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Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de História
Teoria e crítica ao eurocentrismo em História
Prof. Dr. Bruno Borgongino
Semestre letivo: 2021.1

DUAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS SOBRE O BLACK METAL: ENTRE O


EUROCENTRISMO DE ARGHOSLENT E A DECOLONIALIDADE DE
VOLAHN

David José do Nascimento – Matrícula: 108.261.264-21


Tiago Joaquim dos Santos – Matrícula: 702.391.384-06
I. Introdução

Sabemos que analisar o eurocentrismo é uma tarefa árdua. Sua variedade e


complexidade em termos conceituais tornam essa dinâmica de análise ainda mais
robusta, podendo ser observada de uma maneira interdisciplinar. Nesse caso em
específico, a investigação se refere a uma crítica ao eurocentrismo através da análise de
dois discos de Black Metal: “Galloping Through the Battle Ruins”, da banda Arghoslent
e “Aq’Ab’Al”, da banda Volahn. Respectivamente, uma banda representa um discurso
eurocêntrico relacionado a raça, cultura e história, se fundamentando em discursos de
supremacia racial e escravização para legitimar uma superioridade tanto cultural quanto
histórica do continente europeu; enquanto a outra desconstrói a ideia de eurocentrismo,
tendo relação com a quebra do estigma de um roubo da história de outras sociedades por
parte de uma escola eurocêntrica que ignora a legitimidade de outras culturas e
sociedades. Tendo isso em vista, é importante conhecer alguns elementos essenciais
para a compreensão do que é o Black metal e como sua subcultura durante muito tempo
alimentou ideais eurocêntricos, e como esses ideias foram desconstruídos ao longo das
últimas décadas, nos fundamentando numa diversidade de fontes. A constituição de uma
ideia de eurocentrismo contra o resto nos faz perceber que determinados conceitos
tiveram uma articulação bastante intensa – e nesse caso em específico, essa articulação
faz com que os conceitos de ocidente e oriente saiam do contexto reducionista
geográfico para ser ampliado em termos culturais e sociais, sendo a cultura e sociedades
ocidentais mais avançadas que as outras sociedades, e portanto, a ideia de superioridade
se torna comum (HALL, 2016). O metal extremo nesse caso está presente como mais
uma nuance de articulação – a arte serve como apoio para mostrar a ambivalência do
eurocentrismo enquanto fenômeno histórico, e para nos aprofundarmos, devemos
conhecer o Black Metal enquanto fenômeno de construção e de desconstrução do
eurocentrismo.

II. Black Metal: Um histórico

O Black Metal nada mais é do que um subgênero do Heavy Metal, gênero musical
surgido no início dos anos 1970. Embora considerado um estilo de música muitas vezes
inacessível, o Heavy Metal sempre consistiu em um gênero repleto de misturas, e o
Black Metal é consequência dessas misturas, porém, é importante entender que o Metal
Negro é um contraponto ao conformismo ao qual o seu estilo progenitor se afundava,
além de criticar uma “rebeldia suavizada” dentro da música pesada, como atesta Sá:

“O “Metal Negro” soa como um grito contra-hegemônico, um chamado


à escuridão, chamado de uma juventude já cansada da rebeldia morna do
Punk e do Heavy Metal. Apologia escancarada ao satanismo, ao obscuro
como uma expressão da rebeldia, diferente das apologias satânicas tímidas
que o Rock já conhecia1.”

Surgido no início da década de 80 como uma vertente consolidada, o Black


Metal possui elementos crus em sua música: distorção extrema, blast beats 2 , produções
em lo-fi3 e estruturas não convencionais de composição, além de temas líricos que
refletem sobre satanismo, antirreligião, paganismo, misantropia, niilismo, morte, entre
outros. Mas como um estilo tão contracultural pode servir como elemento de
sustentação de um eurocentrismo e ao mesmo tempo como elemento de quebra desse
mesmo eurocentrismo? É importante ressaltar a partir deste ponto, que o Black Metal

1
Sá, 2013.
2
Blast beat, ou em português, metranca, se trata de um padrão rítmico de bateria utilizados nos estilos
mais rápidos do Heavy Metal. Tal técnica possui origem no disco “INRI”, da banda mineira de Black
Metal Sarcófago, lançado em 1987, com o baterista D.D. Crazy.
3
Lo-fi, do inglês Low Fidelity, se trata da reprodução de um arquivo em aúdio que possui baixa
qualidade, ou seja, o Black Metal se caracteriza como um estilo onde suas músicas possuem um som
repulsivo em termos de produção.
passa por um processo intenso de ressignificação, no sentido que seus moldes
tradicionais são quebrados e dão lugar a novas discussões em sentido lírico, como por
exemplo, ancestralidade, reminiscências, religiões nativas e principalmente,
decolonialidade. A introdução desses elementos é essencial para a quebra do
eurocentrismo na música extrema – e sendo assim, dar lugar a uma luta contra o
racismo, a ideia de superioridade racial e a de inferioridade de sociedades não ocidentais
– ou se ocidentalizadas, consideradas mais simples.

III. A exaltação do eurocentrismo no NSBM de Arghoslent – Galloping


through the battle ruins

Arghoslent é uma banda de metal extremo fundada em 1990 nos Estados Unidos
e em atividade até o momento presente em que esse artigo está sendo escrito (2021). Por
mais que no presente trabalho, a mídia contemporânea analisada seja essa banda e seu
álbum “Galloping through the battle ruins” (1998); Arghoslent também pode ser um
objeto para entender o NSBM, ou Nacional Socialist Black Metal; com suas letras
racistas, supremacistas e xenofóbicas. Analisada através de uma perspectiva crítica
podemos entender, através do exemplo, como o eurocentrismo é marcante em suas
letras.
Ella Shotat e Robert Stam, apontam o surgimento do eurocentrismo como,
inicialmente, um discurso de justificação do colonialismo 4. Nas composições da banda
Arghoslent, o teor colonizador é fortíssimo, partindo principalmente da ideia de
superioridade branca perante as outras raças, como no trecho da música The Imperial
Clans: “Dynamic addiction, impels men to rule. Enforcing masterdom, on subaltern
breeds”5. Essa percepção de superioridade racial é muito cara as bandas de estilo
NSBM, principalmente pela perspectiva que estes têm das raças e da cultura europeia.
Para José Pedro Zuquete, em sua análise sobre a defesa da identidade branca na Europa
Ocidental, esses grupos identitários que “falam da urgência em defender a identidade da
Europa e dos seus povos, aludem a uma identidade específica, ‘dura’, em vez de uma
identidade construída ‘suave”6. Esses grupos, enxergam os europeus como os povos
indígenas da Europa e a partir daí legitimam suas práticas, através de uma perspectiva

4
SHOTAT & STAM. 2006, P.4
5
“Vício dinâmico, impele os homens a governar.
Reforçando o domínio, nas raças subalternas”
6
ZUQUETE, 2020, P.58
“nós” europeus contra “aqueles” não europeus7. Discursam sobre uma natureza do
homem branco de governar e colonizar.

“(...) o homem comum, como o homem de pele escura, sobretudo


como de cabelos negros (“hic niger est –“), como habitante pré-ariano do
território da Itália, que através da cor se distinguia claramente da raça loura,
ariana, dos conquistadores tornados senhores; (...) o termo distintivo da
nobreza, por fim, do homem bom, nobre, puro, originalmente o homem louro,
em contraposição aos nativos de pele escura e cabelos negros.8 ”

São discursos como esse do autor alemão F.W. Nietzsche que vemos ecoar nessa
banda e em muitas outras mídias eurocêntricas, discursos que buscam legitimar a
dominação. É como se a história dos povos fosse novamente formulada como há
duzentos anos atrás: como pode algo se originar do seu oposto? Para Edward Said, esse
processo de “originalização” através do seu “oposto”, é um discurso que tem como base
a distinção ontológica e epistemológica entre “oriente” e “ocidente” 9. Arghoslent pode
ser tido, também, como um exemplo do apontamento de Stuart Hall (2016) de que o
Ocidente é um conceito histórico e não geográfico. Mas em que sentido? Sendo os
Estados Unidos e a Europa Ocidente? Por mais que os Estados Unidos da América
sejam Ocidente, até mesmo na concepção geográfica, o ponto aqui é como o Ocidente
projeta sua identidade e se percebe como “puro”; mesmo do outro lado do Atlântico em
relação à Europa. Zuquete pontua como esses grupos identitários acreditam que a
identidade biocultural da Europa está em avançado estado de decomposição pelas ondas
migratórias e pelo avanço do multiculturalismo10.
Esse Ocidente na perspectiva da banda Arghoslent é como Hall destaca, um
“resultado das forças que eram fortemente intrínsecas à história da Europa e sua
formação”11. Na letra de músicas como The Banners Of Castile, Fall Of The Melanic
Breeds e Rape Of A Slave a banda faz uma exaltação ao processo de colonização e
escravização de povos africanos; na faixa Rape Of a Slave, fazem apologia ao estupro
de um escravizado. É a banalização da dor do outro, diante de uma história de
genocídio, que no álbum é algo apresentado como objeto de exaltação.

7
SAID, 2007, P.34
8
NIETZSCHE, 2009, P.20
9
SAID, 2007, P.29
10
ZUQUETE, 2020, P.59
11
HALL, 2016, P.317
A capa do álbum “Galloping through the battle ruins” é uma reprodução da
pintura “A queda de Phaeton” do pintor germânico Sir Peter Paul Rubens, que retrata
um mito grego. É de se observar como o Ocidente pode ser qualquer coisa, menos
Oriente; é um discurso, é uma forma de dominação e agrega em si os elementos mais
interessantes para sua narrativa hegemônica. É um discurso, uma representação de
legitimação e superioridade. As contradições e as atrocidades só precisam ser
justificadas e organizadas em uma narrativa; nas estrofes de um álbum.

FOTO 1: capa do disco da banda Arghoslent – Galloping Through the


Battle Ruins (1998)

Fonte: Wood-Nymph Records, 1998.

IV. A desconstrução do eurocentrismo no black metal em Volahn –


Aq’ab’al

Como segunda mídia para análise, nos utilizaremos da obra da banda Guatemalteca
radicada nos Estados Unidos Volahn, com o notável disco Aq’ab’al. A banda em
questão faz parte de um dos grupos mais relevantes da música underground da América
Latina nos últimos anos, o Black Twilight Circle – ou, Crepúsculo Negro e é comandada
pelo multi-instrumentalista Eduardo Ramírez. Seus moldes instrumentais seguem uma
linha tradicional e que respeita as essências do Black Metal, mas possui como destaque
sua personalidade lírica e visual únicas. Temas como anticolonialismo, ancestralidade e
cosmologia são tocados com frequência, o que já evidencia um antagonismo histórico-
cultural. A memória ancestral, em um primeiro momento, chama a atenção: Na faixa
“Quetzalcoatl”, podemos perceber essa memória sendo acessada através de um trecho
de letra:

“Dador de la vida, el hombre hizo a Dios


digo tu nombre, vengo para guardar la lugar sagrado
yo canto en su nombre, a él, que es mi Dios
[...] Creador de la humanidad
Quetzalcoatl! ”

Quetzalcoatl (quetzal = plumas brilhantes de ave e cóatl = serpente), sendo uma


combinação de deus com herói civilizador, é tratado como uma das principais
divindades da Mesoamérica e é responsável por uma junção enorme de elementos
mitológicos e iconográficos, porém, sua origem ainda é muito discutida em termos
historiográficos. De acordo com Navarro, o pássaro e a serpente são representações
bastante significativas do pensamento panteísta mesoamericano, sendo essas
representações o céu e a terra.12 Nos voltando à desconstrução, nota-se que os padrões e
modelos de comparação (HALL, 2016) entram em jogo: inicialmente pelo fato de que a
Europa produziu uma história onde sua exclusividade é autocomparativa, ou seja, há
sempre uma ideia de comparação entre ocidente e as outras sociedades, e a religião
fundamenta uma delas. Os deuses ancestrais nativos de sociedades orientais são
inferiores ou demonizados, enquanto o deus do ocidente é misericordioso e está acima
de qualquer outra divindade existente. Podemos também relacionar essa
autocomparação por meio do contexto da colonização: é notório perceber que as
navegações foram fundamentais em diversos pontos que vão desde o processo de
exploração territorial a etapas em que o resto do mundo depende do ocidente (HALL,
2016). Tendo isso em vista, podemos analisar em mais uma das letras que compõem o
álbum Aq’ab’al: “[...] Obsidiana voluntad del intelecto nativo, destruir el mundo
colonial en oblivion/ Nican Tlaca!/ Deshumanización del espíritu indígena termina con
violência, revolución comanda fuerza bárbara de hostilidad heredada13”. Volahn,
brilhantemente se utiliza de um espírito anticolonialista na lírica em questão, visão onde

12
NAVARRO, p. 117-118.
13
[...] vontade obsidiana do intelecto nativo,
destruir o mundo colonial ao esquecimento.
Nican Tlaca!
a desumanização do espírito indígena termina com violência.
a revolução comanda a força bárbara da hostilidade herdada.
o colonizador está ligado a exploração e demonização de sua cultura, onde também
pode-se ligar ao uso da violência como ápice desse imperialismo colonizador. Como
sabemos, todo o contexto de colonização em conjunto com a expulsão dos Mouros da
península ibérico no século XIV fundamentaram um etnocentrismo muito mais
agressivo14, e esse mesmo etnocentrismo é fundamentado na música extrema como
forma de sustentar uma falsa supremacia branca e uma história de triunfo do continente
europeu.
Para complementar a discussão, é importante também falarmos do contexto
visual mostrado pelo disco. Diferentemente do disco “Galloping Through the Battle
Ruins”, que se utiliza de artes gráficas inspiradas em uma mitologia de guerra greco-
romana, o disco Aq’ab’al coloca em desconstrução o imaginário mitológico
eurocêntrico, execrando uma imagem colonial e uma visão europeia que se tem da
região mesoamericana, e sim, a exaltando uma visão dos próprios nativos, que são
detentores da sua própria história, e como sabemos, a ação dos vencidos é filtrada pela
ação dos vencedores15, porém, para ter resistência, os vencidos dependeriam de seus
próprios atos. Podemos perceber na imagem a seguir uma constante ressignificação das
guerras e do contexto social militarizado que existia nas civilizações mesoamericanas:

FOTO 2: Fragmento da capa do disco da banda Volahn – Aq’Ab’Al (2014)


Fonte: Crepúsculo Negro Bandcamp, 2014.

É notório observar, portanto, que a obra em questão é um completo oposto e um


marco no que diz respeito a novas visões, ou melhor, ao ato de dar voz aos que foram
silenciados, e esse contexto nos traz a tona como o eurocentrismo, mesmo sendo um
14
GOODY, 2008, P.5
15
BRUIT, 1992, P.77
fenômeno do ponto de vista historiográfico bastante problemático, há uma reformulação
e uma quebra desse mesmo fenômeno em diversos âmbitos das artes, construindo uma
identidade que coloca a opressão do “resto” em discussão.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dessas duas perspectivas sobre produções musicais do Black Metal, podemos
refletir sobre como dentro de um mesmo gênero podem existir produções artísticas
diametralmente opostas. Arghoslent não só reproduz um discurso eurocêntrico, como o
faz pela via mais extrema; é possível que se pense ser uma exceção, mas não o é.
Arghoslent grita seus preconceitos em uma sociedade que os comunica através de
formas “suavizadas”, como é os Estados Unidos da América quando não expõe
brutalmente suas desigualdades. Volahn se encaminha para um discurso de
decolonialidade e contrahegenomia muito mais próximo do Black Metal em seu
surgimento no início dos anos 1970, a única contrahegemonia de Arghoslent é dentro do
próprio movimento, pois o discurso está arraigado de preconceitos e uma essência
reacionária.

Referências bibliográficas.

BRUIT, Hector. “O visível e o invisível na conquista hispânica na América”. In.


“América em tempos de conquista”. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1992, p. 77-100.

GOODY, Jack. O Roubo da História. São Paulo: Contexto, 2008.

HALL, Stuart. O Ocidente e o resto: discurso e poder. Projeto História, n. 56, p. 315-
361, 2016.

NAVARRO, Alexandre Guidon. "Quetzalcóatl, divindade mesoamericana". Juiz de


Fora: NUMEM (Revista de estudos e pesquisa da religião), vol. 12, n. 1 e 2.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009

PINTO, Antônio Costa. GENTILE, Fábio (org). Populismo – Teorias e casos [livro
eletrônico]. 1. Ed. – Fortaleza, CE: Edmenta, 2020.

SÁ, Josivan Martins de. “Discípulos do caos: do Black Metal como representação da
estética pós-moderna”. Porto Alegre: ANAIS – Simpósio de estética e filosofia da
música, vol. 1, n.1, 2013.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das letras, 2001.

SHOHAT, Ella & STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica:


multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

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