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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Disciplina de Introdução aos Estudos Literários I

O SER EM NOSSO SER


ANÁLISE DO POEMA “CARREGO COMIGO” DE CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE

Jhonatan de Paula Maximiano Dias


Nº USP: 11756421

São Paulo, agosto de 2020


Carrego comigo Ele arde nas mãos, Mas o embrulho pesa.
há dezenas de anos é doce ao meu tato. Vem a tentação
há centenas de anos Pronto me fascina de jogá-lo ao fundo
o pequeno embrulho. e me deixa triste. da primeira vala.

Serão duas cartas? Guardar um segredo Ou talvez queimá-lo:


será uma flor? em si e consigo, cinzas se dispersam
será um retrato? não querer sabê-lo e não fica sombra
um lenço talvez? ou querer demais. sequer, nem remorso.

Já não me recordo Guardar um segredo Ai, fardo sutil


onde o encontrei. de seus próprios olhos, que antes me carregas
Se foi um presente por baixo do sono, do que és carregado,
ou se foi furtado. atrás da lembrança. para onde me levas?

Se os anjos desceram A boca experiente Por que não me dizes


trazendo-o nas mãos, saúda os amigos. a palavra dura
se boiava no rio, Mão aperta mão, oculta em teu seio,
se pairava no ar. peito se dilata. carga intolerável?

Não ouso entreabri-lo. Vem do mar o apelo, Seguir-te submisso


Que coisa contém, vêm das coisas gritos. por tanto caminho
ou se algo contém, O mundo te chama: sem saber de ti
nunca saberei. Carlos! Não respondes? senão que te sigo.

Como poderia Quero responder. Se agora te abrisses


tentar esse gesto? A rua infinita e te revelasses
O embrulho é tão frio vai além do mar. mesmo em forma de erro,
e também tão quente. Quero caminhar. que alívio seria!
Mas ficas fechado. Perder-te seria Não estou vazio,
Carrego-te à noite perder-me a mim próprio. não estou sozinho,
se vou para o baile. Sou um homem livre pois anda comigo
De manhã te levo mas levo uma coisa. algo indescritível.

para a escura fábrica Não sei o que seja.


de negro subúrbio. Eu não a escolhi.
És, de fato, amigo Jamais a fitei.
secreto e evidente. Mas levo uma coisa.

“Carrego Comigo”, de Carlos Drummond de Andrade pertence ao livro A


Rosa do Povo de 1945 que, em alguns poemas, apresenta claramente uma postura
política e militante, e outros voltados ao indivíduo. Sendo assim, a obra possui um
conjunto de poemas que reflete à época em que foi escrito, não só em uma
perspectiva individual, mas também social e mundial.
O poema pode ser relacionado à Lírica por haver a presença de um “eu
lírico” – que expõe seu estado de espírito ao descrever os sentimentos em relação
ao embrulho carregado. Este poema é composto por 23 quartetos com versos
metrificados de cinco sílabas, ou seja, redondilhas menores, e na sua maioria, os
versos são brancos.

“Carrego Comigo” é título que abre o poema e que introduz a sensação de


movimento que permeia todo o poema. Um movimento arrastado indicado pelo
som /r/ na primeira palavra, que sugere um arrastado difícil e pesado. O que se
carrega tem peso.

Primeira Estrofe: encontram-se anáforas nos versos:

há dezenas de anos / há centenas de anos

Demonstram que a temporalidade é muito longa. Logo, que o embrulho


apesar de pequeno, é pesado e que parece ser um fardo antigo.

Segunda Estrofe: o verbo ser é repetido três vezes nos três primeiros versos
ocasionando a dúvida, a tentativa de desvendar o conteúdo do embrulho. O verbo
é colocado de forma plural (3ª pessoa do plural) no primeiro verso, singular (3ª
pessoa do singular) no segundo e terceiro verso, e desaparece no último como
uma enumeração às avessas, em que a necessidade de saber o que é vai perdendo
a força. Vai se afastando aos poucos. Assim como na primeira estrofe, o verbo
“ser” cria uma anáfora:

Serão duas cartas? / será uma flor? / será um retrato? / um lenço talvez?

Terceira Estrofe: a temporalidade novamente é indicada como algo distante


quando o eu-lírico não lembra mais onde encontrou o embrulho:

Já não me recordo / onde o encontrei.

Há uma oposição de significado entre as palavras presente e furtado


colocadas em versos com estrutura sintática parecida (subordinativa condicional),
que pode indicar uma confusão do eu-lírico sobre a origem do embrulho:

Se foi um presente / ou se foi furtado.

Quarta Estrofe: o eu-lírico continua tentando desvendar o conteúdo do


embrulho levantando hipóteses ao utilizar a subordinativa condicional “se”. Suas
hipóteses só incluem possibilidades de algo que tem alguma leveza já que parece
flutuar seja na água, no ar ou levada pelas mãos dos anjos:

Se os anjos desceram / trazendo-o nas mãos, / se boiava no rio, / se pairava


no ar.

Quinta Estrofe: aqui outra anáfora ocorre na tentativa de desvendar o


mistério do embrulho. Uma oposição, muito usado ao longo do poema, aparece
entre conter ou não conter algo:

Que coisa contém, / ou se algo contém,

Sexta Estrofe: outras estruturas sintáticas são repetidas deixando clara a


oposição do significado das palavras finais, quente e frio (antônimo). Assim, o
conteúdo do objeto não é suave, é intenso, pois oscila entre sensações
extremamente opostas. O advérbio ‘tão’ repetido nos dois versos finais (anáfora)
reforça a oposição e a dificuldade de se desvendar o objeto já que tanto a sensação
fria quanto a quente, quando são excessivas, tornam-se desagradáveis.
O embrulho é tão frio / e também tão quente.

Sétima Estrofe: o eu-lírico continua trabalhando com as oposições de


sensações (arde x doce), nos dois primeiros versos e de sentidos, os dois últimos
(fascina x triste). Podemos correlacionar ‘arde’ com ‘fascina’ e ‘doce’ com ‘triste’
possibilitando o entendimento de algo que ao mesmo tempo em que repele, atrai:

Ele arde nas mãos, / é doce ao meu tato. / Pronto me fascina / e me deixa
triste.

Oitava e Nona Estrofe: o primeiro verso de cada uma destas estrofes é o


mesmo (Guardar um segredo). Logo, temos novamente a utilização de anáfora na
oitava estrofe (querer) que reforça a ideia de antítese dada logo depois pelo verbo
e advérbio (sabê-lo x demais).

A seguir, o pronome ‘si’ repetido dentro de outro pronome ‘consigo’,


remete ao complemento verbal ‘segredo’, intensificando o seu significado de
oculto, guardado. Da mesma forma que os adjuntos adverbiais ‘por baixo’ e
‘atrás’, na nona estrofe, promovem o escondido, o encoberto:

Guardar um segredo / em si e consigo, / não querer sabê-lo / ou querer


demais.

Guardar um segredo / de seus próprios olhos, / por baixo do sono, / atrás


da lembrança.

As duas estrofes estão ligadas pelo primeiro verso repetido, sempre


fortalecendo o oculto do embrulho.

Décima Estrofe: outra oposição de ideias entre os verbos ‘aperta’ e ‘dilata’.


Outra vez opondo extremos:

Mão aperta mão, / peito se dilata.

Décima Primeira Estrofe, Décima Segunda Estrofe e Décima Terceira


Estrofe: Identificamos duas sinestesias criadas com os substantivos ‘apelo’ e
‘gritos’. Dessa forma, ao dar voz aos fenômenos da natureza e às coisas, o eu-
lírico denuncia que ele próprio não tem voz para responder ao chamado, ou seja, o
homem que pode responder, não responde. São as coisas que chamam. E chamam
por ele, por uma atitude. Por meio, de duas repetições do verbo ‘querer’ (outra
anáfora) na 12ª estrofe, ele diz que quer responder e quer caminhar. O eu-lírico
deseja ir além de si. ‘Mas o embrulho pesa’ e o embrulho é quase jogado na
‘vala’. O eu-lírico, ao perceber a dificuldade de carregar o embrulho, enfrentar a
carga e do que é feita esta carga, tenta afastá-la de si, livrar-se dela:

Vem do mar o apelo, / vêm das coisas gritos. / O mundo te chama: / Carlos!
Não respondes?

Quero responder. / A rua infinita / vai além do mar. / Quero caminhar.

Mas o embrulho pesa. / Vem a tentação / de jogá-lo ao fundo / da primeira


vala.

Décima Quarta Estrofe: a aliteração das sibilantes /z/ e /s/ lembra o vento
levando as cinzas do embrulho queimado. Uma sensação de alívio e libertação:

Ou talvez queimá-lo: / cinzas se dispersam / e não fica sombra / sequer,


nem remorso.

Décima Quinta Estrofe: nova aliteração dos sons /s/ e /z/, agora dando a
ideia de movimento e caminhar somada a aliteração do som /ʁ/ dado pelo
substantivo ‘fardo’ e pelo verbo ‘carregar’, que nos apresenta um movimento
arrastado:

Ai, fardo sutil / que antes me carregas / do que és carregado, / para onde
me levas?

Décima Sexta Estrofe: as oclusivas surdas /d/ e /k/ soam como um ruído
seco de uma pancada, uma palavra ditatorial e embrutecida:

Por que não me dizes / a palavra dura / oculta em teu seio, / carga
intolerável?

Décima Sétima e Décima Oitava Estrofe: o eu-lírico continua seu caminho


impulsionado pelo embrulho que o carrega por meio dos sons /z/ e /s/ repetidas
vezes (aliteração). Situação intensificada pelos sons /r/ e /ʁ/ do arrastado do
caminhar:

Seguir-te submisso / por tanto caminho / sem saber de ti / senão que te sigo.
Se agora te abrisses / e te revelasses / mesmo em forma de erro, / que alívio
seria!

Décima Nona e Vigésima Estrofe: sons vocálicos fechados começam a


aparecer representando o sombrio da noite, da fábrica e do subúrbio. Além disso,
temos novamente uma oposição entre os adjetivos ‘secreto’ e ‘evidente’ que
mostra a possibilidade deste embrulho ser algo visível, ao mesmo tempo em que é
escondido, mas aos olhos do seu eu-lírico que já começa a apreender o seu
significado e o seu valor positivamente:

Mas ficas fechado. / Carrego-te à noite / se vou para o baile. / De manhã te


levo

para a escura fábrica / de negro subúrbio. / És, de fato, amigo / secreto e


evidente.

Vigésima Primeira e Vigésima Segunda Estrofe: ‘Mas levo uma coisa’, um


verso repetido no último verso da 21ª e 22ª estrofe, ligando-as a mesma ideia de
algo sendo levado, não mais carregado como no início do poema. O verbo ‘levar’
remete a algo leve. Logo, o embrulho não é mais um peso, nem um fardo, pois, ao
‘perder-te’ (repetido duas vezes no primeiro e segundo verso, mais uma anáfora
que intensifica a perda), me perco. Assim, o embrulho é parte dele. E já não
importa mais o peso, quem o escolheu e o que será, apenas que a ‘coisa’ pertence
e é inerente ao eu-lírico:

Perder-te seria / perder-me a mim próprio. / Sou um homem livre / mas levo
uma coisa.

Não sei o que seja. / Eu não a escolhi. / Jamais a fitei. / Mas levo uma
coisa.

Vigésima Terceira Estrofe: rimas consecutivas nos três primeiros versos


(vazio – sozinho – comigo) que juntas se afastam do último verso por sonoridade
e que formam a imagem de solitário, não necessariamente um só no sentido de
ruim, mas no sentido de único, incomparável, indivisível, individual. Por ser
indescritível, não é necessário sabê-lo. Apenas o que resulta e cria no eu-lírico,
esta sensação de singularidade que o diferencia do outro:
Não estou vazio, / não estou sozinho, / pois anda comigo / algo
indescritível.

Carlos Drummond de Andrade, ao longo do poema, demonstra muita


angústia em relação ao embrulho que o eu-lírico carrega e passa o tempo todo
mostrando contradições de sua época dentro do seu próprio eu. Essa grande
contradição reflete às mudanças radicais que aconteceram na forma de vida da
sociedade da época – início do séc. XX, período da Segunda Guerra Mundial e, no
Brasil, período da ditadura Vargas. Há momentos em que o embrulho é tolerável e
em outro é um fardo quase que impossível de ser carregado.
Bibliografia

WOLFGANG, Kayser. Análise e Interpretação da Obra Literária


(Introdução à Ciência da Literatura). 3. Ed. Coimbra: Sucessor, 1963.

ROSENFELD, Anatol. Teoria dos Gêneros. São Paulo: Perspectiva, 1985.

CANDIDO, Antonio. Na Sala de Aula. 8. Ed. Rio de Janeiro: Editora


Ática, 2000.

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