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72 vic¡el Foucault - Ditos e Escritos -

náo sei, outros sabem. A consciência de ignorar deve ser uma r977
consciência hierárquica: saibam vocês, ignorantes, dizem os
mestres do pensamento, que o erudito, o universitário, o diplo-
mado, o técnico, o homem de Estado, o burocrata, o partido, o
diriçnte, o responsável, a elite sabem no lugar de vocês; A Angústia de Julgar
- Ba¡damu, por fim Bardamu, o desertor, que dizia, no dia
em que todo mundo se trespassava com a baioneta, que só lhe
restava "cair fora".
Assi¡n, os mestres pensadores ensinam, para o maior bem "Langoisse de juger" [entrevista com R. Badinter e J. Laplalche), Le Nouuel
do Estado-revoluçáo, o amor à cidade, a obrigaçáo das liber- Obseruateur, n. 655, 30 de maio-6 dejunho de 1977,p.92-96, lOL, lO4, Il2,
dades respeitosas, as hiera¡quias do saber, a aceitaçäo dos t20. 125-126.
massacres sem firn. Glucksma¡n desmonta o cenário solene P Henry, depois de haver raptado um menino para obter um resgate, entrou em
que enquadra essa grande cena na qual, desde 1789, com suas pânico e o enforcou. A banalidade do criminoso, sua confissáo, seu protesto
entradas de direita e de esquerda, se joga a política; e, no meio pela pena mais severa desconce¡ta¡am a opiniáo pública. Seu processo, em
desses fragmentos espalhados, ele lança o desertor, o ignorari- Troyes, tornou-se um olfaire nacional, opondo partidários e adversá¡ios da
pena de morte. O arrazoado do Sr. Badinter, advogado de P Henry, cont¡ibuiu
te, o indiferente, o vagabundo. Les Maîtres perrseurs é, como grandemente para arrancâ-lo da guilhotina. A pena capital foi abolida na
alguns dos grandes liwos de filosofia (Wagner, Nietzsche), uma Flalça em I981, qualdo R. Badinter era ministro da Justiça.
história do teatro no qual, sobre o mesmo palco, duas peças
misturaram-se, estranhamente: A rnorte de Danton e Wog zeck.
Glucksmaln náo invoca luÍnavez mais Dionísio sob Apolo. Ele J. Laplanche: A pena de morte é uma pena absoluta, quer
faz surgir, no coraçáo do mais alto discurso filosófico, fugitivos,
dizer, uma pena que abole o crirninoso ao mesmo tempo que o
vítimas, os i¡redutíveis, os dissidentes, sempre reergltidos, em crime. Ora, não temos mais as certezas teológicas, a fé cega que
suma, esses "cabeças ensanguentadas" e outras formas bran- nos autorizavam a pronunciar tal pena. Bastar-me-ia saber
cas que Hegel queria apagæ da noite do mundo. que, entre mil condenados, havia um único inocente, pa-ra que
a aboliçáo da pena de morte fosse indispensável: erro judiciá-
rio, quando se quiser repará-lo, seu "objeto", o condenado, náo
estará mais lá. Portanto, sou, pessoalmente e sem nenhuma
ambiguidade, favorável à supressáo da pena capitaì.
Dito isso, meu artigor nasceu de uma surpresa inquieta: dei-
-me conta de que, nesse grande debate, existia um acordo táci-
to para que se referisse apenas a argumentos utilitaristas. Isso
me pa-receu particularmente chocalte por parte das pessoas
cuja maioria se reconhece de esquerda, dizem-se partidárias
da aboliçáo da pena de morte. Diante do dilúvio de estatísticas
"mostrando" que a pena de morte náo desencoraja o crime
e que, em suma, náo é dissuasiva, eu me pergunto: como se
pode fa-lar de uma coisa táo séria aceitando que a morte seja

I Após o processo de P Henry, J. Laplanche publicâra no iVouuel Obserua-


teur rurn artigo que suscitou Ínúmeras reaçoes ("Les voies de la déshumali-
tê", n. 642,28 de fevereiro-6 de março de 1977, p. 40-42).
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7 4 Micnel Foucault - Ditos e Escritos

R. Badinter: O que o senhor acaba de dizer me encoraja a


considerada apenas do ponto de vista de sua funçáo de espal- formular para Jean Laplanche uma questáo preliminar, me-
talho, ainda que para tentar mostrar que este é ineficaz? E se nor, mas muito importante: o senhor já assistiu a um processo
outras estafsticas "mostrassem" que a pena é dissuasiva? Sua criminal?
convicçáo náo muda¡ia um tantinho?
J. Laplanche: Náo, mrnca.
R. Badinter: Em seu artigo, o senhor aludiu ao papel da
R. Badinter: Nem o senhor, Michel Foucault?
defesa nos processos de inquérito judicial e me censura por
M. Foucault: Nulca assisti a um gFande processo de inqué-
haver me servido de argumentos "utilitaristas".'. Há muito a
rito judicial. E o IVouu eI Obseruateur nunca me pediu para
dizer sobre isso! Mas, primeiramente, devo precisar que' para
cobrir o processo de Troyers, o que lamento...
mim, um a¡razoado morre no exato momento em que é pro-
R. Badinter: Jean Laplanche viu apenas artifício e habilida-
nunciado. O anazoado é açáo, náo reflexáo. É indissociável
de ali onde os que estavam presentes no processo experimen-
d.o processo em que se insere. Maldei fazer uma estenografia
completa de todos os debates do processo de Patrick Henry. ta¡am exatamente o contrário. De fato, para mim' t¡ava-se táo
Pensava, como todo mundo, que ele terminaria por uma con- somente de levar os jurados à lucidez sobre o que representa-
denaçáo à morte. Almejava - e isso náo surpreenderá Michel va, para eles, como homens, a pena de morte'
Foucault - que os debates subsistissem como um documento Disse a mirn mesmo: o verdadeiro problema para o jurado
histórico. Se Patrick Henry tivesse sido condenado à morte, eu é sua relaçáo pessoal, secreta, com a morte. Queria fazêlos
teria imediatamente publicado esse texto. sentir que, afinal, só representavam a si mesmos, diante de
M. Foucault: O senhor acaba de dizer uma coisa muito im- um homem sentado bem perto deles, e que tinham o poder
portante: ninguém sabe o que se passa, realmente, ao longo de aberrante, exorbitalte, de proibir esse homem de continua¡ a
um processo. O que é, no mínimo, surpreendente, umavez que viver. Falei, por certo, do "homem cortado em dois"' Mas, con-
é um processo, a princípio, público. Por desconfiança do es- tra¡iamente do que imagina Jean Laplanche, náo foi por gos-
crito e do segredo - que eram dois princípios da justiça penal to do efeito oratório. Tenho horror a toda uploração retórica
dura¡rte a monarquia -, nossa justiça, desde 1794, é tida como da guilhotina, do suplício. Foi justamente para náo descrever
devendo ser oral e pública. As peças da instruçáo sáo apenas que busquei a imagem mais nua do que representa o fato de
documentos preparatórios. Tudo deve se desenrolar em um te- decapitar um homem. E, seja qual for o modo como conside-
atro no qual a consciência pública deve estar presente. Ora, em remos a coisa, no fìnal do suplício esse homem estará em dois
termos concretos, apenas 5O pessoas, alguns jornalistas, um pedaços no pátio da Santé. É só. Entáo , em vez de dizer com
juiz apressado e jurados sobrecarregados assistem a ele. Náo um luxo de detalhes turvos: varnos lhe corta¡ o pescoço, pegar
há dúvidas: na França, a justiça é secreta. E assim permanece sua cabeça e colocá-Ia em um cesto - o que muito se fez nos
depois do veredicto. De todo modo, é extraordinário que, to- pretórios -, escolhi a nudez extrema.
dos os dias, dezenas de requisitórios sejam pronunciados em Pode ser que essa imagem evoque noçóes fundamentais
nome de um "povo francês" que, no essencial, os ignora. para um psicanalista, como a castraçáo. Mas, no que rne diz
Um debate como esse de Troyers foi terrivelemente impor- respeito, é o contrá¡io de um artifício retórico. Foi por isso que
tante. Durante meses, o crime de Patrick Henry foi objeto de esse artigo me chocou, feriu.
uma dramattzaçâo sem precedentes, por toda a imprensa. J. Laplanche: Badinter parece pensa-r que lhe censurei pro-
Ademais, náo devemos nos felicitar por isso, mas, nesse pro- cedimentos ou efeitos. Mas náo é a sinceridade do advogado
cesso, a história da pena de morte estava engajada. Ora, ape- que está em questáo. No fundo, pouco importa se assisti ou
sar de tudo isso, ninguém sabe realmente o que ali se disse, náo a esse processo. Processos como o de Troyers sáo proces-
qual argumento acertou no alvo. Em minha opiniáo, a publi- sos-testemunhas, sáo todos os cidadãos que alÍ sáo interpela-
caçáo integra-l dos debates é indispensável, sejam quais forem dos, para a-lém da assistência.
suas reservas.
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76 nnicnet Foucault - Ditos e Escritos 1977 - A Angústia de Julgar 77

E aqui vem minha segunda observaçáo: o senhor está neces- a¡ros? Dez arros?" Desde entáo, é claro, o primeiro dever de um
sariamente desaprumado entre sua funçáo de defensor de um advogado é lembrar aos jurados que cinco anos de privaçäo de
homem e sua missão de reformador de uma lei. Li com muita liberdade é imenso. Todavia, no caso de uma pena de prisão,
admiraçáo seu liwo L'Exécutton 2 Nele, o senhor mostra que a modificável por natureza, nada é, de fato, definitivo. O proces-
defesa de.um homem só pode ser uma assistência absoluta, no so seguirá, na sombra, no âmbito da detençáo, eventua_lmente
corpo a corpo, que náo tem mais de se preocupar com a justiça. da graça concedida, da liberação condicional etc. Quando se
É uma posição temível e admirável: a supor que o sen-hor tenha trata da morte, a escolha é radical: ela muda de natureza. De-
utilizado efeitos para esse fim, eu não veria nisso nada a dizer! pois da decisão - e sob reserva do direito de graça -, tudo está
Mas sua posição é insustentável ali, quando, em um mesmo acabado. Quando os jurados devem pronunciar-se, é a morte
momento, o senhor pretende engaja-r uma açáo contra a pena que os olha de frente. E ela é escamoteada, apagada, mascara-
de morte. Das duas coisas, uma: ou o senhor ainda se situa em da por todo o cerimonial judiciá¡io.
uma referência à lei e à justiça - mas isso entrava sua defesa J. Laplanche: O cerimonial só é ridículo e obsoleto qualdo
absoluta -, ou é a própria noçáo de pena que o senhor abala. desertado de sua significaçáo simbólica, de sua referência ao
Ora, a crítica da pena de morte que enfatiza sua "inutilidade" "em nome de...". O senhor insiste em individua\izar a decisáo
pressupóe que a justiça náo tenha por objeto senáo a adminis- judiciária. Mas, desse modo, torna qualquer decisáo impossí-
traçáo, a melhor possível, das relações entre os homens. vel, ou criminosa. Náo vemos, todos os dias, numerosas cir-
R. Badi.nter: Mas, afinal, o problema da pena de morte não cunstâlcias nas quais a decisáo de um só acarreta a morte de
se apresenta apenas em si, de modo abstrato! Ele se apresenta
milhares de homens? Imâgine que o senhor é o presidente da
primeiro concretamente, no momento em que um homem que República e deve decidir sobre baixar o limite de velocidade
ali está, perto de nós, corre o risco de ser condenado à mor- nas estradas para 9O quilômetros por hora. Haverâ razâo de
te. Ele só toma todo seu sentido, acredite, no último minuto,
o senhor passar algumas noites em bralco. Aqui, também, o
sangrento, no pátio da Santé. Ali, náo há mais nada de teórico,
investimento de uma carga nã,o é um vão ouropel, mas o que
lamentavelmente!
permite assumir a culpa ligada a qualquer decisão. Presiden-
J. Laplanche: O senhor nos disse que cadajurado só repre-
tes, juízes, jurados obsessivamente culpabilizados: é isto o que
senta a si mesmo. Mas podemos pretender a mesma coisa para
desejamos? Mas entáo, em contrapartida, os comissários, os
todo pronunciado de uma pena, seja ela qual for! Supon}.amos
tecnocratas, os especialistas da alma humana não se importu-
que a pena de morte seja abolida. Náo seria a mesma situaçáo?
na¡ão com escrúpulos...
O jurado náo é aquele que fecha o ferrolho da cela do prisionei-
R. Badtnter: Náo vejo a relação. Em que o fato de algumas
ro? Náo retornamos, tal como qualto à pena de morte, a uma
decisões políticas ou estratégicas engajarem a vida e a mor-
situaçáo de homem a homem, na qual uma real decisão só pode
ser concebida como vingança? É bem por isso que a justiça só te de outro justifica a decisão judiciária de levar à morte? É
é possível se for feita "em nome de...". Se o senhor suprimir verdade que é muito grave decidir se um homem ficará preso
essa referência que ultrapassa o indivíduo, o senhor suprime a cinco anos a mais ou a menos. No sistema atua_l, porém, como
justiça. Mas o que aí vem em substituiçáo não é a liberdade, é admitir a pena de morte? Ðm Troyers, Patrick Henry escapou
a administraçáo constrangedora dos homens, com seus múlti- dela. Mas Ralucci3 acabara de ser guilhotinado e, uma sema-
plos rostos: técnico, policial, psiquiátrico. na depois, em Troyers, Ca¡rein foi condenado, talvez porque
R. Badtnter: Em nenhum momento de sua vida um homem
dispõe de um poder comparável a este em que ele diz: "O que
farei com ele? Por qualto tempo vou enviá-Io à central? Cinco 3 C. Ranucci, julgado pelo rapto e pelo assassinato de uma menininha, foi
guilhotinado aos 22 a¡ros, a 28 de julho de 1976, em Ma¡selha. A imprensa,
entáo, noticiou alglrmas reservas sob sua culpa. G. Pe¡rault reconstituiu a ins-
2 Badinter (R.), üExécutÍon, Paris, Grasser, 1973 truçáo e suas incertezas em Le Pull-ouer rouge, Paris, Ramsay, 1978.
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78 m¡cnel Foucault - Ditos e Escritos Julgar 79
1977 - AArrgústia de

alguns jurados se sentiram frustrados pela morte de Patrick M. Foucault: O arrazoado de Badinter em Troyers me pa-
Henry. Esse relativismo, por si só, já basta para condenar a receu forte, precisamente nos pontos contestados por Jean
pena capital. Laplanche. Mas acho, Sr. Badinter, que o senhor nos dá ape-
Entáo, como náo usa¡ de todos os argumentos de que dis- nas urna mínima interpretaçáo do que fez. O senhor disse aos
póe? Eis que, encarando-o, um procurador lhe diz: "Se o se- jurados: "Mas, afinal, sua consciência náo pode autorizâ-los a
nhor náo condena¡ este homem à morte, outras crianças ino- condenar alguém à morte!" O senhor lhes disse também: "Vo-
centes seráo assassinadas selvagemente." Nesse momento do cês náo conhecem este indivíduo, os psiquiatras nada pude-
debate, se o senhor náo responder na mesma linha, se náo ram lhes dizer sobre ele e vocês iráo condenálo à morte!" O
destruir esse a-rgumento - que, na realidade, não passa de um senhor também criticou a exemplaridade da pena. Ora, esses
disfa¡ce da pulsáo de morte que habita em todos nós -, o se- argumentos só sáo possíveis porque a justiça penal náo fr¡lcio-
nhor estará perdido. É cla¡o que náo se executam os crimino- na como a aplicação de uma lei ou de um código, talto quanto
sos para proteger outras vitimas potenciais. Nós os matamos como uma espécie de mecanismo corretivo no qual a psico-
por muitas outras razóes que eu gostaria de ouvir, vocês psi- logia do acusado e a consciência dos jurados interferem. Sua
caralistas, nos explicarem. Mas, antes de aborda¡ o fundo do estratégia me parece sutil porque ela armadilha o funciona-
debate, é preciso demolir esses argumentos pseudorracionais. mento da justiça penal, desde o século XIX. O sen-hor a pegou
E, se não fizermos, náo vale a pena tentar salva¡ um homem. ao pé da letra. O senhor disse a si mesmo: "Em nossa justiça,
J. Laplanche: Certamente, o senhor está em contato com a osjurados, essas pessoas escolhidas ao acaso, sáo tidos como
realidade do pretório. Todavia, eu me pergunto se esse meio, o sendo a consciência universal do povo. Mas náo há nen-huma
do pretório, bem como seus argumentos em circuito fechado, razao para que 12 pessoas se ponham, de repente, pela graça
está bem conectado com essa outra realidade, ou seja, a do cor- do judiciário, a funcionar como a consciência universal". Deso-
po social e de suanecessidade dejustiça, reduzidapelo senhor, brigando desse desafio, o senhor se dirigiu a eles: "Sr. Fulano
equivocadamente, a uma necessidade de vingança. Exempla- de Tal, o senhor tem seus caprichos, sua sogra, sua vidinha.
ridade ou ineficácia da pena? Não é isso que ecoa no nível da Com esse seu jeito de ser, o senhor aceitaria matar alguém?" E
populaçáo. Ou entáo, pararnatizar as coisas, seria preciso dis- o senhor tut}ra razâo de lhes falar assim. Pois a justiça funcio-
tinguir dois aspectos do que nomeamos exemplaridade. Uma na no equívoco entre o jurado-conscÍência universal, cidadáo
exemplaridade puramente utilita¡ista: o homem é comparado abstrato, e o jurado-indivíduo, cuidadosamente escolhido com
a um rato que se adestra em um labirinto. Ðle não seguirá uma base em certo número de critérios.
direção se, nela, receber uma descarga. Sabemos que esse con- Da mesma forma, o senhor disse: "No fundo, julgamos as
dicionamento é - por sorte - amplamente ineficaz com o ho- pessoas náo ta¡rto por seus atos qualto por sua personalida-
de." A melhor prova disso é que maldamos buscar um psiquia-
mem. Há uma exemplaridade diferente, que podemos chamar
simbólica, e que atesta a perenidade de certa rede de valores:
tra, testemunhas de moralidade, pergultamos à irmãzinha se
o valor da vida humala, por exemplo. Pois bem, se formos ao
o acusado era gentil, interrogamos seus parentes sobre sua
primeira infância. Julgamos o criminoso mais do que o crime.
fundo das coisas, penso que a dissuasáo real náo interessa se-
E o conhecirnento que se tem do criminoso é que justÍfica lhe
náo de modo medíocre às pessoas que protestam, por vezes de
infligirmos ou não tal puniçáo. Mas, ainda desobrigando desse
maneiraveemente, contra o castigo. Elas querem simplesmente
desafio, o sen-hor tirou consequências disto: "Os psiquiatras
que o crime seja punido. O exemplo da pena ali esta para ates-
náo puderam nos falar de Patrick Henry, de fato, náo o conhe-
tar a perenidade de algumas interdiçóes, e até mesmo alguns cemos. Portalto, náo podemos matá-Io."
tabus. Ora, nesse nível, o senhor náo lhes responde. Em ne- Seus argumentos foram taticamente hábeis, é certo. Mas
nhum momento o senhor lhes diz: "Vocês sabem bem o que é a seu principal mérito foi utilizar a lógica do sistema penal atual,
puniçáo? Vocês sabem por que a desejam tanto?" em plena luz, e voltá-la contra ela mesma. O senhor mostrou
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80 ltictret Foucau-lt - Ditos e Escritos 1977 -AAng¡rstia de Julgar 81

que a pena de morte náo podia funciona¡ no interior de ta_l Aludi a Hegel para remonta¡ um pouco a essa corrente, a
sistema. Mas foi aí que Jean Laplalche interveio, dizendo que essa degradaçáo, já que ele foi ao encontro da objeçáo maior:
esse sistema é perigoso. se nos mantivermos no nível da materialidade, do sofrimento,
J. Laplanche: Se digo que o sistema é perigoso, é por ele nada justifica que se acrescente ao crime outro mal, outro so-
nos conduzir a um conformismo muito pior do que o da lei: frimento, aquele que se impóe ao criminoso. Isso não muda
o da conformidade. Foucault assinala uma evoluçáo, mas ele nada, não ressuscita a morte! Os males, longe de se equilibra-
também impele no sentido desta. A lei cuja morte ele anuncia é rem, se adicionam. Ora, essa objeção, táo poderosa, só pode
substituída, de modo insidioso, pela malipulação do homem, ser ultrapassada por outro nível, o da lei. A pena, diz Hegel com
em nome de uma norma que se pretende raciona-I. E, à norma, ênfase, só tem sentido se abolir simbolicamente o crime. Mas
ele não se curvará táo facilmente: ela é a erva daninha que re- isso, por sua vez, só se compreende porque o próprio crime
brota sem cessar no terreno "liberado" da lei. nâo jaz na violência material em que se manifesta. Ele só existe
M. Foucault: Imaginemos uma justiça que só funciona no dentro e por meÍo da lei. Somos animais votados aos símbolos,
código: "se rouba¡es, tua máo te será amputada; se fores adúI- eo crime é aderente à nossa pele, assim como a lei...
tero, terás teu sexo cortado; se assassina¡es, serás decapita- R. Badinter: Há pouco evoquei a relação que se estabelece
do". Temos um sistema a¡bitrário e constrangedor de relaçáo entre aquele cuja missão é julgar e a decisáo. Vocês me disse-
entre os atos e a puniçáo, que salciona o crime na pessoa do rarn: "a lei sobrevive". É verdade. Só não devemos esquecer
criminoso. Entáo, é possível condenar à morte. o jogo das circunstâlcias atenualtes. Por um mesmo crime ,
você pode ser condenado à morte ou a três a¡ros de prisáo com
Mas, se a justiça se preocupa em corrigir um indivíduo,
apreendê-lo no fundo de sua alma a fim de t¡ansformá-lo, tudo
sursis. Certamente que o leque das condenações possíveis não
é infinito, mas é muito amplo. E a diversidade das escolhas
é diferente: trata-se de um homem julgando outro homem; a
confere ao juiz um grande poder.
pena de morte é absurda. O Sr. Badinter o provou, e seu arra-
Na realidade, se nos orientamos assim para uma ampliaçáo
zoado, nesse sentido, é incontestável.
do possível, foi devido ao fato da instituiçao judiciária o reivin-
J. Laplanche: Náo apenas a pena de morte se torna impos-
dicar. Lembrem-se da tese de Montesquieu e dos constituintes:
sível, como também, na verdade, nenhuma pena é possível.
o juiz deve ser "a boca da lei". Era infinitamente cômodo para
M. Foucault: De fato. Atualmente, dois sistemas se super- ele. Bastava ele se perguntar: culpado ou não culpado? Se esti-
póem. Por um lado, ainda vivemos no velho sistema tradicional,
vesse persuadido da culpa, pronunciava a pena prevista pelos
que diz: punimos porque há uma lei. Sobre ele, penetrou um textos, e tinha o sentimento reconfortalte de haver aplicado a
primeiro sistema: punimos de acordo com a lei, mas a fim de vontade geral. Isso devia ser muito agradável, porém, dema-
corrigir, modifica¡, leva¡ ao bom caminho, pois temos de nos siado cômodo. No sistema atual, é o ittlz quem assume a res-
haver com desviarrtes, anormais. O juiz se pretende terapeuta ponsabilidade da decisão. Disso decorre o tateio, as incertezas.
do corpo socia-I, trabalhador da saúde pública em sentido lato. Mas, em minha opiniáo, é infinitamente preferível a esse cutelo
J. Laplanche: Parece-me um talto rígido proclamar que automático da retribuição abstrata.
acabamos com a lei para ent¡ar no universo da norma, ainda O drama é que náo fomos até o fim da personalizaçâo. E
que pa-ra contestá-la, por sua vez. Para a populaçäo, a despeito claro, fala-se de tratar, reeducar, curar. Mas dáo-nos uma ca-
de tudo, a noçáo de justiça se mantém não encetada: "Isto é ricatura de tratamento. Fala-se de readaptação, de reinserçáo
justo, isto náo é justo. Este homem causou um mal, é preciso social dos condenados. Mas, de fato, assistimos a urna explo-
puni-Io." Ouvimos isso por toda parte à nossa votta. É a neces- raçáo política da luta contra o crime. Nunca nenhum governo
sidade de uma lei que se manifesta nesse murmúrio coletivo. É quis se prover dos recursos de todos esses belos discursos.
chocante ver, em nossos juristas ou criminologistas modernos, J. Laplaruche: Se bem o ouvi, nos dirigimos a passos largos
como a noçáo "retributiva" da pena é tratada com desdém. para uma psiquiatrização total da justiça!

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R. Badtnter: Náo. A psiquiatria náo passa de um meio, en- No entanto, nos dias atuais, eles encontraram um campo mui-
tre outros, à disposiçáo dos juízes. to vasto de aplicaçáo, em que a URSS - uma vez mais "exem-
J. Laplanche: Eu poderia falar de psicanalizaçáo, o que me plar" - náo é excepcional.
p¿ìrece táo grave quanto. A psicaná-lise náo está ali para vir, de R. Badinter: Mas mesmo assim náo se pode preconizal um
encomenda, curar a delinquência. retorno à retribuiçáo abstrata da pena! O senhor fala de crime,
M. Foucault: Eu iriamais longe: que estralho postulado é esse Michel Foucault, mas é o criminoso que se julga. Podemos ten-
segundo o qual, do momento em que alguém cometeu urn cri- tar reparar as consequências de um crime, mas é o criminoso
me, isso significa que ele é doente? Essa sintomaüzaçáo do que punimos. Os juízes náo podiam recusar tomar a direção
crirne é problemática... do tratamento judiciário. Poderiam eles recusar a ideia de que
R. Bødinter: Não me faça dizer o que eu náo disse: seria se mudaria o criminoso pa-ra trazê-lo à norma? O que fazer
uma caricatura grosseira de meu pensamento... O crime é uma com ele? Jogá-lo em um buraco duratte 20 alos? Não é, náo
doença social. Mas náo é matando os doentes ou confinando- é mais possível. Entáo? Reinseri-lo norma-lizando-o. Do ponto
-os distantes dos assim chamados bem-comportados que se de vista do tecnocrata judiciário - jttlz ou advogado -, náo há
Iuta contra a doença. outra abordagem possível, e ela náo é forçosamente praticada
M. Foucault Tafvez, mas não é uma caricatura do que foi segundo o sistema soviético.
dito por toda a crirninologia desde 1880. Aparentemente, ain- O outro aspecto da coisa que me é apaixonalte é esse cla-
da temos um sistema de lei que pune o crime. Na realidade, mor que sobe aos céus, 'À morte! À morte! Que eles sejam
temos rrma justiça que se inocenta de punir pretendendo tratar enforcados! Que sejam torturados! Que sejam castrados!" Por
o criminoso. quê?! Se tanto me decepcionei com a leitura do artigo de La-
Foi em torno dessa substituiçáo do crirne pelo criminoso planche foi por ele não ter respondido a essa questáo. No fun-
que as coisas giraram e que se começou a pensar: "Se tivermos do, a única abordagem interessalte do problema da pena de
de lidar com um crirninoso, náo tem muito sentido punir, a morte nâo é a dos técnicos da justiça, náo é a dos moralistas
näo ser que a puniçáo se inscreva em uma tecnologia do com- nem a dos filósofos. É outra que gostaria de ver nascer e que
portamento humano." E eis que os criminologistas dos alos responderá a todos os que se interrogam sobre a funçáo secre-
f 88O-f 9OO se pusera.m a sustentar propostas estranhamente ta da pena de morte.
modernas: "Pa¡a o criminoso, o crime só pode ser uma conduta Na França, a pena de morte concerne a um número muito
anormal, perturbada. Portanto, é preciso tratá1o." Disso, eles pequeno de criminosos. Nos nove últimos anos houve cinco
extraíam dois tipos de consequências: em primeiro lugar, "o execuções. Observem, diante desses números, a irnensidáo de
aparelho judiciário náo serve mais para nada. Os juízes, como paixóes desencadeadas! Por que será que do momento em que
homens do direito, náo sáo mais competentes para tratar esta publicamos um artigo sobre a pena de morte recebemos 2OO
matéria táo difícil, táo pouco jurídica, táo propriamente psico-
cartas de insultos ou de delírios? No que concerne ao af,fatre
lógica: o criminoso. É preciso entáo substituir o aparelho ju-
Pat¡ick Henry, continuo a receber uma correspondência incrí-
diciá¡io por comissões técnicas de psiquiatras e de médicos".
vel: "Calhorda! Náo pense que vai salva¡ sua pele depois de ter
Projetos precisos foram elaborados nesse sentido.
levado esse monstro à absolviçáo!" E em seguida vêm as arnea-
Segunda consequência: "É certamente preciso tratar esse
indivíduo, que só é perigoso por estar doente. Mas, ao mesmo ças de tortura à minha mulher e aos meus filhos.
tempo, é preciso proteger a sociedade contra ele." Decorre daí O senhor poderia explicar essa alg¡rstia? Por que os não
um encarceramento de funçáo mista: terapêutica e preserva- criminosos têm tal necessidade de sacrifício expiatório?
M. Foucaulf: Creio que o senhor integrou duas coisas em
çáo social.
Esses projetos suscitaram reaçöes muito vivas por parte uma mesma questáo. É certo que os crimes espetaculares
das instâncias judiciárias e políticas europeias nos anos 1900. desencadeiam um pânico geral. É a irrupção do perigo na

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84 Vtictrel Foucault - Ditos e Escritos 1977 -AAngústia de Julgar 85

vida cotidiana. Ressurgência explorada desavergonhadamen- te, o crime existe em cada um de nós. O que é psiquicamente
te pela imprensa. devastador, porém, é quando alguém tornou ato esse crime
Em contrapa¡tida, o senhor náo imagina os esforços que se implícito e é tratado como uma criança irresponsável. podería-
precisou manifesta¡ para que as pessoas se interessassem um mos, aqui, fazer referência à psicanálise e à sua evolução no que
pouco pelo que é - e o senhor concordará comigo - o verdadei- concerne aos problemas da educaçáo: nos demos conta de
ro problema da penalidade, isto é, os flagrantes delitos, a cor- que a ausência da lei - ou pelo menos sua carência parcial, ou
recional mínima, os procedimentos sumá¡ios nos quais o tipo, ainda sua ambiguidade - era muito angustiante , e até mesmo
por ter roubado um pedaço de sucata em um terreno baldio, "psicotizalte", para uma criança criada na "permissividade".
tem de cumprir 18 meses de prisáo, o que o leva forçosamente R. Badinter: Náo se trata de suprimir a lei. Ela náo tem ape-
a recomeçar etc. A intensidade de sentimentos que envolvem a nas uma função técnica e repressiva, mas também uma função
pena de morte é voluntariamente mantida pelo sistema, isso ex¡pressiva, no sentido de que expressa o que a consciência
lhes permite mascarar os verdadeiros escânda_Los. coletiva julgar conveniente.
Temos, então, três fenômenos superpostos que náo com- L. Laplance: Diria, no sentido mais forte do termo, que ela
binam: um discurso penal que pretende tratar, mais do que tem uma funçáo subjetiva em cada um de nós: a das interdi-
punir; um aparelho penal que não cessa de punir; uma cons- ções, que respeitamos - em nosso inconsciente -, do parricídio
ciência coletiva que reivindica algumas punições singulares e ou do incesto...
ignora o cotidialo do castigo silenciosamente exercido em seu M. Foucault: Para Laplalche, o sujeito se constitui porque
nome. há a lei. Suprima a lei e náo se terá sequer sujeito.
J. Laplanche: Pa¡ece-me a¡bitrário separar assirn, de modo R. Badtnter: Lamento muito que os psicanalistas não te-
tão nítido, a populaçáo dos delinquentes e a dos náo delinquen- nham se interrogado a¡ttes sobre a origem da necessidade de
tes. Existe, dos dois lados, um fundo de angústia e de culpa co- punição, que parecem considera_r como adquirida. Dizer que
mum. As graldes ondas de angústia de que o senhor fala não a um só tempo há identificação com o criminoso e angústia
estão ligadas ao medo, mas a alguma coisa muito mais profun- devido a essa identificaçáo náo passa de palawas...
da e difícil de cingir. Se as pessoas talto se interrogam sobre a M. Foucaulf: Parece-me perigoso pedir aos psicalalistas ar-
pena de morte é porque sua própria agressividade as fascina, gumento e fundamento para o ato social de punir.
por saberem de modo confuso que trazem o crime dentro de si R. Badinter: Náo argumento e fundamento, mas explicaçáo
e que o monstro que lhes é apresentado assemelha-se a elas. e clateza.
Qualto aos criminosos - que conheço menos do que o Sr. J. Laplanche: Os psicalalistas, e Freud foi o primeiro de-
Badinter -, eles também continuaÍr fiéis à lei. Náo é fato que les, interrogila.m-se longamente sobre essa questão. Se fosse
escutamos, de uma a outra cela: "Náo é justo, a pena foi dura preciso, em duas frases, a¡riscar-se resumir seu ponto de vis-
demais"? Ou: "Bem que ele procurou isso..." ta, diria que existem dois níveis de culpa: em um, ela é coexten-
Não, náo há, de um lado, uma populaçâo branca como um siva da própria autoagressäo; no outro, ela vem simboliza¡-se
ganso apavorada com a tralsgressão, desejaldo puni-la, e, do nos sistemas constitutivos de nosso ser social: linguísticos, ju-
outro, uma população de criminosos que só vive por meio da rídicos, religiosos. A necessidade de punição jâ é um modo de
transgressáo. Entáo, o que lhe responder a náo ser lhe dizendo passar a angústia prirnordial para alguma coisa expressável e,
que existe uma defasagem entre a angústia inominável surgida por conseguinte, negociável. O que pode ser expiado pode ser
de nossa própria pulsáo de morte e um sistema que introduz a abolido, compensado simbolicamente...
lei? É justamente essa defasagem que permite certo equilíbrio R. Badtnter: Nós nos contentamos, entáo, em considera¡ a
psíquico. Não penso de modo algum que a aplicação da lei necessidade de puniçáo como adquirida sem busca¡ suas cau-
seja o tratamento do criminoso. A lei é um elemento que existe sas. Mas, urnavez que o público foi informado sobre a puniçáo,
implicitamente, mesmo junto àquele que a viola. Inversamen- começa o segundo aspecto da coisa: o tratamento, a abordagem
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86 Uicfret Foucault - Ditos e Escritos 1977 -AAngústia de Julgar 87

personalizada do criminoso. A justiça deve, assim, satisfazer a ou a prisáo? A terapêutica náo tinha muito a ver com isso. Vi
necessidade coletiva de puniçáo, sem esquecer a readaptação. casos de delitos menores: sabendo que o tempo de prisáo se-
Por vezes, é evidente, a coisa range e o público se indigna: "Foi ria muito curto, o experto aconselhava internar o delinquente,
condenado a 2O anos e se safou oito anos depois!", mas por recomendando às autoridades de tutela para náo seguirem a
que o manteríamos por mais tempo se ele se emendou?
opiniáo de um médico-chefe muito inteliçnte, pois se correria
J. Laplanche: Poderíamos até nos perguntarmos arazâo de o risco de esse médico recolocá-lo em liberdade.
se punirem alguns criminosos quando se tem certeza de que
M. Foucault: Sobre essa matéria, hâ uma circular datada
eles se emenda¡am antes de serem punidos.
do pós-guerra, segundo a qual o psiquiatra deveria responder,
R. Badinter: Náo seria preciso. O público clama pelo cas-
na justiça, a três perguntas, além da tradicional: "EIe estava
tlgo. E se a instituiçáo judiciária náo saciasse a necessidade
em estado de demência?" Se prestarmos atençáo nelas, essas
de puniçáo, isso produztria uma frustraçáo formidável que se
perguntas sáo extraordinárias: "1. O indivíduo é perigoso? 2.
reportaria, entáo, a outras formas de violência. Dito isso, uma
É acessível à sançáo penal? 3. É curável ou readaptável?" Três
vez cumprida a dramaturgia judiciaria, a substituiçäo da puni-
questões que náo têm nenhum sentido jurídico! A lei nunca
ção pelo t¡atamento permite a reinserçáo sem toca¡ no ritual.
E jogou-se o jogo todo.
pretendeu punir alguém por ser "perigoso", mas, sim, por ser
M. Foucaulf: E claro que a coisa ralge, mas veja também criminoso. No plano psiquiátrico, isso náo tem significaçáo:
como tudo está bem lubrificado! Claro, se está ali para punir que eu saiba, o "perigo" náo é uma categoria psiquiátrica. Ali-
um crime. Mas o presidente, com seu a¡minho e sua toga' o ás, nem o conceito "readaptável".
que diz? Ele se volta para o delinquente e pergunta: "Como foi Estamos, assim, na presença de um estra¡Ìro discurso mis-
sua infância? E suas relações com sua mamáe, com suas irmã- to, em que o único ponto em questáo é o perigo para a socie-
zinhas? Com foi sua primeira experiência sexual?" O que essas dade. Eis o jogo que os psiquiatras aceitam jogar. Como isso
questóes têm a ver com o crime que ele cometeu? Certamente é possível?
isso tem a ver com a psicologia. Convocam-se psiquiatras que J. Laplanche: Com efeito, quando o psiquiatria se curva a
apresentam discursos extenuantes, tanto do ponto de vista psi- esse jogo, ele assume um duplo papel: de repressáo e de adap-
quiátrico quanto do judiciario, que todos fingem considerar taçáo à psicarrálise. No que concerne à psicalálise, as coisas
como intervençóes técnicas de alta competência. Ao cabo dessa sáo um pouco diferentes. A psicanálise não tem vocaçáo nem
grande liturgia jurídico-psicológica, os jurados, por fim, acei- para a expertise nem pa-ra a readaptação. A crirninalidade, em
tam esta coisa imensa: punir, tendo o sentimento de haverem si, náo é, por certo, um motivo de tratarnento analítico. Menos
realizado um ato de seguridade e salubridade sociaL, que se ainda se o delinquente for encaminhado ao psicanalista pelas
t¡atarâ o mal envia¡rdo o tipo para a prisáo, por 20 anos. A autoridades. No entanto, poderíamos muito bem im"Stnar um
incrível dificuldade de punir encontra-se dissolvida na teatrali- delinquente fazendo tratamento alalítico na prisáo. Se, nesse
dade. E isso náo funciona nada mal. sentido, ele expressar uma demanda, náo há nenhuma tazâo
R. Badinter: Náo estou tão certo qualto o senhor sobre o fato para náo se responder. Mas, em nenhum caso, o tratamento
de o jurado se deixar seduzir por essa abordagem médica. Ele poderia ser uma alternativa para a sançáo: "Se ficar bem cura-
pensa de modo mais simples, tipo: "Ele foi abandonado por sua do, váo liberta¡ você mais depressa..."
mã,e? Menos dois anos." Ou entáo: "Seu pai lhe batia? Menos M. Foucault: Algumas legislações preveem decisões judici-
três anos"; "EIe bateu em sua mulher e filhos? Mais três anos". árias de tratamento obrigatório, no caso dos drogados ou nos
E por aí vai. Estou caricaturando, é claro, mas nem tanto... tribunais para crianças.
J. Laplanche: A expertrse psiquiátrica, tal como a conheci, J. Laplanche: Mas isso é aberrante! Quando se sabe da di-
preocupava-se em primeiro lugar com a proteçáo da socieda- ficuldade ext¡ema para abordar os drogados, mesmo quando
de. Desse ponto de vista, o que era mais eficaz: a internaçáo aceitam recorrer a um tratamento...
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88 n¡icnel Foucault - Ditos e Escritos r977 - A Angústia de Julgar 89
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R. Badinter: Do ponto de vista do juiz, isso náo é uma aber- J. Laplanche: A psiquiatria está cadavez mais infiltrada de
raçáo. Pelo menos, isso vale mais do que fechar o drogado em conceitos psicanalíticos. Ora, a psicanálise náo pode, em caso
uma casa de detençáo durante muitos meses. pronunciar-se sobre a irresponsabilidade de um delin-
J. Laplanche: Mas, precisamente a esse respeito, querer "lgo-,
quente. Muito ao contrário: um dos postulados da psicanálise
subtrair o drogado de um eventual confronto com a sanção pe- é que os alalisados devem se pôr responsáveis, sujeitos de
nal é colocar-se nas piores condições do próprio ponto de vista seus atos. Servir-se da psicanálise para "irresponsablizâ-los"
da psicoterapia. Esta só poderia ser uma alternativa à prisão é uma revirada absurda.
afundando a si própria. M. Foucqult: Basta escutar esses "expertos" que vêm ala-
R. Badinter: Dito isso, nossa justiça nutca quis, de fato, lisar um indMduo. Eles dizem o que diria qualquer passante
jogar o jogo do tratamento até o fim. na rua: "Sabe, ele teve uma infância infeliz. Tem um ca¡áter di-
J. Laplanche: Náo é pelo fato de o enquadramento peniten- fícil..." Tudo isso é condimentado com alguns termos técnicos
ciário ser detestável que se deverá substituí-Io por um enqua- que náo deveriam enganar ninguém. Ora, isso funciona. Por
dramento psiquiátrico não menos detestável. quê? Porque todo mundo precisa de um modulador da pena: o
R. Badinter: Náo estou fa_lando de um enquadramento psi- procurador, o advogado, o presidente do tribunal. Isso permite
fazer funcionar o código como se quer, dar-se boa consciência.
quiátrico. Náo se trata de dar aos psiquiatras plenos poderes.
Com efeito, o psiquiatra náo fala da psicologia do delinquente:
Estou dizendo que não se pode ignorá-lo. Até o momento, ele foi
é à liberdade do juiz que ele se endereça. Náo se trata do in-
usado essencialmente como álibi. Jamais com fins curativos.
consciente do criminoso, mas da consciência do juiz. Quando
M. Foucaulú: Você parece considerar a psiquiatria como um publicarmos as poucas expertises psiquiátricas que reunimos
sistema que existiria realmente, como um maravilhoso instru- nesses úItimos anos, aval.ia¡emos a que ponto as relações psi-
mento inteiramente preparado de altemáo. "Ah! Se os verda- quiátricas constituem tautologias: "EIe matou uma velhinha?
deiros psiquiatras viessem trabalha¡ conosco, seria tão bom!" Oh! É um sujeito agressivo!" Þrecisávamos de um psiquiatra
Ora, acho que a psiquiatria rrâo é nem nunca será capaz de para nos da¡mos conta disso? Náo. Mas o juiz precisava desse
responder a tal demanda. Ela é incapaz tanto de saber se um psiquiatra para se garantir.
crime é uma doença quanto de tra¡rsformar um delinquente Aliás, esse efeito modulador atua nas duas direçöes, ele
em nã.o delinquente. pode agravar a sentença. Vi expertises referindo-se a homosse-
Seria grave se a justiça lavasse as máos no que concerne ao xuais assim: "São indivíduos abjetos."'Abjeto", convenhamos,
que ela tem de fazer,liwando-se de suas responsabilidades so- náo é um termo técnico consagrado! Mas foi a maneira de rein-
bre os psiquiatras. Ou ainda que o veredicto seja uma espécie troduzir, sob a capa honorável da psiquiatria, as conotaçóes
de decisáo transacional entre um código arcaico e um saber da homossexualidade em um processo em que ela náo tinha
injustificado. de figurar. Tartufo de joelhos aos pés de Elmire propondo-lhe:
R. Badinter: Certamente que náo se trata de uma delegaçáo "amor sem escânda)o e prazer sem medo".
de responsabilidade. A psiquiatria é um instrumento ent¡e ou- Substituam sançáo e castigo por prazer e amor e vocês te-
tros, mal ou pouco utilizado até hoje pela justiça. ráo a ta¡tufice psiquiátrica aos pés do tribunal. Nada melhor
M. Foucault: Mas é justamente seu valor que precisa ser contra a angústia de julgar.
R. Badinter: Mas julgar é angustiante! A instituiçáo judiciá-
colocado em questão.
ria só pode funcionar uma vez que libere o juiz de sua angús-
R. Badinter: É preciso, entáo, excluir da vida judiciária toda
tia. Pa¡a consegui-lo , o juiz deve saber em nome de que valores
pesquisa psiquiátrica? Voltar ao começo do século XIX? pre-
ele condena ou absolve. Até pouco tempo, tudo era simples. Os
ferir a eliminaçáo, a carceragem, enviar os condenados o mais regimes políticos mudavam. Náo os va-Iores da sociedade. Era
longe possível para ali deixá-los perecer na indiferença? Isso confortável para os juízes. Mas, hoje, nesta sociedade incerta,
seria uma abominável regressáo. em nome de que se julga, em funçáo de quais valores?
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90 Uictrel Foucault - Ditos e Escritos

M. Foucaulú: Temo ser perigoso deixa_r os juízes continua-


rem a julga-r sozinhos liberando-os de sua angústia e evitando t977
que eles se perguntem em nome de quê eles julgam, de que
direito, quem, quais atos e quem eles sáo, eles que julgam.
Que eles se inquietem como nós nos inquietamos por encon-
tra¡mos táo poucos inquietos! A crise da funçáo de justiça mal Uma Mobilizaçã.o Cultural
acaba de se abrir. Não vamos fechála demasiado depressa.

"Une mobilisation culturelle", Le Nouuel Obseruateur, n. 670, 12-18 de


setembro de 1977,p.49.

No começo de setembro de 1977, antes da cúpula da esquerda unida que


deveria reatual?ar o Programa comum, Le Nouuel Obseruateur e FaÍre, revista
do socialismo autogestionário, organizam um fórum que reúne, em oito ateliês,
os principais militantes da experimentação social que, entre 1972 e 1976,
busca¡am como modificar as relações sociais na educação, na distribuição
dos cuidados médicos, no urba¡rismo, nas relações de traba-lho, na defesa do
meio ambiente ou na comunicaçáo-fórum da sociedade civil, ou da segunda
esquerda, como se dlø,íarra época, que queria afìrmar sua autonomia cultural
e política em relaçäo ao risco "leninista' de crescimento do peso do Estado,
no quadro do Programa comum. Esse fórum aconteceu na perspectiva, entáo
provável, de uma vitória da esquerda unida às legislativas de março de 1978.
DeIe participaram principalmente J. Da¡iel, J. Delors, I. ilitch, M. Roca¡d, P
Rosa¡rvallon, P Viveret- M. Foucault contentou-se com o papel de "intelectual
específìco", participando apenas do debate sobre a medicina de bairro. Ele
sempre alirmou seu ceticismo quartto à estratégia autogestionária, sua
hostilidade às nacionalizaçöes leninistas do Programa comum e o fraco alca¡rce
operatório da oposiçáo entre Estado e sociedade civil. Em 28 de setembro,
pela manhã, o PC rompia a Uniáo da esquerda que perdia as legislativas de
1978. Sobre esse fórum da reconstrução da sociedade civil, ver o número fora
de série do iVouuel Obseruateur de 28 de novembro de 1977.

- O que o leuou a se ínscreDer no atetiê "rnedicina de batr-


ro"? A curiosidade? O interesse?
- Escrevo e trabalho para as pessoas que a-Ii estão, pessoas
novas que apresentarn questóes novas. Hoje, as regióes ativas
do intelecto nã.o sáo mais a literatura ou a especulaçáo. Um
novo campo emerge. Sáo as questões dos enfermeiros ou dos
guardas de prisáo que interessaln - ou que deveriam interes-
sar - aos intelectuais. Elas sáo infinitamente mais importantes
do que os anátemas que os intelectuais profìssionais parisien-
ses se jogam na cabeça.
- O que 'r.c.is o choca, principolrnente na saída doJórum?

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