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Análise do poema «Antes de nós»

Ricardo Reis
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Antes de nó s nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas nã o falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.


Nã o fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das á rvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo


Entregar nosso esforço à Natureza
E nã o querer mais vida
Que a das á rvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.


Salvo nó s nada pelo mundo fora
Nos saú da a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício


Na areia o mar com ondas três o apaga.
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

Tema: o destino humano.


 
 
 1.ª estrofe
 
• O plural «nó s» representa todos os seres humanos.
 
• Os arvoredos configuram um elemento intemporal: antes de o ser humano existir,
eles já existiam. E antes dessa existência, o vento passava e criava ruído nas folhas,
ruído esse que é personificado na fala das mesmas folhas.
 
• A Natureza, representada pelos arvoredos, assiste impassível à passagem dos
homens, havendo como que uma permanência que se opõ e à transitoriedade da
vida humana. Aquela é permanente, enquanto o ser humano é transitó rio (verso 1).
 
• Em suma, o sujeito poético esclarece que, antes de o ser humano existir, a Natureza
comportava-se da mesma forma que se comporta no presente: os arvoredos sã o os
mesmos, o vento passou neles e as falhas falavam do mesmo modo que hoje. As leis
da Natureza e do Universo sã o sempre constantes.
 
 
 2.ª estrofe
 
• O sujeito poético afirma que o Homem passa pelo mundo e se agita em vã o. Ele tem
consciência da passagem do tempo, bem como da inutilidade (v. 5) do seu esforço,
enquanto os elementos naturais permanecem passivos e sem esta consciência.
 
• A açã o do ser humano nã o deixa qualquer marca no mundo e é tã o insignificante
como o ruído das folhas e da passagem do vento. Ou seja, as marcas deixadas pelo
Homem e a sua agitaçã o sã o tã o insignificantes e inú teis como o barulho das folhas
das á rvores e da passagem do vento. Note-se que este representa a instabilidade e
a inconstâ ncia (ora sopra, ora nã o sopra; ora sopra da esquerda, ora sopra da
direita, etc.).
 
• Nas duas primeiras estrofes:

- a Natureza e o «nó s» fazem parte da mesma realidade perene e estã o


sujeitos à s mesmas condiçõ es, neste caso, à passagem do tempo e do
vento (vv. 1 a 4);

- neste caso, há uma relaçã o de semelhança entre o Homem e a Natureza


(vv. 6 a 8);

- no entanto, há uma diferença: a passagem do tempo faz parte do ciclo


habitual da Natureza, que dela nã o tem consciência; já para o Homem,
porque é consciente da passagem do tempo, é motivo de agitaçã o e
perturbaçã o – ou seja, ele é caracterizado pela constataçã o da finitude e
da transitoriedade, bem como pela consciência do tempo (“Passamos” –
v. 5) e da inutilidade do esforço humano (“agitamo-nos debalde” – v. 5).

 
 
 3.ª estrofe
 
• O sujeito poético exorta à fruiçã o calma do momento («carpe diem») e à
serenidade epicurista do contacto com a Natureza (“Tentemos pois com abandono
assíduo / Entregar nosso esforço à Natureza” – vv. 9-10).
 
• Por outro lado, exprime o desejo ú nico de identificaçã o e comunhã o com a
Natureza (“E nã o querer mais vida / Que a das á rvores verdes.” – vv. 11-12).
 
• Além disso, aconselha a aceitaçã o voluntá ria (“abandono assíduo” – v. 9) do tempo
de vida que nos é concedido e a aceitaçã o passiva da ordem das coisas, das leis que
regem o Universo (“Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar nosso
esforço à Natureza”); ou seja, sugere que abandonemos definitivamente (“assíduo”
= constante, que nã o acaba) o que nos agita / perturba e que passemos a apreciar a
Natureza, a desfrutar calmamente o que ela tem para nos oferecer.
 
• O sujeito poético aspira à indiferença (pró xima da da Natureza) face à perturbaçã o
causada pela ameaça do Destino, nã o querendo “mais vida / Que a das á rvores
verdes” (vv. 11-12), alheio à agitaçã o do mundo, e à tranquilidade (ataraxia).
 
 
 4.ª estrofe
 
• O sujeito lírico defende uma atitude de abnegaçã o face ao fatalismo da vida:
“Inutilmente parecemos grandes”.
 
• A ideia de grandeza que o Homem tem de si é inú til. O advérbio «inutilmente»
sugere que, apesar dos seus feitos e da imagem que tem de si mesmo, ele estará
sempre sujeito à s leis do Destino.
 
• Além disso, nada na Natureza está submetido ao ser humano, mesmo que este
assim pense: “(…) nada pelo mundo fora / Nos saú da a grandeza / Nem sem querer
nos serve.”.
 
 
 5.ª estrofe
 
• Na quinta estrofe, é usada a primeira pessoa do singular, enquanto nas quatro
anteriores fora usada a primeira do plural. A que se deve esta mudança?
 
• Em primeiro lugar, nas primeiras quatro estrofes, o sujeito poético apresenta uma
reflexã o filosó fica sobre o tempo e os efeitos da sua passagem, sobre um Destino
comum a todos os seres humanos. Assim sendo, o recurso à primeira pessoa do
plural justifica-se, pois as conclusõ es e as recomendaçõ es que o sujeito poético rira
e faz sã o globais e aplicam-se a todos os seres humanos, incluindo o sujeito poético
(“nó s”, “Passamos”, “agitamo-nos”, etc.).
 
• Em segundo lugar, na ú ltima estrofe, o sujeito poético volta.se para si mesmo,
dando o seu exemplo pessoal e refletindo sobre a fugacidade da vida, a passagem
inexorá vel do Tempo e a pequenez dos atos humanos (vv. 17-18), reforçando a
ideia de que o Homem é débil perante forças maiores (vv. 19-20).
 
• Esta estrofe é toda ela uma interrogaçã o retó rica, através da qual o sujeito lírico
reflete sobre o valor da vida humana perante o poder do Tempo.
 
• Assim, tal como as pegadas deixadas (pelo sujeito poético) na areia sã o facilmente
apagadas pelas ondas (“Se aqui, à beira-mar, o meu indício / Na areia o mar com
ondas três o apaga” – vv. 19-20), a existência humana será sempre apagada pela
passagem do Tempo (“Que fará na alta praia / em que o mar é o Tempo?” – vv. 19-
20). Por outro lado, quer as pegadas quer a existência humana se revelam
transitó rias e sujeitas ao poder de forças que lhes sã o superiores.
 
• Desta forma, a interrogaçã o retó rica estabelece um contraste entre a pequenez do
Homem e a força grandiosa e inexorá vel que é o Tempo.
 
• A presença do nú mero 3 é bastante expressiva:

- associa-se ao destino do Homem e ao mito das três parcas, as irmã s que


determinam o destino dos deuses e dos seres humanos: Cloto segura e
tece o fio da vida – é a deusa dos partos e nascimentos; Lá quesis fia (a
vida do Homem na Terra); Á tropos corta o fio da vida (momento que
equivale à morte);

- relaciona-se também à s nereidas, deusas filhas do Oceano, que


personificavam as ondas e que fiavam, teciam e cantavam;

- liga-se, igualmente, à s três fases da vida do Homem: nascimento, vida e


morte.

 
• Em suma, na ú ltima estrofe, o sujeito poético reflete sobre:

- a brevidade da vida;

- a passagem do Tempo;

- a consciência da morte;

- o contraste entre a fragilidade do ser humano e a grandiosidade do


Tempo.

 
• Resumindo: ao longo do poema, o sujeito lírico propõ e uma visã o pagã da
existência e defende a comunhã o do Homem com a Natureza, ao constatar a
brevidade e a efemeridade da vida humana. A ú nica atitude a adotar no sentido de
tudo isto encarar de forma tranquila, sem perturbaçã o, passa pela renú ncia à açã o,
ao esforço, pelo reconhecimento da sua inutilidade. Por outro lado, o ser humano é
inserido num mundo uno, situando-se ao mesmo nível que os elementos da
Natureza, aparecendo como parcela finita do infinito que é o Ser – Deus ter-se-ia
materializado nos diferentes objetos criados e nã o apenas no ser humano.
 
 
 Recursos expressivos
 
• Nomes:

- “ruído” e “vento” sintetizam a ideia central do poema: o Homem nã o


constró i o seu destino, antes cumpre um que lhe é imposto;

- “ruído” representa a palavra humana, por oposiçã o à do Fado / Destino;

- “vento”: por um lado, associa-se ao Homem, remetendo para a


efemeridade que caracteriza a sua vida; por outro, remete para o sopro
divino, com significado oposto;
- “areia”: representa o mundo da aparência, que é uma có pia do mundo
da Essência;

- “[alta] praia”: representa o mundo da Essência. Estes elementos (areia e


praia) remetem para a conceçã o plató nica da existência humana,
através da oposiçã o entre a “areia” que o sujeito poético vê e a “alta
praia”.

 
• Verbos nos modos imperativo e conjuntivo  (com valor de imperativo):
traduzem a assunçã o de uma atitude filosó fica como forma de obter a
tranquilidade e o bem-estar.
 
• Advérbios de modo:

- “debalde”: traduz a inutilidade do desejo humano, pois o Destino é


inexorá vel e nada escapa à sua lei;

- “inutilmente”: traduz a oposiçã o entre a imagem que o Homem criou de


si mesmo e a funçã o real que ele desempenha no Todo universal, pois
terá sempre de se submeter a uma vontade que lhe é superior, daí a
inutilidade do seu esforço.

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