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De onde vem a “Idade Média Branca”?

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Helen Young

Conforme essa série [de posts] tem explorado, a ideia de uma “Idade Média racialmente
pura, branca” foi utilizada para fins políticos por extremistas de direita durante os séculos XX e
XXI. Mas não são apenas extremistas que acreditam nessa ideia. As evidências mostram que
muitas pessoas (talvez a maior parte) constroem suas ideias sobre a Idade Média através da
cultura popular, e não da escola ou de livros escritos por acadêmicos – e as (re)imaginações
sobre a Idade Média europeia criadas pela cultura popular apresentam quase que exclusivamente
personagens que são brancos. Mesmo em versões fantasiosas do passado, como [a série de
televisão] Game of Thrones ou a série de videogames Dragon Age, a ideia de que não existia
nenhuma pessoa não-branca na Europa durante a Idade Média é utilizada para justificar a falta de
diversidade nas representações.
Mas de onde vem essa noção? De onde vêm essas imagens do passado medieval
originalmente? Como a ideia de Idade Média se tornou tão emaranhada com a ideia de uma raça
branca? Para responder isso nós precisamos olhar de novo para o tempo durante o qual foram
desenvolvidas as ideias contemporâneas sobre raça e sobre a Idade Média: o século XVIII.

Criando “Raça”
Como Paul Sturtevant explorou em [seu artigo] “Raça é Real?”, a ideia de “raça” é uma
invenção cultural que se desenvolveu ao longo do tempo e que, portanto, tem uma história. A
maior parte das histórias contemporâneas sobre o conceito de raça e sobre identidades raciais
específicas, como “branquitude” tendem a se focar nos círculos intelectuais e principais
pensadores que deram origem a importantes desenvolvimentos.
A ideia de uma raça “branca” emergiu durante o Iluminismo, no século XVIII. Carl
Linnaeus foi o primeiro a categorizar humanos em raças, em seu livro extremamente influente,
“Systema Naturae”, de 1738, no qual ele buscou classificar todo o mundo natural. Quando a
décima edição foi lançada em 1758, ele tinha expandido suas descrições, originalmente breves,
para incluir descrições físicas e sociológicas. Homo europaeus, como ele chamava os europeus,

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Publicado originalmente como “Where do the “White Middle Ages” come from?” no blog The Public Medievalist
em 21 de Março de 2017: http://www.publicmedievalist.com/white-middle-ages-come/ Tradução livre de Paulo
Pachá. Revisão de Renato Rodrigues da Silva.

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tinham pele branca e sociedades organizadas pelo domínio da lei. Na segunda metade do século
XVIII suas ideias eram bem conhecidas, e intensas discussões ocorriam na esfera pública sobre
as causas das diferenças – tanto físicas quanto culturais – ao longo do espectro da [diversidade]
humana.
Provavelmente não é surpreendente que os pensadores europeus que participaram desses
debates sempre se colocavam no ápice das hierarquias raciais.

Popularizando a racialização
Apesar de ter sido refutado por pelo menos sessenta anos de ciência moderna, o poder da
raça e do racismo não foi quebrado. Importantes teóricos sociais da raça, Michael Omi e Howard
Winant argumentam que os debates intelectuais e conceituais sobre raça frequentemente têm
consequências “dramáticas”, cujos impactos ocorrem sobre sociedades inteiras. É vital, portanto,
que nós entendamos como as ideias de raça e supremacia branca se tornaram generalizadas no
cotidiano das pessoas.
Oliver Goldsmith, que provavelmente é lembrado hoje em dia como o autor do romance
popular “O Vigário de Wakefield”, foi apenas uma das figuras que contribuiram para tornar a
branquitude popular na Britânia e suas antigas colônias, com sua A History of Earth and
Animated Nature [“Uma história da Terra e da natureza animada” – “animada” como
contraposição à “inanimada”] (1774). Seu trabalho era uma tradução e adaptação de Linneus e
outros biólogos anteriores.
Goldsmith não estava convencido que as raças eram fundamentalmente diferentes, como
pensavam muitos dos seus contemporâneos. Mas ainda assim era muito claro ao dizer que os
europeus eram supremos em meio à humanidade. Ele escreveu: “Elas [as variações humanas] são
marcas da degenerescência da forma humana; e nós podemos considerar a figura e cor europeia
como padrões aos quais se referem todas as outras variedades”.
Ele também escreveu que a branquitude era o melhor tom de pele em termos de beleza e
capacidade para mostrar emoções, e que os europeus se assemelhavam mais a Deus do que os
outros povos.
Ainda que Goldsmith estivesse majoritariamente traduzindo o trabalho de outros autores
e não tenha adicionado muito às ideias deles sobre raça, ele é uma figura importante por tornar
essas ideias acessíveis para um público mais amplo. “A History of Earth and Animated Nature”

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foi uma dentre muitas publicações que ajudaram a popularizar conhecimentos de biologia e a
ideia de raça. O livro foi reimpresso em 1790, e pelo menos mais seis vezes durante o século
XIX no Reino Unido e na América. Em uma edição americana, o capítulo sobre raça foi movido
para o início do livro. A editora provavelmente pensou que era particularmente importante.
Hannah Arendt argumentou que raça, no pensamento inglês, “nasceu do desejo de
estender os benefícios dos padrões nobiliárquicos a todas as classes”. Democracia, liberdade e
igualdade eram importantes ideias políticas no século XVIII, como foram simbolizadas nas
Revoluções Francesa e Americana. A [ideia de] raça permitiu que os europeus – e colonos
europeus na América e outros lugares – criassem um novo sistema de hierarquias e vissem eles
próprios como coletivamente superiores.
A partir do momento em que a [ideia de] raça foi popularizada e adotada pela sociedade
ocidental, pessoas brancas tinham um sistema científico inteiro para justificar a ideia de que eles
eram racialmente superiores. Esse foi um momento crucial, uma vez que uma poderosa
ferramenta ideológica e política foi inserida em novas economias nacionais e no sistema de
comércio global, através de sistemas como a escravidão, o espólio de povos indígenas por
brancos nas colônias e o saque de recursos ao redor do mundo por potências europeias.

Racializando o Medievo
Mas o que tudo isso tem a ver com a Idade Média? A ideia setecentista de que a
humanidade estava dividida em grupos raciais separados e com distintas características físicas,
culturais e sociais herdadas de – e compartilhadas com – seus ancestrais significava que a
história tinha que ser reavaliada. As nações europeias precisavam criar novas histórias sobre suas
origens nacionais que funcionassem dentro de um enquadramento racial.
A Grécia Clássica e Roma tinham sido vistas como o ápice da realização e civilização
humana. As nações poderosas como Inglaterra e França não podiam traçar sua ascendência racial
até esses lugares; precisavam, portanto de uma nova fonte de identidade. Eles a encontraram na
Idade Média, em meio aos próprios povos que, de acordo com as ideias daquele momento,
destruíram Roma. Nós nunca abandonamos completamente a ideia de que a Idade Média era um
tempo de barbárie, mas desde a década de 1760 as nações ocidentais encontraram coisas para se
orgulharem (frequentemente sem mérito) no período medieval. Origens raciais estão entre elas.
Existiam hierarquias dentro da hierarquia que colocava os brancos no topo global da

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humanidade. As nações europeias competiam umas com as outras para expandirem seus
impérios ao redor do mundo, e debatiam sobre as divisões raciais dentro da categoria mais ampla
de homo europaeus conforme elas procuravam nas origens raciais justificativas para o seu
próprio sucesso ou fracasso e o de seus rivais. Foi em meio aos debates sobre quais nações
partilhavam uma ancestralidade comum e quais ancestrais eram superiores que foi realizado
muito do trabalho intelectual e cultural utilizado para criar os conceitos modernos de
branquitude.

Racializando a Linguística
Estudos sobre a história das línguas (filologia) fizeram com que povos que não pensavam
sobre si mesmos como relacionados com outras nações começassem a ver parentescos para além
das fronteiras nacionais. Apesar de ser inerentemente cultural, a linguagem se tornou então
[naquele contexto] um marcador de conexão racial.
Um dos resultados do interesse na linguagem como marcador de conexão racial foi o
crescente interesse na Idade Média. Os manuscritos medievais frequentemente eram os registros
escritos mais antigos de uma língua, e podiam servir como evidência nesses debates. O período
medieval também era a fonte para os escritos históricos mais antigos, por exemplo, de ingleses
sobre ingleses.
A maior parte do embranquecimento [white-washing] da Idade Média foi feito nesses
debates que se olhavam para dentro da Europa, e não em escritos sobre raças em uma escala
global, pelo menos em seus estágios iniciais. Um exemplo são as publicações de um amigo
íntimo de Goldsmith – Thomas Percy. Percy acreditava muito fortemente que os ingleses,
escandinavos e alemães era descendentes da mesma raça “goda” [ou “gótica”], enquanto os
irlandeses, escoceses e franceses (entre outros) eram descendentes de uma raça “celta”.
Ainda que ele não seja muito lembrado atualmente, seus estudos sobre a Idade Média
foram influentes e amplamente lidos naquela época. O primeiro, Five Pieces of Runic Verse
Translated from the Islandic Language [“Cinco Passagens de Verso Rúnico traduzido da língua
Islandesa”] (1763), fazia fortes afirmações sobre a relação próxima entre ingleses, escandinavos
e alemães baseado na maior parte em suas línguas.
Sua obra mais conhecida foi Reliques of Ancient English Poetry [“Relíquias da Poesia
Inglesa Antiga”] (1765), uma coleção em três volumes de (supostas) baladas medievais. A maior

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parte era moderna, não medieval (conforme ele argumentava), e muitas foram bastante reescritas
por Percy para torná-las mais atraentes para seus leitores. Cada volume continha um ensaio
introdutório que apresentava seu conteúdo como a herança cultural da raça inglesa. Algumas de
suas teorias foram contestadas, mas a obra era tão popular que ele foi capaz de reafirmá-las na
segunda edição em 1767. Nessa versão revisada ele pretendeu mostrar que os saxões, vikings e
normandos eram todos povos “godos”, o que significava que os ingleses modernos podiam
pensar sobre si mesmos como racialmente puros.
A última publicação medievalística de Percy foi Northern Antiquities [“Antiguidades do
Norte”] (1770), uma tradução da obra de Paul-Henri Mallet, que misturou celtas e godos
(também chamados de teutônicos ou povo germânico) em uma história da Dinamarca bastante
popular. Percy começou sua tradução no início dos anos 1760 e a partir daí ele esteve
comprometido com a ideia de mostrar que godos e celtas eram raças diferentes. Em uma carta de
1764 ele escreveu que Mallet cometeu “um erro que eu devo tentar retificar na minha tradução”.
Quando sua tradução foi eventualmente publicada ele incluiu muitas notas e um prefácio inteiro
dedicado a mostrar que eles eram racialmente diferentes, utilizando discursos históricos,
linguísticos e científicos para fundamentar sua tese.
Todas essas três obras medievalísticas pretendiam fazer com que os leitores
contemporâneos vissem a si mesmos como conectados à Idade Média através de sua ascendência
racial. Os exemplos de poesia medieval que eles continham davam aos leitores algo tangível para
conectarem a ideia de raça e identidade.

Tornando “Raça” Culturalmente Popular


[A obra] Reliques [“Relíquias”] foi tão popular que quatro edições foram produzidas
durante a vida de Percy. O autor extremamente influente Sir Walter Scott (famoso por Ivanhoé e
Waverly) chamava-os de “volumes abençoados”. Sob sua influência, os poetas extremamente
populares do romantismo inglês William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge rejeitaram as
formas elaboradas e o estilo do século XVIII por uma estética mais simples, ostensivamente
medieval. Figuras-chave do romantismo alemão foram inspirados por suas ideias, inclusive
Johann Gottfried von Herder, Johann Wolfgang von Goethe e os irmãos Grimm – cuja coleção
de contos-de-fadas foi essencialmente modelada pela antologia de baladas.
As Reliques foram reimpressas durante todo o século XIX e XX. Elas foram publicadas

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em edições populares, em edições de luxo e mesmo em edições direcionadas para crianças. Uma
edição do século XIX elogiava Percy por ter “apontado a diferença essencial entre as raças
célticas e teutônicas”.
Percy investiu décadas de trabalho tentando mostrar que essas raças eram diferentes,
apontando para a Idade Média como sua mais importante fonte de evidências. Percy se engajou
no que Omi e Winant chamam de “criar povos” [making up people], e suas publicações
apresentavam material (pseudo-)medieval como objetos de orgulho nacional e “racial” para seus
leitores ingleses. De formas variadas, eles recriaram a identidade inglesa em torno de um
enquadramento de raça e medievalismo. Por toda a Europa, outros escritores e antiquários
seguiram seu modelo, fossem diretamente inspirados pela leitura de suas obras, ou indiretamente
através das ideias de outros. E, portanto, a Idade Média foi amarrada ao conceito europeu de
identidade racial branca.
Mas Percy e Goldsmith foram apenas dois dentre centenas de pensadores e autores que
contribuíram para vincular a branquitude à Idade Média.
A década de 1760 marcou o início de uma explosão de medievalismo através da Europa.
A arquitetura, as artes e a literatura passaram por uma virada medieval. Esses medievalismos
foram frequentemente dirigidos por, ou pelo menos participaram de, formas de pensamento etno-
nacionalistas.
Uma vez que a ideia de raça foi amplamente aceita, a Idade Média europeia precisava ser
entendida como um território “exclusivo para brancos”, para que essas “raças” pudessem ser a
origem “pura” que era necessária. Nas versões ficcionais da Idade Média, como os romances de
Sir Walter Scott, pessoas não-brancas raramente apareciam. Eles eram os inimigos e potenciais
invasores em histórias sobre as Cruzadas, mas não eram parte das sociedades cristãs e brancas da
Europa.
O nacionalismo fundado na raça de Scott e seus descendentes literários (J. R. R. Tolkien,
por exemplo, e muitos outros) ao mesmo tempo basearam-se na e ajudaram a criar a Europa
medieval como a prova das nações brancas europeias. Como eu argumentei no meu recente livro
“Raça e Literatura Popular de Fantasia: Hábitos de Branquitude” [Race and Popular Fantasy
Literature: Habits of Whiteness], as convenções do gênero criadas nos primeiros anos da cultura
popular de massa conformaram as versões da Idade Média na cultura popular ocidental desde
então.

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Tornando “Raça” uma Questão Acadêmica
Não foram apenas as versões ficcionais da Idade Média que contribuíram para torná-la
um espaço “exclusivo para brancos” na imaginação moderna. Não apenas as disciplinas
acadêmicas foram deturpadas para fins raciais (como James M. Harland escreveu anteriormente
nessa série2); mas no caso dos estudos da linguagem, disciplinas acadêmicas foram fundadas
sobre ideias raciais.
No século XVIII não existiam departamentos de Inglês nas universidades. O
antiquarianismo amador, como o de Percy, foi transformado em uma disciplina acadêmica no
século XIX. Existia uma dimensão racial na forma pela qual esses departamentos foram
estruturados, e muitos permanecem estruturados dessa forma. Quando eu comecei meus estudos
de pós-graduação no departamento de Inglês, lá era ensinado Nórdico Antigo e Inglês Antigo
(línguas germânicas), junto com Inglês Médio e Literatura e, claro, Literatura Moderna. Francês
Antigo não era ensinado – a despeito da profunda influência do francês no inglês moderno,
resultante da conquista normanda. Espanhol medieval, ou Árabe Médio, não eram ensinados.
Muitos departamentos são organizados dessa forma no mundo anglo-saxão.
Isso relaciona-se com as teorias filológicas como as de Percy que apresentaram o Nórdico
Antigo como uma propriedade cultural dos falantes de inglês por causa de uma imaginária
ancestralidade racial goda em comum. Francês e espanhol, de outra família de línguas
(românicas), não era ensinado. Árabe certamente não era ensinado. A ideia de que a literatura
inglesa é separada da literatura de outras línguas como um campo de estudo decorre das ideias
raciais que sustentavam a filologia.
Os celtas, godos e outros povos da Europa podiam ser coletivamente pensados (por
aqueles inseridos em paradigmas raciais) como homo europaeus porque eles tinham uma Idade
Média compartilhada, única. Para que sua raça pudesse ser distinta, sua história precisava ser
distinta. Assim, as características do período medieval que nós pensamos como distintivas e
definitivas (cavaleiros, castelos, feudalismo etc) não eram pensadas como podendo ser
encontradas em culturas fora da Europa. Quaisquer características similares que fossem
encontradas em outras culturas foram ativamente ignoradas ou desconsideradas. Isso significa
que durante séculos “medieval” significava “branco”.

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HARLAND, James M. “’Race’ in the Trenches: Anglo-Saxons, Ethnicity, and the Misuse of the Medieval Past.”.
The Public Medievalist, 17/02/2018, disponível em https://www.publicmedievalist.com/race-in-the-trenches/.
[Acessado em 20/08/2018]

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Desfazendo o Dano
O embranquecimento da Idade Média agora está sendo contestado na cultura popular e
por acadêmicos. Atores de cor agora são, eventualmente, escalados em papéis medievais como
Angle Coulby como Gwen (Guinevere) na série de televisão Merlin, e Idris Elba como o deus
nórdico Heimdall, nos filmes do Thor da Marvel. O Tumblr “People of Colour in European Art
History” [Pessoas não-brancas na História da Arte Européia] busca quebrar a ideia de que
“historicamente acurado” significa “exclusivamente branco” nas representações da Idade Média.3
Acadêmicos estão explorando a Idade Média Global na pesquisa e no ensino. O legado das ideias
linguísticas de raça está perdendo força por causa de novas abordagens sobre multilinguismo e
fronteiras nacionais.
Nós precisamos continuar esse trabalho, e exigir que acadêmicos e criadores de cultura
pop nos ofereçam novas visões da Idade Média que não estejam atoladas no pensamento racista
dos séculos XVII e XVIII. A Idade Média foi transformada em branca no século XVIII, mas ela
não precisa permanecer dessa forma.

3
People of Colour in European Art History. Disponível em http://medievalpoc.tumblr.com/. [Acessado em
20/08/2018]

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