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ATIVIDADE AVALIATIVA

Discente: Clayton R F Marinho

As estrofes abaixo são da canção “Timoneiro”, do disco Bebadosamba (1996), de Paulinho da Viola.
Aproveite para escutá-la antes de responder à questão, prestando também atenção nos elementos
musicais (ritmo, harmonia, melodia, interpretação). Ela pode ser ouvida aqui:
https://youtu.be/7DXfO39necU

“Não sou eu quem me navega / Quem me navega é o mar / Não sou eu quem me
navega / Quem me navega é o mar / É ele quem me carrega / Como nem fosse
levar / É ele quem me carrega / Como nem fosse levar”

“E quanto mais remo mais rezo / Pra nunca mais se acabar / Essa viagem que faz /
O mar em torno do mar / Meu velho um dia falou / Com seu jeito de avisar: / - Olha,
o mar não tem cabelos / Que a gente possa agarrar”

“Timoneiro nunca fui / Que eu não sou de velejar / O leme da minha vida / Deus é
quem faz governar / E quando alguém me pergunta / Como se faz pra nadar /
Explico que eu não navego / Quem me navega é o mar”

“A rede do meu destino / Parece a de um pescador / Quando retorna vazia / Vem


carregada de dor / Vivo num redemoinho / Deus bem sabe o que ele faz / A onda
que me carrega / Ela mesma é quem me traz”

Valendo-se do estudado nas Partes I (De Deus) e III (Da Origem e Natureza dos Afetos) da Ética de
Espinosa, redija um texto dissertativo de ao menos 1000 palavras acerca da canção de Paulinho da
Viola. Sempre que possível, use a letra da canção para explicar a filosofia de Espinosa, e vice-versa,
notando convergências e divergências quando houver. Reflexões e avaliações pessoais bem
fundamentadas sobre a canção e o pensamento de Espinosa são também bem-vindas.

R: Podemos considerar as ações que Paulinho da Viola utiliza em sua canção: navegar,
carregar e levar e a alternância da ação desses verbos, ora como ações, ora como agidos.
Parece quem o objeto individuado (o eu) não apenas está num modo de relação com um
objeto maior (o mar), como ambos alternam a funções. Isso se poderia dizer da primeira
estrofe, pois, como o movimento mesmo do mar, ora ele avança (age), ora retrocede (é agido).
O primeiro “eu” é aquele que não se navega, estabelecendo certa consciência de que padece
de uma ação, tornando-se, segundo Espinosa, em ação, porque ele conhece adequadamente o
efeito, o que lhe permite tomar consciência de sua determinidade. Uma vez, tendo consciência
de tal estado, isso permite ao “eu” afirmar que outra coisa o age, o conduz em uma ação
adequada. A repetição da ação e do padecimento é a segunda volta do parafuso que o permite
estabelecer a determinidade de sua existência. Por mais que a ação seja o elemento que
estabelece relações de adequação aos ditames da razão em Espinosa, não podemos esquecer o
modo de expressão do samba: entre uma ação e um padecimento, há sempre um fluxo, uma
malemolência que, de sua parte, está sempre amolecendo a ação ao ponto de um padecimento
ou fazendo um padecimento passar como liame de ação. Não navegar-se e ser navegado
abrem o fluxo de passagem, mais do que um abandonar-se à vontade do mar. Ele sequer é um
estranho, e se muito mais, um amor, como canta Dorival Caymmi em “O bem do mar”, nas
suas Canções Praieiras. Nesse esquema, podemos pensar, inclusive, que o mar, como corpo
maior, é aquela substância pela qual clama o “eu”, não para se perder nele simplesmente, mas
para integrá-lo uma vê mais. Carregar, então, não é uma aflição; não é uma diminuição de
potência (medo, angústia, tristeza, ou qualquer padecimento), mas uma afeto-ação, pois, ele
carrega “como se nem fosse levar”, isto é, como se não fosse verdadeiramente fazê-lo perder-
se, consumi-lo. Se o leva, leva carregando como que conduz em sua superfície, nunca como
quem o afoga. O “eu” está sempre na superfície, no espelho do mar, na sua pele. E sua
potência de aumento se instala no segundo verso: ele reza para não acabar essa condução,
numa viagem que faz o mar em torno de si mesmo. Ele nem se sente mais individuado, mas
parte que retorna ao todo e torna-se uma coisa só: a única substância, com suas leis e regras,
muito lembradas no aviso rememorado do pai: o mar não tem cabelos onde se segurar. Há o
navegar, o carregar e o levar, ações de fluxos. Mas não há paradas, nós e pontos de repouso. O
fluxo, nesse caso, é selvagem. É o fluxo da natureza, grande ao qual tudo pertence. Se há certa
entrega, certo abraçar destinal no terceiro parágrafo, talvez, possamos dizer: há esta
malandragem do padecimento que dobra a ação, como o vento dobra as ondas, como as ondas
se movem em torno dos ventos, mas que, juntando energia do modo da fluidez, converte a
energia da paixão em força ativa que faz o movimento. Nesse sentido, reconhecer-se como
algo que nunca foi é saber-se determinado, causado e não causa. O mar torna-se a grande
metáfora viva do deus-natureza, pelo qual será possível conhecer uma forma de vida que é
livre a sua maneira: no conhecimento de suas causas adequadas e de suas paixões. Os termos
(navegar, carregar e levar) configuram-se, então, como índices duplos: mente-corpo; corpo-
pensamento; como também afeto-ação-afeto-paixão, conjugados num fluxo-fluidez-
flexibilidade, num sistema de troca que ele mesmo, dobrando-se sobre si e desdobrando-se
inúmeras vezes, de inúmeros modos, manifesta. Um desses termos de desdobra é “governar” a
partir do qual o mar adquire outro nome, “Deus”, não como o seu verdadeiro nome, mas
simplesmente como apenas mais uma das muitas variações dos modos da substância. Porém,
de certa forma, tal entrega, tal passividade diante do “governo” poderia afastar Espinosa de
Paulinho da Viola, na medida em que, ter o conhecimento da substância primeiro e única
como causa intelectual de tudo, permitiria, em contrapartida, ao ser humano conhecer as
causas de seu agir. Então, como conhecendo tais causas e agindo, o sujeito parece abrir mão e
deixar-se carregar pelo mar-deus? Ele não nada (ação), pois é navegado (padece). Que entrega
alegre é essa, ao ponto de nem sequer mas desejar determinar alguma coisa, ainda que no
início houvesse uma consciência que o permitia estar na superfície e em torno do mar? Dentre
a capacidade de potência do homem, no seu conatus, nesse esforço de perserverar na própria
existência, conhecer adequadamente as causas exteriores, não intrínsecas, faz parte desse
esforço. O desejo de conservar a existência exige, portanto, a capacidade de saber a melhor
forma de agir e a melhor maneira de padecer, ou seja, de converter as paixões em ações. O
próprio conatus, nesse sentido, alargar a relação entre ação e padecimento. Não se trata
sempre de converter uma paixão em ação, mas de fazer o ser perseverar na existência como a
onda do mar, tomando o que lhe age e fazendo tornar-se potência motora. Não a toa, ele
“explica” o navegar, isto é, conhece sua determinação e determina-se por ela. Ele conhece o
vento e a brisa. A canção de Paulinho está atravessada pelos fluxos da água e pelos fluxos dos
ventos. O pensamento de Espinosa só é polido como suas lentes. O vento que conhece é
aquele que movimento o pó, o de seu sopro, algum que entraria pela janela, mas frio. A
potência-fluxo-quente das paixões de da Viola aquecem a potência-geométrica-fria do
filósofo. O vento é potência de vida no primeiro, morte no segundo. Como a lembrança do pai
o faz recordar os perigos da própria vida (não há cabelos onde se segurar), não há como, com
o conhecimento das leis da natureza, esquecer as potência que diminuem a existência e afetam
o conatus, embora vejamos que o conhecimento da sua existência não diminui o fluxo do
próprio viver: ele vive num “redemoinho” carregado, por vezes, de “dor”, como a rede vazia
do pescador. Porém, ainda assim, o mar que o carrega é o mesmo que o “traz”, que o devolve
a si mesmo, não apenas como um vazio, mas como a próprio possibilidade de continuar
aumentando sua potência, de tentar uma vez mais. O redemoinho é de dor, mas é também de
possibilidade e da ação-padecimento; da dobra que se dobra sobre si e desdobra-se em outra
coisa, agindo e padecendo ao mesmo tempo, fazendo fluir de um a outro, sem cessar.

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