque neles não encontram espaço. Obviamente,
se houver postos de trabalho, florescerão e multiplicar-se-ão
o número de pesquisadores interessados no tema. Em
verdade, seria o caso da ANPOF promover bolsas,
publicações e premiações para trabalhos que caminhassem
nesse sentido. Sem mudança institucional, não há como
sustentar as transformações das práticas correntes, que nos
condenam à irrelevância comparada.

109
110
A filosofia africana e “falar no lugar de
outras pessoas”
Publicado em 10 de março de 2017

Geovane Novais me enviou por e-mail algumas questões


referentes ao artigo “O Brasil e a filosofia africana”: “Como
estimular os estudos da filosofia africana nas escolas?”; “Onde
encontrar referências seguras sobre o tema?” e “Será possível
relacionar a cultura afro com a filosofia africana?”. Esta foi
minha resposta para suas questões.

Caro Geovane,
Suas questões não podem ser respondidas, já que são
tema de um debate contínuo para o qual constantemente
devemos estar atentos. Existe já legislação que parece ser
adequada para falar de necessidade legal do estudo de
filosofia africana, indígena e afro-brasileira, mas isso
esbarra em dois preconceitos iniciais: (1) das pessoas
formadas em filosofia que não reconhecem essas
perspectivas como sendo fonte de filosofia, mas como
uma deturpação do “universal” em favor de uma
“antropologização” relativista (falas como “Isso não é
filosofia, é antropologia ou história ou sociologia etc.?”
são comuns e não triviais, já que as licenciaturas em
filosofia tem cuidado pouco desses temas); e (2) das
dificuldades de contextualização dessas temáticas dentro
do currículo para que não surjam na forma de apêndice
exótico que é deixado para o fim do livro, o fim do ano, o
fim da aula… como não há tempo para tudo, acaba
esquecido ou deixado de lado.

111
Quando se fala em filosofia africana, temos um
problema que é comum a todas as áreas de investigação
que tratam de África: as perspectivas afro-brasileiras,
ligadas às discussões sobre a escravidão, racismo e a
herança africana na cultura brasileira; tendem a engolir
tudo o que se refere à África. Isso é um problema
delicado, já que, de acordo com certa reivindicação
política pan-africanista, os descendentes de africanos na
diáspora deveriam também se pensar como filhos da
“mãe África”. Porém, a África imaginada na diáspora
tende a ser aprisionada em estereótipos anacrônicos e
caricaturais que reduzem o continente a certa unidade
imaginada, como se falássemos da Idade Média dos
romances de Tolkien…
Essa situação precisa sem problematizada, levando
em conta o perigo e a responsabilidade implícitos na
tentativa de “falar no lugar de outras pessoas”, o que não
significa que deveríamos nos calar, mas pressupor uma
interrogação “isso vai permitir a emancipação ou o
fortalecimento (empowerment) das pessoas oprimidas?”. A
necessidade dessa constante autoavaliação é algo que a
filósofa Linda Alcoff destaca, já que “a prática de falar
pelos outros frequentemente nasce do desejo de domínio,
para privilegiar a si mesmo como alguém com um melhor
entendimento da verdade sobre a situação do outro; ou,
como podendo defender uma causa justa e assim
conseguir glória e prazer. E o efeito da prática de falar
pelos outros é frequentemente, embora não sempre,
apagamento e reinscrição das hierarquias sexuais,
nacionais e de outros tipos”.
Considero muito importante separar a filosofia
africana (african philosophy) daquela que podemos
chamar de afro-brasileira e afrodiaspórica (nos EUA
falam em “africana philosophy”, para uma filosofia

112
pensada no horizonte pan-africanista). Isso não significa
que entre elas não existam pontos de contato ou muito em
comum, mas com certeza existem vozes e problemas
diferentes para os quais precisamos estar atentos. Dentro
da “filosofia africana” devemos ter cuidado com
perspectivas que reduzem a África à celebração de um
passado paradisíaco no qual o “banto místico” mantinha
sua identidade imaculada. A possibilidade da filosofia
africana se liga também à crítica das narrativas de
progresso da modernidade, então devemos desconfiar de
perspectivas que reivindicam o início africano de toda a
cultura e sabedoria, apenas racialmente invertendo os
termos da narrativa eurocêntrica e tentando ocupar a
posição hegemónica. Ao dizer isso, estou tocando em
vários vespeiros, pontos que devem ser pressupostos pelo
docente e não necessariamente temas de sala de aula no
ensino médio e fundamental (quando o objetivo é
socializar o conhecimento que tenha adquirido certa
estabilidade consensual, ainda quando tratamos de
paradigmas divergentes).
Posso indicar como fonte inicial para a aproximação
da filosofia africana e de sua problemática alguns podcasts
do filosofia pop em que conversamos com especialistas
sobre o tema, que os abordam por diferentes perspectivas
como Adilbênia Machado (ancestralidade), Wanderson
Flor Nascimento (ubuntu e filosofia africana), Renato
Noguera (afroperspectiva), Eduardo Oliveira
(ancestralidade), Luis Thiago Freire Dantas (sobre
Marcien Towa) e Sandra Petit (sobre pretagogia). Cada
um desses convidados oferece ao fim dos episódios dicas
de livros, filmes, canções etc.
De todo modo, enfatizo a importância de tentar
aproximar-se da diversidade cultural africana por meio
da literatura, cinema, arte, dança etc. É preciso tentar se

113
colocar no lugar do outro pela aproximação estética que
deve ser constantemente problematizada e cuidadosa. O
mesmo cuidado deve haver quando o objetivo é descrever
aproximações e diferenças entre a cultura afro-brasileira e
a cultura africana para que a multiplicidade de
perspectivas dos dois lados do Atlântico não
seja dissolvida. A conclusão é mesmo de que devemos
aprender a pensar de forma plural, como nos ensina a
filósofa da Costa do Marfim Séverine Kodjo-Grandvaux,
e falar em filosofias africanas.

114
O hip-hop entre o Muntu e o Kintu

O hip-hop faz parte de uma longa história da


música negra, em que as canções, a dança e a palavra são
utilizadas como caminhos de resistência e denúncia em
relação à opressão vivida pela comunidade negra. No
entanto, diferentemente de gêneros anteriores como o
samba, o jazz ou o blues, a denúncia no hip-hop inclui
também o vazio da promessa utópica em alguma
entidade transcendente (comunidade, familiares ou
Deus) que pudesse servir de fonte de esperança. Deste
modo, o hip-hop escancara a crise de valores, o niilismo
contemporâneo (diagnóstico feito por Cornel West).
Numa sociedade dominada pelo consumo, toda as
formas de cultura correm o risco de se tornarem meros
produtos, sem sentido ético ou vinculação com a
comunidade. Esse tipo de ameaça é algo que se confunde
com a própria história do hip-hop; quando o ritmo,
estilo, dança que surgiram como parte da forma de vida
e resistência de uma comunidade, foi gravado por
pessoas de fora daquele meio e transformado em mais
um produto para consumo. Ao seguir este mesmo
caminho, as performances artísticas dos rappers, que
eram parte de um determinado contexto, têm suas
referências para a comunidade questionadas ou
esquecidas. O sentido de solidariedade e resistência dá
lugar para a competição e a ostentação (sexista, violenta,
consumista etc.). Como é comum em relação a juventude
de classe média, a possibilidade de ter acesso a marcas e
produtos torna-se o caminho privilegiado para a
autocriação. Muitas vezes os que conseguem
transcender as limitações de suas comunidades passam

115
a ter como único tema cantar o próprio sucesso (de um
modo que não separa a capacidade de identificação entre
dinheiro, sexo e objetificação).
É interessante repensar o que está em jogo nesta
situação a partir daquilo que a ética africana tradicional61
concebe como caminho de autocriação. O estudioso da
religiosidade africana Mutombo Nkulu- N’Sengha
descreve, a partir da língua Luba, uma relação dinâmica
entre Muntu, Kintu e Bumuntu na definição do que é um
ser humano. Muntu seria um termo genérico que na
descrição desse autor abriga todos os seres humanos. Já
Bumuntu ressalta a “essência” de um ser humano
“autêntico” (termo que na África do Sul aparece como
Ubuntu; e que mantém a mesma concepção nas palavras
Eniyan ou Ywapele em Ioruba). Essa “essência humana”
não é algo dado, mas uma autoconstrução em relação à
qual cada um é responsável e se relaciona com o respeito
e a relação com os outros.
Nesse sentido, quando se pergunta o que é um ser
humano, a resposta africana seria Bumuntu, designando
“uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”,
ou noutra expressão, “eu sou porque nós somos”. Essas
descrições mostram a necessidade de identificação e
cuidado com o sentimento dos outros, assim como

61 O que chamamos aqui de “ética africana tradicional” é uma


concepção que tem sua descrição derivada das línguas bantu, se
considerarmos o que hoje é chamado de tronco linguístico Níger-
Congo. Cobre grande parte da África Negra. De todo modo, a
generalização é, justificadamente, motivo de controvérsia, não só por
conta dos diferentes povos e línguas, mas por conta do uso
problemático e unívoco da palavra “tradição”. Neste caso, sigo o
autor Mutombo Nkulu-N’Sengha com a ressalva de que o tipo de
comunitarismo que descreve não é uma forma de essência
incomensurável da “africanidade”. Provavelmente, o tipo de
individualismo proposto pela modernidade como sinônimo de
desenvolvimento é um fenômeno muito mais restrito e recente.

116
cooperação e reconhecimento da dignidade de cada ser
humano.
Alguém que não age de modo adequado perde ou
falha em sua humanidade e se torna um Kintu, termo
que designa objetos inanimados, mas também o mal
caráter ou comportamento. Entre Kintu e Muntu haveria
uma oscilação, de tal modo que a ameaça de ser
considerado alguém que perdeu a humanidade
tornando-se mero objeto é algo que exige cuidado – ético
e estético – constante em relação ao comportamento: um
homem belo/bom é como um peixe dentro d’água, já o
que não tem caráter é como um boneco de madeira
(NKULU-N’SENGHA, 2001, p. 81).
O congolês Nkulu-N’Sengha constrói um quadro
para mostrar como na língua Luba essa concepção
cosmológica é ilustrada pelo uso do prefixo “Ki” que
remete a Kintu, demonstrando a degeneração do
comportamento humano, alguém que se porta como
objeto inanimado, de modo não solidário, egoísta, não-
humano: “tata” é bom pai e “ki-tata”, pai ruim; mama,
“boa mãe” e “ki-mana”, mãe ruim; “mulume” o
“bom marido” e “ki-lume” o marido abusivo. Este tipo
de tensão e busca pela autoconstrução de um
comportamento ético é marca da cultura africana
tradicional.

As duas categorias de ser segundo a cosmologia


Luba (NKULU-N’SENGHA, 2009, p.144)
MU-NTU KI-NTU
Categoria de boa moral e Categoria de má moral e
inteligência estupidez
MUNTU (pessoa respon- KI-NTU (alguém que não
sável, boa) merece respeito)
TATA (bom pai) KI-TATA (pai ruim)

117
MAMA (boa mãe) KI-MAMA (má mãe)
MULUME (bom marido) KI-LUME (marido abu-
sivo)
MULOPWE (bom rei) KI-LOPWE (tirano, rei es-
túpido)

Poderíamos novamente tentar retomar a descrição


da cosmologia Luba a partir da posição polêmica do
filósofo norte-americano Cornel West quanto ao uso da
palavra “nigger” dentro do hip-hop. O termo “nigger” é
extremamente pejorativo, utilizado para destacar a
objetificação da população negra no contexto da
escravidão, termo retomado como insulto racista,
atribuindo a condição de “não-pensante”. O termo, por
conta de seu sentido histórico depreciativo, foi banido
do vocabulário cotidiano nos EUA como uma palavra
proibida, algumas vezes apresentada na imprensa como
“n-word”. No entanto, muitas vezes a comunidade hip-
hop utiliza para si mesma essa palavra, adaptada como
“nigga”. Cornel West preferia que a história de ódio e
desrespeito deste termo fosse lembrada e que os rappers
deixassem de utilizar essa palavra. 62 Em verdade, as
canções que utilizam o termo costumam ser censuradas
nas rádios e tv’s dos EUA (o que pode ter um valor
promocional interessante).
Em verdade, para Cornel West, muitos negros de
classe média passam a não mais se identificar com as
populações negras das periferias pobres, entrando num
processo que, de forma provocativa, chama de
“reniggerization”: esquecem sua identidade racial ou
qualquer identificação com aqueles que sofrem diante

62Michael Eric Dyson não concorda com essa condenação da palavra


“nigga” e a considera uma forma de redescrição dentro da
comunidade negra que dá sentido positivo a um termo antes negativo.

118
das estruturas racistas de opressão. Para o filósofo norte-
americano, o presidente Barack Obama seria exemplo
dessa “reniggerization”: ele teria se tornado um boneco
na mão dos interesses de Wall Street, sem questionar o
encarceramento em massas, as desigualdades
crescentes, a violência policial etc. Obama, que foi eleito
como representante da esperança de mudanças
democráticas que moveu o “fogo profético negro”,
herança da luta de W. E. B.Du Bois, Malcoln X, Martin
Luther King, Ida B. Wells, Angela Davis, tornou- se o
presidente dos drones, de um Império que lançou mais
de 26 mil bombas por ano.
A questão que a tradição bantu coloca para o hip-
hop é a de que, ao assumir o termo “nigga”, não se faz o
mesmo com a condição de “Kintu”, colocando-se como
produto dentro do jogo e lógica do mercado? A forma
como as mulheres são tratadas nas letras de hip-hop não
negam muitas vezes a condição de Muntu? A resposta
para esta questão não é unívoca, mas num tempo em que
somos governados por gangsters, tanto no Brasil
como nos EUA, preservar o sentido de comunidade
é um desafio que merece cuidado. As perspectivas de
ostentação podem nos direcionar para a perda daquilo
que nos faz humanos. Não vale a pena aceitar a condição
de nigga (ainda que em Paris).

Referências

NKULU-N’SENGHA, Mutombo. Bumuntu paradigm


and gender Justice: Sexist and anti-sexist trends in African
traditional religions. What men owe to women: Men’s
voices fromworld religions, p. 69-107, 2001.

119
NKULU-N’SENGHA, Mutombo. Bumuntu. Encyclopedia
of African religion, p. 142-147, 2009.

WEST, Cornel. Curativo Hip-hop. Capoeira-


Humanidades e Letras, v. 2, n. 1, p. 79-81, 2016.

_______. On Afro-American popular music: From bebop


to rap. Prophetic fragments, p. 177-188, 1988.

_______. Democracy matters: Winning the fight against


imperialism. Penguin, 2005

120
(Mais ou menos) 10 livros para estudar a
filosofia (luso)africana

Uma lista de cerca de 10 livros para uma


aproximação da filosofia africana da lusofonia africana?
Por que esse recorte? A história de colonização em
comum nos traz um ponto de convergência que deveria
ser levado muito a sério para quem quer desenvolver
diálogos Sul-Sul efetivos e ir além da retórica de
descolonização. Ler autores em português pode ser o
caminho mais efetivo para pensar a filosofia como uma
tarefa contextualiza, desenvolvida por pessoas que não
reivindicam genialidade, nem multiplicam pressupostos
para coçar aonde comicha ao invés do deboche do
pensamento. Diz o provérbio ronga “Unga hene dabu hi ku
nwoy” (Trate a sarna em vez de se entreter coçando).
Pra começar, nada melhor que seguir o trabalho dos
pioneiros filosofia africana lusófona. Para isso, Severino
Ngoenha é um autor mais do que necessário. E é muito
importante ter um panorama da trajetória e lidar com o
Grande Debate em torno da existência ou não da filosofia
africana, do lugar da etnofilosofia, das perspectivas
ideológicas e políticas dos que lutaram pela
independência etc. É que a África lusófona chegou em
grande medida atrasada neste diálogo, mas não pode
contorná-lo como se não tivesse existido. Nesse sentido,
indico o livro Filosofia Africana Das Independências Às
Liberdades e o recente Lomuku. Ler estes dois livros vai
te colocar com os temas que fazem parte dos debates e
demandas atuais de descolonização, ou melhor, de
desmame (lomuku) epistemológico e político.

121
NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana Das
Independências Às Liberdades. 1993.
NGOENHA, Severino Lomuku. Maputo: Publifix
Edições, 2019

O filósofo moçambicano José Paulino Castiano é


outro autor pioneiro e indispensável. O seu Referenciais
da filosofia africana é um livro que faz jus ao título
buscando articular um campo de diálogos e problemas. A
proposta de leitura dialética feita por Castiano é um
caminho que continua sendo percorrido pelo autor.

NGOENHA, Severino Elias; CASTIANO, José P.


Pensamento engajado: ensaios sobre filosofia africana,
educação e cultura política. Editora Educar, 2011.
CASTIANO, José Paulino. Referenciais da filosofia
africana: em busca da intersubjectivação. Novas Edições
Acadêmicas, 2018.

O jornalista, filósofo e músico bissau-guineense


Filomeno Lopes ocupa um lugar importante para se
pensar as perspectivas da filosofia africana, tanto por sua
proposta de filodramática que articula seu pensamento
com a música, o teatro, a literatura etc.; quanto pela
dimensão pragmática que herda de Amílcar Cabral, na
necessidade de articular teoria e prática (melhor pensar
para melhor agir). Filomeno também procura redescrever
e dar continuidade a proposta de renascimento africano
de Cheik Anta Diop, tomando o Egito Antigo como fonte
originária da filosofia.
Infelizmente os livros em que Filomeno Lopes
articula sua posição em relação ao Grande Debate estão
em italiano (indico E se l'Africa scomparisse dal

122
mappamondo?: una riflessione filosofica). Mas dois
outros livros trazem propostas e narrativas que merecem
ser mais conhecidas e desdobradas: o diálogo com o
cantor Bonga repensa o lugar da canção na luta de
libertação e no processo de descolonização; e
Filodramática que mostra a articulação entre Igreja
Católica e a luta pela independência nos PALOP.
Filomeno é o autor que de modo mais veemente insiste na
articulação de um pensar a partir dos PALOP ( e não
necessariamente em língua portuguesa).

LOPES, Filomeno. Bonga Kwenda: um combatente


angolano da liberdade africana. 2013.
LOPES, Filomeno. Filodramática: Os PALOP, entre a
filosofia e a crise de consciência histórica. Maputo.
Paulinas, 2018.
LOPES, Filomeno. E se l'Africa scomparisse dal
mappamondo?: una riflessione filosofica. 2009.

Muitos dos textos que indiquei podem estar


inacessíveis. Como solucionar ou remediar esse problema?
O livro do professor Ezio L. Bono traz uma articulação
entre grande parte dos autores do Grande Debate e as
perspectivas destes autores da África lusófona. A noção
de muntu é o ponto de partida para a investigação de Bono
que desenvolve uma aplicação da proposta de filosofia da
sagacidade que precisa ser mais conhecida e debatida. O
professor Ezio L. Bono disponibilizou seu livro on line
para download.

123
BONO, Ezio L. Muntuísmo: a ideia de pessoa na filosofia
africana contemporânea. Paulinas: Maputo, 2015.
Baixe aqui : encurtador.com.br/loO03

O trabalho do escritor e filósofo angolano Luis


Kandjimbo é que mais procura ampliar e articular as
vozes contemporâneas das filosofias africanas anglófonas
e francófonas. Seu recente livro Filosofemas africanos
está acessível on line no Brasil e traz um mapeamento de
questões e autores contemporâneos extremamente rico.

KANDJIMBO, Luis. Filosofemas africanos. Ancestre, 2021.

Ainda são raras as obras filosóficas de filósofas


africanas lusófonas, por isso o livro Ondjango de
Arminda F. Filipe é objeto de desejo de 10 entre 10 pessoas
interessadas no tema no Brasil. O trabalho de escritoras
como Paulina Chiziane e Odete Semedo podem ser um
caminho para pensar com as mulheres africanas.

FILIPE, Arminda Fernando. Ondjango: Do espaço


público tradicional angolano - Alguns contributos para a
Filosofia social e política africana. 2017.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de
poligamia: romance. Leya, 2002.

É também incontornável o trabalho de Maria Paula


Menezes e o livro Epistemologias do Sul (que organizou
com Boaventura de Sousa Santos) efetiva sua proposta de
diálogos Sul-Sul.

124
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula.
Epistemologias do Sul. São Paulo; Cortez; 2010.

Textos de autores clássicos como Amílcar Cabral,


Mario de Andrade, Eduardo Mondlane podem ser
encontrados na coletânea fundamental Malhas que os
impérios tecem de Manuela Ribeiro Sanches.

SANCHES, Manuela Ribeiro. Malhas que os impérios


tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais.
Lisboa: Edições 70, 2011.

Autores como Luca Bussotti (que hoje trabalha no


Brasil), Roberto Mancini e Patrícia Godinho Gomes
também são companheiros de viagem que podem ajudar
na aproximação da filosofia africana lusófona.
É claro que existem textos e autoras e autores que não
conheço ou tenho acesso (como o livro sobre Filosofias da
Imigração - cosmopolitismo versus comunitarismo da
cabo-verdiana Irene dos Santos Cruz), por isso mesmo
ampliar os diálogos é fundamental.
O site filosofia pop provavelmente também será um
companheiro incontornável (seja pela série de entrevistas
Djemberém63 ou pelos textos de Severino Ngoenha etc.).
Menção honrosa também para a série de entrevista sobre
a COVID-19 em África desenvolvidos no podcast Vozes
da UNILAB com episódios com Severino Ngoenha,
Filomeno Lopes, Elisio Macamo e Maria Paula Meneses:

63Os episódios com Severino Ngoenha (Moçambique), Filomeno


Lopes (Guiné Bissau), José Paulino Castino (Moçambique) e Luiz
Kandjimbo (Angola) e Arminda Filipa (Angola) podem ser acessados
aqui: https://filosofiapop.com.br/tag/djemberem/

125
http://vozesdaunilab.unilab.edu.br/index.php/tag/cov
id-19/.

p.s: o livro Afrocentricidade: Complexidade e Liberdade


de Egimino Mucale é uma referência importante para
quem quer conhecer o modo como essa proposta de
pensamento tem sido recontextualizada em Moçambique.

126
EMENTAS

A filosofia africana é no Bacharelado em


Humanidades da Universidade da Integração da
Lusofonia Afro-brasileira, no Campus dos Malês em São
Francisco do Conde-Bahia uma disciplina obrigatória.
Essa condição é excepcional em relação ao tratamento
dessa disciplina no Brasil e, ao mesmo tempo, uma
posição hoje frustrante dentro dos cursos que fazem parte
do Instituto de Humanidades e Letras (de “engrenagem
que não faz parte do mecanismo).
A partir de um livro de Severino Ngoenha64 e outro
de P. E. A. Elungu65, no segundo semestre de 2015 fui o
primeiro professor a ministrar a disciplina de Filosofia
Africana na UNILAB (então como optativa). A entrada
desta disciplina no currículo já era resultado das
mudanças epistemológicas e curriculares que uma
universidade que faz parte de um projeto de Integração
Sul-Sul precisa desenvolver. Já havíamos redescrito a
famigerada “Filosofia 1” na disciplina “Filosofia como
teoria e modo de vida” (isso significa abrir espaço para
uma concepção mais ampla de filosofia que não fica presa
necessariamente aos modelos teóricos/acadêmicos).
No Campus dos Malês, a partir de 2016, a adaptação do
Bacharelado em Humanidades para a semestralidade gerou
importantes mudanças em seu Projeto Pedagógico
Curricular (PPC), com a possibilidade de que as estudantes

64 NGOENHA, Severino Elias. Filosofia Africana: Das Independências às


Liberdades. Edições Paulistas – África, Maputo, 1993.
65 [62] ELUNGU P. E. A., O despertar filosófico em África (Tradução de

Narrativa Traçada, revisão de José Miguel Cerdeira. Luanda, Edições


Mulemba; Mangualde, Edições Pedago, 2014, 156p.

127
escolham ou não uma Área de Concentração para suas
disciplinas optativas. O texto do PPC explicava a concepção
do BHU-Malês: “propomos que o estudante tenha acesso às
várias linguagens das humanidades num primeiro
momento e, num segundo momento, escolha a sua trajetória
de formação optando por seguir uma área de concentração
temática ou seguindo objetivos formativos orientados por
opções de vida e experiência pessoal. O Bacharelado em
Humanidades oferecerá três áreas de concentração, que se
alinham com a Missão e Diretrizes da UNILAB em cujos
objetivos teóricos, metodológicos e interdisciplinares, estão
confiados os estudos relativos às áreas de concentração em
Estudos Africanos, Estudos da Diáspora e Estudos sobre
Interseccionalidade de gênero, raça e classe”. Este projeto
pedagógico foi avaliado MEC em 2017 ganhando a nota
máxima (5)66, nele já estavam as ementas que aqui apresento:
Filosofia como teoria e modo de vida (obrigatória); filosofia
africana (obrigatória); filosofia africana pós-colonial
(optativa da área de concentração de Estudos Africanos);
filosofia afrodiaspórica (optativa da área de concentração de
Estudos da diáspora); filosofia em afroperspectiva (optativa
da área de concentração de Estudos sobre
Interseccionalidade de gênero, raça e classe); além da
presença da disciplina “filosofia da ancestralidade”, que já
existia no contexto do curso de pedagogia.
Porém, no Brasil, como sentenciou Caetano Veloso,
tudo é construção e já é ruína”, já que “nada continua”: o
desenho do BHU foi totalmente refeito em 2018-2019 e as
Áreas de Concentração interdisciplinares substituídas
por perspectivas disciplinares (ao invés de um recorte de
especialização interdisciplinar, privilegiaram no novo
currículo a possibilidade de adiantar disciplinas da

66C.f. https://unilab.edu.br/2017/08/21/bacharelado-em-humanidades-do-
campus-dos-males-obtem-nota-maxima-em-avaliacao-do-mec/

128
terminalidade). Isso destruiu o sentido das disciplinas
que ainda aparecem no currículo do BHU, mas que não se
vinculam as terminalidades. O BHU perdeu a sua
dimensão orgânica e as disciplinas optativas vinculadas a
filosofia africana passaram a ter oferta intermitente e
descontinua (também porque na disputa por vagas de
concurso os horizontes disciplinares se mantêm como
“reservas de mercado”). Por isso, no papel, temos um
projeto robusto de filosofia africana no BHU-Malês, que
pode ser modelo e inspiração para outras iniciativas. Mas,
efetivamente, ter a disciplina de filosofia africana como
obrigatória tornou-se uma vitória de Pirro dentro do
BHU-Males, já que seu próprio desenho e proposta se
vinculam a um curso que não existe mais.

Filosofia africana
(Obrigatória – 60 horas)
Bacharelado em Humanidades – UNILAB – Campus dos
Malês.
Ementa: A filosofia e o multiculturalismo: o caso da
filosofia africana; Tipos de filosofia(s) africana(s):
etnofilosofia; filosofia sapiencial ou da sagacidade;
filosofias ideológicas nacionalistas e pós-coloniais;
filosofia profissional.
Bibliografia básica:
APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África
na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
P.E.A., Elungu. Tradição africana e racionalidade
moderna. Luanda: Pedago/Mulemba, 2014.
TOWA, Marcien. A ideia de uma filosofia negro-
africana. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: NEAB-
UFPR, 2015.

129
MASOLO, Dismas A. African philosophy in search of
identity. Indiana University Press, 1994.
Bibliografia complementar:
BELL, Richard H. Understanding African philosophy: A
cross-cultural approach to classical and contemporary
issues. Routledge, 2004.
COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The
African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002.
COPANS, Jean. A longa marcha da modernidade
africana. Saberes, intelectuais, democracia. Luanda:
Pedago/Mulemba, 2014.
EZE, Emmanuel Chukwudi (ed.). African Philosophy.
Oxford: Blackwell, 1998.
EZE, Emmanuel Chukwudi (ed.). Pensamiento Africano:
Ética y Política. Barcelona: Bellaterra, 2001.
EZE, Emmanuel Chukwudi (ed.). Pensamiento Africano:
Filosofia. Barcelona: Bellaterra, 2002.
EZE, Emmanuel Chukwudi (ed.). Pensamiento Africano:
Cultura y Sociedad. Barcelona:Bellaterra, 2005.
HALLEN, Barry. A Short History of African Philosophy.
Bloomington: Indiana University Press,2002.
IMBO, Samuel Oluoch. An introduction to African
philosophy. Rowman & Littlefield, 1998.
P.E.A., Elungu. O despertar filosófico em África.
Luanda: Pedago/Mulemba, 2014.
WIREDU, Kwasi (Ed.). A Companion to African
Philosophy. Oxford: Blackwell, 2004.
Bibliografia suplementar
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO,
Joseph (ed.). História Geral da África I. Metodologia e
Pré-história da África. Brasília: Unesco, 2010.
IRELE, Abiola; JEYIFO, Biodun. The Oxford
Encyclopedia of African Thought: Abol-impe. Oxford
University Press, 2010.

130
MAZRUI, Ali A; AJAYI, J.F Ade; BOAHEN, A. Adu;
TSHIBANGU, Tshishiku. Tendências da filosofia e da
ciência na África. In: MAZRUI, Ali A.; WONDJI,
Christophe (eds.). História Geral da África, VIII: África
desde 1935. Brasília: Unesco, 2010. p. 761-815.
MBEMBE, Achille. África insubmissa. Cristianismo,
poder e Estado na sociedade pós-colonial. Luanda:
Pedago/Mulemba, 2013.
MUDIMBE, Valentim. A ideia de África. Luanda:
Pedago/Mulemba, 2013.
MUDIMBE, Valentin.Y. A invenção da África. Gnose,
Filosofia e a Ordem do Conhecimento. Luanda :
Pedago/Mulemba, 2013.
OBENGA, Théophile. La philosophie africaine de la
période pharaonique 2780-330 avant notre ère. L
harmattann, 1990.

Filosofia Africana Pós-colonial


(60 horas – Área de Concentração: Estudos Africanos)
Bacharelado em Humanidades – UNILAB – Campus dos
Malês
Ementa: A África e a razão científica moderna;
Descolonização, tradição e intersubjetividade;
Afropolitanismo e razão negra; Cosmopolitismo e ubuntu:
democracia, consenso e tradição; Futuro pós-racial

Bibliografia:
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa:
Antígona: Lisboa, 2014.
MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a
África descolonizada. Luanda: Pedago/Mulemba, 2014.
HOUNTONDJI, Paulin J. (Org.). O antigo e o moderno: a
produção do saber na África contemporânea. Mangualde;
Luanda: Edições Pedago; Edições Mulemba, 2014.

131
MAMA, Amina. “Será ético estudar a África?
Considerações preliminares sobre pesquisa académica e
liberdade”. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, p.
603-637, 2010.
MASOLO, Dimas A. Filosofia e conhecimento indígena:
uma perspectiva africana. Epistemologias do Sul.
Coimbra: Almedina, p. 507-530, 2009.
RAMOSE, Mogobe B. Globalização e Ubuntu. In:
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula
(org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
Bibliografia complementar:
MBEMBÉ, J.-A. On the postcolony. Univ of California
Press, 2001.
CORNELL, Drucilla. Law and revolution in South Africa:
Ubuntu, dignity, and the struggle for constitutional
transformation. Oxford University Press, 2014.
EZE, Emmanuel Chukwudi (ed.). Postcolonial African
philosophy: A critical reader. Cambridge, Blackwell, 1997.
IRELE, Abiola; JEYIFO, Biodun. The Oxford
Encyclopedia of African Thought: Abol-impe. Oxford
University Press, 2010.
MASOLO, Dismas A. Self and community in a changing
world. Indiana University Press, 2010.
MAMDANI, Mahmood. Citizen and subject:
Contemporary Africa and the legacy of late colonialism.
Princeton University Press, 1996OSHA, Sanya.
Postethnophilosophy. Rodopi, 2011.
MUDIMBE, Valentin.Y. A idéia de África. Luanda:
Pedago/Mulemba, 2013.
MUDIMBE, Valentin.Y. A invenção da África. Gnose,
Filosofia e a Ordem do Conhecimento. Luanda:
Pedago/Mulemba, 2013.

132
OSHA, Sanya. African Postcolonial Modernity:
Informal Subjectivities and the Democratic Consensus.
Springer, 2014.
OSHA, Sanya. Kwasi Wiredu and beyond: The text,
writing and thought in Africa. African Books Collective,
2005.
WIREDU, Kwasi (Ed.). A Companion to African
Philosophy. Oxford: Blackwell, 2004.

133
134
Adinkras

NEA ONNIM NO SUA A, OHU


"Quem não sabe pode saber através da
aprendizagem"

Símbolo do conhecimento, educação ao


longo da vida e busca contínua pelo
conhecimento

Fonte: Cloth As Metaphor por G.F. Kojo Arthur

NKONSONKONSON
"Elo de corrente"
Símbolo de unidade e relações humanas

Um lembrete para contribuir para a


comunidade, que na união reside a força

WOFORO DUA PA A
"quando você sobe uma boa árvore"
Símbolo de apoio, cooperação e incentivo.
A partir da expressão "Woforo dua pa a,
na yepia wo" que significa "Quando você
sobe uma boa árvore, você recebe um
empurrão". Mais metaforicamente,
significa que quando você trabalha por uma boa causa, você
receberá apoio.

135
SUBAN
SESA WO

Mudar ou transformar seu caráter

Este símbolo combina dois símbolos


adinkra, a "Estrela da Manhã", que pode
significar novo começo para o dia; colocada
dentro da roda, representando rotação ou movimento
independente.

SANKOFA

"Volte e pegue"

Símbolo de importância de aprender com o


passado.

Mais:

"Jornada" em ideograma nsibidi

136
Links

Escute o podcast de filosofia mais pop do Brasil


Site : www.filosofiapop.com.br

Facebook:
https://www.facebook.com/podcastfilosofiapop

Instagram:
https://www.instagram.com/podcastfilosofiapop/

Twitter: https://twitter.com/filosofia_pop

Youtube: https://www.youtube.com/FilosofiaPop

137
138
O Autor

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes (marcosclopes@gmail.com)


nasceu em Jataí, Goiás. É pós-doutor em Literatura,
Cultura e Contemporaneidade pela PUC-RJ; doutor em
Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,
mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás e
Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de
Goiás. Trabalhou entre 2014-2021 na Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB-BA). Atualmente é professor na Universidade
Federal de Jataí (UFJ) em Goiás. Autor de Canção, estética
e política: ensaios legionários (mercado de letras, 2012),
Máquina do Medo (PUC-GO, 2013) e botAfala: Ocupando a
Casa Grande (Pedro &João, 2019).

139

Você também pode gostar