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A perspectiva historiográfica da legitimação da existência da filosofia africana

Já o dissemos algures, sob as arestas do pensamento de M. Deacon e H. Odera Oruka, que a


filosofia africana é, fundamentalmente (pelo menos em suas origens), uma réplica africana à
humilhação e negação da humanidade do africano. Deste modo, a filosofia africana pode ser
definida como busca ou reafirmação da singularidade, unicidade, identidade e humanidade
africanas.

O esforço intelectual da reabilitação da dignidade do africano seguiu várias perspectivas de


conhecimento, a destacar: Metafísica (P.F. Tempels, Segun Gbadegesin); Lógica, Epistemologia
e Linguagem (A. Kagame, Victor Ocaya, Olufemi Taiwo, Safro Kwame, José Paulino Castiano,
etc); Ética (Ifeanyi A. Menkiti, Didier Njirayamanda Kaphagawani, Barry Hallen, John
Ayotunde Isola Bewaji, etc.); Religião (J.S. Mbiti, Olusegum Oladipo, Samuel O. Imbo,
Souleymane Bachir Diagne, Kwasi Wiredu, etc.); Estética (kofi Agawu, Ajumi H. Wingo,
Leopold Sedar Senghor, etc.); Raça (W.E.B. Du Bois, Eduard Wilmot blyden, A. Cesaire, L.
Damas, L.S. Senghor); Política revolucionária (F. Fanon, E. Mondlane, A. Cabral, Ali A.
Mazrui, etc.); Política comunitária tradicional (Edward Wamala, D. A. Masolo, Joe Teffo,
Mualimu J.K. Nyerere, etc.) História (C. A. Diop, C. Sumner, M. Bernal, T. Obenga, Theodoros
Kiros, Mourab Wahba, D.A. Masolo, Souleymane Bachir Diagne, Aboubacary Moussa Lam,
etc.); etc.. A lista podia continuar, mas estamos conscientes da impossibilidade de esgotar as
áreas de abordagem e os pensadores da filosofia africana num pacato parágrafo com mera
finalidade propedêutica. Se até o último quartel do século passado era ainda possível classificar
de forma quase objectiva e certeira as correntes da filosofia africana e nomear seus membros
(pensadores), hoje em dia tal trabalho exige maior perícia e colaboração.

Não é fácil, hoje em dia, encontrar um filósofo africano que se dedique a uma única temática
filosófica em suas pesquisas, à semelhança de Tempels, Mbiti, Obenga e Nkrumah, por exemplo.
Tomemos Ngoenha para ilustrar o que acabamos de afirmar. Ele é um filósofo africano da
história, porém, penetra os territórios da educação, política, cultura, ética, estética e até literatura,
embora o faça servindo-se usualmente da sua orientação filosófico-histórica. O mesmo pode ser
dito a respeito de José P. Castiano, Brazão Mazula, Valentim Y. Mudimbe, Paulin Hountondji,
etc.

Portanto, não se pode dizer, actualmente e de forma rígida, que o pensador africano X ou Y
estuda este e não aquele campo de saber filosófico, como não se pode igualmente continuar com
a crença de que a filosofia africana é, ainda hoje, réplica do discurso pejorativo ocidental sobre o
africano. Contudo, o primeiro esforço filosófico africano o era, como já afirmamos em
parágrafos precedentes.

A Europa, para justificar a violência militar, económica e sócio-cultural sobre os africanos,


inventou o mito de uma África pré-lógica, sem cultura, sem organização política racional e sem
história. Teóricos como Voltaire, Hume, Hegel, Gobineau, Lévy Bruhl, etc. e instituições
europeias como o Instituto de Etnologia da França, criado em 1925, por L. Lévy Bruhl, por
exemplo, empenharam-se incansavelmente para justificar os actos violentos do Ocidente,
legitimando, no plano moral e filosófico, a inferioridade geográfica da África e antropológica do
africano. A visão de uma África sem história cujos habitantes, os negros, nunca foram
responsáveis de qualquer facto integrador da civilização humana, impõe-se agora nos escritos e
se fixa nas mentes. O Egipto e todo o Magreb são geográfica, antropológica e culturalmente
ligados, por Hegel, ao Oriente e ao mundo mediterrâneo de forma arbitrária.

A perspectiva filosófico-histórica da legitimação da filosofia africana funda-se basicamente na


refutação da tese ocidental da a-historicidade da África e na afirmação do papel histórico do
continente africano, ou seja, dos negros no desenvolvimento da civilização, incluindo a
ocidental. O precursor desta abordagem é o filósofo senegalês Cheikh Anta Diop, cuja obra teve
impacto internacional de maior alcance e atraiu vários seguidores, admiradores e especialistas
em egiptologia.

1. Cheikh Anta Diop: a África berço da civilização

Cheikh Anta Diop nasceu em 1923, num vilarejo senegalês, chamado Caytou, e faleceu em 1986.
Na época, a África estava sob dominação colonial europeia; o Senegal não existia ainda como
Estado soberano e o clima que reinava no meio do ensino, assim como na pesquisa universitária,
estava fortemente imbuído de colonialismo e de racismo anti-negro.

O jovem Cheikh Anta Diop foi vítima do clima colonial. Primeiro no Senegal com o seu
professor do liceu, o senhor Boyaud, um discípulo de Gobineau e colono bastante hostil à raça e
às autoridades negras, que levou o jovem a repetir pela terceira vez o último ano do primeiro
grau, o que motivaria sem sombra de dúvida a sua exclusão da escola. O segundo caso deu-se na
universidade, em Paris, quando, tomando o contra-pé teórico do meio social solidamente
mumificado pelo racismo ocidental, o jovem vê a sua tese recusada, vindo a publicar as suas
pesquisas na sua célebre obra Nações Negras e culturas em 1954.

O livro soa como um trovão no céu tranquilo do “estabelecimento”intelectual: o autor questiona,


através de uma investigação científica e metodológica, os fundamentos da cultura ocidental em
relação à génese da humanidade e da civilização. A resposta surpreendeu o mundo científico
ocidental, o qual perdeu a cabeça e ficou impotente diante da antítese de suas teorias, trazida por
um jovem negro. Diop destruiu as teses mais “sólidas” que queriam que a civilização viesse
exclusivamente do mundo ocidental, ao demonstrar que, à semelhança do Ocidente cujo berço
civilizacional é a Grécia, a África também tem uma génese própria da sua civilização diferente
da Grécia, o Egipto Antigo. A civilização egípcia foi construída e habitada por negros, os quais
desenvolveram a cultura em todos os domínios, quando as restantes raças, incluindo a
caucasiana, jaziam no barbarismo, ainda em embriões de civilização.

Assim, o renascimento da África, que implica a restauração da consciência histórica, aparece


para Cheikh Anta Diop como uma tarefa inevitável à qual ele consagrará toda a sua vida. A sua
obra demonstra a necessidade do retorno da África ao antigo Egipto em todos os seus domínios:
das ciências, da arte, da literatura, do direito, da religião, da moral, etc. A volta histórica, todavia,
longe de ser concebida como um recuo, introspecção ou simplesmente glorificar o passado,
permite definir um quadro apropriado de reflexão sobre os problemas aos quais estão
confrontados hoje os africanos e trazer soluções.

É por isso que toda a obra de Cheikh Anta Diop apresenta-se como a base de um verdadeiro
renascimento da África, uma perspectiva mais racional de restauração da africanidade, quando
comparada com a Negritude senghoriana. Para valorizar o negro vítima da violência do racismo
do branco europeu, Léopold Sédar Senghor dissociou a negritude do conhecimento racional,
exaltando a emoção como a faculdade intelectual do negro. Cheikh Anta Diop considera a
atitude senghoriana oposta à meta da restauração da África, pois, com a negritude, o negro perde
a confiança no potencial racional da sua raça. Segundo Diop, além de ser herdeira, a história
prova que a raça negra é a inventora originária da racionalidade de que se serve o Ocidente.

Ora, apesar do alcance epistemológico profundo, a obra de Diop não teve uma receptividade
imediata. A quando da sua publicação, o livro pareceu tão revolucionário que poucos intelectuais
africanos tiveram a coragem de aderir à causa. Somente Aimé Césaire entusiasmou-se, chegando
a evocá-lo em seu discurso sobre o colonialismo, como “o livro mais audacioso que um negro
jamais escreveu”. Foi preciso esperar vinte anos para que grande parte de suas teorias fossem
reconhecida, durante o colóquio internacional do Cairo de 1974, organizado pela UNESCO e que
reuniu os mais eminentes egiptólogos do mundo inteiro. Mas foi depois de mais outros vinte
anos que a obra foi efectivamente levada em consideração, isso já após sua morte. Hoje em dia,
algumas ideias de Cheikh Anta Diop, principalmente a historicidade das sociedades africanas, a
anterioridade da África e da africanidade do Egipto, não são mais discutidas.

a) Migração da racionalidade

Para refutar o argumento colonialista de que a África não produziu grande civilização,
argumento baseado fundamentalmente em preconceitos racistas que em conhecimento rigoroso,
Diop desenvolveu um trabalho com vista a demonstrar a grandeza e a origem negro-africana da
civilização egípcia antiga. Para Diop, o Egipto era essencialmente uma civilização africana e os
seus fundadores eram o mesmo grupo racial dominante na África sub-sahariana, isto é, os
negros. Este grupo racial inventou a religião, a filosofia e a ciência em geral e inspiraram os
sábios gregos como Tales, Demócrito, Platão e outros. Desta forma, “a Grécia emprestou do
Egipto todos os elementos da sua civilização, mesmo o culto dos deuses, e o Egipto foi o berço
da civilização”.

Para endossar a sua tese, Cheikh Anta Diop traz factos que provam que foram os negros que
expandiram a civilização nos outros povos do mundo, primeiro através da Núbia – actual Sudão
– (em torno de 6000 a.C) e depois no Egipto (em torno 4000 a.C), portanto muitos milénios antes
da Grécia ( em torno de menos 2000 a.C) e mais tarde na Roma (em torno de menos 700 a.C).

Numa busca lógica, Cheikh Anta Diop trouxe os testemunhos dos antigos gregos (Hérodote,
Strabon, Diodore de Sicile, etc.), esses mesmos que são testemunhas oculares da civilização
egípcia. Querendo explicar o fenómeno das inundações do Nilo, Heródoto, considerado o pai da
Historia, escreveu, em relação ao Egipto: “(...) a terceira razão vem do facto de que o calor do
lugar torna as pessoas pretas....”. O mesmo Heródoto prosseguiu, para sublinhar a origem
egípcia na base grega, afirmando: “(....) E quando eles acrescentam que esta silhueta era negra,
eles nos fazem entender que esta mulher era egípcia...”. O sábio grego disse o mesmo em relação
aos habitantes de Colchide (aos arredores do actual Mar Negro, perto da Turquia) pois queria
sublinhar a origem egípcia deste povo: “(....) Os egípcios pensam que estes povos são
descendentes de uma parte das tropas de Sésostris1. Eu lhes examinei sobre dois índices : o
primeiro é que eles são negros e que eles têm cabelos crespos.....”. Outros cientistas gregos da
antiguidade – Strabon, Pitágoras, Talés, Euclide, Diodore – a maioria dos quais se iniciou no
Egipto, confirmaram os testemunhos de Heródoto. Platão, por exemplo, afirma no décimo livro
da República que “Tales, o fundador da filosofia, geometria e astronomia no mundo grego, foi
educado no Egipto, pelos sacerdotes”. Aristóteles, reconheceu na sua Metafísica a origem
egípcia da filosofia, da matemática e astronomia.

Mesmo se alguns, notadamente Platão, tenham omitido a informação sobre a fonte de seus
conhecimentos (reconhecendo todos sua iniciação no Egipto, em todas as áreas das ciências de
sua época!), os papiros redigidos pelos sacerdotes negros que resistiram ao tempo provam que
foi atribuída, por engano, aos gregos a paternidade das descobertas do Egipto antigo. Cheikh
Anta Diop revela que uma personagem como Strabon não hesitou em tratar Pitágoras de “vulgar
plagiador”.

Mais do que os depoimentos dos sábios gregos antigos, Melhor ainda são os argumentos
fornecidos pelos próprios egípcios, que se representavam como negros, facto reforçado por novas
técnicas de pesquisa, tais como o carbono 14 para a datação, a bioquímica, a antropologia, a
arqueologia e a paleontologia.

Segundo Diop, a raça negra foi a primeira a migrar pelo mundo inteiro. Foi o negro que migrou
em direcção aos outros continentes para se adaptar a estes locais, em todos os estágios da
evolução do homem, inclusive o do homo sapiens sapiens (que corresponde ao homem
moderno). É assim que as outras raças teriam aparecido. Cheikh Anta Diop afirma que o fóssil de
Homo Sapiens mais antigo da época é de um negro (Omo I, em torno de – 150.000 A.C) e as
outras descobertas sobre os continentes são do tipo negróide (Homem de Grimaldi, etc.).

Com base nestes dados, Diop refuta a propalada ideia do milagre grego, considerando-a apenas
uma fraude: o milagre foi africano. A única originalidade que Diop reconhece aos gregos é o
desenvolvimento da componente materialista da cosmologia egípcia: “ateísmo materialista é
uma criação puramente grega”, escreve o filósofo faraónico.

Diop estava convencido que os africanos pertenciam a uma raça diferente, caracterizada por uma
profunda homogeneidade. A África tem uma unidade cultural e histórica que não se resume na
vizinhança geográfica, mas em algo mais genuíno como o parentesco linguístico, o passado
histórico comum e a raça. A diferença existente entre o Magreb e a África sub-sahariana deve-se
a desertificação do Sahara e as sucessivas invasões do Norte, sobretudo do Egipto.

Ora, se os africanos são os únicos inventores da técnica, da ciência e de toda a civilização, como
é que se justifica o atraso técnico-científico do continente que contribuiu para a sucessiva
dominação por civilizações dele derivadas, sobretudo a ocidental? A resposta é simples. A
1
Sésostris é a forma grega do nome de três faraós da XIIª dinastia do Império. O nome egípcio, Sénousert , significa « aquele da deusa
Ousert ». Ele faz parte da composição do título real como nome de Sa-Rê ou nomen.
estagnação tecnológica da África deve-se a razões ecológicas e a organização comunalista da sua
vida. Separados do país mãe (Egipto), o qual foi sucessivamente invadido pelos estrangeiros, o
povo negro do sul do Sahara requeria um mínimo de esforço de ajustamento social. Os negros
foram se orientando mais pelo desenvolvimento da sua organização social, política e moral, que
por especulações e busca científica, pois as circunstancias pouco justificavam.

Ademais, o comunalismo africano representa o sistema de moralidade social muito elevado, que
protege os indivíduos da expropriação e exploração abusiva. A pertença colectiva dos meios de
produção e a distribuição igualitária do produto económico, tornados possíveis pelo banimento
(ausência) da exploração do homem pelo trabalho, catapultaram a coexistência pacífica e
desenvolvimento moral no seio da sociedade (matriarcal) africana e eliminaram a concorrência, o
egoísmo e a agressão da natureza para satisfazer curiosidades ou paixões pessoais.

A Europa, nascida do berço patriarcal, e cuja essência é a vida nómada, espírito de guerra e
egoísmo, foi literalmente incapaz de gerar premissas culturais de pensamento racional. Valendo-
se da astúcia que lhe é característico, a Europa roubou a racionalidade da África e desenvolveu-a
no sentido de capitalizar o seu impulso de conquista, um impulso que é bastante abominável na
civilização africana. Ou seja, os europeus roubaram e adoptaram a racionalidade inventada pelos
africanos, mas divorciando-a das premissas socioculturais africanas de orientação pacífica para
propósitos de conquista, opressão e hegemonia.

Portanto, longe de formular uma tese anti-branco que se oporia a tudo que é caucasiano
(racionalidade técnica, sobretudo), Diop opera uma inversão de posições, atribuindo ao negro a
paternidade da racionalidade e da civilização humanas. E, antes de se ver ontologicamente
inferior ou diferente do branco, o negro descobre, para a sua surpresa e satisfação, que muitas
das ideias actualmente usadas para domesticar, atrofiar, dissolver ou roubar sua alma foram
concebidas pelos seus ancestrais. Tornar os negros conscientes deste facto é o primeiro passo
para uma genuína restauração de si mesmos, sem esterilidade intelectual que lhes condena à
condição sub-humana.

Para Diop, o maior defeito da negritude consiste no facto de o retorno à essência não ser retorno
ao passado glorioso, mas a aspectos insignificantes. A negritude corrige um erro por outro erro,
conceber o retorno como exaltação duma posição previamente assegurada pelo homem na sua
relação com a natureza, antes de conhecer outras formas evoluídas da existência (a racionalidade
tecnológica).

Assim, além de destruir as teses mais “sólidas” que queriam que a civilização viesse do mundo
ocidental, Cheikh Anta Diop provou que todos os homens são iguais, qualquer que seja sua raça,
afinal de contas, todos os homens provem duma única raça, a negra. Por consequência, a
colonização e, pior, a escravidão não podem ser justificadas. Logo, além da dívida moral que o
Ocidente tem aos negros, e longe de tentar-se tapar o passado com farrapos transparentes, é
necessário que a espécie humana comece a reescrever a verdadeira história da humanidade.

Quanto à questão se houve ou não filosofia africana tradicional antes da colonização, Diop
responde afirmativamente, dizendo que todo o pensamento tradicional mais confidencial era
filosófico no sentido estrito da palavra. Indo contra a etnofilosofia, Diop argumenta que para que
o pensamento seja chamado filosófico, a razão deve estar consciente desse pensamento e deve
haver uma distinção clara entre o mito e o pensamento racional. Diop defende que esse tipo de
pensamento foi perfeitamente cultivado pelos egípcios, antes de qualquer povo, incluindo os
gregos, que copiaram-no dos egípcios.

Isto sugere que a consciência e o pensamento reflexivo considerados existentes na África em


forma de pensamento colectivo inconsciente é a filosofia egípcia. Assim, a restauração da
filosofia africana como inventariação dos costumes e crença, tal como fez a etnofilosofia, não é
um método correcto. A autentica filosofia africana onde todos os costumes e crenças têm a sua
origem e foi desenvolvido de forma consciente é na filosofia egípcia antiga. Os africanos devem
ir directamente ao centro, à filosofia egípcia antiga em que se funda a filosofia africana, e não
nos estudos de P.F. Tempels.

2. Theophile Obenga: a hermenêutica da escritura hieroglífica egípcia

Theophile Obenga é professor e assegura a cátedra de estudos africanos na Universidade do


Estado de São Francisco, onde lecciona a língua egípcia e as civilizações africanas. Nasceu no
Congo Brazzaville; estudou nas Universidades de Bordeaux e Sorbonne (França), de Pittsburgh
(EUA) e de Génova. Adquiriu seu Ph.D. pela Universidade francesa de Montpellier. É professor
visitante na Temple University (USA), Brazzaville (Congo), Abidjan (Costa do Marfim),
Libreville (Gabão), Bangui (República Centro Africana), e Lubumbashi (Congo, antigo Zaire). É
membro da associação francesa de egiptologia, sedeada no Colégio da França, em Paris. Suas
publicações incluem Filosofia africana durante o período faraónico (1990) e Geometria egípcia
(1995).

Discorrendo dentro do mesmo diapasão filosófico do senegalês Cheikh Anta Diop, Theophile
Obenga começa por refutar a pretensão de atribuir à Grécia a génese da filosofia, afirmando
tratar-se dum preconceito enraizado na sempiterna tendência ocidental de dissociar outros povos
antigos do engajamento ao pensamento especulativo. É verdade que o pensamento especulativo
transcende a mera experiência – afirma Obenga – mas parte dela e tende sempre a explicá-la, a
interpretá-la, a unificá-la e a sistematizá-la.

Não é por acaso que o filósofo chinês Fun Yu-lan, define a filosofia como “pensamento reflexivo
e sistemático sobre a vida”; o filósofo norte-americano R. Rorty define-a como “espelho da
natureza”, incluindo a natureza social; e Karl R. Popper considera a filosofia e a ciência como
“senso comum ilustrado”. A verdade é que o pensamento especulativo (expresso em aforismos,
alusões, metáforas, métodos positivos ou negativos e a dialéctica), que pode ser escrito ou oral,
deve estar necessariamente conectado aos problemas da vida. Sobre este assunto, M. Merleau
Ponty argumenta: “se filosofar é descobrir o sentido primeiro do ser, não é possível filosofar
abandonando a situação humana; é, pelo contrário, preciso assumi-la”.

Assim, se concordamos que filosofia é, antes de mais, interpretação racional da multiforme


realidade da vida humana, então pode-se afirmar – conclui Obenga – que todos os povos têm
filosofia. O espírito da filosofia chinesa, da filosofia indiana, da filosofia Maya, da filosofia
europeia é que é diferente devido ao modo distinto de engajamento na compreensão da realidade,
mas a filosofia sempre lida com conhecimento humano e elevação da mente, e esta atitude é
comum a todos os homens. Por isso, para Obenga, o futuro da filosofia no mundo deve tomar em
consideração os grandes sistemas especulativos de toda a humanidade, produzidos ao longo da
história. E a filosofia africana, como um facto histórico, deve ser entendida dentro da dinâmica
da história da humanidade.

De acordo com Obenga, a evolução e desenvolvimento da filosofia africana seguem os caminhos


da história da África. Nos tempos remotos, a filosofia africana estava fundamentalmente
localizada no Vale do Nilo, isto é, no Kimet ou Antigo Egipto e em Kush (Napata-Meroe,
também conhecido por Núbia ou Etiópia). No Egipto, a filosofia floresceu entre 3400 a 343 a.C.
e, na Etiópia, entre 1000 a 625 a. C.

Durante o longo período do florescimento da filosofia africana, houve fortes conexões da


produção intelectual africana com outros continentes, principalmente com Europa, desde o
período do mundo greco-romano. O Egipto antigo contribuiu significativamente para a
perpetuação da filosofia, ética e a concepção do mundo no geral, tendo recebido e educado
muitos académicos, especialmente os famosos pensadores gregos como Tales, Pitágoras, Platão,
etc.

A tarefa do historiador da filosofia consiste precisamente em usar métodos capazes de clarificar


as ideias, conceitos, especulações e contribuições dos filósofos do passado, bem como submeter
as suas teorias à crítica cerrada de modo a provar (demonstrar) a sua efectividade. Mas, como o
historiador da filosofia é também filósofo, pois o seu trabalho não é mera investigação do
passado, mas criação de ideias através das teorias do passado, requer-se que transforme os
métodos analítico e crítico da história em método de produção de filosofia.

a) A filosofia no Egipto antigo

Antes de definirmos a filosofia no antigo Egipto convém recordar que Obenga procura, à
semelhança de Diop, justificar a existência da filosofia africana através do retorno à génese da
civilização africana, génese essa que é o Egipto antigo.

Opondo-se a tendências ocidentais hegelianas que procuravam desvincular o Egipto do resto da


África, ou a tendências orientalistas que procuravam associar a originalidade do Egipto à Ásia,
Obenga atribui a génese e desenvolvimento da civilização do Egipto antigo a negros africanos.

As razões da atribuição da génese da civilização egípcia antiga aos negros são várias: Primeiro,
a linguagem egípcia presente na escrita hieroglífica, hierática e demótica e as línguas africanas
modernas, como as faladas actualmente pela África negra, constituem a mesma comunidade
linguística que se foi desintegrando com o passar do tempo e transformações sociais. Vários
estudiosos especialistas em pesquisas comparativas entre as línguas antiga e hodiernas têm
confirmado a existência de forte ligação entre os caracteres linguísticos do povo egípcio antigo
com dos bantus de hoje2. Contudo, a tese que circulou e reinou por muito tempo, segundo a qual
as línguas africanas e asiáticas são mesma família não tem nenhum fundamento científico. Não
existe prova histórica de uma gramática afro-asiática e, consequentemente, da origem afro-
2
Quanto à questão da possibilidade da existência ou não de caracteres linguísticos semelhantes entre a comunidade
bantu, julgamos satisfatórias as conclusões de Alexis Kagame .
asiática da linguagem do Egipto antigo. Trata-se de uma informação baseada somente em
preconceitos e não em pesquisas objectivas.

O segundo motivo por que o Egipto antigo tem origem negro-africana é que ele foi um
florescente reino da África do Norte, localizada no vale do Nilo, na zona do Oriente Próximo ou
da Ásia Menor. A civilização egípcia do período faraónico (3400-343 a.C.) foi intrinsecamente
uma civilização africana em todos os aspectos: no espírito, no carácter, no comportamento, na
cultura, no pensamento e nos profundos sentimentos. Isto contraria a tese hegeliana que
procurava desvincular o Egipto do resto da África sob o preconceituoso pretexto de que os
africanos nunca tinham dado nenhuma contribuição ao progresso da história em virtude de a sua
razão encontrar-se ainda em bruto, e que, por conseguinte, seria inconcebível que uma
civilização tão grande como a egípcia tivesse sido produzida pelos negros irracionais.

Posto isto, e justificada a génese negro-africana da civilização egípcia antiga, podemos explorar
os contornos da filosofia africana voltando ao berço da civilização africana hodierna, o Egipto
Antigo.

Já o dissemos acima que filosofia é uma reflexão sistemática sobre a vida. Isto quer dizer que
não existe uma filosofia que esteja desvinculada à vida, à sociedade, à existência e ao universo.
Mesmo o pensamento abstracto sobre o ser e o nada, é sempre em relação a alguma coisa no
Universo – dizem Merleau Ponty e Ortega Y Gasset – desde que por universo se entenda a
totalidade de tudo que há.

Os seres humanos procuraram sempre escutar e discernir o que é real, justo, bom, verdadeiro.
Este exercício interior é o que se chama sabedoria, pois, entender o que é verdade, justiça, etc.,
pressupõe elevação da mente e um exercício de escuta. Por essa razão, mais do que metodologia,
a filosofia é, segundo Obenga, uma tarefa. A filosofia é mais importante na sua função
pragmática que como mera metodologia crítica ou analítica da natureza das coisas.

A filosofia no Egipto antigo era, fundamentalmente, concebida como síntese de toda a


aprendizagem: busca da sabedoria e da perfeição moral e espiritual. A filosofia nos tempos do
Egipto faraónico era uma espécie de pedagogia, cujo cultivo e transmissão estavam reservados a
conceituados sábios, que eram, simultaneamente, académicos, sacerdotes e homens do Estado.

Na concepção egípcia antiga, filósofos não eram apenas analistas críticos, grandes cérebros
académicos e excelentes leitores e intérpretes de textos antigos. Eles ultrapassavam o simples
campo de pesquisa das causas últimas das coisas; eram conselheiros e guiavam a comunidade em
bons passos, ensinando-a o que é verdade, justo e útil. Ser filósofo, no antigo Egipto, implicava,
acima de tudo, ser modesto, moderado, humilde e um desejo ilimitado de perfeição. Isto é o que
fazia com que produzissem e ensinassem verdadeira sabedoria, e tal cultura filosófica permanece
válida entre os africanos de hoje.

Houve uma grande tradição filosofia e cientifica no Egipto antigo, afirma Obenga. Imhotep, Hor-
Djed-Ef, Kagemni, e Ptah-Hotep, pensadores pertencentes ao Reino Antigo (2686–21 a.C.),
fundaram a primeira tradição filosófica na história do mundo. Rompendo as fronteiras do tempo,
sua filosofia e sabedoria continuam a ecoar e a ser invocadas com reverência:
Livros de sabedoria (i.é. filosofia)eram seus pirâmides,
E a caneta era seus filhos…
Existe alguém aqui como Hodor-Djed-Ef?
Existe outro como Imhotop?
Eles foram e estão esquecidos,
Mas seus nomes ainda são lembrados devido os seus escritos
(In Lindos Papiros IV, Verso)

Imhotep foi grande Vizir do Rei Djoser (2668-2649), da 3ª Dinastia. Ele foi também Alto
Sacerdote na Heliopolis (Cidade de Sol), a maior cidade do deus sol, Ra. Desenhou, como
arquitecto-chefe, a pirâmide de Saqqara, a primeira construção em tijolos de pedra na história da
humanidade. Hor-Djed-Ef foi um príncipe Real, filho de Khufu (2589-2566 a.C.), da 4ª Dinastia.
Atribui-se a ele a origem da gigantesca pirâmide de Giza.

Mulheres também estavam envolvidas na tradição intelectual, científica e filosófica. A senhora


Peseshet, que viveu durante os finais da 4ª e princípios da 5ª Dinastias, foi a primeira mulher Drª
em medicina na história do mundo. Ela era também sacerdotisa funerária.

b) Os conceitos da filosofia africana

Segundo Theophile Obenga, o pensamento filosófico dos egípcios antigos era ao mesmo tempo
gráfico e abstracto. Isto é, usando gráficos e simbolismo concreto, os egípcios criaram uma
terminologia para formular e representar pensamento abstracto. Mais de 800 imagens, sinais
tangíveis e símbolos foram usados para representar ideias e significado de todas as coisas, como
por exemplo: plantas, árvores, repteis, peixes, anfíbios, mamíferos, aves, agua, céus, terra,
montanhas, edifícios, cerimonias, templos, emblemas sagrados, coroas, vestidos, actividades
económicas, o homem e suas ocupações, a mulher e suas actividades, arte, jogos, figuras
geométricas, espiritualidade, responsabilidade, amor, sexualidade, felicidade, beleza,
imortalidade, sabedoria, silencio, verdade, justiça, medo, coragem, escuridão, luz, dia, noite,
cheiro, perfume, etc.

Com efeito, os egípcios desenvolveram um tipo de semiologia, ou seja, uma estrutura semiótica,
estudando a relação existente entre sinais e figuras, através do uso de objectos materiais para
representar seres invisíveis e abstractos. Plotino (205-70 a.C.) 3, deixou presente em seus escritos
que “os sábios egípcios mostraram o âmago da sua ciência usando sinais…Assim, cada
hieróglifo constituía um pedaço de ciência e de sabedoria”. Nesta afirmação, Plotino mostra que
os hieróglifos eram um sistema de escrita por detrás da qual jaziam grandes mistérios a serem
desvendados. As estruturas semióticas da escrita hieroglífica eram um bom equipamento para
expressar um pensamento abstracto preciso. Eram uma expressão conceptual sistematizada e
completa da realidade. Eles expressavam o universo como ele existe e é conhecido; traziam à
existência o significado da totalidade da existência.

Isto é o que torna, segundo Obenga, a escrita hieroglífica perfeita, no sentido de dar uma
compreensão sistemática e completa de todas as coisas do universo. Por isso, estudar a escrita
3
Egípcio de nascença e filósofo romano fundador do neoplatonismo
hieroglífica egípcia é semelhante a estar em comunicação com toda a existência. É a primeira
escrita a expressar ideias mais abstractas existentes na história da filosofia. Ideias transcendentais
conhecidas na filosofia apareceram pela primeira vez entre os egípcios da era dos pirâmides.

Posto isto, resta agora interpretar o significado de alguns símbolos hieroglíficos e trazer à tona a
filosofia que neles subjaz:
 O verbo Rekh (escrito com o sinal hieroglífico da boca) significa saber ou estar
consciente de, e também aprender. Os seres humanos adquirem sabedoria através da
aprendizagem. A via primária da transmissão e discussão da sabedoria é a boca. Isto
sugere-nos que o método didáctico privilegiado na aprendizagem egípcia antiga era o
diálogo, em que o mestre e o aluno participavam activamente na produção do
conhecimento. Este método foi popularizado na Grécia por Sócrates e, posteriormente,
por Aristóteles.
 A palavra Rekh (escrito com o sinal hieroglífico de um homem sentado) significa
homem sábio, isto é, homem letrado, erudito, filósofo.
 A palavra Sat (escrito com o sinal hieroglífico de um homem com a mão na boca)
significa sabedoria e prudência. Ser sábio (sai) é ser prudente (sai), é estar quase em
silêncio, isto é, ser sagaz na abordagem dos assuntos ou problemas, ou exercitar a razão
com discernimento. É assim como Sócrates transmitia a sua sabedoria: colocando-se no
lugar de ignorante e pondo-se em silêncio perante a verdade que possuía, Sócrates
conduzia calmamente os presunçosos sábios à descoberta e ao reconhecimento do quanto
ignorantes eram em relação a assuntos que presumiam saber, e levava-os,
posteriormente, ao conhecimento da verdade.
 A palavra Seba (escrita com o símbolo de estrela) significa ensinar. Ensinar (seba) é
abrir a porta (seba) da mente dos alunos (seba) para brilhar a luz da sabedoria, como que
uma estrela (seba).
 A palavra at seba significa escola ou casa de ensino. O famoso Director de uma das
principais escolas do Egipto antigo é Kembu. Ele viveu durante a 13ª Dinastia (1782-
1650 a.C.) e a sua estátua encontra-se conservada no museu egípcio de Cairo.
 O verbo Wnn (lê-se unen) escrito com o sinal hieroglífico de um extenso deserto,
significa existir ou ser e estar. Os verbos egípcios que expressam existência não são
estáticos mas sim dinâmicos. Outros verbos dominantes na especulação egípcia sobre a
existência da vida e do universo são: o verbo d d (lê-se djed) significa estar estável, isto
é, tudo que existe é estável: as colunas que levantaram o templo são estáveis; o universo,
apesar de ser dinâmico, não é fugaz, ele é estável. O verbo hpr (lê-se kheper) significa
tornar. Este verbo leva-nos à visão cíclica da história e à ideia do eterno retorno.

Como afirmamos acima, existem mais de 800 símbolos hieroglíficos que expressam toda a
filosofia e cosmovisão egípcias antiga, pelo que não podemos esgotar a sua interpretação nestas
humildes paginas. Da hermenêutica de símbolos ora feita, já é possível notar que por detrás de
cada hieróglifo egípcio, encontra-se escondida uma boa dose de sabedoria que orientou o modo
de vida e de pensar dos egípcios, e não só, como também influenciou, inconfundivelmente, o
modo de vida e de pensar doutros povos do planeta, especialmente os gregos.

Dos conceitos constituintes da filosofia egípcia, o mais importante é o Maat. Maat é o conceito
central da filosofia egípcia e significa – literalmente – verdade. No sentido filosófico do termo,
maat significa também igualdade, unanimidade, rectidão, correcção, equidade, honradez,
honestidade e justiça.

Contudo, mais do que simples conceito ou conjunto de valores morais, maat constitui o substrato
existencial e filosófico dos egípcios antigos, se não vejamos:
 O Estado faraónico estava organizado de acordo com os princípios políticos do maat e,
por causa disso, os egípcios não conheceram a sociedade hobbesiana de guerra de todos
contra todos. Faraó não era um animal político ou um líder moral que precisasse de leis
convencionadas por homens para governar. Ele era um verdadeiro Rei real (maa), um
líder divino e espiritual, com a nobilíssima missão de governar o mundo em função das
leis divinas, as leis concedidas por deus Ra, o ser mais alto, imperecível, eterno e pleno
de beleza, poder, verdade, perfeição e bondade.
 Todo o empenho dos egípcios antigos na arte, arquitectura, ciência, amor, paz, justiça
social, religião, educação e toda forma de manifestação cultural, foi possível graças a
filosofia do maat, sobre a qual tudo estava alicerçado. Maat incorporava as leis que
estabelecem a ordem do universo e da sociedade humana. O próprio deus-criador, Ra,
rei-sol, vive por maat, como ilustra o seguinte poema :

O Rah!
Mestre da verdade (maat)
Vivendo da verdade (maat)
Jubilando na verdade (maat)
Vangloriando-se na verdade (maat)
Formado de verdade (maat)
Eterno pela verdade (maat)
Abundância pela verdade (maat)
Poderoso pela verdade (maat)
Constante na verdade (maat)
Rico pela verdade (maat)
Adornado pela verdade (maat)
Lustrando pela verdade (maat)
Satisfeito pela verdade (maat)
Unido à verdade (maat) desde o princípio.

Maat é suprema virtude; é o que é genuíno e autêntico; é realidade como um todo; é a essência
de todas as coisas existentes; refere-se ao que tem uma existência objectiva e necessária. Por
conseguinte, maat está em tudo e penetra todas as esferas da realidade, a saber: divina ou
sagrada, cósmica, física, política e familiar.

Segundo Obenga, a honra a maat não desapareceu com a civilização egípcia antiga. Maat é ainda
um dos principais fundamentos do desenvolvimento das sociedades africanas. A prova da
predominância do maat na actualidade africana é a existência do conceito na linguagem de
muitos grupos étnicos africanos:
 Egipto Antigo: maat (verdade ou verdadeiro)
 Congo: moyo (vida, alma, mente)
 Ngbaka (Republica Centro Africana): ma (remédio magico para conhecer a verdade)
 Fang (Guiné Equatorial): mye ou mie (Puro)
 Mpongwe (Gabão): mya (conhecer a verdade)
 Yoruba (Nigéria): mo (conhecer a verdade, conhecimento)
 Mada (norte de camarões): mat (génio)
 Nuer (Sudão): mat (total ou totalidade).

Se continuarmos com a lista veremos que em cada grupo étnico africano existe o conceito maat,
diz Obenga. Tal como na antiguidade, maat continua a significar divinização da lei, da ordem, da
verdade, da justiça, do Canon, da integridade, do conscientismo, e da perfeição nas culturas
africanas hodiernas. Em suma, maat é ainda hoje o caminho da sabedoria, da existência, da vida
e da espiritualidade.

3. Claude Sumner: a Filosofia Etíope no século XVII

Claude Sumner nasceu em Saskatoon, Saskatchewan (Canadá), em 1919. Estudou filosofia,


teologia e linguística no Canadá. Passou a residir na Etiópia desde 1953 quando foi convidado
para leccionar na Universidade de Addis-Abeba, e tornou-se etíope.

Sumner escreveu 56 livros, incluindo A filosofia do homem (3 volumes), Filosofia Etíope (5


volumes) e filosofia Etíope Clássica (1994); publicou mais de 200 artigos e organizou duas
conferências pan-africanas sobre a filosofia africana. Mais de 350 trabalhos, incluindo artigos,
revistas, teses e dissertações têm sido publicados, interpretando o pensamento de Claude
Sumner.

a) Filosofia Especial-Etíope

Claude Sumner divide a filosofia africana em quatro correntes principais, a saber: Etnofilosofia,
Filosofia cultural, Filosofia política africana e Filosofia Especial-Etíope. Nestas correntes de
filosofia, Sumner direcciona maior atenção à filosofia etíope.

A Filosofia etíope é, para Sumner, especial porque é a única em África que é simultaneamente
escrita e oral. A tradição oral está presente nas músicas, poemas, provérbios, crenças, etc.,
enquanto a tradição escrita está representada pelos tratados filosóficos de Zera Yacob (mestre) e
Walda Heywat (discípulo de Yacob).

A característica fundamental de toda a tradição filosofia etíope é a sagacidade, isto é, a filosofia


etíope é sabedoria, ela busca conhecer os fundamentos do universo e da vida humana. Porém, a
tradição escrita apresenta uma característica peculiar: ela está intimamente vinculada ao
cristianismo e ao monasticismo. A filosofia etíope escrita nasce do debate entre teólogos cristãos
e monges ou sábios etíopes. Não é por acaso que esta filosofia incide mais sobre os problemas da
teodiceia, psicologia, ética individual e social.

b) O mestre e o discípulo: Zera Yacob e Walda Heywat


Zera Yacob (que quer dizer ‘semente de Jacob’), nasceu aos 28 de Agosto de 1599, próximo de
Aksum, capital do Reino Shoan, o berço de uma civilização que existiu desde século IX. Essa
civilização estendia-se desde a costa do Mar Vermelho até a planície do Nilo, cobrindo também
grande parte do norte da Etiópia.

Zera Yacob frequentou as tradicionais escolas de Etiópia, estudando sobretudo os salmos de


David, o Zema (música sagrada ensinada nas escolas da igreja), o Qene (poesia ou hinos) e
Sewasewa4 (vocabulário). Enquanto recebia a educação religiosa tradicional, Zera Yacob ia se
informando da doutrina da Igreja Católica Romana, estabelecida pelos missionários jesuítas
portugueses, que se instalaram desde os meados do século XVI.

Em 1621, o Rei Susenyos converteu-se ao catolicismo. E, como Zera Yacob era defensor da livre
leitura e interpretação da Bíblia, opondo-se, desta forma, ao padrão exegético dos missionários
católicos que pregavam a validade exclusiva da interpretação da Igreja, viu-se obrigado a fugir
da sua terra para escapar das mãos do Rei que executava as obrigações impostas pela nova fé.
Neste êxodo, Zera Yacob foi afixar-se no sul de Shoa (actual Addis-Abeba, capital de Etiópia),
onde viveu durante dois anos, abrigando-se na cave de Takkaza.

Foi neste lugar onde, desfrutando duma paz total oferecida pela caverna longe dos conflitos da
sua comunidade5, Zera Yacob meditou profundamente nos salmos de David, reflectiu nas raízes
dos antagonismos entre os corações dos homens e, como corolário disso, desenvolveu o seu
tratado filosófico Hatata, terminado em 1677.

Depois da morte do Rei Susenyos, Z. Yacob abandonou a cave e retornou ao convívio social,
tendo-se afixado em Enfraz, na propriedade de um rico comerciante, Habtu, de quem se tornou
empregado. Z. Yacob tornou-se preceptor dos dois filhos de Habtu, dos quais se destacou Walda
Heywat. Zera yacob morreu em 1692, aos 93 anos.

A filosofia de Z. Yacob é fruto de uma longa e profunda reflexão solitária na cave de Shoa e da
experiencia da vida, e não tradução ou adaptação de conhecimentos forenses, como é o caso da
maior parte da literatura etíope – diz Sumner. O princípio orientador da filosofia de Z. Yacob é a
fé crítica, isto é, a sujeição da fé ao exame crítico da inteligência ou da razão. Ou seja, a
teodiceia é o domínio privilegiado da filosofia do filósofo etíope.

 Teodiceia

4
Sewasewa é algo equivalente a artes belas, designa a habilidade de interpreter as sagradas escrituras.

5
Este acontecimento assemelha-se ao que se deu com o contemporâneo de Zera Yacob e pai da filosofia moderna
ocidental, René Descartes, que, abandonando o prestigioso Colégio francês de La Flesh para o retiro de Neuburgo,
e desfrutando de uma solidão e total tranquilidade, começou um novo edifício de conhecimento científico e
filosófico sob novas bases.
O centro nevrálgico da teodiceia yacobiana é a ideia de que “a razão sozinha, sem a orientação
de Deus, é incompleta. E a fé, por sua vez, precisa da razão para iluminá-la”. Para Z. Yacob, os
seres humanos racionais devem submeter a sua fé a um exame crítico antes de embarcarem no
que são propostos a crer, pois, a própria intervenção divina na vida do indivíduo deve ser lúcida
e compreendida pelo crente. A fé em Deus deve, por conseguinte, vir depois do raciocínio. Deste
modo, todas as percepções, imaginações, julgamentos e compreensões humanas relativas a
alguma crença devem ser cuidadosamente submetidas ao exame crítico da razão. Nada deve ser
aceite sem que tenha sido testado pela inteligência (razão natural) humana.

Para Z. Yacob, a verdade é claramente revelada a qualquer indivíduo que a procura à luz da
inteligência. A verdade é algo subjacente a todo o ser humano, ela foi colocada pelo Criador no
coração de cada homem. Por essa razão, a fé não consiste em crer a Deus através de
procedimentos absurdos ou leis irracionais, tais como: “come isto e não come aquilo; hoje come
e amanhã não come; não come carne hoje, come amanhã; nem diz aos muçulmanos, come
durante a noite e não come durante o dia”. Estas são leis irracionais feitas segundo as
concupiscências humanas e não podem ter sido colocadas por Deus no coração do homem, nem
podem ter emanadas dum exercício cuidadoso da inteligência. Deus não pode submeter seus
filhos a essas privações traumatizantes. Ele ama seus filhos de tal maneira que não pode criar leis
cruéis para desfigurar seus corpos e até mesmo almas. Deus conhece as reais necessidades de
seus filhos e os caprichos da ganância e arrogância humanas. Por isso, Ele não pode proteger os
homens e as leis feitas fora de seus padrões. A verdadeira fé consiste em crer em Deus e
proceder de forma racional, de acordo com a verdade (padrões ou leis) por Ele colocada no
coração humano.

 Igualdade entre os homens

Segundo Z. Yacob, todos os seres humanos são iguais perante Deus. Esta igualdade é evidente
pelo facto de Deus ter dado inteligência a toda a espécie humana, e ter feito todo o corpo mortal.
A morte não descrimina, é o último equalizador.

Assim, do mesmo modo que todo o corpo humano tem o mesmo destino mortal, todas as pessoas
com inteligência podem entender a vontade de Deus através da revelação, que se manifesta em
forma de revelação racional.

Essa revelação racional é a verdade. A fé falsa ou falsidade é consequência da ausência da


verdade revelada. Ora, a verdade não é dada a pessoas arrogantes que presumem estar destinadas
a possuí-la e a experimentá-la de forma exclusiva. A verdade não é exclusiva a ninguém, ela
ocorre sempre que as pessoas crêem em algo nobre ou valor superior, como, o amor a outros,
que é um valor elevado ao qual todos os homens devem acreditar.

Deus deu inteligência a cada ser humano, para servir de instrumento da busca da verdade, para
evitar a falsidade. Isto é o que torna os seres humanos excepcionais. Se eles exercitarem o poder
das suas capacidades racionais e volitivas, podem decifrar a verdade da falsidade e escolherem,
infalivelmente, a verdade no lugar da falsidade. Mas a natureza humana é tão preguiçosa e
presunçosa que não consegue resistir aos desafios e tentações de se afastar da luz racional para
guiar-se por leis irracionais.
Quando o ser humano procura orientar-se por si só, sem a direcção de Deus, perde a capacidade
de discernir a verdade e a falsidade. A direcção de Deus é o poder que capacita os indivíduos a
julgar e optar por alternativas correctas. Por isso, sem a ajuda de Deus, os homens são tão fracos
que não podem ser capazes de escolher a verdade no lugar da falsidade.

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