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Os museus de arte
são racistas?
MAURICE BERGER
MASP 2020
Arte e descolonização
O MASP e o Afterall — centro de pesquisa dedicado à arte
contemporânea e às histórias das exposições — estabelece-
ram uma parceria de estudos sobre o tema arte e descoloni-
zação. A iniciativa pretende questionar as narrativas oficiais
e a configuração eurocêntrica do mundo da arte como uma
história totalizante, produzindo também novas leituras sobre
acervos e coleções de museus e exposições, por meio de
workshops e seminários, além de publicações de artigos.
O projeto aborda o surgimento de novas práticas artísticas
e curatoriais, que questionam e criticam explicitamente os
legados coloniais na arte, na curadoria e na produção de
crítica de arte. Pretende-se que os eventos promovidos por
esta parceria do MASP e do Afterall estimulem novas discus-
sões e pesquisas sobre descolonização, decolonialidade e
estudos pós-coloniais.
BRUNO BAPTISTELLI
Bandeira afro-brasileira (em diálogo
com David Hammons) - 2ª versão, 2020
2 MASP Cortesia do artista
Os museus de arte
são racistas?
MAURICE BERGER
1. Este ensaio foi Andando por uma exibição coletiva realizada no outono
publicado originalmente
na revista Art in America,
passado no New Museum (Nova York), ouvi a voz distinguí-
em setembro de 1990, no vel, embora abafada, do falecido Malcolm X (1925-1965).
contexto estadunidense,
em que se debatia a
Os sons emanavam de uma obra multimídia de David Ham-
inclusão de artistas negros mons, artista negro estadunidense.1 A instalação intitulada
em exposições. Embora
não trate da realidade
A Fan [Uma fã] (1989) era quase surreal em suas justapo-
brasileira, Maurice sições: um arranjo fúnebre, composto de flores secas e caí-
Berger aponta no texto
críticas relevantes que,
das, se encontrava ao lado de uma mesa antiga sobre a
mesmo considerando qual havia a cabeça de uma manequim branca que “assis-
especificidades locais,
transbordam barreiras
tia” a uma das primeiras entrevistas de Malcolm X para a
geopolíticas e ecoam televisão. A obra era poderosa, desafiadora, até mesmo
ainda nos dias atuais. Um
agradecimento é devido
dolorosa. Em vez de defender a conciliação (como ele viria
a Marvin Heiferman pela a fazer mais tarde), na entrevista Malcolm X falava de sua
concessão dos direitos.
[N. da. Ed.]
desconfiança em relação a pessoas brancas e da tolice ine-
rente à integração. Uma frustração compreensível ecoava
em sua voz quando ele disse: “O homem branco não fará
nada para gerar uma cidadania verdadeira e sincera ou o
reconhecimento dos direitos civis para as pessoas negras
neste país. Eles falam e falam, mas nunca fazem nada”.
Essas palavras funcionaram como um posfácio adequado
para minha experiência no museu. A exposição em questão
era Strange Attractors: Signs of Chaos [Estranhos atratores:
sinais do caos] (1989), que a curadora chamou de uma
investigação sobre “algumas das questões mais convincentes
levantadas pela nova ciência do caos no que se refere a
obras de arte recentes”. A confluência das ideias de Mal-
colm e a perspectiva teórica da mostra resumiu para mim o
difícil lugar de artistas negras/os estadunidenses nos museus
3 MASP — mesmo naqueles que apoiam ostensivamente a inclusão
2. Conferir TUCKER, racial como o New Museum. A presença carismática da voz
Marcia. “Preface”; e
TRIPPI. Laura. “Fractured
de Malcolm X em Strange Attractors apenas ressaltou o quão
Fairy Tale, Chaotic irrelevantes a exposição e seu catálogo eram para as ques-
Regimes”. In: TRIPPI, Laura
(Ed.). Strange Attractors:
tões sobre as quais ele estava falando — isto é, quando dava
Signs of Chaos. New pra ouvir suas palavras, dado o volume mediano do monitor
York: New Museum of
Contemporary Art, 1989.
de vídeo. O catálogo reverbera o jargão da “nova ciência do
A instalação de Hammons caos”: palavras como “duplicação do período”, “cascata de
não é nem mencionada
nem ilustrada neste
bifurcação”, “espaço de fase”, “ciclo limite”, “histerese” apare-
catálogo. cem ao longo de suas páginas. À medida que lemos o catá-
logo, identificamos nomes de acadêmicos homens e brancos.
3. Conferir FRASER, Embora a curadora Laura Trippi afirme que “o discurso do
C. Gerald. “The Voice
of Malcolm X Has an
pós-modernismo estabelece dentro da estética (chegando à
Audience Again”. New York estridência, por vezes) uma situação de extrema urgência e
Times, 20.2.1990, p. B3.
indeterminação”, as condições sistêmicas e institucionalmente
4. “Pessoas pertencentes definidas do racismo não são discutidas em lugar nenhum.2
a grupos alvos de
racialização” e/
Vinte e cinco anos após o assassinato de Malcolm X,
ou “pessoas alvo de “sua voz está sendo ouvida novamente e sua ideologia está
racialização” referem-
se ao termo em inglês
sendo reexaminada” ao passo que boa parte da comu-
“people of color”. É nidade negra dos Estados Unidos busca novas estruturas
importante ressaltar
que “people of color”
sociais que possibilitem a sobrevivência e o crescimento
é uma categoria de em um período de conservadorismo e indiferença renova-
coalizão (não uma
identidade) bastante útil,
dos.3 Essa busca contempla um realinhamento radical da
principalmente nos anos sociedade que é impensável para a maioria dos brancos
1970 e 1980, nos Estados
Unidos em lutas contra
— um realinhamento que não tem a ver com caos, mas com
a supremacia branca. ordem. Talvez seja a urgência desse projeto que tornou a
Sua tradução literal ao
português, “pessoas de
inclusão de Malcolm X nesta exposição de arte tão impac-
cor”, pode inferir uma tante. Sem a obra de Hammons, a sensibilidade de Strange
atenuação das tensões
raciais no Brasil por
Attractors teria sido muito diferente, mais semelhante à típica
homogeneizar distintas espetacularidade de exposições coletivas de arte contem-
experiências históricas e
cotidianas de racismo por
porânea que simplesmente ignoram a questão racial. Essa
aqui. Por esse motivo, seu única imagem colocou todo o programa em questão e apon-
uso em versão traduzida
além de confundir os
tou o racismo de seu contexto institucional. Cada vez mais,
contextos brasileiro e em todo o país, catalisadores semelhantes estão inserindo
estadunidense, retoma
o uso de uma expressão
questões dolorosas no até então complacente espaço de
racista, usada aqui para exposição, enquanto curadoras e curadores com boas inten-
apagar identidades
negras e indígenas. [N.
ções tentam “incluir” a produção cultural de pessoas perten-
das T.] centes a grupos alvos de racialização.4
Por ter crescido em um conjunto habitacional de baixa
renda predominantemente negro e latino no Lower East Side
de Manhattan — um lugar que, supostamente, também era
fruto de boas intenções —, estou acostumado com a experiên-
cia de testemunhar, de dentro e como uma pessoa branca,
a indiferença social e cultural vivida por pessoas alvos de
4 MASP racialização. É surpreendente para mim, no entanto, que em
5. “Master of Fine Arts”, uma nação que presenciou pelo menos algum esforço por
geração de artistas com
formação acadêmica em
parte de pessoas brancas para compartilhar espaços cultu-
belas artes. [N. das T.] rais convencionais (e as recompensas sociais e econômicas
concomitantes) com pessoas negras estadunidenses e outras
pessoas alvo de racialização — mais notavelmente na áreas
da música popular, dança, literatura e teatro —, o espaço das
artes visuais permanece, em sua maior parte, teimosamente
resistente. Meu objetivo neste artigo é, portanto, analisar as
complexas condições institucionais que resultam na exclusão
ou deturpação das principais vozes culturais dos Estados Uni-
dos. Essas vozes silenciadas são complexas e variadas. Artis-
tas negras/os veteranas/os, como Al Loving (1935-2005),
Faith Ringgold e Romare Bearden (1911-1988), receberam
considerável atenção do mundo da arte, mas foram impe-
didas/os de alcançar o status de superstar concedido para
artistas brancas/os de talento igual (ou menor). Existem artis-
tas negras/os estadunidenses da chamada geração Master
of Fine Arts,5 como Maren Hassinger, Pat Ward Williams e
David Hammons, que enfrentaram considerável dificuldade
para encontrar representação em galerias. Por fim, há uma
nova geração de outsiders, artistas e coletivos que atuam de
maneira independente em comunidades por todo o país, isto
é, fora do sistema de galerias.
A questão da interdição de direitos da cultura negra
vista no contexto mais amplo de mudanças sociais nas
relações raciais nos Estados Unidos — desde os avanços
do movimento dos direitos civis na década de 1960 até
a reversão de muitos desses avanços na era Ronald Rea-
gan (1911-2004), que ocorreu entre 1981 e 1989 — parece
assustadora. O mundo da arte está apenas refletindo as
mudanças sociais ou as instituições de arte podem, de fato,
desempenhar um papel no desafio às condições impostas
pelo racismo institucional nos Estados Unidos? É triste dizer
que, no que diz respeito à raça, os museus de arte, em
sua maioria, se comportaram como muitos outros negócios
neste país — eles têm buscado preservar os interesses mes-
quinhos de patrocinadores/as e da clientela de classe alta.
É esse viés tendencioso da classe alta e majoritariamente
branca que quero interrogar a fim de descobrir “o que está
acontecendo com a branquitude” (como diria a escritora
bell hooks) em uma das instituições culturais mais racistas
dos Estados Unidos: o museu de arte.
Apesar do recente aumento nas exposições dedicadas à
5 MASP arte negra estadunidense nos principais museus, elas rara-
6. WILSON, Judith. mente abordam a resistência subjacente do mundo da arte
“Art”. In: BOGLE, Donald
(Ed.). Black Arts Annual,
às pessoas alvo de racialização. Tais exposições comumente
1987/1988. New York: caem no que a historiadora da arte Judith Wilson chamou
Garland, 1989, p. 7.
de síndrome da “programação segregada e desigual”: mos-
7. Conferir PINDELL, tras negras em fevereiro, durante o Mês da História Negra,
Howardena. “Art World
Racism: A Documentation”.
mostras brancas no resto do ano.6 Um estudo recente sobre
New Art Examiner, v. 16, o “racismo do mundo da arte” em Nova York no período de
n. 7, mar. 1989, p. 32-36.
Além de uma lista de
1980 a 1987 feito pela artista Howardena Pindell verificou
galerias de Nova York que que galerias e museus administrados por pessoas brancas
representavam conjuntos
de artistas majoritariamente
cujos acervo e público-alvo também são brancos têm pouco
brancos (e a porcentagem interesse em patrocinar e dar espaço a pessoas negras e
de artistas negras/os,
latinas/os, asiáticas/
de outros contextos raciais e/ou étnicos. Com base em seu
os, nativo-americanas/ panorama estatístico da demografia das exposições de arte
os representadas/os
por cada uma dessas
convencionais, Pindell conclui que “artistas negras/os, lati-
galerias), Pindell fornece nas/os, asiáticas/os e nativas/os americanas/os estão, [...]
também uma visão geral
estatística detalhada dos
com pouquíssimas exceções, sistematicamente excluídas/
registros de exposições os”.7 O PESTS, um grupo anônimo de artistas negras/os,
de artistas negras/os,
latinas/os, asiáticas/os,
asiáticos/as latinas/os e nativas/os americanas/os sediado
nativo-americanas/os nos em Nova York, organizado em 1986 para combater o
seguintes museus de Nova
York: Brooklyn Museum,
“apartheid no mundo da arte”, chegou a uma conclusão
Guggenheim Museum, semelhante. Em 1987, o Boletim PESTS publicou uma lista
Metropolitan Museum of
Art, Museum of Modern
de 62 galerias importantes de Nova York cujas/os artistas
Art, Queens Museum, Snug representadas/os e gerenciadas/os eram todas/os ou majo-
Harbor Cultural Center
(Staten Island) e Whitney
ritariamente brancas/os8. Embora a situação pareça um
Museum of American Art. pouco melhor fora de Nova York (uma cidade onde, Wilson
Também foram fornecidas
estatísticas de exposições
afirma, “o relativo baixo poder financeiro [da] população
e publicações coletivas negra [...] faz com que as exposições nos museus de grande
selecionadas.
porte que recebem financiamento público permaneçam par-
8.Para mais sobre o PESTS, camente integradas”.9 Artistas negras/os e de outros grupos
conferir WILSON, Judith.
1989, op. cit., p. 5.
alvo de racialização continuam sendo sub-representadas/os
nos museus e galerias dos Estados Unidos.
9. Judith Wilson (Ibid., p. 4) Durante os últimos vinte e cinco anos uma série de ins-
continua em “Art”: “Dessa
forma, artistas negras/
tituições dedicadas à arte e cultura negras estadunidenses
os geralmente têm mais foram inauguradas no país, uma resposta ao problema
dificuldade para exibir
suas obras em Nova York
geral do racismo institucional e à indiferença frustrante
do que em outras partes do mundo da arte em relação a pessoas alvo de raciali-
do país, já que os riscos
econômicos costumam ser
zação10. O Studio Museum no Harlem, por exemplo, foi
mais altos em uma cidade fundado em 1967 para preencher um vazio deixado por
que serve como centro
para o mercado de arte
instituições tradicionais. Sua missão era oferecer apoio ao
internacional”. “estudo, documentação, coleção, preservação e exposição
de arte e artefatos dos Estados Unidos Negro e da diáspora
africana”. O Studio Museum é para o mundo da arte Negra
estadunidense o que o Museum of Modern Art (MoMA) é
6 MASP para o estabelecimento da arte branca em termos de visibi-
10.Para mais sobre a lidade e prestígio. Mas, por todo o país, existem literalmente
resistência histórica da
white cultural avant-garde
centenas de instituições menores e menos conhecidas dedi-
[vanguarda cultural cadas à arte de pessoas negras e de outros grupos alvo de
branca] a artistas alvo
de racialização, conferir
racialização nos Estados Unidos. Esses museus alternativos
WALLACE, Michele. levantam inúmeras questões acerca da relação entre as cul-
“Reading 1968 and
the Great American
turas negras e a cultura branca nos Estados Unidos. Artistas
Whitewash”. In: KRUGER, negras/os estadunidenses são asfixiadas/os pela segrega-
Barbara; MARIANI, Phil
(Eds.). Remaking History.
ção de museus negros, ou tais instituições permitem que
Seattle: Bay Press, 1989, suas artes floresçam apesar da falta de interesse da cultura
p. 106-09.
dominante? Pessoas negras estadunidenses devem renunciar
11.Kinshasha Holman suas próprias identidades culturais para serem aceitas por
Conwill, áudio de uma
entrevista com Adrian
instituições tradicionais? Até que ponto a mera existência de
Piper, International Design museus negros nos Estados Unidos absolve, mesmo que sem
Conference Aspen, 1988.
intenção, a maioria das instituições de sua responsabilidade
social para com pessoas negras estadunidenses?
Kinshasha Holman Conwill, diretora executiva de
Studio Museum no Harlem, afirma que museus negros
são necessários:
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