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Pensamento engajado 185

CONCEPÇÕES AFRICANAS
DO SER HUMANO

Severino Elias Ngoenha

Existe uma humanidade especificamente africana? E se sim, qual é o


lugar epistemológico a partir do qual se pode formular uma tal especificidade
antropológica?
Desde 1945 existe em África um debate dialéctico vivo em volta da
filosofia africana que não cessou de incrementar-se, quer na evolução dos
temas tratados - durante muito tempo foi prisioneiro de um debate rico e
contraditório em volta da questão da sua própria existência e do seu estatu-
to epistemológico e científico. Nos últimos anos discutem-se problemas do
estatuto moral e científico da antropologia, da relação entre a tradição e a
modernidade, da relação entre a oralidade e a escrita, da natureza das nossas
democracias, dos impasses do desenvolvimento, etc.
Por outro lado, os intervenientes em termos de áreas culturais hoje não
são só francófonos e anglófonos, mas são também lusófonos, aos quais depois
do apartheid vieram ajuntar-se a África do Sul que mesmo sendo anglófona
tinha ficado a margem dos debates do continente.
Quando se percorrem as grandes linhas do debate sobre a filosofia em
África como ele se desenrolou na segunda metade do século, identificam-se
claramente três lugares de discurso a partir dos quais uma figura do homem
africano se construiu: o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discur-
sos antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento
africano (sapiente), isto é, a reflexão dos intelectuais africanos sobre a própria
identidade.
186 Severino E. Ngoenha & José P. Castiano

Cada vez que um velho morre, é uma inteira biblioteca que se queima

Qual é o significado ontológico desta famosa afirmação de Hampatê


Bâ (1972)?
Contra a primazia e a superioridade suposta da escrita sobre a orali-
dade, Hampatê Bâ sugere um duplo postulado. Primeiro, que os anciãos
são depositários de um saber que é equivalente aos arquivos e a biblioteca
tanto defendidos por Paulin Houtondji (1977:47), ao ponto de fazer deles
a condição necessária da existência de uma filosofia africana. Houtondji
sustenta que a condição sine qua non para que exista uma filosofia africana
é que ela escreva os seus arquivos; não tanto por uma questão de imitação
do ocidente, como ela foi injustamente acusada, quanto por aquilo que a
escrita é suposta permitir: a introdução de uma tradição crítica sem a qual
a filosofia não é possível.
Na tradição da escrita o pensador não ocupa a memória com a necessi-
dade de preservar e com o medo de esquecer. Mas ao mesmo tempo, o que
escrevo já não me pertence, é algo disposto ao público e susceptível de ser
submetido ao juízo crítico de todos.
Em contrapartida Hampatê Bâ parece defender a tese segunda a qual,
não existiriam critérios objectivos para comparar a escritura e a oralidade.
Por conseguinte, a oralidade não seria necessariamente inferior a escrita, mas
um saber diferente cuja importância só podia ser pertinentemente avaliada
por aqueles, ou a partir daqueles, cujas vidas são animadas por ela.
Mas por outro lado, por detrás da oralidade se esconde não simples-
mente a apreciação subjectiva e adjectivante das pessoas e grupos culturais
por ela animados, mas a oralidade pode compreender uma sabedoria e até
mesmo uma filosofia.
Mesmo se se reconhece que a escrita favorece uma maior circulação do
saber, ela não é necessariamente superior a oralidade, a não ser que se queira
reduzir o estatuto e a dignidade da língua a possibilidade de fixa-la em signos
simbólicos, artificiais e socialmente concordados, que chamamos escrita.
Para H. Bâ uma coisa é a escrita e outra é o saber. A escrita é a fotografia
do saber, mas ela não é o saber. Para o homem esta é como a luz. É a He-
rança de tudo o que os antepassados puderam conhecer e nos transmitiram
os germes...
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Segundo H. Bâ a questão não é tão a dicotomia entre escritura e orali-


dade, mas o facto de que na África contemporânea a cadeia de transmissão
foi interrompida pela colonização o que comporta o risco de uma possível
perda dos conhecimentos dos anciãos, que por sua vez seria dramático não
só para a África mas para o mundo inteiro.
Alexis Kagame (1956), considerado por Marcien Towa (1979) o pai da
etnofilosofia, foi mais longe, e mete as bases para uma dimensão filosófica das
línguas africanas, procurando uma estrutura ontológica da língua ruandêsa.
O que é importante para nós não é tanto a dimensão relativista da tese de
Kagame mas o facto, relevado por Houtondji (1977: 82), de ter sugerido que
os filósofos africanos pensariam de toda uma outra maneira se utilizassem as
suas línguas maternas para satisfazer as suas necessidades teóricas.
A análise de Kagame tem o mérito de ter atirado a atenção sobre a con-
tingência da linguagem e ao enraizamento de todo o pensamento humano a
um universo de significados pré-estabelecidos.
A língua é portanto a chave de leitura através da qual Kagame se propõe
a apreender a maneira bantu de conceber o mundo. Ele pensava que ques-
tionando a gramática e as categorias gramaticais das línguas bantu, se podia
descobrir as significações do real. Para fazer isso ele comparou as categorias
bantu com as categorias aristotélicas.
Kagame pensa que existe uma filosofia e portanto também uma antro-
pologia nos nossos substratos culturais, e esta filosofia foi formulada. De
todos os documentos institucionalizados, a língua é a melhor formulação
desta filosofia.
O método de Kagame consiste em procurar na estrutura da língua ru-
andêsa, o que Aristóteles teria feito para a língua grega.

Os Discursos Antropológicos
Para um filósofo dizer concepções do ser humano invoca em primeiro
lugar a antropologia, mas dado que outras antropologias nasceram no sec.
XIX ocorre precisar que se trata do que tradicionalmente se chamava an-
tropologia filosófica. Falar assim é sentir o eco da pergunta fundamental de
Kant o que é o Homem? pergunta a qual se devem subordinar quer a questão
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metafísica (o que me é permitido esperar) como as questões epistemológicas


(o que posso saber) e éticas (o que devo fazer).
O ponto mais elevado deste questionamento está na generosidade da
proclamação dos direitos humanos, que contudo eram vítimas de um uni-
versalismo ou se quisermos de uma antropologia que era uma meta narrativa
etnocêntrica. Aliás, naquilo que é considerado por muitos pensadores como
sendo o primeiro debate sobre os direitos do homem, refiro-me a disputa
entre Las Casas e Sepúlveda, a possibilidade de uma humanidade africana
foi encoberta no sentido de Heidegger e sobretudo da filosofia de libertação
latino americana. Têm que se esperar o Hegel da filosofia do direito, mas
sobretudo da filosofia da história, para se decretar que o africano estava fora
do movimento da história porque não tinha consciência da sua liberdade.
Por conseguinte, a primeira imagem da humanidade do africano é ligada
a filosofia ocidental, ignorada em Valladolid, expulsa da história acusada de
não ter consciência da sua própria liberdade, de viver numa condição de
inocência, pré-histórica (e pré-racional) e inconsciente.
Esta tese encontra um eco nas teses de Lévy-Bruhl (1922) sobre o
prélogismo. O antropólogo afirma que a estrutura do aparelho cerebral
dos primitivos é o mesmo que dos homens evoluídos; a diferença é que os
primeiros são dominados por representações colectivas, sem o hábito da
abstracção, do raciocínio e de outras operações familiares do pensamento.
Esta é razão pela qual as sociedades humanas têm que ser repartidas em dois
tipos fundamentais, as sociedades civilizadas e as sociedades primitivas, as
quais correspondem duas epistemologias morais diferentes. Dada a distância
que separa as duas sociedades, cada uma deve ser apreendida no interior do
seu próprio sistema (conceptual e moral) de referência, lógica para estas e
pré-lógicas para aquelas.
Estas leituras contribuíram na criação de uma imagem da África e do
africano intelectualmente inferior, dominado por crenças colectivas e de
natureza essencialmente mágicas, incapaz de um pensamento crítico e do
desenvolvimento histórico. Assim se estabeleceu uma oposição significativa
entre o logos ocidental que teria uma percepção do mundo fundamentalmente
racional e a emoção africana, que seria dominado por uma visão emotiva e
instintiva do mundo.
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Os antropólogos do terreno começaram com Edward Tylor a redimen-


sionar a pretensa superioridade da kultur eletista ocidental contra os costumes
dos selvagens, continuaram negando a existência de povos sem culturas, e
acabarm afirmando categoricamente o valor das culturas africanas. Foi assim
que a partir da segunda metade da década vinte, a etnologia passou por uma
metamorfose espectacular no seu interesse e relacionamento com as culturas
africanas, esforçando-se por superar as teorias racialistas de Lévy-Bruhl, de
Gobineau, de Spengler. A nova escola francesa de etnologia recusava, contra
a administração colonial, de considerar os povos africanos como desprovi-
dos de civilização. É assim que no seu livro Les Nègres, Maurice Delafosse
(1927) procedia a um estudo da história da África ocidental e descobria que
a idade média africana tinha sido, em muitos aspectos, comparável a idade
média europeia. Ele tirava a conclusão que, não só a pretendida inferioridade
intelectual negra nunca tinha sido provada, mas que se podiam encontrar
muitas provas do contrário.
No mesmo ano, Georges Hardy (1927) revelava as consequências de-
sastrosas da influência europeia sobre a África e exaltava a profunda espiri-
tualidade religiosa da alma negra.
Frobenius (1936) descobria que se uma barbaridade existia em África,
ela tinha aparecido só com a chegada dos brancos. E descobria os restos de
uma antiga civilização que ele ligava ao antigo Egipto.
Esta metamorfose na apreciação científica da civilização africana teve um
impacto enorme na geração ascendente de intelectuais negros, nomeadamente
nos criadores da negritude (Senghor, Damas e Cezaire). Esta nova geração
de intelectuais sentiu-se investida de uma missão; só que os fundamentos
da missão-negritude eram intrinsecamente ligados às diferentes visões que
o Ocidente tinha da África. Tanto mais que muito rapidamente a ousadia
dos primeiros etnólogos passou a contar com as contribuições de etnólogos
célebres como Michel Leiris, Marcel Griaule, Georges Balandier, Lévi-Strauss
e Mircea Eliade; o que aliás tinha levado Lévy-Bruhl ele mesmo a se corrigir
e afirmar em seus Cahiers de 1938 que não havia diferença quantitativa entre
a mentalidade primitiva e a mentalidade dos povos evoluídos.
Como diz Valentin Mudimbe (1988) no seu livro The Invention of África,
as imagens da África que resultam dos propósitos dos africanistas ocidentais,
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são mais o resultado de incompreensões e de preconceitos que de um quadro


correspondente a realidade africana; de tal maneira que ela nos ensina muito
mais sobre as orientações culturais dos autores que do objecto em questão.
Todavia, segundo a corrente crítica da filosofia africana, sobretudo dos
trabalhos de Eboussi-Boulaga e Marcien Towa (Ngoenha 1993,89-101), o
apogeu do trabalho etnológico foi atingido, paradoxalmente com o trabalho
de Tempels, que constitui o apogeu da história das visões europeias sobre
a África. Aliás, o próprio Tempels qualifica o seu trabalho de etnológico na
medida em que consiste numa investigação etnológica sobre a metafísica dos
bantus, pois para compreender a alma bantu é necessário reconstruir a sua
ontologia, mesmo se esta ontologia deve ser paradoxalmente reconstruída
com os instrumentos da etnologia. Contudo, para que esta não se reduza ao
simples folclore, ela tem que procurar uma penetração filosófica. Em outras
palavras, Tempels, não se limita a polemizar e tentar ultrapassar Lévy-Bruhl,
mas avança que a investigação etnológica não se pode contentar por um
simples e puro inventário de crenças e de conceitos bantu, mas que é neces-
sário a elaboração de uma teoria sistemática, é nisto que reside a dimensão
filosófica, e o elo entre a antropologia e a filosofia.

Sou porque somos; dado que somos todos, também eu sou.


Em 1945, Placide Tempels publicou o seu livro a Filosofia Bantu no qual
expunha o que ele considerava ser a metafísica da força vital dos bantus. A
força vital seria para os Bantus o único valor fundamental, identificável com a
existência. Todo o ser é dotado de força vital, ou melhor, é uma participação
da força vital e a sua vitalidade é variável. Todas as forças vitais estão inter-
conectadas, interdependentes, e situadas hierarquicamente por referências
cruzadas. Se o próprio universo é concebido como uma vasta rede de forças
interactivas, nenhuma das quais pode actuar sem produzir um impulso vital
nas outras forças individuais e na totalidade. Esta influência pode ser positiva
ou negativa. E a meta de todo o ser é penetrar no núcleo do sistema vital para
fortalecer a sua própria força e assim fortalecer o sistema todo.
Os seres humanos encontram-se no centro do tecido vital e a geração
presente na terra constitui o centro da humanidade inteira que inclui mortos
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e os ainda não nascidos. A natureza deve servir para melhorar e perpetuar


a vida, a cultura, a religião e todas as instituições do saber humano estão
orientados a este mesmo propósito: favorecer a vida e superar todo e qual-
quer perigo para a vida.
O sistema articula-se em volta do conceito da força vital que por sua vez
coincide analogicamente com o conceito do ser. Enquanto a metafísica oci-
dental tem um carácter estático, a metafísica bantu tem um carácter dinâmico.
O que é necessário meter em evidência, é que a filosofia das forças vitais deve
ser compreendida como uma filosofia da vida, noção que invade e condiciona
a vida dos bantus. A ontologia bantu constitui a vida comum de todos os
povos primitivos, clánicos. Mesmo se as práticas mágicas variam de região
à região, de grupo étnico a grupo étnico, trata-se de variações acidentais.
A obra de Tempels tem sido alvo de muitas críticas, muitas das quais
pertinentes. Mas por outro lado, foi também o ponto de partida duma refle-
xão filosófica africana que muitos pensadores continuam a seguir (1984,16-
17). De facto, muitos intelectuais africanos provenientes de todas as regiões
do continente descrevem a concepção africana do mundo de uma maneira
análoga, o que poderia levar-nos a uma hipótese da existência de uma certa
identidade cultural africana. Os elementos culturais que reconhecemos co-
muns são fundamentais e portanto a unidade se referiria ao essencial.
A definição que Senghor dá do que ele chama ontologie négro-africaine
é muito próxima da ideia bantu do mundo exposta por Tempels. É unitária e
existencial, um sistema totalmente baseado no conceito de força vital, que é
o fundamento do ser e mesmo mais radical do que o ser. A sua fonte é Deus,
do qual tiram também as suas forças vitais todos os outros seres.
Como aparece nos livros Liberté I (1964) e Liberté III (1977), Senghor
refere-se a uma negritude que se caracteriza por uma razão instintiva, se-
gundo a qual os valores da civilização negra são governados por uma razão
de percepções, que compreende por intuição, e se exprimem por sensações
emotivas e pelos sentimentos. Ele mete muitas vezes em evidência, que
contrariamente a razão discursiva, observa-se na razão instintiva, um aban-
dono do eu e uma identificação deste com o objecto através do mito, isto é,
através dos arquétipos presentes no imaginário colectivo e, nomeadamente,
no mito primordial ligado às imagens do cosmos. Os traços característicos
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da negritude são por conseguinte o sentido de comunhão, os dons inatos da


imaginação, do ritmo, etc. Estas características encontram-se em todos os
negros independentemente das diferenças étnico-sociais.
Como se pode ver, Senghor, na caracterização dos negros procede de
uma maneira dicotómica, isto é, os valores e os traços característicos do que
constitui o mundo negro, são formulados em oposição aos supostos traços
característicos do mundo ocidental. O negro é homem da natureza em oposi-
ção ao homem branco da técnica. Razão instintiva contra a razão da vontade,
intuição contra reflexão, emoção contra a racionalidade; ou então razão sinté-
tica contra a razão analítica; identificação através do mito do sujeito-objecto
contra a separação do sujeito-objecto da história, comunitarismo contra o
individualismo. La raison est grecque comme l’émotion est hellène.
É em oposição a tradição ocidental que ele afirma que o negro não cons-
tata através de um processo racional; mas ele sente através de uma percepção
emotiva. Enquanto o cogito cartesiano supõe a afirmação da existência do
sujeito enquanto pensante e de um objecto que está fora dele, o negro africano
é suposto sentir o objecto; mais, ele dança o objecto.
Segundo John Mbiti (1972) não se pode dizer que para os africanos o
homem ocupa o centro do universo. Nessa posição ele pode servir-se do
universo, retirar dele algum proveito por meios físicos, místicos ou sobrena-
turais. A partir da sua posição o africano vê o universo e procura viver em
harmonia com ele. Mesmo se não há vida no objecto concreto, o africano
atribuí-lhe uma vida mística e assim estabelece uma relação directa com o
mundo em volta.
O homem não é dono do universo, só o seu centro, é amigo, o benefici-
ário, o utilizador. Deve, por conseguinte, viver em harmonia com o universo,
obedecer as suas leis de ordem natural, moral e místicas. Se estas leis são
violadas é o homem que sofre as consequências. Os africanos chegaram a
estas conclusões através de uma larga experiência de observação e de reflexão.
O carácter global é condividido segundo Manzini (2007) por K. C.
Anyamwu, Alassane N’Daw, Edem Kodjo, Charles Nyamiti, George Omaku
Ehusani, M. V. Tsangu Makumba.
Duma maneira geral, todos estes escritores defendem a não existência de
uma ordem dual da realidade. Porém, defendem a existência de uma hierar-
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quia dentro da ordem unitária do universo. Esta hierarquia compreende Deus,


os antepassados, os espíritos, o homem e a natureza. Não há dicotomia entre
matéria e espírito, sagrado e profano, natural e sobrenatural, comunidade
e indivíduo, sujeito e objecto. O universo africano é um todo, os africanos
viveriam em simbiose com Deus e com a natureza.
Segundo Manzini (2007) John Mbiti, Marie-Viviane Tsangu Makumba,
G. Omaku Ehusani, Kwasi Wiredu, W. E. Abrahm, J. T. Erumevba, defen-
dem que todas as sociedades africanas são fundadas sobre o clã. O parentesco
clánico num tal vitalismo se basearia sobre a consanguinidade e lá onde a
consanguinidade não existiria se elaboraria um mito de origem comum. O
parentesco clánico se funda sobre o sangue. Esta seria a regra geral quase
sem excepções; por conseguinte trata-se de um parentesco estritamente de
linhagem. A questão é de saber se se pode ampliar este parentesco estrito a
uma comunidade mais ampla. Ntumba (in Budunrin The question of african
philosophie) propõe uma interpretação universalista do parentesco africano.
O ujamaa de Julius Nyerere (1968) toma a mesma posição. Para alguns inte-
lectuais africanos o vitalismo é um tecido de relações místicas. Toda a força
vital circula nos canais da vida em todas as direcções; relacionando-se desta
maneira com todas as outras forças da vida.
Bodunrin e J. T. Erumevba se opõem às posições de Ntumba e de Nyere-
re respectivamente. Segundo Etounga Manguelle, se se tivesse que citar uma
única característica da cultura africana, o ponto de referência fundamental
seria o desaparecimento do indivíduo face a comunidade.
O comunalismo é a característica africana mais destacada por um nú-
mero considerável de intelectuais africanos. Ser comunidade, seria parte
integrante da estrutura pessoal do africano. A descrição, o significado e as
consequências de ser comunidade são interpretadas de diferentes maneiras.
Mas a afirmação de que a comunidade tem precedência sobre os indivíduos
é aceite pela maioria. O slogan de John Mbiti Sou porque somos; dado que
somos todos, também eu sou, tornou-se paradigma para discussão do homem
africano, tanto para os seguidores como para os detractores. Para Mbiti, o
indivíduo não só não existe e não pode existir se não corporativamente, mas
ele deve a sua existência aos demais, e até somente através de outras pessoas
ele chega ao conhecimento do seu próprio ser. O indivíduo não tem por si
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mesmo, nem existência, nem consciência de ser; só pode tê-los no grupo.


K. C. Anyanwu (1984) defende que a origem da consciência individual
ocidental está no isolamento. Para o indivíduo africano, uma força relacionada
com as outras forças, é óbvio que não há indivíduos isolados, pois que todas
as forças da natureza estão necessariamente inter-relacionadas. No contexto
africano a consciência individual não é possível fora duma comunidade de
forças. O comunalismo africano resulta assim ser um dos aspectos do vitalis-
mo africano; ambos têm como quadro de fundo, uma concepção holista do
mundo. Ifeanyi A. Menkiti afirma que a precedência da comunidade sobre
o indivíduo deve-se aplicar não só ontologicamente mas também no que diz
respeito ao conhecimento. O indivíduo chega a saber-se homem por sua
implicação dentro duma comunidade humana em marcha. Ao cabo de um
processo de conhecimento mediante a sua iniciação na comunidade, chega
a ser consciente da sua personalidade.
R. K. Nkurunziza defende a identificação do indivíduo na comunidade
mais em termos de vida que em termos de conhecimento. Comunidade sig-
nifica participação existencial de uma vida na vida de muitos. Uma vida sem
participação na vida da comunidade não é vida. Elungu P. E. A. também vê
a identificação do indivíduo no grupo em termos de vida. Não há distinção
real entre ambos: são realidades emersas na mesma cadeia vital sem distinção
conceptual que faça mediação entre elas. A sua distinção se funda unicamente
nas experiências sensíveis, porém se unem de novo na imaginação mítica
fundada sobre a experiência sensível. Para Elungu a África tradicional carece
duma consciência individual conceptualmente diferente e independente da
experiência ordinária da vida.
Segundo J. Nyasani, Tshiamalenga Ntumba, consideram a socialidade
anterior a intersubjectividade na experiência africana. Na tradição ocidental
a sociedade se caracteriza por uma subjectividade que privilegia o EU na
sua interacção com o TU. Na tradição africana esta comunidade de diálogo
centra-se sobre o NÓS em interacção com o VÓS, uma relação simbiótica em
que o EU e o TU são absorvidos em qualidades de participantes do diálogo
no interior de nós. EU e NÓS não parecem funcionar como consciência
individual.
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Por J. Nyasani o individuo não existe exclusivamente por e para si mes-


mo; ele sente e pensa que somente pode desenvolver as suas potencialidades,
a sua originalidade em união com os outros homens.
Existe o perigo duma supressão do indivíduo ou então a sua redução a
um ser sem identidade. O’Donohue (A critical look of spirits and magic, in
Spearhead) afirma que numa sociedade, as pessoas têm que escolher entre
cooperar ou morrer; e convida-nos a pensar que o africano nem sequer sabe
que é uma pessoa até ao momento em que pensa que não é mais nem menos
membro do grupo. J. A. Sofola coloca a pessoa no panorama do humanis-
mo que promove relações humanas saudáveis. O indivíduo não se encontra
isolado do grupo nem desintegrado no seu próprio interior. Toda pessoa
representa o seu próprio papel social em benefício dos outros e não só com
a finalidade de sobreviver ou de satisfazer as suas necessidades biológicas.
Trata-se de uma dedicação altruísta de uns para com os outros até o ponto
de um sacrifício pessoal.
A crise do sec. XX é uma crise de relações humanas. O problema é que
África tem o seu próprio saber neste âmbito, mas não se lhe dá ocasião de
dar forma a sua arte. Segundo E. R. Mbaya a sociedade africana era huma-
nista e colectivista (...). O humanismo africano não desmembra o indivíduo
nem lhe desintegra nas suas componentes. Em particular, não considera o
indivíduo como uma entidade isolada ou independente da sociedade. O
conceito integrado do indivíduo podia constituir uma contribuição positiva
ao conceito moderno dos direitos humanos.
Para G. Omaku Ehusani o sistema africano não faz dos indivíduos escra-
vos como dizem os seus críticos; é a realização local da fraternidade humana.
Deveria por conseguinte ser protegido e generalizado como pressuposto de
uma nova ideologia. A existência individual é um facto na África tradicional,
mas um facto secundário que não pode existir nem ser entendido se não em
referência ao facto primário que é a comunidade. O indivíduo realiza a sua
identidade somente se o faz em referência a comunidade.
Segundo Maurier (1985), o pensamento africano afirma a individuali-
dade, só que esta individualidade parte e se refere continuamente a comu-
nidade. É certo que o indivíduo não está completamente determinado pela
comunidade. Porém, esta condiciona-o de muitas maneiras. Mesmo escri-
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tores que defendem e repetem que o comunalismo africano deixa campo


livre ao desenvolvimento de personalidades individuais, reconhecem que as
comunidades exercem uma grande força sobre o indivíduo. O’Donohoue
sustenta que ninguém ousaria negar que a sociedade domina a vida moral e
mental do indivíduo.
Apesar de toda a insistência que ele faz sobre a subjectividade e indi-
vidualidade, H. Maurier, reconhece que o indivíduo está rigorosamente
submetido a comunidade. Estamos diante dum totalitarisme villagois e dum
totalitarisme lignagier como afirma Daniel Etounga Manguelle (1991).
Njoh Mouelle (1975) considera o africano de hoje «medíocre», estando
na metade do caminho da verdadeira humanidade. Ele é incapaz de distan-
ciar-se do seu próprio ambiente social, e a adesão total a ele, conduz-lhe
inevitavelmente a mediocridade cuja primeira manifestação é o gregarismo
e a falta de originalidade. O que faz que a gente não se distancie do grupo
é o espírito de conservação e a necessidade de segurança. Este espírito de
conservação acaba por ser um instinto de morte. Para Mouelle a medio-
cridade chama-se rotina, conformismo, repetição, que são sinais evidentes
de uma indiscutível deterioração. E acrescenta que se diria que a cultura
africana está estruturada para proteger um ambiente conservador e o seu
correspondente modo de vida. As mudanças são mínimas e controladas. A
sobrevivência do grupo, a sua segurança e solidariedade são os valores mais
altos. Não há lugar para dúvida, não se pode experimentar nada de novo.
Um tal conceito de sociedade, uma tal praxis social tem travado o progresso
em África desde muitos séculos.
Joseph Nyasani (1991) quer dar um passo mais em frente e pergunta-se
o que faz com que o africano busque refúgio nos outros? Ou melhor, porque
se submete ao destino da comunidade? Porque todo africano acredita existir
por obra e graça a existência dos outros. Porque a comunidade é anterior e
superior ao indivíduo? Ele responde que a socialidade africana consiste no
manifesto acto de submissão do EU ao NÓS.
Segundo Nyasani a abundante literatura sobre o sujeito gira em volta de
aspectos sociais e antropológicos. Mas é importante ir mais longe e referir-
se a base metafísica em que se funda a experiência africana. A sociedade
do africano é ao mesmo tempo única e transcendental. Isto está ligado ao
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seu vitalismo que implica o vivo e o morto, natureza e Deus, um vitalismo


centrado sobre o clã. Toda a existência, toda a vida, toda possível fonte de
vida são vistas nas suas relações com o clã. As relações internas do vitalismo
africano são relações verdadeiramente de existência.

Conclusão
No interior dos três campos discursivos distintos que tomamos em
consideração - o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discursos
antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento
africano (sapiente) - parece que se possa fazer emergir um dado constante,
que é a inscrição da figura do homem africano no interior de uma polarida-
de, que opõe o indivíduo a sociedade, e a sua determinação pela afirmação
da primazia desta sobre aquela. Qualquer que seja o lugar do discurso, o
ser africano como ser comunitário, no qual a individualidade se absorve na
coesão do grupo, aparece como postulado fundamental.
Mas, por outro lado, levanta-se a questão da origem dos lugares dos
discursos. De facto, podemo-nos perguntar, em primeiro lugar, se o pensa-
mento tradicional não é construído a partir da relação ao mundo ocidental;
em segundo lugar, se o discurso proveniente da antropologia não tende a
essencializar as posturas e, a partir de lá, a idealizar um communalismo afri-
cano pensado como alternativa ao individualismo ocidental que, por sua vez,
é carregado de todas as determinações negativas; em terceiro lugar, em que
medida os discursos dos intelectuais africanos não são discursos ocidentais
assimilados e reproduzidos, a partir das suas origens imaginárias, por africanos
radicalmente ocidentalizados.
Em suma, a África, em quanto modo específico de ser humano, construiu-
se como uma espécie de reservatório de solidariedade ou de sociabilidade,
quer como solução aos problemas, próprios do Ocidente, do viver-juntos
numa sociedade individualista.
Então, a questão do lugar epistemológico da africanidade não é uma
questão de tipo genealógico ou arqueológico, mas uma questão propriamen-
te filosófica, neste sentido deve ser formulado a partir do questionamento
das posições existentes. Aliás, este questionamento releva também de uma
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problemática limitada a África, na medida em que, na sua tensão própria, a


figura do homem africano se constitui numa relação com a alteridade, isto
é, no campo da interculturalidade.

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