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Michel Foucault

Segurança, Território,
População
Curso dado no College de France (1977-1978)

Edição estabelecida por Michel Senellart


sob a direção de
François Ewald e Alessandro Fontana

Tradução
EDUAROO BRANDÃO

Revisão da tradução
CLAUDIA BERUNER

Paul-Michel Foucault nasceu em Poitiers, França, em 15


de outubro de 1926. Em 1946 ingressa na École Normale Supé-
rieure, onde conhece e mantém contato com Pierre Bourdieu,
Jean-Paul Sartre, Paul Veyne, entre outros. Em 1949, conclui sua
licenciatura em psicologia e recebe seu Diploma em Estudos
Superiores de Filosofia, com uma tese sobre Hegel, sob a orien- Martins Fontes
tação de Jean Hyppolite. Morre em 25 de junho de 1984. São Paulo 2008
Esta obra foi publicada originalmente em francfs com o título
SÉCURITÉ, TERRITOIRE, POPULATION
por Éditions du Seuil, Paris.
Ccrpyright © Seuii/Gallimard, 2004. íNDICE
Edição estabelecida por Michel Senellart sob a direção dt! François E111ald
e Alessandro Fontatl4.
Copyright © 2008, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
SíW Paulo, para a presente ediçilo.

1! ediçio 2008

Tr.tduçio
EDUARDO BRANDAO

Revisio da traduçio
Claudia Ba/iner
Acompanhamento editorial
Maria Fernanda Alvares
Revisões grificas
Andréa Stahel M. da Silva
Solange Martins
Dinarte Zorzane/li da Silva
Produçio gráfica
Geraldo Alves Nota .................................................................................. XIII
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Intetnadonais de Catalogaçlo na Publicação (QP) AULAS, ANO 1977-1978


(Câmara Brasileka do Livro, SP, Brasil)

Foucault, Michel, 1926-1984. Aula de 11 de janeiro de 1978 ......................................... . 3


Segurança, território, população : curso dado no Collt?ge
de France (1977-1978) I Michel Foucault; edição estabelecida Perspectiva geral do curso: o estudo do biopoder.
por Michel Senellart sob a direção de François Ewald e Ales- - Cinco proposições sobre a análise dos meca-
sandro Fontana; tradução Eduardo Brandão; revisão da tra-
dução Claudia Berliner.- São Paulo: Martins Fontes, 2008.-
nismos de poder. - Sistema legal, mecanismos
(Co\eção tópicos) disciplinares e dispositivos de segurança. Dois
Título original: Sécurité, territoire, population
exemplos: (a) a punição do roubo; (b) o tratamen-
Bibliografia. to da lepra, da peste e da variola. - Característi-
ISBN 978-85-336-2377-4 cas gerais dos dispositivos de segurança (I): os
1. Ciência politica - Filosofia 2. O Estado 3. Poder (Ciên- espaços de segurança.- O exemplo da cidade. -
cias sociais) 4. Razão de Estado I. Sene!lart, Michel. II. Ewald,
Três exemplos de organização do espaço urbano
François. m. Fontana, Alessandro. IV. Titulo. V. Série.
nos séculos XVI e XVIT: (a) La Métropolitée de
07-4435 CDD-320.101
Alexandre Le Ma.ltre (1682); (b) a cidade de Ri-
Índices para catálogo sistemático:
1. O Estado: Filosofia: Ciência política 320.101
chelieu; (c) Nantes.

Todos os direitos desta edição reservados à Aula de 18 de janeiro de 1978 ......................................... . 39


Liw11ri11 Martins Fon.Us Editor11 Ltd11. Características gerais dos dispositivos de segu-
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil
Te/. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6993
rança (li}: a relação com o acontecimento: a arte
e-mail: inftj@martinsjonteseditora.com.br http://www.marlinsjonteseditora.com.br

j
de governar e o tratamento do aleatório.- O pro- (1555).- Um governo que encontra seu fim nas
blema da escassez alimentar nos séculos XVII e "coisas" a dirigir. - Regressão da lei em benefí-
xvm. - Dos mercantilistas aos fisiocratas. - Di- cio de táticas diversas. - Os obstáculos históricos
ferenças entre dispositivo de segurança e meca- e institucionais à aplicação dessa arte de gover-
nismo disciplinar na maneira de tratar o aconte- nar até o século xvm. - O problema da popula-
cimento. -A nova racionalidade governamental ção, fator essencial do desbloqueio da arte de
e a emergência da "população".- Conclusão so- governar.- O triãngulo governo-população-eco-
bre o liberalismo: a liberdade como ideologia e nomia política. - Questões de método: o projeto
técnica de governo. de uma história da "governamentalidade". A su-
pervalorização do problema do Estado.
Aula de 25 de janeiro de 1978.......................................... 73
Características gerais dos dispositivos de segu- Aula de 8 de fevereiro de 1978 ......................................... 155
rança (III): a normalização.- Normação e nor- Por que estudar a governamentalidade? - O
malização. - O exemplo da epidemia (a varíola) problema do Estado e da população. - Relem-
e as campanhas de inoculação do século xvm. - brando o projeto geral: triplice deslocamento da
Emergência de novas noções: caso, risco, perigo, análise em relação (a) à instituição, (b) à função,
crise. -As formas de normalização na disciplina (c) ao objeto.- Objeto do curso deste ano.- Ele-
e nos mecanismos de segurança. - hnplantação mentos para uma história da noção de "gover-
de uma nova tecnologia política: o governo das no". Seu campo semãntico do século XIII ao
populações. - O problema da população nos mer- século XV.- A idéia de governo dos homens. Suas
cantilistas e nos fisiocratas. -A população como fontes: (A) A organização de um poder pastoral
operadora das transformações nos saberes: da no Oriente pré-cristão e cristão. (B) A direção de
análise das riquezas à economia política, da his- consciência. - Primeiro esboço do pastorado.
tória normal à biologia, da gramática geral à filo- Suas características específicas: (a) ele se exerce
logia histórica. sobre uma multiplicidade em movimento; (b) é
um poder fundamentalmente benéfico que tem
Aula de 1.' de fevereiro de 1978 ........................................ 117 por objetivo a salvação do rebanho; (c) é um po-
O problema do "governo" no século XVI. - Mul- der que individualiza. Omnes et singulatim. O pa-
tiplicidade das práticas de governo (governo de radoxo do pastor.- A institucionalização do pas-
si, governo das almas, governo dos filhos, etc.).- torado pela Igreja cristã.
O problema específico do governo do Estado. -
O ponto de repulsão da literatura sobre o gover- Aula de 15 de fevereiro de 1978 ....................................... 181
no: O príncipe, de Maquiavel. -Breve história da Análise do pastorado (continuação).- O proble-
recepção do Prfncipe, até o século XIX. - A arte ma da relação pastor-rebanho na literatura e no
de governar, distinta da simples habilidade do pensamento grego: Homero, a tradição pitagóri-
príncipe.- Exemplo dessa nova arte de governar: ca. Raridade da metáfora do pastor na literatura
O espelho político de Guillaume de La Perriere política clássica (Isócrates, Demóstenes).- Uma
exceção maior: o Polítiro de Platão. O uso da me- ral e direção de consciência. - Conclusão: uma
táfora nos outros textos de Platão (Crítias, Leis, forma de poder absolutamente nova que assina-
República). A crítica da idéia de um magistrado- la o aparecimento de modos específicos de indi-
pastor no Político. A metáfora pastoral aplicada vidualização. Sua importância decisiva para a
ao médico, ao agricultor, ao ginasta e ao pedago- história do sujeito.
go. -A história do pastorado no Ocidente como
modelo de governo dos homens é indissociável Aula de 1.' de março de 1978............................................ 253
do cristianismo. Suas transformações e suas cri- A noção de "conduta".- A crise do pastorado. -
ses até o século XVITI. Necessidade de uma his- As revoltas de conduta no campo do pastorado.
tória do pastorado.- Características do "governo - O deslocamento das formas de resistência, na
das almas": poder globalizante, coextensivo à época moderna, para os confins das instituições
organização da Igreja e distinto do poder políti- políticas: exemplos do exército, das sociedad<;s
co.- O problema das relações entre poder político secretas, da medicina.- Problema de vocabula-
e poder pastoral no Ocidente. Comparação com rio: "revoltas de conduta", "insubmissão", "dis-
a tradição russa. sidência", "contracondutas". As contracondutas
pastorais. Recapitulação histórica: (a) o ascetis-
Aula de 22 de fevereiro de 1978 ....................................... 217 mo; (b) as comunidades; (c) a mística; (d) a Es-
Análise do pastorado (fim). - Especificidade do critura; (e) a crença escatológica. - Conclusão:
pastorado cristão em relação às tradições orien- desafios da referência à noção de "poder pasto-
tal e hebraica. - Uma arte de governar os ho- ral" para uma análise dos modos de exercício do
mens. Seu papel na história da governamentali- poder em geral.
dade. - Principais características do pastorado
cristão do século III ao século VI (são João Cri- Aula de 8 de março de 1978 ............................................. 305
sóstomo, são Gpriano, santo Ambrósio, Gregó- Da pastoral das almas ao governo político_ dos
rio, o Grande, Cassiano, são Bento): (1) a relação homens. - Contexto geral dessa transformaçao: a
com a salvação. Uma economia dos méritos e crise do pastorado e as insurreições de conduta
dos deméritos: (a) o princípio da responsabili- no século XVI. A Reforma protestante e a Con-
dade analítica; (b) o princípio da transferência tra-Reforma. Outros fatores. - Dois fenômenos
exaustiva e instantânea; (c) o princípio da inver- notáveis: a intensificação do pastorado religioso
são sacrifical; (d) o princípio da correspondência e a multiplicação da questão da conduta, nos pla-
alternada. (2) A relação com a lei: instauração de nos privado e público. -A razão governamental
uma relação de dependência integral entre a própria do exercício da soberania. - Comparação
ovelha e quem a dirige. Uma relação individual e com são Tomás. -A ruptura do cantinuum cosmo-
não finalizada. Diferença entre a apátheia grega lógico-teológico.- A questão da arte de governar.
e a apátheia cristã. (3) A relação com a verdade: a - Observação sobre o problema da inteligibilida-
produção de verdades ocultas. Ensinamento pasto- de em história. -A razão de Estado (I): novidade
e objeto de escândalo.- Três pontos de focaliza- Aula de 29 de março de 1978 ........................................... 419
ção do debate polêmico em tomo da razão de Es- O segundo conjunto tecnológico característico
tado: Maquiave~ a #política", o "Estado". da nova arte de governar segundo a razão de Es-
tado: a polícia. Significações tradicionais da pala-
Aula de 15 de março de 1978 ........................................... 341 vra até o século XVI. Seu novo sentido nos sécu-
A razão de Estado (TI): sua definição e suas prin- los XVII-XVIll: cálculo e técnica garantem o bom
cipais características no século XVII. - O novo emprego das forças do Estado. -A tripla relação
modelo de temporalidade histórica acarretado entre o sistema do equihôrio europeu e a polícia.
pela razão de Estado.- Traços específicos da ra- - Diversidade das situações italiana, alemã e
zão de Estado em relação ao governo pastoral: francesa. - Turquet de Mayeme, A monarquia
(1) O problema da salvação: a teoria do golpe de aristodemocrática. - O controle da atividade dos
Estado (Naudé). Necessidade, violência, teatra- homens como elemento constitutivo da força do
lidade.- (2) O problema da obediência. Bacon: a Estado.- Objetos da polícia: (1) o número de ci-
questão das sedições. Diferenças entre Bacon e dadãos; (2) as necessidades da vida; (3) a saúde;
Maquiavel.- (3) O problema da verdade: da sa- (4) as profissões; (5) a coexistência e a circulação
bedoria do príncipe ao conhecimento do Estado. dos homens. -A polícia como arte de adminis-
Nascimento da estatística. O problema do segre- trar a vida e o bem-estar das populações.
do. -O prisma reflexivo no qual apareceu o pro-
blema do Estado. - Presença-ausência do ele- Aula de 5 de abril de 1978 ............................................... 449
mento "população" nessa nova problemática. A polícia (continuação).- Delamare.- A cidade,
lugar de elaboração da polícia. Polícia e regula-
Aula de 22 de março de 1978 ........................................... 383 mentação urbana. A urbanização do território.
A razão de Estado (III). - O Estado como princí- Relação da polícia com a problemática mercan-
pio de inteligibilidade e objetivo. - O funciona- tilista. -A emergência da cidade-mercado. - Os
mento dessa razão governamental: (A) Nos tex- métodos da polícia. Diferença entre polícia e jus-
tos teóricos. A teoria da manutenção do Estado. tiça. Um poder de tipo essencialmente regula-
(B) Na prática política. A relação de concorrên- mentar. Regulamentação e disciplina. -Volta ao
cia entre os Estados. - O tratado de Vestefália e problema dos cereais. - A critica do Estado de
o fim do Império Romano. -A força, novo ele- polícia a partir do problema da escassez alimen-
mento da razão política. - Política e dinâmica das tar. As teses dos economistas, relativas ao preço
forças. - O primeiro conjunto tecnológico carac- do cereal, à população e ao papel do Estado. -
terístico dessa nova arte de governar: o sistema Nascimento de uma nova govemamentalidade.
diplomático-militar.- Seu objetivo: a busca de um Govemamentalidade dos políticos e governa-
equihôrio europeu. O que é a Europa? A idéia de· mentalidade dos economistas. - As transforma-
"balança".- Seus instrumentos: (1) a guerra; (2) ções da razão de Estado: (1) a naturalidade da
a diplomacia; (3) o estabelecimento de um dis- sociedade; (2) as novas relações entre o poder e
positivo militar permanente. o saber; (3) a responsabilidade com a população

I
L_
(higiene pública, demografia, etc); (4) as novas NOTA
formas de intervenção estatal; (5) o estatuto da
liberdade. - Os elementos da nova arte de gover-
nar:. prática econômica, gestão da população,
d!:re1to e respeito às liberdades, polícia com fun-
çao repressiva. -As diferentes formas de contra-
conduta relativas a essa govemamentalidade. -
Conclusão geral.

Resumo do curso............................................................... 489


Situação dos cursos........................................................... 495

fndikdi~~·d~·~~Çõ;;·:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
539
541
índice dos nomes de pessoas ............................... . 561
Michel Foucault lecionou no College de France de ja-
neiro de 1971 até sua morte em junho de 1984 - com exce-
ção de 1977, quando gozou de um ano sabático. O nome da
sua cadeira era: História dos sistemas de pensamento.
Essa cadeira foi criada em 30 de novembro de 1969,
por proposta de Jules \h.rillemin, pela assembléia geral dos
professores do College de France em substituição à cadeira
de história do pensamento filosófico, que Jean Hyppolite
ocupou até a sua morte. A mesma assembléia elegeu Mi-
chel Foucault, no dia 12 de abril de 1970, titular da nova ca-
deira'. Ele tinha 43 anos.
Michel Foucault pronunciou a aula inaugural no dia 2
de dezembro de 1970'.

1. Michel Foucault encerrou o opúsculo que redigiu para sua can-


didatura com a seguinte fórmula: "Seria necessário empreender a his-
tória dos sistemas de pensamento" ("'lítres et travaux", in Dits et Écrits,
1954-1988, ed. por D. Defert e F. Ewald, colab. J. Lagrange, Paris, Galli-
mard, 1994, 4 vols.; cf. vol. I, p. 846). [Ed. bras.: DiltJS e escrit05- 5 vols.
temáticos, Rio de Janeiro, Forense Universitária.]
2. Ela será publicada pelas Éditions Gallimard em maio de 1971
com o título: L'Ordre du discours. [Ed. bras.: A ordem do discurso, trad
Laura Fraga de Almeida Sampaio, São Paulo, Loyola, 1996.)

J
XIV SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO NOTA XV

O ensino no College de France obedece a regras espe- corpos para chegar à sua cadeira, afasta os gravadores para
cíficas. Os professores têm a obrigação de dar 26 horas de pousar seus papéis, tira o paletó, acende um abajur e arran-
aula por ano (metade das quais, no máximo, pode ser dada ca, a cem por hora. Voz forte, eficaz, transportada por alto-
na forma de seminários'). Devem expor cada ano uma pes- falantes, única concessão ao modernismo de uma sala mal
quisa original, o que os obriga a sempre renovar o conteú- iluminada pela luz que se eleva de umas bacias de estuque.
do do seu ensino. A freqüência às aulas e aos seminários é Há trezentos lugares e quinhentas pessoas aglutinadas,
inteiramente livre, não requer inscrição nem nenhum diplo- ocupando todo e qualquer espaço livre [... ]Nenhum efeito
ma. E o professor também não fornece certificado algum'. oratório. É límpido e terrivelmente eficaz. Não faz a menor
No vocabulário do College de France, diz-se que os profes- concessão ao improviso. Foucault tem doze horas por ano
sores não têm alunos, mas ouvintes. para explicar, num curso público, o sentido da sua pesquisa
O curso de Michel Foucault era dado todas as quartas- durante o ano que acabou de passar. Então, compacta o
feiras, do começo de janeiro até o fim de março. A assistên- mais que pode e enche as margens como aqueles missivis-
cia, n~merosíssima, composta de estudantes, professores, tas que ainda têm muito a dizer quando chegam ao fim da
pesqwsadores, curiosos, muitos deles estrangeiros, mobili- folha. 19h15. Foucault pára. Os estudantes se precipitam
zava dois anfiteatros do College de France. Michel Foucault para a sua mesa. Não é para falar com ele, mas para desli-
queixou -se repetidas vezes da distância que podia haver en- gar os gravadores. Não há perguntas. Na confusão, Fou-
tre ele e seu "público" e do pouco intercâmbio que a forma cault está só." E Foucault comenta: "Seria bom poder dis-
do curso possibilitava'. Sonhava com um seminário que ser- cutir o que propus. Às vezes, quando a aula não foi boa,
visse de espaço para um verdadeiro trabalho coletivo. Fez bastaria pouca coisa, uma pergunta, para pôr tudo no devi-
várias tentativas nesse sentido. Nos últimos anos, no fim da do lugar. Mas essa pergunta nunca vem. De fato, na Fran-
aula, dedicava um bom momento para responder às per- ça, o efeito de grupo toma qualquer discussão real impos-
guntas dos ouvintes. sível. E como não há canal de retomo, o curso se teatraliza.
Tenho com as pessoas que estão aqui uma relação de ator
Eis como, em 1975, um jornalista do Nouvel Observa- ou de acrobata. E, quando termino de falar, uma sensação
teur, Gérard Petitjean, transcrevia a atmosfera reinante: de total solidão ..."'
"Quando Foucault entra na arena, rápido, decidido, como Michel Foucault abordava seu ensino como pesquisa-
alguém que pula na água, tem de passar por cima de vários dor: explorações para um futuro livro, desbravamento tam-
bém de campos de problematização, que se formulavam
3. Foi o que Michel Foucault fez até o início da década de 1980. muito mais como um convite lançado a eventu<ris pesquisa-
4. No âmbito do College de France. dores. É por isso que os cursos do College de France não re-
S. Em 1976, na (vã) esperança de reduzir a assistência, Michel petem os livros publicados. Não são o esboço desses livros,
Foucault mudou o horário do curso, que passou de 17h.45 para as 9 da embora certos temas possam ser comuns a livros e cursos.
manhã. Cf. o início da primeira aula (7 de janeiro de 1976) de "II faul dé- Têm seu estatuto próprio. Originam-se de um regime dis-
frndre la société". Cours au College de France, 1976, ed. por M. Bertani e A.
Fontana, sob a dir. de F. Ewald e A. Fontana, Paris, Gallimard/Seuil,
1997. [Ed. bras.: Em defesa da sociedade, Curso no College de France (1975- 6. Gérard Peti.tjean, "Les Grands Prêtres de l'université française",
1976), trad. Maria Ermentina Gaivão, São Paulo, Martins Fontes, 2002.] Le Nouvel Obseruateur, 7 de abril de 1975.

)
..- ..
XVI SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

cursivo específico no conjunto dos" atos filosóficos" efetua-


NOTA

]a tal qual. Mas a passagem do oral ao escrito impõe uma


XVI1
I
dos por Michel Foucault. Neles desenvolve, em particular, o intervenção do editor: é necessário, no mínimo, introduzir
programa de uma genealogia das relações saber/poder em uma pontuação e definir parágrafos. O princípio sempre foi
função do qual, a partir do início dos anos 1970, refletirá so- o de ficar o mais próximo possível da aula efetivamente
bre seu trabalho - em oposição ao de uma arqueologia das pronunciada.
formações discursivas que ele até então dominara'.
Quando parecia indispensável, as repetições foram su-
Os cursos também tinham uma função na atualidade. primidas; as frases interrompidas foram restabelecidas e as
O ouvinte que assistia a eles não ficava apenas cativado construções incorretas, retificadas.
pelo relato que se construía semana após semana; não fica- As reticências assinalam que a gravação é inaudível.
va apenas seduzido pelo rigor da exposição: também en- Quando a frase é obscura, figura entre colchetes uma inte-
contrava neles uma luz sobre a atualidade. A arte de Michel gração conjectural ou um acréscimo.
Foucault estava em diagonalizar a atualidade pela história. Um asterisco no rodapé indica as variantes significati-
Ele podia falar de Nietzsche ou de Aristóteles, da pericia psi- vas das notas utilizadas por Michel Foucault em relação ao
quiátrica no século XIX ou da pastoral cristã, mas o ouvinte que foi dito.
sempre tirava do que ele dizia uma luz sobre o presente e As citações foram verificadas e as referências aos tex-
sobre os acontecimentos contemporâneos. A força própria tos utilizados, indicadas. O aparato critico se limita a elucidar
de Michel Foucault em seus cursos vinha desse sutil cruza- os pontos obscuros, a explicitar certas alusões e a precisar
menta entre uma fina erudição, um engajamento pessoal e os pontos críticos.
um trabalho sobre o acontecimento. Para facilitar a leitura, cada aula foi precedida por um
breve resumo que indica suas principais articulações .

O texto do curso é seguido do resumo publicado no
Os anos 1970 viram o desenvolvimento e o aperfeiçoa- Annuaire du College de France. Michel Foucault o redigia ge-
menta dos gravadores de fita cassete - a mesa de Michel ralmente no mês de junho, pouco tempo depois do fim do
Foucault logo foi tomada por eles. Os cursos (e certos semi- curso, portanto. Era a oportunidade que tinha para destacar,
nários) foram conservados graças a esses aparelhos. retrospectivamente, a intenção e os objetivos do mesmo. E
Esta edição toma como referência a palavra pronuncia- constituem a melhor apresentação de suas aulas.
da publicamente por Michel Foucault e fornece a sua trans- 11
Cada volume termina com uma Sihlação", de respon-
crição mais literal possível'. Gostaríamos de poder publicá- sabilidade do editor do curso. Trata-se de dar ao leitor ele-
mentos de contexto de ordem biográfica, ideológica e polí-
tica, situando o curso na obra publicada e dando indicações
7. Cf. em particular "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", in Dits et
Écrits, II, p. 137. [Trad. bras.: "Nietzsche, a genealogia e a história, in Mi-
relativas a seu lugar no âmbito do corpus utilizado, a fim de
crofisica do poder, Roberto Machado (org.), Rio de janeiro, Graal, 1979.] facilitar sua compreensão e evitar os contra-sensos que po-
8. Foram utilizadas, em especial, as gravações realizadas por Gérard deriam se dever ao esquecimento das circunstâncias em que
Burlet e Jacques Lagrange, depositadas no College de France e no IMEC. cada um dos cursos foi elaborado e dado.
l
i
~
XVIII SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

Seguranço., território, população, curso ministrado em


1978, é editado por Michel Senellart

• AULAS,
Com esta edição dos cursos no College de France, vem ANO 1977-1978
a público um novo aspecto da "obra" de Michel Foucault
Não se trata, propriamente, de inéditos, já que esta edi-
ção reproduz a palavra proferida em público por Michel
Foucault, excluindo o suporte escrito que ele utilizava e que
podia ser muito elaborado.
Daniel Defert, que possui as notas de Michel Foucault,
permitiu que os editores as consultassem. A ele nossos mais
vivos agradecimentos.

Esta edição dos cursos no College de France foi auto-


rizada pelos herdeiros de Michel Foucault, que desejaram
satisfazer à forte demanda de que eram objeto, na França
como no exterior. E isso em incontestáveis condições de se-
riedade. Os editores procuraram estar à altura da confiança
que neles foi depositada.

FRANçors EwALD e ALESSANDRO FoNTANA

J
AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978

Perspectiva geral db curso: o estudo db biopoder. - Cinco


proposições sobre a análise dbs mecanismos de poder. - Siste-
ma legal, mecanismos disciplinares e dispositivos de seguran-
ça. Dois exemplos: (a) a punição db roubo; (b) o tratamento db
lepra, db peste e da varíola. - Características gerais dbs dispo-
sitivos de segurança (I): os espaças de segurança.- O exemplo
da cidade. - Três exemplos de organização do espaço urbano
nos séculos XVI e XVII: (a) La Métropolitée de Alexanáre Le
Militre (1682); (b) a cidade de Richelieu; (c) Nantes.

Este ano gostaria de começar o estudo de algo que eu


havia chamado, um pouco no ar, de biopoder', isto é, essa
série de fenômenos que me parece bastante importante, a
saber, o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que,
na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais vai poder entrar numa política, numa estra-
tégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras pa-
lavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais moder-
nas, a partir do século XVTII, voltaram a levar em conta o
fato biológico fundamental de que o ser humano constitui
uma espécie humana. É em linhas gerais o que chamo, o
que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder. Então, an-
tes de mais nada, um certo número de proposições, por as-
sim dizer, proposições no sentido de indicações de opção;
não são nem princípios, nem regras, nem teoremas.
Em primeiro lugar, a análise desses mecanismos de po-
der que iniciamos há alguns anos e a que damos seguirnen-
to agora, a análise desses mecanismos de poder não é de
forma alguma uma teoria geral do que é o poder. Não é
uma parte, nem mesmo um início dela. Nessa análise, tra-
ta -se simplesmente de saber por onde isso passa, como se
passa, entre quem e quem, entre que ponto e que ponto, se-

j
4 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 5

gundo quais procedimentos e com quais efeitos. Logo, só de uma maneira ao mesmo tempo lógica, coerente e válida
poderia ser, no máximo, e só pretende ser, no máximo, um o conjunto dos mecanismos de poder e apreendê-los no
início de teoria, não do que é o poder, mas do poder, con- que podem ter de espeáfico num momento dado, durante
tanto que se admita que o poder não é, justamente, uma um período dado, num campo dado.
substãncia, um fluido, algo que decorreria disto ou daquilo, Em terceiro lugar, a análise dessas relações de poder
mas simplesmente na medida em que se admita que o po- pode, é claro, se abrir para, ou encetar algo como a análise
der é um conjunto de mecanismos e de procedimentos que global de urna sociedade. A análise desses mecanismos de
têm como papel ou função e tema manter- mesmo que não poder também pode se articular, por exemplo, com a histó-
o consigam -justamente o poder. É um conjunto de proce- ria das transformações económicas. Mas, afinal de contas, o
dimentos, e é assim e somente assim que se poderia enten- que faço, não digo aquilo para o que sou feito, porque dis-
der que a análise dos mecanismos de poder dá início a algo so não tenho a menor idéia, enfim o que faço não é, afinal
como uma teoria do poder. de contas, nem história, nem sociologia, nem economia. É
Segunda indicação de opção: as relações, esse conjun- urna coisa que, de uma maneira ou de outra, e por razões
to de relações, ou antes, melhor dizendo, esse conjunto de simplesmente de fato, tem a ver com a filosofia, isto é, com
procedimentos que têm como papel estabelecer, manter, a política da verdade, porque não vejo muitas outras defini-
transformar os mecanismos de poder, pois bem, essas rela- ções para a palavra "filosofia" além dessa. Trata-se da políti-
ções não são autogenéticas*, não são auto-subsistentes**, ca da verdade. Pois bem, na medida em que se trata disso, e
não são fundadas em si mesmas. O poder não se funda em não de sociologia, não de história nem de economia, vocês
si mesmo e não se dá a partir de si mesmo. Se preferirem, vêem que a análise dos mecanismos de poder, essa análise
simplificando, não haveria relações de produção mais - ao tem, no meu entender, o papel de mostrar quais são os efei-
lado, acima, vindo a posteriori modificá-las, perturbá-las, tos de saber que são produzidos em nossa sociedade pelas
tomá -las mais consistentes, mais coerentes, mais estáveis - lutas, os choques, os combates que nela se desenrolam, e
mecanismos de poder. Não haveria, por exemplo, relações pelas táticas de poder que são os elementos dessa luta.
de tipo familiar que tivessem, a mais, mecanismos de poder, Quarta indicação: não há, creio, discurso teórico ou sim-
não haveria relações sexuais que tivessem, a mais, ao lado, plesmente análise que não seja de uma maneira ou de outra
acima, mecanismos de poder. Os mecanismos de poder são percorrida ou embasada em algo como um discurso no im-
parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o perativo. Mas creio que o discurso imperativo que, na ordem
efeito e a causa delas, mesmo que, é claro, entre os diferen- da teoria, consiste em dizer "goste disto, deteste aquilo, isto
tes mecanismos de poder que podemos encontrar nas rela- é bom, aquilo é ruim, seja a favor disso, cuidado com aqui-
ções de produção, nas relações familiares, nas relações se- lo", tudo isso me parece ser, em todo caso atualmente, nada
xuais, seja possível encontrar coordenações laterais, subor- mais que um discurso estético que só pode encontrar seu
dinações hierárquicas, isomorfismos, identidades ou analo- fundamento em opções de ordem estética. Quanto ao dis-
gias técnicas, efeitos encadeados que permitem percorrer curso imperativo que consiste em dizer "lute contra isto e
desta ou daquela maneira", pois bem, parece-me que é um
discurso bem ligeiro, quando é feito a partir de uma insti-
• autogenéticas: entre aspas no manuscrito. tuição qualquer de ensino ou, até, simplesmente numa fo-
•• auto-subsistentes: entre aspas no manuscrito. lha de papel. Como quer que seja, a dimensão do que se
6 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 7

tem a fazer só pode aparecer, parece-me, no interior de um ção, a mesma lei penal, ainda 11 não matarás", ~da _ac~m­
campo de forças reais, isto é, um campo de forças que nun- panhada de certo número de punições se for mfringu:la,
ca um sujeito falante pode criar sozinho e a partir da sua pa- mas desta vez o conjunto é enquadrado, de um lado, por
lavra; é um campo de forças que não se pode de maneira ne- toda uma série de vigilâncias, controles, olhares, esquadri-
nhuma controlar nem fazer valer no interior desse discurso. nhamentos diversos que permitem descobrir, antes mesmo
Por conseguinte, o imperativo que embasa a anãlise teórica de o ladrão roubar, se ele vai roubar, etc. E, de outro lado,
que se procura fazer - já que tem de haver um -, eu gosta- na outra extremidade, a punição não é simplesmente esse
ria que fosse simplesmente um imperativo condicional do momento espetacular, definitivo, do enforcamento, da multa
gênero deste: se você quiser lutar, eis alguns pontos-chave, ou do desterro, mas será uma prática como o encarcera-
eis algumas linhas de força, eis algumas travas e alguns blo- mento, impondo ao culpado toda ~a série de exercícios,
queios. Em outras palavras, gostaria que esses imperativos de trabalhos trabalho de transformaçao na forma, sunples-
não fossem nada mais que indicadores táticos. Cabe a mim mente, do q~e se chama de técnicas penitenciárias, traba-
saber, é claro, e aos que trabalham no mesmo sentido, cabe lho obrigatório, moralização, correção, etc. Tercerra modula-
a nós por conseguinte saber que campos de forças reais to- ção a partir da mesma matriz: seja a mes~a lei penal, SeJam
mar como referência para fazer uma análise que seja eficaz igualmente as punições, seja o mesmo tipo de enq~adra­
em termos táticos. Mas, afinal de contas, é esse o círculo da mento na forma de vigilância, de um lado, e correçao, do
luta e da verdade, ou seja, justamente, da prática filosófica. outro. Mas, desta vez, a aplicação dessa lei penal, a orgaru-
Enfim, um quinto e último ponto: essa relação, creio, sé- zação da prevenção, da punição corretiva, tu~o isso vai ser
ria e fundamental entre a luta e a verdade, que é a própria di- comandado por uma série de questões que. vao ser p;rgun-
mensão em que há séculos se desenrola a filosofia, pois bem, tas do seguinte gênero, por exemplo: qual e a taxa media da
essa relação séria e fundamental entre a luta e a verdade, criminalidade desse [tipo]*? Como se pode prever estatiSti-
creio que não faz nada mais que se teatralizar, se descarnar, camente que haverá esta ou aquela quantidade de r~ubos
perder o sentido e a eficácia nas polêmicas internas ao discur- num momento dado, numa sociedade dada, numa Cidade
so teórico. Portanto proporei em tudo isso um só imperativo, dada na cidade, no campo, em determinada camada social,
mas que será categórico e incondicional: nunca fazer politica'. etc.?' Em segundo lugar, h~ ~omentos, regiões, siste~a~
Bem, gostaria agora de começar este curso. Ele se cha- penais tais que essa taxa media vru aumentar ou dimmurr.
ma, portanto, "segurança, território, populaçãoH 3. As crises, a fome, as guerras, as punições rigorosas ou, ao
Primeira questão, claro: o que se pode entender por "se- contrário, as punições brandas vão modificar essas propor-
gurança"? É a isso que gostaria de consagrar esta hora e tal- ções? Outras perguntas mais: essa crunmalidade, ou seja, o
vez a próxima, enfim, conforme a lentidão ou a rapidez do roubo portànto, ou, dentro do roubo, este ou aquele tipo
que direi. Bem, um exemplo, ou melhor, uma série de exem- de roubo, quanto custa à sociedade, que prejuízo_:; produz,
pios, melhor ainda, um exemplo modulado em três tempos. que perdas, etc.? Mais outras perguntas: a repressao a_esses
E simples, é infantil, mas vamos começar por aí e creio que roubos custa quanto? É mrus oneroso ter uma rep:essao se-
isso me permitirá dizer um certo número de coisas. Seja vera e rigorosa, uma repressão fraca, uma repressao de tipo
uma lei penal simplíssima, na forma de proibição, digamos,
"não matarás, não roubarás", com sua punição, digamos, o
enforcamento, ou o desterro, ou a multa. Segunda modula- • M.F.: gênero
8 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 9

exe~plar e descontínua ou, ao contrário, uma repressão estudar agora. Dispositivo de segurança que vai, para dizer
continua? Qual é o custo comparado do roubo e da sua re- as coisas de maneira absolutamente global, inserir o fenô-
pressão? O que é melhor, relaxar um pouco com o roubo ou meno em questão, a saber, o roubo, numa série de aconte-
relaxar UI_U pouco a repressão? Mais outras perguntas: se o cimentos prováveis. Em segundo lugar, as reações do poder
culpado e encontrado, vale a pena puni-lo? Quanto custa- ante esse fenômeno vão ser inseridas num cálculo que é um
ria puni-lo? O que se deveria fazer para puni-lo e, punin- cálculo de custo. Enfim, em terceiro lugar, em vez de instau-
do-o, reeducá-lo? Ele é efetivamente reeducável? Ele repre- rar uma divisão binária entre o permitido e o proibido, vai-
senta, mdependentemente do ato que cometeu, um perigo se fixar de um lado uma média considerada ótima e, depois,
permanente, de sorte que, reeducado ou não, reincidiria, estabelecer os limites do aceitável, além dos quais a coisa
etc.? De maneira geral, a questão que se coloca será a de sa- não deve ir. É portanto toda uma outra distribuição das coi-
b~r como, no fundo, manter um tipo de criminalidade, ou sas e dos mecanismos que assim se esboça.
seja, o roubo, dentro de limites que sejam social e economi- Por que tomei esse exemplo tão infantil? Para logo res-
camente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser saltar duas ou três coisas que gostaria que ficassem bem
considerada, digamos, ótima para um funcionamento social claras para vocês todos e, antes de mais nada, para mim, é
dado. Pois bem, essas três modalidades me parecem carac- claro. Aparentemente, eu lhes ofereci aqui, por assim dizer,
terísticas de diferentes coisas que foram estudadas [e daque- uma espécie de esquema histórico totalmente descarnado.
las] que eu gostaria de estudar agora. O sistema legal é o funcionamento penal arcaico, aquele
. A primeira forma, vocês conhecem, a que consiste em que se conhece da Idade Média aos séculos XVII-XVIII. O
a;ar _uma 1;1 e estabelecer ';'fia punição para os que a in- segundo é o que poderíamos chamar de moderno, que é
fringrrem, e o SIStema do codigo legal com divisão binária implantado a partir do século XVIII; e o terceiro é o sistema,
entre o permitido e o proibido, e um acoplamento, que é pre- digrunos, contemporãneo, aquele cuja problemática come-
CISamente no que consiste o código, o acoplamento entre çou a surgir bem cedo, mas que está se organizando atual-
um tipo de ação proibida e um tipo de punição. É portanto mente em torno das novas formas de penalidade e do cál-
o mecanismo legal ou jurídico. O segundo mecanismo, a lei culo do custo das penalidades: são as técnicas americanas',
e':'quadrada por m~canismos de vigilãncia e de correção, mas também européias que encontramos agora. De fato,
nao voltare! a 1sso, e ~dentemente o mecanismo discipli- caracterizando-se as coisas assim- o arcaico, o antigo, o mo-
nar'. É o mecaniSmo disoplinar que vai se caracterizar pelo derno e o contemporãneo -, creio que se perde o essencial.
fato de que dentro do sistema binário do código aparece Perde-se o essencial, primeiramente, é claro, porque essas
um terceiro personagem, que é o culpado, e ao mesmo tem- modalidades antigas de que eu lhes falava implicam, evi-
po, fora, além do ato legislativo que cria a lei e do ato judi- dentemente, as que se manifestam como mais novas. No
cral que pune o culpado, aparece toda uma série de técnicas sistema jurídico-legal, aquele que funcionava, em todo caso
adjacentes, policiais, médicas, psicológicas, que são do do- aquele que dominava até o século XVIII, é absolutamente
mínio da vigilãncia, do diagnóstico, da eventual transfor- evidente que o aspecto disciplinar estava longe de estar au-
mação dos indivíduos. Tudo isso nós já vimos. A terceira sente, já que, afinal de contas, quando se impunha a um
forma é a que_ caracterizaria não mais o código legal, não ato, mesmo que e sobretudo se esse ato fosse aparentemen-
mrus ~ mec;nusmo discrplinar, ~as o dispositivo de segu- te de pouca importãncia e de pouca conseqüência, quando
rança , 1sto e, o conjunto dos fenomenos que eu gostaria de se impunha uma punição dita exemplar, era precisrunente

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10 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 11

porque se pretendia obter um efeito corretivo, se não sobre na ordem penal, nessa ordem da segurança. O conjunto das
o culpado propriamente - porque se ele fosse enforcado a medidas legislativas, dos decretos, dos regulamentos, das cir-
correção era pouca para ele -, [pelo menos sobre o]* resto culares que permitem implantar os mecanismos de seguran-
da população. Nessa medida, pode-se dizer que a prática do ça, esse conjunto é cada vez mais gigantesco. Afinal de con-
suplício como exemplo era urna técnica corretiva e discipli- tas, o código legal referente ao roubo era relativamente mui-
nar. Do mesmo modo que no mesmo sistema, quando se to simples na tradição da Idade Média e da época clássica.
punia o roubo doméstico de maneira extraordinariamente Retomem agora todo o conjunto da legislação que vai dizer
severa - a pena de morte para um roubo de pequeníssima respeito não apenas ao roubo, mas ao roubo cometido pelas
monta, caso tivesse sido cometido dentro de uma casa por crianças, ao estatuto penal das crianças, ãs responsabilidades
alguém que era recebido nesta ou empregado como do- por razões mentais, todo o conjunto legislativo que diz res-
méstico -, era evidente que se visava com isso, no fundo, peito ao que é chamado, justamente, de medidas de seguran-
um crime que só era importante por sua probabilidade, e ça, a vigiláncia dos indivíduos depois de sua instituição: vo-
podemos dizer que aí também se havia instaurado algo como cês vão ver que há urna verdadeira inflação legal, inflação do
um mecanismo de segurança. Poderíamos [dizer]•• a mes- código jurídico-legal para fazer esse sistema de segurança
ma coisa a propósito do sistema disciplinar, que também funcionar. Do mesmo modo, o corpus disciplinar também é
comporta toda urna série de dimensões que são propria- amplamente ativado e fecundado pelo estabelecimento desses
mente da ordem da segurança. No fundo, quando se pro- mecanismos de segurança. Porque, afinal de contas, para de
cura corrigir um detento, um condenado, procura-se corri- fato garantir essa segurança é preciso apelar, por exemplo, e
gi-lo em função dos riscos de recidiva, de reincidência que é apenas um exemplo, para toda uma série de técnicas de vi-
ele apresenta, isto é, em função do que se chamará, bem giláncia, de vigiláncia dos indivíduos, de disgnóstico do que
cedo, da sua periculosidade- ou seja, aqui também, meca- eles são, de classificação da sua estrutura mental, da sua pa-
nismo de segurança. Logo, os mecanismos disciplinares não tologia própria, etc., todo um conjunto disciplinar que viceja
aparecem simplesmente a partir do século XVIII, eles já es- sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar.
tao presentes no interior do código jurídico-legal. Os meca- Portanto, vocês não têm urna série na qual os elemen-
nismos de segurança também são antiqüíssimos como me- tos vão se suceder, os que aparecem fazendo seus predeces-
canismos. Eu também poderia dizer, inversamente, que, se sores desaparecerem. Não há a era do legal, a era do disci-
tomarmos os mecanismos de segurança tais como se tenta plinar, a era da segurança. Vocês não têm mecanismos de
desenvolvê-los na época contemporánea, é absolutamente segurança que tomam o lugar dos mecanismos disciplina-
evidente que isso não constitui de maneira nenhuma urna res, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurídi-
colocação entre parênteses ou urna anulação das estruturas co-legais. Na verdade, vocês têm urna série de edificios com-
jurídico-legais ou dos mecanismos disciplinares. Ao contrá- plexos nos quais o que vai mudar, claro, são as próprias téc-
rio, tomem por exemplo o que acontece atualmente, ainda nicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar,
mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou,
mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanis-
* M. Foucault diz: em compensação, a correção, o efeito corretivo mos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os me-
dirigia-se evidentemente ao canismos de segurança. Em outras palavras, vocês vão ter
,.,.. M.F.: tomar uma história que vai ser urna história das técnicas propria-

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12 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAçAO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 13

mente ditas. Exemplo: a técnica celular, a detenção em ce- se vê é que essa problemática trouxe tal inflação nas técni-
las é urna técnica disciplinar. Vocês podem perfeitamente cas disciplinares, que no entanto estavam e~tabelec1~as fa-
fazer a história dela, que remonta a bem longe. Vocês já a zia muito tempo, que o ponto em que, se nao o escandal?,
encontram muito empregada na era do juridico-legal. En- pelo menos o atrito apareceu - e a ferida foi bastant~ sens1 ~
contram-na empregada no caso de pessoas que têm divi- vel para provocar reações, reações violentas e rerus -, fo1
das, encontram-na empregada sobretudo na ordem religio- essa multiplicação disciplinar. Em outras palavras, fm o dis-
sa. Vocês fazem então a história dessa técnica celular (isto é, ciplinar que, na própria época em que os mecanJSrnos de
[a história de] seus deslocamentos, [de] sua utilização), vêem segurança estão se estabelecendo, fo1 o diSCiplinar '!.ue pro-
a partir de que momento a técnica celular, a disciplina celu- vocou, não a explosão, porque não houve expl?sao,. mas
lar é empregada no sistema penal comum, que conflitos ela pelo menos os conflitos mais manifestos e mrus VIS!Ve!s.
suscita, corno ela regride. Vocês também poderiam fazer a Então, o que eu gostaria de tentar lhes mostrar durante este
análise da técnica, nesse caso de segurança, que seria por ano é em que consiste essa tecnologia, algumas dessas tec-
exemplo a estatística dos crimes. A estatística dos crimes é nologias [de segurança]•, estando entendido que cada urna
coisa que não data de hoje, mas tampouco é coisa muito delas consiste em boa parte na reativação e na transforma-
antiga. Na França, são os célebres Balanços do Ministério da ção das técnicas juridico-legais e das técnícas disciplinares
Justiça que possibilitam, a partir de 1826', a estatística dos de que lhes falei nos anos precedentes. .
crimes. Vocês podem portanto fazer a história dessas técni- Outro exemplo que vou simplesmente esboçar aqw,
cas. Mas há urna outra história, que seria a história das tec- mas para introduzir outra ordem de problemas ou para real-
nologias, isto é, a história muito mais global, mas, é claro, çar e generalizar o problema (aqui também são exemplos
também muito mais vaga das correlações e dos sistemas de de que já falei n vezes .. ). O';' seja, J?odemos dizer, a e~clu;
dominante que fazem com que, numa sociedade dada e para são dos leprosos na Idade Media, ate o fim da Idade Media .
este ou aquele setor dado - porque não é necessariamente É urna exclusão que se fazia essencialmente, embora tam-
sempre ao mesmo passo que as coisas vão evoluir neste ou bém houvesse outros aspectos, por um conjunto mrus urna
naquele setor, num momento dado, numa sociedade dada, vez jurídico, de leis, de regulamentos, conjunto reli~':so
num país dado -, se instale urna tecnologia de segurança, também de rituais, que em todo caso traziam urna diVISao,
por exemplo, que leva em conta e faz funcionar no interior e uma divisão de tipo binário entre os que eram leprosos e.os
da sua tática própria elementos juridicos, elementos disci- que não eram. Segundo exemplo: o da peste (deste tambem
plinares, às vezes até mesmo multiplicando-os. Ternos atual- já lhes havia falado', logo tomo a ele rapidamente). Os re-
rnente um exemplo bem nítido disso, ainda a propósito gulamentos relativos à peste, taí~ como os vemos form~a­
desse domínio da penalidade. É certo que a evolução con- dos no fim da Idade Média, no secu!o XVI e runda no secu-
temporânea, não apenas da problemática, da maneira como lo XVII, dão urna impressão bem diferente, agem de uma
se reflete sobre a penalidade, mas igualmente [da] maneira maneira bem diferente, têm uma finalidade bem diferente
como se pratica a penalidade, é claro que por enquanto, faz e, sobretudo, instrumentos bem diferentes. Trata-se nesses
anos, bem uns dez anos pelo menos, a questão se coloca es-
sencialmente em termos de segurança. No fundo, a econo-
mia e a relação econôrnica entre o custo da repressão e o ,.. M.F.: disciplinares
custo da delinqüência é a questão fundamental. Ora, o que "* M. Foucault acrescenta: e que são {palavra inaudível]

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14 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 15

regulamentos relativos à peste de quadrilhar literalmente as quanto parecida, transformações mais ou menos do mesmo
regiões, as cidades no interior das quais existe a peste, com tipo nas sociedades, digamos, como as nossas, ocidentais.
uma regulamentação indicando às pessoas quando podem Trata -se da emergência de tecnologias de segurança no in-
sair, como, a que horas, o que devem fazer em casa, que terior, seja de mecanismos que são propriamente mecanis-
tipo de alimentação devem ter, proibindo-lhes este ou mos de controle social, como no caso da penalidade, seja
aquele tipo de contato, obrigando-as a se apresentar a ins- dos mecanismos que têm por função modificar em algo o
petores, a abrir a casa aos inspetores. Pode-se dizer que te- destino biológico da espécie. Então, e é essa a questão cen-
mos, aí, um sistema que é de tipo disciplinar. Terceiro exem- tral do que eu gostaria de analisar, poderíamos dizer que
plo: o que estudamos atualmente no seminário, isto é, a em nossas sociedades a economia geral de poder está se
varíola ou, a partir do século XVIII, as práticas de inocula- tomando da ordem da segurança? Eu gostaria portanto de
ção". O problema se coloca de maneira bem diferente: não fazer aqui uma espécie de história das tecnologias de segu-
tanto impor uma disciplina, embora a disciplina [seja]* cha- rança e tentar ver se podemos efetivamente falar de uma
mada em aUXJ1io; o problema fundamental vai ser o de sa- sociedade de segurança. Em todo caso, sob o nome de so-
ber quantas pessoas pegaram varíola, com que idade, com ciedade de segurança eu gostaria simplesmente de saber se
quais efeitos, qual a mortalidade, quais as lesões ou quais as há efetivamente uma economia geral de poder que tenha a
seqüelas, que riscos se corre fazendo-se inocular, qual a forma [de] ou que, em todo caso, seja dominada pela tec-
probabilidade de um indivíduo vir a morrer ou pegar varío- nologia de segurança.
la apesar da inoculação, quais os efeitos estatísticos sobre a Então, algumas características gerais desses dispositi-
população em geral, em suma, todo um problema que já vos de segurança. Gostaria de ressaltar quatro, não sei quan-
não é o da exclusão, como na lepra, que já não é o da qua- tos ... , enfim, vou começar analisando alguns para vocês. Em
rentena, como na peste, que vai ser o problema das epide- primeiro lugar, gostaria de estudar um pouquinho, assim
mias e das campanhas médicas por meio das quais se ten- por alto, o que poderíamos chamar de espaços de seguran-
tam jugular os fenômenos, tanto os epidêmicos quanto os ça. Em segundo, estudar o problema do tratamento _do alea:
endêmicos. tório. Em terceiro, estudar a forma de normalizaçao que e
Aqui também, por sinal, basta ver o conjunto legislati- específica da segurança e que não me parece do mesmo tipo
vo, as obrigações disciplinares que os mecanismos de segu- da normalização disciplinar. E, enfim, chegar ao que vai ser
rança modernos incluem, para ver que não há uma sucessão: o problema preciso deste ano, a correlação entre a técnica
lei, depois disciplina, depois segurança. A segurança é uma de segurança e a população, ao mesmo tempo como objeto
certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos e sujeito desses mecanismos de segurança, isto é, a emergên-
mecanismos propriamente de segurança, as velhas estrutu- cia não apenas da noção, mas da realidade da população.
ras da lei e da disciplina. Na ordem do direito, portanto, na São, no fundo, uma idéia e uma realidade sem dúvida ab-
ordem da medicina, e poderia multiplicar os exemplos - foi solutamente modernas em relação ao funcionamento polí-
tico, mas também em relação ao saber e à teoria políticos
por isso que lhes citei este outro -, vocês estão vendo que
encontramos apesar de tudo uma evolução um tanto ou anteriores ao século XVIII.
Então, em primeiro lugar, em linhas gerais, as questões
de espaço. Poderíamos dizer, à primeira vista e de uma ma-
• M.F.: será neira um tanto esquemática: a soberania se exerce nos limi-

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16 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 11 DE ]IJNEIRO DE 1978 17

tes de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos Fbr outro lado, os problemas de espaço são igualmen-
indivíduos e, por fim, a segurança se exerce sobre o conjun- te comuns a todas as três. No caso da soberania, é óbvio,
to de uma população. Limites do território, corpo dos indi- pois é antes de mais nada como uma coisa que se exerce no
víduos, conjunto de uma população, tudo bem, mas não é interior do território que a soberania aparece. Mas a disci-
isso e creio que isso não cola. Não cola, primeiro, porque o plina implica uma repartição espacial, e creio que a segu-
problema das multiplicidades é um problema que já encon- rança também- e é justamente disso, desses diferentes tra-
tramos a propósito da soberania e a propósito da disciplina. tamentos do espaço pela soberania, disciplina e segurança
Embora seja verdade que a soberania se inscreve e funcio- que eu gostaria de lhes falar agora.
na essencialmente num território e que, afinal de contas, a Vamos ver de novo uma série de exemplos. Vou pegar,
idéia de uma soberania sobre um território não povoado é é claro, o caso das cidades. A cidade era, ainda no século
uma idéia juridica e politicamente não apenas aceitável, mas XVITI, no início do século XIX também, essencialmente ca-
perfeitamente aceita e primeira, o fato é que o exercício da racterizada por uma especificidade juridica e administrativa
soberania em seu desenrolar efetivo, real, cotidiano, indica que a isolava ou a marcava de uma maneira bastante singu-
sempre, é claro, uma certa multiplicidade, mas que vai ser lar em relação às outras extensões e espaços do território.
tratada justamente seja como a multiplicidade de sujeitos, Em segundo lugar, a cidade se caracterizava por um encer-
seja [como] a multiplicidade de um povo. ramento dentro de um espaço murado e denso, no qual a
A disciplina também, é claro, se exerce sobre o corpo função militar nem de longe era a única. E, por fim, ela se
dos indivíduos, mas procurei lhes mostrar como, na verda- caracterizava por uma heterogeneidade económica e social
de, o indivíduo não é na disciplina o dado primeiro sobre o muito acentuada em relação ao campo.
qual ela se exercia. A disciplina só existe na medida em que Ora, tudo isso suscitou nos séculos xvn-XVlli toda
há uma multiplicidade e um fim, ou um objetivo, ou um re- uma massa de problemas ligados ao desenvolvimento dos
sultado a obter a partir dessa multiplicidade. A disciplina es- Estados administrativos para os quais a especificidade juri-
colar, a disciplina militar, a disciplina penal também, a disci- dica da cidade colocava um problema de difícil solução. Em
plina nas fábricas, a disciplina operária, tudo isso é uma de- segundo lugar, o crescimento do comércio e, depois, no sé-
terminada maneira de administrar a multiplicidade, de orga- culo xvrn, da demografia urbana colocava o problema do
nizá-la, de estabelecer seus pontos de implantação, as seu adensamento e do seu encerramento no interior das mu-
coordenações, as trajetórias laterais ou horizontais, as traje- ralhas. O desenvolvimento das técnicas militares também
tórias verticais e piramidais, a hierarquia, etc. E, para uma colocava esse mesmo problema. Enfim, a necessidade de in-
disciplina, o indivíduo é muito mais uma determinada ma- tercâmbios económicos permanentes entre a cidade e seu
neira de recortar a multiplicidade do que a matéria-prima a entorno imediato para a subsistência, seu entorno distante
partir da qual ela é construida. A disciplina é um modo de para suas relações comerciais, tudo isso [fazia com que] o
individualização das multiplicidades, e não algo que, a par- encerramento da cidade, seu encravamento, [também le-
tir dos indivíduos trabalhados primeiramente a título indivi- vantasse] um problema. E, em linhas gerais, era precisamen-
dual, construiria em seguida uma espécie de edifício de ele- te desse desencravamento espacial, juridico, administrativo,
mentos múltiplos. Portanto, afinal, a soberania, a disciplina, económico da cidade que se tratava no século XVITI. Ressi-
como também, é claro, a segurança só podem lidar com tuar a cidade num espaço de circulação. Sobre esse ponto,
multiplicidades. remeto vocês a um estudo extraordinariamente completo e

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18 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 19

perfeito, já que é feito por um historiador: é o estudo de Ire essa capital e o resto do território é vista por Le Maitre
Jean-Oaude Perrot sobre a cidade de Caen no século XVIII", de diferentes formas. Deve ser uma relação geométrica, no
em que ele mostra que o problema da cidade era essencial e sentido de que um bom pais é, em poucas palavras, um pais
fundamentalmente um problema de circulação. que tem forma de círculo, e é bem no centro do círculo que
Tomemos um texto de meados do século XVTI, escrito a capital deve estar situada16 • Uma capital que estivesse na
por uma pessoa chamada Alexandre Le Maitre, com o títu- extremidade de um território comprido e de forma irregular
lo de La Métropolitée". Esse Alexandre Le Maitre era um não poderia exercer todas as funções que deve exercer. De
protestante que havia deixado a França antes da revogação fato, e é aí que a segunda relação aparece, essa relação en-
do edito de Nantes e que tinha se tornado, a palavra é im- Ire a capital e o território tem de ser uma relação estética e
portante, engenheiro-geral do Eleitor de Brandemburgo. E simbólica. A capital deve ser o ornamento do território".
dedicou La Métropolitée ao rei da Suécia, e o livro foi edita- Mas deve ser também uma relação política, na medida em
do em Amsterdam. Tudo isso- protestante, Prússia, Suécia, que os decretos e as leis devem ter no território uma im-
Amsterdam- não é em absoluto desprovido de significado. plantação tal que nenhum canto do reino escape dessa rede
E o problema de La Métropolitée é o seguinte: deve haver geral das leis e dos decretos do soberano". A capital também
uma capital num país e em que essa capital deve consistir? deve ter um papel moral e difundir até os confins do territó-
A análise que Le Maitre faz é a seguinte: o Estado, diz ele, rio tudo o que é necessário impor às pessoas quanto à sua
se compõe na verdade de três elementos, três ordens, três conduta e seus modos de agir". A capital deve dar o exem-
estados mesmo: os camponeses, os artesãos e o que ele plo dos bons costumes'". A capital deve ser o lugar em que
chama de terceira ordem ou terceiro estado, que são, curio- os oradores sacros sejam os melhores e melhor se façam ou-
samente, o soberano e os oficiais que estão a seu serviço13 . vir'', deve ser também a sede das academias, pois as ciên-
Em relação a esses três elementos, o Estado deve ser como cias e a verdade devem nascer aí para então se difundir no
um edifício. As fundações do edifício, as que estão na terra, resto do país". E, enfim, um papel econômico: a capital deve
debaixo da terra, que não vemos mas que asseguram a so- ser o lugar do luxo para que constitua um lugar de atração
lidez do conjunto, são é claro os camponeses. As partes co- para as mercadorias que vêm do estrangeiro", e ao mesmo
muns, as partes de serviço do edifício, são é claro os arte- tempo deve ser o ponto de redistribuição pelo comércio de
sãos. Quanto às partes nobres, as partes de habitação e de certo número de produtos fabricados, manufaturados, etc."
recepção, são os oficiais do soberano e o próprio soberano". Deixemos de lado o aspecto propriamente utópico des-
A partir dessa metáfora arquitetônica, o território também se projeto. Creio que ele é apesar de tudo interessante, por-
deve compreender suas fundações, suas partes comuns e que me parece que temos aí uma definição da cidade, uma
suas partes nobres. As fundações serão o campo, e no cam- reflexão sobre a cidade, essencialmente em termos de sobe-
po, nem é preciso dizer, devem viver os camponeses e nin- rania. Ou seja, a relação da soberania com o território é que
guém mais que os camponeses. Em segundo lugar, nas pe- é essencialmente primeira e que serve de esquema, de cha-
quenas cidades devem viver todos os artesãos e ninguém ve para compreender o que deve ser uma cidade-capital e
mais que os artesãos. E, enfim, na capital, parte nobre do como ela pode e deve funcionar. Aliás, é interessante ver
edifício do Estado, devem viver o soberano, seus oficiais e como, através dessa chave da soberania como problema
aqueles artesãos e comerciantes indispensáveis ao funciona- fundamental, vemos surgir um certo número de funções
mento da corte e do entourage do soberano". A relação en- propriamente urbanas, funções econômicas, funções mo-

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20 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 21

rais e administrativas, etc. E o que é interessante afinal é Norte que foi tão importante no_ pensamento e na teori~
que o sonho de Le Maitre é o de conectar a eficácia política política do século XVII, essa reg~ao que vai ~a Holand~ a
da soberania a uma distribuição espacial. Um bom sobera- Suécia, em torno do mar do Norte e do mar Báltico. Kristia-
no, seja ele um soberano coletivo ou individual, é alguém nia27 e Gotemburgo28, na Suécia, seriam exem~l~s. Vou _pe-
que está bem situado no interior de um território, e um ter- gar um na França. Temos portan~o toda essa sene de c1da-
ritório que é civilizado no que concerne à sua obediência ao des artificiais que foram conslruldas, algumas no _norte da
soberano é um território que tem uma boa disposição espa- Europa e um certo número aqui, na França, na epoca de
cial. Pois bem, tudo isso, essa idéia da eficácia política da so- Luís XIII e de Luís XIV. Tomo o exemplo de uma cidadezi-
berania está ligada aqui à idéia de uma intensidade das cir- nha chamada Richelieu, que foi construída nos confins da
culações: circulação das idéias, circulação das vontades e 'lburaine e do Poitou, que foi construída a partir de nada,
das ordens, circulação comercial também. Para Le Maitre, precisamente29 . Onde nã,o havia ~ada, cons~u -se uma, CI-
trata-se, no fundo- idéia ao mesmo tempo antiga, já que dade. E como a conslrulram? Pms bem, utilizou-se a cele-
se trata da soberania, e moderna, já que se trata da circula- bre forma do acampamento romano que, na época, acaba-
ção -, de superpor o Estado de soberania, o Estado territorial va de ser reutilizada na instituição militar como mstrumen-
e o Estado comercial. Trata-se de amarrá-los e de reforçá- to fundamental de disciplina. Em fins do século XVI - início
los uns em relação aos outros. Desnecessário dizer-lhes que do século XVII, precisamente nos paises protestantes-_?on-
se está, nesse período e nessa região da Europa, em pleno de a importância disso tudo na Europa do Norte -, poe-se
mercantilismo, ou melhor, em pleno cameralismo". Ou seja, de novo em vigor a forma do acampamento romano bem
o problema é como, dentro de um sistema de soberania es- como os exercícios, a subdivisão das tropas, os ~o~tro~es c~­
trita, assegurar o desenvolvimento económico máximo p~r letivos e individuais no grande projeto de disaplinanzaçao
intermédio do comércio. Em suma, o problema deLe Mai-
do exército". Ora, trate-se de Kristiania, de Gotemburgo ou
tre é o seguinte: como assegurar um Estado bem capitaliza-
de Richelieu, é essa forma do acampamento que se utiliza.
do, isto é, bem organizado em torno de uma capital, sede da
A forma do acampamento é interessante. De fato: no_ caso
soberania e ponto central de circulação política e comercial.
precedente, La Métropolitée de Le Maitre, a organiZaçao da
Já que, afinal, esse Le Maitre foi engenheiro-geral do Elei-
cidade era pensada essenaalmente dentro da categona mrus
tor de Brandemburgo, poderíamos ver a filiação que há en-
geral, mais global do território. Era por meio de um ma~ro­
tre essa idéia de um Estado, de uma provinda bem "capi-
cosmo que se procurava pen_sar a cida~e,. com uma espec1e
talizada"• e o célebre Estado comercial fechado de Fichte",
de abonador do outro lado, Ja que o propno Estado era pen-
isto é, toda a evolução desde o mercantilismo cameralista até
sado como um ed.ificio. Enfim, era todo esse jogo entre o
a economia nacional alemã do início do século XIX. Em todo
macrocosmo e o microcosmo que perpassava pela proble-
caso, a cidade-capital é pensada nesse texto em função das
mática da relação entre a cidade, a soberania e o t~rritório.
relações de soberania que se exercem sobre um território.
Vou pegar agora outro exemplo. Poderia tê-lo pegado Já no caso dessas cidades construídas com bas: na figura do
acampamento, podemos dizer que a c1dad<; ~ pensada de
nas mesmas regiões do mundo, ou seja, esta Europa do
início, não a partir do maior que ela, o temtono, ~a~ a par-
tir do menor que ela, a partir de uma figura geometnca que
*As aspas constam do manuscrito do curso, p. 8. é uma espécie de módulo arquitetônico, a saber, o quadra-

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22 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 23

do ou o retângulo por sua vez subdivididos, por cruzes, em res, de um só andar: diferença de status social, diferença de
outros quadrados ou outros retângulos. fortuna, etc. Creio que, nesse esquema simples, encontramos
Há que salientar imediatamente que, pelo menos no exatamente o tratamento disciplinar das multiplicidades no
caso de Richelieu, assim corno nos campos bem organiza- espaço, isto é, [a] constituição de um espaço vazio e fecha-
dos e nas boas arquiteturas, essa figura, esse módulo que é do, no interior do qual vão ser construídas multiplicidades
utilizado não aplica simplesmente o princípio da simetria. artificiais organizadas de acordo com o triplice princípio da
Oaro, há um eixo de simetria, mas que é enquadrado e que hierarquização, da comunicação exata das relações de po-
se toma funcional graças a dissimetrias bem calculadas. der e dos efeitos funcionais específicos dessa distribuição,
Numa cidade corno Richelieu, por exemplo, vocês têm urna por exemplo, assegurar o comércio, assegurar a moradia,
rua mediana, que divide efetivarnente em dois retângulos o etc. No caso deLe Maitre e da sua Métropolitée, tratava-se
retângulo da cidade, e outras ruas, algumas delas paralelas em poucas palavras de "capitalizar"* um território. Neste,
a essa rua mediana, outras perpendiculares, mas que estão vai se tratar de arquitetar um espaço. A disciplina é da ordem
em distâncias diferentes, umas mais próximas, outras mais do edificio (edificio no sentido lato).
afastadas, de tal modo que a cidade é subdividida, sim, em Agora, terceiro exemplo: seriam as urbanizações reais
retângulos, mas em retângulos que são, uns grandes, outros de cidades que existiam efetivamente no século XVIII. Te-
pequenos, com urna gradação do maior ao menor. Os re- rnos então aí toda urna série. Vou pegar o exemplo de Nan-
tângulos maiores, isto é, o maior espaçamento das ruas, se tes, que foi estudado em 1932, creio, por urna pessoa cha-
encontram num extremo da cidade, e os menores, a quadrí- rnada Pierre Lelievre, que sugeriu diversos projetas de cons-
cula mais estreita, estão ao contrário no outro extremo da trução, de planejamento da cidade de Nantes". Cidade im-
cidade. Do lado dos retângulos maiores, onde a trama é lar- portante, porque está em pleno desenvolvimento comercial,
ga, onde as ruas são largas, é aí que as pessoas devem mo- por um lado, e porque, por outro, suas relações com a In-
rar. Já onde a trama é mais estreita, é aí que devem estar o glaterra fizeram que o modelo inglês fosse utilizado. E o
comércio, os artesãos, as lojas, é aí também que deve haver problema de Nantes é, evidentemente, o problema: desfa-
urna praça em que se realizarão as feiras. E esse bairro co- zer as aglomerações desordenadas, abrir espaço para as no-
mercial- vê-se bem corno o problema da circulação [... ]*, vas funções económicas e administrativas, regulamentar as
quanto mais estabelecimentos comerciais houver, mais deve relações com o entorno rural e, enfim, prever o crescimen-
haver circulação, quanto mais estabelecimentos houver, to. Passo por cima do projeto, encantador porém, de um ar-
mais deve haver superficie na rua e possibilidades de per- quiteto chamado Rousseau", que tinha a idéia de recons-
correr a rua, etc.-, esse bairro comercial é margeado, de um truir Nantes em tomo de urna espécie de bulevar-passeio
lado, pela igreja, do outro pelo mercado coberto. E do lado que teria a forma de um coração. Sim, é um sonho, mas não
das moradias, do bairro residencial, em que os retângulos deixa de ter sua importância. Vê-se que o problema era a
são mais largos, haverá duas categorias de casas, as que dão circulação, ou seja, que para a cidade ser um agente perfei-
para a rua principal ou para as ruas paralelas à principal, to de circulação, devia ter a forma de um coração que ga-
que vão ser casas de um certo número de andares, dois creio,
rante a circulação do sangue. É engraçado mas, afinal, a ar-
com mansarda e, nas ruas perpendiculares, as casas meno-

• Frase inacabada. • Aspas de M. Foucault.

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24 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 25

quitetura do fim do século XVIII, Boullée", Ledoux'', etc., terior, essencialmente no que concerne ao consumo da ci-
ainda funcionará muitas vezes com base em princípios as- dade e a seu comércio com o mundo exterior. Foi organiza-
sim, com a boa forma sendo o suporte do exercício exato da do um eixo de circulação com Paris, realizou-se o aprovei-
função. Na verdade, os projetos que foram realizados não tamento do rio Erdre, por onde vinha da Bretanha a lenha
foram Nantes em forma de coração. Foram projetos, um pro- para a calefação. E, por fim, nesse plano de reurbanização
jeto em particular, apresentado por uma pessoa chamada deVigny, tratava-se de responder a uma questão fundamen-
Vigné de Vigny", no qual não se tratava em absoluto de re- tal e que é, paradoxalmente, bastante nova, a saber: como
construir, nem de impor uma forma simbólica capaz de ga- integrar a um projeto atual as possibilidades de desenvolvi-
rantir a função, mas de um certo número de coisas precisas mento da cidade? Foi todo o problema do comércio nos cais
e concretas. e do que ainda não se chamava de docas. A cidade se per-
Em primeiro lugar, abrir eixos que atravessassem a ci- cebe como estando em desenvolvimento. Certo número de
dade e ruas largas o bastante para assegurar quatro funções. coisas, de acontecimentos, de elementos vai vir ou se pro-
Primeira, a higiene, o arejamento, eliminar todas aquelas es- duzir. O que se deve fazer para enfrentar antecipadamente
pécies de bolsões em que se acumulavam os miasmas mór- o que não se conhece com exatidão? A idéia é simplesmen-
bidos nos bairros demasiado apertados, em que as mora- te utilizar as margens do Loire e construir cais, os mais com-
dias eram demasiado apinhadas. Função de higiene, por- pridos, os maiores possíveis ao longo do Loire. No entanto,
tanto. Segunda, garantir o comércio interior da cidade. Ter- quanto mais se encomprida a cidade, mais se perde o bene-
ceira, articular essa rede de ruas com estradas externas de fício dessa espécie de quadrícula clara, coerente, etc. Será
modo que as mercadorias de fora pudessem chegar ou ser possível administrar bem uma cidade cuja extensão é tão
enviadas, mas isso sem abandonar as necessidades do con- grande, será que a circulação vai ser boa, a partir do momen-
trole aduaneiro, E, por fim - o que era um dos problemas to em que a cidade vai se estender indefinidamente no sen-
importantes das cidades no século XVIII -, possibilitar a vi- tido do comprimento? O projeto de Vigny era construir cais
gilância, a partir do momento em que a supressão das mu- ao longo de uma das margens do Loire, deixar um bairro se
ralhas, tomada necessária pelo desenvolvimento econômi- desenvolver, depois construir, apoiando-se em ilhas, pontes
co, fazia que não fosse mais possível fechar a cidade de noi- sobre o Loire e, a partir dessas pontes, deixar se desenvolver,
te ou vigiar com rigor as idas e vindas durante o dia; por fazer se desenvolver um bairro em face do primeiro, de modo
conseguinte, a insegurança das cidades tinha aumentado que esse equihbrio das duas margens do Loire evitaria o pro-
devido ao afluxo de todas as populações flutuantes, mendi- longamento indefinido de um dos lados do rio.
Enfim, pouco importa o detalhe do planejamento pre-
gos, vagabundos, delinqüentes, criminosos, ladrões, assas-
visto. Creio que ele é muito importante, que é em todo caso
sinos, etc., que podiam vir, como se sabe, do campo[ ...]*. Em
significativo por um certo número de razões. Em primeiro
outras palavras, tratava-se de organizar a circulação, de eli-
lugar, não se trata mais de construir, dentro de um espaço
minar o que era perigoso nela, de separar a boa circulação
vazio ou esvaziado, como no caso dessas cidades, digamos,
da má, [de] maximizar a boa circulação diminuindo a má.
disciplinares, como Richelieu, Kristiania, etc. A disciplina
Tratava-se, portanto, também de planejar os acessos ao ex-
trabalha num espaço vazio, artificial, que vai ser inteira-
mente construído. Já a segurança vai se apoiar em certo nú-
*Algumas palavras inaudíveis. mero de dados materiais. Ela vai trabalhar, é claro, com a

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26 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 27

disposição do espaço, com o escoamento das águas, com as ro x de passantes, número x de ladrões, número x de mias-
ilhas, com o ar, etc. Logo, ela trabalha sobre algo dado. [Em mas, etc. • Série indefinida dos elementos que se produzem:
segundo lugar,] não se trata, para ela, de reconstruir esse tantos barcos vão atracar, tantas carroças vão chegar, etc.
dado de tal modo que se atingisse um ponto de perfeição, Série igualmente indefinida das unidades que se acum:'-
como numa cidade disciplinar. Trata-se simplesmente de lam: quantos habitantes, quantos imóveis, etc; É a gestao
maximizar os elementos positivos, de poder circular da me- dessas séries abertas, que, por consegumte: so p~em ser
lhor maneira possível, e de minimizar, ao contrário, o que é controladas por uma estimativa de probabilidades, e 1sso, a
risco e inconveniente, como o roubo, as doenças, sabendo meu ver, que caracteriza essencialmente o mecamsmo de
perfeitamente que nunca serão suprimidos. Trabalha -se segurança.
portanto não apenas com dados naturais, mas também com Digamos para resumir isso tudo que, enquanto a so~e­
quantidades que são relativamente compressíveis, mas que rania capitaliza um território, colocando o problema mruor
nunca o são totalmente. Isso nunca pode ser anulado, logo da sede do governo, enquanto a disciplina arquitda um e:-
vai -se trabalhar com probabilidades. Em terceiro lugar, o paço e coloca como problema essencial uma distribwçao
que se vai procurar estruturar nesses planejamentos são os hierárquica e funcional dos elementos, a segurança vru pro-
elementos que se justificam por sua polifuncionalidade. O curar criar um ambiente em função de aconteamentos ou
que é uma boa rua? É uma rua na qual vai haver, é claro, de séries de acontecimentos ou de elementos possíveis, sé-
uma circulação dos chamados miasmas, logo das doenças, ries que vai ser preciso regularizar num contexto multiva-
e vai ser necessário administrar a rua em função desse pa- lente e transformável. O espaço próprio da segurança re-
pel necessário, embora pouco desejável, da rua. A rua vai mete portanto a uma série de acontecimentos possíveis,
ser também aquilo por meio do que se levam as mercado- remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um alea-
rias, vai ser também aquilo ao longo do que vai haver lojas. tório que vai ser necessário inscr~er num espaço dado. O
A rua vai ser também aquilo pelo que vão poder transitar espaço em que se desenrolam as senes de elementos alea-
os ladrões, eventualmente os amotinados, etc. Portanto são tórios é, creio, mais ou menos o que chamamos de melO. O
todas essas diferentes funções da cidade, umas positivas, meio é urna noção que, em biologia, só ar.arece - co~o vo-
outras negativas, mas são elas que vai ser preciso implantar cês sabem muito bem - com Lamarck". E uma noçao que,
no planejamento. Enfim, o quarto ponto importante é que em compensação, já existe em física, que ~avia sido utiliza-
vai se trabalhar com o futuro, isto é, a cidade não vai ser da por Newton e os newtonianos". O que e o me10? É o que
concebida nem planejada em função de uma percepção es- é necessário para explicar a ação à distância de um corpo so-
tática que garantiria instantaneamente a perfeição da fun- bre outro. É, portanto, o suporte e o elemento ~e circulação
ção, mas vai se abrir para um futuro não exatamente con- de uma ação". É portanto o problema circulaçao e ~ausali­
trolado nem controlável, não exatamente medido nem dade que está em questão nessa noção de melO. P01s bem,
mensurável, e o bom planejamento da cidade vai ser preci- creio que os arquitetos, os urbanistas, os pnmen:_os urbanl~­
samente: levar em conta o que pode acontecer. Enfim, acre- tas do século xvrn, são precisamente os que, nao dina uti-
dito que possamos falar aqui de uma técnica que se vincu-
la essencialmente ao problema da segurança, isto é, no fun-
do, ao problema da série. Série indefinida dos elementos * M. Foucault repete: Série indefinida dos elementos que se des-
que se deslocam: a circulação, número x de carroças, núme- locam

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lizaram, a noção de meio, porque, tanto quanto pude ver, ela Parece-me que, com esse problema técnico colocado
nunca e utilizada para designar as cidades nem os espaços pela cidade, vê-se - mas não passa de um exemplo, pode-
planeJados; em compensação, se a noção não existe, diria ríamos encontrar vários outros, voltaremos ao assunto-, vê-
que o esquema técnico dessa noção de meio, a espécie de- se a irrupção do problema da "naturalidade"* da espécie
como dizer?- estrutura pragmática que a desenha previa- humana dentro de um meio artificial. E essa irrupção da na-
mente está presente na maneira como os urbanistas pro cu- turalidade da espécie dentro da artificialidade política de uma
ram refletir e modificar o espaço urbano. Os dispositivos de relação de poder é, parece-me, algo fundamental. Para ter-
segurança trabalham, criam, organizam, planejam um meio minar, remeterei simplesmente a um texto daquele que foi
antes mesmo da noção ter sido formada e isolada. O meio sem dúvida o primeiro grande teórico do que poderíamos
vai ser l'ortanto aquilo em que se faz a circulação. O meio é chamar de biopolítica, de biopoder. Ele fala disso, aliás, a
um .conJunto de dados naturais, rios, pântanos, morros, é um respeito de outra coisa, a natalidade, que foi evidentemen-
conJunto ~e dados artificiais, aglomeração de indivíduos, te um dos grandes desafios, mas vê-se muito bem surgir aí
aglomeraçao de casas, etc. O meio é certo número de efei- a noção de um meio histórico-natural como alvo de uma
tos, que são efeitos de massa que agem sobre todos os que intervenção de poder, que me parece totalmente diferente
aí residem. É um elemento dentro do qual se faz um enca- da noção jurfdica de soberania e de território, diferente tam-
deamento circular dos efeitos e das causas, já que o que é bém do espaço disciplinar. [É a propósito dessa] idéia de
efeito, de um lado, vai se tomar causa, do outro. Por exem- um meio artificial e natural, em que o artificio age como uma
plo, quanto maior a aglomeração desordenada, mais haverá natureza em relação a uma população que, embora tramada
rniasmas, mais se ficará doente. Quanto mais se ficar doen- por relações sociais e políticas, também funciona como uma
te, mais se morrerá, claro. Quanto mais se morrer mais ha- espécie, que encontramos nos Estudos sobre a população de
verá cadáveres e, por conseguinte, mais haverá mi~smas, etc. Moheau39 um texto corno este: "Depende do governo mu-
Portanto, é esse fenômeno de circulação das causas e dos dar a temperatura do ar e melhorar o clima; um curso dado
efeitos que é visado através do meio. E, enfim, o meio apa- às águas estagnadas, florestas plantadas ou queimadas,
re~e como um, campo de intervenção em que, em vez de montanhas destruidas pelo tempo ou pelo cultivo contínuo
atingrr os mdiVIduos como um conjunto de sujeitos de direi- da sua superfície formam um solo e um clima novos. Tama-
to capazes de ações voluntárias - o que acontecia no caso da nho é o efeito do tempo, da habitação da terra e das vicis-
soberania-, em vez de atingi-los como uma multiplicidade situdes na ordem física, que os cantões mais sadios toma-
de organismos, de corpos capazes de desempenhos, e de de- ram-se morbígenos."" Ele se refere a um verso de Virgílio
sempenhos requeridos como na disciplina, vai-se procurar
atingrr, precisamente, uma população. Ou seja, uma multi-
plicidade de indivíduos que são e que só existem profunda,
essencial, biologicamente ligados à materialidade dentro da *Entre aspas no manuscrito, p. 16. M. Foucault escreve:
qual_ existem. O que vai se procurar atingir por esse meio é Dizer que é a irrupção da 'naturalidade' da espécie humana no campo
precisamente o ponto em que uma série de acontecimentos, das técnicas de poder seria wn exagero. Mas, se [até] então ela aparecia prin-
cipalmente na forma da necessidade, da insuficiência ou da fraqueza, do mal,
que esses indivíduos, populações e grupos produzem, inter- agora ela aparece como interseção entre wna multiplicidade de indivíduos
fere com acontecimentos de tipo quase natural que se pro- que vivem, trabalham e coexistem uns com os outros num conjunto de ele-
duzem ao redor deles. mentos materiais que agem sobre eles e sobre os quais eles agem de volta.
30 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

em que se fala do vinho que gela nos tonéis e diz: será que NOTAS
veríamos hoje, na Itália, o vinho gelar nos tonéis?" Pois
bem, se houve tanta mudança, não é que o clima mudou, é
que as intervenções políticas e econômicas do governo mo-
dificaram o curso das coisas a tal ponto que a própria natu-
reza constituiu para o homem, eu ia dizendo um outro meio,
11
só que a palavra meio" não está em Moheau. Em condu-
são, ele diz: "Se do clima, do regime, dos usos, do costume
de certas ações resulta o princípio desconhecido que forma
o caráter e os espíritos, pode-se dizer que os soberanos, por
leis sábias, por instituições sutis, pelo incômodo que trazem
os impostos, pela conseqüente faculdade de suprimi-los,
enfim por seu exemplo, regem a existência física e moral dos
seus súditos. Talvez um dia seja possível tirar partido desses
meios para matizar à vontade os costumes e o espírito da
nação." 42 Como vocês estão vendo, voltamos a encontrar 1. Cf. "II faut défendre la société". Cours au College de France,
aqui o problema do soberano, mas desta vez o soberano não 1975-1976, ed. por M. Bertani & A. Fontana, Paris, Gallimard-
é mais aquele que exerce seu poder sobre um território a par- Le Seuil ("Hautes Études"), 1997, p. 216 ("De quoi s'agit-il dans
tir de uma localização geográfica da sua soberania política, o cette nouvelle technologie de pouvoir, dans cette bio-politique,
soberano é algo que se relaciona com uma natureza, ou an- dans ce bio-pouvoir qui est en train de s'installer?" [De que se tra-
tes, com a interferência, a intrincação perpétua de um meio ta nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopo-
geográfico, climático, físico com a espécie humana, na me- der que está se instalando?]); La volonté de savoir, Paris, Gallimard,
dida em que ela tem um corpo e uma alma, uma existência "Bibliotheque des histoires", 1976, p. 184 [ed. bras.: "A vontade de
física [e] moral; e o soberano será aquele que deverá exercer saber", in História da sexualidade I, trad. Maria Thereza da Costa
seu poder nesse ponto de articulação em que a natureza no Albuquerque e ). A. Guilhon de Albuquerque, Rio de janeiro,
sentido dos elementos físicos vem interferir com a natureza Graal, 1985].
no sentido da natureza da espécie humana, nesse ponto de 2. Estas últimas frases devem ser comparadas com o que
articulação em que o meio se toma determinante da nature- Foucault declara, no fim desse mesmo ano, em sua longa entrevis-
za. É aí que o soberano vai intervir e, se ele quiser mudar a ta a D. Trombadori, sobre a sua decepção, ao voltar da Turúsia, ante
espécie humana, só poderá fazê-lo, diz Moheau, agindo so- as polémicas teóricas dos movimentos de extrema-esquerda de-
pois de Maio de 1968: "Falou-se na França de hipermarxismo, de
bre o meio. Creio que temos aí um dos eixos, um dos ele-
deflagração de teorias, de anátemas, de grupuscularização. Era
mentos fundamentais nessa implantação dos mecanismos
exatamente o contrapé, o avesso, o contrário do que me havia
de segurança, isto é, o aparecimento, não ainda de uma no- apaixonado na Tunísia [quando dos levantes estudantis de março
ção de meio, mas de um projeto, de uma técnica política que de 1968]. Isso talvez explique a maneira como procurei considerar
se dirigiria ao meio. as coisas a partir daquele momento, em defasagem relativamente
a essas discussões infinitas, a essa hipermarx:ização [... ]Tentei fa-
zer coisas que implicassem um engajamento pessoal, físico e real,
e que colocassem os problemas em termos c;:çmcretos, precisos, de-

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32 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 33

finidos no interior de uma situação dada" ("Entretien avec Michel 8. Q. Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Gallimard, "Bi-
Foucault" (fins de 1978), Dits et Écrits, 1954-1988, ed. por D. De- bliothéque des histoires", ed. 1972, pp. 13-6 [ed. bras.: História da
feri e E Ewald, colab. ). Lagrange, Paris, Gallimard, 1994, 4 vols. loucura na idade cldssica, trad. ). T. Coelho Netto, São Paulo, Pers-
[doravante, DE em referência a essa edição], N, n? 281, p. 80. So- pectiva, 1978]; Les Anonnaux. Cours au Collége deFrance,_ année
bre o vínculo entre essa concepção do engajamento e o olhar que, 1974-1975, ed. por V. Marchetti & A Salomoru, Paris, Gallimard-
em outubro e novembro de 1978, Foucault lança sobre os aconte- Le Seuil, "Hautes Études", 1999, aula de 15 de janeiro de 1975, PP-
cimentos do Irã, cf. nossa "Situação dos cursos", infra, p. 510. 40-1 [ed. bras.: Os anormais, trad. Eduardo Brandão, São Paulo,
3. Cf. aula de 1? de fevereiro (DE, li, p. 655), em que Foucault Martins Fontes, 2001, pp. 54-5]; Surveiller et Punir, op. cit., p. 200.
precisa que teria sido mais exato intitular esse curso de "História 9. Les Anonnaux, op. cit., pp. 41-5; Surveiller et Punir, op. cit.,
da govemamentalidade". pp. 197-200.
4. a. Surveiller et Punir, Paris, Gallimard, "Bibliothéque des 10. M. Foucault volta a esse tema na aula de 25 de janeiro,
histoires", 1975. [Ed. bras.: Vigiar e punir, trad. Raquel Ramalhete, pp. 73 ss. Sobre a exposição de A- M. Moulin apresentada no se-
Petrópolis, Vozes, 1977.] minário, cf. infra, p. 105, nota 2.
5. É na última aula (17 de março de 1976) do curso de 1975- 11. Jean -Oaude Perrot, Genése d'une ville moderne, Caen au
1976, II faut défendre la société, op. cit., p. 219, que Foucault distin- XVIII' siécle (tese, Universidade de Lille, 1974, 2 vols.), Paris-La
gue pela primeira vez os mecanismos de segurança dos mecanis- Haye, Mouton, "Gvilisations et Sociétés", 1975, 2 vols. Michele
mos disciplinares. O conceito de "segurança", todavia, não é reto- Perrot faz referência a esse livro em seu posfácio a J. Bentham, Le
mado em La volonté de savoir, onde Foucault prefere, em oposição Panoptique, Paris, Belfond, 1977: ''l:inspecteur Bentham", PP· 189 e
às disciplinas, que se exercem sobre o corpo dos indivíduos, o con- 208, obra de que Foucault havia participado (entrevista a j.-P. Bar-
ceita de "controles reguladores" que se encarregam da saúde e da rou eM. Perrot, 'Toei! du pouvoir", ibid., pp. 9-31 [in Microfísica
vida das populações (p. 183).
6. Sobre essas novas formas de penalidade no discurso neo-
do poder, op. cit., pp. 209-27]).
12. Alexandre Le Maitre (quartel-mestre e engenheiro-geral
liberal americano, cf. Naissance de la biopolitique. Cours au Collége
de SAE. de Brandemburgo), La Métropolitée, ou De l'établissement
de France, 1978-1979, ed. por M. Senellart, Paris, Gallimard-Le
Seuil, "Hautes Études", 2004, aula de 21 de março de 1979, pp. 245
des villes Capitales, de leur Utilité passive & active, de l'Union de leurs
parties & de leur anatomie, de leur commerce, etc., Amsterdam, B. Boc-
ss. [Ed. bras.: Nascimento da biopolítica, trad. Eduardo Brandão, São
Pa.ulor Martins Fontes, no prelo.] kholt, 1682; reed. Éditions d'histoire sociale, 1973.
13. La Métropolitée, op. cit., cap. X, pp. 22-4: "Dos três Estados
7. Trata -se das estatísticas judiciárias publicadas todos os
anos, desde 1825, pelo Ministério da justiça. Cf. A- M. Guerry, Es- a serem distinguidos numa Província; de sua função e das suas
sai sur la statistique mora/e de la France, Paris, Crochard, 1833, p. 5: qualidades."
"Os primeiros documentos autênticos publicados sobre a admi- 14. Ibid.
nistração da justiça criminal na França remontam tão-somente ao 15. Ibid., cap. XI, pp. 25-7: "Que, como na vida Campestre ou
ano de 1825. [... ] Hoje, os procuradores-gerais enviam cada tri- nos vilarejos só há camponeses, deviam-se distribuir os Artesãos
mestre ao ministro da Justiça relatórios sobre o estado dos assun- nas pequenas cidades e só ter nas grandes Gdades, ou nas Capi-
tos criminais ou correcionais levados aos tribunais da sua compe- tais, a gente culta e os artesãos absolutamente necessários."
tência. Esses relatórios redigidos com base em modelos unifor- 16. Ibid., cap. XVIII, pp. 51-4: "A grandeza que deve ter o
mes, para que apresentem unicamente resultados positivos e país, a Província, ou o distrito a que se pretende dar uma cidade
comparáveis, são examinados com cuidado no ministério, contro- Capital."
lados uns pelos outros em suas diversas partes, e sua análise fei- 17.Ibid., cap. N, pp.ll-2: "Que a cidade Capital não está ape-
ta no fim de cada ano forma o Balanço geral da administração da nas de posse do útil, mas também do honesto; não somente das
justiça criminal." riquezas, mas também do escol e da glória."

)
34 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 35

18. Ibid., cap. XVIII, p. 52: "[A Capital] será o Coração políti- blema central da ciência, para os cameralistas, era o problema do
co, que faz viver e mover-se todo o corpo da Província, pelo prin- Estado. De acordo com eles, o objeto de toda teoria social era
cípio fundamental da ciência regente, que forma um inteiro de vá- mostrar como o bem-estar (welfare) do Estado podia ser assegura-
rias peças, sem no entanto arruiná-las." do. Viam no bem-estar do Estado a fonte de todo outro bem-es-
19. Ibid., cap. XXIII, p. 69: "É [ ... ] necessário que o Olho do tar. Toda a sua teoria social se irradiava a partir desta tarefa central:
Príncipe lance seus raios nos procedimentos do seu povo, que ob- prover o Estado de dinheiro vivo (ready means)" (A.W. Smali, The
serve a conduta deste, que possa vigiá-los de perto e que sua sim- Cameralists: The pioneers of German social polity, Londres, Burt
ples presença sirva de freio ao vício, às desordens e à injustiça. Franklin, 1909, p. VIII). Sobre o mercantilismo, cf. infra, aula de 5
Ora, isso só pode ter bom êxito pela união das partes na Metro- de abril, p. 454.
politana." 26. Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Der geschlossene
20. Ibid., pp. 67-72: "Que a presença do Soberano é necessá- Handelsstaat, Tübingen, Cotta I L'État commercial fenné, trad. fr. J.
ria em seus Estados, onde se dá o maior comércio, para ser teste- Gibelin, Paris, Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1940;
munha das ações e do negócio de seus Súditos, mantê-los na nova ed. com introdução e notas de D. Schulthess, Lausanne,
eqüidade e no temor, mostrar-se ao povo e deste ser como o sol. I.:Âge d'homme, "Raison dialectique", 1980. Nessa obra dedicada
que os ilumina com sua presença." ao ministro das Finanças, o economista Struensee, Fichte se ergue
21. Ibid., cap. XXVIIT, pp. 79-87: "Que na Metropolitana a tanto contra o liberalismo como contra o mercantilismo, acusados
gente de Púlpito e que prega deve ser oradores célebres." de empobrecer a maioria da população, aos quais opõe o modelo
22. Ibid., cap. XXVIT, pp. 76-9: "Que há fortes razões para a de um "Estado racional" com fundamento contratual, que contro-
fundação das Academias nas Gdades Capitais, ou Metropolitanas." le a produção e planeje a alocação dos recursos.
23.Ibid., cap. XXV, pp. 72-3: "Que a Capital, perfazer o maior 27. Kristiania: antigo nome da capital da Noruega (Oslo, des-
consumo, também deve ser a sede do comércio." de 1925), reconstruída pelo rei Cristiano Nem 1624, depois do in-
24. Ibid., cap.v; pp. 12-3: "Que a causa essencial e final da ci- cêndio que destruiu a cidade. M. Foucault diz todas as vezes
dade Capital só pode ser a Utilidade pública e que com esse fim ''Kristíana".
ela deve ser a mais opulenta." 28. Fundada por Gustavo Adolfo II em 1619, a cidade foi
25. A cameralística, ou ciência cameral (Cameralwissenschaft), construída com base no modelo das cidades holandesas, em razão
designa a ciência das finanças e da administração que se desen- dos terrenos pantanosos.
volveu, a partir do século XVII, nas "câmaras'' dos príncipes, esses 29. Situada a sudeste de Chinon (lndre-et-Loire), à margem
órgãos de planejamento e de controle burocrático que substituí- do Mable, a cidade foi construída pelo cardeal de Richelieu, que
ram pouco a pouco os conselhos tradicionais. Foi em 1727 que mandou demolir os velhos casebres, no local do domínio patrimo-
essa disciplina obteve o direito de entrar nas Universidades de nial, e a reconstruiu, a partir de 1631, com base num projeto regu-
Halle e de Frankfurt sobre o Oder, tomando-se objeto de ensino lar traçado por Jacques Lemercier (1585-1654). As obras foram di-
para os futuros funcionários do Estado (cf. M. Stolleis, Geschichte rigidas pelo innão deste último, Pierre Lemercier, que fez os pro-
des offentlichen Rechts in Deutschland, 1600-1800, Munique, C. H. jetes do castelo e do conjunto da cidade.
Beck, t. 1, 1988/ Histoire du droit public en Allemagne, 1600-1800, 30. O acampamento romano (castra) era formado por um
trad. fr. M. Senellart, Paris, PUF, 1998, pp. 556-8). Essa criação de quadrado ou um retãngulo, subdividido em diversos quadrados
cadeiras de Oeconomie-Policey und Cammersachen resultava da von- ou retângulos. Sobre a castrametação romana (arte de instalar os
tade de Frederico Guilherme I da Prússia, que se havia proposto exércitos nos acampamentos), cf. a nota detalhadíssima do Nou-
modernizar a administração do reino e acrescentar o estudo da veau Larousse illustré, t. 2, 1899, p. 431. Sobre a retomada desse
economia ao do direito na formação dos futuros funcionários. modelo, no início do século xvn, como condição da disciplina mi-
A.W. Small resume assim o pensamento dos cameralistas: 0 pro- 11
litar e forma ideal dos '"observatórios' da multiplicidade humana"
36 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 11 DE JANEIRO DE 1978 37

- "o acampamento é o diagrama de um poder que age pelo efeito et l'Architecture... , pp. 84-9; cf. igualmente o estudo que lhe consa-
de uma visibilidade geral" -, cf. Surveiller et Punir, pp. 173-4 e fi- gra L. Delattre, in Bulletin de la Société archéologique et historique de
gura 7. A bibliografia citada por Foucault, então, é essencialmente Nantes, t. LI!, 1911, pp. 75-108.
francesa (p. 174, n. 1), com exceção do tratado de J. ). von Wallhau- 36. Jean-Baptiste Monet de Lamarck (1744-1829), autor de
sen, I:Art militaire pour l'infanterie, Francker, llidrick Balck, 1615 Philosophie zoologique (1809); cf. G. Canguilhem, "Le vivant et
(trad. fr. de Kriegskunst zu Fusz por). Th. de Bry; citado p. 172, n. 1). son milieu", in id., La Connaissance de la vie, Paris, Vrin, 1965, p. 131:
Wallhausen foi o primeiro diretor da Schola militaris fundada em "Lamarck sempre fala de meios, no plural, e entende expressa-
Siegen, Holanda, por João de Nassau em 1616. Sobre as caracte- mente por isso fluidos como a água, o ar e a luz. Quando Lamarck
rísticas da "revolução militar" holandesa e sua difusão na Alema- quer designar o conjunto das ações que se exercem de fora sobre
nha e na Suécia, cf. a riquíssima bibliografia fornecida por G. Fàrker, um ser vivo, isto é, o que hoje chamamos de meio, ele nunca diz
The ThirtyYear's War, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1984/ La meio, mas sempre 'circunstâncias influentes'. Por conseguinte, cir-
Guerre de Trente Ans, trad. fr. A. Charpentier, Paris, Aubier, "Collec- cunstâncias é para Lamarck um gênero de que clima, lugar e meio
tion historique", 1987, pp. 383 e 407. são as espécies."
31. P. Leliévre, L'Urbanisme et l'Architecture à Nantes au XVIII' 37. Cf. G. Canguilhem, ibid., pp. 129-30: "Historicamente
sif~cle,tese de doutoramento, Nantes, Librairie Durance, 1942. considerados, a noção de meio e o termo meio foram importados
32. Plan de la vil/e de Nantes et des projets d'embellissement pré- da mecânica para a biologia, na segunda parte do século XVIII. A
sentés par M. Rousseau, architede, 1760, com a seguinte dedicatória: noção mecânica, mas não o termo, aparece com Newton, e o ter-
"lllustrissimo atque omatissimo D. D. Armando Duplessis de Ri- mo meio, com seu significado mecânico, está presente na Encyclo-
chelieu, duci Aiguillon, pari Franciae". Cf. P. Leliévre, op. cit., pp. pédie [Enciclopédia] de D'Aiembert· e de Diderot, no verbete Meio.
89-90: "Uma imaginação tão completamente arbitrária só apre- [... ]Os mecanicistas franceses chamaram de meio o que Newton
senta, na verdade, o interesse da sua desconcertante fantasia." (O entendia por fluido, cujo tipo, para não dizer o arquétipo único, é,
plano da cidade de Nantes, com sua forma de coração, é reprodu- na física de Newton, o éter." E por intermédio de Buffon, explica
zido no verso da página 87.) Cf. também p. 205: "Será absurdo su- Canguilhem, que Lamarck toma emprestado de Newton o mode-
por que a própria idéia de 'circulação' possa ter inspirado essa fi- lo de explicação de uma reação orgânica pela ação de um meio.
gura anatómica, sulcada por artérias? Não levemos mais longe Sobre a emergência da idéia de meio, na segunda metade do sé-
que ele essa analogia limitada ao contorno, esquemático e estili- culo XVIII, através da noção de "forças penetrantes" (Buffon), cf.
zado, do órgão da circulação." M. Foucault, Histoire de la folie ... , op. cit., III, 1, ed. de 1972, pp. 385
33. Étienne-Louis Boullée (1728-1799), arqulteto e desenhis- ss. ("Noção negativa [... ] que aparece no século XVIII, para expli-
ta francês. Preconizava a adoção de formas geométricas inspiradas car as variações e as doenças, muito mais que as adaptações e as
na natureza (ver seus projetos de um Museu, de uma Biblioteca convergências. Como se essas 'forças penetrantes' formassem o
Nacional, de um palácio para a capital de um grande império ou verso, o negativo do que virá a ser, posteriormente, a noção posi-
de um túmulo em homenagem a Newton, in ). Starobinski, 1798. tiva de meio", p. 385).
Les Emblemes de la raison, Paris, Flanunarion, 1973, pp. 62-7). 38. G. Canguilhem, in op. cit., p. 130: "O problema a resolver
34. Oaude-Nicolas Ledoux (1736-1806), arquiteto e desenhis- para a mecânica na época de Newton era o da ação à distância de
ta francês, autor de L'Architecture considérée sous Ie rapport de l'art, indivíduos físicos distintos."
des moeurs et de la législation, Paris, ed. do autor, 1804. 39. Moheau, Recherches et Considérations sur la population de la
35. Plan de la vil/e de Nantes, avec les changements et les accrois- France, Paris, Moutard, 1778; reed. com introd. e quadro analítico
sements par le sieur de Vigny, architecte du Roy et de la Société de Lon- por R. Gonnard, Paris, P. Geuthner, "Collection des économistes et
dres, intendant des bâtiments de Mgr le duc d'Orléans.- Fait par nous, des réformateurs sociaux de la France", 1912; reed. anotada por E.
architede du Roy, à Paris, le 8 avril1755. Cf. P. Leliévre, I:Urbanisme Vrlquin, Paris, INED/PUF, 1994. Segundo J.-0. Perrot, Une histoire
38 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

intellectuelle de i' économie politique, XVII'-XVI!l' siécle, Paris, Éd. de AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978
EHESS, "Civilisations et Sociétés", 1992, pp. 175-6, esse livro
constitui "o verdadeiro 'espírito das leis' demográficas do século
XVITI". A identidade do autor ("Moheau", sem nenhum prenome)
foi objeto de uma longa controvérsia desde a publicação da obra. Características gerais dos dispositivos de segurança (II):
Certo número de comentadores viram aí um pseudônimo detrás a relação com o acontecimento: a arte de governar e o trata-
do qual estaria dissimulado o barãoAuget de Montyon, sucessiva- mento do aleatório. - O problema da escassez alimentar nos sé-
mente intendente de Riom, de Aix e de La Rochelle. Th.rece esta- culos XVII e XVIII. -Dos mercantilistas aos fisiocratas.- Di-
belecido hoje em dia que o livro foi mesmo escrito por Jean-Bap- ferenças entre dispositivo de segurança e mecanismo disciplinar
tiste Moheau, que foi seu secretário até 1775 e morreu guilhotina- na maneira de tratar o acontecimento. -A nova racionalidade
do em 1794. a. R. Le Mée, "Jean-Baptiste Moheau (1745-1794) et governamental e a emergência da "população". - Conclusão
les Recherches... Un auteur énigmatique ou mythique ?", in Moheau, sobre o liberalismo: a liberdade como ideologia e técnica de
Recherches et Considérations ... , ed. de 1994, pp. 313-65. governo.
40. Recherches et Considérations ..., livro li, parte 2, cap. XVII:
"Da influência do Governo sobre todas as causas que podem de-
terminar os progressos ou as perdas da população", ed. de 1778,
pp. 154-5; ed. de 1912, pp. 291-2; ed. de 1994, p. 307. A frase ter- Tínhamos começado a estudar um pouco o que pode-
mina assim:"[... ] e que não há nenhuma relação entre os graus de riamos chamar de forma, simplesmente de forma de alguns
frio e de calor nas mesmas regiões em épocas diferentes". dos dispositivos importantes de segurança. Da última vez,
41. Ibid.: "VIrgílio nos surpreende quando fala do vinho que
disse duas palavras a propósito das relações entre o territó-
gelava na Itália nos tonéis; certamente o campo de Roma não era
o que é hoje na época dos romanos, que melhoraram a habitação rio e o meio. Procurei lhes mostrar através de alguns textos,
de todos os lugares que submeteram à sua dominação" {ed. de de um lado, de alguns projetos e também de algumas urba-
1778, p. 155; ed. de 1912, p. 292; ed. de 1994, p. 307). nizações reais de cidades no século XVIII, corno o soberano
42. Ibid., pp. 157,293,307-8. do território tinha se tomado arquiteto do espaço discipli-
nado, mas também, e quase ao mesmo tempo, regulador de
um meio no qual não se trata tanto de estabelecer os lirni-
tes, as fronteiras, no qual não se trata tanto de determinar
localizações, mas, sobretudo, essencialmente de possibilitar,
garantir, assegurar circulações: circulação de pessoas, circu-
lação de mercadorias, circulação do ar, etc. Para dizer a ver-
dade, essa função estruturante do espaço e do território
pelo soberano não é coisa nova no século XVIII. Afinal, que
soberano não quis fazer urna ponte sobre o Bósforo ou re-
mover montanhas?* Mas resta saber também, justamente,
no interior de que economia geral de poder se situam esse

* Em vez dessa frase, figuram no manuscrito estes três nomes:


"Nemrod, Xerxes, Yu Kong".
AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 41
40 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

portar - relativamente - no meio rural. Em todo caso, ela


projeto e essa estruturação do espaço e do_ território. Trata- aparece no meio urbano e acarreta quase imediatamente, e
se de marcar um território ou de conquista-lo? Trata-se de com uma grande probabilidade, a revolta. Ora, é claro, des-
disciplinar súditos e fazê-los p:oduzir riquezas ou trata-se de as experiências do século XVII, a revolta urbana é a gran-
de constituir para uma populaçao algo que seja um me10 de de coisa a evitar para o governo. Flagelo do lado da popu-
vida, de existência, de trabalho? lação, catástrofe, crise, se preferirem, do lado do governo.
Gostaria agora de retomar essa análise dos dispositivos De um modo geral, se se quiser simplesmente repro-
de segurança a partir de outro exemplo e para tentar precl- duzir a espécie de horizonte filosófico-politico sobre cujo
sar um pouco outra coisa: não mais a relação com o espaço fundo a escassez alimentar aparece, direi que [esta], como
e o meio, mas a relação do governo com o acontecimento*. todos os flagelos, é retomada nas duas categorias mediante
Problema do acontecimento. Vou tomar diretamente um as quais o pensamento político tentava pensar a inevitável
exemplo, o da escassez. A escassez alimentar, que não é desgraça. [Em primeiro lugar], o velho conceito antigo, gre-
exalamente a fome, é- como definia um economista da se- co-latino, de fortuna, a má fortuna. Afinal de contas, a es-
gunda metade do século XVIII, de que já voltaremos a fa- cassez alimentar é a má sorte no estado puro, já que seu fa-
lar -, é "a insuficiência atual da quantidade de cererus ne- tor mais imediato, mais aparente, é precisamente a intem-
cessária para fazer uma nação subsistir111 • Ou seja, a escas- périe, a seca, a geada, o excesso de umidade, em todo caso
sez alimentar é um estado de raridade de gêneros que tem algo sobre o que não se tem controle. E essa má fortuna,
a propriedade de gerar um processo. que a traz de volta e,que como vocês sabem, não é simplesmente uma constatação de
tende, se não houver outro mecarusmo que venha dele-la, impotência. É todo um conceito político, moral, cosmológi-
a prolongá-la e acentuá-la. É um estado de raridade, de co igualmente que, desde a Antiguidade até Maquiavel e,
fato, que faz os preços subirem. Quanto mais os preços so- por fim, até Napoleão, foi não apenas uma maneira de pen-
bem, mais os que detêm os objetos escassos procuram es- sar filosoficamente a desgraça política, mas até mesmo um
tocá-los e açambarcá-los para os preços subirem mrus run- esquema de comportamento no campo político. O respon-
da, e assim até o momento em que as necessidades mais sável político na antiguidade greco-romana, na Idade Mé-
elementares da população deixam de ser satisfeitas. A es- dia, até Napoleão inclusive, e talvez até mesmo além dele,
cassez alimentar é, para os governantes, em todo caso p~ra joga com a má sorte, e, como Maquiavel mostrou, há toda
o governo francês no século XVII e no, século ~ o ~po uma série de regras de jogo em relação à má fortuna'. Logo,
de acontecimento a evitar, por certo numero de razoes ob- a escassez alimentar aparece como uma das formas funda-
vias. Só vou recordar a mais clara e, para o governo, a rnrus mentais da má fortuna para um povo e para um soberano.
dramática. A escassez alimentar é um fenômeno cujas con- Em segundo lugar, a outra matriz filosófica e moral que
seqüências imediatas e mais sensíveis aparecem, claro, ini- permite pensar a escassez alimentar é a má natureza do ho-
cialmente no meio urbano, porque afinal de contas a escas- mem. Má natureza que vai se ligar ao fenômeno da escas-
sez alimentar é sempre relativamente menos dificil de su- sez alimentar na medida em que esta vai aparecer como um
castigo'. Mas, de uma maneira mais concreta e mais preci-
sa, a má natureza do homem vai influir sobre a escassez ali-
* M. Foucault se detém aqui para fazer uma observação sobre os mentar, vai aparecer como um dos seus motivos na medida
gravadores: "Não sou contra nenhum aparelho, mas não sei - descul- em que a avidez dos homens - sua necessidade de ganhar,
pem-me dizer isso -, tenho uma alergiazinha ... "
42 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 43

seu desejo de ganhar cada vez mais, seu egoísmo- vai pro- vender antes de esperar a elevação dos preços e, desde as
vocar todos esses fenômenos de estocagem, açambarcamen- primeiras colheitas, vai-se estabelecer todo um sistema de
to, retenção de mercadoria, que vão acentuar o fenômeno vigilância que vai possibilitar o controle dos estoques, im-
da escassez alimentar•. O conceito juridico-moral da má pedir a circulação de um país a outro, de uma província a
natureza humana, da natureza decaída, o conceito cosmo- outra. Vai-se impedir o transporte marítimo de cereais. Tudo
lógico-político da má fortuna são os dois marcos gerais no isso, todo esse sistema juridico e disciplinar de limitações,
interior dos quais se pensa a escassez alimentar. de pressões, de vigilância permanente, todo esse sistema é
De uma maneira muito mais precisa e institucional, organizado para quê? O objetivo é, obviamente, que os ce-
nas técnicas de governo, de gestão política e econômica de reais sejam vendidos ao preço mais baixo possível, que os
uma sociedade como a sociedade francesa nos séculos XVII camponeses tenham por conseguinte o menor lucro possí-
e XVIII, o que se vai fazer contra a escassez alimentar? Es- vel e que a gente das cidades possa, assim, se alimentar ao
tabeleceu-se contra ela, e desde há muito tempo, todo um preço mais baixo possível, o que vai ter por conseqüência
sistema que direi ao mesmo tempo juridico e disciplinar, que os salários pagos a ela serão também os mais baixos
um sistema de legalidade e um sistema de regulamentos possíveis. Essa regulação por baixo do preço de venda dos
que se destina essencialmente a impedir a escassez alimen- cereais, do lucro camponês, do custo de compra para as pes-
tar, isto é, não simplesmente detê-la quando ela se produz, soas, do salário, vocês sabem que é evidentemente o gran-
não simplesmente extirpá-la, mas literalmente preveni-la: de princípio político que foi desenvolvido, organizado, sis-
que ela não possa ocorrer de forma alguma. Sistema juridi- tematizado durante todo o periodo que podemos chamar de
co e disciplinar que, concretamente, adquire as formas que mercantilista, se entendermos por mercantilismo essas téc-
vocês conhecem: clássicas - limitação de preços, limitação nicas de governo e de gestão da economia que praticamen-
principalmente do direito de estocagem (proibição de esto- te dominaram a Europa desde o ínício do século XVII até o
car, logo necessidade de vender imediatamente), limitação Inicio do século XVIII. Esse sistema é essencialmente um
da exportação* (proibição de enviar cereais para o exterior), sistema antiescassez alimentar, já que com esse sistema de
tendo como única restrição a isso a limitação da extensão proibições e de impedimentos, o que vai acontecer?Vai acon-
dos cultivos, na medida em que, se os cultivos de cereais fo- tecer que, por um lado, todos os cereais serão colocados no
rem demasiado extensos, demasiado abundantes, o exces- mercado, e o mais depressa possível. Sendo [os cereais] co-
so de abundância acarretará uma queda dos preços tal que locados no mercado o mais depressa possível, o fenômeno
os camponeses terão grandes perdas. Portanto toda uma de escassez será relativamente limitado e, além do mais, as
série de limitações - de preços, de estocagem, da exportação proibições à exportação*, as proibições de estocagem e de
e do cultivo. Sistema de pressões também, pois vai-se pres- elevação de preços vão impedir o que mais se teme: que os
sionar as pessoas para que semeiem ao menos uma quan- preços disparem nas cidades e que as pessoas se revoltem.
tidade mínima, vai-se proibir o cultivo disto ou daquilo. Vai- Sistema antiescassez alimentar, sistema essencialmente
se obrigar as pessoas, por exemplo, a arrancar a vinha para centrado num acontecimento eventual, um acontecimento
forçá-las a semear cereais. Vai-se forçar os comerciantes a que poderia se produzir e que se procura impedir que se

"' M.F.: importação * M.F.: importação

J
44 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 45

produza antes que ele se inscreva na realidade. Inútil insis- governo econôrnico' o princípio da liberdade de comércio e
tir nos fracassos bem conhecidos, mil vezes constatados, de circulação dos cereais. Conseqüência teórica, ou melhor,
desse sistema. Fracassos que consistem no seguinte: primei- conseqüência prática de um princípio teórico fundamental,
ro, essa manutenção do preço dos cereais no nível mais bai- que era o dos fisiocratas, a saber, que o único ou pratica-
xo produz este primeiro efeito, de que, mesmo quando há mente o único produto líquido que podia ser obtido numa
abundância de cereais, ou melhor, principalmente quando nação era o produto camponês'. A bem da verdade, não se
há abundância de cereais, os camponeses vão se arruinar, pode negar que a liberdade de circulação dos cereais é efe-
pois dizer abundância de cereais é dizer tendência dos pre- tivamente uma das conseqüências teóricas lógicas do siste-
ços à baixa e, finalmente, o preço* do trigo para os campo- ma fisiocrático. Quer tenha sido o próprio pensamento fi-
neses vai ser inferior aos investimentos que eles fizeram siocrático, quer tenham sido os fisiocratas com sua influên-
para obtê-lo; logo, ganho que tende a zero, às vezes que até cia que a tenham imposto ao governo francês nos anos
cai abaixo do custo da produção para os camponeses. Em 1754-1764, mesmo assim é um pouco verdade, embora sem
segundo lugar, segunda conseqüência, vai ser que, não ten- dúvida não seja suficiente. Mas creio que o que seria de fato
do obtido, nem nos anos em que o trigo é abundante, lucro inexato é considerar que essa forma de opção política, essa
suficiente com a sua colheita, os camponeses vão se ver fa- programação da regulação econôrnica não seja nada mais
dados e constrangidos a plantar pouco. Quanto menos lu- que a conseqüência prática de uma teoria econôrnica. Creio
cro tiverem, menos vão poder semear. Esse plantio escasso ser possível mostrar facilmente que o que aconteceu então
vai ter como conseqüência imediata que bastará a menor ir- e que deu ensejo aos grandes editas ou "declarações" dos
regularidade climática, quer dizer, a menor oscilação climá- anos 1754-1764, o que aconteceu então foi, na realidade,
tica, frio demais, estiagem demais, umidade demais, para que talvez através e graças ao intermédio, ao apoio dos fisiocra-
essa quantidade de trigo que é justo o suficiente para ali- tas e da sua teoria, foi na verdade toda uma mudança, ou
mentar a população caia abaixo das normas requeridas e a melhor, uma fase de uma grande mudança nas técnicas de
escassez alimentar apareça no ano seguinte. De modo que, governo e um dos elementos dessa instauração do que cha-
a cada instante, essa política do preço mais baixo possível marei de dispositivos de segurança. Em outras palavras,
expõe à escassez alimentar e, precisamente, a esse flagelo vocês podem ler o princípio da livre circulação dos cereais
que se procurava conjurar. seja como a conseqüência de um campo teórico, seja como
[Perdoem-me o] caráter ao mesmo tempo por demais um episódio na mutação das tecnologias de poder e como um
esquemático e um tanto austero disso tudo. Como as coisas episódio na implantação dessa técnica dos dispositivos de
vão se passar no século xvm, quando se procurou destra- segurança que me parece característica, uma das caracterís-
var esse sistema? Todo o mundo sabe, e aliás é exalo, que ticas das sociedades modernas.
foi do interior de uma nova concepção da economia, talvez Há uma coisa, em todo caso, que é verdade: é que, mui-
até do interior desse ato fundador do pensamento econõ- to antes dos fisiocratas, certo número de governos haviam
mico e da análise econômica que é a doutrina fisiocrática, de fato pensado que a livre circulação dos cereais era não só
que se começou a colocar como princípio fundamental de uma melhor fonte de lucro, mas certamente um mecanismo
de segurança muito melhor contra o flagelo da escassez ali-
mentar. Era em todo caso a idéia que os políticos ingleses
* M.F.: o preço de custo tiveram bem cedo, desde o fim do século XVIL já que em

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46 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 47

1689 eles haviam criado e feito o Parlamento adotar um con- ser diretamente fisiocratas, os discípulos de Gournay" por
junto de leis que, em suma, impunha, admitia a liberdade exemplo, tinham sustentado essa causa. 1764 é, portanto, a
de circulação e de comércio dos cereais, com um sustentá- liberdade dos cereais. Infelizmente, o edito é de agosto de
culo e um corretivo, entretanto. Em primeiro lugar, a liber- [17]64. Em setembro de [17]64, isto é, no mesmo ano, algu-
dade de expor:ação, que d~a permitir em periodo fasto, mas semanas depois, as más colheitas na Guyenne fazem
ou seja, em penodo de abundancia e de boas safras, susten- os preços subirem a uma velocidade astronômica, e já co-
tar o preço do trigo, dos cereais em geral, que corria o risco meça a surgir a questão de se não se deve voltar atrás nes-
de desabar pelo próprio fato dessa abundância. Para sus- sa liberdade dos cereais. Com isso, vamos ter uma terceira
tentar o preço, n~o só se permitia a exportação, mas ajuda- campanha de discussões, defensiva desta vez, em que os fi-
va-se a exportaçao por um s1stema de incentivos, instituin- siocratas e os que sustentam os mesmos princípios sem ser
do um corretivo, um adjuvante a essa liberdade'. E, em se- fisiocratas vão ser obrigados a defender a liberdade que fi-
~ndo lug~ para evitar igualmente que houvesse, em pe- zeram quase integralmente reconhecer em 1764'".
nedo favoravel, uma importação grande demais de trigo Portanto temos todo um pacote de textos, de projetes,
pela Inglaterra, estabeleceram-se taxas de importação, de tal de programas, de explicações. Vou me referir simplesmente
mane1ra que ~ excesso de abundância vindo dos produtos ao que é, ao mesmo tempo, o mais esquemático, o mais cla-
1mportados nao fizesse os preços novamente caírem". Logo, ro e que teve, de resto, uma importância considerável. É um
o bom preço era obtido por essas duas séries de medidas. texto que data de 1763, que se chama Carta de um negocian-
Esse modelo inglês de 1689 vai ser o grande cavalo de te sobre a natureza do comércio dos cereais. Foi escrito por um
batalha do~ teóricos da economia, mas também dos que, de sujeito que se chamava Louis-Paul Abeille", importante ao
uma manerra ·ou outra, tinham uma responsabilidade ad- mesmo tempo pela influência que teve seu texto e pelo fato
ministrativa, política, econômica na França do século xvrrr. de que, discípulo de Goumay, tinha em suma unificado a
E foram então os trinta anos durante os quais o problema maioria das posições fisiocráticas. Ele representa portanto
da_ liberdade dos cerea1s fm um _dos problemas políticos e uma [espécie] de ponto de articulação no pensamento eco-
teo~cos mruor~s n~ França do seculo XVITI. Três fases, por nômico dessa época. Então, [se tomarmos] esse texto como
asslffi dizer: pnmerro, antes de 1754, ou seja, no momento referência- mas ele é simplesmente exemplar de toda uma
em que o velho sistema juridico-disciplinar ainda vigora série de outros, e, com algumas modificações, creio que en-
plenamente com suas conseqüências negativas, toda uma contrariamos nos outros textos os mesmos princípios que
fase de polémicas; 1754, adoção na França de um regime os aplicados por Abeille na sua Carta de um negociante-, no
que é, em linhas gerais, moldado quase tal e qual no da In- fundo, o que é que ele faz? Mais uma vez, poderiamos reto-
glaterra, ou seja, uma liberdade relativa mas corrigida e, de mar o texto de Abeille numa análise do campo teórico, pro-
certaf?rma, s~stentada"; depois, de 1754 a 1764, chegada curando descobrir quais são os princípios diretores, as re-
dos fis10cratas , mas somente nesse momento, à cena teó- gras de formação dos conceitos, dos elementos teóricos, etc.,
rica e política, toda uma série de polémicas a favor da liber- e seria preciso sem dúvida retomar a teoria do produto lí-
dade dos cereais; e, enfim, os editos de maio de 1763" e de quido'". Mas não é assim que eu gostaria de retomar esse tex-
agosto d~ 1764", que estabelecem a liberdade quase total to. Não, portanto, como no interior de uma arqueologia do
dos c~rerus, col!l apena~.algumas restrições. Por conseguin- saber, mas na linha de uma genealogia das tecnologias de
te, VJtona dos fis10cratas , mas também de todos os que, sem poder. E então creio que poderiamos reconstituir o fundo-
48 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 49

namento do texto, em função não das regras de formação tecimento que vamos procurar entender. E é nessa realida-
desses conceitos, mas dos objetivos, das estratégias a que ele de do cereal, em toda a sua história e com todos os vaivéns
obedece e das programações de ação política que sugere. e acontecimentos que podem de certo modo fazer sua histó-
Creio que a primeira coisa a aparecer seria a seguinte: ria oscilar ou se mexer em relação a uma linha ideal, é nes-
que, no fundo, para Abeille, essa mesma coisa que se devia sa realidade que se vai tentar enxertar um dispositivo gra-
evrtar a qualquer preço, antes mesmo que ela se produzis- ças ao qual as oscilações da abundância e do preço baixo, da
se, no sistema jurídico-disciplinar, a saber, a escassez e a ca- escassez e da carestia vão se ver, não impedidas de ante-
restia, esse mal a evitar na visão de Abeille e dos fisiocratas, mão, não proibidas por um sistema juridico e disciplinar, que,
e dos que pensam da mesma maneira, no fundo não é ne- impedindo isto, forçando aquilo, deve evitar que elas ocor-
nhum mal. E não se deve pensá-lo como um mal, ou seja, ram. O que Abeille e os fisiocratas e teóricos da economia
deve-se considerá-lo como um fenômeno que é, primeira- no século XVIII procuraram obter foi um dispositivo que,
mente, natural e, por conseguinte, em segundo lugar, que conectando-se à própria realidade dessas oscilações, vai
não é nem bom nem ruim. Ele é o que é. Essa desqualifica- atuar de tal modo que, por uma série de conexões com ou-
ção em termos de moral ou simplesmente em termos de tros elementos da realidade, esse fenômeno, sem de certo
bom ou de ruim, de coisas a evitar ou a não evitar, essa des- modo nada perder da sua realidade, sem ser impedido, se
qualificação implica que a análise não vai ter por alvo prin- encontre pouco a pouco compensado, freado, finalmente li-
cipal o mercado, isto é, o preço de venda do produto em mitado e, no último grau, anulado. Em outras palavras, é um
função da oferta e da procura, mas vai de certo modo recuar trabalho no próprio elemento dessa realidade que é a osci-
um ponto ou sem dúvida até vários pontos e tomar por ob- lação abundância/escassez, carestia/preço baixo, é apoian-
jeto, não tanto o fenômeno escassez-carestia, tal como do-se nessa realidade, e não tentando impedir previamen-
pode aparecer no mercado, já que é o mercado, o espaço te, que um dispositivo vai ser instalado, um dispositivo que
mesmo do mercado que faz aparecer a escassez e a cares- é precisamente, a meu ver, um dispositivo de segurança e
tia, mas o que chamarei de história do cereal, desde o mo- não mais um sistema jurídico-disciplinar.
mento em que o cereal é plantado, com o que isso implica Em que vai consistir esse dispositivo que se conecta
de trabalho, de tempo gasto e de terras semeadas- de custo, portanto à realidade de certa forma reconhecida, aceita,
por conseguinte. O que acontece com o cereal desde esse nem valorizada nem desvalorizada, reconhecida simples-
momento até o momento em que terá finalmente produzi- mente como natureza, qual é o dispositivo que, conectan-
do todos os lucros que pode produzir? A unidade de análi- do-se a essa realidade de oscilação, vai permitir regulá-la?
se não será mais, portanto, o mercado com seus efeitos es- A coisa é conhecida, vou simplesmente resumi-la. Em pri-
cassez-carestia, mas o cereal com tudo o que lhe pode meiro lugar, não visar o menor preço possível, mas sim au-
acontecer e lhe acontecerá naturalmente de certo modo, em torizar, propiciar até um aumento do preço do cereal. Esse
todo caso em função de um mecanismo e de leis em que aumento do preço do cereal, que pode ser proporcionado
vão interferir tanto a qualidade do terreno, [como] o cuida- por meios um pouco artificiais, como no método inglês, em
do com que é cultivado, as condições climáticas de sequi- que as exportações eram sustentadas por incentivos, em
dão, calor, umidade, e enfim a abundância ou a escassez, a que se fazia pressão sobre as importações, taxando-as, po-
colocação no mercado, etc. É muito mais a realidade do ce- de-se utilizar esse meio para fazer o preço do cereal subir,
real do que o medo da escassez alimentar que vai ser o acon- mas também se pode - e é essa a solução liberal (tornarei

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50 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

daqui a pouco sobre essa palavra, "liberal") à qual se ali-


AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978

ção dos preços vai ter como conseqüência necessária uma


51
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nham os fisiocratas- [suprimir] todas as proibições de esto- diminuição do risco de escassez alimentar e uma estabiliza-
cagem, de modo que as pessoas poderão, como quiserem, ção do preço ou uma redução do ritmo de aumento. A pro-
quando quiserem, na quantidade que desejarem, por maior babilidade da escassez alimentar e a probabilidade da ele-
que seja, estocar seu cereal e retê-lo, aliviando assim o mer- vação dos preços vão se ver igualmente reduzidas.
cado quando houver abundãncia.Vão ser igualmente supri- Suponhamos agora, a partir desse esquema em que os
midas todas as proibições de exportação, de modo que as dois anos consecutivos foram favoráveis, o primeiro muito
pessoas terão direito, se tiverem vontade, quando os preços favorável com a elevação de preço, o segundo suficiente-
externos forem favoráveis, de mandar o cereal para o exte- mente favorável-logo, temos nesses casos redução da ele-
rior. Aqui também novo alívio do mercado, desobstrução, e vação dos preços -, suponhamos agora que o segundo ano
com isso, quando houver abundãncia, a possibilidade de es- seja ao contrário um ano de pura e franca escassez alimen-
tocagem, de um lado, e a permissão de exportação, do ou- tar. Eis comoAbeille raciocina nesse caso. No fundo, diz ele,
tro, vão manter os preços. Teremos então uma coisa que é pa- o que é uma escassez alimentar? Nunca é a ausência pura
radoxal em relação ao sistema precedente, que era impossí- e simples, a ausência total dos meios de subsistência neces-
vel e indesejável nele, a saber, que, quando houver abun- sários a uma população. Porque, simplesmente, ela morre-
dãncia, haverá ao mesmo tempo preços relativamente altos. ria. Ela morreria em alguns dias ou algumas semanas, e, diz
Acontece que gente como Abeille, por exemplo, e todos os ele, nunca se viu uma população desaparecer por falta de
que escreveram nessa época, escreviam num momento em comida. A escassez alimentar, diz ele, é Huma quimera" 19.
que, justamente, uma série de boas safras entre 1762 e 1764 Vale dizer que, qualquer que seja a pequena quantidade da
permitia tomar esse exemplo favorável. colheita, sempre há com que alimentar a população por uns
Portanto os preços sobem mesmo em período de abun- dez meses, ou oito meses, ou seis meses, ou seja, pelo me-
dãncia. A partir desse aumento dos preços, o que vamos nos por certo tempo a população vai poder viver. Oaro, a
ter? Primeiro, uma extensão do cultivo. Como foram bem escassez alimentar vai se anunciar bem cedo. Os fenôme-
remunerados na safra anterior, os camponeses poderão dis- nos a resolver não vão se produzir unicamente quando, no
por de muito grão para semear e fazer os gastos necessários fim do sexto mês, as pessoas não tiverem mais o que comer.
para um grande plantio e um bom cultivo. Com isso, depois Desde o início, desde o momento em que se percebe que a
dessa primeira safra bem paga, aumentam as probabilida- safra vai ser ruim, um certo número de fenômenos e de os-
des da safra seguinte ser boa. Mesmo que as condições cli- cilações vai se produzir. E, imediatamente, a elevação dos
máticas não sejam muito favoráveis, a maior extensão das preços, que os vendedores logo calcularam da seguinte ma-
terras semeadas, o melhor cultivo compensarão essas más neira, dizendo-se: ano passado, com tal quantidade de tri-
condições e haverá maiores probabilidades de a escassez go, obtive por cada saca de trigo, cada sesteiro de trigo, tal
alimentar ser evitada. Mas, ampliando assim o cultivo, o soma; este ano, tenho duas vezes menos trigo, logo vou
que vai acontecer? Vai acontecer que essa primeira elevação vender cada sesteiro duas vezes mais caro. E os preços so-
dos preços não será acompanhada por uma elevação seme- bem no mercado. Mas, diz Abeille, deixemos essa alta de
lhante e de mesma proporção no ano seguinte, porque, afi- preços se dar. Não é isso que importa. A partir do momen-
nal, quanto maior a abundância, os preços evidentemente to em que as pessoas sabem que o comércio é livre - é livre
tenderão a se estabilizar, de modo que uma primeira eleva- dentro do país, livre também de um país ao outro -, elas sa-
52 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 53

bem perfeitamente que ao fim do sexto mês as importações co), aquilo que o vai pouco a pouco corrigir, compensar, frear
vão ocupar o lugar do trigo que falta no paÍS, Ora, as pes- e finalmente anular, Ou seja, é a alta que produz a baixa, A
soas que têm trigo e que podem vendê-lo, e que teriam a escassez alimentar será anulada a partir da realidade desse
tentação de retê-lo aguardando esse tal sexto mês ao fim do movimento que leva à escassez alimentar, De modo que,
qual os preços deveriam disparar, não sabem quanto trigo numa técnica como esta de liberdade pura e simples da cir-
vai poder vir dos países exportadores e, portanto, chegar no culação de cereais, não pode haver escassez alimentar, Como
país, Não sabem se, afinal de contas, no sexto mês não vai diz Abeille, a escassez alimentar é uma quimera,
haver uma quantidade tão grande de trigo que os preços Essa concepção dos mecanismos do mercado não é
desabarão, Logo, em vez de esperar esse sexto mês, em que simplesmente a análise do que acontece, É ao mesmo tem-
não sabem se os preços não vão baixar, as pessoas vão pre- po urna análise do que acontece e uma programação do que
ferir aproveitar, desde o início, desde o anúncio da safra deve acontecer, Ora, para fazer essa análise-programação é
ruim, a pequena alta de preços que se produz, Vão pôr seu necessário um certo número de condições, Vocês puderam
trigo no mercado e não vai haver esses fenômenos que se identificá-las de passagem, Primeiro, a análise* teve de ser
observam agora, em tempos de regulamentação, esses com- consideravelmente ampliada, Primeiro, ela tem de ser am-
portamentos de pessoas que retêm o trigo a partir do mo- pliada do lado da produção, Mais uma vez, não se deve con-
mento em que se anuncia uma safra ruim, Portanto a alta siderar simplesmente o mercado, mas o ciclo inteiro, desde
de preços vai ocorrer, mas logo vai se estabilizar ou alcan- os atos produtores iniciais até o lucro final, O lucro do agri-
çar o teto, na medida em que todo o mundo vai entregar cultor faz parte desse conjunto que é preciso, ao mesmo
seu trigo na perspectiva das tais importações, quem sabe tempo, levar em conta, tratar ou deixar desenvolver-se, Em
maciças, que vão se produzir a partir do sexto mês", segundo lugar, ampliação do lado do mercado, porque não
Do lado dos exportadores dos países estrangeiros, va- se trata simplesmente de considerar um mercado, o merca-
mos ter o mesmo fenômeno, quer dizer, se souberem que do interno da França, é o mercado mundial de cereais que
na França há uma escassez alimentar, os exportadores in- deve ser levado em conta e posto em relação com cada
gleses, alemães, ete,, vão querer aproveitar as elevações de mercado no qual o cereal pode ser vendido, Não basta por-
preços, Mas eles não sabem que quantidade de trigo virá tanto pensar nas pessoas que vendem e que compram na
para a França dessa maneira, Não sabem de que quantida- França num mercado dado, É preciso pensar em todas as
de de trigo seus concorrentes dispõem, quando, em que quantidades de cereal que podem ser postas à venda em to-
momento, em que proporção eles vão levar seu trigo e, por dos os mercados e em todos os países do mundo, Amplia-
conseguinte, também não sabem se, esperando demais, não ção portanto da análise do lado da produção, ampliação do
farão um mau negócio, Donde a tendência, que terão, de lado do mercado, [Em terceiro lugar,] ampliação também
aproveitar a alta imediata de preços para lançar seu trigo do lado dos protagonistas, na medida em que, em vez de lhes
nesse mercado para eles estrangeiro, que é a França, e com impor regras imperativas, vai -se procurar identificar, com-
isso o trigo vai afluir na medida mesma de sua escassez", preender, conhecer como e por que eles agem, qual o cál-
Ou seja, é o fenômeno escassez-carestia induzido por uma culo que fazem quando, diante de uma alta dos preços, eles
safra ruim num dado momento que vai acarretar, por toda
uma série de mecanismos que são ao mesmo tempo coleti"
vos e individuais (tomaremos sobre esse ponto daqui a pou- * M. Foucault acrescenta: a consideração
54 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 55

retêm os cereais, que cálculo, ao contrário, vão fazer quando dade, de certo modo, nos indivíduos e na população em ge-
sabem que há liberdade, quando não sabem que quantida- ral. Agora já não há escassez alimentar no que concerne à
de de cereal vai chegar, quando hesitam em prever se have- população. Mas o que isso quer dizer? Isso quer dizer que
rá alta ou baixa do cereal. É isso tudo, isto é, esse elemento essa freada da escassez alimentar é obtida por um certo
de comportamento plenamente concreto do homo oeconomi- ''laisser-faire", por um certo "laisser-passer" 22, um certo "an-
cus, que deve ser levado igualmente em consideração. Em dar" [allerj, no sentido de "deixar as coisas andarem". O que
outras palavras, uma economia, ou uma análise econômico- vai fazer que se deixe os preços subirem onde eles tende-
política, que integre o momento da produção, que integre o rem a subir. Vai-se deixar que se crie e se desenvolva esse
mercado mundial e que integre enfim os comportamentos fenômeno de escassez-carestia neste ou naquele mercado,
econômicos da população, produtores e consumidores. em toda uma série de mercados, e é isso, essa realidade
Não é só isso. Essa nova maneira de conceber as coisas mesma à qual se deu a liberdade de se desenvolver, é esse
e de programá-las implica algo importantíssimo em relação fenômeno que vai acarretar justamente sua autofrenagem e
a esse acontecimento que é a escassez alimentar, em rela- sua auto-regulação. De modo que já não haverá escassez
ção a esse acontecimento-flagelo que é a escassez-carestia, alimentar em geral, desde que haja para toda uma série de
com sua eventual conseqüência, a revolta. No fundo, o fla- pessoas, em toda urna série de mercados, uma certa escas-
gelo, a escassez alimentar, tal como se concebia até então, sez, uma certa carestia, uma certa dificuldade de comprar
era um fenômeno ao mesmo tempo individual e coletivo: as trigo uma certa fome, por conseguinte, e afinal de contas é
pessoas passavam fome, populações inteiras passavam bem'possível que algumas pessoas morram de fome. Mas~
fome, a nação passava fome, e era precisamente isso, essa deixando essas pessoas morrerem de fome que se podera
espécie de solidariedade imediata, de grande abrangência fazer da escassez alimentar uma quimera e impedir que ela
do acontecimento que constituía seu caráter de flagelo. se produza com aquele caráter maciço de flagelo que a ca-
Ora, na análise que venho de lhes fazer e no programa eco- racterizava nos sistemas precedentes. De modo que o acon-
nômico-polítíco que é seu resultado imediato, o que vai tecimento-escassez é assim dissociado. A escassez-flagelo
acontecer? Vai acontecer que, no fundo, o acontecimento desaparece, mas a escassez que faz os indivíduos morrerem
será dissociado em dois níveis. De fato, podemos dizer que não só não desaparece, como não deve desaparecer.
graças a essas medidas, ou melhor, graças à supressão do Temos portanto dois níveis de fenômenos. Não nível
jugo jurídico-disciplinar que enquadrava o comércio de ce- coletivo e nível individuaL porque afinal de contas não é sim-
reais, no cômputo geral, como dizia Abeille, a escassez ali- plesmente um individuo que vai morrer, ou em ;odo caso
mentar se toma uma quimera. Patenteia-se que, de um sofrer, com essa escassez de cereais. É toda uma sene de m-
lado, ela não pode existir e que, quando existia, longe de ser divíduos. Mas vamos ter uma cesura absolutamente funda-
uma realidade, uma realidade de certo modo natural, nada mental entre o nível pertinente à ação econômico-política
mais era que o resultado aberrante de certo número de me- do governo, e esse nível é o da população, e outro nível, que
didas artificiais, elas mesmas aberrantes. Desde então, por- vai ser o da série, da multiplicidade dos indivíduos, nível
tanto, já não há escassez alimentar. Não vai mais haver es- esse que não vai ser pertinente, ou antes, só será pertinen-
cassez alimentar como flagelo, não vai mais haver esse fe- te na medida em que, administrado devidamente, mantido
nômeno de escassez, de fome maciça, individual e coletiva devidamente, incentivado devidamente, vai possibilitar o que
que evolui exatamente ao mesmo passo e sem descontinui- se pretende obter no nível, este sim, pertinente. A multipli-
56 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 57

cidade dos indivíduos já não é pertinente, a população, sim, mente, isto é, que umas aceitem suportar a escassez-cares-
Essa cesura no interiór do que constituía a totalidade dos tia e que as outras vendam seu trigo no devido momento,
súditos ou dos habitantes de um reino, essa cesura não é isto é, bem cedo, contanto que os exportadores despachem
uma cesura real. Não vai haver uma coisa e outra. Mas é no seu produto assim que os preços começarem a subir. Tudo
próprio interior do saber-poder, no próprio interior da tec- isso é muito bonito, e temos aí, não digo os bons elemen-
nologia e da gestão económica que vamos ter esse corte en- tos da população, mas comportamentos que fazem que cada
tre o nível pertinente da população e o nível não-pertinen- um dos indivíduos funcione como membro, como elemen-
te, ou ainda, o nível simplesmente instrumental. O objetivo to dessa coisa que se quer administrar da melhor maneira
final vai ser a população. A população é pertinente como possível, a saber, a população. Eles agem como membros da
objetivo, e os indivíduos, as séries de indivíduos, os grupos população devem agir. Mas suponham que num mercado,
de indivíduos, a multiplicidade dos indivíduos, esta não vai numa cidade dada, as pessoas, em vez de esperar, em vez
ser pertinente como objetivo. Vai ser simplesmente perti- de suportar a escassez, em vez de aceitar que o cereal seja
nente como instrumento, intermédio ou condição para obter caro, em vez de, por conseguinte, aceitar comprar pouca
algo no nível da população. quantidade dele, em vez de aceitar passar fome, em vez de
Cesura fundamental sobre a qual procurarei tornar da aceitar [esperar]* que o tngo chegue em quantidade sufi-
próxima vez, porque creio que tudo o que está envolvido ciente para que os preços caiam ou, em todo caso, para que
nessa noção de população aparece bem claramente aí. A a alta se atenue ou se estabilize um pouco, suponham que
população como sujeito político, como novo sujeito coleti- em vez disso, por um lado, elas se atirem sobre as provi-
vo absolutamente alheio ao pensamento jurídico e político sões, se apropriem delas sem pagar, suponham que, por
dos séculos precedentes, está em via de aparecer aí na sua outro lado, haja um certo número de pessoas que prati-
complexidade, com as suas cesuras. Vocês já estão vendo que quem retenções de cereal irracionais ou mal calculadas, e
ela aparece tanto como objeto, isto é, aquilo sobre o que, tudo irá encrencar. E, com isso, vamos ter, revolta de um
para o que são dirigidos os mecanísmos para obter sobre lado, açambarcamento de outro, ou açambarcamento e re-
ela certo efeito, [quanto como] sujeito, já que é a ela que se volta. Pois bem, diz Abeille, tudo isso prova que essas pes-
pede para se comportar deste ou daquele jeito. A população soas não pertencem realmente à população. O que são elas?
coincide com a antiga noção de povo, mas de maneira tal Pois bem, são o povo. O povo é aquele que se comporta em
que os fenômenos se escalonam em relação a ela e que ha- relação a essa gestão da população, no próprio nível da po-
verá certo número de níveis a reter e outros que, ao contrá- pulação, como se não fizesse parte desse sujeito-objeto co-
rio, não serão retidos ou serão retidos de outra maneira. E, letivo que é a população, como se se pusesse fora dela, e,
para assinalar simplesmente a coisa sobre a qual gostaria de por conseguinte, é ele que, como povo que se recusa a ser
tornar da próxima vez, por ser ela fundamental, eu gostaria população, vai desajustar o sistema~'.
- e encerrarei com esse texto de Abeille - de lhes indicar que, Temos sobre esse ponto uma análise apenas esboçada
nesse texto justamente, encontramos uma distinção curio- por Abeille, mas que é muito importante, na medida em
síssima. Porque, terminada sua análise, Abeille tem entre- que, de um lado, vocês vêem que ela é relativamente próxi-
tanto um escrúpulo. Ele diz: tudo isso é muito bonito. A es-
cassez-flagelo é uma quimera, está bem. Ela é uma quime-
ra, de fato, contanto que as pessoas se comportem devida- * Palavra omitida por M. Foucault.

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58 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 59 l
ma sob certos aspectos, que ela faz eco, que ela tem uma cerra. O primeiro gesto da disciplina é, de fato, circunscre-
espécie de simetria em relação ao pensamento jurídico que ver um espaço no qual seu poder e os mecanismos do seu
dizia, por exemplo, que todo indivíduo que aceita as leis do poder funcionarão plenamente e sem limites. E, justamen-
seu país assina um contrato social, aceita -o e o revalida a te, se retomarmos o exemplo da polícia disciplinar dos ce-
cada instante em seu próprio comportamento, enquanto reais tal como ela existia até meados do século XVIII, tal
aquele que, ao contrário, viola as leis, rasga o contrato so- com~ vocês vão encontrá -la exposta em centenas de pági-
cial, este toma -se estrangeiro em seu próprio país e, por nas do Tratado de polícia de Delamare", a polícia disciplinar
conseguinte, cai sob as leis penais que vão puni-lo, exilá-lo, dos cereais é efetivamente centripeta. Ela isola, concentra,
de certo modo matá-lo". O delinqüente em relação a esse encerra é protecionista e centra essencialmente sua ação
sujeito coletivo criado pelo contrato social rasga esse con- no mer~ado ou nesse espaço do mercado e no que o rodeia.
trato e cai do lado de fora desse sujeito coletivo. Aqui tam- Em vez disso, vocês vêem que os dispositivos de segurança,
bém, nesse desenho que começa a esboçar a noção de po- tais como procurei reconstituí-los, são o contrário, tendem
pulação, vemos estabelecer-se uma divisória na qual o povo perpetuamente a ampliar, são centrifugas. Novos eler:'en-
aparece como sendo, de uma maneira geraL aquele que re- tos são o tempo todo integrados, mtegra-se a produçao, a
siste à regulação da população, que tenta escapar desse dis- psicologia, os comportamentos, as maneiras de fazer dos pro-
positivo pelo qual a população existe, se mantém, subsiste, dutores, dos comprador~s, dos consumidores, dos Importa-
e subsiste num nível ótimo. Essa oposição povo/população dores, dos exportadores, mtegra-se o mercado mund!al.1ta-
é importantíssima. Procurarei lhes mostrar da próxima vez ta-se portanto de organizar ou, em todo caso, de de!Xar crr-
como, apesar da simetria aparente em relação ao sujeito co- cuitos cada vez mais amplos se desenvolverem.
letivo do contrato social, é na verdade de uma coisa bem di- Em segundo lugar, segunda grande diferença: a_ disci-
ferente que se trata e [que] a relação população-povo não é plina, por definição, re~lame~ta tudo.A disoplina nao dei-
semelhante à oposição sujeito obediente/delinqüente, que xa escapar nad,a. Não s? ela nao perm1tc; o lmsser-[mre, mas
o próprio sujeito coletivo população é muito diferente do seu princípio e que ate as co1sas mrus mfimas na~ d~em
sujeito coletivo constituído e criado pelo contrato social". ser deixadas entregues a s1 mesmas. A menor mfraçao a diS-
Em todo caso, para terminar com isso, gostaria de mos- ciplina deve ser corrigida com tanto maior cuidado q~anto
trar a vocês que, se quisermos entender melhor em que menor ela for. Já o dispositivo de segurança, como voces 111-
consiste um dispositivo de segurança como o que os fisio- ram deixa fazer• [laisse Jaire]. Não é que deixa fazer tudo,
cratas e, de maneira geral, os economistas do século XVIII ma; há um nível em que o laisser-faire é indispensável. Dei-
pensaram para a escassez alimentar, se quisermos caracte- xar os preços subirem, deixar a escassez se estabelecer, dei-
rizar um dispositivo como esse, creio que é necessário com- xar as pessoas passarem fome, para não deixar que certa
pará-lo com os mecanismos disciplinares que podemos en- coisa se faça, a saber, instalar-se o flagelo geral da escassez
contrar não apenas nas épocas precedentes, mas na mesma alimentar. Em outras palavras, a maneira como a disciplina
época em que eram implantados esses mecanismos de se- trata do detalhe não é, em absoluto, a mesma maneira como
gurança. No fundo, creio que podemos dizer o seguinte.
A disciplina é essencialmente centripeta. Quero dizer que a
disciplina funciona na medida em que isola um espaço, de- *Entre aspas no manuscrito, p. 7: "Já a segurança 'laisse faire', no
termina um segmento. A disciplina concentra, centra, en- sentido positivo da expressão."
AUlA DE JS DE JANEIRO DE 1978 61
60 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

os dispositivos de segurança tratam dele, A disciplina tem modelo de saturação disciplinar a vida monástica que foi, de
essencialmente por função impedir tudo, inclusive e princi- fato, o ponto de partida e a matriz, na vida monástica per-
palmente o detalhe, A segurança tem por função apoiar-se feita o que o monge faz é inteiramente regulado, dia e nm:
nos detalhes que não vão ser valorizados como bons ou ruins te e a única coisa indeterminada é o que não se diz e que e
em si, que vão ser tomados corno processos necessários,
p:Oibido,, No sistema da lei, o que é !,ndeterminado é o qw;
é permitido; no s1stema da regulaçao disC1phnar, o que e
inevitáveis, como processos naturais no sentido lato, e vai
determinado é o que se deve fazer, por consegumte todo o
se apoiar nesses detalhes que são o que são, mas que não
resto, sendo indeterminado, é proibido,
vão ser considerados pertinentes, para obter algo que, em No dispositivo de segurança tal como acabo de lhes ex-
si, será considerado pertinente por se situar no nível da po- por, parece-me que se tratava justamente de não adotar nem
pulação,
0 ponto de vista do que é impedido, nem o ponto de VIsta do
Terceira diferença, No fundo, a disciplina, e aliás os sis- que é obrigatório, mas distanciar-se suficientemente para po-
temas de legalidade também, como é que procedem? Pois der apreender o ponto em que as coisas vão se produzrr, se-
bem, eles dividem todas as coisas de acordo com um códi- jam elas desejáveis ou não, Ou seja, vai-se procurar reapreen-
go que é o do permitido e do proibido, Depois, no interior dê-las no plano da sua natureza ou, digamos - essa palavra
desses dois campos - do permitido e do proibido-, vão es- não tinha, no século XVIII, o sentido que lhe damos hoJe em
pecificar, determinar exatamente o que é proibido, o que é dia"-, vai-se tomá-las no plano da sua realidade efetiva,.E é
permitido, ou melhor, o que é obrigatório, E pode-se dizer a partir dessa realidade, procurando apoiar-se nela e faze-la
que, no interior desse sistema geral, o sistema de legalida- atuar, fazer seus elementos atuar uns em relação aos outros,
de, o sistema da lei tem essencialmente por função deter- que o mecanismo de segurança vai [funcionar]*, Em outras
minar sobretudo as coisas proibidas, No fundo, o que a lei palavras, a lei proíbe, a disciplina prescreve e a segurança, sem
diz, essencialmente, é não fazer isto, não fazer tal coisa, não proibir nem prescrever, mas dando-se eVIdentemente alguns
fazer também tal outra, etc De modo que o movimento de instrumentos de proibição e de prescrição, a segurança tem
especificação e de determinação num sistema de legalidade essencialmente por função responder a uma realidade de ma-
incide sempre e de modo tanto mais preciso quando se tra- neira que essa resposta anule essa realidade a que e!~ respon-
ta do que deve ser impedido, do que deve ser proibido, Em de- anule, ou limite, ou freie, ou regule, Essa regulaçao no ele-
outras palavras, é tomando o ponto de vista da desordem mento da realidade é que é, creio eu, fundamental nos dis-
que se vai analisar cada vez mais apuradamente, que se vai positivos da segurança, . .
estabelecer a ordem- ou seja', é o que resta,A ordem é o que Poderíamos dizer também que a lei trabalha no rrnag:t-
resta quando se houver impedido de fato tudo o que é proi- nárío, já que a lei imagina e só pode ser formula~a imaginan-
bido, Esse pensamento negativo é o que, a meu ver, caracte- do todas as coisas que poderiam ser feitas e nao devem ser
riza um código legal, Pensamento e técníca negativos, feitas, Ela imagina o negativo, A disciplina trabalha, de cer-
O mecanismo disciplinar também codifica perpetua- ta forma, no complementar da realidade, O homem é malva-
mente em permitido e proibido, ou melhor, em obrigatório do, o homem é ruim, ele tem maus pensamentos, tendên-
e proibido, ou seja, o ponto sobre o qual um mecanismo cias más, etc Vai-se constituir, no interior do espaço disci-
disciplinar incide são menos as coisas a não fazer do que as
coisas a fazer, Uma boa disciplina é o que lhes diz a cada
instante o que vocês devem fazer, E, se tomarmos como ""M.F.: atuar

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62 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 63

plinar, o complementar. dessa realidade, prescrições, obri- volva e vá, siga seu caminho, de acordo com as leis, os prin-
gações, tanto mais artificiais e tanto mais coercitivas por ser cípios e os mecanismos que são os da realidade mesma. De
a realidade o que é e por ser ela insistente e dificil de se do- modo que esse problema da liberdade [sobre o qual] toma-
brar. Enfim, a segurança, ao contrário da lei que trabalha no rei, espero, da próxima vez2Y, creio que podemos considerá-
imaginário e da disciplina que trabalha no complementar lo, reapreendê-lo de diferentes formas. Claro, pode-se dizer
da realidade, vai procurar trabalhar na realidade, fazendo os - e acho que isso não seria errado, não pode ser errado -
elementos da realidade atuarern uns em relação aos outros, que essa ideologia da liberdade, essa reivindicação da liber-
graças a e através de toda urna série de análises e de dispo- dade foi uma das condições de desenvolvimento de formas
sições específicas. De modo que se chega, a meu ver, a esse modernas ou, se preferirem, capitalistas da economia. É ine-
ponto que é essencial e com o qual, ao mesmo tempo, todo gáveL O problema é saber se, efetivarnente, na implantação
o pensamento e toda a organização das sociedades políti- dessas medidas liberais, corno por exemplo vimos a propó-
cas modernas se encontram comprometidos: a idéia de que sito do comércio de cereais, era de fato isso que se visava ou
a política não tem de levar até o comportamento dos homens se buscava em primeira instância. Problema, em todo caso,
esse conjunto de regras, que são as regras impostas por que se coloca. Em segundo lugar, disse em algum lugar que
Deus ao homem ou tomadas necessárias simplesmente por não se podia compreender a implantação das !deologtas e
sua natureza má. A política tem de agir no elemento de urna de urna política liberais no século XVIII sem ter bem presen-
realidade que os fisiocratas chamam precisamente de a físi- te no espírito que esse mesmo século XVIII, que havia rei-
ca, e eles vão dizer, por causa disso, que a política é urna fí- vindicado tão alto as liberdades, as tinha no entanto las-
sica, que a economia é urna física~. Quando dizem isso, não treado com urna técnica disciplinar que, pegando as crian-
visam tanto a materialidade, no sentido, digamos assim, pós- ças, os soldados, os operários onde estavam, limitava consi-
hegeliano da palavra matéria, visam na verdade essa reali-
deravelmente a liberdade e proporcionava de certo modo
dade que é o único dado sobre o qual a política deve agir e
garantias ao próprio exercício dessa liberdade". Pois bem,
com o qual ela deve agir. Colocar-se sempre e exclusiva-
mente nesse jogo da realidade consigo mesma - é isso, creio que me equivoquei. Nunca estou completamente
equivocado, claro, mas, enfim, não é exatamente isso. Creio
creio eu, que os fisiocratas, que os economistas, que o pen-
sarnento político do século XVIII entendiam quando di- que o que está em jogo é algo bem diferente. É que, na ver-
ziarn que, corno quer que seja, permanecemos na ordem da dade, essa liberdade, ao mesmo tempo ideologia e técnica
física e que agir na ordem política ainda é agir na ordem de governo, essa liberdade deve ser compreendida no inte-
da natureza. rior das mutações e transformações das tecnologias de po-
Vocês vêem ao mesmo tempo que esse postulado, que- der. E, de urna maneira mais precisa e particular, a liberda-
ro dizer esse princípio fundamental, de que a técnica polí- de nada mais é que o correlativo da implantação dos dispo-
tica nunca deve descolar do jogo da realidade consigo mes- sitivos de segurança. Um dispositivo de segurança só poderá
ma, é profundamente ligado ao princípio geral do que se funcionar bem, em todo caso aquele de que lhes falei hoje,
chama liberalismo. O liberalismo, o jogo: deixar as pessoas justamente se lhe for dado certa coisa que é a liberdade, no
fazerem, as coisas passarem, as coisas andarem, laisser-fai- sentido moderno [que essa palavra]* adquire no século XVIII:
re, laisser-passer e laisser-aller, quer dizer, essencial e funda-
mentalmente, fazer de maneira que a realidade se desen- "' M.F.: que ela

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64 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

não mais as franquias e os privilégios vinculados a uma pes- NOTAS


soa, mas a possibilidade de movimento, de deslocamento,
processo de circulação tanto das pessoas como das coisas. E
é essa liberdade de circulação, no sentido lato do termo, é
essa faculdade de circulação que devemos entender, penso
eu, pela palavra liberdade, e compreendê-la como sendo
uma das faces, um dos aspectos, uma das dimensões da im-
plantação dos dispositivos de segurança.
A idéia de um governo dos homens que pensaria an-
tes de mais nada e fundamentalmente na natureza das coi-
sas, e não mais na natureza má dos homens, a idéia de uma
administração das coisas que pensaria antes de mais nada
na liberdade dos homens, no que eles querem fazer, no que
têm interesse de fazer, no que eles contam fazer, tudo isso
são elementos correlativas. Uma física do poder ou um po-
der que se pensa como ação física no elemento da nature- 1. Louis- Paul Abeille, Lettre d'un négociant sur la nature du
za e um poder que se pensa como regulação que só pode se commerce des grains, 1763, p. 4; reed. 1911, p. 91 (palavra grifada
pelo autor). Sobre essa obra, cf. infra, nota 17.
efetuar através de e apoiando-se na liberdade de cada um, 2. Cf. notadamente O príncipe, cap. 25: "Quantum fortuna in re-
creio que isso aí é uma coisa absolutamente fundamental. bus humanis possít et quomodo illi sit occurrendum" [De quanto pode
Não é uma ideologia, não é propriamente, não é funda- a fortuna nas coisas humanas e de que modo se pode resistir-lhe]
mentalmente, não é antes de mais nada uma ideologia. É (trad. fr. ).-L. Foumel & j.-0. Zancarini, Paris, PUF, 2000, p. 197).
primeiramente e antes de tudo uma tecnologia de poder, é 3. Cf. por exemplo N. Delamare, Traité de la police, 2~ ed., Pa-
em todo caso nesse sentido que podemos lê-lo. Gostaria, ris, M. Brune!, 1722, t. II, pp. 294-5: "Muitas vezes é um desses fla-
na próxima vez, de terminar o que lhes disse sobre a forma gelos salutares, de que Deus se serve para nos castigar e nos fazer
geral dos mecanismos de segurança, falando dos procedi- cumprir com nosso dever. [... ] Deus muitas vezes se vale das cau-
mentos de normalização. sas secundárias para exercer na terra sua Justiça {... ].Assim, seja
por nos serem elas [a escassez alimentar ou a fome] enviadas do
céu com esse fito de nos corrigir, seja por ocorrerem pelo curso or-
dinário da natureza, ou pela malícia dos homens, elas são em apa-
rência sempre as mesmas, mas sempre na ordem da Providência."
Sobre esse autor, cf. infra, nota 26.
4. Sobre essa "avidez" imputada aos comerciantes monopo-
lizadores, que, segundo uma explicação freqüentemente invocada
pela polícia e pelo povo sob o Antigo Regime, teria sido a causa
essencial da penúria e da alta dos preços, cf. por exemplo N. De-
lamare, ap. cit., p. 390, a propósito da crise dos meios de subsistên-
cia de 1692-93: "Mas [embora a ferrugem, na primavera de 1692,

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só houvesse destruído a metade da colheita no pé], como basta
66 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978
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um só pretexto aos Mercadores mal-intencionados e sempre ávi- um método que parece estranho à primeira vista, mas que a pre-
dos de ganho para determiná-los a ampliar seus. objetivos à custa servo~ desde essa época das conseqüências malfazejé!-s da escas-
da escassez alimen~ não deixarão de se aprovettar deste; logo os sez alimentar. Só há direitos sobre a entrada,. não há nenhum na
vimos adotar novamente seu comportamento ordinário e valer-se saída; ao contrário, eles a incentivam e recompensam." Análise
novamente de todas as suas práticas danosas para fazer o preço
mais detalhada na segunda edição (citada) de 1755, pp. 43-4. Dis-
dos cereais subir: sociedades, viagens à Província, difusão de boa-
cípulo de Gournay, Herbert foi um dos primeiros, com Boisguil-
tos, monopólios mediante a compra de todos os cereais, aumento
bert (Détail de la France e Traité de la nature, culture, commerce et in-
dos lances nos mercados, compra antecipada de cereais no pé ou
nas granjas e celeiros, retenção em armazéns; assim, todo o .co-
térêt des grains, 1707), Dupin (Mémoire sur les Bleds, 1748) e Plu-
mércio viu-se reduzido a alguns dentre eles, que dele se haVIam mart de Dangeul (Remarques sur les avantages et l.es désavantages de
apoderado" (citado por S. L. Kaplan, Bread, Politics and Politicai la France et de la Grande-Bretagne par rapport au commerce et aux au-
Economy in the Reign of Louis XV, Haia, Martinus Nijhoff, 1976, tres sources de la Puissance des États, 1754) a defender o princípio da
p. 56 I Le Pain, le Peuple et le Roi, trad. fr. M.-A. Revelia!, Paris, Per- liberdade dos cereais conforme o modelo inglês. Foi seu tratado,
rin, "Pour l'histoire", 1986, pp. 52-3). entretanto, que exerceu a influência mais profunda. Sobre os "in-
5. Essa noção constitui o fio condutor do pensamento de contáveis Memórias, Ensaios, Tratados, Cartas, Observações, Res-
Quesnay, das "Maximes de gouvemement économique" [Máxi- postas e Diálogos" que mobilizaram a opinião pública sobre a ques-
mas de governo econômico], que concluem o verbete "Grains" tão dos cereais a partir de meados do século XVIII, cf. J. Letacon-
[Cereais] (1757; in f Quesnay et la physiocratie, JNED, 1958, t. 2, pp. noux, "La question des subsistances et du commerce des grains en
496-510), às "Maximes générales du gouvemement économique France au XVIII·· sii~de: travaux, sources et questions à traiter", Re-
d'un royaume agricole" [Máximas gerais do governo econôm1co vue d'histoire moderne et contemporaine, março de 1907, artigo a que
de um reino agrícola] (1767; ibid., pp. 949-76). remete Depitre, in op. dt., p. VI.
6. Cf. por exemplo F. Quesnay, verbete "Impôts': [Impostos] 10. Edito de 17 de setembro de 1754, assinado pelo controla-
(1757), ibid., t. 2, p. 582: "As riquezas anuais que constituem a ren- dor-geral Moreau de Séchelles (mas concebido por seu predeces-
da da nação são os produtos que, cobertas todas as despesas, for- sor, Machault d' Amouville), que instaurava a livre circulação dos
mam os lucros obtidos dos bens de raiz." [Sobre o produto líqui- cereais e das farinhas no interior do reino e autorizava as exporta-
do, ver abaixo, nota 18. (N. do T.)] ções nos anos de abundância. O texto havia sido preparado por
7. É o sistema da gratificação na saída dos cereais em navios Víncent de Gournay (cf. infra, nota 15).
ingleses, enquanto não excedessem os preç~s fixados ~ela ~ei, (cf. 11. Cf. G. Weulersse, Le Mouvement physiocratique en France de
E. Depitre, introdução a Cl.-j. Herbert, Essaz sur la polzce generale 1756 à 1770, Paris, Félix Alcan, 1910, 2 vois.; sobre esses anos de
des grains (1775), Paris, L. Geuthner, "Collection des économistes 1754-1764, cf. t. 1, pp. 44-90: "Les débuts de l'École".
et des réformateurs sociaux de la France", 1910, p. XXXIII. Esse 12. Q. G.-F. Letrosne, Discours sur l'état actuei de la magistra-
texto constitui uma das fontes documentais de Foucault). ture et sur les causes de sa décadence, [s.l.], 1764, p. 68: "A declaração
8. Proibição da importação de cereais estrangeiros ''enquan- de 25 de maio de 1763 abateu aquelas barreiras internas erguidas
to seu preço corrente se mantivesse abaixo do preço fixado pelos pela timidez, por muito tempo mantidas pelo uso, tão favoráveis
estatutos" (cf. E. Depitre, ibid.) ao monopólio e tão caras aos olhos da autoridade arbitrária, mas
9. Cf. por exemplo Claude-jacques Herbert (1700-1758), ainda falta dar o passo essencial" (a saber, a liberdade de exporta-
Essai sur la police générale des grains, op. cit., ed. Londres, 1753, pp. ção, complemento necessário à liberdade interna), citado in S. L.
44-5: "A Inglaterra, baseada nos mesmos ~rincípios [que a Hol~­ Kaplan, Le Pain ..., trad. cit., p. 107. Letrosne (ou Le Trosne) tam-
da], parece não temer ver-se esgotada e so se prevenrr, ao contra- bém é o autor de um opúsculo sobre a liberdade de comércio dos
rio, contra a superfluidade. Nos últimos sessenta anos, ela adotou cereais (cf. infra, nota 14).
68 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 69

13. Na realidade, julho de 1764. "A declaração de maio trata XVIII' siecle, Montreuil, Les Éditions de la passion, 1989, pp. 168-
do comércio de cereais como um assunto nacional, o edito de ju- 236, "Vincent de Goumay ou la mise en oeuvre d'une nouvelle
lho de 1764 acrescenta-lhe uma dimensão internacional ao permi- politique économique" (biografia detalhada pp.168-87). O prin-
tir a exportação dos cereais e da farinha. [... ]" (S. L. Kaplan, trad. cipal discípulo de Goumay, com Turgot, foi Morellet (cf. G. Weu-
cit., p. 78; para mais detalhes, cf. p. 79). Iersse, Le Mouvement physiocratique... , t. 1, pp. 107-8; id., Les
14. Cf. G. Weulersse, Les Physiocrates, Paris, G. Doin, 1931, Physiocrates, p. 15). ·
p. 18: "Foi [frudaine de Montigny, conselheiro do controlador-ge- 16. Cf. E. Depitre, introd. a Herbert, Essais ... , op. cit., p. Vlll:
ral Laverdy] o verdadeiro autor do Edito libertador de 1764; e, para "[ ... ] é então um intenso período de publicações e de vivas polê-
redigi-lo, a quem recorreu? A Turgot, e até a Dupont, cujo texto micas. Mas a posição dos economistas é menos boa: vêem-se
acabou prevalecendo quase inteiramente. Foi sem dúvida por seus obrigados a passar da ofensiva à defensiva e respondem em gran-
cuidados que o opúsculo de Le Trosne sobre A liberdade [de comér- de número aos Diálogos do abade Galiani [Dialogues sur le commer-
cio] dos cereais sempre útil e nunca danosa [Paris, 1765] difundiu-se ce des blés, Londres, 1770]:'
nas províncias, e é nele que o controlador-geral vai buscar armas 17. Louis-Paul Abeille (1719-1807), Lettre d'un négociant sur la
para defender sua política." nature du commerce des grains (Marselha, 8 de outubro de 1763),
15. Vincent de Gournay (1712-1759): negociante em Cádiz [s.n.I.d.]; reed. in L.-P. Abeille, Premiers Opuscules sur le commerce
por quinze anos, depois Intendente do Comércio (de 1751 a 1758), des grains: 1763-1764, introdução e índice analítico por Edgard De-
após diversas viagens à Europa, é o autor, com seu aluno Cliquot- pitre, Paris, P. Geuthner, "Collection des économistes et des réfor-
Blervache, de Considérations sur le cornmerce [Considerações sobre mateurs sociaux de la France", 1911, pp. 89-103. Quando publicou
o comércio] (1758), de numerosas memórias redigidas pelo Escri- esse texto, Abeille era secretário da Sociedade de Agricultura da
tório do Comércio e de uma tradução de Traités sur le commerce Bretanha, fundada em 1756 em presença de Goumay. Conquista-
[Tratados sobre o comércio] de Josiah Child (1754; orig.: 1694) (seu do para as teses fisiocráticas, foi nomeado secretário do Bureau do
comentário não pôde ser impresso em vida; 1~ edição por Takumi Comércio em 1768, porém mais tarde distanciou-se da escola. So-
Tsuda, Tóquio, 1983). "Sua influência sobre a evolução do pensa- bre sua vida e seus escritos, cf. ).-M. Quérard, La France littéraire,
mento econômico na França [foi] considerável, graças a seu papel ou Dictionnaire bibliographique des savants, historiens et gens de let-
na administração comercial francesa, graças a seu trabalho de di- tres de la France, Paris, F. Didot, t. I, 1827, pp. 3-4; G. Weulersse, Le
reção dos estudos econômicos na Academia de Amiens e, princi- Mouvement physiocratique... , t. 1, pp. 187-8, sobre a ruptura de
palmente, graças seu papel oficioso na publicação de trabalhos Abeille com os fisiocratas, ocorrida em 1769 ("Mais tarde, Abeille
econômicos" (A. Murphy, "Le développement des idées économi- defenderá Necker contra Dupont", precisa ele). Também é autor
ques en France (1750-1756)", Revue d'histoire moderne et contempo- de Réjlexions sur la police des grains en France (1764), obra reedita-
raine, t. XXXIII, out.-dez. de 1986, p. 523). Ele contribuiu para a di- da porDepitre nosPremiers Opuscules ..., pp.104-26, e de Principes
fusão das idéias de Cantillon e assegurou o sucesso da fórmula sur la liberté du commerce des grains, Amsterdam-Paris, Desaint, pu-
(cuja paternidade, desde Dupont de Nemours, lhe foi freqüente- blicada sem nome de autor em 1768 (a brochura foi objeto de uma
mente atribuída) "laissez faire, laissez passer'' (sobre a origem des- réplica imediata de F. Véron de Forbonnais, "Examen des Príncipes
ta, cf. a nota sobre d' Atgenson, in Naissance de la biopolitique, op. sur la liberlé du commerce des grains", Joumal de l'agriculture (agos-
cit., aula de 10 de janeiro de 1979, P· 27, n. 13. Cf. Turgot, "Éloge to de 1768), respondida pelas Éphémerides du citoyen- o jornal fi-
de Vmcent de Goumay", Mercure de France, agosto de 1759; G. siocrata- em dezembro do mesmo ano) (cf. G. Weleursse, Le Mou-
Schelle, Vincent de Goumay, Paris, Guillaumin, 1897; G. Weulersse, vement physiocratique ... , t. 1, índice bibliográfico, p. XXIV).
Le Mouvement physiocratique... , op. cit., t. 1, pp. 58-60; id., Les Physio- 18. Sobre essa noção, cf. G. Weleursse, ibid., t. 1, pp. 261-8
crates, op. cit., p. XV, e a obra, hoje de referência, de S. Meysonnier, ("Para os fisiocratas [...], a única renda verdadeiia, a única renda
La Balance et l'Horloge. La genese de la pensée libérale en France au propriamente dita é a renda líquida ou o produto líquido; e por pro-
70 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 18 DE JANEIRO DE 1978 71

duto líquido eles entendem o excedente do produto totaL ou produ- 22. Sobre a origem dessa fórmula "laissez faire, laissez pas-
to bruto, além dos custos de produção"). ser", cf. supra, nota 15 sobre Vmcent de Goumay, e Naissance de la
19. L.-P.Abeille, Lettre d'un négociant... , ed. de 1763, p. 4; reed. biopolitique, aula de 10 de janeiro de 1979, p. 27, n. 13.
de 1911, p. 91: "A escassez alimentar, isto é, a insuficiência atual da 23. L.-P. Abeille, Lettre d'un négociant... , ed. de 1763, pp. 16-7;
quantidade de cereais necessária para fazer uma Nação subsistir, reed. de 1911, pp. 98-9: "Quando a necessidade se faz sentir, isto
é evidentemente urna quimera. A colheita teria de ser nula, consi- é, quando os cereais sobem até um preço alto demais, o Povo fica
derando esse termo com todo rigor. Não vimos nenhum Povo que inquieto. Por que aumentar sua inquietação declarando a do Go-
a fome tenha feito desaparecer da terra, nem mesmo em 1709." verno com a proibição da saída? [... ] Se se acrescentam a essa
Essa concepção não é própria apenas de Abeille. Cf. S. L. Kaplan, proibição, que é em si no mínimo inútil, ordens de fazer declara-
Le Pain ... , pp. 74-5: "[ ... ]os homens que tratam dos problemas da ções, etc., o mal poderia ser levado ao auge em pouquíssimo tem-
subsistência não estão convencidos de que a penúria é 'real'. Eles po. Não se tem acaso tudo a perder, exasperando os que são go-
admitem que certas supostas situações de escassez alimentar pa- vernados contra os que governam e tomando o Povo audacioso
recem verdadeiros casos de fome, mas objetam que não são acom- contra os que lhe fornecem cotidianamente os meios de subsistir?
panhadas de verdadeira penúria de cereais. Os mais veementes É atiçar uma guerra civil entre os Proprietários e o Povo." Cf. igual-
críticos são os fisiocratas, que também são os mais hostis ao go- mente a ed. de 1763, p. 23; reed. de 1911, p. 203: "Nada lhes [às
verno. Lemercier escreve que a escassez alimentar de 1725 é arti- Nações] seria mais funesto do que subverter os direitos de pro-
ficial. Roubaud acrescenta a de 1740 à lista das penúrias factícias. priedade e reduzir os que constituem a força de um Estado a não
Quesnay e Dupont acreditam que a maioria das situações de es- ser mais que Provedores de um Povo inquieto, que só tem em mira
cassez alimentar são criadas pela opinião pública. O próprio Ga- o que beneficia a sua avidez e que não sabe medir o que os Pro-
liani, que detesta os fisiocratas, declara que, em três quartos dos prietários devem pelo que podem."
casos, a escassez alimentar é 'uma doença da imaginação~~~. Em 24. Cf. por exemplo j.-J. Rousseau, Du contrat social, 1762, II,
novembro de 1764, quando estouravam revoltas em Caen, Cher- 5, in Oeuvres complétes, P.aris, Gallimard, "Bibliothéque de la Pléia-
bourg e no Dauphiné, o ]ournal économique, acolhendo calorosa- de", t. m, 1964, pp. 376-7: "[ ... ]todo malfeitor que ataque o direi-
mente a nova era de política liberal, zombava do "temor quiméri- to social se toma, por seus feitos, rebelde e traidor da pátria, deixa
co da esc·assez alimentar" (S. L. Kaplan, ibid., p. 138). de ser membro desta ao violar suas leis e até lhe faz guerra. Então
20. L.-P. Abeille, Lettre d'un négociant..., ed. de 1763, pp. 9-10; a conservação do Estado é incompatível com a dele, um dos dois
reed. de 1911, p. 94: "É verdade que a liberdade não impediria que tem de perecer, e, quando se faz o culpado morrer, é menos como
o preço de mercado se sustentasse; mas, longe de aumentá-lo, ela Cidadão do que como inimigo. O processo, o julgamento são as
poderia contribuir talvez para fazê-lo baixar, porque ameaçaria provas e a declaração de que ele rompeu o tratado social e, por
continuamente com a concorrência dos estrangeiros, e os que têm conseguinte, não é mais membro do Estado. Ora, como ele assim
concorrentes a temer devem apressar-se a vender e, por conse- se reconheceu, pelo menos por nele residir, deve ser excluído pelo
guinte, limitar seu lucro para não correr o risco de se verem força- exílio, como fnfrator do pacto, ou pela morte, como inimigo públi-
dos a contentar-se com um lucro menor ainda." co; porque tal inimigo não é uma pessoa moral, é um homem, e é
21. Ibid., ed. de 1763, pp. 7-8; ed. de 1911, p. 93: "Vejo clara- então que o direito da guerra é matar o vencido".
mente que o interesse será o único motor dos Comerciantes es- 25. Cf. infra, aula de 25 de janeiro, p. 86 (3~ observação a pro-
trangeiros. Eles ficam sabendo que falta trigo num país; que, por pósito dos três exemplos: da cidade, da escassez alimentar e da
conseguinte, o trigo se vende facilmente aí e a bom preço; a partir epidemia).
desse momento, faz-se todo tipo de especulação: é para lá que 26. Nicolas Delamare (de La Mare) (1639-1723), Traité de la
convém enviar cereais, e enviar prontamente, a fim de aproveitar police, oU l'on trouvera l'histoire de son établissement, les fonctions et
o momento em que a venda é favorável." Ies prérogatives de ses magistrats, toutes les lois et tous les reglements
72 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO

qui la concernent, t. I-fi, Paris, 1705-1719, t. Npor A.-L. Lecler du AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
Brillet, 1738 (cf. infra, aula de 5 de abril, p. 482, nota 1, para mruo-
res precisões). Delamare foi comissário do Châtelet de 1673 a
1710, sob a chefia de La Reynie- primeiro magistrado encarrega-
do da chefia de polícia, desde a sua criação pelo edito de março de Características gerais dos dispositivos de segurança (ill): a
1667- depois sob a chefia de d'Argenson. Cf. P.-M. Bondois, "Le normalização.- Normação e normalização.- O exemplo da epi-
Commissaire N. Delamare et le Traité de Ia police", Revue d'histoire demia (a varíola) e as campanhas de inoculaçã.o do século XVIII.
moderne, 19, 1935, pp. 313-51. Sobre a polícia dos cereais, cf. o - Emergênda de novas noções: caso, risco, perigo, crise.- .As for-
tomo II, que constitui, segundo S. L. Kaplan, Le Pain ... , p. 394, nota mas de nonnalização na disdplina e nos mecanisnws de seguran-
1 do capíhllo 1, "a fonte mais rica para as questões de administra- ça. -lmplantaçã.o de uma nova tecnologia política: o g(JVerno das
ção dos meios de subsistência" (Traité de la police, t.ll, livro V: "Des populafões. - O problema da população nos mercantilistas e nos
vivres"; ver em particular o título 5: "De la Police de France, tou- fisiocrams. - A papulação amw operadora das transformações
chant le commerce des grains", pp. 55-89, e o título 14: "De la Po- nos saberes: da ana1ise das n"quezas à economia poli"tica, da his-
lice des Grains, & de celle du Pain, dans les temps de disette ou de tória normal à biologia, da gramática geral à filologia histórica.
famine", pp. 294-447).
27. Para uma análise aprofundada das diferentes acepções da
palavra "natureza" no século XVIII, cf. a obra clássica de). Ehrard, N cs anos precedentes*, eu tinha procurado mostrar
que Foucault conhecia, L'Idée de nature en France da~ la pr_emi~e um pouco o que havia de específico, parece-me, nos meca-
moitié du XVIII' siécle, Paris, SEVPEN, 1963; reed., Paris, Albm Mi- nismos disciplinares em relação ao que podemos chamar,
chel, "Bibliotheque de l'évolution de l'humanité", 1994. em linhas gerais, de sistema da lei. Este ano meu projeto era
28. Cf. Dupont de Nemours, Journal de l'agriculture, du com- mostrar, em vez disso, o que pode haver de específico, de
merce et des finances, setembro de 1765, prefácio (fim): "[A econo- particular, de diferente nos dispositivos de segurança, se com-
mia política) não é uma ciência de opinião, em que se contesta en- parados a esses mecanismos da disciplina que eu havia pro-
tre verossimilhanças e probabilidades. O estudo das leis físicas, curado descobrir. Portanto é na oposição, na distinção em
que se reduzem ao cálculo, decide sobre seus mais í~os .resul-
tados" (citado por G. Weulersse, Le Mouvement physlOcrattque ... ,
todo caso, segurança/disciplina que eu queria insistir. E isso
t. 2, p. 122); Le Trosne, ibid., junho de 1766, pp. 14-5: "Como a tendo por objetivo imediato, e imediatamente sensível e vi-
ciência económica nada mais é que a aplicação da ordem natural sível, claro, pôr fim à invocação repetida do amo e, igual-
ao governo das sociedades, ela é tão constante em seus princípios mente, à afirmação monótona do poder. Nem poder nem
e tão capaz de demonstração quanto as ciências físicas mais exa- amo, nem o poder nem o amo e nem um nem outro como
tas" (citado por G. Weulersse, loc. cit., nota 3). O nome "fisiocra- Deus. Procurei portanto, no primeiro curso, mostrar como era
cia", que resume essa concepção do governo económico, apareceu possível apreender essa distinção entre disciplina e segu-
em 1768, com a coletânea Physiocratie ou Consti.tution naturelle du rança a propósito da maneira como uma e outra, a discipli-
gouvernement le plus avantageux au genre humain, publicado por na e a segurança, tratavam, arranjavam as distribuições es-
Dupont de Nemours. . paciais. Da última vez, procurei mostrar a vocês como disci-
29. M. Foucault não toma sobre esse tema na aula segwnte.
30. Cf. Surveiller et Punir, op. cit., pp. 223-5. plina e segurança tratavam cada uma de urna maneira dife-

* M. Foucault acrescenta: quer dizer, os anos precedentes, um ou


dois anos, digamos os anos que acabam de passar
74 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAçAO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 75

rente o que podemos chamar de acontecimento, e gostaria suficientes para percebê-los, de um lado, e modificá-los, de
hoje - de uma maneira que será breve porque gostaria de outro. É isso, esse célebre quadriculamento disciplinar que
chegar logo ao âmago e, em certo sentido, ao fim do proble- procura estabelecer os elementos mínimos de percepção e
ma - de tentar lhes mostrar como tanto uma como a outra sufic~entes de modificação. Em segundo lugar, a disciplina
tratam de maneira diferente aquilo que podemos chamar class1fica os elementos assim identificados em função de
de normalização. objetivos determinados. Quais são os melhores gestos a fa-
Vocês conhecem melhor do que eu a nefasta sorte da zer para obter determinado resultado? Qual é o melhor ges-
palavra "normalização". O que não é normalização? Eu nor- to a fazer para carregar o fuzil, qual a melhor posição a to-
malizo, tu normalizas, etc. Vamos tentar descobrir, ainda as- mar? Quais são os operários mais aptos para determinada
sim, alguns pontos importantes nisso tudo. Em primeiro lu- tarefa, as crianças mais aptas para obter determinado resul-
gar, um certo número de pessoas que tiveram a prudência, tado? Em terceiro lugar, a disciplina estabelece as seqüên-
nestes dias, de reler Kelsen' percebeu que Kelsen dizia, de- cias ou as coordenações ótimas: como encadear os gestos
monstrava, queria mostrar que entre a lei e a norma havia e uns aos outros, como dividir os soldados por manobra,
não podia deixar de haver uma relação fundamental: todo como distribuir as crianças escolarizadas em hierarquias e
sistema legal se relaciona a um sistema de normas. Mas dentro de classificações? Em quarto lugar, a disciplina esta-
creio que é preciso mostrar que a relação entre a lei e a nor- belece os procedimentos de adestramento progressivo e de
ma indica efetivamente que há, intrinsecamente a todo im- controle permanente e, enfim, a partir daí, estabelece a de-
perativo da lei, algo que poderíamos chamar de uma norma- marcação entre os que serão considerados inaptos, incapa-
tividade, mas que essa normatividade intrinseca à lei, funda- zes _e os outros. Ou seja, é a partir daí que se faz a demar-
dora talvez da le~ não pode de maneira nenhuma ser con- caçao entre o normal e o anormal. A normalização discipli-
fundida com o que tentamos identificar aqui sob o nome de nar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo
procedimentos, processos, técnicas de normalização. Diria ótimo que é construído em função de certo resultado, e a
até, ao contrário, que, se é verdade que a lei se refere a uma operação de normalização disciplinar consiste em procurar
norma, a lei tem portanto por papel e função - é a própria tomar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse mo-
operação da lei - codificar uma norma, efetuar em relação à delo, sendo normal precisamente quem é capaz de se con-
norma uma codificação, ao passo que o problema que pro- formar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em
curo identificar é mostrar como, a partir e abaixo, nas mar- outros termos, o que é fundamental e primeiro na normali-
gens e talvez até mesmo na contramão de um sistema da lei zação disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma.
se desenvolvem técnicas de normalização. Dito de outro modo, há um caráter primitivamente prescri-
Tomemos agora a disciplina. A disciplina normaliza, e tivo da norma, e é em relação a essa norma estabelecida
creio que isso é algo que não pode ser contestado. Mas é que a determinação e a identificação do normal e do anor-
necessário precisar em que consiste, na sua especificidade, mal se tomam possíveis. Essa característica primeira da nor-
a normalização disciplinar. Resumo de uma forma muito es- ma em relação ao normal, o fato de que a normalização dis-
quemática e grosseira coisas mil vezes ditas, vocês hão de ciplinar vá da norma à demarcação final do normal e do
me desculpar. A disciplina, é claro, analisa, decompõe, de- anormal, é por causa disso que eu preferiria dizer, a propó-
compõe os indivíduos, os lugares, os tempos, os gestos, os S!IO do que acontece nas técnicas disciplinares, que se trata ''
atos, as operações. Ela os decompõe em elementos que são muito mais de uma normação do que de uma normaliza-

J
76 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 77

ção. Perdoem-me o barbarismo, mas é para melhor salien- ção no início do século XIX apresentavam esta quarta van-
tar o caráter primeiro e fundamental da norma. tagem, considerável, de serem completamente estranhas a
Agora, se pegarmos esse conjunto de dispositivos que toda e qualquer teoria médica. A prática da variolização e
chamei, usando um termo que com certeza não é satisfató- da vacinação, o sucesso da variolização e da vacinação eram
rio e sobre o qual será preciso tornar, de dispositivos de se- impensáveis nos termos da racionalidade médica da época5•
gurança, como é que as coisas ocorrem do ponto de vista da Era um puro dado de fato', estava-se no empirismo mais
normalização? Como é que se normaliza? Depois de ter to- despojado, e isso até que a medicina, grosso modo em mea-
mado os exemplos da cidade e da escassez alimentar, gos- dos do século XIX, com Pasteur, possa dar uma explicação
taria de tomar o exemplo, evidentemente quase necessário racional do fenômeno.
nesta série, da epidemia e, em particular, dessa doença en- Tinha-se pois técnicas absolutamente impensáveis nos
dêmico-epidêmica que era, no século XVIII, a variola'. Pro- termos da teoria médica, generalizáveis, seguras, preventi-
blema importante, claro, primeiro porque a variola era sem vas. O que aconteceu e quais foram os efeitos dessas técni-
sombra de dúvida a doença mais amplamente endêmica de cas puramente empúicas na ordem do que poderíamos cha-
todas as que se conhecia na época, pois toda criança que mar de "polícia médica"? 7 Creio que a variolização, primeiro,
nascia tinha duas chances em três de pegar variola. De uma e a vacinação em seguida beneficiaram -se de dois suportes
maneira geral e para toda a população, a taxa de [mortali- que tornaram possível [sua] inscrição nas práticas reais de
dade]* [devida à] variola era de 1 para 7,782, quase 8. Logo, população e de governo da Europa ocidental. Primeiramen-
fenômeno amplamente endêmico, de mortalidade eleva- te, claro, essa característica certa, generalizável, da vacina-
dissima. Em segundo lugar, era um fenômeno que também ção e da variolização permitia pensar o fenômeno em ter-
apresentava a característica de ter surtos epidêmicos muito mos de cálculo das probabilidades, graças aos instrumentos
fortes e intensos. Em Londres, particularmente, no fim do estatísticos de que se dispunha". Nessa medida, pode-se di-
século XVII e inicio do século XVIII, vocês têm, em interva- zer que a variolização e a vacinação beneficiaram -se de um
los que não iam além dos cinco ou seis anos, surtos epidê- suporte matemático que foi ao mesmo tempo uma espécie
micos intensíssimos. Em terceiro lugar, por fim, a variola é de agente de integração no interior dos campos de raciona-
evidentemente um exemplo privilegiado, já que, a partir de lidade aceitáveis e aceitos na época. Em segundo lugar, pa-
1720, com a chamada inoculação ou variolização', e a partir rece-me que o segundo suporte, o segundo fator de impor-
de 1800 com a vacinação', tem-se à disposição técnicas que tação, de imigração dessas práticas para o interior das prá-
apresentam o quádruplo caráter, absolutamente insólito nas ticas médicas aceitas- apesar da sua estranheza, da sua he-
práticas médicas da época, primeiro de serem absolutamen- terogeneidade em relação à teoria -, o segundo fator foi o
te preventivas, segundo de apresentarem um caráter de cer- fato de que a variolização e a vacinação se integravam, pelo
teza, de sucesso quase total, terceiro de poderem, em prin- menos de uma maneira analógica e por toda uma série de
cípio e sem dificuldades materiais ou econômicas maiores, semelhanças importantes, aos outros mecanismos de segu-
ser generalizáveis à população inteira, enfim e sobretudo a rança de que lhes falava. O que me pareceu de fato impor-
variolização primeiramente, mas também a própria vacina- tante, bem característico dos mecanismos de segurança a
propósito da escassez alimentar, era justamente que, en-
quanto os regulamentos jurídico-disciplinares que haviam
* M.F.: morbidade reinado até meados do século XVIII procuravam impedir o

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78 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 79

fenômeno da escassez alimentar, o que se procurou, a par- através disso tudo o que é que vemos?Vemos antes de mais
tir de meados do século XVIII com os fisiocratas, mas tam- nada que a doença vai deixar de ser compreendida naque-
bém com vários outros economistas, foi apoiar-se no pró- la categoria que ainda era muito sólida, muito consistente,
prio processo da escassez alimentar, na espécie de oscilação dentro do pensamento médico e da prática médica da épo-
quantitativa que produzia ora a abundância, ora a escassez, ca, a noção de" doença reinante'", Uma doença reinante, tal
apoiar-se na realidade desse fenômeno, não procurar impe- como vocês a vêem definida ou descrita na medicina do sé-
di-lo, mas ao contrário fazer funcionar em relação a ele ou- culo XVII e até mesmo do século XVIII, é uma espécie de
tros elementos do real, de modo que o fenômeno de certo doença substancial, digamos assim, enfim, uma doença que
modo se anulasse, Ora, o que havia de notável na varioliza- está ligada a um país, uma cidade, um clima, um grupo de
ção, mais na variolização e de uma maneira mais clara do pessoas, uma região, um modo de vida, Era nessa relação
que na vacinação, era que a variolização não procurava tan- maciça e global entre um mal e um lugar, um mal e pessoas,
to impedir a variola quanto, ao contrário, provocar nos in- que se definia, se caracterizava a doença reinante, A partir
divíduos que eram inoculados algo que era a própria varío- do momento em que, a propósito da variola, passam a ser
la, mas em condições tais que a anulação podia se produzir feitas as análises quantitativas de sucessos e insucessos, de
no momento mesmo dessa vacinação, que não resultava fracassos e de êxitos, quando passam a calcular as diferen-
numa doença total e completa, e era se apoiando nessa es- tes eventualidades de morte ou de contaminação, então a
pécie de primeira pequena doença artificialmente inocula- doença não vai mais aparecer nessa relação maciça da doen-
da que se podiam prevenir os outros eventuais ataques da ça reinante com o seu lugar, seu meio, ela vai aparecer
varíola. Temos aqui, tipicamente, um mecanismo de segu- como uma distribuição de casos numa população que será
rança que possui a mesma morfologia que observamos a circunscrita no tempo ou no espaço, Aparecimento, por con-
propósito da escassez alimentar, Logo, dupla integração no seguinte, dessa noção de caso, que não é o caso individual,
interior das diferentes tecnologias de segurança, no interior mas que é uma maneira de individualizar o fenômeno co-
da racionalização do acaso e das probabilidades, Eis, sem letivo da doença, ou de coletivizar, mas no modo da quan-
dúvida, o que tomava aceitáveis essas novas técnicas, acei- tificação, do racional e do identificável, de coletivizar os fe-
táveis, se não para o pensamento médico, pelo menos para nômenos, de integrar no interior de um campo coletivo os
os médicos, para os administradores, para os que eram en- fenômenos individuais, Portanto, noção de caso,
carregados da "polícia médica" e, finalmente, para as pró- Em segundo lugar, o que se vê aparecer é o seguinte
prias pessoas, fato: se a doença é assim acessível, no nível do grupo e no
Ora, creio que através dessa prática tipicamente de se- nível de cada indivíduo, nessa noção, nessa análise da dis-
gurança vemos esboçar-se um certo número de elementos tribuição dos casos é possível identificar a propósito de
que são importantíssimos para a posterior extensão dos dis- cada indivíduo ou de cada grupo individualizado qual o
positivos de segurança em geral, Em primeiro lugar, através risco que cada um tem, seja de pegar a variola, seja de mor-
de tudo o que acontece na prática da inoculação, na vigilân- rer dela, seja de se curar, Pode-se então, para cada indiví-
cia a que são submetidas as pessoas que foram inoculadas, duo, dada a sua idade, dado o lugar em que mora, pode-se
no conjunto dos cálculos pelos quais se procura saber se, de igualmente para cada faixa etária, para cada cidade, para
fato, vale ou não a pena inocular as pessoas, se se corre o cada profissão, determinar qual é o risco de morbidade, o
risco de morrer da inoculação, ou antes, da própria variola, risco de mortalidade, Sabe-se assim (e não estou me refe-


80 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 25 DE jANEIRO DE 1978 81

rindo, por exemplo, ao texto que é de certo modo o balan- da e o seja efetivarnente. Esses fenômenos de disparada que
ço de todas essas pesquisas quantitativas, que foi publica- se produzem ~e urna maneira regular são, em suma, o que
do bem no começo do sécuio XIX por Duvillard, com o tí- se chama - nao e;mtamente no vocabulário médico, aliás,
tulo de Análise da influência da varíola'", esse texto estabe- porqu_e a palavra Ja era empregada para designar outra coi-
lece todos esses dados quantitativos que foram acumula- sa-, e grosso modo o que vai se chamar de crise. A crise é
dos [no] século XVIII e mostra que, para cada criança que esse fenômeno de disparada circular que só pode ser con-
nasce, há um certo risco de pegar varíola e que é possível trolad~ por um mecanismo superior, natural e superior, que
estabelecer esse risco, que é da ordem de 2/3), para cada vru frea-lo, ou por urna rntervenção artificial.
faixa etária, qual o risco específico. Se alguém pegar varío- Caso, risco, perigo, crise: são, creio eu, noções novas,
la, será possível determinar qual o risco de morrer dessa pelo menos em seu campo de aplicação e nas técnicas que
varíola conforme a faixa etária, se for moço, velho, se per- e~as requerem, porque vamos ter, precisamente, toda urna
tencer a determinado meio, se tiver determinada profissão, sene de formas de mtervenção que vão ter por meta, não
etc. Será possível estabelecer também, se alguém for vario- faz~r corno se fazia antigamente, ou seja, tentar anular pura
lizado, qual o risco de que essa vacinação ou essa varioliza- e srrnplesrnente a doença em todos os sujeitos em que ela
ção provoque a doença e qual o risco de, apesar dessa va- se apresenta, ou ainda impedir que os sujeitos que estejam
riolização, pegá-la mais tarde. Noção portanto totalmente doe~ttes tenham contato com os que não estão. O sistema
central, que é a noção de risco. disCiplinar, no fundo~ aquele que_ vemos aplicado nos regu-
Em terceiro lugar, esse cálculo dos riscos mostra logo larnen:os de ep1derma: ou tambern nos regulamentos apli-
que eles não são os mesmos para todos os indivíduos, em to- cados as doenças endermcas, corno a lepra, esses mecanis-
das as idades, em todas as condições, em todos os lugares e mos disCiplinares a que tendem? Em primeiro lugar, é cla-
meios. Assim, há riscos diferenciais que revelam, de certo ro, a tratar a doença no doente, em todo doente que se apre-
modo, zonas de mais alto risco e zonas, ao contrário, de ris- sentar, na medida em que ela puder ser curada; e, em
co menos elevado, mais baixo, de certa forma. Em outras s~gundo !ugar, anular o contágio pelo isolamento dos indi-
palavras, pode-se identificar assim o que é perigoso. É pe- VIduas nao doentes em relação aos que estão doentes. Já o
rigoso, [em relação à] varíola, ter menos de três anos. É dispositivo que aparece com a variolização-vacinação vai
mais perigoso, [em relação ao] risco de varíola, morar numa consistir em quê? Não, em absoluto, em fazer essa demar-
cidade do que no campo. Logo, terceira noção importante, cação entre doentes e não-doentes. Vai consistir em levar
depois do caso e do risco, a noção de perigo. em conta o conjunto sem descontinuidade, sem ruptura,
E, por fim, pode-se identificar, de outro modo que não dos d?entes e não-doentes, isto é, em outras palavras, a po-
na categoria geral de epidemia, fenômenos de disparada, de pulaçao, e em ver nessa população qual é o coeficiente de
aceleração, de multiplicação, que fazem que a multiplicação mor~idade provável, ou de mortalidade provável, isto é, o
da doença num momento dado, num lugar dado, possa vir, que e normalmente esperado, em matéria de acometirnen-
por meio do contágio, a multiplicar os casos que, por sua to da doença, em matéria de morte ligada à doença, nessa
vez, vão multiplicar outros casos, e isso segundo urna ten- população. E foi assim que se estabeleceu- nesse ponto, to-
dência, urna curva que pode vir a não mais se deter, a não das as estatísticas, tais corno foram feitas no século XVIII
ser que, por um mecanismo artificial, ou também por um concordam- que a taxa de mortalidade normal devida à va~
mecanismo natural porém enigmático, possa ser controla- ríola era, portanto, de 1 para 7, 782. Dá para ter portanto

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82 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 83

idéia de uma morbidade ou de uma mortalidade "normal". essas diferentes distribuições de normalidade funcionarem
Essa é a primeira coisa. umas em relação às outras e [em] fazer de sorte que as mais
A segunda coisa é que, em relação a essa morbidade desfavoráveis sejam trazidas às que são mais favoráveis. Te-
ou a essa mortalidade dita normal, considerada normal, rnos portanto aqui urna coisa que parte do normal e que se
vai-se tentar chegar a uma análise mais fina, que permitirá serve de certas distribuições consideradas, digamos assim,
de certo modo desmembrar as diferentes normalidades umas mais normais que as outras, mais favoráveis em todo caso
em relação às outras. Vai-se ter a distribuição "normal" dos que as outras. São essas distribuições que vão servir de nor-
casos de afecção por varíola ou de morte devida à varíola ma. A norma está em jogo no interior das normalidades di-
em cada idade, em cada região, em cada cidade, nos dife- ferenciais*. O normal é que é primeiro, e a norma se deduz
rentes bairros da cidade, conforme as diferentes profissões dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a nor-
das pessoas. Vai-se ter portanto a curva normal, global, as ma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu di-
diferentes curvas consideradas normais, e a técnica vai con- ria que não se trata mais de uma normação, mas sim, no
sistir em quê? Em procurar reduzir as normalidades mais sentido estrito, de urna normalização.
desfavoráveis, mais desviantes em relação à curva normal, Tomei, há quinze dias, há oito dias e hoje, três exem-
geral, reduzi -las a essa curva normal, geral. Foi assim, por plos: a cidade, a escassez alimentar, a epidemia, ou, se pre-
exemplo, que, quando se descobriu, o que ocorreu bem cedo ferirem, a rua, o cereal, o contágio. Esses três fenômenos,
evidentemente, que a varíola afetava muito mais depressa, vemos imediatamente que têm entre si um vinculo bem vi-
muito mais facilmente, com muito mais força e urna taxa de sível, muito manifesto: todos eles estão ligados ao fenôme-
morbidade muito mais alta as crianças abaixo de três anos, no da cidade. Todos eles se encaixam portanto no primeiro
o problema que se colocou foi procurar reduzir essa morbi- dos problemas que procurei esboçar, porque afinal de con-
dade e essa mortalidade infantis de tal modo que ela ten- tas o problema da escassez alimentar e do cereal é o pro-
tasse chegar ao nível médio de morbidade e de mortalida- blema da cidade-mercado, o problema do contágio e das
de, o qual se verá aliás deslocado pelo fato de que uma fai- doenças epidêrnicas, é o problema da cidade corno foco
xa de individuas que figuram dentro dessa população geral de doenças. A cidade como mercado também é a cidade
terá uma morbidade e uma mortalidade mais fracas. É nes- como lugar de revolta; a cidade, foco de doenças, é acida-
se nível do jogo das normalidades diferenciais, do seu des- de como lugar de rniasrnas e de morte. De qualquer modo,
membramento e do rebate de umas sobre as outras que - o problema da cidade é que está, acredito, no âmago desses
ainda não se trata da epidemiologia, da medicina das epi- diferentes exemplos de mecanismos de segurança. E, se é
demias - a medicina preventiva vai agir. verdade que o esboço da complexa tecnologia das seguran-
Temos portanto um sistema que é, creio, exatamente o ças aparece por volta do meado do século XVIII, creio que é
inverso do que podíamos observar a propósito das discipli- na medida em que a cidade colocava problemas econômi-
nas. Nas disciplinas, partia-se de uma norma e era em rela- cos e políticos, problemas de técnica de governo que eram,
ção ao adestramento efetuado pela norma que era possível
distinguir depois o normal do anormal. Aqui, ao contrário,
vamos ter urna identificação do normal e do anormal, va- * M. Foucault, aqui, repete: e a operação de normalização consis·
mos ter uma identificação das diferentes curvas de norma- te em jogar e fazer jogar umas em relação às outras essas diferentes dis-
lidade, e a operação de normalização vai consistir em fazer tribuições de normalidade
84 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
85
ao mesmo tempo, novos e específicos: Digamos também,
de uma forma bem grosseira, sena preciSO burilar tudo Isso, cular ou não circular? E poderíamos dizer que, se o proble-
que dentro de um sistema de poder que era essenaalmen- ma tradicional da soberania e, por conseguinte, do poder
te territorial, que tinha se fundado e desenvolVIdo a partir político ligado à forma da soberania, sempre fora até então
da dominação territorial tal como haVIa sido de~Ida p~la o de, ou conquistar novos territórios, ou, ao contrário, man-
feudalidade, a cidade sempre tinha sido uma exceçao. Alias, ter o território conquistado, podemos dizer, nessa medida,
a cidade por excelência era a cidade franca: Era a adade que que o problema da soberania era de certa forma este: como
é que as coisas não se mexem, ou corno é que posso ir em
tinha a possibilidade, o direito, à qual se tinha reconhecido
frente sem que se mexam? Como demarcar o território,
0 direito de se governar até certo ponto e num? certa me-
como fixá-lo, como protegê-lo ou ampliá-lo? Em outras pa-
dida e com certo número de limites bem defirudos. Mas a lavras, tratava-se de algo que poderíamos chamar precisa-
cidade representava sempre como que ~ espaço de auto- mente de segurança do território ou segurança do sobera-
nomia em relação às grandes orgaruzaçoes. e aos grandes no que reina no território. E é esse, afinal de contas, o pro-
mecanismos territoriais de poder que caractenzavam um po- blema de Maquiavel. O problema que Maquiavel colocava
der desenvolvido a partir da feudalidade. Creio que a mte- era justamente o de saber como, num território dado, tenha
gração da cidade aos mecanismos centrais de poder, melhor ele sido conquistado ou recebido em herança", seja o poder
dizendo, a inversão que fez que a cidade tenha se toma~o legítimo ou ilegítimo, pouco importa, como fazer para que
0 problema primeiro, antes.mesmo do p~oble':_'a do temt_o- o poder do soberano não fosse ameaçado ou, em todo caso,
rio, creio que esse é um fenomeno, uma mversa_o ~~acten~­ pudesse, com toda certeza, afastar as ameaças que pesavam
tica do que aconteceu entre o século XVll e o IniCIO do se- sobre ele. Segurança do príncipe: era esse o problema do
culo XIX. Problema a que foi preciso resl?onder com novos príncipe, na realidade do seu poder territorial, era esse, a
mecanismos de poder cuja forma, sem duVIda, deve ser en- meu ver, o problema político da soberania. Mas, longe de
contrada no que chamo de mecanismos de segurança. No pensar que Maquiavel abre o caminho para a modernidade
fundo, foi necessário reconciliar o fato da Cidade com a le- do pensamento político, direi que ele assinala, ao contrário,
gitimidade da soberania. Como _exercer a sobe.rarua sobre a o fim de uma era, em todo caso que ele culmina num mo-
cidade? Não era simples, e para ISso fm necessana toda U':_'a mento, assinala o ápice de um momento em que o proble-
série de transformações, da qual o que lhes mdiquei nao ma era, de fato, o da segurança do príncipe e do seu territó-
passa, evidentemente, de um minúsculo esboço. • rio. Ora, parece-me que o que vemos aparecer através dos
Em segundo lugar, gostana de notar que esses tres f<;- fenômenos evidentemente muito parciais que procurei iden-
nômenos que procurei identificar- a rua, o cereal, o conta- tificar era um problema bem diferente: não mais estabele-
gio, ou a cidade, a escassez aliment':", a epidenua -: esses cer e demarcar o território, mas deixar as circulações se fa-
três fenômenos, ou melhor, esses tresproblemas tem em zerem, controlar as circulações, separar as boas das ruins,
comum que as questões que colocam grram finalmente, to- fazer que as coisas se mexam, se desloquem sem cessar, que
das elas mais ou menos em tomo do problema da rucula- as coisas vão perpetuamente de um ponto a outro, mas de
ção. Cir::Wação entendida, é claro, no sentido bem amplo, urna maneira tal que os perigos inerentes a essa circulação
como deslocamento, como troca, como contato, c~mo for- sejam anulados. Não mais segurança do príncipe e do seu
ma de dispersão, como forma de <;tistribuição lambem, sen- território, mas segurança da população e, por conseguinte,
do 0 problema o seguinte: como e que as coisas devem ru- dos que a governam. Outra mudança, pois, que creio impor-
tantíssima. ·

)
L..
86 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AmA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 87

Esses mecanismos [ainda] têm uma terceira caracterís- idéia totalmente arcaica, pois se trata no fundo, no meca-
tica em comum. Sejam as novas formas de pesquisa urba- nismo panóptico, de colocar no centro alguém, um olho,
nística, seja a maneira de impedir a escassez ou, pelo me- um olhar, um princípio de vigilância que poderá de certo
nos, de controlá-la, sejam as maneiras de prevenir as epide- modo fazer sua soberania agir sobre todos os indivíduos
mias, seja lá como for esses mecanismos têm o seguinte em [situados] no interior dessa máquina de poder. Nessa me-
comum: eles tentam fazer uns e outros agirem, mas sem dida, podemos dizer que o panóptico é o mais antigo sonho
que se trate, de maneira nenhuma, em todo caso não pri- do mrus antigo soberano: que nenhum dos meus súditos
meiramente e de modo fundamental, de uma relação de escape e que nenhum dos gestos de nenhum dos meus sú-
obediência entre uma vontade superior, a do soberano, e as ditos me seja desconhecido. Soberano perfeito também é,
vontades que lhe seriam submetidas. Trata-se ao contrário de ~erto modo, o ponto central do panóptico. Em compen-
de fazer os elementos de realidade funcionarem uns em re- saçao, o que vemos surgrr agora [não é] a idéia de um po-
lação aos outros. Em outras palavras, não é ao eixo da rela- der que assumma a forma de uma vigilância exaustiva dos
ção soberano-súditos que o mecanismo de segurança deve indivíduos para que, de certo modo, cada um deles, em
se conectar, garantindo a obediência total e, de certa forma, cada momento, em tudo o que faz, esteja presente aos olhos
passiva dos indivíduos ao seu soberano. Ele se conecta aos do soberano, mas o conjunto dos mecanismos que vão tor-
processos que os fisiocratas diziam físicos, que poderíamos n~ pertinentes, para o governo e para os que governam, fe-
dizer naturais, que podemos dizer igualmente elementos nomenos bem específicos, que não são exatamente os fenô-
de realidade. Esses mecanismos também tendem a uma menos individuais, se bem que- e será preciso tomar sobre
anulação dos fenômenos, não na forma da proibição, "você e~s; ponto, porque_ é importantíssimo-, se bem que os in-
não pode fazer isso", nem tampouco "isso não vai aconte- diVIduas figurem ai de certo modo e os processos de indi-
cer", mas a uma anulação progressiva dos fenômenos pelos vidualização sejam ai bem específicos. É uma maneira bem
próprios fenômenos. Trata-se, de certo modo, de delimitá- diferente de fazer funcionar a relação coletivo/indivíduo,
los em marcos aceitáveis, em vez de impor-lhes uma lei que totalidade do corpo social/fragmentação elementar, é uma
lhes diga não. Não é portanto no eixo soberano-súditos, maneira diferente que vai agir no que chamo de população.
tampouco é na forma da proibição que os mecanismos de E o governo das populações é, creio, algo totalmente dife-
segurança põem -se a funcionar. rente do exercício de uma soberania sobre até mesmo o
E, enfim, todos esses mecanismos- e chegamos assim grão mais fino dos comportamentos individuais. Temos aí
ao ponto, creio eu, central em tudo isso -, esses mecanis- duas economias de poder que são, parece-me, totalmente
mos não tendem como os da lei, como os da disciplina, are- diferentes.
percutir da maneira mais homogênea e mais contínua, mais Gostaria portanto, agora, de começar a analisar isso.
exaustiva possível, a vontade de um sobre os outros. Trata- Procurei simplesmente, através dos exemplos da cidade, da
se de fazer surgir certo nível em que a ação dos que gover- escassez alimentar e da epidemia, apreender mecanismos,
nam é necessária e suficiente. Esse nível de pertinência para a meu ~er, novos t_:es~a época. E através deles, vê-se que o
a ação de um governo não é a totalidade efetiva e ponto por que esta em questao e, de um lado, toda uma economia de
ponto dos súditos, é a população com seus fenômenos e poder bem diferente e, de outro lado - é sobre isso que eu
seus processos próprios. A idéia do panóptico", idéia em gostaria de _lhes dizer agora algumas palavras -, um perso-
certo sentido moderna, podemos dizer que é também uma nagem político absolutamente novo, creio eu, que nunca
88 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 89

havia existido, que não havia sido percebido, reconhecido, que algum flagelo tomava a mortalidade tão dramática que
de certo modo, recortado até então. Esse novo personagem se quena saber exatamente quantas pessoas morriam, onde
fez uma entrada notável, e logo notada aliás, no século morriam e de que morriam". Em outras palavras, a questão
XVIII - a população. da população não era considerada de maneira nenhuma
_Claro, não é a primeira vez_que o problema, as preocu- em sua positividade e em sua generalidade. Era em relação
paçoes conceme:'tes a populaçao aparecem, não apenas no a uma mortalidade dramática que se colocava a questão de
p_ensamento político em geral, mas no interior mesmo das saber o que é a população e como se poderá repovoar.
tecmcas, dos procedimentos de governo. Pode-se dizer que, O valor positivo da noção de população tampouco data
de forma mwto remota, considerando aliás o uso da pala- desse meado do século XVIII a que até aqui me referi. Bas-
vra "população" e:n t~xtos -?lais antigos 13, vê-se que o pro- ta ler os textos dos cronistas, dos historiadores, dos viajan-
blema da populaçao tinha s1do colocado desde havia muito te_;; para ver que a população sempre figwa, em sua descri-
e, de certo modo, de uma maneira quase permanente, mas çao, como um dos fatores, um dos elementos do poderio de
sob uma modalidade essencialmente negativa. O que se um soberano. Para que um soberano fosse poderoso, era
chamava de população era essencialmente o contrário da evidentemente necessário que ele reinasse sobre um terri-
depopulação. Ou seja, entendia-se por "população" o mo- tório extenso. Media-se também, ou estimava-se, ou avalia-
VImento pelo qual, após algum grande desastre, fosse ele a va-se a importãncia dos seus tesouros. Extensão do territó-
ep1derma, a guerra ou a escassez alimentar, depois de um rio: importãncia dos tesouros e população, sob três aspectos
desses grandes momentos dramáticos em que os homens alias: portanto, uma população numerosa e, por conseguin-
momam numa rapidez, numa intensidade espetacular, o te, capaz de figwar no brasão do poder de um soberano,
moVIIDento pelo qual se repovoava um território que tinha essa população se manifestava pelo fato de que ele dispunha
se tomado deserto. Digamos ainda que é em relação ao de- de tropas numerosas, pelo fato de que as cidades eram po-
serto ou à desertificação devida às grandes catástrofes hu- pulosas, pelo fato enfim de que os mercados eram muito fre-
manas que se colocava o problema da população. Aliás é qüentados. Essa população numerosa só podia caracterizar
bem característico ver que as célebres tabelas de mortalida- o poder do soberano sob duas condições suplementares. A
de - vocês sabem que a demografia do século XVIII só pôde de que ela fosse obediente, de um lado, e, de outro, anima-
c':meçar na m~dida em que foram estabelecidas, em certo da por um zelo, por um gosto do trabalho e por uma ativi-
numero de pruses, especialmente na Inglaterra, tabelas de dade que permitiam que o soberano, por um lado, fosse
mo:talidade q'_le possibilitavam toda uma série de quantifi- efetivamente poderoso, isto é, obedecido, e, por outro lado,
caçoes e tambem perrmtiam saber de que as pessoas haviam rico. Tudo isso pertence ao que há de mais tradicional na
morrido" -, as tabelas de mortalidade, é claro, nem sempre maneira de conceber a população.
eXIStiram e, pnnc1palmente, nem sempre foram contínuas. As coisas começam a mudar com o século XVII, época
Na Inglaterra, que foi o primeiro país a fazer essas tabelas que se caracterizou pelo cameralismo'" e pelo mercantilis-
de mortalidade, só se faziam, durante o século XVI e, creio m017* que não são tanto doutrinas econômicas quanto uma
eu, até o início do século XVII- não me lembro mais mui- nova maneira de colocar os problemas do governo. Tomare-
to bem da data em que as coisas mudaram-, em todo caso
durante todo o século XVI, só se faziam tabelas de mortali-
dade na época das grandes epidemias e nos momentos em • M. Foucault faz aqui, no manuscrito, a pergunta:"Assimilá-los?".
90 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
91
mos, se for o caso, a esse ponto. Em todo caso, para os mer- ção como _força produtiva, no sentido estrito do termo, a
cantilistas do século XVll, a população já não aparece sim- ~reocupaçao do mercantilismo::: e ~reio justamente que não
plesmente como uma característica positiva que pode figu- e depois dos mercantilistas, nao e no século XVIII, não é
rar nos emblemas do poder do soberano, mas aparece no evz~entemente tampouco no século XIX que a população
interior de uma dinâmica, ou melhor, não no interior, mas sera considerada essencial e fundamentalmente força pro-
no princípio mesmo de uma dinámica- da dinâmica do po- dutiva. Os que consideraram a população essencialmente
der do Estado e do soberano. A população é um elemento força produtiva foram os mercantilistas ou os cameralistas
fundamental, isto é, um elemento que condiciona todos os contanto, é claro, que essa população fosse efetivament~
outros. Condiciona por quê? Porque a população fornece adestrada, repartida, distribuída, fixada de acordo com meca-
braços para a agricultura, isto é, garante a abundância das nismos disciplinares. População, princípio de riqueza, força
colheitas, já que haverá muitos cultivadores, muitas terras produtiva, enquadramento disciplinar: tudo isso se articula
cultivadas, abundância de colheitas, logo preço baJXo dos no mtenor do pensamento, do projeto e da prática política
cereais e dos produtos agrícolas. Ela também fornece bra- dos mercantilistas.
ços para as manufaturas, isto é, permite por conseguinte A p~ d? século XVIII, nesses anos que tomei até aqui
dispensar, tanto quanto possível, as importações e tudo o como refe~encta, parece-me que as coisas vão mudar. Cos-
que seria necessário pagar em boa moeda, em ouro o:' em tuma-se dJZer_que os fisiocratas, por oposição aos mercan-
prata, aos países estrangeiros. [Enfim,] a população e um tilistas do penado precedente, eram antipopulacionistas "·
elemento fundamental na dinâmica do poder dos Estados Ou seJa, enquanto uns consideravam que a população, por
porque garante, no interior do próprio _Estado, toda uma ser fonte de nqueza e de poder, devza ser o mais possível
concorrência entre a mão-de-obra poss1vel, o que, obvza- aumentada, pretende-se que os fisiocratas tinham posições
mente, assegura salários baixos. Baixo salário quer dizer mmto ma1s matizadas. ~a verdade, acredito que não é tan-
preço baixo das mercadorias produzidas e possibilidad~ de to sobre _o valor ou o nao-valor da extensão da população
exportação, donde nova garantia do poder, novo pnnC!p!O que se da a d1ferença. Parece-me que os fisiocratas se dife-
para o próprio poder do Estado. . rencram dos mercantilistas ou dos cameralistas essencial-
A população estar assim na base tanto da nqueza como mente porque têm outra maneira de tratar a população'".
do poderio do Estado é algo que só pode ocorrer, claro, se Porque, no fundo, os mercantilistas e os carneralistas, quan-
ela é enquadrada por todo um aparato regulamentar_ que do falavam dessa população que, por um lado, era funda-
vai impedir a emigração, atrair os irrugrantes, ?eneficJar a mento de nqueza e, de outro lado, devia ser enquadrada
natalidade, um aparato reguiamentar que tambem Va.J defi- por um_sistema ;e~amentar, ainda a consideravam apenas
nir quais são as produções úteis e exportáveis, que vai_ esta- a coleçao dos suditos de um soberano, aos quais se podia,
belecer também os objetos a serem produzidos, os meiOs de precrsamente, tmpor de ctma, de urna maneira inteiramen-
produzi -los, os salários também, que vai proibir o ócio e a te voluntarista, certo número de leis, de reguiamentos que
vagabundagem. Em suma, todo um aparato gue vaifazer lhes diz1a o que devzam fazer, onde deviam fazer, como de-
dessa população, considerada portanto pnnC!p!O, ra.JZ, de Viam fazer. Em outras palavras, os mercantilistas considera-
certo modo, do poder e da riqueza do Estado, que Va.J ga- vam de certo modo o problema da população essencial-
rantir que essa população trabalhará como convier, onde mente no eiXo do soberano e dos súditos. Era como súditos
convier e em que convier. Em outras palavras, era a popula- de direito, súditos submetidos a uma lei, súditos suscetíveis

j
92 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
93
de um enquadramento regulamentar, era na relação entre a que são reconheci~os,a este ou. aquele tipo de conduta: por
vontade do soberano e a vontade submissa das pessoas que exemplo, valonzaçao etico-religiosa do celibato dos padres e
se situava o projeto mercantilista, cameralista ou colbertia- dos monges. Ela vaz;ia também e principalmente com, é cla-
no, se preferirem. Ora, acredito que, com os fisiocratas- de ro, o est~do dos meios de subsistência, e é aí que encontra-
uma maneira geral, com os economistas do século XVIll -, ll2os o celeb~e afonsm_o de Mirabeau, que diz que a popula _
a população vai parar de aparecer como uma coleção de sú- çao nunca rra vanar al:m, e não pode, em caso algum, ir além
ditos de direito, como uma coleção de vontades submetidas dos limites que _!he. '!o estabelecidos pela quantidade dos
que devem obedecer à vontade do soberano por intermédio meios de subsistencra . Todas essas análises, sejam elas as de
de regulamentos, leis, decretos, etc. Ela vai ser considerada Mira~eau, do ~?ade Pierre J:uberf' ou de Quesnay no ver-
um conjunto de processos que é preciso administrar no que bete Homens da Enczclopédza"', tudo isso mostra com ela_
têm de natural e a partir do que têm de natural. reza que, nesseyensament?'. a população não é essa espécie
Mas o que significa essa naturalidade* da população? de_ dado pmrutivo, de matena sobre a qual vai se exercer a
O que faz que a população, a partir desse momento, seja açao do soberano, esse vis-à-vis do soberano. A população é
percebida não a partir da noção jurídico-política de sujeito, um dado que ~epende de toda uma série de variáveis que fa-
mas como uma espécie de objeto técnico-político de uma zem que ela nao pos:a ser transparente à ação do soberano,
gestão e de um governo? O que é essa naturalidade? Creio, ou amda, que a relaçao entre a população e o soberano não
para dizer as coisas muito brevemente, que ela aparece de possa ser srrnplesmente da ordem da obediência ou da recu _
três maneiras. Primeiramente, a população, tal como é pro- sa d~ obediência, da obediência ou da revolta. Na verdade, as
blematizada no pensamento, mas [também] na prática go- vanaveis de que depende a população fazem que ela escape
vernamental do século XVTII, não é a simples soma dos in- consideravelmente da ação voluntarista e direta do soberano
divíduos que habita um território. Tampouco é resultado ape- na form~ da_ lei. Se se diz:' uma população "faça isto", nada
nas da vontade deles de se reproduzirem. Tampouco é o vis- prova nao_ so q_ue ela o fara, mas também, simplesmente, que
à-vis de uma vontade soberana que pode ou favorecê-la ou ela po~era faze-lo. O limite da lei, enquanto só se considerar
esboçá-la. Na verdade, a população não é um dado primei- a r~laçao soberano-súdito, é a desobediência do súdito é 0
ro, ela está na dependência de toda uma série de variáveis. "nao" opo_:;to pelo súdito ao soberano. Mas, quando se' tra-
A população varia com o clima. Varia com o entorno mate- ~ da relaçao entre o governo e a população, o limite do que
rial. Varia com a intensidade do comércio e da atividade de e decrdido pelo soberano ou pelo governo não é necessaria _
circulação das riquezas. Varia, é claro, de acordo com as leis mente a recusa_das pessoas às quais ele se dirige.
a que é submetida: por exemplo, os impostos, as leis sobre o A populaç~o aparece portanto, nessa espécie de espes-
casamento. Varia também com os hábitos das pessoas: por sura em rela~ao ao voluntarismo legalista do soberano,
exemplo, a maneira como se dá o dote das filhas, a manei- como u~ fenomeno de natureza. Um fenômeno de nature-
ra como se assegura os direitos de primogenitura, a maneira za que .nao se pode mudar como que por decreto, 0 que não
como se criam as crianças, como são ou não confiadas a uma 9uer di;er entreta':to que a população seja uma natureza
ama. A população varia com os valores morais ou religiosos ma~essivel e 9ue nao seJa penetrável, muito pelo contrário.
É ru que a análise dos fiswcratas e dos economistas se to r-
na mteressante,_po_rque essa naturalidade que se nota no
,.. naturalidade: entre aspas no manuscrito, p. 13. fato da populaçao e perpetuamente acessível a agentes e a
94 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AUlA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
95
técnicas de transformação, contanto que esses agentes e es-
sas técnicas de transformação sejam ao mesmo tempo es- na! de contas, essa população é evidentemente feita de indi-
clarecidos, refletidos, analfticos, calculados, calculadores. É víduos, de indivíduos perfeitamente diferentes uns dos ou-
necessário, evidentemente, não apenas levar em c?nt.a ~ tros, cujo comportamento, pelo menos dentro de certos li-
mudança voluntária das leis, se as leis são desfavorave1s a mites, não se pode prever exatamente. Apesar disso existe, de
população; mas principalmente, ses: qUiser favorecer a p~­ acordo com os primeiros teóricos da população no século
pulação ou conseguir que a populaçao esteja numa relaça~ XVITI, pelo menos uma invariante que faz que a população
justa com os recursos e as possi~ilidades de um Estado, e tomada em seu conJunto tenha um motor de ação, e só um.
necessário agir sobre toda uma sene de fat'?res, de elem':.n- Esse motor de ação é_ o desejo. O desejo - velha noção que
tos que estão aparentemente longe da propria populaçao, haVIa feito sua apançao e que havia tido sua utilidade na di-
do seu comportamento imediato, longe da ~ua fecundida- reção de consciência (poderíamos eventualmente tomar so-
de, da sua vontade de reprodução. É ne~essano, por e_xem- bre esse pont_?)'·' -,o desejo faz aqui, pela segunda vez ago-
pio, agir sobre os fluxos de moeda que vao rrngar o prus, sa- ra, sua apança? no mtenor das técnicas de poder e de gover-
ber por onde esses fluxos de moeda passam, sa~er se ei:s no. O desejo e aquilo por que todos os indivíduos vão agir.
irrigam de fato todos os elementos da populaçao, se nao DeseJo contra o qual não se pode fazer nada. Como diz
deixam regiões inertes. Vai ser preciso agu sobre as :xporta- Quesnay: você não pode impedir as pessoas de virem morar
ções: quanto mais houver. demanda de exportaçao, mrus onde consideraram que será mais proveitoso para elas e
haverá evidentemente possibilidades de trabalho, logo p~s­ onde _elas desejam m~rar, porque elas desejam esse provei-
sibilidades de riqueza, logo possibilidades de populaçao. to. Nao procure muda-las, elas não vão mudar". Mas- e é
Coloca-se o problema das import~ções: iml'ortando, bene- aqui que essa naturalidade do desejo marca a população e se
ficia-se ou prejudica-se a populaçao? Se se Importa, tira-se toma penetrável pela técnica governamental - esse desejo,
trabalho das pessoas daqui, mas, se se importa, dá-se tam- por motivos sobre os quais será necessário tomar e que
bém comida. Problema, portanto, capital no século ~· constituem um dos elementos teóricos importantes de todo
da regulamentação das importações. Em todo caso, e por o sistema, esse desejo é tal que, se o deixarmos agir e con-
todos esses fatores distantes, pelo jogo desses fa~or1" que ~to que o deiXemos agir, em certo limite e graças a certo
vai efetivamente ser possível agir sobre a populaçao. por- num7ro de relacionamentos e conexões, acabará produzin-
tanto uma técnica totalmente diferente qu:_ se esboça, _como do o mteresse geral da população. O desejo é a busca do in-
vocês vêem: não se trata de obter a obediencra dos suditos teresse para o indivíduo. O indivíduo, de resto, pode perfei-
em relação à vontade do soberano, mas_ de aluar sobre cm- tamente se enganar, em seu desejo, quanto ao seu interesse
sas aparentemente distantes da populaçao, mas que se sabe, pess~al, mas há uma coisa que não_engana: que o jogo es-
por cálculo, análise e reflexão, que podem efetiva;nente pontãneo ou, em todo caso, espontaneo e, ao mesmo tem-
aluar sobre a população. É essa naturalidade penetravel da po, regrado do desejo permitirá de fato a produção de um
população que, a meu ver, faz que ter:J'amos aqUI uma m:'- ~teresse, d':_ algo que é interessante para a própria popula-
tação importantíssima na organiZaçao e na rac10nalizaçao çao. Produçao do mteresse coletivo pelo jogo do desejo: é o
dos métodos de poder. . que marca ao mesm'? tempo a naturalidade da população e
Poderíamos dizer também que a naturalidade da popu- a artificralidade poss1ve! dos meios criados para geri -la.
lação aparece de uma segunda maneira no fato de que, afi- B impor:ante, porque vocês vêem que com essa idéia
de uma gestao das populações a partir de uma naturalida-
96 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
97
de do desejo delas e da produção esp,ontânea do interess:
coletivo pelo desejo, que com essa 1de1a te~-~e algo q_ue e plexas e modificáveis, a naturalidade da população aparece
0 exato oposto do que era a velha concepç~o eticO-J~dica de uma terceira maneira. Ela aparece na constância dos fe-
do governo e do exercíci~ da soberar:na: Pms, o ~ue : o so- nômenos que se poderia esperar que fossem variáveis, pois
berano para os juristas, e JSto para os Junstas medievrus, mas dependem de acidentes, de acasos, de condutas individuais,
também para todos os teóricos do direito natur~, tanto de causas conjuntirrais. Ora, esses fenômenos que deve-
para Hobbes como para Rousseau? O soberal!~ e aquele riam ser irregulares, basta observá-los, olhá-los e contabili-
que é capaz de dizer não ao desejo de todo mdiVJduo, sen- zá-los para perceber que na verdade são regulares. Foi essa
do 0 problema o de saber como esse "não" oposto ao ~ese­ a grande descoberta, no fim do século XVII, do inglês Graunt'",
jo dos indivíduos pode ser legítimo e fundado na propna que, justamente a propósito dessas tabelas de mortalidade,
vontade dos indivíduos. Enfim, esse é um enorme proble- pôde estabelecer não apenas que a cada ano havia, de qual-
ma. Ora, vemos formar-se, através desse, pensamento eco- quer modo, um número constante de mortos numa cidade,
nôrnico-político dos fisiocratas, uma JdeJa bem di!erente, mas que havia uma proporção constante dos diferentes aci-
que é a seguinte: o problema dos que governam nao d:_ve dentes, variaclíssirnos porém, que produzem essas mortes.
ser absolutamente o de saber como elesl'odem dizer nao, A mesma proporção de pessoas morre de consumpção, a
até onde podem dizer não, c?m que leg~tirrudade eles ~o­ mesma proporção de pessoas morre de febres, ou de pedra,
dem dizer não; o problema e o de saber como dizer SIIIl, ou de gota, ou de icterida". E o que evidentemente deixou
como dizer sim a esse desejo. Não, portanto, o limite da Graunt totalmente estupefato foi que a proporção de suicí-
concupiscência ou o limite do amor-próprio, no s~ntido do dios é exatamente a mesma de um ano para o outro nas ta-
amor a si mesmo~ mas ao contrário tudo o que vru estim:U~ belas de mortalidade de Londres"'. Vêem-se também outros
lar favorecer esse amor-próprio, esse desejo, de manerr fenômenos regulares, como, por exemplo, que há mais ho-
qu'é possa produzir os efeitos benéficos que deve necessa- mens que mulheres no nascimento, mas que há mais aci-
riamente produzir. Temos aí portanto a m~triz de toda uma dentes diversos que atingem os meninos do que as meni-
filQSQ fia digamos utilitarista". E como cre10 que aaliIdeolog~a
I f
nas, de modo que, ao fim de certo tempo, a proporção se
de Condillac", enfim, o que se chamou de sensu smo~ era restabelece". A mortalidade das crianças é, em todo caso,
0 instrumento teórico pelo qual se podia embasar a pratica sempre maior que a dos adultos". A mortalidade é sempre
da disciplina", direi que a filosofia utihtansta f01 o m~tru­ mais elevada na cidade do que no campo", etc. Temos aí,
mento teórico que embasou esta novidade que fOI, na epo- portanto, uma terceira superficíe de afloramento para a na-
ca 0 governo das populações*. turalidade da população.
' Enfim, a natirralidade da população que apa,rece nesse Não é portanto uma coleção de sujeitos juridicos, em
benefício universal do desejo, que aparece tamb<;m no fato relação individual ou coletiva, com uma vontade soberana.
de que a população é sempre dependente de vanaveJs com- A população é um conjunto de elementos, no interior do
qual podem-se notar constantes e regularidades até nos
,. Manuscrito P· 17: "O importante, também, é que a 'filosofia
acidentes, no interior do qual pode-se identificar o univer-
'
utilitarista' é um pouco para o governo das popu1açoes
- o que a ldeolo- sal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos
gia era para as disciplinas." e a propósito do qual pode-se identificar certo número de
variáveis de que ele depende e que são capazes de modifi-
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 2S DE JANEIRO DE 1978
98 99

nsideração ou, se preferirem, a ção, das campanhas, dos convencimentos. A população é


cá-lo. Com a tomada em co , ·os à população, creio que portanto tudo o que vai se estender do arraigarnento bioló-
pertinentizaçã<;, de efettosf;~~ortante: é o ingresso, n~ gico pela espécie à superfície de contato oferecida pelo pú-
temos um fenomeno mmd d uma natmeza* que não e blico. Da espécie ao público: temos aí todo um campo de
• · asdepo er, e
campo das tecmc . uilo contra 0 que o so- novas realidades, novas realidades no sentido de que são,
. uilo acrma de que, aq .
aquilo a que, aq . . t Não há natmeza e, depms, para os mecanismos de poder, os elementos pertinentes, o
berano deve impor lets JU~ as. oberano e a relação de obe- espaço pertinente no interior do qual e a propósito do qual
acima da natUle~a, condtra;. a, ~s: mna população cuja natu- se deve agir.
diência que lh~ e deVI a: e~essa natmeza, com ajuda des- Poderíamos acrescentar ainda o seguinte: quando falei
reza é tal que e no 'r;~~~rdessa natmeza que o soberano da população, havia uma palavra que voltava sem cessar -
sa natmeza, a propo dim tos refletidos de governo. Em vocês vão me dizer que fiz de propósito, mas não totalmen-
deve desenvolver pro ce d en ulação tem -se algo bem di- te talvez-, é a palavra "governo". Quanto mais eu falava da
outras palavras, no caso a pop d diret'to diferenciados população, mais eu parava de dizer "soberano". Fui levado
1 ão de SUJeitos e
ferente de uma co eç aliz - seus bens seus cargos, seus a designar ou a visar algo que, aqui também, creio eu, é re-
por seu estatuto, sua loc açaot,o de elem~ntos que, de mn lativamente novo, não na palavra, não num certo nível de
, . [t e]** um con1un d tr
ofícios; em-s . al dos seres vivos e, e ou o, realidade, mas como técnica nova. Ou antes, o privilégio
lado, se inserem no re~ne ~r contato para transformações que o governo começa a exercer em relação às regras, a tal
apresentam mna supe 'doe ecalculadas. A dimensão pela ponto que um dia será possível dizer, para limitar o poder
. • · mas refletl as e . •
autontanas, tre 05 outros seres VIVOS e a do rei, que "o rei reina, mas não govema" 36, essa inversão
qual a população se inse:~áe~ancionada quando, pela pri- do governo em relação ao reino e o fato de o governo ser no
que vai aparecer e ~ue sh homens de "gênero hu- fundo muito mais que a soberania, muito mais que o reino,
. deiXara de c amar os "34
merra vez, se ~ h á-los de "espécie humana . muito mais que o imperium, o problema político moderno
mano" e se começara a c am ênero humano aparece creio que está absolutamente ligado à população. A série:
A partir ~o. momento e~e i\e~e~nação de todas as e~pé­ mecanismos de segurança - população - governo e abertu-
como especte, no camp_o d. r ue o homem aparecera em ra do campo do que se chama de política, tudo isso, creio eu,
cies vivas, pode-s_e entao;~a \.população é portanto, de constitui mna série que seria preciso analisar.
sua inserçao bt?logtca pn e de outro, o que se chama de Queria lhes pedir mais cinco minutos para acrescentar
um lado, a e~peoe ~umana ~vra não é nova, mas seu uso uma coisa, e vocês vão compreender por quê. Está um pou-
público. A~m tambe~ a p~al o século XVIII, é a popula- co à margem de tudo isso". Emergência portanto dessa coi-
sim·". O publico, noçao ~:!'de ~sta das suas opiniões, das sa absolutamente nova que é a população, com a massa de
ção constderada do po d comportamentos, dos seus problemas jurídicos, políticos e técnicos que levanta. Agora,
· d fazer os seus
suas maneiras e ' dos seus preconceitos, das suas se pegarmos outra série de domínios, [a] do que podería-
hábitos, dos seus temores, se age por meio da educa- mos chamar de saberes, perceberemos- e não é uma solu-
exigências, é aquilo sobre o que
ção que lhes proponho, mas um problema - que em toda
., 18 uma série de saberes esse mesmo problema da população
"'natureza.. entre aspas no manuscn o, P· aparece.
""*M.F.: mas

J
AUlA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 101
SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
100
mente pensado como um problema de bioeconomia, en-
Mais precisamente, tomemos o caso da economia ~~~ quanto Marx tentou contornar o problema da população e
líti No fundo na medida em que se tratou, para as p descartar a própria noção de população, mas para voltar a en-
so~:-que se o~pavam de finanças -já que era disso q~: contrá-la sob a forma propriamente, não mais bioeconômi-
ainda se tratava no século XVll -,de quantificar t~ nquezda' ca, mas histórico-política de classe, de enfrentamento de clas-
de medir sua circulação, de determinar o pape • ~ moe ri: ses e de luta de classes. É isto mesmo: ou a população, ou as
de saber se era melhor desvalorizar ou, ao contrano, :~ - classes, e foi aqui que se produziu a fratura, a partir de um
moeda na medida em que se tratava de est e pensamento econômico, de um pensamento de economia
zar uma ' ~ · xt · r creio que a
cer ou de manter os fluxos do comemo e en0 , d política que só havia sido possível corno pensamento na me-
"análise econômica" * permaneoa exat~ente ~? plano ~ dida em que o sujeito-população havia sido introduzido.
que poderíamos chamar de análise das nquez~e· i:e~oe~­ lbrnern agora o caso da história natural e da biologia.
pensação, a partir do momento em que se po. d 'ti- No fundo, a história natural, corno vocês sabem, tinha es-
trar no campo não apenas da teona mas tambem a pra • sencialmente por papel e função determinar quais eram as
ca ~conômica, esse novo sujeit<;, novo sujeJto-objeto q:o~ características classificatórias dos seres vivos que possibili-
pulação e isso sob seus diferentes aspectos, aspe tavam reparti-los nesta ou naquela casa da tabela". O que
~!~ográficds, mas também como papel esp.ecífico ~os pr~~ se [produziu] no século XVIII e no início do século XIX foi
dutores e dos consumidores, dos propnetanos e os q toda uma série de transformações que fizeram que se pas-
não são proprietários, dos que criam lucro e dos que reco- sasse da identificação das características classificatórias à
. ue a artir do momento em que se análise interna do organismo", depois do organismo em
lhem o lucro, creiO q .p d áli" das riquezas o su- sua coerência anatomofuncional às relações constitutivas
• de fazer entrar no mtenor a an se . b

;!!~ã~bJ~~i~~~ :tcfe~~~ã~~:P: ~ad~:fl~;e;J;i~~~~~.


ou reguladoras desse organismo com o meio de vida. Em li-
nhas gerais, é todo o problema Lamarck-Cuvier", cuja so-
econômicas, então parou -se de fazer a an ~ lução está em Cuvier, cujos princípios de racionalidade es-
e abriu-se um novo domínio de saber, que e a econmru~ tão em Cuvier". E, enfim, passou-se, e esta é a passagem de
líti Afinal um dos textos fundamentais de Q';lesnay e Cuvier a Darwin", do meio de vida, em sua relação consti-
~~er~:te "Ho~ens" da Enciclopédia"' e Quesnay n;o parou tutiva ao organismo, à população, a população que Darwin
de dizer ao longo de toda a sua obra que o verda erro j\~~ póde mostrar que era, de fato, o elemento através do qual o
vemo econômico era o governo que se ocupava da p~ -o meio produzia seus efeitos sobre o organismo. Para pensar
- ., Mas afinal de contas, que o problema da pop aça as relações entre o meio e o organismo, Lamarck era obri-
çaoda. é n~ fundo o problema central de todo o pensamen- gado a imaginar algo corno urna ação direta e corno uma
am ' ' • • • · •culo XIX, prova-o a modelagem do organismo pelo meio. Cuvier era obrigado,
to da economia política ate o propno se afi ai de contas
célebre oposição Malthus-Man<", porque, n fund ricar: por seu lado, a invocar toda uma série de coisas aparente-
onde está a linha que os divide a partrr de u~ • mente mais mitológicas, mas que na verdade lidavam mui-
0
e
diano" ue é absolutamente comum a ambos. Esta em qu ' to mais com o campo de racionalidade, que eram as catás-
para u~, Malthus, o problema da população fm essenClal- trofes e a Criação, os diferentes atos criadores de Deus, en-
fim, pouco importa. Já Darwin encontrou o que era a popu-
lação, que era o veículo entre o meio e o organismo, com
,.. M. Foucault acrescenta: entre aspas
SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 103
102
l'opulação e seus fenômenos es 'fi É
todos os efeitos próprios da população: mutações, elimina- tituição da população como peCI cos. a partir da cons-
ção, etc. Foi portanto a problematização da população no que pudemos ver abrir-se t~â~=o d~s técnicas de poder
interior dessa análise dos seres vivos que permitiu passar da objetos para saberes possíveis E a sene de domínios de
história natural à biologia. A articulação história natural/bio- que esses saberes recorta" . ' em contrapartida, foi por-
logia deve ser buscada na população. a população pôde se co=~m ~=ssar novos objetos que
Poder-se-ia dizer, creio eu, a mesma coisa acerca da como correlativo privilegi d 0 d' continuar, se manter
passagem da gramática geral à filologia histórica'". A gra- de poder. a os modernos mecanismos
mática geral era a análise das relações entre os signos lin- Daí esta conseqüência. a t - .
güísticos e as representações de qualquer sujeito falante ou das ciências humanas• ue. ematica do homem, através
do sujeito falante em geral. A filologia só põde nascer a par- víduo trabalhador, sujei~ fafa~~Jam como ser vivo, indi-
tir do momento em que uma série de pesquisas, que ha- partir da emergência da o -' eve ser compreendida a
viam sido realizadas em diversos países do mundo, particu- e como objeto de sabef. bu~~:' como correlato de poder
larmente nos países da Europa central e também da Rússia como foi pensado, definido a em, afina} de contas, tal
por motivos políticos, conseguiu identificar a relação que manas do século XIX e tal ' partir das cJencms ditas hu-
havia entre uma população e uma língua, e em que, por con- mo do século XIX, h como fm refletido no humanis-
esse ornem nada · - fi
seguinte, o problema foi o de saber de que modo a popula- uma figura da população O d. mrus e nalmente que
ção, como sujeito coletivo, de acordo com regularidades pró- que, enquanto o problem~ d~' Jâamosf runda, se é verdade
prias, aliás, não da população, mas da sua língua, podia no teoria da soberania, em face /o ~se orm:_llava dentro da
decorrer da história transformar a língua que falava. Aqui o homem, mas a nas a -a ~o ~ e~ania nao podia existir
to. A partir d pe noçao JUndica de sujeito de direi-
também foi a introdução do sujeito-população que, a meu o momento em que ~ .
ver, permitiu passar da gramática geral à filologia. vis não da soberania mas d ' ao contrano, corno vis-à-
Creio que, para resumir tudo isso, poderíamos dizer teve-sfe a populaçãO: creio ~;~;~~~~~~ ar:e~egovemhar,
que, se quisermos procurar o operador de transformação mem 01 para a popula ão o . . que o o-
que fez passar da história natural à biologia, da análise das sido para o soberano p ç que o SUJeitO de direito havia
nó [dado]••. . ronto, o pacote está empacotado e o
riquezas à economia política, da gramática geral à filologia
histórica, o operador que levou todos esses sistemas, esses
conjuntos de saberes para o lado das ciências da vida, do
trabalho e da produção, para o lado das ciências das línguas,
será na população que deveremos procurá-lo. Não da for-
ma que consistiria em dizer: as classes dirigentes, compreen-
dendo por fim a importância da população, lançaram nessa
direção os naturalistas que, com isso, se converteram em
biólogos, os gramáticos que, com isso, se transformaram em
filólogos e os financistas que se tomaram economistas. Não
é dessa forma, mas da forma seguinte: é um jogo incessan- "',. ,.ciências
te entre as técnicas de poder e o objeto destas que foi pou- c . humanas·· entre aspas no manuscrito
OtlJechlra: palavra inaudível. ·
co a pouco recortando no real, como campo de realidade, a

"'-
r
AULA DE 25 DE jANEIRO DE 1978 105

como juristas, pressupor que devemos nos comportar como a


constituição historicamente primeira prescreve" (ibid.). a. igual-
NOTAS mente sua obra póstuma, Allgemeine Theorie der Normen (Viena,
ManzVerlag, 1979; trad. fr. dt.). Sobre Kelsen, cf. as observações de
G. Canguilhem, Le Normal d le Pathologique, Paris, PUF, 3: ed.,
1975, pp. 184-5 [Ed. bras.: O normal e o pa.tológico, Forense Univer-
sitária, 2006].
2. Cf. a tese de doutoramento em medicina de Anne-Marie
Moulin, La Vaccinatian anti-variolique. Approche historique de I'évolu-
tion des idées sur les ma/adies transmissibles et leur prophylaxie, Uni-
versité Pierre et Marie Curie (Paris 6) - Faculté de Médecine Pitié-
Salpétriere, 1979, [s.l.n.d.]. A autora dessa tese fez uma exposição
sobre "as campanhas de variolização no século XVIII", em 1978,
no seminário de M.Foucault (cf. infra, "Resumo do curso", p. 494).
Cf. igualmente J. Hecht, "Un débat médica! au XVIII' siécle,
l'innoculation de la petite vérole", Le Concours médical, 18, 1? de
N cido em Praga, ensinou Di- maio de 1959, pp. 2147-52, e as duas obras publicadas no ano que
1 . Hans Kelsen (1881-1973). das1919 a 1929, depois em Co- precede este curso: P. E. Razzell, The Canquest of Smallpox: The im-
reito Público e Filosofia em Viena, ~os nazistas, prosseguiu a car- pad of inoculation an smallpox mortality in the 18th century, Firle,
lônia, de 1930 a 1933. Exonerldoe:'n Berkeley (1942-1952). Funda- Caliban Books, 1977, e G. Miller, The Adoption of lnoculation for
reira em Genebra (1933-193 8 ed Zeitschrift for affentliches Re;iz.t, Smallpox in England and France, Filadélfia, University of Philade]-
dor da Escola de Viena (auto~vaea doutrina do positivismo Jundi- phia Press, 1977, que Foucault pôde consultar.
criada em 1914), que radi~ h (2' ed.,Viena, 1960 I Théone pure 3. A primeira palavra era empregada, no século XVIII, em re-
co, defendeu, em Rein; Rec tsre:Thêvenaz, Neuchâtel, La Bacon- ferência ao processo de enxerto vegetal. A segunda só foi utiliza-
du droit, trad. fr. da 1. e~. po or Ctt. Eisenmann, Paris, Dalloz, 1962 da no século XIX.
niere, 1953; trad. fr. da 2._ed. pulo Martins Fontes, 2006]) uma con~ 4. É a partir de 1800 que a vacinação jenneriana vai substituir
[Teona pura do d•mto, Sao Pa '
· · t do dire.to, segun
d a qual o direito constitul
° ·cul d umas
progressivamente a inoculação (cf. E. Jenner, An Inquiry into the
cepção normatlVlS a . dinâmico de normas, arb a as Causes and Effects oftheVariolae Vaccinae, Londres, 1798 [repr. da 1:
um sistema hierarqUlZado _e d . tação (distinta da relação de ed.: Londres, Dawson, 1966]; R. Le Droumaguet, A prapos du cen-
nas outras por uma rel~ao. e :~~cínio científico), isto é, "a x:- tenaire de ]enner. Notes sur l'hístoire des premib-es vaccinations contre
causalidade, em que se asela o to como condição e uma sançao la variole, Tese de medicina, Belfort-Mulhouse, 1923; A.-M. Mou-
lação entre certo compo~~et; -wa!e des normes, trad. fr. O. Beaud Jin, ap. cit., pp. 33-6).
·· - ·a" (Theone, gen«'
como consequenCI . than" 1996 cap. 7, § 2, p. 31) . Para 5. Cf. A.-M. Moulin, ap. cit., p. 36: "[No fim do século XVIII]
T),..,..;" PUF "LeVIa ' ' . 'di
& F. Malkani, <=~· : infinito (fazendo todo poder JUTI co a medicina não elucidou o significado profundo das inoculações";
não levar a uma regressao ao . ço-es J-urídicas superiores), e p. 42, a propósito da "modificação" instaurada pela vacina no or-
. nte de autonza tal
decorrer necessan~e alidade de uma norma fundamen ganismo, esta citação de Berthollet: "Qual é a natureza dessa di-
esse sistema extrai_ s':a v como as outras normas, mas press~­ ferença e dessa mudança? Ninguém sabe; somente a experiência
(Grundnonn), que nao e pos~a "re resentando o fundamento úl- prova sua realidade" (Expositian des faits recueillis jusqu'à présent
posta e, por isso, supraposl va, p "urídicas que constituem a or- C1Jflcernant les ef!ets de la vaccination, 1812).
timo da validade de todas as no~~l egundo a qual "devemos,
dem jurídica" (ibid., cap. 59, P· ' s
106 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 25 DE JANEIRO DE 1978
107
6. A inoculação era praticada na China desde o século XVII e 9. Sobre essa noção cf M F ui .
na Turquia (cf. A.-M. Moulin, op. cit., pp. 12-22).Ver, sobre a práti- Paris PUF "Gali " 1963 . . ouca t, Nmssance de la clinique
' d' . ' en ' 'p. 24 [ed. bras · O nasciment d I' · '
ca chinesa, a carta do pe. La Coste de 1724 publicada nas M.émoi- 6. e ., Rio de Janeiro Forense U . . , . ·· o a c znzca,
res de Trévoux, e, sobre a Turquia, o debate sobre a inoculação na Le Bnm, Traité théorl ue sur les ruversit:árt_a,_2?06J (citação de L. S. D.
Royal Society da Inglaterra, a partir dos relatos dos mercadores da jeune, 1776, PP· 2-3)! p 28 (ret m~ladzes 'J'demtques, F\uis, Didot le
Companhia do Levante. Em 1? de abril de 1717, Lady Montaigu, Recueil d'observations. Médecine ~n~I_? ~ · Ri c~~~ de Ha~tesierck,
esposa do embaixador da Inglaterra em Istambul, que foi uma das merie royale 1766 I I XXIV opt aux mtlttatres, F\uis, lmpri-
' ' · ' PP· -XXVII).
propagandistas mais fervorosas da inoculação em seu país, escre- 10. Emmanuel Étienne Duvill d (17
via a uma correspondente: "A varíola, tão fatal e tão freqüente em bleaux de I'influence de la petite v, lar l 55-1832),_ Analyse et Ta-
nosso país, foi tomada inofensiva aqui pela descoberta da inocu- de celle qu 'un préseroatif tel qu I ero e sur a mortal! te a chaque âge, et
lação [... ] Existe aqui um grupo de anciãs especializadas nessa et la longévité, Paris 1m rime~ a.vacc;~e peut avotrsur la population
operação" (citado por A.-M. Moulin, op. cit., pp. 19-20). "especialista de es;atís~ca d.: unpefal_e, 1806. (Sobre Duvillard,
7. Sobre essa noção, cf. o artigo de M. Foucault, "La politique de seguros e do cálculo de rend~?,P~ açoes, ~~s t~bé~ teórico
de la santé au XVIII'· siecle" [A política da saúde no século XVIII], statistique en 1806" Études et D ' · G. Thuillier, Duvillard et la
., ' ocuments F\uis 1m · . .
in Les Machines à guérir. Aux origines de l'hôpital moderne; dossiers et nale, Conute pour l'histoire , . ' ' pnmene natio-
documents, F\uis, Institui de l'environnement, 1976, pp. 11-21; DE, ce, 1989 t. 1 PP 425-35· AecDonomt~ue et financiere de la Fran-
b ' . '. · , · esrosteres, La Politique d d
III, n? 168, pp. 15-27 (ver pp. 17-8). nom res. Hzstozre de la raison statistique Pari L D, es gran s
8. a. A.-M. Moulin, op. cit., p. 26: "Em 1760, o matemático reed. 2000, pp. 48-54.) ' s, a ecouverte, 1993;
Bemouilli informa de maneira mais rigorosa [que as tabelas de es- 11. Sobre essa distinção u fund
tatística de). jurin, nas Philosophical Transactions da Royal Society, problemática do unovo prínci 'e~ ~. ~ ~m Maq~~vel to?a .a
de 1725] a estatística que é na verdade a única justificativa teórica pados são ou hereditários q.f.ncto O pnn_ctpe, cap._l. Os pnnCI-
da inoculação. [...] Se adotarrnos a inoculação, resultará um ganho to tempo do sangue do s~nh seus p~ctpes s~o desde mui-
"D' or, ou novos (trad CII 45) 2
de vários milhares de pessoas para a sociedade civil; mesmo mor- , tg~ portanto que, nos Estados heredit' · · ., p. 'e :
tífera, por matar crianças no berço, é preferível à varíola, que faz pnnctpes de mesmo sangue, há dificuldad:os, ~costumados com
perecer adultos úteis à sociedade; se é verdade que a generaliza- manter que nos novos {... J" mwto menores de se
ção da inoculação acarreta o risco de substituir as grandes epide- 12. a. infra, aula de 8 de fevereiro p 158
mias por um estado de endernia permanente, o perigo é menor, 13. M. Foucaulttalvez faça alus- ' .. . .
porque a varíola é uma erupção generalizada, e a inoculação só a quem foi creditada por vários d' . ao ,a9ui a~s escn!os de Bacon,
atinge uma pequena superfície da pele." Bemouilli conclui, dessa "população" (cf. por exem lo v·tc~on~os a.mv~nçao da palavra
demonstração, que, se desprezarmos o ponto de vista do indiví- française. Le Robert) E p tctionnatre htstonque de la langue
· ssa palavra na realidad - -
duo, "será sempre geometricamente verdadeiro que o interesse em Bacon e só aparece em tradu,- t di e, n~o e. encontrada
dos Príncipes é favorecer a inoculação" (D. Bernouilli, "Essai d'une cia da palavra ingle çoes ar as. A pnmerra ocorrên-
nouvelle analyse de la mortalité causée par la petite vérole et des (1751) de Hume; qua~t:~e~=~~m~nta: ao~ Politicai Discourses
avantages de l'inoculation pour la prévenir", Histoires et Mémoires na segunda metade do século XVIII ances, so ~omeçou a circular
de l'Académie des sciences, 2, 1766). Esse ensaio, que data de 1760, da o ignora. Ele fala de "nu'me d .hMontesqweu, em 1748, ain-
ro e omens" (D [' · d
suscitou a reação hostil de d'Alembert, em 12 de novembro de XVIII, 10, in Oeuvres com letes Pari . "e . e~pnt, es lois,
1760, na Academia de Ciências. Para uma análise detalhada do la Pléiade" 1958 1 2 p P )' ds, Ghallimb. ard, Btbliotheque de
' , . , . 536 OUOSaitant d"
método de cálculo de Bemouilli e da querela com d'Alembert, cf. da espécie" (ibid. XXIII 26 0 C es, e propagação
H. Le Bras, Naissance de la mortalité, F\uis, Gallimard-Le Seuil, 7
persannes [Cartas ~sÍ (1 2 i) ., p. 710; 27' 0 .C., P· 711; cf. Lettres
"Hautes Études", 2000, pp. 335-42. pensação, ele emprega com freq'~ ~~d' et. 1, PL-~3). Em com-
, as r:.tu't!S persannes,
108 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 109

a forma negativa da palavra, "depopulação" (carta CXVII, O. C., Paris, PUF ("Travaux et Documents", Cahier n? 21), 1954, pp. 165-
p. 305; De l'espritdes lois,XXJJl, 19, O. C., P· 695; ?·C.,]'· 711). O uso 200; A. Land!y, "Les idées de Quesnay sur la population", Revue
dessa palavra remonta ao século XIV (cf. Littre, Dictionnmre d~ la d'histoire des doctrines économiques et sOCiales, 1909, reed. in F. Ques-
langue française, Paris, J.-J. Pauvert, 1956, t. 2., p. 1645), no sentido nay et la physiocratie, up. cit., t. I, pp.ll-49; J.-0. Perrot, Une histoi-
ativo do verbo "depopular-se". Ausente da primeira edição doEs- re intellectuelle de l'économie politique, up. cit., pp. 143-92 ("Les éco-
sai sur la police générale des grains de Herbert (up. at.) em 1753, nomistes, les philosophes et la population").
"população" figura na edição de 1755. Para um balanço recente da 19. A posição essencial dos fisiocratas sobre o tema consiste
questão, cf. H. Le Bras, prefácio da obra publicada sob a sua dire- na introdução das riquezas como mediação entre a população e
ção, L'Invention des populations, Paris, Odile Jacob, 2000, e I. Tamba, os meios de subsistência. Cf. F. Quesnay, verbete "Homes", em
"Histoires de démographe et de lingwste: !e couple populabon/ F. Quesnay et la physiocratie, t. II, p. 549: "Gostar-se-ia de aumen-
dépopulation", Linx (Paris X), 47,2002, pp. 1-6. tar a população do campo e não se sabe que o aumento da popu-
14. Sobre John Graunt, cf. infra, nota 28. . lação depende previamente do aumento das riquezas." Cf. G.
15. a. E.VI!quin, introdução a J. Graunt,,Observatzons naturel- Weulersse, Les Physiocrates, pp. 252-3: "Não que o aumento da po-
les ou politiques répertoriées dans /'Index a-apres et fmtes sur les bul- pulação os deixasse indiferentes: porque os homens contribuem
letins de rnortalité de John Gmunt atoyen de Londres, en ;apport a~ec para enriquecer o Estado de duas maneiras, como produtores e
le gouvernement, la religion, le commerce, l'a~croz~:men.t, l atmosphere, como consumidores. Mas eles só serão produtores úteis se produ-
les ma/adies et les divers changements de lad1te ate, Paris,n:mo, 1977, zirem mais do que consomem, isto é, se o trabalho deles se reali-
pp. 18-9: "Os boletins de mortali~ade de Londres estao entre os zar com a ajuda dos capitais necessários; e seu consumo, também,
primeiros levantamentos demogr~cos p~blicados, mas sua on- só será vantajoso se eles pagarem um bom preço pelos artigos de
gem é mal conhecida. O mais antigo boletim encontrado respon- que vivem, isto é, igual ao que os compradores estrangeiros lhes
de a um pedido do Conselho Real ao prefeito de Londres a pro- pagariam: senão, uma grande população nacional, longe de ser
pósito do número de óbitos devidos à peste, de 21 de outubro de um recurso, se toma um peso. Mas comecem por fazer os rendi-
1532 [... ].Em 1532 e em 1535, houve algumas séries, de boletins mentos da terra crescer: os homens, chamados de certo modo à
semanais indicando o número total de óbitos devidos a peste, para vida pela abundância dos salários, se multiplicarão proporcional-
cada paróquia. É evidente que ~sses bo!etins não ~am outr~ ~~­ mente, por conta própria; eis o verdadeiro populacionismo, indi-
zão de ser senão proporcionar as autondades londrinas uma tde:ta reto, mas bem entendido." Excelente precisão também in J. J.
da amplitude e da evolução da peste; logo, eles aparecem e. desa- Spengler, trad. fr. cit., pp.167-70. Sobre a análise do papel da po-
parecem com ela. A peste de 1563 deu lugar a uma longa sene de pulação pelos fisiocratas e pelos economistas, cf. já M. Foucault,
boletins que se estenderam de 12 de junho de 1563 a 26 ~e JulhO Histoire de la folie ... , up. cit., pp. 429-30.
de 1566. Houve também uma série em 1574, outra, con~u,a~ de 20. a. VIctor Riquet[t]i, marquês de Mirabeau (1715-1789),
1578 a 1583, depois de 1592 a 1595 e de 1597 a 1600. Nao e un- dito Mirabeau, o Velho, I:Ami des hommes, ou Traité de la population,
possível que a regularidade dos boletins semanru.s remonte a 1563, publicado sem nome de autor, Avignon, [s.n.], 1756, 3 vols. (ver
mas ela só é certa a partir de 1603." L. Brocard, Les Doctrines économiques et sociales du marquis de Mi-
16. a. supra, p. 34, nota 25. rabeau dans l"Ami des hommes', Paris, Giard et Briere, 1902). O afo-
17. Ibid. hy rismo de Mirabeau, tirado de L'Ami des hommes - "a magnitude
18. Sobre essa questão, cf. G. Weulersse, Le 1;;1ouvement P - dos meios de subsistência é a magnitude da população" (t. 1,
siocmtique... , up. cit., t. 2, livro V, cap. 1, pp. 268-95: D1scusswn des p. 37) -, encontra seu complemento na obra de A. Goudart, Les In-
principes du populationnisme"; id., Les Physwcrates, up. at., PP· tér& de la Fmnce mal entendus, dans les branches de l'agriculture, de
251-4; J. J. Spengler, Économie et Population. Les doctnnes jrança1ses la papulation, des finances ... , publicado no mesmo ano (em Amster-
avant 1800: de Budé à Condorcet, trad. fr. G. Lecarpentier & A Fage, dam, por Jacques Coeur, 3 vols.): "É do grau geral dos meios de
110 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 111

subsistência que sempre depende o número de homens", e é re- que toda sensação, qualquer que seja, basta para gerar todas as fa-
tomado, até em sua formulação figurada (os homens se multipli- culdades, imaginando, para defender sua tese, uma estátua à qual
cam "como ratos num celeiro, se têm os meios de subsistir sem li- confere separada e sucessivamente os cinco sentidos. A Ideologia
mitações") de Richard Cantillon, Essai sur la nature du commerce en designa o movimento filosófico oriundo de Condillac, que come-
général, Londres, Fletcher Gyles, 1755, reimpr. (fac-símile) Paris, INED, çou em 1795 com a criação do Instituto (de que fazia parte a Aca-
1952 e 1997, cap. 15, p. 47. demia de Ciências Morais e Políticas, à qual pertenciam os condil-
21. Abade Pierre Jaubert, Des causes de la dépopulation et des lacianos). O principal representante dessa escola foi Destutt de
moyens d'y remédier, publicado sem nome de autor, Londres-Paris, Tracy (1754-1836), autor de Éléments d'idéologie, Paris, Courcier,
Dessain junior, 1767. 1804-1815, 4 vols. M. Foucault, que consagrou várias páginas aos
22. Esse verbete, escrito para a Encyclopédie, cuja publicação Ideólogos em Les Mots et les Choses (Paris, Gallimard, "Bibliothéque
foi proibida em 1757 e só recomeçou em 1765, permaneceu inédi- des sciences humaines", 1966, cap. VII, pp. 253-5 [ed. bras.: Aspa-
to até 1908 (Revue d'histoire des doctrines économiques et sociales, 1); lavras e as coisas, São Paulo, Martins Fontes, 2002]), já relaciona a
reed. in François Quesnay et la physiocratie, t. 2, Oeuvres, pp. 511-78. concepção genética de Condillac ao dispositivo panóptico de Ben-
Foi no entanto parcialmente copiado e difundido por Henry Pat- tham- apresentado como a forma pura do poder disciplinar- em
tullo em seu Essai sur l'amélioration desterres, Paris, Durand, 1758 seu curso de 1973-1974, Le Pouvoir psychiatrique (ed. por J. Lagran-
(cf. J.-Cl. Perrot, Une histoire intellectuelle de l'économie politique, ge, Paris, Gallimard-Le Seuil, "Hautes Études", 2003), aula de 28
p. 166). O verbete de Quesnay foi substituído na Encyclopédie, de- de novembro de 1973, p. 80 [ed. bras.: O poder psiquiátrico, São
pois de 1765, pelo de Diderot, "Homes" (Política) e pelo de Dami- Paulo, Martins Fontes, 2006). Sobre Condillac, cf. igualmente Les
laville, "Population". O manuscrito do verbete, depositado na Bi- Mots et les Choses, cap. III, pp. 74-7.
bliothéque Nationale, só foi descoberto em 1889. É por isso que 27. a. Surveilleret Punir, op. cit., p. 105: '[0 discurso dos ideó-
não é reproduzido na coletânea de E. Daire, Les Physiocrates_ ~s, logos] fornecia [... ],pela teoria dos interesses, das representações
Guillaumin, 1846). a. L. Salleron, em F. Quesnay et la physwcrahe, e dos sinais, pelas séries e gêneses que reconstituía, urna espécie
t. 2, p. 511, n. 1. de receita geral para o exercício do poder sobre os homens: o 'es-
23. M. Foucault faz alusão aqui a uma questão já tratada, pírito' como superfície de inscrição para o poder, tendo a semio-
em 1975, no curso sobre Les anormaux (op. cit.). Cf. infra, p. 252, logia corno instrumento; a submissão dos corpos pelo controle das
nota 43. idéias; a análise das representações, como princípio numa política
24. Cf. o verbete "Homes", in op. cit., p. 537: "Os homens se dos corpos, muito mais eficaz do que a anatomia ritual dos suplí-
reúnem e se multiplicam em toda parte em que podem adquirir ri- cios. O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do
quezas, viver no conforto, possuir com segurança e em proprieda- indivíduo e da sociedade; ela se desenvolveu como uma tecnolo-
de as riquezas que seu trabalho e sua indústria podem lhes pro- gia dos poderes sutis, eficazes e econômicos, em oposição às des-
porcionar." pesas suntuárias do poder dos soberanos."
25. Sobre essa noção, cf. Naissance de la biopolitique, op. dt., 28. John Graunt (1620-1674), Natural and Politicai Observa-
aula de 17 de janeiro de 1979, p. 42 (o utilitarismo como "tecnolo- tions Mentioned in a Following Index, and Made upon the Bílis ofMor-
gia de governo"). tality. With reference to the Government, Religion, Trade, Growth,Ayre,
26. Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780), autor de Essai Diseases, and the Severa! Changes ofthe Said City, Londres, John Mar-
sur I'otigine des connaissances humaines, Paris, P. Mortier, 1746, de tin, 1662, 5~ ed., 1676; reed. em The Economic Writings of Sir Wil-
Traité eles sensations, Paris, De Bure, 1754, e de Traité eles animaux, liam Petty, por C. H. Hull, Cambridge, University Press, 1899 I Les
Paris, De Bure, 1755. Ele sustenta, no Traité des sensations, que não Oeuvres économiques de Sir William Petty, trad. fr. H. Dussauze & M.
há nenhuma operação da alma que não seja urna sensação trans- Pasquier, t. 2, Paris, Giard et Briére, 1905, pp. 351-467; nova trad.
formada - donde o nome de sensualismo dado à sua doutrina - e fr. anotada por E. Vilquin (cf. supra, nota 15). Autodidata, de pro-
AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 113
SEGURANÇA, TERJUTÓRIO POPULAÇÃO
112
tos comentadores chamam impropriamente de ''tabela de morta-
.d . d W Pe"" Graunt teve a idéia lidade" de Graunt).
fissão negociante de tect os, anugo . e . b "(' . d ortalidade
33. Ibid., cap. XI,§ 12, trad. fr. E.Vtlquin, p.114: "[ ...)embora
de fazer tabelas cronológicas a partir dos o =s e ~ondres no os Homens morram de uma maneira mais regular e menos saltea-
publicados por ocasião, da grandedpeste qute de ~:da da demo- da (per saltum) em Londres do que na Província, enfim, morrem
, culo XVII Esse texto e constdera o o pon o ':'.......
u •

se . d. (cf p Lazarsfeld Philosophie des saences soaales, !'a- comparativamente (per rata) menos [na Província], de sorte que a
grafia mo ema · · ' · " 1970 pp 79- fumaça, o vapor e o mau cheiro mencionados acima, embora tor-
. Gallim d, "Bibliotheque des sciences humames ' , .
ns, ar alidad publicadas em 1662 nem o clima de Londres mais estável, não o tornam mais salubre".
80 . " [ 1 as primeiras tabelas de mort e, d _
A alusão de Foucault a Durkheim é evidente aqui. Sobre o interes-
o.r G~~unt ue é considerado o fundador da demografia m_o er
p ") A atrl~uição das Observations a Graunt, no entanto, fm Bcon- se que a sociologia manifesta no século XIX pelo suicídio, "essa
na... . . , cul XVII em favor de Petty. Cf. H. Le ras, obstinação a morrer, tão estranha e no entanto tão regular, tão
testada a partir do se 0
Naissance de la mortai tte, . • op. Cl·t., p · 9' para quem f"a balança pende constante em suas manifestações, logo tão pouco explicável por

nitidamente contra a paternidade de Grau~~ e a ~ghort


A tese oposta é defendida por Ph. Kreager, New
:n d d Petty"
~raunt":
particularidades ou acidentes individuais", cf. La Volonté de savoir,
op. cit., p. 182.
34. "A espécie, unidade sistemática, tal como os naturalistas
Population Studies, 42 (1), março de 1988, PP· ~29§-;g· trad fr. E. Vll- a compreenderam por muito tempo, foi definida pela primeira vez
29. J. Graunt, Obseroations, op. Ctt., cap. ' ' .· _ por John Ray [em sua Historia plantarum, Londres, Faithome] em
. 65-6· " [ I entre as diferentes causas [de ÓbttosÉ], algu
qum, P~· . la.-~ stante com o número de Enterros. o caso 1686 ['o conjunto de indivíduos que geram, pela reprodução, ou-
mas estão em re çao con idade está mais su- tros indivíduos semelhantes a eles'J. Antes, a palavra era empre-
das Doenças crônicas e das Do:nças a_ que ~s~a a icterícia, a gota, gada em acepções bem diferentes. Para Aristóteles, designava pe-
jeita, por exem~l~, a consumbptçoaoo, ~~:çoJ do; pulmões ou sufo- quenos grupos. Mais tarde, foi confundida com a de gênero" (E.
dra a paralisia o escor u , - fe Guyénot, Les Sciences de la vie aux XVII' et XVIII' siecles. I:idée d' évo-
a p~ ct' matriz o' raquitismo, a velhice, as febres quartas, as - lution, Paris, Albin Michel, ''l:Évolution de l'humanité", 1941, p. 360).
caçao a ' . ~. ,
bres, o fluxo de ventre e a diarreia . . como o des- É em 1758, na 10~ edição do seu Systema naturae, que Lineu inclui
30 Ibid.: "E o mesmo vale para certos Actdent~s, . o gênero Homem na ordem dos Primatas, distinguindo duas espé-
· . 'dios as mortes deVIdas a diversos cies: o Homo sapiens e o Homo troglodytes (Systema naturae per Reg-
t 0 afogamento, os swc1 , . , . . alm
gosdo, t te" Sobre a probabilidade dos SU1ctdios, cf. tgu en- na Tria Naturae, 12~ ed., Estocolmo, Salvius, 1766, t. I, pp. 28 ss.).
acl en es, e . . uin 69 _70 .
te cap. Ill, § 13, tra~. ~· ~ilJad 't~. Vilquin, p. 93: "Já dissemos
Sobre o nascimento do conceito de espécie no século XVII, cf.
igualmente F. Jacob, La Logique du vivant, Paris, Gallimard, "Biblio-
}· Ib~~··~~~ens'do que Mulheres [cf. o§ 1 desse capítulo];
3
theque des sciences humaines", 1970, pp. 61-3. A expressão "es-
que h a m , · · s ultrapassa o das se-
acresdcentamos quedeo1n/u3~e:~~o:::~~~ens do que Mulheres
pécie humana" é de uso corrente no século XVIII. Ela é freqüen-
gun as em cerca .~ ' . , temente encontrada em Voltaire, Rousseau, Holbach ... Cf. por
morrem de Morte violenta, isto é, que há um maJ.or numero que exemplo Georges Louis Buffon (1707-1788), Des époques de la na-
-o massacrados na guerra, mortos por acidente, afoga~os no mar ture, Paris, Imprimerie royale, 1778, pp. 187-8: "[ ...]o homem é, de
sa - d ·ustiça [ 1e no entanto essa diferença de fato, a grande e derradeira obra da criação. Não cansarão de nos
ou mortos pe1a mao a 1 · ··· d Ma-
1/3 leva as coisas a tal situaç~o qu: ~~da Mulher po e ter um dizer que a analogia parece demonstrar que a espécie humana se-
guiu a mesma evolução e data do mesmo tempo das outras espé-
rido, sem que se tolere a do:grv~quin, p. 105: "Encontramos [cf. cies, que ela até mesmo se difundiu mais universalmente e que,
32. Ibtd., cap. XI, tra · · · d 100 indivíduos concebi-
embora a época da sua criação seja posterior à dos animais, nada
cap. II, §§ 12d-13, PP· 62d-3)3q6ume'o":e:: a~tes da idade de 6 anos e prova que o homem não tenha se submetido às mesmas leis da
d e anima os cerca e _ ·
t~~z só um sobreviva até os 76 anos" (segue-se entao o que mw-
114 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 25 DE JANEIRO DE 1978 115

natureza, sofrido as mesmas alterações, as mesmas mudanças. ras é uma amostra do governo geral da nação." Portanto- comen-
Conviremos que a espécie humana não difere essencialmente das ta C. Larrêre, que cita esse trecho (L'Invenb."on de l'économie au
outras espécies por suas faculdades corporais e que, so~ ~sse as- XVIII' siécle, Paris, PUF, "Léviathan", 1992, p.194)- é em tomo do
pecto, sua sorte foi praticamente a mes~ das o~tras espec1~s;. mas governo que se forma a unidade de uma doutrina, em que podem
podemos acaso duvidar que não nos diferenCiamos prodi~osa­ se. e~cont_:ar "essas leis e essas condições que devem reger a ad-
mente dos animais pelo raio divino que o ser soberano se dignou mznzstraçao do governo geral da sociedade" (Despotisme de la Chi-
de nos propiciar? [... ]" ne, zbzd.). Cf. o artigo de A Lanchy citado supra ("Les idées de Ques-
35. Sobre esse novo uso da palavra "público", cf. a obra fun- nay... ") e infra, p. 151, nota 23.
damental de ). Habermas, Strutkturwandel der Offentlichkeit, Neu- 41. Cf. os textos reunidos in K. Marx & F. Engels, Critique de
wied-Berlim, H. Luchterhand, 1962, cuja tradução francesa de M. Malthus, org. por R. Dangeville et ai., Paris, Maspero, 1978.
de Launay, L'Espace public. Archéologie de la publicité comme dimen- 42. David Ricardo (1772-1823), economista britânico autor
sion constitutive de la sodété bourgeoise, acabava de ser lançada pela d?s Prindpi?s. de economia política e tributação (ed. orig:. On the Prin-
editora Payot (1978). Foucault volta mais demorad~ente a essa czples of Polztzcal Economy and Taxation, Londres,). Murray, 1817).
questão do público no fim da aula de 15 de março (cf.znfra, P· 369). Ele estabeleceu com Malthus, a partir de 1809, laços de amizade
36. Célebre fórmula de Thiers num artigo do Nahonal, 4 de que não alteraram suas divergências teóricas. Sobre essa relação
fevereiro de 1830. Malthus-Ricardo, cf. Les Mots et les Choses, p. 269: "[ ... ]o que tor-
37. M. Foucault vai repor em perspectiva, à luz do fenômeno na a economia possí:vei e _necessá~a (para Ricardo] é uma perpé-
da população, três grandes domínios epistêmicos estudados en;. tua e fundamental Situaçao de randade: diante de uma natureza
Les Mots et les Choses, op. cit.: a passagem da análise das riquezas a que por si mesma é inerte e, salvo numa parte minúscula, estéril,
economia política, da história natural à biologia, da gramátic~ ge- o homem_arrisca a vida. Já ~ã~ ~nos jogos da representação que
ral à filologia histórica, precisando ao mesmo tempo que nao se a economia encontra seu pnncipto, mas nessa região perigosa em
trata de uma "solução", mas de um "problema" a aprofundar. Para que a vida enfrenta a morte. Ela remete portanto a essa ordem de
uma primeira retomada "genealógica" desses três campos de sa- considerações bastante ambíguas que podemos chamar de antro-
ber, a partir da generalização tática do saber histórico no fim do sé- pol~~cas: ela remete, de fato, às propriedades biológicas de uma
culo XVIII, cf. II Jaut défendre la société, op. cit., aula de 3 de março espec1e humana, que Malthus, na mesma época que Ricardo,
1976, p. 170. mostrou tender sempre a crescer, se não se puser remédio ou freio
38. Cf. Les Mots et les choses, cap. VI, "Échanger", pp. 177-85 a isso[ ... ]"
(I. r; analyse des richesses, II. Monnaie et prix). , . 43. Cf. Les Mots et les Choses, cap. V, "Oasser", pp. 140-4 (II.
39. Cf. supra, nota 22. I:hzstozre naturelle) e 150-8 (IV. Le caractére).
40. Cf. o verbete "Homes" de F. Quesnay, op. cit., p. 512: "O 44. Cf. ~bid., cap. VII, "Le: limites, de la représentation", pp.
estado da população e o emprego dos homens são [...] os princi- 238-45 (III. Corganzsation des etres), pagznas consagradas em par-
pais objetos econômicos dos Estados; porque é do trabalho e da ticular a Lamarck, tido como aquele que "encerrou a era da história
indústria dos homens que resultam a fertilidade das terras, o. ~or nahrral" e "entreabriu a da biologia", não com suas teses transforma-
venal das produções e o bom emprego das riquezas pecumanas. cionistas, mas com a distinção, que foi o primeiro a estabelecer
São estas as quatro fontes da abundância; elas contribuem mutua- "entre o espaço da organização e o espaço da nomenclatura". '
mente para o crescimento umas das outras; mas só se podem sus- . 45. Cf. ibid., pp. 287-8. O problema evocado aqui por Foucault
tentar pela manutenção da administração geral dos homens, dos diz respeito aos respectivos lugares que convém atribuir a La-
bens, das produções [... ]". Sobre o governo econômico, ver por marc~ e ~ ~uvier na his.tória ,da biologia nascente. Lamarck, por
exemplo Despotisme de la Chine (1767), c~p. 8, em F. Quesnay et la suas m~Iço_es tr~nsfo:m.tstas 9ue parecem 'prefigurn.r' o que será
physiocratie, t. 2, p. 923: "O governo econom1co do cultivo das ter- o evolucmrusmo , tera stdo mrus moderno que Cuvier, preso a um
116 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

"velho fixismo, todo impregnado de preconceitos tradicionais e ~e


postulados teológicos" (p. 287)? Rejeitando a, oposição sumána, AULA DE 1? DE FEVEREIRO DE 1978*
oriunda de um "jogo de amálgamas, de m:táforas, ~e ~ogt~
mal controladas" (ibid.), entre o pensamento progressista do pn-
meiro e o pensamento reacionário" do .segund~, Fc:uca~: de-
11

monstra que foi paradoxalmente com CuVIer gue a htstonodade O pro~~a do "governo" no século XVI. - Multiplici-
se introduziu na natureza" (p. 288) - graças a sua descoberta da dade das prahcas de governo (governo de si, governo das al-
descontinuidade das formas vivas, que rompia com a continuida- mas, governo dos filhos, etc). - O problema específico do go-
de ontológica ainda aceita por Lamarck - e 9ue se abriu~ ~ssim, a verno do Estado. - O ponto de repulsão da literatura sobre 0
possibilidade de um pensamento da evoluçao. Uma analise bas- gove:no: O p~cipe, de Maquiavel. - Breve hist6nQ da re-
tante convergente desse problema é exposta por F. Jacob em La lo- c~çao do .Pnnctpe, ~t~ o século XIX. -A arte de governar, dis-
gique du vivant, pp. 171-5 [ed. bras.: A lógica da vida, Rio de janei- hnta da s1mples habzltdade do prfncipe.- Exemplo dessa nova
ro, Graal, 1983], que Foucault resenhou elogiosamente ("Croitre a;.te de governar: O espelho político de Guillaume de La Per-
et multiplier", Le Monde, n? 8037), 15-16 de novembro de 1970; ner~ .(1.555). - Um governo que encontra seu fim nas "coisas"
DE, II, n? 81, pp. 99-104. a dmgz~- Regr~ssão da lei em benefiCio de táticas diversas. _
46. Cf. Les Mots et les Choses, cap. VIII, "Travai!, vie, langage", Os obstaculos hzstóricos e institucionais à aplicação dessa arte
pp. 275-92 (III. Cuvier). Cf. também a c~nferência dada por Fou- de govern~r até o século XVIII.- O problema da população, Ja-
cault nas Jornadas Cuvier no lnstitut d histoue des scrences em tor essenaal do ~esbloqueio. da arte de governar. - O triângulo
maio de 1969, "La situation de Cuvier dans l'histoire de la biolo- gov~o-populaçao-economla política. - Questões de método: 0
gie", Revue d'histoire des sciences et de t;urs applications: t. XX[II (1), pr?Jet~ de uma história da ''governamentalidade". A superval-
jan.-mar. de 1970, pp. 63-92 (DE, II, n. 77, pp. 30-6, discussao, pp. onzaçao do problema do Estado.
36-66.
47. Essa questão não é tratada em Les Mots et les Choses. a.
"La situation de Cuvier... ", p. 36. Através da análise de alguns mecanismos de seguran-
48. a. Les Mots et les Choses, cap. N, "Parler", pp. 95-107 (§II. ça, procure':. ver como apareciam os problemas específicos
La grammaire générale), cap. VIII "Travai!, vie, langage", PP· 292- da populaçao e, exammando mais de perto esses proble-
307 (§V. Bopp), e a introdução a A. Amauld & C. Lancelot, Gram- mas da população da última vez, vocês se lembram, fomos
maire générale et raisannée, Paris, Republications Paulet, 1969, pp. rapidamente remetidos ao problema do governo. Resu-
III-XXVI (DE, I, n? 60, pp. 732-52).
mm~o, tratava-se da colocação, naquelas primeiras aulas,
da sene segurança- população-governo. Pois bem, agora é
esse problema do governo que eu gostaria de procurar in-
ventanar.

. . *Uma primeira transcrição deste curso foi publicada na revista


1taliru:m Aut-aut, n? 167-168, set-dez. de 1978, reproduzida em Actes, n~
espeaal54, Foucault hors Ies murs, verão de 1986, pp. 6-15, e republica-
da tal qual, conforme a regra que os editores haViam estabelecido em DE
m, n~ 239: PP· ?35-57, com o título de "La 'gouvemementali~é"' [ed:
bras. m M!crot<"lCa
. 'J"' do. poder, op · cit ., pp . 277- 931 . N ossa ediçao
mente revtsta a partir das gravações e do manuscrito.
- 101· mterra-
· · .
j
L __
~-------
118 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE F DE FEVEREIRO DE 1978
119

Oaro, nunca faltaram, tanto na Idade Média corno na talrnente diferente, que aliás não deixa de ter interferências
Antiguidade greco-rornana, desses tratados 9ue se apre- no primeiro, mas é complexo- está fora de cogitação ana-
sentavam corno conselhos ao príncipe quanto a rnanerra de lisar tudo isso aqui -, e que, com a Reforma, depois a Con-
se conduzir, de exercer o poder, de se fazer aceitar ou respei- tra-Reforma, põe em questão a maneira corno se quer ser
tar por seus súditOSi conselhos para amar a J?eus, obe~ecer espiritualmente dirigido, na terra, rumo à salvação pessoaL
a D eus,rn, troduzir na cidade dos homens a lei
, dde Deus
, ul ' XVI
etc, MoVImento, de um lado, de concentração estatal; rnovi-
Mas creio que o que é notável é que, a partir o sec ~ d me~to; de outro lado, de dispersão e de dissidência religio-
e em todo esse período que vai, grosso modo, do me a o o sa: e ru, creiO, no cruzamento desses dois movimentos, que
, ulo XVI a0 fim do século XVIII' vemos desenvolver-se,
sec ... _ se coloca, com aquela intensidade particular do século XVI
florescer toda urna considerável série de tratado~ que Ja nao evidentemente, o problema do "corno ser governado, por
se oferecem exatamente corno conselhos ao pnn~!pe: mas quem, até que ponto, com que fim, por que métodos", É
que entre o conselho ao príncipe e o tratado de cJencJa po- uma problemática geral do governo em geral, que é, creio,
lític~ se apresentam corno artes de governar, Creio qu_e, de a característica dominante dessa questão do governo no sé-
rnod~ geral o problema do "governo"* eclode no sec:'lo culoXVI,
XVI de rna~eira sirnultánea, a propósito de rnmtas questoes Em toda essa literatura sobre o governo que vai se es-
dife~entes e sob múltiplos aspectos, Problema, por exe~plo, tender até o ,fim do século XVIII, com a mutação que pro-
do ovemo de si, O retomo ao estoicismo gira, no seculo curareJJdentificar daqm a pouco, em toda essa enorme lite-
XVIg em tomo dessa atualização do problema: corno gover- ratura sobre o governo que se inaugura ou, em todo caso,
nar'a si mesmo, Problema, igualmente, do governo das al- que eclode: que explode no meado do século XVI, gostaria
mas e das condutas- o que foi, evidentemente, todo o pro- de 1solar Simplesmente alguns ponto notáveis - porque é
blema da pastoral católica e protestante, Problema do go- uma literatura imensa, é urna literatura monótona também,
verno dos filhos_ é a grande problemática da pedag~g~a tal Gostaria simplesmente de identificar os pontos que dizem
corno aparece e se desenvolve no século XVI, E, por ultm_w, respeito à própria definição do que se entende por governo
talvez somente por último, governo dos Estados pelos pnn- do Estado, o que chamaríamos, se quiserem, de governo sob
ci es, Corno se governar, corno ser governado, corno gover- sua forma política, Para tentar isolar alguns desses pontos
n~ os outros, por quem devemos aceitar ser _gov?emados, notáveis quanto à definição do governo do Estado, creio que
corno fazer para ser o melhor governador possJveL Parece- o mais simples seria sem dúvida opor essa massa de litera-
me que todos esses problemas são, e~ sua mten~Jdade e em tura sobre o governo a um texto que, do século XVI ao sé-
sua multiplicidade também, caractensticos do seculo XVI, e culo XVIII, não cessou de constituir, para essa literatura do
isso no ponto de cruzamento, para dizer as c~Isas mmto ~s­ governo, urna espécie de ponto de repulsão, explícito ou
quernaticamente, de dois movimentos, de dOJs processos, o implíci~o, Esse ponto de repulsão, em relação ao qual, por
recesso evidentemente, que, desfazendo as estruturas feu- opos1çao [ao qual] e [pela] rejeição do qual se situa a litera-
~ais, está criando, instaurando os grandes Estados territo- tura do governo, esse texto abominável é, evidentemente, O
riais, administrativos, coloniais, e um outro moVI.ffiento to- príncipe de Maquiavel", Texto cuja história é interessante, ou
antes, de que seria interessante reconstituir as relações que
teve, JUstamente, com todos os textos que o seguiram, criti-
* Entre aspas no manuscrito, p. 2. caram, rejeitaram,

J
120 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE fEVEREIRO DE 1978
121
[Primeiro,] O príncipe de Maquiavel, [é bom lembrar,]
não foi imediatamente abominado, [mas foi,] ao contrário, como sobrenome Gentillet* e como prenome Innocent: In-
exaltado por seus contemporâneos e seus st;cessores ime- nocent Gentillet, escreveu um dos prtrneiros anti-Maquia-
diatos, e exaltado de novo bem no fim do seculo XVIII, ou vel, que se chama Discurso de Estado sobre os meios de bem
melhor, bem no inicio do século XIX, justamente no momen- gavernar contra Nicolau Maquiavel"· encontrarão tamb •
'td li ' em,
to em que está desaparecendo, acaba de desaparecer, toda mrus ar e, na teratura explicitamente antimaquiaveliana,
essa literatura sobre a arte de governar. O príncipe de Ma- o texto de Fre~erico II, de 1740". Mas há também toda uma
quiavel reaparece nesse momento, no início do século XIX, literatt:ra unplicita que está em posição de demarcação e de
essencialmente na Alemanha, aliás, onde é traduzido, apre- opo~1çao surda a Maquiavel. É o caso, por exemplo, do livro
sentado, comentado por gente como Rehberg', Leo', Ran- mgles de Thomas Elyot, que se chama The Governou r publi-
ke', Kellermann6, na Itália também com Ridolfi', num con- ca~o er;; 1580n, do livro de Paruta sobre A perfeição da vida
texto, creio eu- enfim, seria o caso de analisar, eu lhes digo pol;nca e talvez um dos prtrneiros, sobre o qual me deterei
isso de uma maneira totalmente isométrica-, um contexto alias, o livro de Guillaume de La Perriere, O espelho políti-
que era, de um lado, é claro, o de Napoleão, mas contex- co, publicado em _1555**:'. Seja esse anti-Maquiavel mani-
to criado também pela Revolução e pelo problema da Re- fe_:;to ou sub-reptiao, creio que o importante aqui é que ele
volução, isto é': como e em que condições é possível manter nao tem apen~s as funções negativas de obstrução, de cen-
a soberania de um soberano sobre um Estado? Há também sura, de reJeiçao do inaceitável, e, qualquer que seja 0 gos-
o aparecimento, com Clausewitz, do problema das relações to d_os nossos contemporâneos por esse gênero de análise_
entre política e estratégia. E a importância política, manifes- voces sabem, um pensamento tão forte e tão subversivo, tão
tada pelo congresso de Viena', em 1815, das relaç?es de for- avança_do, que todos os discursos cotidianos são obrigados a
ça e do cálculo das relações de força como pnnc1p10 de m- obstrui -lo por meI.? d; um mecanismo de repressão essen-
teligibilidade e de racionalização das relações internacio- Clal-, creiO que nao e Isso que é interessante na literatura
nais. Há enfim o problema da unidade territorial da Itália e ~nti-M?-qwavel'~. A literatura anti-Maquiavel é um gênero,
da Alemanha, pois vocês sabem que Maquiavel havia sido e ~m genero positivo, que tem seu objeto, que tem seus con-
precisamente um dos que haviam procurado definir em ceitos e que tem sua estratégia, e é como tal, nessa positivi-
que condições a unidade territorial da Itália podia ser feita. dade, que eu gostaria de focalizá-la.
É nesse clima que Maquiavel vai reaparecer no início • . Tomemos_ portanto essa literatura anti-MaquiaveL ex-
do século XIX. Entrementes, contudo, entre a homenagem plícrta ou implícita. O que encontramos nela? Claro, encon-
que foi prestada a Maquiavel no início do século XVI e essa tramos negativamente uma espécie de representação inver-
redescoberta, essa revalorização do início do século XIX, é ti~a do pensamento de Maquiavel. Apresenta-se ou recons-
certo que houve uma longa literatura anti-Maquiavel. Ora tr?I-se um Maqwavel ~dverso, de que se necessita aliás para
numa forma explícita: toda uma série de livros que, em ge- dizer o que se t:m a diZer. Esse príncipe mais ou menos re-
ral aliás, vêm dos meios católicos, muitas vezes jesuítas até constituido - nao coloco evidentemente a questão de saber
-vocês têm, por exemplo, o texto de Ambrogio Politique se no que, em que medida se parece efetivamente com o Prín _
chama Disputationes de libris a Christiano detestandis'", isto é,
se bem entendo, Discussões sobre os livros que um cristão deve
detestar; há o livro de uma pessoa que teve o azar de ter *Bonitinho, graciosinho. (N. do T.)
,..,.. MF.: 1567

J
122 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1.' DE FEVEREIRO DE 1978
123
cipe de Maquiavel -, em todo caso esse príncipe contra o vernar, a arte de ser príncipe apresentada por Maquiavel
qual se combate ou contra o qual se quer dizer outra coisa, deve ter como objetivo.
como é ele caracterizado nessa literatura? Isso traz, para ?Uvro de Maquiavel, a conseqüência de
Primeiro, por um princípio: para Maquiavel, o príncipe que o mo:Jo d~ análise vai ter dois aspectos. Por um lado,
está em relação de singularidade e de exterioridade, de trans- tratar-se-a de Identificar os perigos: de onde vêm, em que
cendência em relação ao seu principado. O príncipe de Ma- consistem, qual sua intensidade comparada: qual é 0 maior
quiavel recebe seu principado seja por herança, seja por pengo, qual o _menor? E, em segundo lugar, a arte de mani-
aquisição, seja por conquista; como quer que seja, ele não puiar as relaçoes de força que vão pennitir que 0 principe
faz parte do principado, é exterior a ele. O vincuio que o liga aJ,a de forma que seu principado, como vínculo com seus
ao seu principado é um vincuio ou de violência, ou de tra- suditos e seu território: possa ser protegido. Em linhas ge-
dição, ou ainda um vinculo que foi estabelecido pelo aco- nus, digamos que O pnnape de Maquiavel, tal como apare-
modamento de tratados e pela cumplicidade ou concordân- ce, na filigrana desses diferentes tratados, explícitos ou im-
cia dos outros príncipes, pouco importa. Em todo caso, é um plícitos, fadados ao anti-Maquiavel, aparece essencialmen-
vincuio puramente sintético: não há pertencimento funda- te como um tratado de habilidade do príncipe em conser-
mental, essencial, natural e jurídico entre o príncipe e seu var seu pnncipado. _POis bem, creio que é isso, esse tratado
principado. Exterioridade, transcendência do príncipe, eis o da habilidade do pnnape, do savoir-faire do príncipe, que a
princípio. Corolário do princípio: na medida em que essa literatura anti-Maqwavel quer substituir por algo diferente
relação é de exterioridade, ela é frágil, e não vai parar de ser e nov:o,_ relativamente a isso, que é uma arte de governar:
ameaçada. Ameaçada do exterior pelos inimigos do prínci- ser hab!l em conservar seu principado não é, em absoluto,
pe que querem tomar ou retomar seu principado; do inte- posswr a arte de governar. A arte de governar é outra coisa
rior também, porque não há razão em si, razão a priori, ra- Em que ela consiste? ·
zão imediata, pela qual os súditos aceitem o principado do Para tentar identificar as coisas em seu estado ainda
príncipe. Em terceiro lugar, desse princípio e desse corolá- !7osseiro, vou pegar um dos primeiros textos dessa grande
rio deduz-se um imperativo: o objetivo do exercício do po- literatura antimaqmaveliana, o de Guillaume de La Perriere
der vai ser, evidentemente, manter, fortalecer e proteger que data portanto de 1555* e que se chama O espelho polí~
esse principado. Mais exatamente, esse principado entendi- tzco~ contendo dzversas maneiras de govemar 17• Nesse texto,
do não como o conjunto constituído pelos súditos e pelo mms um? vez decepcionante, sobretudo quando compara-
território, por assim dizer o principado objetivo; vai se tra- do ao propno Maquiavel, vemos entretanto delinear-se um
tar de proteger esse principado na medida em que ele é a ce~o ~úmero de coisas que são, a meu ver, importantes.
relação do principe com o que ele possui, com o território Pnmerro,,,o que La.P~r_:Jêre en~ende por ~~governar" e "go-
que herdou ou adquiriu, com os súditos que lhe são submis- vernador , que defiruçao ele da? Ele diz- está na página 23
sos. É esse principado como relação do príncipe com seus do seu texto: "Governador** pode ser chamado todo mo-
súditos e seu território, é isso que se trata de proteger, e não narca, Imperador, rei, príncipe, senhor, magistrado, prela _
diretamente, ou imediatamente, ou fundamentalmente, ou
primeiramente, o território e seus habitantes. É esse vincu-
* M.F.: 1567 [mesma data no manuscrito].
lo frágil do príncipe com seu principado que a arte de go- "'* Gouvemeur. (N. do T.)
AULA DE 1.' DE FEVEREIRO DE 1978 125
124 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

tado. Assim é que, procurando fazer a tipologia das diferen-


do ·uiz e assernelhados." 18 Como La Perriêre, outros tam- tes formas de governo num texto um pouco mais tardio do
bé;J tratando da arte de governar, lembrarão regularmen- que aquele a que me refiro- que data exatamente do sécu-
te que' se diz igualmente "governar uma casa" '~ '' ~o;;emar
" lo seguinte -, François La Mothe Le Vayer, numa série de
almas" "governar crianças", "governar uma provmaa , go- textos que são textos pedagógicos para o Delfim, dirá: no
vernar ~m convento, uma ordem religiosa", "governar uma fundo, há três tipos de governo que pertencem cada um a
família". _ uma forma de ciência ou reflexão particular: o governo de si
Essas observações, que parecem ser e que sao observa- mesmo, que pertence à moral; a arte de governar uma fa-
ções de puro vocabulário, têm na verd_ade unportantes 1m= mília como convém, que pertence à economia; e enfim a
plicações políticas. É que, de fato, o pn~C1pe, tal com~ apa "ciência de bem governar" o Estado, que pertence à políti-
rece em Maquiavel ou nas representaç~es que dele sao da- c_a:'· Em relação à moral e à economia, é evidente que a po-
das, é por definição- esse era um pnnc1p10 fundamental do lítica yem Stt_a s;ngulandade, e La Mothe Le V!lyer indica que
livro tal como era lido - único em seu pnnC1pado, e n'!ma a política nao e exatamente a economia nem totalmente a
posição de exterioridade e de transcendência em relaçao a moral. A meu ver, o que é importante aqui é que, apesar
esse. Enquanto, aí, vemos que o governador, as p:ssoa~ que dessa tipologia, aquilo a que se referem, o que sempre pos-
governam, a prática do governo, por um lado, sao praticas tulam essas artes de governar é uma continuidade essencial
múltiplas, já que muita gente governa: o pru de famíha, o de uma à outra e da segunda à terceira. Enquanto a doutri-
superior de um convento, o pedagogo, o professor em rela- na do príncipe ou a teoria jurídica do soberano procuram 0
ção à criança ou ao discípulo: há portanto mwtos governos tempo todo deixar bem assinalada a descontinuidade entre
em relação aos quais 0 do pnnc1pe que governa seu Estado o poder do príncipe e qualquer outra forma de poder, en-
não é mais que uma das modalid~des_*. Por outro lado, to- quanto se trata de explicar, de fazer valer, de fundar essa des-
dos esses governos são interiores a propna soc1edade ou ao continuidade, aí, nessas artes de governar, devemos procu-
Estado. É no interior do Estado que o pa1 de família VaJ go- rar Identificar a continwdade, continuidade ascendente e
vernar sua família, que o superior do convento va1 governar continuidade descendente.
seu convento, etc. Há, portanto, ao m;smo tempoé plurali- Continuidade ascendente, no sentido de que quem qui-
dade das formas de governo e irnanencia das pratic~s de ser ser capaz de governar o Estado primeiro precisa saber
governo em relação ao Estado, multiplicida<;ie e imanenC1a governar a si mesmo; depois, num outro nível, governar sua
dessa atividade, que a opõem radicalmente a singulandade família, seu bem, seu domínio; por fim, chegará a governar
transcendente do principe de Maqwavel. . o Estado. É essa espécie de linha ascendente que vai carac-
Claro, entre todas essas formas de governo que se dei- tenzar todas essas pedagogias do príncipe, que são tão im-
xam apreender, se entrecruzam, se e~aranham no 1ntenor portantes naquela época e de que La Molhe Le Vayer dá um
da sociedade, no interior do Estado, ha uma forma ben; par- exemplo. Para o Delfim, ele escreve primeiro um livro de
ticular de governo, que vamos procurar 1dennficar: e essa moral, depois um livro de economia [... ]*e, por fim, um tra-
forma particular de governo que va1 se aphcar a todo o Es- tado de política'". É a pedagogia do príncipe que vai assegu-

"'M. Foucault acrescenta: enquanto só há uma modalidade [algu- * Algumas palavras inaudíveis.
mas palavras inaudíveis] o principado, a de ser príncipe.
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 1." DE FEVEREIRO DE 1978 127
126

rar portanto essa continuidade ascenden!e das diferentes for- tado,, isto é, [exercer]* em relação aos habitantes, às rique-
mas de governo. Inversamente, vocês tem uma contmwda~ z:'s, a conduta de to~os e de cada um uma forma de vigi-
de descendente, no sentido de que, quando um Estado e lanoa, de controle, nao menos atenta do que a do pai de fa-
bem governado, os pais de família sabem bem governar sua mília sobre a casa e seus bens.
família, suas riquezas, seus bens, sua propnedade, e os mdi- Uma expressão, por sinal importante no século XVIII
víduos, também, se dirigem como convem. Essa lmha des~ trunbém caracteriza isso muito bem. Quesnay fala de ~
cendente, que faz o bom governo do_ Estado repera;ttr ate bom governo como sendo um "governo econômico" 2·1 • E en-
na conduta dos indivíduos ou na gestao das famílias, e o que contramos em Quesnay; tomarei sobre esse ponto mais tar-
se começa a chamar, nessa época, de "polícia". A pedagogJa J
de, o, momento em que nasce]** essa noção de governo
do príncipe assegJITa a continuidade ascendente das formas econom1c?, que e, no fundo, uma tautologia, já que a arte de
de governo, e a polícia, sua continuidade descendente. governar e, precisamente, a arte de exercer o poder na forma
Vocês estão vendo que, nessa contmwdade, a pe?. es- e segundo~ m_od~l~ da economia. ~s se Quesnay diz "go-
sencial tanto na pedagogia do principe como na políc1a, o verno econorn1co e que a palavra economia", por motivos
elemento central é esse governo da família, chamado, JUS- que procurarei elucidar daqui a pouco, já está adquirindo
tamente, de "economia". E a arte do governo, tal co~o apa- seu sen~do moderno e aparece nesse momento que a pró-
rece em toda essa literatura, deve responder essenc!almo;n- pna essenoa desse governo, 1sto é, da arte de exercer o po-
te a esta pergunta: como introduzir a econo:ru~ -::- Isto e, a der na forma da econorma, vai ter por objeto principal o que
maneira de administrar corretamente os IndiVl~uos, os agora chamamos de economia. A· palavra N economia" de-
bens, as riquezas, como fazê-lo no seio de uma família, como signava uma forma de governo no século XVI, e no século
pode fazê-lo um bom pai de família que sabe dmgJr sua ~designará um nível de realidade, um campo de inter-
mulher, seus filhos, sua cnadagem, que sabe fazer prospe- vençao para o governo, através de uma série de processos
rar a fortuna da sua família, que sabe arranjar par~ ela as complexos e, creio, absolutamente capitais para nossa histó-
alianças que convêm -, como introduzll' e~sa atença?, essa ria. Eis portanto o que é governar e ser governado.
meticulosidade, esse tipo de relação do pru de famil1a com Em segundo lugar, sempre nesse texto de Guillaume
sua família na gestão de um Estado? A introduçao da eco- de La Perriere, encontramos [a] seguinte [frase]***: "Go-
nomia no seio do exercício político, é isso, a meu ver, que verno é a correta disposição das coisas, das quais alguém se
será a meta essencial do governo. Assim o é no século XVI, encarrega para conduzi-las a um fim adequado."" Ea essa
é verdade mas será também ainda no século XVIII. No ver- segunda frase que eu gostaria de vincular uma nova série
bete "Ec~nomia política" de Rousseau, vocês vêem como de observações, diferentes das que diziam respeito à pró-
Rousseau ainda coloca o problema nesses mesmos termos, pria definição do governador e do governo. "Governo é a
dizendo em linhas gerais: a palavra" economia" designa on- correta disposição das coisas." Gostaria de me deter um
. ariamente "o sábio governo da casa para o bem comu:n pouco nesta palavra, "coisas", porque, quando se olha o que,
fe'toda a família"". Problema, diz Rousseau: como esse sa-
bio governo da família po_derá, mutatis mutandts, e com as
descontinuidades que serao observadas, ser mtrod~1do na "'M.F.: ter
gestão geral do Estado ?22 Governar um Es~ado sera portan- "'"' Palavras pouco audíveis.
to aplicar a economia, uma economm no ruvel de todo o Es- "'"'"' M.F.: o texto

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128 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE FEVEREIRO DE 1978
no Príncipe de Maquiavel, caracteriza o conjunto dos obje- 129
tos sobre os quais age o poder, percebe-se que, para Ma- ser os acidentes ou as ai .
quiavel, o objeto, de certo modo o alvo do poder, são duas mias, a morte. c amidades como a fome, as epide-
coisas: é, de um lado, um território e, [de outro], as pessoas Que o governo tenha b. .
que moram nesse território. Nisto, aliás, Maquiavel não faz assim como imbrica - d p~r 0 jeto as coisas entendidas
nada mais que retomar para seu uso próprio e para os fins que,, creio eu, enconi:"~ría~os ~m~ e das coisas, é al~o de
particulares da sua análise um princípio jurídico que é o metáfora inevitável a ac ente a confirmaçao na
mesmo pelo qual se caracterizava a soberania: a soberania tratados do governo que t~mpre se faz referência nesses
no direito público, da Idade Média ao século XVI, não se nar um barco? É enc~ me o~ do barco". O que é gover-
exerce sobre as coisas, ela se exerce primeiro sobre um ter- bém encarregar-se d egar-se os marinheiros, mas é Iam-
ritório e, por conseguinte, sobre os súditos que nele habi- também é levar em c~n~avw, da carga; governar um barco
tam. Nesse sentido, pode-se dizer que o território é o ele- !ades, as intempéries Ea _os ventos, os escolhos, as tempes-
mento fundamentai tanto do principado de Maquiavel como dos marinheiros* co . e esse estabelecimento da relação
da soberania jurídica do soberano, tal como a definem os fi- carga que se tem de I~ :V!o que se tem ~e salvar, com a
iósofos ou os teóricos do direito. Claro, esses territórios po- com todos esses acont . porto, e as reiaçoes de tudo isso
dem ser fecundos ou estéreis, podem ter uma população ec1mentos que -
co!hos, as tempestades é .sao os ventos, os es-
densa ou, ao contrário, esparsa, as pessoas podem ser ricas que caracteriza o gove ' ~ estabeiecrmento dessa relação
ou pobres, ativas ou preguiçosas, mas todos esses elemen- casa: governar uma f~a e um barco. ~e~ma coisa para a
tos não são mais que variáveis em relação ao território que te ter por fim salvar as 'no fundo, nao e essencialmen-
é o próprio fundamento do principado ou da soberania. mente ter como objedropnedades da família, é essencial-
Ora, no texto de La Perriere, vocês vêem que a defini- compõem a família vo~ como meta, os indivíduos que
ção do governo não se refere de maneira nenhuma ao ter- em conta aconte~:~~~q~eza, sua prosperidade; é levar
ritório: governam-se coisas. Quando La Perriere diz que o os nascimentos; é levar em ; e podem sobreVIr: as mortes,
governo governa "coisas", o que ele quer dizer? Não creio zer, como as alianças co onta asf cmsas que se podem fa-
que se trate de opor as coisas aos homens, mas antes de - geral que caracte · m outras amílias. «c toda essa ges-
tao
mostrar que aquilo com que o governo se relaciona não é, problema da propried~: ~ gov~rno e em relação à qual 0
portanto, o território, mas uma espécie de complexo cons- a9uisiç~o da soberania sobren;;Iana, no_ caso da família, o~ a
tituido pelos homens e pelas coisas. Quer dizer também que ape, nao são mais ue m temtono, no caso do pnn-
essas coisas de que o governo deve se encarregar, diz La rios. O essencial, po~antle?'entos relativamente secundá-
Perriere, são os homens, mas em suas relações, em seus vín- coisas, é isso que é o eien':' etesse complexo de homens e de
culos, em suas imbricações com essas coisas que são as ri-
quezas, os recursos, os meios de subsistência, o território, é M .
°
priedade, de certo mod ~n pnncipai, o território- a pro-
o, e apenas uma variável
rus uma vez, esse tema .
claro, em suas fronteiras, com suas qualidades, seu clima, Perriere nessa curiosa defi . - q~e vemos aparecer em La
sua sequidão, sua fecundidade. São os homens em suas re- das coisas, vocês vão tom ruçao o governo como governo
lações com estas outras coisas que são os costumes, os há- XVIII. Frederico II, em seu ~n~~~ontrar nos séc~ios XVII e
bitos, as maneiras de fazer ou de pensar. E, enfim, são os ho- aquiave/, tem paginas sig_
mens em suas relações com estas outras coisas que podem
>~< Foucault acrescenta: que se tem de salvar

J
130 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE fEVEREIRO DE 1978
131
nificativas a esse respeito, quando diz por exemplo: compa-
remos a Holanda com a Rússia. A Rússia é um país que nalidade da soberania, esse bem comum de
jUnstas, em que consiste? Se vo • . que falam os
pode ter as fronteiras mais extensas de todos os Estados eu- reiai que juristas e teólogos dãoc:se~::~:~m o conteúdo
ropeus, mas de que é feita? É feita de pântanos, de flores- e es dizem? Que há bem co omum, o que
tas, de desertos; é pouco povoada por alguns grupos de pes- obedecem sem falh , l . mum quando todos os súditos
soas pobres, miseráveis, sem atividades, sem indústrias. foram atrib ,d a as eis, executam os encargos que lhes
Comparem com a Holanda: ela é pequena, também é feita,
por sinal, de pântanos, mas na Holanda há uma população,
dedi~am, re~p~~~aati~~e:~:~=:~~~~ o~cios os a que se
medida em que essa ordem é nf , a, pe o menos na
uma riqueza, uma atividade comercial, uma frota que fazem pôs à natureza e aos homens c~uosrme as leis qu_e Deu~ im-
da Holanda um país importante da Europa, o que a Rússia sencialmente a obediência , I .. , eja, o bem publico e es-
está apenas começando a ser". Logo, governar é governar terra ou à lei do soberano abel,la lei dDo soberano sobre esta
as coisas. . a souto, eus Mas c
que seja, o que caracteriza a finalidad d. ' orno quer
Volto mais uma vez a esse texto que eu lhes citava há bem comum, esse bem ral nã ~ ~ a soberania, esse
pouco, quando La Perriere dizia: "Governo é a correta dis-
posição das coisas, das quais alguém se encarrega para con-
S:
coisa senão a submissão es~ I o ~ afinal de contas outra
nalidade da soberania é circul a e{' sso quer dizer que a fi-
duzi-las a um fim adequado." O governo tem portanto uma cício da soberania; o bem é a~~~.emete, aopróprio exer-
finalidade, ele dispõe das coisas, no sentido em que acabo que a soberania se - , encla a le1, logo o bem
de dizer, e dispõe das coisas [tendo em vista um fim]*. E, berania Circulan'd pdropoe e que as pessoas obedeçam à so-
nisso também, creio que o governo se opõe muito clara- . · a e essencral que q · .
eVIdentemente, a estrutura teórica : urusq':er que Sejam,
mente à soberania. Claro, a soberania, nos textos filosóficos, efeitos práticos, não está tão dist 'a j~tificaçao moral ou os
nos textos juridicos também, nunca foi apresentada como zia quando [declarava]* que o ba';Je o que Maqmavel di-
um direito puro e simples. Nunca foi dito, nem pelos juris- devia ser manter seu principaXoje v~ pnnclpal do príncipe
tas, nem, a fortiori, pelos teólogos, que o soberano legítimo lo da soberania em relação a ela' con nuamosnesse círcu-
tem suas razões para exercer seu poder, e ponto final. Para relação a ele mesmo. mesma, do pnnc1pado em
ser um bom soberano, o soberano sempre deve se propor Ora, com a nova defini - d L FI "
um fim, isto é, dizem regularmente os textos, o bem comum ca de definição do overno çao . e a ernere, com essa bus-
e a salvação de todos. Tomo, por exemplo, um texto do fim tipo de finalid d gO ' creiO que vemos aparecer outro
do século XVII, em que Pufendorf diz: "Só se conferiu [a es- a e· governo é definid L .,
como uma maneira correta d . o por a Pemere
ses soberanos; M.F.] a autoridade soberana para que eles a las não à forma d "b e dispor das COisas para levá-
' o em comum" dizi
utilizassem de modo a proporcionar e manter a utilidade dos juristas, mas a um "fim adequa'd~~mfio dam os textos
pública [... ].Um soberano não deve considerar nada vanta- cada uma das coisas ue . • m a equado para
joso para si, se também não o for para o Estado."" Ora, esse nadas. O ue i li q . ' precisamente, devem ser gover-
bem comum, ou ainda, essa salvação de todos que encon- cífi ~ mp ca, pnme1ro, uma pluralidade de fin
tramas regularmente invocados, postos como a própria fi- ~= r~~:ao~ :'~mplo, o g~verno deverá agir de modos~~
p axuno posslvel de riquezas; e terá de agir~e

*Conjectura: palavras inaudíveis. * M.F.: dizia

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AULA DE 1? DE FEVEREIRO DE 1978 133
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, poPULt\ÇÃO
132 das abelhas", isto é, o zangão, e diz: o zangão reina na col-
, ssoas meios de subsistência su- méia- o que não é verdade, mas não importa - e reina sem
modo que se forneça as pe antidade possível de meiOS necessitar de ferrãd 9 . Deus quis mostrar com isso, de uma
ficientes, ou mesmo a mruor q>; d agrr· por fim, de modo maneira "mística", diz ele, que o verdadeiro governador
. , · governo tera e ' , ·
de subs1stenc1~; o ulti ]icar-se. Logo, toda uma sene não deve necessitar de um ferrão, isto é, de um instrumen-
que a populaçao pos_sa m p -o se tomar o próprio obJe- to para matar, de uma espada, para exercer seu governo. Ele
de finalidades específicas, que va essas diversas finalidades, deve ter mais paciência do que cólera, ou ainda, não é o di-
tivo do governo. E, !'ara alcanç":Javra "dispor" é importan- reito de matar, não é o direito de fazer valer sua força que
vai se dispor das coisas. Essa p "bili.tava alcançar a fina- deve ser essencial no personagem do governador. E que
b anla o que possl , .
te, porque, na so er . ' , obediência às leis, era a propna conteúdo positivo dar a essa ausência de ferrão? A sabedo-
!idade da soberania, Isto e, adi pois absolutamente uma ria e a diligência. A sabedoria, isto é, não exatamente o co-
lei. Lei e soberarua, como uia:J.o se trata de impor uma lei nhecimento das leis humanas e divinas, o conhecimento da
com outra. Ao centrado, ~q or das coisas, isto é, de utilizar justiça e da equidade, como era a tradição, a sabedoria que
aos homens, trata~se e sp u utilizar ao máximo as leis vai ser requerida daquele que governa é precisamente esse
táticas, muito mrus que odieis, o e por um certo número de conhecimento das coisas, dos objetivos que podem ser al-
como ta-0·cas·' agrr de m. o.dadequ ' assa ser alcançad a. cançados, que se deve fazer que possam ser alcançados, a
meios, esta ou aquela finali a ru~a importante: enquan- "clisposição" que se deve empregar para atingi-los, é esse
Creio que temos aqm um stá em si mesma e enquanto conhecimento que vai constituir a sabedoria do soberano.
to a finalidade da soberan~ e. sma sob a forma da lei, a Quanto à sua diligência, é precisamente o que faz que o so-
ela tira seus instrumentos t _e s~~oisas que ele dirige; ela berano, ou antes, aquele que governa, só deva governar na
finalidade do governo es a .:'o na maximização ou na in- meclida em que se considere e aja como se estivesse a ser-
deve ser buscada na perfeJÇa ' I diri"ge e os instrumentos viço dos que são governados. Aqui também La Perriere se
- d cessos que e e ' , .
tensificaçao os pro I is vão ser diversas tancas. refere ao exemplo do pai de frunília: o pai de frunília é aque-
do governo, em vez de sere~a ~ei: ou antes, na perspectiva le que levanta mais cedo que todas as pessoas da sua casa,
Regressão, por consegumte,a lei não é certamente o instru- que deita mais tarde que os outros, é ele que zela por tudo,
do que deve ser o f?"veb~' voltamos a encontrar o tema porque se considera a serviço da sua casa3n.
mento maior. Aqm tam em , ui XVll e que está manifes- Vocês percebem imediatamente quanto essa caracteri-
. d te todo o sec o d
que crrculou _uran , lo XVlll em todos os textos ~s zação do governo é diferente da caracterização do príncipe
tamente exphclto no secu uando eles explicam que nao tal como a encontrávamos, ou tal como se pensava encon-
economistas e dos fiswcratas, ~de efetivamente alcançar as trá-la, em Maquiavel. Claro, essa noção de governo ainda é
é certamente pela lei que se p muito tosca, apesar de alguns aspectos de novidade. Creio
finalidades do governo. - quarta referência tomada que esse pequeno esboço da noção e da teoria da arte de
Enfim, quarta observ~~':;,e de La Perriere, mas sobre governar, esse primeiro rápido esboço não ficou certamen-
sempre desse texto de Gu ápido· La Perriere diz que te no ar, no século XVI; ele não era simplesmente assunto
este ponto simples, elementar e ~ b~m governador, deve de teóricos políticos. Podemos identificar suas correlações
alguém que sabe governar ?emdm " cia"2s_ Por "paciência" no real. Por um lado, a teoria da arte de governar esteve li-
possuir "paciência, sabedona e ua~~ quer explicar a pala- gada, desde o século XVI, a todos os desenvolvimentos do
o que ele entende? Pms bem, q I do que chama de "o rei
vra paciência, ele toma o exemp o
SEGURANÇA, TERRJTÓRIO POPUlAÇÃO AUlA DE 1." DE FEVEKEIRO DE 1978 135
134
. d arquias territoriais (apare- expressão "razão histórica", seriam fáceis de encontrar; creio
aparelho administrativo as mo~o dos representantes do que se trata simplesmente - estou falando em linhas bas-
cimento dos aparelho; d~ gtove bé;, a todo um conjunto de tante gerais, claro - da série das grandes crises do sécuio
governo, etc.); esteve ga a am olveram desde o fim do XVTI: a Guerra dos Trinta Anos, primeiro, com suas devas-
análises e de saberes que se d~~";; sua amplitude no sécu- tações e suas ruínas; em segundo lugar, [em meados]* do
século XVI e que adqumram t nhecimento do Estado em século, as grandes revoltas rurais e urbanas, e enfim a crise
lo XVII. essenaalmente esse co diferentes dimensões, nos financeira, a crise dos meios de subsistência também, que
seus diferentes dados, em suas f . isso ue se chamou endividou toda a política das monarquias ocidentais no fim
diferentes fatores do seu poder, e m_ . dqo Estado" En- do século XVTI. A arte de governar, no fundo, só podia se
" tí ti " como c1enc1a ·
precisamente de esta s cab de uma arte de governar realizar, se refletir, adquirir e multiplicar suas dimensões em
. t . o lugar essa usca ..
fim, em er:_err ' orrela ão com o mercantihsmo período de expansão, isto é, fora das grandes urgências mi-
não pode nao ser posta_em a~ mes~o tempo, esforços para litares, econômicas e políticas que não cessaram de ator-
e o camerahsmo qu_e sao, oder em função precisamente mentar o sécuio XVTI, do início ao fim.
racionalizaro exerclclâ do ~os pela estatística e que taro- Razões históricas, digamos assim, maciças e grosseiras,
dos conhecrrnentos a. qum elhor um conjunto de prin- que bloquearam essa arte de governar. Penso também que
bém foram uma doutrina: ou m . de aumentar o poder e essa arte de governar, formulada no sécuio XVI, viu-se blo-
cípios doutrinais quanto a ma~:rra vemar não é, portanto, queada no século xvn [por] outras razões que poderíamos
a riqueza do Estado. Essa arte dgo lh os do prínci-
rr·
chamar, com palavras de que não gosto muito, de estrutu-
.d ,. d fi!- ofos ou e conse e
apenas uma I e1a e dos d"da em que efetivamente, ras institucionais e mentais. Em todo caso, digamos que a
formula a na me I lho da ~onarquia ad-
Pe·' ela só .foi a1 pregnância do problema do exercício da soberania, ao mes-
d 0 grande apare
estava se mst an o d ber correlatas a esse aparelho. mo tempo como questão teórica e como princípio de orga-
ministrativa e as formas edsad essa arte de governar não nização política, foi um fator fundamental nesse bloqueio
M~s, P. ara
.
dizer a ver a e, • . d ,
litude e sua consistencia antes o se- da arte de governar. Enquanto a soberania era o problema
pôde adqwm sua am~ rt modo bastante encerrada no maior, enquanto as instituições de soberania eram as insti-
culo XVIII. Ela ficou, e ce o . d inistrativa O fato de tuições fundamentais, enquanto o exercício do poder foi
interior das formas da mon~~~ a e~anecido .assim, um pensado como exercício da soberania, a arte de governar
que essa arte de governar =ou ~m todo caso, prisioneira não podia se desenvolver de maneira específica e autôno-
tanto envolVlda em Sl mesm ' um certo número dera- ma, e creio que temos um exemplo disso justamente no
* tem a meu ver,
de estrutirras [... ] ' ' , . e blo uearam essa arte mercantilismo. O mercantilismo, é verdade, foi de fato o
zões. Primeiro razões ~isto~c~~ri~~s no ';entido estrito da primeiro esforço, eu ia dizer a primeira sanção, dessa arte
de governar. Essas razoes s ' de governar no plano ao mesmo tempo das práticas políti-
cas e dos conhecimentos sobre o Estado - nesse sentido,
. . teli íveis. A passagem que precede, pode-se dizer que o mercantilismo é de fato um primeiro li-
,.. Uma ou duas palavras uun gf " falta curiosamente, na
tempo es orços... '
desde "que são, ao mesn:o d Íns et Écrits (cf. infra, p. 117, nota*),
trailSCrição do curso publica a em_ laf d 19\mhas de que não se en- ,. Palavras dificilmente audíveis. Manuscrito "que ocupam todo o
p · 648' e é substituída por um paragr
-
o e
em no manusc
n·to
· meado do século".
centram vestígios nem na gravaçao n
136 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE F DE FEVEREIRO DE 1978
137
miar de racionalidade nessa arte de governar de que o tex- o exemplo de Hobb [ ] ..
do fat d es prova -o suficrentemente - apesar
to de La Perriere indicava simplesmente alguns princípios o e que? que [se] queria encontrar era no 'fim das
mais morais que realistas. O mercantilismo é de fato a pri- contas, os prmC!piOs d.ireto d '
meira racionalização do exercício do poder como prática do [se] foi além da fo _res e uma_ arte de governar, não
público. rmulaçao de pnncrpiOs gerais de direito
governo; é de fato a primeira vez que começa a se constituir
trato ~:~~o, J~rduomdelad~, udm qubadro amplo demais, abs-
um saber do Estado capaz de ser utilizado para as táticas do
governo. É a pura verdade, mas o mercantilismo viu-se blo- ' b~ mru.s a so erama e tr
queado e detido, creio eu, precisamente por ter se dado o modelo estreito demais frá . d . . ' por ou o, um
que como objetivo? Pois bem, essencialmente o poder do mais, que era o da f a: gil emrus, mconsistente de-
soberano: como fazer de modo que não tanto o país seja va coincidir com a f:mr ra. A arte de governar, ou procura-
rico, mas que o soberano possa dispor de riquezas, possa lhor diz d rma geral da soberanra, ou então, me-
. en o, ao mesmo tempo se acomodava não adia
ter tesouros, que possa constituir exércitos com os quais po- derxar de se acomodar a essa espécie de d Í p
derá fazer sua política? O objetivo do mercantilismo é o po- que era o governo da família"* Como i mo e o completo
der do soberano, e os instrumentos que o mercantilismo se · azer para que quem
governe possa governar o Estado tão bem d .
dá, quais são? São as leis, os decretos, os regulamentos, isto ra tão precisa meticul ' e uma mane1-
é, as armas tradicionais da soberania. Objetivo: o soberano; m ília.? E' com' rsso
. asa, quanto se pode governar uma fa-
mesmo' se estava bl oqueado por essa
instrumentos: as próprias ferramentas da soberania. O mer- "d " da
r era economia qu · d ,
cantilismo procurava fazer as possibilidades dadas por uma mente à est- e, am a nessa epoca, se referia unica-
arte refletida de governo entrarem numa estrutura institu- fruníli g ao de um pequeno conjunto constituído pela
cional e mental de soberania que a bloqueava. De sorte que, mília ~e pe1~ gente da casa. A gente da casa e o pai de fa-
durante todo o século XVII e até a grande liquidação dos te- ' e ur:' ado, o Estado e o soberano do outro· a arte d
governar na o podia encontrar sua d.imen'sa- , .. e
mas mercantilistas do início do século XVIIT, a arte de go- C o propna.
vernar ficou de certo modo andando sem sair do lugar, pega
entre duas coisas. De um lado, um quadro amplo demais, ~:~~~~%:!~:t~e~o~~e~b~';:;~~~~o~e~ed~es~~~~::;Jo E::
abstrato demais, rigido demais, que era precisamente a so- do século e processos gerrus: a _expansão demográfica
berania como problema e como instituição. Essa arte de go- . li d XVITI, ligada por sua vez a abundância monetá _
vernar procurou compor com a teoria da soberania; tentou- na, ga a por sua vezao aumento da produção a 'cola se-
se deduzir de uma teoria renovada da soberania os princí- gundo os processos crrculares que os historiadorfs conh
cem bem e que . e-
pios d.iretores de uma arte de governar. É aí que intervêm os . ' por consegumte, eu ignoro. Sendo tudo
juristas do século XVII quando formulam ou quando atua- rsso o marco geral, podemos dizer, de uma forma mais pre-
lizam a teoria do contrato. A teoria do contrato- do contra-
to fundador, do engajamento recíproco dos soberanos e dos "'O manuscrito acrescenta 17 "P ,
súditos - vai ser a espécie de matriz a partir da qual se pro- que melhor corresponde a essa ~~ d: orque e 0 governo da família
curará alcançar os princípios gerais de uma arte de gover- der imanente à sociedade ( .f e governar que se busca: um po-
nar. Mas, se a teoria do contrato, se essa reflexão sobre as 'as coisas' e não sobre 0 ter::tóp~ az parte da família), um poder sobre
no, um poder com finalidad úl ·
relações entre o soberano e seus súditos teve um papel im- todas elas concernentes ao bem-estar à ~ li "d d , . es m tip1as,
portantíssimo na teoria do direito público, [na realidade] - um poder pacífico, vigilante., ' e CI a e, a nqueza da família,

J
138 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE FEVEREIRO DE 1978
139
cisa, que o desbloqueio dessa arte de governar esteve liga- cas, a espiral do trabalh d .
do, penso eu, à emergência do problema da população. Ou, [também] que, por seus ~:sloa nqueza. A estatística mostra
digamos também, temos um processo bastante sutil, que agir, por sua atividade a o ,;ian:_entos, por seus modos de
precisariamos tentar reconstituir em detalhe, no qual vería- específicos. A estatísti~a ~op açao tem efeitos económicos
mos como a ciência do governo, o recentramento da econo- fenômenos próprios da ' ~oS~Ibilitar a quantificação dos
mia em outra coisa além da família e, enfim, o problema da ficidade irredutível [aotop açao,, faz aparecer sua especi-
população estão ligados uns aos outros. Foi através do de- certo número de temas fe~~~no ambito da família. Salvo
senvolvimento da ciência do governo que a economia pôde mente temas morais e reli . rus, que podem ser perfeita-
recentrar-se num certo nível de realidade que caracteriza- governo vru· desaparecer. gwsos, a família como modelo do
mos agora como econômica, e foi também através do de-
, Em compensação, o que .
senvolvimento da ciência do governo que foi possível re- e a família como element vru aparecer nesse momento
cortar o problema específico da população. Mas poder-se- apoio fundamental para; no mtenor da população e como
ia igualmente dizer que é graças à percepção dos problemas até o surgimento da prob~~~ar e~ta. Em out:as palavras,
específicos da população e graças ao isolamento desse nível governar não podia ser pensadaca ~ populaçao, a arte de
de realidade que se chama economia, que o problema do da família, a partir da eco . senao a partir do modelo
governo pôde enfim ser pensado, refletido e calculado fora família. A partir d nomia entendida como gestão da
do marco jurídico da soberania. E essa mesma estatística 1açao - o momento em que -.
vai aparecer 'ao contrano, a popu-
que, nos marcos do mercantilismo, nunca tinha podido fun- lia, a família passa ~~:ooab;;o\uta;nente irredutível à famí-
cionar, senão no interior e, de certo modo, em benefício de lação; aparece como elem~~~o m enor em relação à popu-
uma administração monárquica que funcionava, por sua vez, Portanto ela na-o e' . no mtenor da população
na forma da soberania, essa mesma estatística vai se tornar ' maisummodl·' ·
o fator técnico principal, ou um dos fatores técnicos princi-
pais, desse desbloqueio.
obter alguma coisa da pop ra-
mento simplesmente privile . d e o, e um segmento, seg-
o porque, quando se quiser
to sexual, quanto à demo ~~çao qu~nto ao comportamen-
De fato, como o problema da população vai possibili- to ao consumo é ela fa gr . a, ao numero de filhos, quan-
tar o desbloqueio da arte de governar? A perspectiva da po- passar. Mas, de'mcfctelo a~1iaílique se terá efetivamente de
pulação e a realidade dos fenômenos próprios da popula- instrumento privile . cÍ mi a vai se tomar instrumento
não modelo quiméE,~ !r:ra ~ governo das populações ~
0
ção vão possibilitar afastar definitivamente o modelo da fa-
mília e recentrar essa noção de economia noutra coisa. De mento da família do nív~l d o â~ governo. _Esse desloca-
fato, essa estatística que havia funcionado até então no in- mentação é absolutamente ':u~â e o para o J1IVel de instru-
terior dos marcos administrativos e, portanto, do funciona- tir de meados do século XVI amental. E e de fato a par-
mento da soberania, essa mesma estatística descobre e mos- instrumentalidade em r la -ll 9ue a família aparece nessa
tra pouco a pouco que a população tem suas regularidades e Çao a populaç- . -
panhas sobre a mortal'd d ao. serao as cam-
próprias: seu número de mortos, seu número de doentes, sarnento, as vacinaçõe~ :s ~'as ~an:_panhas relativas ao ca-
suas regularidades de acidentes. A estatística mostra igual- gue a população possibfute I~~~~~çoes, etc. Logo, o que faz
mente que a população comporta efeitos próprios da sua nar é que ela elimina o mod 1 d ofquew da arte de gover-
agregação e que esses fenômenos são irredutíveis aos da fa- E e o a amília '
m segundo lugar a po ul - . ·
mília: serão as grandes epidemias, as expansões epidêmi- lência como a meta fi~al d p açao vai aparecer por exce-
o governo, porque, no fundo,

J
140 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE FEVEREIRo DE 1978
qual pode ser a finalidade deste último? Não é certamente 141
governar, mas melhorar a sorte das populações, aumentar pulação, o território e a riq . . ,
suas riquezas, sua duração de vida, sua saúde. E o instru- cia chamada '' ec . ue~~ q~e se constiturra uma ciên-
mento que o governo vai se dar para obter esses fins, que, ti d . ononua política e, ao mesmo t
. po e mtervenção caracteristica d 0 empo, um
de certo modo, são imanentes ao campo da população, será mtervenção no campo d governo, que vru ser a
essencialmente a população, agindo diretamente sobre ela suma, a passagem de ur:a economia e da população*. Em
por meio de campanhas ou também, indiretamente, por política", a passagem de um~e de g~vemar a uma ciência
meio de técnicas que vão permitir, por exemplo, estimular, turas de soberania a um . egJ.me. onunado pelas estru-
sem que as pessoas percebam muito, a taxa de natalidade, governo se faz no século ~e donunado pelas téc~icas do
ou dirigindo nesta ou naquela região, para determinada ati- conseguinte em tomo d em tomo da populaçao e, por
vidade, os fluxos de população. É a população, portanto, Quand; lhes di . o nasrunento da economia política
muito mais que o poder do soberano, que aparece como o ma que a soberania J~Isso,dnão quero dizer de forma algu~
fim e o instrumento do governo: sujeito de necessidades, de menta em que a arte d IXOU e ter um papel a partir do ma-
aspirações, mas também objeto nas mãos do governo. [Ela cia política. Direi até =t~~~m'!'. começou a se tomar ciên-
aparece] como consciente, diante do governo, do que ela da soberania se colo~ou com~ano, que nunca o problema
quer, e também inconsciente do que a fazem fazer. O inte- momento, porque se tratava anta acwdade_ quanto nesse
resse como consciência de cada um dos indivíduos que no século XVI ou no s ~ cul precisamente, na o mais, corno
constitui a população e o interesse como interesse da popu-
lação, quaisquer que sejam os interesses e as aspirações in-
rias da soberania u e o :VU· de tentar deduzir das teo-
via uma arte de g~a arted ~governar, mas, dado que h a-
dividuais dos que a compõem, é isso que vai ser, em seu via, de ver que form=mru;di a o que essa arte se desenvol-
equívoco, o alvo e o instrumento fundamental do governo fundamento de drr· .t JUn ca, que forma institucional que
das populações. Nascimento de uma arte ou, em todo caso, eioiaserpossívld, b '
caracteriza um Estado. e ar a so erania que
de táticas e técnicas absolutamente novas.
Enfim, a população vai ser o ponto em tomo do qual . Leiam os dois textos de Rousseau- o . .
logJ.camente, 0 verbete "E . , . pnmeiro, crono-
vai se organizar o que se chamava de "paciência do sobera- dia~ -, e verão como R conomia politica" da Enciclopé-
no" nos textos do século XVI. Ou seja, a população vai ser vemo e da arte de g ousseaupostula o problema do go-
o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas ob- overnar re"'strand ·
guinte (o texto é muit ' o; . o precisamente o se-
servações, em seu saber, para chegar efetivamente a gover- E! d. . a! , o caractenstico desse ponto de · t )
nar de maneira racional e refletida. A constituição de um e IZ. a p avra economia" d . . VIS a .
tão pelo pai de farni]· d b esigna essencralmente ages-
saber de governo é absolutamente indissociável da consti- delo nao - Ia os ens da fanu1i "·
deve mais ser ace·t . a , mas esse mo-
tuição de um saber de todos os processos que giram em ferência a ele no passad EI o, runda que se tenha feito re-
tomo da população no sentido lato, o que se chama preci- gue a economia políti o. - m_nossos dias, diz ele, sabemos
sem se referir explicita~e~~~ ~ema~_s: economia familiar e,
samente "economia". Eu dizia a vocês na última vez que a
economia política pôde se constituir a partir do momento tística, nem ao problema a! md a siocrac!a, nem à esta-
em que, entre os diferentes elementos da riqueza, apareceu ger a populaçao, ele registra
um novo sujeito, que era a população. Pois bem, é apreen-
dendo essa rede contínua e múltipla de relações entre a po- - *Ornanuscntoespeciiica,p.20:"F". . -~ .
no e uma ciência das rela - ~tocratas. uma aenaa do gover-
çoes entre as nquezas e a população."

__/
J
·-·
142 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AliLA DE 1.' DE fEVEREIRO DE 1978
143
esse corte e o fato de que ''economia", economia política"
11
mais tarde de uma sociedade de d. . .
tem um sentido totalmente novo, que não deve mais serre- dade, digamos, de governo. Tem I~Cipflina por u~a socte-
duzido ao velho modelo da família". Em todo caso, ele se soberania, disciplina e estão os, e ato, um triangulo -
atribui nesse verbete a tarefa de definir uma arte do gover- governamental cujo al~o . gove~?mental -, "?'a gestão
no. Depois escreverá o Contrato social": o problema será mecanismos essenciais sã~n~sa~a e a ,ropulaçao e cujos
precisamente saber como, com noções como as de "nature- Em todo caso, o que eu ueri lh spositivos de segurança.
za", de "contrato", de "vontade geral", pode-se oferecer um histórico profundo entreq a . es mostrar era um vinculo
princípio geral de governo que dará lugar, ao mesmo tem- tantes da soberania par od~~~ento que desloca as cons-
po, ao princípio jurídico da soberania e aos elementos pe- das boas opções de gov: e as o problema, agora maior,
los quais se pode definir e caracterizar uma arte do gover- lação aparecer como um r:;o;t moVImento que faz a popu-
no. Logo, a soberania não é de forma alguma eliminada venção, como a finalidade ;asot_como um campo de inter-
pelo surgimento de uma nova arte de governar, uma arte de o movimento que isola a econ ecrucas de gov;mo, [enfim]
governar que agora transpôs o limiar de uma ciência políti- co de realidade e a econorrúa OmJa líti como domuuo específi' -
ca. O problema da soberania não é eliminado; ao contrário, dêncta e como te'cru·ca d po ca ao mesmo tempo como
é tomado mais agudo do que nunca. e mtervenção d0
campo de realidade* sa- t • governo nesse
Quanto à disciplina, ela também não é eliminada. Cla- · oesestresmo ·
ver: governo populaça-o VImentos - a meu
' e economi 0 líti
ro, sua organização, sua implantação, todas as instituições quais cabe notar que constitu aP ~a -, acerca dos
dentro das quais ela havia florescido no século xvn e no série sólida, que certamente ~~oafo~ do seculo )_<Vl11 uma
irúcio do século XVTII (as escolas, as fábricas, os exércitos), Acrescentarei apenas u al ssoaada ate hoJe.
tudo isso fazia corpo [com] e só se compreende pelo desen- eu quisesse ter dado ao curs'::qa p _avra [... ]**.No fundo, se
volvimento das grandes monarquias administrativas, mas mais exato, certamente na-o t . ue Iniciei este ano um título
nunca, tampouco, a disciplina foi mais importante e mais · • . população". que euena escolhido
ntono, . "segurança, ter-
0
valorizada do que a partir do momento em que se procura- se mesmo, seria urna coisa quena fazer ~gora, se quises-
va administrar a população- e adrrúnistrar a população não "governamentalidade" Po que eu chamana de h'ISt,ona . da
quer dizer simplesmente adrrúrústrar a massa coletiva dos , · r esta palavra "go
dade 'entendo o conjunto constituid 'I vernamentalJ- .
fenômenos ou adrrúnistrá-los simplesmente no plano dos procedimentos, análises e refi - o p~ as mstituições, os
seus resultados globais; adrrúrústrar a população quer dizer que permitem exercer essa fo':::sb os cálcu!o_s e as táticas
adrrúnistrá-la igualmente em profundidade, adrrúnistrá -la mmto complexa, de poder ue tem em especifica, embora
com sutileza e administrá-la em detalhe. pulação, por principal fonn~ de sab por alvo pnncipal a po-
Por conseguinte, a idéia de um governo como governo por instrumento técnico essencial er ~ econ_orrua política e
da população toma ainda mais agudo o problema da fun- rança. Em segundo lu ar " os spositivos de segu-
dação da soberania- e temos Rousseau- e ainda mais agu-
da a necessidade de desenvolver as disciplinas - e temos
tendo a tendência a lin~
'
'/7 governamentalidade" en-
a e orça que, em todo o Ociden-
toda a história das disciplinas que procurei contar em outra
ocasião". De sorte que as coisas não devem de forma ne- . *O manuscrito acrescenta . 22. "[ .
nhuma ser compreendidas como a substituição de uma so- tira gestão das populações po , p . movunento esse] que vai garan-
~ Segu r um corpo de funcionários"
ciedade de soberania por uma sociedade de disciplina, e em-se algumas palavras ininteligíveis. .
144 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1." DE FEVEREIRO DE 1978
145
te, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preemi- de, não é po~anto a estatização da sociedade, mas o que eu
nência desse tipo de poder que podemos chamar de "go- chamana de governamentalização" do Estado.
verno" sobre todos os outros -soberania, disciplina- e que . Vivemos na era da "govemamentalidade", aquela que
trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série foi descobe';la no s~culo XVIII. Governamentalização do
de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado]*, o Estado que e um fenomeno particularmente tortuoso, pois,
desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por embor': efetivamente os problemas da govemamentalida-
"govemamentalidade", creio que se deveria entender o pro- de,as tecrucas de governo tenham se tomado de fato o úni-
cesso, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado co m~to político e o único espaço real da luta e dos emba-
de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tor- tes políticos, essa.governamentalização do Estado foi, ape-
nou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco "gover- s~ de tu_do, o fenomeno que permitiu ao Estado sobreviver.
namentalizado". E e possivei que, se o Estado existe tai como ele existe ago-
Sabe-se que fascínio exerce hoje o amor ou o horror ao ~a, seJa preasamente graças a essa govemamentalidade que
Estado; sabe-se quanta atenção as pessoas dedicam ao nas- e ao_ mesmo tempo extenor e mterior ao Estado, já que são
cimento do Estado, à sua história, à sua progressão, ao seu as taticas de gover::'o que, a cada instante, permitem definir
poder, aos seus abusos. Encontramos essa supervalorização ? q~e deve ser do _ambito do Estado e o que não deve, 0 que
do problema do Estado essencialmente sob duas formas, e publico e o que e pnvado, o que é estatal e o que é não-es-
parece-me. Sob urna forma imediata, afetiva e trágica: é o tatal. Portanto, se quiserem, o Estado em sua sobrevivência
lirismo do monstro frio" diante de nós. Existe uma segun- e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a
da maneira de supervalorizar o problema do Estado -e sob partir das táticas gerais da govemamentalidade.
uma forma paradoxal, por ser aparentemente redutora -, . Talvez fosse possível, de modo totaimente globai, gros-
que é a análise que consiste em reduzir o Estado a um cer- serro e, por consegwnte, inexato, reconstituir as grandes
to número de funções como, por exemplo, o desenvolvi- formas, as gr~des econorruas de poder no Ocidente da se-
mento das forças produtivas, a reprodução das relações de gwnte manerra: pnmerro, o Estado de justiça, nascido numa
produção; e esse papel redutor do Estado em relação a ou- temtonalidade de tipo feudal, que corresponderia grosso
tra coisa toma, apesar de tudo, o Estado absolutamente es- modo a uma sociedade da lei - leis consuetudinárias e leis
sencial como alvo a atacar e, como vocês sabem, como po- escntas -, com todo u~ jogo de compromissos e litígios;
sição privilegiada a ocupar. Ora, o Estado, sem dúvida não depms, o Estado admirustrativo, nascido numa territoriali-
mais hoje em dia do que no curso da sua história, nunca dade de tipo fronteiriça, e não mais feudal, nos séculos XV
teve essa unidade, essa individualidade, essa funcionalida- e XVI, esse Estado administrativo que corresponde a urna
de rigorosa e, diria até, essa importãncia. Afinal de contas, sociedade de regulamentos e de disciplinas; e, por fim, um
o Estado talvez não seja mais que uma realidade compósi- Estado de governo que já não é essenciaimente definido
ta e uma abstração mitificada cuja importância é bem mais por sua territorialidade, pela superficie ocupada, mas por
reduzida do que se imagina. Talvez. O que há de importan- urna massa: a m~ssa da população, com seu volume, sua
te para a nossa modernidade, isto é, para a nossa atualida- densidade, com, e claro, o território no qual ela se estende
mas que de certo modo não é mais que um component~
seu. E esse Estad.? de governo, que tem essencialmente por
* M.F.: também o desenvolvimento Objeto a populaçao e que se refere [a] e utiliza a instrumen-
SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
146
NOTAS
tação do saber econômico, corresponderia a uma sociedade
controlada pelos dispositivos de segurança. _
Aí estão, se quiserem, algumas cons1deraçoes sobre a
instauração desse fenômeno, a meu ver rrnportante, da go-
vernamentalidade. Procurarei agora lhes mostrar como essa
governamentalidade nasceu, [em prim:iro lugar] a partir de
um modelo arcaico, o da pastoral cnsta; em se~ndo lugar,
apoiando-se num modelo, ou antes, numa tecruca diplo-
mático-militar; e, enfim, em tercerro lugar, como essa gover-
namentalidade só pôde adquirir as dimensões que tem gra-
ças a uma série de instrumentos bem pamcuiares, cuJa for-
mação é contemporânea precisamente da arte de governar
e que chamamos, no antigo sentido do termo, o sentid~ dos
sécuios XVll e XVID, de "polícia". A pastoral, a nova tecru-
ca diplomático-militar e, enfim, a polícia - creio que for,:un 1. Sobre essa tradição dos "espelhos dos príncipes", cf. P. Ha-
esses os três grandes pontos de apoio a partir dos_ quaiS pode dot, "Fürstenspiegel", in Reallexikon fiir Antike und Christentum, t. 8,
se produzir esse fenômeno fundamental na histona do Oci- org. por Th. Klauser, Stuttgart, A Heisemann, 1972, col. 555-632.
dente, a governamentalização do Estado. 2. N. Machiavelli, II Principe (1513), Roma, B. Di Giunta
(impr.), 1532.
3. A W. Rehberg, Das Buch vom Fürsten von Niccolo Macchia-
velli, übersetzt und mit Einleitung und Anmerkungen begleitet,
Hanôver, bei den Gebrüdern Hahn, 1810 (2~ ed., Hanôver, Hahns-
chen Hofbuchhandlung, 1824). Cf. S. Bertelli & P. lnnocenti, Bi-
bliografia machiavelliana, Verona, EdizioniValdonega, 1979, pp. 206
e 221-3.
4. Heinrich Leo publicou em 1826 a primeira tradução alemã
das cartas familiares de Maquiavel, precedida de uma introdução
(Die Briefe des Florentinischen Kanzlers und Geschichtsschreiber Nic-
colô Machiavelli an seine Freunde, aus den Italianischen überstzt
von Dr. H. Leo, 2~ ed., Berlim, Ferdinand Dümmler, 1828 ) . Cf. G.
Procacci, Machiavelli nella cultura europea dell'età moderna, Bari, La-
terza, 1995, pp. 385-6; S. Bertelli & P. Innocenti, op. cit., pp. 227-8.
5. Leopold von Ranke (1795-1886), Zur Kritik neuerer Ges-
chichtsschreiber, Leipzig-Berlim, G. Reirner, 1824, pp. 182-202. Ran-
ke, nessa obra, consagra apenas um "breve mas substancial" apên-
dice a Maquiavel (Procacci). Sobre a sua importância, cf. P. VIllari,
Niccolà Machiavelli e i suai tempi, Milão, U. Hoepli, 1895, t. II, pp.
463 ss.; G. Procacci, op. cit., pp. 383-4: "Ranke foi, após Fichte, o
148 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 1.' DE FEVEREIRO DE 1978
149
primeiro dentre os intérpretes alemães (não esqueçamos que as
páginas hegelianas do ensaio Über Verfassung Deutschlands ainda nesse livro segue se · di t ,
de "libris ; Chris~o~:te:=~ aqueh~ e.m ~ue o autor trata
eram inéditas) a colocar de forma conseqüente o problema da uni- minandis" ( . 339)· - a Chri~hantsmo penitus eü-
dade da obra maquiaveliana e a procurar resolvê-lo numa base imitadores, fomo Pe~;~penas as o~ras pagas, mas também a dos
puramente histórica." Cf. igualmente Friedrich Meinecke (1795- li nella cultura europea... , ;pe :~-~cDccto (cf. G. Procacci, Machiavel-
1815), Die Idee der Staatsriison in der neueren Geschichte, Munique-
Berlim, R. Oldenbourg, 1924/ I:Idée de la raison d'État dans l'histoire 11. I. Genttllet, Discours sur 1 d .
maintenír en bonne paix un R es moyens ~ ~zen gouverner et
des temps modernes, trad. fr. M. Chevallier, Genebra, Droz, 1973,
p. 343: "[ ... ] foi um dos juízos mais ricos em pensamento e mais
':ez
trais parties à savoir du Cons~ra:Je7;. ~~tre Pnnc~pauté, div~sez en
un Pnnce. Contre Nicolas Madzi l FI zgzo~ et Polzce, que dott tenir
fecundos escritos sobre Maquiavel. Ele abre assim o caminho para reed. com o título de Anti-Ma have I orentin, _s.I. [Genebra], 1576;
todos os seus sucessores. Cinqüenta anos depois, acrescentou Rathé, Genebra, Droz " c zave:' comentanos e notas de C. E.
complementos que esclareceram sua atitude diante do maquiave- 1968 (cf. C. E. Rathé "fun Les C!asSlques de la pensée politique",
lismo, enquanto a primeira edição se limitou a uma exposição pu- vel"'), Btblzothéque ;i'Hun:'ac.:'i~~~e~~ and lhe first 'Antimachia-
ramente histórica, em que o juízo moral mal era abordado". Essa 186-225. Gentillet (c. 1535-1588) e atssance, XXVII, 1965, pp.
segunda edição, publicada em 1874, está reproduzida nas Siimtli- refugiado em Genebra após a n ~ra ~m [unsconsulto huguenote,
che Werke, Leipzig, 1877, XXX!ll-xx:xrv; pp. 151 ss. teve 24 edições, entre 1576 e 165~ Cd e sao Bart~lomeu. Seu livro
6. Esse autor não é citado em nenhuma bibliografia. Não há duas em inglês, uma em holandês e ez" em frances.:: Oito e~ latim,
sinal do seu nome no artigo de A Elkan, "Die Entdeckung Ma- ta do por Foucault (Discours d'E t t ~s em alemao). O titulo ci-
chiavellis in Deutschland zu Beginn des 19. jahrhunderts", Histo- Leyden, publicada em 1609. s a ... corresponde à edição de
rische Zeitschrift, 119, 1919, pp. 427-58.
7. Angelo Ridolfi, Pensieri intorno alio scopo di Niccolà Machia- - 12. Frederico II, Anti-Machiavel H .
sao remanejada por Voltaire daRe ' -aia, 1~40_ (trata-se da ver-
velli nel libra 11 Príncipe, Milão, 1810. Cf. G. Procacci, Machiavelli escrita em 1739 I . , futaçao do pnnctpe de Maquiavel
nella cultura europea ... , pp. 374-7. pe o JOvem pnncrpe h d . . '
pu~licado em 1848); reed. Paris Fa er" erro, CUJO texto só será
8. E não ''nos Estados Unidos", como está na edição deste
texto emAut-aut (DE, Ill, p. 637).
phtlosophie en Iangue française;'), i:g. ( Corpus des oeuvres de
13. A pnmetra edição d li d
9. Congresso reunido em Viena, de novembro de 1814 a ju- Named the GIYVernour ub . o vro e Thomas Elyot, The Boke
nho de 1815, a fim de estabelecer uma paz duradoura após as
guerras napoleônicas e redesenhar o mapa político da Europa. Foi 14. Paolo Parut
b
1531; edição crítica d~ ~c~d~ emNLondres, data na verdade de
. . u e: ova York, Garland, 1992.
o mais importante congresso europeu reunido desde o deVestefá- Nicolini, 1579. a, Della perfettwne della vita politica, Veneza, D.
lia (1648). Cf. infra, p. 444, nota 9.
10. Lancellotto Politi (entrou para a ordem dominicana em 15. Guillaume de La Perriére (1499' 15 3') . .
que, oeuvre non moins uh'I . ,·- 5 · , Le Mzrozre politi-
1517, adotando o nome de Ambrogio Catarino): Enarrationes R P. ces seigneurs . e que necessatre a tous monarches roys pn·n-
F. Ambrossi Catharini Politi Senensis Archiepiscopi campani in quin- ' , magzstrats et autres su · t d ' ,
publicques, Lyon, Macé Bonhomme n~5~· ~~ts ~/o:;"~urs de Re-
que priora capita libri Geneses. Adduntur plerique alii tractatus et pnmerra de V. Norment e j 8 ' ' · e · e ., s, 1567 (a
quaestiones rerum variarom, Romae, apud Antonium Bladwn Ca- Mangnier; ed. inglesa, Ihe A-!i runeau, a segunda de Robert Le
merae apostolicae typographum, 1552 (segundo Luigi Firpo, "La 1589 e 1599). Cf G D "Grror of Pobce, Londres, Adam Is!ip
prima condanna del Machiavelli", Università degli Studi di Torino, ' . . exter, uillaume de La Pi ., " B 'b . , '
que d Humamsme et Renaissance XVII (1) emere ' ' l!othe-
Annuario dell'anno accademico 1966-67, Turim, 1967, p. 28, a obra ca, "Forme di governo e fo 'd ' 19~5, PP· 56-73; E. Sciac-
pode ter sido impressa em 1548). O parágrafo intitulado "Quam di Guillaume de La Peme::a II ~lia s_oaeta ~~~ Mzrozre Polztz'cque
execranti Machiavelli discursus & institutio sui principis" (pp. 340-4),
174-97.A obra, póstuma teria,sido en~;"odpol!nco, XXII, 1989, pp.
' re gt a em 1539, por solicita-

i
SEGURANÇA, TERRITóRIO, POPULAÇA
·a AUIA DE 1." DE FEVEREIRO DE 1978 151
150
e ediram ao autor para "redigir 21. Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l'économie politique
(1755), em Oeuvres complétes, t. 3, Paris, Gallimard, "Bibliotheque de
Ção dos Ca.pitolz,. de Toulouse, qu p . te ilustrar e enriquecer os
num volume, por em
ordem converuen '
. . ais concementes ao fato o go-
d Ia Plêiade", 1964, p. 241: ''A palavra economia vem de o7Koç, casa,
decretos e regulament~s n;.u~ctp ' e de '\ÓJWÇ, lei, e significa originalmente apenas o sábio e legítimo
vemo político" (3~ dedicatofrna, P-:l· de "qualquer que seja o gos- governo da casa, para o bem comum de toda a família."
16. Todo o fim dessa ase, es 22. Ibid.: "0 sentido desse termo estendeu-se, em seguida,
to", falta na edição Aut-Aut do ~exto .. iense de 1567: Le Miroirpo- ao governo da grande família, que é o Estado." Rousseau precisa,
17. Título da pnmerra ediçao dpans er & policer les Republt- algumas linhas abaixo, que "as regras de conduta próprias de uma
. mamb-es e gouvern - d dessas sociedades// não poderiam "convir à outra: elas se diferen-
litique, contenant dzvers;s d t a que remetem as citaçoes e ciam por demais em grandeza para poderem ser administradas da
ques qui sont, & ont este par cy- evan ,
mesma maneira.. e sempre haverá uma extrema diferença entre o
M. Foucault. a. supra,.:\Ota 15 . .t foi. 23r. .
governo doméstico, em que o pai pode ver tudo por si mesmo, e
18. G. de La Pemere, op. C! V, er (1588-1672), I:Oeconomzque
o governo civil, em que o chefe não vê quase nada a não ser pelos
19. François La Moth,e Le ay d . Oeuvres, t. I, parte II,
~-' A Courbe 1653; ree . m • " · olhos alheios". Cf. infra, nota 36.
du Prince, r~ls, ·
Dresden, M!chel Groell, 1756,_PP·
' 287 _8 : "A moral, que e a ctenaa
Na primeira que se chama
23.a. François Quesnay (1694-1774), Mtu:imes générales du
d" ·d em tres partes. ' ., gouvernement économique d'un royaume agricole, inDu Pont de Ne-
dos costumes, se lVl e b a qual Vossa Majestade Ja se mours, org., Physiocratie ou Constitution naturelle du Gouvernement
ética ou moral por excelência,:::. nós mesmos pelas regras da le plus avantageux au genre humain, Paris, Merlin, 1768, pp. 99-122;
deteve, aprendemos a nos gov em naturalmente essa, uma reed. in F Quesnay et la physiocratie, t. 2, pp. 949-76. Cf. supra, pp.
razão. Há duas outras partes que segu lítica Essa ordem é assaz 114-5, nota 40.
das quais é a econômica e a outra a psano-.a q.ue um homem saiba 24. G. de La Perriere, Le Miroir politique, f. 23r: "Gouveme-
~ · de todo neces
natural, pois que e cmsa t s de comandar os outros, seja como ment est droicte disposítion des choses, desquelles on prent char-
se governar a si mesmo an e , mia, seja como soberano, ge pour les conduire jusques i.. fin Cónvenable."
pai de faroília, o _q~e pe:e~c; ~oec~~~e concerne à política." Cf. 25. Sobre a utilização clássica dessa metáfora, cf. Platão, Eu-
magistrado ou n;uustro e s ~ti ~e du Prince, em Qeuvres, P· 29~: tífron, 14b, Protágoras, 325c, República, 389d, 488a-489d, 55lc,
igualmente o prologo de La Po q d moral uma das quais ensl- 573d, Político, 296e-297a, 297e, 30ld, 302a, 304a, Leis, 737a, 942b,
. iras partes a ' . ~
"Depois das duas prune ser bom ecônomo, tsto e, a 945c, 96lc, etc. (cf. P. Louis, Les Métaphores de P/aton, Paris, Les Bel-
· esmo e a outra a ~
na a se regrar a Sl m família segue a terceira parte, que e a les Lettres, 1945, p. 156); Aristóteles, Política, III, 4, 1276b, 20-30;
conduzir corretamente uma ' " Esses escritos, compostos Cícero, Ad Atticum, lO, 8, 6, De republica, 3, 47; Tomás de Aquino,
" · de bem governar.
olítica ou a ctencta d" ·o das Qeuvres de Le V:ayer, De regno, I, 2, II, 3. Foucault retorna, na aula seguinte (infra, p. 165),
P ' - pados na e tça . .
de 1651 a 1658, sao agru Í naissance peut devemr utzle au sobre essa metáfora naval a partir do Édipo rei de Sófocles.
com o título de Sciences dont a_ co~a Instrução do Senhor Delfim, 26. Frederico II, Anti-Machiave/, comentário do capítulo 5 do
Prince. Eles formam a contin~~~~~lier-Myskowski, I:Éducation du Príncipe, ed.Amsterdarn, 1741, pp. 37-9. M. Foucaultutiliza, ao que
que data de 16~0. C:· N. Heroard et La Mothe Le Vayer, Paris,Ha- tudo indica, a edição Garnier do texto, publicada em seqüência ao
Príncipe de Maquiavel por R. Naves, em 1941, pp. 117-8 (cf. igual-
prince au XVII szecle d apres .
chette, 1976. V: La Géographie et la Mora/edu Pnn- mente a edição critica da obra de C. Fleischauer, in Studies on Vol-
20 F de La Molhe Le ayer, II 3-174 para o pri- taire and the Eighteenth Century, Genebra, E. Droz, 1958, vol. V, pp.
. · , (Oeuvres t I, parte , PP· ' .
ce, Paris, A Courbe, 1651 ' · do'· r:OeamomiqueduPrin- 199-200). A paráfrase feita por Foucault comporta, no entanto,
meirotratad o,epp. 239-86
. Pans
paraA0 segun
Courbé '"1653 (Qeuvres,'"bid ., PP· uma inexatidão: Frederico li não diz que a Rússia é feita de pân-
tanos, etc., mas de terras "férteis em trigo".
ce. La Politique du Prince, d' · 99:360 para o segundo).
_ , para 0 prunerro trata o, e PP· 2
287 98 J
-"'·
152 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1." DE FEVEREIRO DE 1978
153
27. Samuel von Pufendorf (1632-1694), De officio hominis et f!all'Arte dí Governo alie Scienze dello Stato. Foucault nunca cita esse
civis iuxta Legem natura/em, ad junghans, Londini Scanorum. 1673, ~1vro, q_ue fez época ~a história recente da Polizeiwissenschaft, mas
livro II, cap. II, § 3 I Les Devoirs de l'homme et du citoyen tels qu'ils e pr~vavel que dele tivesse pelo menos um conhecimento indire-
sont prescrits par la loi naturelle, trad. fr. ). Bar?eyrac, 4~ ed., An;s- to, VIa P Pasquino, então muito próximo dele. M. Foucault torna
terdam, Pierre de Coup, 1718, t. 1, pp. 361-2: O bem do povo e a so~re a palavra "ciência", que então recusa, no início da aula se-
soberana lei: é também a máxima geral que os Poderes devem ter gtunte.
incessantemente diante dos olhos, já que a eles só foi conferida a 34. Cf. supra, nota 21.
autoridade soberana para que a utilizassem a fim de proporcionar 35. Cf. ibid.
e manter a utilidade pública, que é a finalidade natural do estabe- " 36. Discours sur l'économie politique, ed. citada, pp. 241 e 244:
lecimento das sociedades civis. Portanto, um soberano não deve [.. :]como o governo do Estado poderia ser semelhante ao da fa-
considerar nada vantajoso para si, se também não o é para o Esta- mília, CUJO fundamento é tão diferente? [... ] De tudo o que acabo
do"; d. igualmente De jure naturae et gentium, Lund, sumptibus A. d~ exp~r~ segue-se que fm com razão que se distinguiu a econo-
junghaus, 1672, VII, IX, § 3 I Le Droit de la nature et des gens, ou mia política da economia particular e que como o Estado não tem
Systéme général des principes les plus importants de la Mora/e, de la Ju- nada em comum com a família, salvo a obrigação que têm os che-
risprudence et de la Politique, trad. fr. ). Barbeyrac, Amsterdam, H. fes de.fazer felizes um e a outra, as mesmas regras de conduta não
Schelte & ). Kuyper, 1706. podenam convir a ambos".
28. G. de La Pertiére, Le Miroir politique, f. 23r: "Todo gover- 37. Du Contract social, ou Principe du droit politique, Amster-
no de Reino ou República deve ter em si, necessariamente, sabe- dam, M. Rey, 1762.
doria, paciência e diligência." 38. Cf. Surveiller et Punir, op. cit.
29. Ibid., f. 23v: "Por isso todo governador deve ter paciência, _39. Essa expres~ão de !'Ji~tzsche é retomada com freqüência
a exemplo do Rei das abelhas, que não tem ferrão, com o que a no discuz:so a;,tarqmsta {Amst parlait Zarathoustra, parte I, "La
natureza quis mostrar misticamente que os Reis e governadores nouvell: 1dole .' trad. fr. G. Bianqui, Paris, Aubier, 1946, p. 121: "O
de República devem usar para com seus súditos muito mais cle- Estado e o maiS frio de todos os monstros frios [das kiilteste aller
mência do que severidade, e eqilidade do que rigor." , . ~lten UngeheuerJ. Ele é frio inclusive quando mente; e eis a men-
30. Ibid.: "Que deve ter um bom governador de Republica? tira que escapa da sua boca: 'Eu, o Estado, sou o povo"').
Deve ter extrema diligência no governo da sua cidade, e se o bom
pai de farru1ia (para ser tido como bom ecônomo, isto é, adminis-
trador) deve ser em sua casa privada o primeiro a se levantar e o
último a se deitar, o que deve fazer o governador da cidade, na qual
há várias casas? E o Rei, em cujo Reino há várias cidades'?"
31. Sobre a história da estatística, cf. a obra clássica de V. John,
Geschichte der Statistik, Stuttgart, F. Encke, 1884, cuja referência fi-
gura nas notas de M. Foucault. Talvez ele ~am.bém conhe~es.se o
volume publicado pelo INSEE, Pour une h!StOire de la stal!sl!que,
t. 1, Paris, 1977 (reed. Paris. Éd. Economicai!NSEE, 1987).
32. Cf. por exemplo Richelieu, Testament politique, Amsterdarn,
H. Desbordes, 1688; ed. L. André, Paris, R. Laffont, 1947, p. 279: "As
famílias particulares são os verdadeiros modelos das Repúblicas."
33. Cf. o subtítulo do livro de P. Schiera sobre o cameralismo
(II Cameralismo e l'assolutismo tedesco, Milão, A. Giuffré, 1968):

j
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978

Por que estudar a gooernamentalidade?- O problema do


Estada e da população. - Relembrando o projeto geral: tríplice
deslocamento da análise em relação (a) à instituição, (b) à ftm-
ção, (c) ao objeto.- Objeto do curso deste ano.- Elementos para
uma história da noção de "gauerno". Seu campo semântico do
século XIII ao século XV':" - A idéia de governo dos homens.
Suas fontes: (A) A organização de um poder pastoral no Orien-
te pré-cristão e cristão. (B) A direção de consciência.- Primei-
ro esboço do pastorado. Suas caracteristicas específicas: (a) ele
se exerce sobre uma multiplicidade em movimento; (b) é um
poder fundamentalmente benéfico que tem por objetivo a sal-
vação do rebanho; (c) é um poder que individualiza. Omnes et
singulatim. O paradoxo do pastor. - A institucionalização do
pastorado pela Igreja cristã.

Vou lhes pedir que me desculpem porque hoje vou ser


um pouco mais confuso que de costume. Estou gripado, não
me sinto bem. Mas eu achava chato, tinha certo escrúpulo
em deixar vocês virem aqui e lhes dizer na última hora que
não ia dar meu curso. Então vou falar do jeito que puder, e
vocês hão de me perdoar tanto pela quantidade como pela
qualidade.
Gostaria de começar agora a percorrer um pouco a di-
mensão do que eu chamei com esta feia palavra que é "go-
vemamentalidade" *. Supondo-se portanto que "governar"
não seja a mesma coisa que "reinar", não seja a mesma coi-
sa que "comandar" ou "fazer a lei"**; supondo-se que go-
vernar não seja a mesma coisa que ser soberano, ser suse-
rano, ser senhor, ser juiz, ser general, ser proprietário, ser
mestre-escola, ser professor; supondo-se portanto que haja

* Entre aspas no manuscrito.


**Esses três verbos e essa locução estão entre aspas no manuscrito.
156 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE FEVEREIRo DE 1978
157
.. . é ovemar, seria preciso saber
uma especi[iadaded do~~~ q! essa noção abarca; Ou seja, neiras. Primeiro, passar para o exterior da instituição, des-
agora qual e o tiJ2o e p d ue são visadas no seculo XVI centrar-se em relação à problemática da instituição, ao que
analisar as relaçoes de po ;r q lhes falei que são igual- se poderia chamar de "institucional-centrismo". Tomemos
nessas artes de governar e q':~ca merc.;tilistas do sécu- o exemplo do hospital psiquiátrico. Oaro, podemos partir
mente visadas na te':na e nad pra chegam então a cer- do que é o hospital psiquiátrico, em seu dado, em sua es-
fim ue sao VISa as - e que d trutura, em sua densidade institucional, podemos tentar
lo XVII; en ' q . d última vez se bem me lembro, e
to limiar, como disse at ,
tot~ente inadequada e ca-
ciên<=;ia', creio que a P a~!;'o nível de competência p~líti­
encontrar suas estruturas internas, identificar a necessidade
lógica de cada uma das peças que o constituem, mostrar
que tipo de poder médico se organiza nele, como se desen-
tastrofica,
ca - que são digamos a um
visadas, grosso mado' na doutrina fisiocratica volve nele certo saber psiquiátrico. Mas podemos - e aqui
' " . "2*
do "governo econo~co .que querer estudar esse domí- eu me refiro muito especificamente à obra evidentemente
Primeira questao: por ui · gido por fundamental, essencial, que tem de ser lida obrigatoriamen-
nio, no fim das contas ir;c.onsis=~~i~ebua~~~'ac~~ '' gover- te, de Robert Castel sobre A ordem psiquiátrica·' -, podemos
uma noção tão problematica e t , clqaro será imediata- proceder do exterior, isto é, mostrar de que maneira o hos-
al.d d "? Minha respos a, e ' d pital como instituição só pode ser compreendido a partir de
nament 1 a e · b d oblema do Estado e a
mente a seguinte: para a t':r. artudoopirsso é muito bonito, mas algo exterior e geral, que é a ordem psiquiátrica, na própria
ui - s gunda ques ao. - medida em que essa ordem se articula com um projeto ab-
0pop açao. e - do o mundo sabe o que sao, em solutamente global, que visa toda a sociedade e que pode-
Estado e a populaçao to - A noção de Estado e a
todo caso irnagin<:_ sa~er qu~:~ção sua história. O do- mos chamar, grosso modo, de higiene pública'. Podemos
0 0

noção de populaçao t:m su~eferem é 8rosso modo, mais ou mostrar- é o que fez Castel- como a instituição psiquiátri-
mínio a que essas noçoes se ~e imersa e obscura, ca concretiza, intensifica, adensa uma ordem psiquiátrica
menos conhecido, ou, se tem um~ pte como se trata de es- que tem essencialmente por raiz a definição de um regime
. • I Por consegum ' não contratual para os indivíduos desvalorizados'. Enfim,
tem uma outra '?sive . elhor - ou na pior - das hipóteses
podemos mostrar como essa ordem psiquiátrica coordena
tudar esse dorruruo, nad':; e da opulação, por que querer
serm-obscuro do Estauma noçao- Pque e' plena e interramen- por si mesma todo um conjunto de técnicas variadas relati-
, 1 · de vas à educação das crianças, à assistência aos pobres, à ins-
aborda- o atraves alid de"? Por que atacar o
te obscura, a de "govemament difusoa e ·lacunar? tituição do patronato operário'. Um método como esse
forte e o denso com o fr~o, azão disso em duas palavras
0 0 consiste em passar por trás da instituição a fim de tentar
Pois bem, vou lhes u: a ~uco mais geral. Quando nos
encontrar, detrás dela e mais globalmente que ela, o que po-
e recordando um pro(eto ~as disciplinas, a propósito do demos chamar grosso modo de tecnologia de poder. Assim,
essa análise permite substituir a análise genética segundo a
anos precedentes falavamos alas das risões, falar das <!is-
exército, dos hospitais, das esc t 'tuar ~ triplice desloca- filiação por uma análise genealógica (não confundir a gêne-
. 1. a no fundo querer e e • se e a filiação com a genealogia), uma análise genealógica
c1p maspassar,
menta, er , por assim.' diz er, para 0 exterior, e de tres ma- que reconstitui toda uma rede de alianças, de comunica-
ções, de pontos de apoio. Logo, primeiro princípio metodo-
lógico: passar por fora da instituição para substituí-la pelo
,.. Entre aspas no manuscrito. ponto de vista global da tecnologia de poder'.

j
-~
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978 159
SEGURANÇA. nRRifÓRJO, POPULAÇÃO
158
so modo: a loucura existe, o que não quer dizer que ela seja
Em segundo lugar, segunda defasagem, segunda pas- alguma coisa'".
sagem ao exterior em relação à função. Seja: J?Or exernp~o, o Em smna, o ponto de vista adotado em todos esses es-
caso da prisão. Pode-se, é claro, fazer a análise da pnsao a tudos ~ons~tia em procurar ~estacar as relações de poder
partir das funções esperadas, das t:unções que for~ defim- da rnstitluçao, a ?m de analisa-las [sob o prisma]• das tec-
das corno funções ideais da pnsao, da rnanerra otlma de nolog:tas, destaca-las também da função, para retorná-las
exercer essas funções- o que Bentham havia grosso modo nmna análise estratégica e destacá-las do privilégio do ob-
feito em seu Panóptico'- e depois, a partir daí,_ v::r quais fo- Jeto, a fim de procurar ressituá-las do ponto de vista da
ram as funções realmente preenchidas pela pnsao e estabe- c~nstituição dos campos, domínios e objetos de saber. Esse
lecer historicamente um balanço funcional do saldo positi- tnplo rnoV!ffiento de passagem ao exterior foi tentado a
vo e negativo, enfim, em todo caso do que era visa~o e do propósito das disciplinas, e é mais ou menos isso, no fun-
que na verdade foi alcançado. M~s, ao e?tudar a pnsao pelo do, é essa possibilidade que eu gostaria de explorar em re-
viés das disciplinas, tratava-se, ru tarnbern, de curto-crrCUJ- lação ao Estado. Será que se pode passar para o exterior do
tar ou melhor, de passar para o exterior em relação a esse Estado, corno se pôde passar- e, afinal de contas, corno era
po~to de vista funcional e ressituar a prisão numa .econo- bastante fácil passar- para o exterior em relação a essas di-
mia geral de poder. E com isso se percebe que a histona real ferentes instituições? Haverá, em relação ao Estado, mn
da prisão sem dúvida não é comandada pelos sucessos e ponto de VIsta abrangente, corno. era o po.nto. de vista das
fracassos da sua funcionalidade, mas que ela se rnscreve na disciplinas em relação. às instituições lo.cais e definidas?
verdade em estratégias e táticas que se apóiam até mesmo Creio que essa questão, esse tipo de questão, não pode dei-
nos próprios déficits funcio~ais. Portanto: substituir o pon- xar de ser colocado, nem que seja corno resultado, corno
to de vista interno da funçao pelo ponto de VIsta externo necessidade implicada por aquilo que acabo de dizer. Porque,
das estratégias e táticas. . afinal de contas, essas tecnologias gerais de poder que pro-
Enfim o terceiro descentrarnento, a tercerra passagem
curamos reco_nstitu':" passando for.a da instituição, será que
ao exterior' é em relação ao objeto. Assumir o ponto .de vis- afinal elas nao estao na dependenc1a de uma instituição
ta das disciplinas era recusar-se a adot~r um ob)eto Ja pron- global, de uma instituição totalizante que é, precisamente, o
to, seja ele a doença mental, a delinquencJa C>U a sexua.hda- Estado? Será que, saindo dessas instituições locais, regio-
de. Era recusar-se a querer medir as institmçoes, as praticas mus, pontuais que são os hospitais, as prisões, as famílias, não
e os saberes com o metro e a norma desse objeto já dado. somos simplesmente remetidos a outra instituição, de sor-
Tratava-se, em vez disso, de apreender o movimento pelo te que só sairiamos da análise institucional para sermos in-
qual se constituía através dessas tecnologias movediças um timados a entrar num outro tipo de análise institucional ou
campo de verdade com objetos de sa~e:. Podem.?,: dizer num outro registro, ou nmn outro nível de análise institu-
sem dúvida nenhuma que a loucura nao eXJste , mas cion~, precis~ente aquele em que estaria em pauta o Es-
isso não quer dizer que ela não é nada. Tratava-se, em resu- tado. Porque e mmto bom, por exemplo, salientar o encer-
mo de fazer o inverso do que a fenomenologia nos unha ramento como procedimento geral que envolveu a história
en;inado a dizer e a pensar, a fenomenologia que dizia gros-

* M. Foucault repete: do ponto de vista


* Entre aspas no manuscrito.
160 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 8 DE FEVEREIRo DE 1978
. , afinal de contas, o encerramento 161
da psiquiatna. Sera que,_ t tal ou que depende em li-
não é uma típica _operaçao ~s ~ P~de-se muito bem desta- Então o objeto do curso que eu gostaria de dar este ano
nhas gerais da açao do E~ta o. dos locais em que se tenta seria, em suma, o seguinte. Assim como, para examinar as
car os mecanismos disctp mar~s- as fábricas, o exército. relações entre razão e loucura no Ocidente moderno, pro-
, ti como as pnsoes, , curamos interrogar os procedimentos gerais de intemamen-
pô-los em pra ca, , fi al ente responsável em u-
Não é acaso o Estado qu~ e _n mral e local? A generalida- 1 to e segregação, passando assim por trás do asilo, do hos-
tima instância por sua ap caç~l~e não-funcional, a gene- pital, das terapias e das classificações*, assim como no caso
de extra-institucional, a generd ai ális.es de que eu lhes da prisão procuramos passar por trás das instituições peni-
b . · al ança a pe as an
ralidade não-o JetiVa ~ ode ser que ela nos ponha em tenciárias propriamente ditas, para tentarmos descobrir a
falava há pouco-:- pm_:; ~~~adora do Estado. • economia geral de poder, será que, no caso do Estado, é pos-
presença da mstituiçao o

filiação. Para escapar da circularidade que remete a análise das relações de


* Sem dúvida em razão do cansaç~ m desenvolvimento, PP· 8
invocado anteriormente, M.
poder de uma instituição a outra, só apreendendo-as onde elas constituem
Foucault desiste neste ponto de expor to o u técnicas com valor operatório em processos múltiplos.
"to·
b. Desinstitucionalizando e desfuncionalizando as relações de poder,
a 12 do manuscn . r o do Estado: o método que pode-se [ver] em que e por que elas são instáveis.
Daí a segunda razão de coloca~ adques a t rmos de procedimentos,
od s localiza os em e . - Permeabilidade a toda uma série de processos diversos. As tecno-
consiste em analisar os p ere é . não é simplesmente uma manei- logias de poder não são imóveis: não são estruturas rígidas que visam imo-
técnicas, tecnologias, táticas e estratd~~cro ao macro? E, por conseguin-
bilizar processos vivos mediante sua própria imobilidade. As tecnologias
ra de passar de um nível ao o~tro~ . o tem o dessa passagem? É verda~e de poder não cessam de se modificar sob a ação de numerosos fatores. E,
apenas um valor proVISóno: uma ~eta. Um método deve ser fel-
qte,ueteria
nenhum método deve ser, em SI, 5 de um método do que de
quando uma instituição desmorona, não é necessariamente porque o poder
to P . dele Mas trata-se meno f que a SUStentava foi posto fora de circuito. Pode ser porque éla se tomou
ara nos livrarmos • d lh uma maneira de azer o incompatível com algumas mutações fundamentais dessas tecnologias.
modamento o o ar, Or
wn ponto de vista, de wn_ aco slocamento de quem as observa. a, Exemplo da reforma penal (nem revolta popular, nem mesmo pressão ex-
(suporte(?)] das coisas guar pelo de cert número de efeitos que me- trapopular).
parece~me que tal deslocamento p~:er p:ço, pelo menos mantidos o
recem, se não ser conservados a qua u -Mas também acessibilidade a lutas ou a ataques que encontram ne-
cessariamente seu teatro na instituição.
máximo que se puder.
O que quer dizer que é perfeitamente possível atingir efeitos globais
.~-~'-ando as relações de poder
Quais são.esses alizando e des fun Cluu<lJ..I.L..
. efeitos? não só por enirentamentos concertados, mas igualmente por ataques lo-
a. Desinstituaon . . to é a maneira como elas se formam, cais, ou laterais, ou diagonais que põem em jogo a economia geral do con~
Pode-se estabelecer sua genealogw., IS • li: se transformam a partir de
d l e junto. Assim: os movimentos espirituais marginais, as multiplicidades de
se conectam, se esenvo v m ' se multip acam, artir de processos que sao- t C: dissidências religiosas, que não se voltavam de forma nenhuma contra a
algo totalmente diferente de~ mesmas, E~em lo do exército: pode-se di- Igreja católica, acabaram solapando não apenas todo um segmento da ins-
talmente diferentes das relaçoes de ~o'!:rdeve à ~ua estatização. Explica-se tituição eclesiástica, mas a própria maneira como se exercia no Ocidente o
zer que o disciplinamento do exéra~ poder numa instituição pela inter- poder religioso...
a transformação de uma estrutur~ eO círculo sem exterioridade. Ao pas- Por causa desses efeitos teóricos e práticos, talvez valha a pena dar
venção de outra instituição d; pot e(~)] em relação, [não] com a concentr~­ continuidade à experiência iniciada.
so que esse disciplinamento os oa . o ulações flutuantes, a importân~
ão estatal, mas com o p~oble~ d s P _P os modelos [várias palavras lle-
Ç ""O manuscrito acrescenta aqui (p. 13): "assim como para exami-
. . as mvençoes técnicas,
das redes comerarus, red de aliança de apoio . e d e co- nar o estaru.to da doença e os privilégios do saber médico no mundo mo-
gíveis] gestão de com~da,?e, é ~~~a_e~'~a ~plina militar. Não a gênese: derno, também aqui é necessário passar por trás do hospital e das ins-
municação que constitui a gene gia
tituições médicas, para tentar chegar aos procedimentos de responsabi-
lização geral pela vida e pela doença no Ocidente, a 'biopolítica"'.
162 SEGURANÇA, TERK/TÓRIO, POPUIAçAO
Alll.A DE 8 DE fEVEREIRO DE 1978
163
sível dar a mesma virada? Será que é possível passar ao ex-
do a subsistência Vocês en
terior? Será que é possível repor o Estado moderno numa texto que data d~ 1421 . ,~ontr::;r por exemplo [isto] num
tecnologia geral de poder que teria possibilitado suas muta- ris por dois anos"" ou . . d go s Ciente para governar Pa-
ções, seu desenvolvimento, seu funcionamento? Será que se "um homem não tÍnh amd a, exa~amente na mesma época:
pode falar de algo como uma "governamentalidade", que a e que VIver nem de qu
s?a mulher, que estava doente"t4 L " e ,governar
seria para o Estado o que as técnicas de segregação eram tido de sustentar de alim · ogo, governar', no sen-
para a psiquiatria, o que as técnicas da disciplina eram para "Uma senhora d'e entar, de proporcionar subsistência.
o sistema penal, o que a biopolítica era para as instituições ra que consome d governo · grande
, demrus· "" e' uma senho-
médicas? Eis um pouco o obj eto [deste curso]*. nar'' também teme~~~~J~e e _difícil de sustentar. "Gover-
Bom, essa noção de governo. Primeiro, vamos nos si- rente, de tirar sua subsist' Rro:Uo, mas um pouco dife-
tuar brevemente na própria história da palavra, num perío- fala de uma cidade " encia e alguma coisa. Froissart
do em que ela ainda não havia adquirido o sentido político, dizer, que tira sua sub~~~~;overna de s_eus tecidos"", quer
o sentido estatal que começa a ter de forma rigorosa nos sé- das referências em todo c aaaldeles. Ai temos o conjunto
culos XVI-XVII. Valendo-nos simplesmente de dicionários ·
pnamente '
materiais da paiaso ,gumas das re ferenaas • · pro-
históricos da língua francesa", o que vemos? Vemos que a .,.. avra governar"
'emos agora os ·gnifi· d ·
palavra "governar" abrange na realidade, nos séculos Xlll, nar'' pode querer diz SI
" cad os. de ordem m ora1· "G over-
XIV e )01, uma massa considerável de significados diversos. . er con uzrr algué " ·
propnamente espiritual d m ' seJa no sentido,
Primeiro, encontramos o sentido puramente material, físi- tão plenamente clássic~ ~u~ove~o das almas_- sentido en-
co, espacial de dirigir, de fazer ir em frente, ou até o senti- to, muito tempo- se·a de vru urar e subsistir por mui-
do de a própria pessoa ir em frente num caminho, numa es- sada em relação a'iss~ " uma m~erra ligeiramente defa-
trada. "Governar" é seguir um caminho ou fazer seguir um por um regun·e" · ' governar' pode querer dizer "irn-
caminho. Vocês encontram um exemplo disso em Froissart, ' unpor um regune a d ,
governa o doente, ou o doent um _oente: o medico
num texto como este: "Um [...] caminho tão estreito que de cuidados se governa. Ass· e ~ se nnpoe c;rto número
que, depois de sair do hospit::f'ír t ~. texto. Um doente
1
[... ] dois homens nele não poderiam governar-se"", isto é,
não poderiam andar lado a lado. Tem também o sentido cia do seu mau ov . 0 e - leu, em conseqüên-
material, porém muito mais amplo, de sustentar asseguran- não observo gb erno, foi-se desta para a melhor."" Ele
u um om regun "G ,
pode se referir então à c e. overnru: ou o "governo"
moral do tenno: uma mulonduta no sen~~o propriamente
~ Palavras inaudíveis. M. Foucault acrescenta: Então, eu gostaria isto é de ma' d her que era de mau governo'""
agora, para que vocês me perdoem o caráter [palavra inaudível] do que ' con uta. "Governar" d . '
procuro lhes dizer entre dois acessos de tosse...
a uma relação entre indi ,d po_ e se refenr também
O manuscrito comporta esta nota complementar: "N .B. Não digo várias formas, seja a rela~ouâs, rela~o que pode assumir
que o Estado nasceu da arte de governar, nem que as técrticas de gover- °
alguém, controlá-lo. Ou tam ~ man e de ch:fia: dirigir
no dos homens nascem no século xvn. O Estado, como conjunto das guém, uma relação verbal· " bém, ter uma, relaçao com ai-
instituições da soberania, existia havia milênios. As técnicas de gover- dizer "falar com alguém" ;,e~~v~~:"' alguem" pode querer
no dos homens também eram mais que milenares. Mas foi a partir de soas se entretêm n ' e e no sentido de que pes-
uma nova tecnologia geral [de] governo dos homens que o Estado ad- lo XV diz. "Ele re =a conversa. Assim, um texto do sécu-
quiriu a forma que conhecemos." . g va mesa farta a todos os q
navam durante seu jantar "19 G , ue o gover-
. overnar alguem durante seu

j
4!1%_ _ _ _...i;lfi-:;oov.
. .
--------~
164 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978
165
jantar é conversar com esse alguém. Mas também pode se
referir a um comércio sexual: "Um sujeito que governava a Temos aí, a meu ver [ I
na pista de uma coisa q~e ~m e emen~o] • que pode nos pôr
mulher do vizinho e ia ter com ela freqüentemente."" cia. Os que são ove em sem duVJda certa importán-
Tudo isso é uma referência ao mesmo tempo empfrica, mentalmente p!Jo rnados, portanto, inicialmente, funda-
não-científica, feita com dicionários e remissões diversas. - ' menos atraves de · ·
sao os homens. Ora a "d'" ssa pnmeira pesquisa,
Creio, apesar de tudo, que isso permite que situemos um náveis é uma ide'I·a q' I eia de que os homens são gover-
pouco uma das dimensões do problema. Vemos que a pala- ue certament - -
tampouco, creio eu uma id'" e nao e grega e que não é,
vra "governar", antes de adquirir seu significado propria- muita regularidade' pel eia romana. Claro, aparece com
mente político a partir do século XVI, abrange um vastíssi- fora do leme do tim: o menos na literatura grega, a metá-
mo domínio semântico que se refere ao deslocamento no ' onerro do ·1 t d
leme, para designar ti .d 'd P1 0 o, aquele que tem 0
espaço, ao movimento, que se refere à subsistência mate- cidade e que tem ema a !Vl _a e daquele que está à frente da
rial, à alimentação, que se refere aos cuidados que se po- 'reaçaoaelacrt-
gos e de responsabilid d R ' e o numero de encar-
dem dispensar a um indivíduo e à cura que se pode lhe dar, texto do Édipo rez"'. NoaÉ:t"a eportem-se simplesmente ao
que se refere também ao exercício de um mando, de uma petidas vezes, essa metáfo!'a ;~z, ve-se mUitas vezes, ou re-
atividade prescritiva, ao mesmo tempo incessante, zelosa, Cidade e que tendo rei que tem a seu encargo a
ativa, e sempre benévola. Refere-se ao controle que se pode la bem, como' um bo a seu ii encargo a CI·da de, deve conduzi-
exercer sobre si mesmo e sobre os outros, sobre seu corpo, vio, e deve evitar os m p ]~to governa devidamente seu na-
mas também sobre sua alma e sua maneira de agir. E, en- em toda essa série deescot, os e conduzi-lo ao porto". Mas
fim, refere-se a um comércio, a um processo circular ou a a um timoneiro e a CI.dmde áforas, em que o rei é assimílado
um processo de troca que passa de um indivíduo a outro. e~ que o que é govern daeaumnavtoo ' que convem -
notar
Como quer que seja, através de todos esses sentidos, há algo do como ob;eto do goa o, o 9ue nessa metáfora é designa-
que aparece claramente: nunca se governa um Estado, nun- um navio entre ' os esvemo
!h ' eapr'opna · CI·da de, que é como
ca se governa um território, nunca se governa uma estrutu- tempestade, um navio co o~, co~o um navio em meio à
ra política. Quem é governado são sempre pessoas, são ho- evitar os piratas os que e obngado a bordejar a fim de
I I U .•

' migas um n ·
mens, são indivíduos ou coletivídades. Quando se fala da vado a bom porto. O ob"eto d aVJo que tem de ser ]e-
cidade que se governa, que se governa com base nos tecidos, recai o ato de governar ~ão _0 governo,_ aquilo sobre o que
quer dizer que as pessoas tiram sua subsistência, seu ali- o piloto do navio na-o g' sao os mdiVJduos. O capitão ou
mento, seus recursos, sua riqueza, dos tecidos. Não é portan- É da mesma maneira ovema os .
maru·
JOS, governa o navio
to a cidade como estrutura política, mas as pessoas, indiví- os homens da cidade Àueâ ~~governa a cidade, mas nã~
duos ou coletividade. Os homens é que são governados. • cial, em sua unidade c. CI a e em sua realidade substan-
' omsuasobre · " · ~
desaparecimento eventual . , VlvenCia possivel ou seu
no, o alvo do governo O h , ISSO e que é o o Je o do gover-
b. t
"'O manuscrito acrescenta: "História da govemamentalidade. Três vemados indiretamen;e s om~ns, de seu lado, só são go-
grandes vetores da governamentalização do Estado: a pastoral cristã = embarcados no navio E' _na me Ida :m que também estão
modelo antigo; o novo regime de relações diplomático-militares = estru- . e por mtermedio, por meio do em-
tura de apoio; o problema da polícia interna do Estado= suporte inter-
no." Cf. supra, as últimas linhas da aula anterior (1? de fevereiro). * M.F.: uma coisa
AUlA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978 167
SEGURANÇA. TERRJTÓRIO pOpUlAÇÃO
166 lação dos deuses ou do deus com os homens. O deus é o
. s homens se acham governados. Mas pastor dos homens. Num hino egípcio, lê-se algo assim: "Ú
barque no navto, que o -o diretamente governados por Rá, que velas quando todos os homens dormem, que procu-
não são os homens quedsa ·dade * ras o que é benéfico para teil rebanho ..."" O deus é o pas-
, ' frente a C! · h urn
aquele que est a a idéia de que pode aver tor dos homens. Enfim, essa metáfora do pastor, essa refe-
Não creio, portantd que aos homens podem ser gover- rência ao pastorado pennite designar certo tipo de relação
governo dos home;>s e e ~~ornarei, seja no fim desta aula, entre o soberano e o deus, na medida em que, se Deus é o
nados se)· a uma JdeJa greg . . d ·__;~,vez sobre esse pastor dos homens, se o rei também é o pastor dos homens,
m seJa a pro~·~ ' l'.
se tiver tempo e corage ' torno de Platão e do Po ttlco. o rei é de certo modo o pastor subalterno a que Deus con-
problema, essencialmente ~reio que se pode dizer que a fiou o rebanho dos homens e que deve, ao fim do dia e ao
Mas' de uma manerrados ger
homens
e' urna idéia CU). a ongem
, . - · fim do seu reinado, restituir a Deus o rebanho que lhe foi
idéia de um governo O . te num Oriente pre-cnstao pn- confiado. O pastorado é um tipo de relação fundamental
deve ser buscada no nt~~ de ois. E isso sob duas fo:mas: entre Deus e os homens, e o rei de certo modo participa des-
meiro, e no Onente cns da idéia e da orgamzaÇ':_O de sa estrutura pastoral da relação entre Deus e os homens.
primeiramente, sob a foalrm; ois sob a forma da direçao de Um hino assírio diz. dirigindo-se ao rei: "Companheiro res-
poder de tipo pastor ' ep plandecente que participas do pastorado de Deus, tu que
~:sciência, da direção -~~s ~:s~rganização de um poder cuidas do país e que o alimentas, ó pastor da abundância.""
Primeiramente, a I ela h fe se· a um pastor em re- Evidentemente, foi sobretudo entre os hebreus que o
pastara!. Que o rei, o deu~ o~~~o eseu ~banho, é um terna tema do pastorado se desenvolveu e se intensificou"'. Com
lação aos homens, que sao fre üência em todo o Onen- este particular que, entre os hebreus, a relação pastor-reba-
que encontramos com bastante q E "to2.' encontramos na nho é essencialmente, fundamentairnente e quase exclusi-
te mediterrâneo. Enco:'tra';;o::C~ntfam;s também e prin- vamente uma relação religiosa. As relações entre Deus e
Assíria" e na Mesopotarrua 'b No Eo-ito por exemplo, seu povo é que são definidas como relações entre um pas-
tre os he reus. o· ' ·' tor e seu rebanho. Nenhum rei hebreu, com exceção de
cipalmente, claro, en . , ·as e babilônicas, o rei e
, monarqUiaS assm . ai o Davi, fundador da monarquia, é nominalmente, explicita-
mas tambem nas forma nitidamente ntu 'com
efetivamente designado, ~e , or exemplo, no momento mente designado como pastor'". O termo é reservado a
o pastor dos homens. O a_:ao, ~a sua coroação, recebe as Deus". Simplesmente, certos profetas são vistos como ten-
da sua coroação, na c:~oma .ado do pastor e declaram do recebido das mãos de Deus o rebanho dos homens, que
insígnias de pastor. Dao- e ot~~J dos homens. O título de a ele devem devolver"; e, por outro lado, os maus reis, os
que ele é efetivarnente o pa~ titulação real dos monarcas que são denunciados como tendo traído sua missão, são
pastor dos homens faz parte a termo que designava a re- designados como maus pastores, nunca individualmente
babilônicos. Era igualmente um aliás, sempre globalmente, como os que dilapidaram o re-
banho, dispersaram o rebanho, os que foram incapazes de

:n
,.. O manuscrito acresce~ta,
·
16· "Isso não exclw que
haJ·a entre os
~tatuto que llies permite a~
..

ricos, os poderosos, ?s que tem utros (não os escravos ou os_ estr~gm­


lhe dar seu alimento e de levá-lo de volta à sua terra". A
relação pastoral, em sua forma plena e em sua forma posi-
tiva, é portanto, essencialmente, a relação entre Deus e os
trar os negócios da Cidade, e osdo - múltiplos e densos: clientelismo, homens. É um poder de tipo religioso que tem seu princí-
"dadãos) modos e açao
ros, mas os o
evergetismo."
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978 169
SEGURANÇA. TERRITÓRIO POPULAÇÃO
168
defender
r · sua cidade. o Deus hebraico
. aparece qu d
pio, seu fundamento, sua perfeição no poder que Deus exer- p easamente, os hebreus saem da .d d , , an o,
ralhas, e quando começam a se . CI a e~ a sru.da das mu-
ce sobre seu povo.
Temos aí, creio eu, uma coisa ao mesmo tempo fun- sa as campinas "Ó 0 dgurr 0 cammho que atraves-
. . eus, quan o saías , fr d
damental e provavelmente específica desse Oriente medi- dizem os Salmos" Ali, , d a ente o teu povo",
· as, e essa mesma ·
terrâneo tão diferente do que encontramos entre os gre- caso de uma maneira que I b manerra, em todo
gos. Porque nunca, entre os gregos, vocês encontrarão a deus-pastor egípcioAmon é J~~ou~ pouco isso, que o
idéia de que os deuses conduzem os homens como um pas- duz as pessoas por todos os . h mo aquele que con-
tor pode conduzir seu rebanho. Qualquer que seja a inti- que o Deus assegura em rei c':rrun os. E se, nessa direção
midade- e ela não é necessariamente muito grande- en- movimento, se há referênciaa~~ote~~a m;titiplicidade em
tre os deuses gregos e sua cidade, a relação nunca é essa. que o deus-pastor sabe ond fi no, e na medida em
O deus grego funda a cidade, indica sua localização, ajuda quais são os bons caminhos p:ra ~: ::1~ampmas fé_rteis,
na construção das muralhas, garante sua solidez, dá seu lugares de repouso favoráve1's A g , . a e quais serao os
" d "] · propos1to de Jeo • diz
nome à cidade, pronuncia oráculos e, assim, dá conselhos. cxo o: u conduziste com fidelidad va, o
Consulta -se o deus, ele protege, ele intervém, às vezes ele taste, tu o levaste com tua fo e esse povo que resga-
também se zanga e se reconcilia, mas nunca o deus grego de."" Portanto em o osi - rça aos pastos da tua santida-
unidade de u~ terrifóri çao ao poder que se exerce sobre a
conduz os homens da cidade como um pastor conduziria
uma multiplicidade e o, o poder pastoral se exerce sobre
suas ovelhas. mmoVImento
Esse poder do pastor, que vemos tão alheio ao pensa-
mente um poder benf~ejo Vc :r p~stor e fundamental-
Em segundo lugar 0 pod · al ,
mento grego e tão presente, tão intenso no Oriente medi-
terrâneo, principalmente entre os hebreus, como ele se ca- parte de todas as caracteriz~ç~~es v~o me dizer que isso faz
racteriza? Quais são seus traços específicos? Creio que po- cas do poder. O que seria um s ~ gwsas, morais e políti-
demos resumi-los da seguinte maneira. O poder do pastor talmente malfazeJ·o> ?0 er que fosse fundamen-
. 0 que sena um poder - .
é um poder que não se exerce sobre um território, é um po- por função
. - fazer o bem>
' destino e J·ustifi·caçao quecna octtivesse
•.
der que, por definição, se exerce sobre um rebanho, mais ca umversal, mas com o detalhe de . ara ensti-
exatamente sobre o rebanho em seu deslocamento, no mo- o ?em, em todo caso no pensamentoque esse dever de fazer
vimento que o faz ir de um ponto a outro. O poder do pas- bem no pensamento romano nã grego_ e creiO que taro-
tor se exerce essencialmente sobre uma multiplicidade em um dos componentes dentr~ m orassa afinal de contas de
movimento. O deus grego é um deus territorial, um deus racterizam o poder. o'poder vai w os outros traços, que ca-
intra muros, tem seu lugar privilegiado, seja sua cidade, seja to por seu bem-fazer or su secar~cte?"ar, tanto quan-
seu templo. O Deus hebraico, ao contrário, é o Deus que por todo o fulgor dos ~J:nboloas dompotencJa, pela riqueza e
· e que se cerca O p d ·
caminha, o Deus que se desloca, o Deus que erra. Nunca a se defi mr por sua capacidade de tri f . . o er Vai
presença desse Deus hebraico é mais intensa, mais visível, de derrotá-los, de reduzi-los à escr~nd"! sobre os Jmmigos,
do que, precisamente, quando seu povo se desloca e quan- nirá também pela possibilidade d VI ao .. O poder se defi-
do, na errância do seu povo, em seu deslocamento, nesse conjunto dos territórios riq e conqwstar _e por todo o
movimento que o leva a deixar a cidade, as campinas e os O bem-fazer é apenas ~ma ~:~a~, etc., q_ue lera acumulado.
pastos, ele toma a frente do seu povo e mostra a direção que feixe pelo qual o poder é defimo. "daractensticas em todo esse
este deve seguir. Já o deus grego aparece nas muralhas para
170 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAçAO
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978
171
Sendo o poder pastoral, a meu ver, inteiramente defi-
uma caracteristica importante
nido por seu bem-fazer, ele não tem outra razão de ser se- ral -, a forma que o od ' a meu ver,. do J::oder pasto-
não fazer o bem. É que, de fato, o objetivo essencial, para o mente, a manifestaçãb ful;.,pastor~ adqture na o é, inicial-
poder pastoral, é a salvação do rebanho. Nesse sentido, perioridade. O poder pastor~:nte a sua força e da sua su-
pode-se dize~ é claro, que não se está muito distante do que seu zelo, sua dedicação sua a \ma~festamlcralmente por
é tradicionalmente fixado como o objetivo do soberano - a pastor? Aquele cujo poder fu1 P caçao infiruta. O que é 0
salvação da pátria-, que deve ser a ]ex suprema do exercício como os soberanos ou como gura aos olhos dos homens,
do podei". Mas essa salvação que deve ser assegurada ao deuses gregos que apar os deuses, em todo caso os
rebanho tem um sentido muito preciso nessa temática do gor? De jeito ~enhum ~cem eso;encialmente pelo seu fui-
poder pastoral. A salvação são, antes de mais nada e essen- é claro, no sentido de ~gilkstor e aquele que zela. "Zelar",
cialmente, os meios de subsistência. Os meios de subsistên- rado, mas pnn·cr·palme t Cla do que pode ser feito de er-
cia abundantes e a alimentação garantida são os bons pas- n e com ·gil- ·
tudnho o que pode acontecer de n~f,;;:to ~Cia a prlopósito de
tos. O pastor é aquele que alimenta e que alimenta direta- ba o, afastar a des a a u · e Ya! ze ar pelo re-
mente ou, em todo caso, que alimenta conduzindo às boas ma! do rebanho. Vai~~~ qa:'a pode ameaçar qualquer ani-
campinas, depois certificando-se de que os animais de fato
comem e são alimentados adequadrunente. O poder pasto-
lhor possível para cada
sim no caso do Deus heb .
uJ: dosque as COisas corram o me-
arumrus do rebanho. É as-
ral é um poder de cuidado. Ele cuida do rebanho, cuida dos rruco tamb - • ·
deus egípcio, de que se diz· "Ó Rá em e assun no caso do
individuas do rebanho, zela para que as ovelhas não sofram, os homens dormem · ' que velas quando todos
vai buscar as que se desgarram, cuida das que estão feridas. rebanho ... "" Mas po'rqque_~roEcuras o que é benéfico para teu
E, num texto que é um comentário rabínico um pouco tar- ue. ssencialme t
um encargo, que não é definido d . , . n e porque ele tem
dio, mas que reflete muito bem tudo isso, explica-se como fico, que é definido de in, . e lillCJo pelo lado honori _
1
e por que Moisés foi designado por Deus para conduzir o a preocupação do pasto/~~~~~ 0 lado fard? e fadiga. Toda
rebanho de Israel. É que, quando era pastor no Egito, Moi- os outros, nunca para ele preocupaçao voltada para
sés sabia perfeitamente fazer suas ovelhas pastarem e sabia, ~"
uuerença entre o mau e omesmobom . Esta• ru,• precisamente,
· a
por exemplo, que, quando chegava numa crunpina, devia aquele que só pensa no pasto pastor._ O mau pastor é
mandar primeiro para lá as ovelhas mais jovens, que só po- pensa no pasto para en o d para seu propno lucro, que só
dirun comer a relva mais tenra, depois mandava as ovelhas der e dispersar, enquant~ ~ b~:: rebanhe; que poderá ven-
um pouco mais velhas, e só depois mandava para a crunpina banho e em nada além d 1 N_pabustor so pensa no seu re-
as ovelhas mais velhas, as mais robustas trunbém, as que po- ~ · ee. ao scanem
P!opno no bem-estar do reb h C . seu proveito
dirun comer a relva mais dura. Assim, cada uma das catego-
rias de ovelhas tinha efetivamente a erva de que necessitava
ru, esboçar-se aí um oder an o. ;ew 9ue vemos surgir
ablativo e, de certo mbdo tr CUJO .carater e essencialmente
e alimento suficiente. Era ele que presidia essa distribuição viço do rebanho deve SeiV!'. andSIC!Onal. O pastor está a ser-
justa, calculada e pensada do alimento, e foi então que Jeová, pastos, a alimentação' a salr emte_ rmedi'· ano entre ele e os
vendo isso, lhe disse: "Já que sabes ter piedade das ovelhas, der pastoral, em si, é ~em r~·~:·bo que implica que o po-
terás piedade do meu povo, e é a ti que eu o confiarei."" de terror e de força ou de ~ ]' . em. Todas as dimensões
Assim, o poder do pastor se manifesta num dever, numa deres inquietantes que faze~e~scr~ temível, todos esses po-
tarefa de sustento, de modo que a forma- e essa trunbém é poder dos reis e dos deuse . bomens tremer diante do
s, pois em, tudo isso se apaga
172 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978
173
quando se trata do pastor, seja ele o rei-pastor ou o deus-
pastor. estava salvo, simbolicamente .
Enfim, última característica que abrange certo número que ele havia aceitado sacrifi ~~v~, JUstamente pelo fato de
de coisas que cruzei até aqui, é essa idéia de que o poder desafio, do paradoxo moral ~a- o :Estamos aí no centro do
pastoral é um poder individualizante. Quer dizer, é verdade que poderiamos cham d relig:toso do pastor, enfim do
um pelo todo sacn'fí ar de paradoxo do pastor: sacrifício de
que o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigi- ' cw otodop .
lo bem na medida em que não haja uma só ovelha que lhe cerne da problemática cristã d or um, que vru estar no
Em suma d . o pastorado.
possa escapar. O pastor conta as ovelhas, conta-as de ma-
nhã, na hora de levá-las à campina, conta-as à noite, para der pastoral é 'po emos dizer o se . t
a idéia d
'd"
gum e: a I em de um po-
saber se estão todas ali, e cuida delas uma a uma. Ele faz uma multiplicidade d e um pobder que se exerce mais sobre
oquesoreu t .•. É
tudo pela totalidade do rebanho, mas faz tudo também que guia para um ob· . m emtono. um poder
para cada uma das ovelhas do rebanho. É aqui que chega- esse objetivo. É, port!~;o~se~e de intermediário rumo a
mos ao célebre paradoxo do pastor, que adquire duas for- n~ado sobre aqueles ~esm~s der finalizado~ um poder fi-
mas. Por um lado, o pastor tem de estar de olho em todos e nao sobre uma unidade de . sobre os gurus se exerce, e
em cada um, omnes et singulatim38, o que vai ser precisamen- seja ela a cidade o territ. . tipo, de certo modo, superior
te o grande problema tanto das técnicas de poder no pas- enfim, um poder'que visa ~~0• o Estado, o soberano [... ]* É;
torado cristão, como das técnicas de poder, digamos, mo- em sua paradoxal eqUI· ai' mesmo tempo todos e cada um
, venciaenã 'dd
dernas, tais como foram introduzidas nas tecnologias da tOnnada pelo todo. Fbis bem ' . o a um a e superior
população de que lhes falava. Omnes et singulatim. E, depois, dade grega e do Impé . R ' creio que as estruturas da ci-
de maneira ainda mais intensa, no problema do sacrifício nhas a um poder dessen~ ooma:'o er~ totalmente estra-
do pastor em relação ao seu rebanho, sacrifício dele próprio tanto, certo número de t ~ . Voces dirao que existe, no en-
pela totalidade do rebanho, sacrifício da totalidade do reba- faz, de maneira explícita e os na lite:atura grega em que se
nho por cada uma das ovelhas. Quero dizer o seguinte: o coe o poder do pastor ;} c~:nparaçao entre o poder políti-
pastor, nessa temática hebraica do rebanho, o pastor deve vocês sabem, se empenhes a o texto do Político, que, como
tudo ao seu rebanho, a ponto de aceitar sacrificar-se pela nesse tipo de pes uisa O a pr~osamente nessa pesquisa
salvação do rebanho'". Mas, por outro lado, como precisa reinar? Acaso não~ ex~ que e aquele que reina? O que é
salvar cada uma das suas ovelhas, será que ele não vai se Bem escutem rcer o poder sobre seu rebanho?
- ' ~ como estou mesm . . .
ver na situação em que, para salvar uma só ovelha, vai ser nao vou me lançar nesse ass o mwt~ Indisposto,
obrigado a descuidar da totalidade do rebanho? É esse o mos por aqui. Estou cansadou~to, vou lhes pedir para ficar-
tema que vocês vêem repetir-se indefinidamente ao longo problema do Político da , . emais. Volto a falar disso, do
de todas as diferentes sedimentações do texto bíblico, do simplesmente de lhe's . dJ?WXIma vez, em Platão. Gostaria
dei· esse pequeno esquema m ICar grosso m d B
Gênesis aos comentários rabínicas, tendo precisamente, no u b o o... em, se eu lhes
centro disso tudo, Moisés. Moisés é aquele que efetivamen- que me parece que temos aquim o~ad? mal-aJambrado, é
te aceitou, para ir salvar uma ovelha que se tinha desgarra- Simo, que é o seguinte· ess . u_m enomeno Importantís-
do, abandonar a totalidade do rebanho. Ele acabou encon- completamente alheio . e ~ I~eia de um poder pastoral,
trando a ovelha, trouxe-a de volta nos ombros e viu, nesse ' m o o caso consideravelmente
momento, que o rebanho que ele havia aceitado sacrificar
"'Palavra inaudível.

)
174 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

alheio ao pensamento grego e romano, foi introduzido no NOTAS


mundo ocidental por intermédio da Igreja cristã Foi a Igre-
ja cristã que coagulou todos esses temas de poder pastoral
em mecanismos precisos e em instituições definidas, foi ela
que realmente organizou um poder pastoral ao mesmo
tempo específico e autônomo, foi ela que implantou seus
dispositivos no interior do Império Romano e que organi-
zou, no coração do Império Romano, um tipo de poder que,
creio eu, nenhuma outra civilização havia conhecido. Por-
que é de fato este, afinal, o paradoxo, sobre o qual eu gos-
taria de me deter nas próximas aulas: é que, de todas as ci-
vilizações, a do Ocidente cristão foi sem dúvida, ao mesmo
tempo, a mais criativa, a mais conquistadora, a mais arro-
gante e, sem dúvida, uma das mais sangrentas. Em todo
caso, é uma das que certamente praticaram as maiores vio-
lências. Mas, ao mesmo tempo - e é este o paradoxo sobre _1. a. a aula precedente (1 o d f .
o qual gostaria de insistir -, o homem ocidental aprendeu proposito da economia como ,; .." evererro), pp. 137-8 e 140-1 a
uma arte de governar Ciencta do governo" e 141,2
durante milênios o que nenhum grego sem dúvida jamais cia política" que agora transpôs o limiar d'e umpp. . "- '
teria aceitado admitir, aprendeu durante mi!ênios a se con- · a Clen-
siderar uma ovelha entre as ovelhas. Durante milênios, ele 2. Sobre essa noção, cf. su ra .
aprendeu a pedir sua salvação a um pastor que se sacrifica . 3. R Castel, L'Ordre psychlatri :~a ~e 18,de Janeiro, pP. 44-5.
ns, Minwt, "Le sens commun" 1976 [.L age dor de l'aliénisme, Fa-
por ele. A forma de poder mais estranha e mais caracterís- ca, Graal, 1991]. ' ed. bras.: A ordem psiquiátri-
tica do Ocidente, aquela que também viria a ter a fortuna 4 Cf 'b'd
1
· · · ' ., cap. 3, pp. 138-52 (''!.:ali- .
mais vasta e duradoura, creio que não nasceu nas estepes P!'flanthrope"). a. pp. 142 _3 . _ eruste, l'hygiéniste et !e
nem nas cidades. Ela nasceu no âmbito do homem de na- çao dos An les d'h " 'as Citaçoes do folheto d
tureza, não nasceu no âmbito dos primeiros impérios. Essa 1829 por M':c e E~~';;f t~b~u~ et de _médecine légale~ :~~~:n:~
forma de poder tão característica do Ocidente, tão única, servar a saúde dos homens reu:d: pubhc~, que é a arte de con-
creio, em toda a história das civilizações, nasceu, ou pelo nada a ter um grande desenvolvim em SOCiedade[... ] está desti-
menos inspirou seu modelo no pastoreio, na política consi- sas aplicações ao aperfeiçoament ~nto e a pr~porctonar numere-
derada assunto de pastoreio. s._ lbid., ~ap. 1, pp. 39 _50 ("L~ as nossa~ mstituições").
!e proletalre et !e fou"). cnmmel, I enfant, le mendiant,
6. lbid., cap. 5, pp. 208-15 ("Les ,
. 7. É no curso de 1973-1974 s operateurs politiques").
at., que Fo_ucault, tomando sobre ~reLe pouvorr psychiatrique, op.
va ~~ntestaveis da Histoire de la jaz· versos pontos que considera-
a ~tica do poder psiquiátrico em te~ ques~on~ P.ela primeira vez
cntica baseada na análise d
poder. a. a aula de 7 de n:e I - os de mstituição e lhe opõe a
rebaçoeds de poder;. ou microfísica do
m ro e 1973, p. 16·· "[ ··· ] nao
- crew.

j
J.
176 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 8 DE FEVEREIRO DE 1978
177
que a noção de instituição seja muito satisfatória. Parece-me que
a loucura não existe, mas pode-se escr .
ela encerra certo número de perigos porque, a partir do momento nomenolooia a loucura eXI"st :ver, Isso; porque, para a fe-
em que se fala de instituições, fala-se, no fundo, ao mesmo tem- . O"''
deve dizer, ao contrário ue I emasnaoeuma ·
cotsa, quando se
po de indivíduos e de coletividade, o indivíduo, a coletividade e as por isso ela é nada."' ' q a oucura não existe, mas que nem
regras que os regem já estão dados, e, por conseguinte, podem-se
precipitar aí todos os discursos psicológicos ou sociológicos.[ ...] O 11. O manuscrito (folha não d . .
ginas 14 e 15) remete ao Dicti ~umer~ a, msenda entre as pá-
et de tous ses díalectes du IX' au ~a;~c1e ~ a~cí:n~e_Iangue française
importante, portanto, não são as regularidades institucionais, mas
muito mais as disposições de poder, as redes, as correntes, as in- ris, F. Vieweg, 1885, t. 1\1, e, e redenc Godefroy, Pa-
termediações, os pontos de apoio, as diferenças de potencial que
caracterizam uma forma de poder e que, creio, são constitutivos ao 12. "Un petit chemin si estroit ' h
assez empesché de passer outr ' q~ un omme a cheval seroit
mesmo tempo do indivíduo e da coletividade". E a aula de 14 de
royent gouvemer" (Froissart Che, n_e eux ho~mes ne s'y pour-
novembro de 1973, p. 34: "Sejamos bastante antiinstitucionalis-
tas." a. também Surveiller et Punir, op. cit., p. 217: ''A 'disciplina' por F. G~defroy, Dictionnair; p. ;';;,tes, 1559, livro I, p. 72; citado
não pode se identificar nem com urna instituição nem com um 13. s, y avoit a Paris plus de blé h .
aparelho." ce temps y eust oncques voeu d que omme qw fust ne en
8. jeremy Bentham (1748-1832), Panopticon, ar the Inspection- Y en avoit pour bien gouvemereParis son age, car on tesmoignoit qu'il
p l d
House ..., in Works, ed. ). Bowring, Edimburgo, Tait, 1838-1843, t.l\1, (Journal de Paris sous Charles VI 77· oudr P us e 2 ans entiers"
pp. 37-66 I PanopUque. Mémoire sur un nouveau príncipe pour cons- tionnaire, p. 325). ' P· ' Cita 0 por F. Godefroy, Dic-
trnire des maisons d'inspection, et nommément des maisons de force, 14. "Il n'y avoit de quoy vivre n·
trad. fr. E. Dumont, Paris, lmprimerie nationale, 1791; reed. in Oeu- estoit malade" (1425 Arch JJ 173 ' gouvemer sa femme qui
vres de Jérémy Bentham, ed. por E. Dumont, Bruxelas, Louis Hau- froy, ibid.). ' . ' peça 186; citado por F. Gode-
man et Cie, t. 1, 1829, pp. 245-62 (texto reproduzido em ). Ben- 15. "Pour ces jours a "t h .
tham, Le Panoptique, precedido de "l:oeil du pouvoir", [citado su- grand gouvemement et
(Froissart Ch · '
V: ~~~c e~ali_er ~t une clame de trop
mmt h srres d'Aubrecicourt"
pra, p. 33, nota 11], e seguido da tradução por M. Sissung da pri- 16 ;U romques, t. Il, p. 4; citado por F. Godefroy, ibid.).
meira parte da versão original do Panopticon, tal como Bentham a · ne grasse ville non fermee · ' ll
publicou na Inglaterra em 1791). a. Surveiller et Punir, pp. 201-6. se gouveme toute de la draperie" (F . qw s appe. e Senarpont et
9. Cf. 'Téthique du souci de moi comme pratique de la liber- tado por!:· Godefroy, ibid., p. 326). rmssart, Chromques, livro V; ci-
té" (janeiro de 1984), DE, 1\1, n? 356, p. 726: "Fizeram-me dizer que 17. De laquelle bateure icellui Phili -
a loucura não existia, quando o problema era absolutamente in- I'espace de trais semaines 0 . pot a este mala de par
verso: tratava-se de saber como a loucura, sob as diferentes defi- porté comme en son hostel ~t ~:vrr~n, tanta l'Ostel Dieu ou il fu
nições que puderam lhe dar, pôde, num momento dado, ser inte- ment, est alé de Vl·e tr ' pws, par son mauvais gouveme-
a espassement" (1423 Ar hi
grada num campo instihJcional que a constituía como doença 186; cita~,o por F. Godefroy, ibid., p. 325). ' c ves JJ 172; peça
mental que tem certo lugar ao lado de outras doenças." Era assim, 18. Une filie qui avo·t t' d
por exemplo, segundo Paul Veyne, que Raymond Aron compreen- Estienne, Apol. p_ Hérod c ;S~s ~ de mauvais gouvemement" (H.
dia a Histoire de la folie. 19 "D fit b h., · ' 0 a 0 por F. Godefroy, ibid.).
· onne c ere a tous voire aux · .
10. a. Paul Veyne, "Foucault révolutionne l'histoire" (1978), qui le gouvemerent pendant son ~ou er" pnnopaux des Seiz~,
in id., Comment on écrit l'histoire, Paris, Le Seuil, "Points Histoire", !ado por F. Godefroy, ibid.). P (Pasq., Lett., XVII, 2; ci-
1979, p. 229 [ed. bras.: Como se escreve a história, Brasília, UNB,
1998]: "Quando mostrei a Foucault as presentes páginas, ele me ' 20. "Un quidam qui gouvemait la femme d . .
1allmt voir si souvent qu'a 1 fin 1 e son vmsm et
disse mais ou menos o seguinte: 'Pessoalmente, nunca escrevi que chet, Serées, L III, p. 202; citad: por~~~ ~en aperçut" (G._ Bou-

J
. e oy, tbid., Citado Igual-
178 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 8 DE FEVEREIRo DE 1978
179
mente por Littré, Dictionnaire de la Zangue française, Paris, ). -). Pau-
ver!, 1957, t. 4, p. 185). 27. F~nte não identificada. Sobre a ori ..
real, que a unagem do pasto . gem divma do poder
21. Sófocles, Édipo rei, trad. fr. de P. Masqueray, Oedipe roi, Pa- Kiinig, PP· 7-9. r exprune, cf.I. Seibert, Hirt- Herde-
ris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de France",
1940. Foucault interessou-se várias vezes por essa peça nos anos 28. Existe, sobre esse te li
)ost, Poimen. Das Bild vom Hir:;a, uma teratura ab.undante. a. W.
1970-1980. a. o curso de 1970-1971, "La Volonté de savoir", 12~ seine christologische Bedeutun (;' '" der bzblzschen Uberlieferung und
verbete "Sheep", in Diction~ry ~~~'/:'sO: Kindt, 1939; G. E. Post,
aula (retomada em conferência em ComeU em outubro de 1972);
"La Vérité et les formes juridiques" (1974), DE, II, n? 139, pp. 553- PP· 486-7; V: Hamp "Das . . e 1 e, I. 4, Edimburgo, 1902,
68; as primeiras aulas do curso de 1979-1980, "Du gouvemement
schrift Kard. Faulhaber Muru~f~ Allen Testament", in Fest-
':I;
des vivants" (16 de janeiro, 23 de janeiro e 1? de fevereiro de
"Hirt", in Lexikon jü/ Theo/o ~e~~d e_ er, 1949, PP· 7-20; id., verb.
1980); o seminário de Louvain, maio de 1981, "Mal dire, dire vrai.
Fonctions de 1'aveu" (inédito).
1960, col. 384-386. Sobre o J' ] Kzrche, Fnburgo em Breisgau,
tus der Hirt. Ursprun und Deuovo estamento: Th. H. Kempf, Chris-
22. Na realidade, a imagem só aparece uma vez no texto Roma, Offictum Lib~ Cath r tung erner altchnstlichen Symbolgestalt
do Édipo rei. Cf. trad. fr. de R. Pignarre, Paris, Gamier, 1964; Theologisches Worterbuch zu~'~ 1942; J. Jeremias, verb. "no,~v", i~
reed. GF, 1995, p. 122: (Coro): "Meu rei, eu te disse e de novo 501. Assinalemos também treuen Testament, Bd. 6, 1959, pp. 484-
te digo, I darei prova de loucura e de tolice, I se abandonasse a bete de P. Grelot #Berger"~ ienD~ ~s es~dos m~ recentes, o ver-
ti I que, quando meu país penava na tempestade, I foste o bom
vento que o guiou. Ah! novamente, I se tu podes, leva-nos hoje
t
mystique, Paris, Bauchesne; 12l~o;:mr~ de spmtualité ascé~que et
acompanhada de uma riquíss~a btbÍi co. 3_61-72, e a boa smtese,
a bom porto." Mas é recorrente na obra de Sófocles: Ajax, 1082, chungen zur Staats- und H agrafia, de D. Peil, Untersu-
Antígona, 162, 190 (cf. P. Louis, Les Métaphores de Platon, op. cit., nissen von der Antike bis zu';';Ichaftsmetaphorik in literarischen Zeug-
p. 156, n. 18). 29-164 ("Hirt und Herde"). egenwart, Mumque, W. Fink, 1983, pp.
23. Foi a partir da 12~ dinastia, sob o Médio Império, no iní-
29. Esse título ainda não !h , di
cio do 2? milênio, que os faraós foram designados como pastores vros históricos e sapienciais Cf e~ retamente aplicado nos li-
do seu povo. Cf. D. Müller, "Der gute Hirt. Ein Beitrag zur Ges- Salmos, 78, 70-72: Deus !h~ c. o vro II de Samuel5, 2; 24, 17;
chichte ãgyptischer Bildrede", Zeitschrift for iigypt. Sprache, 86, povo de Israet e Davi designa onfia ~ _cwdado de "pastorear" o
compensação, é freqüente nos ~~~s tim~ ~orno "rebanho". Em
1961, pp. 126-44.
24.A qualificação do rei como pastor (réu) remonta a Hamu- Ezequiel 34 23· 37 24 ("M profeticos: cf. por exemplo
rabi (c. 1728-1686). A maioria dos reis assírios, até Assurbanipal ' ' ' euservoD · · ~
filhos de Israel]; haverá um só aVI remara sobre eles [::::: 05
(669-626) e os monarcas neobabilônicos, adotou esse costume. Cf. gere Foucault,... a imagem do p ptast?r para todos eles'} Como su-
L Dün; Ursprung und Ausbau der israelitisch-jüdischen Heilandser- · . as or as vezes é d
Signar os reis pagãos: cf. Isaías 44 28 ( <;mprega a para de-
wartung. Ein Beitrag zur Theologie des Alten Testaments, Berlim, C. A. mias 25, 34. ' aproposito de Ciro); Jere-
Schwetschke & Sohn, 1925, pp. 116-20.
30. a. Gênesis 48 15· Sal 5
25. a. I. Seibert, Hirt- Herde- Konig. Zur Herausbildung des
KOnigtums in Mesopotamien, Berlim (Deutsche Akademie der Wis-
remias 31, 10; EzequieÍ 3 4 11
Poimen, pp. 19 ss. As ocor/ . '
~~ i;·cana~
1-_4; 80, 2; Isaías 40,
11;Je-
4-14. a. W. Jost,
11,
senschaft zu Berlin. Schriften der Sektion für Altertumwissens- torai ("guiar" ''conduzrr·,, e,~ciaslhda aphcaçao do vocabulário pas-
chaft, 53), 1969. ' ' reco er [no redil]" "I
etc.) a Jeová são evidentemente . . , evar ao pasto",
26. "Hymne àAmon-Rê" (Cairo, c. 1430 a.C.), inA. Barucq & mias, "not!Dlv
· "m· op. at.,
. mwto mms numerosas . Cf. J. Jere-
F. Daumas, Hymnes et Prieres de l'Égypte ancienne, n? 69, Paris, Le 486 _
31. Cf. Jeremias 17, 16 (ma -
Cerf, 1980, p. 198. contestada); Amós 1 1· 7 14-15 (WsaJtraduçao dessa passagem é
' ' ' . ost, op. at., p. 16).

J
180 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

32. Cf. Isaías 56, 11; Jeremias 2, 8; 10, 21; 12, 10, 23, 1-3; Eze~
quiel 34, 2-10 ("Ai dos pastores de Israel que se apasce~ta'." a Sl AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
mesmos. Não devem os pastores apascentar o rebanho· Vos v~s
nutristes de leite, vos vestistes de lã, sacrificaste: as ov:e!has mats
ardas, mas não fizestes o rebanho pastar. Nao fo~castes as
~velhas fracas, não cuidastes da que estava doente, nao ~astesa Análise do pastorado (continuação).- O problema dare-
que estava ferida. Não trouxestes a que se d~sgarrava, nao_ p~o~­ lação pastor-rebanho na literatura e no pensamento grego: Ho-
rastes a que estava perdida. Mas vós as dorrunastes com VIolenaa mero, a tradição pitag6ri.ca. Raridade da metáfora do pastor na
e dureza"); Zacarias 10, 3; 11, 4-17; 13, 7. literatura política clássica (lsócrates, Demóstenes).- Uma exce-
33. Salmos 68, 8. ção maior: o Político de Platão. O uso dn metáfora nos outros
34. llxodo 15, 13. , . "Sal uli textos de Platão (Critias, Leis, República). A crítica da idéia de
35. M. Foucault faz alusão aqui à maxJ.ma us pop su- um magistrado-pastor no Político. A metáfora pastoral aplica-
prema lex esto", cuja primeira ocorrência ~e encontra- com,~ da ao médico, ao agricultor; ao ginasta e ao pedagogo. -A his-
sentido bem diferente -em Cícero (De Iegzbus, 3, 3, 8, a propos1to tória do pastorado no Ocidente conw modelo de guvemo dos ho-
do dever dos magistrados de aplicar zel?~ente a, 1:1) e que fm mens é indissociável do cristianismo. Suas transformações e
retomada a partir do século XVI pela ma10na dos teo~cos a~s~lu­ suas crises até o século XVIII. Necessidnde de uma história do
tistas. Cf. supra (p. 152, nota 27), a citação do De officw hormms et pas.torado. - Características do "gaverno das almas": poder glo-
civis de Pufendorf. · fü ·ke baltzante, coextensivo à organização da Igreja e distinto do po-
36. Cf. J. Engemann, verbete "Hirt", in Reallexz~ r Anti. der político. - O problema das relações entre poder político e
und Christentum, Stuttgart, t. 15, 1991, col. 589: Andererse1ts poder pastoral no Ocidente. Comparação com a tradição russa.
bleibt ihnen (= den Rabbinen) dennoch bew':lsst, dass Mose, ge-
rade weil er ein guter Hirt war, von Gott erwãhlt Wtude, das Volk
Israel zu führen (Midr. Ex. 2, 2); cf. L. Ginzberg,_ The legends of the Nessa exploração do tema da govemamentalidade, eu
Jews 7 [trad. do alemão por Henrietta Szold] (Phi\~delphia UeWish havia iniciado um vaguíssimo esboço, não da história, mas
Publ. Soe. of America]1938) Reg. s.v. shepherd. _Cf. Igualmente de algumas refe!ências que permitem fixar um pouco o que
Filon de Alexandria, De vita Mosis, I, 60 (apud D. Peil, Untersuchun- creio ter sido tao unportante no Ocidente e que se pode
gen... , op. cit., p. 43 n. 59); Justino, Apol. 62, 3 (segundo W. Jost, PO!- chamar, que é efetivamente chamado de pastorado. Tudo
men, p. 14, n. 1). isso, essas reflexões sobre a govemamentalidade, esse vago
37. Frase já citada acima, p. 167. . . , .. esboço do pastorado, não deve ser tido como ponto pacífi-
38. Cf. a conferência '"Omnes et smgulabm : towar~s a c?ti- co, é claro. Não é um trabalho acabado, não é nem mesmo
cism of political reason", pronunciada por Foucaul~ na uru."e;s1da-
de de Stanford em outubro de 1979 ('"Omnes et smgulatun : vers um trabalho feito, é um trabalho em andamento, com tudo
une critique de la ralson politique", trad. fr. P.-E. Dauzat, DE, lY, o que isso pode comportar de imprecisões, de hipóteses -
n° 291, pp. 134-61). 'h enfim, são pistas possíveis, para vocês, se quiserem, para
mun, talvez.
. 39. a. João 11, so;,;s, 14: "É conveniente que um so ornem
morra por todo o povo. . Bom, eu havia insistido um pouco a última vez sobre
40. Cf. a aula seguinte (15 de fevererro), pp. 202-3. esse te~a do pastorado e havia tentado mostrar a vocês que
a relaçao pastor-rebanho, para designar a relação seja de
Deus com os homens, da divindade com os homens, seja
do soberano com seus súditos, essa relação pastor-rebanho
havia sido, sem dúvida, um tema presente, freqüente, na li-

j
..J
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978 183
182
, . • . literatura assíria também, que que vocês a encontram, por exemplo, nos poemas em inglês
tera~a eg~paa f~ao~~· ~;;, tema insistente entre os he- antigo do Beowulf, onde o soberano é designado como pas-
haVla SidO em to o - não me parecia que essa tor dos povos ou pastor do país.
breus e que, _em compens~o, h ·a tido alguma impor- Segunda série de textos: são os que se referem explici-
mesma relaçao pastor-r: ~mea:clusive que a relação tamente à tradição pitagórica, nos quais, desde o irúcio até
tãncia para os gr:~s. e~e e 05 um bom modelo poli- o neopitagorismo, até os textos do pseudo-Arquitas citados
pastor-rebanho nao e para or ~ ~erto número de objeções por Estobeu', vocês também encontrarão referências ao
tico. Cre1o q:'e se podealif~e ai ém veio me dizer que não modelo do pastor. E isso essencialmente em tomo de dois
. o e da última vez, as, gu E t- ou três temas. Primeiro, a etimologia tradicionalmente acei-
a ISS ' b tema e sobre esse ponto. n ao,
estava de acordo so ;~:~e de tentar por uns dez minutos ta pelos pitagóricos, que pretende que nómos, lei, venha de
se me penmtem, g blema da relação pastor-reba- nomeús, isto é, pastor. O pastor é aquele que faz a lei, na
delinear um pouco esse pro medida em que é ele que distribui o alimento, que dirige o
nho na literatura e no pensame;to gret~r que o tema da rebanho, que indica a direção correta, que diz como as ove-
Parece-me de fato que po emos I - d sobera- lhas devem cruzar para ter uma boa progenitura. Tudo isso,
- b nh ara designar a re açao o .
relaçao pastor-re ,a o, P. . ,ditos ou conclda- função do pastor, que dita a lei ao seu rebanho. Daí a deno-
no ou do ;esponsavel político co:,"ase~~~ssa afinnação em minação de Zeus como Nómios. Zeus é o deus-pastor, o deus
dãos, esta preser;te nos grfg~, . poPrimeiro, claro, novo- que concede às ovelhas o alimento de que necessitam. En-
três ~pos po~siVeiSlid~~eoe~~~:~· sabe que, na Ilíada, es- fim, sempre nessa mesma literatura de tipo pitagórico, vo-
cabulano homenco. ,oito de A mêmnon, mas também na cês encontram a idéia de que o que caracteriza o magistra-
senclalmente a propos , . ~e referências que designam do não é tanto seu poder, sua força, a capacidade que tem
Odisséia, temos toda uma sene ·mén laôn denomina- de decidir. O magistrado, para os pitagóricos, é antes de
o rei como pastor dos povos, como pot u'ca facilmen- mais nada o philánthropos, aquele que ama seus adminis-
- .tua!'* É inegável e creio que Isso se exp '" trados, aquele que ama os homens que a ele estão subme-
çao n : ' em toda a literatura indo-europeia,
te, na medida em qu~, mirração ritual do soberano, que tidos, aquele que não é egoísta. O magistrado, por defini-
essa é de fato uma eno . m'·a· é uma deno- ção, é cheio de zelo e de solicitude, tal como o pastor. "A lei
. t ente na literatura ass , não é feita para ele", magistrado, ela é feita primeiro e an-
encontramos JUS am . t m diri"oir-se ao soberano
. - "tua! a que cons1s e e o- , tes de tudo "para seus administrados"'. Trata-se portanto, com
mmaçao n ' " Há um grande nume-
chamando-o de "pastor dos povos . I ao de Rü- certeza, de uma tradição bastante coerente, uma tradição

~~g~~ ~c~!~~,s~~ i~:~~:m~~-~~~~r~e~:E:~:"f;~;.


duradoura que, durante toda a Antiguidade, manteve esse
tema fundamental, de que o magistrado, aquele que decide
sões poéticas na epo~: md?-=~~~~~ão toda uma série de na cidade, é antes de mais nada, essencialmente, um pas-
[Nas páginas]283-2 voc:s · , laôn pastor dos po- tor. Mas, é claro, essa tradição pitagórica é uma tradição, se
referências a essa expres~ao - potmen ta~bém é tardia já não marginal, em todo caso limite.
vos -, que é arcaica, que e precoce, que Como ela aparece - é a terceira série de textos a que
eu fazia referência -, como ela aparece no vocabulário po-
. . eO'nintes referências: Ufada, lítico clássico? Encontramos aí duas teses, por assim dizer.
• M. Foucault, no manuscnto, ota as s o-·
Uma, do alemão Gruppe, em sua edição dos fragmentos de
n, 253; Odisséia, m, 156; XIV, 497.
184 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
185
Arquitas', que explica que, na verdade, a metáfora do pas-
tor praticamente não está presente entre os gregos, salvo bem a esse magistrado. Ele deve cuidar dos jovens, deve vi-
onde possa ter havido influência oriental, mrus preosan:en- giá-los sem cessar, deve zelar não apenas por sua educação
te influência hebraica, que os textos em que o pastor e re- mas também por sua alimentação, pela maneira como se
presentado como modelo do bom magistrado são. textos comportam, pela maneira como se desenvolvem, até mes-
significativos, densos, que se referem a uma ideologia ou a mo pela maneira como se casam. Estamos bem perto da
um tipo de representação política tipicamente onental, metáfora do pastor. Ora, a metáfora do pastor não aparece.
mas que esse tema está absolutament; limitado aos pita: Vocês praticamente também não vão encontrar em Demós-
góticos. Onde vocês e~contram r;ferencia ao pastor, _ha tenes esse tipo de metáfora. Logo, no que se chama devo-
que enxergar uma influencia pilagonca, logo uma mfluen- cabulário político clássico da Grécia, a metáfora do pastor é
uma metáfora rara10 •
cia oriental. ,. .
A essa tese se opõe a de Delatte, em A polztzca dos pzta- Rara, com uma exceção, claro, e uma exceção maior,
góricos', Delatte que diz: não, de jeito ne~hum: o tema do capital: ela está em Platão. Nele vocês vêem toda uma série
pastor como modelo ou personagem político e. um luga:- de textos em que o bom magistrado, o magistrado ideal é
comum. Não pertence em absoluto aos pitagoncos. Na~ considerado o pastor. Ser um bom pastor é não apenas ser
traduz nenhuma influência oriental e, no fim das co.ntas, e o bom, mas principahnente o verdadeiro, o magistrado ideal.
11
um tema relativamente sem importância, uma espec1e de Isso no Crítias , na República 12, nas Leis 13 e no Político 14 • Esse
lugar-comum do pensamento, ou melhor, sll_nplesmente do texto do Político creio que deve ser tratado à parte. Vamos
vocabulário, da retórica política da época classi~a'. De fato, deixá-lo de lado por enquanto e pegar os outros textos de
essa tese de Delatte, essa afirmação de Delatte ':apresenta- Platão, em que essa metáfora do pastor-magistrado é utili-
da como tal, ele não fundamenta essa afinnaçao de que o zada. O que é que a gente vê? Parece-me que a metáfora do
tema do pastor é um lugar-comum no pensamento ou no pastor, nos outros textos de Platão - quer dizer, todos me-
vocabulário político da época clássica em nenhuma ~efe­ nos O político -, essa metáfora do pastor é empregada de
rência precisa. Mas, quando observamos os diferentes mdi- três maneiras.
ces que poderiam relacionar na literatura grega os empre- Primeiro, para designar qual foi a modalidade específi-
gos de palavras como apascentar", ~~pastor"~ "pai", palavras
11
ca, plena e bem-aventurada do poder dos deuses sobre a
como poimén, nomeús, ficamos ~es~o. ass1:n um bocado humanidade nos primeiros tempos da sua existência e an-
surpresos. Por exemplo, o Ind.ex z_sokratezos nao t;az nenhu- tes que a desgraça ou a dureza dos tempos houvesse mu-
ma referência à palavra pozmen, a palavra nomeus. Ou seja, dado a condição daquela. Os deuses são, Originariamente,
não parece que em Isócrates se possa encontrar nem mes- os pastores da humanidade. Os deuses é que alimentaram
mo a expressão de apascentar, pastorear ou pastor. E, num [os homens] *, que os guiaram, que lhes proporcionaram sua
texto preciso, o Areopagítico, em que Isócrates descreve com alimentação, seus princípios gerais de conduta, que zelaram
muita precisão os deveres do magistrado', o segwnte fato pela sua felicidade e pelo seu bem -estar. É isso que vocês
nos surpreende: do bom magistrado e daquele que deve z<;- encontram no Crítias", que voltarão a encontrar no Político,
lar pela boa educação da juventude, desse magtstrado,_ Iso- e vocês vão ver o que, a meu ver, isso significa.
crates dá uma descrição muito precisa, muzto prescntiva,
muito densa. Toda uma série de deveres e de tarefas mcum-
* M.F.: que os alimentaram
186 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AUlA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
187
Em segundo lugar, vocês também encontram textos
nos quais o magistrado do tempo atual, do tempo de dure- n~o é em absoluto tópica para caracterizar a virtude neces-
za do tempo posterior à grande felicidade da hurnarudade sana ao magistrado". Ao que se responde a Trasírnaco: mas
pr~sidida pelos deuses, também é considerado um ~;astor. esse 9ue você def!ne,assírn não é o bom pastor, não é ver_
0
Mas há que entender que o rnagtstrado-pastor nunca e con- dade1ro pastor, nao e o pastor pura e simplesmente, é a ca-
siderado nem corno o fundador da cidade, nem corno quem n_c~tura do pastor. Um pastor egoísta é urna coisa contradi-
lhe deu suas leis essenciais, mas corno o magistrado pn;to- tona. O verdadeiro pastor é justamente aquele que se de di_
pal. O magistrado-pastor- nas Leis isso é bern_caractensti- ca mterrarnente ao s:u rebanho e não pensa em si mesmo19.
co, perfeitamente claro-, o rnagts~ado:pastor e na~erdade É certo que tern?s ru ... que': dizer, é provável em todo caso
um magistrado subordinado. Ele e _melO rntermediário en- que tenhamos ru urna referencia explícita, se não a esse lu-
tre 0 cão de guarda propriamente dito, digamos brutalmen- gar-comum que não parece ser tão comum no pensamento
te, 0 policial, e aquele que é o verdade_!ro :enhor ou legtsla- grego, pelo _menos a_urn terna familiar, conhecido de Sócra-
dor da cidade. No livro X das Lets, voces veern que o rnagtS- tes, _de Platao, dos crrculos fplatônicos], que era o terna pi-
trado-pastor é contraposto, de um lado, aos animais preda- tag?nco. É esse terna p1tagonco do magistrado-pastor, da
dores que ele tem de manter longe do se~ reba~ho, mas políttca corno pastoreio, é esse tema que aflora, creio, clara-
mente no texto da República, no livro [.
também é diferente dos senhores, que estao na cupula do
Estado'". Logo funcion:IDo-pastor,, claro, rn:'s apenas fll:'- É justamente com este que vai debater o grande texto
d_? Poltttco, porque o grande texto do Político tem por fun-
cionário. Ou seja, não e tanto a propna essenc1a da funçao
política, a essência mesma do que é .o poder na cidade, que çao, preosamente, parece-me, colocar diretarnente e de
será representada pelo pastor, mas srmplesrne~te urna fun- certo modo, em cheio, o problema de saber se efetivarr:en-
ção lateral, urna função que o Políttco chamara Justamente te se pode caracterizar, não este ou aquele magistrado da ci-
de adjuvante", que é assim designad~. _ dade, mas o magtstra~ por excelência, ou melhor, a própria
Enfim, terceira série de textos, amda em Platao e com natureza do poder político ta} como se exerce na cidade, se
exceção do Político, são os textos da República, em particular se _pode efetivamente anahsa-la a partir desse modelo da
no livro I a discussão com Trasírnaco, em que Trasrmaco diz, aça?. e do poder do pastor sobre seu rebanho. Será que a
corno se 'se tratasse de urna obviedade ou de um lug~-co­ polítt_ca pode efetivamente corresponder a essa forma da
rnurn em todo caso de um terna familiar: sim, claro, vao di- relaçao pastor-rebanho? É a questão fundamental em todo
zer q~e o bom magistrado é aquele que é um verdadeiro pas; caso ~ma das dimensões fundamentais do Polític; E a essa
toro Contudo, vamos ver um pouco o que o pas~or faz. Voce questao o texto it~teiro responde "não", e um não que me
acredita mesmo, diz Trasírnaco, que o pastor e o homem parece bas:ante crrcunstanciado para que se possa ver nele
que tem em vista essencialmente e ate exclusiVamente o uma rej~Jçao formal do que Delatte chamava, parece-me
bem do seu rebanho? O pastor só se empenha na rne~ida que eqwvocadamente, de lugar-comum, mas que devemos
em que isso pode lhe proporcionar um retorno, ele so se reconhecer como um tema familiar à filosofia pitagórica:
0
chefe na c1dade deve ser o pastor do rebanho.
empenha por seus animais tendo em VIsta o dia em qu~ po-
derá sacrificá-los, matá-los ou vendê-los. É por egmsrno Rejeição desse tema portanto. Vocês sabem- vou sim-
que o pastor age corno age e finge se dedi:ar aos seus aru- ple~mente ret_?mar de forma esquemática o desenrolar do
mais. Logo, diz Trasírnaco, essa cornparaçao com o pastor Poltttc~ -, voces _sabem em linhas gerais como é feita essa
rlejeJçao da metáfora do pastor. O que é um homem políti _

J
188 SEGURANÇA, TERRJTÓIIJO, POPULAJ;ÃO
AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
189
co, o que é o homem político? Só se pode defini-lo, é claro, a esses seres vivos que são os animais al
pelo conhecimento específico e pela arte particular que lhe os animais, ou a essa es écie . ' qu quer ~' todos
permitem exercer efetivarnente, corno tem de ser, corno deve são os humanos. É evidFnternparticular de seres VIvos que
ser, sua ação de homem político. Essa arte, esse conheci- homem político. Ora, o que é :J;te aqui que se encontra o
mento que caracteriza o homem político é a arte de prescre- seres vivos, animais ou home ? flrdens a um rebanho de
ver, a arte de comandar. Ora, quem comanda? Oaro, um rei ~astor. Ternos portanto a segui~te d e;de~ternehnte ser seu
comanda. Mas, afinal de contas, um adivinho que transmi- lítico é o pastor d h • e mçao. o ornem po-
te as ordens do deus, um mensageiro, um arauto que traz o seres vivos que a ~~p~~~~sd e o pastodr desse rebanho de
resultado das deliberações de urna assembléia, mas afinal o sua canhestr 'd • e uma C! ade constitui<'. Em
patrão dos remadores num barco, estes também coman- se não um lueg~~o!nurnte, e cllaro que esse resultado registra,
dam, dão ordens. É preciso portanto reconhecer, entre toda , pe o menos urna op · -- t iii.
e que o problema do diálo o v . . Imao am ar
essa gente que efetivamente dá ordens, quem é verdadeira- ber como se pode escapar âess: t~%f~:~'::ente o de sa-
mente o homem político e qual é a arte propriamente polí-
tica que corresponde à função do magistrado. Donde aná- liar, oEh~:~~;~~~~t~lo qual se escapa dess~ tema fami-
lise do que é prescrever, e essa análise se faz, num primeiro mento, creio eu, se de::~l~astor do rebanho, esse movi-
tempo, da seguinte maneira. Há duas maneiras de prescre- retoma-se esse método de di e':' q~atro etapas. Primeiro,
ver, diz Platão. Podem-se prescrever as ordens que você ta em seus primeiros moment~:ao, tao tosco e t~o s!rnplis-
mesmo dá, podem-se prescrever as ordens que um outro rece de imediato: o que sigru'fi . De fato, uma Objeçao apa-
dá: é o que faz o mensageiro ou o arauto, é o que faz o pa- . . ca opor assim todos os ·
trão dos remadores, é o que também faz o adivinho. Já mru~ qurusquer que sejam, aos homens? Má .. - am-
transmitir as ordens que um mesmo dá, é evidente que é Pl~ao re~erindo-se ao problema de méto.do [... ~;.'s~~odiz
isso que o homem político faz". Essas ordens que alguém ~~ em por todos os anrrnais de um lado e todos os h orne~:
dá e transmite em seu próprio nome, a quem podem ser - outrlo. É preoso fazer divisões que sejam realmente divi.
soes p enas, de ambos os lad b . . - -
dadas? Elas podem dizer respeito a coisas inanimadas. É o
que vai fazer, por exemplo, o arquiteto, que vai impor sua
~quiw:Jentes. A propósito des~~ te~! ~~soes por metades
e alguem que zela [por] um b h ' . que o rnag~strado
vontade e suas decisões a essas coisas inanimadas que são tanto distinguir os diferent: tiapn odvru ser necessário por-
a madeira e a pedra. Pode-se também impô-las a coisas
animadas, essencialmente a seres vivos. É evidentemente
cessário distinguir os arurn· . °5
e anunrus, vru ser ne-
rus se1vagens d · ·
tos e domésticos" Os h os ammrus paca-
nesse lado que se deve situar o homem político, em oposi- categoria. Entre o~ anirn~~~ns I:ertencern a essa segunda
ção aos arquitetos. Ele vai prescrever a seres vivos portanto". vivem na • . omesticos ou pacatos, os que
Você pode prescrever a seres vivos de duas maneiras. Ou agua e os que VIvem na te Oh
posto entre os que vivem na terr ~a. ornem deve ser
prescrevendo a indivíduos singulares: a seu cavalo ou ao par devem se dividir em voláteis ~- s que VIVem na terra
de bois que você conduz. Podem-se também dar prescrições fres, nos que não têm chifres e pe estr;s, nos. que têm chi-
a animais que vivem em rebanho, formados em rebanho, a que não têm o pé fendido n;snqo~equedtem o pe fendido, nos
toda urna coletividade de animais. É evidente que o homem ' po em ser cruzados, nos
político está mais desse lado. Ele vai comandar portanto se-
res que vivem em rebanho". Podem-se enfim dar ordens ou
""Algumas palavras inaudíveis.
190 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
191
que não podem ser cruzados. E a divisão se perde assim em
suas subdivisões, mostrando com isso que, quando se pro- único, está certo, só pode haver um ma .strad
caso, um rei. Mas todas essas ti .d d gi o ou. em todo
cede desse modo, isto é, partindo desse tema familiar - o cuidados, de terapêutica de ~~ a Js de ~entação, de
magistrado é um pastor, mas é o pastor de quem?-, não se se encarregar delas na cldade nJo as unwes, quem vai
chega a lugar nenhum. Em outras palavras, quando, nessa do, quem é de fato encarre ado ~~~:.J'~d<; ser encarre_ga-
definição, toma-se como invariante "magistrado =pastor"
e se faz variar o objeto sobre o qual se exerce essa relação,
da urudade do pastor, da Jnicidad d aJ que .o pnncipiO
mente contestado e que se • e o pastor e rmediata-
o poder do pastor, nesse momento podem-se ter todas as rivais do rei, os rivais do re~:~ascer _o que Platão chama de
classificações que se quiser dos animais possíveis, aquáti- rei for de fato definido matena de pastorado. Se o
cos, não-aquáticos, pedestres, não-pedestres, com pé fen- que o a_!7icultor que a]::~au~ hastor, por que nãose dirá
dido, sem pé fendido, etc., vai-se ter uma tipologia dos ani- faz o pao e que fornece ali omens, ou o p~de':" que
mais, mas não se avançará nada na questão fundamental pastores da humanidad mento aos homens nao sao tão
que é a seguinte: o que é essa arte de prescrever? Como in- do conduz as ovelhas e quanto o pastor do rebanho quan-
variante, o tema do pastor é totalmente estéril e sempre nos ber? O agricultor o :spas_tos ou quando lhes dá de be-
remete às variações possíveis nas categorias animais26 • humanidade. Ma; o ~écÚ~o e um nval do rei, é pastor da
Donde a necessidade de retomar o procedimento, e é também é pastor exerce fu o 'lue trata os que estão doentes
esse o segundo momento nessa crítica do tema, segundo Je
nástica, 0 pedag~go que C::i~:o r;astor, o pr?fessor de gi-
momento que consiste em dizer: agora é preciso ver em que
consiste ser pastor. Ou seja, fazer variar o que havia sido até
então admitido como a invariante da análise. O que é ser
ças, da sua saúde do vigor d
tes também são pastores e: a oa educaçao das crian-
ser c?rpo, da sua aptidão, es-
Tados podem reivindicar ser :e açao ao rebanho h_umano.
pastor, em que consiste? Pode-se portanto responder as- do homem político'". p stores e, portanto, sao nvais
sim: ser pastor quer dizer, em primeiro lugar, ser o único a Tínhamos poi · .
ser pastor num rebanho. Nunca há vários pastores por re- . d • ' s, uma mvanante, admitida de 'd .
magistra o e o pastor. Faz-se variar •. sru a. o
banho. Um só. E, por outro lado, a propósito das formas de os quais se exerce o poder d a sene dos seres sobre
atividade, percebe-se que o pastor é alguém que deve fazer de animais, a divisão não pár~ p;s:or, tem -se uma tipologia
uma porção de coisas. Deve garantir a alimentação do reba- lise do pastor, em que ela con~is~eo~emos portanto a anã-
nho. Deve cuidar das ovelhas mais jovens. Deve tratar das mos proliferar toda uma s. . e_ nesse momento ve-
que estão doentes ou feridas. Deve conduzi-las pelos cami- ções políticas. Temos ortae~e ~e funçoes que 1lão são fun-
nhos dando-lhes ordens ou eventualmente tocando músi- as divisões possíveis Kas esn ?•. e um lado, a sene de todas
ca. Deve arranjar as uniões para que as ovelhas mais vigo- ti.po1Ogla . peCies arumrus de 0 tr 1 d
de todas as atividades • .' u o a o, a
rosas e mais fecundas dêem os melhores cordeiros. Portan- podem ser relacionadas à ati .d ~oss~veis que, na cidade,
to um só pastor e toda uma série de funções diferentes".
Agora retomemos isso e apliquemos ao gênero humano ou
desapareceu. Donde a necessi:Í:.da â o pastor. O político
Terceiro tempo da anális . e e retomar o problema.
à cidade. O que se vai [dizer]*? O pastor humano deve ser pria essência do político? É a e .. como se v~ recuperar a pró-
do Político vocês conhecem ~UI q~':.m~rvem o rruto. O mito
em torno de si mesmo . . . a I eia e que o mundo gira
*Palavra inaudível tido correto que é em't~â;:'erro num sentido que é o sen-
' caso o sentido da felicidade, o
-o AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978 193
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇA
192
uando ele chega ao fim, não são mais, verdadeiramente, os pastores onipresentes,
sentido natural, a que s~ segue, q que é o movimento dos imediatamente presentes, como errun na primeira fase da
um movimento no senti o mverso,do grr·a sobre o seu eixo humanidade. Os deuses se retirarrun e os homens são obri-
.fi . '" Enquanto o mun li .d gados a se dirigir uns aos outros, isto é, necessitam de polí-
tempos di ceJs ·. h manidade vive de fato na fe C! a-
no primeiro sentido, a l diz Platão "é um tempo tica e de homens políticos. Mas, e aqui trunbém o texto de
de. É ~ era de Cro!'os. al ~~:s~~\ção do mu~do, mas à sua Platão é muito claro, esses homens que agora se encarre-
que n.ao_p:rtence ~ a~o Nesse momento, como ~s cmsas
grun dos outros homens não estão acima do rebanho, como
constitiUÇao antenor . , . de es écies animaiS, e cada os deuses podirun estar acima da humanidade. Fazem par-
acontecem? Há toda uma sene reJ'anho. E à frente desse te dos homens, logo não se pode considerá-los pastores".
uma delas s~ apresenta como ~Esse astor é o gênio pas- Então, quarto tempo da análise: como a política, o po-
rebanho esta, de fato, um pa~o . pédes animais E, dentre lítico, os homens da política só intervêm quando a antiga
tor que preside a cada um~ as esb nho particul~, o reba- constituição da humanidade desaparece, isto é, quando a
essas espécies amma~s, ha u~ re a trunbém tem seu gê- era da divindade-pastor termina, como vai se definir o pa-
nho humano. Esse rebanho ~i"ln~ Platão "a divindade pel do homem político, em que vai consistir essa arte de dar
nio pastor. Esse pastodr qudem e .ess'oa é o pastor do rebanho ordens aos outros? É aí que, para substituir o modelo do
1131 Adivm a eemp à pastor, vai-se propor um modelo, celebérrimo na literatura
em pessoa . , d humanidade que não pertence .
humano no J?e_!!OdO a O ue esse pastorfaz? Para di- política, que é o modelo da tecelagem';. O homem político
atual constihUçao do mundo. q mo tempo infinita, exaus- é um tecelão. Por que o modelo da tecelagem é bom? (Pas-
zer a verdade, é uma tar~~ ao me~e a natureza inteira ofere- so rapidrunente por esse ponto, são coisas conhecidas.) Pri-
tiva e fácil. Fácil na 'J'e : e~~n~cessita: a comida é fornec;i- meiro, com certa precisão, utilizando esse modelo da tece-
ce ao horr;em tudo e~a é tão ameno que o homem nao lagem vai se poder fazer uma análise coerente do que são
da pelas ruvores, o c ode dormir ao relento e, mal ele as diferentes modalidades da ação política no interior da ci-
precisa constnnr ca~as, p rebanho bem-aventurado, com dade. Contra o tema, de certo modo invariável e global do
morre, volta a VJda. a esse d perpeturunente, é a esse pastor, que leva necessarirunente ou ao estado anterior da
to e renascen o . . d d humanidade, ou à multidão de pessoas que podem reivin-
fartiUa de alimen dificuldades, que a diVITI a e
rebanho sem ameaça_s, sem t como diz ainda o tex- dicar ser pastores da humanidade, com o modelo do tece-
preside. A_ di~dade : ~~~da~eo:e~ pastor, eles não neces- lão vamos ter, ao contrário, um esquema analítico das pró-
to de Platao, por ser - lítica"". A política Vai começar, prias operações que se desenrolam no interior da cidade, no
sitavrun de conshhUçao po nnina esse primerro tem~ que concerne ao fato de comandar os homens. Vai-se poder
portanto, preasrunente quando ~~entido certo. A politica Vai pôr à parte, primeiro, tudo o que constitui as artes adjuvan-
po feliz, em que o mund~ grra ~ no sentido inverso. De fato, tes da política, isto é, as outras formas segundo as quais po-
começar quando o muno ~e~do inverso, a divindad~ se re- dem-se prescrever certas coisas aos homens e que não são
quando o mundo grra n começa. Os deuses, e claro, proprirunente a política. De fato, a arte da política é como a
tira a dificuldade dos tempos mas só os ajudrun arte do tecelão, não uma coisa que se ocupa globalmente de
nã~ abandonrun totalm";te~s ho::~s [artes]*", etc. Eles tudo, como o pastor deveria se ocupar de todo o rebanho.
de maneira indireta, dan o- es o ' A política, como a arte do tecelão, só pode se desenvolver a
partir e com ajuda de certo número de ações adjuvantes ou
,. Palavra inaudível
-o AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978 195
SEGURANÇA, TERJUTÓRIO, POPULAÇA
194
pastor, mas o homem político, com suas atividades particu-
- . tos uiada o fio precisa ser
preparatórias. A la prec!S~ ser ass:; por 1i para que o tece- lares e específicas, não é um pastor. Há, no Político, um tex-
trançado, o cardador tem e p maneira para ajudar o ho- to claríssimo a esse respeito. Está no parágrafo 295a, um
Jão possa trabalhar. Da mes:na toda um'a série de artes ad- texto que diz: vocês imaginam por exemplo que o homem
mem político vai ser necessana ·ar boas sentenças nos tri- político poderia se rebaixar, poderia simplesmente ter o
erra pronunc1 , tempo de fazer como faz o pastor, como o médico também,
juvantes. Fazer a gu drr ssembléias pela arte da reto-
como o pedagogo ou como o ginasta: sentar-se ao lado de
bunais, também ye';"ua as a te política, mas é condição
rica, tudo iss,o nao e Eropn:: ser então a atividade poli- cada cidadão para aconselhá-lo, alimentá-lo e tratar dele?"
Essas atividades de pastor existem, são necessárias. Deixe-
p ara o exemoo
.
dela · O q • . d políti'co 0 homem po-
t dita a essenc1a o ' mo-las onde elas estão, onde elas têm seu valor e sua eficá-
tica propn~en e ' lítico?Vai ser ligar, como o te-
lítico ou a açao do homem po O homem politico liga en- cia, com o médico, o ginasta, o pedagogo. Sobretudo, não
celão liga a urdidura e a trl:~entos que foram formados digamos que o homem político é um pastor. A arte real de
tre si os elementos, os bon~d s as diferentes formas de prescrever não pode ser definida a partir do pastorado. O
pela educação, vruH~ar as â~s outras e, às vezes, até pastorado é demasiado miúdo, em suas exigências, para
virtude que são distintas umas e li ar entre si os tempe- poder, convir a um rei. É pouco demais também por causa
opostas umas às outras, vru tecr os tomens fogosos e os da pr?l'na humildade da sua tarefa, e, por conseguinte, os
ramentos opostos, por exemplos com a lançadeira de uma p1tagoncos se eqmvocam ao quererem defender a forma
homens moderados, e vai tece- o arti]ham. A arte do rei pastoral, que pode efetivrunente funcionar em pequenas
opinião comum que os homens choummpa a arte do pastor, é a comunida~es religiosas e pedagógicas, eles se equivocrun
- , rt to de mane1ra nen ' · ao defende-la na escala de toda a cidade. O rei não é um
nao e po an_ ' , e e consiste em juntar as eXIS-
arte do tecelao, e uma art qu .d d ue se baseia na con- pastor.
tê?ci.as, eu cito,_ "ndu~~ %,~~~0 ~e~efao político, o político
Creio que temos aí, com todos os sinais negativos que
cordia e na am!Za e · ífi' bem diferente de to- nos foram dados pela ausência do tema do pastor no voca-
- f com sua arte espec ca, " d bulário político clássico da Grécia e pela crítica explícita que
teceiao arma . -"'co de todos os tecidos, e to a Platão dele faz, o sinal manifesto de que o pensamento gre-
das as outras, o mru.s maõ._.......... e homens livres, vê-se en-
a população do Estado, escravosma 'fico"", diz ainda Pia- go, a reflexão grega sobre a política exclui essa valorização
volvida nas dobras des_sel te~do tof"a felicidade que pode do tema do pastor. Vocês a encontrrun entre os orientais e
tão. E é assim que se e eva o a entre os hebreus. Sem dúvida houve no mundo antigo -
caber a um Estado. , sse texto a rejeição formal do mas isso é para ser buscado muito mais longe, com muito
Creio que temos ~';,,e trata em'absoluto, para Platã?, maior precisão - formas de apoio que pennitiram que, a par-
tir de certo momento, precisamente com o "cristianismo"
tema do pastorado. ~ao astorado deve ser inteiramente eli-
de dizer que o tema o p - e sim, de mostrar JUstamente (boto "cristianismo" esse aspas), se difundisse a forma do
minado ou abolido. Trat~ s h- só pode ser naquelas atiVl- pastorado. Mas esses pontos de apoio à difusão ulterior
do pastorado creio que não devem ser buscados no pensa-
que, para ele, se pastor~vi~a ~ecessárias à cidade, massu-
dades menores, sem_du_ d olítica, que são a atiVlda- mento político nem nas grandes formas de organização da
bordinadas em relaça? a or ~ p ·cultor do ginasta, do pe- cidade. Seria certamente necessário olhar para o lado das
de por exemplo do med!dco, d ~e fato' comparados a um pequenas comunidades, dos grupos restritos com as formas
dagogo. Todos esses po em ser, '
----~

196 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO


AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
197
espeóficas de socialidade a eles vinculadas, como as comu- se. - forma, a ssun,
· com essa institu .
nidades filosóficas ou religiosas, os pitagóricos, por exemplo, .
as comunidades pedagógicas, as escolas de ginástica; talvez g~a? como Igreja, forma-se ass· cwnalização de uma reli-
também (voltarei ao tema da próxima vez) em certas formas rapidamente, pelo menos em s:f::'e devo diZer que muito
de direção de consciência. Poder-se-ia ver, senão a colocação positivo de poder que não ces s linhas mestras, um dis-
explícita do tema do pastor, pelo menos um certo número de aperfeiçoar durante quinze s, s~u de se desenvolver e de se
configurações, um certo número de técnicas e também um los II; lli depois de Jesus Cris~cu ~s: digamos desde os sécu-
certo número de reflexões que permitiram que, posterior- era. Esse poder pastoral total;, a te o século XVIII da nossa
mente, o tema do pastorado, de importação oriental, se di- ':_ma religião como IgreJa, a relie;~ hgad_o à organização de
fundisse em todo o mundo helênico. Em todo caso não é, ta, esse poder pastoral or cert 81 cnsta como Igreja crts-
creio eu, no grande pensamento político que vocês encon- velmente no curso defses o tran~formou-se considera-
trariam verdadeiramente a análise positiva do poder a partir por certo foi deslocado des~~m~e sdeculos de história. Ele
da forma do pastorado e da relação pastor-rebanho. grado a formas diversas' m m ra o, transformado inte
ra mente abohdo. · 'asnofundo nunca IOJ
E, quand <· ' -
verdadei-
Assim sendo, creio que podemos dizer o seguinte: a
verdadeira história do pastorado, como foco de um tipo es- como sendo o fim da o eu me coloco no século
era pastoral é •
xvm
pecífico de poder sobre os homens, a história do pastorado engane, porque de fato o p d , provavel que ainda me
como modelo, como matriz de procedimentos de governo em sua organização em o er pastoral em sua tipologia
dos homens, essa história do pastorado no mundo ociden- der pastora] que se ~xer::~ :odo de fun:ionamento, 0 po~
tal só começa com o cristianismo. E sem dúvida a palavra de que amda não nos lib rt mo poder e sem dúvida algo
Is _ e amos.
"cristianismo" - refiro-me aqui ao que costuma dizer Paul so nao quer dizer que o d
Veyne40 - , o termo "cristianismo" não é exato, na verdade necido uma estrutura invariant~oe er pastoral tenha perma-
ele abrange toda uma série de realidades diferentes. Sem dezoJto ou vinte séculos da histó . fix~ a? longo dos quinze,
dúvida seria necessário dizer, se não com maior precisão, mo dizer que esse poder a t :;a cnsta. Pode-se até mes-
gor, a própria profundidade~ or , sua Importância, seu vi-
pelo menos com um pouco mais de exatidão, que o pasto-
rado começa com certo processo que, este sim, é absoluta- pela mtensidade e pela multi ~- s~a Implantação se medem
mente único na história e de que sem dúvida não encontra- tas, descontentamentos lutaf ~C! ~~e das agitações, revol-
mos nenhum exemplo em nenhuma outra civilização: pro- travadas em tomo dele por el, at as, guerras sangrentas
cesso pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se :ela da gnose, que dur~nte sé~~~~r;J;aJ]e". A imensa que-
constituiu como Igreja, isto é, como uma instituição que as- e em grande parte uma ue I Vl lU o cnstianismo"
pira ao governo dos homens em sua vida cotidiana a pre- do poder pastoral. Quem~er~eoa sobre?o modo de exercíci;
texto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na ma, com que direitos para faz past~r. Como, sob que for-
escala não apenas de um grupo definido, não apenas de gado ~ás à gnose, e~tre o asc':tio que? O grande debate, li-
uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade. 9lllaçao da vida monástica sob smo dos anacoretas e are-
Uma religião que aspire assim ao governo cotidiano dos e, nos primeiros séculos d a forma do cenóbio" ainda
homens em sua vida real a pretexto da sua salvação e na es- pastorado. Mas afinal d a nossa era, um assunto [... ]• de
cala da humanidade- é isso a Igreja, e não temos disso ne- , e contas, todas as lutas que perpas-
nhum outro exemplo na história das sociedades. Creio que
... Seguem-se uma d
ou uas palavras .ininteb . .
g:tVeiS.
AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978 199
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
198
saram não apenas a Igreja cristã, mas o mundo cristão, isto
sas grandes revoltas em tomo do asto
direito de ser governado e do dir
ser governado e or
.f
d rado, em tomo do
e• o e saber como se vai
é, todo o mundo ocidental, do século XIII até os séculos vamente ligadas~ u~~:::'~ todas es_:;as revoltas estão efeti-
XVII-XVlll, todas essas lutas, enfim uma grande parte des-
sas lutas, foram lutas em tomo de e a propósito do poder poder pastoral. Direi que :Jfn"::fdaçao em profundidade do
pastoral. De Wyclif" a Wesley", do século Xlll ao século de tipo feudal sem dúvid~ conhece:~~~t~s, ~ poder político
XVID, todas essas lutas que culminaram nas guerras religio- caso, defrontou com uma séri d o uçoes ou, em todo
sas eram fundamentalmente lutas para saber quem teria liquidando-o de fato e varren~o-~ ~~o~ss?s que acabaram
efetivamente o direito de governar os homens, governar os salvo alguns vestígios. Houve revolu - stona do Ocidente,
homens em sua vida cotidiana, nos detalhes e na materia- c~ houve uma revolução anti astor~oes antifeudrus, nun-
lidade que constituem a existência deles, para saber quem nao passou pelo processo de r~volu -. O pastorado runda
tem esse poder, de quem o recebe, como o exerce, com que na aposentado definitivam t d hiçao,profunda que o te-
N- en e a stona
margem de autonomia para cada um, qual a qualificação ao se trata aqui, é claro d f hi · , .
para os que exercem esse poder, qual o limite da sua juris- torado. Gostaria sirnplesment~ de ~er a stona desse pas-
dição, que recurso se pode ter contra eles, que controle há do pastorado não me parece - fe o servar que essa história
de uns sobre os outros. Tudo isso, essa grande batalha da seria necessário consultar pesso aço aqw uma reserva, pois
pastoralidade perpassou o Ocidente do século Xlll ao sécu- toriadores, não eu-, parece-me asu~ompete:'t:s~ isto é, his-
lo XVID, sem que nunca, afinal, o pastorado tenha sido efe- realmente feita. Fez-se a históriaqd essa hist~na nunca foi
tivamente liquidado. Porque, embora seja verdade que a cas. Fez-se a história das d trin as mstituiçoes eclesiásti-
Reforma foi sem dúvida muito mais uma grande batalha sentações religiosas. Fez-seot~b:s, da~cn;nças, das repre-
pastoral do que uma grande batalha doutrinal, embora seja fazer a história das práticas reli .:: a stona, procurou -se
verdade que o que estava em jogo com a Reforma era a ma- quando as pessoas se confessav~ms'::"o~rus, a saber: como,
neira como o poder pastoral era exercido, o que saiu daRe- a história das técnicas em re adas' . ur;!>"vam, etc. Mas
forma, ou seja, um mundo protestante ou um mundo de sobre essas técnicas pasto;aisga hi 't ~ hi~ona das reflexões
igrejas protestantes e a Contra-Reforma, esses dois mun- mento, da sua aplicação a hi' t' . s %na o seu desenvolvi-
dos, essa série de mundos, não eram mundos sem pastora- sucessivo, a história dos dnere~t~~~ os ~eu a~erfeiçoamento
do. Ao contrário, foi um prodigioso fortalecimento do poder ligados ao exercício do pastorad po e análise e de saber
pastoral que saiu dessa série de agitações e de revoltas que ca foi realmente feito. Contudo, od,espdarec~-~e
e o rmc1oque · tinun-
do ISSO ·
se inicia no século XIII e se estabiliza, grosso modo, nos sé- mo,_ o p~torado não foi simplesmente per b"d cns arus-
culos XVII e XVID. Saiu delas um formidável fortalecimen- mstituiçao necessária não foi sim I ce 1 o como uma
to do pastorado de dois diferentes tipos: o tipo, digamos, um conjunto de pres~rições irnposfa::m;nte pensado c_omo
protestante ou das diferentes seitas protestantes com um concedidos a outros. Na verdade h guns, de pnvilegms
pastorado meticuloso, porém tanto mais meticuloso quan- ~a gigantesca reflexão que logo' seo~~f sobre o pastora~o
to mais flexível era hierarquicamente, e, ao contrário, uma nao apenas · ocou como reflexao
- [... ]*,
' mrus uma vez, sobre as leis e as instituiçoes
Contra-Reforma com um pastorado inteiramente contro-
lado, uma pirãmide hierarquizada, dentro de uma Igreja ca-
tólica fortemente centralizada. Como quer que seja, dessas ,. Segue-se uma palavra inaudível.
grandes revoltas- eu ia dizendo antipastorais, não, des-

,_
200 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
201
mas uma reflexão teórica, uma reflexão que com valor de fi-
to sentido, era pastoral. No enta .
losofia. Não devemos esquecer que foi são Gregório de Na- a relação pastor-rebanho - nto~ duas cmsas. Primeira
zianzo o primeiro a definir essa arte de governar os homens dos aspectos das relações nao era afinal d
múlti Í ' na a mrus. que um'
pelo pastorado como tékhne tekhnôn, epistéme epistemôn, tes entre Deus e os home D p as, complexas, permanen-
#arte das artes", "ciência das ciências" 46 . O que será repetido era outra coisa além de ~~~r· eus era pastor, mas também
depois, até o século XVI11, da forma tradicional que vocês ou se afastava do seu rehanh . era legislador, por exemplo,
conhecem, ars artium, regimen animarum47 : o "regime das al- abandonava -o à própria sort~ ~m movimen.to de cólera e
mas", o "governo das almas", é isso que é ars artium. Ora, organização do povo hebraic. anta na_ histona, como na
essa frase deve ser entendida não apenas como um princí- não era a única das dun' - o, a relaçao pastor-rebanho
pio fundamental, mas também em seu aspecto polémico, . ensoes a única f b
podia perceber as relações entr~ D orma so a qual se
pois o que era a ars artium, a tékhne technôn, a epistéme epis- e principal, não havia entre os heb eus e seu povo. Sepunda,
temôn antes de Gregório de Nazianzo? Era a filosofia. Ou torai propriamente dita No . t . re~s um~ mstituiçao pas-
seja, bem antes dos séculos XVII-XVIll, a ars artium, o que ninguém era pastor em ~ela ~ enor a sociedade hebraica,
no Ocidente cristão tomava o lugar da filosofia não era ou- reis hebraicos (eu lhes lembr~: ~s~~ ~utr.os. Melhor ~da, os
tra filosofia, não era nem mesmo a teologia, era a pastoral. especificamente desi ad a última vez) nao eram
Era aquela arte pela qual se ensinavam as pessoas a gover- com exceção de DaJ"fun~ ~om~ pastores dos homens,
nar os outros, ou pela qual se ensinavam os outros a se dei- Quanto aos outros só foram ~e~r a monarquia davidiana.
xar governar por alguns. Esse jogo do governo de uns pelos ci~amente quando' se tratava de Ifados como pastores pre-
outros, do governo cotidiano, do governo pastoral, foi isso gencia e de mostrar quanto h . enuncrar neles sua negli-
que foi entendido durante quinze séculos como sendo a tre os hebreus, o rei nunca foi ~::r si~o maus pastores. En-
ciência por excelência, a arte de todas as artes, o saber de to- tor sob a sua forma positi dir gna 0 como sendo o pas-
dos os saberes. não há pastor. va, eta, nnediata. Fora de Deus,
Esse saber de todos os saberes, essa arte de governar os Em compensação na Igre ·a . -
homens, creio que se quiséssemos identificar algumas das tr~o, esse tema do p;stor ad J . ~ta, vamos ver, ao con-
suas características poderíamos notar imediatamente o se- nua em relação aos outros n _qumr e certo modo autono-
guinte*: vocês se lembram do que dizíamos da última vez a dimensões ou um dos as ~ctao ser snni?_lesmente uma das
propósito dos hebreus. Deus sabe como para os hebreus, homens. Vai ser a rela ão pfun os da relaçao entre Deus e os
muito mais que para os egípcios, muito mais até que para nas uma ao lado das oçutr damental, essencial, não ape-
as, mas uma r 1 -
os assírios, o tema do pastor era importante, ligado à vida todas as outras; e, em segundo lu e açao que envolve
religiosa, ligado à percepção histórica que o povo hebreu ti- de relação que vai se institucionJ:' vru ser, claro, um tipo
nha de si mesmo. Tudo se desenrolava na forma pastoral, tem as suas leis, as suas re as ar nu~ pastorado que
pois Deus era o pastor e as errâncias do povo judeu eram as procedimentos. Portanto o p~tdr a~ suas tecrucas, os seus
errâncias do rebanho em busca do seu pasto. Tudo, em cer- mo, vai se tomar globalizante a o vru se tomar autõno-
alto a baixo da I . _e vru se tomar específico. De
das nos privil' _greJa, as relaçoes de autoridade são basea-
* M. Foucault acrescenta: é que o que caracteriza a institucionali- egios e, ao mesmo temp t fa
torem relação ao seu rebanho C . t oÍ nas. are s do pas-
zação do pastorado na Igreja cristã é o seguinte: pastor que se sacrifica para tr. nsdo, c aro, e pastor, e é um
azer e volta a Deus o reba-
202 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇtlO
AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
203
nho perdido, que chega a se sacrificar não apenas pelo re- dos pastores. Vocês sabem ~ .
banho em geral, mas por cada uma das ovelhas em particu-
lar. Encontramos aí o tema mosaico, como vocês sabem, do
causaram, se não exatamen{ue ;'tum dos problemas que
uma série de · e ~ e orrna, pelo menos toda
bom pastor que aceita sacrificar todo o seu rebanho para levaram à Refo~!síJ~'::staç?es,_ debates que finalmente
salvar a única ovelha que está em perigo'". Mas o que não colocava o problem d bparoqmas eram compostas J.á se
passava de um tema na literatura mosaica vai se tomar ago- S . a esa erseos dre · '
res. un, respondeu V\}'clif" S. pa s senam os pasto-
ra a pedra angular de toda a organização da Igreja. O pri- a seu modo toda um , : zm, vao responder, cada Uina
'
meiro pastor é, obviamente, Cristo. A epístola aos hebreus vão responder tamb, asenede' . ·
IgreJaS protestantes. Sim,
já dizia: "Deus trouxe de entre os mortos o maior pastor de XVIII" Ao que a I em os )anserustas nos séculos XVII e
ovelhas, Nosso Senhor jesus Cristo."'" Cristo é o pastor. Os padres. não são Pfs;;~;;,~Pz~rá obstinadamente: não, os
apóstolos também são pastores, os pastores que vão visitar publicava um De aroch"". n a em 1788*, Marius Lupus
uns depois dos outros os rebanhos que lhes foram confia- a tese - que na !erd d zzs que contesta fundamentalmente
dos e que, ao fim do seu dia e ao fim da sua vida, quando liar, será por' fim ad a"tic:Í
e numa. atmoStera c
pre• e pos-conci-

virá o temível dia, terão de prestar contas de tudo o que dres são pastores',. rru a em hnhas gerais - de que os pa-
aconteceu com o rebanho. Evangelho de são João, 21, 15- Em todo caso - deix
17: jesus Cristo manda Pedro apascentar seus cordeiros e padres-, pode-se dizer emos em aberto esse problema dos
apascentar suas ovelhas". Os apóstolos são pastores. Os Gisto aos abades e aosq~i~ toda? organiZação da_Igreja, de
bispos são pastores, são os prepostos, os que são postos na apresenta como pastoral E pos, e uma organiZaçao que se
frente para- cito aqui são Cipriano, na Epístola 8- "custo- são dados, quero dize . os poderes que a Igreja detém
dire gregem", "guardar o rebanho"", ou ainda na Epístola 17, tificados como poder r,do ao mesmo tem 0 o
t
. d
P _rganJZa os e jus-
''fovere oves", "cuidar das ovelhas" 52 • No texto que será du- que é o poder sacramentEas or em relaçao ao rebanho. O
rante toda a Idade Média o texto fundamental da pastoral, as ovelhas para 0 rebanha' ~pâder do ba~smo? É chamar
a bíblia do pastorado cristão, por assim dizer, no livro de mento espiritual É d · a comunhao? É dar 0 ali_
Gregório, o Grande, Regula pastora/is (A regra da vida pasto- lhas que se desgarrara d
· po er pelap "t' · ·
em encra, remtegrar as ove-
ra[)*, editado com freqüência e que às vezes é chamado de também é Uin poder dm o rebanho. O poder de jurisdição
Liber pastora/is (Livro pastora[)", Gregório, o Grande, chama dição que permite que eop~:stor. É, de fato, o poder de juris-
regularmente o bispo de "pastor". Os abades à frente das co- expulse, do rebanho a ovelh~o, por exemplo, como pastor,
munidades são considerados pastores. Reportem-se às Re- seu escandalo, seja capaz d que, por sua doença ou por
gras fundamentais de são Bento". poder religioso é portant e co~tammar todo o rebanho. O
Resta enfim o problema, ou antes, abre-se o problema Enfim, caracteristi o o po er pastoral.
de saber se, quando o cristianismo estabelece a organização mental: esse poder gl~~~olutamente essencial e funda-
das paróquias e a territorialidade precisa das paróquias no longo do cristianismo, distin~~t~ pastoral pe.rrnaneceu, ao
decorrer da Idade Média", podem os padres ser considera- quer dizer que o poder reli . o poder politico. Isso não
tarefa outra coisa senão g:wso nunca tenha se dado como
encarregar-se das almas dos indiví-
,.. M. Foucault cita o título no plural: Regulae pastoralis vitae, As re-
gras da vida pastoral 'M.F.o 1798
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 15 DE FEVERElRO DE 1978 205
204
, . der pastoral - é essa uma das suas tipo de funcionamento, em sua tecnologia interna, o poder
duos. Ao contrano, o po . bre a qual tomarei da pró- pastoral vai permanecer absolutamente especifico e dife-
características fundamentais, sod os - só se encarrega da rente do poder político, pelo menos até o século XVIll. Ele
. w um dos seus para ox - d não funciona da mesma maneira, e ainda que sejam os mes-
XJma vez ~ e . , edida em que essa conduçao as
alma dos m?JVIduos ;._au~a intervenção, e uma intervenção mos personagens a exercer o poder pastoral e o poder po-
almas tambem unpli _ tidiana na gestão das VIdas, lítico, e Deus sabe quanto isso se fez no Ocidente cristão,
permanen~e na conduçao co uezas,'nas coisas. Ele diz res- ainda que a Igreja e o Estado, a Igreja e o poder político ti-
mas tambem nos bens: nas ?q as [também] à coletiVI- vessem todas as formas de aliança que se possa imaginar,
peito não a penas ao~ m~VIto~~'\~~sóstomo que diz que o creio que essa especificidade foi um traço absolutamente
dade, e é um texto e sao s oisas o bispo deve ter rni1 característico do Ocidente cristão.
bispo deve zelar !Cor ~odas a ~esm~nte se encarregar dos Segunda observação: a própria razão dessa distinção é

indivíduos, mas de to] a :c'


olhares, porque nao deve s'.f~e e finalmente- isso está no

De sacerdotio" - [do ar zsderra1


a rum [do] mundo inteiro. É
e: sem dúvida um poder
um grande problema histórico e, pelo menos para mim, um
enigma. Em todo caso, não tenho em absoluto a pretensão
de resolvê-lo nem mesmo de colocar as dimensões comple-
ade po erque , ' xas do problema agora, e, aliás, nem tampouco da próxima
portanto uma form . 0 além. No entanto, apesar
terrestre, apesar de ter por fimdental- deixemos de lado a vez. Como é que esses dois tipos de poder, o poder político
disso, sempre foi na IgreJa ocz t di tinto do poder [po- e o poder pastoral, conservaram assim a sua especificidade
. . tal um poder totalmen e s e a sua fisionomia próprias? É um problema. Tenho a im-
IgreJa onen : . , , . ouvir essa separação ecoar
lítico]*. Sem duVIda, e necessano . ·ano a santo Ambrósio, pressão de que, se examinássemos o cristianismo oriental,
já na célebre apóstrofe d_e Val";;~ vemar Milão. Ele o en- teríamos um processo, um desenvolvimento bem diferente,
quando ele enviou Arn~szo pnão ~orno magistrado, mas um entrelaçamento muito mais forte, talvez certa forma de
viou para ~~ema; ao~eio eu vai ser como uma espé- perda de especificidade de um e de outro, sei Já. Uma coisa
como pasto~ . · Adfo rm~a,damentaÍ através de toda a histó-
1
em todo caso me parece evidente: é que, apesar de todas as
cie de pnnopzo, e e! n interferências, a especificidade permaneceu a mesma. O rei,
ria do cristianismo. - Primeiro claro, vai haver, aquele mesmo de que Platão buscava a definição, a especi-
Farei aqui duas observaçoes. der político uma sé- ficidade e a essência, o rei continuou sendo rei, ainda que,
entre o poder_Pastor~ da IgreJ~: ~Fermediações,toda uma aliás, um certo número de mecanismos de recuperação ou
rie de interferenoas,. e apozos~te sobre os quais não toma- de mecanismos-passarela tenha sido instalado- por exem-
série de conflitos, eVIdenteme ·td bem de modo que o en- plo, a sagração dos reis na França e na Inglaterra, o fato de
rei e que vocês conh;~!;r' '.::':oral e d~ poder político será o rei ter sido por algum tempo considerado um bispo e,
trecruzamento do P ali/ d histórica no Ocidente. Mas
efetivarnente uma ;efu da eental que apesar de todas es-
aliás, sagrado como bispo. Apesar disso tudo, o rei conti-
nuou sendo rei e o pastor continuou sendo pastor. O pas-
. e este" ponto e n de amtodos' esses entrecruzamentos, tor continuou sendo um personagem que exerce seu poder
crel?, . no modo místico, o rei continuou sendo alguém que exer-
sas mterferenczas, apesar di - em sua forma, em seu
esses apoios, essas Interme açoes, cia seu poder no modo imperial. A distinção, a heterogenei-
dade do pastorado crístico e da soberania imperial, essa he-
terogeneidade parece-me [ser] um dos traços do Ocidente.
* M.F.: religioso

L
206 SEGURANÇA TERRITÓRIO POPULAÇÃO AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
207
Mais uma vez, não creio que encontraríamos a mesma coi- terístico do Ocidente. O soberano ocidental é Cés - ,
sa no Oriente. Penso, por exemplo, no livro de Alain Besan- Cnsto. O P_astor ocidental não é César, mas Cristo.ar, nao e
çon, dedicado, já faz agora bem uns quinze anos, ao Tzaré- ~a proxnna vez, procurarei entrar um pouco nessa com-
vitch imolado, no qual ele desenvolve um certo número de paraç~o entre o poder político e o poder pastoral e mostrar
temas religiosos próprios da monarquia, do Império russo, a voces a especificidade desse poder pastoral em sua ró-
em que ele mostra muito bem quanto os temas cristicos es- pna forma, em relação ao poder político. p
tão presentes na soberania política tal como foi, se não efe-
tivamente organizada, pelo menos vivida, percebida, senti-
da em profundidade na sociedade russa antiga, e até mes-
mo na sociedade modema63 .
Eu gostaria simplesmente de citar para vocês um texto
de Gogol com o qual dei outro dia, por puro acaso, no livro
de Siniávski sobre Gogol que acaba de ser publicado". Para
definir o que é o tzar, o que deve ser o tzar - é uma carta a
Jukóvski que data de 1846 -, Gogol evoca o futuro do Impé-
rio russo, evoca o dia em que o Império alcançará sua for-
ma perfeita e a intensidade afetiva que a relação política, a
relação de senhorio entre o soberano e seus súditos requer.
Eis o que ele diz sobre esse Império enfim reconciliado: "O
homem se encherá de [um] amor até então nunca sentido
para com a humanidade inteira. A nós, considerados indi-
vidualmente, nada nos inflamará [com esse] amor. Ele per-
manecerá ideal, quimérico [e] não consumado. Só podem
se penetrar [desse amor] os que têm por regra intangível
amar a todos os homens como a um só homem. Por ter
amado todo o seu reino até o último súdito da última clas-
se e por ter convertido todo o seu reino em seu corpo, so-
frendo, chorando, implorando noite e dia por seu povo in-
feliz, o soberano [o tzar] adquire essa voz onipotente do
amor, a única capaz de se fazer ouvir pela humanidade, a
única capaz de tocar nas feridas sem irritá-las, a única ca-
paz de levar a calma às diferentes classes sociais e a harmo-
nia ao Estado. O povo só se curará verdadeiramente onde o
[César] [tiver consumado] seu destino supremo: ser a ima-
gem na terra Daquele que é Amor.""' Temos aí, creio eu,
uma admirável imagem, uma admirável evocação de um so-
berano cristico. Esse soberano crístico não me parece carac-


AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978 209

cado entre os séculos VIII e X, cujo manuscrito foi publicado pela


NOTAS
primeira vez em 1815 (primeira tradução francesa por L. Botkine,
Le Havre, Lepelletie~; 1877).
4. Trata-se dos fragmentos de um llepi vo.uoii Kai &KatOOÚYr]ç,
atribuídos pela Antiguidade a Arquitas de Tarento, mas certamen-
te apócrifos; escritos em dialeto dório, foram conservados por Es-
tobeu, Florilegium, 43, 129 (~ Anthologion, N, 132, ed. Wachsmuth
& Hense); 43, 132 (135 W-H); 43, 133a e b (136 e 137 W-H); 43,
134 (138 W-H) e 46, 61 (1\T, 5, 61 W-H), in A E. Chaignet, Pytha-
gore et la Philosophie pythagoricienne, contenant /es fragments de Phi-
/olaüs et d'Archytas, Paris, Didier, 1874 (cf. "Omnes et singulatim",
Zoe. cit., DE, 1\1, p. 140, n. *').
5. Sobre os diferentes elementos dessa tradição, cf. infra,
nota 7.
6. O. F. Gruppe, Ueber die Fragmente des Archytas und der iilte-
ren Pythagoreer, Berlim, G. Eichler, 1840, p. 92 (cf. A Delatte, Essai
n Pritzwald, zur Geschichte der sur la politique pythagoricienne [ver nota seguinte], p. 73: "o magis-
1. Segundo K. Stegmann vo . laton Lei zig ("Forschun- trado é identificado a um pastor: essa concepção [de acordo com
Herrscherbeze~chnungen von Horn;' bisIpgie" 7) 1~30 PP· 16-24, a Gruppe] é especificamente judaica" e p. 121, n. 1: "Não sei por
gen zur Vb~er-P~hol~~~eu~n~:~~~ 44 vez~s na Ízíada e 12 ve- que Gruppe (Fragm. des Arch., p. 92) quer ver nessa simples com-
denominaçao m>LJ.I.TJV ),.aro ":Hirt" verbete citado paração [do magistrado com um pastor] uma identificação e, nes-
zes na Odisséia (sekd~ ~hEnf;.,';;::;nÍ 15 1991], col. 580). P. ta, o indício de uma influência hebraica").
[Reallexikon for Anh(Les 'f:Iétaph':es de P~t,;,, ;,. cit., p. 162), recen- 7. A Delatte, Essai sur la politique pythagoricienne, Liege, Vai!-
Lows, por sua vez , d · -·a Cf H Ebeling, ed., Iant-Carmanne, "Bibliothéque de la Faculté de philosophie et lei-
seou 41 referências ~a flrada ;81~n~~ :,'d~sh~~' Olms, 1963, Ires de l'Université de Liége", 1922; reed. Genebra, Slatkine, 1979.
Lexikon Homencum, e~pZig, ·i 8· assinala que a expressão
8. Ibid., p. 121 (a propósito da seguinte passagem: "No que
t. 2, p. 195. W. Jost, Pormen, o~. cr ., pai. ' 0 escudo de Héra- concerne a bem comandar, o verdadeiro magistrado deve ser não
- • regada como titulo re engo em . , apenas sábio e poderoso, mas também humano (<pWiveprom>v).
tambem e emp • rif . . .. foi por muito tempo atnbwdo
eles, 41 (poema apoc o CUJO mtclO Porque seria estranho um pastor odiar seu rebanho ou tratá-lo
mal"): "A comparação do magistrado com um pastor é clássica na
a Hesíodo). . . htu d Dr.chterspruche in indogermanischer
2. R. Schrrutt, Drc ng un literatura política do século IV. Mas esta não é uma fórmula vã
Zeit, Wiesbaden, O. Harrassov;:tz, 1967. eh auf die germanische nem um lugar-comum: justifica-se pela etimologia da palavra
3. Ibid., p. 284: "Langst at man au eowulf-E os in den voJ"Úç, apresentada no fragmento precedente [cf. p. 118: "A Lei
Parallele hingewisen, die ur;s daseal;=~~ft.:- ~v. 610, 1~32, 1849, tem portanto de impregnar os costumes e os hábitos dos cidadãos;
Verbindungen foices htpde ~h·-' 'Hirte des Reiches' (v. 2027, só assim ela os tomará independentes e repartirá entre cada um o
4 2981) und ãhn]ichem nces ,,.e - - que cada um merece e o que lhe cabe. Assim como o Sol, avançan-
~~!o\ bietet." R. Schmitt precisa ~_e e:s:,~~re:~~~ ~,~0 d:.: do no círculo do Zodíaco, distribui a todos os seres terrestres a
conhecida dos povos extenores a are ged) , _ _,.._'Hirte parte de nascimento, de alimento e de vida que lhes cabe, produ-
zeichnet etwa Hammura.bisich selbst ais (akka . re1~;'~~ta 24). zindo a bela mistura das estações como uma eunomia. É por esse
" lkes" (sobre este últuno exemplo, cf. supra,~· . '- difi motivo também que Zeus é chamado de NÓJ.!.I.OÇ e de Nq.c:ifioç, e
d es v o _ ,. . . da ·poca pre-cnstá, mo -

l
Beowulf poema anglo-saxao anonuno e
210 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978
211
que aquele que distribui a comida às ovelhas se chama vo~tiiç. Do 25. lbid., 264a, p. 350.
mesmo modo, dá-se o nome de nómos aos cantos dos citaredos, 26. Ibid., 264b-267c, pp. 350-6,
porque também eles põem ordem na alma, por serem cantados de 27. Ibid., 268a, pp. 356-7.
acordo com uma harmonia, ritmos e metros"]. O autor encontra 28. lbid., 267e-268a, p. 356.
nessa palavra a mesma raiz e a mesma noção que em ôwvÉJlEV, 29. Ibid., 268e-270d, pp. 358-61.
que caracteriza, para ele, a ação da Lei."
9. Isócrates, Aréopagitique, in Discours, t. III, trad. fr. G. Ma- , tual . - ' p · 362·· "[ ···1e• um tempo que nao
30. Ibid. ~ 271c-d - pertence
thieu, Paris, Les Belles Lettres, "Collection des universités de a a . , consti~~a_o do andamento do mundo: também ele per-
tencia a constituiçao anterior".
France", 1942, § 36, p. 72; §55, p. 77; §58, p. 78 (cf. "Omnes et sln-
gulatim", Zoe. cit., p. 141 n. *). 31. Ibid., 27le, p. 363: "[ ... ]A Divindade em pessoa é que era
seu pastor e que presidia à sua vida [.. .]."
10. Cf. Xenofonte, Cyropédie, VIII, 2, 14 e I, 1, 1-3, em que a
identificação do rei com um pastor é claramente designada como - 32._ Ibid. : 'T .. J ora, como esta [a Divindade] era seu astor
nao havta ~ecess1dade de constituição política". P '
sendo de origem persa (referências indicadas por A. DiE~s, in Platon,
Le Politique, Oeuvres wmplétes, t. 9, Paris, Les Belles Lettres, "Col- fí 33 - ~!d., 274c-d, P· 367: "É essa portanto a origem desses be-
lection des universités de France", 1935, p. 19). ne . Cios e que, segundo antigas lendas, os deuses nos fizeram
11. Platão, Crftias, 109b-c. fruir,. acrescentand? ~eles seus ensinamentos e o aprendizado re-
12. Platão, República, l, 343a-345e; III, 416a-b; N, 440d. quendo por suas dadivas: o fogo, dom de Prometeu· as artes d
13. Platão, Leis, V, 735b-e. ~Hefesto e da Deusa que era sua colaboradora· as'sement~s ~~~
14. Platão, Político, 267c-277d. M. Foucault utiliza a tradução , e as plantas, dádivas de outras Divindades; '
de Léon Robin, in Platon, Oeu.vres completes, Paris, Gallimard, "Bi- 34. Ibid., 275b-c, p. 369: "[ ... ] comparada ;om um Rei é ain-
bliothéque de la Pléiade", 1950. da gr~.de demai.s, penso eu, a figura do pastor divino, en~uanto
15. Crftias, 109b-c (cf. trad. fr. L. Robin, O. C., t. 2, p. 529). os políti~os daqw e de agora são, por natureza, muito mais seme-
16. Leis, X, 906b-c, trad. fr. L. Robin, O. C., t. 2, p. 1037: "É lhantes aquel:s de que são chefes, ao mesmo tempo que a cultu-
manifesto, aliás, que na terra vivem homens que têm alma de ani- ra e a educa.çao de que usufruem se aproxima muito mais das de
mais predadores e que estão de posse de injustas aquisições, al- seus subordinados".
mas que, quando, ponrentura, se encontram em face das almas 35. Ibid., 279a-283b, pp. 375-81.
dos cães de guarda ou da alma dos pastores, ou em face da alma 36. Ibid., 303d-305e, pp. 415-9.
dos Amos, que estão no topo da escala, procuram persuadi-las, 37.lbid., 311b, p. 428.
com palavras lisonjeiras e encantamentos mesclados com votos, 38. Ibid., 311c, pp, 428-9: "[... ] uma vez acabado por esta [a
de que a elas é permitido [... } enriquecer-se à custa dos seus se- arte real], tendo em vista a vida comum o mais magnífi d t
melhantes, sem sentir por si mesmas nenhum desagrado." d t "d ' co e o-
os os ect os e o mais excelente; uma vez toda a população do
17. Político, 281d-e, p. 379 (distinção feita pelo Estrangeiro en- Estado, escravos e homens livres envolvida em suas d b
finaliz - [ fi · - ' o ras, essa
tre "causa verdadeira" e "causa adjuvante"). açao a nalizaç~o de um tecido resultante de um correto
18. República,~ 343b-344c, trad. fr. L. Robin, O. C., t 1, pp. 879-81. entrecruzame~to] consiste então, dizia, para a atividade política
19. Ibid., 345c-e, pp. 882-3. em manter ~das por meio desse trançado as duas maneiras d~
20. Político, 260e, pp. 344-5. ser em questao [.. .]".
21. Ibid., 261a-d, pp. 345-6. _39. Ibid., 29?a-b, p. 401: "De fato, como é que poderia haver
22. Ibid., 261d, p. 346. alguem capaz, Socrates, de a cada momento da vida vir sentar-se
23. Ibid., 261e-262a, p. 346. ao Ia?o de cada um para lhe prescrever com exatidão lh
24. Ibid., 262a-263e, pp. 347-9. convem?" o que e

J
-./'.'_
212 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 15 DE FEVEREIRO DE 1978 213

40. Foucault faz alusão a um artigo, "La famille et l'amour tora/e, trad. fr. Ch. MoreL introd. e notas de B. judie, Paris, Cerf,
sous le Haut-Empire ro~ain", A_nnales ES~, ~; 1978, repub~cado m "Sources chrétiennes", 1992, pp. 128-9.
P. Veyne, La Société romame, ~: Le Seuil ( Des travaux ), 1991, 48. a. Lucas 15, 4: "Qual de vós, se tiver cem ovelhas e vier
PP- 88-130, assim como, sem duVIda, a uma palestra sobre o amor a perder urna, não abandonará as outras oitenta e nove no deser-
em Roma, feita por Paul Veyne n~ sua presença, em 1977, no se- to para ir buscar a que se desgarrou, até a encontrar?" (cf. Ezequiel
minário de Georges Duby no College de France, de que ele !h•
ha- 34,4); mesmo texto em Mateus 18, 12; João 10, 11: "Eu sou o bom
pastor, o bom pastor que dá a vida por suas ovelhas." a. também
via voltado a falar (agradeço a P. Veyne por essas informaçoes).
41. Sobre as revoltas de conduta que tr~duzrram, des~e a 10, 15.
Idade Média, uma resistência ao pastorado, cf. mfra, aula de 1. de 49. São Paulo, Epístola aos hebreus 13, 20.
50. João 15, 17: "Depois de desjejuarem, jesus disse a Simão-
março, p. 266. Pedro: 'Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?' Ele
42. a. ibid. lhe respondeu: 'Sim, Senhor, tu sabes que te amo.' Jesus lhe dis-
43. Cf. ibid. . gl' se: 'Apascenta meus cordeiros.' Ele lhe pergunta de novo, pela se-
44 John Wyclif (c. 1324-1384), teólogo e reformador m es,
gunda vez: 'Simão, filho de João, tu me amas?' -'Sim, Senhor, dis-
autor d~ De dominio divino (1376), do De verita;e Scripturae sanctae
se-lhe ele, tu sabes que te amo.' Jesus lhe disse: ~pascenta meus
(1378) e do De ecclesia (1378). Sua doutrina esta na on~em do mo- cordeiros.' Ele lhe pergunta pela terceira vez: 'Simão, filho de João,
vimento dos "lollards", que atacava os costumes ec!esiasticos e re- tu me amas?' Pedro ficou magoado por ele lhe ter perguntado pela
clamava 0 retomo à pobreza. Partidário da separaç~o entre a Igre- terceira vez 'tu me amas?', e respondeu: 'Senhor, tu sabes tudo, tu
.a e 0 Estado, afumava a autonomia da Escntura, mdependente- sabes muito bem que eu te amo.' Jesus lhe disse: 'Apascenta meus
!nente do magistério da Igreja, e rejeitava os sacramentos, sendo cordeiros."'
05 padres, todos iguais, simples difusores do Verbo. Cf. H.~- Wo~~; 51. São Opriano (c. 200-258), Correspondance, texto estabele-
man, John Wyclif, Oxford, 1926, 2 vols.; L. Cristiani, verbete Wyclif '. cido e traduzido para o fr. pelo cônego Bayard, 2: ed., Paris, Les
in Dictionnaire de théologie cathol!que, 1950, t. 15/2, col. 3585-3614, Belles Lettres, "CUF", 1961, t. 1, epístola 8, p. 19: "[ ... ] incumba!
K. B. McFarlane, John Wyclif and the Beginnings of Engltsh Noncon- nobis qui videmur praepositi esse et vice pastorum custodire gre-
Jonnity, Londres, 1952, reed. Harmondsworth, 1972. . gem" ("o cuidado do rebanho cabe a nós, que estamos à sua fren-
45. John Wesley (1703-1791), fundador dos metodistas, uma te aparentemente para conduzi-lo e aunprir a função de pastores").
das principais correntes do m~vimento Reuival of Rel!?'on (o ?•s= 52. Ibid., epístola 17, p. 49: "Quod quidem nostros presbyteri
pertar), que preconizava, no seculo XVlli, a restauraçao da ~e on et diaconi monere debuerant, ut comm.endatas sibi oves foverent
ginal no seio do protestantismo: Cf. G; S. Wakefield, verbete Wes- {...]" ("Eis o que os padres e os diáconos deviam recordar aos nos-
ley'', in Dictionnaire de spmtual!te ascétzque et mystlque, t. 16, 1994, sos fiéis, a fim de fazer prosperar as ovelhas que lhes são confia-
col. 1374-1392. la das [... ]").
46. Gregório de Nazianzo, Discours 1, 3, trad. ~· ). Lap ce, 53. Ou, mais simplesmente, o Pastoral. Gregório, o Grande,
Paris, Cerf ("Sources chrétiennes"), 1978, pp. 110-1: Na_verdade, Regula pastoralis, composta entre setembro de 590 e fevereiro de
parece-me que a arte das artes (téJcJ:ne tekhnôn) e a c1e~cra d~s 591; PL 77, col. 13-128.
·ências (epistéme epistemân) é conduzrr o ser humano, que e o maiS 54. São Bento, Regula sancti Benedicti I A regra de são Bento
~verso e o mais complexo dos seres" (Díscours 2, 16). (século VI), introd., trad. fr. e notas de A de Vogüé, Paris, Cerf,
47. A fórmula aparece nas primeiras linhas do Pastoral de "Sources chrétiennes", 1972. Cf. 2, 7-9, t. II, p. 443: "E o abade
Gregório, o Grande (que conhecia os. Dis~rsos do ~en~ pela deve saber que o pastor arcará com a responsabilidade por todo
tradução latina de Rufino, Apologehca): ars est artium ~egrmen erro que o pai de família vier a constatar em suas ovelhas. Mas, se
animarum" ("o governo das almas é a arte das artes"), Reg/e pas- o pastor pôs todo o seu zelo a serviço de um rebanho turbulento

L J
214 SEGURANÇA, TERRJTÚR/0, POPULAçAO
AUIA DE 15 DE fEVEREIRO DE 1978
215
e desobediente, se ministrou todos os s~s cuidados às asões mal-
sãs dele seu pastor será absolvido no jUIZo do ~enhor... - habent in plebem suam, sed ab episcopo [. .. ] hic enim titulus so-
ss: Sobre a definição canônica das paróqutas, sua f?~~çao a lis episcopis debetur" (citado por B. Dolhagaray, verbete "Curés",
artir do século V e as condições jurídicas da su~ cons~hnçao, ~f. col. 2432, a partir da edição de Veneza, 1789, t. II, p. 314). Os câno-
k Naz verbete "Paroisse"' in Dictionnaire de drott canontque, ~s, nes 55,§ 1 e 519 do novo Código de Direito Canônico, promulga-
ÚbrairÍe Letouzey et Ané, t.VI, 1957, col. 1234-1247. A fo~te ~o;,­ do após o concílio do Vaticano II, precisam claramente a função
diata de M. Foucault, aqui, é o v~rbete d~ B. Dolhagaray, ~ures , pastoral dos párocos ("A paróquia é a COmunidade precisa dos
in Didionnaire de théologie catholzque, Paris. Letouzey et Ane, t. ill, fiéis, que é constituída de maneira estável em cada igreja e cuja
2 1908 col. 2429-2453. . responsabilidade pastoral é confiada ao pároco, como seu pastor
' 5 Cf. B. Dolhagaray, verbete citado, col. 2430, § 1 (a P~ da
6. próprio, sob a autoridade do bispo diocesano"; /10 pároco é o pas-
uestão: "São os padres de insti~ção divina?"): "Uns h~reticos, tor próprio da paróquia que lhe é confiada L]").
ltos presbiterianos, e depois Wyclif, jan Hus, Lutero, Calvmo, ~lei 60. M. Foucault não torna, na aula seguinte, sobre esse as-
quiseram estabelecer que simples padres eram do ~esmo ruve pecto material do regimen animarom.
dos bispos. 0 concílio de Trento condenou esse erro., 61. João Crisóstomo (c. 345-407), IIEPI IEPQ:ENHI, De sacerdo-
57. Ibid., col. 2430-31: "Os sorbonistas dos seculos XIII e tio, composto c. 390 I Sur le sacerdoce, introd., trad. fr. e notas de
XIV e os jansenistas do século XVII queriam estabelecer [... ] que A.-M. Malingrey, Paris, Cerf, "Sources chrétiennes", 1980, parte V!,
'adres eram realmente de instituição di~a, tendo recebtdo cap. 4, titulo, pp. 314-5: "Ao padre é confiada a direção do mundo
dir~tamente de Deus autoridade sobre os fiets~ a ~al ponto que,
05
inteiro [rilç oLKO'U~Vl1çJ e outras missões temíveis"; Patrologia Grae-
tendo sido o padre instituído esposo da sua tgreJa, do mesmo ca, ed.j.-P. Migne, t. XLV!l, 1858, col. 677: "Sacerdotarum terrarum
modo que o bispo o foi da sua catedral, e sendo pastor enc~e- orbi aliisque rebus tremendis praepositum esse."
ado da direção do seu povo no foro interior e no for? e~enor,
~in
62. A frase original não contém a palavra "pastor". Ela se en-
ém podia exercer as funções sagradas numa paroqwa seltl contra na vida de santo Ambrósio por Paulino (Vi ta sancti Ambrosii
a a!:crização do padre. São direitos exclusivos, dtvmos, do paro mediol.anensis episcopi, a Paulino ejus notaria ad beatum Augustinum
quiato, pretendiam eles." ~ ronscnpta), 8, PL 14, col. 29D: "Qui inventus [Ambrósio, até então
58 Ibid., col. 2432, § 3 (questão: "Os padres sao pastores '.lo governador (judex) das províncias do Norte da Itália, havia tentado
sentido .estrito do termo?"): "Com todo rigoz:, es:a ~enommaç~o fugir, para evitar sua eleição para bispo], cum custodiretur a popu-
de pastor convém unicamente aos bispos. Nos pnn:Ipes da I?IeJa lo, missa relatio est ad clementissimum irnperatorem tunc Valenti-
realizam-se as prerrogativas contidas nessa exp~e~sao. Aos btspos nianum, qui surnmo gaudio accepit quod judex a se directus ad sa-
foi confiado, na pessoa dos apósto~os, o P?der dt~o de apascen- cerdotiurn peteretur. Laetabatur etiam Pro bus praefectus, quod ver-
tar o rebanho de Cristo, de instruir os fieiS e re~-los. Os textos bum ejus impleretur in Ambrosio; dixerat enim proficiscenti, rum
evan éticos dão fé disso; os comentadores não hesttam.ne~se P?n- mandata ab eodem darentur, ut mOris est: Vadt; age non ut judex, sed
to· o ~nsino tradicional é unânime. [... ] O povo, ao a~b~ o titu- ut episcopus" (grifos meus; M.S.). Sobre esse episódio, cf. por exem-
lo,de pastor a seus padres, sabe muito bem que eles soo sa~graças plo H. [F.] von Carnpenhausen, Les Péres lahns (orig.: Lateinische
aos bispos e na n;edid~ e~ g~e ~}es permanecem em uruao com Kircherwiiter), Stuttgart, Kohlhammer, c.1960, trad. fr. C. A. Moreau,
eles submetidos a sua Junsdiçao. . . . . 1967; reed. Paris, Le Seui!, "Livre de vie", 1969, pp. 111-2.
, 59. Marius Lupus, De Parochiis ante annum Chr:sti. mzlleszum, 63. A. Besançon, Le Tsaréoitch immolé. La symbolique de la loi
Bergom~ apudV. Antoine, 1788: "Certum est pastonstitulum pa- dans la culture russe, Paris, Plon, 1967, cap. 2: "La relation au sou-
rochis non quadrare; unde et ipsum hodie nunqu~ ~pa:ttt Ec- verain", pp. 80-7; reed. Paris, Payot, 1991.
clesia romana. Per pastores palam intelliguntur soli epiSCopt Paro- 64. A. Siniávski, Dans l'ombre de Gogol, trad. fr. do russo por
chiales presbyterü nequaquarn a Christo Dommo auctontatem G. Nivat, Paris, Le Seuil, "Pierres vives", 1978. Cf. a tradução des-
sa carta (fictícia) de Gogol a )ukóvski, "Sur !e lyrisme de nos poé-

• j
216 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

tes" (Passages choisis demacorrespondance avec mes amis, 1864, Car-


ta X) por ). johannet, in Nicolas Gogol, Oeuvres complétes, Paris, AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
Gallimard, "Bibliotheque de la Plêiade", 1967, pp.1540-1 (sobre o
"grande projeto" místico e político de Gogol, a que essa obra cor-
respondia, cf. a nota do tradutor, p. 1488). Dissidente soviético,
condenado em 1966 a sete anos de campo de concentração por ter . -Análise do pastorado !fim).- Especificidnde do pastorado
publicado, sob o pseudónimo de Abram Tertz, uma viva sátira do cnstao em relação às tradições on'ental e hebraica. - Uma arte
regime (Récits fantastiques, Paris, 1964), André Siniávski (1925- de pvernar ~ h?"'-~s. Seu papel na história da governamen-
1997) vivia em Paris desde 1973. Dans l'ombre de Gogol foi escrito, talzdade. - P~nczpazs características do pastorado cristão do sé-
no essencial, durante sua internação no campo, assim como Une II!
culo ~o secul? ~ (são João Crisóstomo, são Cipriano, santo
voix dans le choeur (Paris, Le Seuil, 1974) e Promenades avec Pouch- ~broszo, Gregono, o Grande, Cassiano, são Bento): (1) a rela-
kine (1976). Foucault havia encontrado Siniávski em junho de çao com a salvação. Uma economia dos méritos e dos deméri-
1977, num evento no teatro Récamier, organizado para protestar tos: (a) o princípio dn responsabilidade analítica· (b) 0 · • ·
dn tra .r-· . . . , pnnapw
contra a visita de Leonid Brejnev à França (cf. a "Cronologia" es- _ ns;<-•e:zaa exaustiva e mstantânea; (c) o prindpio da in-
tabelecida por D. Defert, DE, I, p. 51. Sobre a dissidência soviética, versao sacrijical; (d) o princípio da correspondência alternada.
cf. infra, p. 294, nota 27. (2} ~ r~laçao com a lei: instauração de uma relação de depen-
65. Ibid., trad. fr. Nivat, p. 50. O texto lido por Foucault apre- ~~a mtegr_ai entr~ a avelha e quem a dirige. Uma relação in-
senta alguns acréscimos menores, assinalados entre colchetes, em dr"!dua_I e ~o ~nallZtlda. Diferença entre a apátheia grega e a
relação ao original: "O homem se encherá de amor até então mm- apathe1a mstil. (3) A relação com a verdade: a produção de
ca sentido para com a humanidade inteira. A nós, considerados v~dades ocult~s. Ensznamento pastoral e direção de conscién-
individualmente, nada nos inflamará com esse amor, ele perma- cza .. - Conclusao: uma Jonna de poder absolutamente nova que
necerá ideal, quimérico, não consumado. Só podem dele se pene- assrnala ~aparecimento de modos espedficos de individualiza-
trar os que têm por regra intangível amar a todos os homens como ção. Sua zmportância decisiva para a história do sujeito.
a um só homem. Por ter amado todo o seu reino até o último sú-
dito da última classe e por ter convertido todo o seu reino em seu
corpo, sofrendo, chorando, implorando noite e dia por seu povo Gostaria hoje de terminar com essas histórias de pas-
infeliz, o soberano adquire essa voz onipotente do amor, a única tor e de pastoral, que ;:levem lhes parecer um pouco com_
capaz de se fazer ouvir pela humanidade, a única capaz de tocar pndas demrus e da proxima vez voltar ao problema do go-
nas feridas sem irritá-las, a única capaz de levar a calma às dife- verno; da arte de governar, da governamentalidade a partir
rentes classes sociais e a harmonia ao Estado. O povo só se cura- dos secu~os XVII- XVITI. Vamos liquidar com a pastoral.
rá verdadeiramente onde o monarca consumar seu destino supre-
Da ulhma vez, quando eu havia procurado opor o pas-
mo- ser a imagem na terra Daquele que é Amor."
tor da Bíblia ao te~elão de Platão, o pastor hebraico ao ma-
giStrado grego, nao tinha desejado mostrar que havia de
um lado, um mundo grego ou um mundo greco-rom'ano
que Ignorava inteiramente o tema do pastor e a forma pas-
toral como manerra de dirigir os homens, e que, de outro
lado, tena h~V!do, vmdo de um Oriente mais ou menos pró-
xuno, especialmente da cultura hebraica, o tema, a idéia, a
forma de um poder pastoral que o cristianismo teria adota-
do e 1mposto por bem ou por mal, a partir da teocracia ju-

i
AUlA DE 22 DE FEVE/IEIRO DE 1978 219
SEGURANÇA. TERRJT0RIO, popULAÇÃO
218
rnens, urna arte de segui-los e de empurrá-los passo a pas-
. do eco-romano. Quis sirnple~rnente mos~ so, urna arte que tem a função de encarregar-se dos homens
druca, ao rnun gr -o teria recomdo ao rnode coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a
trar que o pensamento gr~goo~~r olítico e que, se :sse te- cada passo da sua existência. É isso, creio- em todo caso no
lo do pastor para analisar I'. p tiliz'ado tao alta-
, t- frequentemente u ' que diz respeito ao que seria o pano de fundo histórico des-
ma do pastor, que e ao . h ·a sido utilizado na Gré-
rnente valonzado no One~te, a': o de desi ação ritual, sa governarnentalidade de que eu gostaria de falar-, pare-
cia, foi seja nos textos arcatcl?s, a titulara carac~ar certas ce-me que se trata de um fenômeno importante, decisivo e
. b• textos c ass1cos P sem dúvida único na história das sociedades e das civiliza-
seja tarn em nos . bem delimitadas de poder exer-
forrnas_na verdade loc~ e âmbito de toda a cidade, mas ções. Nenhuma civilização, nenhuma sociedade foi mais
cido, nao pelos rnag~stra bos no uru·dades relioiosas, em re- pastoral do que as sociedades cristãs desde o fim do mun-
. divíduos so re com o· do antigo até o nascimento do mundo moderno. E creio
por certos m , . cuidados do corpo, etc. que esse pastorado, esse poder pastoral não pode ser assi-
lações pedagog~cas, nosde mostrar agora é que o pastorad~
O que eu gos~a . . alizou se desenvolveu e foi milado ou confundido com os procedimentos utilizados
cristão, tal com? se mstttucJonr do sêculo III, é de fato bem para submeter os homens a urna lei ou a um soberano. Tam-
pensado essencJalrnentet p~ ada transposição ou con- pouco pode ser assimilado aos métodos empregados para
diferente da pura e sunp esre o~car' corno terna principal- formar as crianças, os adolescentes e os jovens. Tampouco
tinuação do 9ue pudemo~~~. ue 0 pastorado cristão é pode ser assimilado às receitas que são utilizadas para con-
mente hebrruco ou one~t . t ~~a quase essencialmente vencer os homens, persuadi-los, arrastá-los mais ou menos
absolutamente, profun ame~ e, 'á tínhamos identificado. contra a vontade deles. Em suma, o pastorado não coincide
diferente desse terna pastor d que J. nada claro porque o nem com urna política, nem com urna pedagogia, nem com
É bem diferente, antes e rndrus rn 'licado' pelo pen- urna retórica. É urna coisa inteiraruente diferente. É urna arte
terna foi enriquecido, transforma o, coby e é algo total- de governar os homens*, e é por aí, creio, que devemos pro-
. - É bem diferente tarn em, curar a origem, o ponto de formação, de cristalização, o pon-
sarnento cnstao. did q e o pastorado cristão, o terna
ment e novO, na me a em d u1 que não h aVIa. s1'do, to embrionário dessa governamentalidade cuja entrada na
al cristianismo eu ugar - 0 política assinala, em fins do século XVI, séculos XVII-XVIII,
pastor no .viliz ção hebraica _ a toda urna
em absoluto, .o c~so _na Cl eanão encontramos em out:a o limiar do Estado moderno. O Estado moderno nasce, a
imensa rede mstituCJbonal qu irn um deus-pastor, mas nao meu ver, quando a governaruentalidade se torna efetiva-
parte. O Deus dos h e reus e, s ' .me olítico e social dos mente urna prática política calculada e refletida. A pastoral
havia pastores no mtenor do r1~ lu J:r no cristianismo, a cristã parece-me ser o pano de fundo desse processo, es-
hebreus. Portanto,. o p~s~ora!o cZrnpJcada, compacta, red~ tando entendido que há, por um lado, uma imensa distân-
urna rede mstttucwn ;n ' de fato foi coextensiva a cia entre o tema hebraico do pastor e a pastoral cristã e [que]
institucional que pr<;ten a ser, que toda a comunidade do haverá, é claro, outra distância não menos importante, não
Igreja inteira, logo a cnstandad~~ ~ais complicado, institu- menos runpla, entre o governo, a direção pastoral dos indi-
cristianisrno. Portanto, t~rna~ e principalmente, terceira víduos e das comunidades e o desenvolvimento das artes
cionalização _dopastora o. ostaria de insistir, o pastorado
difere_nça, e e russo lue !uagtoda urna arte de conduzir, de
>~- "governar os homens": entre aspas no manuscrito.
no cnsttarusrno deu ug d trolar de manipular os ho-
dirigir, de levar, de gwar, e con '


AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978 221
SEGURANÇA, TEJWTÓRIO, POPULAÇÃO
220
Conferências de Cassiano', as Instituições cenobíticas', depois
de governar, a especi?cação de um campo de intervenção as Cartas de são jerônimo' e, enfim, é claro, a Regra de são
olítica a partir dos seculos XVI-XVIT. d Bento, ou as Regras de são Bento', que são o grande texto
p Hoje eu simplesmente gostaria, não, é claro, de estu ar fundador do monasticismo ocidental.
como essa pastoral cristã se formou, como se. mstrtuc!O:~~ [A partir] de alguns elementos extraídos desses textos,
!izou como desenvolvendo-se, não se confundiu, mmto P, . como se apresenta o pastorado? O que especifica, o que
contrário, ~om um poder p~lític_?, apesar de to~a ~ma sen~ distingue o pastorado, tanto da magistratirra grega quanto
de interferências e de interligaçoes. Portanto nao e_ pr_opna do tema hebraico do pastor, do bom pastor? Se tomarmos
mente a história da pastoral, do poder_ pastoral cnstao que
uero fazer (seria ridículo querer faze-lo, [dado] por
~do o meu nível de competência e, por outro: o tempo e
u: o pastorado em sua definição de certo modo abstrata, geral,
totalmente teórica, veremos que ele está relacionado com
trés coisas. O pastorado está relacionado com a salvação,
staria simplesmente de assmalar al~ns pois tem por objetivo essencial, fundamental, conduzir os
que disponho) · Go · ' · prati
dos traços que foram desenhados, desde o mJ~lO, na t ral indivíduos ou, em todo caso, permitir que os indivíduos
ca e na reflexão que sempre acompanhou a pratica pas o avancem e progridam no caminho da salvação. Verdade para
e que, creio, nunca se apagaram. dim t elementar, os indivíduos, verdade também para a comunidade. Portan-
Para fazer esse esboço vago, ru en ar, _ to ele guia os indivíduos e a comunidade pela vereda da
vou recorrer a alguns textos antigos, textos que datam gros salvação. Em segundo lugar, o pastorado está relacionado
'culo m ao século VI e que redefinem o pasto- com a lei, já que, precisamente para que os indivíduos e as
so modo do Se ,. · · " que a
rado seja nas comunidades de fieJS, nas IgreJaS -da comunidades possam alcançar sua salvação, deve zelar por
I e·~, no fundo, só veio a existir relativamente tar e-, cer~ que eles se submetam efetivamente ao que é ordem, man-
gr l , de textos essencialmente oCJdenta.Js, o': te~o damento, vontade de Deus. Enfim, em terceiro lugar, o pas-
to numer0 . - · nde influen- torado está relacionado com a verdade, já que no cristia-
orientais que tiveram grande unportanCJa, gra . -
. OCI'dente como por exemplo o De sacerdotto 2de sao nismo, como em todas as religiões de escritura, só se pode
aa no 1
c· . oca-
de sao 1pniffia~o ' . . _
-
alcançar a salvação e submeter-se à lei com a condição de
Joa'o Crisóstomo'. Tomarei as, Cartas
. . ti'tulado De o CllS mmzs aceitar, de crer, de professar certa verdade. Relação com a
pita! tratado de santo ArnbrosJo m . . ' de
trorum (os encargos, os ofícios dos rrurustros)_ etilizoteaxtdooem salvação, relação com a lei, relação com a verdade. O pas-
Gregório 0 Grand e, Lz.ber pas tora lzs'* ' que sera u lí b- . tor guia para a salvação, prescreve a Lei, ensina a verdade.
.d ~té o fim do século xvn como o texto, o vro as!- Ê certo que, se o pastorado fosse apenas isso e se fos-
~~~ ;astoral cristã. Tomarei também alguns texto~ que se se possível descrevê-lo de maneira suficiente a partir disso
referem precisamente a uma forma de, certo mo o m;: e apenas nesse nível, o pastorado cristão não teria absolu-
densa mais intensa de pastoral, a que e aplica_da no mdas tamente nenhuma espécie de especificidade nem de origi-
. n'ão das i ·as ou das comunidades de fieis: mas nalidade, porque, afinal de contas, guiar, prescrever, ensi-
~~~unidades ~násticas, o texto de Uoão] CassianO: que, nar, salvar, exortar, educar, estabelecer o objetivo comum,
no fundo transmitiu ao Ocidente as pnmerras expenenCias formular a lei geral, fixar nos espíritos, propor-lhes ou im-
de vida dornunitária nos monastérios orientru.s, ou seJa, as por-lhes opiniões verdadeiras e retas, é o que faz qualquer
poder. e a definição que seria dada assim do pastorado não
seria em absoluto distante, seria exatamente do mesmo
"' M.F.: Regulae pastoralis vitae. Mesmo titulo no manuscrito.
222 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
223
tipo, seria isomorfa ã definição das_funções da ci~ade ou
dos magistrados da czdade de_ Platao. P~rtanto nao creiO com~dade. Temos portanto em tudo isso uma espécie de
que seja a relação com a salvaçao~ a relaçao com a lez, a re- r;laçao global, comurudade de destino, responsabilidade re-
lação com a verdade, tomadas assrm, sob essa forma global, czproca ~ntre a comunidade e quem é encarregado dela.
que caracterizam precisamente, que assmalam a e~pe~ificz­ C;e10 que no pastorado cristão existe também toda
dade do pastorado cristão. !'la verdade, cr';lo que nao e por- uma sene de relações de reciprocidade entre o pastor e as
tanto no plano dessa relaçao com esses tres ele~entos fun- ovelhas, o pastor e o rebanho, mas essa relação é muito mais
damentais- salvação, lei e verdade- que se define o pasto- complexa, muito mais elaborada do que essa espécie de re-
rado. Ele se define, quer dizer, ele se espeafica pelo menos apr-:odade global [de q':e] acabo de lhes [falar]. O pastor
num outro plano, e é o que procurarei u;es mostrar, agora. cnstao e suas ovelhas estão ligados entre si por relações de
Tomemos primeiramente a salvaçao .. <:;omo e que o responsabilidade de _extrema tenuidade e complexidade.
pastorado cristão pretende conduzrr_ os mdzVJduos na vere- Procuremos. zdentific";-las. Essas relações não globais são
da da salvação? Consideremos a cozsa em sua forma mrus antes de mrus nada.- e sua pnmerra característica- integral
geral, mais banal. É um traço comum à cidade grega e ao e paradoxalmente distnbutivas. Aqui também, vocês vão ver,
tema hebraico do rebanho o de que certa comurudade de nao estamos mmto longe do tema hebraico do pastor nem
destino envolve o povo e aquele que é seu chefe ou ~ma. Se mesmo das conotações que encontramos em Platão, mas é
0 chefe deixa seu rebanho se desgarrar ou se o mag~strado
preczso avançar progressivamente. Bom, integral e parado-
não dirige bem a cidade, ele perde a cidade, ou o pastor xalmente distnbutivas quer dizer o quê? Integralmente quer
perde o rebanho, mas eles se perdem junto. Eles se salvam dJZer o segmnte: que o p~stor deve assegurar a salvação de
com eles, eles se perdem com eles. Essa comurudade de des- todos. Assegurar a salvaçao de todos quer dizer duas coisas
tino - tema que também se enco~tra entre os gregos e os que devem precisamente estar ligadas: de um lado, ele deve
hebreus- se justifica por uma especze de reapr_?czdade mo- assegurar a salvaçao de todos, isto é, de toda a comunida-
ral, no sentido de que, quando as desgraças vem se abater de,_ da comunidade em seu conjunto, da comunidade como
sobre a cidade, ou quando a fome dispersa o rebanho, quem urudade. NO pastor", d~z Crisóstomo, ''deve se preocupar
é 0 responsável? Em que, em todo caso, se deve buscar a com toda a czdade e ate mesmo com o orbis terrarum."" É
causa, qual foi o ponto a partir do qual essa desgraça se em _certo sentido a salvação de todos, mas é também a sal-
abateu? Há que buscar do lado do pastor, do lado do chefe vaçao ?e cada um. Nenhuma ovelha é indiferente. Nem
ou do soberano. Afinal de contas, a peste de Tebas, vepm, mna ~o deve escapar_ desse movimento, dessa operação de
procurem de onde e!a vem,_ e encontrarão Édipo: o rei: o drreçao e _de conduçao que leva à salvação. A salvação de
chefe, o pastor na propna razz da desgraça da czdade. E, m- cada um e _zmporta,nte em termos absolutos e não apenas
versamente, quando um mau rez, quando um pastor desas- r~lativos;,Sao Gregono nos diZ, no Lzvro pastoral, livro !L ca-
trado se encontra à frente do rebanho ou da czdade, por que pztulo V: Que o pastor tenha compaixão de cada ovelha em
razão isso ocorre? Porque a fortuna, ou o destino, ou a di- particular."'" E na Regra de são Bento, capítulo 27, o abade
vindade, ou Jeová, quiseram punir o povo por sua mgrati- deve mostrar uma extrema solicitude para com cada um
dão ou a cidade por sua injustiça. Ou seja, o mau rez ou o dos mo~ges, para com cada um dos membros da sua comu-
mau pastor têm por razão e justificação, com? aconteci- rudade: Com_ toda a sua sagacidade e seu engenho, ele deve
mentos da história, os pecados ou as faltas da czdade ou da correr para nao perder nenhuma das ovelhas que lhe são
confiadas."" Todos, quer dizer salvar todos, quer dizer sal-

J
I.
-o AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978 225
SEGURANÇA, 'JTI<R]TÓRIO, POPULAÇA
224
V. lt os a encontrar aqui, infinita- toda ovelha que lhe faltar lhe será contada negativamente.
var o todo e cada um. o ":metáfora da romã, a romã que Mas deverá também - é aí que intervém o princípio da res-
mente repetida e_retomada, brepeliz do sumo sacerdote ponsabilidade analitica- prestar contas de todos os atos de
era posta si;n~~licamdn~en~as~omã, sob seu invólucro sóli- cada uma das suas ovelhas, de tudo o que puder ter acon-
em jerusalem. ·A um a , . , feita da singularidade dos tecido a cada uma delas, de tudo de bom e de mau que elas
do, não exclm, ~o ~co_?tr_ano, ~ante uanto a romãt:~. possam ter feito em cada momento. Portanto, já não é sim-
grãos, e cada grao e tao unpo !aJo aradoxalmente dis- plesmente uma responsabilidade que se define por uma
É aí que encontramos, ~ms, ~ado~ente distributivo distribuição numérica e individual, mas por uma distribui-
tributivo do pastorado -~~a~fsalvar o todo implica que é ção qualitativa e factual. O pastor terá de prestar contas,
porque, claro, a necessl a ~ crificar uma ovelha que será interrogado, examinado, dis um texto de são Bento, so-
necessário aceitar, se pre~s~ s~ ovelha que escandaliza, bre tudo o que cada uma das suas ovelhas possa ter feito'".
possa vir a comprome_ter o o o. corromper todo o rebanho E são Cipriano, na Carta 8, dis que no temível dia, "se nós,
a ovelha cuja corrupçao amea~:r eventualmente, excluída, pastores, tivermos nos mostrado negligentes, dir-nos-ão que
deve ser abandonada, de~e I do está aí o paradoxo -, a não buscamos as ovelhas perdidas"- princípio da distribui-
expulsa, etc." Mas, yor ou o a e c;usar tanta preocupação ção numérica- "mas que também não pusemos de volta no
salvação de uma so ovelhda dev banho não há ovelha pela bom caminho as que estavam desgarradas, não enfaixamos
toadetooore' suas patas quebradas e, no entanto, bebíamos do seu leite e
no pastor quan d d todas as suas outras tare-
qual ele não deva, suspen en o banho e tentar trazê-la de tosquiávamos sua lã"". Portanto, antes dessa responsabili-
fas e ocupações, abardonar ou',~ errantes"' eis o problema dade individual, é preciso considerar que o pastor é respon-
volta". "Trazer devo ta as ove ma teórico, mas um proble- sável por cada um e cada uma.
que nã? f01 sunplesmen~ U:,~~e os primeiros séculos do Segundo princípio, também totalmente específico ao
ma pratico, fundament ' . saber o que se fazia dos lap- cristianismo, a que chamarei de princípio da transferência
cristianismo, quando fOI pre~~ e· a". Haveria que abando- exaustiva e instantânea. É que, no dia temível, o pastor de-
si, dos quehaVIam renegado burcá~los onde estavam e onde verá não apenas prestar contas das ovelhas e do que fize-
ná-los definitivamentehoulrt do esse problema do parado- rmn, mas de cada uma, de cada um dos méritos e deméri-
.
h aVIam 'do? Enfim aVIa o I " t tos de cada uma das coisas que uma ovelha fez, tudo isso o
cm . Íhes falei'', porque, de fato, e e Ja es a-
xo do pastor d: que b ado mas até mesmo forrnu- pastor deverá considerar seu ato próprio. O pastor deverá
va presente, nao apenas es oç '. experimentar tudo o que acontece de bom, no exato mo-
lado na Bíblia e nalito;ra~a =!;":,~tividade integral e pa- mento em que esse bem ocorre com uma ovelha, como seu
Ora, a esse pnncrp!O a . ue 0 cristianismo acres- próprio bem. O mal que sucede à ovelha ou que ocorre
radoxal do poder pastoral, crel~oqprincípios absolutamen- através da ovelha ou por causa dela, o pastor deverá consi-
centou, como suplem:nttt qu:nte não encontrávamos an- derá-lo também como acontecendo com ele próprio ou que
te específicos e que a ;ou amde princípio da responsabili- ele mesmo faz. Ele tem portanto de se rejubilar com um jú-
tes. Prime~ro, 0 que c. amar~tor cristão deverá, ao fim do bilo próprio e pessoal com o bem da ovelha, desolar-se ou
dade analitica. Ou seJa, o p contas de todas as ovelhas. arrepender-se ele próprio pelo que se deve à sua ovelha.

J
dia, da vida do mundo,yrestarindividual possibilitará saber São Jerónimo dis isso na Carta 58: "Fazer da salvação dos
Uma distribuição numenca e gou bem de cada ovelha, e outros lucrum ani1'1Ule suae, o beneficio da sua própria alma."'"
se efetivamente ele se encarre
226 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 22 DE FEVEREIRo DE 1978
227
Princípio da transferência exaustiva e instantânea dos mé-
ritos e deméritos da ovelha ao pastor, portanto. expendido [éroge1 não vai e r· I I* ,
saber de pecados tão h o , ~ o- o - a tentação? Será que
Em terceiro lugar, princípio também totalmente espe-
vai expô-lo, precisament':'~~sÍ. ver tao belas pecadoras não
cífico do pastorado cristão, o princípio da inversão do sacri-
menta em que salvará a a1m 'd morte da sua alma no mo-
fício. De fato, se é verdade que o pastor se perde com a sua
ovelha - essa é a forma geral dessa espécie de solidarieda- o problema consiste nisso, é ':,;ssa ~~elha?" Portanto, todo
de global de que lhes falava há pouco -, ele também deve amplamente desde 0 século >a/l."~ ema_ que foi discutido
aplicação desse paradoxo d . -que e precisamente a
se perder por suas ovelhas, e no lugar delas. Ou seja, para são sacrificial que faz a mversao dos valores, a inver-
salvar suas ovelhas, o pastor tem de aceitar morrer. "O pas- go de morrer para salvarque alo pasdtor tenha de aceitar o peri-
tor", escreve são João, "defende as ovelhas contra os lobos e a ma os outros E • ·
as feras. Ele dá sua existência por elas."" O comentário des- te quando houver aceitado m . e precisamen-
tor será salvo. orrer pelos outros que o pas-
se texto fundamental resulta no seguinte: o pastor tem de
estar disposto, no sentido temporal da expressão, a morrer Quarto princípio quarto .
na própria definição do pastor:~an:s~o q_ue encontramos
de morte biológica se as ovelhas estiverem expostas, tem de mos chamar, aqui também de cn~ ao: e o que podería-
defendê-las contra seus inimigos temporais, mas também mática e arbitrári d . , . manerra totalmente esque-
no sentido espiritual, ou seja, o pastor tem de expor sua nada. De fato, se :·ve~d~:'Ci~JO da ;orrespondência alter-
alma pela aima dos outros. Tem de aceitar tomar sobre si o titui o mérito do pastor nã q edo menta das ovelhas cons-
pecado das ovelhas para que as ovelhas não tenham de pa- mérito do pastor não s~ria ;:,~~oemos dizer também que o
gar e de maneira que ele é que pague. De modo que o pas- sem, todas, sempre e perfeita grande ~e. as ovelhas fos-
tor deve, no limite, expor-se à tentação, tomar sobre si tudo do pastor não se deve pelo mente mentonas? O mérito
o que poderia levar à perdição da ovelha se, por essa espé- menos em parte .
que as ovelhas são rebeldes - ao segumte:
cie de transferência, a ovelha se vir libertada tanto da ten- qu<; estão sempre a ponto d~ :~? ~tao ~xpostas ao perigo,
tação como do risco que havia de morrer de morte espiri- fara sua salvação, será precisam~n o menta do pastor, que
tual. Concretamente, esse tema, que certamente parece cessar contra esses perigos b dte o de ter lutado sem
teórico e moral, adquiriu toda a sua atualidade quando se d~, de ter lutado até contr~ s:ca _o as ovelhas desgarra-
colocaram os problemas da direção de consciência, de que sao Bento diz: "Se seus sub di pdropn9 rebanho. Por isso,
vou lhes falar um pouco mais tarde. Na direção de cons- or na ossaomd~ · ~ -
que o pastor será absolvido "4' E . oceis, e entao
ciência, de que se trata, se não de forma global, pelo menos zer também, e de maneir~ i ~ersamente, pode-se di-
de forma parcial? Trata -se do seguinte: aquele que dirige a fraquezas do pastor podem rontribente paradoxal, q_ue as
consciência do outro, aquele que explora os recônditos des- rebanho, assim como as fraquezas d~rr h~ a salvaçao do
sa consciência, aquele a quem se confiam os pecados que triburr para a salvação do ast re a o podem con-
foram cometidos, as tentações a que se está exposto, aque- pastor podem contribuir p or'ruEm que as fraquezas do
le portanto que deve enxergar, constatar, descobrir o mal, ro, o pastor, na medida d~ara a ;; ~ação do rebanho? Oa _
será que não vai, precisamente, ser exposto à tentação, será exemplo do pastor é funda~OS~ialve ' tem de ser perfeito. O
que esse mal que lhe relatam, esse mal de que ele vai aliviar en , essencial para a virtude
'
a consciência do seu dirigido pelo próprio fato de este tê-lo
* M.F.: será que ele não vai ser exposto

)
~-
228 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
229
mérito e a salvaçao d~r;A mão· ue limpa que está sujo
0 _ banho Como dizia são Gregório
0 uma análise em elementos pontuais, mecanismos de trans-
no Livro pastoral, II, [2] · q ela própria limpa e Jm- ferência, procedimentos de inversão, ações de apoio entre
- d e porventura, ser M
nos outros nao ev • d er limpo e impoluto. as, elementos contrários, em suma, toda uma economia de ta-
I ta?"" Logo, o pastor tem e s , limpo e impo- lhada dos méritos e dos deméritos, entre os quais, por fim,
po 0u . - fraquezas, se o pastor e . . .
se pastor nao tem rf . - ele não vru tirar cmsas Deus decidirá. Porque este trunbém é um elemento funda-
luto demais, será que d?e~sa pe :'~a~evação que ele conce- mental: é que, finalmente, essa economia dos méritos e dos
assim como o orgulho. er_a qu_o v•; constituir- cito outra deméritos que o pastor tem de administrar sem parar, essa
• · erfe1çao na =
berá da sua propna P _ G • · _ "será que a eleva- economia não assegura em absoluto, de forma certa e defi-
l
vez o Liber pastora z·s de sao - regono '
. nstituir . ,.
um preClp!CIO nitiva, a salvação nem do pastor nem das ovelhas. Em últi-
Ç . I oncebe nao vru co ,
ão que disso .e ,e c olhos de Deus.?'"'** Logo, e bomrfque . ma instância, a produção da salvação escapa, está inteira-
em que ele crura aos . - e conheça suas impe ez- mente nas mãos de Deus. E quaisquer que sejam a habili-
o pastor te:ma imperfe~oe~~rii~mente aos olhos dos seus dade, o mérito, a virtude ou a santidade do pastor, não é ele
ções, gue nao as oculte p d xplicitrunente, que se hu- que opera nem a salvação das suas ovelhas nem a sua pró-
fiéis. É bom que ele se arrepe~ ~oe numa modéstia que será pria. Em compensação, ele tem de administrar, sem certeza
milhe, para se manter, ele prop ' ma medida em que o terminal, as trajetórias, os circuitos, as reviravoltas do méri-
.fi - ara os fie1s na mes .. to e do demérito. Continuamos dentro do horizonte geral
uma edi caçao p ltar suas fraquezas produzma um
cuidado que tena em ocu . como de um lado as fra- da salvação, mas com um modo de ação totalmente dife-
• dai ,. n onsegumte, ass1m ai - rente, um tipo de intervenção totalmente diferente, outras
escan o . rorlhc fazem o men , "to e asseguram a s vaçao
quezas da~ ove as as faltas ou as fraquezas do pastor maneiras de fazer, outros estilos, técnicas pastorais total-
do pastor, mversrunen~ - das ovelhas e do moVJmen- mente diferentes das que levariam à terra prometida o con-
são um elemento da e I~~~a~s conduz para a salvação. junto do rebanho. Ternos, portanto, destacando-se em rela-
to do processo pelo qua ção ao tema global da salvação, algo de específico no cris-
' ~
Podenrunos
ntinuarme
. d finidrunente ou, em todo
~I tianismo, que eu vou chamar de economia dos dernéritos e
. t co oessaanáli"se das sutilezas do V!ncu o dos méritos.
caso, por mwto emp !h O que eu queria lhes mostrar,
entre o pastor e suas ove as. dessa comunidade, des- Tornem agora o problema da lei. Acho que seria possí-
. . to é que em vez vel fazer uma análise algo semelhante e mostrar que, no
num pnmerro pon ' ' . d salvação e da paz entre
sa reciprocidade global \~~ClÇ~o aelaborando essa relação fundo, o pastor não é de forma alguma o homem da lei ou,
as ovelhas e o past?r: tra. am:te ' uestionada, mas elabo- em todo caso, que o que o caracteriza, o que especifica o
global que nunca ~~~!e;, dentro, ~stá a idéia de que o pas-
pastor, não é em absoluto que ele diz a lei. Muito grosseira-
rando-a, trabalhan'?o pastor ms . ta-o age numa. sutil econo- mente, de maneira esquemática e caricatural, creio que po-
. - f - deríamos dizer o seguinte: o cidadão grego -falo, evidente-
tor cnstao az o que.
mia do mérito e do demen o, uma econorrua que supoe
, "t
mente, do cidadão e não do escravo nem de todos os que se
encontram, por uma razão ou por outra, rninorizados em
relação ao direito da cidadania e aos efeitos da lei -, o cida-
"" M.
** M.F.: . - 0 do pastor é uma escola [uma
II, 1 acrescenta: a perfelça
Foucault
dão grego não se deixa ditigir, no fundo, e não aceita dei-
ou duas palavras imzudíveis] xar-se dirigir, senão por duas coisas: pela lei e pela persua-
são, isto é, pelas injunções da cidade ou pela retórica dos
230 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
231
homens. Eu diria, mais urna vez de maneira bastante gros- ação será sempre conjuntural e . di .
seira, que a categoria geral da obediência não existe entre pósito dos tais lapsi do m VIdual. Vemos isso a pro-
os gregos ou, em todo caso, que há duas esferas, que são tratar todos da rnes~a :,::ir:e:;a:am Deus. Não se deve
distintas e que não são em absoluto da ordem da obediên- lhes urna só medida e a] ' sao C!pnano, aplicando-
cia. Há a esfera do respeito às leis, respeito às decisões da condená -los um trib!~ ~o~denando-os corno poderia
assembléia, respeito às sentenças dos magistrados, enfim, gundo seu caso particular';" E . eve-se tratar cada um se-
respeito às ordens que se dirigem, ou a todos da mesma é homem da lei tambe'm . sse terna, de que o pastor não
' aparece na co -
maneira, ou a alguém em particular, mas em nome de to- coce e constante com o médico O rnpar_aça_o muito pre-
dos. Vocês têm essa zona do respeito e têm a zona, eu ia di- ta] nem primeiramente um "uiz., pasto_r nao e fundamen-
zendo a artimanha, digamos que das ações e dos efeitos in- co que tem de cuidar de ca~a ~essenCialmente um rnédi-
sidiosos: é o conjunto dos procedimentos pelos quais os ho- ma. Vemos isso em toda , a e da doença de cada a]-
mens se deixam levar, persuadir, seduzir por outra pessoa. sã? Gregório, por exernp::~::~d';,~xtos corno este de
São os procedimentos pelos quais o orador, por exemplo, rnetodo não se aplica a todos os h~ rn mesmo e :UUco
convencerá seu auditório, o médico persuadirá seu pacien- rege urna natureza de caráter i a] F rn~ns, porque nao os
te a seguir este ou aquele tratamento, o filósofo persuadirá civos a alguns os procediment.fs' b. ~equenternente são no-
aquele que o consulta a fazer esta ou aquela coisa para al- o pastor pode perfeitamente ter d e~eficos a outros."'" Logo,
cançar a verdade, o domínio de si, etc. São os procedimen- a conhecer as vontades de Deus e ar a conhecer a lei, dar
tos pelos quais o mestre que ensina alguma coisa ao seu dis- homens: ele terá de dar a conh que se ap~carn a todos os
cípulo conseguirá convencê-lo da importância de chegar a da comunidade que se aplicarnece; ':: deCisoes da Igreja ou
esse resultado e dos meios que é preciso empregar para che- comunidade. Mas creio ue o a o os o: membros dessa
gar a ele. Logo, respeitar as leis, deixar-se persuadir por al- tão se individualizou A ~i t ~?do ~e açao do pastor cris-
guém: a lei ou a retórica. tantes do que encontr~os arn hernb nao estamos muito dis-
Já o pastorado cristão, a meu ver, organizou uma coisa . d . nos e reus apesar d li ·-
totalmente diferente, que é estranha, parece-me, à prática JU ruca ser essencialment li ·- ' . e are gJao
foi dito nos textos da Bíblie urna re gJao ~a leJ. Mas sempre
grega, e o que ele organizou é o que poderíamos chamar de individualmente de cada o~~~~e o pastor e aquele que cuida
instância da obediência pura*, a obediência corno tipo de
cada urna, [dispensando]* os ~dq~e zela pela,salvação de
conduta unitária, conduta altamente valorizada e que tem o uma em particular E I - a os necessanos a cada
essencial da sua razão de ser nela mesma. Eis o que quero , . rn re açao a esse te d
dizer: todo o mundo sabe- aqui também, de início, não nos e aquele que cuida cada caso fun - ma, e que o pastor
afastamos muito do que era o terna hebraico - que o cris- za muito mais que o homem dernl . çao do que o caracteri-
, , . a e1, creiO que aJ - di
tianismo não é urna religião da lei; é urna religião da von- que e propno do pastorado . t- . ' em sso, o
tade de Deus, urna religião das vontades de Deus para cada encontra em nenhuma outracn~o - :' ISSO creio que não se
um em particular. Daí, claro, o fato de que o pastor não vai lha com aquele que a diri P e- e qu: a relação da ove-
integral. ge e urna relaçao de dependência
ser o homem da lei, nem mesmo seu representante; sua

"'"obediência pura": entre aspas no manuscrito, p. 15. "'M.F.: tomando


232 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
233
Dependência integral quer dizer, creio eu, três coisas. poderíamos chamar de rovas d .• .
Primeiro, é uma relação de submissão, não a uma lei, não a rrreflexão e da imediatidad T. a boa obediencra, provas da
um princípio de ordem, nem mesmo a uma injunção racio- tórias que foram relatadas ;~r ~os toda uma série de his-
nal ou a alguns princípios ou conclusões extraídos pelara- bítica, e que também encon asszano na !nstituição cena-
zão. É uma relação de submissão de um indivíduo a outro prova da irreflexão tramos na Htstona lausíaca30 a
indivíduo. Isso porque a relação estritamente individual, o assim que uma ordepmor .exdemdplo, que consiste no seguinte·
correlacionamento entre um indivíduo que dirige e um in- diatamente cessar toda eaaaummo
ocu _
ld ..
nge, e e eve zme-
divíduo que é dirigido, é não apenas uma condição mas o ve, interrompê-la no mesrrfoa;ao que atualmente o absor-
princípio mesmo da obediência cristã. E aquele que é diri- sem se perguntar por ue lhe nstante e executar a ordem
gido deve aceitar, deve obedecer, no interior mesmo dessa sena melhor continuarq d~ram essa ordem e se não
relação individual, e por ser uma relação individual. O cris- cita como exemplo des:a :f:,"J:
que estava copiando um text
0 0
a que e~tá dedicado. Ele
de obediencra um noviço
tão se põe nas mãos do seu pastor para as coisas espirituais,
mas também para as coisas materiais e para a vida cotidia- ·
tura, e que mterrompeu a • o,. um texto da Sagrada Escn- ·
na. Aqui também, sem dúvida, os textos cristãos retomam parágrafo ou no fim de co~a, nem mesmo no fim de um
sem cessar um texto dos Salmos que diz: "Quem não é di- uma palavra, mas no m=~e ase, nem mesmo no meio de
rigido cai como uma folha morta."" É verdade para os lei- por terminar a fim de ob d u~a letra, que deixou a letra
gos, mas por certo também é verdade, e de uma maneira vel que lhe haviam dado'; l~er ~ ?rdem mais idiota possí-
muito mais intensa, para os monges. E vemos aqui, neste perfeição da obediência ~ons: em a ),'ova do absurdo. A
caso, a aplicação do princípio fundamental de que, para um dem, não por ela ser razoável o e en;ho edecer a uma or-
cristão, obedecer não é obedecer a uma lei, não é obedecer refa importante mas ao co tr. u por e confiarem uma ta-
a um princípio, não é obedecer em função de um elemento tória infinitamente r~petidando"::to, por s:r absurda. É a his-
racional qualquer, é pôr-se inteiramente na dependência de a ordem de ir regar, bem lon e x~ge Joao, a quem foi dada
alguém por ser alguém. que tinha sido plantada no m!io d s~a cela, uma vara seca
Essa dependência de alguém em relação a alguém na de regar duas vezes por di " G o eserto e que ele tinha
vída monástica é, evidentemente, institucionalizada na re- resceu, mas a santidade de joã raças a zsso a v~a não flo-
lação com o abade, com o superior ou com o mestre de no- gurada. É também a prova do, em compensaçao, foi asse-
viços. Um dos pontos fundamentais da organização da vida mais o mestre é rabugento uo ~estre rabugento. Quanto
cenobítica a partir do século IV foi que todo indivíduo que °
nhecimento, gratidão, qu~( an menos ele mostra reco-
entra numa comunidade monástica é posto nas mãos de al- por sua obediência mais ~ ~eflos el; felicita o discípulo
guém, superior, mestre de noviços, que se encarrega intei- é
meritória. E, enfim princ'; ~ encra " reconhecida como
ramente dele e lhe diz a cada instante o que ele pode fazer. tura da lei, ou seja' ue se t~ ente a celebre prova da rup-
A tal ponto que a perfeição, o mérito de um noviço consis- a ordem é contrárÍaqa tud m de obedecer mesmo quando
te em considerar uma falta qualquer coisa que viesse a fa- É a prova de Lúcio que é c~~ ~e pode s~"- considerado lei.
zer sem ter recebido ordem explícita. A vida inteira deve ser chega a um mosteiro depois ~ a na Hzstona lausíaca. Lúcio
codificada pelo fato de que cada um dos seus episódios, com o filho que lhe restara e ter perdido a mulher, mas
cada um dos seus momentos deve ser comandado, ordena- Fazem Lúcio passar por todau:nme~mo de uns dez anos.
do por alguém. Isso é ilustrado por certo número do que das quais vem esta. você vai af a senefilhde provas, ao fim
. ogar seu o no rio''. E Lú-
234 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
235
cio, por ser uma ordem que ele de:'::e cumpri':: vai efe~~a­
mente afogar o filho no rio. A obedienaa cnsta, .~ obedien- te em sentir-se o último dos homens, em receber ordens de
cia da ovelha a seu pastor é portanto uma obedienCia mte- qualquer.um: em revalidar assim indefinidamente a relação
gral de [um] indivíduo a um indivíduo. Aliás, aquele que de. obedienCia e, principalmente, em renunciar à vontade
obedece, aquele que é submetido à ordem, é chamado de propna. Se! h';'milde não é saber que se pecou muito, ser
subditus, literalmente, aquele que é destinado, dado a outro, humilde nao e srmplesmente aceitar que qualquer um dê
ordens e submeter-se a elas. Ser humilde no fundo · ·
e que se encontra inteiramente à disposição e sob a vontade · aim b ' , e pnn-
deste. É uma relação de servidão integral. Cip ente sa er que toda vontade própria é uma vontade
Em segundo lugar, é uma relação que não é finalizada, rurm. Se, portan!o, a obediência tem um fim, esse fim é um
no sentido de que, quando o grego se confia aos cuzdados estado de obedienCia definido pela renúncia, a renúncia de-
de um médico, de um mestre de ginástica, de um professor ~rutiva a toda vontade própria. A finalidade da obediência
de retórica ou mesmo de um filósofo, é para alcançar certo e mortif!car sua vontade, é fazer que sua vontade como von-
resultado. Esse resultado vai ser o conhecimento de um ofí- t<:,de propn~ morra, isto é, gue não haja outra vontade se-
nao a de nao ter vontade. É. assim que são Bento, no capí-
cio, ou uma perfeição qualquer, ou a cur_a, e a obediência,
em relação a esse resultado, nada ma1s e que a passagem Y
tulo da su'! Repa, paradefirur o que são os bons monges,
diZ. Eles nao Vivem ma1s por seu livre-arbítrio, ambulantes
necessária e nem sempre agradável. Sempre há portanto,
alzeno ;udzcw et zmperio, caminhando sob o juizo e 0 imperium
na obediência grega, ou em todo caso no fato de que ? gre-
de outro, eles sempre desejam que alguém os comande.""
go se submete, num momento dado, à vontade ou as or-
_Havena que explorar tudo isso, porque afinal é impor-
dens de alguém, há um objeto, a saúde, a virtude, a verda-
tantiss!mo tanto no que concerne à moral cristã, na história
de, e uma finalidde, isto é, virá o momento em que essa re-
das zdezas: qu'!fltO no que concerne à própria prática, à ins-
lação de obediência será suspensa e até invertida. Afinal de
tituciOnalizaçao do pastorado cristão, e também a todos os
problemas do q~e se chama de "a carne" no cristianismo.
contas, quando alguém se submete a um professor de filo-
sofia na Grécia é para poder chegar, num m~mento dad?, a Trata-se, como veem,,da diferença que há no sentido que se
ser senhor de si, isto é, a inverter essa relaçao de obedien- deu sucesszvamente a mesma palavra - apátheia -, a a á _
cia e a se tornar seu próprio senhor". Ora, na obediência thez~ a que tende precisamente a obediência. Quando ~m
cristã, não há finalidade, porque aquilo a que_a obediên- disapulo .gre!_;'o vai ter com um mestre de filosofia e se põe
cia cristã leva é o quê? É simplesmente a obedzenCia. Obe- sob sua drreçao; sob seu governo, é para chegar a uma cai-
dece-se para ser obediente, para alcançar um estad<;_* de s~ chamada apatheza, ausência de T;_áthe, ausência de pai-
obediência. Creio que essa noção de estado de o~edienCia xoes: Mas em que conszste essa ausencia de paixões, que
também é algo totalmente novo, totalmente espeafico, que 0
ela szgnifica e em que ela consiste? Não ter paixões é já não
não encontraríamos de forma alguma antes. Dzgamos run- ter paSSIVidade. Quero dizer, é eliminar de si mesmo todos
da que o termo para o qual tende a prática de obediência é esses moVJmentos, todas essas forças, todas essas tempes-
o que se chama de hmruldade, humildade essa que conszs- tades de que você não é senhor e que o expõem assim a ser
escravo SeJa do que acontece em você, seja do que aconte-
ce no seu corpo, seJa eventualmente do que acontece no
* Palavra marcada com um círculo no manuscrito, p. 18. À mar-
gem: "noção importante".
mun~o. A apátheia grega garante o controle de si. E nada
ma~s e, de certo modo, que o inverso do controle de si. Você
236 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇA-o
AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
237
obedece, po~antofue re~unestóica e no último epicurismo,
cia a um certo número de coisas,
renunCia ate, na oso a res do corpo para garantir uma espécie de campo generalizado da obediência que é
aos prazeres da ca_rne e a~stprazs'; o m·verso o negativo, se característico do espaço em que vão se desenvolver as rela-
ções pastorais.
,h · 'theta que e ao- o ' -
a apat eta, apa . ositiva a que se tende e que e
vocês quiserem, dessa cm~~o ue você se toma mestre. A Logo, assim como, a meu ver, a análise, a definição do
o controle de SI. É renun~àda do'! moralistas gregos, greco- pastorado, o havia separado do tema da relação comum e
palavra apátheta,. transnu [vai ad uirir] um sentido total- havia feito aparecer a economia complexa dos méritos e de-
romanos36, ao cnstiarusm?, . q razeres do corpo, aos méritos que circulam, transferem-se e se intercambiam, creio
mente diferente, e a renunci~aa~~e vai ter um efeito to- que, da mesma maneira, em relação ao princípio geral da
prazeres sexurus, aos deseJOS ·smo Nada de páthe, nada de lei, o pastorado faz surgir toda uma prática da submissão do
talmente diferente no cnstiaru · . ti·aru·smo? Quer dizer indivíduo ao indivíduo, sob o signo da lei, é claro, mas fora
. _ dize 0 quê para o cns · do seu campo, numa dependência que nunca teve nenhu-
pa.I.Xoes, quer r . ' sse e oísmo a essa vontade
essencialmente renunCiar a e g . rec,riminar aos pra- ma generalidade, que não garante nenhuma liberdade, que
. - minha E o que se vai não leva a nenhum domínio, nem de si nem dos outros. É
smgular que e a - , . eles tomam passivo - era esse o
zeres da carne, nao ~ que . . t - o ue se recrimina aos um campo de obediência generalizada, fortemente indivi-
tema estóico e inclusive epicunS atran:·aqneles se desenrola dualizado em cada uma das suas manifestações, sempre ins-
d équeaocon, ai tantâneo e limitado, e tal que mesmo os pontos de domínio
prazeres a carne , ' ti .dade individual, pesso ,
uma atividade que ,e uma a ~mo estou diretamente in-
nele presentes ainda são efeitos de obediência.
egoísta. É que o eu, e que eu~ ho de maneira alucinada, Conviria notar, claro - por ser um problema (enfim,
teressado n<;_les e neles mane~~o ~ que é essencial, funda- vou simplesmente indicá-lo)-, que vemos organizar-se ai a
essa afinnaçao do eu como ~ssui Por conseguinte, o páthos
série, ou antes, o par servidão-serviço. A ovelha, a pessoa
mental e o que mrus valor p .. das ráticas da obediên- que é dirigida, deve viver sua relação com o pastor como
que deve ser co_nj~ado por me~o de !na vontade orienta- uma relação de servidão integral. Mas, inversamente, o pas-
cia não é a pruxao, e antes. . a ~onda p~o a apátheia, vai ser tor deve sentir seu encargo de pastor como um serviço, e
da para si mesma, e a ~usen.Cla s~a e q~e não pára de re- um serviço que faz dele o servidor das suas ovelhas. Seria
a vontade que renunaa a Sl me preciso, assim, comparar, opor tudo isso, essa relação de ser-
vidão-serviço, ao que era a concepção grega ou a concepção
nunciar a si mesma37: rescentar também (mas passo
Creio que podenamos a~essa teoria e nessa prática da
romana, por exemplo, do encargo, do o!ficium. Como vocês
rapidamente so~re Isso) que, da no caso o pastor, estão vendo, outro problema fundamental: o problema do
obediência crista, aquele .9ue coma~a:,dar or comandar, eu, isto é, temos aqui, no poder pastoral (tomarei sobre ele
seja ele abade ou bispo, ~ao de~~~nte porJue lhe deram daqui a pouco), um modo de individualização que não ape-
claro, mas deve com~ ~v~~ualificadora do pastor é re-
nas não passa pela afirmação do eu, mas ao contrário im-
plica sua destruição.
ordem de comandar. pr am Ele recusa porque
cusar o pastorado de que o encarrdideg m. que sua recusa se- Enfim, em terceiro lugar - vou ser rápido porque já fa-
- dar mas na me a e lamas disso de outra maneira -, o problema da verdade.
nao
. quer
afinncoman
- de uma' vonta
' d e sm
. guiar' ele tem de renun-
Aqui também, formulada da maneira mais esquemática, a
na a açao
ciar à sua recusa, o bedecer e comandar. De sorte que temos relação do pastorado com a verdade pode se inscrever, se
não tomarmos a coisa em detalhe, numa espécie de curva e

)
238 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
239

de perfil que não a afasta muito do que podia ser o en~in? a cada instante e da maneira menos descontínua possível,
grego. Quero dizer o seguinte: que o pastor, em relaçao ~ s~bre a conduta mtegral, total, das ovelhas. A vida cotidiana
sua comunidade, tem uma tarefa de ensmo. Podemos ate nao deve ser simplesmente, em sua perfeição, em seu mé-
mesmo dizer que é sua tarefa primeira e principal. No DI? nto ou em sua qualidade, o resultado de um ensino geral,
officiis ministrorum, uma das primeiras frases do texto, q~,e e nem mesmo o resultado de um exemplo. A vida cotidiana
de santo Ambrósio, diz: "Episcopz propnum munus docere , o deve ser efetivamente assumida e observada, de sorte que 0
encargo próprio do bispo é ensinar'". O aro~ essa tarefa de pastor deve formar, a partir dessa vida cotidiana das suas
ensino não é uma tarefa unidimensional, nao se trata srm- ovelhas, que ele vigia, um saber perpétuo que será o saber
plesmente de dar determinada lição aos outros: mas de uma do comportamento das pessoas e da sua conduta. São Gre-
coisa mais complicada. O pastor deve ensmar por seu gório diz, a propósito do pastor em geral: "Ao perseguir as
exemplo, por sua própria vida, e aliás o val':r desse exemp~o cmsas celestes, que o pastor não abandone as necessidades
é tão forte que, se ele não dá uma boa hçao com sua pro- do próximo. Que ele nã? perca tampouco o gosto pelas al-
pria vida, o ensino teórico, verbal, que vi~r a ministrar :e turas, condescendendo as necessidades materiais dos seus
verá obscurecido por isso mesmo. No Lzvro pastoral, ~ao ~ . "41 -
pro;amos. E refere~se a sao Paulo, que, diz ele, "por mais
Gregório diz que os pastores que ensinam a boa doutrina extatim, que tenha sz_do na contemplação do invisível, faz
mas dão mau exemplo são mais ou menos como ~astores seu espmto descer ate o leito conjugal. Ele ensina aos espo-
que bebessem a água limpa, mas que, tendo os pes SUJOS, sos a conduta que eles têm o dever de observar em suas re-
corromperiam a água em que fazem beber as ovelhas que lações íntimas." Embora, pela contemplação, são Paulo te-
têm a seu encargo". O pastor também ensina de mane1ra nha penetrado o céu, não excluiu da sua solicitude a cama-
não global, não geral. Ele não ensina da meSII_la manerra todo da dos que permanecem carnais". Temos portanto um ensino
0 mundo, porque os espíritos dos ouvmtes sao como as_ cor- mtegral que 1mplica, ao mesmo tempo, um olhar exaustivo
das de uma cítara, são tensionados diferentemente e nao se do pastor sobre a vida das suas ovelhas.
pode tocá -las da mesma maneira. São Gregório: no Lzber _ O segundo aspecto, muito importante também, é a di-
pastora/is, apresenta trinta e seis manerras bem distintas de reçao de consciência". Vale dizer que o pastor não deve sim-
ensinar conforme o pastor se dirija a pessoas casadas ou plesmente ensin~ a verdade . Ele deve_ dirigir a consciência,
não, a Pessoas ricas ou não, a p~ssoa: doentes ou não,~ pes- e dirigrr a consc1encra quer diZer o que? Aqui também pre-
soas alegres ou tristes'". Tudo 1sso nao nos afasta ~wto do czsam~s volt": ur;> pouquinho atrás. A prática da direção de
que era a concepção tradicional do ensmo. Mas ha a esse conscrencta nao e, no sentido estrito do termo, uma inven-
respeito, creio eu, duas novidad~s ~damentrus que tam- ção cristã. Houve direções de consciência na Antiguidade",
bém caracterizam o pastorado cnstao. mas, enfim, para dizer as coisas muito esquematicamente,
Em primeiro lugar, o fato de que esse en~ino deve ser cre1o que podemos caracterizá-Ias da seguinte maneira. [Pri-
uma direção da conduta cotidiana. Trata-se nao apenas de merro,] na Antiguidade, a direção de consciência é voluntá-
ensinar 0 que se deve saber e o que se deve fazer. Trata-se ria, ou seja, é _quem quer ser dirigido que vai ter com alguém
de ensiná-lo não apenas por princípios gerais, mas por uma e lhe diz: diriJa:me. A tal ponto, aliás, que em suas formas
modulação cotidiana, esse ens~o também ten: de pas~ar prurutivas, e ate em formas tardias, a direção de consciên-
por uma observação, uma vigilancra, uma direçao exercrda cia era paga. A pessoa ia ter com alguém e esse alguém lhe
240 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
241
dizia: aceito dirigir você, mas você vai me dar tal quantia em Em segundo lugar, dir - ·
dinheiro. Os sofistas tinham barracas de direção de cons- tancial. Não se tr~ta d eçao de consciência não é circuns-
ciência nas praças públicas. A consulta era paga. . e responder a um d
uma cnse, ou a uma dificuldad . - a esgraça, ou a
Em segundo lugar, a direção de consciência na Anti- absolutamente permanente , e. A cW:eçao de consciência é
guidade era circunstancial, isto é, ninguém se deixava diri- soa vai ser dirioida d ' e a proposJto de tudo e a pes-
gir a vida inteira e a respeito de todos os aspectos da vida, 1 o- urante toda a VIda Enfim
ugar, o exame de consciência f · . , em terceiro
só quando passava por um mau momento, por um episódio desses instrumentos da dir _que az efetivamente parte*
duro e difícil, é que ia consultar um diretor de consciência. não tem por função asse eçao de. c~msciência, o exame
Você fazia um luto, tinha perdido um filho ou a mulher, ti- compensar de certo mofo"~:o mdiVIduo o controle de si,
nha se arruinado, tinha sido exilado pelo principe, pois bem, em que se encontra em rela ~o a~sse exame a dependência
você ia ver alguém que intervinha, e que intervinha essen- no, a COisa Inversa. Você só ç . diretor. Vru. ser, ao contrá-
cialmente como consolador. Portanto a direção de cons- poder ir dizer ao diret examn;a a sua consciência para
ciência era voluntária, episódica, consoladora, e passava, em sentiu, as tentações ao~~e l~~ ~~~e fez, o que você é, o que
certos momentos, pelo exame de consciência. Ou seja, essa mentos que deixou em s· . metido, os maus pensa-
direção implicava muitas vezes que o diretor dissesse, con- para ancorar melhor aind I, ou seJa' é para me!h or marcar
vidasse, coagisse mesmo, se é que pode haver coação nisso, tro que se faz o exame da a re1aç_~o de dependência ao ou~
o dirigido a examinar sua consciência, a fazer todos os dias, ciência na Antiguidade c] _e ~onsaencia. O exame de cons-
à noite, um exame do que havia feito, das coisas boas ou ass1ca era um · tru
tr.?1e,. aqw. vai ser ao contrário . ms menta de con-
ruins que podia ter feito, do que lhe havia acontecido, em denaa. E o indivíduo vai formarU: mstrumento de depen-
suma, a repassar a existência do dia, ou um fragmento de exame de consciência certo di s~ a cada Instante, pelo
existência, passá-la pelo filtro de um discurso, de modo a fi- e produzir a partir d ' . scurso de verdade. Vai extrair
xar em verdade o que havia acontecido e os méritos, a vir- aquilo através do quee :~ ~~sm~ certa. verdade, que vai ser
tude, os progressos de quem se examinava assim. Mas esse consciência. Vocês estão ven: ~do aqu:Je que dirige sua
exame de consciência, que se inscrevia portanto no interior com a verdade no pastorado cris'i-
e ta_mb_em aqw a relação
da prática da direção de consciência, tinha essencialmente mesmo tipo que podíam ao nao e, em absoluto, do
um objetivo. Era precisamente que a pessoa que se exami- co-romana, [ela é] muitoos ~ncontrar na Antiguidade gre-
nava pudesse assumir o controle de si mesma, tomar-se se- sido esboçado na temática ~':eiüe áambém do que havia
nhora de si, sabendo exatamente o que tinha feito e em que Portanto não e' a rel -e nuca o pastorado.
- ' açaocomasal - -,
ponto estava do seu progresso. Era portanto uma condição çao com a lei, não é a rela - vaçao, nao e a rela-
do controle de si. za fundamentalmente es çao ~om a verdade que caracteri-
Na prática cristã, vamos ter uma direção de consciência O pastorado cristão, ~o :;~;:~~e~te 0 pastorado cristão.
e formas de exame totalmente diferentes. Primeiro, porque que, pegando 0 problema d ai ' _ uma forma de poder
a direção de consciência não é exatamente voluntária. Em ral, vai introduzir no inte . a s vaçao em sua temática ge-
todo caso, nem sempre o é, e nos casos dos monges, por economia, toda uma té norddessa rela~ão global toda uma
cruca e arculaçao, de transferência
exemplo, a direção de consciência é absolutamente obriga- '
tória, não se pode deixar de ter um diretor de consciência.
""M. Foucault acrescenta· desse a!
· arsen , enfim
242 SEGURANÇA, TERRIT0RIO, POPULAÇÃO
AULA DE 22 DE fETIEREIRo DE 1978
243
, . , isso que é seu ponto funda-
de inversão dos mentos, ': e, lei cristianismo, o pastora- tante o equihbrio, o jogo e a circulação dos méritos e dos
mental. Tal como em relaçao a ' 0 · trumento da acei-
- - . . plesmente ser o ms deméritos. Digamos que não é uma individualização de es-
do cristao nao va.J srm _ d 1 . 0 pastorado cristão, de cer- tatuto, mas de identificação analítica. Em segundo lugar, é
tação ou da generalizaçao : ~~ com a lei, vai instaurar um
to modo tangenciando a~el .ç 'ndividual, exaustiva, total e
uma individualização que vai se dar não pela designação,
pela marcação de um lugar hierárquico do individuo. Ela
tipo de relaçãÉo de ~~di=~~~ad~ relação com a lei. E, enfim,
0
não vai se dar, tampouco, pela afirmação de um domínio de
permanente. bem er ristianismo pastor cns- si sobre si, mas por toda uma rede de servidões, que impli-
em relação à verdade, embora o cbora obri~e0 os homens,
ca a servidão geral de todo o mundo em relação a todo o
tão, de fato ensu:e a verdaded e:;;, o pastorado cristão ino-
as ovelhas, a aceitar ~erta ve;a:u~a estrutura, uma técnica,
mundo, e ao mesmo tempo a exclusão do egoísmo como
forma central, nuclear do individuo. É portanto uma indivi-
va absolutamente ao rmpland . sti ação de exame de si
dualização por sujeição. Enfim, em terceiro lugar, é uma in-
ao mesmo tempo de poder, e ~:~e ~erd;de secreta, ver-
e dos outros pela qual certa ve~a aln',a oculta, vai ser o ele-
dividualização que não vai ser adquirida pela relação com
uma verdade reconhecida, [mas] que, ao contrário, vai ser
dade da intenondade, verd~de oder do pastor, pelo qual se
mento pelo qual se exercer~ o ~e ada a relação de obe-
adquirida pela produção de uma verdade interior, secreta e
exercerá a obediência, ~e~ as e ~sará justamente a eco-
oculta. Identificação analítica, sujeição, subjetivação- é isso
que caracteriza os procedimentos de individualização efeti-
diência integral,. e atravdes ?qtus Essas novas relações dos vamente utilizados pelo pastorado cristão e pelas institui-
. d e'ntos e emeno. d -
norma os m , . d b diência absoluta, da pro uçao ções do pastorado cristão. É portanto toda a história dos
méritos e dementas, a o e meu ver constitui o es-
d d cult s é isso que, a ' . . . procedimentos da individualízação humana no Ocidente
das ver a es o a' ifi idade do cnstiamsrno, e que está envolvida na história do pastorado. Digamos ainda
sencial, a originalidade e a :spec cd d
- - lei nao a ver a e. que é a história do sujeito.
não a salvaçao,
. · nao a ' d por um lado' vemos nas-
1- dizen o que, Parece-me que o pastorado esboça, constitui o prelúdio
Terrmnarei en ao . - uma forma de poder absoluta-
cer com o pastorado cnst~o , ta a minha segunda e do que chamei de govemamentalidade, tal como esta vai se
" lambem - sera es desenvolver a partir do século XVI. Ele preludia a governa-
~ente nova. ve_mos s também se esboçar, a meu ve~ .O mentalidade de duas maneiras. Pelos procedimentos pró-
ultima con,clusao -, vemode modos absolutamente especifi- prios do pastorado, por essa maneira, no fundo, de não fa-
que podenamos chan:ar . di .dualização no pastorado zer agir pura e simplesmente o princípio da salvação, o
cos de individualizaçao. A m V1 um modo que é total-
princípio da lei e o princípio da verdade, por todas as espé-
cristão vai se efetuar de a~ordos ~o:ender justamente atra- cies de diagonais que instauram sob a lei, sob a salvação,
mente particular e que pu, e~o ç/o à lei e à verdade. É que, sob a verdade, outros tipos de relações. É por aí portanto
vés do que dizia respeitO a sãoV:ss~ assegurada pelo exer- que o pastorado preludia a govemamentalidade. E preludia
de fato, essa mdiV1dualiz~ç _' vai ser definida pelo estatu- também a govemamentalidade pela constituição tão espe-
cício do poder pastoral, Ja nao nasCJ·mento nem pelo bri- cífica de um sujeito, de um sujeito cujos méritos são identi-
. di 'd 0 emporseu '
to de um m V1 ,:' ' n . tinida de três maneiras. Pri- ficados de maneira analítica, de um sujeito que é sujeitado
lho das suas açoes. Vrud ser de osição que define a cada ins- em redes contínuas de obediência, de um sujeito que é sub-
meiro, por um Jogo de ecomp
jetivado pela extração de verdade que lhe é imposta. Pois
SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
244
NOTAS
· · - típica do sujeito
bem é isso a meu ver, essa constitulçao . d, .
' ' f ue o pastorado sep sem uVJ-
ocidental moderno, que az q hl t, .a do poder nas
da um dos momentos deCISIVOS na s on , com o
sociedades ocidentais. Pronto. Agora term:':a gover-
pastorado. Da próxima vez, vou retomar o
narnentalidade.

1. a. a aula precedente (15 de fevereiro), p. 215, nota 61.


2. São Cipriano, Correspondência, op. cit.
3. Ambrósio de Milão (bispo de Milão de 374 a 397), De ofjiciis
ministrorum, composto em 389. O título exato da obra é De officiis (cf.
santo Ambrósio, Des devoirs, trad. fr. e notas de M. Testard, Paris,
Les Belles Lettres, "CUF", 1984, t. 1, introdução, pp.49-52). M. Fou-
cault utiliza o texto da edição Migne (De officiis ministrorum: Epist.
63 ad Verce/lensem Ecdesiam, PL 16, cal. 23-184).
4. a. supra, p. 213, nota 53.
5. Cassiano, João (c. 360-c. 435), Collationes ... l Conférences, ed.
crítica, trad. fr. e notas de dom E. Pichery, Paris, Cerf ("Sources
chrétiennes"), t. I, 1966; t. II, 1967; t.l!l, 1971. Sobre Cassiano, que
passou vários anos com os monges do Egito e, depois, ordenado
padre em Roma por volta de 415, fundou e dirigiu dois conven-
tos, um de homens, outro de mulheres, na região de Marselha, cf.
o resumo do curso de 1979-1980, "Du gouvemement des vi-
vants", DE, IV, n? 289, pp. 127-8, a propósito da prática da confis-
são (exagoreusis); "Omnes et singulatim", artigo citado, ibid., pp.
144-5, a propósito da obediência (a relação entre o pastor e suas
ovelhas concebida, no cristianismo, como uma relação de depen-
dência individual e completa); "Sexualité et solitude" (1981), ibid.,
n? 295, p. 177; "Le combat de la chasteté" (1982), ibid., n? 312, pp.
295-308 (sobre o espírito de fornicação e a ascese da castidade); o
resumo do curso de 1981-1982, 'Thennéneutique du sujet", ibid.,
246 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 22 DE FEVEREIRo DE 1978

" . 177)· "I.:écriture de soi"


n o 323 p. 364 (mesma referencia dah p. es 'de soi" (1988}, ibid., 247
· ' o 329 416· "Les tec ruqu . d
(1983}, ibid., n. '.P· ' , "t da metáfora do cambista e 16. Esse problema se colocou notadamente, com particular
n? 363, PP· 802-3 (runda a ~r~g~sple~samentos: cf. DE, N, PP· 177
dinheiro aplicada ao exam
amplitude, após as medidas persecutórtas tomadas pelo impera-
dor Decw em 2SO, o qual quena obngar os cidadãos do Império a
participar em seu favor de um ato de culto aos deuses. Numero-
e 364). . d d principalium vihorum re-
6. De institutis coenobwrnm_:ti~soc~obitiques, ed. crítica, trad. sos cristãos, não podendo esquivar a lei, submeteram-se à vonta-
mediis (escrito c. 420-424~ns~ rf ("Sources chrétiennes"), 1965. de imperial, de forma mais ou menos completa (alguns, em vez de
fr. e notas de J.;O. Guy, s,. e Stridonensis), Epistolae, PL 22, realizar o ato idolátrico, se limitaram a um gesto vago ou arranja-
7. São Jeronuno (Hyerommus b urt Paris Les Belles Lettres, ram certificados falsos). Como a maioria deles desejava ser reinte-
col. 325-1224 I Lettres, trad. fr. ). La o ' ' grada à Igreja, duas tendências se enfrentaram no clero: uma fa-
"OJF", t. I-VII, 1949-B196~1..ch I La regle de saint Benoit, op. cit. vorável à indulgência, a outra ao rigorismo (daí o cisma rigorista
8 Regula sanch ene . ) 215 nota 61. de Novaciano em Roma, denunciado por são Cipriano em sua
9. Cf. a aula precedente (15 de fevererrlo ,Ip5. tra'd fr. B. Judie, Carta 69). Aos olhos do episcopado, a reconciliação dos lapsi de-
· , . G de Reo11[a pastora zs, , ' ·
10. Gregono, o r~ . ' o·;,) 96/197: "Sit rector via ser precedida por uma penitência apropriada. Cf. são Cipriano,
Paris, Cerf ("Sou:ces chre~enn:s("Que ::~tor tenha uma com-
1992 1
singulis c~Il!passiOne pro~us
d . .
Liber de lapsis, PL 4, col. 463-494/ De ceux qui ont failli, trad. fr. D.
Gorce, in Textes, Namur, Éd. du So!eiilevant, 1958, pp. 88-92- tex-
aixão proXIma de cad~ um ). ,.. : "Quanta solicitude to a que se refere Foucault, em "Les techniques de soi" (1982), loc.
p 11 La Régie de samt Benozt, t. 2, cap.d27 " 548/549: "De- cit., p. 806, a propósito da exomológesis (confissão pública). a.
deve ter o aba e p~a co . ate et industria currere, ne aliquam e
. d m os excomunga os , PP· d igualmente, sobre esse tema, o curso de 1979-1980, "Du gouver-
bet abbas [... ] onuu sa~~; ("O abade deve [... ] apressar-se com nement des vivants", e o seminário realizado em Louvam em
maio de 1981 (inédito).
ovibus sibi creditiS per a . d; tri.a para não perder nenhuma
toda a sua sagacidade e a su~ m ~; 17. CE. supra, aula de 8 de fevereiro, pp. 172-4.
das ovelhas que lhe são confiadas ) . 18. La Régie de saint Benoft, t. 1, cap. 2, "O que o abade deve
12. llxodo, 28, 34. , . Grande Regula pastora/is, II, ser", p. 451: "[...] ele deve recordar sem cessar que é encarregado
13. Cf. por exemplo ~regono, 0 d 'ordem divina, as ro- de dirigir almas, de que também deverá prestar contas.[ ... ) E deve
. 193· "É ponsso que, segun o a .gnifi. saber que, quando alguém se encarrega de dirigir almas, deve es-
4, trad. ctt., p. . . na vestimenta do padre. O qu: st -
mãs )·untaram-se aos _:mos "d d da fe'? De fato na roma, nume- tar preparado para delas prestar contas. E, sabendo ele que tem ir-
- naoaumae · ' mãos confiados aos seus cuidados, esteja certo de que deverá
cam essas romas, se . - d f didos externamente por uma
- · tenorsao een ,. o
. a unidade da fé protege os v~os_ P -
prestar contas ao Senhor por todas essas almas no dia do juízo,
rosos graos no m ,
mesma casca; tambem asslffi di "dade de méritos mantem Jun- sem falar da sua própria alma, claro". É por isso que o pastor deve
vos da santa Igreja, que uma verst temer
lhe são"o exame por que passará um dia acerca das ovelhas que
confiadas".
tos no seu interior." . ~ g. 'uSe infiel se vai,
14 Cf La Régie de samt Benozt, t. 2'cap. 2 . . 0 todo o reba- 19. São Cipriano, Correspondance, Carta 8, p. 19: "Et cum in-
. . uma ovelha doente contamme , cumbat nobis qui videmur praepositi esse et vice pastorum custo-
que vá'' por temer que !h "' presente em Orígenes, e um
h " Esse tema da ove a neqra: Ja dire gregem, si neglegentes inveniamur, dicetur nobis quod et an-
n o. . atristica
lugar-comum da literan; ~E que U:.Ute o exemplo de ternura do tecessoribus nostris dictum est, qui tam neglegentes praepositi
15. Ibzd., t. 2, cap. . do suas oitenta e nove ovelhas n~ erant_ quoniam 'perditum non requisivimus et errantem non cor-
bom pastor, que, abanbdonande uma só que se tinha desgarrado reximus et daudum non colligavimus et lactem eorum edebamus
h Parte em usca 48) et !anis eorum opertebamur [cf. Ezequiel34, 3]" ("Aliás, o cuida-
montan 4 e Mateus 8' 12' citados supra, p. 213, nota
(cf. Lucasas, ·
do com o rebanho cabe a nós, que estamos à sua frente aparente-
mente para conduzi-lo e exercer a função dos pastores. Dir-nos-ão
248 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978
249
pois, se nos mostramos n~gligentes, o que se di_sse a nossos pre- milhação, elevando-se fora de si ao cimo do poder. Toma -se seme-
decessores, que foram chefes negligentes, que nao fomos em bus- lhante ao anjo apóstata, desdenhando ser um homem semelhan-
ca das ovelhas perdidas, nem pusemos de volta no bom caminho te aos homens."
as que estavam desgarradas, nem enfaixamos suas patas quebra- 26. Cf. ibid., p. ~15: "[ ... ] que, à luz discreta de certos sinais,
das e, no entanto, bebíamos do seu leite e nos cobríamos com a s:us infe~ores tambem possam se dar conta de que seus pastores
sua lã"). sao humildes a seus próprios olhos; assim, verão na autoridade
20. São jerônimo, Epistolae, PL 22, Ep. 58, col. 582: "Si offi- deles uma razão de temer e na humildade deles descobrirão um
cium vis exercere Presbyteri, si Episcopatus, te vel opus, vel forte exemplo".
honor delectat, vive in urbibus et castellis; et aliorum salutem, fac " 27. Cf. são Cipriano, Correspondance, Carta 17 (III, 1), p. 50:
lucrum animae tuae" (trad. fr. cit., t. 3, pp. 78-9: "Se queres exercer [... ] vos ttaque smgulos regtte et consilio ac moderatione vestra
a função de padre, se talvez o episcopado- trabalho ou honra- te secundum di~na praecepta lapsorum animos temperate" ("[ ... ]
for agradável, vive nas cidades e nos castelos; faz da salvação dos dru uma direçao a cada um dos lapsi em particular, e que a sabe-
outros o proveito da tua alma"). dona de vossos conselhos e de vossa ação conduza a alma deles
21. João 10, 11-12: "Eu sou o bom pastor; o bom pastor dá segun~o os pr;ceitos divinos"). Sobre a questão dos lapsi, cf. a in-
sua vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é o pastor e a troduçao do conego Bayard, ibid., pp. XVIII-XIX; cf. também supra
nota 16. '
quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo vir, deixa as ovelhas e
foge, e o lobo se apodera delas e as dispersa" (trad. de La Bible de . 28. Gregório, o Grande, Regula pastora/is, ill, prólogo: "Ut
férusalem). erum I.onge ante nos reverendae memoriae Gregorius Nazanzinus
22. Cf. Gregório, o Grande, Regula pastora/is, II, 5, trad. fr. cit., edocUlt, nonuna eademque cunctis exhortatio congruit, quia nec
p. 203: "[ ... } muitas vezes o coração do pastor, quando sabe das ~ctos par mo rum qualitas astringit. Saepe namque aliis offi-
tentações de outrem, estando a escutá-lo, sofre também a pressão CI~t, q':':ae aliis prosunt" (trad. fr. cit., II, p. 259: "Como antes de
nos expos Gregono de Nazianzo, de venerada memória [cf. Dis-
destas; a água do tanque que lava as multidões se suja. Ficando
cours, 2, 28-331, uma só e mesma exortação não convém a todos
canegada da sujeira dos que nela se lavam, ela perde sua pura
porque nem todos estão submetidos aos mesmos hábitos da vida'
transparência". Cf. LesAnormaux, op. cit., aula de 19 de fevereiro de
O que é útil par~ ~~ muitas vezes é prejudicial aos outros.") .
1975, p. 166, a propósito do problema da "santidade do padre" no
29. No senunano ~e Louvain, "Mal dire, mal faire" (inédito),
exerácio da confissão, tal como os teóricos da pastoral tridentina Foucault md.ica os Proverbies como fonte dessa frase, mas ela não
o analisam. se encontra neles, nem tampouco nos Salmos. A fórmula citada
23. La Regle de saint Benoft, t. 1, cap. 2: "O que o abade deve provavelmente resulta da reunião de duas passagens, segundo o
ser'', p. 443: "[ ...1se o pastor pôs todo o seu zelo a serviço de um texto da Vulgata;, (1) Provérbios, 11, 14: "Ubi non est gubernator,
rebanho turbulento e desobediente, se dispensou todos os seus populus corruet (La Bzble de Jerusalem: "Sem direção, um povo
cuidados às ações malsãs dele, seu pastor será absolvido no juízo s~~?e'"') e (2)..: Isaías 64, 6: "Et cecidimus quasi folium universi"
do Senhor [.. .]". (zbzd.: Todos nos fenecemos como folhas mortas" -literalmente
24. Gregório, o Grande, Regula pastora/is, II, 2: "[ ... ] necesse segundo o texto latino: "nós caímos"). M. Foucault cita de novo es~
est ut esse munda studeat manus, quae diluere serdes curat" (trad. fras~, sem referência precisa, em I:Hennéneutique du sujet. Cours au
fr. cit., I, p. 176: "Cuidará de ser pura, a mão que se dedica a lavar Colle!J',, de France, 1981-1982, ed. por F. Gros, Paris, Gallimard-Le
as imundícies"). Seuil, Hautes Études", 2001, p. 381 [ed. bras.: A hermenêutica do
25. Cf. Gregório, o Grande, Regula pastora/is, II, 6, trad. fr. cit., sujeito, trad. Márcio A da Fonseca e Salma T. Muchail São Paulo
p. 207: "A outorga do poder colocou-o fora da ordem comum, e ele Martins Fontes, 2004]. ' '
crê que também superou todo o mundo pelos méritos da sua vida. . 30. "tÓ A(l'\.)ataK~v I História lausíaca, obra composta por Palá-
[... ] Por um admirável juizo, encontra dentro de si a fossa da hu- dio (c. 363-c. 425), bzspo de Helenópolis de Bitínia (Ásia Menor),

..
250 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 22 DE FEVEREIRO DE 1978 251

considerado de tendência origenista. Depois de passar vários anos 35. La Régie de saint Benoft, cap. 5, "Da obediência dos discí-
com os monges do Egito e da Palestina, publicou em 420 essa co- pulos", PP· 466/467: "Os que são premidos pelo desejo de avançar
letânea de biografias de monges dedtcada a Laust?s. ou Lausus, p~a, a VI~a e~erna a~otam o caminho estreito, de que o Senhor
camareiro-morde Teodósio II (408-450), que constitui uma fonte diz: Estreito e o cammho que leva à vida': não vivendo a seu bel-
importante para o conhecimento do monaquismo antigo; Edições: prazer e _não obedecend': aos seus desejos e aos seus prazeres,
Palladius, Histoire lausiaque (Vies d'ascetes et de Peres du desert), tex- ma~ c~hando sob o jwzo e sob o mando de outrem (ut non suo
to grego, introd. e trad. fr. de A. Lucot, Paris, A. Picard et fils, "Tex- arbztno mv~tes vel desideriis suis et voluptatibus oboedientes, sedam-
tes et Documents pour l'histoire du christianisme", 1912 (com bu!antes alzeno iudido et imperio), pennanecendo nos coenobia, de-
base na edição crítica de Dom Butler, Historia Lausiaca, Cambrid- seJam ter um abade como superior (abbatem sibi praeesse deside-
ge, Cambridge University Press, "Te;cts and Studies" 6, 1904); Pal- rant)." Cf. "'Omnes et singulatim"', loc. cit., pp. 145-6.
lade d'Hélénopolis, Les Moines du desert. Htstotre laustaqu:, trad. fr. 36. Sobre a Jif!culdade de encontrar um equivalente latino
do Carmel de Ia Paix, Paris, Desclée de Brouwer, "Les Peres dans ct: apátheza e o eqwvoco que a tradução por impatientia cria, cf.
la foi", 1981. Cf. R. Draguei, 'THistoire lausiaque, une oeuvre écri- Seneca, Cartas a Lucílio, 9, 2; os padres latinos traduziram a pala-
te dans l'esprit d'Evagre", Revue d'histoire ecclésiastique, 41, 1946, vra por imperturbatio (são Jerónimo, in Jer. 4, proem.) ou, com mais
pp. 321-64, e 42, 1947, pp. 5-49. . freqü~ncia, in:zP.assibil~tas (são Jerónimo, Epistolae, 133, 3; santo
31. Institutions cénobitiques, trad. fr. c1t., IY, 12, pp. 134-6/135- Ago~tinho, CtvttasD~t, 14, 9, 4: "o q_ue os gregos chamam de apa-
7. O texto não precisa qual texto o escriba está copiando. A_ ob~­ ha, cmá8na, CUJO smommo latino so poderia ser impassibilitas").
diência, aqui, responde ao apelo de "quem bate na porta e da o SI- 37. Esse breve desenvolvimento sobre a apátheia não seria
nal [... ] chamando à prece ou a algum trabalho". _ p_?rventura uma crítica implícita às páginas consagradas a essa no-
32. Ibid., IV, 24, pp. 154-6/155-7. João, o Vidente- ab~ Joao Jao_ por P. _Hado~ ~m se,~ artigo "_Exercices spirituels antiques et
- (falecido por volta de 395, após q_uarenta anos de r~clusao :m philosophie chretienne (republicado em Exercices spirituels et
Licópolis) é uma das figuras mais celebres do ~onaqmsmo egtp- Phzlosaphze an~que, Paris~ Études augustiniennes, 1981, pp. 59-74),
cio no século N. A história (pondo em cena Joao Colobos em vez em que _este último, saJientando o papel capital desempenhado
de João de Licópolis) é retomada notadamente nos Apophtegmata pela apatheza na espmtuahdade monastica, traça uma linha de
Patrum (PG 65, col. 204C), com esta modificação importante: a continuidade entre o estoicismo, o neoplatonismo e a doutrina de
vara acaba deitando raízes e dando frutos (cf. ).-0. Guy, Paroles des Eva~o, o Pôntico, e de Doroteu de Gaza (ibid., pp. 70-2)? Sobre
Anciens.Apophtegmes des Peres du désert, Paris, Le Seuil, "Points Sa- a apatheza dos ascetas cristãos, cf. a próxima aula (1? de março),
gesses", 1976, p. 69). . . . , . pp. 171-3.
33. O episódio não se encontra na Hzstona lauszaca; e ~elata­ . _38. Essas primeiras palavras do subtítulo do capítulo I, na
do por Cassiano, Institutions cénobitiques, IV; 27, trad. fr. ctt., PP· ediçao Migne (PL 16, col. 23A), não são retomadas nas edições
162/163, a propósito do abade Patermutus e do seu filho de mto mais recentes, portanto são, ao que tudo indica, devidas ao editor.
anos (frades enviados para esse fim, tiram o rneruno do no, rmpe- A mesma idéia, no entanto, é expressa mais adiante por santo
dindo que "Íosse completamente executada a ordem do ancião, a Ambrósio, De officiis, I, 2, ed. J. Testard, p. 96: "[ ... ] cum iam effu-
que 0 padre já havia satisfeito com sua devo~ã?'~), e se enco.n~~ gere non possimus officium docendi quod nobis refugientibus im-
em diversas coleções de apotegmas. No semmano de Louvam 1a posuit sacerdotii necessitudo" ("{ ... ] assim, não podemos dora-
citado, é a Cassiano que Foucault remete, ao relatar o exemplo de vante esquivar o dever de ensinar, que a contragosto o encargo do
Patermutus. sacerdócio nos impôs").
34. Sobre a função do mestre na cultura greco-romana, cf. 39. Gregório, o Grande, Regula pastora/is, I, 2, trad. fr. cit.,
I:Herméneutique du sujet, ap. cit., aula de 27 de janeiro de 1982, PP· p. 135: "Os pastores bebem uma água lúnpida quando vão à fon-
149-58. te JOrrante da verdade bem entendida. Turvá-la com seus pés é es-
252 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO

tragar, vivendo mal, os esforços do seu santo eshtdo. Sim, as ove-


lhas bebem uma água que pés revolveram quando, em vez de se AULA DE 1~ DE MARÇO DE 1978
apegar às palavras ouvidas, apenas imitam os maus exemplos ofe-
recidos aos seus olhos" (comentário da citação da Escritura tirada
de Ezequiel34, 18-19).
40. Cf. a 3" parte da Regula pastora/is, caps. 24-59. A noção de "conduta".- A crise do pastorado.- As revol-
41. Ibid., II, 5, trad. Ir. cit., p. 197: "Que ele evite, ao se elevar, ;s de condut~ ':o c~mpo do pastorado. - O deslocamento das
ser desatento às misérias do próximo e, fazendo-se próximo das .o~as. ~e reszstencza, na época moderna, para os confins das
misérias do próximo, abandonar as altas aspirações." mstitwçoes pol~~cas: exemplos do exército, das sociedades se-
42. Ibid.: "Vejam: Paulo é conduzido ao paraíso, penetra os cretas, da medzcma. - Problema de vocabulário· "rev lt d
conduta"I "'znsu bm'tssao - "' "dissidência" "contracondutas"
. o as Ase
segredos do terceiro céu, mas, apesar de deslumbrado com essa
contemplação das realidades invisíveis, dirige o olhar da sua alma cr:rztracondutas pastorais. Recapitulaçã~ histórica: (a) o ;sce-
para a câmara em que repousam humildes seres de carne e indi- tismo; (b) as comunidades; (c) a mística· (d) a Escritura· ')
crr>nr t I, . I I \e a
ca-lhes como se comportar em sua vida íntima." -~'""ra I:Sca o ogzca. - Conclusão: desafios da referência à no-
43. A prática cristã da direção de consciência já havia sido ob- ç~o de poder pastoral" para uma análise dos modos de exerd-
jeto da atenção de M. Foucault em Les Anormaux, op. cit., aulas de czo do poder em geral.
19 de fevereiro de 1975, pp. 170 ss., e de 26 de fevereiro, pp. 187
ss., mas num outro âmbito cronológico- os séculos XVI-XVII- e
numa outra perspectiva de análise - o aparecimento do "corpo de Bom, da última vez, falei um pouco do pastorado e da
desejo e de prazer" no cerne das práticas penitenciais. Como pre- especificida~e do pastorado. Por que lhes falei disso e tão
cisa D. Defert, em sua "Cronologia", ele estava trabalhando, em longamente. Digamos que por duas razões. A primeira foi
janeiro de 1978, no segundo volume da Histoire de la sexualité, que para procurar lhes mostrar- o que na certa não lhes asso
devia reconstihrir "uma genealogia da concupiscência através da despercebido- 9u: não existe moral judaico-cristã*; fa mo~
prática da confissão no cristianismo ocidental e da direção de
ral JUdmco-c;nsta] e uma unidade factícia. A se nda é ue
s: de fato han~ socied~de ocidentais modem~ uma r~la~
consciência, tal como se desenvolve a partir do concílio de Trento"
(DE, I, p. 53). Esse manuscrito foi destruido posteriormente.
44. Sobre a direção de consciência na Antiguidade, cf. P. Rab- çao entre religiao e politica, essa relação talvez não asse
bow, Seelenführung. Methodik der Exerzitien in der Antike, Munique, essencialmente pelo jogo entre Igreja e Estado, mas s~ en-
Kosel, 1954. M. Foucault sem dúvida já tinha lido também a obra tre o pastorado e o governo. Em outras palavras, o proble-
de L Hadot, Seneca und die grieschisch-romisch Tradition der Seelen- ma ~da?'ental, pelo menos na Europa modema, sem dú-
leitung, Berlim, Walter De Gruyter & Co., 1969, que ele cita em vrda nao e o papa e o liDperador, seria antes esse persona-
1984 em Le Souci de sai [O cuidado de si) (Histoire de la sexualité, t. ge~ nusto ou esses dois personagens que recebem em nos-
III, Paris, Gallimard, "Bibliotheque des histoires", 1984). Foucault sa ngua, em outras também aliás, um só e mesmo nome:
retomará sobre essa comparação das práticas antiga e cristã da di-
reção de consciência no curso "Du gouvemement des vivants", nurustro. É o mrnistro, na própria equivocidade do termo,
aulas de 12, 19 e 26 de março de 1980, e em I:Hennéneutique du su- que talvez SeJ~ o verdadeiro problema, ali onde se situa real-
jei, aulas de 3 de março de 1982, pp. 345-8, e 10 de março, p. 390. mente a relaçao da religião com a política, do governo com

. "' ~gue-se uma frase quase inteiramente inaudível: noção [ 1


antt-senuta. ...
M. Foucault acrescenta: não há portanto moral judaico-cristã
254 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE r DE MARÇO DE 1978
255
o pastorado. Foi por isso, portanto, que insisti um pouco no
tema do pastorado. · que em francês somos beneficiários ou somos vítimas como
Eu havia procurado lhes mostrar que o pastorado cons- vocês preferirem, temos a vantagem ou a desvantagem de
tituía um conjunto de técnicas e de procedimentos de que possurr urna palavra cuja equivocidade é, apesar de tudo,
eu havia simplesmente indicado alguns elementos funda- bastante mteressante para traduzir essa economia das al-
mentais. Oaro, essas técnicas vão bem além do que eu pude mas. Ess~ palavra [que], aliás, em seu sentido ambíguo, é de
indicar a vocês. Ora, o que de passagem eu gostaria de as- mtroduçao relativamente recente, só a encontramos nos
sinalar já, de maneira a poder ret?m~ esse ponto mrus adian- d?is sentidos d~ CjUe vo~ lhes falar agora, a partir do fi~ do
te, é que a esse conjunto de tecmcas e de procedimentos seculo XVII- [IniCIO doJ seculo xvm- poderíamos buscar ci-
que caracterizam o pastorado, o~ gregos, os padre; !7egos tações em Montaigne' -,é evidentemente a palavra "con-
e muito precisamente, são Gregono de Naz~anzo Ja tinham duta". Pois, afinal de contas, esta palavra- "conduta"- sere-
dado um nome, um nome notável, já que [Gregório] cha- fere a duas coisas. A conduta~' de fato, a atividade que con-
mava isso, o pastorado, de oikonomía psykhôn, isto é, econo- Siste ;m conduz.rr, a conduçao, se vocês quiserem, mas é
mia das almas'. Ou seja, essa noção grega de economia que tambem a manetra como uma pessoa se conduz, a manei-
encontrávamos em Aristóteles' e que designava, naquele mo- ra como se deixa conduzir, a maneira como é conduzida e
mento, a gestão particular da _família, d~s bens da família, como, afinal de contas, ela se comporta sob o efeito de uma
das riquezas da fanu1ia, a gestao, a direça? dos escravos, da conduta que seria ato de conduta ou de condução. Condu-
mulher, dos filhos, eventualmente a gestao.: o management, ta das almas, creio que é assim que talvez pudéssemos tra-
se vocês preferirem, da clientela, essa noçao de econonua duzrr _menos mal essa oikonomía psykhôn de que falava são
adquire com o pastorado uma dimensão e um 5ampo de re- Gregono de Naz~anzo, e penso que essa noção de conduta,
ferências totalmente diferentes. Outra dunensao, Ja que, em com o campo que ela abarca, é sem dúvida um dos elemen-
relação a essa economia fundamentalmente farníl.iar- ofkos tos fundamentais introduzidos pelo pastorado cristão na
sociedade ocidental.
é o hábitat- entre os gregos, [a economia das almas] vai ~d­
quirir agora as dimensões, se não da humamdade mterra, Dito isso, gostaria agora de tentar mostrar um pouco
pelo menos da cristandade inteira. A economia d_as almas como se abriu a crise do pastorado e como o pastorado pôde
deve incidir sobre a comumdade de todos os cnstaos e so- de certo modo explodir, dispersar-se e adquirir a dimensão
bre cada cristão em particular. Mudança de dimensão, mu- da governamentalidade, ou ainda, como o problema do go-
dança de referências também, pois vai se tratar não apenas verno, da governam:_ntalidade pôde se colocar <I partir do
da prosperidade e da riqueza da família ou da casa, mas ~a pastorado. Oaro, serao apenas algumas sinalizações, algu-
salvação das almas. Todas essas mudanças, a meu ver, sao mas sondagens muito descontínuas. Não se trata, em abso-
importantíssimas, e procur_arei da pr?xima vez lhes mostrar luto, de fazer a história do pastorado, e em particular vou
qual foi a segunda mutaçao, nos seculos XVI-XVII, dessa deiXar de lado tudo o que se poderia chamar de grandes li-
noção de economia. , . _ , m1tadores externos do pastorado católico e cristão, esses
#Economia", evidentemente, sem duVIda nao e a pal~­ grandes limitadore_s contra osquais e!~ se chocou ao longo
vra que, em francês, melhor convér,n para traduzir essa OI- de toda a Idade Media e, por fim, no seculo XVI. Por limita-
konomía psykhôn. Os latinos traduziam por regLmen amma- dores externos deve-se entender toda uma série de coisas
rum, #regime das almas", o que não é ruim, mas é evidente que ne~ligenciarei, não por não existirem ou por não terem
tido efeito, mas porque não é esse ponto que eu gostaria de
256 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPU!AçAO
AUlA DE 1·' DE MARÇO DE 1978
257
reter, que me interessa mais. Por limitadores externos deve-
vimentos que têm como ob'eti
se entender, é claro, as resistências passivas das populações rer ser conduzido de outro1m~~ outra conduta, isto é: que-
que estavam sendo cristianizadas e continuaram a sê-lo até
bem tarde na Idade Média; essas populações que, mesmo
por outros pastores, para outrosobpo: outros condutores e
mas de salvação, por meio de o Jetivos e para outras for-
cristianizadas, permaneceram por muito tempo reticentes a outros métodos São mo . outros procedimentos e de
certo número de obrigações que lhes eram impostas pelo eventualmente ~m todo :entos que também procuram,
pastorado. Resistência, por exemplo, secular à prática, à tros, que procuram definir ' escapar da conduta dos ou-
obrigação da confissão imposta pelo concílio de Latrão em conduzir. Em outras al para cada um a maneira de se
1215. Resistências ativas também, com que o pastorado se !aridade histórica d p avras, go~tana de saber se à singu _
chocou frontalmente, sejam elas práticas que podemos cha- ficidade de recusas,o/ea:e~~ftdo nao corre,spondeu a especi-
mar de extracristãs - até que ponto elas o eram é outra ques- E, assim como houve formas ~s, dere~Jstencras de conduta.
tão-, como, digamos, a bruxaria, ou ainda choques frontais dida em que ele exerce umas e resJstencra.ao poder na me-
com as grandes heresias, na verdade a grande heresia que houve outras formas de . t~beranJa política, assim como
percorreu a Idade Média e que é, grosso modo, a heresia res1s encra igualm d .
ou de recusa que se d.iri em ao ' ente esejadas,
dualista, cátara4 • Poderíamos mencionar também, como ou- e;<rlora economicamenfe, não fo~er na medida em que ele
tro limitador externo, [as] relações [do pastorado]* com o tencra ao poder como conduta? era haVIdo formas de resis-
poder político, o problema que [ele] encontrou com o de- FareJ de unediato três obse - p · .
senvolvimento das estruturas económicas na segunda me- sentar as coisas assim n- ;vaçoes. runerra delas: apre-
tade da Idade Média, etc. ve primeiro o pastorado :od~era: por acaso, supor que hou-
Não é disso, claro, que eu gostaria de lhes falar. Gosta- que chamei alia's d poiS moVImentos de retomo o
ria de tentar pesquisar alguns dos pontos de resistência, das e contra-ataqu ti d '
que não vamos simplesm t es, pos e reação? Será
formas de ataque e de contra-ataque que puderam se pro- nos às avessas di amo en e retomar os mesmos fenôme-
duzir no próprio campo do pastorado. De que se trata? Se preciso estudar' J·ssg b s, negativos ou reativos? Claro seria
é verdade que o pastorado é um tipo de poder bem especí- o emmrusdep rt b '
no fundo o próprio pastorado . • e o e o servar logo que
fico que se dá por objeto a conduta dos homens- quero di- em reação ou, em todo caso Ja se fon::'ou, desde o início,
zer, por instrumento os métodos que permitem conduzi -los to, de hostilidade de ' numa relaçao de enfrentamen-
de revolta de cor:duta~~rra c~':{ algo que é d.ifici! chrunar
e por alvo a maneira como eles se conduzem, como eles se
comportam -, se [portanto] o pastorado é um poder que
tem de fato por objetivo a conduta dos homens, creio que,
forma de conduta em todo ~a: a e: q~e a ~ondula, essa
clara; enfim, ele se constitui o, run a nao eXIstia de forma
correlativamente a isso, apareceram movimentos tão espe- briaguez dos com ort u contra uma espécie de em-
cíficos quanto esse poder pastoral, movimentos específicos Oriente Médio deJ' ex::::ertos reli.~posos de que todo 0
que são resistências, insubmissões, algo que poderíamos cha- que em particular rt p os nos seculos ll, ID e N e de
ce as se1tas gn • ti d- '
mar de revoltas específicas de conduta, aqui também dei- nho absolutamente notável . fus' cas ao um testemu-
xando à palavra "conduta" toda a sua ambigiüdade5• São mo- nos em algumas dessas seit:Srrre • tavel'. De fato, pelo me-
matéria com 0 mal 0 í t d gnos.ticas, a Identificação da
nhecida, qualificad~ co':no e~ matena ser percebida, reco-
* M.F.: das suas relações retava evidentemente ce~ m .'e como mal absoluto, acar-
o numero de conseqüências, seja
AULA DE 1? DE MARÇO DE 1978 259
SEGURANÇA, TERJ<l'TÓRIO, PQPlJLAÇÃO
258
a maior das revoltas. de ~~~':lu~voltas de conduta. E, afinal,
tas em seu objetivo' Exi
por exemplo da ordem da vertigem, do encantamento pro-
nheceu foi a de Lutero e sabe a que o. Ocidente cristão co-
vocado por uma espécie de ascetismo indefinido que podia
levar ao suicídio: libertar-se da matéria, e o mais depressa ela não era nem econÓmica n~s m:nto bem que no início
possível. A idéia também, o tema: destruir a matéria pelo nha sido, é claro, 0 papel ue lo política: qualquer que te-
esgotamento do mal que há nela, cometer todos os peca- eco;tômicos e políticos. M'J,s o fft'oa~sunuram os problemas
dos possíveis, ir até o fim de todo esse domínio do mal que pecíficas, de essas resistências d ~essas lutas serem es-
não quer dizer que penn e con uta serem específicas
me é aberto pela matéria, e é assim que destruirei a maté- aneceram se d .
umas das outras com seu , . para as ou Isoladas
ria. Pequemos portanto, e pequemos ao irlfiníto.Tema igual- , ' s propnos ·
mente da anulação de um mundo que é o da let e, por con- proprias formas, com sua pró . dr parceiros, com suas
seguinte, para destruir um mundo que é o mundo da lei, é vo bem distinto. Na verdade p~s~ã amaturg~a e seu objeti-
preciso primeiramente destruir a lei, isto é, contravir a to- sempre em todo caso, ligada; a ou~ semprfli~ ligadas, quase
das as leis. A toda lei que o mundo ou que as potências do problemas. Vocês vão encontrar e os cm~ !os ou a outros
mundo apresentam, é necessário responder pela infração, duta ligadas por exemplo tod ssas reslstencias de con-
pela infração sistematizada. Inversão de fato do reinado entre a burguesia e feud~~mo a a Idade Média, às lutas
' ~ela nas cidades flamen-
0
daquele que criou o mundo. Àquele que criou o mundo, gas', por exemplo ou em L
àquele Jeová criador de um mundo material que aceitou os cês vão encontrá~las ligadr~~' n~ :roca dos valdenses'. Vo-
sacrificios de Abel e recusou os de Caim, que amou Jacó e que se produziu princi almen~~ em a esse descolamento,
odiou Esaú, que puniu Sodoma, a esse Deus é necessário palmente a partir do sfculo XII 'e~ue ficou eVIdente princi-
responder preferindo os sacrificios de Caim, amando Esaú, a economia rural Vioce's t' ' tre a econorma urbana e
. · em um exem 1 di
detestando Jacó e glorificando Sodoma. Tudo o que se s1tas, calixtinos'" de um lad t b . P o sso com os hus-
pode chamar retrospectivamente de desordem, foi contra c~mtram igualmente essas ~~~lt~~tas do outro".Vocês en-
isso que o pastorado cristão, no Oriente e no Oc1dente, se tenclas de conduta, ligada de conduta, essas resis-
desenvolveu. Pode-se dizer, portanto, que temos uma cor- ferente, mas capital, o do ~~a~!roblema totalmente di-
relação imediata e fundadora entre a conduta e a contra- que essas revoltas de conduta estã das mulheres. E vemos
esse problema das mulh o mwtas vezes ligadas a
conduta.
A segunda observação é que essas revoltas de conduta na sociedade civil ou na ~~~ie"::u estatuto na sociedade,
têm sua especificidade. Elas são sem dúvida- enfim, é o que de conduta floresceram no s conventos relig~osa.
~ · Essas
· revoltas
eu queria tentar lhes mostrar-, elas são distintas das revol- esse movimento que eh emmmos, em todo
. amamos de movim t d
tas políticas contra o poder na medida em que ele _exerce nenmystik renana, no século XII" Vi , , en o a Non-
dos os grupos que se constitu . oces veem também to-
uma soberania, distintas também [das revoltas econormcas
contra o poder]* na medida em que ele assegura, garante profetizas na Idade Média eJ em tomo das mulheres
guerite PoreteH, etc. Vocês ~;~:~o e~e Dabenton , Mar-
13

uma exploração. Elas são distintas em sua forma, são distin-


cuJos curiosos, meio mundanos ':r, r,nrus tarde naqueles cír-
ta, ou melhor, de direção de co~sci:' popula;es, de condu-
10

. . M.F.: do poder fim na Espanha do século XV1 encla do seculo XV1I, en-
Cf. :manuscrito, p. 5: "Essas 'revoltas de conduta' têm a sua espe-
na França com Annelle Nico! ,~oMm Isabel de la Cruz", ou
cificidade: são distintas das revoltas políticas ou econômicas em seu ob- as ' ane des Vallées", enfim
jetivo e em sua forma."
260 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1' DE MARÇO DE 1978
261
todos esses personagens, Madame A~arie também18 • Pode-
mos vê-las prender-se também a fenomenos de desruvela- vamos ver que os conflitos de conduta já não vão se produ-
mento cultural. Por exemplo, a oposição, o conflito entre os zrr tanto do lado da instituição religiosa, e sim, muito mais,
doutores e os pastores, conflito que estoura ~e forma evi- do lado das instituições políticas. E vamos ter conflitos de
dente em Wyclif19, nos amauncmnos em Paris , em jan Hus conduta nos confins, nas margens da instituição política.
em Praga". Logo, por mais que essas revoltas de conduta Vou s!mplesme.nte lhes citar alguns exemplos como tipos
possam ser específicas em sua forma e em seu_objellvo, nun- de anál1se poss1ve15 ou de pesquisas possíveis.
ca são autónomas, nunca permanecem autono~as, qual- Primeiro, fazer a guerra. fbr muito tempo, fazer a guer-
quer que seja o caráter decifrável da su~ especifiCidade. Afi- ra, digamos nos séculos XVII- XVID, fazer a guerra, fora aque-
nal de contas a Revolução Inglesa do seculo XVII, com toda les para os quais ser homem de guerra era um estatuto,
a complexid~de dos seus conflitos institucio>:ais: dos seus grosso modo a nobreza, fora esses, fazer a guerra era uma
choques de classes, dos seus problemas econorrucos, a Re- profissão ~ais ou menos voluntária, às vezes mais para me-
volução Inglesa deixa ver de ponta a J?O~ta toda uma di- nos voluntana do que para mais, enfim, pouco importa, e
mensão muito especifica que e a da res1Stenc1a de conduta, nessa medida o recrutamento militar dava lugar a toda uma
dos conflitos em torno do problema da conduta. Por quem série de ;esistências, de recusas, de deserções. As deserções
aceitamos ser conduzidos? Como queremos ser cond~l­ eram pratica absolutamente corrente em todos os exércitos
dos? Em direção ao que queremos ser conduz1dos.7 E~sa e a do século XVII e do século XVIII. Mas, a partir do momen-
minha segunda observação sobre a especifiCidade nao au- to em que fazer a guerra se tornou, para todo cidadão de
tônoma dessas resistências, dessas revoltas de conduta22 . um país, não simplesmente uma profissão, nem mesmo
Enfim, a terceira observação sena a segumte .. É certo uma lei geral, mas uma ética, um comportamento de bom
que essas revoltas de conduta, em sua forma relig>o~a, es,- cidadão, a partir do momento em que ser soldado foi uma
tão ligadas ao pastorado, à grande era do pru:tora?o, 1sto e, conduta, uma conduta política, uma conduta moral um sa-
a que conhecemos desde os séculos X-XI ate o seculo XVI crifício, uma dedicação à causa comum e à sal~ção co-
e mesmo até o fim do século XVII. A partir desse mome:'- ~um, sob a direção de uma consciência pública, sob a dire-
t~ as rev~ltas de conduta, as resistências de conduta vao çao de uma autoridade pública, no âmbito de uma discipli-
adquirir uma forma totalmente diferente. Até certo pont?, na bem precisa, a partir do momento em que, portanto, ser
pode-se dizer que elas vão diminurr de mtens1dade e de nu- soldado não foi mais simplesmente um destino ou uma
mero, se bem que, afinal, algo como o mDVlmento meto.dls- profissão, mas uma conduta, então vocês vêem se somar à
ta da segunda metade do século XVIll seja um magnífico velha deserção-infração de que lhes falava há pouco, outra
exemplo de revolta, de resistência de conduta mwto 't;'Po;; forma de deserção que eu chamaria de deserção-insubmis-
tante, tanto do ponto de vista económico quanto politico . são, na qual recusar-se a exercer o ofício da guerra ou a pas-
Mas, enfim, creio que se pode dizer, d~ manerra gera_l,.que, sar durante certo tempo por essa profissão e por essa ativi-
na medida em que, a partir do fim do seculo XVII - liDClO do dade, essa recusa a empunhar as armas aparece como uma
século XVIIT, muitas das funções pastorrus foram retomadas conduta ou uma contraconduta moral, como uma recusa
no exercício da governamentalidade, na medida em que o da educação cívica, como uma recusa dos valores apresen-
governo pôs-se a também querer se encarregar da conduta lados pela sociedade, como uma recusa, igualmente, de cer-
dos homens, a querer conduzi-los, a partir desse momento ta relação considerada obrigatória com a nação e com a sal-
vação da nação, como certa recusa do sistema político efe-
262 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978
263
tivo dessa nação, como uma recusa da relação com a morte a que seu destino e seu nome erm .
dos outros ou da relação com sua própria morte. Vocês es- projeto, em última análise de f anecem ligados, que é o
tão vendo, portanto, que temos aí o aparecimento de um fe- social, de suscitar um nov~ hOI~~~ascer uma nov~ ordem
nômeno de resistência de conduta que já não tem, de modo tem necessariamente de fun . E, por consegumte, ele
algum, a forma da velha deserção e que tem certa analogia uma contra-sociedade uma ~o~ar, at~ certo ponto, como
com certos fenômenos de resistência de conduta religiosa não faça mais que repr~duzír u a socredade, mesmo que
[que vimos na]* Idade Média. te, ele se apresenta ele fu a que eXIste; e, por conseguin-
Tomemos outro exemplo. No mundo moderno, a par- . . ' ncrona mtemame t
espeCJe de outro pastorado d tr n e como uma
tir do século XVIII, vocês vêem desenvolver-se sociedades com seus líderes, suas re ;s : ou a govemament?lidade,
secretas. No século XVIII, elas, no fundo, ainda são próxi- obediência, e, nessa me~a ~~~~~.oral, seus pn~c7p!Os de
mas das formas da dissidência religiosa. Elas têm, como vo- uma enorme força para se a ~esente em, como voces sabem,
cês sabem, seus dogmas, seus ritos, sua hierarquia, suas pos-
turas, cerimônias, sua forma de comunidade. A franco-ma-
uma outra sociedade, umapoutra
canalizar as revoltas de d
f":::::
~esmo tempo como
a e conduta, e para
çonaria, claro, é um exemplo privilegiado disso. Depois, no dirigi -las". con uta, para tomar o lugar delas e
século XIX, vão ser cada vez mais compostas de elementos Vou dar um terceiro exemplo O
políticos, vão se atribuir objetivos políticos mais nítidos, se- formas modernas, estendeu-se em. pastorado. . em,suas
jam eles complôs, revoluções, revoluções políticas, revolu- sabe1; das instituições e das ráti gra~de parte atraves do
ções sociais, mas sempre com um aspecto de busca de outra que a medicina foi uma d p cas medicas. Pode-se dizer
conduta: ser conduzido de outro modo, por outros homens, do pastorado. Nessa medi~! ~:~desb~;otências hereditárias
na direção de outros objetivos que não o proposto pela go- série de revoltas de condut; o : " em s;>sCJtou toda uma
vemamentalidade oficial, aparente e visível da sociedade. E um dissent médico forte desd q fu:âder;amos chamar de
a clandestinidade é sem dúvida uma das dimensões neces- nossos dias, que vai [d~] reC::s~ de o seculo ~até os
sárias dessa ação política, mas ela comporta ao mesmo certas prevenções como a va . - c_ertas medicaçoes, de
tempo, precisamente, ela oferece essa possibilidade de al- de racionalidad , 'd· cmaçao, a recusa de certo tipo
e me Jca: o esforço par · · •
ternativa à conduta governamental sob a forma de outra de heresias médicas em tomo de r. ti a constiturr especies
conduta, com líderes desconhecidos, formas de obediência utilizam a eletricidade o p a cas de medJcaçao que
específicas, etc. Poderíamos dizer, no fundo, que ainda exis- tradicional; [a] recusa da mmTetismo, as ervas, a medicina
tem, nas sociedades contemporâneas, nas nossas, nos par- freqüente em certo númeroedeCJna, pura e snnplesÉmente, tão
•b giUpos reh<nosos aí
tidos políticos, dois tipos de partidos políticos. Os que não são ve em como os movimentos de dissid. c: . . . que se
nada mais que degraus para o exercício do poder ou o aces- ram li~ar-se à resistência à conduta mZ~~: relig~osa pude-
so a funções e a responsabilidades, e os partidos políticos, Nao Insisto mais Q · · 1 ·
ou antes, um partido político que, no entanto, deixou faz um problema de pur~ e us~a f~::'~:;~en;e colocar agora
tempo de ser clandestino, mas que continua a levar a aura chamei há pouco de resistências r ulano. Aquilo que
de um velho projeto que ele evidentemente abandonou, mas não poderíamos tentar encontra~ ecusas, revoltas, será que

,. Seqüência de palavras dificilmente audíveis.


espécie d': trama específica d:
sJgnar? Como designar esse ti o duma palavra para [o] de-
resi~{êevoltas, ou antes, essa
der que nao exercem a soberania e qu~cJa_ a forml as de po-
nao exp oram, mas
SEGURANÇA TERJUTÓRIO POPULAÇÃO AULA DE F DE MARÇO DE 1978 265
264
. fr qu"entemente a expressão seu uso, porque, afinal de contas, o que se (chama de]* "dis-
•? Empreguei e ·
que cond uzem . " devo dizer que ela não me sal!s- sidência" nos países da Europa Oriental e na União Sovié-
"revolta de conduta , malas " volta" é ao mesmo tempo tica" designa de fato uma forma de resistência e de recusa
· ueap avra re . complexa, pois se trata de uma recusa democrática, claro,
faz miDto, porq. d . d forte para designar certas
demasiado prec:sa : emasJa a'ts difusas e muito mais sua- mas numa sociedade em que a autoridade política, o parti-
formas de resJstenC1a miDtO m , cul XVIII não constituem do político que é encarregado de definir a economia e ases-
ves. As sociedades secreta,~~~ s~a !~ade Média, de que eu truturas de soberania características do país, esse partido
revoltas de _conduta, a n:-m não é exatamente uma revol- político é ao mesmo tempo encarregado de conduzir os in-
lhes fale! ha pouco, tarn ~ "desobediência" é, em com- divíduos, de conduzi-los em sua vida cotidiana por todo um
ta. Em segundo lugar, a p avrd~vr·da fraca demais, ainda que jogo de obediência generalizada que adquire precisamente
- ma palavra sem u , d a forma do terror, porque o terror não é quando alguns co-
pensaçao, u d b diência que esta no centro e
seja de fato o problema a ~o:'no o anabatismo", por exem- mandam os outros e os fazem tremer: há terror quando mes-
tudo ISSO. Um movrmento desobediência. E, fora isso, es- mo aqueles que comandam tremem, porque sabem que de
pio, foi muito mrus que uma .cientificar aqui têm, com toda qualquer modo o sistema geral da obediência os envolve
ses movimentos due,r:~c:,o !ormas de existência, de orga- tanto quanto àqueles sobre os quais exercem seu poder'".
certeza, wna pro uti;'! a 'uma solidez que a palavra pu- Poderíamos falar, aliás, da pastoralização do poder na União
nização, wna ~onsJstencJa e diência não abrangeria. "Insub- Soviética. Burocratização do partido, não há dúvida. Pasto-
ramente negativa de desobe e neste caso se trate de uma ralização do partido também, e a dissidência, as lutas polí-
missão"' Slmé talvez, se bemdqu localizada e vinculada à in- ticas que englobamos sob o nome de dissidência têm uma
palavra que e, de certo mo o, dimensão essencial, fundamental, que é certamente essa re-
submissão militar. ai me vem à mente, mas eu cusa da conduta. "Não queremos essa salvação, não quere-
, ma p avra que ,
C1aro, h a u língua a emprega-la. Por- mos ser salvos por essa gente e por esses meios." É toda a
preferiria que me arrancas~ef'. ~ evidentemente, comovo- pastoral da salvação que é posta em questão. É Soljenitsin".
t~nto ~o~ apenas men;:o~:-~~is~idência'/26. Essa palavra - "Não queremos obedecer a essa gente. Não queremos esse
ces ad!Vlnharam, a P a de fato convir muito bem sistema, em que até os que comandam são obrigados a
"dissidência" - talvez pudesse, formas' de resistência que obedecer pelo terror. Não queremos essa pastoral da obe-
. d' er para essas diência. Não queremos essa verdade. Não queremos ser
para iSSO, quer 1Z ' . têm por objetivo e por ad-
dizem respeito, que vrsam,td~~i or encargo conduzir, con- pegos nesse sistema de verdade. Não queremos ser pegos
versário um poder que se a. d e[;, sua existência cotidiana. nesse sistema de observação, de exrune perpétuo que nos
duzir os homens em sua vr a~e ·ustificaria por duas razões, julga o tempo todo, nos diz o que somos no fundo de nós
Essa palavra, eV!dentemente, J _,dissidência" -foi mesmos, sadios ou doentes, loucos ou não, etc." Podemos
. , . Pnmerro essa pa1avra .
ambas h1stoncas. ' .. • ·a ara designar os movr- dizer portanto [que] essa palavra - dissidência - abrange de
de fato empregada com át<;_q~~~~ 0 {ganização pastoral. Se- fato uma luta contra esses efeitos pastorais de que eu lhes
mentos rehgwsos d~ resJs ~n deria efetivamente justificar falei da última vez. Pois bem, justamente, a palavra dissi-
gundo, sua aphcaçao atua po

,. designa corno
*Palavra entre aspas no manuscrito .

...
266 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1." DE MARÇO DE 1978
267
dência está demasiado localizada atualmente nesse gênero :rodir o poder pastoral de que lhes falei da última vez isto
de fenômeno para poder ser utilizada sem inconveniente. e, con;o uma crise interna do pastorado fora aberta na,Ida-
E, afinal de contas, quem hoje em dia não faz sua teona da de Media, desde havia milito tempo, pelo desenvolvimento
dissidência? de cm;tracondutas; Gostaria que vocês tivessem presente
Abandonemos pois essa palavra. O que vou lhes pro- ao espmto certo numero de fatos bem conhecidos, portan-
por é a palavra, mal construída sem dúvida, "contracondu- to peço:lhes descttipa por resumi-los dessa maneira pura-
ta" - palavra que só tem a vantagem de possibilitar refenr- mente livresca. Em pnrnerro lugar, claro, em relação ao es-
nos ao sentido ativo da palavra "conduta". Contraconduta boço do pastorado que eu lhes _havia feito semana passada,
no sentido de luta contra os procedimentos postos em prá- assistimos desde os pnrnerros secttios do cristianismo a todo
tica para conduzir os outros; _o que faz que eu prefira e~sa um desenvolvimento, a uma extrema complicação das téc-
palavra a "inconduta", que so se refere ao sentido passiVo n:cas, dos procedimentos pastorais, a uma institucionaliza-
da palavra, do comportamento: não se conduzir como se çao mmto rigoros~ e muito densa do pastorado. Em segun-
deve. Além disso, essa palavra - "contraconduta" - talvez do lugar e, se voc-;s qmserem, caracterizando, mas de ma-
também permita evitar certa subs;,antific~ção ~ue a ~,alavra nerrammto específica, milito particular, milito importante,
"dissidência" permite. Porque de diss1denC1a vem dissi- essa m~titucwnalização do pastorado, cumpre observar a
dente", ou o inverso, pouco importa- em todo caso, faz dis- formaçao de um drrnorfismo, enfim de uma estrutura biná-
sidência quem é dissidente. Or~,. não eswu milito certo de na no mterior mesmo do campo pastoral, que opõe os clé-
que essa substantificação seja util. Temo mclus1ve que _seja ngos: de um lado, aos leigos, do outro'". Todo o cristianismo
perigosa, porque sem dúvida não tem mmto senti~o diZer, medieval, e o catolicismo a partir do sécilio XVI vai ser ca-
por exemplo, que um louco ou um delmquente s_ao dissi- ractenzado pela existência de duas categorias d~ indivíduos
dentes. Temos aí um procedimento de santificaçao ou de bem distintos, que nã~ têm nem as mesmas obrigações,
heroização que não me parece milito válido. ?m compen- nem os mesmos pnvileg10s CIVIS, claro, mas que não têm
sação, empregando a palavra contraconduta, e sem duvrda nem _mesmo, tampouco, os mesmos privilégios espirituais:
possível, sem ter de sacralizar como dissidente fulano ou b:l- os clengos, de um lado, e os leigos, de outro". Esse dimor-
trano, analisar os componentes na manerra co~o alguem fisn;o, o problema colocado por esse dimorfismo, o mal-es-
age efetivamente no campo mmto geral da política ou no tar mtroduz!do n~ comunidade cristã pela existência de clé-
campo muito geral das relações de poder. Isso perm1te iden- ngos que tem nao apenas privilégios económicos e civis
tificar a dimensão, o componente de contraconduta, a di- mas tan;bém privilégio_s espirit;Jais, que estão via de regr~
mensão de contraconduta que podemos encontrar perfeita- mrus proxrrnos do parruso, do ceu e da salvação que os ou-
mente nos delinqüentes, nos loucos, nos d_oentes. Portanto, tros, tudo isso vai se! um dos grandes problemas, um dos
análise dessa imensa família do que podenamos chamar de pontos de _sustentaçao da contraconduta pastoral". Outro
contracondutas. fato, lambem, de que convém se lembrar, ainda no interior
Gostaria agora, depois desse rápido sobrevõo do tema dessa mstitucionaliz_ação do paswrado, é a definição de uma
geral da contraconduta no pastorado ena govemamentali- teona e de_ uma p:atica do poder sacramental dos padres.
dade, de tentar identificar como as co1sas aconteceram na Aqm lambem, fenomeno relativamente tardio, assim como
Idade Média, em que medida essas contracondutas pude- o aparec1m<;nto do dim~rfismo entre clérigos e leigos, asa-
ram, até certo ponto, pôr em questão, trabalhar, elaborar, ber: o presbyteros, ou o b1spo, ou o pastor" das primeiras co-
268 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1~ DE MARÇO DE 1978
269
munidades cristãs não tinha de modo algum um poder sa- vai ser, sem dúvida, que foi com toda certeza, a partir do sé-
cramental. Foi após toda uma série de evoluçõo;s que ele re- culo Xl_I, uma das grande~ razões das lutas antipastorais.
cebeu o poder de ministrar sacramentos, 1sto e, de ter uma
Nao vou mrus ms1stir nesse tema. Mais uma palavra,
eficácia direta por seu próprio gesto, por suas palavra_s, para diz_er que essas lutas antipastorais adquiriram formas
uma eficácia direta na salvação das ovelhas". Isso quanto as
mwto diferentes. Também não vou enumerá-las. É de coi-
grandes transformações puramente religiosas do pastorado.
sas mrus preCisas que gostaria de lhes falar. Simplesmente
Do ponto de vista político, do ponto de VISta extenor,
cumpre recor?ar que vocês encontram essas lutas [anti]pas~
seria preciso falar do entrelaçamento desse pas_torado com
torrus num ruvel propnamente doutrinal, como por exem-
o governo civil e o poder político. Seria necess~o falar da
plo ~as te~nas da Igreja, na eclesiologia de Wyclif ou de Jan
feudalização da Igreja, do clero secular, mas lambem do cle-
Hus . Voces encontram também essas lutas antipastorais
ro regular. E, por fim, em terceiro lugar, nos confins des~a
sob a f~nna de comportamentos individuais- seja estrita-
evolução propriamente interna e religiosa e _dessa evoluçao
mente mdiVIdurus, seja individuais mas em série, compor-
externa, política e econômica, sena necessano assu~.aia:, a
tamentos mdiVIdurus por ~o~tágio, como por exemplo 0 que
meu ver, com insistência, o aparecimento de uma cmsa 1m-
aconteceu no caso da m1stica, com a constituição apenas
portante, essencialmente em torno dos séculos XI-XII. É a esboçada de alguns grupos que logo se desfazem. Vocês en-
introdução, na prática pastoral conhec1da, de um modelo contram essas !';'tas antipastorais em grupos, ao contrário,
que era essencial e fundamentalmente um modelo lruco, a
que se ~onstiturram fortemente, uns como apêndice, até
saber, o modelo judicial. Para dizer a ver_dade, q';'a.;'do digo mesmo a margem da Igreja, sem que houvesse conflitos
que isso remonta aos séculos XI-XII, est~ se~ duVIda total- mwto Vlo!entos, como as ordens terceiras ou as sociedades
mente errado, porque, na verdade, a Igreja ja_ haVIa adqurn- de ;Jevoçao. Outros são grupos em franca ruptura, como
do e já exercia funções judiciais des,de os seculos VII~VIII, sera o c~so dos valdenses", dos hussitas", dos anabatistas",
como atestam os penitenciais dessa epoca. Mas o que e Im-
u~s os:~ando da obediê~cia à recusa e à revolta, como os
portante é que, a partir dos séculos_XI-XIL vem~s ~esenvol­ begards e as begumas, pnncipalmente". Vocês também vão
ver-se e tornar-se obrigatória a pratica da confissao, a par- encontrar essas lutas antipastorais, essas contracondutas pas-
tir de 1215" - na verdade, ela já era consideravelmente ge- torrus em toda uma nova atitude, em todo um novo com-
neralizada-, isto é, a existência de um tribunal permanen- portamento religioso, em toda uma nova maneira de fazer
te diante do qual cada fiel deve se apresentar regularm_ent~. e de ser, em toda uma nova maneira de se relacionar com
Vemos aparecer e desenvolver-se a crença no_ purgatono· , Deus, com as obrigações, com a moral, com a vida civil tam-
isto é, um sistema modulado de pena, proVIsono, em rela- bém. É tudo isso, esse fenômeno difuso e capital que foi
ção ao qual a justiça, enfim, o pastorado pode desempenhar chamado de devotio moderna".
certo papel. E esse papel vai estar preCJs~ente no apareci- Ora, em todos esses fenômenos tão diversos, quais são
mento do sistema das indulgências, isto e, na possibilidade os pontos quepode~os reter, na medida em que me pare-
de o pastor, na possibilidad; de a Igreja ate~uar em certa ce que a propna histona das relações conduta pastoral/con-
medida e mediante certo numero de condiçoes, essenCial- tra,c~ndutas está envolvida neles? Parece-me que a Idade
mente condições financeiras, as penas previstas. Temos ai, Media desenvolveu cmco formas principais de contracon-
portanto, uma penetração do modelo judicial na Igreja, que duta que tendem, todas elas, a redistribuir, a inverter, a anu-
270 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1,' DE MARÇO DE 1978
271
lar, a desqualificar parcial ou totalmente o poder pastoral na o sacrifício supremo pedido ao monge nessa forma da espi-
economia da salvação, na economia da obediência e na eco- nt:'alidade - o que lhe é pedido essencialmente é a obe-
nomia da verdade, isto é, nesses três domínios de que ha- diencra -, tudo isso mostra be~ que o que estava em jogo
víamos falado a última vez e que caracterizam, a meu ver, o era Imutar com essa organiZaçao tudo o que podia haver de
objetivo, o domínio de intervenção do poder pastoral, E es- mfin1to ou tudo o que, em todo caso, havia de incompatível
sas cinco formas de contraconduta desenvolVldas pela Idade no ascetismo com a organização de um poder",
Média - mais uma vez me perdoem o caráter escolar e es- O que ~aVl~ de fato no ascetismo que era incompatível
quemático da análise- [quais são?]* , _ , , coma obedienc1a, ou_o que havia na obediência que era es-
Em primeiro lugar, o ascetismo, Voces vao dizer que e senCialmente anti~scetico?Creio que a ascese é, em primei-
um tanto ou quanto paradoxal apresentar o ascetismo ro lugar, um exercicio ~e SI sobre si, é uma espécie de cor-
como contraconduta, quando se tem o costume de, ao con- po a corpo que o mdiVlduo trava consigo mesmo e em que
trário, associar o ascetismo à própria essência do cristianis- a autoridade de um outro, a presença de um outro, 0 olhar
mo e a fazer do cristianismo uma religião da ascese, em de um outro é, se não impossível, pelo menos não necessá-
oposição às religiões antigas, Acho que devemos recordar no, Em segundo lugar, o ascetismo é um caminho que segue
que o pastorado, como eu aludia há pouco, o pastorado, ~a uma escala de dificuldade crescente, É, no sentido estrito do
Igreja oriental e na Igreja ocidental, desenvolveu-se nos s:- te~o, .~n: exercício46, um exercício que vai do mais fácil ao
culos III- N, essencialmente, pelo menos numa parte nao mais dificii, e do mais difícil ao que é ainda mais difícil e em
desprezível, contra as práticas ascéticas, contra em todo caso
qu; o critério dessa dificuldade é o quê? É o sofrimento do
o que chamavam, retrospectivamente, de excessos do mo-
propno asceta, O critério da dificuldade é a dificuldade que
naquismo, da anacorese egípcia ou síria", A organização de
o asceta experimenta efe~vaJnente em passar ao estágio se-
mosteiros com vida comum, e vida obrigatoriamente co-
gum!e e em fazer o exercrcro que vem em seguida, de modo
mum, a organização nesses mosteiros de toda uma hiera:-
que e o asceta com seu sofrimento, o asceta com suas recu-
quia em torno do abade e dos seus subordmados, que sao
sas, com seus desgostos, com suas impossibilidades, é 0 as-
os intermediários do seu poder, o aparecimento de uma re-
ceta no momento mesmo em que reconhece seus limites
gra nesses mosteiros de vida comum e hierarquizada, de
que se torna o ~a do seu próprio ascetismo e que é levado,
uma regra que se impõe da mesma manerra a todo o mun-
do ou, em todo caso, a cada categoria de monges de uma por essa expenenc1a rrnediata e direta do limite, a superá-
maneira especifica, mas a todos os membros dessa catego- h Em terceiro lugar, o'ascetismo é ta~nbém uma forma de
ria, conforme sejam noviços ou professos, a existência de desafio, ou antes, é uma forma de desafio interior, se as-
uma autoridade absoluta, inconteste, do superior, justamen- sim podemos dizer, é também o desafio ao outro, As histó-
te a regra de uma obediência que nunca deve ser discutida nas que fornecem descrições da vida dos ascetas, dos ana-
em relação às ordens do superior, a afirmação de que a ver- c?retas orientais, egípcios ou sírios, são repletas dessas his-
dadeira renúncia é essencialmente a renúncia não ao corpo t?nas em que de asceta a asceta, de anacoreta a anacoreta,
ou à carne, mas à vontade, em outras palavras, o fato de que fica -se sabendo que um faz um exercício de uma extrema
dfficuldade, a que o outro vai responder fazendo um exer-
crcro de dificuldade ainda maior: jejuar durante um mês, je-
* Frase inacabada. JUar durante um ano, JeJuar durante sete anos, jejuar duran-
272 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPU!A ÇA-o
AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978
273
te catorze anos". O ascetism~ . ortanto
te:;::s~o exte;,o.umaEm
forma de
quarto
desafio, de desafio mtemo e e ado ue não é evidente- manhã de inverno, num frio glacial, ele se impôs o chicote,
lugar, o ascetismo tende ~ u~ est as q~e é ape;ar de tudo um chicote com ganchos de ferro que arrancavam pedaços
mente, um estado d~ per eJç~~ ~tado de acalmia, um es- do seu corpo, até o momento em que se pôs a chorar por
um estado ?e tranqwhda~~es falei da última vez'" e que é, seu próprio corpo como se fosse o corpo de Cristo".
tado de apatheza, da quald ti. Será diferente, justa- Como vocês vêem, temos aí toda uma série de elemen-
fund tra forma o asce sm0 · tos característicos do ascetismo, que se referem seja à justa
no o, ou b diência, mas a apátheia do asceta do atleta, seja ao domínio de si e do mundo, seja à recusa
mente, na pastoral! da o ee sobre si mesmo, sobre seu cor-
, d 'nioqueeeexerc , . ai da matéria e ao acosmismo gnóstico, seja à identificação
e o OITII Ele che a a um estag:to t ' que
p_o, ~obrefrseus sofrirnq:~;~~ e que, e~etivarnente, tudo o que
.
glorificadora do corpo. Isso, evidentemente, é totalmente
incompatível com uma estrutura do pastorado que implica
Ja nao so e com o u orpo não provocará nele nenhum
ele pode inflig:tr ao seu c - huma aixão nenhu- (como eu dizia a última vez) uma obediência permanente,
di túr, bio nenhuma perturbaçao, nen p ' , . de uma renúncia à vontade, e somente à vontade, e uma ex-
s ' também toda uma sene
ma sensação forte. ;a~:j~Io de que lhes falava da última
tensão da conduta do indivíduo* ao mundo. Não há ne-
nhuma recusa do mundo no princípio pastoral da obediên-
exemplos, como o a . onto de ascetismo que podiam cia; nunca há acesso a um estado de beatitude ou a um es-
vez", que havia ating:tdo tal PI - eXJ·aso Encontramos
. d d olho e e e nao se m · tado de identificação com Cristo, a uma espécie de estado
lhe enfiar o e o no ' t . próxima do ascetismo e
aí uma coisa eVJd~n~n~:~,e {{';: suma, trata-se no fim das
110 terminal de domínio perfeito, mas, ao contrário, um esta-
do monaqmsmo u IS en~er o mundo, de vencer o corpo, do definitivo, adquirido desde o início, de obediência às or-
dens dos outros; e, enfim, na obediência nunca há nada des-
contas de se vencer, de v d diabo e suas ten-
sa justa com os outros ou consigo mesmo, mas ao contrário
de ~encer a matena rtância da tentação, que não é tanto o
~ · ou ru.nda e vencer 0
uma humildade permanente. Creio que as duas estruturas,
taçoes. Donde a rmpo . . uanto o que ele deve controlar a da obediência e a do ascetismo, são profundamente dife-
que o asceta deve suprurur, q - , na- ter tentações, é
d 0 ·dea! do asceta nao e 0 rentes. É por isso que, quando e onde se desenvolveram con-
ohtempo to o. I d d
tal ponto e omlm , ·o de si' que toda tentação
. lhe, tracondutas pastorais na Idade Média, o ascetismo foi um
c epar ~ E fi uinta característica do ascetismo,, e dos pontos de apoio, um dos instrumentos utilizados para
sera mdiferente. n m, q d rpo Jogo da mate- isso e contra o pastorado. Esse ascetismo, que foi muito de-
que ele remete SeJa . a uma recusa o co ,
. d
pe~ cie e acosm1s
. mo que é uma das_ di- senvolvido em toda uma série de círculos religiosos - seja
na, logo a essa es d dualismo, seja à identificaçao do ortodoxos, como em meio aos beneditinos e às beneditinas
mensoes da ~os e e o a aceitar os sofrimentos, recu- renanos, seja, ao contrário, nos meios francamente hetero-
corpo com Cnsto. Ser as.ce~Óprio o chicote, usar o ferro em doxos, como entre os taboritas", entre os valdenses também,
sar-se a comer, impor;:~ pé fazer que seu corpo se tome seja ainda simplesmente em meios intermediários, como
seu co~~rpe:d:~ri~to. essa identificação que vamods ~n­
i no caso dos flagelantes 55 - , esse ascetismo é, a meu ver, um
como f rmas de ascetismo, na Antigw a e, elemento, não podemos dizer literalmente estranho ao cris-
contrar em todas as o bém na Idade Média. Lembrem-se tianismo, mas certamente estranho à estrutura de poder
eVJd~ntemente,
do celebre textomdas
e st':'o;'' em que ele conta como, numa
"'M. Foucault acrescenta: primeiramente
274 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978 275

pastoral em tomo do qual se organizava, tinha se orgruüza- maioria das comunidades que se formarrun no decorrer da
do o cristiruüsmo. E é como elemento de luta que ele foi ati- Idade Média. Esse fundo teórico é a recusa da autoridade do
vado ao longo de toda a história do cristianismo, reativado, pastor e das justificações teológicas ou eclesiológicas pro-
sem sombra de dúvida com uma intensidade particular, a postas para ela. Em particular, as comunidades partem, em
partir do século XI ou XII. Portanto, conclusão: o cristiruüs- todo caso algumas delas, as mais violentas, as mais virulen-
mo não é uma religião ascética. O cristianismo, na medida tas, as que estão mais francrunente em ruptura com a Igre-
em que o que o caracteriza, quanto às suas estruturas de po- ja, partem do princípio de que a própria Igreja e, em parti-
der, é o pastorado, o cristianismo é fundamental.mente an- cular, o que constitui seu organismo fundrunental ou cen-
tiascético, e o ascetismo é, ao contrário, uma espec1e de ele- tral, a saber, Roma, é uma nova Babilónia e representa o
mento tático, de peça de reversão pela qual certo número Anticristo. Tema moral e tema apocalíptico. Nos grupos mais
de temas da teologia cristã ou da experiência religiosa vai eruditos, de uma maneira mais sutil, essa atividade incessan-
ser utilizado contra essas estruturas de poder. O ascetismo te, sempre reiniciada, de formação de comunidade, apoiou-
é uma espécie de obediência exasperada e contra:'ertida, que se em problemas doutrinais importantes. O primeiro era o
se tomou domínio de si egoísta. Digamos que ha um exces- problema do pastor em estado de pecado. O pastor deve o
so próprio do ascetismo, um algo mais que assegura preci- privilégio do seu poder ou da sua autoridade a uma marca
srunente sua inacessibilidade por um poder extenor. que teria recebido de uma vez por todas e que seria indelé-
E, se vocês quiserem, trunbém pode-se dizer o seguin_- vel? Em outras palavras, será porque ele é padre e porque
te. Ao princípio judaico ou ao princípio greco-romano da lei, recebeu a ordenação que ele detém um poder, um poder
o pastorado cristão havia acrescentado este element_? ex- que não lhe pode ser retirado, a não ser quando eventual-
cessivo e completamente exorbitante que era a obedienCJa, mente suspenso por uma autoridade superior? É o poder
a obediência contínua e infinita de um homem a outro. Em do pastor independente do que ele é moralmente, do que
relação a essa regra pastoral da obediência, digrunos que o ele é interiormente, da sua maneira de viver, da sua condu-
ascetismo acrescenta um elemento, ele próprio exagerado e ta? Problema que, como vocês estão vendo, concerne a toda
exorbitante. O ascetismo sufoca a obediência com o exces- essa economia dos méritos e deméritos de que lhes falei a
so de prescrições e desafios que o individuo lança a si mes- última vez. E a isso responderam em termos proprirunente
mo. Vocês estão vendo que há um nível que é o nível dores- teóricos, teológicos ou eclesiológicos, certo número de pes-
peito à lei. O pastorado acrescenta a ele o princípio de uma soas, essencialmente Wyclif e depois Jan Hus, Wyclif que es-
submissão e de uma obediência ao outro. O ascetismo in- tabelecia o princípio: "Nullus dominus civilis, nullus episcopus
verte novamente, outra vez, essa relação fazendo do exercí- dum est in peccato morta/i", que significa: "Nenhum senhor
cio de si sobre si um desafio. Portanto, primeiro elemento civil, mas trunbém nenhum bispo, nenhuma autoridade re-
do antipastoral ou da contraconduta pastoral: o ascetismo. ligiosa, dum est in peccato morta/i, se estiver em estado de
Segundo elemento, as comunidades. Existe, de fato, uma pecado mortal."'" Em outras palavras, o simples fato, para
outra maneira, até certo ponto inversa, de se 1nsubmeter ao um pastor, de estar em pecado mortal suspende todo o po-
poder pastoral: a formação de comunidades. O ascetismo der que ele pode ter sobre os fiéis. E é esse princípio que é
tem, antes, uma tendência individualizante. A comunidade retomado por Jan Hus num texto que também se chruna De
é algo bem diferente. Em que ela se baseia? Em primeiro lu- ecclesia e em que ele diz ... não, não é no De ecclesia. Ele tinha
gar, há uma espécie de fundo teórico que encontrrunos na mandado escrever, gravar ou pintar nas paredes da igreja de
276 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE r DE MARÇO DE 1978
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Belém em Praga" este princípio: "Às vezes é bom não obe- dre lhe responde dizendo que, ora, essas tentações não eram
decer aos prelados e aos superiores." Jan Hus falava até da nada de grave e que ela não tinha por que se preocupar, en-
"heresia da obediência'"". A partir do momento em que você fim, que eram naturrus. E na nOite que se segue, Deus, Cris-
obedece a um pastor que, ele próprio, é infiel à lei, infiel ao to aparece a ela e diz: por que você confiou seus segredos a
princípio de obediência, nesse momento você também se um,padre? Seus segred~s você deve guardar para si mes-
toma herético. Heresia da obediência, diz Jan Hus. ma . Recusa da confissao, em todo caso tendência a uma
O outro aspecto doutrinal é o problema do poder sa- recusa da confissão.
cramental do padre. No fundo, em que consiste o poder do E, finalmente, a eucaristia. Vocês têm todo o problema
padre de distribuir sacramentos? Desde as origens, a dou- da presença real e todas as práticas de contracondutas que
trina da Igreja não havia cessado de aprofundar, de estear, se desenvolveram nessas comunidades, em que a eucaristia
de adensar e, cada vez mais, de intensificar o poder sacra- retoma a forma da refeição comunitária com consumo de
mental do padre". O padre é capaz, primeiramente, de fa- pão e de vinh~, mas em geral sem dogma da p_resença real.
zer entrar na comunidade ao balizar, é capaz de absolver Eis a espeoe de fundo teórico sobre o qual se desen-
ante o céu o que ele absolve na confissão na terra, é capaz volveram essas comunidades. Positivamente, a formação
enfim de dar o corpo de Cristo pela eucaristia. É todo esse dessas comumdades se caracteriza pelo fato de que, justa-
poder sacramental, definido pouco a pouco pela Igreja para mente, ela~ supnmem ou tendem a suprimir o dimorfismo
seus padres, que vai ser, que é sem cessar questionado nas paru:_es e le1gos, que caractenzava a organização da pastoral
diferentes comunidades religiosas que se desenvolvem'"· cnsta. Esse dim~rfismo cléri!\os-leigos é substituido por quê?
Recusa, por exemplo, do batismo obrigatório imposto às P~>r um certo nume":' ~e co1sas, que podem ser: a designa-
crianças e que é plenamente um efeito do ato do padre so- çao do pastor por ele1çao e de maneira provisória, como en-
bre alguém que não tem vontade". Recusa portanto doba- contramos entre os taboritas, por exemplo. Nesse caso, é evi-
tismo das crianças e tendência a desenvolver o batismo dos dente que o pastor ou o responsável, o praepositus, sendo
adultos, isto é, um batismo voluntário, voluntário de parte eleito proV!sonamente, não tem nenhuma caracteristica
dos indivíduos, voluntário também de parte da comunida- que o assin_ale d<;finitivamente. Não é um sacramento que
de que aceita o indivíduo. Todas essas tendências é que vão ele recebe, e a propna vontade da comunidade que o encar-
levar, claro, ao anabatismo62, mas já as encontramos entre rega por algum tempo de um certo número de tarefas de
os valdenses, entre os hussitas, etc. Desconfiança [também] n;sponsabilidades,e que lhe c~nfia uma autoridade pr~vi­
da confissão, essa confissão que, até os séculos X-XI, ainda sona, mas que ele Jamrus detera por ter recebido um sacra-
era uma atividade, uma prática que podia ser realizada en- ment?. Esse dimorfismo clérigos e leigos é substituido com
tre leigos, mas que, depois, a partir dos séculos XI-XIL ha- frequenc1a por outro dimorfismo, muito diferente entretan-
via sido reservada essencialmente, exclusivamente aos pa- to, que é o da _?PO~ição, da distinção entre os que são elei-
dres. Vemos desenvolver-se então nessas comunidades a tos e os que nao sao eleitos. Encontramos isso é claro en-
prática da confissão dos leigos, a desconfiança em relação à tre todos os cátaros, encontramos também entre os valden-
confissão feita ao padre. Por exemplo, nos relatos feitos pe- ses. E essa distinção é, apesar de tudo, bem diferente, por-
los Amigos de Deus de Oberland, temos o célebre relato de que, a partu do momen.to em que alguém já é eleito, a partir
uma mulher que havia se dirigido a um padre para lhe con- desse moment?, ~ e~cac1a do_ padre para a sua salvação se
tar de que tentações era ela objeto, tentações carnais, e o pa- toma nula. E Ja nao e necessana a intervenção de um pas-
278 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1." DE M1RÇO DE 1978
279
tor para guiá-lo no caminho da salvação, pois ele já o tri-
lhou. Inversamente, os que não são eleitos e que nunca se- mentos, melhor dizendo, compromissos de obediência recí-
rão eleitos, estes também já não necessitam da eficácia do pr':ca de um individuo a outro. Assim, Ruiman Merswin" e 0
pastor. Nessa medida, esse dimorfismo eleitos-não eleitos anorumo chamado Amigo de Deus de Oberland" haviam
exclui toda essa organização do poder pastoral, essa eficá- feito um pacto de obediência recíproca por vinte e oito anos.
cia do poder pastoral que encontramos na Igreja, digamos, Ficara entendido entre eles que, por vinte e oito anos um
oficial, a Igreja geral. obedeceria às ordens do outro, como se o outro fosse 0 'pró-
Consideremos ainda o princípio da igualdade absoluta pno Deus'" . Encont:;arnos também fenômenos de inversão
entre todos os membros da comunidade: sob uma forma de hierarqUias. Isto e, embora o pastorado cristão diga que 0
religiosa, isto é, cada um é pastor, cada um é padre, ou seja, pastor deve, é claro, ser o último dos servidores da sua co-
ninguém o é; [ou sob a forma]* econômica estrita que vocês murudade, sa~e~se perfeitamente- e tinha-se a experiência
encontram entre os taboritas, em que não havia posse pes- disso- que o último dos seMdores da comunidade nunca se
soal dos bens e tudo o que podia ser adquirido o era somen- toma~ pastor. Nesses grupos, ao contrário, temos inversões
te pela comunidade, com uma partilha igualitária ou uma SIStematicas de hierarquia. Ou seja, escolhe-se precisamen-
utilização comunitária das riquezas. te o mru_:; Ignorante ou o mais pobre, eventualmente o de pior
Isso não quer dizer, por sinal, que, nessas comunidades, reputaçao ou honra, o ~ais depravado, escolhe-se a prosti-
o princípio da obediência era totalmente desconhecido ou tuta para ser a responsavel pelo grupo". Foi o que aconte-
suprimido. Ao contrário, havia um certo número de comu- ceu, por exemplo, com a Sociedade dos Pobres e Jeanne Da-
nidades em que nenhuma forma de obediência era reconhe- benton, que passava por ter tido a vida mais desregrada e
cida. Havia comunidades, por exemplo, certos grupos de ir- que se tomara, JUstamente por causa disso, a responsável, a
mãos do Livre EspúitoM que eram de inspiração panteísta, pastora do grupo. Assin; como a ascese 17m um pouco esse
mais ou menos inspirados em Amalrico de Bena"', em Ulri- lado de exage_r,o quase rro';lco em relação a regra pura e sim-
co de Estrasburgo"', para quem Deus era a própria matéria. pies de obediencia, lambem poderíamos dizer, por conse-
Por conseguinte, tudo o que podia ser individualizado não gumte, que havra nessas comunidades, e de fato houve em
passava de ilusão. A divisão entre o bem e o mal não podia c:rtas comu~dades, um lado de contra-sociedade, de inver-
existir e nada mais era que o efeito de uma quimera, e, por sao das ~elaçoes e de hierarquia social, todo um lado de car-
conseguinte, todos os apetites eram legítimos. Nessa medi- naval. Aí, Se_?a necessário (... bom, este é outro problema)
da, temos um sistema que, pelo menos em princípio, exclui estudar~ rratica carnavalesca da inversão da sociedade e da
toda obediência ou, em todo caso, afirma a legitimidade de constituíçao desses grupos religiosos com base num mode-
toda conduta. Mas encontramos então, nessas comunida- lo ex~tarnente inverso ao da hierarquia pastoral existente.
des, muitas outras maneiras de impor os esquemas de obe- Os pr;merro~ serão efetivarnente os últimos, mas os últimos
diência, mas de um modo bem diferente do esquema pasto- lambem serao os primeiros.
ral. É o caso, por exemplo, das relações de obediência recí- Terceiro elemento de constituição, uma terceira forma
proca. Os Amigos de Deus de Oberland tinham regras, jura- de contraconduta, seria a mística* isto é, 0 privilégio de uma

""M.F.: e também, igualdade * M.F. acrescenta: somente agora percebo que fui longe demais.
Tenho vontade de parar por aqui ... Vocês devem estar cansados. Não sei.
AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978 281
280 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

numa espécie de equívoco, já que o segredo da noite é que


experiência que, por definição, escapa do poder pastoral. ela é uma iluminação. O segredo, a força da iluminação está
Esse poder pastoral havia, no fundo, desenvolVIdo uma eco- precisamente em que ela é cega. E, na mística, a ignoráncia
nomia da verdade que, vocês sabem, 1a do ensmo, d<; um é um saber, e o saber tem a própria forma da ignoráncia. N es-
lado do ensino de uma verdade ao exame do mdiVJduo. sa medida, vocês estão vendo quanto está longe dessa for-
Um~ verdade transmitida como dogma a todos os fiéis e ma de ensino que caracterizava a pastoral. Ainda na pasto-
uma verdade tirada de cada um deles como segredo desco- ral, era necessário haver uma direção da alma individual
berto no fundo da sua alma. Com a mística, temos uma pelo pastor e, no fundo, nenhuma comunicação da alma
economia que é completamente diferente, já que, primeira- com Deus podia ser feita se não fosse, ou relegada, ou pelo
mente, teremos um jogo de visibilidade totalmente diferen- menos controlada pelo pastor. O pastorado era o canal que
te. A alma não se mostra ao outro num exame, por todo um ia do fiel a Deus. Claro, na mística, vocês têm uma comuni-
sistema de confissões. A alma, na mística, se vê a si mesma. cação imediata que pode estar na forma do diálogo entre
Ela se vê a si mesma em Deus, e vê Deus em si mesma. N es- Deus e a alma, na forma do chamado e da resposta, na for-
sa medida a mística escapa fundamentalmente, essencial- ma da declaração de amor de Deus à alma, da alma a Deus.
mente, do'exame. Em segundo lugar, a mística, como reve- Vocês têm o mecanismo da inspiração sensível e imediata
lação imediata de Deus à alma, _também escapa da estrutu- que faz a alma reconhecer que Deus está presente. Vocês
ra do ensino e dessa repercussao da verdade, daquele que têm também a comunicação pelo silêncio. Vocês têm a co-
sabe àquele que é ensinado, que a transmite. Toda essa hie- municação pelo corpo a corpo, quando o corpo do místico
rarquia e essa lenta circulação das ;rerdade_s ensmadas, tudo sente efetivamente a presença, a presença premente do cor-
isso é curto-circuitado pela expenenc1a rmstica. Em tercerro po do próprio Cristo. Portanto, aqui também, vocês vêem
lugar, a mística admite e funciona de acordo com um pnn- quanto a mística está distante da pastoral.
cípio de progresso, tal como o e!'smo, mas de acordo com [Quarto elemento], será meu penúltimo ponto, por
um princípio de progresso que e bem difer~nte, pms o ca- esse então posso passar rápido, é o problema da Escritura.
minho do ensino vai regularmente da 1gnoranc1a ao conhe- Ou seja, não é que os privilégios da Escritura não existiam
cimento pela aquisição sucessiva de um certo número ?e numa economia do poder pastoral. Mas é evidente que a
elementos que se acumulam, enquanto o caminho d~ mJs- presença da Escritura era como que relegada a um segundo
tica é bem diferente, pois passa por um JOgo de alternancJas plano em relação ao que era essencial na pastoral: a presen-
- a noite 1 o dia, a sombra I a luz, a perda I o reencontro, a ça, o ensino, a intervenção, a palavra do pastor. Nos movi-
ausência 1 a presença-, jogo que se inverte sem cessar.1;'e- mentos de contraconduta que vão se desenvolver ao longo
lhor dizendo a mística se desenvolve a partir de expenen- de toda a Idade Média, vamos ter precisamente, de certo
cias e na fo~a de experiências absolutamente ambíguas, modo para curto-circuitar o pastorado e a ser utilizado con-
tra o pastorado, o retorno aos textos, o retorno à Escritura".
Porque a Escritura é um texto que fala sozinho e que não
Não sei o que fazer. Por outro lado, precisariam':-' con~l~- Vai ser_ rápi- necessita do mediador pastoral; ou, se um pastor tem de in-
do, porque são coisas conhecidas, no fundo. Vru s~r raptdo; e_ assnn fi- tervir, isso só pode se dar de certo modo no interior da Es-
caremos livres do assunto, passaremos a outra coiSa da proXlll\a vez... critura, para esclarecê-la e para melhor colocar o fiel em re-
Bom. Terceiro elemento de contraconduta: a mística
282 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978
283
Iação com a Escritura. O pastor pode comentar, pode expli- Fiare, o terceiro tempo, o terceiro período, a terceira fase na
car o que é obscuro, pode designar o que é importante, mas história do mundo, e nesse momento é o Espírito Santo que
o fará, de qualquer modo, para que o leitor possa ler por si Vai descer na terra. Ora, o Espírito Santo não se encarna
próprio a Escritura. E o ato da leitura é um ato espiritual que
num profeta, não se encarna numa pessoa. Ele se dissemi-
põe o fiel em presença da palavra de Deus e que encontra, na por todo o mundo, isto é, cada um dos fiéis terá em si
por conseguinte, nessa iluminação interior, sua lei e sua ga-
mesmo uma parcela, um fragmento, uma centelha do Espí-
rantia. Lendo o texto que foi dado por Deus aos homens, o
nto Santo, e nessa medida não necessitará mais de pastor.
que o leitor percebe é a própria palavra de D;us; e a com-
preensão que ele tem dela, mesmo quando e pouco dar~, Tudo isso para lhes dizer que creio que podemos en-
nada mais é do que aquilo que Deus qms revelar por SI pro- contrar, em todo esse desenvolvimento dos movimentos de
prio ao homem. Portanto, aqui também podemos dizer que contracondutas na Idade Média, cinco temas fundamentais
o retorno à Escritura, que foi um dos grandes temas de to- portanto, que são o tema da escatologia, o tema da Escritu~
das essas contracondutas pastorais na Idade Média, é uma ra, o tema da mística, o tema da comunidade e o tema da
peça essencial. _ . , ascese. Isto é, o cristianismo, na sua organização pastoral
Enfim, [quinto elemento,] nao vou me deter aqm, e a real, não é uma religião ascética, não é uma religião da co-
crença escatológica. Afinal, a outra manerra de desqualificar munidade, não é uma religião da mística, não é uma religião
o papel do pastor é afirmar que os tempos se consull';aram da Escntura '!• claro, não é uma religião da escatologia. É a
ou estão se consumando, que Deus vru voltar ou esta vol- pnmerra razao pela qual eu quis lhes falar disso tudo.
tando para reunir seu rebanho. Ele será o verdadeiro pastor. A segunda, é que eu queria lhes mostrar também que
Por conseguinte, já que ele é o verdadeiro pastor que vem esses temas, que foram elementos fundamentais nessas
para reunir seu rebanho, ele pode dispensar os pastores, os contracondutas, esses elementos não são, evidentemente,
pastores da história e do tempo, e cabe agora a ele fazer as exteriores, absolutamente exteriores, de maneira geral, ao
distinções, cabe a ele dar de comer ao rebanho, cabe a ele cristianismo, que eles são elementos-fronteira, por assim di-
guiá-lo. Dispensa dos pastores, já que Cristo volta. Ou tru:>- zer, que não cessaram de ser reutilizados, reimplantados,
bém, outra forma de escatologia, que se desenvolveu entao retomados num sentido e em outro, e esses elementos -
em toda a linha que deriva mais ou menos diretamente de como, por exemplo, a mística, a escatologia [ou] a busca da
Joaquim de Piore", é a afirmação da vinda de um terceiro comunidade - foram sem cessar retomados pela própria
tempo, de uma terceira época na história. O primeiro tem- IgreJa. Isso aparece mmto claramente nos séculos XV-XVI,
po teria sido o da encarnação da primeira pessoa da Tnnda- quando a Igreja, ameaçada por todos esses movimentos de
de num profeta, Abraão, e nesse momento o povo JUdeu ne- contraconduta, tentará fazê-los seus e aclimatá-los, até se
cessitava de pastores, que eram os outros profetas. Segun- dar a grande separação, a grande clivagem entre as Igrejas
do tempo, segundo período, segunda era: é a era da encar- protestantes, que, no fundo, escolheram um certo modo de
nação da segunda pessoa. Mas a segunda l'essoa da Tnndade reimplantação dessas contracondutas, e a Igreja católica,
não faz como a primeira, faz melhor. A pnrnerra enVIava um que, de seu lado, tentará pela Contra-Reforma reutilizá-Ias
pastor, a segunda se encarna ela mesma: é Cristo. Mas, ten- e reinseri-las em seu sistema próprio. É o segundo ponto.
do voltado ao céu, Cristo confiou seu rebanho a pastores h- Portanto, podemos dizer que a luta não se faz na forma da
dos como seus representantes. Mas vai vir, diz Joaquim de exterioridade absoluta, mas sim na forma da utilização per-
284 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE r DE MARÇO DE 1978
285
manente de elementos táticos pertinentes na luta antipas-
toral, na própria medida em que fazem parte, de maneira permite, assim penso, retomar as coisas e analisá-las não
até mesmo marginal, do horizonte geral do cristianismo. mru~ na forn;a de ~eflexo e transcrição, mas na forma de es-
Enfim, em terceiro lugar, queria insistir sobre isso para trategms e taticas.- Pronto. Perdoem-me por ter me esten-
tentar lhes mostrar que, se tomei esse ponto de vista do po- dido tanto. Da proX!ma vez, prometo, não falaremos mais
dos pastores.
der pastoral, foi, evidentemente, para tentar encontrar o
pano de fundo dessa governamentalidade que vai se de-
senvolver a partir do século XVI. Foi para lhes mostrar tam-
bém que o problema não é, de forma alguma, fazer uma
coisa como a história endógena do poder que se desenvol-
veu a partir dele mesmo numa espécie de loucura paranói-
ca e narcísica, mas [para]lhes mostrar como o ponto de vis-
ta do poder é uma maneira de identificar relações inteligí-
veis entre elementos exteriores uns aos outros. No fundo, o
problema é saber por que, por exemplo, problemas políticos
ou econômicos como os que surgiram na Idade Média- por
exemplo os movimentos de revolta urbana, os movimentos
*Por temer estar se "estendendo demais" M F ui
de revolta camponesa, os conflitos entre feudalismo e bur- a1 fr ' . ouca t resume em
guesia mercantil-, como e por que eles se traduziram num ~
cnto
ases a
a! . .
conclusão
.
mais amplamente desenvol "d d
VI a o manus-
, na qu , I'e}extando a mterpretação dos fenômenos reli .
certo número de temas, de formas religiosas, de preocupa- mos d 1"d 1 · - g10sos em ter-
e eo ogta, opoe a ela a identificação das "entradas táticas":
ções religiosas que vão desembocar na explosão da Refor-
ma, da grande crise religiosa do século XVI. Penso que, se !Se insisti] nesses elementos. táticos
correntes às · b · - _
que deram fonnas .
preosas e re-
tr ta d I Jl'LSU_ nussoes pastorat.s, nao foi, em absoluto, para sugerir que
não tomamos o problema do pastorado, do poder pastoral, se a e utas n:temas, de contradições endógenas, com o oder asto-
das suas estruturas como sendo o ponto de articulação des- ral devorando a Sl mesmo ou encontrando em ~., fun · p p .
"tes b . . . ......u cronamento seus li-
ses diferentes elementos exteriores uns aos outros- as cri- nu e suas arrerras. Fot para Identificar as ' tr d '·
· en a as . por onde proces-
sos, conflitos, transformações que podem relacionar ••
ses econômicas, de um lado, e os temas religiosos, do ou- ulh .
m eres, o desenvolvunento de uma economia mercantil d
-= com o estatuto
Iam
das
tro -, se não tomamos isso como campo de inteligibilidade, entre d 1·
o esenvo vunento da economia urbana e 0 desenvolvun· t d
, o esco ento
como princípio de relacionamento, como intercambiador P. oael
'
- · ~ enoocam-
evaçao ou a ex~çao da renda feudal, o estatuto do trabalho assala-
entre uns e outros, acho que somos obrigados, nesse mo- nado urbano, a extensao da alfabetização por onde <eno·m
od ' l' enos como esses
mento, a voltar às velhas concepções da ideologia [e]* a di- p em entrar n~ campo de exercício do pastorado, não para nele se trans-
crever, se tradllZlt, se refletir, mas para realizar di · - 1 · -
zer que as aspirações de um grupo, de uma classe, etc., vêm - b" . VlSOes, va onzaçoes des-
qualificaçoes, rea ilitações, redistribuições de todo tipo [ ] Em d' d"
se traduzir, se refletir, se exprimir em alguma coisa como zer-dd
. ca a asse, ou grupo, ou força social tem sua ideolovi~ ···· vezet- .
traduzir teo · . - o-• que pernute
uma crença religiosa. O ponto de vista do poder pastoral, o na . ~a ~uas. aspuaçoes, aspirações e ideologia de que se dedu-
ponto de vista de toda essa análise das estruturas de poder zem r~arr~JOS mstit:'~o~is, que correspondem às ideologias e satisfazem
às aspuaçpes- convu:a dizer: toda transformação que modifica as rela ões
de força entre comurudades ou grupos todo conflito q • ç
fro t . ' ue os poe em con-
n o ou que os faz nvalizar requer a utilização de táti" .
* M.F.: quer dizer odifi - cas que pernutem
~ tiii car as relaçoes de poder e a introdução de elementos teóricos que
JUS cam moralmente ou fundam em racionalidade essas táticas.
AUlA DE 1.' DE MARÇO DE 1978 287

3. a. por exemplo Essais, I, 26, ed. A. Tournon, Paris, Impri-


NoTAS merie nationale, 1998, t. I, p. 261: "Os que~ como reza nosso uso,
empreendem, com uma mesma lição e com semelhante medida
de conduta, reger vários espúitos de tão diversas medidas e for-
mas, não é de causar espécie se, em todo um povo de crianças, en-
contram apenas duas ou três que colham algum justo fruto da sua
disciplina."
4. O dualismo maniqueísta (de Manes ou Mani, 216-277) teve
grande difusão, desde o século III, na Ásia e no Norte da África. A
repressão ~e .9ue foi objeto no Império levou à sua fragmentação
numa multidao de pequenas comunidades clandestinas. Após um
eclipse de vários séculos, seitas "maniqueístas" - bogomilos, cá-
taras - reapareceram na Europa medieval, mas seu vínculo com o
maniqueísmo é problemático. A "heresia" cátara se difundiu do
século XI ao XIII na Lombardia, na Itália central, na Renânia, na
Catalunha, em Champagne, na Borgonha e principalmente no sul
1. Essa expressão aparentemente não está nos ~iscursos. Na da França (" albigenses"). A luta contra estes últimos foi efetuada,
passagem do 2~ Discurso relativa à aplicação diferenctada da me- primeiro, pela pregação e pelo processo inquisitorial, depois por
dicina das almas ("rilv -rfuv 1ftJKfuv i.Ct'tpEiav 2, 16, 5) segundo a cate- uma cruzada, convocada por Inocêncio m em 1208, que degene-
goria de fiéis, Gregório escreve, entretanto: "Existe entre essas ca- rou numa verdadeira guerra de conquista.
tegorias de seres às vezes mais diferença no que conce~e aos de- 5. Essa análise das revoltas de conduta correlativas do pasto-
sejos e apetites, do que no que concerne ao aspecto fístco ou, se rado se inscreve no prolongamento da tese enunciada por Fou-
preferirem, à mistura e à combinação dos elementos de que somos cault em La Volonté de savoir, op. cit., pp. 125-7, segundo a qual
feitos. Portanto não é fácil governá-los." Este último verb~ traduz "onde há poder, há resistência", não estando esta "jamais em po-
"'ti]v oLKovo!li:av" (2, 29, trad. fr. cit., pp. ~27-9): Portanto e prova- sição de exterioridade em relação ao poder", mas constituindo "o
velmente a partir desse uso da palavra oLKovO!J.La, para des1gnar o outro termo, nas relações de poder", seu "irredutível vis-à-vis". A
governo pastoral das ovelha~, co~o seres de desejos e de apetites, noção de resistência permanece, em 1978, no cerne da concepção
que Foucault forja a expressao cttada. foucaultiana da política. Assim, numa série de folhetos manuscri-
2. a. Aristóteles, Política, I, 3, 1253b: "Como as partes que tos sobre a govemamentalidade, inseridos entre duas aulas do
constituem a cidade são agora manifestas, é necessário falar em curso, ele escreve: "A análise da govemarnentalidade [ ...J implica
primeiro lugar da administração fam_iliar (olKovo~ia); de fato: toda que 'tudo é político'. [... J A política não é nada mais, nada menos
cidade é composta de famílias. Ora, as partes da adrmntstraçao fa- que o que nasce com a resistência à govemarnentalidade, a pri-
miliar (oLKovof.4Í.O.) correspondem aquelas de que, por s~a vez, uma meira sublevação, o primeiro enfrentamento." A idéia de "contra-
familia é composta. Mas uma família acabada se co~poe de escra- conduta", segund? a expressão proposta mais adiante, representa
vos e gente livre. E como é necessário iniciar a pesqwsa sobre. ca~a uma etapa essencial, no pensamento de Foucault, entre a análise
coisa por seus componentes elementares e como as partes pnrnet- das técnicas de sujeição e a análise, desenvolvida a partir de 1980,
ras e elementares de uma família são um amo e um escravo, um es- das práticas de subjetivação.
poso e uma esposa, um pai e seus filhos, é ~ecess~o ,;xamin~ ? 6. Foi em nome de um conhecimento superior ou gnose
que é e como deveria ser ca~a uma des~a tres relaçoes (Les Polth- (yvfucrtç), que os representantes dos movimentos gnósticos, desde
ques, trad. fr. P. Pellegrin, Paris, Flammanon, GP, 1990, p. 94). os primeiros séculos do cristianismo, se opuseram ao ensino ede-
288 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE l.' DE MARÇO DE 1978
289
siástico oficial. Essa tendência se afinnou sobretudo no século II e opunha firmemente, no anátema ronun .
desabrochou numa multidão de seitas. Enquanto os autores ecle- do de Ve~ona de 1184. Sua doutrf:.a ~~d~ pelo papa, no síno-
siásticos da Antiguidade viam no gnosticismo uma heresia cristã - Dauphine, no Piemonte, alcançando a Fs a~se na Provença, no
tese aceita durante muito tempo pela pesquisa modema (cf. A. guns valdenses chegaram à Boêmia o dp . e aAlemanha.~­
von Harnack, para quem o mOvimento gnóstico constituía uma tas. Cf. L. Cristiani, verbete "Valden~e"n i e s~ J:mtar~ aos hussi-
helenização radical do cristianismo) -, os trabalhos oriundos da catholique, t. XV, 1950, col. 2586 _ 1. ' n Dichonnazre de théologie
escola comparatista (religionsgeschichtliche Schule) desde o início 260
10· Os calixtinos representavam d
do século puseram em evidência a extrema complexidade do tendência moderada dos hussitas ;n:; os compo~entes da
fenômeno gnóstico e mostraram que ele não era um produto do quanto estes últimos reclama ' ao a 0 ~os utraqmstas. En-
cristianismo, mas o resultado de uma multidão de influências cies, os primeiros reivindicava:.am a~omunhao sob as duas espé-
(filosofia religiosa helenística, dualismo iraniano, doutrinas dos
cultos de mistérios, judaísmo, cristianismo). Boa síntese in M. Si-
of lhe Mil/enium, Secker & Warb;~ ~~
calypse, trad. fr. S. Oémendo Paris 19 (t .
N. Cohn, The Pursuit
5 Fanatzques de l'Apo-
mon, La Civilisation de l'Antiquité et le Chtistianisme, Paris, Ar- Nouvelles") 1962 p 215 a'·,._ 'Julliard (Dosszers des "Lettres
' ' · · . ln;r"ll, nota 39
thaud, 1972, pp. 175-86. Cf. igualmente F. Gros, in L'Herméneutique 11. Foi em Tabor (fundada em 1420 . , .
du sujet, op. cit., pp. 25-26, n. 49, que remete aos trabalhos de H.- o nome do monte em ue 0 N ' na B~enua do Sul, com
de Cristo) que os hussftas radi~: ~st;mento s_Itua a ~essurreição
11
Ch. Puech (Sur le manichéisme et Autres Essais, Paris, Flammarion,
1979). Talvez Foucault também tenha consultado o livro de H. Quatro artigos de Pra a (cf . ' e ensores mtranstgentes dos
Jones, The Gnostic Religion, Boston, Mass., Beacon Press, 1972. · · tnfra:, ~ota 39), estabeleceram seu acam-
Pamento . Oriundo dga msurrezçao de j'ulh d 1
7. Aproximar essa análise da desenvolvida por Foucault em ministração católica do bairro de Cidade ~ e 419 contra a ad-
Le Pouvoir psychiatrique, op. cit., aula de 28 de novembro de 1973, pelo ret Venceslau, esse movimento ori . ~de Praga, unposta
pp. 67 ss.: a formação de grupos comunitários relativamente igua- artesãos, recrutou rapidamente ' gm ente composto de
litários, na Idade Média e na véspera da Reforma, é descrita aí em população. "Enquanto a m . ~de~ tos nas c~adas inferiores da
termos de "dispositivos de disciplina" que se opõem ao "sistema maior parte dos pontos, à d:.:;a os ~ ~traqms~a~ se a tinha, na
de diferenciação dos dispositivos de soberania". Tomando o exem- tas sustentavam 0 direito de d _ca:~âa tradicwnal, os tabori-
plo dos monges mendicantes, dos irmãos da Vida Comum e das clérigo, interpretar as Escritura~a a~n VI uo, tanto leigo quanto
comunidades populares ou burguesas que precederam imediata- (N. Cohn, trad fr cit p 217) C co ormde as suas próprias luzes"
dos os pecadores · · ., - · onvocan o para
mente a Reforma, Foucault decifra, portanto, em seu modo de or- a fim d urifí o massacre de to-
ganização, muito mais uma crítica da relação de soberania do que
' ep caraterra ·
anunciavam o advento próximo d Mil,.. . . ' os mrus extremistas
uma forma de resistência ao pastorado. "por um retomo à ordem co .~ emo, que se caracterizaria
8. Os Países Baixos, no século XIV, foram uma das regiões em to~, taxas e arrendamentos::a~ ~:quista_perdida. Impos-
que a heresia do Livre Espírito (cf. infra, notas 41-42) encontrou o pn~dade privada em todas as suas f~::...as ~-asshun c~mo ~ pro-
mais forte arraigamento. tondade humana de nenhum ti . , · ao aven~ m_rus au-
9. Próximo originalmente da atitude das ordens mendican- tos como irmãos nenhum .po. !~dos os homens VIverao jun-
tes, o movimento valdense é oriundo da fraternidade dos Pobres reinará, e o Reido será res~~~~u~~tado ~~ o(~t:em'. 'O Senhor
de Lyon, fundada em 1170 por Pierre Valdes, ou Valdo (1140-c. batalha implicará uma luta sem , povo zbzd., p. 222). Essa
1206), que pregava a pobreza e o retomo ao Evangelho, rejeitan- velho aliado do Anticristo" tremilaguadcontra Dzves [o Rico], "esse
do os sacramentos e a hierarquia eclesiástica. Associado inicial- . . ' asst o ao senho f, dai
pnnctpalmente ao rico citadino c . r eu , mas
mente à pregação anticátara organizada pela Igreja (concílio de neo (Zoe. cit. ). O exército tabon·ta' .co~dercrantde ou proprietário forâ-
,oz errota o em Lip
Latrão, 1179), não tardou a entrar em conflito com esta, e o valdis- por tropas utraquistas. ''Depo. di f, an, em 1434,
mo viu-se associado ao maniqueísmo cátaro, a que no entanto se movimento hussita declino IS .dsso, a orça da ala taborita do
u rapt amente. Após a tomada da

J
290 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978
291
.
cidade de Tabor pelos utraqwstas, em
nh 1452 uma nome
.da' pelo tradição
de taborita
Irmãos
coerente só sobreviveu na s~tta co ea39 15. Principal inspiradora dos iluminados da Nova Castela
, . , ('b'd 231) Cf mfra nota · . . nos anos 1520, Isabel de la Cruz era irmã da Ordem Terceira de
MoraVIos l z ., P· . · ,. ·. d' frerr·as· expressão depreaativa São Francisco. De Guadalajara, onde pregava os princípios do
12 N nenmystzk nustica as · . . ali
utilizad~ p~~ certos e:Udito~ ale'::::: ~J::;~:~~o.:~:.~~ ex=
abandono místico - o dejamiento, distinto do simples recogimiento
(recolhimento)-, fonte de impecabilidade pelo amor que Deus in-
dade das begumas renano- ~e freÍ) -B p in Hadewijch d' An-
tático feminino, cf. a mtroduçaBo ~o Paris
.,Le Seuil 1954; reed. funde no homem, seu ensinamento logo se estendeu por toda a
vers, org., Écrits mystiques des eguznes, ' , Nova Castela. Detida em 1524 pela Inquisição, foi condenada à
3 chibata, depois à prisão perpétua. Cf. M. Bataillon, Érasme et l'Es-
"Points Sagesses", PP· 9- :· ti es de l'Apocalypse, trad. fr. cit., p.
13. a. N. Cohn, Les ana qu xos ue se davam pagne, Paris, E. Droz, 1937, reed. Genebra, Droz, 1998, pp. 182-3,
172: "Em 1372, certos heréticos de ambos os se dedgnados pelo 192-3 e 469; Cl. Guilhem, 'Tinquisition et la dévaluation des dis-
.. . d Pauvres mas que eram cours féminins", in B. Bennassar, org., L'Inquisition espagnole, XV'-
o nome de Soaete es . ' tidos em Paris. Eles tam-
apelido obs:~n? de turlupms, f~~: ~~mo os discípulos de Ma~­ XIX• siécle, Paris, Hachette, 1979, p. 212. Sobre os detalhes da sua
bém eram dingtdos por uma_mte]· Jeanne Dabenton. Ela foi quet- biografia e do seu processo, cf. ). E. Longhurst, Luther's Ghost in
guerite Po~ete: ver nota se~ se~ assistente, morto na prisão, e
Spain (1517-1546), Lawrence, Mass., Coronado Press, 1964, pp.
mada, assun como o corp d s discípulos. Não se sabe 93-9; id., "La beata Isabel de la Cruz ante la lnquisictón, 1524-
os escritos e as roupas estranhas os ~e~rlupins normahnente só 1529", in Cuadernos de historia de Espana (Buenos Aires), vol. XXV-
XXVI, 1957.
nada da doutrina ~eles, ma_s o nEom~. te " {Turlupin é um palhaço
era dado aos Irmaos do Livre spm o. 16. Armelle Nicolas (dita a boa Armelle, 1606-1671): laica de
grotesco. (N. da R. T.)] (falecida em 1310), beguina de Hai- origem camponesa que, depois de anos de lutas interiores, de
14. Marguente Porete S. 1 Ames Anienties et qui seulement penitências e de êxtases místicos, pronunciou o voto de pobreza e
naut, autora do Mirouer ~~ tr:zp es ( d bilín .. e de R. Guamie- distribuiu todos os seus bens aos pobres. Sua vida foi escrita por
demourent en Vouloir et Deszr d Amou.r _e . guContinuatio Me- uma freira do mosteiro de Sainte-Ursule de Vannes (Jeanne de la
l "Corpus christianorum. . Nativité), Le Tn'omphe de l'amour divin dansla vie d'une grande ser-
ri, Tumhout, Brepo s, d b rto em 1876, foi por mmto
diaevalis" 69, 1986). O textod, red esHcounegn·a Somente em 1946 foi vante de Dieu, nommée Annel/e Nicolas (1683), Paris, impr. A. Warin,
·b 'd Margan a a · · 1697. Cf. Dictionnaire de spiritualité..., t. I, 1937, col. 860-861; H.
tempo atn m o a . verdadeiro autor (cf. R. Guanue-
estabelecida a identidade d; se~ Ti ti e Documenti, Roma, Ed. di Bremond, Histo ire littéraire du sentimen t religieux en France depu is la
ri, II. Movimento del Lzbero [;~~~o:er, que ensina a doutrina_ d.o . findes guerres de Re/igion jusqu'à nos jours, Paris, B!oud & Gay, 1916-
stona e letter~tura.' 1965). a ública de Valenciennes no lffi- 1936; reed. A. Colin, 1967, t. 5, pp. 120-38.
P.uro ~o r, fm queim~doa~: h~~~tifa e relapsa pelo tribunal da II:- 17. Marie desVallées (1590-1656): também laica de origem
c1o. do
. -seculo
M XIV. DecPorete
guerite ar morreu na fogueira' na Place de Gre- . camponesa, padeceu desde os dezenove anos de tormentos, con-
qwszçao, . ar . o d ·unho de 1310. Sobre as duas proposz- vulsões, sofrimentos físicos e morais que duraram até a sua morte.
ve, em Paris, no dia 1. e I _ f fr. ).-B. P, in HadeW11ch Denunciada como bruxa, foi solta, declarada inocente e verdadei-
ções que lhe valeram ess~ conden~ç. ao,_~e~. 16 n 5 A obra é ob- ramente possuída em 1614. João Eudes, que tentou exorcizá-la em
d' Anvers, org., Écrits _mystzques de~ eguzd r:,~ alé~ da já citada de 1641, reconheceu-a possuída, mas também santa. Ele escreveu, em
I.eto de várias traduçoes em fran98c4esj':'? ee Mil!'.on 1991) Cf. Dic- 1655, uma obra em três volumes, "La Vie admirable de Marie des
. (Alb. Michel 1 · eram ' ·
R. Guamien .. m . ,. ' 4 verbete "Frêres du Libre Es-
tionnaire de spzntualzte..1.,2t5.75,112~~ e\ 10 1978 col. 343; N. Cohn,
Vallées et des choses prodigieuses qui se sont passées en elle", que
prit"), col.1252-1253 e - ' · ' ' não foi publicada, mas circulou de mão em mão. Cf. H. Bremond,
trad. fr. cit., PP· 171-2. op. cit., t. 3, pp. 538-628; P Milcent, verbete "Valiées (Marie des)",
in Diciionnaire de spiritualité..., t. 16, 1992, col. 207-212.

j
292 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978
293
18. Madame Acarie, nascida Barbe Avrillot (1565-1618): per-
tencente à alta burguesia funcionalista parisiense, foi uma das fi- gelho, que constitui para ele a , . .
' , uruca regra '-'ali 1d ,,
guras mais notáveis da mística feminina na França, na época da pobreza evangélica. Admirador de . u~. ve ale e prega a
Contra-Reforma. Introduziu na França, em 1604, com o apoio do cusa a aceitar, perde o apoio d ·~clif, CUJa condenação se re-
primo Pierre de Bérulle (1575-1629), o Carmelo espanhol. a. H. (1411 e 1412), retira-se para a Bo ;ei enceslau N e, excomungado
.
Ire outros escntos, oeffi!a mendional d di
Bremond, op. cit., t. 2, pp. 192-262; P. Chaunu, La Civilisation de De ecclesia (1413) ] d 'on e re ge, en-
l'Europe classique, P.aris, Arthaud, 1966, pp. 486-7. quando do concilio de Const . en o se recusado a se retratar
19. Sobre Wychf, cf. supra, p. 212, nota 44. N. Cohn, trad. fr. cit., pp. 21";~a,torrena fogueira em 1415. Cf.
20. Discípulos de Amalrico de Bena (c. 1150-1206): ele, que français du Livre, 1958; P. deVo~ . Bo~~r.,Jean Hus, P.aris, Oub
ensinava dialética em Paris, havia sido condenado pelo papa Ino- vain, Bureau de la Revue d.'h' t . ght,lé~Heres~e de Jean Huss, Lou-
zs ozre ecc szashq 1960 ( .
cêncio III por sua concepção da incorporação do cristão a Cristo, um vo1ume anexo, Hussiana); M S ink ue, , segwdo de
compreendida num sentido panteísta. Não deixou nenhum escri- Church, Princeton NJ Pnn· t u· p a, John Hus Concept o' the
' ' ce on ruverszty Pr 1966 '
to. O grupo dos seus seguidores- padres, clérigos e leigos de am- 22. Sobre essas revoltas d ess, .
bos os sexos - parece que só se reuniu depois da sua morte. Dez tação da Escritura cf. a confer' e cdonMduta baseadas na interpre-
.. ,
deles foram queimados em 1210, após o concílio de Paris que con- 1a cntique? [Critique et Aufkld
enaa e
J" . Foucault' "Qu' est-ce que
denou oito das suas propostas. A fonte principal para o amalrica- de 1978, Bulletin de la So 'ét' ;::'ng : pronunc1ada em 27 de maio
jun. de 1990, pp. 38-9. cz e J'ançazse de phzlosophie, 84 (2), abr.-
nismo é Guilherme, o Bretão (falecido em 1227), Gesta Philippi Au-
gusti !Víe de Philippe Auguste, P.aris, ).-L. Briére, 1825. 23. Cf. supra, p. 212, nota 45
Além do panteísmo (Omnia sunt Deus, Deus est omnia), os 24. Essa crítica perfeitam .t
arnalricenses, que professavam o advento do Espírito Santo depois munista deve ser li ada ao :n e transparente do Fàrtido Co-
so de 1978-1979 d~ estud proj:to, evocado por Foucault no cur-
da era do Pai e do Filho, recusavam todos os sacramentos e afinna-
vam que cada um pode ser salvo pela simples graça interior do Es-
pírito, que o paraíso e o inferno não passam de lugares imaginários
[... ] na origem hlstórica d: ~ !ovemamentalídade de partido,
(Naissance de la biopolitique op gt coTo os regimes totalitários"
e que a única ressurreição consiste no conhecimento da verdade. 197). Apesar de não ter sido ;.~i, a~ a de? de março de 1979, p.
Negavam, com isso, a própria existência do pecado ("Se", diziam por isso esse projeto foi aband ~ o no ambito do curso, nem
eles, "alguém que possua o Espírito Santo comete algum ato im- tada em Berkeley, em 1983 Fo:C~~ 0 · Quando da sua última es-
pudico, não peca, porque o Espírito Santo, que é Deus, não pode balho interdisciplinar sobr~ as t con~titui~ um grupo de tra-
pecar, e o homem não pode pecar se o Espírito Santo, que é Deus, entreguerras, que teria estudadnovas raciOnalidades políticas do
habita nele", Cesário de Heisterbach (falecido em 1240), Dialogus tismo político nos partido d o, entre outros temas, o militan-
miraculorum). a. G.-C. Capelle,Amaury de Béne. Étude sur son pan- tidos comunistas em term'os ed e~,qu~rda, not~damente nos par-
. ' eestilosdeVId"('·
théisme fonnel, P.aris, ). Vrin, 1932; A Chollet, verbete "Amawy de cetismo entre os revolucionários . a a etica do as-
Béne", in Dictionnaire de théologie catholique, t. I, 1900, col. 936-940; fevereiro de 1985, p. 6 . 'etc.). Cf. Hzstory ofthe Present, 1,
F. Vemet, verbete "Amaury de Bêne et les Amauriciens", in Diction- 25. Sobre o movimento an b . (
naire de spiritualié..., t. 1, 1937, col. 422-425; Dom F. \àndenbrouc- ~rut'ti~sw, mergulhar na á a) a. atista do grego <lvá, de novo, e
ke, L. Bouyer, La Spiritualité du Moyen Age, P.aris, Aubier, 1961, p. ses (cf. infra, p. 332, nota~),' '::~~do da Guer;a dos Campone-
324; N. Cohn, Les Fanatiques de l'Apocalypse, pp. 152-6. cnança, deviam receber um se P d bqual os fiezs, balizados em
21. jan Hus (c. 1370-1415). Ordenado padre em 1400, decano ~ompunha-se em múltiplas seft:. ~ atismo na idade adulta. De-
da Faculdade de Teologia de Praga no ano seguinte, é o mais ilus- IApocalypse, pp. 261- 91 . E G L d N. Cohn, Les Fanahques de
tre representante da corrente reformadora nascida da crise da Igre- tantisme, P.aris, PUF, 19 1; ~e~d. ';,Ou~dnH~~;o~~ générale du protes-
6
ja tcheca no meado do século XIV. Traduziu para o tcheco o Evan- 26. Palavra já empre ada um g '. 88, t. 1, P~· 88-91.
formas religiosas de recus! da med.i~~~~o actma, a propostto das

J
294 SEGURAN<;A TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1' DE MARço DE 1978
295
27. Foi no início dos anos, 1970 que a palavra "dissidência" F. Pr~t, verbete t;Évêque. I: Ori . '~ .
se impôs para designar o movimento intelectual de oposição ao de theologie catholique t V 191f"e ?e I episcopal", in Dictionnaire
sistema comunista,. na URSS e nos países do bloco soviético. "Dis- ~tos 20; 17.28; 1 Pedr~ 5; 1~ 2, etc' ~o · 1658- ~672. Ver por exemplo
sidentes" corresponde à palavra russa inakoritysliachtchie, 11 os que tolic?~ e invocada pelos protest~te~sa ;monuru:a nos escritos apos-
pensam de outra maneira". Esse movimento se formou em conse- o numstro é um simples membro daa avor ~a tese segundo a qual
qüência da condenação de Siniavski e Daniel em 1966 (cf. supra, por ela para a pregação e a adrnini c-:murudade laica, deputado
pp. 215-6, nota 64). Seus principais representantes na URSS, além , 34. a. A Michei, verbete .. ;traçao dos,;acramentos.
de Soljenitsin (cf. infra, nota 29), eram o físico Andrei Sakharov, o theologze catholique, t. xrv, 1939, col.~~~ments ' m Dictionnaire de
matemático Leonid Pliutch (que Foucault conheceu quando este 35. O N concilio de Latrão ( : . .
chegou a Paris, em 1976), o historiador Andrei Arnalrik, os es- confessar regularmente P I 1215) mstituiu a obrigação de se
critores Vladimir Bukovsky (autor de Une nouvelle maladie menta/e la . ' e o menos uma
para os Icos, e todos os meses vez por ano, na Páscoa
en URSS: l'apposition, trad fr. F. Simon e).-). Marie, Paris, Le Seuil, os clérigos. Sobre a importan" . oud mesmo todas as semanas par~
1971), Aleksandr Guinzburg, Victor Nekrassov e Aleksandr Zino- vol · d ." Cia esse aconte · '
. vunento a pemtencia "tarifad " Cimento no desen-
viev.Ver Magazine littéraire, 125 Qunho de 1977): URSS: les écrivains no e penal, cf. Les Anormaux a : segundo um modelo judiciá-
de la dissidence. Na Tchecoslováquia, a dissidência se organizou em 1975, pp. 161-3. ' ap. czt., aula de 19 de fevereiro de
tomo da Carta de 77, publicada em Praga, cujos porta-vozes eram 36. Quando deste curso o livro fun
jiri Hajek, Vaclav Havel e jan Patocka. Nais~nce du purgatoire, Pari~, Galli da~ental d~). Le Goff, La
28. Cf. a entrevista de M. Foucault a K. S. Karol, "Crimes et torres '1981, ainda não havi 'd mard, Bibliotheque des his
châtiments en URSS et ailleurs ... " (Le Nouvel Observateur, 585, podido ler, entre outros estu~ SI o publicado. Mas Foucault haVi~
26/01-1?/02/1976), DE, III, n? 172, p. 69: "[ ... ]o terror, no fundo, não toire", in Dictionnaire d ~ ~~ o verbete de A. Michel "Pur
1326 (cf. a bibliografi:J~~ ~f;~~tholique, t. Xlll, 1936, ~o!. ~;:
0
é o auge da disciplina, é seu fracasso. No regime stalinista, o 11
próprio chefe de polícia podia ser executado um belo dia, ao sair da Goff, op. cit., pp. 487-8). os sobre o purgatório Iii). Le
reunião do. ministério. Nenhum chefe da NKVD morreu na cama". 37. Cf. o De ecclesia composto
29. Sobre Aleksandr lssaievitch Soljenitsin (nascido em 1918), ~m em 1378, o outro em 1413· Ioh~or_cada u?"l dos dois autores,
figura emblemática da dissidência anti-soviética, cf. Naissance de la sza, ed. por I. Loserth Londre . 1i "b ms Wyclif, Tractatus de eccle-
biopolitique, aula de 14 de fevereiro de 1979, p. 156, n. 1. son Reprint CorporatÍon, Nov!'Yo~ ner & Co., 1886 (reed.: John-
30. Sobre a origem dessa distinção, cf. ). Zeiller, 'Torganisa- va, 1966); Magistri )ohannis H 1i e Londres I Frankfurt, Miner-
tion ecclésiastique aux deux premiers siêcles", in A Fliche e V. Thomson, Cambridge U . us, radatus de ecclesia, ed. por S H
Martin, org., Histoire de l'Église depuis les origines jusqu'à nos jours, Sons, 1956. ' ruversity of Colorado Press, W. Heffe~ &
t. I: I:Église primitive, Paris, Bloud & Gay, 1934, pp. 380-1. 38. Cf. supra, nota 9.
31. Sobre as diferenças de estatuto entre esses dois gêneros 39. Depois da morte de )an H
de cristãos (a que se soma um terceiro "estado", o dos religiosos) dos senhores da Boêmia p t t us (cf. supra, nota 21), a Dieta
na Idade Média, cf. G. Le Bras, in j.-B. Duroselle e E. jany, org., c_ondenação. A "defenestraç~~;sd~~ com veez_nência contra a sua
Histoire de l'Église depuisles origines jusqu'à nos jours, t. XII: Institu- smal para a insurreição hussita /~a,em Julho de 1419, deu o
tions ecclésiastiques de la Chrétienté médiévale, Bloud & Gay, 1959, 1437. No decorrer desses dez 't ' e Itivamente reprimida em
oxoanosaE .
pp. 149-77. cruza das, convocadas elo a ~ . uropa organiZou cinco
32. Alusão à tese do "sacerdócio universal", defendida por para liquidar a "heresi~ O p pa e pelo Imperador Sigismundo
do nos Quatro Artigos d."Prf':. fr~). ~os hussitas_estava resumi:
0
VVyclif e Hus, e depois retomada por Lutero.
33. Sobre a sinonímia desses termos ("antigo", lq)ecrjl{mpoç, e comtmhao sob as duas es ~ . : vre pregaçao da Escritura
"vigia", €1rimcorcoc;) no século I e sua diferenciação progressiva, cf. pressão dos pecados m!rt~~es(c~~~sc~ dos bens do d~ro e re~
. ohn, Les Fanahques de

J
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 1.' DE MARÇO DE 1978 297
296

l'Apocalypse, pp. 214-5). Seu movUnento, no entanto, era dividido tas casas ou bairros. {... ] As beguinas não exibiam intenções for-
em duas facções inimigas: a facção moderada,_utraqwsta ou calix- malmente heréticas, mas aspiravam ferozmente à experiência mís-
tina (cf. supra, nota 10), aberta a~ ~ompr<?nusso com Roma, qu~ tica em suas formas mais intensas. Faltava às beguinas a disciplina
obteve satisfação para os dois pnmerros arhgos em 1433 (Compac de uma ordem regular; tampouco eram guiadas pelo clero secular,
tata de Basiléia), e a dos radicais, ou tabontas (cf. supra, nota 10). que via com olhos nada amenos esses insensatos e temerários
Os utraquistas se aliaram a Roma em 1434 p~a esm~gar os tabo- acessos de ardor religioso". Cf. Fr. ).-B. !'., in Hadewijch d' Anvers,
ritas. Cf. E. Denis, Huss et la gume des huss1tes, Paris, E; Leroux, org., Écnts mystiques des Béguines.
1878, reed., 1930; ). Macek, Le Mouvement huss1te en Boheme, Pra- .43. Espiritualidade elaborada pelos lnnãos da Vida Comum,
reurudos no mosteiro de Wmdesheim, e batizada por Johannes
ga, Orbis, 1965. Busch, cronista de Wmdesheim. Ela encontrou sua expressão mais
40. Cf. supra, nota 25. , . .
41. Cf. N. Cohn, trad. fr. cit., p. 159: Aheres1a do Llvre E~ consumada na Imitação de Jesus Cristo, atribuída a Tomás de Kem-
" ·to mantida em xeque por mais de cinquenta anos, teve. u pis. a. P. Debongnie, verbete '"Dévotion moderne'", in Diction-
Pf\ct~ recrudescimento em fins do século XIII. Desde esse ms- naire de spiritualité..., t. 3, 1957, col. 727-747; P. Chaunu, Le Temps
~a~te até 0 fim da Idade Média, ela foi difundid,a por homens co~ des reformes. La crise de la chrétienté, l'éclatement, Paris, Fayard, 1975,
mumente chamados de bégards e que constitu1am a contraparb pp. 257 e 259-60, que remete a E. Delaruelle, E. R. Labande e P.
da oficiosa e laica das ordens mendicantes.[ ...] Esses santos men- Ourliac, Histoire de l'Église, t. XN, ed. Fliche & Martin, em particu-
dicantes, cuja autoridade emanava apenas deles mesmos, ost~~­ lar p. 926: "O primeiro traço que chama a atenção, na devotio mo-
tavam 0 maior desprezo pelos monges e pelos. padres_ ~e V1 a dern_a, 9uando_ comparad~ à ~evoção monástica tradicional, é que
f' il· eles tinham prazer em interromper os seMços religiOSOS e ela ms1ste mrus sobre a vtda mterior pessoal do que sobre a litur-
gia" (p. 259). Cf. A. Hyma, The Christian Renaissance: A History of
r~)eitavam qualquer disciplina religiosa. ~re~vam sem cess~~
sem autorização, mas com um sucesso constd~rave~ entre o povo. the "Devotio moderna", Grand Rapids, Mich., 1924, 2 vols.
44. A restrição do isolamento anacorético foi objeto, no Oci-
Sobre a condenação dos bégards e das begumas m regno Alerr:-
nia elo concílio de Viena em 1311, cf. Dom F. Vandenbrouc .e, dente, de vários cânones conciliares desde 465 (concilio de Vannes;
in Óom j. Leclercq et al., La spiritualité au Moyen Age, op. C!t., disposições reiteradas no concílio de Agde (506) e no concílio de
Orléans (511)). Cf. N. Gradowicz-Pancer, "Enfennement monas-
PP· 4~~:'21. N. Cohn, trad. fr. citada, pp.161-2: "[ ...]o movimento tique et privation d' autonomie dans les regies monastiques 01~-VI~
[do Livre Espírito} deveu muito às ~ulheres co~hectdas pel? siecles)", Revue historique, CCLXXXV!ll/1, 1992, p. 5. Sobre a ana-
nome de beguinas. Eram citadinas, a mawr p~~ onunda de fanu- corese egípcia, cf. P. Brown, Genese de l'Antiquité tardive, Paris, Gal-
lias abastadas, que se consagravam à vida religiosa p~rmanecen­ limard ("Bibliotheque des histoires"), 1983, cap. 4, "Des cieux au
do orém no século. No curso do século Xlll, as begumas se mul- désert: Antoine et Pacôme" (texto publicado nos Estados Unidos
tipiicararn' na região da atuai Bélgica, no norte da França, no vale em 1978, a partir de conferências pronunciadas em Harvard em
do Reno_ em Colônia havia duas mil-, assim como na Bavtera e 1976). Foucault sem dúvida conhecia, nesta data, os primeiros ar-
em certas cidades da Alemanha Central com? Magdeburgo. Para tigos de P. Brown sobre a questão (por exemplo: "The rise and
se distinguir, essas mulheres adotaram um habtto de tipo religi~­ function of the Holy Man in late Antiquity", fournal of Roman
so, pelerine de lã cinzenta ou preta,~ véu. Mas nem to~a~ prati- Studies, 61, 1971, pp. 80-101), assim como o livro de A. Voobus, A
cavam 0 mesmo tipo de vida, longe disso. Algumas [... } VIVIam em History ofAscetism in the Syrian Orient, Louvain, CSCO, 1958-1960.
família dos seus bens ou do seu trabalho pessoal. ~utras, que ha- Cf. igualmente E. A. )udge, "The earliest use of 'Monachos"', Jahr-
· ' ido todo vm'cu]o enavarn de cidade em crdade em bus- buchfor Antike und Christentum, 20, 1977, pp. 72-89.
VIam romp ' . . · 1 45. Cf. Cassiano, Conferências, 18, caps. 4 e 8. Sobre a questão
ca de esmolas, como os bégards. Mas a m_awna das begumas ogo
constihÚram comunidades religiosas ofic1osas, agrupadas em cer- da opção entre a vida anacorética e a vida monástica em Cassia-
298 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978 299

no, cf em particular a introdução .de E; Pichery, pp. 5?~4, que evo- tança aos treze anos de idade, seguiu o ensinamento de Eckhart
ca a posição de são Basílio, favoravel a forma cenobrti~a (N. Gra- em Co~ônia e consa_grou sua vida a pregar e a dirigir as monjas. Cf.
dovv:icz-Pancer, artigo citado, p. 5, n. 13, remete tambem a ~8, 8, J.- A. BIZet, Le Mystzque allemand Henri Suso et le déc/in de la scolas-
pp. 21-2, a propósito dos solitários considerados fal,;os ererruta~); tique, Paris, F. Aubier, 1946; id., Mystiques allemands du XIV' siecle:
Regra de são Bento, cap. 1, "Das espécies de mon_ges (o autor dis- Eckhart, Suso, Tauler, s.l. [Paris], Aubier, s.d. [c. 1957], pp. 241-89
tingue entre os cenobitas, que vivem em mosterro sob uma regra (reed. Aubier-Montaigne, "Bibliotheque de philologie germani-
e um abade, os anacoretas, já preparados para o "combate sin~­ q~e", 1971); id., verbete "Henri Suso", in Dictionnaire de spirituali-
lar do deserto" pela disciplina adquirida no rr:o~;eiro, os_ ~abat­ le ..., t. 7,1968, col. 234-257; Dom F.Vandenbroucke, in DomJ. Le-
Ias, que "têm por lei a vontade dos seus deseJOS , e os grrovagos, clercq el ai.., La Spiritualilé au Moyen Ãge, pp. 468-9.
"sempre errantes e nunca estáveis"). Sob~ a pas~agem do ~~eser­ 53. Vie, XVI, in Bienheureux Henri Suso, Oeuvres completes,
to", como lugar da vida perfeita, ao elog10 da VIda cenobltica_no ~ad. fr: e not':s de J. Ancelet-Hustache, Paris, Le Seuil, 1977, p. 185:
pensamento de Cassiano, cf. R A. Markus,. The End of AnC!enl No dta de sao Oemente, quando começa o inverno, ele fez uma
Christianity, Cambridge, Cambndge Uruverstty Press, 1990, cap. vez uma confissão geral e, como estava em segredo, trancou -se
11, "City or Desert? Two models of community". . . • em sua cela, despiu-se até a roupa de baixo de crinolina pegou
46. Sobre a ascese, no sentido estrito de áskes1s, 1sto e, exer- sua disciplina com os pregos e bateu -se no corpo, nos braç~s e nas
cício, cf. I:Herméneutique du sujei, aula de 24 de fevereiro de 1982, pernas, de modo que o sangue escorreu de alto a baixo como
pp. 301-2. quando se escarifica. R:>r ~or:nportar, em particular, um pre~o cur-
47. Esses exemplos não se encontram nos Apophtegmata Pa- vo como um anzol, a disctplina mordia a carne e a rasgava. Ele se
trum, PG 65, trad. ing. de B. Ward, The Sayings of lhe Desert Falhers, bateu com ta~ta força q_ue a disciplina se quebrou em três peda-
Oxford, Oxford University Press, 1975; trad. fr. incompleta de J.- ços, um lhe ficou na mao e os pregos de ferro foram projetados
Cl. Guy, Paroles des Andens, ap. di.; trad. fr. integral de L. Regnault, contra as p~e?-es. Qu-:ndo, de p~, olhou para si, todo ensangüen-
Les Senlences des Peres du Désert, Solesmes, 1981. tado, essa VISao era tao lamentavel que ele se parecia de certo
48. Cf. supra, aula de 22 de fevereiro, pp. 235-6. modo com o Cristo bem-amado quando o flagelaram cruelmente.
49. Cf. ibid., p. 233. . ._ s:ntiu tamanho ~ó de ~i mesmo que chorou de todo o coração,
50. A anedota não se encontra nem nas Instztutçoes de Cas- a1oelhou -se no frio, assim nu e ensangüentado, e rogou a Deus
siano, nem nos Apophtegmata Patrum, nem na História Iausíaca. para que, com um olhar de candura, apagasse os seus pecados."
51. Lembrem-se, ao ler esta frase, que Foucault, algumas se- 54. Cf. supra, nota 11.
manas depois desta aula, esteve no Japão, onde teve a oportuni- 55. Surgido na Itália, no meado do século XIII, o movimento
dade de debater, em Kyoto, "com especialistas, sobre a mística bu- dos_ ~agelantes ~ . .cujos membros praticavam a autoflagelação, por
dista zen comparada com as técnicas da mística cristã" (D. Defer;, espmto de perutencia - estendeu -se à Alemanha onde teve um
"Chronologie", DE, I, p. 53). Cf. "Michel Foucault et le zen: un se- notável crescimento durante a Peste Negra de 1348-49. Descre-
jour dans un temple zen" (1978), DE, III, n? 236, pp. 618-24; cf. em ven~o com minúcia o ritual das suas procissões, N. Cohn salienta
particular p. 621, sobre a diferença entre o zen e o .m~s~cismo .cn:- a atitude benevolente da população para com eles. "Os flagelan-
tão, que "visa a individualização": "O zen e o m1stictsmo c;tst_ao tes eram considerados e se consideravam eles próprios não sim-
são duas coisas que não se pode comyarar, ao p~s.o ~ue a tecmca ples pecadores que expiavam seus pecados, mas mártires que as-
da espiritualidade cristã e a do zen sao co~~arave1s. . . sum~~ os_pecados do mundo, afastando com isso a peste, ou até
52. Heinrich Suso (1295?-1366), dorrurucano, beatificado em a aruquilaçao total da h~anidade". (Les Fanatiques de l'Apocalypse,
1831; autor do Horologium sapientiae e de vária~ obras escritas em P· 129). Assun, a flagelaçao era VIVIda como uma imitatio Christi
alemão, a Vida, o Livro da sabedoria eterna, o Lzvro da verdade e o c_oletiva. A p~ _d~ 13~9, o movimento evoluiu para um milena-
Pequeno livro das letras. Tendo entrado para o mosteiro de Cons- nsmo revolucwnano, VIOlentamente oposto à Igreja, e teve um pa-
300 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AU!A DE 1." DE MARÇO DE 1978
301
pel ativo nos massacres de judeus. A bula do papa Clemente VI ~tisfazer seus desejos carnais, a fim de se li das -
(outubro de 1349), condenando seus erros e excessos, acarretou ~pediam a ação de Deus nela e punham s::ar tentaç~es que
seu rápido declínio. a. P. Bailly, verbete "Flagelants", in Diction- dignada, ela expulsou o padre da sua presen ~a em pengo. ln-
naire de spiritualité..., t. 5, 1962, col. 392-408; N. Cohn, trad. fr. cit., Deus lhe censurou vivamente o erro que ela k· .
a nOite. segumte,
velar a um homem os se edos da sua . . VI~ cometido ao re-
pp. 121-43.
56. ). Wyc!if, De ecclesia. A tese é retomada por jan Hus, que seu esposo devia conhec~· acus d VIda mtenor, que somente
afirma que um padre em estado de pecado mortal já não é um prudente~ ter feito um ho~em d~~~~e ~~o: sua 't~garelice' im-
autêntico padre (afirmação que vale para os bispos e o papa): "Os de novo por ela no dia seguinte o c nf m peca o. Chamado
padres que, como quer que seja, vivem no vício, maculam o poder a ser um homem de uma piedad ~ essor se emendou e voltou
sacerdotal[ ... ]. Ninguém é representante de Cristo ou de Pedro se
64 a N C hn, Les "
· · .· o
. e e e uma conduta exemplares".
canatiques de l'Apoca/ .
não imita igualmente seus costumes" (proposições extraídas dos Leff, Heresy zn the Later Middle Ages· ypse, PP· 157-63, G.
escritos de Hus, segundo a bula de Martinho V de 22 de julho de Dissent, c.1250-c.1450 Manche t .MThe Rehlation ofHeterodoxy to
1967 ' ser, anc esterUruve "tyPre55
1418, citadas por). Delumeau, Naissance et Affirmation de la Ré- • PP· 308-407 (que contesta, pp. 309-10 a fili - rs'. :
forme, P.aris, PUF, "Nouvelle Oio", 2~ ed., 1968, p. 63). por Foucault)· R E Lerner Th ' açao sugenda aqw
57. A capela dos Santos Inocentes de Belém, cornumente Middle Ages, Berkei~, Uni~ers7tyHoerfesCyalifof the Frepe Spirit in the Later
65 a -" onua ress 1972
chamada Igreja de Belém, na qual )an Hus, a partir de março de . . supra, nota 20, a propósito dos arnalricenses. ' .
1402, empreendeu sua pregação em tcheco. 66 · U!ri ch EngeIbert de Estrasb (12
58. Não conseguimos encontrar a fonte dessas duas citações. fervoroso discípulo de Alberto M urgo . 20/25-1277) foi um
59. Cf. supra, p. 267. Paris, depois em Colônia. É autor~~~:~~: ~sos assistiu em
60. a. A Michel, "Sacrements", loc. cit., col. 593-614. ma de summo bono (cf. ). Daguillon Wrich de gigantesca, a Sum-
61. Ibid., col. 594: "A carta de Inocêncio III a Ymbert de Arles summa de Bono. Livre I ln~od et 'd :" .. Strasbourg O.P. La
· " · e luon cntique P.ari "B.bli h'
(1201), inserida nas Decretais, L III, tit. III, 42, Majores, censura os que thomiste" XII, 1930), que constitui um do ' s, I ot e-
que pretendem que o batismo é conferido inutilmente às crianças,
An P.ari Pa
a
~adores da teologia renana. É Gils L PS grandes textos fun-
· · on, a h!losoph<e au M
dizendo que a fé ou a caridade e as outras virtudes não lhes po- • ..e, s, yot, 1922,reed. "Petite Bibliothéque Pa ot" oyen
dem ser infundidas, nem mesmo como habitus, porque elas são A. de Libera, La Myshque rhénane. D'Albert 1 G Y , • PI;: 516-9,
incapazes de consentir." hatt P.aris 0 il "S e rand a Mmtre Eck-
' ' e ' agesse chrétienne" 1984· .
62. Cf. supra, nota 25. "Points Sagesses", 1994, pp. 99 _16 1. ' 'reed. P.aris, Le Seull,
63. Cf. A. jundt, Les Amis de Dieu au quatorziéme siécle, P.aris, 67. a. J. Ancelet-Hustache, introd. a Sus ."
Sandoz & Fischbacher, 1879, p. 188. Trata-se da história de Úrsu- Rulman Merswin (1307-82) lei o ban . o, O. C., p. 32. [... ]
la, jovem de Brabante que, a conselho de uma beguina, havia op- cios a quem sem d • ·d 'd g ' . querro, homem de negó-
' UVl a se eve a literatura , rifa .
tado em 1288 pela vida reclusa e solitária. Depois de ter se dedi- tempo atribuída ao Amigo de Deus de Ob I apoc , por mwto
cado por dez anos "às práticas mais dolorosas do ascetismo, [... ] por assim dizer um pio falsan'·o fimer and. Ele e, portanto,
, ' , mas no consa D
ela foi avisada por Deus para que suspendesse os 'exercícios exte- na a fundação dos joanitas da ilha Verde em Estr ~ou sua ortu-
riores que se impunha por vontade própria' e deixasse seu celeste tirou do século aos quarenta anos ara , as :rrgo: e se re-
esposo dirigir sozinho sua vida espiritual por meio de 'exercícios à vida espiritual " Cf A )undt R Í P ~e consagrar mterrarnente
interiores'. Ela obedeceu e não demorou a ser assaltada 'pelas ten- l'Oberland. Un p~oblbn..de ~h u man erswzn et l'Ami de Dieu de
1890; Ph. Strauch, verbet~ ~R~e '~f{leuse, P.aris, Fischbacher,
5
tações mais horríveis e mais impuras'. Depois de ter implorado em
vão a assistência de Deus, ela participou seus tormentos ao seu freunde", in Realenzyklopiidie for pr:'esta:~~= und die Gottes-
confessor, que tentou abusar da sua ingênua confiança aconselhan- che, t. 17, Leipzig, 1906, pp. 203 ss. J M O ,, Theolof{le und K!r-
M · E ., · · ar., The Great Genna
do-a 'com discursos sutis, cheios de mistério e de obscuridade', a yshcs: ckhatt, Tauler and Suso, Oxford, Blackwell 1949 n
~ cap. V,
f

J
302 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 1.' DE MARÇO DE 1978
303
F. Rapp, verbete "Merswin (Rulman)", in Dictionnaire de spirituali-
té... , t. 10, 1979, col. 1056-1058. obededdo ao próprio Deus. Essa rela ã d . -
68. Esse personagem lendário da literatura mística do século durou 28 anos, até a primavera de 138t ~ e subnussao recíproca
XIV sem dúvida não existiu. Desde que o pe. Denifle demonstrou 70. Cf. supra, nota 13 (N Coh d. _
seu caráter fictício ("Der Gottenfreund im Oberland und Nikolaus desregrada de Jeanne Dabento ) n, to aVIa, nao menciona a vida
Von Base!. Eine kritische Studie", in Histo,-polit. Bliitter, t. [.)()('!, a
71 "Q' n.
· · . u est-ce que la critique?" art .
Munique, 1875, contra Ch. Schmidt, que o identificava com o bé- . 72.Joaqmm de Fiore (c. 1132-1202): . at., l'P· 38-9.
gard Nicolau de Basiléia e publicou com esse nome várias obras ctdo em Celico na Calábna· F d · monge crsterc1ense nas-
congregaçao - eremítica
' de p·· un ou em 1191 uma nova ordem ' a
atribuídas ao anônimo), os historiadores se perguntam quem se 1ore, aprovada p 1 '
dissimula atrás da sua figura e dos seus escritos. Segundo A Chi- seada numa exegese ale órica d . e o papa em 1196. Ba-
eras" ou "três estados" d~ h a_~scntura, sua doutrina das "três
quot, verbete "Ami de Dieu de l'Oberland", in Didionnaire despi-
ritualité ... , t. I, 1937, col. 492, tudo levaria a crer que foi o próprio e da obediência servil, Anti w;aru ade- a era do Fài (tempo da lei
Rulman Mersvvin. Sobre esse debate, cf. Dom F. Vandenbroucke, in da graça e da obediência mf~ ~sta~ento), a era do Filho (tempo
Dom J. Leclercq et al., La Spiritualité du Moyeu Age, p. 475. Ver to (tempo de uma graça mais ~bu~vcÍanestamen_to), a era do Espíri-
igualmente, além dos trabalhos citados na nota precedente, a obra posta notadamente em sua Concord· te e _da liber~ade)- está ex-
advento da terceira era frut da . za ~OVl ac U?tens Testamenti. 0
de W. Rath, Der Gottesfreund vom Oberland, ein Meuscheitsführer an
der Schwelle der Neuzeit: sein Lebeu geschildert auf Grundlage der Ur- Testamentos, deveria se; obr:de hmte gênci~ ~spi?tual dos dois
les), de que os atuais mon s omens espmhlais (viri spiritua-
kundeubücher der Johanniterhauses "Zum Grüneu Wiirth" in Strass-
burg, Zurique, Heitz, 1930, reed. Stuttgart, 1955, que H Corbin ~otal e hierarquizada seri~e::~~~~~~~cessores. Igreja sacer _
J:
tico da pura caridade. Cf N Coh Le I a pelo remado monás-
louva no 4? tomo de En islam iranien, Paris, Gallimard, "Bibliothê- pp. 101-4; Dom F. Vande~br~ n~ s Fanatiques de l'Apocalypse,
que des idées", 1978, p. 395 n. 72, por ter "salvaguardado a natu- ritualité du Moyeu Age, pp. ~:;e, m Dom J. Leclercq et ai., La Spi-
32
reza própria do fato espiritual", sem recorrer à hipótese da fraude
literária. Foucault, que toma a anedota do pacto de obediência
emprestada do livro de A. jundt (cf. nota seguinte), publicado em
1879, não distingue claramente os dois personagens. Foi em 1890,
em Rulman Merswin et l'Ami de Dieu de l'Oberland que jundt res-
pondeu às críticas de Denifle, aceitando a tese segundo a qual o
Amigo de Deus de Oberland nunca existiu (pp. 45-50), mas recha-
çando os argumentos que tendiam a estabelecer que a história
deste último não havia passado de uma impostura de Merswin
(pp. 69-93).
69. Cf. A. jundt Les Amis de Dieu au quatoniéme siecle, op. cit.,
p. 175: "Na primavera de 1352 foi finnado entre os dois homens o
pacto solene de amizade que viria a ser tão fértil em conseqüên-
cias para a história posterior. O compromisso que então contraíram
não era, entretanto, tão unilateral quanto o relato de Rulman
Merswin parece indicar [cf. p. 174, o relato da sua primeira entre-
vista com o Amigo de Deus de Oberland]. A verdade é que eles se
submeteram um ao outro 'no lugar de Deus', isto é, prometeram
elevar-se mutuamente em todas as coisas como se houvessem
i
I

I ,

J _/)
AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978

Da pastoral das almas ao governo político dos hcnnens.-


Contexto geral dessa transformação: a crise do pastorado e as
insurreições de conduta no século XVI. A Refonna protestante
e a Contra·Refonna. Outros fatores.- Dois fenômenos notá-
veis: a intensificação do pastorado religioso e a multiplicação
da questão da conduta, nos planos privado e público. -A razão
governamental própria do exercício da soberania. - Compara-
ção com são Tomás. - A ruptura do continuurn cosmológico-
teológico. -A questão da arte de governar. - Observação sobre
o problema da inteligibilidade em história. -A razão de Esta-
do ([): navidade e objeto de escândalo.- Três pontos de focali-
zação do debate polhnico em torno da razão de Estado: Ma-
quiavel, a "política", o "Estado".

Hoje, eu gostaria de passar enfim da pastoral das al-


mas ao governo político dos homens. É evidente que não
vou tentar nem sequer esboçar a série de transformações
pelas quais se passou efetivamente dessa economia das al-
mas ao governo dos homens e das populações. As próximas
vezes, gostaria de lhes falar de algumas das redistribuições
globais que sancionaram essa passagem. Como é necessá-
rio apesar de tudo prestar um mínimo de homenagem à
causalidade e ao princípio de causalidade tradicional, acres-
centarei simplesmente que essa passagem da pastoral das
almas ao governo político dos homens deve ser situada
num determinado contexto que vocês conhecem bem. Hou-
ve, primeiramente, é claro, a grande revolta, ou antes, a gran-
de série do que poderíamos chamar de revoltas pastorais do
século XV e, evidentemente, sobretudo do século X\11, o que
chamare~ digamos assim, de insurreições de conduta*, de
que a Reforma protestante foi, no fim das contas, ao mes-

,. "Insurreições de conduta": entre aspas no manuscrito.


306 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978
307
mo tempo a forma mais radical e ~ retol'I';ada de controle -
insurreições de conduta, CUJa histona, ~as, sena m~to In- Em segundo lugar, ~ necessário recordar os dois gran-
teressante reconstituir*. Se se pode diZer que, em fins do des tipos de reorganJZaçao da pastoral religiosa, seja sob a
século XV - início do século XVI, os grandes proc~ssos po- forma das diferentes comunidades protestantes, seja sob
líticos e sociais de subversão tiveram por dimensao pnnCI- a forma: eVIdentemente, da grande Contra-Reforma católi-
ca. IgreJas protestantes, Contra-Reforma católica que, am-
pal as insurreições de conduta, em compensação creio que
não se deveria esquecer que, mesmo nos processos de sub-
bas, ren;t~graram mUitos dos elementos que haviam sido
versão, mesmo nos processos revolucionári~s qu~ tinhru:n
c';factensticos dessas contracondutas de que eu lhes falava
objetivos e móveis bem diferentes, a dimensao da msurrei- ha pouco. _A esJ)mtualidade, as formas intensas de devoção,
ção de conduta, a dimensão da revolta de conduta semp_:e o recurso a Escn~ra, a requalificação pelo menos parcial do
esteve presente. Ainda bem manifesta, claro: na Revoluçao ascetismo _e da rmstica, tudo isso fez parte dessa espécie de
Inglesa do século XVII, em que toda a explosao das diferen- remtegraçao da contraconduta no interior de um pastorado
tes formas de comumdades relig~osas, de organiZa~aoreli­ relig~oso, organizado seja nas Igrejas protestantes, seja na
giosa foi um dos grandes eixos, um dos grandes moveis ~e Contra-Reforma. Sena preCiso falar também é claro das
todas as lutas. Mas, afinal de contas, tivemos na Revoluçao grandes lutas soci"!_s que animaram, arrimar~, prolo'nga _
Francesa todo um eixo, toda uma dimensão da revolta, da ~am essas ms~eiçoes pastorais. A guerra dos camponeses
insurreição de conduta, nas quais, é claro, pode-se dizer que e um exemplo. Sena preciso falar, também, da incapacida-
os clubes tiveram um papel importante, m_as que certamen- de que _tinham as estruturas feudais, e as formas de poder
te tiveram outras dimensões. Na Revoluçao Russa de 1917 li~das as estru~as feudais, de enfrentar essas lutas e encer-
também, todo um aspecto insurrei5ões de conduta, [de ra-las; e, _5'1aro, e ':'ais que conhecido, voltar a falar das no-
que]** os sovietes, os conselhos ?perar:os forc:m ~a ~ani­
vas relaçoes economicas e, po: c~nseguinte, políticas para
festação, mas apenas uma mamfestaçao. S<;_na mmto mte- as quaiS as estruturas feudais Ja nao podiam servir de mar-
ressante ver como essas séries de msurretçoes, de revoltas co suficiente e eficaz; enfim, do desaparecimento dos dois
de conduta se multiplicaram, que efeitos elas próprias tive- grandes polos de soberania histórico-religiosa que coman-
ram sobre os processos revolucionários, como essas revol- davam o Ocrdente e que prometiam a salvação, a unidade,
tas de conduta foram controladas, dominadas, qual era a sua o acabam~nto do tempo, esses dois grandes pólos que, aci-
especificidade, a sua forma, a sua lei interna de desenv_olVI- ma dos pnncipes e dos reis, representavam uma espécie de
mento. Enfim, seria todo um campo de estudos possiveis. grande pastor:ado ao mesmo tempo espiritual e temporal, a
Em todo caso, eu queria observar simplesmer;t~ que essa saber, o Im peno e a IgreJa. A desarticulação desses dois
passagem da pastoral das almas ao governo político d~s ~o­ grandes conjuntos foi um dos fatores da transformação de
que lhes falava.
mens deve ser situada nesse grande clima geral de resisten-
cias, revoltas, insurreições de conduta***. Em todo c_aso- e é sobre :ste ponto que encerrarei esta
breve mtrodu~ao -, creio que e preciso observar o seguinte:
no curso do seculo _)<VI não se assiste a um desaparecimen-
* M. Foucault acrescenta: porque, afinal de contas, não houve... to do pastorado. Nao se assiste nem mesmo à transferência
[frase inacabada} maCiça e global das funções pastorais da Igreja para o Esta-
*"" M.F.: nas quais do. AssiSte-se, na verdade, a um fenômeno muito mais com-
*** M.F.: ao princípio de conduta plexo, que é o seguinte. De um lado, podemos dizer que há
308 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 8 DE MARÇO DE 1978
r
309 I

uma intensificação do pastorado religioso, intensificação des- a saber, à sua salvação claro, mas também à verdade?' E é
se pastorado em suas formas espirituais, mas também em preoso ver que a filosofia de Descartes, embora possa de fato
sua extensão e em sua eficiência temporal. Tanto a Reforma passar por fundamento da filosofia, também é 0 ponto de
quanto a Contra-Reforma deram ao pastorado religioso um chegada de toda essa !?fande transformação da filosofia, que
controle, uma influência sobre a vida espiritual dos indiví- a faz reaparecera partir da pergunta: "Como se conduzir?"'
duos muito maior que no passado: aumento das condutas Regulae ad _dtrectzonem ingenii', meditationes', tudo isso são ca-
de devoção, aumento dos controles espirituais, intensifica- tegonas, sao, formas de prática filosófica que haviam reapa-
ção da relação entre os indivíduos e seus guias. Nunca o recrdo no seculo XVI em função dessa intensificação do
pastorado havia sido tão intervencionista, nunca havia tido problema da conduta, o problema de conduzir/conduzir-se
tamanha influência sobre a vida material, sobre a vida coti- como problema fundamental que ressurge nesse momento
diana, sobre a vida temporal dos indivíduos: é a assunção, o':, em todo caso, que adquire nesse momento uma forma
pelo pastorado, de toda uma série de questões, de proble- nao especificamente religiosa e eclesiástica.
mas referentes à vida material, à higiene, à educação das Igualmente, a~arecimento dessa condução no domínio
crianças. Portanto, intensificação do pastorado religioso em q';'e chamarei d: p_ublico. Essa oposição entre o privado e 0
suas dimensões espirituais e em suas extensões temporais. publico amda nao e be~ pertinente, conquanto seja sem dú-
Por outro lado, assiste-se também, no século XVI, a um >:da na problematizaçao da conduta e na especificação das
desenvolvimento da condução dos homens fora até da au- difen:ntes formas de conduta que a oposição entre o privado
toridade eclesiástica, e aqui também sob dois aspectos ou, e o pub~co co~eça a se constituir nessa época. Em todo caso,
mais exatamente, sob toda uma série de aspectos que cons- no ?arrumo P';'blico, no domínio que mais tarde se chamará
tituem como que um amplo leque, partindo das formas político, t~bem se coloca o problema: como, em que medi-
propriamente privadas do desenvolvimento do problema da, o exercrcro do Po?er do soberano pode e deve ser lastrea-
da condução- a pergunta é: como se conduzir? Como con- do :om um certo numero de tarefas que não lhe eram, até
duzir a si mesmo? Como conduzir os filhos? Como condu- e~t;o, reconhecrdas e que são justamente tarefas de condu-
zir a família? Não se deve esquecer que, nesse momento, çao. O soberano que reina, o soberano que exerce sua sobe-
aparece, ou antes, reaparece uma função fundamental, que rania se vê, a partir desse momento, encarregado, confiado,
era a função da filosofia, digamos, na época helenística e assmalado a novas t~efas, e essas novas tarefas são precisa-
que havia, em suma, desaparecido durante toda a Idade mente as da conduçao das almas. Não houve portanto pas-
Média, a filosofia como resposta à pergunta fundamental: sagem ~o pastorad.? religioso a outras formas de conduta, de
como se conduzir? Que regras adotar para si mesmo, a fim conduç~o, de direça~. Houve na verdade intensificação, mul-
de se conduzir como convém; conduzir-se na vida cotidia- tiplicaçao, proliferaçao geral dessa questão e dessas técnicas
na; conduzir-se em relação aos outros; conduzir-se em re- da conduta Com o século XVI, entramos na era das condu-
lação às autoridades, ao soberano, ao senhor;* a fim de con- tas, na era?as direções, na era dos governos.
duzir também seu espírito, e conduzi-lo aonde ele deve ir, E _voces com~reendem por que há um problema que,
nessa epoca, adqwnu uma mtensidade maior ainda que os
outros, provavelmente ~arque estava exatamente no ponto
"' M. Foucault acrescenta: para se conduzir também de maneira de c:uzamento dessasdiferentes formas de condução: con-
conveniente e decente, como convém duçao de Si e da família, condução religiosa, condução pú-

•.
310 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978
311
cui~~ç~~~~~ ;~~~s.
b
trole do governo. É o pro-
blica aods 0 problema pe?agógico: Do que eu gostaria de lhes falar não é evidentemente
blema a ms . . mo conduzi-las ate o ponto de tudo isso, e sim desse ponto particular que evoquei, asa-
como conduzrr -~~i~n~f~!ci~~ conduzi-las até o p~nto em ber: em que medida quem exerce o poder soberano deve en-
~~e ~~~=:~:o~~truir sua salvaçã~; ~~~~:Zi;~;ri:t~ 0/e~~~ carregar-se agora de tarefas novas e específicas, que são as
do governo dos homens? Dois problemas de imediato: pri-
to em que saberao se co::~e ~obrecarre~ado e sobrede- meiro, de acordo com que racionalidade, que cálculo, que
problema que foi provave I -o do problema das condu- tipo de pensamento será possível governar os homens no
terminado por todAa essa expfuosdaamental o cristal, o prisma âmbito da soberania? Problema do tipo de racionalidade,
, lo XVI utopa n ' ·d ,
tas no secu
através do qual os· pro.blema~ de
* condução são percebi os e portanto. Em segundo lugar, problema do domínio e dos
o da instituição das cnanças . objetos: o que, especificamente, deve ser objeto desse go-
verno dos homens, que não é o da Igreja, que não é o do
pastorado religioso, que não é de ordem privada, mas que é
,. M. Foucault deixa de lado aqw. um 1ongo d esenvolvimento do da incumbência e da alçada do soberano e do soberano po-
. ( 4-6):
manuscnto PP· - tinham por objetivo: lítico? Pois bem, hoje eu gostaria de lhes falar da primeira
d contracondutas nao questão, a saber, do problema da racionalidade. Ou seja: de
Insistir no fato e que essas al d todo pastorado, mas sim: como
como se livrar do pastorado em ger o~oeser mais bem guiado, mais segu- acordo com que racionalidade o soberano deve governar? E
desfrutar de um pastorado melhor, c !h ximar-se da ver-
·A •

lh manter a obedienoa, me or apro . para falar em latim, vocês sabem que gosto de falar latim,
ramente salvo, me or d tinha efeitos individualizantes:
dade. Várias razões. Esta: que o pastod<a lo . di•"dual· ele imphcava a direi: por contraste com a ratio pastora/is, qual deve ser ara-
I - ada um e e orma m v• ' tio gubernatoria?*
ele prometia a sa vaçao a c rei - de indivíduo com indivíduo, garantin-
0bediência mas como uma açao 'bili' cada
' . .• · · dividualidade; ele poss1 tava que Bem, então, a razão governamental. Para tentar expli-
do pela própna obedienoa a m _... de O homem ocidental é car um pouquinho isso, gostaria de retomar um instante ao
d d lhor· a sua ve1ua ·
um conhecesse a ver a e; me . ed.ida em que o pastorado o
. di 'dualizado através do pastorado, na m 'dad em que o pensamento escolástico, mais exatamente a são Tomás e ao
m VI . ·d tidade por toda a etenu e, texto em que ele explica o que é o poder real'. É preciso re-
leva à salvação que fixa sua I en bediên . s incondicional{ais], em que
pastorado o sujeita a uma rede d~ o noC::omento mesmo em que lhe cordar uma coisa: que são Tomás nunca disse que o sobera-
ele llie inculca a verdade de ~d ogmaterior Identidade, sujeição, interiori- no era tão-só um soberano, que ele só tinha de reinar e que
......,...~odasuaveu.ta em · .A· d
extorque o se&-'-"' . _ h ,..,..;dental durante longo mileruo o
. di ·dua!izaçao do ornem ......... 0 . . - É não fazia parte das suas incumbências governar. Ao contrá-
dade: a m VI . - fo'1 alizada à custa d a sub.Je 0.VI"dade . Por subJetivaçao.
Pastorado cnstão .
rio, ele sempre disse que o rei devia governar. Ele até dá
Preciso tomar-se SUJei ·re·to para se tomar m . di 'duo (todos os sentidos da
VI .
. ,..,._ edida em que era f a to• e agente de ind.ividuali-
uma definição do rei: o rei é "aquele que governa o povo de
Palavra sujeito). vLa, na m . á lo um apetite de pastorado:
d 0 · va um fornud ve1 ape , uma só cidade e de uma só província, tendo em vista o bem
. àSUJei 'ência~burguesa e que opoe
zação' o pastora -1 ena • · 1como se tomar . 'to sem '""r suj'eitado? Enorme- comum"". É aquele que governa o povo. Mas creio que [o)
[algumas palavras 1 egwezs
desejo de ind.ividu.ali~de, bem an~no: a = a de pastorado I mística I importante é que esse governo do monarca, segundo são
di
ra calmente o cristianismo . . ao budism (A grande cnse
. ualização) . d o pastorado e os Tomás, não tem especificidade em relação ao exercicio da so-
[uma paJaura ilegível], desindivtd remir~ essa crise não levavam a uma berania. Entre ser soberano e governar, nenhuma desconti-
assaltos das oontracondutas que p s a uma busca multiplicada para ser
rejeição global de toda conduta, ~ ém Donde a multiplicação das
conduzido, mas como convém e aon e conv .
Nnecessidades de conduta.u no século XVI. ,. M. Foucault acrescenta: Os que sabem latim ... (fim de frase
inaudível]

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SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 8 DE MARÇO DE 1978 313
312

nuidade, nenhuma especÍficidade, nenhuma divisão entre qualquer multidão", diz são Tomás, "é preciso uma direção
as duas funções. E, por outro lado, para definir em que con- encarregada de regular e de governar."" É a segunda analo-
siste esse governo que o monarca, o ~~berano deve exercer, g~a, a analog~a d~ re1 com a força vital de um organismo.
são Tomás se apóia em toda uma sene de modelos exter- Enfim, tercerra analogia, terceira continuidade com o
nos, o que chamarei, se vocês quiserem, de analog:tas do ~astor e com o pai ~e !amilia, porque, diz são Tomás, o fim
governo. . , último do homem nao e, eVIdentemente, ficar rico, nem mes-
Analogias do governo quer dizer o que? O soberano, mo ser feliz na terra, não é ter boa saúde. Aquilo a que fi-
na medida em que governa, não faz nada mais do que re- nalmente o J:omem tende é a felicidade eterna, o gozo de
produzir certo m_odelo, [_que] é simplesmente o governo de Deus. A funçao real deve ser o 9uê? Deve ser a de propor-
Deus na terra. Sao Tomas explica: em que cons1ste a exce- cronar o bem comum da multidao segundo um método que
lência de uma arte? Em que medida uma arte é excele~te? SeJa capaz de lhe fazer alcançar a beatitude celeste". E nes-
Na medida em que imita a natureza'. Ora, a na~eza e re- sa medida vemos que, fundamentalmente, substancialmen-
gida por Deus, porque Deus criou a natureza; nao cessa de te, a função do rei não é diferente da do pastor para com
governá-la todos os dias'". A arte do ~i sera excelente na suas ovelhas, nem do pai de farnilia para com a sua farnilia.
medida em que imitar a natureza, isto e, em que fiz e; como Ele tem de fazer de tal modo que, nas decisões terrestres e
Deus. E assim como Deus criou a natureza, o re1 sera aque- temporais que ele toma, a salvação eterna do indivíduo não
le que fundará o Estado ou a cidade, e como todo Deus go- apenas não seja comprometida, mas seja possível. Vocês es-
verna a natureza, o rei governará seu Estado, sua crdade, sua tao vendo: analog~a com Deus, analogia com a natureza
província. Primeira analogia com Deus, portanto. , vwa, analog~a com o pastor e o pai de familia, vocês têm
Segunda analogia, segunda continmdad:: com ~ pro- toda uma espécie de continuum, de continuum teológico-
pria natureza. N_ão há nada no mundo, diz sao Ton;as, em cosmológico que é aquilo em nome do que o soberano está
todo caso não ha nenhum arumal VIVO CUJO corpo nao esta- autonzado a governar e que proporciona modelos segundo
ria imediatamente exposto à perda, à dissociação, à decom- os quais o soberano deve ~vernar. Se no próprio prolonga-
posição, se não houvesse nele certa força diretriz, certa for- mento, na continmdade mmterrupta do exercício da sua so-
ça vital que mantém juntos esses diferentes elen;entos de berarua, o soberano pode e deve governar, é na medida em
que são compostos os corpos VIVOS : que organiZa todos que ele faz parte desse grande continuum que vai de Deus
eles em função do bem comum. Se nao houvesse uma for- ao pai de farnilia, passando pela natureza e pelos pastores.
ça viva, o estômago iria para um lado, as pernas J:ara o ou- Nenhuma ruptura, portanto. Esse grande continuum, da so-
tro, etc." O mesmo se dá num reino. Cada mdiVIduo num berarua ao governo, não é outra coisa senão a tradução, na
reino tenderia a seu próprio bem, porque pre?samente ten- ordem - entre aspas -"politica", desse continuum que vai
der ao seu próprio bem é uma das caractenshcas, um dos de Deus aos homens.
traços essenciais do homem. Cada um tendena a seu bem Creio que esse grande continuum presente no pensa-
próprio e, por conseguinte, negligenciaria o bem comum. É mento d~ sao Tomás, que justifica o governo dos homens
necessário portanto que haJa no remo algo quecorrespon- pelo re1, e que vru ser quebrado no século XVI. Continuum
da ao que é a força vital, a força diretriz do orgarusmo, e_ es~e quebrado: não quero em absoluto dizer com isso que a re-
algo que vai dirigir as tendências de cada um ao ~eu propno lação do soberano, ou daquele que governa, com Deus, com
bem no sentido do bem comum Vai ser o re1. Como em a natureza, com o pai de família, com o pastor religioso, se
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AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978
315
rompeu. Ao contrário, vemos sem parar [... ]•. E vamos vê-
las tanto mais formuladas, justamente, quanto mais se tra- voltada para a verdade, se aplicarmos esse esquema a Deus
tarde reavaliá-las, de estabelecê-las a partir de outra coisa se Deus govern[asse] pastoralmente o mundo e na medid~
e segundo outra economia, porque crei? que o que cara~te­ em que Deus [o] tenha governado pastoralmente, isso que-
riza o pensamento político no fim do seculo XVI'!
no rmCJo rena dizer que o mundo estava submetido a uma economia
da salv~ção, isto é, q~e ele era feito para que 0 homem
do século XVII é justamente a busca e a definiçao de uma
forma de governo que seja específica relativamente ao exer- construísse sua salvaçao. Ou seja, mais precisamente ainda,
cício da soberania. Digamos com uma palavra, para tomar ru:_ coisas do mundo eram feitas para o homem e 0 homem
um pouco de recuo e fazer uma grande ficção, que houve nao era feito para viver neste mundo, em todo caso não era
fe1to para vrver definitivamente neste mundo, e sim para ir
uma espécie de quiasma, uma espécie de cruzamento fun-
para um outro mundo. O mundo governado pastoralmen-
damental que seria o seguinte. No fundo, a astronoffila de
te, conforme a economia da salvação era [portanto1 um
Copérnico e de Kepler, a física de Galileu, a história natural
mund? de causas finrus que culminavam num homem que,
de John Ray", a gramática de Port-Royal" ... pms bem, um
ele propno~ devra construir a sua salvação nesse mundo.
dos grandes efeitos de todas essas práticas discursivas, de Causas finrus e antropocentrismo, era bem isso uma das for-
todas essas práticas científicas - só estou lhes falando de um mas, uma das manifestações, um dos sinais do governo pas-
dos inúmeros efeitos dessas ciências -**, foi mostrar que, toral de Deus sobre o mundo.
no fundo, Deus rege o mundo somente por leis gerais, leis Governar o mundo pastoralmente queria dizer, [em
imutáveis, leis universais, leis simples e inteligíveis, que segundo lugar,] que o mundo estava submetido a toda uma
eram acessíveis seja na forma da medida e da análise mate- economia da obediênci~: cada vez que Deus, por uma razão
mática, seja na forma da análise classificatória, no caso da particular - porque voces sabem que a obediência pastoral
história natural, e da análise lógica, no caso da gramática adquue fundamentalmente a forma da relação individual -
geral. Deus rege o mundo somente por leis gerais, imutáveis, cada vez que Deus queria intervir por uma razão qualque;
universais, simples e inteligíveis, quer dizer o quê? Quer di- quando se trat~va da salvação ou da perda de alguém, 0 ~
zer que Deus não o governa***. Não o governa no mo~o numa crrcunstancia ou conJuntura particular, ele intervi-
pastoral. Ele reina soberanamente sobre o mundo atraves nha neste mundo de acordo com a economia da obediên-
dos princípios. aa. Quer dizer, ele obrigava os seres a manifestar sua vonta-
Porque: o que é, no fundo, governar o mundo pastoral- de por sinais, prodígios, maravilhas, monstruosidades que
mente? Se vocês se reportarem ao que eu dizia qwnze dias eran: ameaças de castigo, promessas de salvação, sinaÍs de
atrás a propósito da economia específica do poder pasto- eleiçao. Uma natureza pastoralmente governada era, por-
ral", economia específica voltada para a salvaçao, econoffila tanto, uma natureza povoada de prodígios, de maravilhas e
específica voltada para a obediência, economia especifica de smrus.
Enfim, em terceiro lugar, um mundo pastoralmente
governado era um mundo no qual havia toda uma econo-
,.. Seguem-se algumas palavras inaudíveis.
rrua da verdade, como encontramos no pastorado: verdade
"""" M. Foucault acrescenta: um dos efeitos dessas novas configura-
ensmada, de um lado, verdade oculta e extraída, do outro.
ções de saber
***Palavra entre aspas no manuscrito, p. 10.
Ou SeJa, num mundo pastoralmente governado havia de
certo modo, formas de ensino. O mundo era um livro aber-

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317
to no qual se podia descobrir a verdade, ou antes, no qual a s~as ovelhas ~u aos seus filhos. Algo absolutamente espe-
verdade, as verdades eram ensinadas por si mesmas, e eram cí?co: essa açao é a que consiste em governar e para a qual
ensinadas essencialmente sob a torma da remissão recípro- nao se tem de buscar modelo, nem do lado de Deus, nem
ca de uma à outra, isto é, da semelhança e da analogia. Era, d? lado da natureza. Essa emergência da especificidade do
ao mesmo tempo, um mundo dentro do qual era necessá- ruvel e da forma do governo - é isso o que se traduz pela
rio decifrar verdades ocultas, que se ofereciam ocultando-se nova problematização, no fim do século XVI, do que se cha-
e se ocultavam oferecendo-se, isto é, um mundo repleto de mava de res publica, a coisa pública. Digamos, também nu-
cifras, de cifras que se tinha de decodificar. ma palavra, que vocês tê~!' um fenômeno, todo um proces-
Um mundo inteiramente finalista, um mundo antro- so de governamentaiiZaçao da res publica. Pede-se ao sobe-
pocentrado, um mundo de prodígios, de maravilhas e de si- rano que faça mais do que exercer a soberania, pede-se a
nais, enfim, um mundo de analogias e de cifras" - é isso ele,ao fazer mais do que exercer sua pura e simples sobe-
que constitui a forma manifesta de um governo pastoral de rama, que faça algo diferente do que faz Deus em relação à
Deus sobre este mundo. Ora, é isso que desaparece. Em que natureza, do que faz o pastor em relação às suas ovelhas do
época? Muito exatamente, entre os anos de 1580 e 1650, no que faz o pai de familia em relação aos seus filhos. Em 'su-
momento da fundação da episteme clássica". É isso que de- ma, pede-se a ele um suplemento em relação à soberania
saparece ou, se preferirem, numa palavra, podemos dizer pede-se a ele uma diferença, uma alteridade em relação a~
que o desenvolvimento de uma natureza inteligivel na qual pastorado. E o governo é isso. É mais do que a soberania, é
as causas finais vão se apagar pouco a pouco, em que o an- um suplemento em relação à soberania, é algo diferente do
tropocentrismo vai ser posto em questão, um mundo que pastorado, e esse algo que não tem modelo, que deve bus-
será purgado de seus prodígios, maravilhas e sinais, um car seu modelo, é a arte de governar. Quando se houver en-
mundo que se desenvolverá de acordo com formas de inte- contrado a arte de governar, s~ber-se-á de acordo com que
ligibilidade matemáticas ou classificatórias que já não pas- ~po de racwnalidade se podera fazer essa operação que não
sarão pela analogia e pela cifra, tudo isso corresponde ao e nem a soberania nem o pastorado. Donde o que está em
que chamarei, perdoem-me o termo, de desgovernamenta- Jogo, donde a questão fundamental desse fim de século XVI·
lização do cosmo. o que é a arte de governar? .
Ora, exatamente na mesma época, 1580-1660, vai se de- ~esumamos tudo isso. Temos, portanto, de um lado,
senvolver um tema bem diferente, que é o seguinte: o que um ruvel pelo qual* podemos dizer que a natureza se sepa-
é próprio do soberano, no exercício da sua soberania, em ra do _tema governamental. Teremos agora uma natureza
relação aos seus súditos, não é que ele tem apenas de pro- que_nao tolera mais nenhum governo, que não tolera nada
longar na terra uma soberania divina que se repercutiria, de s:nao o reino de uma razão que, afinal, é em comum ara-
certo modo, no continuum da natureza. Ele tem uma tarefa zao de Deus e dos homens. É uma natureza que tolera uni-
específica, que ninguém mais tem [de desempenhar]*. camente o reinado de uma razão que lhe estabeleceu de
Nem Deus em relação à natureza, nem a alma em relação uma vez por todas o quê? Não se diz "leis" ... Bem, em todo
ao corpo, nem o pastor ou o pai de familia em relação às caso vemos aparecer aí a palavra "lei", quando a coisa ain-

"" Conjectura: uma ou duas palavras inaudíveis. "' Estas três últimas palavras são dificilmente audíveis.
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319
da se situava do ponto de vista jurídico-epistemológi_co - é
o que ainda não se chamava de "leis", [mas] de "pnnapws", quiasl':'a que se produziu, mas que você não explica. Claro
principia naturae. Por outro lado, temos uma soberarua so- que nao explico, por um monte de razões. Mas gostaria de
bre os homens que é chamada a se carregar, a se lastrear levantar: mesmo assim, uma questão. Se, como explicação,
com uma coisa específica que não está contida diretamente me pedissem para eXIbir a fonte única de que derivariam a
nela, que obedece a um outro mod~lo e a um outro tipo de natureza, o Estado, a separação entre a natureza e o Estado
racionalidade, e esta coisa a mrus e o governo, o governo e a separação entre os principiae naturae e a ratio status s~
que deve buscar sua razão. Principia naturae, de um !~do, e, me pedissem em suma para encontrar o um que vai se'di-
de outro, a razão desse governo, raho - esta expressa~ vo- Vldir em dois, eu entregaria os pontos na hora. Mas será
cês conhecem-, ratio status. É a razão de Estado. Pnnc1p1~s que a inteligibilidade, a inteligibilidade que seria preciso es-
da natureza e razão de Estado. E como os Italianos estao tabelecer ou que talvez seja preciso estabelecer em história
sempre um passo à nossa frente e à frente de to_do o mun= será _que não há_outros meios de constituí-la? Será que a in~
do eles é que foram os pnmerros a defimr a razao de Esta te_liglbilidade nao devena proceder de outra maneira que
do: Botero, num texto de fins do séc~o ~ 19, escreve o se,~ nao pela busca desse ';m que se dividiria em dois ou que
guinte: "O Estado é uma finne dorrun~çao sobre os povos produz~a o d01s? Sera que não se poderia, por exemplo,
-vocês estão vendo, nenhuma defimçao terntonal do Esta- partir nao da urudade, justamente, nem mesmo dessa dua-
do não é um território, não é uma província, ou um remo, !idade natureza-Estado, mas da multiplicidade de proces-
é ;penas povos e urna firme dominação_- "o Estado é uma sos extraordinanamente diversos em que encontrariamos
finne dominação sobre os povos". A razao de Estado - e ele Jl~stamente essas resistências ao pastorado, essas insurrei-
não define a razão de Estado no sentido estrito que lhes da- çoes de conduta, em que encontrariamos o desenvolvimen-
mos hoje - "é o çonheçimento dos mei?s ,~dequados para ~o urbano, em que encontraríamos o desenvolvimento da
fundar, conservar e ampliar essa dorrunaçao . Ma;; acresce':'- álgebra, as experiências sobre a queda dos corpos [... ]*?Tra-
ta Botero (voltaremos a esse ponto mais ta_:de), essa razao tar-se-m de estabelecer a inteligibilidade dos processos de
de Estado abraça muito mais a conservaçao do Estado do que lhes falo, mostrando quais foram os fenômenos de coa-
que a sua fundação ou a sua e~ensão, .e mmto ~ai~ ~ sua gulação, de_apoio, de fortalecimento recíproco, de coesão,
extensão do que a sua fundaçao propnamente dita 2 . Ou de mtegraçao;_ em suma, todo o feixe de processos, toda a
seja, ele faz da razão de Estado o tipo de raçwnalidade que rede de relaçoes que por fim induziram como efeito de
vai possibilitar manter e conservar o Estado a partir do mo- massa a grande dualidade, ao mesmo tempo corte e cesura,
mento em que ele é fundado, em seu funcionamento coti- entre, de um lado, uma natureza- que não pode ser com-
diano, em suas gestão de todos os dias._Princzpza naturae era- preendida se supusermos um seu governo, que só pode ser
tio status, princípios da natureza e raz~o de Estado, nature- compreendida, portanto, se a alijamos de um governo pas-
za e Estado- temos aí, enfim constitu1dos ou enfim s_epara- toral e se TI:ereconhecemos, para regê-la, a soberania de al-
dos, os dois grandes referenciais dos saberes e das tecrucas glms pnnapws fundamentais- e, de outro lado, uma repú-
dados ao homem ocidental moderno. blica, que so pode ser mantida se, justamente, for dotada de
Observação de puro método. Vocês me dirão: é muito um governo, e um governo que vai muito além da sobera-
amabilidade sua ter indicado assrrn o aparecrrnento desses
dois elementos, sua correlação, o jogo de cruzamento, o
"' Duas ou três palavras inaudíveis.

j
--------------1~
320 SEGURANÇA, TERRJTORiq POPULAÇÃO
AULA DE 8 DE M4RÇO DE 1978
321
nia. No fundo, a inteligibilidade em história talvez não re-
sida na assinalação de uma causa sempre mais _ou menos poderia simplesmente dizer: olhe, ali aconteceu uma coisa
metaforizada na fonte. A inteligibilidade em histona resi<!!- que, sem d~vida nenh':ffia, é importante. Não. Os próprios
ria, talvez, em algo que poderíamos chamar ~e constitUiçao cont;mporaneos, Isto e, durante todo esse periodo de fins
ou composição dos efeitos. Como se compoem os efeitos do seculo XVI - início do século XVII, todo o mundo perce-
globais, como se compõem os ~eitos de massa? Como se beu que estava diante de uma realidade ou, em todo caso de
constituiu esse efeito global que e a natureza? Como se cons- uma coisa, de um problema absolutamente novo. Num tex-
tituiu 0 efeito Estado a partir de mil processos diversos, do~ to absolutamente fundamental de Chemnitz - Chemnitz é
quais procurei lhes indicar apenas algun_s? O _Problema esta um personagem que publicou, sob o pseudónimo de Hippo-
em saber como se constituíram esses dois efeitos, como ~es lite a Lapide, um texto destinado na verdade aos negocia-
se constituíram em sua dualidade e segundo a opos1çao, dare~ do tratado de Vestefália", e [que! diz[iaj respeito às
creio eu essencial, entre a agovemament~dade d~ nature- relaçoes entr~ o, llnpério alemão e os diferentes Estados (
za e a govemamentalidade do Es~d~. É a1 qu: esta o qwas- b~ckground histon~o de tudo isso, um dos backgrounds his-0
a é aí que está o cruzamento, e ai que esta o efeito glo- toncos essenC!a!S e o problema do llnpério e da administra-
~aÍ mas essa globalidade não passa: justamente~ de um ção do J;npério") -,_nesse texto que foi publicado em latim
efeito e é nesse sentido da compos1çao desses e~e!los ma- com o titulo de Ratw status e traduzido para o francês mui-
ciços que se deveria aplicar a análise histórica. Nao prec:so to ~ais tarde, em 1711 ou 12, já então num outro contexto
lhes dizer que, em tudo isso, tanto nessas poucas reflexoes "!stonco mas a_mda a propósito do Império em última ins-
de método apenas esboçadas quanto no problema geral d~ tanoa, _com o titulo de Os interesses dos principes alemães (a
pastorado e da govemamentalida~e de que lhes falei at: traduçao parece uma traição, mas na verdade não é: a ratio
aqui eu me inspirei e devo certo numero de coisas aos tra status é, de fato, o interesse dos principes alemães), Chem-
bafuos de Paul Veyne (de que vocês conhecem, em todo rutz escreve o seguinte, durante a paz de Vestefália, 1647-
caso de que vocês têm absolutamente d<: conhecer o livro so- 48, portanto: "Ouvimos todos os dias urna infinidade de
bre O pão e o circo"), que fez sobre o feno~eno do ever~tis­ pessoas falarem da razão de Estado. Todo o mundo se mete
mo no mundo antigo um estudo _que e, para mun, a ai- tanto os que estão enterrados na poeira das escolas quant~
mente, 0 modelo em que me msprro para tenta~,falar des- os que ocupam os cargos da magistratura.""Fbrtanto, ain-
tes problemas: pastorado e govemamentalidade .. da era uma novidade, uma novidade na moda em 1647. Fal-
Bem, falemos agora da razão de Esta~o, da ratio status. sa novidade, dizirun uns; falsa novidade porque, dizirun es-
Algumas observações preliminares. A razao de Estado, no tes, na verdade a razão de Estado sempre funcionou. Basta
sentido pleno, no sentido lato que V!ffiOS surgrr no texto de ler os histo~adores da Antiguidade para ver que, naquele
Bolero essa razão de Estado foi imediatamente percebida, momento, so se falava da razão de Estado. De que fala Tá-
já naq~ela época, como uma invenção, em to?o caso como cito? Da razão de Estado". De que ele mostra o funciona-
uma inovação, que tinha a m~sma caractenstica contun- mento? Da razão de Estado. Donde essa nova e extraordiná-
dente e abrupta da descoberta, cmquenta anos antes, do he- ria investida do pensrunento político no material histórico-
liocentrismo, da descoberta da lei da queda dos corpos [nosj historiadores latinos e, sobretudo, em Tácito - para
pouco depois, etc. Em outras palavras, fo1 percebida como saber se, efetivrunente, não havia ali um modelo da razão
novidade. Não é um olhar retrospectivo, como aquele que de Estado e a possibilidade de extrair desses textos um se-
gredo, no fundo, mal conhecido, um segredo enterrado, es-
322 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978
323
quecido durante toda a Idade Média e que seria recupera-
ferente, na llle~da em que havia por trás disso tudo 0 pro-
do por uma boa leitura de Tácito. Tácito como bíblia da ra-
b!ema da diVISao entre as Igrejas protestantes e a Igreja ca-
zão de Estado. Donde o formidável retomo à história na-
tolica, [el o problema da gestão, por soberanos que se di-
queles anos.
Ziam catolicos, de Estados em que funcionava a tolerância
Outros, ao contrário, disseram: de maneira nenhuma, como a França. ~ás, pelo fato de os mais rigorosos e mai;
há uma novidade, uma novidade radical, e não é nos histo- ardentes partidanos da razão de Estado terem sido, pelo
riadores que se deve olhar, mas sim em tomo de nós, ou nos menos na F~ança, personagens como Richelieu e Mazarin,
países estrangeiros, para saber o que está acontecendo, e é que talvez nao fossem de uma piedade intensa, mas que em
a análise do que há de contemporâneo que permitirá deter- todo caso estavam cobertos com a púrpura, 0 escândalo re-
minar como funciona a razão de Estado.[ ... ]* Aqui convém liglüso provocad.? por esse aparecimento da noção, do pro-
citar Chemnitz, porque é de fato um dos maís interessan- blema, da questao da razão de Estado foi totalmente dife-
tes, aquele que percebeu com perfeição que relação ..., en- rente do que podemos ver no caso da física galileana. Em
fim, que em todo caso teve em vista uma analogia entre o todo caso, escandalo, e escândalo a tal ponto que havia um
que acontecia no domfnio das ciências e o que acontecia no p~pa _que se chamava Pio V e que disse: mas a ratio status
dorninio da razão de Estado. Ele diz: claro, a razão de Esta- nao e,. e;n absoluto, a razão de Estado. Ratio status é ratio
do sempre existiu, se entendermos por razão de Estado o dzabolz, e a z:azão do diabo". E houve toda uma literatura
mecanismo pelo qual os Estados podem funcionar'', mas foi contra a razao de Estado, que era inspirada, na França, ao
necessário um instrumento intelectual absolutamente novo mesmo tempo por uma espécie de catolicismo- eu ia dizen-
para detectá-la e analisá-la, do mesmo modo que existem do mtegnsta -, em todo caso de um catolicismo por um
estrelas que nunca foram vistas e que será preciso esperar, !ado ~tramontana, pró-espanh?l e [por outro lad~] oposto
para vê-las, o aparecimento de um certo número de instru- a política de Richelieu. Essa serie de panfletos foi muito
mentos e lunetas. "Os matemáticos modernos", diz Chem- bem Identificada e estudada por Thuau em seu grosso vo-
nitz, "descobriram com suas lunetas novas estrelas no fir- lum,e sobre o pensamento político sob Richelieu". Remeto
mamento e manchas no sol. Os novos políticos também ti- voces a ele, extraindo simplesmente esta citação de um re-
veram as suas lunetas, por meios das quais descobriram o verendo padre Oaude Oément, que era, creio eu, jesuíta e
que os antigos não conheciam ou nos haviam ocultado com que era ligado, ;nas não sei até que ponto e em que medi-
cuidado." 28 da, aos espanhms - fm para a Espanha, era simplesmente
Inovação, portanto, imediatamente percebida, dessa ra- um agente espanhol?, não sei. Em todo caso escreveu em
zão de Estado, inovação e escândalo. E assim como as des- 1637 um livro que se chama O maquiavelismo jugu/ado, Ma-
cobertas de Galileu- inútil tomar sobre isso- causaram no chzavellzsmus ]Ugulatus, no qual diz já no irúcio 0 seguint ·
campo do pensamento religioso o escândalo que vocês sa- "Refletindo sobre a seita dos Políticos, não sei' o que dev~
bem, assim também a ratio status provocou um escândalo dizer, o que ~evo calar e com que nome devo chamá -la.
no mínimo tão grande. Oaro, o funcionamento real, o fun- Devo des1gn~:la como um Politeísmo? Sim, sem dúvida,
cionamento histórico e político desse escândalo foi bem di- porque o P<:lítico ~espe1ta tudo e o que quer que seja pela
srrnples razao política. Devo chamá-la de Ateísmo? Seria
adequado, porque o Político tem um respeito de circunstân-
"' Algumas palavras inaudiveis. Cia que somente a razão de Estado determina; ele muda de
324 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AUlA DE 8 DE MARÇO DE 1978
325
cor e de pele, é capaz de mais transformações do que Pro-
teu. Devo denominá-la [sempre essa seita dos Políticos; lh~s diss; da Primeira vez, que Maquiavel havia sido recu-
M.F.] Estatolatria? Seria o nome mais adequado. Se, em sua sa o na epoca da arte de governar: é mais complicado ue
indiferença geral, o Político respeita alguma coisa, é para Isso, e, no fim das contas, não é verdade -, Maquiavel e';tá
conciliar os homens com não sei que divindade, Deus ou no centro do debate. Ele está no centro do debate com va-
Deusa, que os gregos antigos invocavam sob o nome de Ci- lor~ ~ver:os, o~a negativos, ora, ao contrário, positivos. Na
dade, que os romanos invocavam sob o nome de República ~er da e, e e esta no centro do debate durante todo 0 perío-
ou de Império, e que as pessoas de hoje invocam sob o no- 0 die 1580 a 1650-1660. Está no centro do debate não na
me de Estado. Eis a única divindade dos Políticos, eis o nome me da em _que a coisa passa por ele, mas na medida em
mais adequado para designá-los."" Remeto vocês também - 9ue a ctsa e_ di~a através dele. Não é por ele que passa, não
enfim, há urna literatura imensa, vocês vão encontrá -la mais e por e e ':. nao e nele que vamos encontrar uma arte de go-
uma vez em Thuau - simplesmente ao título de um texto, vern':'. Nao fOI ele que definiu a arte de governar mas •
que é ainda mais tardio, que data de 1667 e que foi escrito atraves do que ele disse que se vai buscar o que é a'arte d:
por um certo Raymond de Saint-Martin. O título do livro é governar. Afinal de contas, esse fenômeno de discurso em
o seguinte: A verdadeira Religião em sua batalha contra todos ~ue se= buscar o que acontece, quando na verdade só se
os erros contrários dos ateus, dos libertinos, dos matemáticos e de •usca er alguma coisa através dele, não é um fenômeno
todos os outros'' que estabelecem o Destino e a Fatalidade, dos pa- uruc~. Nosso Maquiavel, desse ponto de vista, é Marx: a coi-
gãos, dos judeus, dos maometanos, das seitas heréticas em gflral, sa nao passa por ele, mas se diz através dele.
dos cismáticos, dos maquiavelistas e dos políticos". _PoiS bem, c?mo é que a coisa se diz através dele? Os ad-
Dessas diatribes, eu gostaria de reter trés palavras. Pri-
meiro, a palavra Maquiavel; segundo, a palavra político; ter-
'i:
ve~~o~ razao de Estado, esses católicos pró-espanhóis
an - c e eu, todos eles dizem aos partidários da razão d~
ceiro, é claro, a palavra Estado. Maquiavel, primeiro. Numa Estado e aos que buscam a especificidade de uma arte de
aula anterior", procurei lhes mostrar que, na verdade, a arte fovernar; vocês pretendem que haja uma arte de governar
de governar que a gente dos séculos XVI e XVII tanto bus- em autono~a, bem específica, diferente do exercício da
cava, essa arte de governar não podia ser encontrada em sobe~arua, diferente também da gestão pastoral. Mas essa
Maquiavel pela excelente razão de que não estava aí, e não arte e governar <jue vocês afirmam existir, ser necessário
estava aí porque, assim penso, o problema de Maquiavel encontrar, que sena racional, conformada ao bem de todos
não é, justamente, a conservação do Estado em si. Acho que de um tipo diferente das leis de Deus ou das leis da nature:
vocês vão ver isso melhor a próxima vez, quando abordare- za, v:Jam bem, essa. arte de governar na verdade não exis-
mos internamente esse problema da razão de Estado. O te, nao tem consistencia. Ela não pode definir· d .
que Maquiavel procura salvar, salvaguardar, não é o Estado, qu '?R· b na amrus
. e ... o que. OIS em, os caprichos ou os interesses do prín-
é a relação do príncipe com aquilo sobre o que ele exerce
cipe. Apro~ndem quanto vocês quiserem sua idéia de uma
sua dominação: o que se trata de salvar é o principado como
relação de poder do príncipe com seu território ou sua po- -:te e~pecifica de_governar, e só encontrarão Maquiavel. Vo-
pulação. É algo totalmente diferente, portanto. Não há, as- ces so e~contrarao Maquiavel, ou seja, nunca encontrarão
sim creio, arte de governar em Maquiavel. Apesar disso, Ma- ~ada ~rus que os caprichos ou as leis do príncipe. Fora de
quiavel - e aqui seria necessário matizar muito o que eu ~us, ora das su~ leis, fora dos grandes modelos dados
pe a natureza, Isto e, no fim das contas, por Deus, fora do
T

SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978 327


326

princípio de soberania, não há nada, só há o capricho do l'rín- mentalidade na Rússia em meados do século [XIX]* não pro-
cipe, só há Maquiavel. E é nesse momento que M~qmavel vocou a mesma questão, o mesmo problema ••. Se Deus não
vai representar o papel de contra-exemplo, de cntica, de existe, tudo é permitido; logo, Deus tem de existir [...]•••
exemplo de redução da arte de gove~ara nada mrus que a Quanto aos partidários da razão de Estado, uns vão di-
salvação, não do Estado, mas do pnnc1pado. A govern~­ zer: na ve_:dade, não temos nada a ver com Maquiavel. Ma-
mentalidade não existe. Eis o que querem dizer os adversa- qmavel nao nos propor~iona o que buscrunos. Maquiavel,
rios da razão de Estado quando dizem: vocês não passrun na verda?e, nada _mrus e que um maquiavelista, nada mais
de uns maquiavelistas. Vocês não encontrarão essa arte de qu,e alguem que so faz cálculos em função dos interesses do
governar. E, ainda por cima (é o que ;:tizinnocent Gentillet, Pru:'ope, e nos o recusamos como tal. De modo que vocês
de que já lhes falei 35), po_?e~os _at~ dizer que utilizar os estao vendo que a recusa a Maquiavel vai se dar dos dois la-
princípios de Maquiavel nao so nao e estar na p1sta de uma dos. Do lado dos que critic"':' a razão de Estado, dizendo
arte de governar, mas é um péssimo instrumento para o que, no fim das contas, a razao de Estado nada mais é que
próprio príncipe, que correrá o risco de perder seu trono_ e 1!aqmavel; e dos que são partidários da razão de Estado (e]
seu principado, se os aplicar". Logo, Ma<jmavel perrrut: nao vao dizer: mas, na verdade, o que buscamos não tem nada
só reduzir o que se buscava na especifiodade da raz~o de a _ver com Maquiavel, !"faquiavel é bom para jogarmos aos
Estado, mas mostrar que é imediata;nente contraditono e caes. Dentre os partidanos da razão de Estado, no entanto
nocivo. E, mais radicalmente ainda, ha outro argumento que al~ns vão aceitar o desafio e dizer: pois muito bem, Ma~
consiste em dizer: mas, quando se prescinde de Deus, quan- qmavel, pelo menos o dos Comentários", se não o do Princi-
do se prescinde do princípio fundamental da soberania de pe, esse Maquiavel pode sim nos servir, na medida em que
Deus sobre o mundo, a natureza e os homens, para tentar ele tentou efetivamente identificar, fora de todo modelo na-
encontrai uma forma de governo específica, no fundo a que tural e fora de todo fundrunento teológico, o que serirun as
se vai chegar? Aos caprichos do príncipe, como [já] lhes dis- necessidades internas, intrínsecas à cidade, as necessidades
se, depois também à impossibilida~e de fundar acuna dos das relaçõe~ entre os que governam e os que são governados.
homens qualquer forma de obrigaçao. Tirem Deus do .siste- Assun, :-oces encontrarão alguns apologistas de Maquiavel,
ma, digam às pessoas que é preciso obedecer, e q~e e pre- nunca, e claro, entre os adversários da razão de Estado, mas
ciso obedecer a um governo - em nome de que e preciso entre alguns, somente alguns, dos que apóiam a razão de
obedecer? Se já não há Deus, já não há leis. Se já não ~á Estado. Vocês terão o exemplo de Naudé, agente de Riche-
Deus, já não há obrigações. E alguém disse: ".se Deus n~o lie~; que ~screve uma_obra em_ que faz 0 elogio de Maquia-
existe tudo está permitido." Esse alguém não e quem voces vel , e ate encontrarao tambem, num sentido paradoxal-
pensa'm". É o reverendo padre Contzen, no Politicorum libri mente cristão, um livro de um certo Machon", que explica
decem, o Livro dos políticos, que data de 162?'"· Foi em 1620 que Ma<~,;navel é t5>talmente conforme ao que se encontra
que disseram*: se Deus não existe, tudo e perrrutido. Ver na Bíblia . E ele nao escreve isso para mostrar que a Bíblia
como o aparecimento das questões de Estado, da governa-
*M.F.:XVTI
* M. Foucault acrescenta·. em termos [palavra inaudível}, já que era ** M. Foucault acrescenta: o mesmo [palavra inaudível}
em latim "'"'*O fim da frase é inaudível (última palavra: um Estado).
328 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE BDE MARço DE 1978
329
está repleta de horrores, mas para mostrar que mesmo en-
vêem aparecer a p líti lí .
tre os povos que são conduzidos por Deus e por seus profe- domínio ou como ~ o ~~ a po tica. en~endida então como
tas há uma especificidade irredutível do governo, uma cer- vra "a política" p ~çao. Voces vao encontrar a pala-
ta ratio status, uma certa razão de Estado que funciona por
si mesma e fora das leis gerais que Deus pode dar ao mun-
marquês du Ch::, cleet'r;ova':.uomeero dtre textos, em particular do
E' quando Bossuet fala 'da "políti ncon ar també B
tir d m em ossuet.
do ou à natureza. Eis no que concerne a Maquiavel. • tura"" vocês vê ca a a da Sagrada Escri-
Em segundo lugar, a palavra "político(a)". Vocês viram deixou' de ser ~': ~~~e~:ss~ mo::;,entod a política, é claro,
que em todas essas diatribes contra a razão de Estado, [en- maneira de pens - . · po ca eiXou de ser uma
contramos] a palavra "política". [Antes de mais nada,] como ra de raciocinar ;~;J:..n: ~e~rto~ ~di;nd'duos, certa manei-
vocês devem ter notado, a palavra "política" é sempre em- um domínio um d - . ai os m Vl uos. Ela se tomou
pregada de maneira negativa, e [além disso] "política" não m:ruda em que te~r::ovin~~ado de forma po~itiva na
se refere a alguma coisa, a um domínio, a um tipo de práti- praticas, nas maneiras de fazer fa~a ~as mstituiçoes, nas
ca, mas a pessoas. São "os políticos". Os políticos são uma rania da monarquia absoluta fra en o o ~Istema_ de sobe-
seita, isto é, uma coisa que exala ou roça a heresia. A pala- mente o homem ue fez - ncesa. Lws XIV e precrsa-
vra "político[s]" aparece aqui, portanto, para designar pes- especificidade na'i f, a razao de Estado entrar com a sua
soas que, entre si, unem certa maneira de pensar, certa ma- lugar absolutament~:,~:;rusLda_ s~rania. O que dá um
neira de analisar, de raciocinar, de calcular, certa maneira de tória é que, precisamente e! a ws . e~ toda essa his-
conceber o que um governo deve fazer e em que forma de te na sua prática, mas e~ t ~ conse!f'lm- nao sunplesmen-
racionalidade se pode apoiá-lo. Em outras palavras, o que veis da sua monarquia (voft os os ~turus manifestos e visí-
apareceu primeiro no Ocidente do século XVI e do século manifestar a lígação a articulare:. a Isso da próxima vez*) _
XVII não foi a política como domínio, não foi a política como a diferença de nível' a dif, açao, mas, ao mesmo tempo,
conjunto de objetos, não foi nem mesmo a política como pro- [da) soberania e [d~) gov::nç~ d; ~~a especificidade
fissão ou como vocação, foram os políticos, ou, se quiserem, de Estado, e, quando ele diz~~ ~:ad e, de ~at?, a razão
0
uma certa maneira de colocar, de pensar, de programar a mente essa costura saber . sou eu , e preasa-
especificidade do governo em relação ao exercício da sobe- meiro plano Em t arua-govemo que é posta em pri-
rania. Por oposição ao problema jurídico-teológico do ftm- tirada da Sa.gr d oEdo caso, quando Bossuet diz "a política
a a scntura" lí ·
damento da soberania, os políticos são os que vão tentar uma coisa que perde suas c~ a fo- tica toma -se portanto
pensar em si mesma a forma da racionalidade do governo. um domínio, um con·unto de no açoes negativas. Torna-se
E [é] simplesmente no meado do século XVII que vocês ção de poder. [Enfim,) ela é tir~~!e~~s§~m tipo de ?rganiza-
dizer que a reconcilí - grada Escntura quer
todo caso a modalida~ao dcom a pastoral relígiosa ou, em
*O manuscrito (p. 20) apresenta aqui um desenvolvimento so- giosa foi ~stabelecida aEe as relações com a pastoral reli-
bre a teoria do contrato como meio para "deter a insidiosa questão de . , se acrescentarmos a isso que essa
Contzen": "Mesmo que Deus não exista, o homem é obrigado. Por quem?
Por si mesmo." Tomando o exemplo de Hobbes, M. Foucault acrescen-
ta· "O soberano assim instituído, sendo absoluto, não será limitado por ~ M. Foucault acrescenta: tentarem l . .
nada. Logo, poderá ser plenamente um 'governante'."
Cf. suas observações na a o:'algumas palavras mmteligz"veis]
teatro sob Luís XIY. ' u1a segumte, sobre o papel político do
330 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AUlA DE 8 DE MARÇO DE 1978
331
política tirada da Sagrada Escritura em Bossuet leva à con- uma história mais geral • hi • .
clusão de que o galicanismo é fundamentado, isto é, que a !idade, ou ainda se vo~ê;ue e a . stona da governamenta-
razão de Estado pode aluar contra a Igreja, vemos que série
de reviravoltas se efetuaram entre o momento em que se
~as de_roder. se/bem que [J~~,:!e~g~~::~~aldasráti­
lançavam anátemas contra os políticos, [em que] se associa- gi:\~~~~= ~~i~::rcâ~a ~enão desenvolv'er um:'on~~~~
va os políticos aos maometanos e aos heréticos, [e] em que falam do Estado que faze!:, :~r, trr;as ;;u /lergunto: os que
o bispo de Tours tirava da Sagrada Escritura o direito de Luís volvimento do Éstado das t IS ~na do stado, do desen-
XIV ter uma política comandada pela razão de Estado e, por ra não são recis ' pre ensoes o Estado, porventu-
conseguinte, específica, diferente ou mesmo oposta à da de através da his~:n:e ~: '}';:; desenvolvem uma entida-
monarquia absoluta da Igreja. O Império está de fato morto. que seria o Estado? E se~ Estai:n~~~tologJa dessa coisa
Enfim, em terceiro lugar, depois de Maquiavel e da po- maneira de governar? Se o Estado não ~sse mrus que uma
lítica, o Estado. (Aqui serei muito breve, porque vou falar tipo de governamentalidade? E osse mrus que um
disso mais demoradamente a próxima vez.) Oaro, seria um ções de poder que vemo . c se, de fato, todas essas rela-
absurdo dizer que o conjunto das instituições que chama- . s se 10rmarem pouc
partir de processos múltiplos e bem difere t o a pdouco a
mos de Estado data desses anos de 1580-1650. Não teria tros, e que pouco a pouco se c n es uns os ou-
sentido dizer que o Estado nasce então. Afinal de contas, os sas práticas de governo fosse~agulrun e fazem efeito, se es-
grandes exércitos já aparecem na França, se organizam com tir do que se constituiu o Estad[J~::::nte aquilo a par-
Francisco I. O fisco está instituído há mais tempo ainda. A momento, que o Estado não é na h. t. . que dizer: nesse
justiça, há mais tempo ainda. Logo, todos esses aparelhos monstro frio ue - IS ona essa espec1e de
existiam. Mas o que é importante, o que convém reter, o como uma es~éci;~~ ~~~~~~crescer e de se desenvolver
que em todo caso é um fenômeno histórico real, específico, sociedade civil. Tratar-se~a d o ameaçador acuna de uma

!:~!~~a ::~~~;'l=e~~~~~~ ~~:~~:a;~~;~:~


irredutível, é o momento em que esse algo que é o Estado
começou a entrar, entrou efetivamente na prática refletida
dos homens. O problema é saber em que momento, em ta coisa ao mesmo t~m p fr. o se cuJo XVI, certa coisa, cer-
que condições, sob que forma o Estado começou a ser pro- Estado. Mas o Estado ~~da agJie ?bcecante que se chama
jetado, programado, desenvolvido, no interior dessa prática governo, e não o governo que~":::ne q'::'uuma peripécia do
consciente das pessoas, a partir de que momento ele se tor- Ou, em todo caso o Est d 0 • ms •. mento do Estado.
nou um objeto de conhecimento e de análise, a partir de talidade. Por hoj~ é só aO e u;na penpeaa da governrunen _
que momento e como ele entrou numa estratégia meditada srunente da razão de E~ta~.;,roxuna vez, falarei mais preci-
e concertada, a partir de que momento o Estado começou a
ser invocado, desejado, cobiçado, temido, repelido, amado,
odiado pelos homens. Resumindo, é essa entrada do Estado
no campo da prática e do pensamento dos homens, é isso
que é preciso procurar apreender.
O que eu gostaria de lhes mostrar, o que tentarei lhes
mostrar é como se pode efetivamente situar a emergência
do Estado, como objeto político fundamental, no interior de
---r

AULA DE 8 DE Mi\RÇO DE 1978 333

com sua redução nao nível de senra da teologia", que ela veio a ser
NOTAS considerada "um procedimento puramente teórico e abstrato".
Sabemos a importância que essa releitura da filosofia antiga em
termos de exercícios espirituais terá para o trabalho de Foucault a
partir de 1980.
3. Sobre essa leitura das meditações cartesianas, cf. ''Mon
corps, ce papier, ce feu" (1972), DE, II, n? 102, pp. 257-8 (a medi-
tação cartesiana como exerácio que modifica o próprio sujeito), e
I:Herméneutique du sujei, op. cit., pp. 340-1 ("[A] idéia de medita-
ção, não como jogo do sujeito com seu pensamento, mas como
jogo do pensamento sobre o sujeito: no fundo, é exatamente isso
que Descartes ainda fazia nas Meditações [... ]". Em 1983, em sua
longa conversação com Dreyfus e Rabinov, "A propósito da genea-
logia ética", Foucault não considera mais Descartes como herdei-
ro de uma concepção da filosofia fundada no primado da condu-
ta de si, mas, ao contrário, como o primeiro a romper com ela: "(... )
. (1524-1526)· revolta dos camponeses alemães, não se deve esquecer que Descartes escreveu 'meditações' - e as
1. Bauernkri~ . , ·a· Alsácia e Alpes austríacos. Esse meditações são uma prática de si. Mas a coisa extraordinária nos
na Suábia, Francoma, Tunngt ' t das revoltas camponesas do
textos de Descartes é que ele conseguiu substituir um sujeito
Il!ovim~Ovi~~ X:t~~o~~n~~ne~cesso das co~~s, as ~s~rpa- constituído graças a práticas de si por um sujeito fundador de prá-
seculo ' . . b das instâncias senhonaiS, adqwnu w:' ticas de conhecimento. [... JAté o século XVI, o ascetismo e o aces-
ções de set_VI:ÇéllS e os~ -~os e 1525 notadaroente sob a intluênaa
so à verdade estão sempre mais ou menos obscuramente ligados
caráter religwso, no 1!\lcro d(cf Pra p 293 nota 25). A repressão
na cultura ocidental. [... ] Depois de Descartes, é urn sujeito do co-
dos anabatistas de Mun:er_ e~ s~atóÚc~s e Íuteranos fez mais de
levada a cabo pelos pnncrp as Münzer ais Theologe der Revo- nhecimento não adstrito à ascese que vé o dia" (DE, IV; n? 326, pp.
100.000 mortos. 0. Eh Blo~h, !Tho7 I ThotrUIS Münzer, théologien 410 e 411).
960 4. Regulae ad directionem ingenii I Regras para a direção do espí-
lution, Berlim, Aufge au- er a~andillac Paris, Julliard, 1964, reed.
de la Révoluhon, trad. fr. M. de M:nzer (1489-1525) et les lut- rito, obra redigida por Descartes em 1628 e publicada depois da
"10-18", 197~: L. G. Walter,,ThotrUISParis, A Picard, 1927; M. Pian- sua morte emAmsterdarn, em 1701 (depois de uma tradução fla-
tes soeiales à l epoque de la Réforme,d a sans Paris Le Oub fran- menga publicada em 1684) in R. Descartes opuscula posthuma. A
1
zola, Thomas Munzer, oudfhaGt"";; ~[s.~ G 'Leon~d, Histoire gé- edição modema de referência é a de Ch. Adam e P. Tannery, Oeu-
çaisdulivre, "Portr~ts 15 ?rr ' 't. 1 . . 93-7. 7!1'es de Descartes, Paris, L. Cerf, t. X, 1908, pp. 359-469; reed. Paris,
lJ.
nérale du prot~stantzsme, op. czt., ed. 19~a. ã~ história da filoso-
arti.go "Exercices
Vrin, 1966.
2. Convem aproXllllar essa peno ç 5. Meditationes Metaphysicae (ou Meditationes de Prima Philo-
" wn ano antes, em seu
fia da que P. Hadot expos, . h t études V' section sophia in qua Dei existentia et animae immortalitas demonstrantur),
spirituels", Annuaire de l'École prahque des au estuels et Philosophi~ Paris, Michel Soly, 1641; trad. fr. do duque de Luynes, Les Médita-
6
t. L)(XXIV, 1977, p. 68 (reed~~~~-';.~~~,~~ ): enquanto a fi- tiuns métaphysiques de Descartes, Paris, v~ J. Carnusat & Le Petit,
antzque, Paris, Études augu,.;Ml nsistia nurn "método de forma- 1647; ed. Adam e Tannery, Paris, Léopold Cerf, 1904.
~, co
losofia, em seu aspecto on,.. d [ ]
. d ·ver e de enxergar o mun o, ... 6. Talvez se deva ver nesse desenvolvimento uma alusão aos
ção para uma nova msfanerra_ e dVI homem" foi na Idade Média, trabalhos de Philippe Arles (I:Enfant et la vie jamiliale sous l'Ancien
um esforço de tran ormaçao o '

...
334 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978
335
Régime, Paris, Plon, 1960; reed. Paris, Le Seuil, "I.:univers histori- 11. Ibid. ' I' 1-trad
' · fr., p · 29·· "[···10 corpo do homem ou de qual-
que", 1973; ed. resumida, "Points Histoire", 1975 [História social da quer animal se desagregana· - h
dir triz . se nao ouvesse no corpo certa força
criança e dafamz1ia, LTC, 1981]), que acabava de prefaciar La Civi- e co~um vrsando o bem comum de todos os membros"
multi .d1~. Ibzd.; trad. ,fr:, p.29: "É preciso haver, portanto em ;oda
lité puérile d'Érasme (Paris, Ramsay, "Reliefs", 1977), situando esse
texto na tradição dos manuais de cortesia: "Esses manuscritos de ao, um pnncrpw diretor. 11 '

cortesia são, no século XV, para a maneira de se comportar, o equi- 13. Ibid., l, 15; trad. fr., p. 124: "Como [... ] 0 fim da vida
valente das redações de costumes para o direito; no século XVI, ora levamos com honestidade é a beatitude celeste q~e
é d fi · d · . , por essa razao
são r e dações de regras consuetudinárias de comportamento (' có- o o cto o ret proporCionar à multidão uma "d b nf
me ' ' b - VI a oa, co ar-
digos de comportamento', dizem R Chartier, M.-M. Compêre e D. convem a o tençao da beatitude celeste 11
julia [I:Éducation en France du XVI' au XVIII• siécle, Paris, Sedes, 14. Cf. supra, p. 113, nota 34. ·
1976]), que definiam como cada um devia se portar em cada cir- 15. Cf. supra, p. 116, nota 48.
cunstância da vida cotidiana" (p. X). O texto de Erasmo, nesse vo- 16. Cf. supra, aula de 22 de fevereiro, PP· 222 ss.
lume, é precedido de uma longa nota de Aleide Bonneau, retoma- . 17. Sobre essa caracterização do cosmos medieval e ren -
da na edição de !sidere Lisieux (Paris, 1877), sobre os "livros de centista, cf. Les Mots et les Choses, op. cit., cap. II, pp. 32-46 as
civilidade desde o século XVI" (cf. também, sobre as fontes e a 18. Ibzd., pp. 64-91. ·
posteridade da obra de Erasmo, N. Elias, Über den Process der Zivi- . V. 19.Giovanni Botero (1540-1617), De/la ragion di Stato libri di -
lization. Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen, Berna, ~Ra~netia, appresso 1 G10liti, 1589; 4~ ed. aumentada, Milão 15; 8
Francke, 1939 I La Civilisation des moeurs, Paris, Calmann-Lévy, r:
rson Gouvernemen.t_ d'Estat en dix livres, trad. fr. G. Cha ' u
1973; reed. Le Livre de Poche, "Pluriel", 1977, pp. 90-140 [ed. bras.: che~ ~uillaume Chaudiere, Paris, 1599. A obra foi objeto d~~,ia~
ree çoes recentes, uma de L. Frrp· 0 1 liurun"1 UTEf "C! . . li .
O processo civilizador, 2 vols., Jorge Zahar, 1995]). No artigo que •
11
1948 1 aSS!Cl p0 ti-
C! , , a. outra de C. Continisio, Roma, Donzelli, 1997.
dedicou a Ph. Arles depois da sua morte, em 1984, Foucault escre-
via: "Max Weber se interessava, antes de mais nada, pelas condu- de' m20. Ibz~ l, l' 1· de 1997, p. 7: "Ragione di Stato si e notizia
ezzl a a on are, conservare e ampliare un dominio E li ,
tas econômicas; Aries, pelas condutas concernentes à vida" ("Le
souci de la vérité", DE, N, n? 347, p. 647.
v~ che, sebbene. assolutamente parlando, ella si stende ~! tr:
p sudette, nondimeno pare che piU strettamente abb "]
7. São Tomás de Aquino, De regno, em Opera omnia, t. 42, Ro- servazi h l'al racc1 a con-
ma, 1979, pp. 449-71 I Du royaume, trad. fr. M. Martin-Cottier, Paris, dazion~.~eT~a1 fr trep, !-~~Es'altIre due piu l'arnpliazione che la fon-
Egloff, "Les classiques de la politique", 1946. . . ., · , . at est une ferme dommation sur les
peuples, & la Raison d Estat est la cognoissance des moye
8. Ibid., l, 1; trad. fr., p. 34: "[ ... ] o rei é aquele que governa a a fonder, conserver, & agrandir une telle domm·ati·on & n~ prop~es
multidão de uma cidade ou de uma província, e o faz tendo em n est b. setgneune
de a Ien :vray, P?UI parl~r absolument, qu'encore qu'elle s'esten~
vista o bem comum". ux trms susdttes parties, il semble ce neantmoins ' 11
9. Ibid., I, 12; trad. fr., p. 105: "Como as coisas da arte imitam brasse plus estroictement la conservation que les autre;~ed e em-
as da natureza [... ], o melhor parece ser extrair o modelo do ofício tres l'estendue plus que la fondation." . es au-
do rei da forma do governo natural. Ora. encontramos na nature- 1" 21. EVeyne, Le Pain et le Cirque Sociologie historique d'un pl -
za um governo universal e um governo particular. Um governo ;,a zsme polzhque, Paris, Le Seuil, "L'Univers historique" 1976 ud
universal, segundo o qual todas as coisas estão contidas sob o go- Pomts Historre", 1995. ' , ree .
verno de Deus, que dirige o Universo pela Providência ... " ~- Pode parecer curioso que Foucault faça aqui o elogio de
10. Ibid., I, 13; trad. fr., p. 109: "Ao todo, há que considerar i:'t, . o du~e mscreve explicitamente na corrente da sociologia
duas operações de Deus no mundo: uma pela qual ele o cria, a ou- s onc~_ e . ymond Aron e sobre o qual seu autor confessa ue
tra pela qual ele o governa, uma vez criado." o havena escnto de uma forma totalmente dif t h q
eren e, se ouvesse
SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE M<\RÇO DE 1978 337
336

compreendido então a significação da metodologia foucaultiana status in Imperio nostro Romano-Gennanico veio a lume em 1640
(cf. seu ensaio, "Foucault révol~tionne l'histoire" (1978), mo/· ctt., (data contestada: talvez 1642 ou 1643; cf. R. Hoke, "Staatsrãson
p. 212: "[ ... ] acreditei e escreVI, equivocadame~te, que o pao e o und Reichverfassung bei Hippolithus a Lapide", in R. Schnw; ed.,
circo tinham por objetivo estabelecer uma relaçao entre governan- Staatsriison. Studien zur Geschichte einen politischen Begriffs, Berlim,
tes e governados ou respondiam ao desafio objetivo que eram ..os Duncker & Humblot, 1975, pp. 409-10 n. 12 e p. 425; M. Stolleis,
governados"). Segundo P. Veyne, a quem fiz a pergunta, convem Histoire du droit public en Allemagne, 1600-1800, trad. fr. citada [su-
levar em conta o humor de Foucault na referência que faz a.? seu pra, p. 34, nota 25], p. 303 n. 457 sobre o estado da discussão), com
livro. É claro, no entanto, que a análise que P. V~e. prop,?e do o pseudônimo de Hippolithus a Lapide. A obra teve duas tradu-
evergetismo ("doações de um indivíduo ~~a a,coletivtdade ~ P: 9, ções francesas, uma de Bourgeois du Chastenet, Interets des Prin-
ou "liberalidades privadas em favo~ do publico , P·. 20), s~a distin- ces d'Al}emagne (Freistade, [s.n.], 1712,2 vols.), baseada na primei-
ção entre as formas livres e ,e~tatutanas de evergesta, o vmculo es- ra ediçao datada de 1640, a outra, mais completa, de S. Formey, Les
tabelecido com diversas praticas (mecenato, larguezas ob h~ore_m Vrais Intérêts de l'Allemagne (Haia_ [s.n11762, 3 vol&), baseada na
e liberalidades funerárias) e categorias sociais ou atores (notáveis, segunda edição de 1647. Foucault, que confunde aqui as datas das
senadores, imperadores), o realce de motivações múltiplas (pieda- duas edições, faz referência à primeira tradução. Uma nova edição
de desejo de ser estimado, patnotismo), etc. po~ ~onstiturr,.ao da obra, a cargo de R. Hoke, está em preparação ("Bibliothek des
ve; de Foucault, o modelo de uma prática histo~o~~ca ~ostil a deutschen Staatsdenkens", sob a dir. de H. Maier e M. Stolleis,
uma explicação de tipo causal e preocupada em mdiVldualizar os Frankfurt/M., Insel Verlag).
acontecimentos. a. P.Veyne, Comment on écri.t l'histoire, op. cit. (1~ 25. Dissertatio, op. cit., t. I, ed. de 1712, p. 1 (cf. ed. de 1647,
ed Paris Le SeuiL ''l:Univers historique", 1971), p. 70: "O proble- p. 1). Citado por E. Thuau, Raison d'État et Pensée politique à I'époque
m; da c~usalidade em história é uma sobrevivência da_ era_ paleo- de Richelieu, Paris, Armand Colin, 1966, reed. Paris, Aibin Michel,
epistemológica." Como precisa;::'· Defert, a: teses_ nomm~sta~ d; "Bibliothéquede l'évolution de l'humanité", 2000, pp. 9-10 n. 2.
Paul Veyne desenvolvidas em Foucault revolutionne l ~sto_rre Trata-se da pnmerra frase da Dzssertatio, que abre a obra (''Consi-
(mas já presentes em Comment on écrit l'histoire), foram discutidas derations generales sur la raison d'Etat"). O tradutor no entanto
por Foucault, com o grupo de pesquisadores que se reuruam em escreve JFna poeira da escola" (in pulvere scholastico), ~xpressão di~
sua sala "durante os dois anos em que tratou da govemamenta- rigida contra o aristotelismo então dominante nas universidades
lidade e' da razão política liberal" ("Chronologie", DE, I, P· 53). alemãs.
23. Sobre esse tratado, ou melhor, sobre esses tratados~ que 26. a. E. Thuau, op. cit., cap. 2, "L'accueil à Tacite et à Ma-
assinalaram o nascimento da Europa política moderna, cf. mfra, chiavel ou les deux raisons d'État", pp. 33-102. Para uma proble-
wrn~~9. . . matização das relações entre Tácito, Maquiavel e a razão de Esta-
24 Filho de um alto funcionário alemão, Martin Chemrutz, do, cf A Stegmann, "Le tacitisme: programme pour un nouvel
que ha~a sido chanceler de dois príncipes do I~pério,_ B~~law essai de définition", fl Pensiero politico, II, 1969 (Florença, Olschki),
Philipp von Chemnitz (1605~1678) estudou diretto e his:_ona em pp. 445-58.
Rostock e Iena. Foi nessa umvers1dade que sofreu a infl~enc1a do 27. Dissertatio, t. I, ed. de 1712, p. 6 (cf. ed. de 1647, p. 4): "La
'urista calvinista DominicusArumaeus (1579-1637), constderado o cause & I' origine de la raison d'état, sont celles de l'Etat même oU
!:nador da ciência do direito público alemão, cuja escola t~ um elle a pris naissance."
papel determinante na crítica da ideologia imperial. Tendo mter- 28. Ibid., pp. 6-7 (cf. ed. de 1647, p. 4).
rompido seus estudos por volta ~e 1627, po_r ~otivos ~~ perma- 29. Pio V (1504-1572) foi eleito papa em 1566. A fórmula lhe
necem obscuros, Chemnitz sernu corno oficial_ no e;erc1to neer- é atribuída, desde o fim do século XVI, por um grande número de
landês, depois no exército sueco, onde fez carre~ra ate ~644, e ~or­ autores. Cf. notadamente Girolamo Frachetta, L!dea dei Libra de'
nou-se historiógrafo de Cristina da Suécia. A Dzsserlatio de rattone govemi di Stato e di guerra, Veneza, appresso Damian Zenaro, 1592,
338 SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 8 DE MARÇO DE 1978
339
p. 44b: "La Ragion di Stato [... ] a buona equità da Pio Quinto di em 1639 (reirnpr. Hildesheirn, Olms, 1993, introd. e notas de F.
felice e santa memoria era appellata Ragion dei Diavolo" (outros Charles-Daubert). Essa primeira edição, limitada a doze exempla-
exemplos citados por R. De Malte~ II problema de/la "ragion dista- res, foi seguid~ ~o século XVII, de várias reedições póstumas: em
to" nell'età della controriforma, Milão-Nápoles, R. Ricciardi, 1979, 1667, sem prec1sao de lugar ("com base na cópia de Roma"); em
pp. 28-9). 1673, em Estrasburgo, com o título de Sciences des Princes, ou Con-
30. E. Thuau, Raison d'État ... a. cap. IIJ, ''l:opposition à la 'rai- sidérations politiques sur les coups d'État, com os comentários de
son d'enfer'", pp. 103-52. Louis Du May~ sec~etário do Eleitor de Mogúncia; em 1676 em Pa-
31. R. F' Oaude Oément (1594-1642/43), Machiavellismus ju- r;s (reed._ ~1bliotheque de philosophie politique et juridique de
gulatus a Christiana Sapientia Hispanica et Austriaca [O maquiave- I Uruvemte de Caen, 1989), etc. O texto de 1667 foi reeditado por
lismo jugulado pela Sabedoria cristã da Espanha e da Aústria], Lou1s Mann, Paris, Éditions de Paris, 1988, com uma importante
Compluti, apud A Vesquez, 1637, pp. 1-2; citado por E. Thuau, op. introdução, "Pour une théorie baroque de I' action politique". a.
cit., pp. 95-6 (M. Foucault modifica ligeiramente o fim do texto, E. Thuau, Raison d'État ..., pp. 318-34.
que se apresenta desta forma: " [... ] que os gregos antigos invoca- 41. Louis Machon (1603- ?), "Apologie pour Machiavelle en
vam como a Cidade, os romanos como a República e o Império, as faveur des Princes et des Ministres d'Estat", 1643, versão definiti-
pessoas de hoje como o Estado"). va 1668 (manuscrito 935 da Bibliotheque de la ville de Bordeaux).
32. Título original: ou outros, em vez de e de todos os outros. Essa obra,_ c~~posta inicialmente por incentivo de Richelieu, per-
33. Esse livro do R. P. Raymond de Saint-Martin foi publica- manec~u n:edita, com exceção de um fragmento, que representa-
do em Montauban em 1667. Cf. E. Thuau, Raison d'État ..., pp. 92 va o pnmerro terço do texto final, publicado, segundo um manus-
e 443. crit~ de 1653, na introdução das Oeuvres completes de Machiavel or-
34. a. supra, aula de 1? de fevereiro, pp. 122-3. garuzadas por J. A. C. Buchon em 1852 (Paris, Bureau du Panthéon
35. Ibid., p. 121. littéraire). a. E. Thuau, Raison d'État ..., pp. 334-50 (nota biográfi-
36. E. Thuau, Raison d'État ... , pp. 62-5. ca, p. 334 n. 2); G. Procacci, Machiavelli nella cultura europea ... , op.
37. Alusão à famosa fónnula de Ivan Karamazov no romance at., pp. 464-73.
de Dostoiévski, Les Fréres Karamazov [Os irmãos Karamazov (1879- . 42. :Minha primeira intenção no que concerne a essa Apolo-
80), trad. fr. de B. de Schloezer, Paris, Gallirnard, "Bibliotheque de gla era por o texto do nosso Político [Maquiavel] de um lado des-
la Pléiade", 1952, p. 285] !y, 5, a lenda do Grande Inquisidor). te livro, e o da Bíblia, dos doutores da Igreja, dos canonistas, [... ].
38. R. F' Adam Contzen, SJ, Politicorum libri decem, in quibus do outro; e mostrar, sem outro raciocínio e sem outro artifício, que
de perfedae reipublicae forma, virtutibus et vitiis tradatur, Magun- esse grande homem não escreveu nada que não tenha sido tirado,
tiae, B. Lippius, 1620, p. 20: "Si Deus non est aut non regtt m~m­ palavra por palavra, ou pelo menos que não corresponda a tudo o
dum, sine metu sunt omnia scelera" (citado por E. Thuau, Razson que esse~ dou;os personagens tenham dito antes dele, ou aprova-
d'État..., p. 94). do dep01s [... ] (L. Machon, op. cit., textos de 1668, pp. 444-8, cita-
39. M. Foucault designa com isso, claro, os Discursos sobre a do por K. T. Butler, "Louis Machon's 'Apologie pour Machia-
primeira década de Tito Lívio de Maquiavel (manuscrito, p. 19: "Ma- velle"',Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. 3, 1939-
quiavel (pelo menos o dos Comentários sobre T.L.) buscou os 40, p. 212).
prinápios da arte de governar"). . 43. Paul Hay, marquês du Chastelet, Traité de Ia politique de
40. Gabriel Naudé (1600-1653), secretário do cardeal de Bagru, France, Colônia, chez. Pierre du Marteau, 1669. Essa obra, que de-
em Roma, de 1631 a 1641. Foi chamado à França por Richelieu sagradou mwto a LulS XlY, foi constantemente reeditada até o fim
quando da morte daquele, depois tomou-se bibliotecário de Ma- d_? sécul? XVII e constituiu uma das principais fontes de inspira-
zarin, até 1651. Foucault se refere a Considérations politiques sur les çao da Díme royale de \áuban (1707). Hay du Chastelet definiu as-
coups d'État, publicado em Roma sem nome de autor ("por G.F'N.") sim a política (ed. aumentada de 1677, mesmo editor, p. 13): "A
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
340
AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978
Política é a arte de governar os Estados,_ os antigos disser~ que era
uma ciência Real e muito divina, a mrus ~xc~le_nte e a~~rus mestra
de todas as outras, e lhe deram entre as di~aplinas praticas ames-
ma vantagem que a Metafísica e a Teologta possuem entre as Es- A razão de Estado (W: sua definição e suas principais
peculativas." ) Po características no século XVII. -O novo modelo de temporali-
44.jacques-Bénigne Bossuet (bispo de Meaux, 1627-1704, - dade histórica acarretado pela razão de Estado. - Traços espe-
litique tirée des propres paroles de l'Écriture Saznt~, Paris, Pierre Cot, dficos da razão de Estado em relação ao governo pastoral: (1)
1709; ed. crítica de j. Le Brun, Genebra, Droz, Les Oass1ques de O problemu. da salvação: a teoria do golpe de Estado (Naudé).
la pensée politique", 1967. Necessidade, violí!ncia, teatralidade. - (2) O problema da obe-
dibzcia. Bacon: a questão das sedições. Diferenças entre Bacon
e Maquiavel. - (3) O problema da verdade: da sabedoria do
príncipe ao conhecimento do Estado. Nascimento da estatísti-
ca. O problema do segredo.- O prisma reflexivo no qual apa-
receu o problema do Estado.- Presença-ausência do elemento
"população" nessa nooa problemática.

Hoje eu gostaria de lhes falar rapidamente do que se


entendia, em fins do século XVI - início do século XVII, por
razão de Estado, apoiando-me em certo número de textos,
seja italianos, como o de Palazzo, seja ingleses, como o tex-
to de Bacon, seja franceses, ou também o de Chemnitz, de
que lhes falei da última vez' e que me parece singularmen-
te importante. O que se entende por razão de Estado?Vou
começar me referindo a duas ou três páginas do tratado de
Palazzo, publicado em italiano no finzlnho do século XVI,
ou talvez nos primeiros anos do século XVII'. Existe na [Bi-
bliotheque] Nationale uma edição datada de 1606, que tal-
vez não seja a primeira, em todo caso a edição francesa, a
primeira tradução francesa pelo menos, data de 1611. Esse
tratado se chama Discurso do grmerno e da verdadeira razão de
Estado, e nas primeiras páginas Palazzo simplesmente for-
mula a questão: o que se deve entender por "razão" e o que
se deve entender por "estado"? "Razão", diz ele- e vocês
vão ver como tudo isso é, digamos, escolástico, no sentido
banal e trivial do termo-, o que é "razão"? Pois bem, "razão"
é uma palavra que se emprega em dois sentidos: razão é a

j
342 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978
343
essência inteira de uma coisa, é o que constitui a ~ão, a
reunião de todas as suas partes, é o vínculo ~ecess~o en: pois, um meio de jurisdição, um conjunto de leis, de regras,
tre os diferentes elementos que a constituem . Isso e que e de costumes. A república, se não é um estado, pelo menos é
a razão. Mas "razão# também é usada num outro sentid?. um conjunto de estados, isto é, de indivíduos que se definem
A razão é, subjetivamente, certo poder da alma que_perrru- por seu estatuto. E, enfim, a república é certa estabilidade
te, justamente, conhecer a verdade das co1sas, 1sto e, Justa- dessas três coisas precedentes: domínio, jurisdição, institui-
mente esse vínculo, essa integridade das diferentes partes ção ou estatuto dos indivíduos'.
da coisa e que a constituem. A razão é portanto um me10 O que vai ser chamado de "razão de Estado", em am-
de conhecimento, mas também é algo que perm1te que, a bos os sentidos da palavra "razão", objetivo e subjetivo? Ob-
vontade se paute pelo que ela conhece, se paute pela.rr~­ jetivamente, vai se chamar de razão de Estado o que é neces-
pria essência das coisas4• A razão ~erá, pon:anto, a essenc~a sário e suficiente para que a república, nos quatro sentidos
das coisas, 0 conhecimento da razao das cc:1sas e essa espe- da palavra "estado", conserve exatamente sua integridade.
cie de força que permite [à vontade], e ate ce~o ponto [a] Por exemplo, tomemos o aspecto territorial da república.
obriga, [a] seguir a essência mesma das cmsas. E1s quanto Diz-se que, se determinado frag~nento do território, deter-
à definição da palavra "razão". , . minada cidade situada no território, determinada fortaleza
Definição da palavra estado", agora. "Estado , d~ Pa -
11
para defendê-lo é efetivamente indispensável à manuten-
lazzo, é uma palavra qu; se entende em quatro sentidos6 . ção da integridade desse Estado, diz-se que esse elemento,
Um "estado" é um doffilnio, dommzum. Em se?llndo lugar, esse território, esse frag~nento de território, essa cidadela,
é uma jurisdição, diz ele, é um conj~nto de le1s, de regras, essas cidades fazem parte da razão de Estado". Agora, to-
de costumes, é mais ou menos, se voces qmserem, ? que cha- mando o lado [subjetivo]* da palavra "razão", o que vai ser
mariamos de -vou empregar uma palavra que~ e claro,_ele chamado de "razão de Estado"? Pois bem, "uma regra ou
não utiliza - uma instituição, um conjunto de mstitu1çoes. uma arte"- cito o texto de Palazzo -, "uma regra ou uma arte
Em terceiro lugar, "estado" é~ :Jiz
ele (diz o tra;Jutor, que [... ] que nos dá a conhecer os meios para obter a integrida-
acompanho aqui), uma condiçao de Vida, !sto e, de certo de, a tranqüilidade ou a paz da república"'. Essa definição
modo um estatuto individual, uma profissao: o estado de formal, essa definição escolástica no sentido trivial da pala-
magistrado, ou o estado civil, ou o_estado_ relig~oso. Enfim, vra, não é própria de Palazzo, vocês vão encontrá-la prati-
em quarto lugar, o "estado", diz ele,_e a qualidad~,de um~,c?I­ camente na maioria dos teóricos da razão de Estado. Gos-
sa, qualidade que se opõe _ao moVImento. U:m :stado e ~ taria de citar um texto de Chemnitz, muito posterior portan-
que torna uma coisa, se nao totalmente 1movel aqm pas to, pois data de 1647". Chemnitz, nesse texto, diz o seguin-
so por cima do detalhe, porque, diz ele, certas unobilidades te: o que é a razão de Estado? É "certo cuidado político que
seriam contrárias ao repouso da coiSa, afinal certas co1sas se deve ter em todos os negócios públicos, em todos os
têm de se mover para poder permanecer realmente em re- conselhos e em todos os desígnios, e que deve tender uni-
pouso -, em todo caso ess~ estado é uma qualidade que faz camente à conservação, à ampliação e à felicidade do Esta-
que a coisa seja o que ela e. , . , _ do, para o11 que há que empregar os meios mais fáceis e mais
O que é a república? A republica e um estado, nos qu~ prontos" •
tro sentidos da palavra, que venho_ de explicar._l;fma ~epu­
blica é antes de mais nada um dormruo, um temtono. , de-
* M.F.: positivo
344 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 15 DE MARÇO DE 1978 345

Essa definição de Palázzo, confirmada por outros, como se falar da felicidade. Está no texto de Chemnitz 13 • Claro
Chemnitz e vários teóricos da razão de Estado, apresenta outros textos também falarão da felicidade. Mas essa felici~
imediatamente, como vocês estão vendo, características mui- dade: es~a perfeição,_ a CjUe são atribuídas e a que se deve
to visíveis. Primeiro, nada nessa definição da razão de Esta- relacrona-las? Ao propno Estado. Lembrem-se da maneira
do se refere a outra coisa senão ao próprio Estado. Vocês como são Tomás falava do que era a república e do que era
não têm nenhuma referência a uma ordem naturaL a uma o governo real. O governo real era do domínio de uma cer-
ordem do mundo, a leis fundamentais da natureza, nem ta arte terrena, mas o objetivo final do governo real era agir
mesmo a uma ordem divina. Nada do cosmo, nada da na- de tal sorte que os homens, saindo do seu estatuto terreno
tureza, nada da ordem divina está presente na definição e libertados dessa república humana, pudessem alcançar
da razão de Estado. Em segundo lugar, vocês vêem que essa algo que era a felicidade eterna e o gozo de Deus. Ou seja,
razão de Estado está fortemente articulada em torno da re- no ~ das contas, a arte de governar, a arte de reinar de são
lação essência-saber. A razão de Estado é a própria essên- Tomas, estava sempre voltada para esse fim extraterreno,
cia do Estado, e é igualmente o conhecimento que possibi- para esse fim extra-estatal, eu ia dizendo extra-republicano,
lita, de certo modo, acompanhar a trama dessa razão de Es- fora da res pu_blzca, e er~ para esse fim que a res publica de-
tado e obedecer a ela. É portanto uma arte, com seu lado VIa estar em última ~stancra voltada". Aqui, não temos nada
prático e seu lado de conhecimento. Em terceiro lugar, vo- disso. O fim da razao d': Estado é o próprio Estado, e se há
cês estão vendo que a razão de Estado é essencialmente algo corno uma perfe1çao, como uma felicidade, será sem-
urna coisa ... eu ia dizendo conservadora, digamos conserva- pre [aquela] ou aquelas do próprio Estado. Não há último
tória. Trata -se essencialmente, nessa razão de Estado, por ~a. Não há ponto final. Não há algo como uma organiza-
essa razão de Estado, de identificar o que é necessário e su- çao temporal unida e final.
ficiente para que o Estado exista e se mantenha em sua in- O~jeções que Palazzo lo_go se !az - eram objeções que
tegridade, se preciso for, caso seja necessário e suficiente ele haVIa encontrado? ele propno e que as imagina? Pouco
para restabelecer essa integridade, se ela vier a ser compro- unporta Elas são interessantes, porque Palazzo diz o seguin-
metida. Mas essa razão de Estado não é, de modo algum, te: mas, afinal, se o governo, a arte de governar segundo
um princípio de transformação, diria inclusive de evolução essa razão de Estado não tem, no fundo, nenhuma finalida-
do Estado. Claro, vocês acharão a palavra "ampliação", so- de que seja alheia ao próprio Estado, se não se pode propor
bre a qual tornarei brevemente daqui a pouco. Mas essa nada aos homens para além do Estado, se no fundo a razão
ampliação nada mais é, no fundo, que a majoração, o aper- de Estado não tem finalidade, será que afinal de contas não
feiçoamento de certo número de traços e de caracteristicas se pode prescindir dele? Por que os homens seriam obriga-
que já constituem efetivamente o Estado e não é, de modo dos a ob_edecer a um governo que não lhes propõe nenhu-
algum, a sua transformação. A razão de Estado é portanto ":'a fin~dade, pessoal e exterior ao Estado? Segunda obje-
conservadora. Trata-se, dirá o marquês du Chastelet na se- çao: se e verdade que a razão de Estado tem uma finalida-
gunda metade do século XVII, de alcançar uma "justa me- de unicamente conservado~a, ou em todo caso um objetivo
diocridade"". Enfim- e é este sem dúvida o traço mais ca- conservad~r, se essas finali_dades ':ão interiores à própria
racteristico -, nessa razão de Estado vocês estão vendo que manute~çao do Estado, sera que nao basta que a razão de
não há nada que diga respeito a algo como uma finalidade Estado srmplesmente mtervenha quando, por um acidente
anterior, exterior ou até ulterior ao próprio Estado. Claro, vai que pode se produzir em certos casos, mas que não se pro-
346 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

duzirá todo o tempo, a existência do Estado se vê compro-


T AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978
347

se foi por conqulsta" -, esses problemas deixarão de inter-


metida? Em outras palavras, a razão de Estado, a arte de go- VIr agora, ou só intervirão de forma secundária. A arte de
vernar e o próprio governo não devem simplesmente inter- governare a raz?o de E?tado não leva:'tam mais o proble-
vir quando se trata de corrigir um defeito ou fazer frente a ma de ongem. Ja se esta no governo, ja se está na razão de
um perigo imediato? Logo, não se pode ter um governo Estado, já se está no Estado.
descontinuo e uma razão de Estado que intervenha sim- . Em segundo lugar, não só não há ponto de origem que
plesmente em certos pontos e certos momentos dramáti- seJa pertinente para modificar a arte do governo, como o
cos?" Ao que Palazzo responde: de jeito nenhum! A repú- proble~a do ponto terminal nem deve ser posto. E isto é
blica não poderia subsistir em momento algum, não pode- sem duVJda mrus IIIlportante do que aquilo. Quer dizer que
ria ter nenhuma duração se não fosse a cada instante levada o E~tado - a razão de Estado e o governo comandado pela
em conta, mantida por uma arte de governar comandada razao de Estado - não terá de se preocupar com a salvação
pela razão de Estado. "A própria república não seria capaz, dos inclivíduos; Não terá nem sequer de buscar algo como
nem suficiente", diz ele, "para se consetvar em paz nem um fim da histona, ou como uma consumação, ou como um
mesmo por uma só hora."" A fraqueza da natureza h?ma- ponto em que se articulariam o tempo da história e a e ter-
na e a ruindade dos homens fazem que nada na republica mdade. Nada, por conseguinte, como esse sonho do último
poderia se manter se não houvesse, em todo ponto, em Império que, apesar ~e tudo, havia com~dado as perspec-
todo momento, em todo lugar, uma ação específica da ra- tivas religiOsas e h1storicas da Idade Media. Afinal de con-
zão de Estado garantindo de maneira concertada e meditada tas, na Idade Média, ainda se estava num tempo que devia,
o governo. É sempre necessário, portanto, um governo e o a certa altura, torr;ar-se um tempo unificado, o tempo uni-
tempo todo um governo: o governo como ato de criação versal de um Impeno em que todas essas diferenças seriam
continua da república. apagadas, e é esse Império universal que anunciaria e seria
Creio que essa temática geral posta por Palazz~ em sua o teatr.o no qual s; produziria o retorno de Cristo. O Impé-
definição da razão de Estado é Importante por vanas ra- no, o último Impeno, o Império universal, seja o dos Césa-
zões. Só lembrarei uma, e é a seguinte: com essa análise da res, SeJa o da Igreja, era no fim das contas algo que ronda-
razão de Estado vemos esboçar-se um tempo, um tempo va a perspectiva da Idade Média e nessa medida não h a-
histórico e político que tem, em relação ao que tinha do mi- via governo indefinido. Não havia'Estado ou rein'o fadado
nado o pensamento na Idade Média ou até mesmo ainda in_definidamente à repetição no tempo. Agora, ao contrário,
na Renascença, características bem particulares. Porque se nos :'os :ncontramos numa perspectiva em que o tempo da
trata justamente de um tempo indefinido, do tempo de um h1stona e mdefimdo. É o indefinido de uma governamenta-
governo que é um governo ao mesmo tempo perpé_tuo <; lidade para a qual não se prevê termo ou fim. Estamos na
conservador. Em primeiro lugar, por consegumte, nao ha historicidade aberta, por causa do caráter indefinido da arte
problema de origem, não há problem~ de fundamento, não política.
há problema de legitimidade, não ha tampouco problema Salvo, evidentemente, se corrigida por um certo núme-
de dinastia. Até mesmo o problema que Maqulavellevanta- ro_ de co1sas sobre as quais tornaremos, a idéia de paz per-
va, e que era o de saber como governar, dada a maneira petua que vru, a meu ver, substituir a idéia de Império ter-
como se havia tomado o poder - não se pode governar da mmal. Se o Império tenninal era na Idade Média a fusão de
mesma maneira se foi por herança, se foi por usurpação ou todas as particularidades e de todos os reinos numa só for-
348 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUIAÇÃO AUIA DE 15 DE MARÇO DE 1978 349

ma de soberania, a idéia de paz universal- que já existia ~a mais Imediatamente ligado aos acontecimentos, de Sirmond,
Idade Média, mas sempre como um dos aspectos do Impe- que se chamava O golpe de Estado de Luís XIII" mas não era,
rio terminal, ou ainda, como um dos aspectos do Impeno em absoluto, um texto polêmico contra Luís XIII, [muito]
da Igreja-, [essa idéia] vai ser o ~culo, com que se vai so- pelo contrário. Porque a palavra "golpe de Estado", no iní-
nhar, entre Estados que continuru:ao sendo Es!ados.Vale di- cio do século XVlL não significa em absoluto o confisco do
zer que a paz universal não sera a conse(jllencm de uma Estado yor ':"'s em detrimento dos outros, que o teriam de-
unificação num império temporal ou espmtual, mas a ma- tido ate então e que se veriam despojados de sua posse. O
neira como diferentes Estados, se efel!varnente as coisas golpe de Estado é algo bem diferente. O que é um golpe de
funcionarem, poderão coexistir uns com os outros de a cor- Estado nesse pensamento político do início do século XVII?
do com um equihbrio que impedirá justam~nte a domma- É, em primeiro lugar, uma suspensão, uma interrupção das
ção de um sobre os outros. A paz universal e a estabilidade leis e da legalidade. O golpe de Estado é o que excede o di-
adquirida na e pela pluralidade, por uma l'lu_ralidade eqm- rello comum. Excessus iuris communis, diz Naudé'0• Ou ain-
librada, totalmente diferente portanto da Ideia do lmpeno da, é u_ma ação extraordinária contra o direito comum, ação
tenninal. Mais tarde essa idéia de uma govemamentalida- que nao preserva nenhuma ordem e nenhuma forma de
de indefinida será c~rrigida pela idéia de progres;;o, a idéia justiça". Nisso, será o golpe de Estado estranho à razão de
de progresso na felicidade dos homens. Mas Isso e outro as- Estado? Constituirá uma exceção, em relação à razão de Es-
sunto, é um assunto que unplica JUStamente algo cuJa au- tado? De modo algum. Porque a própria razão de Estado-
sência vai se notar em toda essa análise da razão de Estado é esse, creio eu, um ponto essencial a assinalar bem - a
e que é a noção de população. . própria razão de Estado não é absolutamente homogêne~ a
Dito isso, para situar um pouco o honzonte geral da um Sistema de legalidade ou de legitimidade. A razão de
razão de Estado, gostaria agora de retomar alg;m~ dos tra- Estado é o quê? Pois bem, é algo, diz Chemnitz, que penni-
ços desse governo dos homens que, portanto, Ja n":o se pra- te infringir todas "as leis públicas, particulares, fundamen-
tica sob o signo da arte pastoral, mas sob o da razao de Es- tais, de qualquer espécie que sejam"". De fato, a razão de
tado. Não é uma análise exaustiva o que eu gostana de fa- Estado deve comandar, #não segundo as leis", mas, se ne-
zer mas sim fazer- eu ia dizendo algumas sondagens, mas cessário. . "as próprias leis, as quais devem se acomodar ao
a palavra é infeliz- alguns cortes, a esmo, relacionando jus- presente estado da república"". Logo, o golpe de Estado
tamente a razão de Estado a alguns dos temas Importantes não é ruptura em relação à razão de Estado. Ao contrário, é
que havíamos encontrado na análise do pasto;ado, ou seja, um elemento, um acontecimento, uma maneira de agir que
o problema da salvação, o problema da obedienCia e o pro- se mscreve perfeitamente no horizonte geral, na forma ge-
blema da verdade. ral da razão de Estado, ou seja, é algo que excede as leis ou,
E, para estudar a maneira como a razão de Estado pen- em todo caso, que não se submete às leis.
sa, reflete, analisa a salvação, tomarei um exemplo precis_o, O que há, no entanto, de específico no golpe de Esta-
o da teoria do golpe de Estado. O golpe de Estado: noçao do que faz que não seja simplesmente uma manífestação
importantíssima nesse início de século XVII, t"!"to que tra- dentre outras da razão de Estado? Pois bem, é que a razão
tados inteiros [lhe] foram consagrados. Naude, por exem- de Estado, que por natureza não tem de se dobrar às leis,
plo escreve em 1639 Considerações políticas sobre os golpes de que em seu funcionamento básico é sempre infratora em
Est~do'". Alguns anos antes, houve um texto mais polêmico, relação às leis públicas, particulares, fundamentais, essa ra-
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350 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 351

zão de Estado ordinária respeita as leis. Ela as respeita não particular ao Estado, que se chama razão de Estado, a lei
no sentido de que se inclinaria diante das leis, porque as dessa razão será que a salvação do Estado deve prevalecer,
leis positivas, morais, naturais, divinas seriam mais fortes como quer que seja, sobre toda e qualquer outra coisa. Essa
que ela, mas se inclina diante dessas leis, respeita essas leis lei fundamental, essa lei da necessidade que, no fundo, não
na medida em que concede em se inclinar diante delas e é uma lei, excede portanto todo o direito natural, excede o
respeitá -las, na medida em que, se vocês quiserem, coloca- direito positivo, excede o direito que os teóricos não ousam
as como elemento do seu próprio jogo. A razão de Estado chamar exatamente de direito divino, quer dizer, o direito
é, de todo modo, fundamental em relação a essas leis, mas posto pelos próprios mandamentos de Deus, e eles então o
em seu jogo costumeiro faz uso delas, precisamente porque chamam de "filosófico" para mascarar um pouco as coisas.
considera esse uso necessário ou útil. Mas vai haver mo- Mas Naudé dirá: o golpe de Estado não obedece à "justiça
mentos em que a razão de Estado já não pode se servirdes- nahlral, universal, nobre e filosófica" - a palavra "nobre" é
sas leis e em que ela é obrigada, por algum acontecimento irónica e a palavra "filosófica" encobre outra coisa-, o golpe
premente e urgente, por causa de certa necessidade, a se li- de Estado, diz Naudé, obedece a "uma justiça artificial, par-
bertar dessas leis. Em nome de quê? Em nome da salvação ticular, política, [... ] relacionada à necessidade do Estado"".
do Estado. Essa necessidade do Estado em relação a si mes- Por conseguinte, a política não é uma coisa que tem de se
mo é que vai, em certo momento, levar a razão de Estado a inscrever no interior de uma legalidade ou de um sistema
varrer as leis civis, morais, naturais que ela houve por bem de leis. A política tem a ver com outra coisa, mesmo que uti-
reconhecer e cujo jogo até então ela havia jogado. A neces- lize as leis como instrumento quando delas necessita em
sidade, a urgência, a necessidade da salvação do próprio certos momentos. A política é algo que tem relação com a
Estado vão excluir o jogo dessas leis naturais e produzir necessidade. E vocês encontram toda urna espécie, não de
algo que, de certo modo, não será mais que pôr o Estado filosofia, mas, como dizer. .., de elogio, de exaltação da ne-
em relação direta consigo mesmo sob o signo da necessi- cessidade nos escritos políticos do início do século XVII. Al-
dade e da salvação. O Estado vai agir de si sobre si, rápida, guém como Le Bret, por exemplo, dirá- o que é muito cu-
imediatamente, sem regra, na urgência e na necessidade, rioso em relação ao pensamento científico da época e em
dramaticamente, e é isso o golpe de Estado. O golpe de Es- oposição direta a esse pensamento científico-: "Tão gran-
tado não é, portanto, confisco do Estado por uns em detri- de é a força da necessidade que, como uma deusa sobera-
mento dos outros. O golpe de Estado é a automanifestação na, não tendo nada de sagrado no mundo, salvo a firmeza
do próprio Estado. É a afirmação da razão de Estado - [a dos seus decretos irrevogáveis, põe sob seu poder todas as
razão de Estado] que afirma que o Estado deve ser salvo de coisas divinas e humanas. A necessidade emudece as leis. A
qualquer maneira, quaisquer que sejam as formas que fo- necessidade faz cessar todos os privilégios para se fazer
rem empregadas para salvá-lo. Golpe de Estado, portanto, obedecer por todo o mundo."" Não, portanto, governo re-
como afirmação da razão de Estado, como automanifesta- lacionado com legalidade, mas razão de Estado relacionada
ção do Estado. com necessidade.
Importância, creio, nessa identificação da noção de Es- Segunda noção importante: a noção de violência, é cla-
tado, importância de certo número de elementos. Primeiro, ro. Porque é da natureza do golpe de Estado ser violento. A
essa noção de necessidade. Há portanto uma necessidade razão de Estado em seu exercício ordinário, habitual, não é
do Estado que é superior à lei. Ou antes, a lei dessa razão violenta, justamente porque ela mesma se atribui, volunta-
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352 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 353

riamente, as leis como marco e como forma. Mas, quando a ~ra, como_ o golpe de Estado nada mais é que a manifesta-
necessidade exige, a razão de Estado se toma golpe de Es- çao da razao de Estado, chegamos à idéia de que não há ne-
tado e, nesse momento, é violenta. Violenta significa que ela nhuma ~tinomia, no que concerne ao Estado pelo menos,
é obrigada a sacrificar, a amputar, a prejudicar, ela é levada a entre V10lenc1a e razão. Pode-se até dizer que a violência do
ser injusta e mortífera. É o princípio, diametralmente opos- Estado nada mais é que, de certa forma, a manifestação ir-
to, como vocês sabem, ao tema pastoral de que a salvação ruptiva da sua própria razão. E, fazendo uma oposição -
de cada um é a salvação de todos, e a salvação de todos é a que vocês sem dúvida vão reconhecer, se leram o artigo de
salvação de cada um. Daí em diante, vamos ter uma razão de Gene! no Le Monde do mês de setembro passado'" -, um
Estado cuja pastoral será uma pastoral da opção, uma pas- texto que data da primeira metade do século XVII (foi escri-
toral da exclusão, uma pastoral do sacrifício de alguns ao to sob Richelieu) dizia o seguinte (é um texto anónimo):
todo, de alguns ao Estado. "Para preservar a justiça nas deve-se distinguir violência de brutalidade, porque as bru-
coisas grandes", dizia Charron numa frase retomada por talidades são as violências" cometidas não mais que pelo ca-
Naudé, ;;às vezes é preciso desviar-se dela nas coisas miú- pncho dos particulares", ao passo que as violências que "se
das."'" E Chemnitz dará como belo exemplo da violência ne- cometem pelo concerto dos sábios" são os golpes de Esta-
cessária dos golpes de Estado o que Carlos Magno havia fei- do": B?ssuet também retomou a oposição brutalidade e
to com os saxões, quando [os] guerreou e ocupou seus ter- VIOlencia, e Genet por sua vez, simplesmente invertendo a
ritórios. Chemnitz diz que Carlos Magno havia estabeleci- tradição e chamando de brutalidade a violência do Estado e
do juízes para jugular a revolta e a agitação dos saxões, e de violência o que os teóricos do século XVII chamavam de
esses juízes tinham a particularidade, primeiro, de serem brutalidade.
desconhecidos do público, de modo que você não sabia Terceira noção importante, depois da necessidade e da
quem o julgava. Depois, esses juízes julgavam sem conhe- violência, creio ser a característica necessariamente teatral
cimento de causa, isto é, sem ter estabelecido nada dos fa- do golpe de Estado. De fato, um golpe de Estado, na medi-
tos que imputavam aos que eles condenavam. Em terceiro da em que é a afirmação irruptiva da razão de Estado, o gol-
lugar, o julgamento deles se dava sem nenhuma forma de pe de Estado tem de ser imediatamente reconhecido. Ele
processo, ou seja, não havia nenhum ritual judiciário. Em tem de ser imediatamente reconhecido segundo suas ver-
outras palavras, é uma maneira polida que Chemnitz em- dadeiras caracteristicas, exaltando a necessidade que o jus-
prega para dizer que Carlos Magno havia posto assassinos tifica. Cl~o, o golpe de Estado supõe uma parte de segredo
entre os saxões, que matavam quem queriam, corno que- para ter eX1to. Mas, para poder angariar a adesão e para que
riam, sem dizer por quê. E deviam matar quem? Os pertur- a suspensão das leis a que está necessariamente ligado não
badores da tranqüilidade pública e do Estado. Aparece aqui sej~ debitada a ele, o golpe de Es~ado tem de ser deflagra-
a idéia do crime de Estado, que também poderíamos ter do a luz do dia e, deflagrando-se a luz do dia, tem de fazer
analisado, porque é uma noção importantíssima que apare- aparecer na própria cena em que ele se situa a razão de Es-
ce nesse momento e que adquire nesse momento dimen- tado que o fez produzir-se. Evidentemente, o golpe de Esta-
sões muito particulares. E diz Chemnitz, claro, nesse golpe do deve ocultar seus procedimentos e seus encaminha-
de Estado de Carlos Magno houve injustiças, inocentes fo- mentos, mas deve aparecer solenemente em seus efeitos e
ram condenados, mas o sistema não durou e o furor dos sa- nas razões que o sustentam. Donde a necessidade da ence-
xões foi mitigado". Portanto, o golpe de Estado é violento. nação do golpe de Estado, que encontramos na prática po-
354 SEGURANÇA. TERRITÚRIO, POPULAÇÃO
[ AUlA DE 15 DE MARÇO DE 1978 355

lítica daquela época, como no "dia dos tolos"':, na detenção e violenta do golJ?E' de Estado .. E po;Jeríamos dizer que a
do príncipe", no encarceramento de Fouquet'. Tudo 1sso faz corte, tal como LUis XIV a orgaruzou, e precisamente o pon-
do golpe de Estado uma certa forma de o sobe_:ano mani- to de articulação, o lugar em que se teatraliza a razão de Es-
festar a irrupção da razão de Estado e a prevalencJa da ra- tado_ na forma de intrigas, de desgraças, de opções, de ex-
zão de Estado sobre a legitimidade da maneira mrus clara clusoes, de exílios; e a _corte também é o lugar em que, pre-
possível. . CISamente, o teatro vru representar o próprio Estado.
Tocamos aqui um problema aparentemente m_argmal, D1gamos numa palavra que, na época em que a unida-
mas que apesar de tudo creio ~er importante, que, e o pro- de quase 1mpenal do cosmo se desarticula, na época em
blema da prática teatral na política, ou runda da pratica tea- que a natureza se desdramatiza, se liberta do acontecimen-
tral da razão de Estado. O teatro, enfim, essa pratica teatral, to, se emancipa do trágico, creio que uma outra coisa acon-
essa teatralização, deve ser um modo de manifestação do tece na ordem política, uma coisa inversa. No século XVII
Estado e do soberano, do soberano como depositário do no fim das guerras religiosas - na época, precisamente, d~
poder de Estado. E poderíamos, creio e~, ':por [às]_ce~mô­ Guerra dos 'Ihnta Anos, desde os grandes tratados desde a
nias reais- que, por exemplo, da sagraçao a coroaçao, a en- grande busca do equilíbrio europeu -, abre-se u~a nova
trada na cidade ou ao funeral do soberano, marcavam o ca- perspectiva histórica, perspectiva da govemamentalidade
ráter religioso do soberano e articulav~ seu poder com o J~defin;_da, yerspectiva da permanência dos Estados que
poder religioso e com a teologra -, poden_amos opor a essas nao tera_o fim nem termo, aparece um conjunto de Estados
cerimônias tradicwnrus da realeza a espec1e de teatro mo- descontinuo~ fadados a uma história que não tem esperan-
demo em que a realeza quis se manifestar e se encarnar, e ça, porque nao tem termo, Estados que se organizam segun-
do qual a prática do golpe de Estado ~evado a cabo pelo do uma raz~o cuja lei não é a de uma legitimidade, legiti-
próprio soberano é uma das manifestaçoes mrus,lmportan- rrudade dinastica ou legrtimidade religiosa, mas a de uma
tes. Aparecimento, portanto, de um teatro político tendo necess1dade que ela deve enfrentar nos golpes que são sem-
como outra face o funcionamento do teatro, no sentido li- pre mcertos, runda que concertados. Estado, razão de Esta-
terário do termo, como o lugar privilegiado da representa- do: necessidade, golpe de Estado ousado - é tudo isso que
ção política e, em particular, da representação do golpe ~e ~I constituir o novo horizonte trágico da política e da his-
Estado. Porque, afinal de contas, uma parte do teatro h!Sto- tona. Ao mesmo tempo que nasce a razão de Estado nas-
rico de Shakespeare é, sem dúvida, o teat;o do golpe de Es- ce, a meu ver, certo trágico da história que não tem' mais
tado. Peguem Comeille, peguem tambem Racme, nunca nada a ver com a deploração do presente e do passado com
são mais que representações; bom, eu exagero dizendo ISSO, ol~ento _das C:Õnicas, que era a :orma em que o trági~o da
mas são com muita freqüência, são quase sempre represen- histona ate entao aparecia, um tragrco da história que esta-
tações de golpes de Estado. De Andrômaca" a Atá/ia", são va ligado à própria prátic_a política. ~ o golpe de Estado é,
golpes de Estado. Mesmo Beren~a~" é u':' golpe de Est~do. de certo modo, a realizaçao desse tragico numa cena que é
O teatro clássico, a meu ver, esta essencialmente org~a­ o próprio re~: E esse tr~gico do golpe de Estado, esse trá-
do em tomo do golpe de Estado". Assim como na política a grco <!_a histona, esse tragico de uma govemamentalidade
razão de Estado se manifesta numa certa teatralidade, o que nao tem termo, mas que forçosamente se manifesta em
teatro, em contrapartida, se organiza em tomo ;Ja represen- caso de necessidade, nessa forma teatral e violenta foi a
tação dessa razão de Estado sob a forma dramatica, mtensa meu ver caracterizado por Naudé, num texto surpree~den-
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SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO T AUlA DE 15 DE MARÇO DE 1978 357

te quando deu sua definição, sua descrição do golpe de Es- fenômeno muito menos extraordinário do que perfeitamen-
t;do. Nesse texto, como vocês vão ver, há uma cmsa bem te normal, natural, de certo modo até imanente à vida da res
napoleõnica, uma coisa que faz singularmente pens:rr nas publica, da república. As sedições, diz ele, são como as tem-
noites hitlerianas, nas noites das facas longas. ~aude diz o pestades, elas se produzem precisamente no momento em
seguinte:"[ ... ] nos golpes de Estado, vê-se o relampago carr que menos se espera, na maior calmaria, em períodos de
antes de ouvi-lo troar nas nuvens". Nos golpes de ~stado, equihbrio ou de equinócio. Nesses momentos de igualdade
"as matinas são ditas antes de serem soadas, a execuçao pre- e de calmaria, alguma coisa pode perfeitamente estar se tra-
cede a sentença; tudo se faz à judaica; [... ]um recebe o gol- mando, ou melhor, nascendo, crescendo como urna tem-
pe que pensava dar, outro mon:e J?ensando estar em segu- pestade". O mar cresce secretamente, diz ele, e é precisa-
ra nça, outro mais sofre como nao~ lii\llgmava, tudo se faz de mente essa sinalética, essa semiótica da revolta que é preciso
"37 A gran
noite, na obscuridade, entre as nevoas e as trevas . .- estabelecer. Em período de calmaria, como se pode identi-
de promessa do pastorado, que fazia suportar todas as rm- ficar a possibilidade de uma sedição que está se formando?
sérias, mesmo as misérias voluntárias do asc~~mo, come- Bacon (vou passar rápido por esse ponto) dá um certo nú-
ça a ser seguida agora pela dureza teatral e trag:tca do Est~­ mero de indicios. Primeiro, começam a circular rumores,
do que pede que, em nome da sua salvação, m;'a salvaçao quer dizer, libelos, panfletos, discursos, contra o Estado e
sempre ameaçada, nunca certa, se aceitem as violenaas como contra os que governam. Segundo, o que chamarei de uma
a forma mais pura da razão e da razão de Estado. Era !sso o inversão dos valores, ou em todo caso das apreciações. Toda
que eu queria lhes dizer sobre o problema da salvaçao, no vez que o governo faz algo louvável, essa coisa é mal rece-
que concerne ao Estado, pelo ãngulo do golpe de E~tado. bida pelas pessoas que estão descontentes. Terceiro, as or-
Em segundo lugar, agora, o problema da obedienaa. E dens circulam mal, e percebe-se que as ordens circulam mal
aqui vou pegar urna questão e um texto totalmente diferen- por duas coisas: primeiro, pelo tom dos que falam no siste-
tes. A questão diferente: é. a questão ;'as revoltas e das se- ma de difusão das ordens. Os que transmitem as ordens fa-
dições que, claro, foram ate o fim do seculo xvn um proble- lam com timidez e os que recebem ordens falam com ousa-
ma político maior e para as quais há um texto, um texto ~o­ dia. Pois bem, quando essa inversão de tom se produz, é
tável, escrito pelo chanceler Bacon'", Bacon que nmguem bom desconfiar. Outra coisa, ainda concernente à circulação
mais estuda e que é certamente um dos personagens mrus das ordens, é o problema da interpretação, quando aquele
interessantes desse inÍCio de século xvn. N";o costumo lhes que recebe uma ordem, em vez de recebê-la e executá-la,
dar conselhos quanto ao trabalho uruvers!lano, masé se al- começa a interpretá-la e a inseri-la de certo modo em seu
guns de vocês quisessem estudar Bacon, cre1o que nao per- próprio discurso, entre a injunção que ele recebe e a obe-
deriam seu tempo". diência que deveria normalmente segui-la".
Pois bem, Bacon escreve um texto que se chama, na tra- Isso, quanto a todos os sinais que vêm debaixo e que
dução francesa, Essai sur les séditions et les troubles" [Ens~o parecem provar que a tempestade, mesmo em período de
sobre sedições e distúrbios]. Nele, faz toda ';fi" descnçao, equinócio e de calmaria, está se preparando. Depois há si-
toda uma análise - eu ia dizendo: toda uma física - da _:;e di- nais que vêm de cima. Também é preciso prestar atenção nos
ção e das precauções a ser.em t?madas contra as sediçoes, e sinais que vêm de cima. Os primeiros são quando os gran-
do governo do povo, que e notavel. rxynerramen!e, devem- des, os poderosos, os que rodeiam o soberano, que são seus
se tomar as sedições como uma espec1e de fenomeno, de oficiais ou seus próximos, quando estes mostram que não
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obedecem tanto às ordens do soberano quanto ao seu pró- zões e ~e c~u~as sobre as quais tomaremos e que não são
prio interesse e agem por conta própria. Como diz Bacon, proporaonrus a realidade. D<; fato, diz Bacon, é uma das pro-
em vez de serem "como planetas que giram com rapidez pnedades, uma das caractensticas da ingenuidade do povo
sob o impulso do primeiro móvel", no caso o soberano, em mdignar-se_com co1sas que não valem a pena e aceitar, em
vez disso, os grandes são como planetas perdidos num céu com~ensaçao, cmsas que não deveria tolerar". Mas, sendo
sem estrelas, vão para qualquer lugar, ou melhor, vão para as cmsas con;_o são, há que levar em conta a barriga e a ca-
onde querem, em vez de se manterem na órbita que lhes é beça, a mdigencra e o estado da opinião. Fome e opinião,
imposta". E, enfim, outro sinal que o príncipe se dá a si mes- barnga e cabeça, e1s as duas matérias da sedição. São diz
mo, sem querer, é quando o príncipe é incapaz ou não quer Bacor:t, :amo que d~as matérias inflamáveis, isto é, essas duas
mais adotar um ponto de vista que seja exterior ou superior c~nd1çoes - a bamga e a opi~ão, a barriga ou a opinião _
aos diferentes partidos que se opõem e lutam entre si no in- sao absolutar:'ente mdispensaveis para que haja sedição".
terior da república, e espontaneamente toma o partido e sus- Quanto as causas [ocasiOnrus]*, elas vão ser como es-
tenta os interesses de um partido em detrimento dos ou- ses e}ementos inflamados que caem sobre uma matéria com_
tros. Assim, diz ele, quando Henrique III tomou o partido b~stivel. Afinal de contas, não se sabe muito bem de onde
dos católicos contra os protestantes, ele próprio deveria ter vem, e eles podem ser praticamente qualquer coisa. Essas
atinado em que, assim fazendo, mostrava que seu poder era causas ocasionrus, Bacon as enumera numa grande deser-
tal que não obedecia à razão de Estado, mas simplesmente de?'. P_ode ser uma m>;:dança na religião, pode ser uma mo-
à razão de um partido, e dava assim a todo o mundo, aos dlfic~çao na dJStribwçao dos privilégios, pode ser uma sub-
grandes como ao povo, um sinal manifesto de que o poder versao das Ie:s e dos costumes, pode ser uma mudança no
era fraco e que, por conseguinte, a gente podia se revoltar". reg:tme tributano, pode ser também o fato de o soberano al-
As sedições são portanto sinais. Elas [também] têm cau- çar a cargos Importantes pessoas indignas, pode ser a pre-
sas; e também aqui de uma maneira escolástica, por assim sença demas1ado numerosa e o enriquecimento demasiado
dizer, em todo caso bem tradicional, Bacon diz: há dois ti- manifesto de estrangeiros, pode ser também a escassez de
pos de causas de sedição, as causas materiais e as causas cererus ou dos meiOs de subsistência e o aumento dos pre-
ocasionais". Causas materiais das sedições: não é difícil, diz ços. T~do ~ que, em todo caso, diz Bacon, "lesando, une#49.
Bacon, não há muitas, só há duas. Matéria das sedições é ~u sep, ha causas ocasionais de sedição quando se leva ao
primeiro a indigência, em todo caso a indigência excessiva, mvel de um descontentamento consciente certo número de
isto é, um certo nível de pobreza que deixa de ser suportá- elementos que, até então, tinham permanecido de certo
vel. E, diz Bacon, "as rebeliões que vêm da barriga são as modo d1ssocrados e indiferentes, quando se produz 0 mes-
piores de todas"". Segunda matéria da sedição, fora a bar- mo tipo de descontentamento em pessoas diferentes - 0 que,
riga, ora essa, a cabeça, isto é, o descontentamento. Fenô- por consegumte, as leva a se unirem, apesar da divergência
meno de opinião, fenômeno de percepção, que não é - e dos seus mteresses.
Bacon insiste nesse ponto - necessariamente correlativo do A s:dição ~em causas, portanto. Ela tem remédios. Es-
primeiro, o estado da barriga. Pode-se perfeitamente estar ses remedias, nao se deve de modo algum tentar aplicá-los
descontente, mesmo que a pobreza não seja, afinal, tão gran-
de assim, porque os fenômenos de descontentamento são
fenômenos que podem nascer por um certo número dera- * Palavra omitida.
360 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 361

a essa série de causas ocasionais, porque essas causas o~a­ ção talvez não ocorra e de que os descontentamentos não
sionais são muito numerosas e, st; determinada ~a usa ocaSIO- se contaminarão. Ora, diz Bacon, no fundo, se olhamos do
nal for suprimida, sempre havera outra que vrra, acenderes- lado dos grão-senhores e dos nobres, não há verdadeiro
sas matérias inflamáveis. Na realidade, os remédios devem problema, pois com os grão-senhores e os nobres sempre
atuar sobre as matérias inflamáveis, isto é, sobre a barnga dá para se arranjar. Ou se os compra, ou se os executa". Um
ou a cabeça, ou sobre a indigência e o descontentamento. nobre você decapita, um nobre você trai, logo um nobre está
Remédios contra a indigência- passo rapidamente por ele,s, sempre do seu lado, e não estará aí o problema. Em com-
mas 0 interessante, creio eu, é a própria natureza d?s reme- pensação, o problema do descontentamento do povo é mui-
dias propostos: pôr fim à indigência e à pobreza, diz Bacon, to maior, muito mais sério, muito mais difícil de resolver. É
é reprimir 0 luxo e impedir a pregmça, a ociosi<;'ade,_a vaga- preciso fazer que esse descontentamento do povo, por um
bundagem, a mendicância. É: favorecer ocomerc10 mtemo, lado, nunca chegue a tal ponto que não encontre outra saí-
multiplicar a circulação de dinheiro dirninumdo a taxa de da senão a explosão na revolta e na sedição. Ou seja, é sem-
juros, evitando as propriedades grandes demrus, el~do o pre necessário deixar-lhe um pouco de esperança. Em se-
nível de vida - bem, ele não emprega essa expressao, ele gundo lugar, é preciso fazer que o povo, que é lento e que
diz: é melhor mais gente gastando pouco do que pouca por si mesmo não pode fazer nada, nunca encontre um lí-
gente gastando rnuitd0 - , f~~orece: o comerao extenor au- der entre os nobres. Vai ser preciso, portanto, estabelecer
mentando o valor das matenas-pnmas pelo trabalho, <;'se: sempre um corte, uma rivalidade de interesses entre os no-
gurando ao estrangeiro o serviço de transportes. T~mbem e bres e o povo, de maneira que essa coagulação de descon-
preciso, diz ele, equilibrar os recursos e a populaçao e fazer tentamentos não se produza".
que não haja população em demasia para ~s recursos de Citei tudo isso, na verdade, porque acho que se com-
que dispõe o Estado. É preoso equilibrar t~bem aspropor- pararmos esse texto com o de Maquiavel, que por um certo
ções entre a população produtiva e os nao-produtivos, que número de aspectos se parece com ele, logo veremos, no en-
são os grão-senhores e o clero. Assim, é tudo isso que se tem tanto, aparecer uma diferença. Aliás, cumpre notar desde já
de fazer para impedir, para apagar essa causa matenal de que Bacon se refere a Maquiavel e que o cita elogiosamen-
revolta que a indigência constitui". , , te". Apesar disso, creio que podemos ver a diferença. Qual
No que concerne ao de~contentamento,tambem e ne- era o problema posto por Maquiavel? Era essencialmente o
cessária toda uma série de tecrucas e procedim~ntos. E Ba- problema do príncipe que [estava] ameaçado de ser depos-
con diz: no fundo, há duas categorias de mdiVJduos no m- to. Como o príncipe deve fazer para não ser deposto? As-
terior do Estado. Há o povo e há os grão-senhores. Ora, na sim, a aquisição ou a perda do principado é que era essen-
verdade, só há sedição verdadeira, e verdadeiramen!e pen- cialmente posta em questão por Maquiavel. Aqui, no fundo,
gosa, no dia em que o povo e os grão-ser;hores vem a se nunca é evocado o problema da deposição do rei ou a pos-
unir. Porque o povo em si mesmo, diz ele, e lento. den:rus e sibilidade de que o rei seja escorraçado e perca seu reino".
nunca entraria em revolta se não houvesse mstigaçao da O que é evocado, ao contrário, é uma espécie de possibili-
nobreza. Quanto à nobreza, sendo evidentemente pouco nu- dade perpetuamente presente no interior do Estado, que de
merosa é fraca, e continuará sendo fraca enquanto o povo certo modo faz parte da vida cotidiana dos Estados, em todo
mesm~ não estiver disposto aos distúrbios. Um povo lento caso das virtualidades até mesmo intrínsecas ao Estado. Essa
e uma nobreza fraca é o que garante o fato de que a sedi- virtualidade é que haja sedição e sublevação. A possibilida-
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de da sedição e da sublevação é urna coisa com [que] há que vel está ~m dizer: o principe deve ser justo ou injusto? Deve
governar. E o governo- é um dos seus aspectos - s-:rá pre- parecer JUsto ou deve parecer injusto? Como ele deve pare-
cisamente a assunção dessa possibilidade da sediçao e da c:r temrvel? Com? deve ocultar sua fraqueza?'" No fundo,
sublevação. s~o sempre os eprtetos do principe que estão em jogo no
Em segundo lugar, Maquiavel distinguia bem o, qUE; cálcU:o maquiaveliano. Com Bacon, ao contrário, temos
vem do povo e o que vem dos grão-senhores. Tambem e ~m cálculo que não tem a ver com os epítetos, com os qua-
uma idéia maquiaveliana a de que o descontentamento dos lificativos rerus ou aparentes do principe. É um cálculo que
grão-senhores e o descontentamento do povo nunca an- Vai aparecer ~lta~o para elementos ao mesmo tempo ca-
dam juntos e nunca vê~ se reforçar_ mutuame~te". Mas, prtrus e rerus, rsto e- e aqui refiro-me aos remédios que Ba-
para Maquiavel, o essenCial do pengo vinha _dos gra~-senho­ con nos propunha contra as sedições -, a economia. O cál-
res em todo caso vinha dos i.ni.nugos do pnncrpe, vinha dos culo do gov-:rno, diZ Bacon, deve ter por objeto as riquezas,
qu~ pensavam no complô e tramavam o complô". ParaM~­ sua crrculaça?, os Impostos, as taxas, etc., tudo isso é que
quiavel, no fundo, o povo era essenciaJ_mente passrvo, m9e- deve ser o Objeto do gove:no. Logo, cálculo que visa os ele-
nuo, devia servir de instrumento do pnncrpe, caso contrano m~mtos da econom:a, e cálculo que visa igualmente a opi-
servia de instrumento dos grão-senhores. O problema era o ruao, quer dizer, nao a aparência do principe, mas 0 que
debate entre o principe e seus rivais, rivais internos e exter- acontece na c~beç! das pessoas que são governadas. Eco-
nos os que faziam coalizões militares contra ele e os que fa- nomra e oprmao sao, a meu ver, os dois grandes elementos
zi~ complôs internos contra ele. Para Bacon, como vocês de realrdade que o 15overno terá de manipular.
estão vendo, o problema não são os grão-senhores. O pro- Ora, o que aqw encontramos em filigrana, apenas es-
blema é o povo. Para Bacon, o povo é tão ingênuo quanto boçado e_m Bacon, é na n;alidade a prática política da épo-
em Maquiavel. Mas é ele que vai ser o objeto essencial do ca, po1s e a partir dessa epoca que vemos desenvolver-se
que justamente deve ser o governo de um Estado. Enquan- por um I~do, com? mercantilismo, uma política que vai se;
to se tratava, para Maquiavel, de manter um pnnC!pado, po- uma politica de cálculo econômico, que não é teoria mas,
dia-se pensar nos grão-senhores e nos rivais. Agora que se antes de mrus nada, essencraimente, prática política, e [,por
trata de governar segundo a razão de Estado, aquilo em que outro lado,]':' pnmerras grandes campanhas de opinião que,
se deve pensar, aquilo que se tem de ter sempre em mente na França, vao acompanhar o governo de Richelieu. Riche-
é o povo. O problema do governo não são os rivais do prin- lieu mventou a campanha política por meio de libelos, de
cipe, é o povo, porque os grão-senhore~, mrus uma v:z, p~­ panll:tos, e mventou essa profissão de manipuladores da
dem ser comprados e podem ser decap!lad~s. Eles sao pro- opmrao, chamados naquela época de "publicistas"". Nas-
ximos do governo, ao passo que o p~vo e uma cor~a a~ crmento dos economrstas, nascimento dos publicistas. São
mesmo tempo próxima e distante. Ele e realmente drficil, e os dors grandes aspectos do campo de realidade os dois
realmente perigoso. Governar vai ser essencialmente go- elementos correlativas do campo de realidade qu: aparece
vernar o povo. . como correlativo do _governo: a economia e a opinião.
Terceira diferença, a meu ver, entre Bacon e Maqwavel Enfim, em tercerro lugar (aqui_vou ser bem rápido, por-
é que os cálculos de Maquiavel têm essencialmente a, ver, que passamos da hora e porque sao coisas muito mais co-
parece-me, como dizer? ..., com os qualificativos do pnncr- nheCidas, embora capitais), está o problema da razão de Es-
pe, qualificativos reais ou aparentes. O problema de Maqwa- tado e da verdade. A ratio status, a racionalidade intrínseca
364 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978
365
à arte de governar implica, assim como o pastorado, certa
produção de verdade, mas muito diferente em seus circui- ~::~~~~~s%~ãpo _são_apenafunse simplesmente as leis, não
tos e em seus tipos da que encontramos no próprio pasto- b nmerra ou damentalmente as leis (s
rado. No pastorado, como vocês se lembram, tinha de haver, n!:s~:~e:~~~~-~:;j. referênc!a a elas, claro, e que sej:
~~~5c~~:~s~~P~\~e~~~~~:::J2E:fb~~~J~z
primeiro, uma verdade ensinada. Na economia de verdade
do pastorado, o pastor tem de conhecer o que acontece na
sua comunidade. Cada um daqueles que era ovelha do pas-
tor tinha de descobrir em si mesmo uma verdade que ele do Est~%: r~: :ruqazzo, no texto pelo qual comecei, f;lava
traz à luz do dia e de que o pastor é, se não o juiz e o ava- ment . - ' uem governa tem de conhecer os ele-
lista, pelo menos a testemunha perpétua. Era todo esse ci- os q~e vao possibilitar a manutenção do Estad
manutençao do Est d o, a
elo de verdades que caracterizava o pastorado. No caso da
razão de Estado e dessa nova maneira de governar os ho- ~~=~~~~~sd;u~~~a ~~';s~~~o~o;~ao~~ ~r:~~:o;:;~~~
mens, vamos ter também todo um campo de verdade, mas sua força ou sua for~aer~~~J'aer~ sua existê~cia perdendo
evidentemente de um tipo inteiramente diferente. Primei- ao soberano será muito mais . u SeJa, ~ sa er necessário
ro, quanto ao conteúdo, o que é necessário saber para go- do que um conhecimento d ,um conhecrrnento das coisas
vernar? Creio que aqui vemos um fenômeno importante, d a e1, e essas coisas que 0 5 b
uma transformação que é capital. Nas imagens, na repre- ~:n~o ~~:a~~~he~=~i essas coisas que sã? a própria re~d=~
sentação, na arte de governar, tal como havia sido definida "estatística"* E~ ,samente o que na epoca se chama de
até o início do século XVII, no fundo o soberano tinha es- mento do Estadom~ ~~amente, a ~statística, é o conheci-
sencialmente de ser sábio e prudente. Ser sábio queria di- sos que caracten,;am um ~=~~~u as forças e dos recur-
zer o quê? Ser sábio era conhecer as leis: conhecer as leis exemplo: conhecimento da m _momento dado. Por
positivas do país, conhecer as leis naturais que se impôem quantidade medid d populaçao, medida da sua
a todos os homens, conhecer, é claro, as leis e os manda- . . ' . a a sua mortalidade, da sua natalidade
mentos de Deus. Ser sábio também era conhecer os exem- estimativa das diferentes categorias de indivíduos ~
plos históricos, os modelos de virtude e deles fazer regras
tado e da sua nqueza estimativa d . num Es
que um E d di - ' . as nquezas vrrturus de
de comportamento. Além disso, o soberano tinha de ser pru-
dente, isto é, saber em que medida, em que momento e em riq~ezas ;;~d~ziJfs~:~=~;~':::~~u:~;ses!"c':r~~:as
que circunstâncias era efetivamente necessário aplicar essa
sabedoria. Em que momento, por exemplo, as leis da justi-
=!~~~~~;~~;~~~:o~e~cial,
- . .
medida dos eleitos das t~
ao o os esses dados e muitos outros
ça tinham de ser aplicadas em todo o seu rigor, em que mo- ~~e;:~oc~~tituir agora o conteúdo essencial do saber do
mento, ao contrário, os princípios da eqüidade tinham de em aplicá-Ja:~:~d!ortant~, corpus de leis ou habilidade
cimentos técnicos que ~~=~=.;::sr~oalinJdundtodde co~he­
prevalecer sobre as regras formais da justiça. Sabedoria e
prudência, ou seja, afinal de contas, um manejo das leis. Estado. a e o propno
É a partir do século XVII, creio eu, que vemos apare-
cer, como caracterização do saber necessário a quem go-
verna, algo totalmente diferente. O que o soberano ou aque- "'M. Foucault, no manuscrit ,
le que governa, o soberano na medida em que governa, gem dessa palavra, que data do~~ :cfe: .f.tatistik:'.
23
, ·ln; r
Sobre a ori-
a, PP· 381-2, nota 61.
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 367
366
Poderíamos acrescentar a isso um certo número de
Tecnicamente, claro, esse conhecimento tdotiS,E~~:~~:~~: outros elementos, por exemplo, o problema do segredo.
. dificuld des E sabemos que a es a De fato, o saber que o Estado tem de constituir de si mes-
citava mmtas . a , e os Estados eram menores ou
volveu-se preCJsament: ord 'vel como na Irlanda ocupa- mo e a partir de si mesmo, esse saber correria o risco de
onde havia uma sJtuaç~o avorabfudade de saber exatamen- perder certo número dos seus efeitos e não ter as conse-
da pela Inglaterr~:~~r~ ~~~!~ursos, era dada pela peque- qüências esperadas se, no fundo, todo o mundo soubesse
te o que havia, q - militar a que estava SUJeitO. o que acontece. Em particular, os inimigos do Estado, os ri-
nez do país e pela o~paç~~ estatística nos pequenos Es- vais do Estado não devem saber quais são os recursos reais
DesenvolVJmento tam, em 'dades digamos assim, de pes- de que este dispõe em homens, em riquezas, etc. Logo,
- 61 pms ruas um , necessidade do segredo. Necessidade, por conseguinte, de
tados aiemae5 ' N .d de também, por causa des-
quisa eram menores.
, ·
ecessJ a
de pensar um apare
lho adminis- pesquisas que sejam de certo modo coextensivas ao exer-
sas dificuldades tecmcas, . tal e fosse pos- cício de uma administração, mas também necessidade de
. - · t te mas que sena qu
trativo runda nao eXJS en ' r exatamente o que acontece mna codificação precisa do que pode ser publicado e do que
sível, a cada mstan:~oc~~:;:strativo que não fosse apenas não deve sê-lo. O que na época era chamado- e que fazia
no remo, um apare- d dens do soberano ou o agente explicitamente parte da razão de Estado - de arcana impe-
o agente de execuçao as or s homens de que o soberano rii, segredos do poder'", e as estatísticas, em particular, fo-
de captação de taxas, nq~~~ ~dministrativo que fosse ao ram por muito tempo consideradas segredos que não se
necess!la, mas um apar lh de saber aqui também como devia divulgar''.
mesmo tempo um apare o~ . 'd 62 * Por fim, em terceiro lugar, ainda nessa ordem da práti-
dimensão essencial ao exercJCIO do po er , ca da verdade, o problema do público, quer dizer, que ara-
zão de Estado deve intervir sobre a consciência das pessoas,
. d "conteúdo" do saber requerido pela não simplesmente para lhes impor um certo número de
,. Depois de ter analisa 0 0 .t (p 24) descreve rapida-
razão de Estado, M. Foucault, no manusc~ _o . , , os" para come- crenças verdadeiras ou falsas, como quando os soberanos
"! "· (l) "pesquisas e relatonos contínu , queriam fazer crer em sua legitimidade ou na ilegitimidade
mente sua orma · . . _ d "saber específico que nasce per-
do seu rival, mas de maneira que a opinião delas seja mo-
çar, possibilitando a c~~~:~ci:':::poder governamental, que lhe é
manentemente no prop d que indica não o que se dificada e, com a opinião delas, a maneira delas agirem, seu
. sclarece a ca a passo e ' comportamento como sujeitos econômicos, seu comporta-
coextenstvo, que o e . ue é ssível. O saber que reclama-
deve fazer, ~ ~ que e~: ~~da r!:.o prática. Era sempre o :que mento como sujeitos políticos. É todo esse trabalho com a
vam para a politica era ~ . o dência de sabedoria, de virtu- opinião do público que vai ser um dos aspectos da política
fazer' (em termos de hab~~de~=do a pa~ do exemplum, de que da verdade na razão de Estado. •
de). Essenciahnente pres~tivo, ati~os Agora, o governo vai se las-
se tiravam conselhos posltivos/neg ·.. eo articulado em tomo de
trear de todo um saber factual, conte:p~ran c~mpo de possibilidade e • O manuscrito, p. 25, acrescenta: "O público corno sujeito-objeto
um real (o E~~ado), tendo em :or: m:t~:- do real que define as pos- de um saber: sujeito de um saber que é 'opinião' e objeto de um saber
de impossibilidade. O ~~tado. ese o· "em muitos casos, esse saber que é de tipo totalmente diferente, porque tem a opinião corno objeto e
sibilidades do govem~ : .<2) o sr~ instrumento de governo con- porque esse saber de Estado se propõe modificar a opinião ou utilizá-
das forças <:eal ~ po·svuJsibili~a~,e)Somente esse segundo ponto é retoma- la, instrumentalizá-la. Estamos longe da idéia 'virtuosa' de uma comu-
tanto que nao se,P di ga 0 · nicação do monarca com os seus súditos no conhecimento comum das
do na aula .


AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 369
SEGURANÇA, TERFJT6R/O, POPULAÇÃO
368
essa maneira, com toda a certeza, não foi o fator absoluta-
Dizendo tudo isso a vocês, está claro que não quis de mente determinante do desenvolvimento dos aparelhos de
modo algum fazer a genealogia do Estado ou a h1stona do Estado, que na verdade existiam desde muito antes - exér-
Estado, Quis simplesmente mostrar algumas faces ou ?lgu- cito, fisco, justiça, tudo isso existia muito antes-, mas foi ab-
mas arestas do que poderíamos chamar de pnsma pratico- solutamente capital, creio, para que todos esses elementos
reflexivo, ou simplesmente prisma refle~vo, em 9ue apare- entrassem no campo de uma prática ativa_ pactuada, refie-
ceu no século XVI, fim do seculo XVI- II\ICIO do seculo XVTI, tida_ que foi precisamente o Estado, Não se pode falar do
0
problema do Estado, É mai~ ou menos como se eu lhes Estado-coisa como se fosse um ser que se desenvolve a par-
dissesse: não quis fazer a histona do planeta Terra em ter- tir de si mesmo e que se impõe por uma mecânica espon-
mos de astrofísica, quis fazer a história do prisma refleXIVO tânea, como que automática, aos indivíduos, O Estado é
que permitiu, a partir de um certo momento, pens~r que a uma prática, O Estado não pode ser dissociado do conjun-
Terra era um planeta, É mais ou menos a mesma coisa, mas to das práticas que fizeram efetivarnente que ele se tornas-
com uma diferença, É que, quando se faz simplesm~nt_e ,a se uma maneira de governar, uma maneira de agir, uma
história das ciências, quando se faz simplesmente a histona maneira também de se relacionar com o governo,
da maneira como se aprendeu, constituiu um saber tal que Foi portanto essa espécie de prisma reflexivo que pro-
a Terra aparece nele como um planeta em relação ao Sol, curei isolar, E vou concluir fazendo simplesmente urna ob-
quando se faz uma história assim, é _evidente que se faz a servação (gostaria de fazer outras, mas tentarei fazê-las da
história de uma série totalmente autonoma e mdependen- próxima vez), É que, nessa análise da razão de Estado, vis-
te, que não tem nada a ver com a evolução do próprio cos- ta pelo ângulo da salvação e do golpe de Estado, pelo ân-
mo, o fato de que, a partir de um certo momento, se soube gulo da obediência e da submissão, pelo ângulo da verda-
que a Terra é um planet~ ;tão influiu em nada sobre a posi- de, da pesquisa e do público, há afinal de contas um ele-
ção da Terra no cosmo, e obVIO, ao pas~o que o aparecrmen- mento que está ao mesmo tempo", eu ia dizendo, presente
to do Estado no horizonte de uma pratica refletida, no ~ e ausente- presente de certa maneira, porém mais ausen-
do século XVI e início do século XVIL teve uma Import,an- te do que presente, Esse elemento é a população, A popu-
cia capital na história do Estado e :'a maneira como efetiva- lação está ao mesmo tempo presente na medida em que,
mente se cristalizaram as mstituiçoes do Estado, O aconte- quando se pergunta: qual a finalidade do Estado?, e seres-
cimento reflexivo, o conjunto dos processos pelos qua1; ? ponde: a finalidade do Estado é o próprio Estado, mas o
Estado num momento dado, entrou efetivarnente na prati- próprio Estado na medida em que esse Estado deve ser fe-
ca refl~tida das pessoas, a maneira como o Estado, num mo- liz, deve ser próspero, etc,, pode-se dizer que a população,
mento dado, tornou -se, para os que governavam, para os que como sujeito ou objeto dessa felicidade, é ligeiramente es-
aconselhavam os governantes, para os que refletiam sobr; boçada, Quando se fala da obediência - e, para o governo,
os governos e a ação dos governos tal como a VIam [",] ' o elemento fundamental da obediência é o povo, o povo
que pode entrar em sedição-, vê-se que a noção de "popu-
lação" está ligeiramente presente, Quando se fala do públi-
leis humanas, naturais e divinas. Longe também da idéia 'cínica' de um co, desse público sobre cuja opinião é necessário agir, de
príncipe que mente aos seus súditos para mellior assentar e conservar maneira a modificar seus comportamentos, já se está bem
seu poder." perto da população, Mas creio que o elemento realmente
• Segmento de frase inacabado.
370 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 371

refletido da população, a noção de população não está pre- vai ser elaborada por intermédio de um aparelho instalado
sente e não é operatória nessa primeira análise da razão de para fazer a razão de Estado funcionar. Esse aparelho é a
Estado. É no fundo de urna felicidade sem sujeito que ara- "polícia". E é a intervenção desse campo de práticas que vai
zão de Estado fala. Quando Chernnitz, por exemplo, define ser chamado de "policia", é essa intervenção que, nessa teo-
o que é a razão de Estado, ele fala em "felicidade do Esta- ria geral - absolutista, se vocês quiserem - da razão de Es-
do", e nunca em "felicidade da população"". Não são os ho- tado, vai fazer surgir esse novo sujeito. Bem, é isso que ten-
mens que devem ser felizes, não são os homens que devem tarei lhes explicar da próxima vez.
ser prósperos, no limite, não são nem mesmo os homens
que devem ser ricos, mas o próprio Estado. É esse um dos
traços fundamentais da política mercantilista da época. O
problema é a riqueza do Estado, não a da população. Ara-
zão de Estado é urna relação do Estado consigo mesmo, uma
automanifestação na qual o elemento população está esbo-
çado mas não presente, esboçado mas não refletido._Da
mesma maneira, quando se fala com Bacon das sediçoe~,
quando se fala da indigência e do descontentamento, esta-
se bem perto da população, mas Bacon nunca considera a
população como constituída de sujeitos econômicos capa-
zes de ter um comportamento autônomo. Vai se falar de ri-
quezas, vai se falar de circulação das riquezas, da balança
comercial, não se vai falar da população como sujeito eco-
nômico. E, quando, a propósito da verdade, os teóricos da
razão de Estado insistem sobre o público, sobre a necessi-
dade de haver uma opinião pública, é de certo modo de
uma maneira puramente passiva que a análise se faz. Trata-
se de dar aos indivíduos certa representação, certa idéia, de
lhes impor alguma coisa, mas de forma alguma de utilizar
de maneira ativa a atitude, a opinião, a maneira de agir de-
les. Em outras palavras, penso que a razão de Estado defi-
niu de fato urna arte de governar em que a referência à po-
pulação estava implícita, mas, precisamente, ainda não ha-
via entrado no prisma reflexivo. O que vai acontecer, do iní-
cio do século XVII a meados do século XVIII, vai ser uma
série de transformações graças às quais e através das quais
essa espécie de elemento central em toda a vida política, em
toda a reflexão política, em toda a ciência política a partir do
século XVIII, essa noção de população vai ser elaborada. Ela
AUlA DE 15 DE MARÇO DE 1978 373

NOTAS
6. Ibid., I, 2 ("De festat de la republique, & des princes, cau-
se finale du gouvemement"), pp. 10-1, e IV; 17 ("De la raison
d' estat''), p. 362. Por ser mais conciso e mais preciso que o primei-
ro, citamos o segundo texto integralmente: "Usa-se a palavra es-
tado para significar quatro coisas. Primeiro, ele significa um lugar
limitado do domínio, o qual, sendo exercido neste, não pode ul-
trapassar seus confins. Segundo, estado significa a mesma jurisdi-
ção, que se chama estado, na medida em que o príncipe se esfor-
ce para conservá-la e tomá -la firme e estável perpetuamente; as-
sim sendo, tal estado outra coisa não é senão um domínio perpé-
tuo e estável do príncipe. Terceiro, estado significa uma opção
perpétua de vida, seja não se casar, ser religioso ou se casar, ou,
verdadeiramente, significa uma opção de ofício, de arte e de exer-
cício, que também se chama grau e condição, e essa opção é cha-
mada estado, pelo fato de que o homem deve ser imutável nela e
constante na observância das suas regras e razões introduzidas
1. a. a aula precedente (8 de março), p. 321. para a sua firmeza. Finalmente, estado significa uma qualidade
2. Giovanni Antonio Palazzo, Discorso del gaverno e della ra- das coisas contrária ao movimento. Porque assim como é sempre
gion vera di Stato, Napoli, per G. B. Sottile, 1604. Não se sabe qua- próprio das coisas imperfeitas, que existem agora e depois não
se nada desse autor, salvo que exerceu por algum tempo a profis- existem mais, que são ora boas, ora ruins, ora de uma qualidade,
são de advogado em Nápoles, sem tirar maior proveito desse ofí- ora de outra, sendo isso causado pela contrariedade e pela distin-
cio e foi secretário do senhor de Vietri, Don Fabrizio Di Sangro. ção das próprias coisas; de maneira semelhante, ao contrário, a
Se~ livro foi objeto de duas traduções em francês: Discours du gou- paz rtada mais é que tJm repouso, uma perfeição e tJm estabeleci-
vernement et de la raison vraye d'Estat, por Adrien de Vallieres, Douai, mento das próprias coisas, causadas pela simplicidade e pela união
impr. De Bellire, 1611, e Les politiques et v:ays remld~ ~ux vzces vo- das que são voltadas para um mesmo fim, já adquirido; e por essa
Iontaires qui se comettent ez cours et republzques, DouaJ., nnpr. B. Bel- propriedade de tomar as coisas firmes e estáveis, esse repouso
tere, 1661, assim como de uma tradução latina: Novi discu~us de vem a ser chamado estado."
gubernaculo et vera status ratione nucleus, ab CasP_~ro ]antheszus, ab 7. Ibid., I, 2; IV; 18-21.
Casparo janthesius, Dantzig, sumptibus G. Rhetü, 1637. , 8. Ibid., I, 3, pp. 13-4: "Primeiro, razão de estado é a essência
3. Discours du gouvernement ... , trad. fr. Cit., parte I, cap. 3 ( De inteira das coisas e de tudo o que é requerido a todas as artes e a
la raison d' estat''), p. 13: 11 Razão é muitas vezes tida como a essê~­ todos os ofícios que existem na república. Essa descrição pode ser
cia de toda coisa, que outra coisa não é senão o ser inteiro daqtu- verificada por exemplos, porque qualquer província que venha a
lo que consiste na união de todas as partes." fraquejar, ou qualquer cidade, ou se qualquer castelo do reino vier
4. Ibid.: "Mais que isso, a razão significa a potência intelectual a ser ocupado, a integridade da sua essência cessa. Por isso pode-
da alma, que entende e conhece a verdade das coisas, e regra bem se e deve-se usar dos meios convenientes para repô-lo em sua in-
e devidamente a vontade em suas ações." teireza, e esse uso e emprego de meios se faz por razão de Estado,
5. Ibid.: "Tomada poi~ em sua primeira significação, a razão é isto é, para a sua integridade."
a essência inteira das coisas e, tomada na outra, é uma regra justa 9. Ibid., p. 14: "Mas, segundo a outra significação, digo q_ue a
das próprias coisas e uma medida das nossas operações." Cf. igual- razão de Estado é uma regra e uma arte que ensina e observa os
mente rv; 17, p. 363. meios devidos e convenientes para obter o fim destinado pelo ar-
374 SEGURANÇA, TERRJTOR/0, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978
375
tesão, definição esta que se verifica no governo, P.o:que é ele q~e
ela adquiriu, porque, senão, as desordens dos homens seriam em
nos dá a conhecer os meios e nos mostra o exerciCIO dos que sao
necessários para obter a tranqüilidade e o bem da república [.. .]". tão ~ande número que a própria república não seria capaz nem
10. Sobre essa datação, cf. supra, pp. 336-7, nota 24. . sufi.aente para se conservar em paz nem mesmo por uma só hora".
17. a. O príncipe, cap. II-Vil.
11. B. Chemnitz (Hippolithus a Lapide), Interets des Princes
d'Allemagne, ed. citada (1712), t.1, p. 12 (texto latino, :d. 1647, p. 8). 18. a. a aula precedente, pp. 338-9, nota 40.
Algumas páginas acima, Chemnitz cntica a defimçao de Palazzo . 19. Jean Sirmond (c. 1589-1649), Le Coup d'Estat de Louis X1JI,
("a razão de Estado é uma regra e um nível com o qual se medem ~s, [s.n.], 163L a. E. Thuau, Raison d'État et Pensée politique à
todas as coisas e que as conduz ao termo a que são levadas"), por I epoque de R1chebeu, op. at., pp. 226-7 e 395. Esse libelo faz parte
ser "demasiado geral e demasiado obscura" para explicar clara- do Recuei[ de diverses pieces pour servir à l'Histoire [1626-1634],
mente o que é a razão de Estado (ibid., p. 10; ed. 1647, pp. 6-7). composto por Hay du Chastelet em 1635 (Paris, [s.n.]).
Foucault, portanto, só tem razão de dizer que Chemrutz a con~­ . 20. G. Naudé, Considérations politiques sur les coups d'État, op.
ma se se situar de um ponto de vista exterior aos debates acade- at. (1667), cap 2, pp. 93 e 103 (reed. 1988, pp. 99 e 101). a. E.
micos sobre o sentido da expressão. Thuau, op. cit., p. 324. Naudé aplica aos golpes de Estado a defini-
12. Paul Hay, marquês du Chastelet, Traitté de la politique de ção que ele opõe, de início, à definição dada por Botero para razão
France, op. cit., ed. de 1677, pp. 13-4: ::os meios da Política consls- de Estado ("( ... ] no que, a meu ver, ele só coincide com os que a
tem em observar exatamente a Religtao, em adm1mstrar JUStiça em definem como excessum juris communis propter bonum commune"
todas as coisas, em fazer de modo que os povos possam se man- rem nota: excesso do direito comum por causa do bem público]):
ter nos tempos e varrendo de um Estado a pobreza e a Riqueza, [Os]_ golpes ~e Es~ado [... ]~ode':' ser postos na mesma definição
em nele manter uma justa e louvável mediocridade." que Ja d~mos as Max:unas e a razao de Estado, ut sint excessus juris
13. A tradução de 1712, citada acima por Foucault - "chamo comm~~zs propter ~onum commune." Essa definição é emprestada
razão de Estado a certo cuidado político que se deve ter em to~os de Sc1p10ne Anunirato (1531-1600), Discorsi sopra Cornelio Tacito
os negócios públicos, em todos os co~selhos e e~ t<:dos os. de~tg­ Florença, G. Giunti, 1594, XII, 1 I Discours politiques et militaires su;
nios, e que deve tender unicamente a conservaçao, a am~liaçao _e C. Taat~ trad. ~- L. Melliet, Rouen, chez Jacques Caillove, VI, 7,
à felicidade do Estado, para o que há que empregar os metos mats p. 338: (A] razao de Estado outra coisa não é senão uma contra_
fáceis e mais prontos'' (op. cit., p. 12) -, trai aqui o texto latino que venção às Razões ordinárias, pelo respeito do bem público ou J r...
define a razão de Estado como certo ponto de vista político, a que, de uma maior e mais universal razão."
como a uma regra, se remetem toda decisão e toda ação numa re- 2L G: Naudé, op. cit., p. 103 (reed. 1988, p. 101), logo depois
pública, a fim de atingir o objetivo supremo,_ que é a sal~ção e o da definiçao latina Citada acima: ""( ... ] ou, para estender-me um
crescimento da república (summum finem, quz est salus et zncremen- P.ouco _mais ~m francês, ações ousadas e extraordinán·as que os Prin-
tum Reipublicae), pelos meios mais felizes. (jeliciu~) e mai_s prontos. czpes sao obrig~d~s a executar nos casos dificeis e como que desespera-
A "felicidade" pertence portanto aos me10s, e nao aos fins. dos~ contra o. dzrezto comum, _sem guardar nenhuma fonna de justiça,
14. Cf. a aula precedente, pp. 311-4. amscando o znteresse do partzcular, pelo bem do público". a. E. Thuau,
15. Op. cit., I, 5 ("De la nécessité & de l'excellence du gouver- op. cit., p. 324.
nement"), pp. 28-9. _ , .
" 22. ~- Chemnitz, Interets des Princes d'Allemagne, t. 1, pp. 25-
16. Ibid., p. 31: "[ ... ]visto que ele [o governo] e nosso P;IDa-
6: A ~~~o de _Estado, encerrada nos limites de que vimos de falar
pe, nosso Capitão e condutor nesta guerra do mu~do, ~ republi~a
[a Relig1ao, a fidelidade, a honestidade natural e a justiça], não re-
tem continuamente necessidade dele, por serem infinitas as mas
conhece outras: as leis públicas, particulares, fundamentais, ou de
recaídas a que convém remediar. Is~o aind~ s~~ po~co, se ~ão lhe qualquer outra espécie que seja, não a perturbam; e, quando se tra-
fosse necessário conservar com mtuto mais VIgilância a saude que
ta de salvar o Estado, ela pode ousadarnente infringi-la."
376 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 377

23. Ibid., p. 26: "[ ... ] cumpre comandar, não segundo as leis, pois os inocentes podiam ser envolvidos entre dos culpados. Por
mas as próprias leis, as quais devem se acomodar ao presente es- isso, esse estabelecimento não durou muito e só foi suportado en-
tado da República, e não o Estado às leis". quanto se acreditou ser necessário, em relação ao furor dos saxões
24. G. Naudé, Considérations politiques ... , cap. 5, PP· 324-5 que só podia ser mitigado por uma via tão extraordinária."
(reed. 1988, pp. 163-4). A passagem diz respeito à justiça, segunda 28. J. Genet, "Violence et brutalité" (À propos de la "Rote Ar-
virtude do ministro-conselheiro, além da força e da prudência: mee Fraktion"), Le Monde, n? 10137,2 de setembro de 1977, pp. 1-2.
"Tanto mais que essa justiça natural, universal, nobre e filosófica Afirmando logo de saída que "violência e vida são quase sinôni-
às vezes cai em desuso e é incômoda na prática do mnndo, onde mos", Genet escrevia: "[ ... ] o processo contra a violência é a pró-
veri juris germanaeque justitiae solidam et expressam effigiem nullam pria brutalidade. E, quanto maior a brutalidade, quanto mais infa-
tenemus, umbria et imaginibus ultimur (não temos nenhuma efi- mante o processo, mais a violência se toma imperiosa e necessá-
ciência sólida e expressa do verdadeiro direito, e da verdadeira jus- ria. Quanto mais prepotente a brutalidade, mais a violência, que é
tiça, servimo-nos tão-só das suas sombras], será com muita fre- vida, será exigente até o heroísmo". Ele concluía assim a primeira
qüência necessário ser:rrr-se d~ artifi~, p~cul~, política~ ~eita parte do seu artigo: "Devemos a Andreas Baader, a Ulrike Mei-
segundo e relacionada a necesstdade e as eXlgenctas das Políaas e nhof, a Holger Meine, à R.A.F. em geral, ter-nos feito compreen-
Estados, pois é bastante folgada e bastante elástica para se acom~­ der, não apenas por palavras, mas por suas ações, fora das prisões
dar, como a regr~~ lesbiana, à fraqueza humana e popular, e aos di- e nas prisões, que somente a violência pode pôr fim à brutalidade
versos tempos, pessoas, assuntos e acidentes." Cf. E. Thuau, Ro.i- dos homens." A referência a esse texto é ainda mais interessante
son d'État..., p. 323. Essas fórmulas, como observa A M. Battis~a porque pode aparecer como uma apologia do terrorismo ("ra pa-
("Morale 'privée' et utilitarisme politique en France au XVIIe Sie- lavra} 'terrorismo' [... ] deveria ser aplicada iguahnente e mais ain-
cle" (1975), in Ch. Lazzeri & D. Reynié, Le Pouvoir de la raison da às brutalidades de uma sociedade burguesa"), contra os "es-
d'État, Paris, PUF, "Recherches politiques", 1992, pp. 218-9), são querdistas desenvoltos" oriundos de Maio de 68, qualificados de
quase literalmente emprestadas de Charron, De la sagesse (1601), angélicas, espiritualistas e humanistas - "o heroísmo", escreve Ge-
Paris, Fayard, "Corpus des oeuvres de philosophie en langue fran- net, "não está ao alcance de qualquer militante" -, ao passo que
çaise", 1986, m, 5, p. 626. Foucault, desde 1977, manifestava nitidamente sua hostilidade em
25. Cardin Le Bret (1558-1655), De la souveraineté du roi, de relação a toda forma de ação terrorista ("Eu não aceitava o terro-
son domaine et de sa couronne, Paris, 1632; cf. E. Thuau, op. cit., pp. rismo e o sangue, não aprovava Baader e seu bando", confiou mais
275-8 e 396 para a citação (tirada de R. von Albertini, Das politis- tarde a Oaude Mauriac. Cf. O. Mauriac, Le Temps immobile, Paris,
che Denken in Frankreich zur Zeit Richelieus, Giessen, Bruhl, 1951, Grasset, t. IX, 1986, p. 388; citado por D. Eribon, Michel Foucault,
p. 181). Paris, Flarnmarion, 1989, p. 276).
26. G. Naudé, Considérations politiques ... , cap. 1, p. 15 (reed. 29. La Vérité prononçant ses oracles sans flatteries, citado por E.
1988, p. 76): "Muitos consideram que o Príncipe, sábio e sensato, Thuau, Raison d'État..., p. 395: "As violências são brutalidades quan-
deve não apenas comandar segundo as leis, mas também as pró- do se cometem não mais que por um capricho particular; quando
prias leis, se a necessidade assim exigir. Para preservar a justiça nas elas se cometem pelo concerto dos sábios, são golpes de Estado."
coisas grandes, diz Charron, às vezes é preciso desviar-se dela 30. O dia de 11 de novembro de 1630, em que os ''tolos" eram
nas coisas miúdas, e para fazer certo no geral é permitido fazer er- os adversários de Richelieu, que se imaginavam vencedores quan-
rado no detalhe." a. E. Thuau, op. cit., p. 323. A citação de Charron do não eram. Luís XIII, doente, havia prometido a Maria de Médi-
foi tirada do tratado De la sagesse. cis, a Gastão de Orléans e a Ana da Áustria, coligados, que demiti-
27. B. Chemnitz, Interets des Princes d'Allemagne, t. 1, pp. 27- ria o cardeal, mas mudou de idéia depois de uma entrevista com
8: "É verdade que essas pessoas às vezes cometiam injustiças e ele em Versalhes e lhe entregou seus inimigos (Petit Robert des
que essa maneira de punir os criminosos não era muito boa em si, noms propres, 1996, p. 630).

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378 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 379

31. Alusão à detenção do príncipe de Condé, que tinha se conhecer bem ?s calendários das tempestades do Estado, que cos-
aproximado dos conjurados depois da paz de Rueil, em 1649? . ~mam ser maiS fortes quando as coisas tendem à igualdade, as-
32. Em 1661. Superintendente das Fmanças desde 1653, NI- stm como as tempestades naturais são mais fortes em tomo do
colas Fouquet (1615-1680?) havia adquirido uma fortuna prodi- equinócio. E assim como antes de uma tempestade há rajadas sur-
giosa. Acusado de malversações, foi en~arce~ado na ~orre de Pig- das de vento e roncos secretos dos mares, assim também se dá
nerol ao fim de um longo processo chew de rrre~andades. com os Estados."
33. Jean Racine, Andromaque (1668), em Théatre complet, ed. 42. Ibid., pp. 70/71.
por Maurice Rat, Paris, Garnier, 1960, pp. 112-71. . 43. Ibid., pp. 72/73: "For lhe Motions of lhe greatest persons
34. Athalie (1691), ibid., pp. 648-715. m a Government ought to be as the Motions of the Planet under
35. Bérénice (1671), ibid., pp. 269-350. Primum Mobile (according to the old Opinion), which is, That
36. Aproximar essas observações das que Foucault desenvol- Every of them is canied swiltly by the Highest Motion, and softly
ve, em 1976, sobre a função política das tragédias de Shakespeare, m therr o~e Moh~n. And therfore, when great Ones, in their
Comeille e Racine (II faut défendre la société, op. cit., aula de 25 de owne partJ.cular Motion move violently, [... ] It is a Signe the Orbs
fevereiro de 1976, pp. 155-7). are out of Frame." I "Porque o movimento dos maiores persona-
37. G. Naudé, Considérations politiques ... , p. 105 (reed. 1988, gen~ de um go.vemo deve ser como o movimento dos planetas sob
p. 101). a. E. Thuau, Raison d'État..., p. 3_24. _ o pnmum mobzle (segundo a antiga opinião), isto é, cada um deles
38. Francis Bacon (1561-1626), barao deVerularn, conselhei- é rapidamente carregado pelo movimento supremo, e lentamente
ro de Estado em 1616, ministro da justiça em 1617, depois Grão~ p:lo seu mo~mento próprio. Portanto, quando os grandes se mo-
Chanceler de 1618 a 1621, data na qual, acusado de concussão, foi VImentam VIOlentamente em seu movimento particular, f... J é si-
destituído das suas funções. nal de que as órbitas estão desajustadas."
39. Esse conselho terá sido ouvido? Em todo caso, a partir do . 44. Ibid., pp. 70-2171-3. Alusão à atitude da Liga Católica, de-
fim dos anos 70 os eshtdos baconianos tiveram um impulso im- pms da paz de Monsieur (1576), que ela considerava demasiado
portante na Fr~ça notadamente com a tradução dos Essa.is (Au- favorável aos huguenotes. Ela forçou Henrique III a recomeçar a
bier, 1979), de Ln NouvelleAtlantide (Payot, 1983; GF, 1995), do No- guerra contra estes últimos, ao mesmo tempo em que visava des-
vum Organum (PUF, 1986)~ do De dignitate et augrnent~s sc;,entlarum troná-lo em benefício do líder da Liga, o duque Henrique de Gui-
1 Du progrés et de la promonon des savotrs (Gailirnard, Tel , 1991) e se. O rei mandou assassiná-lo em 1588, depois do dia das Barrica-
de La Sagesse des Anciens (Vrin, 1997). . das, em Paris, quando a Liga sublevou-se em favor do duque.
40. Of Seditions and Troubles. Esse escnto, ausente das duas 45. Essa distinção aparece sob uma forma menos escolástica
primeiras edições dos Essays (The Essaye: _or Cou~els, Ovtll and no texto original de Bacon, que fala de "the Materiais of Seditions;
Morall, 1597, 1612), figura na terceira ediçao, publicada em 1625 Then, [... ]lhe Motives of them" I "a matéria das sedições, depois
(Londres, impr. John Haviland), um ano antes da morte do autor. [... ]seus motivos" (ibid., pp. 72/73).
Otaremos em nota o texto inglês e a tradução francesa, a partir da 46. Ibid., pp. 74/75: "[... ] the Rebellions of the Belly are the
edição bilíngüe dos Essais, estabelecida por M. Castelain, Paris, worst" /"f... J as rebeliões da barriga são as piores".
Aubier, 1979, pp. 68-82. . 47. Ibid.: "And let no Prince mesure the Danger of them by
41. Bacon, op. cit. (ed. Castelain), pp. 68169: "Shepheards of this, wether they be Iust, or Iniust? For that were to imagine Peo-
People have need know the Kalenders ofTempests in State, which ple to be too reasonable, who doe often spurne at their owne
are commonly greatest, when Things grow to Equality; As Natu- Good; Nor yet by this, wether the Griefes, whereupon they rise, be
rali Tempests are greatest about the Aequinoctia. And as there are m fact great or small; For they are the most dangerous Discontent-
certain hollow Blasts of Wmde ans secret Swellings of Seas before ments, where the Fear is greater than the Feeling." I "E que ne-
a Tempest, soare there in States.'' /"Os pastores de povos devem nhum Príncipe meça o perigo das queixas pelo fato de serem jus-
AULA DE 15 DE MARÇO DE 1978 381
380 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

quando os Principes, que deveriam ser os pais de todos, tornam-


tas ou injustas, porque isso seria imaginar o ~ov? demasiado sen- se uma facção e tomam partido, é como um barco sobrecarregado
sato, quando ele muitas vezes repele seu propno bem; nem pelo de um lado por um peso mal distribuído". Segue-se então o exem-
fato de as queixas, quando surgem, serem de fato grandes _?U ~e­ plo de Henrique III.
díocres, porque os descontentamentos em que o medo e mator 55. Cf. no entanto pp. 72173 (a propósito do exemplo de
que o sofrimento são os mais perigosos." .. Henrique III):"[... ] when lhe Authority ofPrinces, is made but an
48. Ibid., pp. 72/73: "[ ... ] the surest way to preveni Sedinons Accessary to a Cause, And that there be other Bands that tie las-
(if the Times doe beare it) is to take away the Matter of them. For ter then lhe Band of Soveraignty, Kings begin to be pu! almost out
if there be Fuell prepared, it is hard to tell whence the Spark shall of Possession". I"[... ] quando a autoridade dos Príncipes já não é
come that shall set in on Fire. The Matter of Seditions 1s of two mais que o reforço de uma facção e quando existem outros nós
kindes; Much Poverty and Much Discontennnent". I"[ ... ] o mei~ que amarram com maior firmeza do que o da soberania, os reis es-
mais seguro de prevenir as sedições (se os ;~mpos pe?IDtirem) e tão próximos de ser esbulhados''.
suprimir sua matéria. Porque, havendo mate~a mflam~vel prm;t~ 56. a. O Príncipe, cap. 9.
é difícil dizer de onde virá a centelha que a inflamara. A matena 57. Sobre o perigo das conjurações, d. ibid., cap. 19 (trad. cit.
das sedições é de dois tipos: muita pobreza e muito descontenta- (supra, p. 65, nota 2], pp. 156-7).
mento". . 58. Ibid., caps. 15-19.
49. Ibid., pp. 74/75: "[ ... ] whatsoever in offending People wy- 59. a. E. Thuau, Raison d'état..., pp. 169-78, sobre o "governo
neth and knitteth them in a Common Cause" I"[ ... ] tudo o que, dos espíritos" segundo Richeheu e a aplicação do princípio "go-
lesando os súditos, une-os e funde-os numa causa comum". vernar é fazer crer".
50. Ibid., pp. 76177: "For a smaller Number, that spend more 60. M. Foucault faz alusão aos trabalhos de William Petty
and earne lesse, doe weare out an Estate sooner then a gr~ater (1623-1684), fundador da arinnética política (Politica/ Arithmetick
Number, that hve lo'WW'er and gather more." I "Porq'?e ~~ nume- ora Discourse Concerning, The Extent and Va/ue of Lands, People, Build-
ro menor, que gaste mais e ganhe menos, sola~a mrus raptdo uma ings: Husbandry, Manufacture, Commerce, Fishery, Arlizans, Seamen,
nação do que um número maior, que viva mrus modestamente e Soldiers; Publick Revenues, Interest, Taxes, Superlucration, Registries,
produza mais." Banks Valuation of Men, Increasing of Seamen, of Militia's, Harbours,
51. Ibid., pp. 74-6/75-7. . . Situation, Shipping, Power at Sea, &c. As the sarne relates to eaery
52. O texto não diz exatarnente isso:"[ ... ] wh1ch Kind of Per- Country in general, but more particulnrly to the Territories of His Ma-
sons are either to be wonne and reconciled to the State, and that jesty of Great Britain, and h is Neighbours of Holland, Zealand, and
in a fast and true manner; Or to be fronted with some other of the France, Londres, R. Oavel, 1691; trad. franc. Dussauze & Pasquier,
sarne Partym, that may oppose them, and so divide the rer'?ta- in Les Oeuvres économiques de William Petty, ap. cit., t. 1, pp. 263-
tion". 1 "[ ... ]essa gente [os nobres] pode ser ganha e reconciliada 348). De 1652 a 1659, Petty, que tinha sido contratado como mé-
com o governo, de forma firme e se~~; ou se pode ~usctt~-_lhes dico pelo governo da Irlanda, havia sido encarregado, depois de
em seu próprio partido algum adversano que lhe fara opos1çao, e estabelecer o cadastro da ilha, de dividir as terras confiscadas aos
assim dividir sua reputação". O remédio proposto, como esclare- católicos entre as tropas inglesas e seus financiadores. Foi dessa
ce a frase seguinte, é portanto "dividir e romper as facções", e não experiência que nasceu sua obra The Politicai Anatomy of Ireland
executar os líderes. (1671-1672; 1~ ed., Londres, D. Brown, 1691 I L'Anatomie politique
53. Ibid., pp. 76-80/77-81. de l'Irlande, em Oeuvres économiques, t. 1, pp. 145-260).
54. Ibid., pp. 70171: "[ ... ] as Macciavel noteth well; when 61. Sobre o desenvolvimento da estatística alemã, cf. V. John,
Princes that ought to be Common Parents, make themselves as a Geschichte der Statistik, ap. cit., pp. 15-154. As obras mais represen-
Party and leane to a side, it is as a Boat that is overthrowen by _une- tativas dessa tradição são os escritos de H. Conring dedicados à
ven weight on the one Side". I "[ ... ] como bem nota Maqrnavel,
382 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO

"notitia rerum publicarum" (Opera, t. IV, Braunschweig, F. W. AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978


Meyer, 1730) e o tratado de Gottfried Achenwall-. a quem deve-
mos a invenção da palavra Statistik, em 1749-, Notztzam rerum pu-
blicarum Academiis vindicatam, Gõttingen, J. F. Hager, 1748. Cf. R.
Zehrfeld, Hermann Conrings (1606-1681) Staatenkunde. Ihre Bedeu- A razão de Estado (lli).- O Estado como prindpio de in-
tung für die Geschichte der Statistik unter besonderen Berucksichtigung teligibilidade e objetivo.- O jimcionamento dessa razão gaver-
der Conrigischen Bevolkerungslehre, Berlim-Le•pZI"' W. De.Gruyter, namental: (A) Nos textos teóricos. A teoria da manutenção do
1926; F. Felsing, Die Statistik als Methode der pol!tzschen Okonomie Estado. (BJ Na prática política. A relação de concorrência entre
im 17. und 18. Jahrhundert, Leipzig, 1930. os Estados.- O tratado de Vestefália e o fim do Império Roma-
62. a. infra, pp. 426-7. , . .. . no.- A força, novo elemento da razão política.- Politica e di-
63. Esse conceito, que remonta a Tactto, fot mtrod~do P?r nâmica das forças. - O primeiro conjunto tecnológico caracte-
Bodin no vocabulário político moderno (Methodus ad fac!lem H•s- rístico dessa nova arte de governar: o sistema diplomático-mi-
toriarum cognitionem, [Parisüs, apud Martinurn Iuvenem], 1566, litar.- Seu objetivo: a busca de um equilibrio europeu. O que é
cap. 6 I La Méthode de l'histoire, trad. fr. F' Mesnard, Paris, Pl!f. a Europa? A idéia de "balança". - Seus instrumentos: (1) a
1951, p. 349). O primeiro grande tratado dedicado a esse tema e o guerra; (2) a diplomacia; (3) o estabelecimento da um disposi-
do jurista alemão Arnold Clapmar (dito Clapmanus), De arcams tivo militar permanente.
rernm publicamm, Bremen, 1605; reed. Amsterdam, apud LudoVI-
cum Elzevirium, 1644. .
64. Cf. por exemplo o Discours histotique à Monsezgneur le Procurei mostrar um pouco a vocês como se realizou
Dauphin sur le Gouvemement intérieur du ~oy~ume, 17_3?: ".quanto
mais as forças do Estado são ignoradas, IDéllS sao respettavets. (ma-
na Europa o que poderíamos chamar de avanço de uma "ra-
nuscrito anônimo de inspiração colbertista, citado por E. Bnan, La zão governamental"*. Não quero dizer com isso que essa
Mesure de l'État Paris Albin MicheL 'TÉvolution de Yhumanité", arte de governar os homens, de que procurei indicar a vo-
1994, p. 155). Essa tr~dição do segredo da administra~ão prolon- cês alguns traços ao falar da prática pastoral, tomou-se, por
gou-se, como mostra Brian, até a segunda metade do seculo XVIII. um processo de simples transporte, transferência, traslado,
65. a. supra, nota 13. um dos atributos do poder soberano. Não é que o rei se tor-
nou pastor, se tomou pastor dos corpos e das vidas, mais ou
menos como o outro pastor, o pastor espiritual, era o pastor
das almas e das sobrevidas. O que veio à luz -é o que pro-
curei lhes mostrar - foi uma arte absolutamente específica
de governar, uma arte que tinha sua própria razão, sua pró-
pria racionalidade, sua própria ratio. Acontecimento na his-
tória da razão ocidental, da racionalidade ocidental, que
não é sem dúvida menos importante do que aquele que,
exatamente na mesma época, isto é, fins do século XVI -
correr do século XVII, foi caracterizado por Kepler, Galileu,

"' Entre aspas no manuscrito.

j
384 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978
385
Descartes, etc. Temos aqui um fenômeno bastante co":'ple-
xo de transformação dessa razão ocidental. P:ocure! lhes tos do Estado. O Estado foi certa maneira de conceber, de
mostrar como esse aparecimento de uma razao governa- analisar, de definir a natureza e as relações desses elemen-
mental havia dado lugar a certa maneira de pensar~ de ra- tos já dados. O Estado é, portanto, um esquema de inteligi-
ciocinar, de calcular. Essa maneira de pensar, d; raaocmar, bilidade de todo um conjunto de instituições já estabeleci-
de calcular era o que, na época, se chamava política, e nun- das, de todo um conjunto de realidades já dadas. Percebe-
ca se deve esquecer que ela foi inicialmente percebida, re- se que o rei se define como um personagem que tem um
conhecida - e logo inquietou os contemporaneos - como papel particular, não tanto em relação a Deus, não tanto em
algo que seria uma heterodoxia. Outra manerra de pensar, relação à salvação dos homens, mas em relação ao Estado:
outra maneira de pensar o poder, outra manerra de pensar o magistrado, juiz, etc. Logo, o Estado como princípio de in-
reino, outra maneira de pensar o fato de remar e de gove~ar, teligibilidade de uma realidade já dada, de um conjunto
outra maneira de pensar as relações ;ntre o remo do ceu e institucional já estabelecido.
0 reino terrestre. Essa heterodoxia e que fm_ identificada Em segundo lugar, o Estado funciona nessa razão po-
como e chamada de política; a política, que sena um p~uco lítica como um objetivo - isto é, como o que deve ser obti-
para a arte de governar o que a máthesis era, na mesma epo- do ao cabo das intervenções ativas- dessa razão, dessa ra-
ca, para a ciência da natureza. . cionalidade. O Estado é o que deve estar no fim da opera-
Quis também lhes mostrar que essa ratto governamen- ção de racionalização da arte de governar. A integridade do
tal essa razão governamental desenhava algo que era ao Estado, o acabamento do Estado, o fortalecimento do Esta-
m~smo tempo seu princípio e seu obJetivo, seu :undamen- do e seu restabelecimento, se ele foi comprometido, se al-
to e sua meta, e esse algo, mais ou menos prmc1p10 e obje- guma revolução o derrubou ou, por um momento, suspen-
tivo da razão governamental, é o ~stado. O Estado que se- deu sua força e seus efeitos específicos, é tudo isso que deve
ria, or ·assim dizer, um pouco, nao sei be~ c_orno .diZer... , ser obtido pela intervenção da razão de Estado. O Estado é
prin~ípio de inteligibilidade e esquema estrate_SJC?, :Jigamos, portanto o princípio de inteligibilidade do que é, mas tam-
ara usar uma palavra anacrônica em relaç~o a t;poca de bém é o que deve ser. E só se compreende o que é como Es-
~ue lhes falo: a idéia reguladora'. O Estado e a 1de1a regu- tado para melhor conseguir fazer o Estado existir na reali-
ladora da razão governamental. Quero dizer com 1sso que o dade. Princípio de inteligibilidade e objetivo estratégico, é
Estado nesse pensamento político, nesse pensamento que isso, a meu ver, que emoldura a razão governamental, que
busca;.. a racionalidade de uma arte de governar, o Estado era chamada, precisamente, de razão de Estado. Quero di-
foi de início um princípio de inteligibilidade do real. O Es- zer que o Estado é, essencialmente e antes de mais nada, a
tado foi certa maneira de pensar o que eram, :m sua na~­ idéia reguladora dessa forma de pensamento, dessa forma
reza própria e em seus vinculas, em suas relaço_es, c;rto nu- de reflexão, dessa forma de cálculo, dessa forma de inter-
mero de elementos, certo número de instituiç~es Ja dad?s. venção que se chama política. A política como máthesis,
0 que é um rei? O que é um soberano? O que; um m~~s­ como forrna racional da arte de governar. A razão governa-
trado? o que é um corpo constituído? O que e uma leL ? mental coloca o Estado, portanto, como princípio de leitura
ue é um território? O que são os habitan,tes desse temto- da realidade e o coloca corno objetivo e como imperativo. O
do? O que é a riqueza do príncipe? O qu~ e anqueza doso- Estado é o que comanda a razão governamental, quer dizer,
berano? Tudo isso começou a ser conceb1do como elemen- é o que faz que se possa governar racionalmente segundo
as necessidades; é a função de inteligibilidade do Estado
386 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978 387

em relação ao real e é o que faz que seja racional, que seja ne- lazzo ~ que a razão de Estado é a regra que possibilita a
cessário governar. Governar racionalmente porque há um aqUlsJçao dessa paz, desse repouso, dessa perfeição das coi-
Estado e para que haja um Estado. Eis em poucas palavras s~, a aquisição d~ssa paz, sua conservação e sua amplifica-
o que eu procurei lhes dizer nas últimas vezes. çao. Botero, que e, a meu ver, o primeiro na Itália a fazer a
Tudo isso, claro, é totalmente insuficiente para chegar teoria da razão de Estado, diz que a razão de Estado é "um
a identificar realmente o funcionamento dessa razão de Es- conhedmento perfeito dos meios pelos quais os Estados se
tado, dessa razão governamental. De fato, se retomarmos formam, se mantêm, se fortalecem e se ampliam"'. Chem-
um pouco essas definições da razão de Estado de que lhes nitz, muito mais tarde, no momento do tratado de Vestefá-
falava, parece-me que há sempre algo como, não exata- lia, dirá que a razão de Estado é o que permite estabelecer,
mente um equívoco, mas como uma oscilação, uma espécie conservar, ampliar uma república•. E, embora seja verdade
de efeito de mexido, de tremido, uma oscilação na defini- que a maioria dos teóricos insiste no fato de que a razão de
ção. Não sei se vocês se [lembram], quando me referi ao tex- Estado é o que permite manter o Estado- emprega-se a pa-
to de Palazzo, escrito, editado, publicado em italiano em 1606 lavra "~anuten5ão"'.manter -, todos acrescentam que, jun-
e traduzido em francês em 1611', como a razão de Estado to com ISso, alem disso, ademais, talvez de uma maneira
era definida. Palazzo dizia que a razão de Estado é o que um tanto ou quanto subordinada aliás, também é necessá-
deve assegurar a integridade do Esta~o, é, dizia ele, e cito rio ampliá-lo. O que é então essa ampliação do Estado que
suas próprias palavras, "a própria essenc1a da paz, a regra mtervem em todas as definições da razão de Estado? As de-
de viver em repouso, a perfeição das coisas"'. Em outras pa- finições, enfim, os textos que cito para vocês - o de Botero,
lavras, Palazzo dá aqui uma definição propriamente essen- o de Palazzo certamente, o de Chemnitz, sem dúvida um
cialista da razão de Estado. A razão de Estado deve fazer pouco menos, porque estava mais vinculado a uma situação
que o Estado efetivamente seja conforme ao que ele é, isto política predsa -, a maioria desses textos é, apesar de tudo,
é, permaneça em repouso, próximo da sua essência, que su.a constituída de textos um pouquinho teóricos e especulati-
realidade seja exatamente conforme ao que deve ser, no m- vos, que ainda têm um certo relento platônico, no sentido
vel da sua necessidade ideal. A razão de Estado vai ser por- de que a manutenção do Estado em conformidade com a
tanto esse ajuste da realidade do Estado à essência eterna sua essên_cia de Estado é que deve, segundo eles, caracteri-
do Estado, ou, em todo caso, à essência imutável do Estado. zar a razao de Estado. O que há que evitar, claro, são os
Digamos numa palavra: a razão de Estado é o que permite acontecunentos quase necessários, em todo caso sempre
manter o Estado "em estado". Aliás, Palazzo (eu lhes citei ameaçadores de que Bacon falava, por exemplo a propósito
esse texto') jogava com a palavra status, que significa ao mes- das sedições'. Mas é outra coisa também. O que há que evi-
mo tempo ''Estado", no sentido de um Estado, e ao mesmo tar, segundo Botero, segundo Palazzo e os outros, são esses
tempo a imobilidade da coisa. Manter o Estado em estado, processos praticamente inevitáveis, sempre ameaçadores
eis o que dizia Palazzo. em todo caso, que trazem embutido o risco de fazer o Esta-
Mas, na verdade, nas definições do próprio Palazzo e do entrar em decadência e de, depois de tê-lo levado ao zê-
em outras definições mais ou menos da mesma época, ara- nite da história, fazê-lo desaparecer e se apagar. O que se
zão de Estado é ao mesmo tempo caracterizada por um ou- trata de evitar, no fundo - e é nisso e por isso que a razão
tro aspecto que intervém de uma maneira, não posso dizer de Estado funciona, segundo Botero e Palazzo -, é o que
absolutamente secreta mas, digamos, discreta. De fato, Pa- aconteceu ao reino da Babilónia, ao Império Romano, ao
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389
Império de Carlos Magno, esse. ciclo do n~scimento, do ro e os ?utros ch~avam simplesmente de "ampliação" do
crescimento, da perfeição e, depoiS, da decadencra. Esse CI- Estado e ~ fenomeno, parece-me, muito importante. É a
clo é o que se chama, no vocabulário da época, de "revolu- constataçao de que os Estados são postos uns ao lado dos
ções". A revolução, as revoluções são essa espécie de fenô- ?utro~ num espaço de concorrência. E creio que essa idéia
meno quase natural, enfim meio natural e meio histórico, e, na epoca, ao mesmo tempo fundamental, nova e de uma
que faz os Estados entrarem num ciclo que, depois de tê-los extrema feCimdidade quanto a tudo o que talvez possamos
levado à luz e à plenitude, os faz em segwda desaparecer e chamar de tecnologia política. Idéia nova, por quê? Pode-
se apagar. É isso a revolução. E o que Botero e Palazzo en- mos enca_:ar a coisa sob dois aspectos: um aspecto propria-
tendem por razão de Estado é, no fundo, essencialmente, mente teonco e um aspecto que se refere à realidade histó-
manter os Estados contra essas revoluções. Nesse sentido, nca do Estado.
vocês estão vendo que estamos próximos de Platão, como Ponto de vista teórico: creio que a idéia de que os Es-
eu lhes dizia há pouco, mas com a diferença de que, contra tados esteJam, entre SI, numa relação de concorrência é, no
a decadência sempre ameaçadora das cidades, Platão propu- fundo,? conseqüência direta, quase inelutável, dos princí-
nha um meio, que era uma boa constituição, b;>as leis e ma- piO~ teoncos postos pela razão de Estado, de que lhes falei
gistrados virtuosos, enquanto os homens do seculo XVI, Bo- da última vez. Quando procurava lhes dizer como se con-
tero, Palazzo, contra essa ameaça quase fatal das revoluções, cebia a razã;>de Estado, resultava que 0 Estado era defini-
o que eles propõem não são tanto leis, não é tanto uma _cons- do pelos teoncos da razão de Estado como sendo sempre,
tituição, não é nem mesmo a virtude dos magiStrados, e uma em SI mesmo, seu próprio fim. O Estado só se subordina a
arte de governar, logo uma espécie de habilidade, em todo SI mesmo. Não há. nenhuma lei positiva, claro, nem tam-
caso uma racionalidade nos meios utilizados para governar. pouco nenhuma le1 moral, nem tampouco nenhuma lei na-
Mas, no fundo, essa arte de governar ainda tem o mesmo ob- tural, no lirrute talvez nem mesmo nenhuma lei divina -
jetivo das leis de Platão, isto é, evitar a revolução, mante~ o mas essa é uma outra questão -, em todo caso, não há ne-
Estado, um só Estado, num estado permanente de perfe1çao. n~uma lei que possa se impor de fora ao Estado. O Estado
Mas, de fato, em textos que são menos teóricos, menos so se subordina a si mesmo, busca seu próprio bem e não
especulativos, menos moralistas ou morais que os de Bote- tem nenhuma finalidade exterior, isto é, ele não deve de-
ro e de Palazzo, creio que encontramos uma co1sa bem di- sembocar em nada mais que em si mesmo. Nem a salvação
ferente. Nós a encontramos em textos que emanam de gen- do soberano, claro, nem a salvação eterna dos homens, nem
te certamente mais próxima da prática política, de gente nenhuma forma de consumação ou de escatologia para a
que está diretamente envolvida nela, que a exerceram eles qual devena tender. Com a razão de Estado, eu lhes reco r-
próprios, ou seja, nos textos deixados por Sully, que foram dava da última vez, estamos num mundo de historicidade
publicados com o título de Eccmor;zias reais", nos !extos dei- indefinida, r;um teml;'o aberto e sem termo. Em outras pa-
xados por Richelieu, como tambem nas Instruçoes que f?- lavras, atraves da razao de Estado está esboçado um mun-
ram dadas a embaixadores, por exemplo, ou a um certo nu- do em que haverá necessariamente, fatalmente e para sem-
mero de dirigentes, de funcionários reai_s. E vemos nelesque pre uma pluralidade de Estados que terão sua lei e seu fim
essa teoria da manutenção do Estado e de todo msuficlen- apenas em s1 mesmos. A pluralidade de Estados não é, nes-
te para cobrir a prática real da política e a ef:tivação da razão sa perspe<;t~va, uma fo~a de transição entre um primeiro
de Estado. Essa outra coisa, o suporte real aquilo que Bote- remo un1tano e um lffiperio último em que a unidade se en-
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AUlA DE 22 DE MARÇO DE 1978
391
contraria. A pluralidade de Estados não é urna fase de tran-
sição imposta aos homens durante um tempo e para seu ca, em suas opções, em suas alianças, já não têm nem se-
castigo. Na verdade, a pluralidade de Estados e a propna ne- quer de s; ~nrr de acordo com seus laços religiosos. Os Es-
cessidade de uma história agora inteiramente aberta e que tados catolicos podem perfeitamente se aliar a Estados pro-
não é temporalmente polarizada para uma unidade última. te~tantes e VJce-versa, os Estados católicos podem utilizar
Um tempo aberto, uma espacialidade múltipla - eis o que exemtos protestantes e vice-versa". Em outras palavras, es-
está de fato implicado nessa teoria da razão de Estado de sas duas grandes formas de universalidade que, sem dúvi _
da, pelo menos_ no caso do Império, tinham se tomado urna
que eu lhes falava na última vez. .. _ . , .
Mas, para dizer a verdade, essas consequencms teon- espeoe de mvolu?'o vazio, de casca sem conteúdo desde
cas sem dúvida não teriam como cristalizar algo como urna h?VJa um certo numero de anos, de décadas, talvez até de
tecnologia política* se, de fato, elas não f?ssem articuladas s:culos, mas qu': ainda conservavam seu poder de focaliza-
numa realidade histórica de que constituíam precisamente çao, de fascmaçao e de inteligibilidade histórica e política,
essas duas grandes formas de universalidade - 0 Império e
o princípio de inteligibili_dade. Ora, essa_ realidade histórica
a Igr;Ja - perderam sua vocação e seu sentido, pelo menos
na qual se articulou a 1de1a de urna histona temporalmt;nte
no ruvel dess_a uruversalidade. É nessa realidade que se ar-
aberta e de um espaço, eu 1a diZendo estatalmente múlti-
ticula o pnnopio de que se está num tempo que é [politica-
plo, essa realidade o que é? Oaro, foi no decom;r do sé~­ mente]* aberto e num espaço que é estatalmente múltiplo
lo XVI, de uma maneira absolutamente constatavel, tang~­
Temos agora unida_des de certo modo absolutas, sem ne~
vel definitiva, reconhecida - e, aliás, institucionalizada no
;thuma subordinaçao nem dependência umas [em relação
séc'uJo XVTI e no célebre tratado de Vestefália', de que vou as outras], pelo meE'os no caso das principais, e essas uni-
dades - e e~se: entao, o outro aspecto, a outra vertente da
lhes falar novamente -, que as velhas formas da universali-
dade que haviam sido propostas e impostas à Europa a_o realidade histonca com que tudo isso se articula -, essas
longo de toda a Idade Média e pratica;nente desde o lmpe- urudadesse afirmam, ou em todo caso se procuram, procu _
rio Romano, e como herança do Impeno Romano, que en-
ram ~e afirmar, num espaço que é agora o dos intercâmbios
fim tudo isso desaparece. O fim do Império Romano deve ~cononucos ao mesmo tempo multiplicados, ampliados e
ser situado exatamente em [1648]**, isto é, no dia em que mtensificado_s. Elas procuram se afirmar num espaço que é
se reconhece enfim que o Império não é a vocação última o da concorrenoa <:_omercial e da dominação comercial, num
de todos os Estados, o Império já não é a forma na qual um espaço de crrculaçao monetária, num espaço de conquista
dia se deve esperar ou sonhar que os Estados se fundirão. É ~olorual, ~um espaço de controle dos mares, e tudo isso dá
nessa mesma época que se constata, ainda com esse trata- a afinnaçao de cada Estado por si mesmo não simplesmen-
do de Vestefália, o fato de que a cisão da IgreJa, deVJda aRe- te a forma de autofinalidade de que eu lhes falava na últi _
forma essa cisão de um lado, é adquirida, é institucionali- n:a vez: mas esta forma nova, a da concorrência. Só é pos-
é
zada, reconhecida10 e, de outro, os Estados, em sua políti- SJ::'el afirmar-se num espaço de concorrência política e eco-
n.?m!ca, para empregar palavras meio anacrónicas em rela-
* M. Foucault acrescenta: se, de fato, elas não pudessem ter se in- çao a realidade, num espaço de concorrência que vai dar
vestido.
*"' M.F.: 1647 "' M.F.: temporalmente
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393
seu sentido a esse problema da ampliação do Estado como qual se passou a viver doravante, Primeiro, todo Estado,
princípio, fio condutor da razão de Estado, , como a Espanha, desde que tenha os meios para tanto des-
Mais concretamente amda, pode-se dizer que todo o de que tenha a extensão para tanto, desde que possa' real-
aparecimento, melhor dizendo, todo o desenvolvimento de m:nte definír sua pretensão, todo Estado vai procurar por si
uma razão de Estado que só pode conservar o Estado por propno ,o~par e?' relação aos outros uma posição do mi_
ampliação das suas forças num espaço de concorrência, creio nante, ]a nao sera diretamente ao Império que se aspirará
que tudo isso adquire sua figura imediata e concreta no pro- mas a uma ?aminação, de fato sobre os outros países, Se~
blema, grosso modo, da Espanha, ou da Espanha e ~a Ale~ gundo, o propno,exercrcw dessa dominação, essa situação
manha, A razão de Estado, é verdade, nasceu na Itália, f01 de quase monopolio que a Espanha havia, se não adquiri_
formulada na Itália a partir dos problemas específicos das do, P<;lo menos sonhado e quase alcançado por certo tem-
relações dos pequenos Estados italianos entre sL Mas, se ela po, ve-se entr;etanto peiJ?etuamente ameaçada por aquilo
se desenvolveu, se ela se tomou efetivarnente uma catego- mesmo que pode provoca-la e mantê-la, ou seja, um Esta-
ria de pensamento absolutamente fundamental para todos do pode empobrecer por enriquecer, pode se esgotar por
os Estados europeus, se não continuou sendo um Inst:u- s;u excesso de poder, e a situação de dominação pode ser
mento de análise, de reflexão, uma ferramenta de açao,
VItima de algo que vai se chamar agora de revolução, mas
uma forma estratégica própria dos pequenos Estados italia- num sentido bem diferente: a revolução como 0 conjunto
nos foi por causa de todos esses fenômenos de que eu lhes dos mecanismos rerus pelos quais aquilo que havia assegu _
fala~a e que se concretizam, que adquirem a própria figura rado o podeno do Estad'? e da dominação vai provocar, por
da Espanha, A Espanha que, por um lado, como herdeira contragolpe, a drrrun~çao do seu poderio, A Espanha foi
por vias dinásticas do Império e da família que detinha o a~uilo em tomo de que, o objeto privilegiado, 0 exemplo tí-
Império, se toma herdeira da pretensão à monarquia_uni- pico em tomo do qual a análise da razão de Estado vai se
versal; a Espanha que, por _outro lado, se vê d_esde o seculo d,:senvolver, Compreende-se que todas as análises da ra-
XVI detentora de um impeno colorual e mantimo pratica- zao de Estado, todas as análises desse novo campo da polí-
mente planetário e quase monopolista, pelo ~enos desde a tica que estava se definindo tenham se desenvolvido de for-
absorção de Portugal; enfim, a Espanha que e aos olhos da ma pnvileg~ada entre os inimigos e os rivais da Espanha: a
Europa inteira o exemplo de um fenômeno espantoso~ que Fran5a, a Alemanha que procurava se livrar do jugo da pree-
vai por décadas e décadas conduzir a reflexão dos crorustas, mmencra rrnpenal, a Inglaterra dos Tudor, Em suma, pas-
dos historiadores, dos políticos e dos econorrustas, a saber: sou-se de um tempo, aquele que, a meu ver, ainda domina-
o fenômeno de que a Espanha, por causa disso mesmo, por va, que a;nda sema de horizonte para o pensamento polí_
causa desse quase monopólio, enfim, da extensão do seu tico do seculo XVI, passou-se de um tempo co t d' ,
império, enriqueceu-se de manerra espetacular por al,~s nifi d m en encra
u , ca ora e marcado, ameaçado por revoluções essen-
anos e empobreceu de maneira mais espetacular e mrus ra-
crrus, para ~m tempo aberto e perpassado por fenômenos
pida ainda no decorrer do século XVII, talvez até desde o
início do século XVI,
d,: concorr~mcia que podem trazer revoluções reais, revolu _
çoes no propno plano dos mecanismos que asseguram a ri-
Temos portanto, com a Espanha, um conjunto de pro- queza e o poder das nações,
cessos que cristalizaram completamente todas essas refle-
, Dito isso, será que tudo isso é tão novo assim? Será que,
xões sobre a razão de Estado e o espaço concorrencial no efetivamente, pode-se dizer que a abertura de um espaço
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395
de concorrência entre os Estados é um fenômeno que sur- !idades de enfrentamento e as possibilidades de deseniace
giu bruscamente no fim do século XVI~ no início do sécu- do enfrentamento a partir da riqueza do príncipe, do tesou-
lo XVII cristalizando assun toda uma sene de novos aspec- ro de que ele dispunha, dos recursos monetários que ele ti-
tos e de novos desenvolvimentos dessa razão de Estado? nha,". quando se procura pensá-la[s] na forma da riqueza
Claro, fazia tempo que rivalidades, enfrentamento:, !enô- do propno Est~d~. Passagem da riqueza do príncipe como
menos de concorrência tinham se produz1do. Isso e obVJo. fator de poder a nqueza do Estado como a própria força do
No entanto, mais uma vez, gostaria que ficasse bem claro remo. Em segundo lugar~ segunda transformação, quando
que aquilo de que falo, aquilo que está em questão em tudo se pas:a de uma estimativa do poder de um príncipe pela
o que lhes digo aqui é o momento em que todos esses fe- e:ctensao das suas posses a uma pesquisa das forças mais
nômenos começam efetivamente a entrar num pnsma refle- solidas, mesmo que mrus secretas, que vão caracterizar um
xivo que permite organizá-los em estratégias. O problema Estado:. ou seja, [não] mais as posses em si, (mas] as rique-
está em saber a partir de que momento foram efetivamen- zas mtrinsecas ao Estado, os recursos, aquilo de que ele pode
te percebidos na forma de cor;corrência e_ntre Estados, de dispor, recursos naturais, f'Ossibilidades comerciais, balança
concorrência num campo econorruco e político aberto, num das trocas, etc. Em tercerro lugar, terceira transformação:
tempo indefinido, esses fenômenos de enfrentamento, de quando se pensavam os enfrentamentos em termos de ri-
rivalidade que se podiam constatar, eVIdentemente, desde validade dos príncipes, o 9ue caracterizava a força do prín-
sempre. A partir de que momento org~am-se um_pensa- C!pe era seu s1stema de alianças, no sentido familiar ou no
mento e uma estratégia da concorrencia para codificar to- sentido das obrigações familiares a ele ligadas, mas, a par-
dos esses fenômenos? É o que eu gostaria de tentar apreen- tir do momento em que se começou a pensar os enfrenta-
der, e parece-me que foi a partir dos séculos x::r-XVII que mentos e';' termos de concorrência, é [pela] aliança como
as relações entre os Estados foram perceb1das nao ';'a1s sob combmaçao provisória de interesses que as forças vão ser
a forma da rivalidade, mas sob a forma da concorrenc1a . E avalia?as e calC:Uadas. Essa passai)em da rivalidade dos prín-
aqui - claro, posso apenas indicar o problema -, creio que C!p:s a concorrenCJa dos Estados e sem dúvida uma das mu-
seria preciso procurar identificar a manerra como os enfren- taçoes mais essenciais nas formas, tanto da chamada vida
tamentos entre os reinos eram percebidos, reconheados, política como da história do Ocidente.
falados e ao mesmo tempo, pensados e calculados em for- Claro, a passagem da rivalidade dinástica à concorrên-
ma de ri~alidades, essencialmente de rivalidades dinásticas, cia. dos Estados é uma passagem complexa, lenta, que eu
e a partir de que momento começou-se a pensá-los na for- cancaturo indicando por alto alguns de seus traços, e os en-
ma da concorrência. cavalamento_:; serão mais demorados. Por exemplo, a Guer-
De maneira bem grosseira, bem esquemática, podería- ra de Su:essao da Espanha, no início do século XVIII", ain-
mos dizer que, enquanto se permanecia nun:a forma de en- da estara unpregnada dos problemas, das técnicas, dos pro-
frentamento pensado como rivalidade de pnnc1pes, de nva- ce~mentos, dos modos de fazer e de pensar das rivalidades
!idade dinástica, o elemento pertinente era, eVIdentemente, d.inasticas. Mas acredito que, com a Guerra de Sucessão da
a riqueza do príncipe, seja sob a forma do tesouro que ele Espanha e o freio, o fracasso com que topou, temos o der-
possuía, seja também sob a forma dos recursos ~scrus dt; raderro momento, a derradeira forma de enfrentamento em
que ele podia dispor. A primeira das transformaçoes se da que~ rivalidade dinástica dos príncipes ainda vai impregnar
quando se pára de pensar, de calcular, de avaliar as poss1b1- e, ate certo ponto, comandar urna coisa que é a concorrên-
396 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 22 DE MARÇO DE 1978 397

cia dos Estados e que aparecerá em seguida em estado li- Império, do recuo, do esmaecimento das funções universa-
vre, em estado nu, nas guerras seguintes. Em todo caso, a listas ?a Igreja -:enfim, todos esses fenômenos, que são 0
partir do momento em que se passou da rivalidade dos prín- qu~ sao e que tem sua necessidade e sua inteligibilidade
cipes à concorrência entre os Estados, a partir do momento l'ropnas, nos levam ao aparecimento, no pensamento poli-
em que o enfrentamento foi pensado em termos de concor- tico, da categoria fundamental da força. 'Ibdos esses fenô-
rência de Estados, é evidente que se descobre, que se põe a menos conduzem a uma mutação no pensamento político
nu uma noção absolutamente essencial e fundamental, que que faz que estejamos, pela primeira vez, em presença de
ainda não havia aparecido e que ainda não havia sido for- um pensamento político que pretende ser ao mesmo tem-
mulada em nenhum dos textos teóricos sobre a razão de po ~ma estratégia e uma dinâmica das forÇas. Ora, na mes-
Estado de que lhes falei. Essa noção é, evidentemente, a no- ma epoca e por processos inteiramente diferentes, vocês sa-
ção de força. Não é mais a ampliação dos territórios, mas o bem mwto bem disso, as ciências da natureza essencial-
aumento da força do Estado; não é mais a extensão das mente a física, taml:~ém vão encontrar essa noção de força.
posses ou das alianças matrimoniais, [mas] o incremento De ':lodo '!ue a dinarmca política e a dinâmica como ciên-
das forças do Estado; não é mais a combinação das heran- cia fís1ca sao praticamente contemporâneas. Seria preciso
ças por meio das alianças dinásticas, mas a composição das ver como tudo ISSo se articulou em Leibniz", que é o teóri-
forças estatais em alianças políticas e provisórias. É tudo co geral da força, tanto do ponto de vista histórico-político
isso que vai ser a matéria-prima, o objeto e, ao mesmo tem- como do pon~o de VIsta da ciência física. Por que aconteceu
po, o princípio de inteligibilidade da razão política. A razão assun, o que e essa contemporaneidade? Confesso que não
política, se a considerarmos, portanto, não mais nesses tex- tenho ngorosarnente a menor idéia, mas creio ser inevitável
tos um tanto teóricos, ainda um tanto essencialistas e pla- colocar esse problema na medida mesma em que, com Leib-
tónicos de que lhes falava na última vez, mas, se vocês a ruz, tem()S a prova de que a homogeneidade dos dois pro-
considerarem nas formulações de que foi objeto principal- cessos nao era, em absoluto, estranha ao pensamento dos
mente no fim do século XVI, no inicio do século xvn, so- contemporâneos.
bretudo em tomo da Guerra dos Trinta Anos", e por pes- Resumamos tudo isso. O verdadeiro problema dessa
soas que eram muito mais práticas do que teóricas da polí- nova raciOnalidade governamental não é, portanto, tanto
tica, pois bem, encontraremos um novo estrato teórico. Esse ou somente a c'?nservação do Estado numa ordem geral,
novo estrato teórico e analitico, esse novo elemento da ra- ma~ a conservaçao de uma certa relação de forças, a conser-
zão política é a força. É a força, a força dos Estados. Entra- vaçao, a manutenção ou o desenvolvimento de uma dinâ-
mos agora numa política que vai ter por objeto principal a mJ<;_a das :orças. Pois bem, creio que para pôr em ação uma
utilização e o cálculo das forças. A política, a ciência políti- razao política que vai. portanto se definir, agora, essencial-
ca encontra o problema da dinâmica. mente a partir da dmarmca das forças, creio que para isso o
Abre-se então evidentemente um problema que deixo OCidente, ou as s?c1edades ocidentais, criaram dois grandes
completamente em suspenso, simplesmente o assinalo para conjuntos que so _rodem ser compreendidos a partir daí,
vocês. Vocês estão vendo que essa evolução que se produ- dessa raCJonalizaçao das forças. Esses dois grandes conjun-
ziu a partir de uma realidade histórica e de processos histó- tos de que eu quena lhes falar hoje e da próxima vez são,
ricos identificáveis- trata-se da descoberta da América, da eVIdentemente, de um lado, um dispositivo diplomático-mi-
constituição de impérios coloniais, do desaparecimento do litar e, de outro, o dispositivo da polícia, no sentido que a
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AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978
399
palavra tinha na época - esses dois grandes conjuntos que
têm essencialmente a função de garantir o quê? Primeiro, a mente que agissem de tal modo que os novos traçados de
manutenção de uma relação de forças e, por outro lado, o in- fronterras, as novas divisões dos Estados, as novas relações
cremento de cada uma das forças sem que haja ruptura do estabeleadas entre os Estados alemães e o Im , .
d inf1 • · d peno, as zonas
conjunto. Essa manutenção da relação das forças e esse de- e uenaa a Fran~a, da Suécia, da Áustria, [que] tudo isso
senvolvimento das forças internas a cada um dos elementos, [fosse] feito em funçao de um princípio: manter certo equi-
sua junção, é precisamente isso que mais tarde vai se cha- hbno entre os difere~tes Estados da Europa.
mar de mecanismo de segurança. . _Pnmerro, o que e a Europa? Idéia absolutamente nova
Primeiro, as novas técnicas de tipo diplomático-militar. a _Ideia de Europa nesse início ou nessa primeira metade do
Se os Estados são postos uns ao lado dos outros numa re- seculo XVII. O que é a Europa? Em primeiro lugar é justa-
lação de concorrência, é preciso encontrar um sistema que me~te uma urudade que já não tem, de forma algu~a avo-
permita limitar o máximo possível a mobilidade de todos os caçao universalista que, por exemplo, o cristianismo'podia
outros Estados, sua ambição, sua ampliação, seu fortaleci- ter. O cnstiarusmo vrsava por definição, por vocação, cobrir
mento, mas deixando aberturas suficientes a cada Estado o mundo
áfi mterro., A Europa' ao contrário, e' uma divrsao
. - geo-
para que possa maximizar sua ampliação sem provocar seus gr ca _que, na epoca, por exemplo, não compreende a Rús-
adversários e sem, portanto, acarretar seu próprio desapa- Sia e nao c?mpreende a Inglaterra, senão de uma maneira
recimento ou seu próprio enfraquecimento. Esse sistema de mwto ambigua, pois a Inglaterra não era efetivamente ar-
segurança foi esboçado e, na verdade, perfeitamente esta- t: ativa no_tratado de Vestefália. Logo a Europa é certa ~vi­
belecido ao fim da Guerra dos Trinta Anos, ao fim portanto sao geografica bem hrrutada, sem universalidade. Em se-
desses cem anos de lutas religiosas e políticas" que levaram gundo lugar, a Europa não é uma forma hierárquica de Es-
de forma clara e definitiva ao desaparecimento tanto do so- tados mrus ou menos subordinados uns aos outros e que
nho imperial como do universalismo eclesiástico, e que es- culn;mana numa forma política última e única, que seria o
tabeleceram, uns diante dos outros, certo número de Esta- Impeno. ~ada_ soberano- falo aqui de um modo bem gros-
dos que podiam, todos, aspirar à afirmação de si mesmos e serro, voces vao ver, vru ser necessário corrigir isso log0 -
à autofinalidade de sua própria política. Esse sistema esta- cada soberano é imperador em seu próprio reino ou, e~
belecido no fim da Guerra dos Trinta Anos comportava o todo casoé os fU!ICiprus soberanos são imperadores em seu
quê? Comportava um objetivo e comportava instrumentos. remo, e nao ha nada que, no fundo, assinale num dos sobe-
O objetivo era o equihbrio da Europa. O equihbrio da Europa, ranos de um des~es Estados uma superioridade que faria da
também neste caso, tal como a razão de Estado, é de origem Europa uma espeoe de conjunto único. A Europa é funda-
italiana; a idéia de um equihbrio é de origem italiana. É, creio mentalment; plural. O que não quer dizer, é claro- e é aqui
eu, em Guicciardini que encontramos a primeira análise de que comJO Ja o que acabo de dizer-, que não haja diferen-
ças entre os Estados*. [O fato é bem nítido]** por
toda essa política pela qual cada um dos príncipes italianos t d , exempIo,
procurava manter a Itália num estado de equihbrio". Dei- an es_ mesmo o tratado de Vestefália, no que Sully conta a
xemos o caso italiano e voltemos à Europa. Equihbrio da proposito de Henrique IV e do que ele chamava de , mag-
Europa quer dizer o quê? Quando os diplomatas, os embai-
xadores que negociaram o tratado de Vestefália recebiam
instruções do seu governo", recomendavam-lhes explicita- * M.F.: e, ao contrário, foi muito bem assinalada
""* M.F.: Encontramo-lo
400 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AU!A DE 22 DE MARÇO DE 1978 401
nífico desígnio"'". O magnífico desígnio, que Sully preten- países, segundo as diferentes políticas, segundo os diferen-
de ter sido o pensamento político de Henrique N, consistia tes momentos, em primeiro lugar, a impossibilidade de o
em constituir uma Europa, é claro, logo uma Europa plural, Estado mais forte ditar sua lei a qualquer outro Estado. Em
uma Europa como divisão geográfica limitada, sem univer- outras palavras, manter-se-á a balança da Europa se houver
salidade e sem unidade culminante, claro, mas na qual te- um arranjo para que a diferença entre o Estado mais forte e
ria havido quinze Estados mais fortes que os outros, que te- os que o seguem não seja tal que o mais forte dos Estados
riam tomado a decisão pelos outros". Logo, é uma divisão possa_impor sua lei a todos os outros. Por conseguinte, li-
geográfica, uma multiplicidade sem unidade de Estados, ml!açao do descompasso entre o maís forte e os outros*. Pri-
[entre] os quais no entanto há uma diferença importante, se meiro ponto. Em segundo lugar, a balança européia, o equi-
não constitutiva, se não entrelaçada, uma diferença impor- líbno europeu fm concebido como a constituição de um nú-
tante entre os pequenos e os grandes. Enfim, quarta carac- mero limitado de Estados mais fortes, entre os quais a igual-
terística da Europa, é que, ao mesmo tempo que é uma di- dade será mantida de tal modo que cada um desses Estados
visão geográfica, uma pluralidade, ela tem suas relações com mrus fortes poderá impedir qualquer outro de tomar a fren-
o mundo inteiro, mas essa relação com o mundo inteiro as- te e prevalecer. Em outras palavras, constituição de uma
sinala a especificidade mesma da Europa em relação ao anstocra,aa de Estados, e de uma aristocracia igualitária que
mundo, pois a Europa só deve ter e só começa a ter com o adqumra a forma, p~r exemplo, de uma igualdade de forças
resto do mundo um certo tipo de relação, que é o da domi- entre a Inglaterra, a Austria, a França e a Espanha. Com uma
nação econômica ou da colonização - ou, em todo caso, o qua?r'ga como essa, ;stá claro 9ue r;enhum dos quatro po-
da utilização comercial. A Europa como região geográfica dera tomar uma distancia consideravel em relação aos ou-
de Estados múltiplos, sem unidade mas com desnível entre tros,_tendo os trê~ outros evidentemente como primeira
pequenos e grandes, tendo com o resto do mundo uma re- reaçao, se esse f:nomeno começasse a se produzir, impedi-
lação de utilização, de colonização, de dominação, foi esse lo de uma maneira o~ de outra. Enfim, terceira definição do
pensamento que se formou [no] fim [do] século XVI e bem equilfbno europeu, e a que encontramos mais facilmente
no início do século XVII, um pensamento que vai se crista- entre os juristas e que vai ter em seguida toda a série de con-
lizar em meados do século XVII com o conjunto dos trata- seqü~ncias que vocês podem imaginar. Vocês a encontram
dos que são assinados nesse momento- e é a realidade his- no seculo XVIII em Wolff, no Jus gentium, onde ele diz que
tórica de que ainda não saímos. É isso o que é a Europa. o equihbno europeu deve consistir no seguinte: que a "União
Segundo, a balança. O que é a balança da Europa?20 A mútua de várias nações" deve poder se dar de tal modo "que
palavra latina é trutina Europae*. A palavra "balança" é em- a força preponderante de um ou vários países seja igual à
pregada em vários sentidos nos textos dessa época. Aba- força reuruda dos outros"". Em outras palavras, as coisas têm
lança da Europa significa, e assim foi segundo os diferentes de ser de tal modo que a reunião de várias pequenas potên-
CiaS possa contrabalançar a força da potência superior, que
podena vrr a ameaçar uma delas. Possibilidade, por canse-
*Manuscrito, p. 14: "trutina sive bílanx Europeae" (expressão citada
por L. Donnadieu, lA Théorie de l' équilíbre. Étude d'histoire diploma tique et
de droit ínternatíonal, tese de doutoramento em ciências políticas (Uni- * M. Foucault, no manuscrito, remete aqui a "Sully, 'o magnífico
versidade de Aix-Marselha), Paris, A. Rousseau, 1900, p. 3). desígnio"'. Cf. supra, pp. 414-5, nota 18.
402 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978 403

guinte, de coligação que seja tal que o efeito da coligação mática e se definiu, portanto, essencialmente pela consti-
possa contrabalançar, a um momento dado e num lugar tuição de uma Europa, de uma balança européia, esses ins-
dado, qualquer das preponderâncias estabelecidas. Limita- trumentos, a meu ver, são três. O primeiro instrumento des-
ção absoluta da força dos mais fortes, equalização dos mais sa paz universal precâria, frágil, provisória, que toma o as-
fortes, possibilidade de combinação dos mais fracos con- l'ecto de uma balança e de um equihbrio entre uma plura-
tra os mais fortes: são essas as três formas concebidas e lidade de Estados, nem é preciso dizer, é a guerra. Ou seja,
imaginadas para constituir o equihbrio europeu, a balança doravante vai-se poder guerrear, ou melhor, dever-se-á guer-
da Europa. rear precisamente para manter esse equilíbrio. E então ve-
Vocês estão vendo que, com esses diferentes procedi- mos as funções, as formas, as justificativas, o pensamento
mentos, em vez de uma espécie de escatologia absoluta que jurídico da guerra, mas também seus objetivos, se alterarem
determinaria como ponto de consumação da história um completamente. Porque, afinal de contas, o que era a guer-
império, uma monarquia universal, vamos ter algo que po- ra, tal como era concebida na Idade Média? A guerra era es-
deríamos chamar de escatologia relativa, uma escatologia sencialmente um comportamento, eu ia dizendo jurídico,
precâria e frágil, mas para a qual deve-se efetivamente ten- quero dizer judicial. Fazia-se a guerra por quê? Quando ha-
der, e essa escatologia frágil, pois bem, é a paz. É a paz uni- via uma injustiça, quando havia violação de direito ou, em
versal, paz relativamente universal e paz relativamente de- todo caso, quando alguém pretendia certo direito que era
finitiva, claro, mas essa paz com que se sonha nesse mo- contestado por outro. Na guerra medieval, não havia ne-
mento já não é esperada de uma supremacia por fim unitá- nhuma descontinuidade entre o universo do direito priva-
ria e definitivamente inconteste, como a do Império ou do, no qual se tratava de liquidar litígios, e o mundo do direi-
como a da Igreja. Essa paz universal, paz relativamente uni- to, que, justamente, não se chamava nem podia se chamar
versal, definitiva mas relativamente definitiva, é esperada, internacional e público, e que era o mundo do enfrenta-
ao contrârio, de uma pluralidade sem efeitos maiores e úni- menta dos príncipes. Estava-se sempre no litígio, na liqui-
cos de dominação. Já não é da unidade que se faz provir a dação do litígio- você tomou a minha herança, você con-
paz, mas da não-unidade, da pluralidade mantida como fiscou uma das minhas terras, você repudiou minha irmã-,
pluralidade. Vocês estão vendo o quanto estamos agora e eles se batiam, e as guerras se desenvolviam nesse marco
numa perspectiva histórica, mas ao mesmo tempo numa jurídico, que era o da guerra pública e da guerra privada. Era
forma de técnica diplomática bem diferente da que era a da a guerra pública como guerra privada, ou era a guerra pri-
Idade Média, por exemplo, em que era da Igreja que se es- vada que adquiria uma dimensão pública. Estava-se numa
perava a paz, porque ela era a potência única, única e uni- guerra de direito. Aliás, a guerra era liquidada exatamente
ficante. Agora espera-se a paz dos próprios Estados e da co'?o um procedimento jurídico, por uma coisa que era a
sua pluralidade. Mudança considerável. É esse o objetivo, VItona, a qual era como que um julgamento de Deus. Você
para garantir essa segurança na qual cada Estado poderá perdeu, logo o direito não estava do seu lado. Sobre essa
efetivamente aumentar suas forças, sem que o aumento das continuidade entre o direito e a guerra, sobre essa homoge-
suas forças seja causa de ruína para os outros e para ele neidade entre a batalha e a vitória, e o julgamento de Deus,
próprio. remeto-os ao livro de Duby sobre O domingo de Bouvines",
Em segundo lugar, os instrumentos. Os instrumentos em que vocês têm páginas esclarecedoras sobre o funciona-
de que se dota essa razão de Estado, cuja armadura é diplo- mento judicial da guerra.
404 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AUlA DE 22 DE MARÇO DE 1978
405
Agora, vamos ter uma gue:ra que v<;i funcionar de ou-
tra maneira, pois de um lado nao se esta mais numa ~er­ Segundo instrumento, claro, instrumento tão antigo
ra do direito, está-se numa guerra do Estado, da raz~o de quanto a guerra e trunbém profundatnente renovado, é o
Estado. No fundo, já não é necessário alegar uma razao JU- instrumento diplomático. E é nesse momento que se vê
rídica para deflagrar uma guerra. Tem-se perfe1trun:nte o aparecer algo relativrunente novo - bem, aqui vrunos ter de
direito de alegar, para deflagrar uma gu~rra, uma razao pu: precisar as coisas -, em todo caso, uma coisa como o trata-
ramente diplomática - o equih'brio e~ta comprometido, e do de Vestefália é um tratado multilateral em que não se li-
necessário restabelecer o equih'bno, ha um excesso de po- quida um litígio entre várias pessoas, mas em que a totali-
der de um lado e não se pode tolerá-lo. Claro, vai-se achar dade dos Estados, com exceção da Inglaterra, que consti-
um pretexto juridico, mas a guerra se descola desse pretex- tuem esse novo conjunto que é a Europa, vai resolver seus
to jurídico. Em se~do lugar, se a _guerra perde sua conti- problemas, resolver seu conflito~. Ora, resolver isso não
nuidade em relaçao ao dire!lo, voces percebem que ela re- quer dizer, justrunente, seguir as linhas jurídicas prescritas
cupera outra continuidad~ e,essa~~utra contin~~ade, claro, pelas leis e pelas tradições. Não é seguir as linhas jurídicas
é a continuidade em relaçao a política. Essa política que tem prescritas pelos direitos de herança ou pelos direitos do ven-
precisrunente por função manter o equih'brio entre os Esta- cedor, com as cláusulas de resgate, de casrunento, de ces-
dos, essa política que deve assegurar a balança dos Estado~ são. As linhas de força que serão seguidas pelos diplomatas
no âmbito da Europa, é ela que, num dado momento, Vai nesse tratado multilateral são as linhas determinadas pela
ordenar que se entre e~ guerra, que se :ntre em guerra necessidade de um equih'brio. Vão trocar, negociar, transfe-
contra este ou aquele, ate certo ponto, e ate certo ponto so- rir os territórios, as cidades, os bispados, os portos, as aba-
mente, sem que o equih'brio seja por demais coml'rome,ti- dias, as colônias -em função de quê? Portanto, não mais
do com um sistema de alianças, etc. Por consegumte, e a em função do velho direito de herança ou do velho direito
partrr desse momento que aparece o princípio que, como do vencedor, mas em função de princípios físicos, pois se
vocês sabem, será formulado quase duzentos_ anos depms tratará de anexar este território àquele, de transferir esta
por alguém que dirá: "A guerra é a continuaçao da política renda àquele príncipe, de conceder este porto àquele terri-
por outros meios." 23 Mas ele não fazia nad.a 111:rus que c~>J:s­ tório, em função do princípio pelo qual certo equih'brio in-
tatar uma mutação que, na verdade, haVIa s1do adqurnda
ter estatal deve ser estabelecido de maneira que seja o mais
desde o início do século XVII [com a constituição]• da nova
estável possível. É uma física dos Estados, não mais um di-
razão diplomática, da nova razão política no momento do
tratado de Vestefália. Não se deve esquecer que no bronze reito dos soberanos, que vai ser o princípio fundamental
dos canhões do rei da França vinha escrito: Wtzma ratzo re- dessa nova diplomacia. E, em ligação com isso, claro, sem-
. razao.
gum, #a última, a derraderra . "24 ..** Logo, pn -
- d os re1s pre na ordem da diplomacia, vê-se aparecer a criação do
meiro instrumento para fazer func10nar esse s1stema da se- que ainda não se chruna de missões diplomáticas perma-
gurança européia, do equih'brio europeu. nentes, em todo caso a organização de negociações pratica-
mente permanentes e a organização de um sistema de in-
formações sobre o estado das forças de cada país (voltarei a
* M.F.: no momento dessa grande constituição
isso daqui a pouco). Quanto aos embaixadores permanen-
*"' Segue-se uma frase em parte inaudível: I... ] a razão política que
agora se inscreveu no canhão[ ... ]
tes, trata-se, na verdade, de novo, de uma instituição de
longa gênese, que vemos aparecer, instalar-se em fins do
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978 407
406
século XV - início do século XVI, mas a organização cons- urna sociedade, vocês vão encontrá-la claramente formula-
ciente, pensada e permanente de urna diplomacia sempre da num texto do início do século XVlll, no maior teórico do
negociando data dessa época. Ou seja, tem-se a idéia deu~ direito das gentes, que se chama Burlamaqui - trata-se de
dispositivo permanente de relações entre Estados, disposi- Os prindpios do direito da natureza e das gentes" -,que diz: "A
Europa forma hoje um sistema político, um corpo em que
tivo esse que não é nem uma unidade imperial nem a uru-
tudo está ligado por relações e pelos diversos interesses das
versalidade eclesiástica. É a idéia de uma verdadeira socie-
nações que habitam esta parte do mundo. Já não é, como
dade das nações- e não estou empregando uma palavra re-
outrora, um amontoado confuso de peças isoladas, cada urna
trospectiva. A idéia foi efetivamente formulada nesse mo-
das quais se acreditava pouco interessada pela sorte das ou-
mento. Vocês vão encontrá-la em alguém que se chamava tras e raramente se importava com o que não lhe dizia di-
Crucé, que escreveu no início do século XVll uma espécie retamente respeito" - o que, historicamente, é totalmente
de utopia que se chamava O novo Cmea?', na qual ele pro- falso, mas pouco importa, não é assim que acontecia antes,
jeta, por um lado, uma polícia" (tomarei sobre esse ponto mas eis como ele define a situação atual: "A atenção contí-
mais detalhadamente a próxima vez'"), por outro lado, ao nua dos soberanos a tudo o que acontece em seu pais e nos
mesmo tempo e numa correlação absolutamente essencial outros, os ministros sempre residentes [referência aos di-
- e que explica por que, tendo prometido a vocês falar da plomatas permanentes"; M.F.], as negociações perpétuas
polícia, tenho a sensação de ser preciso lhes fal~ an!es das fazem da Europa modema uma espécie de república cujos
organizações diplomático-militares-, uma orgamzaçao per- membros, independentes mas ligados pelo interesse comum,
manente entre os Estados, uma organização de consulta, se reúnem para manter a ordem e a liberdade."
com embaixadores reunidos em permanência numa cidade. Aí está, portanto, como nasce essa idéia da Europa e
Essa cidade seria Veneza, território que ele diz ser neutro e da balança européia. Ela se cristaliza, é claro, com o trata-
indiferente a todos os príncipes'", e esses embaixadores reu- do de Vestefá!ia·", primeira manifestação completa, cons-
nidos permanentemente em Veneza seriam encarregados de ciente, explícita de uma política do equilíbrio europeu, tra-
liquidar os litígios e as contestações e de zelar para que o tado este, como vocês sabem, que tem por função principal
princípio do equilíbrio fosse mantido". . reorganizar o Império, definir seu estatuto, seus direitos
Essa idéia de que os Estados formam entre s1, no espa- em relação aos principados alemães, as zonas de influência
ço europeu, como que uma sociedade, essa idéia de que o~ da Austria, da Suécia e da França sobre o território alemão
Estados são como indivíduos que devem manter entre SI -tudo em função das leis de equilíbrio que na verdade nos
um certo número de relações que o direito deve determinar explicam que a Alemanha podia se tomar, e de fato se tor-
e codificar, foi isso que suscitou nessa época o desenvolVI- nou, o foco de elaboração da república européia. Nunca se
mento do que foi chamado de direito das gentes, o ;us gen- deve esquecer o seguinte: que a Europa, como entidade ju-
tium, que se toma um dos pontos fun?amentais~ um dos fo- rídico-política, a Europa como sistema de segurança diplo-
cos de atividade do pensamento JUndico, particularme~te mática e política, é o jugo que os países mais poderosos
intenso, já que se trata de definir quais vão ser ~s relaçoes (dessa Europa) impuseram à Alemanha cada vez que ten-
jurídicas entre esses novos indivíduos, que coeXIstem num taram lhe fazer esquecer o sonho do imperador adormeci-
novo espaço, a saber, os Estado na Europa, os Estados n~a do, seja ele Carlos Magno, Barba Roxa ou o sujeitinho que
sociedade das nações. E essa idéia de que os Estados sao ardeu na fogueira entre seu cachorro e sua amante num
408 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 22 DE MARÇO DE 1978 409
entardecer de maio* na sede da chancelaria. A Europa é a de guerra; terceiro, um equipamento de fortalezas e de trans-
maneira de fazer a Ale~anha esquecer o Império. Logo, não portes; quarto, enfim, um saber, uma reflexão tática, tipos
há por que se espantar com que, embora o imperador efe- de manobra, esquemas de ataque e de defesa, em suma, toda
tivamente não desperte nunca, a Alemanha às vezes se reer- urna reflexão própria e autônorna sobre a coisa militar e as
ga e diga: "Sou a Europa. Sou a Europa, já que vocês quise- guerras possíveis. Aparecimento, portanto, dessa dimensão
ram que eu seja a Europa." E ela diz isso precisamente aos militar que está longe de se esgotar na prática da guerra. A
que quiseram que ela seja a Europa, e que não seja nada existência de um dispositivo militar permanente, caro, de
mais que a Europa, a saber, o imperialismo francês, a domi- grande envergadura, inteligente, no interior mesmo do sis-
nação inglesa ou o expansionismo russo. Quiseram substi- tema da paz, foi isso, é claro, um dos instrumentos indispen-
tuir, na Alemanha, ao desejo de império, a obrigação da Eu- sáveis à constituição do equilfbrio europeu. De fato, como
ropa. "Pois bem, responde a Alemanha, não tem problema, seria possível manter esse equihbrio se efetivamente cada
porque a Europa será meu império. É justo que a Europa um dos Estados, pelo menos os mais poderosos, não tives-
seja meu império, diz a Alemanha, já que vocês só fizeram se esse dispositivo militar e não fizesse que esse dispositivo
a Europa para impor à Alemanha a dominação da Inglaterra, militar [fosse], em suma, em linhas gerais, globalmente, mais
da França e da Rússia." É bom não esquecer essa pequena ou menos do mesmo nível do dispositivo do seu principal
anedota quando, em 1871, Thiers discutia com o ministro ple- rival? Por conseguínte, a constituição de um dispositivo mi-
nipotenciário alemão que se chamava, creio eu, Ranke e lhe litar que não vai ser tanto a presença da guerra na paz quan-
dizia: "Mas, afinal, contra quem vocês combatem? Nós não to a presença da diplomacia na polftica e na economia, a
temos mais exército, ninguém mais pode lhes opor resis- existência desse dispositivo militar permanente que é urna
tência, a França está esgotada, a Comuna deu o golpe final das peças essenciais numa polftica comandada pelo cálculo
nas possibilidades de resistência, contra quem vocês guer- dos equihbrios, pela manutenção de urna força que se ob-
reiam?" Ranke respondeu: "Contra Luís x:rv; ora bolas!" tém peta guerra, ou pela possibilidade da guerra, ou pela
Então, terceiro instrumento desse sistema diplomáti- ameaça da guerra. Em suma, é um dos elementos essenciais
co-militar, que vai permitir a manutenção da balança euro- nessa concorrência entre os Estados, em que cada um pro-
péia - era portanto, primeiro, a guerra, uma nova forma, cura, evidentemente, inverter a relação de força a seu favor,
urna nova concepção da guerra; segundo, um instrumento mas que todos querem manter em seu conjunto. Aqui tam-
diplomático -, o terceiro instrumento vai ser a constituição bém vemos como esse princípio de Oausewitz, de que a
de um elemento igualmente fundamental e igualmente novo: guerra é a continuação da polftica, teve um suporte, um su-
o estabelecimento de um dispositivo militar permanente porte institucional preciso que foi a institucionalização do
que vai comportar, [primeiro,] urna profissionalização do ho- militar. A guerra já não é urna outra face da atividade dos
mem de guerra, a constituição de uma carreira das armas; homens. A guerra vai ser, num momento dado, a aplicação
segundo, uma estrutura armada permanente, capaz de en- de certo número de meios que a polftica definiu e de que o
quadrar as tropas recrutadas excepcionalmente em tempo militar é urna das dimensões fundamentais e constitutivas.
Temos portanto um complexo polftico-militar, absoluta-
mente necessário à constituição desse equihbrio europeu
"'Lapso evidente. Hitler suicidou-se no dia 30 de abril de 1945, no corno mecanismo de segurança; esse complexo político-mi-
bunker subterrâneo da chancelaria do Reich, em Berlim. litar será posto permanentemente em ação e a guerra será
410 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO

tão-somente uma das suas funções. [É fácil compreender, NorAS


portanto,]* que a relação entre o que é a paz e a guerra, que
a relação entre o civil e o militar vai se manifestar em tomo
de tudo isso ...
Bem, demorei um pouco, perdoem-me. A próxima vez,
vou lhes falar do outro grande mecanismo de segurança
que foi instalado nessa razão de Estado doravante voltada
para o problema da força e do poderio, e esse outro instru-
mento, essa outra grande tecnologia não é mais o disposi-
tivo diplomático-militar, é o dispositivo político de polícia.

1. Sobre esse conceito kantiano, de que Foucault faz um uso


bastante livre aqui, cf. Critique de la raison pure, I, II, "Appendice à
la dialectique transcendantale: De l'usage régulateur des idées de
la Raison pure", trad. fr. A. Tremesaygues & P. Pacaud, Paris, PUF
1968, pp. 453-4: "As idéias transcendentais [... ] têm um excelent~
uso ~egulador, indispensave~ente neçessário: o de dirigir o en-
tendimento para um certo fim, que faz as linhas de direção que
todas as suas regras seguem convergirem num ponto que {... J ser-
ve para lhes proporcionar a máxima unidade com a máxima ex-
tensão."
2. a. aula precedente (15 de março), pp. 341-3.
3. A. Palazzo, Dzscours du gouvernement et de la raison vraye
d'Estat, trad. fr. de Vallieres (citada), rv, 24, pp. 373-4: "Finalmente
razão de Estado é a própria essência da paz, a regra de viver em
repouso e a perfeição das coisas [.. .]"
4. a. aula precedente, pp. 342-3.
"' Conjectura: algumas palavras inaudíveis. 5. Cf. supra, aula de 8 de março, p. 318.
,..,.. O manuscrito acrescenta, p. 20: "4. Quarto instnunento: um apa- 6. Cf. aula precedente, p. 343.
relho de informação. Conhecer suas próprias forças (e, aliás, ocultá-las), 7. Cf. aula precedente, pp. 356 ss.
conhecer a força dos outros, aliados, adversários, e ocultar que as co- 8. Maximiiien de Béthune, barão de Rosny, duque de Sully
nhece. Ora, conhecê-las implica saber em que consiste a força dos Esta-· (1559-1641), ÉconiJmies royales, ed. por J. Chailley-Bert, Paris, Guil-
dos. Onde está o segredo em que isso reside: mistério da Espanha que laumm, s.d. [c. 1820]. Cf. infra, nota 18.
perdeu seu poderio, mistério das Províncias Unidas, um dos Estados 9. A paz de Vestefãlia, definitivamente finnada em Münster
importantes da Europa." no dia 24 de outubro de 1648, ao fim da Guerra dos Trinta Anos:
412 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 22 DE MARÇO DE 1978 413

foi o resultado de cinco anos de intensas e difíceis negociações en- droi~ inte:rzational, t~se de doutoramento em ciências políticas
tre as principais potências européias. Os historiadores distinguem (Umvers1dade de Abc-Marselha), Paris, A Rousseau, 1900, pp.
três grandes períodos: (1) de janeiro de 1643 a novembro de 1645, 67-79.
em que as questões de procedimento estiveram no centro das dis- 13. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que transformou
cussões; (2) de novembro de 1645 a junho de 1647, que permitiu po';co a pouco a Alemanha em campo de batalha da Europa (a
acertar a maior parte das divergências acerca dos alemães e dos Sueaa mterveiO em 1630, a França, após uma "guerra velada", em
holandeses; (3) o ano de 1648, que terminou com a assinatura dos 1635), foi ao mesmo tempo uma guerra civil e o primeiro grande
dois tratados de Münster, entre o Império e a França (Instrnmen- conftit~ internacional a pôr em ação, no século XVII, lógicas de
tum Pacis Monsteriense), e de Osnabrück, entre o Império e a Sué- potencJ.a. Sobre os tratados de Vestefália, que puseram fim a essa
cia (Instrumentum Pacis Osnabrucense) (cf. G. Parker, La Guerre de guerra, cf. supra, nota 9.
Trente Ans, trad. fr. cit. [supra, p. 36, nota 30], p. 269). Os Estados . 1~. Gottfried Wlihelm Leibniz (1646-1717), jurista, matemá-
do Império viram ser-lhes reconhecida de direito a" superioridade tico, filosofo e diplomata, autor dos Ensaios de teodicéia (1710) e da
territorial" (Landeshoheit) que grande parte deles já exercia de fato, Monadologza (1714). Sobre a "força" como expressão física da uni-
havia um século. Quanto ao Império, despojado do seu caráter sa- dade da substância, cf. em particular Specimen dynamicum (1695),
grado, continuou a sobreviver como Estado, mas à custa de certas ed. H. G. Dorsch, Hamburgo, F. Meiner, 1982. Leibniz também é
modificações constitucionais. Para maiores precisões sobre estas autor de certo número de escritos histórico-políticos: cf. Opuscules
últimas, cf. M. Stolleis, Histoire du droit public en Allemagne, 1600- contre la _pai_x de Ryswick, ~ Die werke von Leibniz gemiiss seinem
1800, trad. fr. cit., pp. 335-43. handschriftl!chen Nachlass zn der Bibliothek zu HanniYOer Hanôver
10. Na verdade, os tratados consagraram o reconhecimento Klindworth, 1864-1884, vol. VI, sect. B. Sobre o dinamis~o leibni~
do calvinismo como terceira religião legal do Império, junto com o ziano, cf. M. Guéroult, Leibniz, Dynamique et métaphysique, Paris,
catolicismo e o luteranismo. Aub1er-~ont<ugne, 1967; W. Voisé, "Leibniz's model of politicai
11. Já era, na esteira das "políticas", a atitude adotada por Ri- ~g' ', Organon, 4, 1967, pp. 187-205. Sobre as implicações ju-
chelieu em relação à Casa de Espanha, que levou à entrada em ndico-políticas das suas posições metafísicas, cf. A. Robinet, G. W
guerra declarada em 1635. "Uns são os interesses de Estado que Leibniz. Le meilleur des mondes par la balance de l'Eurupe Paris PUF
ligam os príncipes, outros os interesses da salvação das nossas al-
mas" (Richelieu, in D. L. M. Avenel, org., Lettres, Instructions diplo-
:'o
199~ especialm~nte PP; 235-6: que é 'a balança d; Europa?'~
a !d~1a de u~ f!szca polztico-mzlztar das nações, em que forças anta-
matiques et Papiers d'État du cardinal de Richelieu, t. I, 1608-1624, gorucas vanave1s se exercem em violentos choques aleatórios, uns
Paris, Imprimerie irnpériale, 1854, p. 225). Essa política, baseada uni- :om os outros, uns co~~a os outros. [... J A balança da Europa não
camente no critério dos "interesses de Estado", teve sua primeira e um problema de estatica, mas de dinâmica."
defesa sistemática no tratado de Henri de Rohan, De l'intérêt des 15. Cem anos, considerando-se o período que vai da paz de
princes et des États de la chrétienté, Paris, 1638; ed. estabelecida por Augsburgo (1555), que reconhecia a cada Estado, no seio do Im-
Ch. Lazzeri, Paris, PUF, 1995. Cf. F. Meinecke, I:Idée de la rnison pério, o direito de praticar a religião (católica ou luterana) que ele
d'État dans l'histoire des Temps modernes, trad. fr. cit. [supra, p. 148, confessava - prinápio chamado mais tarde cujus regia, ejus religio -,
nota 5], livro I, cap. 6, "La doctrine des intérêts des États dans la e consagrava, com isso, o fim do Império medieval, à paz deVes-
France de Richelieu" (sobre Rohan, cf. pp. 150-80). tefália (1648).
12. Esse conflito, que opôs a França e a Espanha a uma coli- 16. Francesco Guicciardini (1483-1540), Storin d'Italia, L 1, Fio-
gação européia (Quádrupla Aliança) de 1701 a 1714, em conse- renza, appresso Lorenzo Torrentino, 1561 (ed. incompleta); Gene-
qüência da subida de Felipe V, neto de Luís XIV; ao trono da Espa- bra, Stoer, 1621; reed. Turim, Einaudi, 1970, a cura di Silvana Sei-
nha, terminou com os tratados de Utrecht e de Rastadt. Cf. L. Don- dei,Menchi, pp. 6-7: "E conoscendo che alia republica florentina e
nadieu, La théorie de l'équilibre. Étude d'histoire diplomatique et de a se propno sarebbe molto pericoloso se alcuno de' maggiori po-
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tentati ampliasse piú la sua potenza, procurava con ogni studio outros, desconfianças, invejas, nem temor de serem oprimidos
che le cose d'ltalia in'modo bilanciate si mantenessino che piú in por aqueles."
una che in un'altra parte non pendessino: il che, senzala conser- 19. O. o segundo e terceiro desígnio do rei expostos por Sully,
vazione della pace e senza vegghiare con somma diligenza ogni ap. eit., p. 365a: "[ ... } associar tantas potências soberanas quanto
accidente benché minimo, succerede non poteva." I Histoire d'Ita- possível ao desígnio de reduzir todas as monarquias hereditárias a
lie, trad. fr. ).-L. Foumel & j.-Cl. Zancarini, Paris, Robert Laffont, uma força quase igual, tanto em extensão de país como em rique-
''Bouquins", 1996, p. 5: "E, consciente de que, para a república flo- zas, a fim de que as por demais excessivas de uns não lhes façam
rentina e para si mesmo seria perigosíssirno que um dos mais po- ter o desejo de oprimir os fracos, e a estes o temor de poder sê-lo",
derosos aumentasse ainda mais sua força, ele [::::: Lourenço de Me- "[ ... ] tentar pôr entre as quinze dominações, que deveriam com-
diei] fazia de tudo para que as coisas da Itália se mantivessem equi- por a cristandade da Europa, limites tão bem ajustados entre as
libradas, que a balança não pendesse mais para um lado que para que são limítrofes e regulamentar de forma tão equitativa a diver-
o outro; o que não podia suceder sem a consenração da paz e sem sidade de seus direitos e pretensões, que nunca mais possam en-
vigiar, com suma diligência, todos os acontecimentos, mesmo que trar em disputa".
fossem mínimos." 20. Sobre essa questão, além da tese de Donnadieu, que é a
17. Cf. Recuei! des instructions données aux ambassadeurs et mi- principal fonte de Foucault, cf. E. Thuau, Raison d'État ..., pp. 307-9,
nistres de France, depuis les traités de Westphalíe jusqu'à la Révolution e o artigo de G. Zeller a que este último remete ("Le principe
Jrançaise, XXVlll, Estados alemães, t. 1: I.:Électorat de Mayence, org. d'équilibre dans la politique intemationale avant 1789", Revue his-
G. Livet, Paris, Éd. du CNRS, 1962; t. 2: I.:Électorat de Cologne, 1963; torique, 215, jan.-mar. de 1956, pp. 25-57).
t. 3: I.:Électorat de Tréves, 1966. Ver também a coleção das Acta Pacis 21. Christian von Wolff, Jus gentium methodo scientifica pertrac-
Westphalicae, em curso de publicação desde 1970, com organiza- tatum, Halle, in officina libraria Rengeriana, 1749, cap.VI, § 642, ci-
ção de K Repgen, no ãmbito da Nordrhein-Westfãlische Akade- tado por L. Donnadieu, La Théorie de I'équilibre, p. 2, n. 5, que acres-
mie der Wissenschaften (Serie II. Abt. B: Díe franzOsischen Korres- centa: "Talleyrand se aproxima de Wolff: 'O equihbrio é uma rela-
pondenzen, Münster, Aschendorf, 1973). ção entre as forças de resistência e as forças de agressão recíproca
18. Maximilien de Béthune, barão de Rosny, duque de Sully, de diversos corpos politicos' ('Instruction pour le congres de Vienne',
Mémoires des sages et royales oeconomies d'Estat, domestiques, politi- Angeberg, p. 227)."
ques et militaires de Henri le Grand, Paris, "Nouvelle Collection des 22. G. Duby, Le Dimanche de Bouvines, Paris, Gallimard ("Tren-
mémoires pour servir à l'histoire de France", éd. Michaud & Pu- te joumées qui ont fait la France"), 1973, notadarnente pp. 144-8.
joulat, t. 2, 1837, cap. C, pp. 355b-356a. a. E. Thuau, Raison d'État 23. C von Oausewitz, Vom Kriege, ed. estabelecida por W.
et Pensée politique à l'époque de Richelieu, op. cit., p. 282, que reme- Hahlweg, Bonn, Dümmlers Verlag, 1952, livro I, cap. 1, § 24 I De la
te ao artigo de Ch. Pfister, "Les 'Oeconomies royales' de Sully et guerre, Paris, Minuit, 1955; trad. fr. De Va!Iy, revista e completada,
!e Grand Dessein de Henri IV", Revue historique, 1894 (t. 54, PP· Paris, Lebovici, 1989. Comparar essa análise com a desenvolvida
300-24; t. 55, pp. 67-82 e 291-302; t. 56, pp. 39-48 e 304-39).A ex- no curso de 1975-1976, "ll faut défendre la société", op. cit., pp. 146-7.
pressão "magnífico desígnio" é citada por L. Donnadieu, La Théo- A fórmula de Clausewitz era apresentada aí, não como o prolon-
rie de l'équilibre, p. 45, acompanhada do seguinte extraio das Oe- gamento da nova razão diplomática, mas como uma reviravolta na
conomies rUIJales (éd. Petitot, VII, 94): "Tomar todos os quinze relação entre guerra e política definida, nos séculos XVII-XVIII,
grandes potentados da Europa cristã aproximadamente de uma pelos historiadores da guerra das raças.
mesma igualdade de força, reino, riqueza, ext>ensão e dominação, 24. Sobre essa fórmula, cf. a declaração dos príncipes do Im-
e estabelecer para tudo isso marcos e limites tão bem ajustados e pério (a 23~ observação em resposta à circular enviada pelos ple-
mutuamente temperados, que não possam vir aos que seriam os nipotenciários franceses, em 6 de abril de 1644, para convidá-los a
maiores e mais ambiciosos desejos e avidez de crescer, nem aos enviar representantes às conferências de Münster), citada por G.

J
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AULA DE 22 DE MARÇO DE 1978
417
Livet, I:Équilibre européen, Paris, PUF, 1976, p. 83: "Vimos inscri-
ções, retratos do rei da França, em que ele é denominado conquis- os conlins dos Reinos e Senho . -
tador do Universo, vimos em seus canhões este pensamento - o
que os tira e transfere uando ~as sao postos pela mão de Deus,
último argumento dos reis - que exprime perfeitamente seu gênio respeito ao status quo, !nfonne ~nde m~lho.r ~e aprouver". Esse
usurpador." tante do princípio dinâmico do eq:~~o e divma, está muito dis-
25. "Em Munster, em tomo do núncio e do representante de 31. Jean-jacques Burlarna . (1 . . .
de la nature et des gens art IV qw 694-1748), Pnne~pes du droit
Veneza, sentam-se, além das potências em guerra na Alemanha la Yverdon, 1767-1768 lvo~. ' cap. II, ed. póstuma por De Felice,
França e a Suécia], a Espanha, as Províncias Unidas, Portugal, a
Savóia, a Toscana, Mântua, os Cantões sillços, Florença" (G. Livet,
Dup~, Paris, chez B. Warée, l8~;;va ed. r€V!sta e corrigida por M.
La Theorie de l'équilibre p 46 , 5 vols., Citado por L. Donnadieu,
Ln Guerre de Trente Ans, Paris, PUF, 1963, p. 42). maqui são encontrad;s p~ que acrescenta: '1\.s idéias de Burla-
26. Emeric Crucé (Ernery La Croix, 1590? -1648), Le Nouveau gens." Cf. E. de VatteL i, Dro;';;;yor palavra,_ em VatteL Droit des
Cynée, ou Discours d'Estat representant les occasions & moyens d'éta- refie ... , ill, 3, § 47 ("De I'É uilib gens• ou,Pnne~pes de la loi natu-
blir une paix generalle & la liberlé du commerce par tout le monde, Pa- t. 2, pp. 39-40. q re politique ), Londres, [s.n.], 1758,
ris, chez Jacques Villery, 1623, reed. 1624; repr. EDHIS (Éditions
32. Corno L. Donnadieu p . .
d'histoire sociale), Paris, 1976. Cf. L.-P. Lucas, Un plan de paix gé- dos deVestefália consagraram recisda, op. Cll., p. 27, n. 3: "Os trata-
nérale et de liberté du commerce au XVII' siecle, Le Nouveau Cynée .
"Vem em parte sua grande infl " . o uso os emb"';""d
....a.I\Q.ores. Eis de onde
d'Emeric Crucé, Paris, L.Tenin, 1919; H. Pajot, Un réveur de paix sous 33 . Sobre a paz de Vest fáli uencra sobre 0 Equihb · ,
no.
Louis XIII, Paris, 1924; E. Thuau, Raison d'État..., p. 282. Crucé não vários tratados cf (novarnenet ) a, que se compõe na realidade de
fala de "sociedade das nações", mas de "sociedade humana" (op. ' · e supra, nota 9.
cit., prefácio [não paginado]): "[ ...] a sociedade humana é um cor-
po cujos membros têm uma simpatia, de maneira que é impossí-
vel que as doenças de um não se comuniquem aos outros". Cf.
ibid., p. 62.
27. Ibid., prefácio (não paginado): "[...] este pequeno livro con-
tém uma polícia universaL útil indiferentemente a todas as nações
e agradável aos que têm alguma luz de razão" (ver o texto a par-
tir da p. 86).
28. Foucault tomará, na próxima aula, sobre a questão da po-
lícia, mas não sobre a análise que Crucé dela faz.
29. Op. cit., p. 61: "Ora, o lugar mais côrnodo para tal assem-
bléia é o território de Veneza, por ser como que neutro e indiferen-
te a todos os Príncipes, além de ser próximo das mais assinaladas
Monarquias da terra, as do Papa, dos dois Imperadores e do Rei de
Espanha."
30. Interpretação bastante livre do texto de Crucé. a. ibid., p.
78: "[ ... ] nada pode garantir um Império a não ser urna paz geral,
cujo mecanismo principal consiste na limitação das Monarquias,
de modo que cada Prínctpe se contenha nos limites das terras que
possui atualmente e que não os ultrapasse por nenhuma preten-
são. E, se ele se achar ofendido por tal regulamento, considere que
AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978

O segundo conjunto tecnológico característico da nova


arte de governar segundo a razão de Estlldo: a polícia. Signiji-
C'Llções tradicionais da palavra até o século XVI. Seu novo sen-
tido nos séculos XVII-XVlli: cálculo e técnica garantem o bom
emprego das forças do Estlldo. - A tripla ,.lação entre o sis-
tema do equilíbrio europeu e a polícia.- Diversidade das situ-
ações itll/iana, alemã e francesa.- Thrquet de Milyerne, A mo-
narquia aristodemocrática. - O controle da atividade dos ho-
mens romo elemento constitutivo da força do Estlldo. - Objetos
da policia: (1) o número de cidadãos; (2) as necessidades da
vida; (3) a saúde; (4) as profissões; (5) a coexistência e a circu-
lação dos homens. -A polícia como arte de administrar a vida
e o bem-estilr das populações.

[M. Foucault pede desculpas pelo atraso, devido a um en-


garrafamento.] Terei uma segunda má notícia a lhes dar, mas
vou dá-la no fim ... Bem, essa nova arte de governar, aquela
que, como procurei lhes mostrar, tinha se tomado - este é
o primeiro ponto - uma das funções, um dos atributos ou
uma das tarefas da soberania, que, como procurei lhes mos-
trar, tinha encontrado seu princípio fundamental de cálcu-
lo na razão de Estado, creio que o essencial da novidade des-
sa nova arte de governar (foi o que procurei lhes mostrar na
última vez) está em outra coisa. Ou seja, não se trata mais,
para essa arte de governar que, evidentemente, havia sido
esboçada desde havia muito, não se trata mais, para ela, a
partir do fim do século XVI - inicio do século XVTI, não se
trata mais, para ela, conforme a antiga fórmula, de se con-
formar, de se aproximar, de permanecer conforme à essên-
cia de um governo perfeito. Doravante, a arte de governar
vai consistir, não em restituir uma essência ou em perma-
necer fiel a ela, vai consistir em manipular, em manter, em
distribuir, em restabelecer relações de força, e relações de
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força num espaço de concorrência que implica crescimentos Ou ainda,_ vocês enco~tram freqüentemente as duas pala-
competitivos. Em outras palavras, a arte de_g;ovemar se de- vras assoaad?s: as republicas e as polícias. Não se dirá que
senrola num campo relacional de forças. E e ISSo, a meu ver, uma f~a e uma polícia, não se dirá que um convento é
o grande limiar de modernidade dessa arte de governar.. . uma p~lí~a, porque falta precisamente o caráter de autori _
Manifestar-se num campo relacional de forças signifi- dade publica qu~ se exerceria sobre ela. Mas é, de qualquer
ca concretamente, instalar dois grandes conjuntos de tec- mo~o, uma espec~e de sociedade relativamente mal defini-
n~logia política. Um, de que lhes falei na última ;rez, é um da, e uma coisa publica. Esse uso da palavra "polícia", nes-
conjunto constituído pelos proc~~mentos necessru;os e su- se sentido, VaJ durar praticamente até o irúcio do século
ficientes à manutenção do que 1a se chamava na epoca de XVII. Em se_gundo lugar, chama-se também de "polícia",
balança da Europa, o equihorio europeu, isto é, em s=-a, a amda nos seculos XV e XVI, o conjunto dos atas que vão
técnica que consiste em organizar, ordenar a composiçao e preCisamente, reger es:as comunidades sob autoridade pú-
a compensação interestatal das forças, e !sso graça~ a uma blica. As~,rrn <; 9ue voces encontram a expressão quase tra _
dupla instrumentação: uma instrumentaçao diplomatica, di- diaonal polícia e reg~mento", "regimento" empregado no
plomacia permanente ,e multilateral, de um lado~ e, de outro, senti~o d; ~~erra de res.er, maneira de governar, associa_
organização de um exemto profiss10nal. Eis o pnmerro gran- do a políaa . Enfim, voces têm o terceiro sentido da pala-
de conjunto tecnológico característico da nova arte de go- vra ."polícia", que é simplesmente o resultado, 0 resultado
vernar num campo concorrencial de forças. positivo e v~orizado de um bom governo. Eis, em línhas
O segundo grande conjunto tecnológico, aquele de que gerais, ?S tr~s Sigruficados algo tradicionais que encontra-
gostaria de lhes falar hoje, é algo que na época se chamava mos ate o seculo XVI. .
de "polícia", e deve ficar bem claro que terr:' multo pouco a , _ür~; a f>artir do século XVII, parece-me que a palavra
ver- um ou dois elementos em comum, nao malS- com o polícia . VaJ começar a adquirir um significado profunda-
que iria se chamar, ~o fim do século xvrr_r, de polícia. Em mente diferente. Creio que podemos resumi-lo, grosso modo
outras palavras, do seculo XVII ao fim do seculo XVIII, a pa- da segumte maneira. A partir do século XVII, vai-se come~
lavra "polícia" tem um se~tido totalrnen:_ediferente do que ~ar a c~amar de "polícia" o conjunto dos meios pelos quais
hoje entendemos'. Aproposito_dessa polícia, gostana de fa- e passiVei fazer as forças do Estado crescerem, mantendo
zer três conjuntos de observaçoes. . ao mesmo t<;rnpo a boa or~em desse Estado'. Em outras pa-
Em primeiro lugar, claro, so,bre o sentido_ da_ralavra ~vras, a políCia VaJ ser o cálculo e a técnica que possibilita-
Digamos que no século XV, no seculo XVI, voces Ja encon- r~o estabelecer _uma relação móvel, mas apesar de tudo es-
tram com freqüência essa palavra - "polícia" .- designando, tavel e controlavel, entre a ordem interna do Estado e 0
naquele momento, um certo número de cmsas. Pnmerro, m;s=ento das suas forças: Há uma palavra, alíás, que ex-
chama-se de "polícia" simplesmente uma forma de comu- pnme em boa parte esse objeto, esse domínio, que designa
nidade ou de associação que seria, numa palavra, reg~da por bem essa relaçao entre o crescimento das forças do Estado
uma autoridade pública, uma espécie de socied~de huma- e sua boa, ordem. Essa palavra algo estranha vocês vão en-
na, na medida em que algo como um poder polí!'co,_ como contrar van";s vezes para caracterizar o objeto da polícia.
uma autoridade pública, se exerce sobre ela. Voces vao :n- Vão encontra-la no irúcio do século XVII num texto sobre 0
contrar com muita freqüência expressões, enumer";çoes qual terei a oportunidade de tomar várias vezes, um texto
como esta: os estados, os principados, as cidades, as polícias. de Turquet de Mayeme, que tem o curioso nome de A mo-
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narquia aristodemocrática, texto de 1611 Tomarão a encon- hb~f de certo modo, apesar do crescimento do Estado· é 0
3

trá-lo cento e cinqüenta anos mais tarde, num texto alemão pro ema do equilíbrio europeu. O problema da políci~ vai
de Hohenthal, em 1776'. E essa palavra é simplesmente a ser: como, mantendo a boa ordem no Estado, fazer que
palavra "esplendor". A polícia é o que deve assegurar o es- suas forças_ cresçam ao máximo. Primeira relação portanto
plendor do Estado. Turquet de Mayeme, em 1611, diz: "Tu- entre a pohcra e o equilíbrio europeu. ' '
do o que pode proporcionar ornamento, forma e esplendor
~m segundo lugar, relação de condicionamento por-
à cidade"- é disso que a polícia deve se ocupar'. E Hohen-
que e eVIdente que nesse espaço de competição inter~statal
thal, em 1776, diz, retomando de resto justamente a defini-
que ~e abnu amplamente no decorrer do século XVI, no fim
ção tradicional: "Aceito a definição dos que chamam de po-
do seculo XVI, e que tomou o lugar das rivalidades dinásti-
lícia o conjunto dos meios que servem ao esplendor de todo
cas, nesse ~'5paço de concorrência, não digo generalizada,
o Estado e à felicidade de todos os cidadãos."' O que é es-
plendor? É ao mesmo tempo a beleza visível da ordem e o de concorrencJa :uropéia entre os Estados, está entendido
brilho de uma força que se manifesta e que se irradia. Por- que a manutençao do equilíbrio só é adquirida na medida
tanto, a polícia é de fato a arte do esplendor do Estado como en; que cada um dos Estados é capaz de fazer crescer sua
ordem visível e força brilhante. De uma maneira mais ana- propna força e nun;a proporção tal, que ele nunca seja su-
litica, é esse tipo de definição da polícia que vocês encon- perado por outro. So se pode efetivamente manter a balan-
tram naquele que foi, afinal, o maior dos teóricos da polícia, ça e o equihbno na Europa na medida em que cada um dos
um alemão que se chama von Justi', que, nos Elementos ge- Es~ados tenha uma boa polícia que lhe pennita fazer suas
rais de polícia, em meados do século XVTII, dava esta defini- propnas forças crescerem. E, se o desenvolvimento não for
ção da polícia: é o conjunto das "leis e regulamentos que relativamente paralelo entre cada uma dessas polícias va-
dizem respeito ao interior de um Estado e procuram conso- mos ~er fatos de desequihbrio. Cada Estado, para não ~er a
lidar e aumentar o poderio desse Estado, que procuram fa- relaçao ~as forças se inverter em seu desfavor, deve ter uma
zer·um bom uso das suas forças'". O bom uso das forças do boa polícia. E chegaremos rapidamente à conseqüência de
Estado - é esse o objeto da policia. certo modo paradoxal e inversa, que consistirá em cfuer
A segunda observação que quero fazer é que vocês po- mas, ";!'inal,_ se no equilíbrio europeu há um Estado, mesm~
dem ver como são estreitas as relações entre essa definição que nac; seJa o meu, que tenha uma má polícia, vamos ter
da polícia, que é tradicional, canônica nos séculos XVII- um fenomeno de desequilíbrio Por consegum·te , .
1 · , e precrso
xvm, e os problemas do equilíbrio da balança da Europa. ze ar para que, mesmo nos outros Estados, a polícia seja
Relação morfológica primeiro, porque, no fundo, o equilí- boa. Portanto, o equihbno europeu vai funcionar como olí-
brio europeu, essa técnica diplomático-militar da balança cra de certo ':lodo interestatal ou como direito. O equnh,rio
consistia em quê? Pois bem, em manter um equilíbrio entre europeu dara ao conjunto dos Estados o direito de zelar
forças diferentes, múltiplas, que tendiam cada urna a crescer para que_ a polícia seja boa em cada um desses Estados É a
de acordo com seu próprio desenvolvimento. A polícia tam- consequencra que será tirada, de forma sistemática, exrlíci-
bém vai ser, mas de certo modo no sentido inverso, certa ta, formulada, em 1815, com o tratado de Viena e a política
maneira de fazer crescer ao máximo as forças do Estado, de da Santa Aliança'.
um Estado, mantendo porém sua boa ordem. Num caso, , . E:mm, em ter:eiro lugar, entre equilíbrio europeu e po-
trata-se de manter- e é esse o objetivo principal-um equi- lícia ha uma relaçao de Instrumentação, no sentido de que
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há pelo menos um instrumento comum. Esse instrumento O ter~eiro conjunto de observações que eu gostaria de
comum ao equihorio europeu e à organização da polícia é o lhes_fazer e o segurnte: esse projeto de polícia, em todo caso
quê? É a estatística. Para que o equihorio seja efetivarnente a 1de1a de que deve haver em cada Estado uma arte comum
mantido na Europa, é preciso que cada Estado possa, pri- de fazer as forças constitutivas desse Estado crescerem esse
rneiro conhecer suas próprias forças, segundo conhecer, proJeto não~a~sumi,:t, é claro, a mesma forma, o mesm'o ar-
apreciar as forças dos outros e, por conseguinte, estabelecer cabouço teonco, nao se dotou dos mesmos instrumentos
uma comparação que possibilitará, justamente, acompanhar nos dif;rentes Estados. Enquanto os elementos de que lhes
e manter o equihorio. É necessário portanto um princípio fale1 ateaqm, por exemplo, a teoria da razão de Estado ou o
de decifração das forças constitutivas de um Estado. É ne- dispos1tivo. do equihorio europeu, foram em suma noções
cessário saber, de cada Estado, do seu e dos outros, qual a ou dispositivos compartilhados, claro que com modulações,
população, qual o exército, quais os recursos naturais, qual pela rnruona dos pruses europeus, no caso da polícia as coi-
a produção, qual o comércio, qual a circulação monetária - sas aconteceram, a meu ver, de maneira diferente, e não en-
todos estes, elementos que são efetivamente dados por essa contr~os aqui, em absoluto, nem as mesmas formas de
ciência, ou antes, por esse dorninio do conhecimento que se reflexao, nem_as mesmas institucionalizações da polícia nos
abre e se funda, se desenvolve nesse momento e que é a es- diferentes pruses europeus. Isso certamente precisaria ser
tatística. Ora, corno se pode estabelecer a estatística? Pode- estudado em detalhe. A título de indicação e de hipótese,
se estabelecê-la justamente pela polícia, porque a polícia, de forma vaga, por assnn dizer, pode-se afirmar o seguinte,
corno arte de desenvolver as forças, supõe que cada Estado cre1o eu.
identifique exatamente quais são as suas possibilidades, as . No caso da Itália, o que foi que aconteceu? Pois bem,
suas virtualidades. A estatística se torna necessária por cau- cunosamente, enquanto a teoria da razão de Estado foi mui-
sa da polícia, mas também se torna possível por causa da to desenvolvida aí, enquanto o problema do equihorio foi
polícia. Porque é justamente o conjunto dos procedimentos =.J:roblema importante e freqüentemente comentado, a
instaurados para fazer as forças crescerem, para combiná- polícia~ :rn compensação, não aparece. Não aparece corno
las, para desenvolvê-las, é todo esse conjunto, numa pala- mst:tuiçao n:rn tampouco corno forma de análise e de re-
vra, administrativo que vai permitir que se identifique em flexao. Poden~os dizer o seguinte: talvez a fragmentação
cada Estado em que consistem suas forças, onde estão as temtonal da Itália, a relativ~ estagnação econôrnica que ela
possibilidades de desenvolvimento. Polícia e estatística se experu;:entou a partir do seculo XVII, a dominação política
condicionam mutuamente, e a estatistica é, entre a polícia e e econorruca d_o estrangeiro, a presença, também, da Igreja
o equihorio europeu, um instrumento comum. A estatística corno mstituiçao univer~alista e, ao mesmo tempo, localiza-
é o saber do Estado sobre o Estado, entendido corno saber da, dommante na penmsula e ancorada tenitorialmente
de si do Estado, mas também saber dos outros Estados. E é mun lugar preciso da Itália, tudo isso, enfim, talvez tenha
nessa medida que a estatística vai se encontrar na articula- fe1to que a problemática do crescimento das forças nunca
ção dos dois conjuntos tecnológicos. tenha podido se estabelecer realmente, ou antes, foi perpe-
Haveria um quarto elemento de relação essencial, fun- tu:unente atravess_ada e obstruida por outro problema, do-
damental, entre polícia e equihorio, de que procurarei lhes mmante para a Itália, que era justamente o equihorio des-
falar a próxima vez: é o problema do comércio. Vamos dei- s~ forças plurrus, runda não unificadas e talvez não unificá-
xá-lo de lado por enquanto. veis. No fundo, desde a grande fragmentação da Itália, a
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questão sempre foi, antes de tudo, a da composição e com- sobre o seu território, a idéia imperial, mas debilitada, se
pensação das forças, isto é, primado [da] diplomacia. E o pro- não anulada, por esse mesmo tratado de Vestefália, vimos
blema do crescimento das forças, desse desenvolvimento constituírem -se esses novos Estados, se não modernos, pelo
concertado, ponderado, analítico das forças do Estado, só menos intermediários entre as estruturas feudais e os gran-
pôde vir depois. Era sem dúvida verdade antes da unidade des Estados, que se tornaram espaços privilegiados para a
italiana e é sem dúvida verdade também depois de a unida- experimentação estatal. E esse aspecto laboratório viu-se
de italiana ter sido realizada e de algo como um Estado ita- sem dúvida reforçado pelo seguinte fato: de que a Alema-
liano ter se constituído, um Estado que nunca foi verdadei- nha, ao sair de uma estrutura feudal, não tinha em absolu-
ramente um Estado de polícia, no sentido dos séculos XVII- to o que tinha a França, um pessoal administrativo já cons-
XVIII, é claro, e que sempre foi um Estado de diplomacia, tituído. Ou seja, para fazer essa experimentação foi neces-
isto é, um conjunto de forças plurais, entre as quais um equi- sário dotar-se de um novo pessoal. Esse novo pessoal era
líbrio precisa ser estabelecido, entre os partidos, os sindica- encontrado onde? Era encontrado numa instituição que
tos, as clientelas, a Igreja, o Norte, o Sul, a máfia, etc.- tudo eXJstia por toda a Europa mas que, nessa Alemanha assim
isso, que faz que a Itália seja um Estado de diplomacia sem fragmentada e, principalmente, dividida entre católicos e
ser um Estado de polícia. E é isso que talvez faça que, jus- protestantes, adquiriu uma importãncia muito maior do que
tamente, urna guerra, ou uma guerrilha, ou uma quase guer- em qualquer outra parte: a universidade. Enquanto as uni-
ra seja a forma de existência permanente do Estado italiano. versidades, na França, não paravam de perder seu peso e sua
No caso da Alemanha, a divisão territorial produziu influência por um certo número de razões, que eram tanto
paradoxalmente um efeito totalmente diverso. Teve-se, ao o desenvolvimento administrativo quanto o caráter domi-
contrário, uma superproblematização* da polícia, um desen- nante da Igreja católica, na Alemanha as universidades tor-
volvimento teórico e prático intenso do que deve ser a po- naram-se ao mesmo tempo lugares de formação desses ad-
lícia como mecanismo de ampliação das forças do Estado. ministradores que deviam assegurar o desenvolvimento das
Seria preciso procurar identificar as razões pelas quais uma forças do Estado e de reflexão sobre as técnicas a empregar
fragmentação territorial que, na Itália, produziu [um] efeito, para fazer crescer as forças do Estado. Daí o fato de que nas
produz na Alemanha um efeito exatamente inverso. Passe- universidades alemãs vocês vêem se desenvolver uma coi-
mos por cima dessas razões. O que gostaria simplesmente sa que não teve praticamente equivalente na Europa e que
de indicar a vocês é o seguinte: pode-se pensar que esses é a Polizeiwissenschaft, a ciência da política"; essa ciência da
Estados alemães que haviam sido constituídos, reordena- polícia que, desde o meado, quer dizer, desde o fim do sé-
dos, às vezes até criados no momento do tratado de Veste- culo XVII até o fim do século XVIII, vai ser uma especialida-
fália, em meados do século XVII, esses Estados alemães de totalmente alemã, uma especialidade alemã que se di-
constituíram verdadeiros pequenos laboratórios microesta- fundirá pela Europa e que terá uma influência capital. Teo-
tais, que puderam servir de modelo e como que de locais de rias da polícia, livros sobre a polícia, manuais para os admi-
experimentação. Entre estruturas feudais recombinadas pelo nistradores, tudo isso proporciona uma enorme bibliografia
tratado de Vestefália e tendo acima da Alemanha, pairando da Polizeiwissenschaft no século XVIII".
Na França, creio que temos uma situação que não é
nem a situação italiana nem a situação alemã. O desenvol-
* Palavra entre aspas no manuscrito. vimento rápido, precoce da unidade territorial, da centrali-
428 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978 429
zação monárquica, também da administração, fez que a pro- polícia, para o quai os franceses não tinham essa palavra.
blematização da polícia não se tenha feito em absoluto com Essa utopia de um Estado de polícia, de 1611, foi redigida
base nesse modo teórico e especulativo que podemos ob- por alguem que se_ cha1lla Turquet de Mayerne, e nesse tex-
servar na Alemanha. Foi de certa maneira no interior mes- to, portanto, CUJO titulo e A monarquia aristodenwcrática, Tur-
mo da prática administrativa que a polícia foi concebida, quet de Mayerne começa definindo a polícia como "tudo o
mas concebida sem teoria, concebida sem sistema, concebi- que deve dar [eu já citei esse texto para vocês; M.F.] orna-
da sem conceitos, praticada, por conseguinte, instituciona- mento, forma e esplendor à cidade"". É "a ordem de tudo
lizada, através das medidas, dos decretos, dos conjuntos de ? que se poderia ver" na cidade". Por conseguinte, a polícia
éditos, através de criticas também, dos projetos vindos não e de fato, tomada nesse nível, exatamente a inteira arte de
da universidade, de maneira nenhuma, mas de personagens governar. Arte de governar e exercer a polícia são, para Tur-
que giravam em torno da administração,seja por serem eles quet de Mayeme, a mesma coisa". Mas se agora quiserem
próprios administradores, seja por desejarem entrar na ad- saber efetiYaJllente como exercer a polícia, bem, diz Turquet
ministração, seja por terem sido expulsos dela. Encontra- de Mayerne, e precrso que em todo bom governo haja qua-
mo-la igualmente em pedagogos, em particular nos peda- tro grandes oficros e quatro grandes oficiais'": o Chanceler
gogos dos príncipes: vocês têm uma teoria da polícia, por para cuidar da justiça; o Condestável, para cuidar do exér ~
exemplo, em Fénélon12, outra, interessantíssima, no abade cito; o Supenntendente, para cuidar das finanças - tudo isso
Fleury", em todos os que foram preceptores dos delfins. De já são instituições existentes - e um quarto alto oficial que
sorte que vocês não vão encontrar na França grandes edifí- seria, diz_ ele, "Conservador e reformador-geral da polÍcia".
cios assemelhados à Polizeiwissenschaft [alemã], [nem tam- Qual sena seu papel? Seu papel seria manter entre o povo
pouco] esta noção, que foi tão importante na Alemanha, de [aqUI eu Cito; M.F.] "uma singular prática de modéstia, ca-
Polizeistaat, Estado de polícia. Encontrei-a - claro que sob ndade, lealdade, indústria e harmonia'"'. Tornarei sobre isso
reserva, acho que a encontraríamos em outros textos -, mas daqui a pouco.
enfim encontrei uma vez em Montcluétien, no seu Tmtado de Agora, esse alto oficial, que está portanto no mesmo
economia política, a expressão "Estado* da polícia", que cor- nível do chanceler e não tem superintendente, esse conser-
responde exatamente ao Polizeistaat dos alemães". vador da polícia, vai ter quem sob as suas ordens nas dife-
É essa a situação geral desse problema da polícia. Bem, rentes regiões do país e nas diferentes provindas? Desse
agora uma pergunta: de que a polícia se ocupa realmente, conservador-~eral da po_lícia dependerão em cada província
se é verdade que seu objetivo geral é o aumento das forças quatro escntonos que sao portanto os derivados diretos, os
do Estado em tais condições que a própria ordem desse Es- subordinados diretos _do conservador de polícia. O primei-
tado não só não se veja comprometida, mas fortalecida? ro ~em por _nome Brro de Polícia propriamente dita, e esse
Vou pegar um texto de que já lhes falei, texto muito preco- Brro de Polícra propnamente dita tem por encargo o quê?
ce, pois data bem do início do século xvn, e que é uma es- Em_pnmerr'? lu~, a mstruç~o das crianças e dos jovens. Esse
pécie de utopia justamente daquilo que os alemães teriam Brro de Polícra e que devera cuidar que as crianças apren-
imediatamente chamado de um Polizeistaat, um Estado de dam as letras, e por letras, diz Turquet de Mayerne, enten-
d:-se tudo o que é necessário para prover a todas as fun-
çoes_do remo, o ,~ue port~to é necessário para exercer uma
"' Com maiúscula no manuscrito. funçao no remo . Deverao aprender, evidentemente, a pie-
AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978 431
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
430
Este regulará (passo rápido sobre ele) os problemas do mer-
dade e enfim, deverão aprender as armas". Esse Birô de Po- cado, os problemas de fabricação, de modo de fabricação, e
lícia q~e cuida da instrução, das crianças e.dos jovens deve- deverá favorecer o comércio em toda a província". Enfim,
rá também se ocupar da profissão de cada um. Quer dizer quarto birô, o Birô do Domfnio, que se ocupará dos bens
que, terminada a formaçã~\ quand~ o ra~az fizer 25. anos, imobiliários: evitar, por exemplo, que os direitos senhoriais
deverá se apresentar ao Brro de Polícia. La ele devera ru:er pesem demais sobre o povo, zelar pela compra e pela ma-
que tipo de ocupação quer ter na VIda, seJa ele nco ~u nao, neira como se compram e se vendem os bens fundiários,
queira ele enriquecer ou querra Simplesmente de.leitar-se. zelar pelo preço dessas vendas, manter o registro das he-
De todo modo, deve dizer o que quer fazer. Sera mscnto ranças, zelar enfim pelo domfnio do rei e pelos caminhos,
num registro com~ escolha da sua profissão, a escolha do rios, edifícios públicos, florestas".
seu modo de vida, mscnto, e mscnto de uma vez por todas. Pois bem, se examinamos melhor esse projeto de Tur-
Os que, por acaso, não quisessem se inscrever n~ dos Itens quet de Mayerne, o que vemos? Vemos primeiro o seguin-
-deixo de lado os que são propostos"-, os que nao qUises- te: que a polícia que, num certo rúvel, se identifica com o
sem se inscrever não deveriam nem sequer ser tidos como governo inteiro, aparece - e é este seu segundo rúvel, sua
cidadãos mas deveriam ser considerados "rebotalho do primeira precisão em relação a essa função geral - como
povo vadios e sem horrra"". Eis quanto ao Birô de Polícia. uma função de Estado diante das três outras, as da justiça,
Áo lado, sempre portanto sob a responsabilidade, sob do exército e das finanças, que eram instituições tradicio-
a direção desse oficial superior que é o Reformador-geral da nais. Instituições tradicionais às quais há que acrescentar
polícia, vamos ter, ao lado do Birô de Polícia propriam:nte uma quarta, que vai ser a modernidade administrativa por
dita, birôs de polícia não propriamente dita, como o Brro de excelência, a saber, a polícia. Em segundo lugar, o que se
Caridade. E o Birô de Caridade vai se ocupar dos pobres, dos deve notar é que, quando Turquet de Mayerne define o pa-
pobres válidos, é claro, aos quais dará um trabalho ou q':e pel do reformador geral da polícia, o que ele diz? Diz que
forçará a aceitar um trabalho, [e] os pob;es doentes e mva- esse reformador deve zelar pela lealdade, pela modéstia dos
lidos, a que dará subvenções". Esse Brro de Candade tam- cidadãos; logo ele tem uma função moral, mas também deve
bém se ocupará da saúde pública em tempos ;'e epide~a e se ocupar da riqueza e da vida doméstica, isto é, da manei-
de contágio, mas em todos os tempos tambem. O BirO de ra como as pessoas se conduzem quanto às suas riquezas,
Caridade se ocupará [também] dos acidentes, dos acidentes quanto à sua maneira de trabalhar, de consumir. É portan-
causados por incêndios, inundações, dil~,vios e de tudo o to um misto de moralidade e de trabalho. Mas o que me pa-
que possa ser causa de emP?breamento,. que ponha as fa- rece essencial e característico, sobretudo, é que o que cons-
mílias em indigência e rrusena" 25 • Tentar rrnpedir_ ess;s aCI- titui o prôprio cerne da polícia, esses birôs de polícia pro-
dentes, tentar repará-los e ajudar os que deles sao VItimas. priamente dita de que lhes fale~ quando examinamos de
Enfim, outra função desse Birô de Caridade, emp~estar di- que eles se ocupam, para o que devem voltar sua atenção,
nheiro, emprestar dinheiro "aos pequenos artesaos~ ~ aos percebemos que é, de um lado, a educação e a profissão, a
lavradores" que estivessem necessit~dos para o ~xe~~ICIO da profissionalização dos indivíduos; a educação que deve for-
sua profissão e de maneira a poder po-los ao abngo das ra- má -los, de maneira que possam ter uma profissão, e tam-
26 bém qual a profissão ou, em todo caso, qual o tipo de ativi-
pinas dos usurár}os" • . , . . .
Terceiro biro, depms da polícra propnamente dita e da dade a que se dedicam e a que se comprometem a dedicar-
caridade, um terceiro birô vai se ocupar dos comemantes.
432 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, PDPl/lAÇÃO Al/lA DE 29 DE MARÇO DE 1978 433

se. Logo, temos todo um conjunto de controles, de deci- qualidade do Estado dependia da boa qualidade dos ele-
sões, de injunções que tem por objeto os próprios homens, mentos do Estado. Era uma relação de ser, era uma relação
não na medida em que têm um estatuto, não na medida em de qualidade de ser, era uma relação de virtude. Nessa nova
que são alguma coisa na ordem, na hierarquia e na estru- concepção, o que vai interessar ao Estado não é o que são
tura social, mas na medida em que fazem alguma cmsa, na os homens, não são nem mesmo seus litígios como num
medida em que são capazes de fazê-lo e na medida em que Estado de justiça. O que interessa ao Estado não é nem mes-
se comprometem a fazê-lo ao longo da vida. Aliás, o pró- mo o dinheiro deles, o que é a característica de um Estado,
prio Turquet de Mayeme observa: o que é importante par~ digamos, de fiscalidade. O que caracteriza um Estado de
a polícia não é a distinção entre ':obres e plebeus, nao e polícia é que aquilo que lhe interessa é o que os homens fa-
portanto a diferença de estatuto, e a diferença das ocupa- z.em, ,é sua atividade, é sua "ocupação"*. O objetivo da po-
ções". Gostaria de lhes citar este texto notável que se en- lícra e, portanto, o controle e a responsabilidade pela ativi-
contra no início, nas primeiras páginas do livro de Turqw;t dade dos homens na medida em que essa atividade possa
de Mayeme. Ele diz, a propósito dos mag~strados de poli- constituir um elemento diferencial no desenvolvimento das
cia: "Propus aos magistrados que serão seus reitores'~ - tra- forças do Estado. A meu ver, estamos aqui no ãmago do que
ta-se da polícia-, "propus o homem como verdaderro su- vai constituir a organização do que os alemães chamam de
jeito em que a virtude e o vicio se imprimem, ~fim de _que, Estado de polícia, e os franceses, sem chamá-lo assim, de
como por graus, ele seja levado desde a sua mfancJa ate sua fato instauraram. Através do projeto de Turquet de Mayer-
perfeição e a fim de que, tendo-o le_vado a uma certa per- ne, vemos, no fundo, a que se prende esse projeto de gran-
feição, ele seja contido, ele e suas açoes, nos tern:os da _ver- de polícia. É a atividade do homem como elemento consti-
dadeira virtude política e social, qualquer que seja a cmsa a tutivo da força do Estado.
que se dedique"'". Concretamente, a polícia deverá ser o quê? Pois bem,
Ter "o homem como verdadeiro sujeito'', e o homem ela deverá adotar como instrumento tudo o que for neces-
como verdadeiro sujeito" qualquer que seja a coisa a que se sário e suficiente para que essa atividade do homem se in-
dedique", na medida em que, precisamente, ele tem uma tegre efetivamente ao Estado, às suas forças, ao desenvolvi-
atividade e que essa atividade deve caracter:!Zar sua perfe1 ~ mento das forças do Estado, e deverá fazer de maneira que
ção e possibilitar por conseguinte a perfe1çao do Estado, .e o Estado possa, por sua vez, estimular, determinar e orien-
isso, creio, que é um dos elementos fundamen~a1s ~ -~rus tar essa atividade de uma maneira que seja efetivamente
característicos do que se passou a entender por polícra . É útil ao Estado. Numa palavra, trata-se da criação da utilida-
isso que é visado pela polícia, a atividade do homem, ma::_ a de estatal, a partir de e através da atividade dos homens.
atividade do homem na medida em que tem uma relaçao
com o Estado. Digamos que a concepção tradicional, o que ""Palavra entre aspas no manuscrito. M. Foucault nota na margem
interessava o soberano, o que interessava o príncipe ou are- do manuscrito: "Cf. Montchrétien, p. 27." (Este último escreve: "O ho-
pública, era o que os homens eram, eram por s~u :statuto mem mais entendido em matéria de polícia não é o que, por suplício ri-
ou eram por suas virtudes, por suas qualidades mtrinsecas. goroso, extermina os bandidos e os ladrões, mas o que, pela ocupação
Era importante que os homens fossem virtuosos, era Im- que dá aos que são subordinados ao seu governo, impede que eles exis-
portante que eles fossem obedientes, era importante que tam", Traité d'éconamíe politique (1615), ed. por Th. Funck-Brentano, Paris,
não fossem preguiçosos, que fossem trabalhadores. A boa E. Plon, !889, p. 27.)
434 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 29 DE MARÇO DE 1978
435

Criação da utilidade pública a partir da ocupação, da ativi- deserta prejudica o comércio e o governo. Mais valem 500.000
dade, a partir do fazer dos homens. Creio que a partir daí e homens em pouco espaço do que um milhão dispersos; ter-
apreendendo aí o cerne dessa idéia tão modema da polícia, ra de Israel"". Daí o primeiro objeto da polícia: a quantida-
creio que podemos facilmente deduzir os objetos de que a d~ de hornen_:;, o desenvolvunento quantitativo da popula-
polícia pretende doravante se ocupar. çao em relaçao aos recursos e possibilidades do território
Primeiro, a polícia terá de se ocupar- primeira preocu- que essa população ocupa; é o que Hohenthal chamará, em
pação - com o número de homens, porque é muito impor- sc;.u Tratado de po}íci~, de copia civium, a quantidade, a abun-
tante, tanto no que concerne à atividade dos homens quan- dancra de crdadaos ·. Em pnmerro lugar, portanto, a quan-
to à sua integração numa utilidade estatal, saber quantos tidade de cidadãos: é esse o primeiro objeto da polícia.
eles são e fazer que haja o maior número possível. A força Segundo objeto da polícia: as necessidades da vida. Por-
de um Estado depende do seu número de habitantes: é urna que não basta haver homens, é necessário também que eles
tese que vemos formulada já bem cedo na Idade Média, re- possam Vlver.. E, por con~eguinte, a polícia vai se ocupar
petida ao longo do século XVI, mas que, no século XVIT, vai d;ssas necessidades rrnediatas. Em primeiro lugar, claro, os
começar a adquirir um sentido preciso, na medida em que Vlveres, os objetos ditos de primeira necessidade. Aqui tam-
logo se colocará o problema de saber quantos homens são bém Fleury dirá: "príncipe é pai: alimentar seus filhos, pro-
efetivarnente necessários e que relação deve haver entre o curar o~ meios d: proporcionar ao povo alimento, roupa,
número de homens e a extensão do território, as riquezas, habitaçao, calefaçao. [... ]Nunca se multiplica em excesso os
para que a força do Estado possa crescer o mais possível e gêneros úteis à vida."" Esse objetivo da polícia -zelar para
da maneira mais segura. A tese, a afinnação de que a força que as pessoas possam efetivamente manter a vida que o
de um Estado depende da quantidade de seus habitantes, nas~rrnento lhes deu - implica evidentemente urna política
vocês vão encontrá-la obstinadamente repetida ao longo de ~gncola: multiplicar o povo do campo pela diminuição dos
todo o século XVIT, no início do século XVlli ainda, antes da rrnp':stos_: dos encargos, da rnilicia, cultivar as terras que ain-
grande crítica e da grande reproblernatização que os fisio- da nao sao cultivadas, etc. Tudo isso está em Fleury~. Logo
cratas farão. Mas vou tornar um texto do fim do século XVll - Isso rrnplica urna política agricola. Isso implica igualmente
início do XVITI. Nas notas que foram publicadas, que eram um controle exato da comercialização dos gêneros, da sua
as notas das aulas que dava ao delfim", o abade Fleury di- crrculação, das provisões feitas para os momentos de escas-
zia: "Não se pode administrar justiça, fazer guerra, levantar sez alimentar: em suma, toda a polícia de cereais de que eu
finanças, etc., sem que haja abundância de homens vivos, havia_ lhe_:; falado no início'" e .que constitui, para d'Argenson,
sadios e pacíficos. Quanto mais há, mais o resto é fácil, mais a po~c;a rnrus F'recrosa e rnrus :rnportante para a ordem pú-
o Estado e o príncipe são poderosos." Mas é preciso dizer blica · . O que Implica que nao apenas a comercialização
desde logo que não é o número absoluto da população que desses víveres e gêneros será vigiada, mas também sua qua-
é importante, mas sua relação com o conjunto das forças: lidade no momento em que são postos à venda sua boa
extensão do território, recursos naturais, riquezas, ativida- qualidade, o fato de não estarem estragados, etc. '
des comerciais, etc. E é ainda Fleury que diz nas suas notas . E por aí chegamos a um terceiro objeto da polícia, de-
de curso:"[ ... ] extensão.de terras não faz nada para a gran- poiS da quantidade de pessoas, das necessidades da vida,
deza do Estado, mas fertilidade e quantidade de homens chegarno_s .ao proble':la da saúde. A s_aúd<; toma-se um obje-
sim. Holanda, Moscóvia, Turquia, que diferença? Extensão to de polícra na medida em que a saude e efetivarnente urna
436 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978 437

das condições necessárias para que os homens numerosos, dos homens. E essa circulação deve ser entendida antes de
?e
que subsistem graças aos víveres e aos elementos primei- mais nada no sentido dos instrumentos materiais que é ne-
ra necessidade que lhes são fomeados, esses mdiVIduos P?S- cessário lhe proporcionar. Assim, a polícia cuidará das es-
sam trabalhar, exercer atividades, ocupar-se. Por consegum- tradas, da sua manutenção, do seu desenvolvimento, da na-
te, a saúde não será, para a polícia, simplesmente um proble- vegabilidade dos rios, dos canais, etc. Em seu Tratado de di-
ma no caso de epidemia, quando a peste se declara ou quan- reito público, Domat dedica [a essa questão] um capítulo que
do se trata simplesmente de afastar os contagiosos, como os se chama "Da polícia", cujo título completo é este: "Da po-
leprosos, mas agora a saúde, a saúde cotidiana de todo_ o lícia para o uso dos mares, dos grandes e pequenos rios, das
mundo vai se tomar um objeto permanente de preocupaçao pontes, das ruas, das praças públicas, dos grandes cami-
e de intervenção para a polícia. Portanto vai ser necessário nhos e outros lugares públicos" 39 • O espaço da circulação é
estar atento a tudo o que possa causar as doenças em geral. portanto um objeto privilegiado para a polícia'". Por "circu-
Vai ser então o caso, principalmente nas cidades, do ar, do laçãó', porém, deve-se entender não apenas essa rede ma-
arejamento, da ventilação, estando tudo isso, evidenteme~te, terial que possibilita a circulação das mercadorias e even-
ligado à teoria dos miasmas'", e vamos ter toda uma política tualmente dos homens, mas a própria circulação, isto é, o
de um novo equipamento, de um novo espaço urbano que conjunto dos regulamentos, imposições, limites ou, ao con-
será submetido, subordinado a princípios, a preocupações de trário, facilidades e incentivos que vão possibilitar a circula-
saúde: largura das ruas, dispersão dos elementos que podem ção dos homens e das coisas no reino e, eventualmente, fora
produzir miasmas e envenenar a atmosfera, os açougues, os das fronteiras. Donde os regulamentos tipicamente de po-
matadouros, os cemitérios. Portanto toda uma política do es- lícia, uns que vão reprimir a vagabundagem, outros que vão
paço urbano ligada a esse problema de saúd_e. . facilitar a circulação das mercadorias nesta ou naquela dire-
Quarto objeto da polícia, depms da saude: vru ser pre- ção, e outros que vão impedir que os operários qualificados
cisamente, quando se tem homens em grande número que possam sair do lugar onde trabalham ou, principalmente,
podem subsistir e que gozam de boa saúde, zelar por sua possam deixar o reino. É todo esse campo da circulação que
atividade. Por sua ativídade, entender, antes de mrus nada, vai se tomar, depois da saúde, depois dos víveres e dos ob-
o fato de que não fiquem ociosos. Pôr para trabalhar todos jetos de primeira necessidade, depois da própria população,
os que podem trabalhar é a política voltada para os pobres o objeto da polícia.
válidos. Prover unicamente às necessidades dos pobres m- De maneira geral, no fundo, o que a polícia vai ter de
válidos. E será também, muito mais importante, zelar pelos regular e que vai constituir seu objeto fundamental são to-
diferentes tipos de atividade de que os homens são capazes, das as formas, digamos, de coexistência dos homens uns
zelar para que, efetivamente, os diferentes ofícios de que se em relação aos outros. É o fato de viverem juntos, de se re-
necessita, de que o Estado necessita, sejam efetivamente produzirem, de necessitarem, cada um de seu lado, de cer-
praticados, zelar para que os produtos sejam fabricados de ta quantidade de alimento, de ar para respirar, viver, subsis-
acordo com um modelo que seja tal que o país possa se be- tir, é o fato de trabalharem, de trabalharem uns ao lado dos
neficiar. Donde toda essa regulamentação dos ofícios que é outros, em ofícios diferentes ou semelhantes, é também o
outro dos objetivos da polícia. fato de estarem num espaço urbano de circulação, é (para
Enfim, último objeto da polícia, a circulação: a circula- empregar uma palavra que é anacrónica em relação às es-
ção das mercadorias, dos produtos oriundos da atividade peculações da época) toda essa espécie de socialidade que
438 SEGURANÇA, TERRITÓRIO POPUlAÇÃO AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978 439

deve ser tarefa da polícia. Os teóricos do século XVlli dirão: a polícia um círculo que, partindo do Estado como poder de
no fundo, é da sociedade que a polícia se ocupa". Mas Thr- intervenção racional e calculado sobre os indivíduos, vai re-
quet de Mayeme já tinha dito que a vocação dos homens - tomar ao Estado como conjunto de forças crescentes ou a
ele não emprega a palavra "vocação", bem, não me lembro se fazer crescer - mas que vai passar pelo quê? Ora, pela
mais- era de se associar uns aos outros, de se buscar mu- vida dos indivíduos, que vai agora, como simples vida, ser
tuamente, e é essa "comunicação", "o encaminhamento e a preciosa para o Estado. No fundo, isso já estava adquirido,
manutenção" dessa comunicação que é propriamente o ob- sabia-se perfeitamente que um rei, um soberano era tanto
jeto da polícia". A coexistência e a comunicação dos ho- mais poderoso quanto mais súditos tinha. Vai passar pela
mens uns com os outros- é, afinal de contas, esse o domí- vida dos indivíduos, mas vai passar também pelo melhor
nio que deve abranger essa Politzeiwissenschaft e essa insti- que viver, pelo mais que viver, isto é, pelo que na época se
tuição da polícia de que fala a gente do século XVTI e do sé- chama de comodidade dos homens, seu aprazimento [agré-
culo xvm. ment] ou sua felicidade. Vale dizer que esse círculo, com
O que a polícia abrange assim é, no fundo, um imenso tudo o que ele implica, faz que a polícia deva ser capaz de
domínio que, poderiamos dizer, vai do viver ao mrus que VI- articular, uma com a outra, a força do Estado e a felicidade
ver. Quero dizer com isso: a polícia deve assegurar-se de dos indivíduos. Essa felicidade, como mais que viver dos in-
que os homens vivam, e vivam em grande número, a polí- divíduos - é isso que de certo modo deve ser logrado e
cia deve assegurar-se de que eles tenham de que VIVer e, constituído em utilidade estatal: fazer da felicidade dos ho-
por conseguinte, tenham de que não morrer muito, ou não mens a utilidade do Estado, fazer da felicidade dos homens
morrer em quantidade grande demais. Mas deve assegurar- a própria força do Estado. E é por isso que vocês encontram,
se ao mesmo tempo de que tudo o que, em sua ativídade, em todas essas definições da polícia a que eu fazia alusão
pode ir além dessa pura e simples subsistência, de que tudo há pouco, um elemento que eu havia cuidadosamente re-
isso vá, de fato, ser produzido, distribuído, repartido, posto servado e que é a felicidade dos homens. Vocês encontram,
em circulação de tal maneira que o Estado possa tirar efeti- por exemplo em Delamare, a afirmação de que o único ob-
vamente daí sua força. Digamos numa palavra que nesse sis- jeto da polícia "consiste em levar o homem à mais perfeita
tema económico, social, poderiamos dizer até nesse novo felicidade de que ele possa desfrutar nesta vida"". Ou tam-
sistema antropológico instaurado no fim do século XVI e no bém Hohenthal- cuja definição da polícia eu citei para vo-
início do século XVTI, nesse novo sistema que já não é co- cês", mas apenas em sua primeira parte -, Hohenthal diz
mandado pelo problema imediato de não morrer e sobrevi- que a polícia é o conjunto dos meios que asseguram "reipu-
ver, mas que vai ser comandado agora pelo problema de VI- blicae splendorem", o esplendor da república, "et externam
ver e fazer um pouco melhor que viver, pois bem, é aí que singulorum civilium felicitatem", e a felicidade externa de cada
a polícia se insere, na medida em que é um conjunto de téc- indivíduo". Esplendor da república e felicidade de cada um.
nicas que asseguram que viver, fazer um pouco melhor que Retomo a definição fundamental de Justi que, mais uma
viver, coexistir, comunicar-se, tudo isso será efetivamente vez, é a mais clara e mais articulada, a mais analítica. Von
transformável em forças do Estado. A polícia é o conjunto Justi diz o seguinte: "A polícia é o conjunto de leis e regula-
das intervenções e dos meios que garantem que viver, me- mentos, relativos ao interior de um Estado, que tendem a
lhor que viver, coexistir, será efetivamente útil à constitui- consolidar e aumentar sua força, a fazer bom uso das suas
ção, ao aumento das forças do Estado. Temos portanto com forças"- isso eu já tinha citado- "e, enfim, proporcionar a
440 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978 441
felicidade dos súditos"'".·Consolidar e aumentar a força do
Estado, fazer bom uso das forças do Estado, proporcionar a a eco:'?mia política J?Ôde nascer dela, como o problema
específico da populaçao se separou dela, [o que irá] juntar-
felicidade dos súditos, é essa articulação que é específica da
se ao problema "segurança e população" de que lhes falei
polícia. da última vez. Então, se isso não os aborrecer... Enfim, em
Há uma palavra que, melhor ainda que a de aprazimen- todo caso, dare! essa aula quarta-feira que vem. Como,
to [agrément], de comodidade, de felicidade, designa aquilo de todo '!lodo, nenhum de vocês é forçado a assistir, façam
de que a polícia se ocupa. Essa palavra é raramente encon- como qUiserem ...
trada antes do fim do século XVIII. E no entanto foi empre-
gada no início do século XVII e, parece-me, de forma única,
sem ter sido reutilizada na literatura francesa, mas vocês
vão ver que eco terá e como vai desembocar em toda uma
série de problemas absolutamente fundamentais. Esta pa-
lavra é a seguinte, que encontramos em Montchrétien, A
economia política. Montchrétien diz o seguinte: "No fundo,
a natureza só pode nos dar o ser, mas o bem-estar nos vem
da disciplina e das artes."" A disciplina, que deve ser igual
para todos, pois é importante para o bem do Estado que to-
dos vivam bem e honestamente, e as artes, que, desde a
queda, são indispensáveis para nos proporcionar- cito no-
vamente - "o necessário, o útil, o decente e o agradável"48 .
Pois bem, tudo o que vai do ser ao bem -estar, tudo o que
pode produzir esse bem-estar para além do ser e de tal sor-
te que o bem-estar dos individuas seja a força do Estado, é
esse, parece-me, o objetivo da polícia. •
Bom, se por um lado eu estava atrasado, mas só uns
quinze minutos, por outro lado, em todo caso, estou longe
de ter terminado o que gostaria de lhes dizer. Então - era
a segunda má notícia-, vou sem dúvida dar mais uma aula
semana que vem, quarta-feira, em que procurarei, a partir
dessa definição geral da polícia, ver como ela foi criticada,
como as pessoas se distanciaram dela no século XVIII, como

* M. Foucault acrescenta no manuscrito, p. 28: "O 'bem' que esta-


va presente na definição do governo em são Tomás (fazer de sorte que os
homens se conduzam bem para poder alcançar o bem supremo) muda
inteiramente de sentido."
AUlA DE 29 DE MARÇO DE 1978 443

citado, DE, N, p. 154). Ver notadamente pp. 31-2, 56-8, 274


NOTAS
(J. King diz: "Louis Turquet-Mayeme"). a. igualmente R Mous-
nier, "I:opposition politique bourgeoise à la fin du XVI' et au dé-
but du XVII' siecle. I:oeuvre de Thrquet de Mayerne", Revue histo-
rique, 213, 1955, pp. 1-20.
. . 4. Peter Carl Wllhelm, Reichsgraf von Hohenthal, Liber de po-
lzha, adspersts observahonzbus de causarum politiae et justitiae diffe-
rentiis, Leipzig, C. G. Hilscherum, 1776, § 2, p. 10. Tendo a obra
sido escrita em latim, entenda-se: o texto do alemão Hohenthal.
Sobre esse tratado, cf. "'Omnes et singulatirn"', loc. cit., p. 158.
S. L. Turquet de Mayeme, La Monarchie aristodémocratique, op.
cit., livro I, p. 17: "[ ... ]deve-se entender pelo nome de Polícia tudo
o que pode dar ornamento, forma e esplendor à Odade, e que é
de fato a ordem de tudo o que poderíamos ver nela".
6. P. C. W. von Hohenthal, Liber de politia, op. cit., § II, p. 10:
"Non displicet vero nobis ea definitio, qua politiam dicunt conge-
1. Cf. a definição queM. Foucault dá em 1976, "La politique riem mediorum (s.legum et institutorum), quae universae reipu-
de la santé au XVlll' siecle", art. citado [supra, p. 106, nota 7], p. 17: blicae splendori atque extemae singulorum civium felicitati inser-
"O que será chamado até o fim do Antigo Regime de polícia não viunt." Em apoio a essa definição, Hohenthal cita J. J. Moser, Com-
é, ou não é apenas, a instituição policial; é o conjunto_dos meca- mentatio von der Landeshoheit in Policey-Sachen, Frankfurt-Leipzig,
nismos pelos quais são assegurados a ordem, o cresc:rrnento ca- 1773, p. 2, § 2, e J. S. Pütter, Institutiones Iuris publicigermanici, Gõt-
nalizado das riquezas e as condições de manutenção da saúde tingen, 177ü, p. 8. Nem um nem outro, no entanto, ao insistir so-
'em gerar" (segue-se uma breve descrição do tratado de Delama- bre a felicidade ou a segurança dos súditos, utilizam o termo "es-
re). O interesse de Foucault por Delamare remonta aos anos 60. plendor''.
Cf. Histoire de la folie ... , op. cit., ed. de 1972, pp. 89-90. 7. Polígrafo de carreira movimentada, cuja vida contém mui-
2. Numa série de folhetos manuscritos sobre a polícia, ane- tas zonas de sombra, Johann Heiruich Gottlob von Justi (1720-
xados ao dossiê de preparação do curso, M. Foucault cita esta pas- 1771) foi ao mesmo tempo professor e praticante. Ensinou came-
sagem das Instructions [Instruções] de Catarina II (cf. infra, p. 485, ralística primeiro no Theresianum de Viena, estabelecimento fun-
nota 18), a propósito da transformação do sentido da palavra po- dado em 1746, destinado à educação dos jovens nobres, e, após
lícia ("de efeito para a causa"): "Tudo o que serve à manutenção diversas peripécias que o levaram de Leipzig à Dinamarca, estabe-
da boa ordem da sociedade é da competência da polícia." leceu-se em 1760 em Berlím, onde Frederico II lhe confiou, alguns
3. Louis Turquet de Mayeme (1550-1615), La Monarchie aris- anos depois, o cargo de Berghauptmann, uma espécie de adminis-
todémocratique, ou le gouvernement composé et mesclé des trozs formes trador geral das minas. Acusado, sem dúvida injustamente, de ter
de legitimes Republiques, Paris, Jean Beijon et Jean le Bouc, 1611. Em desviado dinheiro público, foi encarcerado em 1768 na fortaleza
sua conferência 'uOmnes et singulatim"', M. Foucault precisa: "É de Küstrin, onde, cego e arruinado, morreu sem ter podido provar
uma das primeiras utopias-programas de Estado policiado. Tur- sua inocência. Aos dois períodos, vienense e berlinense, corres-
quet de Mayeme a compôs e apresen~ou ~m 1?11 aos estados-ge- pondem obras de tonalidade bem distinta, as primeiras (dentre as
rais da Holanda. Em Science and Rahonalzsm zn the Gavernment of quais Grundsiitze der Policey-Wissenschaft, 1756, baseada nas suas
Louis XIV [Baltimore, Md., The John Hopkins Press, 1949], J. King aulas no Theresianum e traduzida em francês com o título de Élé-
chama a atenção para a importância dessa estranha obra [.. .]" (art. ments généraux de police, 1769) essencialmente centradas no bem
444 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978 445
do Estado, as segundas (Grundrifi einer guten Regierung, 1759; 11. Sobre essa bibliografia, cf. M. Humpert, Bibliographie des
Grundfeste der Macht und Glückseligkeit der Staaten oder Polizeiwis- Karr;eralwzssenschaften, Colônia, K. Schrõder, 1937, que remonta até
senschaft, 1760-61) acentuam mais o bem dos indivíduos. o seculo XVI. O autor recenseia mais de 4.000 títulos, de 1520 a
8. ). H. G. von justi, Grundsiitze der Policey-Wissenschaft, Gõt- 1850, nos itens "ciência da polícia no sentido lato" e "ciência da
tingen, Van den Hoecks, 1756, p. 4: "ln weitlãuftigem Verstande be- polícia no sentido estrito". a. também A W. Small, The Carnera-
greift man unter der Policey alie MaaJlregeln in innerlichen Lande- lists, op. dt. [supra, p. 35, nota 25]; H. Maier, Die iiltere deutsche Staats-
sangelegenheiten, wodurch das allgemeine Vermõgen des Staats undVerwaltungslehre, Neuwied-Berlim, H. Luchterhand, 1966 (reed.
dauerhaftiger gegründet und vermehret, die Krãfte des Staats bes- consideravelmente aumentada, Munique, DTY, 1986), e P. Schiera,
ser gebrauchet und überhaupt die Glückseligkeit des gemeinen II Carneralismo e I'assolutismo tedesco, op. dt.
Wesens befõrdet werden kann; und 1n diesem Verstande sind die 12. Fénélon, François de Sallgnac de La Molhe (1651-1715),
Commercien, W1Ssenschaft, die Stadt- und Landõconomie, dieVer- preceptor do duque de Borgonha de 1689 a 1694. M. Foucault faz
waltung der Bergwerke, das Forstwesen und dergleichen mehr, in s~m ~úvida ~alusão ao Etant;n de conscience sur 1es devoirs de la royau-
so fem die Regierung ihre Vorsorge darüber nach MaaJlgebung des te (1. ed. postuma sob o titulo de Direction pour la conscience d'un
allgemeinen Zusammenhanges der Wohlfahrt des Staats einrich- roz, Haia, Neaulme, 1747), in Oeuvres de Fénélon, Paris, Finnin Di-
tet, zu der Policey zu rechnen." I Éléments génémux de police, trad. fr. do!, 1838, t. 3, pp. 335-47.
parcial de Eidous, Paris, Rozet, 1769, introd., § 2 (trata-se da polícia 13. Cf. infra, pp. 434-5.
em sentido lato): "( ... ] abrange-se sob o nome de polícia as leis e 14. Antoyne de Montchrétien (Montchrestien, 1575-1621),
regulamentos que dizem respeito ao interior de um Estado, que Traité de l'oeconomie politique (1615), ed. porTh. Funck-Brentano,
tendem a consolidar e a aumentar seu poderio, a fazer bom uso das Paris, E. Plon, 1889, livro I, p. 25: "E no que concerne à polícia, os
suas forças, a proporcionar a felicidade aos súditos, numa palavra, povos setentrionais dela se servem, em nossos dias, melhor e de
o comércio, as finanças, a agricultura, a exploração das minas, os forma mais regrada do que nós."
bosques, as florestas, etc., visto que a felicidade do Estado depen- 15. a. supra, nota 5.
de da sabedoria com a qual todas essas coisas são administradas". 16. Ibid.
9. Sobre o congresso de Viena (setembro de 1814- junho de 17. a. L. Turquet de Mayeme, La Monarchie aristodémocrati-
1815), cuja Ata final de 9 de junho de 1815 reúne os diferentes tra- que, li:""o IV; p. 207: "( ... ] a esta [=a Policia] se reduz tudo o que
tados assinados pelas grandes potências, cf. supra, p. 148, nota 9. poden~os P.ensar ou dizer em matéria de governo: estendendo-
A Santa Aliança, finnada em setembro de 1815, foi de início um se a PolíCia evidentemente a todos os Estados e condições das pes-
pacto de inspiração religiosa, assinado pelo czar Alexandre I, pelo soas, e a tudo o que elas designam, fazem, manejam ou exercem".
imperador da Áustria, Francisco I, e pelo rei da Prússia, Frederico 18. Ibid., livro I, p. 14.
Guilherme II, para a defesa "dos preceitos da justiça, da caridade 19. Ibid., p. 15.
cristã e da paz" "em nome da Santíssima e indivisível Trindade". _ 20. Ibid., p. 20: "[ ... ] prover de forma adequada a todas as fun-
Metternich, que a considerava "um monumento vazio e sonoro", çoes, em que seja necessário empregar homens de letras".
soube transformá-la num instrumento de tmião das potências 21. Ibid., pp. 19-20: "[ ... ] zelar pela instrução da juventude de
aliadas contra os movimentos liberais e nacionalistas. Ela se des- to~as condições, P,Xi~~palmente no que requer o público e em que
fez em 1823, após o congresso de Verona e da expedição francesa haJa correto e notono Interesse, em todas as famílias; que se reduz
à Espanha. a três itens, a saber: à Instituição das letras, à piedade ou religião
10. Sobre o ensino da Polizeiwissenschaft nas universidades e à disciplina militar[ ... ]".
alemãs no século XVIII, cf. supra, pp. 34-5, nota 25. a. M. Stolleis, 22. Ibid., p. 14: "A saber, como Ricos, tendo grandes rendas,
Histoire du droit public en Allemagne, 1600-1800, trad. fr. cit., pp. ou c~~o Negocia.dore~ e homens de negócio, ou como Artesãos,
562-70. e os últimos e mrus bruxos, como Lavradores e operários."
446 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 29 DE MARÇO DE 1978
447
23. Ibid., p. 22: "Diante deles [os Reitores dos Birôs de Polícia],
nhecirnento, in ~les, N!mes, I' Beaume, 1780, t. 3, pp. 273-84.
em cada alçada, deverão comparecer todos os que, alcançaram a
idade de vinte e cinco anos, para declarar a profissão que gostariam
a. no entanto Pensees pohtiques de Flemy, ibid., p. 252: "É a
quantidade de homens e não a extensão da terra que faz a força
de seguir, registrar-se numa das ditas classes, conforme seus mei<:s, de um Estado. Mais valeria comandar cem homens numa ilha fér-
alimentação e aptidão, sob pena de ignomínia. Porque os que nao
se inscreverem nos registres de ditos Birôs não deverão ser tidos
ti! de dez léguas do que estar só numa ilha de duzentas léguas; as-
slll! co~o aquele que governar cem mil homens em dez léguas de
como cidadãos, mas como um rebotalho do povo, vadios e sem p&s sera mms poderoso que aquele que tiver duzentos mil disper-
honra, privados de todos os privilégios de ingenuidade [... ]." sos em cem léguas."
24. Ibid., p. 23. 33. I' C. W. von Hohenthal, Liber de politia, cap. I, I, "De co-
25. Ibid., pp. 24-5: "Proverão também ditos Reitores à saúde pia civium" (§§VIIT-Xl), pp. 17-28.
pública em todos os tempos; e, ocorrendo contágio, socorrer~o os , 34_. C.HeUI)',Avis au Duc de Bourgogne, op. cit., p. 277: "Prínci-
enfermos e remediarão a todos os acidentes que tal calarmdade pe e pru: ~entar seus filhos: procurar os meios de proporcionar
traz[ ... ]. Os acidentes de fogo e as grandes inundações ou dilúvios ao povo ~ento, roupa, habitação, calefação. Víveres: trigo e ou-
também serão da responsabilidade e da diligência daqueles em tros cererus, legumes, frutas: beneficiar os Lavradores, eles são os
cada sede, por serem causas de empobrecimento e lançarem a mais nece~s~os de todos os Súditos, laboriosos, vivendo de pou-
gente na indigência e na miséria." co, de or~ano pessoas de bem: o meio mais honesto de ganhar,
26. Ibid' p. 24. com a Agncultura: nunca se multiplica em excesso os gêneros
27. a. ibid., p. 25: "le Bureau des Marchans" [o Birô dos co- úteis à vida."
merciantes]. 35. Ibid.: "Repovoar as Cidades e multiplicar o povo do cam-
28. Ibid., pp. 25-6. po por meio da diminuição dos Impostos, isenção de Milícia, etc."
29. Ibid., p. 14: "( ... ]sendo as condições de cada classe [=as 36. Cf. supra, aula de 18 de janeiro, pp. 41-4.
cinco ordens ou classes de que se compõe o povo] puramente pn- 37. Marc-RenédeVoyer, marquês d'Argenson (1652-1721), pai
vadas, não se trata aqui de Nobreza, nem de Plebeidade, mas ape- do autor das Mem6rias (cf. Naissance de la biopolitique, op. cit., aula de
nas dos meios e modos que cada um deve observar para viver e 10 de Jane_rro de 1979, p. 22). Sucedeu a La Reynie como tenente-ge-
conservar-se na República". ral de polioa em 1697, depois exerceu as funções de presidente do
30. Ibid., p. 19. Conselho de Finanças e ministro da Justiça (1718). A frase é tirada
31. Claude FleUI)' (1640-1723), padre e historiador, subpre- de uma carta de 8 de novembro de 1699, citada por M. de Boislisle,
ceptor dos filhos do rei com Fénélon- não confundir com o car- Correspondance des Cantrôleurs généraux, t. ll, n? 38, e reproduzida
deal FleUI)', que também foi preceptor de Luís '!01. .É autor de nu- por E. Depttre em sua mtrodução a Herbert, Essai sur la police géné-
merosas obras, a mais célebre das quais são as Inshtuhons du drott rale des grains, op. cit., [supra, p. 66, nota 7], ed de 1753, p. V
français, Paris, 1692, 2 vols. a. R E. Wanner, Claude Fleury (1640- 38. a. C. Fleuty, Avis du Duc de Bourgogne, p. 378: "Cuidar da
1723) as an Educational Historiographer and Thznker, Hrua, Martinus limpeza das cidades tendo em vista a Saúde, prevenir doenças po-
pulares; ar bom, água boa e abundante."
Nijhoff, 1975, e, sobre sua atividade de publicista, G. Thuillier, "Éco-
nomie et administration au Grand Siêcle: l'abbé Claude Fleury'', . 39. Jean Domat Qurista jansenista, advogado do rei no presi-
La Reuue administrative, 10, 1957, pp. 348-573; id., "Comment les diai de Clermont, 1625-1696), Le Droit public, suite des Loix civiles
Français voyaient l'administration au xvmc siêcle: le Droit public dans leurordrenaturel, Paris, J.-B. Coignard, 2 vols., 1697 (2? ed. em
5 vols., 1697); reed. Paris, 1829, reproduzida na "Bibliothéque de
de la France de l'abbé Fleury", ibid., 18, 1965, pp. 20-5.
philosophie politique et juridique", Presses Universitaires de Caen,
32. Esta citação, assim como a precedente, não foi encontra-
1989, livro !,título Vlll: "De la Police pour l'usage des mers, des
da na única edição dos Avis au Duc de Bourgogne de que temos co-
fleuves, des rivieres, des ports, des ponts, des rues, des places pu-
448 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

bliques des grands chemins, & autres lieux publics: & de ce qui AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
regard~ les eaux & forêts, la chasse & la peche."
40. Ibid., 1697', t. N, pp. 224-5: "[ ... ] foi para esse uso dessa
segunda espécie de coisas [as coisas produzidas pelo homem, co~o
alimentos, roupas e habitação] que, por se~em todas ela_:; necess~­ A polícia (continuação).- Delamare.- A cidade, lugar de
rias na sociedade dos homens e por eles nao poderem te-las e pa- elaboração da polícia. Polícia e regulamentação urbana. A ur-
las em uso a não ser por vias que requerem diferentes ligações e banização do território. Relação da polícia com a problemática
comunicações entre elas, não apenas de um lugar ao outro, mas de mercantilista. -A emergência da cidade-mercado. - Os méto-
um país a outro, e entre as nações mais distantes, Deus pela _o~­ dos da polícia. DiferenÇJ1 entre polícia e justiw Um poder de
dem da natureza e os homens pela polícia proveram o necessano tipo essencialmente regulamentar. Regulamentação e discipli-
para facilitar as comunicações". , . ., . na. - Volta ao problema dos cereais. - A critica do Estado de
41. Na série de folhetos manuscritos sobre a políaa, J3 c1tada polícia a partir do problema da escassez alimentar. As teses dos
acima (p. 442, nota 2), M. Foucat;~t cita Del~are a pror,?s!to de~­ economistas, relativas ao preço do cereal, à população e ao pa-
sa idéia de que "é da 'sociedade que a políaa se ocupa : A polí- pel do Estado. - Nascimento de uma nova governamentalida-
cia encerra em seu objeto todas as coisas que servem de funda- de. Governamentalidade dos políticos e governamentalidade
menta e de regra às sociedades que os homens estabelecera:n en- dos economistas. -As transformações da razão de Estado: (1)
tre si." E acrescenta: "Um conjunto de indivíduos com relaçoes de a naturalidade da sociedade; (2) as novas relações entre o po-
coexistência que os fazem viver e morar juntos. Em suma, uma po- der e o saber; (3) a responsabilidade com a população (higiene
pulação." , . pública, demografia, etc); (4) as novas formas de intervenção
42. L. Turquet de Mayeme, La Monarchie aristo~emocratique, estatal; (5) o estatuto da liberdade.- Os elementos da nova arte
livro I, p. 4: "[ ... ] sem essa comunicação cujo enca.rn.U;h.am~nto e de governar: prática econ6mica, gestão da população, direito e
manutenção é o que chamamos propriamente de Polí?a, e certo respeito às liberdades, polícia com função repressiva. -As di-
que estaríamos privados ainda mais ?e~um~dade e ~tedade, pe- ferentes fonnas de contraconduta relativas a essa gcrvernamen-
receríamos miseravelmente por carenc1as e nao havena no mun- talido4e. -Conclusão geral.
do nem amor nem caridade alguma".
43. N. Delarnare, Traité de la police, llfl· cit., t. I, ed. de 1705,
prefácio não paginado [p. 2]. . Bom, vamos terminar hoje este curso um pouco prolon-
44. a. supra, p. 422 (citação completa, em latim, na nota 6). gado. Primeiro duas palavras sobre o que era concretamen-
45. P. C. W. von Hohenthal, Liber de poliha, p. 10. te a polícia - quer dizer, como se apresentava efetivamente
46. Cf. supra, nota 6. . .. . nos textos a prática da polícia. Creio ter lhes explicado da
47.A. de Montchrétien, Traité de l'oeconomze polttique, op. czt.,
p. 39. [Em francês, convém lembrar, há um só verbo para." ~e r" e
última vez a idéia geral, mas, concretamente, um livro con-
"estar": etre. A frase de Montchrétien joga com essa dupliCidade: sagrado à polícia fala de quê? Creio que devemos nos refe-
"Au fond, Ia nature ne peut nous donner que l'être, mais le bien- rir de qualquer modo ao que foi durante todo o século XVIll
être nous le tenons de la discipline et des arts." (N. do T.)] a compilação fundamental, o texto básico da prática da po-
48. Ibid., p. 40. lícia, tanto na Alemanha como na França, aliás, apesar da
compilação ser em francês, mas é sempre a ela que os livros
alemães se referiam quando se tratava de saber de que se fa-
lava quando se falava da polícia. Essa compilação é a de De-
lamare, é uma grossa compilação da legislação de polícia
SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUIA DE 5 DE ABRIL DE 1978 451
450

em três volumes, publicada, não me lembro mais, em ~711, Ora, quando observamos, de fato, quais são esses dife-
1708..., enfim, que foi republicada várias vezes no seculo rentes objetos definidos portanto como do domínio da prá-
XVIII'. Essa compilação de Delamare, como as que a segtn- tica, da intervenção e também da reflexão da polícia e sobre
ram', precisa em geral que há treze domínios de que ~ po- a polícia,_ vemo~ parece-me, primeira coisa a observar, que
lícia deve se ocupar. São a religião, os costumes, a saude e esses obJe~os sao afinal de contas essencialmente objetos
os meios de subsistência, a tranqüilidade pública, o cuida- que podenamos chamar de urbanos. Urbanos no sentido
do com os edifícios, as praças e os caminhos, as ciências e de que uns, alguns desses objetos, só existem na cidade e
as artes liberais, o comércio, as manufaturas e as artes me- porque existe uma cidade. São as ruas, as praças, os edifí-
cânicas, os empregados domésticos e os operários, o teatro cios, o mercado, o comércio, as manufaturas, as artes mecâ-
e os jogos, enfim o cuidado e a disciplina dos pobres, como ~cas, etc. ~s outros s~o objetos que são problema e que
"parte considerável do bem público"'. ?elamare agrul'a es- sao do donuruo da poiíCJa, na medida em que é principal-
ses treze itens' num certo numero de titulos ma.JS gerrus, ou mente na CJdade que eles adqwrem o essencial da sua im-
antes, de funções mais gerais, porque, se a polícia se ocupa portância. A saúde, por exemplo, a subsistência, todos os
da religião e dos costumes, é que se trata, para ela, de garan- meios para impedir que haja escassez alimentar, [a] presen-
tir 0 que ele chama de "bondade da vida'". Se ela se ocupa ça dos mendigos, [a] circulação dos vagabundos- os vaga-
da saúde e da subsistência, é porque tem por função "a con- bundos só vão ser problema no campo bem no fim do sé-
servação da vida'". Bondade, conservação da vida. A tran- culo XVIII. Digamos que tudo isso são problemas da cida-
qüilidade, o cuidado com os edifícios, as ciências : as artes de. Em termos mais gerais, são os problemas da coexistên-
liberais o comércio, as manufaturas e as artes mecarucas, os cia e da coexistência densa.
domésticos e os operários, tudo isso se refere à "comodida- Em segundo lugar, deve-se notar que os problemas de
de da vida"'; o teatro e os jogos, os" aprazimentos da vida"". que a polícia se ocupa também são, bem próximos desses
Quanto à disciplina e ao cuidado dos pobres, é "uma parte problemas da cidade, os problemas, digamos, do mercado,
considerável do bem público" 9, é essa eliminação ou, em da compra e venda, da troca. É a regulrunentação da manei-
todo caso, esse controle dos pobres, a exclusão dos que não ra como se pode e se deve pôr as cois~s à venda, a que pre-
podem trabalhar e a obrigação, para os que efetivamente po- ço, como, em que mome':'to. É tambem a regulamentação
dem, de trabalhar. Tudo isso constitui a condição geral para dos produtos fabncados, e a regulamentação das artes me-
que a vida, na sociedade, seja efetivamente conservada de câni~as e, de um modo geral, dos artesanatos. Numa pala-
acordo com a sua bondade, a sua comodidade, os seus apra- vra, e todo esse problema da troca, da circulação, da fabri-
zimentos. Como vocês estão vendo, temos aí, a meu ver, a cação e do pôr em circulação as mercadorias. Coexistência
confirmação do que eu lhes dizia na última vez, a saber, que dos homens, circulação das mercadorias: seria necessário
aquilo de que a polícia, no sentido ge;al do termo, no sen- completar dizendo também circulação dos homens e das
tido que era o do século XVII e do seculo XVIII, aquilo de mercadorias uns em relação aos outros. É todo o problema,
que a polícia deve ser ocupar é o VlVer e o m~ que :"ver; ~ JUStamente, desses vagabundos, das pessoas que se deslo-
viver e o melhor viver. Como dizia Montchretien, nao so e crun. Digamos, em suma, que a polícia é essencialmente ur-
preciso ser, mas também é preciso "bem ser': to. Bo~d~de, bana e mercantil, ou ainda, para dizer as coisas mais brutal-
conservação, comodidade, aprazimentos da Vlda - e disso mente, que é uma instituição de mercado, no sentido bem
mesmo que se trata. runplo.
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 5 DE ABRIL DE 1978 453
452

Logo, não há que se surpreender_com um cert~ núrn~­ co*: que~ importantíssimo para todos esses problemas da
ro de fatos. Primeiramente, em sua pratica, em suas mstitul- articulaçao entr; _o poder ?e polícia e a soberania jurídica,
ções reais, essas legislações que ~s grandes comJeilaçõe_s do Domat diz que e pela políCia que foram feitas as cidades e
século XVIII reúnem, de onde vem? Em geral sao antigas, os lugares em que os homens se reúnem e se comunicam
remontam aos séculos XVI, )0.1, XIV às vezes, e são essencial- pelo us?das ruas, das praças públicas e[ ... ] das estradas"".
mente legislações urbanas. Ou seja, a policia, em suas prá- No espmto de Doma!, o vínculo entre polícia e cidade é tão
ticas e em suas instituições, muitas vezes não fez mais que forte que ele diz que é só por ter havido uma polícia, isto é,
retomar essa preliminar que era a regulamentaçã_o ~bana, P?rque se regulamentou a maneira como os homens po-
tal como tinha se desenvolvido desde a Idade Media e que diam e deVIam, pnrnerro, se reunir e, segundo, se comuni-
dizia respeito à coabitação dos homens, à fabricação ;ias ~ar, no se~so lato do termo "comunicar", isto é, coabitar e
mercadorias, à venda dos gêneros. É portanto uma espeC!e mtercamb1ar, coexistir e circular, coabitar e falar, coabitar
de extensão dessa regulamentação urbana que a policia do e vender e comprar, foi por ter havido uma polícia regula-
século XVII e do século XVIII vai visar. mentando essa coabitação, essa circulação e esse intercâm-
A outra instituição que serve, de certo modo, de preli- biO que ~s Cidades puderam existir. A polícia como condição
minar à policia não é a regulamentação urbana, é a m~ré­ de eXJstencJa da urbamdade. No fim do século XVIII 150
chaussée, isto é, a força armada que o poder real haVIa s1do anos, ou quase, depois de Domat, Fréminville, num dicÍoná-
obrigado a pôr em serviço no século )01 para evit_ar todas as no_geral de policia", dará esta explicação, totalmente mítica
conseqüências e as desordens que se segmam as guerras, alia~, do nascimento da polícia na França, dizendo que Pa-
essencialmente à dissolução dos exércitos no fim das guer- ns tinha se tornado a primeira cidade do mundo no século
ras. Soldados dispensados, soldados que muitas vezes não ~ e que assi~ ~e tornara p~la perfeição exata da sua po-
haviam recebido o soldo, soldados debandados, tudo o que lícia. A ex_ata políc1a que nela tinha sido praticada havia fei-
constituía uma massa flutuante de indivíduos que, eviden- to ;!e Paris um ;nodelo t~~ perfeito e tão maravilhoso que
temente, se entregava a toda sorte de ilegalidades: violên- Lws XIV; diz Frerrunville, qws que todos os juízes de todas
cia delinqüência, crime, roubo, assassinato - todas as pes- as Cidad,;,~ do ;eu remo fizessem a polícia conformando-se à
' errantes, e eram essas pessoas errantes que a mare-'
soas de Paris_ . Ha c1dades porque há polícia, e é porque há ci-
chaussée era encarregada de controlar e reprimir. dades tao perf<;1tamente policiadas que se teve a idéia de
São, todas estas, instituições anteriores à polícia. A ci- transfenr a polícJa para a escala geral do reino. "Policiar"
dade e a estrada, o mercado e a rede viária que alimenta o "urb..ru:ar", evoco simplesmente essas duas palavras par~
mercado. Daí o fato de que a polícia nos séculos XVII e que voces tenham todas as conotações, todos os fenômenos
XVIII foi, a meu ver, essencialmente pensada em termos do de eco que pode haver nessas duas palavras e com todos os
que poderíamos chamar de urbanização do território; Trata- deslocamentos e ate_nuaçôes de sentido que pode ter havi-
va-se no fundo de fazer do reino, de fazer do temtono m- do no decorrer do seculo XVIII, mas, no sentido estrito dos
teiro ~ma espécie de grande cidade, de fazer que o territó- termos, policiar e urbanizar é a mesma coisa.
rio fosse organizado como uma cidade, com base no mode-
lo de uma cidade e tão perfeitamente quanto uma Cidade.
Não se deve esquecer que, em seu Tratado de direito públi- * M. Foucault acrescenta: do século XVII
454 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
455
Vocês também estão vendo - é a outra observação que ao mesmo tempo, como instrumento desse crescimento
quero fazer a propósito dessa relação entre a polícia e, _diga-
mos, a urbanidade -, vocês estão vendo que essa polícra~ a
comércio, vocês percebem como e por que a polícia r:ão
0

pode se; dissociada de uma política que é uma política de


instauração dessa polícia, não pode absolutamente ser dis- concorrencra comercial no mterior da Europa.
sociada de uma teoria e de uma prática governamer:'tal, ge- Polícia e comércio, polícia e desenvolvimento urbano
ralmente postas no item ~ercantilismo. O mercantilismo- polícia e desenvolvimento de todas as atividades de merca~
isto é, uma técnica e um cálculo do fortalecrment~ do poder do no sentido amplo, tudo isso vai constituir uma unidade,
dos Estados na competição européia pelo. comercro,, pelo a meu ver, essencial no século XVII e até o início do século
desenvolvimento do comércio e pelo novo VIgor dado as re-
XVIII. Parece que o desenvolvimento da economia de mer-
lações comerciais. O mercantilismo se insere inteirai_!lente
cado, a multiplicação e a intensificação dos intercâmbios a
nesse contexto do equilíbrio europeu e da competiçao m-
tra -européia de que lhes falei faz algumas semanas", e pro- partir ~o século XVt parece que a ativação da circulação
monetana, que tudo 1sso fez a existência humana entrar no
porciona como instrument~~ como arma fund~ental nes-
sa competição intra-europeia que deve ser fe1ta na forma mundo abstrato e puramente representativo da mercadoria
do equilíbrio, proporciona co~o instrumento es~encral o e do valor d: troca". Pode ser, e pode ser que se deva deplo-
comércio. Ou seja, ele exige, pnmerro, qu_e cada prus procu- rar Isso, entao deploremos. Mas creio que, muito mais que
re ter a população mais numerosa possiVel; segundo, que essa entrada da existência humana no mundo abstrato da
essa população seja inteiramente posta pa~a trabalhar; ter- mercadoria, o que se manifesta no século XVII é algo bem
ceiro, que os salários pagos a essa populaçao seJam os mrus diferente. É um feiXe de relações inteligíveis, analisáveis
baixos possíveis, de modo que - quarto - ?S l?reços de custo que possibilitam_ligar, como as faces de um mesmo polie~
das mercadorias sejam os mrus bruxos poss1ve1s, que por con- dro, um certo numero de elementos fundrunentais: a for-
seguinte se possa vender o mais possível ao exterior, v;nda n:'ação de ~a arte de governar, que seria ajustada ao prin-
essa que assegurará a importação do ouro, a transferencr_a CiplO da raza? de Estado; uma política de competição na
do ouro para o tesouro real ou, em todo caso, para o prus forma do equih'bno europeu; a busca de uma tecnologia de
que tríunfar comercialmente desse ~odo. Ora, o que possi- crescrmento das forças esMais~ por meio de uma polícia que
bilitará, primeiramente, assegurar, e clar_o, o recrutamento lena essencialmente por finalidade a organização das rela-
de soldados e a força militar indispensavel para o cresci- ções entre uma população e uma produção de mercadorias;
mento do Estado e para o seu jogo no equih'b?o europeu, e e, por fim, a emergência da cidade-mercado, com todos os
que possibilitará também incentivar a produ~ao, donde ':m problemas de coabitação, de circulação, como problemas do
novo progresso comercial? É l?da essa estrat,egia do co~er­ âmbito da vigilância de um bom governo de acordo com os
do como técnica de irnportaçao da moeda, e ISSO 9ue e um princípios da razão de Estado. Não estou dizendo que é nes-
dos traços característicos do mercantilismo. E voces perce- se momento que nasce a cidade-mercado, mas creio que 0
bem por que, no momento em que a razão de Estado se dá fato de a cidade-mercado ter se tomado o modelo da inter-
como objetivo o equih'bno europeu, tendo com_o mstru- venção estatal na vida dos homens é o fato fundrunental do
mento uma armadura diplomático-militar, e na epoca em século XVII, em todo caso o fato fundrunental a caracterizar
que essa mesma razão de Estado se d~ como outro obJeti:
vo o crescimento singular de cada potencra estatal e se da • Manuscrito: "intra-estatais".
456 SEGURANÇA, TERRITÚRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
457

o nascimento da polícia no século XVII, Há um ciclo, por sendo ": justiça", Oaro, ela deriva do poder régio, assim
assim dizer, razão de Estado e privilégio urbano, um víncu- corno,a JUS~ça: mas permanece bem separada dessa justiça.
lo fundamental entre a polícia e o primado da rnercadona, A polícra nao e: nesse momento, de forma alguma pensada
e é na medida em que houve essa relação entre razão de Es- co_rno urna espe';'e de mstrumento nas mãos do poder judi-
tado e privilégio urbano, entre polícia e primado da merca- crano, uma especre de rnanerra de aplicar efetivamente a
doria, que o viver e o melhor que viver, que o ser e o bem- JUStiç_a r;gulamentada Não_é um prolongamento da justi-
estar dos indivíduos tomaram-se efetivarnente pertinentes ça, nao e o re1 agmdo atraves do seu aparelho de justiça, é
- e pela primeira vez, creio eu, na história das sociedades o re1 agmdo diretamente sobre seus súditos, mas de forma
ocidentais- para a intervenção do governo. Se a governa- nã~ judiciária. Um teórico corno Bacquet diz: "O direito de
mentalidade do Estado se interessa, e pela primeira vez, p~líc1a e o direito de justiça não têm nada em comum, [..,]
pela materialidade fina da existência e da coexistênci~ hu- Nao se pode dizer que o direito de polícia pertença a qual-
mana, pela materialidade fina da troca e da crrculaçao, se quer outro que não o rei."" É portanto o exercício soberano
esse ser e esse melhor-estar é levado em conta pela pnmel- do poder real sobre os indivíduos que são seus súditos é
ra vez pela govemamentalidade do Estado, e is_so através da russo que consiste a polícia. Em outras palavras, a políci~ é
cidade e através dos problemas corno os ~a saude, das ru~s, a ~ovemarnentalidade direta do soberano corno soberano.
dos mercados, dos cereais, das estradas, e porque o comer- Digamos ainda que a polícia é o golpe de Estado perma-
cio é pensado nesse momento corno o instrumento princi- nente. _É o golpe de Estado permanente que vai se exercer,
pal da força desse Estado e, portanto, corno o objeto privi- que vru agrr em nome e em função dos princípios da sua ra-
legiado de uma polícia que tem por objetivo o crescimento cionalidade própria, sem ter de se moldar ou se modelar
das forças do Estado. Eis a primerra co1sa que eu quena lhes pel":s regras de justiça que foram dadas por outro lado. Es-
dizer a propósito desses objetos da polícia, do seu modelo p~crfica, portanto, ~rn seu ~danamento e em seu princí-
urbano e da sua organização em tomo do problema do mer- p!O pnmerro, a polícra tambern deve sê-lo nas modalidades
cado e do comércio. da s';a intervenção. E também, no fim, na segunda metade
Segunda observação, ainda _a propósito ~essa polícia do seculo XVIII, nas Instructions [Instruções] de Catarina II
de que lhes falava na última vez, e que essa polícra rnarufes- -_ela pretendia constituir um código de polícia-, nas instru-
ta a intervenção de urna razão e de um poder de Estado em çoes que ela dá e que são inspiradas pelos filósofos france-
dorrúnios que são, parece-me, novos. Em compensação, os ses, ela diz: "Os regulamentos da polícia são de urna espé-
métodos empregados por essa polícia me parecem relativa- Cle totalmente diferente da das outras leis civis. As coisas da
mente e até mesmo, inteiramente tradicionais. Oaro, a idéia P_?lícia são cais":" de cada instante, enquanto as coisas da lei
de um poder de polícia vai ser, desde o início d? século XVII, sao co1sas, defirutivas e permanentes. A polícia se ocupa das
perfeitamente distinta de outro tipo de exemci? do po~er co1sas rniUdas, enquanto as leis se ocupam das coisas im-
régio, que é o poder de justiça, o poder JUdic~ano, Polícra portantes. A polícia se ocupa perpetuamente dos detalhes"
não é justiça, e nisso todos os t;xtos concordam, sejam os e enfim ela só a.s;e pronta e imediatamente'". Ternos aí, por~
textos dos que efetivarnente apmam e JUStificam a necessi- tanto, em relaçao ao funcronarnento geral da justiça, uma
dade de uma polícia, sejam os textos dos juristas ou dos p"=- certa especificidade da polícia.
lamentares que manifestam certa desconfiança em relaçao Mas, quando se examina corno efetivamente essa es-
a essa polícia, De todo modo, a polícia é percebida corno não pecificidade tornou corpo, percebe-se que na verdade a po-
458 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
459
licia só conhece e só conheceu nos séculos XVII e XVIII urna cie de q~ase conve':to e do reino urna espécie de quase ci-
forma, um modo de ação e de intervenção. Claro, isso não dade - e essa a .espeae ~e grande.sonho disciplinar que se
passa pelo aparelho judiciário, vem diretamente do poder enc_ontra l'or tras da poliaa. Comercio, cidade, regulamen-
régio, é um golpe de Estado permanente, mas um golpe de taçao, disaplina - creio serem esses os elementos mais ca-
Estado permanente que se dá corno instrumento o quê? racteris~cos da prática de policia, tal corno era entendida
Pois bem, o regulamento, o decreto, a proibição, a instrução. nesse seculo XVII e [na] primeira metade do século XVIII.
É com base no modo regulamentar que a polícia intervém. Eis o que eu queria dizer a última vez, se tivesse tido tem-
É também nas Instructions de Catarina II que podemos ler: po para caracterizar esse grande projeto da policia.
"A policia necessita mais de regulamentos do que de leis."" Bem, agora gostaria de voltar ao ponto de que parti-
Estamos num mundo do regulamento indefinido, do regu- mos logo no começo. Vocês se lembram, aqueles textos que
lamento permanente, do regulamento perpetuamente re- procurei analisar para vocês, pois bem, se vocês quiserem,
novado, do regulamento cada vez mais detalhado, mas es- vamos pegar os mais precisos dentre eles, os que diziam
tamos sempre no regulamento, estamos sempre nessa es- respeito Justamente ao que era chamado de policia dos ce-
pécie de forma, apesar dos pesares, juridica, se não judiciária, rerus e de problema da escassez alimentar'. Isso nos situa
que é a da lei ou, pelo menos, da lei em seu funcionamen- no meado, em todo caso [no] fim do primeiro terço do sé-
to móvel, permanente e detalhado, que é o regulamento'". culo xv,rr:ce acredito- porque no fundo não fiz outra coi-
Mas, digamos assim, morfologicamente a policia, mesmo sa nos ultimas meses senão procurar comentar com vocês
totalmente diferente da instituição judiciária, não intervém esses textos sobre os cereais e a escassez alimentar, era sem-
com instrumentos e modos de ação radicalmente diferentes pre deles que se tratava através de certo número de des-
dos da justiça. Que a policia é um mundo essencialmente v_:os-, creiO que podemos compreender melhor a irnpor-
regulamentar é tão verdadeiro que um dos teóricos da po- tanaa do problema posto a propósito da polícia dos cereais
licia do meado do século XVIII, Guillauté, escrevia que a e da es,cassez alimentar, podemos compreender melhor a
policia devia ser essencialmente regulamentar, mas, diz ele, IrnportanCJa do problema, o ardor das discussões, pode-
também há que evitar, afinal, que o reino se tome um con- mos c~rnpreender melhor também o avanço teórico e a
vento". Estamos no mundo do regulamento, estamos no rnutaçao que estava eJ? g:estação em tudo isso a partirdes-
mundo da disciplina.* Ou seja, é necessário ver que essa se J?roblema, dessas tecrucas e desses objetos específicos à
grande proliferação das disciplinas locais e regionais a que policia. Par~ce-rn: que através do problema dos cereais, da
pudemos assistir desde o fim do século XVI até o século sua cornercializaça? e da sua circulação, através do proble-
XVIll nas fábricas, nas escolas, no exército22, essa prolifera- ma da escassez alimentar também, vê-se a partir de que
ção se destaca sobre o fundo de urna tentativa de discipli- problema con_creto, por um lado, e em que direção, por ou-
narização geral, de regulamentação geral dos indivíduos e tro, se fez a cn!Jca do que poderíamos chamar de Estado de
do território do reino, na forma de urna policia que teria um polícia. A críti~a do Estado de polícia, o desmantelamento,
modelo essencialmente urbano. Fazer da cidade urna espé- a desarticulaçao desse Estado de polícia em que se tinha
pensado tanto e com tanta esperança no início do século
XVII, assiste-;;e a essa desarticulação, creio eu, na primeira
* M. Foucault acrescenta, no manuscrito: "E, de fato, os grandes metade do seculo XVIII, através de certo número de pro-
tratados práticos de policia foram compilações de regulamentos." blemas, essencralmente daqueles de que lhes falei, os proble-
460 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
461
mas econôrnicos e os problemas da circulação de cereais o_bem -estar, do camponês, o mais que viver dessa popula-
em particular. çao constituida pelo campesinato. Em outras palavras, 0 es-
Permitam-me retornar um pouco alguns ternas e teses quema <jUe era inteiramente ordenado em tomo do privilé-
que eram evocados naquele momento a propôsito da polí- gto da adade sofr-; com isso forte abalo. Os limites implícitos
cia dos cereais. Primeira tese, vocês se lembram- refiro-me do Sistema_ da polícia, limites que haviam sido estabelecidos
à literatura, em linhas gerais, fisiocrática, mas não exclusi- pelo pnvilegto urbano, esses limites estouram e desembo-
vamente fisiocrática, pois o problema não é tanto o do con- cam no problema do campo, da agricultura. Problemática
teúdo positivo de cada tese quanto o que está em jogo em dos econonustas que reintroduz a agricultura corno ele-
cada urna delas, aquilo de que se fala e em tomo do que se mento fundamental numa govemamentalidade racional. A
organiza o problema - primeira tese dessa literatura fisio- terra aparece agora, ao lado da cidade, pelo menos tanto
crática ou, de modo mais geral, dessa literatura dos econo- quanto a adade, mais que a cidade, corno objeto privilegia-
mistas: se se quiser evitar a escassez alimentar, isto é, se se do da intervenção governamental. Urna govemamentalida-
quiser que os cereais sejam abundantes, é preciso antes de de que leva em conta a terra. Não só ela leva em conta a ter-
mais nada que eles sejam bem pagos". Essa tese se opõe, ra, mas essa govemamentalidade não deve mais centrar-se
no nível mesmo do que afirma, ao princípio que era aplica- no rn:rcado, na compra e venda dos produtos, em sua cir-
do em toda a política mercantilista anterior, em que se dizia culaçao, mas srrn, em todo caso antes de tudo, na produção.
primeiramente: é preciso haver bastante cereal, é preciso Enfim, tercerro, essa govemamentalidade já não se interes-
que esse cereal tenha um preço baixo, por ter preço baixo é sa tanto pelo problema de corno vender mais barato aos
que vai ser possível pagar os salários mais baixos possíveis, outros o que se produziu a um preço mais baixo, mas cen-
que o preço de custo das mercadorias a comercializar será tra-se no problema do retomo, isto é, de corno o valor do
baixo, e quando esse preço for baixo será possível vendê-las produto pode ser reembolsado àquele que foi seu produtor
ao estrangeiro, e vendendo-as ao estrangeiro é que se po- J;ninerro, a saber, o caml'~nê_:; o~ o agricul~or. Logo já não
derá importar o máximo possível de ouro. Logo, era urna e a 9da~e,: s~ a terra, Ja nao e a arculaçao, e sim a pro-
política de baixo preço dos cereais para o baixo salário dos duçao, Ja nao e a venda ou o ganho com a venda, e sim 0
operários. Ora, com a tese dos fisiocratas de que lhes falava problema do retomo - tudo isso é que aparece agora corno
há pouco, ao insistirem, corno sendo um momento absolu- Objeto essencial da govemamentalidade. Urna desurbani-
tamente fundamental, sobre o vínculo que haveria entre a zação em benefício de um agrocentrisrno, substituição ou
abundância dos cereais e seu bom preço, isto é, seu preço em todo caso, emergência do problema da produção relati~
relativamente alto, vocês vêem que os fisiocratas - de um varnente ao problema da comercialização, é, creio eu, 0 pri-
modo geral, o pensamento dos economistas do século XVIII rnerro grande abalo no s1sterna da polícia, no sentido em
- não somente opõem a um certo número de teses outras que se entenclia esse termo no século XVII e no início do sé-
teses, mas principalmente [reintroduzem]* na análise e nos culo XVIII.
objetivos de urna intervenção política a prôpria agricultura, Segunda tese. A segunda tese, vocês se lembram, era a
o lucro agrícola, as possibilidades do investimento agrícola, segumte: se o cereal for bem pago, isto é, se se deixar 0 pre-
ço do cereal subrr, de certo modo, tanto quanto ele quiser,
tanto qu!flto po~sível em função da oferta e da demanda,
* M.F.: ela reintroduz em funçao da randade e do desejo dos consumidores, se se
462 SEGURANÇA_ TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DESDE ABRIL DE 1978 463

deixar o cereal subir, o que vai acontecer? Pois bem, o cereal as pessoas não vão querer vender seu cereal, quanto mais
con_tinuará a subir i;>definidamente, seu preço se estabele- se tentar baixar os preços, mais a escassez se agravará, mais os
cera, se estabelecera nem alto nem baixo demais, simples- preços tenderão a subir. Por conseguinte, não apenas as coi-
mente se estabelecerá num valor que é o valor justo. É a tese sas não são flexíveis, como são de certo modo recalcitrantes
~o preço justo". E o_preço do cereal se fixará nesse valor que elas se voltam contra os que desejam modificar seu curso:
e JUSto por que razao? Pms bem, primeiro porque, se o ce- Obtém -se exatamente o resultado inverso ao que se queria.
real :stiver num preço alto demais, os agricultores não he- Recalcitrância das coisas, por conseguinte. Não só essa re-
Sitarao em semear tanto quanto puderem, pois, justamente, gulamentação não vai no sentido desejado, mas ela é sim-
o preço está bom e eles esperam bons ganhos. Se semea- plesmente inútil. E a regulamentação de polícia é inútil, pois
rem mmto, as colheitas serão melhores. Quanto melhores justamente, como mostra a análise de que eu lhes falava há
forem as colheitas, menor, é claro, será a tentação de acu- pouco, há uma regulação espontânea do curso das coisas. A
mular o cereal aguardando o momento de escassez. Logo, regulamentação não só é nociva, como, pior ainda, é inútil.
todo o cereal será comercializado. E, se o preço for bom, os Assim, é preciso substituir a regulamentação mediante a au-
e~trangerros ev~dentemente vão tentar enviar o máximo pos- toridade de polícia por uma regulação que se faz a partir e
siVel de tngo para aproveitar o máximo possível esse bom em função do curso das próprias coisas. Segundo grande
preço, ~e sorte que, quanto mais alto for o preço, mais ele abalo que sofre o sistema da Polizei, da polícia.
tend~ra a se fixar e a se estabilizar. Pois bem, esse segundo Terceira tese que encontramos nos economistas é a de
pnnc1p10 que os economistas defendem, vocês vêem que que a população não constitui, em si, um bem. Aqui tam-
ele questiona--: o quê? Nã~ mais o objeto urbano, que era o bém, ruptura essencial. No sistema da polícia, o que eu evo-
ob)eto pnvile~ado da políc1a. Ele questiona outra coisa, a cava na última vez, a única maneira em que a população era
mstrumentaçao pnnc1pal do sistema de polícia, a saber, jus- levada em consideração era ver nela, primeiro, o fator quan-
tamente a re_gulamentação, essa regulamentação de que eu tidade: há população bastante? E a resposta sempre era:
lhes cfu1a ha pouco que era, [no modo] de uma disciplina nunca há população bastante. Nunca há população bastan-
generalizada, a forma essencial na qual havia sido pensada te por quê? Porque se necessita de mais braços para traba-
a possibilidade e a necessidade da intervenção da polícia. O lhar muito e fabricar muitos objetos. Necessita-se de mui-
postulado dessa r~gulamentação Rolicial era, é claro, que as tos braços para evitar que os salários subam demais e para
cmsas eram mdefirudamente fleoaveis e que a vontade do garantir, por conseguinte, um preço de custo mínimo para as
soberano, ou então, essa racionalidade imanente à ratio à coisas que se tem de fabricar e comercializar. São necessá-
~azão de Estado, podia,obter as coisas que ela queria. ~' rios muitos braços, contanto, é claro, que esses braços este-
e exatamente 1sso que e questionado na análise dos econo- jam todos trabalhando. São necessários, por fim, muitos
mistas.~ coisas não s~o flexí~eis, e não são flexíveis por braços e braços trabalhando, contanto que sejam dóceis e
du_as razoes.!' pnmerra e que nao apenas há certo curso das apliquem efetivamente os regulamentos que lhes são im-
co1sas que nao_se po~e modificar e que, precisamente, ten- postos. Numerosos, trabalhadores, dóceis, ou melhor, mui-
tando modifica-lo, so se faz agravá-lo. Assim, explicam os tos trabalhadores dóceis- tudo isso vai assegurar a quanti-
economiStas, quando o cereal rareia, é caro. Se se quiser im- dade, de certo modo, eficaz de que se necessita para uma
pedir que o cereal raro não seja caro valendo-se de regula- boa polícia. O único dado natural que se introduz na má-
mentos que fixem seu preço, o que vai acontecer? Pois bem, quina é a quantidade. Fazer de modo que as pessoas se re-
464 SEGURANÇA, TERRITORIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978 465

produzam, e se reproduzam o máximo possível. E fora des- lação num ponto dado- pois bem, se vocês examinarem as
sa variável quantidade, os indivíduos que constituem a po- co1sas numa certa escala de tempo, esse número vai ser
pulação não são nada além de súditos, súditos de direito ou ajustado em função da situação e sem que se tenha de in-
súditos de polícia, se vocês quiserem, em todo caso súditos tervrr, em absoluto, ~om uma regulação. A população não é
que têm de aplicar regulamentos. portanto um dado mdefinidamente modificável. É essa a
Com os economistas, vamos ter uma maneira totalmen- terceira tese.
te diferente de conceber a população. A população como A quarta tese que encontramos nos economistas é a
objeto de governo não vai ser uma certa quantidade ou o seguinte: deixa; agn- a liberdade de comércio entre os paí-
maior número de indivíduos trabalhando e aplicando regu- ses. Aqm tru:'bem diferença fundamental em relação ao sis-
lamentos. A população vai ser sempre outra coisa. Por quê? tema da políoa. No SIStema da polícia, tratava-se, vocês se
Primeiro porque, para os economistas, o número mesmo não lembr~, de faz~r de tal m~do que se mandasse para os ou-
é, em si, um valor. Claro, é preciso bastante população para tros pa!Se~ o m~o poss1vel de mercadorias, para extrair
produzir muito, e principalmente bastante população agrí- desses pruses o maxirno possível de ouro e assegurar o re-
cola. Mas não é preciso demais, e não deve ser demais, jus- tomo desse ouro ou a VInda desse ouro para o país, e era
tamente para que os salários não sejam baixos demais, isto esse um dos elementos fundamentais desse crescimento
é, para que as pessoas tenham interesse em trabalhar e d~s forças, que era o objetivo da polícia. vai se tratar agora,
também para que possam, pelo consumo de que são capa- nao de vende~, de certo J?Odo, a toda força para repatriar ou
zes, sustentar os preços. Logo, não há valor absoluto da po- unportar o ~axuno possJVel de ouro, vai se tratar agora, nes-
pulação, mas simplesmente um valor relativo. Há um nú- sas novas tecrucas de govemamentalidade que os econo-
mero ótimo desejável de gente num território dado, e esse nustas evocam, de integrar os países estrangeiros a meca-
número desejável varia em função tanto dos recursos como rusmos de regulação que vão atuar no interior de cada país.
do trabalho possível e do consumo necessário e suficiente Aprove1tar os altos preços p~aticados n'?s países estrangei-
para sustentar os preços e, de modo geral, a economia. Se- ros para enVIar para eles o maxuno possJVel de cereais e dei-
gundo, esse número que não é em si um valor absoluto, xar os preços praticados em casa subirem para que 0 trigo
esse número não deve ser estabelecido autoritariamente. estrangerro, os cererus estrangerros possam vir. Vai-se deixar
Não é para fazer como aqueles utopistas do século XVI, que portan_t~ a!Pt" a concorrência, mas c~ncorrência e~tre o que
diziam: vejam qual é, grosso modo, o número de pessoas su- e o que. Nao, JUstamente, a concorrenoa-competíção entre
ficiente e necessário para constituir as cidades felizes. Na os Estados, de que eu lhes fala""; na última vez e que era 0
verdade, o número de pessoas vai se ajustar por si próprio. SIStema ao mesmo tempo da polícJa e do equilfbrio das for-
Ele vai se ajustar em função precisamente dos recursos que ças no espaço europeu. Vai-se deixar agir uma concorrência
serão postos à sua disposição. Deslocamento da população, entre os particulares, e é precisamente esse jogo do interes-
eventualmente regulação dos nascimentos (deixo esse pro- se dos particulares fazendo concorrência uns aos outros e
blema de lado, azar), em todo caso há uma regulação es- procurando cada um por si o lucro máximo, é isso que vai
pontànea da população que faz [que]- e isso todos os eco- pernutír que o Estado, ou a coletividade, ou ainda toda a po-
nomistas dizem, Quesnay em particular insiste nesse ponto" pulação embolsem, d<; certo modo, o ganho dessa conduta
- sempre se terá o número de pessoas que é naturalmente dos p~rtícular:s, Isto e, ter cereais ao preço justo e ter uma
determinado pela situação, aqui, num ponto dado. A popu- s1tuaçao econonuca que seja a mais favorável possível. A fe-
466 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AUlA DE 5 DE ABRIL DE 1978 467

licidade do conjunto, a felicidade de todos e de tudo, vai de- gerais, é no âmbito do problema do que se chama ou do
pender de quê? Não mais, justamente, da intervenção au- que se chamará de economia que tudo isso acontece. Em
toritária do Estado que vai regulamentar, sob a forma da todo caso, é bom ficar claro que os primeiros a fazer, no sé-
polícia, o espaço, o território e a população. O bem de to- culo XVTI1, a crítica do Estado de polícia, não foram os juris-
dos vai ser assegurado pelo comportamento de cada um, tas. Houve por certo muito ranger de dentes entre os juristas
contanto que o Estado, contanto que o governo saiba dei- no século XVII, menos, por sinal, do que no século XVIII,
xar agir os mecanismos do interesse particular, que estarão quando, postos em presença do Estado de polícia e do que
assim, por fenômenos de acumulação e de regulação, ser- isso implicava quanto às modalidades diretas de ação do
vindo a todos. O Estado não é portanto o princípio do bem poder régio e da sua administração, eles foram até certo
de cada um. Não se trata, como era o caso da polícia -lem- ponto reticentes, às vezes críticos em relação ao nascimen-
brem-se do que eu lhes dizia da última vez-, de fazer de tal to desse Estado de polícia. Mas isso sempre em referência a
modo que o melhor viver de cada um seja utilizado pelo Es- certa concepção tradicional do direito e dos privilégios que
tado e retransmitido em seguida como felicidade da totali- eram reconhecidos por esse direito aos indivíduos. Não se
dade ou bem-estar da totalidade. Trata-se agora de fazer de tratava, para eles, de nada mais que limitar um poder régio
tal modo que o Estado não intervenha senão para regular, que se tomava, aos olhos deles, cada vez mais exorbitante.
ou antes, para deixar o melhor-estar de cada um, o mteres- Nunca houve entre os juristas, mesmo entre os que critica-
se de cada um se regular de maneira que possa de fato se:c- ram o Estado de polícia, tentativa ou esforço para definir
vir a todos. O Estado como regulador dos mteresses, e nao uma nova arte de governar. Em compensação, os que fize-
mais como principio ao mesmo tempo transcendente e sin- ram a crítica do Estado de polícia em função da eventuali-
tético da felicidade de cada um, a ser transformada em feli- dade, da possibilidade, em função do nascimento de uma
cidade de todos. É essa, a meu ver, uma mudança capital nova arte de governar, pois bem, foram os economistas.
que nos põe em presença dessa coisa que vai ser, para a his- Creio, aliás, que se deve pôr de certo modo em paralelo es-
tória dos séculos XVIII, XIX e também XX, um elemento es- sas duas grandes familias que se fazem eco a um século de
sencial, a saber: qual deve ser o jogo do Estado, qual deve intervalo e que eram, na realidade, profundamente opostas.
ser o papel do Estado, qual deve ser a função do Estado em Como vocês se lembram, no início do século XVII tivemos*
relação a um jogo que, em si, é um jogo fundamental e na- o que foi percebido na época como uma verdadeira seita,
tural, que é o jogo dos interesses particulares? como uma espécie de heresia, que eram os políticos". Os
Vocês estão vendo como, através dessa discussão sobre políticos eram os que definiam uma nova arte de governar
os cereais, sobre a polícia dos cereais, sobre os meios de evi- em termos que não eram mais os da grande, como dizer? ...,
tar a escassez alimentar, o que se vê esboçar-se é toda uma conformidade à ordem do mundo, à sabedoria do mundo,
forma nova de govemamentalidade, oposta quase termo a a essa espécie de grande cosmoteologia que servía de mar-
termo à govemamentalidade que se havia esboçado na idéia co para as artes de governar da Idade Média e ainda do sé-
de um Estado de polícia. Oaro, encontrariamos certamente culo XVI. Os políticos eram os que disseram: vamos deixar
no século xvm, na mesma época, muitos outros sinais des- de lado esse problema do mundo e da natureza, procure-
sa transformação da razão governamental, desse nascimen-
to de uma nova razão governamental. Creio ainda assim
que o importante, o importante é salientar que, em linhas "' M. Foucault acrescenta: o que foi apresentado
468 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978 469

mos saber qual a razão intrínseca da arte de governar, defi- !idade de Estado, razão de Estado que continua de fato a do-
namos um horizonte que possibilite estabelecer exatamen- minar o pensamento dos economistas vai se modificar, e
te quais devem ser os princípios racionais e as formas de são algumas dessas modificações essenciais que eu gostaria
cálculo especificas de uma arte de governar. E, recortan~o de identificar.
assim o domfnio do Estado no grande mundo cosmoteolo- Primeiro, vocês estão vendo que uma análise como a
gico do pensamento medieval e do pensamento da Renas- que eu evocava há pouco, muito esquematicamente, a pro-
cença, eles definiram uma nova raciOnalidade. Heresm_fun- pósito da polícia dos cereais e da nova economia, em que
damental, heresia dos políticos. Pois bem, quase :'m seculo esse problema era pensado, vocês estão vendo que essa
depois apareceu uma nova seita, percebida por smal!gual- análise se refere a todo um domínio de processos que po-
mente como seita" a dos economistas. Economistas que dem, até certo ponto, ser ditos naturais. Voltemos um ins-
eram heréticos em 'relação a quê? Não mais em relação a tante ao que eu lhes dizia algumas semanas atrás"'. Na tra-
esse grande pensamento cosmoteológico da soberania, mas dição que, grosso modo, era a tradição medieval e também a
heréticos em relação a um pensamento ordenado em to:no da Renascença, um bom governo, um reino bem ordenado,
da razão de Estado, heréticos em relação ao Estado, hereti- como eu lhes disse, era o que fazia parte de toda uma or-
cos em relação ao Estado de polícia, e foram eles que mven- dem do mundo e que era querido por Deus. Inscrição, por
taram uma nova arte de governar, sempre em termos de ra- conseguinte, do bom governo nesse grande marco cosmo-
zão, claro, mas de uma razão que não era mais a razão de teológico. Em relação a essa ordem naturaL a razão de Es-
Estado, ou que não era mais apenas a razão de Es!ado, que tado havia portanto introduzido um recorte, ou mesmo um
era, para dizer as coisas mais precisamente, a razao de _Es- corte radical: era o Estado, o Estado que surgia e que fazia
tado modificada por essa cmsa nova, esse novo d_?muuo aparecer uma nova realidade com sua racionalidade própria.
que estava aparecendo e que era a ~conoJIUa, A razao eco- Ruptura portanto com essa velha naturalidade que demar-
nómica está, não substituindo a razao de Estado, mas dan- cava o pensamento político da Idade Média. Não-naturali-
do um novo conteúdo à razão de Estado e dando, por con- dade, artificialidade absoluta, por assim dizer, em todo caso
seguinte, novas formas à racionalidade de Estado. Nova go- ruptura com essa velha cosmoteologia - o que, aliás, havia
vemamentalidade que nasce com os econormstas mrus de acarretado as críticas de ateísmo de que lhes falei'". Artificia-
um século depois da outra govemamentalidade [ter] apare- lismo dessa govemamentalidade de polícia, artificialismo
cido no sêculo XVII. Governamentalidade dos políticos que dessa razão de Estado.
vai nos dar a polícia, govemamentalidade dos economistas Mas eis que agora, com o pensamento dos economis-
que vai, a meu ver, nos introduzir em algumas das linhas tas, vai reaparecer a naturalidade, ou antes, uma outra na-
fundamentais da govemamentalidade modema e contem- turalidade. É a naturalidade desses mecanismos que fazem
porânea. . que, quando os preços sobem, se se deixar que subam, eles
Oaro, é preciso ter presente que se continua na ordem vão se deter sozinhos. É essa naturalidade que faz que a po-
da razão de Estado. Ou seja, continua se tratando, nessa pulação seja atraída pelos altos salários, até um certo mo-
nova govemamentalidade esboçada pelos economistas, de mento em que os salários se estabilizam e, com isso, a popu-
ter por objetivo o aumento das forças do Estado dentro de lação não aumenta mais. É portanto uma naturalidade que,
um certo equih'brio, equih'brio externo no espaço europeu, como vocês estão vendo, não é mais de maneira nenhuma
equih'brio interno sob a forma da ordem. Mas essa raciOna- do mesmo tipo da naturalidade do cosmo, que demarcava e
470 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
AUlA DE 5 DE ABRIL DE 1978 471

sustentava a razão governamental da Idade Média ou do tado, a urna racionalidade de polícia CjUe continuava a lidar
século XVI, É urna naturalidade que vai ser oposta justa- apenas com urna coleção de súditos. É o primeiro ponto que
mente à artificialidade da política, da razão de Estado, da eu quena salientar.
polícia. Vão opô-la a ela, mas segundo modos totalmente O segundo ponto é que, nessa nova governamentali-
específicos e particulares. Não são processos da própria na- dade e correlativamente a esse novo horizonte de natura-
tureza, entendida corno natureza do mundo, é urna natura- lidade social, vocês vêem aparecer o terna de um conheci-
lidade específica às relações dos homens entre si, ao que rr;ento, e de um conhecimento que é - eu ia dizendo espe-
acontece espontaneamente quando eles coabitam, quan- cífico ao governo, mas não seria de todo exato. De fato, o
do estão juntos, quando intercambiam, quando trabalham, que ternos com esses fenômenos naturais de que os econo-
quando produzem[ ... ]. Ou seja, é urna naturalidade de algo rrustas falavam? Ternos processos que podem ser conheci-
que, no fundo, ainda não havia tido existência até então dos J'Or procedimentos de conhecimento que são do mes-
e que, se não é designado, pelo menos começa a ser pensa- mo tipo que qualquer conhecimento científico. A reivindi-
do e analisado corno tal: a naturalidade da sociedade. cação de racionalidade científica, que não era em absoluto
A sociedade corno urna naturalidade específica à exis- colocada pelos mercantilistas, é colocada em compensação
tência em comum dos homens, é isso que os economistas, pelos econ~rnistas do século XVIIT, que vão dizer que a re-
no fundo, estão fazendo emergir corno domínio, corno carn- gra da eVIdenCia deve ser a que se aplica a esses dorrúnios".
po de objetos, corno dorrúnio possível de análise, corno do- Por conseguinte, não é mais essa espécie de cálculos de for-
rrúnio de saber e de intervenção. A sociedade corno campo ças, cálculos diplomáticos, que a razão de Estado faz inter-
específico de naturalidade própria do homem: é isso que vai vir no século XVII. É um conhecimento que, em seus pró-
fazer surgir corno vis-à-vis do Estado o que se chamará de pnos procedimentos, deve ser um conhecimento científico. •
sociedade civil". O que é a sociedade civil, senão predsa- Em segundo lugar, esse conhecimento científico é absolu-
mente esse algo que não se pode pensar corno sendo sim- tame~te indispensável para um bom governo. Um governo
plesrnente o produto e o resultado do Estado? Mas tam- que nao levasse em conta esse gênero de análise, o conhe-
pouco é algo que é corno que a existência natural do ho- cimento desses processos, que não respeitasse o resultado
mem. A sociedade civil é o que o pensamento governamen- desse gênero de conhecimento, esse governo estaria fada-
tal, as novas formas de governamentalidade nascidas no do ao fracasso. Vê-se isso bem quando, contra todas as re-
século XVIll fazem surgir corno correlativo necessário do gras da evidên~ia e da racionalidade, ele regulamenta por
Estado. De que o Estado deve se ocupar? O que ele deve to- exerr;plo o comercio dos cererus, estabelece preços máximos:
rnar a seu encargo? O que ele deve conhecer? O que ele age as cegas, contra os seus interesses, literalmente se en-
deve, se não regulamentar, pelo menos regular, ou de que gana, e se engana em termos científicos. Logo, ternos aí um
ele deve respeitar as regulações naturais? Não de urna na-
tureza de certo modo primitiva, nem tampouco de urna sé- *O manuscrito precisa (folha 21 de uma aula não paginada): "Es-
rie de súditos indefinidamente submetidos a urna vontade se conhecimento é a economia política, não corno simples conhecimen-
soberana e sujeitável às suas exigências. O Estado tem a seu to de procedimentos para enriquecer o Estado, mas como conhecimento
encargo urna sociedade, urna sociedade civil, e é a gestão dos p~essosA qu~ ligam as variações de riquezas e as variações de po-
dessa sociedade civil que o Estado deve assegurar. Muta- pulaçao em três eiXos: produção, circulação, consumo. Nascimento, pois,
da economia política."
ção fundamental, está claro, em relação a urna razão de Es-
472 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE S DE ABRIL DE 1978
473

conhecimento científico indispensável ao governo, mas o ca, a riqueza se transforma, a riqueza aumenta ou diminui.
que é muito importante é que não é um conhecimento de Pois bem, por processos que não são os mesmos mas que são
certo modo do próprio governo, interno ao governo. Ou do mesmo tipo ou, em todo caso, que são igualmente natu-
seja, já não é, em absoluto, um conhecim~nto interno à ~e rais, a população vai se transformar, vai crescer, decrescer,
de governar, já não é simplesmente um cálculo que devena_ se ~eslocar. Existe pois uma naturalidade intrínseca à popu-
nascer no interior da prática dos que governam. Temos ru laçao. Eé p~r outro lado, outra característica específica da
uma ciência que está de certo modo num cara a cara com a populaçao e que se produz entre cada um dos indivíduos e
arte de governar, ciência que é exterior e que, mesmo quem todos os outros toda uma série de interações, de efeitos cir-
não é governante, mesmo quem não participa dessa arte de culares, de efeitos de difusão que fazem que haja, entre um
governar, pode perfeitamente fundar, estabel:cer: desen- indivíduo e todos os outros, um vínculo que não é o vincu-
volver, provar de fio a pavio. Mas, das consequenClas dessa lo constituído e desejado pelo Estado, mas que é espontâ-
ciência, dos resultados dessa ciência, o governo não pode neo. É essa lei da mecânica dos interesses que vai caracte-
prescindir. Logo, como vocês estão vendo, aparecime~to de rizar a população. Naturalidade da população, lei de com-
uma relação entre o poder e o saber, o governo e a Clencm, posição dos interesses no interior da população, eis que a
que é de um tipo bem particular. Essa espéci<; de unidade população, como vocês estão vendo, aparece como uma rea-
que ainda continuava a funcionar, essa espec1e de mag- lidade muito mais densa, espessa, natural, do que aquela
ma, se vocês quiserem, mais ou menos confuso de uma arte série de súditos submetidos ao soberano e à intervenção da
de governar, que seria ao mesmo tempo saber e poder, ciên- polícia, mesmo em se tratando da polícia no sentido lato e
cia e decisão, começa a se decantar e a se separar, e em todo pleno do termo, tal como era empregado no século XVII. E,
caso dois pólos aparecem: uma cientificidade que vai cada com isso, se a população é efetivamente dotada dessa natu-
vez mais reivindicar sua pureza teórica, que vai ser a econo- ralidade, dessa espessura e desses mecanismos internos de
mia' e, depois que vai reivindicar ao mesmo tempo o direi- regulação, vocês vêem que vai ser preciso que o Estado as-
to de ser levada em consideração por um governo que terá suma, não mais propriamente os indivíduos a serem sub-
de modelar por ela suas decisões. Era o segundo ponto im- metidos, e a serem submetidos a urna regulamentação, mas
portante, a meu ver. essa nova realidade. Assunção da população em sua natu-
Terceiro ponto importante nessa nova governamenta- ralidade - vai ser o desenvolvimento de certo número, se
lidade é, evidentemente, o surgimento sob novas formas do não de ciências, pelo menos de práticas, de tipos de inter-
problema da população. Até então, no fundo, não se trata- venção, que vão se desenvolver na segunda metade do sé-
va tanto da população quanto do povoamento ou, também, culo XVIII. Vai ser, por exemplo, a medicina social, enfim o
do contrário da depopulação. Quantidade, trabalho, docili- que era chamado nessa época de higiene pública, vão ser os
dade, de tudo isso já falamos. Agora, a população, vai apa- problemas da ~emografia, enfim tudo o que vai fazer surgir
recer como uma realidade ao mesmo tempo especifica e re- uma nova funçao do Estado, de assunção da população em
lativa: relativa aos salários, relativa às possibilidades de tra- sua própria naturalidade. A população como coleção de sú-
balho, relativa aos preços, mas também específica, em dois ditos é substituida pela população como conjunto de fenô-
sentidos. Primeiro, a população tem suas próprias leis de menos naturais.
transformação, de deslocamento, e é submetida a processos A quarta grande modificação da governamentalidade é
naturais tanto quanto a própria riqueza. A riqueza se deslo- a seguinte: é que, se efetivamente os fatos de população, os
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processos econômicos obedecem a processos naturais, o que usurpações, aos abusos do soberano ou do governo, mas [da]
isso quer dizer? Quer dizer, claro, que não apenas não ha- liberdade que se tomou um elemento indispensável à pró-
verá nenhuma justificação, mas não haverá nem mesmo in- pria govemamentalidade. Agora só se pode governar bem se,
teresse algum em tentar lhes impor sistemas regulamenta- efetivamente, a liberdade ou certo número de formas de li-
res de injunções, de imperativos, de proibições. O papel do berdade forem respeitados. Não respeitar a liberdade é não
Estado e, por conseguinte, a forma de govemamentalidade apenas exercer abusos de direito em relação à lei, mas é
que doravante vai lhe ser prescrita, essa forma de governa- principalmente não saber governar corno se deve. A inte-
mentalidade vai ter corno princípio fundamental respeitar gração das liberdades e dos limites próprios a essa liberda-
esses processos nahrrais ou, em todo caso, levá-los em con- de no interior do campo da prática governamental tomou-
ta, fazê-los agir ou agir com eles. Ou seja, de um lado, a in- se agora um imperativo.
tervenção da govemamentalidade estatal deverá ser limita- Vocês estão vendo corno se desarticula essa grande po-
da, mas esse limite posto à govemamentalidade não será lícia super-regulamentar, digamos assim, de que eu lhes ha-
simplesmente urna espécie de marco negativo. No interior via falado. Essa regulamentação do território e dos súditos
do campo assim delimitado, vai aparecer todo um domínio que ainda caracterizava a polícia do século xvn, tudo isso
de intervenções, de intervenções possíveis, de intervenções deve ser evidentemente questionado, e vamos ter agora um
necessárias, mas que não terão necessariamente, que não sistema de certo modo duplo. De um lado, vamos ter toda
terão de um modo geral e que muitas vezes não terão em urna série de mecanismos que são do domínio da econo-
absoluto a forma da intervenção regulamentar. Vai ser pre- mia, que são do domínio da gestão da população e que te-
ciso manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso faci- rão justamente por função fazer crescer as forças do Estado
litar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras e, de outro lado, certo aparelho ou certo número de instru-
palavras, gerir e não mais regulamentar. Essa gestão terá es- mentos que vão garantir que a desordem, as irregularidades,
sencialmente por objetivo, não tanto impedir as coisas, mas os ilegaiismos, as delinqüências sejam impedidas ou reprimi-
fazer de modo que as regulações necessárias e naturais das. Ou seja, o que era o objeto da polícia, no sentido clás-
atuern, ou também fazer regulações que possibilitem as re- sico do termo, no sentido dos séculos XVII-XVIII- fazer a
gulações naturais. Vai ser preciso portanto enquadrar os fe- força do Estado crescer respeitando a ordem geral -, esse
nômenos naturais de tal modo que eles não se desviem ou projeto unitário vai se desarticular, ou antes, vai tomar cor-
que urna intervenção desastrada, arbitrária, cega, não os faça po agora em instituições ou em mecanismos diferentes. De
desviar. Ou seja, vai ser preciso instituir mecanismos de se- um lado, teremos os grandes mecanismos de incentivo-re-
gurança. Tendo os mecanismos de segurança ou a interven- gulação dos fenômenos: vai ser a economia, vai ser a gestão
ção, digamos, do Estado essencialmente corno função ga- da população, etc. De outro, teremos, com funções simples-
rantir a segurança desses fenômenos naturais que são os mente negativas, a instituição da polícia no sentido moder-
processos econômicos ou os processos intrínsecos à popu- no do termo, que será simplesmente o instrumento pelo
lação, é isso que vai ser o objetivo fundamental da governa- qual se impedirá que certo número de desordens se produ-
mentalidade. za. Crescimento dentro da ordem, e todas as funções posi-
Daí, enfim, a inscrição da liberdade não apenas corno tivas vão ser asseguradas por toda urna série de instituições,
direito dos indivíduos legitimamente opostos ao poder, às de aparelhos, de mecanismos, etc., e a eliminação da desor-
476 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO AUlA DE 5 DE ABRIL DE 1978
477

dem -será essa a função da polícia. Com isso, a noção de po- bram, como a pastoral e o governo dos homens tinham se
lícia se altera inteiramente, se marginaliza e adquire o sen- e~tabeleodo [e] se dese:'volvido, com a intensidade que vo-
tido puramente negativo que conhecemos. ces sabem, na Idade Media, tinham suscitado, como proje-
Numa palavra, pode-se dizer que a nova govemamen- to de conduzrr os homens, certo número de contracondu-
talidade que, no século XVII, tinha acreditado poder aplicar- tas, ou antes, como correlativamente tinham se desenvolvi-
se inteira num projeto exaustivo e unitário de polícia, vê-se do a arte, o projeto e as instituições destinadas a conduzir
agora numa situação tal que, de um lado, terá de se referir os homens e as contracondutas que se opuseram a isso: to-
a um domínio de naturalidade que é a economia. Terá de d_?s aqueles moVImentos de resistência ou de transforrna-
administrar populações. Terá também de organizar um sis- çao da conduta pastoral que enumerei. Pois bem, creio que
tema jurídico de respeito às liberdades. Terá enfim de se do- se podena dizer praticamente a mesma coisa, em todo caso
tar de um instrumento de intervenção direto, mas negativo, fazer a mesma análise quanto à govemamentalidade em
que vai ser a polícia. Prática económica, gestão da popula- sua_forma modema. E, no fundo, eu me pergunto se não po-
ção, um direito público articulado no respeito à liberdade e denamos estabelecer um certo número, não digo exata-
às liberdades, uma polícia com função repressiva. Comovo- mente d~ analogias, mas de certo modo de correspondên _
cês estão vendo, o antigo projeto de polícia, tal como havia cras. Eu tinha procurado lhes mostrar como, entre a arte pas-
aparecido em correlação com a razão de Estado, se desarti- toral de conduzir os homens e as contracondutas que lhe
cula, ou antes, se decompõe entre quatro elementos- prá- e:am absolutar_;>ente contemporâneas, vocês têm toda uma
tica económica, gestão da população, direito e respeito às li- sene de mtercambws, de apoios recíprocos, e era mais ou
berdades, polícia -, quatro elementos que vêm se somar ao menos das m:smas co_isas que se tratava. Pois bem, eu me
grande dispositivo diplomático-militar que, por sua vez, não pergunto se nao podenamos fazer a análise do que poderia_
foi modificado no século XVIII. mos chamar de contracondutas no sistema moderno de go-
Temos portanto a economia, a gestão da população, o vemamentalidade do seguinte modo: dizendo que, no fun-
direito, com o aparelho judiciário, [o] respeito às liberdades, do,~ as contracondutas que vemos se desenvolver em corre-
um aparelho policial, um aparelho diplomático, um aparelho Iaçao com a govemamentalidade modema têm como obje-
militar. Vocês estão vendo que é perfeitamente possível fazer to os mesmos elementos dessa govemamentalidade, e que
a genealogia do Estado moderno e dos seus aparelhos, não VImos se desenvolver, a partir de meados do século XVIII
precisamente a partir de uma, como eles dizem, ontologia toda uma série de contracondutas que têm essencialment~
circular" do Estado que se afinna e cresce como um grande por _?bJetivo, preCisamente, recusar a razão de Estado e as
monstro ou uma máquina automática. Podemos fazer a ge- eXJgenoas fundamentais dessa razão de Estado e que vão
nealogia do Estado moderno e dos seus diferentes aparelhos se ap01ar naquil.? mesmo que essa razão de Estado, através
a partir de uma história da razão governamental. Sociedade, das transforrnaçoes que eu lhes havia indicado, havia termi-
economia, população, segurança, liberdade: são os elemen- nado por fazer surgir, ou seja, justamente nestes elementos
tos da nova govemamentalidade, cujas formas, parece-me, que sao a s.?credade oposta ao Estado, a verdade económi-
ainda conhecemos em suas modificações contemporâneas. ca em relaçao ao erro, à .i~compreensão, à cegueira, 0 inte-
Se vocês me derem mais dois ou três minutos, gostaria resse de todos em opos1çao ao interesse particular, 0 valor
de acrescentar o seguinte. Tentei lhes mostrar, vocês se !em- absoluto da populaçao como realidade natural e viva, a se-
478 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPU!AÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978 479

gurança em relação à insegurança e ao perigo, a liberdade dai da vassalagem, mas na forma de uma obediência total e
em relação à regulamentação. exaustiva, em sua conduta, a tudo o que pode ser um impe-
De modo mais esquemático e para resumir tudo o que rativo do Estado. Agora vamos ver se desenvolverem con-
eu gostaria de ter dito a vocês sobre esse ponto, poderíamos tra~ondutas, reivindicações na forma da contraconduta, que
dizer o seguinte. No fundo, a razão de Estado, como vocês terao como sentido o seguinte: deve haver um momento
se lembram, havia posto como primeira lei, lei de bronze da em que a população, rompendo com todos os vinculas de
govemamentalidade modema e, ao mesmo tempo, da ciên- obediência, terá efetivamente o direito, não em termos jurí-
cia histórica, que agora o homem deve viver em um tempo dicos, mas em termos de direitos essenciais e fundamentais
indefinido. Governos sempre haverá, o Estado sempre esta- de romper todos os vínculos de obediência que ela pode te;
rá aí e não esperem por uma parada. A nova historicidade com o Estado e, erguendo-se contra ele dizer doravante: é
da razão de Estado excluía o Império dos últimos tempos, mi~ha lei, é a lei das minhas exigência's, é a lei da minha
excluía o reino da escatologia. Contra esse tema que foi for- propna natureza depopulação, é a lei das minhas necessi-
mulado no fim do século XVI e que ainda permanece hoje da,de~ fundamentais que deve substituir essas regras da obe-
em dia, vamos ver se desenvolverem contracondutas que diencia: Escatologia, por conseguinte, que vai tomar a forma
terão precisamente por princípio afirmar que virá o tempo do d_ireito absoluto à revolta, à sedição, à ruptura de todos
em que o tempo terminará, que têm [terão] por princípio os vmculos de obediência - o direito à própria revolução.
colocar a possibilidade de uma escatologia, de um tempo Segunda grande forma de contraconduta.
último, de uma suspensão ou de um acabamento do tem- E, enfim, a propósito da razão de Estado, tentei lhes
po histórico e do tempo político, o momento, por assim di- mostrar ~orno e!a implicava que o Estado ou os que o repre-
zer, em que a govemamentalidade indefinida do Estado será sentam e que sao os detentores de uma certa verdade sobre
detida e parada por o quê? Pois bem, pela emergência de os home~s, sobre a população, sobre o que acontece dentro
algo que será a própria sociedade. No dia em que a socie- do temtono e na massa geral constituída pelos indivíduos.
O Estado como detentor da verdade- a esse tema as con-
dade civil puder se emancipar das injunções e das tutelas do
tracondutas vão opor este: a própria nação, em s~a totali-
Estado, quando o poder de Estado puder enfim ser absorvi-
dade, deve ser capaz, num momento dado, de deter exala-
do por essa sociedade civil- essa sociedade civil que eu pro- mente, em cada um dos seus pontos bem como em sua
curei lhes mostrar como nascia na própria forma, na própria massa, a verdade s~bre o que ela é, o que ela quer e o que
análise da razão governamental-, com isso, o tempo, se não ela deve fazer. A Id<;Ia de uma nação titular do seu próprio
da história, pelo menos da política, o tempo do Estado ter- saber, ou runda a 1de1a de uma sociedade que seria transpa-
minará. Escatologia revolucionária que não parou de ator- rente a SI m~sma e que deteria a sua própria verdade, mes-
mentar os séculos XIX e XX. Primeira forma de contracon- rr:o que, alias, SeJa u!l' elemento dessa população ou tam-
duta: a afirmação de uma escatologia em que a sociedade bem urna orgaruzaçao, um partido, mas representativo de
civil prevalecerá sobre o Estado. toda a população, a formular essa verdade- de todo modo
Em segundo lugar, procurei lhes mostrar como a razão a verdade da sociedade, a verdade do Estado, a razão de Es~
de Estado colocou como princípio fundamental a obediên- tado, não cabe mais ao próprio Estado detê-las, é à nação
cia dos individuas e o fato de que, doravante, os vínculos de mterra que cabe ser titular delas. Aqui também, terceira gran-
sujeição dos indivíduos já não deviam se fazer na forma feu- de forma, a meu ver, de contraconduta, que, como vocês es-
480 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
481
tão vendo, se opõe termo a termo ao que caracteriza ara-
zão de Estado tal como ela surgiu no século XVI, mas que se •
apóia nessas diferentes noções, nesses diferentes elemen-
tos que apareceram na própria transformação da razão de Era o que eu queria lhes dizer. Tudo o que eu ueria fa-
Estado. ~r este ano era urna pequena experiência de mé~do para
Quer se oponha a sociedade civil ao Estado, quer se es mostrar que, a ~artir da análise relativamente local re-
oponha a população ao Estado, quer se oponha a nação ao la~varne~te microscopica dessas formas de poder caracteri-
Estado, como quer que seja, esses elementos é que foram za as pe o pastorado, a partir daí, era perfeitamente ossí-
postos em jogo no interior dessa gênese do Estado e do Es- ve\feio que sem par~doxo nem contradição, chegfr aos
tado moderno. São portanto esses elementos que vão en- pro ema_:; genl.ls que sao os do Estado, contanto, ·ustamen-
trar em jogo, que vão servir de objetivo ao Estado e ao que te, que [nao enJam?s] o Estado [como] urna realidade trans-
se opõe a ele. E, nessa medida, a história da razão de Esta- cende~te CUJa hiStona poderia ser feita a partir dela mesma
do, a história da ratio governamental, a história da razão A ~Istona do Estado deve poder ser feita a partir da , ..
governamental e a história das contracondutas que se opu- pratica dos homens, a partir do que eles fazem e da ~:~~
seram a ela não podem ser dissociadas uma da outra. • ~a como pensam. O Estado como maneira de fazer, o Esta-
o como maneira de pensar. Creio que e s - , [
* M. Foucault deixa de lado as duas últimas páginas do manuscri-
mente], a única possibilidade de análise q~eat:~:'q~=~~
to, nas quais, definindo os movimentos revolucionários como "contra- q~eremos fazer a história do Estado, mas é urna das ossi-
condutas, ou antes, tipos de contracond.utas que correspondem a essas bilidades, a meu ver, suficientemente fecunda, fecundfdade
formas de sociedade em que o 'governo dos homens' tomou-se um dos ~s_sa ligada, n? meu entender, ao fato de que se vê que não
atributos da sociedade, quando não sua função essencial", examina bre- a, entre o ruvel do micropoder e o nível do macro oder
vemente a q~estão da sua "herança religiosa": al~o como um corte, ao fato de que, quando se falapnum'
hwoca-se com freqüência a herança religiosa dos movimen- [nao] se exclw falar no outro. Na verdade um áli. '
term d · ' aan seem
tos revolucionários da Europa modema. Ela não é direta. Ou, em difi ~~ de micropod~res compatibiliza-se sem nenhuma
todo caso, não é uma filiação ideologia religiosa- ideologia revo- no ~oaE et cdom a análise de problemas como os do gover-
lucionária. O vínculo é mais complexo e não põe em relação ideo- s a o.
logias. Ao pastorado estatal se opuseram contracondutas que to-
maram emprestados ou modularam alguns dos seus temas com
base nas contracondutas religiosas. É, antes, do lado das táticas
antipastorais, das fraturas cismáticas ou heréticas, do lado das lu-
tas em tomo do poder da Igreja, que se deve procurar a razão de
certa coloração dos movimentos revolucionários. Em todo caso,
há fenômenos de filiação real: o socialismo utópico tem [certa-
mente?] raízes bem reais, não em textos, livros ou idéias, mas em
práticas identificáveis: comunidades, colônias, organizações reli- veu?] o processo revolucionário? A não ser que num , d
giosas, como os quakers nos Estados Unidos, na Europa Central, trutur tatal fr d ' paiS e es-
. a :s aca, e desenvolvimento econômico forte e de or
[...]e fenômenos de parentesco [ou] alternativa: o metodismo e a g~çao pastoral múltipla, as revoltas de conduta possam te d-
Revolução Francesa. Questão de ideologia religiosa que [absor- qwndo muito mais [paradoxahnente?] a forma "arcai " d r a -
nova pastoral. ca e uma
AUIA DE 5 DE ABRIL DE 1978 483

campagne, Paris, Gissey, 1758 (reimpr. Nlmes, Praxis, 1989) (com-


NOTAS pilação de regulamentos de polícia organizados por itens alfabé-
ticos); Du Chesne (tenente de polida em Vi!Iy-en-Charnpagne),
Code de la police, ou Analyse des ri!glements de po/ice, Paris, hault,
1757 W ed., 1768); J.-A. Sallé, r:Esprit des ordonnances et des prin-
cipaux édits déclarations de Louis xv; en matib'e civile, criminelle et
beneficia/e, Paris, Bailly, 1771; Nicolas Des Essarts, Dictionnaire
universel de police, Paris, Moutard, 1786-1791, 8 vols. (o qual, se-
gundo P.-M. Bondois, art. citado, p. 318, n. 1, "pilhou inteiramen-
te" o Traité de la police).
3. N. Delarnare, Traité de police, t. I, livro I, título I, p. 4: "[ ... ]
desde o nascimento do Cristianismo, os Imperadores e nossos
Reis acrescentaram a essa antiga divisão o cuidado e a disciplina
dos pobres, como parte considerável do bem público, de que não
se encontra nenhum exemplo na Polícia de Atenas, nem na da
Roma pagã".
4. Delamare, por sua vez, enumera apenas onze. a.,ibid.: "A
1. Nicolas Delamare: Traité de la police, "[j c~~~~~~:::,c~;;;; Polícia, a nosso ver, está portanto totalmente encerrada nessas
põe de três volumes publicados em~s, ~M. Brune! (t. III). Um onze partes que vimos de percorrer: a Religião; a Disciplina dos
(t.l), depois por Cotdem 17A10_~· Lec~!'du Brlnet, aluno de De-
!Caliza. costumes; a Saúde; os Víveres; a Segurança e a 'Itanqüilidade pú-
quarto volume re o por · · · d rt blica; as Estradas; as Ciências e as Artes Liberais; o Comércio, as
lamare, veio c~mpletar o con~~to qui~e ano~ad~~i~: a:~~t ~ Manufaturas e as Artes Mecânicas; os Servidores Domésticos, os
do autor: Continuation du Trazte de la polzce. D)eF H. . sa't 1738 Operários e os Pobres." Essa pequena diferença está no fato de
. 1 -pporl Paris - erns n ' .
qui en dépend ou quz Y a que que'" . : ' · · or M Brune! que Foucault aponta o teatro e os jogos como um item especial,
Reedição aumentada dos dois pnmerros volumes ) . dita 2a quando estão compreendidos no dos costumes, como explica De-
em 1722· Uma reedição fraudulenta
d "~
dos quadtroCvo umanhiaes,." em.
usta a omp , lamare, p. 4 (cf. nota seguinte), e distingue domínios que Delarna-
edição, apareceu em Amster am, a c . . Delamare et le re reúne. Em sua conferência '"Omnes et singulatirn"" (art. citado,
1729:1739 (P.~~- Bondois, "Le Com~~~~~o% 26], p. 322, n. 3). DE, N, p. 157), em compensação, ele fala dos" onze objetos da po-
Traite dela polzce 'art. atado [supra, PP· ' . . livros· I "De lícia", segundo Delamare.
o primeiro volume compreende os ~uatro&pnmoffie~?~,. n ."Í:>e la 5. Traité de la police, loc. cit.: "[ ...] enquanto os gregos pro-
. · · al & de ses Mag~strats oe ' ' põem como primeiro objeto da sua Polícia a conservação da vida
la Police en gener ,M ,_ nr "De la Santé". 0 segundo volu-
li . "·m "Des oeurs
Re gJ.On , .' . títul do livro V "Des Vivres". O terceiro vo-
I!V, natural, nós subordinamos esses cuidados aos que a podem tornar
me, os 23 p~merrc:s d lios o V O qu~o o livro VI, "De la Voirie". boa, e que dividimos, como eles, em dois pontos: a Religião e os
1 a contmuaçao o vr · ' Costumes". (a. ibid., p. 3: "Os primeiros legisladores dessas céle-
~r:anecendo inacabada, a obra defi~ti::t~~~~:~~op;:~~~=~ bres Repúblicas [gregas], considerando que a vida é a base de to-
parte - cerca ~a mset~~e d~~::~~dicados à segurança das ci- dos os outros bens que são objeto da Polícia, e que a própria vida,
re (faltam os livr~ q , .ências e às artes liberais, ao comércio, às se não for acompanhada por uma boa e sábia conduta.. e por to-
dos os recursos externos que lhe são necessários, não passa de um
dades e d~s ~stra as, a~ ais domésticos e operários, aos pobre~):
artes mecantcas, aos se ç. 'd F . . ville Dictionnaire ou Trazte bem muito imperfeito, dividiram toda a Polícia nessas três partes:
2 a Edrné de la Pmx e remm , . . a conservação, a bondade e os aprazimentos da vida.")
de la Palie~ générale des villes, bourgs, paroisses et selgneunes de la
484 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978
485
6. Ibid.: "Quando retomamos como segundo objeto a conser- do espetáculo. Foucault volta ao tema no curso seguinte. Cf. Nais-
vação da vida, ainda acompanhamos a esse respeito a mesma sub- sance de la biopolitique, op. dt., aula de 7 de fevereiro de 1979, p.117.
divisão, aplicando os cuidados da nossa Polícia a estas duas coisas 16. Cf. por exemplo Charles Loyseau, Traité des seigneuries
importantes: a saúde e a subsistência dos Cidadãos." (!608), que Fou~ault, nas folhas manuscritas sobre a polícia, a que
7. Ibid.: "No que concerne à comodidade da vida, que era o Ja fizemos referencia (supra, p. 442, nota 2), cita a partir de Dela-
terceiro objeto da Polícia dos Antigos, também a subdividimos como mare, Trazté de police, livro I, título I, p. 2: "É um direito, diz esse sá-
eJes em seis pontos: a Tranqüilidade pública; os cuidados com os bio Jurisconsulto, pelo qual é permitido fazer ex offido, pelo inte-
Edifícios, as Ruas, as Praças públicas e os Caminhos; as Ciências e resse do be?'l público e sem postulação de ninguém, Regulamen-
as Artes liberais; o Comércio; as Manufaturas; as Artes mecânicas; tos que obngam e que sujeitam todos os Odadãos de uma Oda-
os Domésticos e os operários." de, por seu bem e sua utilidade comum. E acrescenta que o poder
8. Ibid.: "Imitamos enfim essas antigas Repúblicas nos cuida- do Magistrado de Polícia se aproxima e participa muito mais do
dos que elas dispensaram a essa porção da Polícia que concerne poder do Príncipe, do que o do Juiz, que não tem outro direito se-
aos aprazimentos da vida. Há não obstante esta diferença entre os não o de pronunciar entre o Demandante e o Defensor."
antigos e nós: como os jogos e os espetáculos participavam, entre O texto original é o seguinte: " [... J o direito de Polícia consis-
eles, de modo considerável do culto que prestavam aos seus Deu- te propriamente em poder fazer regulamentos particulares para
ses, suas Leis tinham em vista apenas multiplicá-los e aumentar todos os Odadãos do seu distrito e território. O que excede o po-
sua magnificência, enquanto os nossos, mais conformes à pureza der de um simples juiz que não tem outro poder senão o de pro-
da nossa Religião e a nossos costumes, têm por objeto corrigir os nunciar entre demandante e defensor, e não o de fazer regula-
abusos que uma licença demasiado grande poderia neles introdu- mentos sem postulação de nenhum demandante, nem audição de
zir, ou assegurar-lhes a tranqüilidade. Daí vem que em vez de fa- nenhum defensor, e que concernem e sujeitam a todo um povo.
zer, como eles, um título à parte em nossa Polícia, nós os coloca- Assim, esse poder se aproxima e participa muito mais do poder do
mos naquele que concerne à disciplina dos costumes." Príncipe do que do Juiz, dado que esses regulamentos são como
9. Cf. supra, nota 3. leis e ordenanças particulares, que também são chamadas pro-
10. Cf. aula precedente (29 de março), p. 440. [Cf. também pnamente de Éditos, como foi dito aqui no terceiro capítulo"
p. 448, nota 47. (N. do T.)] (Traité des seigneuries, cap. IX, § 3, Paris, L'Angelier, 4~ ed. amplia-
11. J. Domai, Le Droit public, op. dt., livro I, título Vlll, ed. de da, 1613, pp. 88-9).
1829, p. 150: "[ ... ]foi pela natureza que um dos usos que Deus deu 17. Jean Bacquet (m. c. 1685), Traicté des droits de justice, Paris,
aos mares, aos grandes e pequenos rios, é o de abrir vias que se L'Angelier, 1603, cap. 28, "Si les droicts de Police, de Guet, et de
comuniquem com todos os países do mundo pela navegação. E foi Voirie, appartiennent aux haults Justiciers. Ou bien au Roy", p. 381:
pela polícia que se fizeram cidades e outros lugares em que os ho- "Que o direito de justiça e de polícia não têm nada em comum um
mens se reúnem e se comunicam pelo uso das ruas, das praças pú- com o outro" (=título do§ 3). "Por isso dizem que o direito de jus-
blicas e outros lugares adequados a esse uso, e que os de cada ci- tiça não contém em si o direito de polícia, que são eles direitos dis-
dade, de cada província, de cada nação podem se comunicar com tintos e separados. Tanto que um senhor, sob a sombra da sua jus-
todos os outros de qualquer país, pelas estradas". tiça, não pode pretender o direito de polícia" (§ 3). "Tampouco,
12. E. de la Poix de Fréminville, Díctionnaíre ou Traité de la po- sendo certo que o exercício da Polícia contém em si a conservação
lice générale des villes ..., op. dt., prefácio, p. VI. e a manutenção dos habitantes de uma cidade e do bem público
13. Ibid. desta, pode-se dizer que o direito de polícia pertence a outros que
14. Cf. supra, aula de 21 de marÇo, pp. 399 ss. não ao Rei" (§ 4).
15. Alusão à crítica situacionista do capitalismo, que denun- 18. Catarina II, Supplément à l'Instruction prmr un nouveau code
ciava o duplo reinado do fetichismo da mercadoria e da sociedade (=Instructions pour la commission chargée de dresser le projet du nou-
486 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO AULA DE 5 DE ABRIL DE 1978 487
veau code de loix), São Petersburgo, tipografia da Academia de Ciên- 25. No sentido do bom preço, ou do preço de mercado (cf.
cias, 1769, § 535 (cf. Surveiller et Punir, "P· cit., p. 215, onde Foucault S. L. Kaplan, Le Pain, le Peuple et le Roi, trad. fr. cit. [supra, pp. 65-6,
faz referência à mesma passagem). Esse texto reproduz quase pa- nota 4], nota 14 do cap. II, p. 402: "[ ... ] para 1\lrgot, o 'preço justo'
lavra por palavra urna passagem do Espírito das leis de Montes- sempre representaria o verdadeiro preço de mercado, fosse a épo-
quieu, livro XXVL cap. 24 ("Que os regulamentos de polícia são de ca calma ou conturbada. Nesse sentido, o preço justo é o preço
urna ordem diferente da das outras leis civis"): "As matérias de po- normal, o que os economistas chamam de bom preço" [sobre essa
lícia são coisas de cada instante, em que de ordinário se trata de noção, cf. nota anterior}). Sobre o sentido do conceito de "preço
coisas pequenas: não são necessárias formalidades, portanto. As justo" na tradição teológico-moral e no discurso da polícia até o
ações da polícia são prontas, e esta se exerce sobre coisas que vol- século XVIII, cf. Naissance de la biopolitique, aula de 17 de janeiro
tam todos os dias: as grandes punições não são adequadas a ela, de 1979, p. 49, n. 2.
portanto. Ela se ocupa perpetuamente de detalhes: portanto os 26. Cf. supra, p. 109, nota 19, e p. 110, nota 24.
grandes exemplos não são feitos para ela" (Montesquieu, O. C, ed. 27. Cf. supra, aula de 8 de março, p. 328.
citada ["Bibliotheque de la Pléiade"], t. !, pp. 775-6). 28. Cf. por exemplo Grimm, que ridicularizava todos os se-
19. Catarina II, Supplément ... ; Montesquieu, loc. cit., p. 776: nões da seita, "seu culto, suas cerimônias, seu jargão e seus mis-
"Ela tem antes regulamentos que leis." térios" (citado por G. Weulersse, Les Physiocrates, p. 25).
20. a. supra, nota 16. 29. Cf. supra, aula de 8 de março, pp. 311-5.
21. M. Guillauté (oficial da maréchaussée de lle-de-France), 30. Ibid.
Mémoire sur la réformation de la police de France, soumis au roi en 31. M. Foucault tomará mais demoradamente sobre esse
1749, Paris, Hermann, 1974, p. 19: "Cidades regulares, só temos as conceito de sociedade civil na última aula (4 de abril de 1979) de
que se incendiaram, e pareceria que para termos u~ sistema, ~e Naissance de la biopolitique, pp. 299 ss.
polícia bem articulado em todas as suas partes sena necessano 32. Cf. o verbete "Évidence" da Encycl"flédie (t. VI, 1756), re-
incendiar o que dele temos coligido; mas esse remédio é imprati- digido por Quesnay sob o véu do anonimato (in F. Quesnay et la
cável e, ao que tudo indica, estamos reduzidos para sempre a um physiocratie, t. 2, pp. 397-426).
velho edifício que não podemos demolir e que temos de escorar 33. Essa expressão, já empregada no fim da aula de 8 de mar-
de todos os lados. [... } Não se trata de fazer da sociedade uma casa ço (cf. supra, p. 331: "Sei bem que há quem diga que, ao falar do
religiosa, o que não é possível: é preciso diminuir tanto quant~ ~e poder, não se faz outra coisa senão desenvolver uma ontologia in-
puder certos inconvenientes, mas talvez fosse perigoso aniquila- terna e circular do poder"), remete às críticas feitas por alguns à
los. Deve-se supor os homens como eles são, e não como deve- análise do poder feita por Foucault desde o meado dos anos 70.
riam ser. É necessário combinar o que o estado atual da socie-
dade permite ou não permite, e trabalhar de acordo com esses
princípios."
22. Cf. Surveiller et Punir, pp. 135-96 (parte III, "Discipline").
23. Cf. supra, aula de 18 de janeiro, pp. 42-4.
24. Sobre o "bom preço" dos cereais, ver por exemplo F. ques-
nay, verbete "Grains" (1757), in "P· cit. [F. Quesnay et la physwcra-
tie, t. 2], pp. 507-9, e verbete "Hommes", ibid., pp. 528-30; cf. tam-
bém G. Weulersse, Le Mouvement physiocratique, "fl· cit., livro II,
cap. 3, "Le 'bon prix' des grains", pp. 474-577; Les Physiocrates, Of,·
cit., cap. 4, "Le prograrnme commercial: le Bon prix des grams ,
pp. 129-71.
RESUMO DO CURSO*

O curso teve por objeto a gênese de um saber político


que ia colocar no centro das suas preocupações a noção de
população e os mecanismos capazes de assegurar sua regu-
lação. Th.ssagem de um "Estado territorial" a um "Estado de
população"? Certamente não, porque não se trata de uma
substituição, mas antes de um deslocamento de tônica e do
aparecimento de novos objetivos, logo de novos problemas
e de novas técnicas.
fura acompanhar essa gênese, tomamos como fio dire-
tor a noção de "governo".

1. Seria necessário fazer uma pesquisa aprofundada não


apenas sobre a noção, mas também sobre os procedimen-
tos e os meios postos em ação para possibilitar, numa so-
ciedade dada, o "governo dos homens". Numa primeira

>~- Publicado in Annuaire du College de France, 78' année, Histoire des


systbnes de pensée, année 1977-1978, 1978, pp. 445-9. Republicado em
Dits et Écrits, 1954-1968, editado por D. Defert e F. Ewald, com a cola-
boração de J. Lagrange, Paris, Gallimard, "Bibliothêque des sciences
humaines", 1994, 4 vols.; d. t. ill, n? 225, pp. 719-23. [Cf. infra, pp. 512-3,
nota 621.
490 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO RESUMO DO CURSO
491
aproximação, parece que, nas sociedades gregas e romanas, se conduzir, acompanha, no fim do feudalismo, o nascimen-
o exercício do poder político não implicava nem o direito to de novas formas de relações económicas e sociais e as
nem a possibilidade de um "governo" entendido como ati- novas estruturações políticas.
vidade que tem por meta conduzir os individuos ao longo
da vida colocando-os sob a autoridade de um guia respon- 2. Analis_amos em seguida, sob alguns dos seus aspec-
sável pelo que fazem e pelo que lhes acontece. Se9"indo as ~os, a formaçao de uma "governamentalidade" política, isto
indicações fornecidas por P. Veyne, parece que a 1de1a de um e: a manerra como a conduta de um conjunto de inclivíduos
soberano-pastor, de um rei ou magistrado-pastor do reba- VlU-se unplicada, de forma cada vez mais acentuada no
nho humano só se encontra nos textos gregos arcaicos ou exercício do poder soberano. Essa transformação importan-
em alguns autores pouco numerosos da época imperial. Em te é assinal~da em diferentes "artes de governar" redigidas
compensação, a metáfora do pastor que zela pelas suas ove- no fim do seculo XVI e na primeira metade do século XVII.
lhas é aceita quando se trata de caracterizar a atividade do Ela está sem dúvida ligada à emergéncia da "razão de Esta-
pedagogo, do médico, do professor de ginástica. A análise do". Passa-se de uma arte de governar cujos princípios eram
do Político confirmaria essa hipótese. tomados de empréstimo às virtudes traclicionais (sabedoria,
Foi no Oriente que o tema do poder pastoral adquiriu JUstiça, liberal1dade, respeito às leis divinas e aos costumes
sua amplitude - principalmente na sociedade hebraica. humanos) ou às habilidades comuns (prudência, decisões
Certo número de traços marcam esse tema: o poder do pas- pensadas, cmdado de rodear-se dos melhores conselheiros)
tor se exerce menos sobre um território fixo do que sobre para _uma arte de governar cuja racionalidade tem seus
uma multidão em deslocamento rumo a um objetivo; ele pnnapws e seu campo de aplicação específico no Estado. A
tem como papel fornecer ao rebanho sua subsist~ncia, ze- "razão de Estado" não é o imperativo em nome do qual se
lar cotidianamente por ele e assegurar sua salvaçao; enfim, P?ssa ou s~ deva reJeitar todas as outras regras; é a nova ma-
trata-se de um poder que individualiza, concedendo, por triz de racwnalidade segundo a qual o principe deve exe r-
um paradoxo essencial, tanto valor a uma ovelha quanto ao cer sua soberama governando os homens. Está-se longe da
rebanho inteiro. É esse tipo de poder que foi introduzido no Vlflude do soberano de justiça, longe também dessa virtu-
Ocidente pelo cristianismo e que adquiriu uma forma ins- de que é a do herói de Maquiavel.
titucional no pastorado eclesiástico: o governo das almas se O desenvolvimento da razão de Estado é correlato ao
constitui na Igreja cristã como uma atividade central e dou- ocaso do tema imperial. Roma, finalmente, desaparece.
ta, indispensável à salvação de todos. Uma nova percepção histórica se forma; ela já não está po-
Ora, os séculos XV e XVI vêem se abrir e se desenvol- lanzada no fim dos tempos e na unificação de todas as so-
ver uma crise geral do pastorado. Não apenas e não tanto beranias particulares no império dos últimos clias; ela se
como uma rejeição da instituição pastoral, mas de uma fo_r- abre para um tempo indefinido em que os Estados têm de
ma muito mais complexa: busca de outras modalidades (nao lutar uns contra os outros para assegurar sua sobrevivência.
necessariamente menos estritas) de direção espiritual e de E, mrus que os problemas da legitimidade de um soberano
novos tipos de relação entre pastor e rebanho; mas também sobre um território, o que vai aparecer como importante é o
buscas sobre a maneira de #governar" as crianças, urna fa- conheamento e o desenvolvimento das forças de um Esta-
mília, um território, um principado. O questionamento geral do: num espaço (ao mesmo tempo europeu e munclial) de
da maneira de governar e de se governar, de conduzir e de concorrência estatal, muito cliferente daquele em que se de-
492 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
RESUMO DO CURSO
493
frontavam as rivalidades dinásticas, o problema maior é o de
uma dinâmica das forças e das técnicas racionais que pos- que _favoreceria ou desfavoreceria os nascimentos. É uma
sibilitem intervir nesse espaço. vanavel que ~epende de um certo número de fatores. Nem
Assim, a razão de Estado, fora das teorias que a formu- todos esses sao. naturais, muito pelo contrário (o sistema de
laram e justificaram, toma forma em dois grandes conjuntos rrnpostos, a ativrdade da circulação e a repartição do lucro são
de saber e de tecnologia políticos: uma tecnologia diplomá- dete~antes essenciais da taxa de população). Mas essa
tico-militar, que consiste em garantir e desenvolver as forças dependencia pode ser analisada racionalmente de modo
do Estado por um sistema de alianças e pela organização de que a p~pulação apareça como "naturalmente" dependen-
um aparelho armado (a busca de um equiliôrio europe~, _qw; te d~ múltiplos fatores, que podem ser artificialmente mo-
foi um dos princípios diretores dos tratados de Vestefália, e dificav~Is. Assim, começa a aparecer, em derivação relativa-
uma conseqüência direta dessa tecnologia política); o outro mente a tecnologia de "polícia" e em correlação com 0 nas-
é constituído pela "polícia", no sentido que então se dava a crrne~to da refl:x~o económica, o problema político da po-
essa palavra, isto é, o conjunto dos meios necessários para pulaçao. Esta nao e concebida como uma coleção de sujeitos
fazer crescer, do interior, as forças do Estado. No ponto de
de direito,_ nem como um conjunto de braços destinados ao
junção dessas duas grandes tecnologias e como instrumen-
trabalho; e analisada como um conjunto de elementos que,
to comum, deve-se colocar o comércio e a circulação mone-
por um lado, se_ li~a ao regime geral dos seres vivos (nesse
tária interestatal: é do enriquecimento pelo comércio que se
cas'?: a populaça? e do domínio da "espécie humana": essa
espera a possibilidade de aumentar a população, a m~o-de­
~oçao, n,?va na epoca, deve ser distinguida da de "gênero
obra, a produção e a exportação, e de se dotar de exerotos
fortes e numerosos. O par população-riqueza foi, na época umano ) e, por ou~o,pode dar ensejo a intervenções con-
do mercantilismo e da cameralistica, o objeto privilegiado da certadas (por mtermedio das leis, mas também das mudan-
nova razão governamental. ças de atitude, de maneira de fazer e de viver que podem
ser obtidas pelas "campanhas").
3. É a elaboração desse problema população-riqueza
(em seus diferentes aspectos concretos: fiscalidade, escas-
sez alimentar, despovoamento, ociosidade-mendicância- Seminário
vagabundagem) que constitui uma das condições de for-
mação da economia política. Esta se desenvolve quando se O s_eminário foi dedicado a algims dos aspectos do que
percebe que a gestão da relação recursos-população não ?s al~maes chamaram no século XVlli de Polizeiwissenschaft,
pode mais passar exaustivamente por um sistema regula- ISto e, a teona e a análise de tudo "o que tende a consolidar
mentar e coercitivo que tenderia a aumentar a população e a aumentar o poder do Estado, a fazer um bom uso das
para aumentar os recursos. Os fisiocratas não são antipopu- suas forças,.? proporcionar a felicidade dos súditos" e prin-
lacionistas em oposição aos mercantilistas da época prece- crpalmente a manutenção da ordem e da disciplina, os re-
dente; eles colocam de outro modo o problema da popula- gulame':tos que tendem a lhes tornar a vida cómoda e a lhes
ção. Para eles, a população não é a simples soma dos súdi- proporoonar as COISas de que necessitam para subsistir".
tos que habitam um território, soma que seria o resultado . Proruramos mostrar a que problemas essa "polícia"
da vontade de cada um de ter filhos ou de uma legislação devra responder; como o papel que lhe era atribuído era di-
ferente do que mais tarde ia ser dado à instituição policial;
494 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO

que efeitos se esperavam dela para assegurar o crescimen- SITUAÇÃO DOS CURSOS
to do Estado, e isso em função de dois objetivos: permitir- Michel Senellart*
lhe marcar e melhorar seu lugar no jogo das rivalidades e
das concorrências entre Estados europeus e garantir a or-
dem interna por meio do "bem-estar" dos indivíduos. De-
senvolvímento do Estado concorrencial (econômico-mili-
tar), desenvolvímento do Estado de Wohlfahrt (riqueza-tran-
qüilidade-felicidade}. São esses dois princípios que a "polí-
cia", entendida como arte racional de governar, deve poder
coordenar. Ela é concebida nessa época como uma espécie
de "tecnologia das forças estatais".
Dentre os principais objetos de que essa tecnologia deve
se ocupar, a população, na qual os mercantilistas viram um
princípio de enriquecimento e na qual todo o mundo reco-
nhece uma peça essencial da força dos Estados. E, para ad-
ministrar essa população, é necessária, entre outras coisas, ui Os dois cursos de Michel Foucault, que publicamos si-
uma política de saúde capaz de diminuir a mortalidade in- m taneamente, _Segurança, território, população (1978} e N -
fantil, de prevenir as epidemias e de fazer baixar a taxa de czmento da bzopolztica (1979), formam um díptico cu·a uni;;_
endemia, de intervir nas condições de vida, para modificá- de reszde na problemática do biopoder, introdu~ida pela
las e impor-lhes normas (quer se trate de alímentação, de ;runerra vezem1976'. É pela evocação desse conceito que
hábitat ou de urbanização das cidades) e proporcionar equi- tí~rrucra o prunerro curso; é ele também que assinala, já no
pamentos médicos suficientes. O desenvolvimento a partir o, odprograma do segundo. Pareceria, por conseguinte
da segunda metade do século XVIll do que foi chamado Me- , os ms cursos nao
que - fazem nada mais que reconstituir a'
dezinische Polizei, hygiene publique, social medicine, deve ser g~nese desse "poder sobre a vida" em cu)· a emerg' .
inscrito no marco geral de uma "biopolítica"; esta tende a seculo XVIII p ui . encza no
. . ouca t VIa uma "mutação capital uma das
tratar a "população" como um conjunto de seres vivos e coe- mrus rrnportantes sem dúvida, na história das ;ociedades
xistentes, que apresentam características biológicas e pato-
lógicas específicas. E essa própria "biopolítica" deve ser com-
preendida a partir de um tema desenvolvido desde o sé cu- "", ~chel Senellart é professor de filosofia política na École
1e supeneure des lettres et sciences h . É nonna-
lo XVII: a gestão das forças estatais.
chiavélisme et Raison d'État (Paris PUF~989es)LedeALytonde. autor de Ma-
Foram feitas exposições sobre a noção de Polizeiwis- ris Le Seuil ' ' , s rs gouverner (Pa-
senschaft (P. Pasquino}, sobre as campanhas de variolízação AlÍema i6~~f~;Jrad~~ para o_ franc~s a Histoire du droit public en
no século XVIll (A.-M. Moulin}, sobre a epidemia de cólera StolleJ;'aris, PUF, l:S~e du drozt publtc et science de la police, de M.
em Paris em 1832 (F. Delaporte}, sobre a legislação dos aci- I. Cf. "II fout défendre la sociét"' Co
dentes de trabalho e o desenvolvímento dos seguros no sé- ed porM Bert . A e. ursauCollegedeFrance,l975-1976
· · ame Fontana p · Gallim '
culo XIX (F. Ewald). des", 1997 aula de 17 d ' ans, ard-Le SeuiL "Hautes Étu-
Paris GallÍmard "B"bli ethé~ de 1976, PP· 216-26; La Volonté de savoir
' ' ' o quedes histoires", 1976, pp. 181-91. '
496 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS
497
humanas" 2• Eles se inscreveriam, assim, na perfeita continui- "g~~emo d';, si~ _dos outros" 4 • Rompendo com o discurso
dade das conclusões do curso de 1976. Depois de urna inter- da batalha uti11zado desde o início dos anos 705 0 con-
rupção de um ano - o curso não foi realizado em 1977 -, ceito de ,.~ govem?" assinalaria o primeiro desliz~mento,
Foucault teria retomado a palavra no mesmo ponto em que acentuado a part1r de 1980, da analítica do poder à ética
tinha parado, a fim de dar consistência, pela análise históri- do SUjeitO.
ca, a urna hipótese até então formulada em termos bastan- A ge:'ealogia do biopoder, apesar de ser abordada de
te gerais. form~ oblíqua e permanecer, por isso mesmo, muito alusi-
A efetivação desse projeto, no entanto, leva-o ades- va, nao cessa entretanto de constituir 0 horizonte dos dois
vios que, aparentemente, afastam -no do seu objetivo ini- cursos. Foucault conclui o resumo do segundo, em 1979 com
cial e reorientam o curso numa nova direção. De fato, estas palavras: '
tudo acontece como se a hipótese do biopoder, para se
tornar verdadeiramente operacional, exigisse ser situada O que deve?a ser estudado agora é a maneira como os
num marco mais amplo. O anunciado estudo dos meca- pro?le~as específicos da vida e de população foram postos
nismos pelos quais a espécie humana entrou, no século no mten?r de uma tecnologia de governo que, sem ter sido
XVIII, numa estratégia geral de poder, apresentado como se~pre lib:ral, longe disso, não parou de ser acossada desde
o fim do seculo XVIII pela questão do liberalismo.'
o esboço de uma "história das tecnologias de segurança"',
cede a vez, já na quarta aula do curso de 1978, ao projeto
de uma história da "governarnentalidade", desde os pri-
meiros séculos da era cristã. Do mesmo modo, a análise
4. Título dos dois últimos cursos de 1983 e 1984 É t bé -
das condições de formação da biopolítica, no segundo tul d li ' . am motí-
o o vro anun~do por Foucault, em 1983, na coleção "Des travaux"
curso, logo se apaga em benefício da análise da governa- que acabava de cnar para a Seuil com Paul Veyne e François Wahl. Ver
mentalidade liberal. Em ambos os casos, trata -se de lan- o reswno do curso de ~981, "Subjectivité etvérité", DE, IY, n? 304, p. 214,
çar luz sobre as formas de experiência e de racionalidade onde F~ucault enuncJ.a seu projeto de retomar a questão da governa-
a partir das quais se organizou, no Ocidente, o poder so- mentalidade
. _ sob um novo aspecto·· "o governo de s1· por SI· em sua ar-
bre a vida. Mas essa pesquisa tem por efeito, ao mesmo ticulaçao com as relações com 0 outro".
tempo, deslocar o centro de gravidade dos cursos, da 5. "La Société punitive" (inédito), aula de 28 de março de 1973- "O
questão do biopoder, para a do governo, a tal ponto que poder é c~nq~tado como uma batalha e perdido do mesmo mod~. É
wna relaçao ~licosa, e não uma relação de apropriação, que está no cer-
esta, finalmente, eclipsa quase inteiramente aquela. É
ne, do poder.. C~. ta:nbém Surveiller et punir, Paris, Gallimard, "Biblio-
tentador, portanto, à luz dos trabalhos posteriores de Fou- ~eque d:s histoues , 1975, p. 31. 11 faut défendre la société, tinha por ob-
cault, ver nesses cursos o momento de uma virada radi- Jeto, se nao abando~ es~ concepção, pelo menos interrogar os pres-
cal, em que tomaria corpo a passagem à problemática do supostos e. as consequencras históricas do recurso ao modelo da guerra
como analisador das relações de poder.
6. Naissance de la biD'f'olitique. Cours au College de France, 1978-1979,
2. "Les mailles du pouvoir", 1976, DE, IV, n? 297, p. 194. ed. por M. Senellart, Pans, Gallimard-Le Seuil, "Hautes Études", 2004
3. Supra, este volume [daqui em diante: STP], aula de 11 de janeiro f?~qw em diante: NBP], "resumo do curso", p. 329. [Nascimento da biopo-
de 1978, pp. 14-5. lltzca, trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes,nopreo. I J
498 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO SlTUAÇÃO DOS CURSOS 499

É portanto esse projeto, a que se refere também o títu- ciou do marxismo e se abriu para novas questões (a vida co-
lo do curso do ano seguinte - "Do governo dos vivos"'-, que tidiana, a situação das mulheres, a autogestão, etc.)". Em se-
orienta então a pesquisa de Foucault, através dos seus nu- tembro de 1977, ele assistiu ao fórum sobre "a esquerda, a
merosos meandros. A questão do biopoder é no entanto in- experimentação e a mudança social" organizado por Faire e
separável do trabalho sobre a história da sexualidade, a que Le Nouvel Observateur": "Escrevo e trabalho para as pessoas
ele dá seguimento paralelamente aos cursos. Esta, afirmava que estão aí, essas novas pessoas que formulam novas ques-
ele em 1976, "está exatamente na encruzilhada do corpo e tões."" Essa preocupação em participar da renovação da
da população"'. A partir de 1978, e ao longo de todo o cami- cultura de esquerda, à distância das estratégias partidárias,
nho que levará, em 1984, a O uso dos prazeres e a O cuidado explica sua recusa a tomar posição nas eleições legislativas
de si, ela se carrega de uma nova significação, não represen- de março de 1978". É também no âmbito dos debates sus-
tando mais apenas o ponto de articulação dos mecanismos citados pelo fracasso da esquerda naquele escrutínio e pela
disciplinares e dos dispositivos de regulação, e sim o fio perspectiva da eleição presidencial de 1981, que se deve en-
condutor de uma reflexão ética centrada nas técnicas de si. tender a questão colocada no ano seguinte:
Atualização de um plano de análise sem dúvida ausente
dos trabalhos anteriores, mas cujos contornos se esboçam a Existe uma govemamentalidade adequada ao socialis-
partir de 1978 na problemática da govemamentalidade. mo? Que govemarnentalidade é possível como governa-
mentalidade estritamente, intrinsecamente, autonomamente
*
Convém, em primeiro lugar, lembrar certos elementos cusa, logo chamada de 'segunda esquerda"' (D. Defert, "Chronologie",
do contexto histórico, político e intelectual em que se inscre- DE, I, p. 51).
vem esses cursos9 . 11. Para um olliar retrospectivo sobre esse período, cf. sua entre-
A reflexão que Foucault empreende sobre a racionali- vista com G. Rauletna primavera de 1983, "Structuralisme et poststruc-
turalismeu, DE, IV;. n? 330, pp. 453-4: "Novos problemas, novo pensa-
dade governamental modema faz parte, antes de mais nada,
mento, isso foi capital Acho que um dia, quando se olhar para esse epi-
do desenvolvimento de um pensamento de esquerda- para sódio da história da França fdesde os primeiros anos do gaullismo], vai
o qual contribuía a "segunda esquerda""- que se distan- se ver o desabrochar de um novo pensamento de esquerda, que, sob
múltiplas formas e sem nnidade - talvez um dos seus aspectos positi-
vos -, mudou completamente o horizonte em que se situam os movi-
7. Esse curso trata do governo das almas, através do problema do mentos de esquerda atuais."
exame de consciência e da confissão. 12. Para mais detalhes sobre esse fórum, cf. a introdução da entre-
8. II faut défendre la société, p. 224. vista de Foucault, "Une mobilisation culturelle" (Le Nouvel Observateur,
9. Mencionaremos aqui unicamente os acontecimentos em que 12-18 de setembro de 1977), DE, ill, n? 207, pp. 329-30 (ele se inscreveu
Foucault se envolveu e que tiveram um eco, direto ou indireto, nos na oficina de "medicina de bairro"). Ver também o suplemento especial
cursos. Forum, "Les homrnes du vrai changement", no mesmo número do Nou-
10. É em junho de 1977, no congresso do Partido Socialista, em vel Observateur, pp. 47-62.
Nantes, que "Michel Rocard desenvolve sua concepção das duas cultu- 13. "Une mobilisation culturelle", Ioc. cit., p. 330.
ras políticas da esquerda: uma jacobina, estatizante, que aceita a alian- 14. Cf. "la grille politique traditionnelle" (Politique Hebdo, 6-12 de
ça com os comunistas, a outra descentralizadora e regionalista, que a re- março de 1978), DE, lll, n? 22.7, p. 506.
500 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
SITUAÇÃO DOS CURSOS
501
socialista? Em todo caso,[ ... ] se há uma govemamentalidade
efetivamente socialista, ela não está oculta no interior do so- dência" entra, então, por um tempo, em seu vocabulário. Ele
cialismo e dos seus textos. Não se pode deduzi-la deles. É escreve,por exemplo, em fins de 1977, prefaciando o livro
preciso inventá-la. 15 de Mireille Debard e Jean-Luc Hennig, Les ]uges kaki": "Tra-
ta-se de multiplicar no teddo político os 'pontos de repulsão'
Essa questão, que dá todo o seu relevo à análise da go- 'de ~pliar a superfície das dissidêndas possíveis."'" Aba-
vernamentalidade neoliberal desenvolvida no curso, não naliZaçao do termo, no entanto, parece tê-lo irritado rapi-
cessará de ocupar Foucault. Ela está no princípio do proje- damente, pois se recusa a empregá-lo, no curso de 1978 a
to de "livro branco" sobre a política socialista que ele pro- propósito das revoltas de conduta". '
porá em 1983: "Existe uma problemática do governo para Mas é o caso Klaus Croissant que constitui o aconte-
os socialistas ou eles têm apenas uma problemática do Es- cimento principal, em fins de 1977, do ponto de vista do
tado?"16 engajamento pessoal de Foucault. Advogado do "bando de
Outro fenômeno importante, cujo imenso eco os cur- Baader" (Rote Arrnee Fraktion), Klaus Croissant havia pedi-
sos repercutem em certas passagens: o movimento soviéti- do direito de asilo na França, onde encontrara refúgio em
co de dissidência, que recebe na época um apoio cada vez julho de 1977. No dia 18 de outubro, três dirigentes da
mais amplo. Foucault, que tinha conhecido Leonid Pliutch, RAF, presos desde 1972 em Sttutgart, foram encontrados
quando da chegada deste a Paris em 1976, organizou em ju- mortos em sua cela. No dia 19, em represália, membros do
nho de 1977 um evento no teatro Récarnier, com um certo grupo assassi~ararn Hanns-Martin Schleyer, presidente
número de dissidentes, para protestar contra a visita à Fran- das orgamzaçoes patronais alemãs, que tinha sido seqües-
ça de Leonid Brejnev". É em referência a esse movimento n:ado no dia 5 de setembro. Encarcerado na prisão da San-
que ele teoriza pela primeira vez, alguns meses depois, o te, em Pans, no d1a 24 de outubro, Klaus Croissant foi ex-
"direito dos governados, [... ] mais preciso, mais historica- traditado e:n 16 de novernbr?. Foucault, que participou da
mente determinado que os direitos humanos", em nome da rnamfestaçao d~ante da Sante nesse dia, tornara firmemen-
"legítima defesa em face dos governos"'". A palavra "dissi- te posição a favor do reconhecimento do direito de asilo
para Cr':_issant. Os artigos e entrevistas que publicou nes-
sa o~as1ao apresentam um interesse muito particular em
15. NBP, aula de 31 de janeiro de 1979, p. 95.
relaçao a ;;eus dms cursos seguintes. Além do apelo, já evo-
16. Citado por D. Defert, "Chronologie", loc. cit., p. 62.
17. Ibid., p. 51. Cf. D. Macey, The Lives of Michel Foucault, Nova York,
cado, ao d1re!lo dos governados"", ele introduziu de fato
Pantheon Books, 1993 I Michel Foucault, trad. fr. P.-E. Dauzat, Paris, Galli-
mard, "Biographies", 1994, pp. 388-90.
18. "Va-t-on extrader Klaus Croissant?" (Le Nouvel Observateur, 14 exprime esse desacordo com os meios que estão à sua disposição e que
de novembro de 1977), DE, m, n? 210, pp. 362 e 364: "A concepção tra- é perseguido por isso."
dicional [do direito de asilo] situava o 'político' na luta contra os gover- 19. Paris, A. Moreau, 1977.
nantes e seus adversários; a concepção atual, nascida da existência dos 20. "Préface", DE, ITI, n? 191, p. 140. Esse texto foi publicado em
regimes totalitários, é centrada em tomo de um personagem que não é Le Monde de 1-2 de dezembro de 1977.
tanto o 'futuro governante', mas o 'perpétuo dissidente'- quero dizer, 21. STP, aula de 1? de março de 1978, p. 266: "E, afinal de contas
aquele que está em desacordo global com o sistema em que vive, que quem hoje em dia não faz sua teoria da dissidência?", diz ele. '
22. Cf. supra, nota 18.
502 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS
503
a idéia do "pacto de segurança" que passa a ligar o Estado rei to de asilo, e~duía port~to toda e qualquer solidarieda-
à população: de com o terronsrno. Poszçao que sem dúvida esteve na ori-
gem do seu desentendimento com Gilles Deleuze, que ele
O que acontece hoje portanto? A relação de um Estado nunca mru.s revena depois disso 26•
com a população se dá essencialmente sob a forma do que se
poderia chamar de "pacto de segurança". Antigamente, o Es- , O_caso C~~,issant põ':' em evidência a importância da
tado podia dizer: "Vou lhes dar um território" ou: "Garanto questao alema na reflexao política de Foucault. Corno ele
que vocês vão poder viver em paz em suas fronteiras." Era o declara ao Spzegel um ano depois: "Ignorar pura e simples-
pacto territorial, e a garantia das fronteiras era a grande fun- mente a Alemanha sempre foi para a França um meio de
ção do Estad0. 23

O título do curso de 1978- Segurança, território, popula- siçã~,muito próxima da sustentada por R. Badinter, "Terrorisme et li-
berte , Le Monde, 14 de outubro de 1977). Cf. igualmente "Le savo·
ção - já está por inteiro nessa frase. Mas Foucault insiste c?mme crime" (/yôkyô, abril de 1976), DE, m, n? 174, p. 83, sobre 0 c~~
igualmente, e de maneira mais clara sem dúvida do que nos rater contrap~ucente, no Ocidente, do terrorismo, que só consegue
cursos, sobre as formas específicas de luta que as "socieda- obter o contráno do que visa:"[ ... ] o terror acarreta tão-só a obediência
des de segurança" requerem. É por isso que, para ele, é irn- cega. Empregar o terror para a revolução é, em si, uma idéia totalmen-
portante não reduzir esse novo tipo de poder às categorias te contraditória".
tradicionais do pensamento político nem atacá-lo valendo- _26. Cf. D. E.ribon, Michel Foucault, Paris, Flammarion, 1989, p. 276,
se da grade de análise do "fascismo" ou do "totalitarismo". que ctta, ~m apoto a essa explicação, uma passagem do diário de Clau-
Essa critica, repetida no curso de 1979", não visa somente de Maunac, datado de março de 1984 (Le Temps immobile, t. IX, Paris,
Grasset, p. 388). Deleuze havia publicado, com Guattari, um artigo so-
as teses esquerdistas de que Foucault foi por muito tempo bre Klaus Croissant e o grupo Baader (Le Monde, 2 de novembro de
próximo. Ela explica igualmente sua rejeição do terrorismo 1~???, "Le pire moyen de faire l'Europe", no qual, apresentando aRe-
corno meio de ação que extrai sua legitimidade da luta an- pu~~~a. Feder~!. alemã como um país "que pode exportar seu modelo
tifascista". Seu apoio a Croissant, em nome da defesa do di- JUdtoano, polictal e 'informativo' e tomar-se o organizador qualificado
da repressão e da intoxicação nos outros Estados", exprimia seu temor
de que "a Europa inteira fique sob esse tipo de controle reclamado pela
23. "Michel Foucault la sécurité et l'État" (Tribune socialiste, 24-30 Alemanha" e caucionava a ação terrorista:"[... ] a questão da violência
de novembro de 1977), DE,ill,n?213, p. 385. Cf. também "Lettreà quel- e também do terrorismo, não parou de agitar o movimento revoluci;
ques leaders de la gauche" (Le Nouvel Observateur, 28 de novembro - 4 nário e operário desde o século passado, sob formas bem diversas, como
de dezembro de 1977), DE, ID, n? 214, p. 390. resposta _à violência imperialista. As mesmas questões se colocam hoje
24. Cf. NBP, aula de 7 de março de 1979, pp. 191 ss., cf. p. 197: "[ ...1 em relaçao aos povos do terceiro mundo, com que Baader e seu grupo
creio que o que não se deve fazer é imaginar que se está descrevendo se identificam, considerando a Alemanha como um agente essencial da
um processo real, atual e que diz respeito a nós todos quando se demm- sua opressão" (reed. ín G. Deleuze, Deux Régimes de fous, et autres textes
cia a estatização ou a fascistização, a instauração de uma violência es- Paris, Minuit, "Paradoxe", 2003, pp. 137-8). Cf. também D. Macey. Mi~
tatal, etc.". chel Foucault, trad. fr. citada, p. 403 ("Foucault tinha se recusado a assi-
25. Sobre a oposição desse tipo de terrorismo de grupelhos a um
nar ~a peti~~ que Félix Guattari tinha lançado e que também se opu-
terrorismo ancorado num movimento nacional e, por isso, "moralmen- nha a extradtçao de Klaus Croissant, mas qualificava a Alemanha de
te justificado, [...]mesmo que possamos ser hostis a este ou aquele tipo '~ascista' [... ]").É nesse contexto que se inscreve o texto de Jean Genet,
de ação", cf. "Michel Foucault la sécurité e! l'État", loc. cit., pp. 383-4 (po- cttado por Foucault in STP, aula de 15 de março de 1978, supra, p. 353.
504 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITilAÇÃO DOS CURSOS 505

neutralizar os problem'as políticos ou culturais que ela lhe co- A "questão alemã", tal como a coloca de forma agu-
locava."" Essa questão se coloca em dois níveis: o da divi- da o debate sobre o terrorismo, é portanto, para Foucault,
são da Europa em blocos antagônícos (que efeitos daí resul- uma das chaves essenciais da compreensão política do
tam para a Alemanha "cortada em dois"?'") e o da constru- pres~nte. É a essa preocupação, também, que estão ligadas
ção da Comunídade Européia (que lugar a República Federal as suas duas viagens a Berlim, em dezembro de 1977 e mar-
ocupa nela?). Daí os longos desenvolvimentos dedicados, ço de 1978, para encontrar os militantes da esquerda alter-
em 1979, ao "modelo alemão", através da análise do pensa- nativa30.
mento ordoliberal do pós-guerra: Em abril de 1978, depois de terminar seu curso, Fou-
cault efetua uma viagem de três semanas ao Japão. Pronun-
[O] modelo alemão [... ]não é o modelo tão freqüente- cia nesse país conferências em que resume sua análise do
mente depreciado, renegado, amaldiçoado, repugnado doEs- poder pastoral" e a situa na perspectiva da História da se-
tado bismarckiano em via de tomar-se hitlerista. O modelo
alemão que se difunde, [... ] que está em questão, [... ] que faz
xualidadl?'', cujo segundo volume está redigindo então". Ex-
parte da nossa atualidade, que a estrutura e que a perfila sob põe aí, ademais, sua concepção do papel do filósofo como
o seu corte real, esse modelo alemão é a possibilidade de "moderador do poder", na grande tradição, que remonta a
uma govemamentalidade neoliberaL 29 Sólon, do filósofo antidéspota, mas a contrapelo das suas
formas clássicas14 :

27. "Une énorme surprise" (Der Spiegel, 30 de outubro de 1978), Talvez a filosofia ainda possa desempenhar um papel
DE, III, n? 247, pp. 699-700. no âmbito do contrapoder, contanto que esse papel não con-
28. Fazendo suas as palavras de um escritor da Alemanha Orien- sista mais em defender, em face do poder, a lei da filosofia,
tal, Heiner Müller, Foucault diz em novembro de 1977: "Em vez de contanto que a filosofia pare de se pensar como profecia, con-
evocar os velhos demónios a propósito da Alemanha, é preciso referir- tanto que a filosofia pare de se pensar ou como pedagogia,
se à situação atual: a Alemanha cortada em dois. f... ] Não se pode com- ou como legislação, e se dê como tarefa analisar, elucidar,
preender a multiplicação das medidas de segurança na Alemanha Fe- tomar visíveis e, portanto, intensificar as lutas que se desen-
deral sem levar em conta um medo bem real que vem do Leste" ("Mi- rolam em tomo do poder, as estratégias dos adversários no
chel Foucault: 'Désormais, la sécurité est au-dessus des lois"', (LeMa- interior das relações de poder, as táticas utilizadas, os focos
tin, 18 de novembro de 1977), DE, III, n? 211, p. 367). É importante de resistência, contanto, em suma, que a filosofia pare de co-
situar essas declarações no clima de germanofobia muito difundido
então na França e a que Günther Grass, por exemplo, reagia da seguin-
te maneira: "Quando eu me pergunto onde, na Europa, está hoje o pe- 30. Cf. D. Defert, "Chronologie", loc. cit., pp. 52 e 53.
rigo de um movimento de direita agressivo- descarto a palavra 'fascismo', 31. Cf. STP, aulas de 8, 15,22 de fevereiro e 1:' de março de 1978.
que vem com demasiada facilidade à boca-, observo a Itália ou a In- 32. Cf. "La philosophie analytique du pouvoir" (27 de abril de
glaterra e vejo surgir ali problemas que me assustam. [ ... JMas nem por 1978), DE, III, n? 232, pp. 548-50, e "Sexualité et pouvoir" (20 de abril de
isso me passaria pela cabeça dizer: a Inglaterra está caminhando em 1978), ibid., n? 233, pp. 560-5.
direção ao fascismo" (debate com Alfred Grosser, publicado em Die 33. Trata-se do volume sobre a pastoral reformada, LA Chair et le
Zeit de 23 de setembro e republicado por Le Monde de 2-3 de outubro Corps, anunciado em La Volonté de savoir, p. 30, n. 1, cujo manuscrito foi
de 1977). integralmente destnúdo.
29. NBP, aula de 7 de março de 1979, p. 198. 34. "La philosophie analytique du pouvoir", Zoe. dt., p. 537.
506 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS 507
locar a questão do poder em termos de bem ou mal, e sim em A primeira dessas reportagens, publicada no Corrim
termo de existência. 35 della Sera, é a que Foucault faz no Irã, de 16 a 24 de setem-
bro'", alguns dias depois da "sexta-feira negra"'", e, poste-
É nesse mesmo espúito que Foucault, desde a sua vol- riormente, de 9 a 15 de novembro de 1978, durante as gran-
ta do Japão, reinterpreta a questão kantiana "O que é aAuf- des revoltas e manifestações contra o xá". No Irã, ele se en-
kliirung?"", sobre a qual não parará de tomar''. Explicita as-
sim, num vocabulário bastante novo em relação a seus es-
critos dos anos precedentes, o projeto critico no interior do de A. Glucksmann sobre os boat people. A reportagem de Finkielkraut,
qual se inscreve sua análise da govemamentalidade. que o texto de Foucault citado logo acima introduzia, contém notada-
Paralelamente a esse trabalho teórico, Foucault con- mente um capítulo sobre a Escola neoliberal de Chicago, "11 capitalis-
cebe o programa de "reportagens de idéias", associando mo come utopia", a que Foucault consagrará duas aulas em seu curso
intelectuais e jornalistas em pesquisas de campo aprofun- do ano seguinte (NBP, 14 e 21 de março de 1979) (cf. A. Finkielkraut, IA
dadas: Rivincita e !'Utopia, Milão, Rizzoli, 1980, pp. 33-4).
39. Lá, Foucault encontra Pierre Blanchet e Claire Briêre, jornalis-
tas do Libération, que publicarão, em abril de 1979, Iran: la révolution au
É preciso assistir ao nascimento das idéias e à explosão
nom de Dieu (Paris, Le Seuil, "L'Histoire immédiate"), seguido de uma
da sua força; e isso, não nos livros que as enunciam, mas nos
entrevista de Foucault, "L'esprit d'un monde sans esprit", DE, III, n?
acontecimentos em que elas manifestam sua força, nas lutas
259, pp. 743-56. A entrevista é precedida por estas poucas linhas: "[ ... ]
travadas pelas idéias, contra ou a favor delas. 3 ~
Na hora em que os esquemas clássicos da luta armada são questiona-
dos, o acontecimento nos interpela. Qual pode ter sido a força desse
povo que derrubou o xá sem dar um só tiro? Será a força de uma espi-
35. Ibíd., p. 540. ritualidade reencontrada através de uma religião, o islã >;iita? Qual pode
36. "Qu'est-ce que la critique?" (conferência de 27 de maio de 1978 ser o futuro dessa revolução sem equivalente no mundo?" (p. 227). O
na Société française de philosophie), Bulletin de la SociétéJrançaise de phi- texto da quarta capa, no prolongamento dessa pergunta, precisava:
losophie, 2, abr.-jun. de 1990, Paris, Armand Colin, pp. 35-63 (texto não "Essa irrupção da espiritualidade na política também não está prenhe
republicado em Dits et Écrits). de uma nova intolerância?"
37. Cf. "'Omnes et singulatim': vers une critique de la raison po- 40. No dia 8 de setembro o exército havia atirado na multidão reu-
litique" (conferência em Stanford, 10 e 16 de outubro de 1979), DE, IV, nida na praça Djaleh, provocando assim milhares de mortes. Cf. "L'ar-
n? 291, p. 135: "[ ... ]desde Kant, o papel da filosofia foi impedir a razão mée, quand la terre tremble" (Corriere della Sera, 28 de setembro de 1978),
de ultrapassar os limites do que é dado na experiência; mas, desde DE, ill, n? 241, p. 665.
essa época,[ ... ] o papel da filosofia também foi vigiar os abusos de po- 41. Ver o quadro "Chronologie des événements d'Iran" (de 8 de
der da racionalidade política [... ]"; "Qu'est-ce que les Lumiêres?" janeiro de 1978, data das primeiras manifestações em Qom, reprimidas
(1984), DE, IV, n? 339, pp. 562-78; mesmo título, íbíd., n? 351, pp. 679-88 pelo exército, a 31 de março de 1979, data da adoção por referendo da
(tirado da primeira aula do curso de 1983, "Le Gouvemement de soi et República islâmica), ibid., p. 663. Sobre as circuru>tâncias precisas das
des autres"). viagens de Foucault e suas relações com os membros da oposição ira-
38. "Les 'reportages' d'idées" (Corriere della Sera, 12 de novembro niana no exílio, cf. D. Defert, "Chronologie", loc. cit., p. 55; D. Eribon,
de 1978), DE, m, n? 250, p. 707. Entre as reportagens previstas, sobre o Michel Foucault, pp. 298-309; D. Macey, Michel Foucault, pp. 416-20. Para
Vietnã, os Estados Unidos, a Hungria, a democratização espanhola, o um comentário dos artigos de Foucault, cf. H. Malagola, "Foucault en
suicídio coletivo da seita do pastor Jones na Guiana, só aparecerão as Iran", in A. Brossat, org., Michel Foucault. Les jeux de la vérité et du pou-
de Foucault sobre o Irã, de A. Finkielkraut sobre a América de Carter e voir, Presses universitaires de Nancy, 1994, pp. 151-62.


508 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS

contra notadamente com o aiatolá liberal Shariat Madari, se- a problemas atuais, e de abertura de uma "dimensa- ..
tua!"" ·d lí · o espm-
gundo dignitário religioso do país, hostil ao exercício do po- na VI_ a ~o ti_ca. Ele presta uma homenagem calorosa
der político pelo clero xiita", e se interessa, no prolongamen- nessa ocas~ao, a açao e ao ensino de Ali Chariati" '-' .d ,
to do curso dado alguns meses antes", pela idéia de "bom em 1977 · , b [ , '"'ecr o
. , cudja som ra ... ] paira sobre toda a vida política
governo" exposta por este último"'. O "governo islâmico", li
e re g10sa o Irã de ho;e"'" É à 1 d d
doutrin . "lib , ' . uz essas gran es figuras
escreve Foucault, não poderia designar "um regime político rus, era! e socialista, que se deve entender a céle-
em que o clero desempenharia um papel de direção ou de bre frase de Foucault sobre a "espiritualidade política" fc t
enquadramento"", mas sim um duplo movimento de politi- d e tantos mal-entendidos: , on e
zação das estruturas tradicionais da sociedade, em resposta
da Que
- · sentido
·ct tem, para os [iranianos], procurar a. custa
propna VI a essa coisa cuja possibilidade nós de d
42. Quando recebeu Foucault, Madari "estava rodeado de vários Renasce~~a e ~s grandes crises do cristianism~, esq~ec:m~s~
militantes dos direitos humanos no Irã"(" À quoi rêvent les Iraniens?" w:'a espm!?alidade política. Já ouço os franceses rirem ma~
(ú Nouvel Observateur, 16-22 de outubro de 19781, DE, m, n? 245, p. 691). sei que estao errados. 49 '

Cf. P. Blanchet e C. Briêre, Iran: la révolution ..., p. 169. Cf. também G.


Kepel, Jihad. Expansion et déclin de l'islamisme, Paris, Gallimard, 2000,
reed. "Folio", p. 157: "O clero não estava[ ... ] em sua maioria alinhado 46. Expressão repe~da d~as vezes, ibid., PP· 693-4.
às concepções revolucionárias de Khomeini, que queria substituir o riati (1~:~o977)fes~r de SOCiologia_ na ~ve~sidade de Mashhad, Ali Cha-
império Pahlevi por uma teocracia (velayat-e faqih) em que o poder su- . gou-se em Pans a vanos mtelectuais como Louis M
premo seria detido por um faqih -aquele religioso especializado na lei Signon, de quem foi aluno, e Frantz Fanon de ue~ tr . as-
islâmica, detrás do qual transparecia o próprio Khomeini. A maioria pedrsda Les Da.mnés de la ferre [Os condenados d~ terr~. Exp~:u:uJ~:a ~
dos clérigos, seguidores do grande aiatolá Shariat Madari, se opunha SI a e, continuou seu ens · . . er
Sua audiA . mo num tru>tituto religioso no norte de Teerã
a esse projeto. Contentavam-se com reclamar a maior autonomia pos- enaa era tamanha que 0 · · . . ·
. . regrme mterditou as mstalações do ins
sível, o controle das suas escolas, das suas obras sociais e dos seus re- titudto. Detido por dezoito meses, optou depois por exilar-se em Londre -
cursos financeiros ante os assédios do Estado, mas não tinham nenhu- on e morreu de wn ataque cardíaco Sob s,
gan, Qu ,est-ce qu ,une revolution
. · re seu pensamento, cf. D. Shaye-
ma ambição de controlar um poder teologicamente tido como impuro religieuse? Paris Presses d' . d'h .
1982 reed Alb" Miche ' • auJour w
-até o retomo do imã oculto, do messias que encheria as trevas e a ini-
qüidade do mundo de luz e de justiça." Tendo entrado em conflito
eC B.. . " m I, 1991, pp. 222-37. Numa entrevista a P. B!anche;
d . nere ( Comment peut-on être persan?", Le Nouvel Observateur 25
com Khomeini, em fevereiro de 1979, por ter incentivado a criação do e setembro de 1982), D. Shayegan situava Chariati na linha d
Partido Republicano Popular, Shariat Madari terminou seus dias em que, como Frantz Fanon e Ben Bella "acred'ta - gem os
f ' 1 ram possiVel casar 0 pro-
prisão domiciliar. ano .com o sagra~o, M~rx com Maomé". Cf. igualmente P. Blanchet
43. Cf. em particular STP, aula de 15 de fevereiro de 1978, pp. C. Bnêre, Iran: la revolutwn ..., pp. 178-9 e G K 1 j"had e
203-7, a propósito das relações entre o poder pastoral da Igreja e o po- sim que saJi ta infl A . ' · epe ' 1 ' PP· 53-4 et pas-
. A' . en a uenaa de Chariati (Shari<ati) sobre 0 m ·
tslairuco-revolucionário dos mudl.ahidin d ( 56 ovunento
der político.
44. "Esperamos o Mahdi {o décimo segundo imã, ou Imã oculto],
14 555 ° povo PP· e 154· cf a nota
ri 'J'~h· . -6, sobre ~e movimento). A obra de referência s~b;e Cha-
mas lutamos todo dia por um bom governo" (citado por Foucault em a e OJe a grande biOgrafia de Ali Rahn A . .
"Téhéran: la loi contre le chah" (Corrieredella Sera, 8 de outubro de 1978), tical biogr~P_hy of:ti~ Shari<afi, Londres, Ta=Í99~.Islamlc Utopta: A poli-
DE, m, n? 244, p. 686; mesma citação em "À quoi rêvent les Iraniens?", 48. A quot revent Ies Iraniens?" loc c1•1 p 693
49 Ibid ' . ., . ·
loc. cit., p. 691). " . . ., p. 694. Sobre as polêmicas suscitadas por essa análise. d
45. "À quoi rêvent les Iraniens?", loc. cit. governo tslâ · " cf D Er'b o
nuco ' · · 1 on, Michel Foucault, p. 305, e a "Réponse
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO SJTUAÇÃO DOS CURSOS 511
510
Numa entrevista dada no mesmo momento (fim de sublevação em relação a toda forma de causalidade histórica
-"o homem que se subleva é, em última instância, inexpli-
1978),recordando as greves estudantis de março de 1968 na
cável'"'-, opõe a "espiritualidade a que se referiam os que
Thnísia onde era então professor, Foucault liga de novo a
iam morrer" ao "governo sangrento de um clero integris-
"espiri~alidade" à possibilidade do sacrifício de si:
ta"". A sublevação é essa "dilaceração que interrompe o fio
O que é que, no mundo atual, pode susc~ta:_ num indiví- da história" e introduz nela a dimensão da "subjetividade"'".
duo a vontade, o gosto, a capacidade e a possibilidade de um A espiritualidade, geradora de força insurrecional", é por-
sacrifício absoluto? Sem que se possa supor nisso a menor tanto indissociável da subjetivação, ética e política, sobre a
ambição ou o menor desejo de poder e de lucro? Foi o qu~ ~ qual Foucault reflete então'". O "sujeito" já não designa sim-
na 'funÍsia, a evidência da necessidade do mito, de uma espm- plesmente o indivíduo sujeitado, mas a singularidade que se
tualidade o caráter intolerável de certas situações produzidas afirma na resistência ao poder- as "revoltas de conduta" ou
pelo capiÍalismo, pelo colonialismo e pelo neocoloniahsmo.S\1 "contracondutas", de que trata o curso de 1978'". É essa ne-
cessária resistência ("é sempre perigoso o poder que um ho-
O xá deixa o poder no dia 16 de janeiro de 1979. No dia
1? de fevereiro, Khomeini, exilado desde 1964, faz um _retor-
no triunfal ao Irã. Pouco depois, começam as execuçoes de 54. Ibid., p. 791.
55./bid., p. 793.
oponentes ao novo regime pelos grupos paramilitares islâ-
56. Ibid.: "Agente se subleva, é um fato; e é por aí que a subjetivi-
micos. Foucault é então alvo de vivas criticas, da esquerda dade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) se introduz na
como da direita, por seu apoio à revolução". Sem querer en- história e lhe empresta seu fôlego."
trar na polémica", opta por responder c~m um artigo-maru- 57. Sobre essa análise da religião em termos de força, cl. "Téhéran:
festo, em Le Monde de 11-12 de maiO, Inutile de s: s~ule­ la foi contre le chah", loc. cit., p. 688: "A religião xüta [... Jé hoje o que foi
ver?" [Inútil sublevar-se?]"". Afirmando a transcendencra da várias vezes no passado: a forma que a luta política adquire a partir do
momento em que mobiliza as camadas populares. Ela faz, de milhares
de descontentamentos, de ódios, de misérias, uma força. {... ]"
de Michel Foucault à une lectrice iianienne" (Le Nouvel Observateur, 1~ 58. Essa palavra aparece em STP,no fim da sétima aula (22 de fe-
19denovembrode 1978), DE, III,n~ 251, p. 708. Espanta-nosqueume~­ vereiro de 1978), pp. 242-4, no marco da "história do sujeito" encetada
torialista em voga, mais de vinte anos depois da publicação dess~s. arti- pela análise do pastorado cristão.
gos, ainda possa apresentar Foucault como_ ~~~~vogado do khome~mo 59. Cf. STP, aula de 1? de março de 1978. É interessante, a esse res-
iraniano em 1979, logo teoricamente solidano dos seus abusos (A peito, aproximar um dos exemplos citados por Foucault da análise da
Mine, "Le terrorisme de l'esprit", Le Monde, 7 de novembro de 2001). espiritualidade xüta proposta por Henry Corbin, em sua obra monu-
50. ''Entretien avec Michel Foucault" (fim de 1978), DE, IV, n? 281, mental, En IsLzm iranien, Paris, Gallimard, "Bibliothêque des idées", 1978.
De fato, recapitulando os principais aspectos da escatologia xüta, cujo
p. 79. centro é a pessoa do 12? Imã, ele vê aí o núcleo de uma "cavalaria espi-
51. Apoio cada vez mais crítico, como atesta a sua "Lettre ouver-
te à Mehdi Bazargan" (Le Nouvel Observateur, 14-20 de abril de 1979), ritual" inseparável do conceito dos "Amigos de Deus", de que a "Ilha
Verde" dos Gottesfreunde, fundada por Rulman Merswin em Estrasbur-
DE ill n? 265, pp. 780-2. go no século XIY. constituiria uma das recorrências históricas no Oci-
' S2. Cf. "Michel Foucault et l'lran" (Le Matin, 26 de março de !979),
dente (op. cit., t. IY, pp. 390-404). Cf. STP, aula citada, pp. 278-9, sobre
DE m, n? 262, p. 762. Rulman Merswin e o Amigo de Deus de Oberland. Foucault não podia
' 53. "Inutile de se soulever?" (Le Monde, 11-12 de maio de 1979),
conhecer esse texto, publicado em abril de 1978, quando ele estava dan-
DE, ill, n? 269, pp. 790-4.
512 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS 513

mem exerce sobre outro"60) que também justifica a ~~oc~,­ Muito embora se refira, aparentemente, a um conjun-
ão de "leis intransponíveis e [de] direitos se_m restriçoes · to de objetos bem diverso do dos cursos dos anos 1970-1975,
~oucault opõe assim sua "moral teórica" aos cálculos dos es- o curso de 1976 na verdade se inscrevia na continuidade do
trategistas: mesmo programa de pesquisa. Como anunciava Foucault
no ano anterior, ele devia "encerr[ar] um ciclo" 63 • Seu pro-
[... ] se o estrategista é o homem que diz: "Que importa jeto era estudar, no prolongamento dos seus trabalhos an-
determinada morte, determinado grito, detemunada su~le­ teriores sobre "a formação de um saber e de um poder de
vação ante a grande necessidade do conj:mt?'. e que me ~­ normalização, a partir dos procedimentos juridicos tradicio-
porta, em contrapartida, dete~dopnnC!pto geral n~ st- nais da punição", "os mecanismos pelos quais, desde o fim
ruação particular em que est~os , pots -~em, para~- em-
diferente que o estrategista seJa um político, un:t his!on~dor, do século XIX, se pretende 'defender a sociedade"'". Trata-
um revolucionário, um partidário do xá ou do atatola; ~ha va-se então de analisar a teoria da defesa social surgida na
moral teórica é inversa. Ela é "antiestrat~gica": ~er respeito- Bélgica por volta de 1880, para descriminalizar e medicali-
so quando uma singularidade se subleva, mtrans1gente quan- zar os jovens delinqüentes". O curso, na realidade, apresen-
do 0 poder infringe o universal
61
ta um conteúdo bem diferente, pois trata da guerra no dis-
curso histórico, e não mais da defesa social. Esse objeto, no
É entre a rejeição política do terrorismo e e_sse ~.logio entanto, não desaparece inteiramente, mas é ressituado nu-
da sublevação, em nome de uma "moral antiestrategtca ,; que ma perspectiva genealógica mais geral: a que permite expli-
se desenrola a problemática da "govemamentalidade . car a "grande reviravolta do histórico para o biológico [... ]
no pensamento da guerra social""". Assim, a defesa da so-

Estrutura e objeto dos cursos


ça, território e populaçãoJ. Mas como Michel Foucault cita esse titulo
duas vezes durante o curso- primeiro para explicá-lo (1~ aula), depois
1. Segurança, território, população" para conigi-lo (4~ aula)- na forma "Sécurité, territoire, population", foi
esta última formulação que adotamos.
o curso de 1978 assinala a abertura de um novo ciclo 63. LesAnonnaux. Cours au College de France, année 1974-1975,ed. por
no ensino de Michel Foucault no College de France. V. Marchetti e A. Salomoni, Paris, Gallimard-Le Seuil, "Hautes Études",
1999, "Résumé du cours", p. 311.
do seu curso. Sabe-se no entanto que leu Corbin antes de ir para o Irã 64. Ibid.
(cf. nota do edit()r, in DE, m, n? 241, p. 662). As palavra~ qu~ e~p~ga 65. Precisão feita por D. Defert, in ].-cl. Zancarini, org., Lectures de
, ·rode Chariati "cuja morte[ ... ] deu-llie o lugar, tão pnvilegtado Michel Foucault, École Normale Supérieure Éditions, 2000, p. 62. "Aliás,
a propos1 ' te"(" A quoi -acrescenta D. Defert- Foucault deu um seminário na Bélgica em 1981
no xiismo, do invisível Presente, do Ausente sempre presen
rêvent les Iraniens?'', Ioc. cit., p. 693), aparecem como o decalque das de sobre esse tema que o interessava." Trata-se do ciclo de cursos intitula-
Corbin sobre 0 12? Imã, o "Imã oculto aos sentidos mas presente no co- do "Mal faire, clire vrai. Fonctions de I'aveu", dado por Foucault em Lou-
ração dos fiéis" (op. cit., p. XVIll). vain, na primavera de 1981, como parte da cátedra Franqui. Sobre esse
60. "Inutile de se soulever?",loc. cit., P· 794. seminário, d. F. Tulkens, "Généalogie de la défense sociale en Belgique
(1880-1914)", Actes, 54, verão de 1986, n? especial: Foucault hors les murs,
:~: ~~o foi anunciado no Annuaire du College de_ Fr~nce, 77' an- PP· 38-41.
• p. 743, com o título de "Sécurité, territoire et population [Seguran-
nee, 66. "II faut défendre la société, aula de 10 de março de 1976, p. 194.
SEGURANÇA TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITilAÇÃO DOS CURSOS 515
514
Partindo das conclusões do curso de 1976 o curso de
1978 se propõe prolongar e aprofundar esse d~slocamento
ciedade está ligada à guerra pelo fato de ser pensada,
67
no fim
do século XIX, como uma "guerra inte:r:na" , contra os pe-
teóric_o. Depois do es_!udo da disciplina dos corpos, o dare-
rigos que nascem do próprio corpo soc~al. . . gulaç_ao das populaçoes. Abre-se assim um novo ciclo, que
É nessa ocasião que Foucault propoe pela pnrnerra vez
levara Foucault, algu~s anos mais tarde, a horizontes de que
conceito de biopoder, ou biopolítica, reton:ado no rnesrr:.o
ano em A vrmtadede saber'", introduz a noçao de popula~o seus ou':mtes de entao nem podiam suspeitar.
0

_"massa global, afetada por processos de conJunto que sao O titulo do curso, Segurança, território, população, des-
próprios da vida[ ... ] corno o nascimento, a ~orte, a [r~]pro­ creve com muita exatidão o problema posto. De fato, trata-
dução a doença, etc.""'- e retifica sua hipotese antenor de se de saber e:n que consiste essa nova tecnologia de poder
urna ,;sociedade disciplinar generalizada"" mostrando corno surg~da no seculo XVIll, que tem por objeto a população e
as técnicas de disciplina se articulam aos dispositivos de "Visa,[ ...] pelo equihbrio global, algo corno urna horneósta-
se: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos in-
regulação. temos'~n. Tecnologia de segurança que Foucault opõe aos
Depois da anátomo-política do corpo humano, i~stau­ mecanismos mediante os quais o soberano, até a idade clás-
rada no decorrer do século XVIII, vemos a~arecer, no,~ do sica, se esforçava por garantir a segurança do seu território".
mesmo século, algo que já não é u~a ~a~omo:~o~tica do "T<;rritório" e "população" funcionam assim corno pólos an-
corpo humano, mas que eu chamana de bwpolítica da es- titeticos entre os quais vai se desenrolar a pesquisa. Corno
pécie humana. 71 se passo_u da soberania sobre o território à regulação das
populaçoe~? Qurus foram os efeitos dessa mutação no pla-
no das praticas governamentais' Que nova racionalidade
67. /bid.
68. La Volonté de savoir, p. 184.
69. II jaut dijendre la société, aula de 17 de_ março de_1976, p. 216.
co~~e, [... ] ~om o corpo{... ] servindo de suporte para os proces-
70. Ibid., p. 302. "Essa não é, acho eu, senao uma ~rm:ei7,a mterpre- sos biologicos [proliferação, nascimentos e mortalidade, nível de saúde
tação, e insuficiente, da idéia de s~~d~de ~e normalizaçao ~ ac~scen­ expectativa de vida]; encarregam-se dele por toda urna série de inter~
tava. Essa noção de "sociedade disciplinar aparece pela ~nmerra vez v~n~_s e de controles reguladores: uma biopoütica da população. As
em Le Pouvoir psychiatrique. Cours au College_ d~,France, annee 1?,73-1974, dlSctplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois
ed. por J. Lagrange, Paris, Gallimard-Le Seuil, Hautes Étu~es , aula ~e pólos em tomo dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre
28 de noveniliro de 1973, p. 68. É retomada depois em Survezller et pumr, a vida."
72. /bid., p. 297.
P· 2177!. Ibid., P· 289. Cf. também Úl Volonté de savoir, P· 183' "[O] poder
73. Sobre a correlação, constante no curso, das noções de "territó-
sobre a vida desenvolveu-se desde o século xvn sob ~ua~ formas pnn- rio" e de "soberania", d. em particular STP, aula de 25 de janeiro de
cipais; elas não são antitéticas; constituem, ante~: ~ots polos ~e desen- 1978, p.ss, "[. ..
]o problema tradicional da soberania e, por conseguinte,
lvim nto ligados por todo wn feixe intermediano de relaçoes. [ ···] O
do poder político ligado à forma da soberania, sempre fora até então 0
;~eir: a se formar foi centrado no corpo-máquina: seu adestramen- de, ou conquistar novos territórios, ou, ao contrário, manter o território
to, aumento das suas aptidões, a extorsão das suas forças [etc_-], tudo
0 conquistado [ ...] ~m outras palavras, tratava-se de algo que podería-
isso foi possibilitado por procedimentos de poder que caractenzam as mos chamar preciSamente de segurança do território ou segurança do
disciplinas: anátomo-poütica do corpo humano. O segnn~o, que se for- soberano que reina no território".
mou um pouco depois, em meados do século XVIII, está centrado no
516 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURsos
517
passa a regê-las? O objeto do curso, portanto, está clara- é somente importante do . ,.
mente definido: através da história das tecnologias de segu- mente um significado d ponto de VIsta político. Tem igual-
rança, "tentar ver se podemos[ ... ] falar de urna sociedade de como atesta a maneira p~~~~~ ~fe pl~no epist:mológico,
segurança"". Objeto político tanto quanto histórico, já que arqueologia das ciências h re ormula, a sua luz, a
concerne ao diagnóstico do presente: "Poderíamos dizer que as coisas: urnanas exposta em As palavras e
em nossas sociedades a economia. geral de poder está se
tomando da ordem da segurança?"" [... ] a temática do homem tr , d
É esse programa que Foucault segue até a sessão de 1? nas que o analisam com . ' a aves as ciências huma-
o ser VIvo · di 'd
de fevereiro, a partir de três exemplos tomados dos séculos jeito falante, deve ser compree ch:t VI u~ trabalhador, su-
XVII-XVIII: os espaços de segurança, com o problema da ci- da população como correlato d n a a partir da emezgéncia
dade, que o leva a salientar as relações entre urna popula- ber. O homem[... ] nada mais é ~~r e como objeto de sa-
população. 78 ente que uma figura da
ção e seu "meio"; o tratamento do aleatório, com o proble-
ma da escassez alimentar e da circulação dos cereais, que
lhe permite relacionar a questão da "população" à economia ~ análise dos dispositivos de se . ,
política liberal; a forma de normalização específica da segu- pulaçao levou Foucault a õr ro gurança relativos a po-
o conceito de "governo" PS P . ~essiVamente em destaque
rança, enfim, com o problema da varíola e da inoculação,
pregado em seu sentido. tr:;Ici ~ente este último é em-
que o leva a distinguir normação disciplinar e normalização
no sentido estrito. Ao fim desse percurso, que acompanha ou de exercício da soberania, v~'i..~ autond~de pública
u1e
de perto o projeto traçado em 1976", Foucault chega ao que pouc~, graças ao conceito fisiocráti~o r;{'~? porem pouco. a
devia, na sua opinião, "ser o problema preciso deste ano, a mico ' um valor discriminant d . e governo econo-
correlação entre a técnica de segurança e a população'm. A pecíficas de gestão das po ula bese~g;;ando as,técnicas es-
emergência desta última, como idéia e como realidade, não texto, adquire então o seKtid~ e . . go~emo ' nesse con-
poder na forma [... ] da econo s~~o de arte de exercer 0
cault definir o liberalismo e ffil~ : o que perrrute a Fou-
74. STP, aula de 11 de janeiro de 1978, p. 15. govemar. conoffilco como uma arte de
75. Ibid. 0 triãngulo problemático
76. Foucault distinguia então três grandes domínios de interven- pulação - que se~"a d -:- segurança -território-po-
ção da biopolítica no fim do século XVIll e no início do século XIX: (1) . , ' •" e marco Inicial pa . .
substituído assim pela s , . . , . ra a pesqwsa, f01
os processos de natalidade e mortalidade, induzindo um novo enio- ção-governo. É or isso ene Sistematica segurança-popula-
que do problema da morbidade; (2) os fenômenos da velhice, dos aci- são de 1o de c p . 9ue ~oucault decide dedicar a ses-
dentes, das doenças, etc., que alteram a capacidade dos indivíduos; (3) , 'evere1ro a analíse d t ·
as relações entre os homens, como seres vivos, e seu meio, através, es- aula, que se inscreve no rolon o ercc:;rr? termo. Essa
sencialmente, do problema da cidade (Em defesa da sociedade, aula de 17 dentes, assinala, na realilade u~amento log~co das prece-
de março de 1976, pp. 288-92). A grande diferença entre essa descrição onentação geral do curs Ó f a profunda revrravolta na
e os exemplos escolhidos em 1978 reside, claro, na ausência do proble- conceito de "g o. e ato, Foucault mtroduz 0
ma dos cereais. Em outros termos, o que permanece não-formulado no ovemamentalidade", pelo qual, mediante
curso de 1976 é a questão do liberalismo como nova racionalidade go-
vernamental. 78. STP, aula de 25 de janeiro de 1978 103
77. STP, aula de 11 de janeiro de 1978, p. 15. 79 STP ui d ]O 'p. .
. 'a a e . de fevereiro de 1978, p. 127.
518 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
SITUAÇÃO DOS CURSOS
519
uma espécie de coup de théâtre teórico, desloca de repente o
objeto do seu trabalho, Depois de dissociar o problema do e deformam seu percurso" , d .
queologia do saber", , mvoca o na mtrodução de A ar-
governo, tal corno se formula no século XVI, dos estratage-
mas do príncipe hábil descritos por Maquiavel e de mostrar Com esse conceito abre-se u
corno a "população" havia permitido o desbloqueio da arte sa - não mais a história das tecn~';vo ~ampo de pesqui-
de governar, em relação ao duplo modelo, jurídico e domés- passa provisoriamente para o segund as! e segurança, que
log~a do Estado moderno - . o p ano, mas a genea-
tico, que o impedia de encontrar sua dimensão própria, ele gicos e teóricos a aula se ·~~JOS pn;ssupostos metodoló-
toma sobre o título do curso, que não lhe parece mais con-
ao Estado o "ponto de J:a" e ~J'~cit~, Trata-se de aplicar
vir ao seu projeto:
anos precedentes, no estudo d~s d. aVIa Sido adotado, nos
[... ]se eu quisesse ter dado ao curso que iniciei este ano r~lações de j)Oder de todo ent ISCiplinas, separando as
um título mais exato, certamente não teria escolhido segu- cronalista"' Ep · oque mstituciOna!ista ou fun-
H
do curso: , or Isso que Foucault redefine assim o objeto
rança, território, população". O que eu queria fazer agora, se
quisesse mesmo, seria uma coisa que eu chamaria de histó-
ria da "governamentalidade"110• Será que é possível repor E t d
nologia geral de poder ue te~ s a o_ ~~demo numa tec-
Essa reviravolta constitui um simples aprofundamento ções, seu desenvolvimen~ seu~ P?Ssibilitado suas muta-
das hipóteses de partida, ou faz parte desse procedimento pode falar de algo como ~m " ncwnamento? Será que se
de lagostim pelo qual Foucault, com humor, caracteriza seu seria para o Estado o u ~, g~vemamentalidade"', que
modo de progressão ("sou corno o lagostim, ando de la- Paz:a a psiquiatria, 0 qu~ a: ~:cn~~~c~: !e ~ef{egação eram
do""')? Questão, sem dúvida, desprovida de pertinência. A o Sistema penal, o que a bio líti sctp n~ eram para
médicas?~ 5 po ca era para as Instituições
intervenção do conceito de "govemarnentalidade" procede
ao mesmo tempo do desenvolvimento de um plano prees-
tabelecido (que corresponde, corno constatamos, às quatro A problemática da "govem ali
tanto a entrada da questão do ~e;t dade" assinala por-
primeiras aulas) e de um pensamento em movimento, que dos micropoderes. Convém a s a o no campo de análise
decide, a partir do que descobre, retornar certas análises an- observações: , esse respeito, fazer algumas
teriores (a propósito da arte de governar e da pastoral das
almas"'), numa perspectiva teórica ampliada. Mais do que
qualquer outro momento do ensino de Foucault, talvez, ela 1. Essa problemática responde à 0 b. - ..
ilustra esse gosto pelo labirinto "onde posso me aventurar, mente feita a Foucault de i E jeçao frequente-
gnorar o stado em sua análise
deslocar meu objetivo, abrir-lhe subterrâneos, enfiá-lo lon-
ge dele mesmo, encontrar-lhe proeminências que resumem
83. L'Archéologie du savoir, Paris Gallimard , . .
ces humaines" 1%9 p 28 [ed b 'A ' Bibliothéque des scien-
' ' · · ras.: arqueol · do .
Forense Universitária, 1972]. ogta saber, Rio de Janeiro,
80. Ibid., p. 143.
81. NBP, aula de 31 de janeiro de 1979, p. 80. 84. Foucault precisa no manuscn·t d
li' ' o ocurso · -
82. Ambas, como é recordado adiante, já foram objeto da atenção po ticos dessa opção metodológica Cf STP ' qucllS sao os efeitos
1978, pp. 160-1, nota*. · · 'aula de B de fevereiro de
de Foucault em Les Anormaux (cf. infra, pp. 528-9).
85. lbid., p. 162.
I
I

J
520 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS
521
do oder. Ora, esta, explica ele, nem exclui o Estado nem !idade cornpósita'"·', nada mais é que "o efeito móvel de um
lhe pé subordinada. Não se trata nem de n;gar o Estado regime de governamentalidades rnúltiplas"w. É esse mesmo
nem de instalá-lo em posição de proerrunencia, mas de enfoque que lhe permite, em 1979, relacionar a questão do
ostrar que a análise dos rnicropoderes, longe de ser lirni-
:::.da a um domínio preciso, que..seria definido por um s~?= Estado à da "fobia do Estado"", cujos efeitos "inflacionistas'""
põe em evidência.
da escala deve ser considerada um ponto de Vlsta, um e A grade de análise da governarnentalidade não consti-
todo de decifração válido para a escala inteira, qualquer que tui portanto urna ruptura no trabalho de Foucault em rela-
seja a sua grandeza """ . ção à sua análise anterior do poder, mas se inscreve no es-
paço aberto pelo problema do biopoder". Seria inexato por-
2. O novo interesse de Foucault pelo Est~do, no entan- tanto afirmar que o conceito de "governo" substitui, a partir
to não se reduz a essas considerações d_e rnetodod Deco~e dessa data, o de "poder", corno se este último pertencesse
t ' bérn da ampliação do campo de análise, leva a a ca o a urna problemática já superada. O deslizamento do "poder"
noamfim d o curso d e 1976. A gestão dos "processos
' . d d" bJossocio-
. r ao "governo" que se efetua no curso de 1978 não resulta do
ló ·cos das massas humanas", ao contrano as tsctp m~s
a ~cadas no ãrnbito de instituições limitadas (escola, hosp!:
questionamento do marco metodológico, mas da sua ex-
t~ quartel, fábrica, etc.) envolve de fato o aparelh~, ~e ~s
t d É no nível do Estado que se encontram os or~aos 93./bid.
c~::· lexos de coordenação e de centralizaçã~"
necessanos 94. NBP, aula de 31 de janeiro de 1979, p. 79. É assim que se deve
a essep fi rn. A biopolítica_ só pode serd concebida,
"87
portanto, entender a expressão, um tanto obscura à primeira vista, "governamen-
corno "urna biorregulaçao pelo Esta o . talização do Estado" utilizada por Foucault no fim da 4~ aula de STP
(1? de fevereiro de 1978, p. 145).
3 Considerar a questão do Estado é indissociável, em 95. NBP, aula de 31 de janeiro de 1979, p. 79.
Foucaclt da crítica das suas representações corrented:: o E~,- 96. NBP, aula de 7 março de 1979, pp. 192-6. A essa crítica da "fo-
tado como' abstraçao
- mtempor
. ai""' po~lo90 de transcen encta
fri 91 - ,
bia do Estado" fazem eco, de modo invertido, as questões que Foucault
se coloca então (mas que não formula no curso) sobre o "desejo de Es-
instrumento de dominação de classe ou rn~ns:o ~I tado" na época clássica. Cf. "Méthodologie pour la connaissance du
tudo isso formas, a seu ver, de u supervalonzaçao o pr? e- monde: comment se débarasser du marxisme", entrevista a R Yoshimo-
ma do E;tado"92' a que ele opõe a tese de que o Estado, rea- to (25 de abril de 1978), DE, m, n? 235, pp. 617-& "Este ano dou um cur-
so sobre a formação do Estado e analiso, digamos, as bases dos meios de
realização estatal num período que vai do século XVI ao século XVII no
86. NBP, aula de 7 de março de 1979, p. 192. Ocidente, ou antes, o processo no curso do qual o que chamamos dera-
87. Il faut défendre la société, p. 223. , . uni- zão de Estado se forma. Mas.topei com uma parte enigmática que não
88 Cf NBP aulade10dejaneirode1979,p.4,ap~oposttodos . pode mais ser resolvida pela simples análise das relações econômicas,
versais ~os. ua~ Foucault escolheu opor o ponto de VISta de um nomr- institucionais ou culturais. Existe aí uma espécie de sede gigantesca e
nalismo, metodolog:tco,
q '" I ., a u1a de 31 de 1"aneiro de 1979, PP· 7&-9.
e l·b·d
irresistível que obriga a se voltar para o Estado. Poderíamos chamar de
89. Cf. STP, aula de 5 de abril de 1978, p. 481. desejo do Estado."
90. Cf. STP, aula de I? de fevereiro de 1978, p. 144.
97. É tendo em vista "abordar o problema do Estado e da popula-
91. lbid. e NBP, aula de !O de janeiro de 1979, p. 7. ção" que Foucault justifica a elaboração dessa grade de análise (cf. STP,
92. Loc. cit. supra, nota 90. aula de 8 de fevereiro de 1978, p. 156).
522 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SJTilAÇÃO DOS CURSOS
523
tensão a um novo objeto, o Estado, que não tinha seu lugar a forma de racionalidade própria dos dispositivos de regu-
na análise das disciplinas. lação biopolítica.
As etapas dessa "governamentalização do Estado" é
que são o objeto das nove últimas aulas do curso, através da É essa, precisamente, a tese que o curso de 1979 se pro-
análise do pastorado cristão (aulas 5 a 8, de 8, 15, 22 de fe- põe desenvolver.
vereiro e 1? de março de 1978} e da passagem do pastorado
ao governo político dos homens (aula 9, de 8 de março) e,
depois, da arte de governar segundo a razão de Estado"' (fim 2. Nascimento da biopolítica
da aula 9 à aula 11, de 8 a 22 de março) e dos dois conjun-
tos tecnológicos que a caracterizam: o sistema diplomático- Esse curso se apresenta, desde a primeira sessão, como
militar amoldado à manutenção do equiliorio europeu (aula a continuação direta do precedente. Anunciando a intenção
11) e a polícia, no sentido clássico de "conjunto dos meios de continuar o que havia começado a dizer no ano anterior
necessários para fazer crescer, do interior, as forças do Esta- Foucault precisa antes de mais nada a escolha do métod~
do'"' (aulas 12 e 13, de 29 de março e 5 de abril)"". A última que.comanda sua análise 1U2, depois resume as últimas aulas,
aula termina com a volta ao problema da população, cujo dedicadas ao governo da razão de Estado e à sua critica a
ponto de emergência Foucault pode definir melhor agora partir do problema dos cereais. O princípio de limitação ex-
"em derivação relativamente à tecnologia de 'polícia' e em terr;a da razã? de Estado, que o direito representava, é subs-
correlação com o nascimento da reflexão econômica" 101 • É tituído, no seculo XVIII, por um princípio de limitação in-
por esse problema estar no cerne da critica, pela economia t.::na, sob a for:ma d~ :co~omia 11 )J. De fato, a economia po-
política, do Estado de polícia que o liberalismo aparece como lítica traz em SI a eXJgencJa de uma autolimitação da razão
governamental, baseada no conhecimento do curso natural
98. A principal fonte de Foucault, nessas aulas, é o livro de E. das coisas. Assinala portanto a irrupção de uma nova racio-
Thuau, Raison d'État et Pensée politique à I'époque de Richelieu, Paris, Ar- m;lidade ~a arte de governar: governar menos, para ter efi-
mand Colin, 1966 (reed. Paris, Albin Michel, "Bibliothêque de I'évoluti.on aencJa maxuna, em função da naturalidade dos fenômenos
humaine", 2000). Não parece que ele tinha lido, então, a obra clássica com que se tem de lidar. É essa governamentalidade, liga-
de F. Meinecke, Die Idee der Staatsriison in der neueren Geschichte, Muni- da em seu esforço de autolimitação permanente à questão
que-Berlim, Oldenburg, 1924 I L'Idée de la raíson d'État dans l'histoíre des da verdad;, que Foucault chama de "liberalismo". O objeto
Temps modernes, trad. fr. M. Chevalier, Genebra, Droz, 1973, menciona-
do curso e, portanto, o de mostrar em que o liberalismo é
do em outubro de 1979 em sua conferência "'Omnes et singulatim"',
condição de inteligibilidade da biopolítica:
loc. cit., p. 150. De maneira geral, ele não leva em conta os numerosos
traballios, alemães e italianos, publicados sobre esse tema desde os anos
1920. Para uma bibliografia completa do tema, antes e depois de 1978, Com a emergência da economia política, com a intro-
cf. G. Borrelli, Ragion di stato e Leviatano, Bolonha, ll Mulino, 1993, pp. dução do princípio limitativo na própria prática governa-
312-60, e as publicações regulares do Archivio della Ragion di Stato (Ná-
poles) desde 1993. 102. Cf. supra, nota 84.
99. "Resumo do curso", supra, p. 492. 103. No manuscrito sobre o "governo", que serviu de introdução
100. Sobre essa série de aulas, cf. ibid., pp. 489-93. ao serrtinário de 1979, Foucault descreve essa passagem como "o gran-
101. Ibid., p. 493. Cf. STP, aula de 5 de abril de 1978, pp. 472-6. de deslocamento da veridição juridica para a veridição epistêmica".
524 SEGURANÇA, TERBIT6RIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS 525

mental, realiza-se uma substituição importante, ou me~or, As aulas 2 e 3 (17 e 24 de janeiro) são dedicadas ao es-
uma duplicação, pois os sujeitos de direito sobre os qurus :e tudo das características específicas da arte liberal de gover-
exerce a soberania política aparecem como uma populaçao nar, tal como se esboça no século XVID. Nelas, Foucault ex-
que um governo deve administrar. , . ,. " plicita, em primeiro lugar, o vínculo entre verdade e gover-
É aí que a linha de organização de uma_ bwpolitica en: namentalidade liberal, através da análise do mercado como
contra seu ponto de partida. Mas quem nao ve que Isso e
lugar de veridição, e precisa as modalidades de limitação
apenas uma parte de algo bem mais amplo, que [é] essa nova
interna que daí decorrem. Faz aparecer, desse modo, as duas
razão governamental? . ,. l(lo!

Estudar o liberalismo como marco geral da bwpolitica. vias de limitação do poder público, correspondentes a duas
concepções heterogêneas da liberdade: a via axiomática re-
O projeto anunciado é o seguinte: estudar primeir':' o volucionária, que parte dos direitos humanos para fundar o
liberalismo em sua formulação original e em suas versoes poder soberano, e a via radical utilitarista, que parte da prá-
contemporãneas, a alemã e a americana, depoiS c~egar ao tica governamental para definir, em termos de utilidade, o
problema da política da vida'"'. Somente a pnmerra parte limite de competência do governo e a esfera de indepen-
desse programa será realizada, pois Fouca~t fm levado a dência dos indivíduos. Vias distintas, mas não excludentes
desenvolver sua análise do liberalismo alemao mrus demo- entre si. É à luz da sua interação estratégica que convém es-
radamente do que previa'"'. Esse interesse pe)a econorma s~­ tudar a história do liberalismo europeu desde o século XIX.
cial de mercado não se deve apenas ao carate,r paradi~a­ É ela também que ilumina, ou põe em perspectiva, a manei-
tico da experiência alemã. Ele se explic~ tambem por r:;zoes ra como Foucault, a partir de 1977, problematiza os" direitos
de "moralidade critica" ante" essa especre de laxJsmo , que dos governados" em relação à invocação, mais vaga e mais
constitui, a seu ver, certa "critica inflacionista do Estado" abstrata, dos ''direitos do homem'' 10s.
pronta a denunciar~ fasci~~? n~, funci~namen!~ d?s Esta- Na 3~ aula, depois de examinar a questão da Europa e
dos democráticos ocrdentrus . A questao alema ve-se, as- das suas relações com o resto do mundo segundo a nova
sim, situada no cerne das questões metodológicas, históri- razão governamental, ele reconsidera sua opção de chamar
cas e políticas que formam a trama do curso. de "liberalismo" aquilo que, no século xvm, se apresenta
muito mais como um naturalismo. A palavra liberalismo se
104. Manuscrito da primeira aula. Cf. NBP, aula de 10 de janeiro justifica pelo papel que a liberdade desempenha na arte li-
de 1979, p. 24, nota*. . . beral de governar: liberdade garantida, sem dúvida, mas
105. Cf. NBP, ibid., pp. 23 ss. O projeto esboçado aqw é preasado também produzida por essa arte, que para alcançar seus fins
(e, por isso, retrospectivamente aclarado) mais adiante: d. NBP, aula de
necessita suscitá-la, mantê-la e enquadrá-la permanente-
31 de janeiro de 1979, pp. 80 ss. .,
106. Cf. NBP, início da aula de 7 de março de 1979, p. 191. [.. -1 eu
tinha a intenção, no. começo, de lhes falar da biopolítka, m~, sendo as
coisas como são, acabei me alongando, me alongando demrus talve~, so- 108. Não se trata, é claro, de reduzir a problemática dos "direitos
bre 0 neoliberalismo, e ainda por cima o neoliberalismo em sua forma dos governados", indissociável do fenômeno da dissidência (d. "Va-t-on
alemã". Cf. também o "Resumo do curso", ibid., p. 323: "O curso deste extrader Klaus Croissant?", loc. cit., p. 364), à problemática da indepen-
ano acabou sendo inteiramente consagrado ao que devia fonnar ape- dência dos governados segundo o cálculo utilitarista, mas de salientar
uma proximidade que, sem dúvida, não é alheia ao interesse que Fou-
nas a sua introdução."
107. NBP, aula de 7 de março de 1979, PP· 194-6. cault manifesta então pelo liberalismo.
526 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
SITUAÇÃO DOS CURSOS
527
mente. Assim, o liberalismo pode ser definido como o cál-
culo do risco - o livre jogo dos interesses individuais - com- nios tidos até então como não-econôrnicos (teoria do "ca-
pital humano").
patível com o interesse de cada um e de todos. É por isso
que a incitação a "viver perigosamente" implica o estabele- As duas últimas aulas tratam do nascimento da idéia de
cimento de múltiplos mecanismos de segurança. Liberdade
homo oeconomicus, como sujeito de interesse distinto do su-
jeit? de direito, ~O pensameiÜO do século XVIIT, e da noção
e segurança: os procedimentos de controle e as. form~s de de sociedade civil , correlativa da tecnologia liberal de go-
intervenção estatal requeridas por essa dupla eX!gencra e que verno. Enquanto o pensamento liberal, em sua versão mais
constituem o paradoxo do liberalismo e que estão na ori- clássica, opõe a sociedade ao Estado, como a natureza ao
gem das "crises de governamentalidade"'"' que ele vem co- ru;:tificio ou o espontâneo ao forçado, Foucault põe em evi-
nhecendo há dois séculos. dencra o paradoxo que a relação entre ambos constitui. De
Portanto, a questão agora é saber que crise de gover- fato, a sociedade representa o princípio em nome do qual o
namentalidade caracteriza o mundo atual e que revisões a governo liberal tende a se autolirnitar. Ela o obriga a se in-
arte liberal de governar ocasionou. É a essa tarefa de diag- dagar sem cessar se ele não governa demais e, desse ponto
nóstico que responde o estudo, a partir da 4~ aula (31 de ja- de VIsta, desempenha um papel crítico em relação a todo
neiro), das duas grandes escolas neoliberais, o ordolibera- excesso de governo. Mas também constitui o alvo de uma
lismo alemão110 e o anarcoliberalismo american0 111 -única intervenção governamental permanente, não para restrin-
incursão de Foucault, ao longo de todo o seu ensino no gir, no plano prático, as liberdades formalmente concedi-
College de France, no campo da história contemporânea. das, mas para produzir, multiplicar e garantir essas liberda-
Essas duas escolas não participam apenas de um mesmo des de que o sistema liberal necessita"'· Assim, a sociedade
projeto de refundação do liberalismo. Elas também repre- representa ao mesmo tempo o "conjunto das condições do
sentam duas formas distintas de "crítica da irraciOnalidade governo mínimo liberal" e a "superficie de transferência da
própria do excesso de governo""', uma ~orizando a lógi- atividade govemarnental" 114 •
ca da concorrência pura, no terreno economtco, ao mesmo
tempo em que enquadra o mercado por meio de interven-
ções estatais (teoria da "política de sociedade"), a outra
procurando ampliar a racionalidade do mercado a domí- 113. Cf. a última aula de STP (5 de abril de 1978, pp. 473-<;), a que
Foucault remete implicitamente quando fala de um "governo onipresen-
te, [...]"que, ao mesmo tempo em que "respeita a especificidade da eco-
109. NBP, aula de 24 de janeiro de 1979, p. 70. nomia", deve" administr[ar] o social" (NBP, p. 300).
110. Como a bibliografia francesa sobre esse tema é extremamen- 114. Manuscrito de 1981 sobre "[O] liberalismo corno arte de go-
te reduzida, fora a tese de F. Bilger (La Pensée économique libérale de l' Alle- vernar" em que Foucault, remetendo ao seminário do ano anterior re-
magne contemporaine, Paris, Librairie générale_ de ~Droit, 19~),. de ,que capitula sua análise do liberalismo. Essa análise deve ser cotejada,'no-
Foucault se serve, assinalemos a recente publicaçao do coloqwo L Or- tadamente, com a que é proposta por P. Rosanvallon, Le Capitalisme uto-
dolibéralisme allemand. Aux sources de l' économie sociale de marché, org. P. pique. Critique de l'idéologie économique, Paris, Le Seuil, "Sociologie poli-
Commun, Université de Cergy-Pontoise, CIRAC/CICC, 2003. ti~ue:', 19";: ~P· 68-9 (~d. sob o título deLe Libéralisme économique.
111. Cf. NBP, "Resumo do curso", pp. 327-9. Htstotre de ltdee de marché, Paris, Le Seuil, "Points Essais", 1989), com a
112. Ibid., p. 327. qual parece· às vezes dialogar (cf. referência de Foucault a esse livro no
"Resumo do curso", NBP, p. 326).
528 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS 529

Conceitos essenciais desses aparelhos" 117 • Técnica cujo "dispositivo tipo" consistia
na organização disciplinar descrita no ano anterior"".
Terminemos essa apresentação com alguns comentá- A análise do "governo", nesse mesmo curso, não se li-
rios sobre os dois conceitos fundamentais - "governo" e mitava às disciplinas, mas se estendia às técnicas do gover-
"govemamentalidade" - em tomo dos quais os cursos se no das almas, forjadas pela Igreja em tomo do ritual da pe-
organizam. nitência'"· Disciplina dos corpos e governo das almas apa-
reciam assim como as duas faces complementares de um
mesmo processo de normalização:
Governo
No momento em que os Estados estavam se colocando
o problema técnico do poder a exercer sobre os corpos [...L a
É no curso de 1975, Os anonnais, que se desenha, pela Igreja, de seu lado, elaborava uma técnica de governo das al-
primeira vez, a problemática da arte de goven::'ar. Opond_o o mas, que é a pastoral, a pastoral definida pelo concilio de
modelo da exclusão dos leprosos ao da mclusao dos pestífe- Trento e retomada, desenvolvida em seguida por Carlos Bor-
rosns, Foucault creditava então à Idade Clássica a invenção romeu.120
de tecnologias positivas de poder, aplicáveis em diversos ní-
veis (aparelho de Estado, instituições, família): A arte de governar e a pastoral: são esses dois fios que
o novo curso de 1978 desenrola, mas com certo número de
A Idade Oássica, portanto, elaborou o que podemos diferenças significativas. Extensão considerável, primeiro,
chamar de uma "arte de governar", precisamente no sentido do âmbito cronológico: já não é no século XVI, como reação
em que se entendia, nessa época, o "governo" das crianças, à Reforma, que se constitui a pastoral, mas desde os pri-
o "governo" dos loucos, o "governo" dos pobres e, logo de- meiros séculos do cristianismo, sendo o governo das almas
pois, o "governo" dos operários. 116 definido pelos Padres como "a arte das artes" ou a "ciência
das ciências" 121 • Foucault reinscreve então a pastoral tri-
Por "governo", esclarecia Foucault, cumpria entender dentina na longa duração do pastorado cristão. Recentra-
três coisas: a nova idéia de um poder baseado na transfe- mento, em seguida, da arte de governar no próprio fun-
rência, na alienação ou na representação da vontade dos in- cionamento do Estado: o governo, em seu sentido político,
divíduos; o aparelho de Estado instaurado no século X\llll; já não designa as técnicas pelas quais o poder se conecta
e, enfim, uma "técnica geral de governo dos homens", que aos indivíduos, mas o próprio exercício da soberania polí-
constituía o "o reverso das estruturas jurídicas e políticas da
representação, e a condição de funcionamento e de eficácia
117. /bid.
118. Cf. Le pouvoir psychiatrique, aulas de 21 e 28 de novembro, e
115. Modelos que ele ressitua, em 1978, no âmbito da sua análise de 5 de dezembro de 1973.
das temologias de segurança (cf. STP, aula de 11 de janeiro de 1978, PP· 119. Les Anormaux, aula de 19 de fevereiro de 1975, pp. 158-80.
11-4). 120. /bid., p. 165.
116. Les Anormaux, aula de 15 de janeiro de 1975, p. 45. 121. Cf. STP, aula de 15 de fevereiro de 1978, p. 200.
530 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITIIAÇÃO DOS CURSOS
531
tica122 - vimos, mais acima, a que objeto metodológico cor- Governamentalidade
respondia esse novo "ponto de vista" 1 2.~. Deslocamento, en-
fim, da análise dos mecanismos efetivos do poder para a (a) Formulado pela primeira vez na 4.' aula do curso
"consciência de si do govemo" 124 . Esse gesto, no entanto, de 1978 (1? de fevereiro de 1978), o conceito de "governa-
não rompe com o enfoque "microfísico" dos trabalhos an- mentalidade'"" desliza progressivamente de um sentido
teriores. Como ele explica na introdução ao seminário de preciso, historicamente determinado, para um significado
1979, trata-se, para ele, de estudar menos as práticas do que ma1s geral e abstrato. Ele serve, de fato, nessa aula, para
a estrutura programática que lhes é inerente, a fim de expli- ~omear o reg~me de poder instaurado no século XVIII, que
car os "procedimentos objetivos" que dela decorrem: tem por alvo p~opal ,a população, por principal forma
de saber a economia politica e por instrumento técnico es-
Toda govemamentalidade é necessariamente estratégi- sencial os dispositivos de segurança" 127, assim como 0 pro-
ca e programática. Nunca dá certo. Mas é em relação a um cesso que levou à "preeminência desse tipo de poder que
programa que podemos dizer que nunca dá certo. podemos chamar de 'governo' sobre todos os outros: sobe-
Como quer que seja, não são os efeitos da organização rania, disciplina [... J:"'"·
Ele designa portanto um conjunto
social que pretendo analisar, mas sim os efeitos de objetivação de elementos CUJa genese e cuja articulação são específicas
e de veridição. E isso nas ciências humanas - loucura, pena- da história ocidental.
lidade, e em relação a ela mesma, na medida em que ela sere- . Por sua di:nensão histórica e singular, ao caráter acon-
flete ~ govemamentalidade (Estado/sociedade dvil). tecunental da governamentalidade" somam -se os limites
Trata -se de interrogar o tipo de prática que é a governa- do seu campo de aplicação. Ela não define uma relação de
mentalidade, na medida em que ela tem efeitos de objetiva-
poder qualquer, mas as técnicas de governo subjacentes à
ção e de veridição quanto aos próprios homens, constituin-
formaçao do Estado moderno. De fato, ela é para o Estado
do-os como sujeitos. 125

126. Contrariamente à interpretação proposta por certos comenta-


dores alemães, a palavra "govemamentalidade" não poderia resultar da
122. NBP, aula de 10 de janeiro de 1979, p. 4, em que Foucault ex- contração de "governo" e "mentalidade" (d. por exemplo U. Brõckling,
plica que entende por "arte de governar" a "racionalização da prática S. Kras~ ~ T. Lemke, org., Gouvernementalitiit der Gegenwart. Studien
governamental no exercício da soberania política". :ur OkonomzsterUng des Sozialen, Frankfurt/Meno, Suhrkamp, 2000, p. 8);
123. Cf. supra, p. 519, notas 84 e 85. govemamentalidade" deriva de "governamental", assim como "musica-
124. NBP, aula de 10 de janeiro de 1979, p. 4: "Não estudei, nem lidade" de "m~ic~l" ou "espacialidade" de "espacial", e designa, con-
quero estudar a prática governamental real, tal como se desenvolveu, forme a~ ~orrencJ.a~,. o campo estratégico das relações de poder ou as
determinando aqui e ali a situação que tratamos, os problemas postos, caractensticas específicas da atividade de governo. A tradução da pala-
as táticas escolhidas, os instrumentos utilizados, forjados ou remodela- vra por "Regierungsmentalitiit", que aparece no texto de apresentação do
dos, etc. Quis estudar a arte de governar, isto é, a maneira pensada de go- colóquio "Governmentality Studies" realizado em Viena em 23-24 de
vernar o melhor possível e também, ao mesmo tempo, a reflexão sobre a março de 2001, é portanto um contra-senso.
melhor maneira possível de governar. Ou seja, procurei apreender a ins- 127. STP, aula de 1? de fevereiro de 1978, p. 143.
tância da reflexão na prática de governo e sobre a prática de governo." . 1_2~· lbid. -~roces~o que se resume à seqüência: poder pastoral -
125. Manuscrito da introdução ao seminário de 1979. dispositivo político-militar- polícia (p. 144).
532 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS 533

o que as técnicas de segregação (são] para a psiquiatria, o que distinguir as duas noções, a primeira definindo o "campo
as técnicas da disciplina [são] para o sistema penal, o que a estratégico de relações de poder, no que elas têm de mó-
biopolítica [é] para as instituições médicas.
129
vel, de transformável, de reversível"' 33, no seio do qual se
estabelecem os tipos de conduta, ou de "condução de con-
A "governamentalidade", nessa etapa da reflexão de duta", que caracterizam a segunda. Mais exatamente- por-
Foucault, é portanto o conceito que permite re~ortar um que o campo estratégico nada mais é que o próprio jogo
dominio específico de relações de poder, em relaçao ao pro- das relações de poder entre elas -, ele mostra como elas se
blema do Estado. É essa dupla característica- acontecimen- implicam reciprocamente, não constituindo a governamen-
tal e regional- da noção que vai tender a se eclipsar n? d:- talidade uma estrutura, isto é, "uma invariante relacional
correr dos anos seguintes. A partir de 1979, a palavra Ja nao entre [ .... ] variáveis", mas uma "generalidade singular" 134,
designa somente as práticas governamentrus co,nstitutivas cujas variáveis, em sua interação aleatória, correspondem a
de um regime de poder particular (Estado de políoa ou go- conjunturas.
verno mínimo liberal), mas "a maneira como se conduz a Ela é, assim, a racionalidade imanente aos rnicropode-
conduta dos homens", servindo assim como" grade de aná- res, qualquer que seja o nível de análise considerado (rela-
lise para as relações de poder" em geral'". Embora nesse mo- ção pais/filhos, indivíduo/poder público, população/medici-
mento essa grade seja sempre aplicada no âmbito do pro- na, etc.). Se ela é "um acontecimento"n5, não é mais como
blema do Estado, dele se destaca no ano segmnte para se seqüência histórica determinada, como no curso de 1978,
tornar coextensiva ao campo semântico do "governo", mas na medida em que toda relação de poder decorre de
uma análise estratégica:
[... ] sendo essa noção entendida no sentido amplo de
técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos Uma generalidade singular: ela só possui realidade acon-
homens. Governo dos filhos, governo das almas ou das tecimental, e sua inteligibilidade só pode pôr em obra uma
consciências, governo de uma casa, de um Estado ou de si lógica estratégica. 136
mesmo.131

Como "governamentalidade" parece portanto passar 133. L'Herméneutique du sujet. Cours au College de France, année 1981-
a se confundir com "governo" 132, Foucault trata então de 1982, ed. por F. Gros, Paris, Gallimard-Le Seuil, "Hautes Études", 2001,
p. 241"". Cf. também o "Resumé du cours" de 1981, "Subjectivité et véri-
129. STP, aula de 8 de fevereiro de 1978, p.162. Cf. supra,_p. 519. té", DE, IV, n? 304, p. 214: um dos objetivos a que correspondia o estu-
130. NBP, aula de 7 de março de 1979, p. 192. do da "govemamentalidade", além da crítica das concepções correntes
131. Resumo do curso "Du gouvemernent des vivants" (1980), DE, do "poder", era analisar este último "corno um dornúlio de relações es-
tratégicas entre indivíduos ou grupos - relações que têm por objeto a
IV, n? 289, p. 125.
132. Sobre o governo como prática que consiste em "conduzir con- conduta do outro ou dos outros[ .. .]".
dutas", cf. também "Deux essais sur le sujet et le pouvoir" (abril de 134. Manuscrito sobre a govemarnentalidade (sem título, maço de
1983), in H. Dreyfus e P. Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism 11 folhas numeradas de 22 a 24, depois não paginadas), inserido entre
and Hermeneutics, UniversityofChicagoPress, 1982 I Michel Foucault. Un as aulas de 21 de fevereiro e 7 de março de 1979 de NBP.
parcours philosophique, trad. fr. F. Durand-Bogaert, Paris, Gallimard, "Bi- 135, Ibid.
bliothêque des sciences humaines", 1984, p. 314. 136. Cf. supra, nota 134.
534 SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO SITUAÇÃO DOS CURSOS 535

Resta-nos indagar que vínculo une, no pensamento mos aí como a política é sempre concebida, para ele, do pon-
de Foucault, esses tipos de acontecimentalidade: a que se to de vista das formas de resistência ao poder'" (por sinal, é
inscreve num processo histórico particular, próprio das o único texto, tanto quanto sabemos, em que ele faz alusão
sociedades ocidentais, e a que encontra sua ancoragem a Carl Schmitt):
teórica numa definição geral do poder em termos de "go-
vemo"137. A análise da govemamentalidade como generalidade
singular implica que "tudo é político". Dá-se tradicionalmen-
(b) A análise dos tipos de govemamentalidade é indis- te dois sentidos a essa expressão:
sociável, em Foucault, da análise das formas de resistência, - O político se define por toda a esfera de intervenção
ou "contracondutas", que lhe correspondem. Assim, na 8~ do Estado[ ... ] Dizer que tudo é político é dizer que o Estado
está em toda parte, direta ou indiretamente.
aula do curso de 1978 (1? de março de 1978) ele faz o in- -O político se define pela onipresença de uma luta en-
ventário das principais formas de contraconduta desenvol- tre dois adversários [... ]. Essa outra definição é a de K. [sic]
vidas na Idade Média em relação ao pastorado (o ascetis- Schmitt.
mo, as comunidades, a mística, a Escritura, a crença escato- A teoria do camarada.
lógica). Do mesmo modo, a análise da govemamentalidade [ ... ]
modema, amoldada ao princípio da razão de Estado, o leva Em suma, duas formulações: tudo é político pela natu-
no fim do curso a pôr em relevo diferentes focos de contra- reza das coisas; tudo é político pela existência dos adversários.
Trata-se, antes, de dizer: nada é político, tudo é politi-
condutas específicas, em nome da sociedade civil, da popu- zável, tudo pode se tornar político. A política não é nada mais
lação ou da nação. Como essas contracondutas constituem, nada menos do que o que nasce com a resistência à gover-
em cada época, o sintoma de uma "crise de govemamenta- namentalidade, a primeira sublevação, o primeiro enfrenta-
lidade""", é importante indagar que formas elas adquirem mento.140
na crise atual, a fim de definir novas modalidades de luta ou
de resistência. A leitura do liberalismo proposta por Fou- (c) Apesar de esses dois cursos, de 1978 e de 1979, te-
cault só pode ser compreendida portanto sobre o fundo rem permanecido inéditos até esta data, com exceção da 4:
dessa interrogação. aula (1? de fevereiro de 1979) do primeiro"' e de alguns ex-
Parece-nos interessante, a esse respeito, citar o seguin-
te trecho do manuscrito em que Foucault definia a gover-
139. Cf., aqui também, "Deux essaissur 1e sujet et le pouvoir", p. 300,
namentalidade como "generalidade singular". De fato, ve- onde Foucault sugere um novo modo de investigação das relações de
poder, que consiste em "tomar as formas de resistência aos diferentes
tipos de poder como ponto de partida".
137. Cf. "Deux essais sux Ie sujet et le pouvoir", Zoe. cit., p. 314: "O 140. Manuscrito sobre a govemamentalidade citado supra, nota
modo de relação próprio do poder não deveria ser buscado portanto 134. Sendo a letra de Foucault, em vários pontos, difícil de decifrar, não
nem do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato e do víncu- citamos as passagens em que nossa transcrição teria sido demasiado la-
lo voluntário (que não podem ser mais que, no máximo, instrumentos cunar ou incerta.
dele), mas do lado desse modo de ação singular- nem' guerreiro nem 141. Publicada em italiano em Aut-Aut, n? 167-168, 1978, depois
jurídico- que é o governo." em francês· em Actes, 54, verão de 1986. É esse texto, sensivelmente di-
138. NBP, aula de 24 de janeiro de 1979, p. 70. ferente do que publicamos, que é retomado em DE, ill, n? 239, pp. 635-
536 SEGURANÇA, TERRITÓRIO POPULAÇÃO
SITUAÇÃO DOS CURSOS
537
tratos do segundo'", á problemática da govemamentalida-
desenvolvimento de uma literatura considerável no campo
de, notadamente a partir do resumo que Foucault haVJa
das ciências sociais, da economia política e da teoria política,
apresentado em suas conferências e~ Stanford, em 1979'",
deu origem, de uns dez anos para ca, a um vasto campo de de que não é evidentemente possível fazer um inventário no
âmbito desta apresentação. Para uma visão de conjunto, re-
pesquisas nos países anglo-saxões, e mais recenternen:e na
meto ao livro de Mitchell Dean, Gooernmentality: Power and
Alemanha'", os "gooernmentality studies". Em certas uruver-
sidades, eles até conseguiram um lugar entre as disciplinas
Rule tn Modem Society"', e ao artigo de Thomas Lem.ke, "Neo-
liberalismus, Staat und Selbsttechnologien. Ein kritischer Über-
dos departamentos de sociologia ou de ciência política. O
blick über die gooernmentality studies'"". A aplicação recente
ponto de partida desse movimento foi a publicaçao do livro
do conceito de govemamentalidade a domínios tão distantes
The Foucault Effect: Studies in governmentality, em 1991, por
dos centros de interesse de Foucault quanto a gestão dos re-
G. Burchell, C. Gordon e P. Miller'", que continha, além da
cursos humanos'" ou a teoria das organizações'" atesta a pias-
aula de Foucault sobre o tema, uma longa introdução de
Colin Gordon, oferecendo uma síntese aprofundada dos
cursos de 1978 e 1979, e um conjunto de estudos centrados, "'Popular life' and insurance technology" (pp. 211-33) e R. Castel,
em particular, na noção de risco (concepção do risco social, "From dangerousness to risk" (pp. 281-98). O texto de D. Defertconsti-
modalidades de prevenção do risco, desenvolV1ffiento ~as tui uma introdução geral aos trabalhos do grupo de pesquisa "on the
técnicas de seguro, filosofia do risco, etc.)"". Resultou dru o fonnation of the insurance apparahls, considered as a schema of social
rationality and social management" (p. 211) formado em 1977 com J.
Donzelot, F. Ewald e outros pesquisadores, que deu ensejo à redação de
57. Uma tradução inglesa dessa mesma aula foi publicada na revista várias monografias: "Socialisation du risque et pouvoir dans 1'entrepri-
Ideology and Consciousness, 6, 1979. se" (datilografado, Ministêre du Travail, 1977) e "Assurance-Prévoyan-
142. Extraído de NBP, aula de 31 de janeiro de 1979, com o título ce-Sécurité: Formation historique des techniques de gestion dans les so-
de "La phobie d'État", Libération, 967,30 de junho-!!' de jullio de 1984 ciétés industrielles" (datilografado, Ministêre du Travail, 1979). Para
(texto traduzido em alemão in U. Brõckling_ S. Krasmann e T. Lemke, uma discussão desse conjunto de trabalhos, d. P. O'Malley, "Risk and
org., Gouvernementalitiit der Gegenwart, pp. 68-71); extraído de NBP, aula responsibility", in A Barry. T. Osbome e N. Rose, Foucault and Politicai
Reason: Liberalism, Neo-liberalism and Rationalities of Government, Londres,
de 24 de janeiro de 1979, com o título de "Michel Foucault et la ques-
University College, 1996, pp. 189-207.
tion du libéralisme", Le Monde, suplemento do n? de 7 de maio de 1999.
Lembremos, além disso, que a primeira aula de cada um dos dois cur- 147. Londres, Thousand Oaks/Nova Déli, Sage Publications, 1999.
148. Politische Vierteljahresschrift, 41 (1), 2000, pp. 31-47.
sos tinha sido objeto de uma edição em cassetes, com o título de De la
gouvernementalité, Paris, Le Seuil, 1989. 149. Cf. notadamente B. ToMl.ley, Reframing Human Resource Manage-
143. '"Omnes et singulatim"', loc. cit., pp. 134-61.
ment: Power, Ethics and the Subject at Work, Londres, Thousand Oaks/Nova
Déli, Sage Publications, 1994; E. Barratt, "Foucault, HRM and the ethos
144. Além da obra coletiva já citada (supra, notas 126 e 142), d. os
numerosos artigos de T. Lemke, que se seguem à sua notável obra, Eine of the criticai management scholar", ]ournal of Management Studies, 40,
(5), julho de 2003, pp. 1069-87.
Kritik der politischen Vernunft. Foucaults Analyse der modernen Gouverne-
mentalitiit, Berlim-Hamburgo, Argument Verlag, 1997. 150. Cf. A. McKinlay e K. Starkey, org., Foucault: Management and
OrganiZiltion Theory, from Panopticon to Technologies of the Self, Londres,
145. Londres, Harvester Wheatsheaf, 1991.
146. Ver os artigos de J. Donzelot, "lhe mobilisation of society" Thousand Oaks/Nova Déli, Sage Publications, 1998, e o colóquio "Orga-
(pp. 169-79), F. Ewald, "Insurance and risk" (pp. 197-210), D. Deferi, niser aprês Foucault", realizado na École des Mines, em Paris, nos dias
12-13 de dezembro de 2002.
538 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPULAÇÃO

ticidade desse esquema de análise e da sua capacidade de cir-


culação nos mais diversos espaços.

* ÍNDICES
Gostaria de agradecer a Daniel Defert pela generosidade
com que pôs à minha disposição os manuscritos e dossiês de
Michel Foucault, assim como à minha esposa, ChantaL por
sua ajuda tão preciosa no trabalho de transcrição das aulas.

M.S.
ÍNDICE DAS NOÇÕES

abundância [das colheitas, dos (tratamento do -): 15


produtos]: 44, 46, 49, 67 n. (elementos- no espaço):
10, 90,460 27; v. Leibniz
(-monetária): 137 anabatismo, anabatistas: 264,
(-de homens): 434 269, 293 n. 25, 332 n. 1
(-de cidadãos, copia análise genealógica: 157
civium): 435, 447 n. 33; v. análise genética: 157
Hohenthal anti-Maquiavel (literatura):
(-dos salários): 109 n. 19; v. 121-2, 129, 151 n. 26; v.
Weulersse Elyoth, Frederico IL
(excesso de- e queda dos Gentillet. de La Perriere,
preços): 42-4 Paruta
(fontes da- [Quesnay]): antipastoral: 199, 274, 284; v.
114 n. 40 ascetismo
abundância/escassez apátheia: 235-6, 251 nn. 36-37,
(oscilações): 49, 51, 78, 90 272
acontecimento (tratamento do arte de governar: 103, 122-7,
-): 74 133-46, 200, 217, 317, 324-
agovemamentalidade da 5, 338 n. 39, 339 n. 42, 340
natureza: 320i vs. n.43,345-~364,370,383-
govemamentalidade 4, 388, 419, 429, 455,467-8,
aleatório(s) 491, 494, 517; v.
542 SEGURAN~ TERRITÓRIO, POPULAÇÃO fNDICE DAS NOÇÕES 543

govemamentalidade, razão "bom governo" do Estado: cidades disciplinares: 25; (- coabitação dos homens: 452-3
de Estado 126, 421; v. polícia em forma de acampamento Código de direito canônico:
artes adjuvantes da política: "bom preço", "preço justo" romano: Kristi.ania, 214 n. 59
193 (tese economista do-): 46, Gotemburgo, Richelieu): Código de polícia, da polícia:
artificialismo, artificialidade: 95 460, 487 n. 25 21-3, 35-6 n. 30 457, 482-3 n. 2; v. Catarina
(-político, da política): 28, circulação(ões): 19-24,27,36 1L Du Chesne
469; vs. naturalidade; v. cameralismo, cameralista(s): n. 32, 39, 64, 67 n. 10, 84-5, código legal, juridico-legal: 8,
economistas, sociedade 20-1, 34-5 n. 25, 89-92, 92, 100,363,37~436-7 10-2
ascese: 283 134, 152-3 n. 33,443 n. 7; v. (-monetária): 360, 391, (-e pensamento negativo):
ascetismo: 197, 253, 258, 270- mercantilismo; Justi, Stolleis 424-5, 455; v. cidade- 60
4,307,356 cameralística mercado comércio: 17, 19-20, 34 n. 20,
(excessos próprios do-): 274 (Cameralwissenschaft): 34-5 (- monetãria interestatal): 68 n. 15, 92, 381 n. 60, 431,
n. 25, 445 n. 11, 492 492 434, 444 n. 8, 450, 456; v.
capital: v. cidade; Le Ma!tre (-urbana): 22-3, 453; v. circulação, mercado,
"balança': 243, 364, 400-1; v.
"capitalizar'' um território, um Vtgny mercantilismo
equihbrio europeu
Estado, uma província: 20, (liberdade de -, comercial e (o -, fator de competição
bem comum: 126, 130, 151 n.
23,27 política): 23, 45-6, 434, intra-européia): 455
21, 311, 313, 334 n. 8
cidade: 165-6 [metáfora do 435-7, 465 (o-, instrumento principal
(-, economia da família):
navio], 168-9, 186-7, 193-4, (liberdade de- dos cereais): da força do Estado):
150 n. 19 45-6,53,66-7 nn. 7-10,
229, 286 n. 2, 324, 327, 338 455-6
(-, fim da soberania 68 n. 13; v. Herbert
n. 31, 421-2, 429, 443 n. 5; v. (o-, processo circular, de
[segundo os juristas], endemias (-das riquezas): 92; v. troca): 164
"fim adequado" (formas de organização da Goumay (o-, técnica de importação
[segundo os -): 195, 218 (-fora das fronteiras): 437 da moeda): 454
economistas]): 131 (funções da-): 222 (boa-, má- [metáfora do (-[intra-urbano): 22-3, 25
"bem-estar" dos indivíduos: cidade dos homens: 118 sangue]):23 (-[extra-urbano]): 33 n. 12,
440, 494; v. melhor que cidade(s) (campo de -, espaço de-): 34 n. 23, 66 n. 4; v.
viver, Montchrétien (cidade-capital): 18-20, 33 437 capital; Le Maftre
bem público: 131, 375 n. 20, nn. 12 e 16-17,34 nn. (materialidade fina da troca (-dos cereais): 45-7,51-2,
450 18-19 e 22-23; v. Le e da-): 456 54, 65 n. 1, 66-7 nn. 9 e
biopoder: 3, 29, 31 n. 1, 495, Ma!tre circulação das verdades 12,68-70 nn. 14-15 e 17-
497, 514, 521; v. biopolítica, (cidade-mercado): 83, 455 ensinadas: 280 18, 71-2 n. 26, 108 n. 15,
espécie humana, meio, (organização das -no séc. circulação dos homens: 437, 109 n. 20, 471; v. Abeille,
naturalidade XVTII): 23-5, 39; v. Vigny 451 Goumay
biopolítica: 29, 31 n. 1, 32 n. 6, (desencravamento espacial circulação dos méritos e dos (fluxo do- exterior): 100, 360
161 n. *, 494, 514 e n. 71, da- no séc. XVTII): 17 deméritos: 243 (liberdade de-): 416 n. 26; v.
523-4 e n. 106; v. espécie (gente das-): 43; (técnica de-): 241; v. circulação, economistas,
humana; Lamarck (insegurança das-): 24 pastorado cristão liberalismo
544 SEGURANÇA, TERRITÓRIO. POPULAÇÃO INDICE DAS NOÇÕES
545

"comunicação(ões)", objeto da (o ascetismo, forma de-): (-do pastorado): 203, 255, (-de consciência): : 95, 166,
polícia (sécs. XVII-XVIII): 270-4 267,292-3 n. 21; v. 226, 235, 240-1, 252 nn.
438, 448 nn. 40-42, 484 n. (a comunidade, forma de Dlaunu 43 e 44,259
11 -): 274-9 cristianismo: 196-7,205,217, (-da conduta cotidiana):
comunidades: 194-5, 218-9, (a crença escatológica, 218, 224, 229-30, 235-6, 239
267, 274-5; v. forma de-): 282-3 242, 245-6 n. 5, 270, 273, direito(s): v. Kelsen,
contraconduta(s) (a mística, forma de -): 279- 283-4, 399, 490, 509; v. Pufendorf, Rousseau
conduta: 19, 93, 163, 254-66, 82 apátheia, Igreja, pastorado (-comum [Naudé]): 336,
275, 477, 491, 511; v. (o retorno à Escritura, (-medieval): 267
375 n. 19-21
governo forma de -): 283 (-ocidental): 252 n. 43
(-natural: teóricos do-): 96
(- governamental): 262 "contrato" (-oriental): 204
(-público [Domat]): 128,
(-integral): 239 (noção de-): 142 (início do-): 199-200,224,
136, 437, 447 n. 39, 453,
(-médica): 263 (teoria do-): 136; v. arte de 483 n. 3
476
(-moral): 261 governar, soberano (-e Escritura): 283
(-privado: universo do
(-pastoral): 269, 477 contrato social: 58, 71 n. 24, 142 curvas de normalidade: 82
direito e mundo do
(-política): 261 controles direito): 403
(- coletivos e individuais): delinqüência: 3, 12, 158, 452,
(-cotidiana): 204 (-de justiça e direito de
475
(-de conduta): 532 20 polícia): 457, 485 nn. 16 e
(a-, ruptura do contrato
(-das almas (oikonomía (-reguladores): 32 n. 5 17
social): 58
psykhôn, regimen corpus disciplinar: 11; v. (-das gentes, jus gentium):
(custo da-): 12; v.
animarum)): 204, 254-5, disciplina 407, 417 n. 31
repressão, estatística
306 ["condução"]; v. cosmo: 335 n. 17, 344, 355, 368; (-dos governados): SOO
demográfica (expansão-, séc.
economia, pastorado v. desgovernamentalização XVIII): 137 (-dos indivíduos: a
(- dos homens): 260, 262, do cosmo; naturalidade depopulação: v. população liberdade como direito):
264,531-2 crescimento do Estado, das desgovernamentalização do 474-5; v. liberalismo
(-dos indivíduos): 126 forças do Estado, das forças cosmo: 316 (guerra de -): 403
(-dos particulares): 465 estatais: 405-6, 421-2, 426, desobediência: 93, 264 direitos humanos: SOO, 525
(conflitos de-): 261 428,454,494 desordem:60,258,452,475 direitos senhoriais: 431
condutas econôrnicas: 30 criminalidade [urbana]: 7-8; v. (a eliminação da-, função disciplina (celular, militar,
contágio [fenômeno urbano]: repressão; estatística(s) da polícia): 475 operária, penal, religiosa,
83-4 crise(s): 7, 41, 284 despovoamento: 492 escolar, generalizada): 12,
contraconduta(s): 258, 261, (a - como disparada direção 14-6, 21, 23, 25-7, 35-6 n.
266, 269, 283, 287 n. 5, 307, circular): 81 (-pastoral, das almas): 166, 30, 40, 58-63, 74, 86, 96,
449,477-80 e n.*, 511; v. (- de govemamentalidade): 183, 214 n. 57, 215 n. 61, 142, 156, 158, 176 n. 7, 261,
insubmissão, insurreições, 526,534 219,223, 249 nn. 27 e 29, 288 n. 7, 296 n. 41, 299 n.
revoltas (-dos meios de 281; v. conduta 53, 440, 445 n. 21, 458, 462,
(-pastoral): 269, 273, 284 subsistência): 65 n. 4, 135 ("condução") 532
546 SEGURANÇA, TERRITÓRIO. POPUlAÇÃO fNDICE DAS NOÇÕES 547

(a-, modo de (-e mecanismos (-da salvação): 270, 314 escassez alimentar
individualização das disciplinares): 60-1, 63-4, (gestão da-): 43, 56 (-"quimera" [Abeille]): 51,
multiplicidades): 16-7 73;vs. mecarrismos (teóricos da-): 47, 49 53-6
(-e espaço): 23,25-7,35-6 juridico-legais; v. economia política: 72 n. 28, (temor quimérico da-): 70
n. 30; v. distribuição mecanismo de segurança 100-2, 115 n. 42, 126, 141-3, n. 19
espacial dispositivos de soberania: 258, 151 n. 21,440, 516, 522-3 (a-, "doença da
(o cuidado e a- dos 288 n. 7 (condições de formação da imaginação"): 70 n. 19
pobres): 450, 483 n. 3 dissidência: 119, 262-6, 294 -): 492 (-flagelo, problema da-):
disciplina [instrumento de nn. 27 e 29, 500-1; v. (nascimento da-): 140-1 40-2,44-45,48,51-9, 65-
penitência]: 299 n. 53 contraconduta(s) econômico(a)(s) 6 nn. 3-4, 67 n. 9, 70 n.
disciplinar (o): 10-2 distribuição espacial ("análise-"; das riquezas): 19, 71-2 n. 26, 76-8,84,
(tratamento- das (a-, critério de distinção 100, 102 86-8, 435, 451, 459-60,
multiplicidades no entre disciplina e (comportamentos-): 54 466,492
espaço): 22-3 segurança): 73 (sistema anti-): 43, 460-1,
(governo-): 44-5, 66 n. 5
disciplinarização do exército: doença reinante: 79 466, 492; v.
(pensamento-): 44-5, 47,
21,458
doutrina fisiocrática: 44; v. mercantilismo
68-9 n. 15; v. fisiocratas
fisiocratas escatologia: 282-3, 402, 478
disciplinas (as): 28, 82, 156 economistas (os- do séc.
("disciplinas práticas" [Hay XVITI): 58, 62, 68-9 n. 15, espaço(s) [territorial, de
economia: 125-7, 137-143, circulação]: 3, 17, 27-8, 435-
du Chastelet]): 340 n. 43 78, 92-3, 132
145, 153 n. 36,363-4,465, 7~v.orgarüzação,
(o ponto de vista das-): 159 (financistas que se
467-8,471-2 planejamento
dispositivo de poder: 197 tomaram-): 102
(a- como física): 62, 72 n. 28 (-disciplinar, disciplinado):
dispositivo(s) (a - como ciência de (literatura dos-): 460
(-diplomático-militar): 29, 39, 61-2
governo): 141 (nascimento dos-): 363
397-8, 408, 410, 476 (-do mercado): 50, 59;
(-nacional alemã, iníc. séc. (teses dos-): 460-71, (-
(-militar permanente): (-de segurança): 3, 15-6,
XIX): 20 sobre a popuiação): 461-3
516
409-10 (-de mercado): 455, 524 endemias, epidemias [no
espécie humana: 3, 29-30, 98,
(-permanente de relações (-de poder, geral de poder): espaço urbano],
113-4 n. 34, 115 n. 42, 495-
entre Estados): 406 15-7,39,87-8, 145-6,161, endemoepidemias: 76-7, ~514;~naturalidade
(-político de polícia): 397, 516; v. população(ões), 82-4, 88, 106 n. 8, 139, 494; Estado(s): 118-9, 124, 134-7,
410 soberania v. inoculação 141, 144-5, 173, 186, 318,
(-do equihbrio europeu): (- da obediência): 270, 315 equihbrio europeu: 422-5 324, 329-30, 338 n. 31, 342,
425 (-da verdade): 270 era das condutas: 309 345, 362, 365, 390, 439, 480-
dispositivo(s) de disciplina: (-das almas): 254, 305 era de Cronos: 192 1,502
288 n. 7 (-dos méritos e dos era dos governos: 309 (- administrativo/s): 17,
dispositivo(s) de segurança: 8- deméritos): 229, 237 era juridico-legal: 11 118, 144-6
15, 28, 40, 45, 49-50, 58-60, (-do poder pastoral): 281, era pastoral, do pastorado: (-europeus): 130;
63-4, 73, 78, 143, 146 314 197,260 (competição,
548 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO iNDICE DAS NOÇÕES
549
concorrência entre os-): (a-, instrumento comum genealogia do Estado: 368, (-económico): 45, 66 n. 5,
455 entre polícia e equihbrio 476,519 72 n. 28, 114 n. 40, 126,
(-hereditários): 107 n. 11 europeu): 424 golpe de Estado: 348-56 151 n. 23, 156; v.
(-territorial): 18-20, 94, estatísticas (as), segredos do (-permanente: a polícia): fisiocratas; Quesnay
118, 342, 489; v. poder: 367, 382 n. 63 457-8 (-pastoral): 199,217-44,
soberania (teorias, teóricos do-): 349, 286 n. 1, 314-5
(-de governo): 145 família (instrumentalidade da 351, 375 nn. 19 e 20; v. (-político): 119, 147 n. 1,
(-de justiça): 144-5, 433 -): 138-9; v. governo Naudé, Sirmond 305, 328; v. La Mothe Le
(-de polícia): 426, 428-9, felicidade: 185-6,191-4,313, (-e razão de Estado): 348- Vayer, Maquiavel
433,459,466-8 344-5, 348, 374 n. 13, 422, 55,369 (-territorial): 29-30, 129; v.
(-de população): 90, 156, 439; v. Delamare, Tomás de governamentalidade: 143-6, soberania
194, 196, 211 n. 38, 219, Aquino, Turquet de 147 n. 1, 155-6, 162 (-da população): 64, 88-97,
434, 479-80, 489 Mayerne (- política e nascimento do 96 n. *, 100, 103, 138-40,
(-de Wohlfahrt): 444, 494 ("-do Estado" [Chemnitz]): Estado moderno): 219 142,522
("ampliação" do-): 344-5, 369; v. Tomás de Aquino, (o Estado, peripécia da-): (-de soberania): 29-30, 96,
374 n. 13, 387-8, 392, 331 99, 103; v. mercantilismo
Delamare, Hohenthal
468; v. Chemnitz (ai- e pastorado): 181,217, (-dos homens): 64, 166,
filosofia
(conservação, força, poder, 243-4, 255,260-1, 287 n. 196, 308, 313, 348-9, 477,
(a-, política da verdade): 5
riqueza do-): 71 n. 23, 5, 320; v. dispositivos de 489 [vs. administração
(-pitagórica): 187; v.
90-1,93,109 n.19, 134, disciplina, mecanismos das coisas:64]; (-e
Delatte
144-5, 367-8, 373 n. 6, de segurança, pastorado gestão das populações):
( -uti.litarista"): 96 n.*
11

391-2, 420-3, 425, 427, (b!- e modernidade): 284, 74-6, 96, 138-40, 305, 476
fisiocracia: 72 n. 28, 141
433-5,439, 447 n. 32, 335-6 n. 22, 420, 456, (-do povo): 356-70
fisiocratas: 44-9, 58, 62, 68 n. 461, 465-78, 491; v.
455-6; v. crescimento, (analogias do-): 311-2
14, 69-70 nn. 17-19, 78, 86,
Império, Igreja, governo, liberalismo, polícia, razão (conceito ético-jurídico do
91-3,96,109 n.19, 132,141 de Estado
governamentalidade, -): 96
polícia, razão de Estado n. •, 434, 460, 492 (-e "paz perpétua";- (ciência do-): 138, 175 n. 1
(finalidade do-): 369 fisiocrático(a) indefinida): 347,355 (práticas de -: de si mesmo,
(nascimento do-): 330 (literatura-): 460 (-e prática de partido): 293 das almas [e das
(supervalorização do (principio - do "governo n. 24,499 condutas], dos Estados):
problema do-): 144 econômico"): 44-5 (negação da-): 326-7 117-9, 118, 153 n. 36,
Estado e verdade: 363-4, 477 fome: 7, 40, 65 n. 3, 70 n. 19, governamentalização 163-73, 199,212-3 n. 47,
estatística: 7, 12, 14, 26, 32 n. 129, 222; v. escassez (-do Estado): 144-5, 164 311, 313-4, 348-9, 476,
7, 106 n. 8, 107 n. 10, 138-9, alimentar n.* 490, 491, 529; v. pastoral,
365 e n. •, 381 n. 61 (-dares publica): 317 pastorado
(a-, ciência do Estado): genealogia das tecnologias de governo: 118, 162-6,419, 489, (inversão do- em relação
134, 152 n. 31 poder: 47 517, 529, 532, 534 ao reino): 99
SEGURANÇA, TERRITÓRIO POPUlAÇÃO fNDICE DAS NOÇÕES 551
550
política liberal): 63; v. insubmissão(ões): 256-7, 264 mecanismos de poder: 59, 64,
(técnica/s de-): 42-3, 45, 64,
liberdade ideológica (deserção-insubmissão): 261 84, 99, 103
72 n. 28,110 n. 25,141-6,
Igreja: 155,196-8,201-4,275, insurreições de conduta: 305; mecanismos de segurança: 15,
496-7, 531; v. dispositivos
283,307,311,330,397,529 v. anabatistas, comunidades, 28, 30, 32 n. 5, 64, 77-8,83-
de segurança, povo; Bacon
(-católica): 198,283 4, 86, 99, 117, 474
govemamentalidade
(-cristã): 174, 197,201 (-de segurança-população-
(os três tipos de-: moral, juristas (os): 96, 130, 467
(-ocidental): 204 govemo):99
econômico,político (La
(-protestante): 198, 203, mecanismos-passarela: 205
Molhe Le Vayer]): 125-40
283,307,323 lei: v. código legaL norma meio: 27-30,40-1
(doutrina da-): 275 "liberal": 49-50 (noção de - associada à
heresia(s) liberalidades privadas em circulação e à
(feudalização da-): 268
(- mêdicas): 263 favor do público: 335-6 n.
(funções universalistas da causalidade): 27-8
(-das politicas): 468
-): 397 22 (-em biologia; em física):
(-de obediência U. Hus]):
(mstitucionalização de uma liberalismo:62-3,496-7 37nn.36 e37
276 (princípio do-): 62-3 (-e população): 101-2
(grandes - da Idade Média: religião como-): 197
ilegalismos: 452; v. repressão (ideologia e política do-): (-e território): 40; v.
heresia dualista, cátara):
Império, império 62-4, 68-9 n. 15, 71 n. 22 dispositivos de segurança
256 liberdade ideológica e técnica (a república,- de
v. contracondutas, pastorado (-universal): 347
(fim do - Romano: paz de de governo: 64 jurisdição): 343
história da melhor que viver (o), o mais
govemamentalidade: 32 n. Vestefália): 390
individualização (a) no má sorte (conceito que viver: 438, 456, 484 nn.
3, 143, 331, 496 cosmológico-político da-): 6-8; v. bem-estar, polícia;
história das contracondutas: pastorado cristão
(identificação analitica, 41 Delamare, Montchrétien
480 mecanismo(s) disciplinar(es): mercado: 22, 43, 48-50, 52-8,
sujeição, subjetivação): 241-
história das disciplinas: 142-3
4, 298 n. 51 8, 10-2, 32 n. 5, 52, 58, 60, 70 n. 20, 83, 89-91, 431,
história das técnicas: 11-2
inoculação antivariólica ou 73, 81, 86, 91, 160 451-2, 454, 461, 494, 527 n.
história das tecnologias: 12
variolização: 76, 106 n. 8 (-e dispositivos de 114; v. "preço justo",
história das tecnologias de
[Bemouilly vs. d'Alembert] segurança): 58-9, 73 espaço, instituição, polícia,
segurança: 15 mecanismos cidade-mercado
institucional-centrismo: 157
história do pastorado: 196
instituição (- juridico-legais): 11 mercantilismo, mercantilistas:
história do sujeito: 243
(-de mercado): 452 (-de transferência): 229 20, 43, 90-2, 134-8, 363,
(-da polícia): 438 (-de incentivo-regulação): 454, 492; v. cameralismo,
ideologia 475 sistema antiescassez
(-da polícia no sentido
(a- de Condillac, os
moderno do termo): (-de regulação): 466, 473- alimentar
ideólogos): 96, 110-1 nn.
475-6 4,489 mito (o) do Político: 191
26 e 27 multiplicidade: 16-7, 23, 117-
(-psiquiátrica): 157 (-do mercado): 53; v.
(-de liberdade, formas
(-das crianças): 310 fisiocratas 8, 173, 197,319,400
modernas da economia e
/NDICE DAS NOÇÕES 553
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
552
opinião (a): 363, 367 166; v. metáfora do
(-humana): 35-6 n. 30; normatividade pastor, paradoxo do
(-pública): 370
(-de indivíduos): 55-6, 160 (-intrinseca à lei): 74 pastor
(-do público): 367, 369-70
n.* organização, planejamento (autonomia do-): 201
(-de dissidência): 161 n.* obediência: 251 n. 35, 270, (crise do-): 284, 490
(-da prevenção): 7
(-de sujeitos): 16 269-74,314,478 (-da cidade: Nantes): 18, (difusão do - nas pequenas
(-das práticas de govemo): (a-, tipo de conduta 23-4; v. Le Maitre comunidades): 196
124 unitária): 230 (-da vida cenobítica): 232 (origens do-): 198-9, 270
(-de um povo): 16-7 (-generalizada; de partido): (institucionalização do-):
(poder pastoral e - em 242-4, 262-3 panóptico, Panoptique: 33 n. 201, 218,267, 307-9; (-e
movimento): 168-9 (a- na Grécia antiga e no 11,86-7,111 n. 26,158,176 governo das almas): 490
pastorado cristão: n. 8; v. Bentharn (relação entre - e verdade):
naturalidade diferença de finalidades): pastor 221-2,237,241-2,315,
(-social): 469-70; v. 229,234-5 (-humano): 190-1 348, 363-4
economistas (a-: população/soberano): (-dos homens): 166-74, (- e princípio da
(-da espécie humana): 29 e 93,98 179 n. 28, 193-202, 210 n. responsabilidade
n.* (a-: súditos/soberano, 10, 217-8, 222-3 analitica): 224
(- da população, das vontades/soberano): 86, (-dos povos): 178 n. 23 (-e princípio da inversão
populações, do seu 93-4, 130-1 (funcionãrio-pastor): 186 do sacrifício): 226; v.
desejo): 92, 96,472-3, (a -: território/soberano): 19 (magistrado-pastor, tema também ascetismo
476 (estado de -no pastorado pitagórico do-): 185-7,
(-e princípio da
(-do cosmo): 469 cristão): 234-5; v. 490
distributividade integral e
(concepção medieval da-): apátheia, economia; [v. (metáfora do-): 167, 187
paradoxal do poder): 224
469 também: escatologia; (paradoxo do-): 223
(-e princípio da
norma Joaquim de Piore] (princípio da unicidade do
(a lei e a-): 74; v. Kelsen transferência exaustiva e
(regra pastoral da-): 131-2, -): 191
normação: 75, 82-3; v. técnicas v. multiplicidade, pastorado instantânea): 225-6; v.
232-5,251 n. 35, 274,315
disciplinares pastorado economia dos méritos e
vs. dissidência deméritos
normal/anormal: 75-6,82-3 obediência/desobediência (o- na relação entre Deus e
normalidades diferenciais, os homens): 166 (-e retomo à Escritura):
(-do povo): 348,356-7,
curvas de distribuição de (o- cristão como arte de 282-3
369; v. insubmissão,
normalidades: 81-2; v. governar os homens): v. individualização, revoltas,
povo, revoltas; Bacon
estatística(s) 219 soberania
(inversão da - no
normalização: 74, 82-3 (-e arte de governar, pastoral (a)
ascetismo): 274
(-disciplinar): 74-5 govemarnentalidade): (-católica ou protestante):
(- de reciprocidade da - e
(- [da segurança]): 15, 64; v. 317, 320, 325 118
princípio da partilha (-cristã e Estado moderno):
dispositivos de segurança (- cristão e temática
igualitária nas
(procedimentos, técnicas de hebraica do rebanho): 219
comunidades): 278-9
-): 64, 74
1

SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO iNDICE DAS NOÇÕES 555


554

(-cristã e tema hebraico do (distributividade paradoxal (-médica): 77-8 [séc. XVIIl]): 422, 427,
pastor: diferenças): 219 do-): 224-5 (-universal [Crucé]): 406, 456-7,475, 483 n. 2; v.
(-cristã e (-pastoral cristão): 237, 416 n. 27 desordem
governamentalidade): 243; v. individualização (dispositivo de-: elemento (-e sociedade civil): 470
155, 255-6 (-politico): 143-6, 173, 186, da racionalização (Estado de -, Polizeistaat:
(-da obediência): 274; (-e 490 governamental; bom uso, nascimento e crítica):
resistência): 265; v. (-sobre o Estado de crescimento ordeiro das 427, 459, 467
dissidência; Soljenitsin justiça): 173 forças do Estado): 397, (ciência da-,
(-das almas): 281; v. (- sobre o Estado 421-2, 444 n. 8, 457,474, Polizeiwissenschaft): 445
governo das almas administrativo): v. 522 n. 11, 493;
(-e governo dos homens): governamentalidade (dispositivo político de-: (teoria da- [Fénélon,
305-7,477, 491; v. arte de (-pastoral e poder político): mecanismo de Fleury]): 428
governar, conduta 203-7, 209, 329, 383-4 segurança): 410 politico(a)
(-e lei): 229-30 (-territorial de soberania): (-, crescimento das forças (a-, essência do-): 188,
(-e razão de Estado): 323 29-30, 84-7, 99, 122-3, do Estado e equilibrio 191-4, 384; v. arte de
(-e Reforma): 198 128,131,30~311,324 europeu): 422, 427 governar, polícia
(reorganização da-): 307 (economia geraldo-e (- e golpe de Estado (a-, "o que nasce com a
pastoral(ais) tecnologia de segurança): permanente: resistência à
(ensino-): 281 15-7, 39 governamentalidade governamentalidade"):
(técnicas-): 199-200; v. (tecnologia/s de-): 47, 64, direta do soberano; 287 n. 5, 535
Gregório de Nazianzo 94, 98,157-8,160-1 n.'
direito de polícia (a-, estratégia geral de
pastor-rebanho (relação): 201, (teoria do -): 3-4
independente do direito poder): 3; ("assunto de
204-5, 209-10 n. 8, 282, policia: 125-6, 429-34, 445 n.
de justiça): 456-7, 485 pastoreio"): 174, 186-7
316-7, 490; v. poder 17, 447-8 nn. 39, 40 e 41;
nn. 16 e 17, 485-6 n. 18 (-[sanitária] do espaço
pastoral, pastorado 449-50, 473-5, 483-4 nn. 4 e
(-e "economia"): 126,455, urbano):106 n. 7, 436
pedagogia 7, 486 n. 21, 493
459-60, 522 (-dos corpos [ideólogos]):
(-do Príncipe): 124-6; v. (definição da- nos sécs.
XV-XVI): 420; (papel no (-e equilibrio europeu, 111 n. 27
La Mothe Le Vil.yer apesar do crescimento
séc. XVII): 427-8 (circulação-): 20; v. cidade-
(problemática da- no séc.
(definição da- no séc. das forças do Estado): capital
XVI): 118
XVIII): 427-8 422, 465 (eficácia -da soberania): 20
periculosidade: 10; v.
(a-, condição de existência (-e governamentalização Oocalização da soberania-):
mecanismos de segurança,
da urbanidade): 452-55 do Estado): 146 30
mecanismos disciplinares
(a-, instituição de (-e população): v. (as sociedades- modernas):
poder
mercado): 452 população 62; v. fisiocratas
(o-): 9, 64,111 n. 27
(-pastoral): 166-74, 186-7, (-disciplinar dos cereais): (-e ordem; também: super- (- e ordem da natureza):62
197-205, 214 n. 58, 490; 59, 71-2 n. 26, 459, 462-3, regulamentação, (-e estratégia [Oausewitz]):
v. multiplicidade 469; v. Delamare eliminação da desordem 120
iNDICE DAS NOÇÕES 557
SEGURANÇA. TERRIT68IO. POPUlAÇÃO
556
369-70,374 nn. 11 e 13, 375 repressão (custo da-): 8, 12
populaçãoldepopulação: 88,
(teoria- e técnica de nn. 19, 20 e 22, 412 n. 11; v. resistência, revolta, resistência
107-8 n. 13, 110 n. 21, 472;
segurança): 15 Bacon, Chemnitz, de conduta: 212 n. 41,257-
vs. despovoamento
políticos (os): 211 n. 34 Maquiavel, Palazzo, Tácito 64, 258 n.•, 287 n. 5, 293 n.
[Platão], 328-30, 412 n. 11, população e povo: 56-8; v.
(-,;,dominação sobre os 22,511
467-8 povo (-à conduta médica): 263
povos" [Botero]): 318
(os novos- [Chemnitz]): populacionismol
(-, manutenção da (-à conduta pastoral): 197,
antipopulacionistas: 91,
322 integridade do Estado): 255, 263, 306, 477
(a seita dos- [Ciément]): 108-9 nn. 18-19; 492
343,387-8 (resistência-deserção
284; v. heresia, populações flutuantes: 24
(-,mecanismo de militar): 261-2
governarnentalidade povo: 57-8, 360,362, 369; vs.
população; v. Abeille, Bacon funcionamento dos revoltas políticas: 258 e n.*
população: 10, 15-6,29,37-8 (-camponesas, urbanas, do
nn. 39 e 40, 40-1, 44, 51, 54- Npreço baixo": 49, 460; v. Estados): 322
(-, ptincípio de povo; sedições): 54, 57,
8,64,76-0 79,82,85,87- abundância
principado (relação do Príncipe inteligibilidade política, 71 n. 23, 83, 93, 357-61,
103, 107-8 nn. 10 e 13, 109-
com o seu-): 121-2 razão governamental): 369, 379 n. 45; v. Abeille,
10 nn. 19 e 20, 114 nn. 37 e
385 Bacon
40,128,131-44, 145, 156, principe(s)/Principe
189, 211 n. 38, 256, 289 n. [segundo Bacon]: 358-9, (-e "ampliação" do
"sabedoria" (do principe):
11, 299 n. 55, 324, 337 nn. 362;v.povo Estado): 387, 392
25 e 26, 338 n. 30, 348, 360, [segundo Le Maitre]: 34 n. 132-3, 152 n. 28, 364
(-e "balança" européia,
365, 369, 424, 434-5, 437, salvação
19 equilibrio europeu): 400-
439-40, 448 n. 41, 455, 461, [segundo Loyseau): 485 n. (a- no séc. XVI): 119
1, 423-4, 454-5
463-7, 469, 472-5, 480,489- (a- de todos: fim da
16; v. polícia (-e dispositivos de polícia):
93, 498, 502, 512 [segundo Maquiavel): 85, soberania): 130; v. bem
410, 419, 455; v. polícia
(a-, personagem política): 122-4, 12a 133,325,339 comum
(-e "interesses do
55-6,87-8 n. 41, 361-2; v. anti- (a- da nação): 261, 265
Estado"): 412 n. 11 (a- da pátria: os meios de
(a-, problema de Maqulavel, principado (-e naturalidade da
bioeconomia): 101 [segundo Palazzo]: 373 n. 6, subsistência): 170
sociedade): 469-70; v. (a - no pastorado: do
(a noção de-): 56-8, 89, 374-5 n. 16; v. razão de contracondutas indivíduo, de todos e de
370,434 Estado;
(-e emprego dos homens): (-e morte do lmpétio): 330 cada um): 214 n. 54, 221;
(da rivalidade dos- à (-e ptivilégio urbano): 461
91, 114 n. 40 concorrência dos (-das almas): 248 n. 20,
(-e filologia): 102 (-e relação essência-saber): 254; (-do rebanho): 170-
Estados): 391-102;
(-e estatística): 107 n. 10 344 2,174
(segurança da-): 85 (- vs. razão econômica): (a- e o sacrifício do pastor
razão de Estado (ratio status):
v. biopolítica, economia 462, 468-9; v. na temática hebraica e
147 n. 4, 320-4,325-7,337
politica, Estado, meio, economistas no Ocidente): 172, 174
nn. 25 e 26, 338 n. 30, 343-
multiplicidade, polícia, (emergência da-): 491 (relação com a -, a lei e a
4,348-56, 358,362-4,367,
súditos
558

verdade no pastorado,
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO

hierarquia espacial:
I fNDICE DAS NOÇÕES

342-4, 352, 384, 405-7, 426, v. meio, segurança..


559

cristão): 220-1,241-2 espaço disciplinado): 18- 434-5, 452, 458, 464, 466, urbanização, cidade
(-e continuum teológico- 21,39-40;v,Bentham,Le 475, 479, 485 n. 16, 489,
político): 313-5 Maitre 490-2, 495, 502 verdade (relação com a -:
(-e noção de eleição): 277 (-e naturalidade da (o-, fundamento do Antiguidade, pastorado
(-e poder sacramental): população): 92-5 principado ou da cristão): 220-1,237,241-2,
(-e multiplicidades): 16, soberania): 128 251 n, 35
267
(-e razão de Estado): 348- 28-9,93
51, 356, 374 n, 13 (-e razão política): 328-30
segurança soberania-disciplina-gestão
(técnica de-): 77-82; v, governamental: 143; v,
também endemias, governamentalidade,
epidemias obediência, pastorado
(tecnologias de -): 15, 78 soberano
v, dispositivos de segurança, ("disposição" do-): 132-3
mecanismos de soberano/súdito(s) (relação):
segurança, mecanismos 28-30, 34 n, 20, 40-1, 84-7,
disciplinares 91-2, 118, 121-2, 181, 316,
segurança e "laisser faire": 59 447 n. 34, 457; v, bem
n-* comum, contrato,
soberania obediência, população,
(-histórico-religiosa): 307;
principado
v. governo, analogias do
"sociedade de segurança"
(-imperial): 205; (séc_ XX): 15
(-jurídica): 453; subjetivação: 243-4, 310 n_*
(-política e temas cristicos):
sujeição: 243, 287 n, 5; v.
205, 215 n, 62
individualização
(unplantação territorial da
sujeitos de direito: 28, 92, 97,
-: relação primordial):
15-7, 19-23,27,85 464,493
(princípio de - e arte de sujeitos de polícia: 464
governar):325,467-8
(-e funções urbanas: técnicas disciplinares: 12, 15,
circulação política, 63,75
comércio): 19-21, 34 n, território: 15-23, 27, 29-30, 40,
20, 39, 84-7 84-5, 88-9, 92, 122, 128-9,
(-e distribuição espacial, 164, 168-9, 173, 318, 324,
ÍNDICE DOS NOMES DE PESSOAS

Abeille (L.-P): 47-54, 56-7,


Ammirato (S.): 375 n. 20
65 n. 1, 69 n. 17, 70-1 nn.
19-23 Ana da Áustria: 377 n. 30
Ancelet-Hustache a.): 299 n.
Acarie (B., nascida Avrillot):
53,301 n. 67
260, 292 n. 18
Argenson (M.- R. de Voyer d'):
Achenwall (G.): 382 n. 61
68 n. 15, 72 n. 26, 435, 447
Adam (C): 333 n. 4
n.37
Agostinho (santo): 251 n. 36
Aries (P): 333-4 n. 6
Albertini (R. von): 376 n. 25
Aristóteles: 113 n. 34, 151 n.
Alberto Magno: 301 n. 66
25,286 n. 2
a.
Alembert Le Rond d'): 37 n.
Annelle Nicolas: 259, 291 n. 16
37, 106 n. 8
Amauld (A.): 116 n. 48
Alexandre I (1777-1825, czar
Aron (R.): 176 n. 9, 335 n. 22
da Rússia): 444 n. 9
Arquitas de Tarento: 184, 209
Amalrico de Bena: 278, 292 n. n.4
20
Arumaeus (D.): 336 n. 24
Amalrik (A.): 294 n. 27
Avenel (D. L. M.): 412 n. 11
Ambrósio (santo) [Ambrósio
de Milão]: 204, 215 n. 62,
Baader (A.): 377 n. 28, 501
220, 238, 245 n. 3, 251 n. 38
Bacon (F.): 107 n. 13, 341, 356-
Amigo de Deus de Oberland
63, 370, 378-81 nn. 38-55,
(O): 301 nn. 67 e 68 387
562 SEGURANÇA. TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO
fNDICE DOS NOMES DE PESSOAS
563
Bacquet (J.): 457, 485 n. 17 Botkine (L.): 209 n. 3
Catarina II (1684-1727, Gemente VI [Pierre Roger]
Bailly (P.): 300 n. 55 Bouchet (G.): 177 n. 20
imperatriz da Rússia): 442 (m. 1352, papa): 300 n. 55
Barucq (A.): 178 n. 26 Bukovski (V.): 294 n. 27
n. 2, 457-8, 485-6 nn. 18 e Cliquot-Blervache (S.): 68 n. 15
Basílio (são): 298 n. 45 Boulier (J.): 293 n. 21 19
Bataillon (M.): 291 n. 15 Boullée (E.-L.): 24, 36 n. 33 Cohn (N.): 289 nn. 10 e 11,
Cesário de Heisterbach: 292 n. 290 n. 13, 293 n. 25, 295-6
Battista (A. M.): 376 n. 24 Bourgeois du Chastenet (L.): 20
Bayard (cônego): 213 n. 51, 337 n. 24 nn. 39 e 41, 299 n. 55, 301
Chaignet (A. E.): 209 n. 4 n. 64, 303 n. 70
249n. 27 Bouyer (L.): 292 n. 20 Chappuys (G.): 335 n. 19
Ben Bella (A.): 509 Brejnev (L.): 216 n. 64, 500 Commun (P.): 526 n. 110
Chariati [Sharicati] (A.): 509 e Compere (M.-M.): 334 n. 6
Bentham (J.): 33 n. 11, 111 n. Bremond (H.): 291 nn. 16-17 n.47
26, 158, 176 n. 8 Brian (E.): 382 n. 64 Condé (L. ). de Bourbon,
Charles-Daubert (F.): 339 n. 40 príncipe de): 378 n. 31
Bento (são): 202, 213 n. 54, Briere (C): 507 e n. 39, 509
Charron (P.): 352, 376 n. 24 Condillac (E. Bonnot de): 96,
221,223,225,22~235,246 Brocard (L.): 109 n. 20 Chartier (R.): 334 n. 6
nn. 8, 11 e 14-15, 247 n. Brossat (A.): 507 111 n. 26
Chaunu (P.): 292 n. 18, 297 n. 43 Conring (H.) 381 n. 61
18, 248 n. 23, 251 n. 35, 298 Brown (P.): 297 n. 44 Chemnitz (B. P. von)
n. 45 Buchon (J. A. C.): 339 n. 41 Contzen (A.), SJ: 326, 328 n. •,
[Hippolithus a Lapide]: 338 n. 38
Bemouilli (D.): 106 n. 8 Buffon (G. L. Leclerc de): 37 n.
321-2,336-7 nn. 24-25 e Copérnico (N.): 314
Bertani (M.): 31 n. 1, 495 37, 113-4 n. 34 27-28, 322, 343-5, 349, 352,
Bertelli (S.): 147 n. 3 Burlamaqui (1.-j.): 407,417 n. Corbin (H.): 302 n. 68
370, 374 nn. 11 e 13, 375 n. Comeille (P.): 378 n. 36
Bérulle (P. de): 292 n. 18. 31 22, 376 nn. 23 e 27, 387
Besançon (A.): 206, 215 n. 63 Busch (J.): 297 n. 43 Cristiani (L.): 212 n. 44, 289
Chenonceaux (C. Dupin de): n.9
Bilger (F.): 526 n. 110 Butler (K. T.): 339 n. 42 67n. 9
Bizet (1.-A.): 299 n. 52 Croissant (K.): 500-3 e n. 26
Child (J.): 68 n. 15 Crucé (E.) [Eme'Y LaCroix]:
Blanchet (P.): 507 e n. 39, 509 Calvino (J.): 214 n. 56 Chiquot (A.): 302 n. 68
Bloch (E.): 332 n. 1 Campenhausen (H. F. von): 406, 416 n. 26, 416 nn. 29 e
Chollet (A.): 292 n. 20. 30
Bodin (J.): 382 n. 63 215 n. 62 Choublier-Myskowski (N.):
Boisguilbert (P. Le Pesant de): Canguilhem (G.): 37 n. 36, 37 Cuvier (G.): 101, 115-6 nn. 45
150 n. 19 e 46
67n. 9 nn. 37 e 38, 105 n. 1 Cícero: 151 n. 25, 180 n. 35
Boislisle (M. de): 447 n. 37 Cantillon (R.): 68 n. 15, 110 n. Cipriano (são): 202, 213 nn.
Bondois (P.-M.): 72 n. 26, 482 20 Dabenton (J.): v. jeanne
51-52, 220, 225, 231, 245 n. Dabenton
n.1,483 n. 2 Capelle (G.-c.): 292 n. 20 2, 247 nn. 16 e 19, 249 n. 27
Bonneau (A.): 334 n. 6 Carlos Magno (imperador): Daguillon (J.): 301 n. 66
Oapmar (A.) [dito Daire (E.): 110 n. 22
Borrelli (G.): 522 352, 388, 407 Oapmarius]: 382 n. 63
Bossuet (1.-B.): 329-30, 340 n. Cassiano (J.): 220-1, 233, 245- Darnilaville (E. N.): 110 n. 22
Clark(!. M.): 301 n. 67 Daniel (!.): 294 n. 27
44,353 6 nn. 5-6, 250 nn. 31-33, Oausewitz (C. von): 120, 409,
Botero (G.): 318, 320, 335 n. 297 n. 45 Darwin (C): 101
415 n. 23 Daumas (F.): 178 n. 26
19, 387-8 Castel (R.): 157, 175 nn. 3-4 Clément (C): 323, 338 n. 31 Debard (M.): 501
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
INDICE DOS NOMES DE PESSOAS 565
564
Donnadieu (L.): 412 n. 12, 414 Esquirol (f.-E. D.): 175 n. 4 Frederico Guilhenne II (1744-
Debongnie (F.): 297 n. 43 Estienne (B.): 177 n. 18 1797): 444 n. 9
n. 18, 415 n. 21, 417 nn. 31
Décio [Cneius Lecius Mecius] Estobeu [Ioannes Stobaeus]: Fréminville (E. de La Poix de):
(c. 200-251, imperador e32
Doroteu de Gaza: 251 n. 37 209 n. 4 453, 482 n. 2, 484 nn. 12-13
romano): 247 n. 16 Evagro, o Pôntico: 250 n. 30, Froissart (f.): 177 nn. 12 e 15-16
Dostoiévski (F.): 338 n. 37
Defert (D.): 32 n. 2, 216 n. 64, 251 n. 37
Draguei (R.): 250 n. 30
252 n. 43, 298 n. 51, 336 n. Ewald (F.): 32 n. 2, 494 Galiani (abade F.): 69 n. 16
Duby (G.): 212 n. 40,403,415
22, 499 n. 10, 500 n. 16, 513 Gahleu (G.): 314, 322, 383
n.22
n.65 Du Chastelet (P. Hay): 329, Fanon (F.): 509 n. 47 Gastão de Orléans (1608-
Delamare [de La Mare] (N.): Felipe V (1683-1746, rei da 1660): 377 n. 30
339 n. 43, 344, 374 n. 12,
59,65 nn. 3 e 4, 71 n. 26, Espanha): 412 n. 12 Gene! (f.): 353, 377 n. 28
439, 442 n. 1, 448 n. 41, 375 n. 19
Felsing (F.): 382 n. 61 Gentillet (I.): 121, 149 n. 11
Du Chesne: 483 n. 2
449-50, 482 n. 1, 483-4 nn. Fénélon (F. de Salignac de La Gilson (É.): 301 n. 66
Du May (L.): 339 n. 40
3-8, 485 n. 16 Molhe): 428, 445 n. 12 Ginzberg (L.): 180 n. 36
Dupin, v. Chenonceaux
Delaruelle (E.): 297 n. 43 Fichte (f. G.): 20, 35 n. 26 Glucksmann (A.): 507 n. 38
Dupont de Nemours [Du Pont
Delatte (A.): 184, 187, 209 nn. Filolau: 209 n. 4 Godefroy (F.): 177 nn. 11-20
de Nemours] (P. S.): 68 n.
6-8 14 e 17, 70 n. 19, 72 n. 28, Filon de Alexandria: 180 n. 36 Gogol (N.): 206, 215 n. 64
Delattre (L): 37 n. 35 Finkielkrault (A.): 506 n. 38 Gonnard (R.): 3 7 n. 39
151 n. 23
Deleuze (G.): 503 e n. 26 Firpo (L.): 148 n. 10 Goudart (A): 109 n. 20
Durkheim (É.): 113 n. 33
Delumeau (f.): 300 n. 56 Fleischauer (C.): 151 n. 26 Goumay (V. de): 47, 67 n. 10,
Duroselle (f.-B.): 294 n. 31
De Mattei (R.): 338 n. 29 Fleury (C): 428, 435, 446-7 68-9 n. 15, 71 n. 22
Dürr (L.): 178 n. 24
Demóstenes: 185 Duvillard (E. E.): 80, 107 n. 10 nn. 31, 32 e 34-35, 447 n. 38 Gradowicz-Pancer (N.): 297-8
Denifle (H.): 302 n. 68 Fliche (A): 294 n. 30 nn. 44 e 45
Denis (E.): 296 n. 39 Fontana (A.): 31 n. 1, 495 Graunt (f.): 97, 111 n. 28, 112-
Ebeling (H}: 208 n. 1
Depitre (E.): 66 n. 7, 66-7 n. 9, Forbonnais (F. Véron- 3 nn. 29-33
Eckhart (f., dito Mestre): 301
69 nn. 16 e 17,447 n. 37 Duverger de): 69 n. 17 Gregório (são) [Gregório, o
n.66
Des Essarts (N.): 483 n. 2 Fonney (S.): 337 n. 24 Grande]: 202, 212-3 nn. 47
Ehrard (f.): 72 n. 27
Descartes (R.): 309, 333 nn. 3- Fouquet (N.): 354, 378 n. 32 e 53, 220, 223, 228, 231,
Elias (N.): 334 n. 6
5,384 Frachetta (G.): 337 n. 29 238-9, 246 nn. 10 e 13, 248
Elkan (A.): 148 n. 6
Destutt de Tracy (A. L C. de): Francisco I (1494-1547, rei da nn. 22 e 24-26, 249 n. 28,
Elyot (T.): 121, 149 n. 13
111 n. 26 França): 330 251-2 nn. 39-41, 252 n. 42,
Engels (F.): 115 n. 41
De Vooght (P.): 293 n. 21 Francisco I (1768-1835, 286 n. 1
Engemann (f.): 180 n. 36, 208
Dexter (G.): 149 n. 15 imperador da Áustria): 444 Gregório de N azianzo: 200,
Diderot (D.): 37 n. 37, 110 n. 22 n.1
Frederico Guilhenne I (1668- 212 n. 46, 249 n. 28, 254,
Erasmo (D.) [Desiderius
Dies (A.}: 210 n. 10 1740, rei da Prússia): 34 n. 25 286 n. 1
Erasmus]: 334 n. 6
Dolhagaray (B.): 214 nn. 55-59 Frederico li (1712-1786): 129, Grelo! (P.): 179 n. 28
Eribon (D.): 377 n. 28, 503 n.
Domai (f.): 437,447-8 nn. 39 e 149 n. 12, 151 n. 26 Grimm (F. -M. de): 487 n. 28
26,509 n. 49
40,453,484 n. 11
fNDICE DOS NOMES DE PESSOAS 567
SEGURANÇA. TEJIR}TÓRIO, POPULAçAO
566
João de Licópolis Uoão, 0 Lamarck (J.-B. Monet de): 27,
Hobbes (T.): 96, 328
Gros (F.): 249 n. 29, 288 n. 6 Vidente, aba João]: 250 n. 37 n. 36, 101, 115-6 nn. 44-
Hohenthal (P. C. W. von): 422,
Grosser (A.): 504 435,439, 443 nn. 4 e 6, 447 32,272 45
Gruppe (0. F.): 183, 209 n. 6 João Eudes (são): 291 n. 17 La Molhe Le Vayer (F.): 125,
Guamieri (R.): 290 n. 14 n.33
Hoke (R.): 337 n. 24 Joaquim de Fiore: 282-3, 303 150 nn. 19 e 20
Guattari (F.): 503 n. 26 n. 72 Lancelot (C.): 116 n. 48
Holbach (P. H. d'): 113 n. 34
Guéroult (M.): 413 n. 14 Johannet (1.): 216 n. 64 Landry (A.): 109 n. 18, 115 n.
Hull (C. H.): 111 n. 28
Guerry (A.- M.): 32 n. 7 John (V.): 152 n. 31, 381 n. 61 40
Hume (D.): 107 n. 13
Guicciardini (F.): 413 n. 16 Jorres (H.): 288 n. 6 La Perriere (G. de): 121, 124,
Humpert (M.): 445 n. 11
Guilhem (C.): 291 n. 15 Jost fYV.): 179 nn. 28 e 30, 180 128-33, 136, 149 n. 15, 150
Guilherme, o Bretão: 292 n. 20 Hus (J.), v. Jan Hus
Hyma (A.): 297 n. 43 n. 36, 208 n. 1 nn.17-18, 151 n. 24, 152
Guillauté (M.): 458, 486 n. 21 Judge (E. A): 297 n. 44 nn. 28-30
Guinzbourg (A.): 294 n. 27 Julia (D.): 334 n. 6 Larrere (C.): 115 n. 40
lnnocenti (P.): 147 n. 3
Guy (J.-0.): 250 n. 32 Jundt (A.): 300 n. 63, 302 nn. La Reynie (G. N. de): 72 n. 26,
Inocêncio III [Lotaria Conti]
Guyénot (E.): 113 n. 34 (m. 1216, papa): 287 n. 4, 68-69 447 n. 37
300 n. 61 Jurin (1.): 106 n. 8 Launay (M. de): 114 n. 35
Habermas (J.): 114 n. 35
Isabel de la Cruz: 259, 291 n. 15 Justi (J. H. G. von): 422, 439, Lazarsfeld (P.): 112 n. 28
Hadewijch d' Anvers: 290 nn.
Isócrates: 184, 210 n. 9 443-4 nn. 7 e 8 Lazzeri (C.): 376 n. 24
12 e 14, 297 n. 42
Justino [Marcus Junianus Le Bras (H.): 106 n. 8, 108 n.
Hadot (!.): 252 n. 44
Jacob (F.): 113 n. 34, 116 n. 45 Justinus]: 180 n. 36 13, 112 n. 28, 294 n. 31
Hadot (P.): 147 n. 1, 251 n. 37,
Jan Hus: 214 n. 56, 260, 269, Le Bret (P. Cardin): 351, 376 n.
332 n. 2 275, 292 n. 21, 294 n. 32, Kant(!.): 411 n. 1 25
Hajek (J.): 294 n. 27 295 n. 37, 300 nn. 56 e 57
Harnp 0"): 179 n. 28 Kaplan (S. L.): 66 n. 4, 67 n. Le Brun (L. S. D.): 107 n. 9
Jarry (E.): 294 n. 31 12, 70 n. 19, 72 n. 26,487 n. Leclercq (Dom J.): 296 n. 41
Harnack (A. von): 288 n. 6
Jaubert (P.): 93, 110 n. 21 25 Ledoux (C.-N.): 24,36 n. 34
Hautesierck (F. Richard de):
J.-B. P. (frei): 290 nn. 12 e 14, Kellermann: 120 Le Droumaguet (R.): 105 n. 4
107 n. 9
297 n. 42 Kelsen (H.): 74, 104-5 n. 1 Leff (G.): 301 n. 64
Havei (V.): 294 n. 27
Jeanne Dabenton: 259, 279, Kempf (T. H.): 179 n. 28 Le Goff (J.): 295 n. 36
Hecht (J.): 105 n. 2
290 n. 13, 303 n. 70 Kepel (G.): 508 n. 42,509 n. 47 Leibniz fYV. G.): 397,413 n. 14
Heisterbach (C. de), v. Cesário
Jeanne de la Nativité: 291 n. 16 Kepler (1.): 314, 383 Lelievre (P.): 23,36 n. 31
de Heisterbach
Jenner (E.): 105 n. 4 Khomeini (R.): 508 Le Maltre (A.): 18-21, 33 n. 12
Hennig (1.-L.): 501 e n. 19
Jeremias (J.): 179 n. 28, nn. 30 King (J.): 443 n. 3
Henri de Rohan (1574-1538): Le Mée (R.): 38 n. 39
e 31 Kreager (P.): 112 n. 28 Lemercier (J.): 35 n. 29, 70
412 n. 11 JerônimO (são) [Hieronymus
Henrique III (1551-1589, rei Leo (H.): 120, 147 n. 4
Stridonensis]: 246 n. 7, 248
da França): 358 Labande (E.-R.): 297 n. 43 Léonard (E. G.): 293 n. 25,332
n. 20, 251 n. 36
Henrique IV (1553-1610): 400 La Coste (P.), SJ: 106 n. 6 n.1
João Crisóstomo (são): 204,
Herbert (C.-J.): 66 n. 7, 66-7 n. Lagrange (J.): 32 n. 2, 111 n. 26 Lemer (R. E.): 301 n. 64
215 n. 61, 220, 223, 226, 248
9, 108 n. 13
fNDICE DOS NOMES DE PESSOAS 569
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO
568
Moheau U.-B.]: 29-30,37-8 Ourliac (P.): 297 n. 43
338-9 nn. 39, 41 e 42, 346,
Letaconnoux ().): 67 n. 9 nn.39-42
361-63, 381 nn. 56-58, 491
Le Trosne (Letrosne] (G.-F.): Montaigne (M. de): 255, 287 Pacôme [são Pacôrnio]: 297 n.
Marc (C. C. H.): 175 n. 4 44
67 n. 12, 68 n. 14, 72 n. 28 n.3
Marchetti \'1.): 33 n. 8 Pajot (H.): 416 nn. 26 e 27
Libera (A. de): 301 n. 66 Marguerite Porete: 259, 290 Montaigu, Lady [Eléonore
Lineu: 113 n. 34 Beaulieu]: 106 n. 6 Paládio de Helenópolis
nn.13 e 14. [Palladios, Palladius]: 249-
Lisieux (!.): 334 n. 6 Maria de Médicis: 377 n. 30 Montchrétien [Montchrestien]
Livet (G.): 415-6 nn. 24 e 25 Marie des Vallées: 259, 291 n. (A. de): 433 n. *, 445 n. 14, 50n.30
Longhurst (J. E.): 291 n. 15 448 n. 47, 450 Palazzo (A.): 341-6, 365, 372-3
17 nn. 2-9,374 nn. 15-16 386
Louis (P.): 151 n. 25, 178 n. 22, Marin (L.): 339 n. 40 Montesquieu (C. de Secondat
388,411n.3 ' '
208 n.1 Marius Lupus: 203,214 n. 59 de la Brede de): 107 n. 13,
Loyseau (C.): 485 n. 16 Markus (R. A.): 298 n. 45 486 n. 18 Parker (G.): 36 n. 30, 412 n. 9
Lucas (L.-P.): 416 n. 26 Martin-Cottier (M.): 334 n. 7 Paruta (P.): 121, 149 n. 14
Moreau de Séchelles (J.): 67 n.
Luís XIII (1601-1648): 21,349, Martinho V [Ottone Colonnal Pasquino (P.): 153 n. 33
10
377 n. 30 (1368-1431, papa): 300 n. 56 Pasteur (L.): 77
Morellet (A.): 69 n. 15
Luís XN (1638-1715): 21,329, Marx (K): 100, 115 n. 41, 325 Patermutus: 250 n. 33
Moser (J. ).): 443 n. 6
330, 339 n. 43, 355 Masqueray (P.): 178 n. 21 Patocka ().): 294 n. 27
Moulin (A.-M.): 33 n. 10, 105
Lutero (M.): 214 n. 56, 259, Massignon (L.): 509 Pattullo (H.): 110 n. 22
nn. 2 e 5,106 nn. 6 e 8
294 n.32 Mauriac (C.): 377 n. 28 Paulino de Milão [Paulinus
Mousnier (R.): 443 n. 3
Mazarin ().): 323 Tyrius]: 215 n. 62
Müller (D.): 178 n. 23
Macek ().): 296 n. 39 McFarlane (K. B.): 212 n. 44 Paulo (são) [Paulo de Tarso]:
Müller (H.): 504 213 n. 49, 239
Macey (D.): 500 n. 17, 503 n. Mehdi Bazargan: 510
Münzer (f.): 332 n. 1 Peil (D.): 179 n. 28, 180 n. 36
26 Meine (H.): 377 n. 28
Meinecke (F.): 148 n. 5, 412 n. Murphy (A.): 68 n. 15 Perrot (J.-0.): 18, 33 n. 11,37
Machault d' Amouville (J.-B.):
11,522 n. 39, 109 n. 18, 110 n. 22
67 n. 10 Naudé (G.): 327,338 n. 40,
Machon (L.): 327, 339 nn. 41 e Meinhof (U.): 377 n. 28 Perrot (M.): 33 n. 11
Merswin (R.), v. Rulman 348-9, 351, 356, 375 nn. 20 Petty (JY.): 112 n. 28, 381 n. 60
42 e 21, 376 n. 24, 378 n. 37
Maier (H.): 445 n. 11 Merswin Pfister (C.): 414 n. 18
Metternich[-Winneburg] (C. Naves (R.): 151 n. 26 Pianzola (M.): 332 n. 1
Malagola (H.): 507 n. 41
W. L. de): 444 n. 9 Naz (R.): 214 n. 55 Pichezy (E.): 298 n. 45
Malkani (F.): 104 n. 1
Meysonnier (S.): 68 n. 15 Necker (J.): 69 n. 17 Pignarre (R.): 178 n. 22
Malthus (f. R.): 100, 115 nn.
41 e42
Michel (A.): 295 n. 34, 300 nn.
60 e 61
i Nekrassov \'1.): 294 n. 27
Newton(!.): 27,37 n. 37
Pio V (1504-1572, papa): 323,
337n. 29
Manes [Mani]: 287 n. 4
Milcent (P.): 291 n. 17 Nicolau de Basiléia: 302 n. 68
Maquiavel (Machiavelli] (N.):
Miller (G.): 105 n. 2 \ Nietzsche (F.): 153 n. 39
Pitágoras: 209 n. 4
Platão: 151 n. 25, 173, 185-9,
41, 65 n. 2, 85, 107 n. 11,
Mine (A.): 510 n. 49 Novaciano [Novatianus]: 247 191-4, 205, 210-1 nn. 10-39,
119-24, 128, 133, 147 nn. 2, Mirabeau \V. Riquetti de): 93, \I
4 e 5, 148-9 nn. 10, 11 e 12, n. 16 217, 222-3, 388

~
109 n. 20
151 n. 26, 323-30, 337 n. 26,
SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPUlAÇÃO iNDICE DOS NOMES DE PESSOAS 571
570
Richelieu (A). du Plessis de): Sigismundo de Luxemburgo Thnnel)' (P.): 333 n. 4
Pliutch (L.): 294 n. 27, 500 (1411-1437, rei da Testard (M. ): 243 n. 3
35 n. 29, 36 n. 36, 152 n. 32,
Plumart de Dangeul (L.).): 67 Hungria): 295 n. 39 Thiers (L.-A): 114 n. 36, 408
337 n. 25, 338 n. 41, 353,
n.9 Simon (M.): 288 n. 6 Thomas Münzer, v. Münzer (T.)
363, 375 n. 19, 376 n. 25,
Politi (L.) [Ambrogio Siniavski (A) [Abram Tertz]: Thuau (E.): 323-4,337-8 nn.
377 n. 30, 381 n. 59, 388,
Catarina]: 120, 148 n. 10 25, 26, 30 e 31, 375 n. 19,
412 n. 11 215 n. 64, 294 n. 27
Post (G. E.): 179 n. 28 376 n. 25,377 n. 29, 414 n.
Ridolfi (A): 120, 148 n. 7 Sirrnond (f.): 349, 375 n. 19
Prat (F.): 295 n. 33 18, 415 n. 20, 522 n. 98
Robinet (A): 413 n. 14 Small (A.W.): 35 n. 25, 445 n.
Procacci (G.): 147 nn. 4 e 5, Thuillier (G.): 107 n. 10, 446 n.
Rohan (H. de): 412 n. 11 11
149 n. 10,339 n. 41 31
Rousseau (f.-j.): 71 n. 24, 96, Sócrates: 187, 211 n. 39
Pseudo-Arquitas: 183 Tomás de Aquino (são): 151 n.
113 n. 34, 126, 141-2, 151 Sófocles: 178 nn. 21-22
Puech (H.-c.): 288 n. 6 25,311-3,334-5 nn. 7-13,
nn. 21-22, 153 n. 36-37 Soljenitsin (A!.): 265, 2 94 nn.
Pufendorf (S. von): 130, 152 n. 345,440 n.*
Rousseau (M.): 23, 36 n. 32 27 e 29
27,180 n. 35 Tomás de Kempis [Thomas
Rufino de Aquiléia [Tyrannius Spengler (f. ).): 108 n. 18, 109
Pütter (f. S.): 443 n. 6 Hemenken]: 297 n. 43
Rufinus]: 212 n. 47 n.19
Rulman Merswin: 279, 301 n. Trasímaco: 186-7
Spinka (M.): 293 n. 21
Quérard (f.-M.): 69 n. 17
67, 302 n. 68, 511 Starobinski (f.): 36 n. 33
Trudaine de Montigny (f. c.
Quesnay (F.): 66 nn. 5-6, 70 n. P.): 68 n. 14
19, 93, 95, 100, 108-9 nn. 18 Stegmann (A.): 337 n. 26
Saint-Martin (R. de), Sj: 324, Turgot de l'Eaulne (A. R.).):
e 19, 110 n. 22, 114 n. 40, Stegmann von Pritzwald (K.):
338 n. 33 68-9 n. 14-15, 487 n. 25
127, 151 n. 23, 464, 486 n. 208 n. 1
Sakharov (A.): 294 n. 27 Thrquet de Mayeme (L.): 421,
24,487n.32 Stolleis (M.): 34 n. 25, 337 n. 429, 431-3, 442-3 nn. 3 e 5,
Sallé (f.-A): 483 n. 2 24, 412 n. 9, 444 n. 10, 495
Salleron (L.): 110 n. 22 445-6 nn. 17-30,448 n. 42
Rabbow (P.): 252 n. 44 Strauch (P.): 301 n. 67
Salomoni (A.): 33 n. 8
Racine (f.): 354, 378 nn. 33-36 Struensee (f. F.): 35 Ulrich Engelbert [dito Ulrico
Schelle (G.): 68 n. 15
Rahnema (A): 509 n. 47 Sully (M. de Béthune de de Estrasburgo]: 278, 301 n.
Schiera (P.): 152 n. 33, 445 n. 11
Ranke (L. von): 120, 147 n. 5, Rosny de): 388,400,411 n. 66
Schmidt (C.): 302 n. 68
408 Schmitt (R.): 182, 208 nn. 2 e 3 8, 414 nn. 18 e 19
Rapp (F.): 302 n. 67 Suso (bem -aventurado \hldes [ouValdo] (P.): 288 n. 9
Schnur (R.): 337 n. 24
Rath 0/V.): 302 n. 68 Heinrich Seuse): 298-9 nn. Valentiniano I [Flavius
Sciacca (E.): 149 n. 15
Rathé (C. E.): 149 n. 11 52-53, 301 n. 67 Valentianus] (321-375
Seibert (1.): 178 n. 25, 179 n. 27
Ray (f.): 113 n. 34
Séneca: 251 n. 36 imperador romano): Ío4
Razzell (P. E.): 105 n. 2 Tácito: 322, 337 n. 26, 375 n. Vallieres (A. de): 372 n. 2
Senellart (M.): 32 n. 6, 495
Regnault (L.): 298 n. 47 20,382 n. 63 Vandenbroucke (Dom F.): 292
Shakespeare 0/V.): 354, 378 n.
Rehberg (A.W.): 120, 147 n. 3 Talleyrand [C. M. de n. 20, 296 n. 41, 299 n. 52,
Repgen (K.): 414 n. 17 36
Shariat Madari: 508 e n. 42 Tayllerand-Périgord]: 415 n. 302 n. 68, 303 n. 72
Reynié (D.): 376 n. 24 21 Vattel (E. de): 417 n. 31
Shayegan (D.): 509 n. 47
Ricardo (D.): 115 n. 42
SEGURANÇA, TERRITÓRIO POPULAÇÃO
)
572 !

Vauban (S. Le Prestre de): 339 Wakefield (G. S.): 212 n. 45


Wallhausen (J. J. von): 36 n. 30
n.43
Venceslau N (1378-1419, rei Walter (L. G.): 332 n. 1
da Boémia): 289 n. 11,293 Wanner (R E.): 446 n. 31
Ward (B.): 298 n. 47
n.21
Vemet (F.): 292 n. 20 Weber (M.): 334 n. 6
Véron de Forbonnais (F.), v. Wesley (J.): 198, 212 n. 45
Forbonnais (F. Véron- Weulersse (G.): 67 n. 11, 68 n.
14, 69 nn. 17 e 18, 72 n. 28,
Duverger de)
Veyne (P.): 176 nn. 9 e 10, 196, 108 n. 18, 109 n. 19,486 n.
212 n. 40, 320, 335-6 nn. 21 24,487 n. 28
e 22, 490, 497 n. 4 Wolff (C. von): 401,415 n. 21
Vigny (Vigné de): 24-5, 36 n. Workmann (H. B.): 212 n. 44
Wyclif (J.): 198,203, 212 n. 44,
35
214n.56,260,269,275,293
Villari (P.): 147 n. 5
Vilquin (E.): 37 n. 39, 108 n. n. 21, 294 n. 32, 295 n. 37,
15, 111 n. 28, 112 n. 29 300 n. 56
Virgílio: 29, 38 n. 41
Voisé (W.): 413 n. 14 Xenofonte: 210 n. 10
Voltaire (F.-M. Arouet, dito):
113 n. 34, 149 n. 12 Zehrfeld (R.): 382 n. 61
Voobus (A.): 297 n. 44 Zeiller (J.): 294 n. 30
Zeller (G.): 415 n. 20
Zinoviev (A.): 294 n. 27
Wahl (F.): 497 n. 4

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