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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ

COLEGIADO DE HISTÓRIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM HISTÓRIA E
HISTORIOGRAFIA DA AMAZÔNIA

NARRAR O TRAUMA: MEMÓRIAS DO NAUFRÁGIO DO BARCO NOVO AMAPÁ

MACAPÁ - AP
2016
DANILO MATEUS DA SILVA PACHECO

NARRAR O TRAUMA: MEMÓRIAS DO NAUFRÁGIO DO BARCO NOVO AMAPÁ

Monografia apresentada ao Colegiado de


História, Departamento de Filosofia e Ciências
Humanas (Dfch) da Universidade Federal do
Amapá (Unifap), como requisito obrigatório
para obtenção do título de especialista em
História e Historiografia da Amazônia.
Orientador: Profº Dr. Sidney da Silva Lobato

MACAPÁ - AP
2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central da Universidade Federal do Amapá

306.85
153.12
S586c
P116n Pacheco, Danilo Mateus da Silva.

Narrar o trauma: memórias do naufrágio do barco Novo Amapá /


Danilo Mateus da Silva Pacheco; orientador, Sidney da Silva Lobato. -
- Macapá, 2016.

61 p.

Monografia (especialização) – Fundação Universidade Federal do


Amapá, Programa de Pós-Graduação em História e Historiografia da
Amazônia.
1. Memória. 2. História oral. 3. Naufrágios. I. Lobato, Sidney da
Silva, orientador. II. Fundação Universidade Federal do Amapá. III.
Título.
Para todas as vítimas do naufrágio do barco Novo
Amapá.
DANILO MATEUS DA SILVA PACHECO

NARRAR O TRAUMA: MEMÓRIAS DO NAUFRÁGIO DO BARCO NOVO AMAPÁ

Este Trabalho de conclusão de Curso foi julgado e aprovado em sua forma final pelo
Colegiado de História da Universidade Federal do Amapá.

Banca Avaliadora

__________________________________
Prof.º Dr. Sidney da Silva Lobato
(Presidente/ Orientador)

__________________________________
Prof.ª Dra. Cecília Maria Brito Bastos
(Membro)

__________________________________
Prof.º Dr. Dorival da Costa dos Santos
(Membro)

Resultado:___________

Data:________/________/________
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus por tudo que me concedeu nessa caminhada. E por
dar-me condições de seguir em busca de meus objetivos.

Meu muito obrigado aos meu avós, Protasio Caldas e Maria Pacheco, a quem devo todas
as minhas conquistas.

Sou grato a minha noiva, Soraia Dias Lima, pelo seu companheirismo e compreensão.

Ao meu prezado orientador, Sidney Lobato. Sua participação foi fundamental.

Sou igualmente agradecido ao coordenador do curso de especialização em História e


historiografia da Amazônia, Dorival dos Santos, seu apoio para o desenvolvimento da presente
pesquisa foi de grande importância.

Agradeço minha cunhada Cassia lima, pelo auxílio na coleta de fontes necessárias para
a pesquisa.

Por fim, expresso minha gratidão a meus amigos que estão sempre dispostos a uma boa
discussão historiográfica: Leonil Goés, Tayno Lobato, Leandro Pantoja, Marcia Borralho,
Sandra Mota, Renê Lopes e Andreia Martel.
A tragédia do barco Novo Amapá é um pesadelo que nos assombra, um
sinistro fantasma coletivo que vai se distanciando nos labirintos do
passado sem que possa dissolver-se, apagar-se definitivamente de nossa
memória e ser soterrado naquela vala enorme que recebeu os corpos de
tantos irmãos
Paulo de Tarso Barros (2002)
RESUMO

A presente pesquisa tem como objetivo analisar as memorias do naufrágio do barco


Novo amapá. Tragédia que aconteceu nas margens do rio Cajari, divisa entre estados do Pará e
Amapá, em 6 de janeiro de 1981. O sinistro levou a óbito mais de 300 pessoas, muitos ficaram
desaparecidos. O naufrágio repercutiu em importantes jornais do mundo, sendo conhecido
como a maior tragédia fluvial da Amazônia brasileira. Sobreviver ao sinistro, quando muitos
que estavam tão próximos não resistiram, torna o narrar muito difícil, principalmente quando
as perdas são de pessoas queridas. A presente pesquisa deparou-se com essa problemática, os
meandros situados entre o narrável e o indizível. Para analisar isso, trabalhei com a história oral
e com algumas narrativas escritas. Relatos de pessoas que foram vítimas diretas do naufrágio e
que lutaram pela vida, e as narrativas de quem estava acompanhando de perto todos os
acontecimentos que giraram em torno da tragédia, religiosos, jornalistas e poetas. Estes que
foram até o local do sinistro e buscaram registrar os acontecimentos a fim de que fossem
divulgados de acordo com suas percepções e interesses.

Palavras-chaves: Memória - História Oral -Trauma - Amazônia


ABSTRACT

This research aims to analyze the sinking memories of the New Amapá Boat. Tragedy
that happened on the banks of Cajari river, the border between the states of Pará and Amapá,
on January 6, 1981. The accident led to death more than 300 people and many were missing.
The sinking had repercussions on important newspapers in the world, becoming known as the
largest river tragedy of the Brazilian Amazon. Surviving the accident, when many who were so
close did not resist, makes very difficult to describe it, especially when the losses are of the
loved ones . This research was faced with this problematic, the meanders located between the
narratable and the inexpressible. To analyze this, I worked with oral history and with some
written narratives. Reports of people who were direct victims of the sinking and fought for their
lives, and the stories of who was closely following all the events that revolved around the
tragedy: religious, journalists and poets. Those who went to the place of the accident and sought
to record all the events in order to disclosed everything according to their perceptions and
interests.

Keywords: Memory - Oral History -Trauma - Amazon


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 08

CAPÍTULO I: A MONUMENTALIZAÇÃO DA TRAGÉDIA E O USO POLÍTICO DOS


RESSENTIMENTOS............................................................................................................. 14
1.1. O memorial das vítimas do naufrágio............................................................................ 14
1.2. O uso político das lembranças traumáticas e dos ressentimentos .............................. 21

CAPÍTULO II: NARRAR O TRAUMA: REMINISCÊNCIAS PESSOAIS DO


NAUFRÁGIO DO BARCO NOVO AMAPÁ........................................................................27
2.1. Experiência traumática ................................................................................................. 27
2.2. Narrar é interpretar........................................................................................................ 30
2.3. Testemunho pessoal dos jornalistas............................................................................... 32

CAPÍTULO III: A LITERATURA DO TRAUMA ............................................................. 38

3.1. A serviço do trauma........................................................................................................ 38


3.2. Triste Janeiro: o espetáculo Novo Amapá .................................................................... 40
3.3. A poesia da tragédia ....................................................................................................... 45

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 51

LISTA DE IMAGENS ........................................................................................................... 54

FONTES ................................................................................................................................. 55

ENTREVISTADOS ............................................................................................................... 55

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 57
8

INTRODUÇÃO

O ano de 1981 deixou cicatrizes profundas na sociedade amapaense. A imprensa


internacional noticiou a maior tragédia fluvial da Amazônia brasileira, o naufrágio do barco
Novo Amapá, ocorrido no dia 6 de janeiro daquele ano. O sinistro levou a óbito mais de 300
pessoas. Centenas de famílias foram afetadas pelo trauma. O barco tinha como destino Monte
Dourado, distrito do município de Almeirim, no estado do Pará. Segundo o jornal Diário do
Amapá, a embarcação tinha capacidade para transportar no máximo 400 pessoas. Porém, ela
saiu do Porto de Santana, estado do Amapá, com mais de 600 passageiros.1 A partida foi às
duas horas da tarde. Após seis horas de viagem o barco foi a pique nas imediações da foz do rio
Cajari, divisa entre estados de Amapá e Pará. (Ver imagem n. 1, com mapa da área do naufrágio)
Era fim de férias, muitos queriam retornar para seu trabalho na fábrica de celulose da
Jari Florestal e Agropecuária, do empresário estadunidense Daniel Ludwig. O desejo de
apresentar-se ao empreendimento foi o principal motivo que levou à superlotação. Pois, além
de funcionários da empresa, estavam com eles seus familiares. Muitas vítimas até hoje não
foram encontradas. Os mortos foram amarrados na beira do rio para a correnteza não levar. O
bispo da Diocese de Macapá, Dom José Maritano, que foi até o local da tragédia no terceiro dia
após o naufrágio, afirmou: “foi um espetáculo realmente terrificante, uma dessas visões que eu
classificaria apocalítica, e que com certeza não desaparece mais dos olhos e da alma da
gente”.2
Nos dias que seguiram ao sinistro, procurou-se pelos culpados. Para os sobreviventes,
além da superlotação, a inexperiência de quem estava no leme do barco, no momento da virada
da embarcação, contribuiu para a tragédia, pois, segundo eles, não era o comandante que estava
conduzindo o barco.3 Houve a denúncia, por parte de algumas vítimas, de que o comandante
Manoel Pinto havia entregado o leme para um garoto. Posteriormente, os veículos de
informações afirmaram que foram vários os culpados. Assim, escreveu o jornal O Liberal em
edição de 7 de janeiro de 2001 no texto intitulado: “Os muitos culpados pelo Naufrágio”: “A
tragédia do barco Novo Amapá não teve apenas um culpado. Várias pessoas em atitudes
arbitrarias e irresponsáveis protagonizaram o que viria a ser a maior tragédia marítima da

1A maior tragédia da Amazônia. Diário do Amapá. De 06 de janeiro de 2006, p.4. O despachante da companhia
dos portos, Osvaldo Nazaré Colares, na época disponibilizou uma lista de 150 pessoas licenciadas na embarcação.
Porém, os jornais analisados apontam os números citados no texto: aproximadamente 600 pessoas estavam
presentes na embarcação.
2 MARITANO, José apud CAPIBERIBE, João Alberto. Morte nas águas: a tragédia do Cajarí. 2. Ed. Recife:

Editora independente, 1982, p. 57.


3 Ibidem, p.23.
9

América Latina”.4 Devido a extensão do acontecimento, e o grande número de vítimas, houve


repercussão na imprensa nacional e internacional, mas pouco foi feito para assistir os
sobreviventes e familiares. Um inquérito foi instaurado pela Capitania dos Portos, no entanto a
população ficou sem notícias desse processo. No continuar da monografia observar-se-á que a
ferida do trauma nunca foi cicatrizada nas memorias das vítimas e familiares.
Hoje, paulatinamente, percebe-se que a tragédia do naufrágio do barco Novo Amapá
está deixando de ser narrada. Talvez haja um esforço para não evocá-la, (é o que veremos na
continuação da leitura). Essas lembranças que atualmente evanescem, durante a década 1980
estavam fortemente presentes em artigos de jornais e nas conversas das famílias amapaenses.
Agora parece que estão guardadas e sendo lentamente enterradas com as vítimas e pessoas que
viram tudo acontecer tão perto de seus olhos. Certamente essas lembranças do naufrágio ainda
trazem dor. Um filme trágico. Algo difícil de rememorar. Uma experiência traumática. O
trauma, segundo Márcio Seligmann-Silva, “é um dos conceitos-chaves da psicanálise, e o
tratamento psicanalítico – simplificando – existe em função do trabalho de recomposição do
evento traumático". E este autor sintetiza: “o trauma é justamente uma ferida na memória”5 ,
ferida não cicatrizada como a de vítimas que perderam familiares em eventos trágicos qual o
referido naufrágio.
A presente pesquisa deparou-se com esta problemática: os meandros entre o narrável e
os motivos que impedem experiências pessoais ou coletivas de se transformar em linguagem.
O trauma tem um papel capital nesse processo. Assim, analisar memorias traumáticas e suas
peculiaridades é o objetivo central deste trabalho. Narrativas não somente de sobreviventes,
vítimas do referido naufrágio, mas, também, de pessoas que estavam presentes, e que deram
importante contribuição no processo de geração e transmissão de notícias sobre o sinistro à
população local. A memória dos envolvidos no naufrágio do barco Novo Amapá é o objeto
desta pesquisa. Mas, o que é a memória? Nas palavras de Pierre Nora:

Memória é vida, sempre carregada por grupos vivos, e neste sentido ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e

420 anos da tragédia do novo Amapá. O liberal. De 7 de janeiro de 2001. É importante informar que alguns jornais
aqui citados não possuem a numeração das páginas e nem os números de séries. Esses impressos foram encontrados
na biblioteca do Sesi (Serviço social da indústria) em Macapá, e neste local os artigos de jornais são recortados e
separados por temáticas, neles constam as datas e o nomes do jornais.
5 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A História como Trauma In: NESTROVSKI, Arthur e SELIGMAN-SILVA,

Marcio (orgs). Catástrofe e representação: São Paulo: Escuta, 2000, p. 84.


10

manipulações, susceptível de longas latências e repentina revitalizações [...].


A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. 6

Na visão do historiador francês a memória tem uma contínua relação com o presente,
pois, quem narra está inserido no seu tempo e em um grupo social. O sociólogo francês Maurice
Halbwachs, em consonância com Nora, salienta a influência desse presente e de um grupo no
lembrar do indivíduo, afirmando que as lembranças são sempre coletivas: “Nossas lembranças
permanecem coletivas, [...] mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós”.7 Para
o sociólogo toda memória é coletiva. Todavia, Alessandro Portelli, no artigo “O massacre de
Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum”,
se contrapõe a ideia de Halbwachs, afirmando que se toda memoria fosse coletiva, somente uma
testemunha bastaria para uma cultura inteira. O que não ocorre porque, particularmente, cada
indivíduo extrai memória de uma variedade de grupos e as organiza de forma idiossincrática.
Portelli propõe então o conceito de “memória dividida”. Para este autor, não podemos continuar
procurando oposições somente entre campos da memória e sim também dentro deles.8
Alessandro Portelli faz referência ao trabalho de Giovanni Contini (1994), intitulado La
memoria divisa. Osservazioni sulle due memorie della etrage del 29 giugno 1944 a Civitella
Val di Chiana. Este estudo analisa a memória do povoado de Civitella, que durante a Segunda
Guerra Mundial foi massacrada por forças nazistas quando tropas de ocupação alemã executam
115 homens do povoado.
Afirma Contini que de um lado comemora-se o massacre como episódio da resistência
(guardas responsáveis por proteger o povoado), e as vítimas são comparadas a mártires da
liberdade, memória esta que é preservada e tida como “oficial”, e do outro existe uma memória
que nega qualquer ligação com a memória da resistência e afirma que os verdadeiros culpados
pelo massacre executado pelos alemães são os próprios membros da resistência, estes que
executaram três alemães na fronteira do povoado, levando-os a agir em retaliação. Essa
memória é defendida pelas viúvas e filhos dos homens que foram assassinados. Elas que
carregaram os mortos, levaram para a igreja e posteriormente construíram os caixões e

6 NORA, Pierre. Entre memória e História: A problemática dos lugares. Projeto História: Revista do programa de
estudos pós-graduados em História da PUC-SP. N°10, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-SP, 1993, p.
7-28.
7 HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
8 PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944)”: mito, política

e senso comum. In: AMADO, Janaína &FERREIRA, Marieta. (Coords.). Usos e abusos de história oral. Rio de
Janeiro: FGV, 1998, p. 127.
11

transportaram os corpos de carroça até o cemitério. Assim, Contini afirma haver uma memória
dividida.9
Neste trabalho, adotamos como balizas cronológicas o ano do naufrágio (1981) e o
momento presente (2016), pois, é necessário entender a constituição e o uso da memória
traumática da tragédia nos anos posteriores ao sinistro, bem como compreender os motivos que
dificultam o narrar na atualidade. O estado do Amapá, por possuir o maior número de vítimas
diretas e indiretas do naufrágio, é o espaço de desenvolvimento do estudo. Como fontes, foram
analisados: narrativas de sobreviventes; artigos de jornais que noticiaram a tragédia; textos de
membros de grupos políticos amapaenses; e relatos de familiares de pessoas que perderam a
vida na tragédia.10
Os relatos de sobreviventes do naufrágio, adquiridos através de entrevista, foram fontes
fundamentais para este trabalho. O uso da história oral como metodologia de pesquisa foi
essencial no esforço de aproximação em relação ao objeto estudado. Ela que no século XIX
fora rejeitada pelos rigores da “escola positivista”, devido principalmente ao seu “caráter
subjetivo”. Mas, nas décadas posteriores observou-se que o subjetivismo é intrínseco a todas as
fontes históricas, e que a subjetividade deve sempre constar no campo de interesses do cientista
social. O historiador do século XX se depara com múltiplas fontes, algo facilitado pela
proximidade de seu objeto. Hoje, sabemos que a fonte escrita também pode ser subjetiva e que
a própria subjetividade pode se constituir em objeto de pensamento cientifico, pois que se deve
tomá-la como dado real para entender porque certos acontecimentos ou conjunturas são
interpretados de um modo e não de outro.11 Por outro lado, a história oral é uma forma de
conhecimento de caráter interdisciplinar. Sua subjetividade reside no fato dela se referir ao
indivíduo e ao contato direto deste com o pesquisador. Por isso, Alessandro Portelli afirma que
ela é uma ciência e arte do indivíduo.

9 Ibidem, p. 105.
10 O trabalho de entrevista foi realizado por mim e o colega de graduação Misael Lino em 2012. Naquele momento
foram entrevistados seis sobreviventes do naufrágio, além de artistas que fazem parte do espetáculo teatral Novo
Amapá. Sobre esse processo de entrevista Verena Alberti afirma: “O trabalho com a história oral consiste na
gravação de entrevistas de caráter histórico e documental com atores e/ou test emunhas de acontecimentos,
conjunturas, movimentos, instituições e modos de vida da história contemporânea. Um de seus principais alicerces
é a narrativa. Um acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevistado não pode ser transmitido a outrem sem
que seja narrado. Isso significa que ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da
entrevista. Ao contar suas experiências, o entrevistado transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem,
selecionando e organizando os acontecimentos de a cordo com determinado sentido”. (ALBERTI, Verena.
Narrativas na história oral. In: Anais do XXII Simpósio Nacional de História. João Pessoa, PB: ANPUH-PB, 2003).
Assim, as narrativas de sobreviventes do naufrágio serão fontes importantes para esse trabalho .
11 ALBERTI, Verena. Fontes orais: história dentro da história. In: Carla Bassanezi Pinsky, (organizadora). Fontes

históricas. São Paulo: Contexto, 2005.


12

Embora diga respeito – assim como a sociologia e a antropologia – a padrões


culturais, estruturas sociais e processos históricos, visa aprofundá-los, em
essência, por meio de conversas com pessoas sobre a experiência e a memória
individuais e ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada
uma.12

Segundo Portelli, o trabalho de campo embora seja importante para todas as ciências
sociais, para a história oral é por definição imprescindível. Ela exige um contato direto entre o
historiador e seu objeto. Essa relação torna possível a compreensão de padrões culturais e
sociais resultantes das múltiplas interações entre o indivíduo e o meio social.
Importa salientar que as entrevistas analisadas nessa pesquisa são produtos de um
gênero da história oral que vem ganhando consistência desde a segunda metade do século XX,
a história oral testemunhal, “metodologia [que] se fez imperiosa em caso de entrevistas com
pessoas ou grupos que padeceram de torturas, agressões físicas relevantes, marcas que
ultrapassam a individualidade”, afirmam José Carlos Meihy e Suzana Ribeiro.13 A tragédia do
Novo Amapá, por se tratar de um trauma coletivo, que levou centenas de pessoas a extrema dor
emocional, sem dúvida é uma problemática que se encaixa nesse gênero. Para Meihy e Ribeiro
alguns dos mais importantes germinadores da história moderna possuem uma ligação direta
com as virtudes dessa metodologia, em particular situações em que o extermínio implicou
também a não existência de documentação sobre as vítimas. Podemos citar como exemplos o
Holocausto e o apartheid. Situações que permitem vislumbrar a necessidade de narrativas que
projetam a relevância do testemunho.14
Os artigos de jornais foram igualmente importantes para a pesquisa. Jornais como A
gazeta, O Jornal do dia e O diário do povo foram fontes fundamentais na obtenção de
informações sobre a tragédia. Assim, tornou-se necessário analisar os discursos desses
periódicos, pois o pesquisador de jornais e revistas trabalha com o que se tornou notícia e,
segundo Tania Regina de Luca, “é preciso dar conta das motivações que levaram à decisão da
dar publicidade a alguma coisa”.15 Também serviram de fonte para este estudo os textos
literários e a peça teatral Novo Amapá, que de forma poética narram a tragédia. 16

12 PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral.
Projeto História: Revista do programa de estudos pós-graduados em História da PUC-SP. N°15, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo-SP, 1997, p.15.
13 MEIHY, José Carlos e RIBEIRO, Suzana. Guia prático de história oral: para empresas, universidade s,

comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.p. 86,87.


14 Ibidem.
15 LUCA, Tania Regina de. Fontes impressas, História dos, nos e por meio dos periódicos. In: Carla Bassanezi

Pinsky, (organizadora). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.p. 140.


16 O espetáculo realizado pelo grupo Supernova teve sua primeira apresentação em 2012, e devido ao sucesso de

público retornou no ano seguinte com a proposta de se fazer presente anualmente nos meses de janeiro.
13

Este estudo analisou situações especificas do lembrar traumático do naufrágio e do


indizível. No primeiro capítulo analisamos o debate em torno da construção do Monumento do
Naufrágio, um memorial que a prefeitura do município de Santana, que fica a 17 quilômetros
da capital do estado do Amapá, Macapá, pretendia construir no porto da cidade, o mesmo local
onde os cadáveres chegaram encaixotados. O monumento é um projeto de 2014. Enfocaremos
a reação da população em relação à tentativa da prefeitura de monumentalizar a tragédia. Esse
episódio nos remete a Pierre Nora, quando afirma: “os lugares da memória nascem e vivem do
sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos que é preciso manter
aniversários, organizar celebrações”.17 Neste capítulo também analisamos o uso político dessa
memória traumática. A partir dos estudos de Pierre Ansart18 , problematizamos o “apelo ao
ressentimento” das vítimas do naufrágio. Observar-se-á que nesses dois momentos (a
construção do monumento e o apelo ao ressentimento), por razões diferentes, dar-se-á uma
hipervisibilidade à memória do naufrágio, causando desgastes e gerando polêmicas.
No segundo capítulo desta monografia estudamos a experiência do naufrágio, partindo
da perspectiva da memória traumática. Lembranças das vítimas diretas – pessoas que
sobreviveram ao sinistro – e de pessoas que testemunharam os resgates dos náufragos e que
decidiram narrar o evento no qual, por meio de seu testemunho e narrativa, se inseriram, pois
não é possível testemunhar “de fora”, uma vez que “o testemunho é, via de regra, fruto de uma
contemplação: a testemunha é sempre testemunha ocular”.19
Por último, ainda que não seja menos importante, estudamos, o trabalho artístico
desenvolvido sobre o naufrágio. Analisamos o uso da literatura como forma de representar o
real, o indizível que são as experiências traumáticas do sinistro. Os textos analisados foram: a
literatura de cordel escrita um ano após a tragédia pelo cordelista santanense Francisco Hermes
Colares denominada Incoerência humana; O poema aos mortos, do escritor macapaense Paulo
Tarso Barros, de 1985; e o espetáculo teatral Novo Amapá, trabalho do grupo Supernova, e que
começou a ser apresentado, em Macapá, no ano de 2012.

17 NORA, Pierre. Op. Cit. p. 9.


18 ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos . In: BRESCINI, Stella; e NAXARA, Márcia (orgs).
Memória e (res) sentimentos: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004,
p. 15-36.
19 SELIGMANN-SILVA, Marcio. Op. Cit. p. 82.
14

CAPÍTULO I
A MONUMENTALIZAÇÃO DA TRAGÉDIA E O USO POLÍTICO DOS
RESSENTIMENTOS

1.1. O memorial das vítimas do naufrágio

Nós entendemos a sua postura senador e não temos nada contra. Nossa
preocupação é assegurar que futuramente não venham a remexer nessa
história. É complicado para nós passar por isso.20
Sandra Rocha

Estas palavras são de Sandra Rocha, filha de uma das vítimas que foram a óbito na maior
tragédia da Amazônia brasileira, o naufrágio do barco Novo Amapá. Ela dialoga com o Senador
da República Randolfe Rodrigues.21 A conversa ocorreu em uma reunião do senador com
familiares de pessoas que perderam a vida no naufrágio. No encontro, as famílias pediram para
que não ocorresse remoção dos restos mortais das vítimas que foram enterradas no Cemitério
Municipal de Santana.22 O senador é autor de uma emenda parlamentar que garante a
construção de um monumento23 homenageando as vítimas que morreram na tragédia acima
citada.
O naufrágio do barco Novo Amapá, ocorrido no ano de 1981, é bastante conhecido pelos
moradores da cidade de Santana. Afinal, o barco, que naufragou nas imediações da foz rio
Cajarí, saiu do porto desta cidade. E, quando as vítimas voltaram encaixotadas, com os corpos
já em fase de decomposição, desembarcaram no mesmo porto, aos olhos estarrecidos da
população local.

Finalmente a balsa chegou


Mostrando uma triste visão
E em cima da ribanceira

20 Reportagem extraída do site: http://selesnafes.com/2014/06/memorial-do-novo-amapa-nada-a-ver-com-


remocao-de-corpos-garante-randolfe/ . Importante veículo de informação do Estado do Amapá. A reportagem é
do dia 23 de junho de 2014. Sandra Rocha, professora. Perdeu seu pai na tragédia do Novo Amapá.
21 Em 2014 Randolfh Rodrigues era senador pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) do estado do Amapá.

Atualmente é uma liderança do partido Rede Sustentabilidade (Rede), do mesmo estado.


22 Disponível em: http://selesnafes.com/2014/06/memorial-do-novo-amapa-nada-a-ver-com-remocao-de-corpos-

garante-randolfe/
23 Nas palavras de Le Goff: “O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação [...].

Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra
comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc.; 2) um monumento
funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é part icularmente
valorizada: a morte”. (LE GOFF, Jacques. “Documento/monumento”. In: História e Memória. S/l (Portugal),
Imprensa Nacional – Casa da Moeda. p.536.)
15

Era grande a multidão


Avistava-se de uma ponta a outra
Uma fileira de caixão.24

Francisco Colares escreve esse texto de cordel para tentar “melhor registrar” o que viu.
A cidade parou para aguardar os corpos. Os soldados do Exército também estavam presentes
para dar apoio e levar os cadáveres, que já estavam em decomposição, diretamente para o
cemitério da cidade.
Abaixo apresentamos o mapa da região do rio Cajari, fronteira entre os estados de
Amapá e Pará:

Imagem nº 1: Detalhe do mapa Amazônia legal (Ibge)

Como já ressaltamos, a embarcação naufragada estava a caminho do distrito de Monte


Dourado, onde foi, anos antes, implantado um projeto multinacional de fabricação de celulose,
o Projeto Jari. O empreendimento era propriedade do empresário norte americano Daniel
Ludwig.25 A maioria das vítimas que estavam presentes na embarcação possuía alguma ligação

24 Literatura de cordel escrita por Francisco Hermes Colares, denominada “Incoerência humana”. Colares foi
escritor a morador da cidade de Santana. O texto foi escrito no dia 20 de janeiro de 1981.
25 Segundo os professores Sidney Lobato e Paulo Cambraia, Ludwig inicia seus investimentos no vale do Rio Jari

em 1967 e, em 1978, o empresário instala nas margens deste mesmo rio uma fábrica de celulose, transportada
diretamente do Japão. O distrito de Monte Dourado, no estado do Pará, tornou -se a capital do Projeto de Ludwig.
16

com a empresa – eram funcionários e familiares.26 Segundo jornais de Macapá, mais de 600
pessoas estavam no barco e estima-se que 300 perderam a vida.27
O ano de 2014 começou difícil para as vítimas da tragédia. Ano no qual o naufrágio
completou 33 anos. O telejornal Amapá TV (da TV Amapá, uma filial da Rede Globo de
Comunicações), apresentado diariamente e o mais visto pela população amapaense, divulgou a
notícia que a prefeitura de Santana estava com um projeto de construir um monumento para
homenagear as vítimas do naufrágio. Nas palavras do prefeito da cidade, Robson Rocha 28 ,

o objetivo do memorial é atender duas necessidades, uma, e a principal:


resgatar a memória desse naufrágio, dessa terrível tragédia, e uma outra,
também é nós abrirmos espaço no cemitério de Santana que está superlotado.
O cemitério não tem capacidade mais de receber novos sepultamentos, a não
ser daqueles familiares que já possuem jazido. Então, nossa ideia, nessas cinco
valas comuns, é nos abrirmos espaços para novos sepultamentos [...]. Nós já
temos recursos para a construção desse memorial. Em torno de duzentos e
cinquenta mil reais, que será feito através de concurso público, em que os
restos mortais que estão nesta vala comum serão levados para um local digno,
em que represente o sentimento que foi aquela tragédia.29

As palavras do prefeito da cidade, transmitidas para a população amapaense na hora do


almoço, quando muitos estavam sentados em suas mesas, reunidos em família, definitivamente
não foram bem digeridas. Robson Rocha apresentou dois motivos para a construção do
memorial – este iria “atender duas necessidades”. Os dois motivos eram polêmicos. O primeiro
era tentar “resgatar” a memória desse naufrágio. Será que as vítimas desejavam reviver (pela
via da lembrança) essa tragédia? Pelo que foi observado no relato citado no início deste capítulo,
a resposta é negativa. Com a frase “nossa preocupação é assegurar que futuramente não
venham a remexer nessa história”, Sandra Rocha deixa claro que não queria remexer na
memória do naufrágio. Não desejava reviver o trauma. Um trauma coletivo. Sandra
representava o grupo de pessoas que passou pela experiência do naufrágio, não somente as
vítimas que sobreviveram à tragédia, mas as pessoas que viram e que, assim como ela, tiveram

(CAMBRAIA Paulo; LOBATO Sidney. Rios de História: ensaios de história do Amapá e da Amazônia. Rio de
Janeiro: Multifoco, 2013. p. 111,112)
26 Sobre a memória dos funcionários da Jari, ver: PACHECO, D. M. S. O naufrágio do barco Novo Amapá nas

reminiscências pessoais. IX semana de história, o ensaio e a pesquisa de história no Amapá. Persp ectivas e
desafios. Disponível em: http://www2.unifap.br/historia/files/2014/02/DANILOPA CHECO.pdf
27 Edgar Rodrigues. Tragédia do Novo Amapá completa 30 anos. Correio do Amapá. De 06 de janeiro de 2011.
28 Robson Rocha é o atual prefeito do município de Santana, estado do Amapá. Assumiu a prefeitura em 2013 pelo

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Substituindo o prefeito Antônio Nogueira do Partido dos trabalhadores (PT).
29 Entrevista cedida pelo prefeito de Santana Robson Rocha ao Telejornal Amapá TV, no dia 6 de Janeiro de 2014.
17

perdas humanas. Ficou, como afirma Marcio Seligmann-Silva, “uma ferida na memória”.30
Este autor afirma que,

o trauma para Freud é caracterizado pela incapacidade de recepção de um


evento transbordante – ou seja, como no caso do sublime: trata-se aqui,
também, da incapacidade de recepção de um evento que vai além dos “limites”
de nossa percepção e torna-se para nós algo sem-forma. Essa vivência leva
posteriormente a uma compulsão à repetição da cena traumática. 31

Nesse sentido, podemos pensar que o naufrágio é um evento que vai além dos limites
da percepção. Para as vítimas é difícil de reviver essa “cena traumática”. Então, por que
monumentalizar essa tragédia, tornando o monumento um lugar consagrado à memória
traumática? Erica Resende, ao estudar os traumas decorrentes do atentado terrorista do 11 de
setembro, ocorrido nos Estados Unidos em 2001, afirma que:

o trauma se insere na experiência do reconhecimento de nossa mortalidade. A


vida somente se torna suportável se aderirmos a uma espécie de pacto não
escrito, sobretudo na cultura ocidental, de voluntário de nossa condição
precária. Pelo trauma lembramos, dolorosa e subitamente, que tal pacto é, na
verdade, fútil e impossível. Somos mortais e vulneráveis, e a noção da
segurança total não passa de um artifício ao qual recorremos para nos
iludirmos de que podemos escapar da morte 32 .

O atentado mostrou para os norte-americanos que eles não estão totalmente seguros.
Mostra que eles também são vulneráveis. De forma traumática, o 11 de setembro
monumentalizou-se na memória de quem vive nos Estados Unidos da América, evidenciando
que eles são mortais. A experiência traumática eternizou-se. Percebeu-se, nas semanas
seguintes ao atentado terrorista, o aumento dos casos de insônia, de ansiedade, de
hiperatividade, de arritmia cardíaca, de pânico, entre outros sintomas que apontavam para um
diagnóstico de transtorno por estresse pós-traumático. No Amapá, a experiência do naufrágio
evidenciou a vulnerabilidade de navegar nos barcos amazônicos. Mostrou o descaso de grandes
empreendimentos privados e do poder público pela segurança das pessoas que habitam a região.
O segundo motivo para a criação do monumento, segundo Robson, era de abrir espaço,
pois o cemitério santanense estava superlotado. Essa justificativa caiu como uma bomba nos
ouvidos dos sobreviventes e de familiares das vítimas em geral. O sentimento de ser
desrespeitado irrompeu novamente. O mesmo sentimento que estava presente no momento em

30 SELIGMANN-SILVA, Marcio. Op. Cit. p. 84.


31 Ibidem.p.84
32 RESENDE, Erica Simone Almeida. Aporia e trauma na crise de significados do Onze de Setembro. Contexto

internacional. Rio de Janeiro, vol. 32, no 1, janeiro/junho 2010, p. 225.


18

que os cadáveres de seus entes queridos foram jogados nas valas do cemitério de Santana,
enterrados sem identificação e sem cerimônia. “Como os corpos estavam putrefatos, a
secretaria de saúde do território determinou o enterro em valas comuns e não permitiu que as
urnas funerárias fossem abertas para o reconhecimento”33 , afirmou o Jornal do dia em edição
de 6 de janeiro de 2001. Revoltada, Sandra Rocha, expôs, em rede social, o seu sentimento:

depois de não ter tido o tratamento digno, sendo enterrados como indigentes,
agora depois de 33 anos, sem nenhum respeito com seus familiares, a prefeitura
de Santana quer economizar lugar no cemitério para enterrar novos mortos,
retirando as vítimas do maior acidente fluvial do Brasil com um discurso de
construir um memorial.34

O maior motivo da revolta de Sandra foi a possiblidade de retirarem os restos mortais


de seu pai, enterrado naquele cemitério, para leva-los a outro lugar. Nas covas feitas no
cemitério do município de Santana para receber as vítimas do Naufrágio foram enterrados 333
corpos. Muitos não puderam ser identificados. Abaixo uma importante imagem que marca a
memória da tragédia.

Imagem nº 2: Vala construída no Cemitério de Santana (Acervo pessoal de Railan Morais).

33 Janderson Cantanhede. Lembrança! Jornal do dia. De 06 de janeiro de 2001.


34 Texto exposto no Facebook , rede social, no dia 20 de janeiro de 2014, as 13:35h.
19

Esta é a imagem de uma das valas cavadas no Cemitério de Santana para receber os
cadáveres. Por meio dela é possível constatar que tudo foi sendo realizado aos olhos dos
munícipes em geral e dos familiares em particular. Cinco covas semelhantes a essa foram feitas
no local. Observa-se que os corpos foram encaixotados e depois enterrados. As caixas foram
doadas por uma empresa de celulose localizada no mesmo município, denominada Amapá
Florestal e Celulose (Amcel).
O principal motivo para a criação do monumento, que foi denunciado por Sandra Rocha,
fica esclarecido em entrevista cedida pelo prefeito ao G1 Amapá. Afirma o jornal:

A desocupação das valas comuns onde há centenas de corpos de vítimas do


naufrágio está relacionada à reivindicação da população que, segundo o
prefeito é obrigada a sepultar familiares no cemitério da capital por causa da
superlotação do cemitério santanense.35

Nas palavras do prefeito, “a ideia é angariarmos espaços para que a comunidade possa
enterrar seus entes queridos, sem afetar a memória das vítimas do naufrágio”. Na mesma
coletiva, Robson Rocha chegou a falar que o monumento poderia ser edificado dentro do
cemitério ou na orla da cidade. Falar sobre a tragédia já era suficiente para que as vítimas
revivessem o trauma. Cogitar a possibilidade de desenterrar os restos mortais levou a várias
demonstrações de repúdio. O munícipe Dalton Pacheco também expôs esse sentimento ao
público: “Rejeição! Familiares não querem memorial dos mortos no naufrágio do Novo Amapá, como
pretende Robson Rocha. Porque ato de remoção de restos mortais, além de desrespeitoso, vai mexer
sentimentos 33 anos depois da tragédia”.36 Nota-se no relato de Dalton forte recusa à construção de um
monumento.
Parte das vítimas da tragédia, que estavam acompanhando a discussão sobre o
monumento, posicionara-se contrária à criação do memorial e principalmente à remoção dos
corpos. Mas, também, houve pessoas que viram no monumento uma grande oportunidade para
homenagear os mortos, pois, as valas cavadas para enterrar os corpos, junto com um pequeno
memorial próximo a elas – que possui a lista de alguns nomes de mortos na tragédia – são o
único símbolo, concreto, que se tem do sinistro. É o que afirma o sobrevivente Claudio Lima
da Silva, que atualmente possui 48 anos. A vítima, em entrevista fornecida ao jornal Diário do
Amapá37 , comenta que o proprietário da embarcação, que morreu no naufrágio, era seu pai de

35 G1, Amapá, 23 de janeiro de 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2014/01/obra-de-


memorial-para-vit imas-do-novo-amapa-sera-in iciada-em-agosto.html. Acesso em: 10 de julho de 2016.
36 Dalton Pacheco, 36 anos. Reside na cidade se Santana. Depoimento exposto no Facebook , rede social, em 8 de

janeiro de 2014, às 20:30h.


37 Memorial para as vítimas do novo amapá é motivo de polemica. Diário do Amapá. De 05 de junho de 2014.
20

criação. E afirma: “O memorial além de servir de morada para as vítimas, inclusive para meu
querido pai de criação, vai também acabar se transformando em um ponto turístico”. No
decorrer de sua narrativa, Claudio disse acreditar que esse seria um lugar digno.
A criação de monumentos que rememoram tragédias muitas vezes é acompanhada por
discussões e polaridades. A rejeição ou aceitação de tentativas de monumentalizar uma
memória depende muito do que se deseja lembrar e do momento em que se pretende irromper
determinada memória. Michael Pollak, no artigo “Memória, esquecimento e Silencio”, expõe
um exemplo de disputa da memória coletiva. Este sociólogo analisa a história de dois
momentos fortes do processo de desestalinização na antiga União Soviética. O primeiro,
ocorrido após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, foi quando Nikita
Kruschev denunciou, pela primeira vez, os crimes cometidos por Josef Stalin. O mito histórico
dominante do “Stalin pai dos pobres” foi arranhado. A reviravolta na visão histórica,
indissociavelmente ligada à linha política, traduziu-se na destruição progressiva dos signos e
símbolos que lembravam Stalin na União Soviética e nos países satélites, e, finalmente resultou
na retirada dos despojos de Stalin do mausoléu da praça vermelha. Mas, com o fim da era
Kruschevista cessaram as tentações da revisão da memória coletiva. Assim, essa primeira
destalinização não conseguiu se impor plenamente. Todavia, cerca de 30 anos mais tarde, essa
preocupação voltou a emergir no quadro da Glasnost e da Perestroika.38 Nas palavras de Pollak:

mas, ao contrário dos anos 1950, essa nova abertura logo gerou um movimento
intelectual com a reabilitação de alguns dissidentes atuais e, de maneira
póstuma, de dirigentes que nos anos 1930 e 1940 haviam sido vítimas do terror
estalinista. Esse sopro de liberdade de crítica despertou traumatismos
profundamente ancorados que ganharam forma num movimento popular que
se organiza em torno do projeto de construção de um monumento à memória
das vítimas do estalinismo.39

Retomamos, por meio do estudo de Pollak, as discussões que giraram em torno da


memória de Stalin, e das vítimas de sua ação, para entender as diferentes trajetórias percorridas
pelo lembrar, de acordo com as peculiaridades de cada evento. As vítimas dos crimes cometidos
pelo estalinismo pretendiam reviver os traumas, mas como forma de irromper sentimentos
acumulados no tempo em que a memória de dominação e sofrimento eram proibidas de se

38 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC-FGV, v. 2,
n. 3, 1989, p. 3-15.
39 Ibidem, p. 5.
21

exprimir publicamente. Esperou-se o momento oportuno para romper o tabu. Iniciou-se,


portanto, o movimento popular para a construção de um monumento à memória das vítimas.

No caso do naufrágio do barco Novo Amapá, parte dos que perderam familiares na
tragédia, vítimas do descaso e da imprudência, não pretenderam reviver esse trauma. Houve
uma rejeição à monumentalização da tragédia e, principalmente, à ideia de retirar os restos
mortais dos lugares onde foram enterrados. O campo da memória dos sobreviventes encontra-
se divido quando da criação do memorial. “Uma memória dividida”, como versou Alessandro
Portelli40 .

É importante ressaltar que no ano de 2002, durante o mandato do prefeito Rosemiro


Rocha Freires, pai do atual prefeito do município de Santana, Robson Rocha, foi sancionada a
Lei nº 570, que criou um monumento em homenagem aos mortos do naufrágio. Esse
monumento é um pequeno memorial, que fica bem próximo às valas que foram cavadas para o
enterro das vítimas. E, diferentemente do projeto realizado em 2014 (durante o governo do filho
de Rosemiro), o projeto de 2002 visou em seu artigo 2º “registrar o nome completo das vítimas
e as respectivas datas de nascimento”.41 O projeto também previa um local destinado à oração
dos familiares e colocação de adornos, dentro do cemitério. No mesmo ano foi construído esse
pequeno memorial.

Observa-se, que, no caso das vítimas do estalinismo há uma disputa política entre a
memória oficial, nacional, e a memória das vítimas (subalterna). Essa polaridade política
também esteve presente nos primeiros anos após a tragédia do Novo Amapá, onde igualmente
se observará uma hipervisibilidade da memória traumática do naufrágio.

1.2. O uso político das lembranças traumáticas e dos ressentimentos.

Mortos não são presuntos


Perplexa e comovida com a tragédia, a população de Macapá viveu, mesmo
muitos dias após o enterro dos mortos, momento de intensa revolta pelo
descaso com que as autoridades do território trataram o caso, a principal
reclamação foi contra o descaso na prestação de socorro às vítimas que, entre

40 PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944)”: mito, política
e senso comum. Op. Cit. p.127.
41 Projeto de lei nº 570/2002-PMS de 10 de Janeiro de 2002.
22

outras coisas, impossibilitou que as famílias atingidas prestassem as últimas


homenagens aos parentes desaparecidos.42

Este é um trecho de um texto que saiu no Jornal do dia, em 6 de janeiro de 2001. Essa
edição, mesmo 20 anos após o sinistro, expressou o sentimento da população amapaense nos
anos que seguiram a tragédia do naufrágio do barco Novo Amapá. O texto utilizado pelo jornal
foi retirado do livro Morte nas Águas, publicado em 1982 por João Alberto Capiberibe. A ferida
na memória era muito ressente, houve um ressentimento coletivo. As vítimas pediam por
justiça. Pierre Ansart, ao analisar os ressentimentos, afirma: “É preciso considerar os rancores,
as invejas, os desejos de vingança e os fantasmas da morte, pois são exatamente estes os
sentimentos e representações designados pelo ressentimento”.43 Os rancores, as magoas da
população, o trauma fortemente presente dias após o naufrágio, acabaram se tornando um
importante objeto de uso político. Este era o cenário conflituoso de duas influentes
personalidades do período do naufrágio, João Alberto Capiberibe e o então governador Annibal
Barcelos.

João Alberto Capiberibe foi governador do estado do Amapá entre os anos de 1995 e
2002 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). No ano de 1981, quando o Amapá ainda era
Território Federal, Capiberibe fazia forte oposição ao governo de Annibal Barcellos. Este que
assumiu o poder, pela primeira vez, por indicação do presidente do Brasil, em 197944 . Em 1982,
um ano após a tragédia, Alberto Capiberibe lançou o já citado livro Morte nas Águas, a tragédia
do rio Cajari. No texto, Capiberibe traz várias denúncias e aponta culpados da tragédia, além
de apresentar vários relatos de sobreviventes e de pessoas que aí perderam familiares.
Capiberibe, assim, assumiu o papel de porta-voz dos traumatizados pelo evento trágico e
tornou-se um fomentador de ressentimentos nas vítimas, muitas das quais passaram a lhe
devotar apoio e simpatia. Em edição da revista Veja de 06 de janeiro de 1989, Capiberibe é
citado:

42 Janderson Cantanhede. Lembrança! Jornal do dia. 06 de janeiro de 2001.


43 ANSART, Pierre. Op. Cit. p. 15.
44 Annibal Barcellos governou o Amapá de 1979 a 1985, últimos anos do território federal, e de 1991 a 1995, neste

segundo mandato o Amapá já havia sido elevado à categoria de estado pela promulgação da constituição brasileira
de 1988. Posteriormente, ocupou outros cargos políticos no mesmo estado: prefeito e vereador na capital Macapá.
Também oficial da marinha, o militar era natural do Campos dos Goytacazes, município localizado ao norte do
estado do Rio de Janeiro. Faleceu no estado do Amapá em 14 de agosto de 2011.
23

A culpa é da Companhia dos portos, que liberou o Novo Amapá através


do despachante Manoel Nazaré Colares”, afirma o prefeito de Macapá,
João Alberto Capiberibe, que escreveu um livro sobre o acidente,
tragédia nas aguas. A impunidade dos responsáveis, Capiberibe atribuiu
ao então governador nomeado do Território do Amapá, Annibal
Barcellos, hoje deputado federal. “Ao contrário do que está fazendo o
governador do Rio de Janeiro, Moreira Franco, no caso do naufrágio do
Bateau Mouche IV, Annibal Barcelos não incentivou a abertura do
inquérito policial civil”, diz Capiberibe. 45

Capiberibe aponta a Companhia dos Portos como a principal culpada pelo ocorrido, e
critica Barcellos por não esforçar-se para punir os responsáveis, fazendo uma comparação com
outra tragédia, a do Bateau Mouche IV, naufrágio que em 31 de dezembro de 1998 levou 55
pessoas a óbito no réveillon de Copacabana, no Rio de Janeiro. No caso, o governador do Rio
de Janeiro esforçou-se para garantir a punição dos culpados, conforme relatou o então prefeito
de Macapá, João Capiberibe, que, oportunamente, acabou se tornando um liderança desse
ressentimento coletivo. Ansart refere-se ao apelo a ressentimentos como um verdadeiro
manancial para líderes políticos interessados em mobilizar eleitores a seu favor.46 Essa prática
fica evidenciada na atuação de Capiberibe em defesa das vítimas do naufrágio. Ao avaliar o
apoio a elas, ele novamente descreve um governo territorial inoperante.

Embora tenham sido feitas muitas promessas de assistência as vítimas aos


parentes dos mortos, a verdade é que, salvo a ajuda da igreja – que ainda hoje
se faz sentir – pouco ou quase nada foi realizado em benefício direto dos
atingidos. Como consolo final, ressalto a promessa do governador do território
de que mandaria construir um monumento, no cemitério de Santana, que
perpetuasse a memória das vítimas do sinistro ocorrido com o “Novo
Amapá.” 47

Nota-se que o único apoio ressaltado é o da Igreja. O autor de Morte nas Águas não cita
nenhuma ajuda do governo do território e limita o apoio a uma promessa de monumento. Mais
uma vez a sensação que se tem, ao se ler o texto, é que o estado estava totalmente de “braços
cruzados”, agindo como se nada de grave tivesse acontecido. E a construção do monumento
seria um mero consolo. Salienta-se que não há registro da criação desse monumento. Somente
em 2002 foi que houve um projeto de lei da prefeitura de Santana para a criação de um
memorial, que já foi citado neste trabalho. Abaixo, segue a imagem da capa e da contracapa do
livro Morte nas aguas, a tragédia do Cajari.

45 Esquife flutuante. Veja. De 18 de Janeiro de 1989, p. 21.


46 ANSART. Op. Cit. p. 27.
47 CAPIBERIBE, Alberto. Morte nas águas: a tragédia do Cajarí. 2ª Ed. Recife: Editora independente, 1982. p.

23.
24

Imagem nº 3: Capa do livro Morte nas águas: a tragédia do Cajarí.

A capa da segunda edição do livro de Capiberibe é a mesma da primeira. São imagens


fortes. A primeira delas registra a saída do barco, quando se percebe que está muito acima de
sua lotação. As pessoas estão sentadas em partes proibidas, como o corrimão e as janelas. O
que confirma a falta de fiscalização. Já a segunda é o desfecho da imprudência: várias pessoas
mortas, amontoadas na beira do rio. A contracapa apresenta imagens de pessoas chorando
perdas humanas, e a chegada de embarcações no porto de Santana com as caixas contendo os
cadáveres. Entretanto, pretendo ressaltar o relato presente nessa parte livro, quando Capiberibe
utiliza uma narrativa bastante repetida nas entrevistas de pessoas que viveram a tragédia, a
analogia feita com jangadas. E ressalta, “por que não tinha condução para traze-los”. Mais
uma vez formou-se uma crítica direcionada aos responsáveis por auxiliar as vítimas, pois o
leitor atento a esse relato, vai questionar atuação do poder público nesse momento. Houve apoio
para a retirada dos corpos do local do sinistro? O texto da contracapa não esclarece.
Para Pierre Ansart, “a referência aos ressentimentos e insatisfações constitui, assim, um
fundo, um capital indefinido de argumentos no interior do campo político”. 48 Capiberibe
representava, num momento em que a população amapaense respirava os últimos anos do
período militar, uma opção democrática, onde os seus anseios e ressentimentos teriam voz.
Pensa-se no que Ansart chama de uma “gestão dos ressentimentos”, representada no caso
enfocado por Capiberibe. Ainda segundo Ansart, “o regime democrático é, na verdade, o
regime que contrariamente aos regimes autoritários ou absolutistas, possui a vocação de ouvir

48 ANSART. Op. Cit. p. 15.


25

os ecos do ressentimento”.49 Na medida em que João Alberdo se demonstrava alguém disposto


a dar resposta às reivindicações dos sobreviventes, ganhava popularidade. Enquanto o governo
territorial, representado por Barcellos, perdia progressivamente suas forças.
Outra denúncia presente no livro Morte nas Aguas é referente a um recurso liberado
pelo governo federal:

Onde estão os 25 milhões? Meses após o naufrágio do barco “Novo Amapá”


o governo federal liberou uma verba especial, no valor de Cr$ 25 milhões de
cruzeiros, destinada especificamente, para atendimento às despesas
decorrentes do naufrágio e ajuda aos sobreviventes e familiares das vítimas.
Além disso essa verba, entregue ao governo Territorial, deveria ser aplicada
na compra de uma embarcação de pequeno porte, veloz, capaz de prestar
socorro com rapidez em caso de outra tragédia semelhante a do “Novo
Amapá”.50

Capiberibe questionou o emprego de Cr$ 25 milhões de cruzeiros, pois não via na


prática investimentos satisfatórios serem realizados. O que ele sabia, e que também expôs no
seu livro, é que desses “25 milhões de cruzeiros só se tem notícias de aplicação de 3,5 milhões
utilizados na aquisição de pregos, algodão, zarcão, óleo de linhaça... e outros produtos”
usados para recuperar as embarcações que participaram do resgate das vítimas da tragédia. 51
Segundo ele, as quantidades de material adquiridas excediam realmente as necessárias para o
serviço. Material que foi comprado sem licitação. As denúncias eram muitas, e o prestigio do
governo territorial estava realmente debilitado. A população de várias formas procurava
expressar seus ressentimentos, que eram excitados pelas diversas denúncias. Nos muros da
cidade apareceu a expressão “mortos não são presuntos”. De fato, embasados nas teorias de
práticas e representações de Roger Chartier52 , somos levados a pensar o livro de Capiberibe
como uma representação de um governo que pouco ou nada fez para apoiar as vítimas do
naufrágio. Assim, fomentou-se no período, a partir dessas leituras, que passaram a fazer parte
das representações coletivas, práticas de repúdio ao governador Annibal Barcellos.
Os traumas da população, as memórias dos momentos de terror vividos na foz do Rio
Cajarí, ainda estão presentes em jornais amapaenses, mesmo que na atualidade, exista um
esforço para esquecer essa experiência, como observamos na forte rejeição dos familiares
quando se falou em criar o monumento. Muitos se questionam sobre o porquê de se tentar

49 Ibidem. p. 28.
50 CAPIBERIBE. Op. Cit. p. 23-24.
51 Ibidem. p. 23.
52 CHARTIER, Roger. A História Cultural ⎯ entre práticas e representações, Lisboa: DIFEL, 1990.
26

“remexer nessa história”. Não se desejava eternizar a tragédia num monumento. Muito menos
mexer nos restos mortais dos familiares. Essa memória que já foi revirada quando usada como
estratégia política nos anos que seguiram o naufrágio. Tentou-se fortalecer os ressentimentos
na intenção de hostilizar o governo territorial. Falou-se do pouco apoio as vítimas, das verbas
enviadas para seres utilizadas na despesa do naufrágio e para ajudar os afetados pela tragédia.
Dinheiro que, na opinião de Capiberibe, pouco se viu. Agora as vítimas e familiares querem
esquecer esse trauma. Difícil não lembrar das palavras de Jacques Le Goff quando afirma, que
“a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento um objeto de
poder”.53 Manipulável, e de interesse político.

53 LE GOFF, Jacques. Op. Cit. p. 477.


27

CAPITULO II

NARRAR O TRAUMA: REMINISCÊNCIAS PESSOAIS DO NAUFRÁGIO DO


BARCO NOVO AMAPÁ

2.1. Experiência traumática

Vou te dizer com toda sinceridade, até hoje eu me sinto culpada. Porque eu
tinha entrado primeiro. Ela me esperou, eu saí e ela entrou. Quando ela entrou
o barco naufragou. E foi uma coisa rápida que não deu nem pra bater na porta,
a água foi me levando. Até hoje a única coisa desse naufrágio que me doe
muito é essa cena. Que eu não consigo esquecer. Essa uma mesmo. De eu não
poder fazer nada pela minha amiga.
Nizete Silva

Este é um trecho do relato de Nizete Nazaré Nascimento Silva, sobrevivente do


naufrágio do barco Novo Amapá, que reside no município de Santana. Nesta entrevista, a vítima,
demonstrava dificuldades para transformar suas lembranças em linguagem. A experiência era
difícil de narrar. A ferida na memória não fora cicatrizada. Entende-se por experiência o que
Reinhart Koselleck chama de o passado atual, aquele no qual os acontecimentos foram
incorporados e podem ser lembrados.54 Nizete narra o exato momento em que o barco virou.
Estava com sua amiga, Ieda Souza, que não resistiu ao acidente. Ieda ficou presa no banheiro
da embarcação. No dia seguinte ao naufrágio ela foi retirada sem vida do local pelos braços de
seu pai, Levindo de Melo Souza. Testemunhar o real, quando muitos morreram durante a
experiência traumática, é um trabalho difícil. Por isso Marcio Seligmann-Silva afirma:

Aquele que testemunhou sobreviveu – de modo incompreensível – à morte:


ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente
é aquele que reencena a criação da língua. Nele a morte – o indizível por
excelência, que a toda hora tentamos dizer – recebe novamente o cetro e o
império sobre a linguagem. O simbólico e o real são recriados na sua relação
de mútua fertilização e exclusão.55

O indizível, as cenas traumáticas e a experiência de estar bem próximo da morte e


sobreviver de modo incompreensível tornaram a narrativa de Nizete um trabalho árduo,

54 KOSELLECK, Reinhart. Espaço de experiência e Horizonte de expectativa: duas categorias históricas. In:
Futuro Passado. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio/Contratempo, 2006, p. 309.
55 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: a literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA,

Márcio. (org.) História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp,
2003, p. 52.
28

laborioso. Houve momentos do naufrágio em que Nizete acreditou piamente que ali era a hora
de sua morte.

Quando o barco naufragou, eu fui pro porão, como eu já falei. Era


aproximadamente umas oito e meia da noite. E quando foi umas duas e meia
da manhã, foi que fui tirada. Porque nós que estávamos no porão, estávamos
só esperando a morte. Nós estávamos esperando só pra morrer mesmo, só o
momento de morrer. Nós pensávamos, pelo menos eu pensava, que nós
estávamos no fundo do mar, no fundo mesmo, quando passou um determinado
tempo nós ouvimos bater assim água, aí o pessoal nos achou. E começamos a
bater, quando nós batemos, acho que o pessoal de fora viram e que
conseguiram abrir um buraco para nós saímos de lá.

Quando o barco virou, a sobrevivente foi rapidamente levada para o porão, onde ela
ficou presa com outras vítimas, passando horas de intensa angustia motivada pela iminente
possibilidade da morte. Uma vivência extremamente intensa. Erica Resende, ainda sobre a
aporia do 11 de setembro, versa sobre um paradoxo presente no trauma. Ele é sentido, mas não
necessariamente vivido. É refratário à linguagem, mas exige ser comunicado, não admite ser
incorporando a normalidade, mas insiste em se perpetuar na memória. O trauma requer ser
esquecido, mas é sempre lembrado.56 Nizete sentiu-se impotente ao tentar ajudar a amiga que
ficou presa no banheiro do barco. Cena que ela não consegue esquecer, e que insiste em
permanecer na sua memória. Essa característica observada no relato da sobrevivente é
determinante para inibir o narrar, o sentimento de culpa pelo acontecimento. Mas, ela sente que
poderia ter feito algo mais. Sobre este sentimento, Seligmann-Silva, ao abordar as narrativas
traumáticas, principalmente a de pessoas que sobreviveram a experiências como o Holocausto,
afirma que:

O sobrevivente vive o sentimento paradoxal da culpa da sobrevivência. A


situação radicalmente outra, na qual todos deveriam morrer, constitui sua
origem negativa [...]. Este sentimento comum mora no próprio sobrevivente e
o tortura, gerando uma visão cindida da realidade 57 .

O testemunho visa a integração do passado traumático, a integração só pode ser


conquistada contra o negacionismo.58 Este negacionismo é aqui entendido como o negar o
passado traumático, o ato de tentar esquecer essas experiências que continuamente trazem dor
ao presente do sobrevivente. No caso do Holocausto, a culpa recai como sentimento de

56 RESENDE. Op. Cit. P. 222.


57 SELIGMANN-SILVA, Marcio. Narrar o trauma: A questão dos Testemunhos de catástrofes históricas. Psic.
Clin. Rio de janeiro, 2008. p. 75.
58 PIRALIAN, H. Genocidio y transmisión. México/Buenos Aires: Fondo de Cultura.2000.
29

sobreviver a uma experiência em que todos deveriam morrer. Quando chegamos à casa de
Nizete para conversarmos sobre o naufrágio, ela nos acolheu, pediu-me para sentar e disse com
um olhar fixo: “Olha, é muito difícil para mim falar sobre isso. Vocês são as primeiras pessoas
que eu me abro para conversar sobre o caso”. Ali percebi que a ferida na memória não havia
cicatrizado. E o passando estava fortemente presente.
Marcio Seligamann-Silva, observando os escritos do romancista francês Georges Perec,
salienta a necessidade de narrar, apresentando o testemunho como condição de sobrevivencia.
Talvez, Nizete tenha sentido, no momento em que decidiu expressar sua experiencia e seus
sentimentos, a necessidade do testemunho. Primo Levi, escritor italiano, sobrevivente do campo
de concentração de Auschwitz-Birkenau, expressa essa necessidade: “A necessidade de contar
‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da
libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras
necessidades elementares”.59 Contar suas experiências, encontrar escuta para seus traumas é
condição necessária para continuar a viver, segundo Levi.
O testemunho é visto como uma necessidade elementar. Seligamann-Silva afirma que
essas imagens – de vivências duramente ocorridas no campo de concentração – se inscrevem
como queimadura na memória do sobrevivente, na medida em que vão sendo traduzidas para
“os outros”, permitem que o sobrevivente reinicie seu trabalho de religamento com mundo.
“Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de
renascer”.60 Em outro trabalho denominado “A História como trauma”, o mesmo autor
caracteriza o narrar como “uma fuga para o presente”, onde se busca através do testemunho a
libertação da cena traumática.61
Entre as vítimas do naufrágio do Novo Amapá, percebeu-se que as pessoas que
sobreviveram à tragédia e tiveram perdas humanas foram as que mais apresentaram dificuldade
para narrar. Em algumas o sentimento de culpa era associado a essas perdas. As vítimas se
culparam por não conseguir proteger seus acompanhantes. O fato de perder uma pessoa querida
tornou ainda mais difícil recordar as cenas traumáticas como foi observado em Nizete Silva.
Analisaremos agora o relato de Raimundo dos Santos Amaral. No período em que
ocorreu a tragédia ele era encarregado de serviços da empresa Jari Florestal e viajava sem
companhia, pois sua esposa, ao ver a embarcação, decidiu não ir à Monte Dourado naquele

59 LEVI, Primo. É isto um homem. Rio de Janeiro: Rocco,1988, p.7-8.


60 SELIGMANN-SILVA, Marcio. Narrar o trauma: A questão dos Testemunhos de catástrofes históricas. Op. Cit.
p. 66.
61 SELIGMANN-SILVA, Marcio. A História como trauma. Op. Cit. p. 90.
30

momento. Raimundo relata a conversa que teve com ela antes de partir: “Ela percebeu, sentiu
um negócio esquisito e disse: ‘Olha meu amor eu não vou nesse barco. Você vai’. Porque eu
precisava me apresentar na segunda-feira, isso foi no sábado. ‘Eu fico e na outra viagem eu
vou’, ela disse”. Dessa maneira, o restante de sua família também ficou em Santana. Abaixo,
destacamos um trecho do relato de Raimundo sobre sua experiência de busca pela sobrevivência
na momento do naufrágio:

De repente eu ouvi um estrondo como que se o barco tivesse batido em outro


barco e levantei a cabeça. Me acordei com aquilo ali, e o barco já estava
virando. Foi tão rápido que não deu tempo de eu pular, eu tive que segurar lá
na rede, aí eu me segurei na rede e o barco foi virando só “duma” e “boom”,
foi pro fundo. O barco virou. Virou mesmo de casco pra cima. Aí eu me
segurei, de repente quando eu tô lá no fundo, uma pessoa vem e me agarra no
pescoço, e eu segurei essa pessoa, até hoje me lembro era uma... Fiquei até
com pena, era uma senhora. Eu tive que quebrar o dedo dessa pessoa pra ela
me soltar, porque ela estava me engasgando no fundo, aí eu levei a mão,
peguei na roupa dessa senhora e tentei tirar e vi que envergou, estralou o dedo
dela, aí eu peguei ela e passei pra minha frente [...] essa senhora de 80 anos[...].
Ela quase morreu, ela estava afundando, peguei ela pelo cabelo e puxei.
Dobrei ela de peito pra cima e saí nadando, levando ela no carote, quando
chegou na beira.

O relato de Raimundo é representativo na medida em que sua experiência é parecida


com a de pessoas que saíram com vida da tragédia. Porém, sua narrativa torna-se peculiar na
medida em que é estruturada a partir de sua percepção atual do momento pretérito. Dos cinco
sobreviventes que entrevistamos em 2012, todos narram esse instante, quando o barco virou e
se iniciou a busca pela sobrevivência. Várias pessoas ainda conseguiram salvar os que se
debatiam e não sabiam nadar. Estes foram levados para a beira do rio para esperar os primeiros
socorros, que demoraram a chegar. Os mortos foram amarrados na beira do rio, para não serem
levados pela correnteza.

2.2. Narrar é interpretar

Neste momento, faço uma reflexão sobre a subjetividade presente nas narrativas de
quem não estava no barco Novo Amapá, mas teve a experiência de viver o momento pós-
naufrágio. Os relatos analisados são os do então bispo de Macapá Dom José Maritano, que logo
quando soube do ocorrido, passou a acompanhar os acontecimentos decorrentes da tragédia.
No dia 9 de janeiro, dois dias após o ocorrido, o bispo, junto com o governador do
Território Federal do Amapá, Barcellos, sobrevoou o local do desastre. As imagens, ele
31

classificou como um “espetáculo terrificante”. E descreveu: “Os corpos – dois montes na


margem do rio – com os braços erguidos, como que na tentativa de encontrar ainda um fio de
vida, morreram naquela atitude”.62 Observa-se que Maritano não narra somente a imagem que
viu junto com o governador. Ele vai além, ele insere a sua percepção, interpretação do fato. O
bispo viu nos braços erguidos dos sobreviventes a tentativa de ainda encontrar vida.
O historiador italiano Alessandro Portelli afirma que recordar e contar já é interpretar.
Para ele, a subjetividade é o trabalho através do qual as pessoas constroem e atribuem
significado à própria experiência. Assim, a percepção do governador do Território quando, ao
lado de Maritano, avistou a mesma cena, deve ter sido diferente daquela do epíscopo. As
subjetividades fazem com que as pessoas tenham formas peculiares de representar o passado.
Um mesmo acontecimento pode ganhar vários significados. Depende de quem o observa. Essa
é uma das grandes contribuições da história oral para a historiografia. Possibilitar a emergência
de diferentes concepções de um passado.
Portelli, por exemplo, analisa os escritos de Frederick Douglas, um ex-escravo que
nasceu em Maryland em 1817, e fugiu com a idade de vinte anos. Douglas, se tornou um orador
bastante solicitado para narrar suas experiências da escravidão. Era visto como um testemunho
vivo desse período. Mas, para tentar tornar seus discursos mais convincentes, os dirigentes do
movimento abolicionista pediam para que ele se limitasse à dimensão objetiva, concreta e
factual: “Dá-nos os fatos”, lhes diziam, “e deixe que nós filosofemos”. Nas narrativas, Frederik
Douglas falava sobre o senhor James Hopkins, responsável pela vigilância de escravos. O ex-
escravo afirmava que Hopkins era diferente, era um bom homem “embora, por vezes, agitasse
o chicote, era evidente que não o fazia por gosto, mas sim com muito asco”. Douglas, procurava
interpretar os fatos e transformava em linguagem todo o seu sentimento. Então surge o
questionamento sobre em que medida a narrativa do ex-escravo se tornaria representativa para
a História. Portelli, afirma que a palavra chave é possibilidade: “Qualquer sujeito percebe estas
possibilidades a sua maneira, e se orienta de modo diferente em relação a elas. Mas esta
miríade de diferenças individuais nada mais faz do que lembrar-nos que a sociedade não é uma
rede geometricamente uniforme”.63
Voltamos a narrativa de Maritano... Quando os sobreviventes chegaram ao Porto de
Santana, o bispo estava presente. Era quinta-feira, dia 8. A população já estava à espera de
amigos e familiares. Então houve outro momento que ficou marcado na memória do religioso.

62MARITANO, José apud CAPIBERIBE, João. Op. Cit. P. 56.


63PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos : Narração, interpretação e significado nas memorias e nas fontes
orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°. 2, 1996. p. 9.
32

O que a gente sentia nas lágrimas dos sobreviventes era sim, alegria de estar
vivo e a profunda tristeza naqueles que não encontravam mais as pessoas que
tinham tentado salvar e não conseguiram. Muitos tinham perdido parentes que
morreram praticamente lado a lado, enfim, havia algo que marcava as feições
de muitos deles e que talvez continua uma marca difícil de apagar na vida.64

O bispo registra em sua memória frustrações, tristezas de pessoas que sedentas por
informações, não viram amigos e familiares chegarem ao porto. No entanto, o religioso também
presencia a alegria de quem encontrou vivo um ente querido. Todas essas emoções foram
percebidas e interpretadas na narrativa do bispo. No final do seu relato, Dom José Maritano
expressa a sua indignação, e mais uma vez, sua percepção de tudo o que observou.

De tudo isto, uma sensação que tive, pode até ser impressão pessoal, mas senti
que o território do Amapá está fora do Brasil, do outro lado do Rio. O Brasil,
mais provido de recursos, parece que nos deixou sozinhos. Eu tive a impressão
que o resto do Brasil estava de arquibancada a contemplar um espetáculo
muito triste que se passava no Amapá 65

Maritano, que via tudo acontecer bem próximo dele, concluiu que o estado do Amapá
estava isolado, desassistido. Os noticiários, as câmeras de importantes jornais nacionais
registravam o máximo possível, buscando sempre estar próximas dos acontecimentos. Não só
o Brasil, mas o mundo todo estava vendo o que se passava no Amapá. Não visão de José
Maritano, todos estavam acompanhando “da arquibancada” o triste espetáculo. O outro Brasil
deixou o Amapá sozinho com seus problemas.

2.3. O testemunho pessoal de jornalistas

Observaremos então os testemunhos dos que noticiaram a tragédia. Pessoas que tiveram
a árdua missão acompanhar os acontecimentos que sucederam o naufrágio e informar à
população cada detalhe. Alguns foram de barco e outros de avião até o local do acidente, antes
da remoção dos corpos. Sebastião Oliveira, repórter da TV Amapá no momento em que
ocorreram tais fatos, comenta que as primeiras informações chegaram por meio de pessoas que
passaram pelo local do sinistro e que quando aportaram em Santana, na manhã seguinte,
relataram: “Olha teve embarcação que foi a pique na região lá do Cajari”66 . Em seguida a

64 MARITANO, José apud CAPIBERIBE, João, 1982, p. 56.


65
Ibidem, p. 57.
66 Entrevista realizada pelo Jornalista Wanderson Oliveira, que está presente em documentário por ele realizado,

denominado: Morte nas aguas: triste memória de 6 de Janeiro.


33

notícia foi para a imprensa. Todavia, ainda não se tinha noção da dimensão da tragédia. Júlio
Duarte, cinegrafista da TV Amapá, sobrevoou o local do sinistro no dia 7 de janeiro, junto com
o repórter Sebastião Oliveira e o secretário de segurança pública, José de Arimateria
Cavalcante, em um avião cedido pelo governo territorial. Segue a descrição de Júlio Duarte
sobre a imagem aérea:

Quando chegamos lá o negócio era diferente, era muito diferente [...]. Tinha
gente amarrada, assim, pela perna. Como se fosse aquelas jangadas grandes,
de madeira, de gente que eu pensei que era madeira. Eu disse olha essa jangada
aqui ‘não isso é gente, cara’. Aí eu comecei a filmar de cima [...]. Quando
abrimos a janela, veio aquele odor tão grande que o repórter que estava com
nós, Sebastião Oliveira, desmaiou, e eu continuei filmando.67

O amontoado de pessoas amarradas na beira do rio Cajari é constantemente lido nos


relatos de sobreviventes e de pessoas que participaram do resgate. Sempre elas fazem analogias
com jangadas de madeira. O objetivo de amarrar os mortos dessa forma era evitar que eles
fossem levados pelas correntezas do rio Amazonas, mesmo assim, muitos corpos não foram
encontrados. Segue a imagem aérea que registrou esse momento.

Imagem nº 4: “Amarrados como Jangadas” (Acervo pessoal Railan Morais).

Observa-se, na imagem capturada por Júlio Duarte, que as pessoas já estão em estado
de putrefação e amarradas. Uma das narrativas da tragédia que mais tiveram repercussão foi a
do jornalista, chefe da rádio amapaense Difusora, Humberto Moreira.68 Ele afirma que a

67 Júlio Duarte. Entrevista realizada em 2015 por Wanderson Oliveira.


68 Humberto Moreira é jornalista e radialista amapaense. Hoje tem 65 anos de idade.
34

cobertura da tragédia do Novo Amapá foi a reportagem de maior repercussão em sua carreira.
No entanto, foi um trabalho que não queria ter feito. Sente-se incomodado ao reconhecer a
visibilidade dessa matéria. Humberto estava a caminho do departamento jornalístico da Rádio
Nacional, onde realizaria outra atividade. O trabalho de ir cobrir os acontecimentos pós-
naufrágio era de seu colega, também jornalista, Paulo Silva. Um imprevisto no percurso de
Paulo acabou obrigando Moreira a seguir na missão, embarcando no empurrador Pajé, às 18
horas do dia 7 de janeiro, rumo ao local da tragédia. Segue um trecho de seu relato:

Na manhã do dia 8 chegamos ao local da tragédia do Novo Amapá.


Parte do barco estava fora d’água, numa demonstração de que o pânico acabou
matando muita gente naquela fatídica noite. O quadro era Dantesco. Dezenas
e dezenas de cadáveres boiando nas águas barrentas do Cajari, no lugar
chamado de Ponta dos Aruans.
No dia 10 de janeiro fundeamos na entrada do Rio Matapi, onde os
corpos foram colocados nos caixões. Uma equipe veio do porto para auxiliar
nos trabalhos. Mas ao chegar perto da balsa, muitos quiseram pular no rio, tal
era a intensidade do odor e ainda devido o quadro horripilante dos corpos
empilhados uns sobre os outros. Quando saltei em terra permaneci alguns
minutos perambulando pela área do porto, até que alguém me levou a uma
barraca, onde fui imunizado. Um carro da Radiobrás me trouxe para Macapá.
Ao chegar na minha casa fiquei mais de uma hora tomando banho. Porém
parecia que o mau cheiro continuava presente. Ele estava dentro de mim, nos
meus pulmões. Por fim consegui dormir, depois de 72 horas sem pregar os
olhos. As imagens, infelizmente continuam gravadas em minha memória.
Trata-se da reportagem que eu nunca gostaria de ter feito69

Humberto narra detalhadamente cada momento vivenciado por ele no local do


naufrágio. Na chegada ele se depara com vários corpos submersos no rio Cajari. Ele afirma:
“Ninguém estava preparado para um choque daquele tamanho”. De fato, as pessoas não estão
preparadas para esse momento. É o que Marcio Seligmann-Silva chama de “excesso de
realidade”. A experiência causa espanto e gera o trauma. Seligmann-Silva, parafraseia Hans
Jonas para afirmar que “em Auschwitz havia mais realidade do que é possível”.70
Após essa experiência, o trauma fez com que Moreira passasse 72 horas sem pregar os
olhos, com o odor impregnado em sua mente. Como se vivenciasse um período de aporia. Em
entrevista fornecida em 2014 ao jornalista Wanderson Ferreira, Humberto Moreira narrou mais
detalhes da experiência de visitar o local do naufrágio, ressaltando o extremo sofrimento
vivenciado pelos tripulantes do empurrador, pois, junto com eles foi, a caminho do rio Cajarí,
outra embarcação oficial do governo territorial, a balsa Cerci, que, na frente do empurrador,

69 Novo Amapá: a maior tragédia marítima completa 30 anos . Diário do Amapá. 06 de Janeiro de 2011. P. 2.
70 SELIGMAN-SILVA, 2000. A história como trauma. Op. Cit. p. 91.
35

seria responsável por transportar os corpos em adiantado estado de putrefação. Durante o


percurso de retorno ao Porto de Santana, com os cadáveres já empilhados na embarcação, os
tripulantes do empurrador Pajé, que vinham logo atrás, optaram por não sair da embarcação,
pois, não queriam ver o que estava acontecendo na frente. Então, o comandante da embarcação
pediu bebida para acalmar as pessoas que estavam vivenciando aquele momento: “As pessoas
que estavam ali, tiveram que se embriagar, tomar cachaça, mesmo”, afirmou Humberto. O
álcool naquele momento serviu para escapar daquela realidade, era uma alternativa diante de
tanto desespero e sofrimento.
Outro jornalista que narrou com muita tristeza os acontecimentos foi Fernando Canto.
Na época do naufrágio, Canto residia em Belém, onde era repórter da revista Observador
Amazônico. Afirma que logo que ficou sabendo do acontecido, tratou de buscar informações
com os amigos comunicadores de Macapá, conseguindo também algumas imagens. E comenta:
“Foi algo feito com muito pesar, muito sofrimento”.71
Diante do exposto, tonar-se necessário tecer algumas considerações sobre os relatos dos
jornalistas no que tange à memória política do ex-governador do Território Federal do Amapá,
Annibal Barcellos. As entrevistas com o jornalistas, analisadas por mim, para a presente
pesquisa, foram realizadas pelo jornalista amapaense Wanderson Oliveira, o que já foi
mencionado neste trabalho. Observa-se que, dentre os entrevistados, dois foram comunicadores
da Rádio Difusora, atrelada ao governo territorial: Paulo Silva e Humberto Moreira. Já Júlio
Duarte e Sebastião Oliveira eram funcionários da TV Amapá. No entanto, estes últimos também
possuíam uma boa relação com o governo de Barcellos. Quando ficou sabendo do sinistro, Júlio
direcionou-se rapidamente ao referido governador para conseguir um transporte para ir ao local
do acidente. A proximidade ou dependência dos jornalistas locais em relação ao governo
certamente influenciou as narrativas recém-citadas. Em nenhum momento houve referência ao
nome do governador, seja realizando críticas seja responsabilizando o mesmo pela inoperância,
o que foi demasiadamente difundido nos dias que seguiram o naufrágio, principalmente pelo
seu maior adversário político, João Alberto Capiberibe. Questionado sobre a repercussão das
notícias sobre o naufrágio, Paulo Silva afirmou:

No primeiro momento queriam tirar proveito político da situação. Pois o


governador Barcelos tinha adversários políticos. E sabe como é, político quer
tirar proveito de tudo. Ai ele foi acusado de falta de fiscalização, quando na

71 Entrevista realizada com Fernando Canto, pelo jornalista Wanderson Oliveira em 2015.
36

verdade, a fiscalização é obrigação a companhia dos portos. Ai, a repercussão


foi a pior possível.72

Em seu relato, Silva elabora claras defesas em prol do governador Annibal Barcelos. E
faz críticas ao uso político da memória do naufrágio. Cabe lembrar que, no primeiro capítulo
desta monografia, discorremos sobre o tema, onde Capiberibe elabora contundentes acusações
ao referido político, denúncias que se propagaram na opinião pública.
Construindo uma longa carreira pública no Amapá e fixando residência definitiva neste
estado, Barcellos adquiriu adversários e aliados dentro do cenário político local. O ex-
governador faleceu no dia 14 de agosto de 2011. O jornal A Gazeta de 16 de agosto do mesmo
ano fez uma edição especial em homenagem ao político, e destacou em sua manchete, “Adeus
comandante”. Na página 6 da mesma edição afirma: “O comandante que colocou o Amapá no
Mapa”73 . A imprensa constrói uma memória heroica do ex-governador, um homem do povo.
Informando que apesar de não ter nascido no Amapá, fincou raízes na região, diferente de outros
governadores que passaram pelo local. Percebe-se que os citados jornalistas procuram preservar
essa memória, e alguns, como Paulo Silva, a defenderam. Ressalto a necessidade de uma
pesquisa que problematize os discursos que envolveram a memória dessa liderança política.
A experiência traumática do naufrágio do barco Novo Amapá possui neste trabalho três
grandes momentos, e a cada etapa ela vai trazendo mais pessoas que compartilham conosco as
suas memórias. Houve o momento do naufrágio, quando a ênfase foi a busca pela sobrevivência
diante da demasiada presença da morte, como observado em Nizete Silva. Suas experiências
constantemente perturbam seu presente, dificultando o narrar. No entanto, vimos que a própria
narrativa torna-se um ato de busca pela libertação em relação ao passado traumático. Já a
experiência de Raimundo é uma incansável busca pela sobrevivência. O segundo grande
momento é quando pessoas vão até o local do acidente e veem o grande número de vítimas na
beira do rio, amarradas e em avançado estado de putrefação. Observa-se o trauma causado pelo
excesso de realidade. Neste instante iniciou-se o processo de resgate das vítimas e a remoção
dos corpos. Notam-se diferentes representações do momento e do local do sinistro, narrativas
que têm muito em comum, mas não deixam de ser relatos subjetivos e idiossincráticos. A
terceira parte da experiência da tragédia é a chegada dos corpos no porto do município de
Santana, quando muitos experimentaram a tristeza da morte de pessoas queridas. Neste
momento ocorreu o transporte, inesquecível, dos corpos até o cemitério da cidade.

72 Entrevista realizada com Paulo Silva, pelo jornalista Wanderson Oliveira em 2015.
73 Adeus comandante. A Gazeta. De 16 de agosto de 2016. p. 6.
37

Segundo o ex-soldado do Exército brasileiro, Reginaldo Borges, que fez parte de umas
das equipes que fizeram os resgates de corpos no rio Cajari, “formou-se um corredor humano
nas principais vias de Santana na época”74 até se chegar ao bairro Provedor, local de enterro
dos cadáveres. O translado até o destino final foi observado por olhares atentos e pelos
murmúrios de lamento das testemunhas.

No meio da multidão
dá uma pena eu contar
só se ouvia muito choro
tanta gente a lamentar
o atendimento não evitava
tantas pessoas a desmaiar

Trecho do cordel de Hermes Colares que narra a reação da população no momento da


chegada dos corpos ao porto. Concluo o capitulo parafraseando Seligmann-Silva: “O
testemunho é uma modalidade da memória” 75 , ele é a narrativa de um passado, de experiências
vividas e que estão constantemente em reconstrução. O passado traumático está vivo na
memória das pessoas que vivenciaram a tragédia, sobreviventes, familiares das vítimas,
jornalistas e a parte da sociedade que bem de perto observou cada instante. A ferida nessa
memória ainda está aberta. E cada um representa esse momento a sua maneira.

74 Entrevista realizada com Reginaldo Borges, pelo jornalista Wanderson Oliveira em 2015.
75 SELIGMANN-SILVA, Marcio. Narrar o trauma: a questão de testemunhos de catástrofes históricas . Op. Cit. p.
9.
38

CAPITULO III
A LITERATURA DO TRAUMA

3.1. A serviço do trauma

Alguns trabalhos literários foram publicados como forma de representar os momentos


de extremo sofrimento emocional vivenciado pelos familiares, sobreviventes do naufrágio e de
pessoas da sociedade amapaense que de perto acompanharam as cenas que o bispo de Macapá
dom José Maritano chamou de “espetáculo terrificante”. Marcio-Seligmann-Silva, destacando
a importância desta modalidade literária para a sociedade, afirma que “a literatura é chamada
diante do trauma para prestar-lhe serviço”.76 Para ele, o serviço que as artes têm prestado para
humanidade é elementar. Alguns trabalhos podem ser citados, como: Guernica (de Picasso,
criada em 1937), Hamlet (de Shakespeare, em 1602), o teatro pós-Shoah de um Beckett, no
qual “podemos ver que o trabalho de (tentativa) introjeção da cena traumática praticamente
se confunde com a história da arte e da literatura”.77 Sobrevivente do Holocausto, Jorge
Semprun, acredita que a pessoa que melhor pode escrever sobre o campo de concentração é
quem não esteve lá, mas entrou pelas portas da imaginação.
Sobre a literatura do trauma da Shoah, o dramaturgo e escritor judeu gaúcho Leandro
Sarmatz publicou, em 2009, uma obra denominada Logocausto, um livro de poemas que se
insere na literatura brasileira contemporânea de expressão judaica. A obra trata da condição dos
judeus em sua memória, diáspora e identidade, tendo como mote o Holocausto, quando milhões
de judeus foram assassinados nos campos de concentração. A referida temática aparece
explicita e implicitamente na poesia do autor. Segundo Fernando Santana Junior: “O
Logocausto mostra uma linguagem ferida, afetada pelo trauma sugerido pelo eu lírico: na
contemplação dos milhões de mortos sem o direito legítimo ao logos-palavra da defesa”.78 Os
textos do Holocausto, em Logocausto, apresentam memórias que encontram tradução na poesia.
As últimas décadas do século XX foram marcadas por diversas formas de representação
da realidade através da literatura. Geffrey Hartman (1994) acredita que a relação dos
conhecimentos com as formas de representação mudou. Algo que foi evidenciado na área do

76 SELIGMANN-SILVA, Marcio. Narrar o trauma: A questão dos Testemunhos de catástrofes históricas. Op. Cit.
P. 70.
77 Ibidem.
78 JUNIOR, F. S. O. Estética da fratura e ética da memória: intraduzibilidade e representação testemunhal da Shoah

na poética de Logocausto, de Leandro Sarmatz. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG.
Belo Horizonte, v. 6, Nº. 10, mar. 2012.p. 3.
39

Holocausto. Para o autor, de um lado existe um excesso de conhecimento com riquezas de


detalhes sobre a “solução final”, que é fornecido pelas técnicas modernas da historiografia e
pelos registros detalhados e confiantes dos próprios executores. De outro lado, estão à
disposição para serem convertidos em conhecimento simulacros do evento de origem.79 De fato,
muitos dos sobreviventes dos campos de concentrações viram na arte um meio para transformar
em linguagem seus sentimentos, os traumas vivenciados no lange. Ou, uma possibilidade
enfrentar os seus fantasmas.
Um dos grandes representantes da literatura pós-guerra foi Paul Celan, nascido em 23
de novembro de 1920, em Czernowitz, capital da Bucovina, antiga província do Império
Austro-Húngaro. O poeta era filho de judeus e seus pais foram assassinados em um campo de
concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Celan, igualmente, vivenciou o lange, mas
seu destino não foi o mesmo de seus genitores no campo de concentração. Devido a problemas
psicológicos gerados pela Shoah, ele cometeu suicídio em 1970. Para Seligmann-Silva, Celan
representa o poeta que de modo mais completo deixou-se impregnar pela sua experiência da
Shoah. Segundo este autor “ler Celan implica reaprender a ler poesia”.80 De fato, a literatura
de Paul ainda é muito estudada, porém de difícil compreensão e marcada por um forte lirismo.
Em vários dos seus trabalhos é notório o trauma pela perda dos seus pais. Alguns textos são
direcionados a sua mãe e em outros percebe-se uma incessante busca por interlocutores. Como
exemplo, cito a prosa intitulada “Dialogo da Montanha” (1959), na qual ele afirma: “Estás a
ouvir-me? tu estás a ouvir-me, sou eu, eu, e aquele que tu ouves, julgas ouvir eu e o outro”. A
prosa está a procura desse outro, precisa do outro, necessita ser ouvida. 81
Dessa forma, o presente capítulo traz para a análise o poema Triste 6 de janeiro, do
dramaturgo amapaense Joca Monteiro, escrito em 2011. Assim como a peça teatral Novo
Amapá, baseada no referido texto. O espetáculo foi criado pelo Grupo Eureca, em parceria com
a Cia Supernova de Teatro, e foi apresentado pela primeira vez em 2012. Além dessas
produções, foi analisado o Poema aos mortos, publicado em 1986, na obra Poemas de aço, do
escritor Paulo de Tarso Barros. E, igualmente importante, foi a análise do cordel denominado a
Incoerência humana, do literato amapaense Francisco Hermes Colares, texto escrito quatorze
dias após o sinistro. Essas produções artísticas, de forma poética, narram a tragédia do barco
Novo Amapá.

79 HARTMAN. H. Geoffrey. Holocausto, testemunho, arte e trauma In: NESTROVSKI, Arthur e SELIGMAN-
SILVA, Marcio (orgs). Catástrofe e representação: São Paulo: Escuta, 2000, p. 84.
80 SELIGMANN-SILVA. A história como trauma. Op. Cit. P. .95.
81 HARTMAN. H. Geoffrey. Op. Cit. P. 229.
40

3.2. Triste Janeiro: O espetáculo Novo Amapá

Um ano após a primeira apresentação do espetáculo teatral Novo Amapá, pudemos ir ao


Teatro das Bacabeiras, localizado no centro de Macapá, no dia 6 de janeiro de 2013, uma noite
de segunda-feira. Queríamos ver, de perto, o tão elogiado trabalho desenvolvido pelo grupo
Eureca em parceria com a Cia Supernova. De fato, a peça causou muita emoção no público
presente. Procuramos chegar uma hora antes da apresentação para ver cada pessoa que chegava
e observar suas expectativas. Minutos antes do início, o teatro estava com quase todas suas
cadeiras ocupadas. O público estava concentrado e ansioso. Muitos estavam ali, assim como
eu, vinham pela primeira vez para ver aquela representação. Acredito que não podiam imaginar
suas reações ao ver, traduzida em arte, aquela realidade que eles tanto lutaram para esquecer.
Abaixo uma imagem de divulgação do espetáculo.

Imagem nº 5: Espetáculo “Novo Amapá”. (Foto de Maksuel Martins).

A imagem nº 5 mostra a cena da peça na qual alguns atores estão representando os


familiares lamentando suas perdas. Observa-se, também, que acima dos personagens estão
penduradas várias faixas que contém os nomes de pessoas que perderam a vida na tragédia ou
que desapareceram.
Ao iniciar a apresentação, vimos um palco escuro e um foco de luz sobre um rapaz que
brincava de joelhos ao chão com um pequeno barco de madeira e sem vela. Era a personagem
41

de uma criança. Com a boca ela fazia um som semelhante ao de motores de pequenas
embarcações: “puc, puc, puc”. Em seguida, com voz em um tom mais alto, outro personagem,
entrou em cena e declamou: “Os barquinhos vão atravessar o tempo dos homens das águas/ E
mesmo que as pilhas acabem/ E o vento não sopre/ O sonho não cessará”.82 Os versos
discorrem sobre os anseios de muitos jovens que foram a óbito na embarcação. Muitos sonhos
foram interrompidos.
O espetáculo é permeado de poesias, lirismo e metáforas. Um cenário triste tentava
representar e transportar o público para os momentos vivenciados pelas vítimas. O naufrágio
do barco Novo Amapá, aconteceu à noite, num espaço extremamente escurecido. Muitos
sobreviventes, em seus relatos, afirmaram que não conseguiram ver as pessoas. Somente ouvir
gritos. Em momentos da apresentação esse cenário é representado, seguidos por poesia e
música. Na segunda cena, observa-se o momento em que as pessoas estavam embarcando no
Novo Amapá. Nesse instante surgiram vários personagens, e eles vão carregando sacolas, malas,
objetos para serem embarcados. Os atores acabam montando uma cena na qual é representado
o aperto, motivado pela disputa de espaço por pessoas nas embarcações que saem do porto de
Santana. Seguidamente é declamada uma poesia de Joca Monteiro pelo personagem Senhor das
cargas. Segue um trecho:

Enquanto a maré não sobe


Sobe e embarca a tripulação
Sobe carga
Sobe mãe com seus filhos
Sobe menina
Sobe menino
Sobe quem não sabe subir
[...]
Sobe emprego, trabalho, exploração, devastação
Sobe o mantimento para o progresso
Sobe quem veio pra ficar
Sobe quem veio ganhar dinheiro
Sobem de-sor-de-na-da-men-te
[...]
Sobe muito além da lotação
Sobe o homem que virou carga e a carga que vale mais que os homens
Sobe a maré
Sobe o medo
Sobe e embarca a ilusão de chegar83

82 MONTEIRO, Joca. Triste 6 de Janeiro. Macapá, 2011. p. 3.


83 Ibidem, p. 5.
42

Nessas estrofes notam-se várias críticas relacionadas ao excedente de pessoas e cargas,


bem como a alusão às condições de trabalho. Uma vez que os atores expressam que a correria
para embarcar refere-se à desorganização desse momento, os personagens encenam também
uma desordem no palco. Na cena, pessoas são carregadas como se fossem meras cargas e
objetos. E em alguns momentos fala-se em exploração e progresso. Sem dúvida, é uma evidente
referência às multinacionais que são instaladas na região. Importa lembrar que o principal
motivo para a superlotação da embarcação foi a necessidade dos trabalhadores da empresa Jari
Celulose chegarem à área do empreendimento, no vale do rio Jari, para aí cumprirem seus
compromissos e apresentando-se sem atrasos à empresa. Outros iam em busca de empregos.84
O espetáculo denunciou tais situações: a falta de fiscalização diante do excesso de passageiros
e a consequência social dos grandes projetos. Mais adiante retornaremos a este tema.
Este modo de narrar, apresentada pelo espetáculo aqui estudado, nos remete as últimas
décadas do século XIX, quando, além da popularização desse tipo de atividade artística,
observam-se grupos teatrais recolocarem em cena formas de intervenção na realidade social.
Kátia Paranhos chama essa expressão de teatro de engajamentos social, onde o dramaturgo
passa a intervir criticamente na esfera pública.85 No Brasil muitos grupos teatrais adquiriram
papel de destaque na luta contra a Ditadura Militar a partir de 1964. O grupo Opinião tornou-
se uma referência nesse tema: encarnava situações comuns do período, como a perseguição aos
comunistas, a trágica vida dos nordestinos e a batalha pela ascensão social dos que viviam nas
favelas do Rio de Janeiro. Este grupo foi criado pelo Centro Popular de Cultura (CPC), da União
Nacional dos Estudantes (UNE), que se reuniu com o intuito de criar um foco de resistência e
protesto contra a situação vigente no período.86
Em outro momento da peça, na cena IV, o espetáculo novamente destacou as
multinacionais com sede na região, dessa vez citando os nomes das empresas. Segue o texto:

A morada da chuva cresce


A família acende os sonhos
O melhor caminho para os meninos,
É o caminho do rio,
Pensou a mãe, o Pai e o mais perfeito sentimento
Conduzindo ao caminho do rio, onde se forma doutor.
A porta é JARI...
A janela é ICOMI...
Palpável é o Barco

84 PACHECO. D.M.S. Op. Cit. P. 13.


85 PARANHOS, Katia Rodrigues. Arte e experimentação social: o teatro de combate no Brasil contemporâneo.
Projeto História. Nº 43, de dezembrode 2011.p. 369.
86 Ibidem.
43

Não se conhecia o descaso dos homens


Nem a arapuca na mão da ambição.
Seus tesouros aos Piratas!
Só o destino sabe enganar o mais perfeito sentimento87

Esse trecho também menciona os sonhos dos viajantes que, na visão do eu lírico, torna-
se conquistável saindo do lugar de origem pelo caminho do rio. Porém, a ambição e o descaso
dos homens interrompe os desejos das famílias. Esse poema é declamado pela personagem
Senhora do destino. No momento da declamação entra em cena uma família, que pára próximo
de uma embarcação. Os pais olham fixamente para o barco. Eles demonstram dúvida. Os filhos
se aproximam. A mãe termina de arrumar todos os filhos sempre lhes dando um beijo. Eles
posam para uma foto. A imagem congela até o fim da declamação. A dúvida encenada foi
sentida por muitas vítimas ao tentarem embarcar no Novo Amapá. Esta já descrita em capítulos
anteriores desta monografia e ratificada pela desistência de algumas pessoas em viajar no
referido barco.
Na quinta cena, o texto trouxe a já mencionada escuridão no cenário do espetáculo,
representando o local do naufrágio. E o sentimento dos náufragos:

Foi muito rápido


Um balançar e um tombo
A luz foi embora
Um breu
As crianças choravam e acho que as mães rezavam alto.
Aí eu parei de chorar,
Mas ainda se ouvia as preces das mães 88

Essa rapidez na virada e o tombo várias vezes foram mencionada nos relatos das vítimas.
Um sobrevivente chamado José de Sousa89 afirmou: “Quando tombou, ninguém sabia pra onde
era que o barco tava [...], aí tudo aquilo no escuro, gente, gente, gente tentando segurar na
costa da gente”. O espetáculo teatral Novo Amapá e o texto literário de Joca Monteiro têm como
base artigos de jornais da época e principalmente relatos de vítimas da tragédia, informou-nos
o escritor, em entrevista realizada no ano de 2013.
O espetáculo, além de fazer denúncias e críticas sociais, buscou, de diversas formas,
homenagear os sobreviventes e as pessoas que, apesar do desespero do momento, conseguiram
salvar vidas. Em estrofe denominada Cordel dos heróis esquecidos, na terceira cena, assim se

87 MONTEIRO, Joca. Op.Cit. P. 6.


88 Ibidem, p. 7.
89 José Gonçalves de Sousa. Entrevista realizada por mim, no dia 18 de abril de 2013. A vítima tinha 32 anos na

época do naufrágio. Seu destino era Monte Dourado, em busca de emprego.


44

afirma: “Mas não quero aqui falar das centenas de vidas interrompidas, ou da dignidade
ausente após a morte, quero contemplar os que salvaram vidas ou que se doaram para
ajudar”.90 Em um foco dessa cena aparece um homem ajudando as pessoas até encontrar um
vestido de noiva. Em outro foco um jornalista, e posteriormente um fotógrafo.
Na entrevista realizada com Joca Monteiro, questionamos sobre sua percepção quanto
à reação do público diante do espetáculo. O escritor afirmou que primeiramente ficou com
receio, pois, apesar de ter dado uma suavizada, ele sabia que era uma tarefa difícil e ao mesmo
tempo já havia falado que não era a intenção da peça “remexer a ferida” e sim homenagear os
familiares envolvidos no naufrágio e os que ajudaram a resgatar os corpos e a salvar vidas,
como citamos acima. Objetivo que foi alcançado com êxito, acredita o autor, pois no primeiro
dia do espetáculo foram feitas três apresentações e todas com um ótimo público. Ao término
delas, os elogios emocionados eram muitos. Uma senhora chegou até ele e disse: “Poxa, eu
perdi meus cinco filhos no naufrágio, todo mundo já me acalentou, já falou muita coisa, mas
nunca ninguém me citou como uma heroína, porque eu perdi meus cinco filhos, mas eu estava
ali cuidando do filho da mãe que se perdeu”.91 Joca afirma que esse foi um momento muito
especial.
Assim como eu, Joca Monteiro, quando criança, nas conversas com familiares das
cidade de Macapá e Santana, escutava muito sobre o naufrágio. Sem dúvida, esse foi um tema
de intenso debate nas residências da região. E isso, segundo ele, o instigou a escrever sobre a
tragédia. Em uma de nossas conversas, o autor de Triste 6 de janeiro disse: “A minha infância,
minha adolescência sempre, quando tinha o momento de falar com a vovó, com meus parentes,
sempre lembravam”.92
No fim do espetáculo os personagens surgiram vestidos de branco, os rostos sérios e
entristecidos. Entregaram flores para as pessoas que estavam na frente do palco. Regados de
muitos aplausos. Essa lembrança do naufrágio foi bem recebida, uma poesia permeada de
lirismo. Jorge Seprun, escritor e sobrevivente do campo de concentração de Buchenwald,
afirmou sobre o lange que devido a um elemento inacreditável de hiper-realidade, a narração
deve lançar mão da arte.93 Joca Monteiro e os grupos teatrais acima citados viram na arte uma
possibilidade de narrar a tragédia. Suas poesias encontram um público ferido pelas suas
lembranças traumáticas, difíceis de narrar.

90 MONTEIRO, Joca. Op. Cit. P. 10.


91 Entrevista
realizada por mim, em abril de 2013.
92 Ibidem.
93 SELIGMANN-SILVA, Márcio. A História como Trauma. Op. Cit. P. 95.
45

3.3. A poesia da tragédia

Em livro intitulado Poemas de Aço, Paulo de Tarso Barros publica o seu Poema aos
mortos, texto escrito em 1985, porém apenas lançado no ano seguinte, com a referida obra.
Trabalho que teve exclusivo apoio da Secretaria de Educação e Cultura do Amapá. Nele, o
escritor buscou traduzir o que presenciou nos tristes dias que seguiram a tragédia. Nascido em
Vitória do Mearim, Estado do Maranhão, Tarso Barros chegou a Macapá no ano de 1980. No
ano seguinte acompanhou os desdobramentos do naufrágio do barco Novo Amapá.
O poema de Barros retoma uma crítica já percebida no texto literário de Joca Monteiro,
no que se refere aos anseios multinacionais para com o território amapaense. Observou-se em
Triste Janeiro, algumas menções ao Projeto Jari, o que também se verificará em Poema aos
mortos. Segue um trecho da poesia Barros:

A solidão do homem no mar


é uma porta fechada,
mas que se abre nesses portos.
Eu sei que o Porto de Santana,
mudo como as pedras,
assistiu à partida
do Barco Novo Amapá,
com centenas de passageiros
que mergulharam para uma
outra vida quando tentavam
viabilizar os sonhos
multinacionais
do Projeto Jari.94

Nesses versos Paulo se refere ao porto de Santana como uma testemunha da saída do
barco Novo Amapá, com centenas de pessoas. O desejo de outra vida mencionado pelo autor
nos remete às aspirações de muitos amapaenses de mudar sua condição econômica. Uma
oportunidade de emprego na multinacional era vista como um meio que poderia proporcionar
essa transformação. Porém, tais desejos não foram concretizados, visto que a única outra vida
que muitos conseguiram obter foi àquela após a morte, proporcionada pela tragédia, o segundo
sentido sugerido pelo poema. Importa observar que os sonhos aos quais o texto faz alusão são
as ambições do Projeto Jari, num momento em que as riquezas nacionais eram direcionadas ao

94 BARROS, Paulo de Tarso. Poemas de aço. Macapá, 1986.p.49.


46

capital estrangeiro. As pessoas seriam instrumentos que dariam viabilidade a tais anseios
multinacionais.95
De fato, os trabalhadores que decidiram viajar na embarcação tinham como o principal
destino a empresa norte-americana, seja para apresentar-se à fábrica, como já comentamos, ou
para aí buscar um trabalho assalariado. Isto também fora apontado por Alberto Capiberibe em
sua obra Morte nas Águas, a tragédia do rio Cajarí. Segundo o autor, ao ser promovida a
integração do espaço amazônico, todas as preocupações giraram em torno do máximo
aproveitamento das riquezas nacionais. Motivo esse que arrastou para a selva um enorme
contingente de trabalhadores. Porém, os que promoveram isto esqueceram de contabilizar como
um fator de progresso, a segurança e o bem estar do povo. 96
Capiberibe, como abordado no primeiro capítulo, tornou-se uma liderança no meio das
vítimas, buscando realizar diversas denúncias. Sua obra foi um veículo utilizado para propagá-
las. Para ele, a inserção de grandes projetos deveria vir acompanhada por investimentos no setor
de transportes, o que seria obrigação das autoridades ou de empresários estrangeiros. Todavia,
tal investimento não aconteceu, mesmo com dez anos de projeto Jari e quase vinte anos do
projeto de exploração de manganês no município de Serra do Navio, até o momento do
naufrágio.97
Nos primeiros versos da última estrofe do Poemas aos mortos, Tarso Barros faz
referência aos corpos que ficaram submersos no rio Amazonas. “Comboios de corpos inchados
/ boiaram nas águas e foram mostrados / ao público através das câmeras de TV”. 98 O poeta
também cita a presença da mídia nesse momento, como veículo que levou tais imagens ao
público. Os versos finais expressam os sentimentos dos que perderam entes queridos,
percebidos pelo poeta, assim como o apoio solidário dos religiosos que ali estavam: “No enterro
das vítimas, entregues à terra diante dos parentes infelizes, consolados pelos vigários italianos
que rezavam pelas almas daqueles afogados”. A presença de sacerdotes da Igreja Católica deve
ser salientada, pois as fontes sempre estão fazendo menção a sua atuação naquele momento
trágico.

95 Quando discorro sobre os objetivos nacionais do período, estou fazendo referência às tentativas dos governos
militares, a partir de 1964, de integrar o espaço amazônico à economia nacional e transnacional, o que já fazia
parte dos projetos de Getúlio Vargas, em governos anteriores. E em 1966, o presidente Humbeto Castelo Branco,
lançou a “Operação Amazônia” e no discurso proferido na cidade de Macapá, ele destacou que se almejava “o
desenvolvimento econômico da região, a sua ocupação nacional, o fortalec imento das áreas de fronteira e a
integração do espaço amazônico no espaço nacional.” (BRANCO, Castelo. O Discurso do Amapá. In: Operação
Amazônia (discursos). Belém: SUDAM.1968.) Os governos milites submeteram a região a um intenso processo
de transformações socioeconômicas com incentivo ao capital estrangeiro.
96 CAPIBERIBE, João Alberto. Op. Cit. P. 2.
97 Ibidem.p.2
98 BARROS, Paulo de Tarso. Op. Cit. P. 49.
47

Paulo de Tarso, no prefácio escrito para a edição de 2002 do livro Incoerência humana,
de Francisco Hermes Colares, afirma que testemunhou as cenas chocantes com “caixões
enormes, corpos inchados”.99 Sua poesia é a expressão de problemas sociais por ele percebidos
no período e de sentimentos de uma parcela da população que enterrava seus mortos. Assim,
como sinal solidariedade para com as famílias amapaenses, resolve escrever sobre o tema. O
cordel de Francisco Hermes Colares, denominado a Incoerência humana narra, por meio de
noventa estrofes normais (todas com seis versos e oito sílabas) e com uma grande riqueza de
detalhes, os principais acontecimentos que giraram em torno do naufrágio do barco Novo
Amapá.
Historicamente, muitos textos de cordéis realizam adaptações da literatura erudita para
a leitura popular. A linguagem usada nos textos é adequada aos leitores e, dessa forma, estes
receptores exercem clara influência nos escritos a eles direcionados. Colares buscou, por meio
de uma linguagem simples, construir sua narrativa direcionada a população amapaense. Importa
salientar que autor era membro da classe trabalhadora: ele foi empregado da Indústria de
Comercio e Minério S/A (Icomi), de 1965 até 1998. Francisco Colares nasceu em 1933, no
município de Mazagão, que naquele período era pertencente ao Estado do Pará. Em 1962 foi
morar na cidade de Santana, nas proximidades da região portuária, lugar onde assistiu junto
com os demais munícipes a chegada dos corpos putrefatos das vítimas do naufrágio do barco
Novo Amapá. Além do cordel Incoerência humana (de 1981), o autor escreveu várias obras do
mesmo gênero literário, como O peregrino do Amapá, a Guerra das Malvinas, Atualidades e
O garimpeiro.
A narrativa poética de Francisco Colares torna-se, assim como o livro Mortes nas Águas,
a tragédia do rio Cajari, um importante registro escrito do momento em que as emoções da
tragédia estavam fluindo intensamente. Os autores destas obras viveram e escreveram
contemporaneamente aos fatos e à emergência de narrativas da tragédia que entravam em
disputa. Colares, diferentemente dos demais autores e textos aqui analisados, inicia sua
narrativa no dia primeiro de janeiro. Mas antes, discorre sobre o ano que passou (1980): “Ano
que todos ficamos a reclamar”, escreve que 1981 iniciou alegre, mas somente para enganar,
pois seis dia depois, todos iriam chorar – uma referência à tragédia.100 As estrofes inicias
abordam as alegrias dos festejos do início do ano. Porém, esse momento é breve: já na oitava
estrofe os versos já citam a partida do barco Novo Amapá: “Mas no dia seis de Janeiro que eu

99 COLARES, Francisco Hermes. A incoerência humana. Editora Tarso. Macapá, 2012, p. 9.


100 Ibidem, p. 13.
48

vou me referir/ que o barco Novo Amapá então devia partir com cargas e passageiros/ com
destino ao rio Jari.101
Interessa observar que, na décima estrofe, Colares cita uma das versões sobre a
quantidade de passageiros que embarcaram no Novo Amapá. Foi a do documento apresentado
pelo despacho da Companhia dos Portos de Santana, afirmando que a embarcação saiu do
referido município com uma quantidade de 146 pessoas. Porém, logo em seguida o autor
escreve: “É triste imaginarmos / como o destino nos engana / e às quatorze horas em ponto/ o
barco saiu de Santana / com mais de quinhentas pessoas / para uma viagem insana”.102 Essa
divergência foi bastante polemizada no período em que a população estava em busca dos
culpados. Sobre a discussão o Jornal do dia afirmou:

Naquela época em Macapá, tão logo se teve a notícia da extensão do


naufrágio, duas pessoas começaram a ser apontadas como responsáveis pela
tragédia, o proprietário, Alexandre Goés da Silva, encontrado morto no
camarote do barco sinistrado e que permitiu o embarque desordenado de
passageiros, e o despachante Osvaldo Nazaré Colares, que, segundo diversas
versões que circularam pela cidade, procurou omitir das autoridades a
verdadeira dimensão do acidente, ao informar ao então governador do antigo
território, Annibal Barcellos, que apenas 146 passageiros estavam a bordo,
retardando assim, a prestação de socorro às vítimas, o que serviu para
aumentar o número de mortos. 103

Observa-se que tal polêmica acaba por ser expressar no texto de Francisco Hermes. A
versão de Osvaldo Colares (despachante) sobre a quantidade de pessoas embarcadas tinha como
objetivo isentá-lo da responsabilidade pelo desastre. Sabendo que o limite máximo para
embarcar era de 400 passageiros. Porém, o cordel acaba assumindo a versão mais propagada
no período, que afirma que havia mais de 500 pessoas na embarcação, o que caracterizava a
superlotação.
É preciso também destacar que a oralidade foi fundamental para a construção do texto
de Hermes Colares. Em algumas estrofes, quando é abordado o momento do naufrágio, fica
evidente o uso dos relatos traumáticos pelo cordelista. Como no trecho:

Conta os sobreviventes
que era de cortar o coração
ouvir gente batendo e gritando
dentro da embarcação
respirando o ar saturado
que ficou retido no porão

101 Ibidem.
p. 14.
102 Ibidem.
p. 15.
103 CANTANHEDE, Janderson. Lembrança! Jornal do dia. De 6 de Janeiro de 2001.
49

ouvia-se os lamentos
sem poder tira-los de lá
pois se furassem o casco
antes do barco encalhar
o ar todo escaparia
fazendo o barco afundar104

Essa riqueza de detalhes de um momento crítico, vivenciado pelos sobreviventes,


somente poderia chegar para o conhecimento de Francisco Hermes Colares através das
conversas com as vítimas. São relatos traumáticos que expressam a grande tristeza e a
lancinante dor vivenciadas naquele momento, evidenciando uma importante relação entre
poesia e memória traumática. Todavia, diferente dos poemas de Celan, nos quais a poesia
expressa traumas pessoais, a literatura de Hermes Colares, em vários momentos, serve-se das
lembranças de outros. Elas são reconstruídas e representadas através da linguagem poética do
cordelista.
Diferentemente das narrativas portadoras de críticas relativas à atuação do governo do
Território do Amapá – principalmente elaboradas e difundidas por Capiberibe – o cordel escrito
por Hermes Colares expressou em seu discurso uma imediata atuação de Annibal Barcellos:

Sua excelência, o Governador


logo que foi avisado
telefonou ao despachante
para ser mais informado
sobre o barco Novo Amapá
Quantas pessoas haviam viajado.

Tendo então recebido


um rol de informação
sobre a carga que viajou
e a guia de embarcação
então o governador
tomou sua decisão105

A decisão, afirma Colares, foi o imediato envio de um galpão que pudesse receber boa
quantidade de caixões. Outras atitudes do governante, em apoio às vítimas, também são
destacadas pelo poeta, como um pedido de socorro realizado por telefonema à Belém. E um
alerta para o prefeito de Mazagão enviar qualquer embarcação que houvesse disponível. O
cordel Incoerência humana narra até os episódios finais da tragédia, relatando sobre os restantes
50 corpos que chegaram ao porto santanense, depois das últimas buscas no rio Cajari, no dia 12

104 COLARES, Francisco Hermes. Op. Cit. P.18.


105 Ibidem, p. 24.
50

de janeiro. Os derradeiros versos discorrem sobre as homenagens às vítimas, como uma missa
celebrada por Dom José Maritano no Ginásio de esportes Avertino Ramos, localizado na
capital, Macapá.
A literatura do trauma do naufrágio do barco Novo Amapá é, portanto, permeada de
lirismo e homenagens aos sobreviventes que, apesar das perdas, conseguiram salvar vidas. Foi
o que vimos em Triste Janeiro. Joca Monteiro, volta ao barco sinistrado pelas portas da
imaginação. Mas, também, traz crítica social, como, igualmente, foi observado no Poemas os
mortos de Paulo de Tarso Barros. Essa literatura viu os projetos multinacionais como um dos
principais responsabilizados pelo trágico desfecho da viagem do dia 6 de Janeiro, pois, ao se
pensar na industrialização, visou-se tão somente o lucro, e esqueceu-se de montar uma estrutura
com condições de receber a população que rapidamente crescia. Empreendimentos como os de
Laranjal do Jari e Serra do Navio são largamente citados. Não esqueçamos as críticas às falhas
nas fiscalizações dos portos amazônicos. Já o texto de Hermes Colares nos permite sentir “o
calor da hora”, pois se preocupa em narrar os detalhes dos fatos trágicos, prevenindo o trabalho
de decantação, nas águas da memória, que retém e sedimenta algumas lembranças e dilui outras,
no esquecimento. O poeta apressou-se para tornar dizível e eternizado aquilo que a emoção, a
dor e o esquecimento talvez pudessem calar e apagar. Neste sentido, ele se colocou a serviço
do trauma ou da memória traumática. Quase um trabalho de historiador.
51

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vivenciar uma tragédia ou um evento catastrófico e sobreviver é uma experiência quase


inimaginável, difícil de representar. Quem esteve no barco Novo Amapá no dia 6 de janeiro de
1981 jamais esqueceu esse fatídico dia. As lembranças são como fantasmas que constantemente
perturbam o presente do indivíduo. Muitos dos que sobreviveram ao naufrágio preferem
esquivar-se de qualquer símbolo que os faça rememorar esse momento. Pelo menos foi o que
ficou evidenciado, quando a prefeitura do município de Santana levou ao público a
possibilidade de construir um memorial para as vítimas do sinistro. Um memorial? Para que
remexer com esses sentimentos? Esse foi o questionamento que fizeram algumas famílias que
aí tiveram perdas humanas. Não queriam reviver o momento trágico. Não desejavam outra
exposição à dor coletivizada. Monumentalizar o naufrágio do barco Novo Amapá,
definitivamente, não foi uma boa ideia, principalmente pelo fato de, no projeto do memorial, se
cogitar a possibilidade de retirar os corpos das grandes valas comuns que foram cavadas no
cemitério de Santana.
Abrir espaço no cemitério para novos sepultamentos. Essa justificativa, apresentada
pelo prefeito do município nos jornais locais, foi devastadora. “Será que vamos ter que ver mais
uma vez os corpos se nossos parentes serem desrespeitados?”, dizia Sandra Rocha. Todavia,
houve alguns munícipes que viram no projeto, uma possibilidade de dar um lugar digno às
vítimas. Diante da polêmica, os parlamentares defensores do monumento resolveram esquecer
a ideia, e arquivá-la. Por tratar de monumentalizar memórias traumáticas, imersas em
sentimentos dolorosos, a população local ficou dividida, com posições dissonantes para com o
projeto.
Será possível, então, narrar um evento com excessiva realidade? A tragédia deixou os
sobreviventes tão próximos da morte, que o narrar ficou comprometido. Observou-se que, para
Freud, o trauma é entendido como a incapacidade de recepção de um evento que vai além dos
limites da nossa percepção, gerando uma constante repetição da cena traumática no
indivíduo.106 As lembranças, nesse sentido, são feridas da memória. Nizete Silva mostrou o
quanto é difícil traduzir um evento traumático em linguagem. Não obstante, observou-se nos
escritos de Primo Levi, que narrar é também uma necessidade elementar para quem vivenciou
situações de extrema dor emocional. Uma terapia. Nizete, em nossas conversas, contou que
houve um momento, no dia em que estava presa no porão da embarcação, que ela só aguardava

106 Seligmann-Silva, Marcio. Narrar o trauma. Op. Cit. P. 84.


52

pela morte. Mas, o que mais marcou sua experiência do naufrágio foi a perda de sua amiga, que
ficara presa no banheiro da embarcação. A sobrevivente carrega essa culpa, que torna suas
lembranças ainda mais dolorosas. Culpa que, para quem escuta seu relato, não é justificável.
Além dos sobreviventes, muitos puderam acompanhar os acontecimentos. O porto de
Santana tornou-se um lugar de muitas expectativas, tristezas e alegrias. E o rio Amazonas virou
o palco no qual se passou um “espetáculo terrificante”. Muitos tiveram que ir até o local do
ocorrido para a realização de trabalhos: eram as equipes de resgate e os jornalistas que
precisavam obter informações. Assim, o mundo pôde acompanhar cada detalhe do que
acontecia no extremo norte da Amazônia. Porém, “assistiram de braços cruzados”, segundo o
que afirmou o bispo dom José Maritano. Os membros da imprensa que vivenciaram o imediato
pós- naufrágio hoje narram com muito pesar aquela experiência. Humberto Moreira afirma que
aquela foi uma reportagem que ele não queria ter feito. O odor dos corpos em decomposição
ficou impregnado por dias em seu corpo.
Nos meses que seguiram o sinistro, a memória do naufrágio entrou em disputa. Quem
foram os culpados? Um resgate mais rápido não poderia ter salvado muitas vidas? Questões
que João Alberto Capiberibe respondia em seu livro publicado em 1981. O autor constrói uma
narrativa com relatos emocionados e permeados de ressentimentos das vítimas. Dessa forma
este ganha um papel de destaque no meio de tantas incertezas e revoltas, fazendo oposição ao
então governador Annibal Barcellos. O discurso que Capiberibe constrói é repleto de críticas a
Barcellos, personagem que representava um projeto político pensado para o Território Federal,
um novo Amapá, que estava em decadência. O naufrágio, marca os últimos suspiros de seu
governo.
Por fim, fomos ao encontro da literatura da tragédia. Artistas que testemunharam os
acontecimentos pós-naufrágio tentaram traduzi-los em linguagem poética. Francisco Hermes
Colares alia poesia e oralidade para construir uma narrativa que, cronologicamente, versa sobre
o naufrágio: o cordel Incoerência humana, escrito no calor do momento. Além de expressar os
traumas vivenciados no rio Cajari, Paulo de Tarso Barros traz-nos uma poesia com críticas
sociais e, assim como Joca Monteiro, culpa o Projeto Jari pelas deficientes infraestruturas de
produção, moradia e transporte, somadas às falhas na fiscalização dos portos amapaenses.
Assim, os grandes projetos multinacionais instalados no espaço amazônico também são
importantes alvos da literatura do naufrágio. Pois, ao se pensar na integração da Amazônia e na
atração de investimentos estrangeiros, visou-se tão somente o lucro. Negligenciaram a
segurança dos trabalhadores de uma região que não estava preparada para receber uma
53

crescente demanda de migrantes, que aí vieram buscar empregos e tentar transformar em


realidade o sonho de uma nova e melhor vida.
54

LISTA DE IMAGENS

Imagem 1: Detalhe do mapa Amazônia legal..........................................................................15


Imagem 2: Vala construída no Cemitério de Santana .............................................................18
Imagem 3: Capa do livro Morte nas aguas: a tragédia do rio Cajari ....................................24
Imagem 4: “Amarrados como Jangadas” ................................................................................33
Imagem 5: Espetáculo “Novo Amapá” ...................................................................................40
55

FONTES

● Livros:
BARROS, Paulo de Tarso. Poemas de aço. Macapá, 1986.
CAPIBERIBE, João Alberto. Morte nas águas: a tragédia do Cajarí. 2. Ed. Recife: Editora
Independente, 1982.
COLARES, Francisco Hermes. A incoerência humana. Macapá: Editora Tarso, 2012.

● Textos literários:
MONTEIRO, Joca. Triste Janeiro. Macapá, 2011.

● Jornais e revistas:
A Gazeta. De 16 de agosto de 2016.
Diário do Amapá. De 06 de janeiro de 2006.
Diário do Amapá. De 05 de junho de 2014.
Jornal do dia. De 06 de janeiro de 2001.
O liberal. De 7 de janeiro de 2001.
Veja. De 18 de janeiro de 1989.

● Discursos oficiais:
BRANCO, Castelo. O Discurso do Amapá. In: Operação Amazônia (discursos). Belém:
Sudam, 1968.

● Projetos de Lei e decretos:


Projeto de lei nº 570/2002-PMS, de 10 de Janeiro de 2002.

● Entrevistados:
Fernando Canto. Entrevista realizada do por Wanderson Oliveira em 2015. O entrevistado
residia em Belém, e era repórter da revista Observador Amazônico no período do naufrágio.

Humberto Moreira. Entrevista realizada em 2015 por Wanderson Oliveira. O entrevistado é


jornalista e radialista amapaense. Hoje tem 65 anos de idade.

José Gonçalves de Sousa. Entrevista realizada no dia 18 de março de 2013. O entrevistado


estava com 32 anos na época do naufrágio. Viajava para Monte Dourado em busca de Emprego.
56

Joca Monteiro da Silva. Entrevista realizada no dia 17 de março de 2013. Professor e escritor
do texto do espetáculo teatral “Novo Amapá”.

Júlio Duarte. Entrevista realizada em 2015 por Wanderson Oliveira. O entrevistado foi
cinegrafista da TV Amapá no período do naufrágio.

Nizete Nazaré Nascimento Silva. Entrevista realizada no dia 18 de maço de 2014. A


entrevistada estava com 18 anos de idade na época do naufrágio. Residia em Monte Dourado.

Paulo Silva. Entrevista realizada por Wanderson Oliveira em 2015. O entrevistado era jornalista
da Rádio Nacional no período do naufrágio.

Raimundo dos Santos Amaral. Entrevista realizada no dia 18 de março de 2013. Estava com 34
anos de idade na época do naufrágio. Era funcionário da empresa Jarí Florestal.

Reginaldo Borges. Entrevista realizada Wanderson Oliveira em 2015. O entrevistado é ex-


soldado do Exercido brasileiro. Participou do resgate das vítimas do naufrágio do barco Novo
Amapá.

Sebastião Oliveira. Entrevista realizada em 2015 por Wanderson Oliveira. O entrevistado era
repórter da TV Amapá no período do naufrágio.

● Documentos em vídeo e sites jornalísticos:


Telejornal Amapá TV. De 6 de Janeiro de 2014.
Documentário Morte nas aguas: triste memória de 6 de Janeiro. De 2014.
Selesnafes.com. http://selesnafes.com/2014/06/memorial-do-novo-amapa-nada-a-ver-com-
remocao-de-corpos-garante-randolfe/. Acesso realizado em: 10 de julho de 2016.
G1, Amapá. De 23 de janeiro de 2014. Disponível em:
http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2014/01/obra-de-memorial-para-vitimas-do-novo-
amapa-sera-iniciada-em-agosto.html. Acesso realizado em: 10 de julho de 2016.
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