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resenha

A Filosofia Africana na sala de aula:


ensino antirracista e valorização da África

REIS, Mauricio de Novais. Ensino de filosofia: do universo eurocêntrico ao pluriverso


epistêmico. Porto Alegre: Editora Fi, 2020, 212 p.

ELIANA RODRIGUES DE OLIVEIRA*

O livro Ensino de informações contidas nos


filosofia: do universo livros didáticos – os quais
eurocêntrico ao pluriverso apresentam a hipótese da
epistêmico apresenta uma origem grega como sendo
discussão necessária sobre inequívoca – e autores que
o ensino de filosofia na indicam uma origem não
educação básica brasileira, europeia – na sua maioria
demonstrando a força com defensores da hipótese da
que os traços origem egípcia. Após
eurocêntricos foram apresentar os argumentos
recepcionados pelos de filósofos que defendem
currículos oficiais, os as hipóteses da origem
quais desconsideram os grega e egípcia, o livro
temas, conceitos e autores sugere a hipótese da
oriundos de outras origem pluriversal,
tradições de pensamento argumentando que a
que não a europeia. Assim, o livro filosofia constitui-se como atividade
incursiona pela história da filosofia, eminentemente humana
empreendendo análises comparativas independentemente da geopolítica, mas
entre as investigações filosóficas sustentada, antes, na capacidade
africana e europeia, além de discutir as epistemológica dos seres humanos. E tal
divergências concorrentes nas duas capacidade não deveria, jamais, ser
tradições de pensamento, sem, contudo, atribuída segundo o critério racial,
incorrer em hierarquizações, mas tampouco segundo critérios
reconhecendo tais divergências apenas geopolíticos.
como fenômenos vinculados ao campo
Depois de problematizar as questões
das diferenças legítimas.
referentes à origem da filosofia, o
Organizado em quatro capítulos, a obra capítulo seguinte incursiona pelo
começa examinando o locus de origem colonialismo no continente africano,
da filosofia. Para tanto, promove uma objetivando demonstrar como a situação
profícua comparação entre as colonial produziu nos africanos

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determinados aportes de consciência Africano, além dos mais recentes
mediante as neotradições disseminadas conceitos, os quais o livro classifica no
no interior do continente. Ademais, o bojo da filosofia política africana, ainda
capítulo também analisa as concepções que seus autores não as classifiquem
racialistas dos filósofos David Hume, desta forma: Cosmopolitismo e o
Immanuel Kant, Friedrich Hegel e Afropolitanismo – Filosofia
Lucien Lévy-Bruhl, os quais admitiram Profissional, Filosofia Artística ou
juízos preconcebidos a respeito dos Literária, Filosofia Hermenêutica e os
africanos; juízos estes que fomentaram a paradigmas Ubuntuísmo e
expansão do eurocentrismo e a Afrocentricidade. Todas são
desvalorização dos africanos como apresentadas didaticamente no decurso
sujeitos epistêmicos. Contudo, o capítulo do livro.
apresenta ainda alguns sujeitos negro- No último capítulo, o autor empreende
africanos que, tendo estudado nas uma retomada da história da filosofia no
universidades europeias, obtiveram solo brasileiro, desde sua chegada,
extraordinário êxito intelectual em suas demonstrando as rupturas ocorridas no
respectivas áreas, como Anton Wilhelm decorrer do tempo. Além disso, promove
Amo e James Africanus Horton. Na uma análise dos dispositivos legais
contramão do racialismo impregnado no referentes à disciplina de filosofia, como
pensamento dos já referidos filósofos as Diretrizes Curriculares Nacionais para
europeus, estes pensadores africanos o Ensino de Filosofia (DCN), a lei de
demonstraram, a partir de suas próprias Diretrizes e Bases da Educação Nacional
experiências acadêmicas, não haver (LDB), a Lei 10.639/2003, os editais e
qualquer distinção na capacidade guias do Programa Nacional do Livro e
intelectual dos negros em relação à Material Didático (PNLD) de filosofia.
capacidade dos brancos. Nesta Evidencia-se, desta forma, que a
perspectiva, evidenciaram o apelo racista legislação referente à obrigatoriedade do
daqueles filósofos europeus na medida ensino de história e cultura africana,
em que atribuíam aos sujeitos não afro-brasileira e indígena não encontra
brancos a incapacidade natural de ressonância no ensino de filosofia, dada
compreensão lógica, referindo-os como sua ausência nos manuais didáticos, nas
inferiores cognitivamente. Mesmo a diretrizes curriculares e nos guias do
ciência daquela época revestia-se desses PNLD.
preconceitos.
Ensino de filosofia: do universo
Já o terceiro capítulo dedica-se a eurocêntrico ao pluriverso epistêmico
apresentar panoramicamente o finaliza com uma proposta curricular de
pensamento filosófico desenvolvido no filosofia pluriversal com sugestões de
continente africano, assim como suas temas a serem abordados nas aulas de
diversas correntes de pensamento filosofia a fim de promover uma
filosófico e paradigmas epistemológicos, educação antirracista e, ao mesmo
tanto aqueles desenvolvidos no interior tempo, promover o diálogo entre as
do continente como aqueles importados tradições europeia e africana sem as
e adaptados à realidade epistêmica hierarquizações e assimetrias vigentes
africana. As correntes filosóficas nos últimos quinhentos anos da história
africanas são: Etnofilosofia, Filosofia brasileira, que favoreceram a filosofia
Nacionalista – que inclui as diversas ocidental (europeia) como paradigma de
correntes ideológicas, como Pan- pensamento. Na direção oposta, o livro
Africanismo, Négritude, Socialismo

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incentiva os professores de filosofia a realidade pluralista (pluriversalista) de
debaterem em sala de aula, um mundo mais conectado, globalizado
principalmente considerando o e compartilhado. Além do mais, reveste-
contingente de estudantes negros nas se de relevância especial o fato de o livro
escolas públicas brasileiras, os pontos de trazer ao debate autores africanos que,
contato de ambas as tradições a fim de até então, estavam completamente
proporcionar aos estudantes uma desconhecidos do público em geral e dos
compreensão menos fragmentada da professores de filosofia, em particular.
realidade epistemológica e do Estavam desconhecidos em decorrência
pensamento filosófico. Assim, o livro tanto da falta de traduções à língua
não aposta na segregação dos saberes, portuguesa como, principalmente, pela
mas na sua convivência e escassez de pesquisadores na área.
complementação, como instrumentos de
Além de todo o didatismo como que o
emancipação humana e combate ao
livro é escrito, certamente o mérito da
racismo.
obra repousa no fato de fazer convergir
Não obstante seja apresentado como duas tradições de perspectivas tão
material introdutório, o livro cativa pela díspares, sem, contudo, incorrer na
simplicidade e didatismo dos sobreposição de uma à outra, mas antes
argumentos, podendo ser facilmente demonstrando os aspectos em que as
compreendido não somente pelos reflexões africanas e europeias podem se
professores de filosofia do ensino médio entrecruzar de maneira a ampliar o
– a quem é direcionado –, mas também campo de conhecimento e análise da
pelos estudantes dessa etapa de realidade. Se esta obra é imprescindível
escolarização. Além do mais, a versão para os professores de filosofia, não será
digital do referido livro pode ser menos imprescindível para todos aqueles
adquirido gratuitamente no site da cujo interesse volta-se para as questões
editora (www.editorafi.org/777ensino), próprias do conhecimento, porque no
uma vez que o objetivo do autor, ao contexto do recrudescimento de grupos
publicá-lo, é contribuir para o debate ideologicamente supremacistas, como
público a respeito da importância da testemunhado atualmente, o
multiplicidade de vozes no ensino de conhecimento mais uma vez torna-se
filosofia. uma arma indispensável no combate ao
Trata-se, portanto, de uma obra racismo.
necessária no combate ao racismo cujo A filosofia nunca foi tão necessária.
recrudescimento certamente impõe aos
intelectuais modernos a necessidade de
se pensar as relações étnico-raciais na Recebido em 2020-07-16
Publicado em 2020-09-21
perspectiva da construção de uma

*
ELIANA RODRIGUES DE OLIVEIRA é Advogada, Pedagoga e Mediadora Extrajudicial.
Especialista em Direitos Humanos e Contemporaneidade (UFBA) e especialista em Metodologia e Didática
do Ensino Superior (FAZAG). Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/subseção de Teixeira
de Freitas.

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