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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Laboratório de História Ambiental

Monografia de fim de curso

É da roça!

História Ambiental dos caiçaras da Península da Juatinga/RJ e sua


relação com a conservação da natureza.

Tainá Miê Seto Soares


DRE101142254
Orientador: José Augusto Pádua
Novembro de 2006
2
No lugar que havia mata,
hoje há perseguição.
Grileiro mata posseiro,
Só pra lhe roubar seu chão.
(...)
Zé da Nana tá de prova,
naquele lugar tem cova
Gente enterrada no chão:1

1
A Saga da Amazônia, música de Vital Farias.

3
Dedico esse trabalho ao meu pai matuto, Antonio Castor, que desde cedo me levou pelos caminhos das matas e das
histórias dos antigos da roça. E a minha mãe Célia, que me ensinou a amar os matutos, em suas intermináveis
conversas nos povoados de nossas viagens.

Agradecimentos:

São tantos agradecimentos desse tão simples texto, que como monografia mais parece um projeto de vida.
Anos se passaram desde o dia em que conversando com Seu Maneco, veio a primeira idéia de fazer algum trabalho
sobre os caiçaras e sua terra. Descobri que era pra mim tão prazeroso escrever sobre os caiçaras, que não
conseguia terminar, inventando sempre uma correção ou reflexão. Foram tantas pessoas envolvidas nesse trabalho,
que realmente há muito, este transcendeu seu viés acadêmico, sem deixar de respeitá-lo.
Agradeço por ordem de chegada no projeto, porque todos foram fundamentais. Então começo pelo Seu
Maneco, da Praia do Martim de Sá, que me mostrou um universo de luta ambiental que até então não conhecia de
perto, a luta das populações tradicionais. Agradeço a querida amiga Tadzia Maya, que foi quem me mostrou que não
poderia ser outro o assunto de minha monografia final. À Paloma Sol Hertz, Marcelo Bueno e Carolina Carvalho, que
me acompanharam na longa trilha de 10 dias na pesquisa de campo, pois sem eles não haveria material nenhum.
Ao Bruno Pacheco de Oliveira, que além de editar meu documentário sobre os caiçaras, foi um apoio
emocional sem o qual teria desistido do projeto. Também agradeço ao João Pacheco de Oliveira Filho, que na parte
da história indígena foi um incentivador, num momento em que achava já que este era um tema proibido. Agradeço
também a Mariza Carvalho Soares, que me emprestou sem me conhecer pessoalmente, sua câmera mini-dv nova,
com a qual terminei as filmagens.
Agradeço a todos os caiçaras da Península da Juatinga, que me levaram em seus barcos, me ofereceram
suas casas, me contaram muitas histórias e que com o tempo se tornaram grandes amigos. Seu Altamiro, Dona
Jandira, Dona Maria, Dona Dica, Seu Filhinho, aos jovens da Praia Grande, Dona Tetéia do Pouso, que foi como
uma mãe pra mim, ao Gilson, grande contador de causos e seus amigos Às crianças do Pouso, a maravilhosa
família do Careca e da Dona Maria da Ponta da Juatinga, seus filhos que me contaram muitas histórias de
assombração, Seu Olímpio, um sábio caiçara e seus vários feijões. Seu Aplígio do Cairuçu das Pedras, o França
cesteiro, seu irmão Jango, Seu Domingo da Ponta Negra, Seu Nelson, Dona Dilma, agradeço com muito amor à
todas as comunidades e à todos os entrevistados. Com eles aprendi muitas coisas, como prever o tempo através
das estrelas, fazer peixe com banana e o gosto do macucu, mas também aprendi infinitas coisas que não
conseguem ser expressas com palavras e que mudaram muitas maneiras de me relacionar e ver o mundo.
Às pessoas da ONG Verde Cidadania, que sempre foram muito parceiras, e que me explicaram
exaustivamente os detalhes das leis, dos processos e de seu relacionamento com a comunidade. Agradeço também
pelo exemplo de luta da Thati, da Flavinha, do Léo, do Marcio e do Manuel, que sempre me apoiaram muito.
Agradeço também à Dani, a Laura, ao Martim e à Lucia Cavalieri que também foram muito importantes no
aprofundamento das questões pesquisadas.
Agradeço muito aos meus avós, aos meus amigos e irmãos que dividiram comigo as aventuras e
questionamentos dessa pesquisa; o Carlos Henrique me ajudando a datilografar, o Kenzo me ajudando a diagramar,
a Ádjoa repassando às organizações internacionais os protestos caiçaras. Meus amigos foram as vigas que me
sustentaram durante todo esse difícil processo de estudar a luta política de uma cultura que depende de seu
ambiente para sobreviver enquanto povo caiçara. Entraram nas lutas e estamos formulando juntos novas propostas
para um relacionamento mais harmônico entre urbanidade e conhecimento tradicional na Península da Juatinga.
À Leila Maria Capella, que me ajudou na organização mental e física do texto e a quem devo muito a
conclusão do trabalho.
Por fim agradeço muito ao meu orientador, José Augusto Pádua, que com o início de seu Laboratório de
História Ambiental, me proporcionou continuar na graduação sem ter que me transferir para outro curso que levasse
mais em conta o ambiente e suas interações com os homens. Agradeço também pela sua paciência e perseverança
em me ouvir e compreender.
Espero que toda essa pesquisa possa contribuir para a rede de trabalhos que recentemente vem
estudando e se relacionando com comunidades tradicionais e seus ambientes e que buscam uma interação mais
viva entre a academia e as comunidades pesquisadas.

4
Índice:

Introdução teórico metodológica.......................................................................... 06

Capítulo I - A região, o homem e a natureza............................................. 27

Capítulo II - A vida caiçara e sua herança indígena................................... 45

Capítulo III - Ambiente e resistência: memória ambiental, segurança


alimentar, turismo e luta pela terra.......................................... 66

Conclusão ........................................................................................................... 86

5
Introdução Teórico Metodológica

“A História Ambiental está se convertendo em uma disciplina aplicada que, rompendo com a
impronta academicista e eruditos que sempre tiveram os relatos históricos; busca e propõe
soluções para a crise ambiental atual ou coopera com outras disciplinas para encontrá-las.”2

O tema desta pesquisa é a história das relações


estabelecidas entre a população caiçara da Península da
Juatinga e o meio ambiente em que vivem. A Península da
Juatinga é uma região litorânea de difícil acesso, na divisa entre
os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. É interessante
observar que, nessa região, são os processos históricos que
fazem com que, além de um raro ecossistema de mata atlântica
conservado, se encontre uma expressiva cultura local.
Para a História Ambiental, essa região apresenta diversas
características de interesse: além das práticas comunitárias de
origem indígena e a luta pela posse da terra, existe a questão da
área ser uma Reserva Ecológica e uma Área de Proteção
Ambiental. As formas de interação homem-natureza são o ponto
de partida para a análise histórica da vida caiçara.

2
CIRCULAR #1 - março 2005 - III SIMPOSIO LATINOAMERICANO E CARIBEÑO DE HISTÓRIA
AMBIENTAL, III ENCONTRO ESPANHOL DE HISTORIA AMBIENTAL “História Ambiental, um
instrumento para sustentabilidade” Carmona (Sevilha), 6,7 e 8 de abril de 2006

6
A Praia Grande da Cajaíba é hoje o principal foco de conflito entre
caiçaras e grileiros.

A História Ambiental a partir da década de 70, quando


começou a se estruturar como campo de pesquisa acadêmica já
contava com uma bibliografia. Esta apesar de não ter essa
nomenclatura, já trabalhava através da perspectiva da relação
homem-natureza. Os viajantes naturalistas, as pesquisas
modernistas sobre cultura popular e tantos outros pesquisadores
como Sérgio Buarque de Hollanda, Antônio Cândido e Gilberto
Freire.
Na América Latina vem se desenvolvendo mais
contemporaneamente pesquisas que abarcam análises sobre a
cultura e o empobrecimento, que segundo Herrera, além da
discussão sobre a destruição da natureza permitem uma “visão
mais global, com uma noção mais clara de que fazemos parte da

7
humanidade.”3 Essas pesquisas visam criar a possibilidade de
integrar duas esferas historicamente dicotômicas que são as
ciências naturais e as sociais.
Dentro do tema pesquisado, esse viés de análise que
percebe a cultura como fator importante para a pesquisa
ambiental foi aprofundado nas hipóteses. A primeira focou nos
caiçaras como culturalmente e biologicamente descendentes de
indígenas, possuidores de um etnoconhecimento que pode ser
utilizado na conservação e recomposição ambiental das áreas
onde vivem. A segunda pesquisou como os fatores advindos da
urbanidade: grilagem, protestantismo, leis ambientais e turismo,
foram historicamente agentes de degradação ambiental na
península. A última analisou como recentemente vem se forjando
um estereotipo de que os caiçaras são um povo exclusivamente
pescador. Ignorando, muitas vezes intencionalmente, suas fortes
raízes agrícolas.
O tema da presente pesquisa foi sendo desenvolvido a
partir do primeiro contato com um líder natural da comunidade
caiçara, Seu Manoel dos Remédios. Único morador da Praia do
Martim de Sá, sua luta pela posse da terra motivou a formação
de uma ONG, a Verde Cidadania e a construção de uma rede de
aliados urbanos. A partir do resultado positivo desse movimento,
o caso de Seu Maneco, como é conhecido, passou a ser um
exemplo muito respeitado dentro da comunidade caiçara. O
principal elemento de interesse em relação a Seu Maneco são
suas histórias sobre a fauna, a flora, a política, a luta pela terra,
a ecologia, a ética e o modo de vida caiçara.

3
DINIZ, Laura. O viés social marca história ambiental na América Latina. Entrevista com Guillermo
Castro Herrera. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento: PNUD Brasil. Sítio
http://www.pnud.org.br/meio_ambiente/reportagens/index.php?id01=413&lay=mam

8
S.Maneco sobre as raízes da mangueira que plantou quando jovem.

Após a primeira viagem de campo, foi constatada a carência de fontes


primárias provocada principalmente pelo impacto do protestantismo. E, ao retornar
à cidade, soube-se que o Instituto Estadual de Florestas – IEF/RJ havia destruído
ranchos de pesca na Praia Grande da Cajaíba. A ONG Verde Cidadania, que já
atuava na região, elaborou uma proposta de ação civil pública, via internet, que
conseguiu 700 assinaturas e denunciou a ação violenta do IEF. A partir desse
episódio, fez-se necessário ampliar o alcance da pesquisa. O foco, que era
inicialmente o estudo da família dos Remédios, da Praia do Martim de Sá, passou
a ser toda a região da Península da Juatinga.

9
Assim, tema e o objeto desta pesquisa inserem-se no
domínio da História Ambiental. Esta, segundo Worster, “ nasceu
(...) de um objetivo moral, tendo por trás fortes compromissos políticos,
mas, à medida que amadureceu, transformou-se também num
empreendimento acadêmico que já não tinha uma simples ou única agenda
moral ou política para promover. Seu objetivo principal se tornou
aprofundar o nosso entendimento de como os seres humanos foram,
através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente,
4
como eles afetaram esse ambiente e com que resultados.” Também na
opinião desse autor, “o historiador ambiental tem que enfrentar o
formidável desafio de examinar as idéias como agentes ecológicos”. 5
Diegues e Nogara, em seu livro O Nosso Lugar Virou
Parque, sobre o processo de criação da área protegida do Saco
do Mamanguá, que pertence à Reserva da Juatinga, inicia seu
texto ressaltando: “(...) há a necessidade de se começar a fazer, no
Brasil, de forma sistemática, a história ecológica não somente a nível
nacional, mas também regional e até local. Essa história ecológica como
proposta por Worster (1988) não deve ser simplesmente a história dos
ciclos econômicos, mas, sobretudo a história das relações complexas,
materiais e simbólicas, que os homens, ao longo do tempo histórico,
desenvolveram com o mundo natural e com os outros homens.” 6
O estudo das populações rurais no Brasil, a partir dos
cronistas coloniais, passando pelos naturalistas, até chegar às
Ciências Sociais do séc.XX, sempre buscou captar as
peculiaridades e os modos de vida dos grupos habitantes do
interior do país: caboclos, ribeirinhos, matutos, roceiros,
caipiras, e outras denominações que hoje se fundem no conceito
de populações tradicionais ou nativas, ao que se juntam os
indígenas, quilombolas e caiçaras. Um dos mais relevantes
estudos do séc. XX sobre populações rurais é o livro Parceiros
4
WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro:
Ed. da Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, 1991. p.02
5
idem
6
DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do
Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.12.

10
do Rio Bonito, de Antônio Cândido, um dos precursores e base
para o desenvolvimento de diversas reflexões sobre a
ruralidade. O caipira, como homem do campo, de práticas
arcaicas, é abordado de forma complexa e hoje alguns autores
consideram que “a cultura caiçara é uma subcultura da cultura caipira,
não simplesmente por se constituir numa variação paralela, mas (...)
também consideram o caiçara como uma expressão regional do caipira do
7
interior”.
Alguns autores discordam, afirmando que os caiçaras
possuem identidade própria. Nas entrevistas realizadas durante
a pesquisa de campo, os informantes comumente se referiam aos
caipiras quando queriam expressar a diferença entre a vida nas
cidades e a vida na roça, articulando caiçaras e caipiras como
“primos” culturais.
É ainda nascente o estudo das ligações entre o
etnoconhecimento e o fazer científico formal. Na historiografia,
o tema populações tradicionais não aparece em nenhum tópico
pedagógico, e a pesquisa sobre essas populações permaneceu
como objeto de outras ciências sociais, como a Antropologia, a
Geografia e a Sociologia. Apesar disso, e a partir dos novos
enfoques trazidos pela História Ambiental, esses grupos
populacionais de íntima relação com o meio ambiente podem ser
abrangidos pelos estudos acadêmicos. Sendo fundamental a
referência dos trabalhos pioneiros das outras áreas. Segundo
Worster,
“à medida que os historiadores enfrentam essas questões
elementares referentes a ferramentas e sobrevivência, logo percebem que
aqui também outras disciplinas andaram trabalhando, e há muito tempo.
Entre elas está a disciplina dos antropólogos, cujos trabalhos os
historiadores ambientais têm lido com grande interesse. Eles começaram a
procurar nos antropólogos chaves para pontos cruciais do quebra-cabeças
7
ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa Científica versus planejamento e gestão
ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000.

11
ecológico: qual a melhor maneira de compreender a relação das culturas
8
materiais humanas com a natureza?”
A perspectiva da História Ambiental como possibilidade de
novas abordagens é percebida de forma clara nos textos que
embasaram teoricamente a monografia. O viés agroecológico da
história, e Para fazer História ambiental, ambos de Donald
W o r s t e r , e A Formação da Agricultura Brasileira d e J o s é A u g u s t o d e
Pádua, demonstram, como diz Worster, que “a História Ambiental é,
em resumo, parte de um esforço revisionista para tornar a disciplina da
História muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tem
tradicionalmente sido.”9

Uma das mais significativas produções bibliográficas na


área das Ciências Sociais é a do Núcleo de Estudos em Áreas
Úmidas da USP, principalmente através do antropólogo Carlos
Diegues. Este desenvolve uma intensa produção bibliográfica,
inserindo nos meios acadêmicos a problemática das unidades de
conservação e populações tradicionais. Na série de
Enciclopédias Caiçaras, cinco até agora, sobre o turismo, a
conservação, a história, a memória e as festas, os temas são
analisados por diversos pesquisadores, de diversas áreas do
conhecimento, além de entrevistas com caiçaras, inclusive Seu
Maneco, do Martim de Sá. Essa análise é importante na geração
de um arcabouço teórico sobre o tema, retirando-o do
obscurantismo e possibilitando, inclusive, conseqüências
políticas. Entretanto, algumas críticas têm sido feitas ao viés
metodológico que, segundo alguns autores como Cristina Adams,
é carente de rigor científico acadêmico, principalmente na
utilização de conceitos ultrapassados. Apesar disso, as
conseqüências até internacionais do livro O Mito Moderno da

8
WORSTER, Donald. Para fazer História Ambiental. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro:
Ed. da Fundação Getúlio Vargas, vol. 8, 1991.
9
idem

12
Natureza Intocada foram um divisor de águas no processo de
debate sobre a criação de áreas protegidas e suas
conseqüências políticas e culturais para as populações nativas.

A bibliografia utilizada foi principalmente a que trata do


tema referente à História Ambiental, populações tradicionais,
cultura popular e unidades de conservação. As pesquisas
acadêmicas, monografias e teses de mestrado sobre a Reserva
Ecológica da Juatinga foram fundamentais. A tese de mestrado
de Laura Sinay sobre o ecoturismo em Martim de Sá, a vasta
pesquisa sobre a recategorização da reserva feita por Lúcia
Cavalieri e a discussão teoricamente aprofundada feita por
Flávia Oliveira Teixeira foram norteadoras não apenas como
estudos acadêmicos, mas, também porque suas autoras
participaram ativamente dos processos políticos da península.
Esse fato se refletiu nos trabalhos e enriqueceu as análises.

Já o livro A Ferro e Fogo, de Warren Dean, foram mais


trabalhados no sentido da vasta pesquisa que representam sobre
o tema, e menos pelas abordagens metodológicas.
Principalmente o texto de Warren Dean que, apesar da preciosa
pesquisa documental, e do amplo panorama sobre a ocupação da
Mata Atlântica, ainda se prende a muitos esquemas de defesa de
uma posição bem definida, em seu caso o caráter destruidor do
homem. Seu radicalismo destoa da valorosa pesquisa e deixa
por falar alguns tópicos importantes como as possibilidades e
experiências de equilíbrio homem – natureza, bem como da
teoria sócio-ambientalista de que o homem não é uma entidade
separada de seu meio e vice-versa.

Sobre o tema específico da história caiçara, o livro Lavoura


Caiçara, de Carlos Borges Schmidt, de 1958, é um documento
precioso. Neste livro, o autor analisa as principais formas de

13
produção caiçara, levantando sua origem indígena. Esta análise
é crucial para a compreensão do tema porque abrange
importantes questões muito debatidas até hoje quando se trata
do tema caiçara.

A metodologia de pesquisa utilizada, além da investigação


bibliográfica, foi a de pesquisa de campo participante, com
entrevistas livres, perguntas-chave, mais para conversa do que
para o questionário. A inserção da pesquisa foi afetiva, método
que possibilitou um maior acesso a informações restritas. Foram
os informantes mais próximos dos laços de amizade que
forneceram dados complexos, como a localizações dos sítios
arqueológicos e os processos de grilagem. Os sítios
arqueológicos são cercados de tabus comunitários, que
restringem o acesso, além de ser assunto pouco comentado com
“estranhos”; também a morte de moradores por causa de brigas
de terra e lendas também são difíceis de serem narradas,
principalmente pelo impacto do protestantismo. Os moradores
mais antigos foram os mais procurados, buscando mapear
ligações entre moradores, antigas histórias e lugares outrora
habitados.
Entretanto, moradores de todas as idades foram
entrevistados - crianças, adolescentes e adultos jovens -,
principalmente no intuito de perceber as diferenças e
aproximações nas práticas produtivas e o conhecimento
tradicional das diferentes idades. São poucos entre os jovens os
que valorizam as atividades tradicionais, fato que se inverte nas
crianças, que têm interesse pelos brinquedos, cirandas e
histórias.
Agentes urbanos também foram pesquisados, no sentido de
estabelecer visões diferenciadas das questões da região, bem
como sua atuação. Os responsáveis legais pela reserva também

14
haviam sido escolhidos para serem entrevistados. E, como
anteriormente todos os pesquisadores de áreas sociais que
pediram autorização para suas pesquisas tiveram acesso
negado, além de entrarem para a lista de ameaçados de morte,
preferiu-se não contactar os órgãos legais, por receio de
represálias dos grileiros, que mantêm com aqueles órgãos uma
rede de informação e ação.
As entrevistas dos trabalhos de campo foram os fios
condutores da pesquisa. Os temas pesquisados com os
moradores locais focaram a memória da historia local, dos
conhecimentos botânicos, de fauna, climático, culinário, e
outros. Muitas lendas e causos remontam antigas lendas
coletadas por Câmara Cascudo e outros etnógrafos,
evidenciando uma herança indígena e colonial. As músicas, as
brincadeiras e a espiritualidade foram mapeadas, permitindo
análises mais minuciosas sobre o impacto das transformações
culturais contemporâneas.
A produção de um documentário, com imagens digitais
captadas durante as entrevistas foi fundamental na consolidação
da proposta de interação entre a pesquisa acadêmica e a
comunidade pesquisada. Principalmente porque a proposta
inicial de trabalho de conclusão do Curso de graduação havia
sido um vídeo documentário sobre a história dos caiçaras da
Juatinga. Embora tal proposta tenha sido negada, o vídeo foi
concluído antes desta monografia e abriu o II Festival de Cinema
Caiçara, ocorrido na Praia do Sono, dentro da península, em
dezembro de 2005.
Na pesquisa buscou-se também um conjunto de produções
audiovisuais, como os vídeos feitos sobre a Praia de Martim de
Sá e a família dos Remédios, o vídeo sobre a puxada de canoa,
o documentário sobre os assovios que chamam os animais, e

15
outros vídeos importantes. Sobre o processo de expulsão dos
moradores da Praia Grande da Cajaíba, como o " Expulsos do
Paraíso", "Vestígios" e outros sobre a Praia do Sono, Ponta
Negra e sobre a expulsão dos moradores da Trindade, como o
filme Vento Contra. Neste documentário da década de 70, o
processo violento movido pelo grileiro Gibrail Tannus contra os
caiçaras moradores da Praia da Trindade é captado em imagens
que transformam esse documentário em uma importante fonte
histórica. Outros aspectos também são tratados por esses
documentários como o impacto do turismo, a proposta de
abertura de uma estrada até a Praia do Sono e o
etnoconhecimento dos moradores.
As pesquisas sobre as relações entre populações
tradicionais e áreas protegidas têm evoluído no sentido de
desvendar os interesses que muitas vezes estão implícitos sob a
bandeira da proteção da natureza. Interesses econômicos,
ideológicos e políticos muitas vezes são envoltos em uma capa
de argumentos ambientalistas, aproveitando-se do marketing
relacionado à importância da proteção da natureza, causada
pela crise ambiental do século XXI. Muitas vezes esses falsos
interesses preservacionistas causam danos ainda maiores às
áreas que se propõem a proteger.

Há conseqüências políticas nas pesquisas, já que estas


geram dados que muitas vezes contrastam com o senso comum
no qual foi baseada a criação das áreas protegidas. Essa
perspectiva política da prática acadêmica relaciona-se à análise
foucaultiana de que todos os corpos e ações têm poder. Para
Foucault, há um mito em relação à ausência de poder entre
saber e ciência. Para ele, implícito em todo saber está uma luta
de poder, e o poder político não está ausente do saber, pelo
contrário, ele é forjado com o saber. Em suas palavras, “poder e

16
saber estão diretamente implicados; não há relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha
e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”10

Para as comunidades, as investigações científicas também


são percebidas como possibilidades de ação política. As
pesquisas das Ciências Sociais, na qual a História se insere,
sugerem um outro modo de relacionamento com a sociedade
letrada, já que esta historicamente age de forma opressiva,
contra a comunidade caiçara.

Algumas questões estão implícitas na presente pesquisa:


Quais interações são possíveis entre Academia e comunidade?
Qual a importância da pesquisa científica para os moradores
locais? E por fim, qual o retorno possível que existe para
ambos?
Por fim, este trabalho, ao comparar os resultados da
pesquisa de campo com as fontes bibliográficas, construiu um
esboço da História dos Caiçaras da Península da Juatinga, e sua
intrincada teia de relações com o ambiente que os cerca. Houve
uma ênfase no impacto dos agentes externos, como o
protestantismo, a grilagem, as ONGs, pesquisas, órgãos
ambientais, enfim, a sociedade urbana, nas práticas, visões de
mundo e cultura popular dos caiçaras dessa região. Alguns
conceitos não aprofundados pelos autores pesquisados, como a
memória ambiental e a deficiência alimentar, foram aqui
aspectos fundamentais, mas a falta de informações sobre esses
temas prejudicou a análise, embora não a tenha impedido de
todo. Uma das principais perspectivas deste trabalho foi trazer à
luz as atividades tradicionais que se encontram em extinção

10
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas — uma arqueologia das ciências humanas. 3 ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1985.

17
entre os caiçaras, as conseqüências dessas perdas e as
alternativas possíveis para sua adaptação à contemporaneidade.

Mapa do Estado do Rio de Janeiro e a localização da Península da Juatinga

18
Mapa da Península da Juatinga e as áreas protegidas.

Mapa das Principais Viagens de Campo

19
1ª Viagem de Campo: maio/2005
10 dias (barco e trilha)
2ª Viagem de Campo: setembro/2005
10 dias (barco e trilha)

Comunidades percorridas na península:

1. Praia do Cruzeiro (Saco do Mamanguá)


2. Praia do Engenho (Saco do Mamanguá)
3. Praia Grande da Cajaíba
4. Praia da Itaoca
5. Praia do Calheus
6. Praia da Ipanema
7. Praia do Pouso da Cajaíba
8. Ponta da Juatinga
9. Ponta da Rombuda
10. Praia do Martim de Sá
11. Praia do Cairuçu das Pedras
12. Praia da Ponta Negra
13. Praia de Antiguinhos
14. Praia de Antigos
15. Praia do Sono
16. Condomínio de Laranjeiras
17. Praia da Trindade

Mapa das Viagens de Campo Complementares

20
1ª Viagem de Campo: Festival de Cinema Caiçara
dezembro/2005 - 4 dias (trilha)
2ª Viagem de Campo: Agricultura Tradicional/Agroecologia
abril/2006 - 4 dias (barco e trilha)
3ª Viagem de Campo: Arqueologia do Museu Nacional
Junho/2006 – 3 dias (barco e trilha)

Principais Informantes:

21
 Paraty

Mestre Hildo (marinheiro): História, hábitos caiçaras, herança indígena e


caça.
Obs: Último caiçara morador do centro histórico de Paraty.

 Saco do Mamanguá

S.Benedito (aposentado): Sacis ou “tentos”, protestantismo, fim da lavoura,


barcos de arrasto, escravos, decadência social e econômica do Saco.
Obs: Filho de um grande festeiro cujas festas foram lembradas em diversas
localidades.

 Praia Grande da Cajaíba

D.Maria (agricultora/comerciante): Nomadismo caiçara, bijus puvus, roças,


herança indígena, grilagem e bailes.
Obs: No decorrer da pesquisa D.Maria, uma das mais importantes
informantes, apresentou problemas emocionais devido à pressão da
grilagem.

S.Filhinho (agricultor): Lendas e causos caiçaras.


Obs: Casado com D.Maria, mas, moram em casas separadas.

D.Dica (agricultora/comerciante): Roça e grilagem.


Obs: Irmã de D.Maria, move processo contra capataz do grileiro que a
ameaçou com uma arma de fogo.

S.Altamiro (agricultor/pescador/comerciante): Roça, compostagem,


viveiros agroflorestais, grilagem, herança indígena e pesca.
Obs: Presidente da Associação de Moradores da Praia Grande sofre
constantes ameaças do grileiro, além de ser réu em processo de
reintegração de posse.

D.Jandira (agricultora/pescadora/comerciante): Feitio de farinha e grilagem.


Obs: Casada com S.Altamiro.

22
 Praia do Pouso da Cajaíba

D.Tetéia (merendeira da escola): Roças, bailes e sítio arqueológico.


Obs: Informou a presença de sílex e machados de pedra, localmente
conhecidos como pedras de raio.

S.Miguel (agricultor/pescador): Festas, bailes, comidas, rezas, lendas e


causos.
Obs: Casado com D.Tetéia, S.Miguel era o violeiro da Folia do Divino, que
percorria as praias da Península.

Gilson (pescador/pedreiro/outros): Lendas, causos, trabalho.


Obs: Filho do casal, Gilson mesmo jovem é reconhecido na praia como
ótimo contador de histórias seguindo a tradição do pai.

 Ponta da Juatinga

D.Maria (agricultora/pescadora): Roça, pesca e conflitos de terra entre


parentes.
Obs: Sua casa em construção na Praia dos Calheus foi destruída pelos
agentes do IEF, na mesma operação que destruiu os ranchos na Praia
Grande.

Careca (agricultor/pescador): Gostos caiçaras.


Obs: Casado com D.Maria, é nitidamente descendente de indígenas, com
fortes características asiáticas.

23
S.Olímpio (agricultor): Variedade genética das roças, controle do fogo na
coivara, consórcio de espécies vegetais, sítio arqueológico, herança
indígena, localizou a aldeia de onde sua avó indígena teria morado.
Obs: S.Olímpio foi um dos principais informantes, tanto pela localização do
sítio arqueológico, como pelas informações sobre a avó indígena, e também
porque possui variedades genéticas de vegetais indígenas, extintos em
outras localidades.

 Ponta da Rombuda

Camuzinho (agricultor/pescador): Modo de vida caiçara tradicional.

Creuseli (agricultora): Vida em um local isolado e vacinação infantil.


Obs: A Ponta da Rombuda é um local extremamente isolado, entre
rochedos e a mata e onde foi encontrada a maior presença de usos e
costumes caiçaras tradicionais como a casa em palafitas, o aimpim como
alimento principal da dieta e o consorcio de espécies.

 Praia de Martim de Sá

D.Capitulina dos Remédios ou D. Capita (dona de casa): Vida caiçara,


caiçaras antigos e cata de mexilhões.
Obs: Matriarca, segundo o filho S.Maneco, D.Capitulina tem 100 anos e foi
muito lembrada nas outras praias pela saúde. Segundo contam é capaz de
rachar lenha e fazer trilhas mais rápido que um jovem e quando chegar
pedir um cigarro.

S.Manuel dos Remédios ou S.Maneco (pescador/agricultor/dono de


camping): Flora, fauna, desequilíbrios ambientais, história caiçara,
antecedentes indígenas, sítios arqueológicos, grilagem, Ong,
protestantismo, feitio de canoas.
Obs: S.Maneco foi um dos principais informantes e o caiçara mais
conhecido dentro e fora da Península.

 Praia do Cairuçu das Pedras

24
S.Aplígio (agricultor/pescador/dono de camping): Feitio de farinha, poluição,
agricultura, pesca, lendas, sítios arqueológicos, antecedentes indígenas,
causos e magia.
Obs: S.Aplígio, assim como D.Maria e S.Filhinho foram os únicos a relatar
elementos da cultura caiçara extintos inclusive na memória dos outros
caiçaras entrevistados, é casado com a irmã de S.Maneco, D.Dulcinéia.

S.Jovino (agricultor/pescador/fazedor de canoas/dono de camping/fazedor


de tapitis): Sítio arqueológico cerâmico, antecedentes indígenas, feitio de
canoas, extinção da fauna.
Obs: S.Jovino é irmão de Seu Maneco e D.Dulcinéia, ele e os filhos são os
últimos fazedores de tapiti da península.

Jango (agricultor): Encantados e livro do séc.XIX.


Obs: É irmão de D.Lorença, casada com S.Maneco.

Francino (cesteiro/agricultor/dono de camping): Feitio de balaios e manejo


de cipós.
Obs: Francino, irmão de Jango, é o último fazedor de cestos e balaios da
península, muito conhecido pela boa qualidade de seu trabalho que
abastece toda a região.

 Praia da Ponta Negra

S.Domingos (agricultor/pescador): Roça, alimentos industrializados,


associação de moradores e tapitis.
Obs: S.Domingos é um dos últimos agricultores que colhe a maioria de seu
alimento na Ponta Negra, fato que se orgulha muito. É casado com
D.Dominga.

S.Nelson (aposentado/pescador/agricultor): Roça, adubagem com feijão


guandu, lenda da Mãe do Ouro, grilagem.
Obs: S.Nelson foi um dos líderes locais que organizou a resistência da
Ponta Negra contra a ação dos grileiros, aparecendo inclusive no filme
Vento Contra.

25
D.Dilma (aposentada/dona de camping): Bailes e trilhas percorridas até as
festas.
Obs: D.Dilma descreveu com detalhes os bailes e a dança de tamancos,
que foi inclusive negada por muitos antigos que se tornaram protestantes.

Nego (padeiro): Reflorestamento, desmatamento e conflitos da associação


de moradores.

 Praia do Sono

D.Baíca (agricultora/dona de camping): Roça e antecedentes indígenas.

Preta (estudante): Jovens, ciranda e roça.


Obs: Filha de D.Baíca.

S.Nilo (aposentado): Protestantismo.


Obs: Considerado caiçara mais velho da comunidade.

S.Antônio (pescador/dono de camping): grilagem e protestantismo.


Obs: Foi um dos líderes da comunidade na resistência à grilagem.

26
A Região, o homem e a natureza.

A Região de Paraty

Paraty é uma das cidades mais antigas do país. Foi ponto


de embarque do ouro e desembarque de escravos e estrangeiros
de todo o mundo que vinham tentar a sorte nas minas. Através
do Caminho do Ouro da Piedade, ou Estrada Velha de Minas,
subiam as boiadas e alimentos, pelo que outrora fora a trilha
guaianá para o Vale do Paraíba. Apesar disso, a região da
Juatinga sempre foi de difícil acesso e continua sendo.
“O cultivo de cana-de-açúcar foi a atividade mais importante a partir
do século XVIII, quando os engenhos se estabeleceram na região. No Saco
do Mamanguá ainda podem ser encontrados cinco ruínas desses
11
engenhos.”
Na época áurea dos engenhos, a região possuía uma
produtividade relevante e durante o século XIX produziu
quantidade significativa de café, fumo e aguardente. Ainda os
antigos moradores lembram-se das canoas de voga indo
carregadas para Paraty, levando café, farinha e peixe seco.
Hoje, com os barcos a motor, a comida vem de Paraty,
empacotada em sacos plásticos que depois são queimados.
A decadência da região começou com a concorrência da
estrada de Ferro D.Pedro II e a abolição dos escravos. Mesmo
assim continuou a produzir a famosa cachaça Paraty e assistiu
ao início de um novo ciclo, o da banana. Todos esses ciclos
devastaram as encostas, e hoje, em todas as áreas da Reserva,
vêem-se grandes áreas degradadas. Mesmo que a técnica de
cultivo indígena, caracterizada pelo uso da queimada (coivara),

11
DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do
Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.12

27
tenha sido utilizada em épocas pré-coloniais, não devia atingir o
alto das serras, já que eram queimadas controladas.
Além disso, utilizavam um sistema de pousio longo, o que
não parece ter sido a regra dos colonizadores. Durante o
processo de desenvolvimento econômico do Brasil, as técnicas
de produção empregadas se basearam na utilização imprevidente
e avassaladora dos recursos naturais. Essa região viveu o
apogeu e decadência do ciclo do ouro, os engenhos e a
transformação da produção em gêneros alimentícios, quando
passou a prover os centros urbanos.
Os sucessivos ciclos econômicos incluindo a pesca
embarcada e as plantações de banana foram fatores de
dispersão da população, mas segundo Nogara e A.C.Diegues, “o
esvaziamento importante da região se agravou com a construção da Via
Dutra, em 1940, deslocando o eixo econômico para o Vale do Paraíba. A
partir de 1955, a comunicação de Parati com o exterior se fazia cada vez
menos de barco e canoas a voga e mais pela estrada de Cunha. Acentuou-
se o processo de migração para outras áreas como, por exemplo, Angra
dos Reis, onde, em 1950, se instalou o estaleiro Verolme, seguido, em
1974, pela implantação da Usina Nuclear que empregou 9.000 operários.” 12
Mas foi com a construção da BR-101, na década de 70, que
o contato com o mundo urbano se tornou massivo. Paralelo à
degradação de trechos inteiros do recorte do litoral, os terrenos
sofreram uma valorização abrupta que gerou um acirramento
violento das disputas por terras da década anterior.
“A partir do simples projeto da Rio-Santos, os proprietários de terras
surgem como que do nada, demarcando áreas enormes a partir de
pequenas escrituras, “grilando” terras, expulsando os lavradores com
violência e ameaças ou mesmo com ofertas irrisórias a que os lavradores
não resistiam, por não conhecer o valor exato do dinheiro. Estes,

12
DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco do
Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. p.22

28
analfabetos em sua maioria, eram enganados de várias formas, inclusive
assinando contratos de arrendamento, meia ou parceira, onde acabavam
cedendo seus direitos de posse, sem saber.”13

A Península da Juatinga

Inscrita na parte paratiense da baía da Ilha Grande,


encontra-se a Península da Juatinga, que constitui o último
fragmento litorâneo de áreas continuas de mata atlântica do
estado do Rio de Janeiro. A Reserva Ecológica, que toma toda a
Península, está inserida dentro da Área de Proteção Ambiental
do Cairuçu, que por sua vez se limita com o Parque Nacional da
Serra da Bocaina, a Serra do Mar e outras áreas protegidas do
litoral norte de São Paulo. É uma das mais belas e conservadas
regiões litorâneas do país, mesmo se situando entre as duas
maiores capitais. A área protegida vai de Parati-Mirim, na parte
do mar interior, e passa pelo Saco do Mamamguá, único fiorde
do hemisfério Sul. Na Praia Grande da Cajaíba, assim como no
Saco, há forte pressão da especulação imobiliária. As praias da
Ipanema, Itaoca e Calheus são habitadas por comunidades
caiçaras, com poucas casas veranistas.
O Pouso da Cajaíba, aonde se chega após duas horas e
meia de barco de Parati, é bem turístico, com bares e casas
para temporada. Nesta comunidade foi descoberto recentemente
um sítio arqueológico característico de aldeamentos de povos
pré-históricos fazedores de machados de pedra, provavelmente
relacionados aos sítios da Praia do Aventureiro, na Ilha Grande.
Essa descoberta foi feita por arqueólogos do Museu
Nacional/UFRJ, em decorrência dos sítios arqueológicos
levantados pela presente pesquisa.
Da Praia do Pouso sai a trilha de mais 2 horas até a Praia
do Martim de Sá. No costão da Península, já na área do mar

13
Idem

29
aberto, onde existe um importante farol, situa-se a comunidade
de pescadores da Ponta da Juatinga, de difícil acesso. Após a
comunidade da Ponta do Juatinga, abre-se a região oceânica,
conhecida como costeira. Após o farol, fica a Ponta da Rombuda,
habitada apenas pelo casal Camuzinho, Creuseli e os filhos.
Local isolado e extremamente belo, onde foram encontradas
práticas caiçaras tradicionais já extintas na maioria dos lugares.
A próxima praia é a Sumaca, nome de um antigo tipo de
embarcação e também habitada por apenas um morador,
Manequinho. A segunda depois do farol e realmente possuidora
de uma enseada e de um rio é a Praia do Martim de Sá. Coberta
de densa mata entre as altas montanhas do vale, tem apenas o
rancho dos barcos de Seu Maneco, ou Manoel dos Remédios,
entre as castanheiras da praia.
No Saco das Anchovas, há parentes da família dos
Remédios, e depois Cairuçu das Pedras, Ponta Negra,
Antiguinhos, Antigos e Praia do Sono, onde acaba a área de
conservação. Depois vem o condomínio de Laranjeiras, habitado
por multimilionários, e a famosa Praia da Trindade, onde os
violentos processos de grilagem na década de setenta inseriram
o tema caiçaras na pauta de discussão dos movimentos sociais.
Existem outras localidades caiçaras na Península, como o Saco
das Sardinhas, a Cela, e habitações em pequenas enseadas.
Essas, entretanto, refletem os aspectos estudados nas outras e
não foram detidamente pesquisadas, por serem muito diminutas
e também porque o foco se fixou nas comunidades com maior
influência geopolítica, histórica e cultural.
Na região pesquisada, as “áreas verdes”, consideradas de
grande beleza cênica e habitat de espécies importantes, são há
milhares de anos território manejado. Desde as ocupações pré-
históricas, indígenas, coloniais, até os dias atuais, a ocupação

30
litorânea brasileira vem sendo estudada pelos pesquisadores.
Além do sítio encontrado no Pouso, foram colhidos relatos de
amoladores de pedra na Praia do Martim de Sá, onde foi
encontrado um pingente de pedra e no Cairuçu das Pedras.
Houve também um relato de um sítio cerâmico no interior da
mata, na direção do Pico do Cairuçu, feito pelo Seu Jovino,
irmão de Seu Maneco, e este sítio pode ser a aldeia a que Hans
Staden se refere como existente abaixo do Pico do Caeroçu.
Além disso, na Ponta da Juatinga, há diversos relatos sobre a
Toca dos Ossos, uma caverna onde estariam enterrados índios,
antepassados dos atuais habitantes da Ponta da Juatinga.

Os habitantes da Península: os caiçaras

Por tais relatos podemos inferir que as matas da Península da


Juatinga possuem uma ocupação de longuíssima data, que nos
dias de hoje é feita pelos atuais caiçaras. Estes possuem um
território intermitente, de roças em regeneração e áreas
ocupadas por antepassados. Ao olhar do não nativo, apresenta-
se apenas uma grande área verde, sem perceber as
especificidades da ocupação. Existem demarcações que são
feitas com árvores, de antigas casas dos pais e avós, que hoje
estão cobertas pela mata. São mangueiras, jaqueiras, cambucás
e jabuticabeiras que guardam a memória do local antes ocupado
pelos antepassados.
Os caiçaras, assim como outras sociedades tradicionais
baseadas na oralidade, vivem, no presente, uma crescente
ruptura na transmissão de conhecimento, principalmente pelo
afastamento das gerações. Talvez por isto houve uma
preocupação por parte dos entrevistados em ver registrado seus

31
conhecimentos. A história grupal recontada constitui-se uma
afirmação dessas sociedades, e legitima o seu direito ao
território ancestralmente ocupado. Nesse contexto, as pesquisas
propiciam o fortalecimento e a coesão dos grupos humanos,
embora não deixem de ser mecanismos da sociedade letrada,
que é uma das principais causas das formas de desagregação
vividas pelas sociedades tradicionais, principalmente através do
impacto causado pela escolarização infantil.
A origem indígena das populações caiçaras evidencia-se,
em primeiro lugar, pelo próprio nome, que em tupi significa
paliçada, que protege as tabas. Este tipo de cercamento de
varas de taquara e/ou da Jussara ainda hoje é utilizado na
região, em áreas mais povoadas e também nas isoladas. No
Nordeste, as caiçaras são armadilhas de pesca marinha usadas
pelos pescadores tradicionais. Segundo Schmidt:
“os caiçaras são fruto da miscigenação entre índio, português e negro (em
menos quantidade) que durante longo período ficaram relativamente
isolados na Mata Atlântica e no litoral de São Paulo. Ainda que sejam
etnicamente distintos, sua cultura apresenta influência muito grande da
cultura indígena nos instrumentos de trabalho (coivara, canoas, fabricação
de farinha), vocabulário diferenciado dos demais habitantes do estado,
etc.”14
No caso da Península, existem complementações a essa
descrição: a descendência de piratas, como foi dito em
entrevistas; a herança genética indígena nos traços físicos das
pessoas e nas sementes que plantam, na genealogia do
parentesco, na descrição de práticas antigas desaparecidas;
além do consórcio de espécies nas roças também ser uma
característica remanescente da cultura indígena.

14
SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola,
1958. p.56

32
O enfoque histórico ao pesquisar as reminiscências, entre
os caiçaras atuais, das práticas de seus antepassados
indígenas, é importante por contribuir para o debate sobre a
história indígena da região Sudeste, tão afetada pelo contato
maciço e pela dizimação das tribos. Se realmente existe um povo
remanescente indígena e que se considera como tal, muitos
aspectos da história do Rio de Janeiro podem ser redesenhados.
Esse modus vivendi que permanece no dia-a-dia dessas
comunidades vem sendo valorizado como um recurso político
para afirmação de sua identidade e pelo direito ao território em
que habitam.
Nesta relação, a identidade cultural da comunidade se
constrói e reconstrói sobre uma herança indígena transmitida por
meio das práticas caiçaras, além do resgate dessa identidade
caiçara estrategicamente relacionada à legitimação da ocupação
do território. Há uma emergência étnica, já que
contemporaneamente a auto-intitulação como caiçara gera
conseqüências positivas, em contraste ao passado de violências.
Seu Maneco, recordando, afirma que seu pai nunca se
interessou em fazer canoas. Foi ele, Seu Maneco, que foi
aprender em outras praias e começou a ensinar aos seus, e
agora envolve os freqüentadores na puxada de canoa. Portanto,
a questão é como essas práticas reafirmadas influenciam a
relação interna entre os caiçaras, destes com os agentes
externos e a construção de parcerias com aliados na defesa de
suas terras, como no caso da convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho que trata das populações nativas, e a
legislação das áreas ambientalmente protegidas em que habitam.
Percebe-se que há um processo, embora lento, entre os
caiçaras, de reconhecimento da importância das atividades
tradicionais. Entretanto, essa lentidão permite que perdas

33
genéticas aconteçam, já que a agricultura tradicional caiçara de
coivara está proibida pelos fiscais. Há também um esforço de
agentes urbanos, legisladores, funcionários, pesquisadores e
outros de reconstruir a identidade caiçara não mais como povo
essencialmente agricultor e sim de pescadores. Porém, no livro
de Schmidt, de 1958, é descrita a casa do caiçara, como tendo a
porta voltada para a lavoura e não para o mar, mesmo que a
casa esteja perto deste. No livro, o autor aponta essa
construção como uma evidência material da ligação do caiçara
com a roça.
Na Praia do Cairuçu das Pedras, onde ainda hoje moram a
irmã e o irmão de Seu Maneco do Martim de Sá, encontra-se a
antiga casa de Roque Caçador, patriarca da família. Após ser
“grilado” da Praia do Martim de Sá, sua última morada foi no
Cairuçu. D. Dulcinéia, sua filha, ainda mora na antiga casa, em
que, apesar da vista deslumbrante para o mar, a porta se
encontra voltada para o pomar, a mata em regeneração e seus
pés de café.

Essa herança caiçara, ancestral e/ou recriada como forma


estratégica de afirmação do território em que habita, inclui a raiz
indígena e se mostra fundamental para a consolidação dessa
imagem do manejo tradicional bem adaptado ao meio ambiente,
sendo essa afirmação plausível ou não. Seja a roça de abacaxis,
a casa de farinha ou a puxada de canoa. Essas características
também contribuem para uma afirmação do direito ancestral à
terra em que vivem. Luchiari afirma: “pode-se dizer que a ocupação
indígena do litoral, anterior à colonização (século XV), não deixou muitas
marcas na paisagem local, mas transmitiu, como legado, fortes
contribuições culturais: o tipo étnico, algumas técnicas para a lavoura e
pesca e muitas trilhas e caminhos”.15
15
DIEGUES, Antonio Carlos (org.) Enciclopédia Caiçara v. 3 O Olhar Estrangeiro - Yvan Breton,
Steve Plante, Clara Benazera, Steve Plante e Julie Cavanagh, – São Paulo,
NUPAUB-CEC/HUCITEC, 2005.

34
Essa reconstrução identitária deve ser analisada de forma
crítica. Afinal, os caiçaras são povos bem adaptados e
dependentes de sua relação com a natureza, sem terem sido,
historicamente, povos defensores do meio ambiente. Essa
identidade por eles mesmos atribuída recentemente está ligada à
necessidade de se criarem estratégias de permanência no
território, já que “as culturas tradicionais não são estáticas, estão em
constante mudança seja por fatores endógenos ou exógenos.” 16

A luta pelo espaço ancestral

Para a pesquisa acadêmica, a região estudada apresenta


múltiplas questões, principalmente políticas, como a violenta
especulação imobiliária.
Na região existem áreas protegidas que se sobrepõem: a
Reserva Ecológica da Juatinga, a Área de Proteção Ambiental do
Cairuçu, a Reserva Indígena Guarani de Paraty-Mirim e o Parque
de Lazer de Paraty-Mirim. As reservas brasileiras, excluindo as
indígenas, extrativistas e de desenvolvimento sustentável
adotam em geral um modelo de uso restritivo. Nesses casos, a
exclusão, diminuição ou controle da presença humana nas áreas
de reserva são formas de garantir a preservação. Há nesse
modelo uma forte influência do paradigma do homem destruidor,
que se percebe a partir do 2º pós-guerra, e se baseia na visão
de que não há equilíbrio possível entre o homem e a natureza.
Porém, na Reserva da Juatinga, pelo menos no texto do
decreto que a cria, está expresso o objetivo de uma adaptação à
realidade brasileira, propondo uma interação entre a utilização
dos recursos naturais e os preceitos conservacionistas. Como se
vê no texto da lei:

16
idem

35
“Art. 4º - A Fundação Instituto Estadual de Florestas IEF/RJ desenvolverá
programa específico de Educação Ambiental, com o objetivo de fomentar a
cultura caiçara local, compatibilizando a utilização dos recursos naturais
com os preceitos conservacionistas estabelecidos neste Decreto .”17
Essa iniciativa legal contrasta, contudo, com as ações
práticas dos órgãos ambientais. Um exemplo disto foi a
destruição dos ranchos de pesca e de uma moradia caiçara na
Praia dos Calheus. Essa ação arbitrária motivou um processo de
ação civil pública, no Ministério Público Federal, que se concluiu
com o seguinte termo:
“(...) determinando ao IEF/RJ que se abstenha de realizar qualquer
operação que resulte na demolição ou destruição, ainda que parcial, de
habitações, barracos, ranchos e similares das Comunidades Caiçaras,
onde quer que se encontrem, ou a demolição ou destruição parcial de
quaisquer edificações, nos lindes da APA do Cairuçu.”18
“Esclarece o Ministério Público Federal que tais comunidades
contribuíram para a conservação da biodiversidade, pelo conhecimento
que possuem da flora e da fauna. Argumenta, ainda, que tais comunidades
vivem preponderantemente do mar (...).”19
Apesar dessa decisão, os caiçaras encontram-se em uma

posição paradoxal. Ao mesmo tempo em que são reconhecidos

pela lei, são acusados de destruir o meio ambiente, e este é o

principal argumento dos grileiros para retirá-los do local. Nesse

ponto ocorre a interseção dos interesses dos órgãos ambientais

e dos grileiros. A questão ambiental, na região, apresenta uma

dupla face: de um lado ameaça a sobrevivência das populações,

ao restringir as práticas tradicionais de produção e marginalizar

os que persistem utilizando-as, o que serve de argumento para

17
Lei Decreto Estadual n° 17.981/92 - Cria a Reserva Ecológica da Juatinga. Sítio
http://www.ief.rj.gov.br/legislacao/conteudo.htm, 2006
18
Medida liminar concedida na Cautelar Inominada n° 2005.5111.000450-0 às fls. 14/16, MPF.
19
idem

36
os processos de grilagem. Por outro lado, é responsável por um

conjunto de leis que dificultam a expansão da especulação

imobiliária, possibilitam ações integradas entre agentes urbanos,

movimentos ambientais e caiçaras, além de oferecerem novas

possibilidades de geração de renda e interação com o meio.

A visão da ecologia como teia de ecossistemas integrados


destaca a cultura como um dos pontos de ligação entre
extremos, já que é por meio dela que a natureza, incluindo os
próprios humanos, é percebida. Essa visão do homem como
parte integrante da natureza, sujeito às suas transformações e
também sujeito a transformá-la, caminha no sentido de equilibrar
visões que durante muito tempo geraram conflitos exaustivos no
debate científico. Tal debate também pode ser relacionado à
questão dos que defendem a retirada dos humanos das áreas de
proteção ambiental, e dos que tentam de todas as formas provar
que os humanos podem ser agentes da biodiversidade florestal.
A exclusão da cultura, como fator importante na análise
ecossistêmica local, ainda está por ser mais considerada pelas
pesquisas acadêmicas, de modo geral.

Como podemos ver no artigo de Candice Mansano em


Enciclopédia Caiçara:
“Algumas vezes que os executores de leis ambientais foram
interrogados sobre a situação difícil a que eles próprios levaram
comunidades caiçaras inteiras, responderam, nas entrelinhas: “eles podem
viver do turismo” ou “eles podem viver da pesca”. Talvez possam, mas
este não é o ponto-chave da situação. O fato é que, para defenderem um
modelo de Unidade de Conservação arraigado à preservação, o Estado

37
tenta safar-se da responsabilidade de ter sido o causador da
20
desintegração de toda uma cultura.”
Dentro desse sistema de forças, uma das principais
questões é a influência de um modelo de reservas naturais de
uso restritivo. A criação de uma legitimidade no poder de
implementação de tais áreas de proteção está relacionada a uma
visão de recursos naturais renováveis. Este conceito moderno
define a importância da natureza como fonte de matérias-primas
para a produção industrial e disso deriva a necessidade de
protegê-la. Esse capital bruto de um país , “essa articulação
crescente da dependência (...) leva a uma transformação do mundo natural
21
em mercadoria”.
Tal visão da natureza contrasta brutalmente com a maneira
cíclica como as comunidades tradicionais percebem a natureza.
O conceito (abstrato) de recursos naturais é percebido pelas
populações que dependem de um contato direto com os
ecossistemas como algo do qual se vêem como parte integrante,
ao qual estão ligados por lendas, tabus, rotinas de trabalho e
lazer.
E, quanto ao manejo tradicional do ambiente em que vivem,
Worster cita Altieri:
“Muitas práticas agrícolas, outrora consideradas primitivas ou mal
orientadas, estão sendo reconhecidas como sofisticadas e apropriadas.
Confrontados com problemas específicos de declives, enchentes, secas,
pestes, doenças e baixa fertilidade do solo, pequenos agricultores em todo
o mundo desenvolveram sistemas de gerenciamento único para superar
essas restrições'. Uma das mais impressionantes e também mais usuais de
tais técnicas gerenciais consiste em diversificar os produtos agrícolas em
cultivo.”22

20
DIEGUES, Antonio Carlos (org.) Enciclopédia Caiçara v. 3 O Olhar Estrangeiro - Yvan Breton,
Steve Plante, Clara Benazera, Steve Plante e Julie Cavanagh, – São Paulo,
NUPAUB-CEC/HUCITEC, 2005.
21
DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos
Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000
22
WORSTER, Donald. Transformações da terra: para uma perspectiva agroecológica na história.
ANPPAS – UNICAMP. Sítio Ambiente e soc. v.5 n.2 / v.6 n.1 Campinas 2003.

38
Essas raízes tradicionais, hoje valorizadas pelos estudos
agroecológicos e permaculturais, são o foco do debate da
presente monografia. Se os caiçaras foram capazes de manter
altas taxas de variedade genética em seus cultivos e áreas
manejadas, como sua cultura não é também fator importante
para a apreensão de técnicas agrícolas e de manejo florestal?
Mesmo não compartilhando uma visão romântica dessas
populações tradicionais, vistas como superprotetoras da
natureza (este mito não procede, devido principalmente às
queimadas), deve-se, contudo, atentar para a importância
desses povos como guardiões de espécies geneticamente raras,
sobretudo pelo avanço das culturas hibridas e transgênicas.
Parte da pesquisa de campo focou em como as restrições das
leis ambientais provocaram a diminuição das áreas cultivadas.
Esse fato acarreta a extinção de espécies agrícolas e a quebra
da segurança alimentar da comunidade.
As recentes leis que incidem sobre as comunidades
caiçaras já estabeleceram a necessária parceria com as próprias
comunidades e a gestão das áreas protegidas compartilhada com
seus moradores. Entretanto, a lei não está sendo cumprida pelos
órgãos ambientais, como no atual caso da recategorização da
Reserva Ecológica da Juatinga, categoria de área protegida que
não existe mais no Sistema Nacional de Unidades de
Conservação. O prazo de adequação expirou e foi prorrogado,
sem que houvesse uma discussão ampla com os moradores da
reserva. As reuniões com alguns líderes comunitários em Paraty
servem principalmente como propaganda e para legitimar atos
administrativos. A maioria dos caiçaras presentes não foi

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
753X2003000200003&lng=es&nrm=iso&tlng=pt, 2006.

39
informada sobre os processos de recategorização, e
simplesmente não compreendem o que está sendo discutido.
Os processos são decididos politicamente, com influências
econômicas, como se pode perceber na reunião com o
coordenador de unidades de conservação do IEF/RJ. Segundo
ele, “a recategorização vai ser feita, está quase concluída, para que seja
um parque. Há a possibilidade de algumas áreas serem desfetadas (com
propriedade particular), mas não há interesse.”23
Essa recategorização é muito clara, já que o que é
transmitido é o que o emissor tem interesse de que o
pesquisador saiba. Esse processo já era esperado, e fornece
dados para a análise da identidade e quais questões são
prioritárias no que se refere a esse contato com o universo
letrado. Nessa comunicação, uma das questões mais debatidas
pelos entrevistados foi a razão de terem instituído a reserva
justamente onde os caiçaras habitam. E se isto não decorreu do
fato de ali encontrarem uma região ambientalmente conservada.
Não compreendem por que suas práticas são acusadas de
destruidoras, se há muitas gerações os caiçaras possuem esses
mesmos hábitos, que ocasionaram o atual estágio em que se
encontra seu território tradicional e pelo estágio de conservação
foram consideradas áreas ambientalmente relevantes a ponto de
serem protegidas. Se suas práticas são perigosas para o meio
ambiente, como os órgãos ambientais encontraram um
importante refúgio da flora e da fauna para protegerem?
Outro questionamento dos caiçaras é por que são
fiscalizados pelos órgãos ambientais, proibidos de uma série de
práticas, enquanto assistem aos barcos de arrasto entrarem no
Saco do Mamamguá, as mansões, o condomínio de Laranjeiras e
percebem que, para a fiscalização, tais empreendimentos não
são considerados prejudiciais à natureza. São muitas as
23
Entrevista com o coordenador de Unidades de Conservação IEF/RJ. Abril de 2006.

40
histórias de propinas, policiais a serviço de grileiros e ações
ilegais dos órgãos ambientais, que hoje fazem parte dos causos
locais.
Quanto às relações do Poder Público com as populações
nativas, no que se refere aos modelos adotados para as
unidades de conservação, as referências são os padrões de
países do hemisfério Norte. O preservacionismo é um desses
padrões, e busca, no manejo restritivo de áreas naturais, a
melhor forma de protegê-las. Contudo, esta visão não é
consensual, e pesquisadores como Antonio Carlos Diegues e
Luis Geraldo Silva defendem uma perspectiva conservacionista,
em que a presença de comunidades tradicionais nas áreas de
reserva deve ser respeitada, já que esses moradores guardam,
em seus conhecimentos e práticas, manejos que possibilitaram
aos ecossistemas chegar aos dias atuais relativamente
preservados.
Segundo Warren Dean, “o decreto que proibia toda derrubada
ulterior de floresta nativa provocou imediatamente um terrível desgaste: a
despeito de seus protestos de solidariedade, os ambientalistas não
consideravam nem um pouco a difícil situação dos ocupantes tradicionais
das reservas. Os fabricantes de canoas, os coletores de palmito, os
cesteiros que trabalhavam com bambu e cipós e os cortadores de
24
samambaias gigantes e sassafrás ficavam todos agora fora da lei.”
Após um ano de manifestações, o Ibama apresentou a
regulamentação das lavouras em capoeira, de acordo com os
planos de manejo. Além disso, dizem Mariana Clauzet e Walter
Barella: “ os estudos de etnoconhecimento e gestão de recursos naturais
fornecem subsídios para possibilitar a permanência das populações
25
humanas nas atividades de subsistência tradicionais.”

24 ?
DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.84

25
DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza
nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.p.49

41
A permanência das populações impõe-se não apenas em
respeito ao etnoconhecimento útil ao desenvolvimento de
estratégias de preservação, mas também “pela necessidade de
garantir seus direitos históricos a seus territórios, mas também como
exemplo a ser considerado pela civilização urbano-industrial na
26
redefinição necessária de suas relações atuais com a natureza.”
O desdobramento dessa discussão se dá no âmbito do
manejo dessas reservas, já que no caso brasileiro é muito maior
a dependência de populações tradicionais a atividades
extrativistas relacionadas diretamente com os ecossistemas em
que vivem e que agora vêm sendo abrangidas pelo programa
nacional de unidades de conservação.
Mas o processo histórico de formação das áreas
ambientalmente protegidas no Brasil ainda está engatinhando
nessa direção. Warren Dean, ao analisar esse processo, ressalta
que, na história recente, tais processos não têm ocorrido de
forma satisfatória:
“As unidades de conservação adicionadas nos anos 80 e início dos 90
eram uma miscelânea: vinte classes diferentes de reserva, criadas por
uma multiplicidade de instrumentos legais (...) além de algumas unidades
sem referência legal reconhecida. Era uma fragilidade estratégica(...).” 27
Dentro dessas áreas as populações tradicionais de
quilombolas, indígenas, caiçaras e caipiras foram sendo
retiradas ou suportadas, mesmo que recentemente tenham sido
reconhecidas como parte integrante dos conselhos deliberativos
na criação e gestão dessas áreas. A definição utilizada nessa
pesquisa para caracterizar povos tradicionais, foi a de povos
com “ligação intensa com os territórios ancestrais; auto-identificação e

26
Idem p.67

27 ?
DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.107

42
identificação pelos outros como grupos culturais distintos; sistemas de
produção principalmente voltados para a subsistência.”28
Tais características encontram-se nas comunidades
caiçaras pesquisadas, podendo ser acrescidas outras
características como o etnoconhecimento do ambiente em que
vivem, estratégias de resistência, manejo de espécies vegetais
de grande importância genética nas roças, permanência de
práticas arcaicas e memória de práticas culturais extintas.
A herança indígena das práticas cotidianas e da produção
material é um dos principais argumentos relacionados à questão
do direito territorial e afirmação da identidade por parte dos
caiçaras. Principalmente através da roça policultural, que utiliza
o consórcio de diversas espécies e garante variedade genética,
característica dos cultivos indígenas. A produção de canoas,
cestos, tapitis, armadilhas de pesca, festas, ervas medicinais,
conhecimento sobre a caça e a feitura da farinha assim como as
roças são conhecimentos em extinção na região.
O processo histórico de reinvidicação dos direitos dos povos nativos foi tão
recentemente garantido pelo convenção 169, que parece ainda não ter sido
processada pelos legisladores e gestores ambientais. A Convenção 169, aprovada
em 1989 pela Organização Internacional do Trabalho, faz parte dos acordos
internacionais pelos direitos humanos e revisou parcialmente a Convenção 107
sobre Populações Tribais e Indígenas, de 1957. É importante ressaltar que essa
convenção abrange as populações tradicionais nativas, já que a tradução do texto
para o português não foi correta. A palavra inglesa indigenous não significa
apenas indígena mas também significa nativo. O que os define como tal é: “ o fato
de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao
país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais
e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais,
29
econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.”

28
DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza
nos Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000. p.91

43
Os caiçaras além de serem descendentes dos antigos povos pré-
cabralinos, conservam muitas tradições extintas no restante do território nacional.
Essas práticas não precisam ser conservadas como relicários de uma identidade,
mas devem ser respeitadas pela sua importância na organização do grupo. Nos
artigos da Convenção que mais dizem respeito às comunidades caiçaras,
percebe-se como há um conflito entre as próprias diretrizes legislativas
governamentais, que de um lado promulgam leis ambientais restritivas e de outro
sanciona acordos internacionais sobre comunidades nativas. No ano de 2006 foi
criada a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, mas é ainda um início para a criação de políticas
públicas relacionadas ao tema. No Artigo 14 da Convenção 169, lê-se:
“1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de
posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão
ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não
estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso
para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial
atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
23.1 - O artesanato, as indústrias rurais e comunitárias e as atividades tradicionais
e relacionadas com a economia de subsistência dos povos interessados, tais como a caça, a pesca
com armadilhas e a colheita, deverão ser reconhecidas como fatores importantes da manutenção
de sua cultura e da sua auto-suficiência e desenvolvimento econômico. Com a participação desses
povos, e sempre que for adequado, os governos deverão zelar para que sejam fortalecidas e
fomentadas essas atividades.”30

Capitulo II

A vida caiçara e sua herança indígena.


“Minha Bisavó por parte de pai, ela é descendente de uma tribo que
tinha aqui na Juatinga, no passado. O cacique daqui da Juatinga, o

29
DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos
Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.p.34
30
Organização Internacional do Trabalho - OIT, Convenção 169 de 7/6/1989. Em vigor em 5 de
setembro de 1991. Aprovado pelo Congresso Nacional 25/8/1993. Sítio DHNET -
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/indios/conv89.htm, 2006.

44
regente daqui da Juatinga chamava-se cacique Edu. É isso que a história
conta, né.”
S.Olímpio/Ponta da Juatinga31

Nos relatos feitos pelos moradores, os caiçaras


antigos são descritos como possuidores de uma relação mais
estreita com a mata que os caiçaras atuais. As práticas
cotidianas abrangiam coleta extrativista de cocos de palmeira,
da qual era preparada uma apreciada farinha, frutas, cipós,
palha, madeira para as habitações, árvores para o feitio de
canoas, materiais para artesanato, o barro para o pau a pique, a
caça e animais de estimação. Além disso, a agricultura era feita
em terrenos de vegetação densa de capoeira em regeneração
antiga ou floresta velha.
Todas essas práticas estão relacionadas com
tecnologias indígenas de adaptação ao ecossistema envolvente.
Independente de a herança indígena ter sido genética e/ou
cultural e esses povos serem descendentes dos Guaianás locais
ou de outras tribos realocadas, é importante perceber que sua
cultura material e imaterial tem raízes indígenas. O fazer
farinha, a queimada controlada, denominada coivara até os dias
de hoje, as armadilhas de caça, os laços, as cuias, o tabaco, os
trançados, balaios, a cerâmica, a época dos plantios, o peixe
seco, as sementes, as trilhas e a puxada de canoa que remonta
inclusive práticas de habitantes pré-históricos. Inclusive através
da nominação, tapitis, coivara, taioba, urucum, parati, Jussara,
Indaiá entre tantos outros nomes de armadilhas de pesca e caça
bem como de alimentos e lugares. Práticas encontradas na
Península são tidas por extintas em algumas regiões:
“os velhos descrevem como coisa de outra era, não apenas o tipiti
(tapichi), o sistema de alavanca interpotente constituído pelo côcho e a
tabua da prensa, mas a própria mandioca amarga ou, (...) atualmente
desaparecida?”32
Os pesquisadores da temática caiçara como Diegues e
Paulo Nogara apontam para essa herança indígena, que começa
a partir do nome ao qual se reconhecem: CAIÇARA, que segundo
o dicionário de Tupi e outras fontes, significa a paliçada que
cercava as aldeias tupi-guarani, também denominando seus
habitantes. A prática desses cercamentos ainda é muito comum
entre os habitantes da costeira. Seja os moradores da isolada
Rombuda, que por ser apenas uma casa envolta por uma densa
floresta na proximidade dos rochedos, foi cercada para dificultar
o acesso de animais da mata, para a área habitada, e do acesso
31
Pesquisa de campo nº1. Comunidade da Ponta da Juatinga / maio 2005.
32
SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola,
1958. p.40

45
das crianças à mata. Assim também acontece nas casas das
vilas, como no Sono, onde a casa da família de Dona Baíca é
toda cercada para evitar o acesso de estranhos e evitar a fuga
dos animais domésticos.
No importante documento que é o livro Lavoura
Caiçara, Schmidt em 1958, escreve em forma de documentário
da vida rural, em uma série editada para o Ministério da
Agricultura os modos da principal atividade de produção caiçara,
a farinha. Esse caráter de coleta de registros sobre práticas
arcaicas da população brasileira que acompanha toda a década
de 50, tendo seu início com os modernistas de 22 e se
estendendo até a década de 70, oferece dados de campo
fundamentais. Neste documentário sobre a lavoura caiçara, o
tema é a roça de mandioca, suas origens indígenas, a coivara,
as denominações das ramas, o processo de cultivo, colheita,
processamento e escoamento da produção final, bem como os
laços comunitários e sistema de distribuição de terras. Um dos
aspectos analisados é a presença de casas de farinha próximo
as moradias, algumas até dentro das casas, como na Ponta da
Juatinga.“A casa de farinha em íntima associação com a morada seria
uma sobrevivência indígena na cultura atual de nossas populações
caboclas.”33
Na costeira, entretanto, existem relatos que se
referem a métodos ainda mais primitivos que os apresentados no
livro. Segundo o autor, a mandioca colhida era ralada, ou em
raladores rústicos de lata manualmente, em rodas de giro
manuais, ou movidas a motor. Na costeira, os relatos se referem
a bater a mandioca na pedra, prática também encontrada no
processamento indígena para a obtenção da massa para a
farinha. Além disso, muitos dos nomes das variedades genéticas
são indígenas além do fato de serem ainda encontradas em
cultivo, representando um importante banco genético.

33
Idem. p.57

46
A Roça
“O conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da
autenticidade, da integridade e da liberdade. Ela é uma manifestação
coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser
do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado. Por
isso mesmo, tem de ser genuína, isto é, resultar das relações profundas
dos homens com o seu meio, sendo por isso o grande cimento que defende
as sociedades. Deformar uma cultura é uma maneira de abrir a porta para
o enraizamento de novas necessidades e a criação de novos gostos e
hábitos, sub-repticiamente instalados na alma dos povos com o resultado
final de corrompê-los, isto é, de fazer com que reneguem a sua e,
deixando de ser eles próprios.
Milton Santos - Da Cultura à Industria Cultural34

É central perceber que o cultivo indígena de


alimentos, apresenta uma alta taxa de variedade genética para
cada espécie cultivada em consórcio. Oposta é a agricultura
contemporânea que prioriza poucos tipos para cada espécie, as
cultivando em monoculturas denominadas plantation, que por
concentrar muitos indivíduos semelhantes, demanda adubos
químicos e alta taxa de pesticidas. Dessa forma os Guarani
plantam milho vermelho, amarelo, preto, branco e rajado em
sistemas de mandala com girassóis que combatem as pragas e
em consórcio com feijões, abóboras e amendoins que
nitrogenam, adubam e afofam o solo simultaneamente. Assim
também os antigos caiçaras consorciavam suas plantas e alguns
poucos ainda o fazem, como Dona Maria da Praia Grande e Seu
Olimpio da Ponta Juatinga, plantando feijão vermelho graúdo,
pequeno, marrom, marram rajado de bege, bege rajado de
vermelho, bege rajado de marram, preto e branco. São guardiões
de sementes indígenas que o moderno mercado de sementes
sobrepujou. Também possuem mamões amarelos, avermelhados,
e esbranquiçados, de uma variedade da Mata Atlântica que foi
comercialmente sobrepujada pelo Papaia amazônico.
Muitas outras espécies são assim cultivadas com
grande pool genético e apresentando espécies praticamente
raras se comparadas em número com as lavouras comerciais
contemporâneas. O aspecto do consórcio entre vegetais, onde o
milho é plantado com o feijão, com as abóboras e melancias no
entorno. O feijão Guandu, muito apreciado na região, com
fruteiras, abacaxis e batatas doces, guarda em si uma tecnologia
empírica de conservação da fertilidade do solo através da troca
de nutrientes. Essas práticas indígenas que foram a base para
as pesquisas agroecológicas de Miguel Altieri e Bill Mollison e
são hoje a meta do Ministério do Desenvolvimento Rural para
34
SANTOS, Milton. Da Cultura à Indústria Cultural. Periódico MAIS! Nacional, 19/03/2000.

47
áreas de agricultura familiar e única espécie de cultivo permitida
por lei em áreas de reserva.
Assim as leis federais em adequação aos acordos
multilaterais internacionais de adequação da produção para a
sustentabilidade, redução de insumos poluentes e controle da
desertificação vão em direção a uma prática local, de raízes
indígenas. No fundo, o que isso representa é que um processo
histórico global está indo ao encontro da história local de uma
prática transmitida ancestralmente geração por geração. O
desprezo europeu pelas técnicas indígenas no momento da
colonização, apesar do uso generalizado da coivara, hoje passa
por uma revisão. Os técnicos começam a perceber que a cultura
indígena oferece a contemporaneidade soluções empíricas para
uma melhor adequação ao ecossistema Terra, hoje já sofrendo
fortes impactos da degradação global. Um círculo se fecha no
sentido de macropolíticas definirem usos que atingem
microconjuntos e deles extraírem sua base teórica, configurando
uma rede de sistemas que se interconecta, segundo Morin,
sendo o sistema simples apenas “uma abstração didática”.
Entretanto, essas práticas locais sofrem o impacto cultural
das lavouras comerciais monoculturas que desde a época
colonial ocupam a região com engenhos de cana-de-açúcar,
cafezais, bananais e de alimentos seguindo os ciclos produtivos
nacionais. Muitos caiçaras plantam desde a época dos pais, mas
não dos avós, as espécies separadas, milho com milho, feijão
com feijão e mandioca separado. Essas práticas reduzem a
fertilidade do solo, esgotando os nutrientes apresentando
apenas uma variedade plantada no local. Há uma alteração do
manejo tradicional, que apresenta soluções empíricas baseadas
na observação dos ecossistemas naturais da Mata Atlântica, e
soluções como o consórcio e a variedade genética que imitam as
cooperações entre espécies na mata. Através da história local
podemos perceber que essas mudanças foram anteriormente
possibilitadas pela derrubada de áreas florestadas em método de
coivara (queimada controlada) que possibilitava a adubação e
controle de fertilidade do solo.

48
D.Maria e seu facão na antiga roça.35

Com as leis ambientais que foram instituídas no local após


a criação da Reserva da Juatinga, as queimadas foram
proibidas, apesar de anualmente ainda ocorrerem, inclusive em
áreas não agricultáveis apenas para manter o terreno “limpo”.
Isso se deve ao trabalho inexistente dos órgãos ambientais de
conscientização e educação ambiental, oferecendo técnicas de
manejo alternativas como a compostagem, mult e adubação
orgânica. Assim os órgãos públicos esperam que práticas
ancestralmente transmitidas desapareçam por ofício legislativo e
atuando na região apenas de forma punitiva ou de incentivo ao
turismo. Essa falta de esclarecimento gera uma forte imagem
negativa dos nativos para com as leis ambientais, que não
compreendem, alteram seu manejo e ainda se vem em situação
de risco podendo ser autuados. Não há valorização do
etnoconhecimento caiçara, como o de controle de pragas. Um
método que pode até ser considerado agroecológico: “o caiçara
consegue eliminar alguns formigueiros despejando nos olheiros o líquido
resultante da prensagem da massa da mandioca-brava ralada (ácido
cianídrico), nas ocasiões em que desmancha a mandioca.”36
Os grileiros também atuam pressionando pelo fim das
roças. Para isso, se amparam nas leis ambientais e em alguns
de seus agentes. O controle do uso da terra para a agricultura
modifica a maneira de se perceber a posse, logo a diminuição do
espaço utilizado acarreta uma diminuição do limite do uso, que é
o fator determinante da posse.
35
Pesquisa de campo nº2. Praia Grande da Cajaíba setembro 2005.
36
SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola,
1958. p.68

49
Através da pesquisa de campo, se confirmaram as
análises bibliográficas, principalmente do livro Lavoura Caiçara,
de Schmidt, que o caiçara tem uma raiz agrícola muito presente
ainda hoje em seu cotidiano. Mesmo nas comunidades da
Península que não vivem diretamente das roças, o conhecimento
etnobotânico ainda está vivo na maioria dos adultos até a faixa
dos trinta anos. Assim a imagem do caiçara pescador que vem
sendo pouco a pouco forjada inclusive pelos próprios caiçaras
mais jovens, nega parte da memória e da identidade coletiva,
servindo muitas vezes a interesses urbanos. Há um desrespeito
à história desse povo, através da construção de uma identidade
do caiçara como apenas pescador. Assim sua ligação com a
terra é apagada bem como seus direitos a produção na mesma
que são substituídos agora pelo direito à pesca.

A Caça

“Uma importante necessidade alimentar, como a carne, sofre


severa restrição, pois a diminuição da caça não é compensada por um
abastecimento regular de carne de vaca. O resultado duplamente
restritivo é a atrofia de tecnologia venatória e, no plano nutritivo, de um
elemento fundamental da dieta.” Antonio Cândido – Os Parceiros do Rio
Bonito.37

Toda essa problemática serve também para a delicada


questão da caça, que é vista pela população urbana inclusive os
criadores de leis ambientais, como uma prática arcaica que deve
ser banida para que as espécies da fauna possam sobreviver.
Entretanto, questões como a função mágico-religiosa, a
organização social e a transmissão de técnicas indígenas
passam por todo universo da caça e seus métodos de percepção
do mundo natural e interação homem-mata. Além disso, o papel
protéico representado pela carne de caça no período de
escassez da pesca, e a solução de comprar carne de boi de
áreas de pastagens, que ciclicamente queimam áreas da própria
Mata Atlântica, não são analisados. A criação de viveiros de
animais silvestres para consumo humano, como já existe na
Ponta Negra no caso do macuco, não são considerados. As
histórias de vida dos caiçaras antigos demonstram essa relação
e servem de parâmetro para se avaliar as práticas dos caiçaras
atuais.

37
CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio
Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.46

50
Segundo Antônio Candido, a questão da caça é mais
complexa do que a simples necessidade alimentar: “a caça, que
tendo como ponto de partida a obtenção de carne, dá lugar a sistemas
complexos, com repercussões afetivas, mágicas, artísticas, políticas –
sabendo–se que em muitos casos a liderança política se esboça em função
dela.”38
Um dos caiçaras antigos mais conhecido, inclusive pelos
mais novos em várias praias da reserva é Seu Benedito Caçador,
avô de Seu Maneco de Martim de Sá. Segundo os depoimentos
era um exímio caçador, dormindo na mata por dias seguidos,
sozinho sem temer onças ou outros animais. Segundo Seu
Maneco, neto dele, Seu Benedito era filho de uma índia e mestre
em armadilhas de caça. Os mais antigos, como foi levantado nas
entrevistas, não utilizavam armas de fogo, porque caçavam e
pescavam em abundância se servindo de armadilhas de cipós e
taquaras. Esse conhecimento indígena conservou inclusive os
nomes como mundéus, arapucas e aratacas.
Os entrevistados foram unânimes em dizer, quando
perguntados sobre a origem dessas armadilhas que eram “coisa
de índio”, assim como o feitio da farinha, da canoa e a coivara.
Um dos entrevistados se lembrava do pai contar sempre que
houve uma época antes dos bisavós em que os caiçaras e os
índios viviam juntos naquela costeira, sem atrito e se casando
uns com os outros. Segundo o informante não havia conflitos
porque senão esses também seriam incluídos na mesma
narrativa e que o que era contado é que viviam em harmonia
fugindo dos brancos e se isolando no interior das matas.
A caça é um dos principais fatores de interação do caiçara
com a floresta. A procura do animal faz com que o caçador em
silêncio entre cada vez mais fundo na mata seguindo rastros de
animais, decodificando sons, imitando os bichos que quer caçar
ou suas presas. O caçador sabe o local exato de árvores
frutíferas, águas de beber e tocas de pedra, onde dorme. É uma
atividade masculina, que fortalece os laços comunitários e
familiares. Mas após a proibição é cada vez menos praticada e
esse contato mais direto com as matas velhas do fundo dos
vales tende a se extinguir.

Práticas Extintas e Religiosidade

38
CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio
Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.64

51
Magia, medicina simpática,Invocação divina, exploração da fauna e
da flora, conhecimentos agrícolas fundem-se deste modo num sistema que
abrange na mesma continuidade, o campo,a mata, a semente, o ar, o
bicho, a água e o próprio céu.” Antonio Cândido - Os Parceiros do Rio
Bonito.39

Os informantes em muitas praias contaram que os antigos


iam muito mais a mata que os atuais, como podemos perceber na
história de Seu Benedito. O pai do Careca, do Calheus,
descreveu esse caçador com admiração, já que além de passar
períodos prolongados na mata, não levava víveres e se
alimentava do que caçava e dos alimentos que a mata oferecia.
Conhecia toda a região da costeira, os caminhos interiores das
encostas e os picos das serras.
Outra personagem impressionante é da Ponta Negra, avó
de uma imensa prole, até o fim da vida morou em uma caverna
que ficou conhecida como sua. Apesar dos pedidos dos filhos
para que morasse em suas casas, insistiu em continuar em sua
toca até o fim da vida, cuidando com zelo do local e
costumeiramente sendo encontrada varrendo a entrada da
caverna, que era cercada pela mata. Esse não é o único relato
de moradores de tocas, que parece serem continuamente
habitadas sedentária ou sazonalmente. Atualmente os caiçaras
as utilizam quando saem a caçar pelo interior da mata e dormem
nelas como forma de abrigo.
Os antigos tinham hábitos alimentares austeros. Em geral
os pais, dos mais velhos moradores atuais, segundo estes, não
comiam coisas compradas na cidade. Preferiam se alimentar de
banana verde cozida com peixe seco, fina iguaria caiçara, ainda
prato preferido pelos mais velhos, mas rejeitada por alguns
jovens. Segundo D.Lorença, sua mãe só comia banana verde
assada no café da manhã, cabeça de sorgo ou feijão que ela
tivesse plantado, comidas compradas de maneira alguma. Para
D.Lorença foram estes hábitos alimentares e a rotina de trabalho
na roça e na pesca até morrer, que possibilitaram sua mãe
chegar com muita saúde até uma idade tão avançada. São vários
os relatos dos caiçaras velhos que ao se mudarem para a cidade
com os filhos, morreram numa questão de semanas, ou
contraíram graves doenças e derrames. Muitos atribuem as
doenças à mudança da rotina de trabalho que os velhos seguiam
até morrer, cuidando de suas roças e seus cercos de pesca,
aliadas a mudança dessa alimentação austera, porém saudável e
rica em nutrientes. Os moradores da costeira se orgulham muito
39
CANDIDO, ANTONIO. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, José Olympio
Editora(Coleção Documentos Brasileiros), 1964.p.32

52
de seus antepassados, que chegavam a 100, 108 anos, muitas
foram as referências à pais, avós e tios que viveram até a casa
dos cem em atividade e lucidez.
Seu Maneco conta que seu pai, Roque Fermiano, a partir
da década de 70, não conseguia mais comer o peixe pescado na
arrebentação. Comia e cuspia, dizendo sentir um gosto
insuportável de óleo. Além disso, comidas como a paçoca de
banana com toucinho, o café de cana, o biju, a batata-doce
assada, o amendoim, a raiz da taioba, a tainha cozida com feijão
guandu, sobrevivem apenas nas comunidades mais isoladas ou
em algumas famílias apenas. Além da mudança no regime das
atividades, o fim das roças acarreta um problema de segurança
alimentar, já que com dinheiro da pesca ou do turismo, os
caiçaras ao fazerem as compras na cidade, não compram os
produtos tradicionais como batatas-doces, amendoim e cará, que
não são valorizados como produtos que valham a pena serem
comprados. Ao invés disso, compram grandes quantidades de
biscoitos de água e sal, roscas e recheados doces que servem
de café e lanche principalmente para as crianças.
Entre os antigos caiçaras, eram freqüentes também os
bailes rurais e as festas religiosas. Aconteciam quase que
semanalmente, variando de praia em praia. Grandes bailes eram
feitos pelos festeiros de cada praia, os bailes comentados como
muito bons eram os do Mamanguá, na Praia do Cruzeiro, na
Praia Grande, no Pouso e na Ponta Negra. Era um importante
espaço de socialização em que os moradores das praias
afastadas podiam encontrar-se, os jovens arranjarem namoros,
os mais velhos passarem aos mais jovens conhecimentos, já que
havia a dança dos velhos, dos adultos, dos jovens e das
crianças. Dançavam as cirandas, o bate-pé, o caranguejo, o
lenço, a dança dos velhos, dos marujos, entre outras que são
lembradas com nostalgia pelos mais velhos e pelos jovens que
ainda viram seu final. Eram danças de roda, com troca de
casais, em que a marcação era feita na batida do tamanco de
madeira no chão de tábuas corridas.
A dança ia até o amanhecer, grandes fogueiras eram
acesas na época do São João, batata-doce, milhos, aipins, bijus
puvus eram assados na brasa e às 4 horas da manhã
tradicionalmente era servido o café-de-cana com biju. Bebia-se
cachaça, mas não havia disputas, os casais se separavam na
contradança e bailavam com outros pares. Os músicos tocavam
violas, pandeiros de couro de cutia, tambores e alaúdes. A
bandeira do Divino Espírito Santo percorria todas as praias, do
Saco do Mamanguá à praia do Sono, recolhendo doações e
tocando seus instrumentos. Na Praia do Pouso, Seu Miguel
violeiro, se lembra das festas com saudade e diz pesaroso tocar
sua viola, agora sozinho no quarto. Pode-se perceber que essas

53
festas também trazem em parte a fusão da tradição ibérica,
votiva, com a intensidade das festas indígenas e africanas, que
vivia na festividade uma manifestação do sagrado e da união do
grupo, as utilizando como marcadores temporais de processos
coletivos.
Dona Maria, Dona Dilma, Seu Miguel, Dona Tetéia, Seu
Filhinho, são os que guardam essa memória viva, que foi
desaparecendo lentamente assim que as igrejas protestantes
foram se instalando a partir da década de 30. As igrejas proíbem
seus fiéis de participar das manifestações populares que
classificam como “coisas do demônio”. Houve assim a separação
dos bailes antigos em que todas as idades participavam, para os
bailes atuais em que o forró de raízes nordestinas e o brega
nortista, são o divertimento apenas de jovens e adultos. As
bebidas alcoólicas são muito consumidas e brigas e tiroteios são
freqüentes, havendo uma discriminação ainda maior pelos não
participantes. Assim não há mais nenhum espaço coletivo de
convívio dos moradores da costeira, sendo os campeonatos de
futebol a única forma de intercâmbio entre as praias.
A chegada das igrejas protestantes desorganizaram a
produção, no sentido que, ao afetar os laços de compadrio,
separando em crentes e descrentes e atos evangélicos e
demoníacos, influenciou a formação de grupos distintos dentro
de uma mesma comunidade. Os ritos que aconteciam na época
das colheitas, na época do São João e em culto a pescaria e a
Iemanjá, foram rotulados de práticas demoníacas e foram pouco
a pouco perdendo espaço. Assim as práticas tradicionais foram
sumindo primeiro do imaginário para depois se perderem na
prática.
Outro importante impacto foi a utilização dos pastores
evangélicos no convencimento dos caiçaras a assinarem
documentos fornecidos por grileiros. Outra crença protestante
que ainda hoje implica em muitas conseqüências, é a da
predestinação divina. Muitos caiçaras evangélicos acreditam que
as coisas acontecem porque deus assim determinou, não
havendo motivos para resistir. É recorrente essa argumentação
entre os evangélicos, não aparecendo no relato dos não-
evangélicos, em geral mais esclarecidos, já que buscam
compreender os processos de disputa por sua terra.
Além disso, ao modificar a cosmogonia tradicional, tão
mesclada de um catolicismo arcaico, mitos indígenas e
africanos, houve uma perda da identidade grupal, tanto entre si
quanto em relação ao espaço em que habita. Os pontos de
referência passaram da morada da Mãe-do-Ouro no Pico do
Cairuçu, para os templos evangélicos da baixada fluminense, e
seus dízimos mensais. Essa descaracterização cultural

54
influenciou no processo de desvalorização do local e valorização
do êxodo para a cidade.
Esse processo que se intensificou com a chegada da
BR-101, possibilitou igrejas evangélicas, sempre em busca de
novos fiéis, a contactarem populações antes muito distantes.
Nesse processo de expansão da urbanidade, outros agentes
chegaram pelo mesmo caminho.
Na região do Saco do Mamanguá, as comunidades
caiçaras tem uma presença negra muito forte. Cultos afro-
americanos ocorriam em terreiros e a presença de “tentos”, ou
sacis, foi muito relatada. Contou Seu Benedito, da Praia do
Cruzeiro, que na época de seu pai, o último grande festeiro do
Saco, ao se olhar a outra margem a noite, se avistavam
incontáveis luzinhas vermelhas, dos cachimbos dos tentos. Bem
diferentes das luzes verdes dos vaga-lumes, os tentos se
“mudaram” segundo Seu Benedito, após a conversão maciça ao
protestantismo.
Festas a Iemanjá permaneceram na região, devida a força
do arquétipo que representa. Essa entidade afroamericana,
ligada aos cultos de feminilidade e governança das águas, é
muito reverenciada pelos pescadores e aqueles que dependem
do mar. Na Península, ocorrem rituais em sua homenagem, na
passagem do ano. Além disso, na capela da inabitada Itaoca,
encontra-se no centro do rústico altar, uma imagem de Iemanjá,
cercada pelas outras imagens cristãs de Nossa Senhora, São
Jorge, Jesus e São Cosme e Damião. Sobre essa capelinha
também, é importante comentar, que guarda um enorme cruzeiro,
que sustenta a capela e neste se encontra pendurado um tambor
de folia, furado.
As interações entre a religiosidade cristã e os rituais
coletivos festivos e sincréticos, podem ser por essas presenças
nesta capela, percebidas em sua complexidade. Mas com
certeza, o que guarda também é uma aura de passado, em
ruínas, de algo que se acabou, e apenas vestígios, materiais ou
orais que com o passar do tempo, tendem a extinção.
Outras manifestações de uma cultura arcaica, que guarda
raízes no período colonial, foram encontradas nas outras praias.
Houve uma menção reservada ao livro de S.Cipriano, feita por
S.Aplígio, do Cairuçu das Pedras. Esse grande contador de
histórias contou que esse livro era usado para fazer bruxarias e
relatou um caso de um velho, lá do Cairuçu mesmo, que
conseguiu se casar com a jovem sobrinha, graças aos
conhecimentos do livro que tinha.
No Cairuçu das Pedras, uma das comunidades mais
isolada da reserva e mais preservada também, existe um
encantado na cachoeira grande. Essa entidade, mas parece um
fenômeno, ou uma energia, que se manifesta em cachoeiras,

55
lugares da costeira, em alto mar e picos das serras. Essa do
Cairuçu faz desaparecer qualquer objeto que caia na água rasa
e cristalina da queda. O Jango, personagem fabuloso e irmão
mais novo de Francino, cesteiro, é que contou um a um todos os
objetos perdidos, que por mais que eram procurados jamais
voltavam, sendo esse efeito graças a esse encantado.
Há uma convivência com esses fenômenos sobrenaturais,
já que a cachoeira é o lugar em que se faz a barba, se corta o
cabelo, se namora e toma banho quando se tem algum
compromisso especial. Em outras comunidades também houve
relatos desses encantados, principalmente a Mãe do Ouro, muito
conhecida na região. Contam que de sete em sete anos essa luz
gigante sai de sua casa com um imenso estrondo indo do Pico do
Frade, em Angra, para a Pedra da Arara, no Pouso. Existem
variações que indicam outros trajetos como da Pedra da Arara
para o Pico do Cairuçu.
Navios encantados, lobisomem corre sete praias, mulher
de branco, homem de preto e a incrível história da curupira.
Essa personagem é descrita como um animal peludo, sombrio,
comedor de carne humana, morador de tocas do fundo da mata.
O relato mais comum começa, com a história de um homem que
morava na costeira e um dia foi seqüestrado pela curupira e
obrigado a ter um filho com ela. Por aí a historia vai.
Encontramos quatro núcleos onde os moradores não
apenas contam essas histórias, como também nelas tem
profundo respeito e temor. Na Praia do Pouso, o jovem Gilson,
filho do velho violeiro Miguel, sabe todo o repertório. Seus
amigos, temerosos do aparecimento de alguma mula sem cabeça
no caminho de casa, pedem a lanterna emprestada para voltar
para casa. As crianças da Ponta Juatinga também, contam do
lobisomem corre sete praias, e os já mencionados Cairuçu das
Pedras e Ponta Negra. Essas comunidades não sofrem fortes
influências das igrejas protestantes, razão pela qual talvez
tenham mantido alguns relatos.
A essas manifestações culturais formadoras da identidade
coletiva e alicerce das relações com o ambiente que os cerca,
juntam-se as histórias do ciclo de Pedro Malasarte, do tempo em
que os bichos falavam, histórias catalogadas como indígenas; as
manifestações festivas, musicais e as rezas, que congregavam a
comunidade nos fins de tarde, com as ladainhas e terços. Ao que
parece, essas manifestações conseguiram conviver e inclusive
se encaixar no calendário católico. Nesse sentido, parece que o
catolicismo conseguiu conviver de forma mais sincrética com as
manifestações da religiosidade e da cultura popular local.
Apesar das proibições, um sincretismo pode ser
percebido, inclusive nos caiçaras protestantes. Seu Benedito do
Mamanguá, e os tentos, Seu Maneco e o importante papel de

56
seus sonhos na decisão de questões praticas. Sabe-se que é um
costume indígena partilhado por diversas tribos, de considerar
os sonhos como conselho, avisos ou premonições. No caso dos
caiçaras não há como afirmar se seria uma herança indígena,
mas na sociedade ocidental, e na cultura protestante em geral,
os sonhos não são muito considerados.
Tamanha é a importância atribuída aos seus sonhos, que
S.Maneco contou aos seus advogados, que para decidir entre
eles, jovens e inexperientes recém-formados, entretanto
considerados como filhos e um prolixo advogado de Ubatuba,
que dava a causa como ganha, optou pelos primeiros, por causa
de um sonho. Estava sua casa sendo levada por um vendaval
muito forte, quando parou na beira de um abismo. Preocupado e
assustado, foi quando uma criança, identificada como um de
seus netos veio radiante e segurou em sua mão dizendo que não
temesse. Havia sim um grande perigo, mas que Ele (Deus)
mandaria bons anjos para lhe ajudar, anjos estes, que S.Maneco
identificou como sendo seus jovens amigos advogados.
Entretanto, em locais como a Praia do Sono, onde a
chegada das igrejas evangélicas foi na época dos pais dos mais
velhos, é dito por estes quando entrevistados para esta
pesquisa, nunca ter havido lá nenhum baile, nenhuma história,
nenhuma procissão. Mas os moradores da vizinha Ponta Negra,
afirmaram ter ido muitas vezes aos bailes da Praia do Sono.
Essa negação de um passado também acompanha uma
desestruturação simbólica da identidade seja coletiva ou
individual. Esse processo foi como que uma etapa preliminar,
que serviu para a desconstrução da identidade coletiva, o
rompimento dos laços de solidariedade e defesa, favorecendo os
processos seguintes da grilagem, da reserva e do turismo.
Foi inclusive, na Praia do Sono, maior comunidade
protestante da Península, que ocorreu um dos mais conhecidos
episódios de grilagem da península. A maioria dos moradores já
era protestante, freqüentadores da igreja que se situa na parte
central da praia. Havia um pastor residente, que foi substituído
por outro, colocado pelo Gibrail velho. Esse pastor conquistou a
confiança dos moradores, afinal era seu guia espiritual, e se
aproveitou de sua posição na comunidade, para favorecer os
interesses do grileiro. Chamou os moradores e entregou a eles
um documento para ser assinado, explicando que se tratava de
uma tentativa para regularizar a situação dos moradores da
praia, sendo que assinando o documento, seria entregue então o
documento da posse.
O que foi descoberto depois é que este documento se
tratava de um termo de comodato, favorecendo Gibrail Tannus.
Os moradores da Ponta Negra, também foram convidados pelo
pastor para assinarem o documento, mas por não serem

57
protestantes, desconfiaram da proposta e se negaram a
participar. Percebe-se então, como estão relacionados esses
atores políticos: pastores, grileiros, moradores e que poder de
persuasão a religião possui para esses caiçaras.
Hoje, o que vemos nessa praia, são filhos e netos dos
mais velhos já desconversos. Orgulham-se de não participarem
de uma doutrina tão severa, que os obrigava a entrar no mar
vestidos, não dançar, não conversar ou namorar não-
protestantes, coisas que parecem a eles exageradas ou
despropositadas. Assim, esses jovens da Praia do Sono, vão
para Paraty dançar ciranda e brincar Folia de Reis. Seus pais,
desconversos também se mostram satisfeitos pelos filhos
poderem fazer coisas que a eles foram negadas.
Há talvez um processo natural de resgate das antigas
manifestações culturais, apesar da grande expansão das
religiões protestantes, nessa e nas regiões circunvizinhas. Muito
da severidade dessas religiões é questionada através das novas
percepções de mundo que chegam através do turismo, dos
moradores que foram estudar em Paraty e voltaram, da mídia e
da própria reflexão dos caiçaras sobre as práticas coletivas do
passado que são percebidas como partes constitutivas do ser
caiçara, identidade a qual pertencem e valorizam.
Com a extinção das práticas e atribuição de demoníaco a
um conjunto de valores, partes fundamentais das práticas que
organizavam o grupo foram proibidas. Essa desarticulação do
complexo simbólico do povo caiçara, trouxe conseqüências
materiais, ao se perderam as redes de compadrio, havendo a
separação do grupo, em “crentes” e “não-crentes”, associado a
ruptura dos sistemas de transmissão de conhecimento da
história grupal, via oralidade e o fim dos lugares em que os
eventos sociais ocorriam. Esse processo marcou o fim dos
encontros em que as diferentes faixas etárias se reuniam bem
como, os das comunidades isoladas se encontravam. Se os
outros processos advindos da urbanidade também colaboraram
como a desvalorização das práticas coletivas, das festas como
algo arcaico, e o êxodo rural; apenas o protestantismo teve um
caráter realmente proibitivo dessas atividades, o que não deve
ser colocado em segundo plano.
Mas mesmo décadas de pressão ideológica não
interferiram nas respostas dos caiçaras que responderam
orgulhosos serem descendentes de antigos indígenas. Lembram
que os pais e avós contavam muitas histórias de como eram os
índios, como eles viviam, suas histórias, suas entidades
protetoras, mas que por não repetirem as histórias há muitas
décadas, haviam embaralhado tudo na cabeça e tinham apenas
uma imagem dos mais velhos contando.

58
Alguns ainda foram capazes de apontar o nome dos
bisavós e avós que eram considerados índios e apontar sua
procedência. Ou indicar netos e filhos que por ter tamanha
semelhança, olhos rasgados, pele vermelha e um negro cabelo
liso eram chamados de índios. Um exemplo é S.Olímpio, que
além de ter explicado o sistema de consórcio dos vegetais, fazer
a coivara com um grande controle do fogo, anotando tudo em
seu caderninho, ter uma grande variedade de sementes da
mesma espécie, contou que sua bisavó índia era dali da Ponta
da Juatinga mesmo. Sua aldeia cujo cacique se chamava Edu, se
localizava em uma região abaixo do farol. Contou também que
nesta região existe uma caverna, conhecida como Toca dos
Ossos, em que os índios dessa aldeia faziam seus
enterramentos. S.Olimpio havia levado uma equipe de uma
revista lá, e estes haviam mexido nos ossos, o que desencadeou
uma grande tempestade. Essa toca foi referida algumas vezes
quando se perguntava sobre a existência de indígenas, e outros
ainda disseram que haviam lá também ossos de escravos.
Há também muitas pessoas que responderam que não
eram descendentes de indígenas, na sua maioria mulheres e
destas, a maioria afirmou com ênfase não ter nenhum parentesco
com índios, e sim com portugueses. Mesmo mulheres muito
vermelhas e de longos cabelos negros e olhos rasgados, diziam
apenas ter sangue português. Percebe-se então que há também
um tabu, quanto à herança indígena, principalmente entre as
mulheres que na região são mais tímidas e receosas que os
homens. Há um receio em se admitir uma ascendência indígena,
porque esta durante séculos foi motivo de desprezo e perigo e
apenas os homens como que afirmando sua coragem afirmavam
orgulhosos serem descendentes de índios. Os mais politizados
principalmente, disseram que os antigos viviam pela mata a
caçar e fazer roças abundantes, vivendo de farinha e peixe seco,
remando canoas de voga, gigantes canoas a vela com oito à dez
remadores que transportavam a produção para Ubatuba, Paraty,
Angra e Mangaratiba e que todo esse conhecimento era
claramente vindo dos índios, seus antepassados.
Como foi apontado na bibliografia e na pesquisa de
campo, os caiçaras antigos eram nômades. Muitos não passavam
mais de dois anos ocupando o mesmo terreno. Assim como os
indígenas, praticavam uma agricultura itinerante. Deixavam
áreas de capoeira em pousios que duravam gerações e se
mudavam em busca de áreas de pesca sazonalmente mais
abundantes. O relato espontâneo de D.Maria da Praia Grande da
Cajaíba foi precioso para confirmar essa herança nômade:

59
“Ah, se fosse no tempo do meu pai, já tinham acabado com a vida
do meu pai. Porque meu pai só morava sete ano num lugar. Esse lugar
todo aqui dentro da Praia Grande é cava de casa dele.”40
Ainda hoje, muitos caiçaras possuem casinhas de pau a
pique em outras praias, como é o caso do Francino e seu irmão
Jango, que apesar de morarem no Cairuçu, sazonalmente
ocupam um barraquinho na Ponta Negra. Outro exemplo é a
família do Careca que construía uma casa no Calheus e foi
destruída pelo IEF e a família de S.Aplígio e D.Dulcinéia que
sazonalmente saem do Cairuçu para ficar no Saco das Anchovas.
Segundo D.Maria, toda a região da Praia Grande era passível de
ser habitada, segundo ela, sua família morou na praia, no rio, no
caminho da cachoeira, no baixio, na mata, enfim o lugar social
da sua habitação abrangia toda a região da Praia Grande. Uma
perspectiva bem diferente da atual em que os caiçaras têm de
lutar com todas as suas forças por posses com alguns metros
quadrados e ranchinhos na praia.
Portanto, a herança indígena consciente, que os antigos
caiçaras receberam de seus antepassados, chegou em parte aos
caiçaras velhos de hoje. Quanto aos jovens, essa herança se faz
presente nas práticas cotidianas. Muitos são os que sabem
puxar canoa, ou tecer redes e andar na mata, mas não guardam
a consciência de sua origem. Outros aspectos culturais se
perderam ou contam com pouquíssimos representantes ativos.
Dos diversos cacos de cerâmica encontrados no Cairuçu das
Pedras, não existem mais mãos capazes de reproduzi-los,
mesmo que alguns muito antigos ainda fumem em cachimbinhos
de barro e saibam a técnica de produzi-lo. A técnica ficou na
memória, mas a prática se perdeu. Assim também acontece com
o biju puvu, de mandioca fermentada, que após muita pesquisa,
apenas D.Maria da Praia Grande foi capaz de se lembrar que o
pai lhe contava, que na época do avô, enterravam a mandioca
tantos dias para que fizessem um enorme biju, que era chamado
biju puvu e eram conhecidos como o pão dos bailes rurais da
Praia Grande. Ela nunca havia visto, mas lembrava do pai
contar.
Assim também aconteceu com as armadilhas de caça, de
pesca, com as atiradeiras de arco, as danças, os rituais, a
previsão do tempo. Segundo os mais velhos, os antigos caiçaras
eram mestres na previsão do tempo, sabiam pelo brilho das
estrelas se ia chover, fazer sol ou nublar. A época dos plantios e
das pescarias também, seguiam um rigoroso calendário lunar
que respeitava o ciclo minguante – crescente, havendo o tabu da
lua cheia, onde não se pescava, nem plantava, nem colhia,
apenas era permitido namorar ao luar na costeira. Quanto ao
cultivo da mandioca, a prática caiçara descrita por Schimit é “o
40
Pesquisa de campo nº2. Praia Grande da Cajaíba / setembro de 2005.

60
que vai decepar marca a época, porque deve cortar a rama na crescente, e
o que vai plantar deve fazê-lo na mesma lua.”41 Os jovens, entretanto,
como Paulo Henrique, filho de S.Maneco, não seguem essas
regras, afirmando plantar em qualquer época que os resultados
são sempre os mesmos.

Permanências

Quanto aos produtos que ainda são produzidos, como o


tapiti, o samburá e a canoa, é importante perceber que mesmo
que haja uma grande demanda, apenas S.Jovino, irmão de
S.Maneco e seus filhos, produzem tapitis que abastecem toda a
costeira. O mesmo acontece com os cestos e samburás que
Francino, irmão de D.Lorença, faz. Ele não dá conta das
encomendas e abastece a costeira, alguns vão para Paraty e
inclusive vão para São Paulo e o exterior. Francino ou França
como é conhecido, explicou que existe um manejo para a
retirada do cipó timbeva. Existe um cipó-mãe, que não deve
41
SCHMIDT, Carlos Borges. Lavoura Caiçara. Rio de Janeiro: Serviço de Informação Agrícola,
1958.

61
nunca ser cortado, ou o pé morre. Existe também um número de
cipós por touceira, para que ela se recomponha sem danos, e
por fim, existem áreas em pousio, que após o período de
regeneração podem ser recolhidos novamente. Há uma grande
procura pelos cestos de Francino e se espera tempo por um,
mesmo assim os mais jovens não se interessam em aprender
esse tipo de conhecimento que consideram cansativo e
entediante. Apenas no Cairuçu das Pedras, onde moram os
caiçaras acima citados, encontramos um menino que brincava
com um pião feito por ele próprio, e que havia aprendido a fazer
com o avô.

Francino mostra quais cipós podem ser retirados.

Nesta praia isolada, encontramos o único forno de farinha


que produzia toda a farinha consumida no local, além dos
moradores com orgulho afirmarem que a maioria da comida
consumida era colhida no local. Também lá, Seu Aplígio,
cunhado de S.Maneco, contou a maioria das histórias da época
em que os bichos falavam, do ciclo da onça e do macaco e das
histórias de curupira, lobisomem, livro de S.Cipriano e Mãe do
Ouro. Segundo essa entrevista pode-se perceber que
antigamente havia uma aura mística muito forte entre os
moradores da costeira. Acredita-se até hoje que na Praia do
Martim de Sá e submerso na altura do Pico do Cairuçu, estejam
grandes jazidas de ouro, mas que essas são protegidas por
fortes encantos e maldições. Muitos afirmaram que
pesquisadores estrangeiros chegam de barco, e a noite se vem
as luzinhas e os barulhos de perfuração e que vão embora
dizendo que a mina é muito grande, porém os gastos seriam
muito altos para a extração.

62
O fato é que a região é muito marcada por tabus e
segredos. Na época da escravidão, contam que havia uma
grande fazenda em Martim de Sá e que nela havia muitos
escravos. Estes eram comprados com o dinheiro dessa mina de
ouro já que a venda dos produtos seria muito pouca em relação
ao gasto do transporte. De fato, na praia existem ruínas de uma
casa grande, moendas e telheiros. Outra história muito popular
sobre a praia, é que na época do Império, um alemão descobriu
como falsificar o selo das notas de dinheiro e se refugiou em
Martim, onde as produzia. Pagava seus escravos com uma certa
quantidade de dinheiro para que não contassem a ninguém sobre
a atividade falsária, porém exigia que as notas fossem
envelhecidas antes de serem usadas no comércio de Paraty. Um
dia, um escravo não resistiu e as usou todas novas e foi pego, já
que as notas que chegavam a Paraty já estavam gastas. Assim
seu dono foi descoberto e preso, indo para a corte.
Outro importante fato sobre a Praia do Martim de Sá, foi
respondido por Seu Maneco quando perguntado sobre a
existência no local, de algum vestígio de ocupação indígena,
machados, conchas ou cerâmicas. Ele respondeu que no
caminho da cachoeira do Poção, na cachoeira do meio do
caminho, havia uma grande pedra redonda, com um imenso
sulco, denominando o local de cachoeira da Pedra de Amolar.
Sempre que passavam por lá aproveitavam para amolar suas
facas até que com a tomada da terra pelo grileiro Pacheco, a
pedra foi removida e explodida para que pudesse servir de
amoladores menores na sede. Outra pedra desta também existe
no encontro do rio com o mar, coincidindo com os locais de
amoladores de machado dos sambaquieiros da Ilha Grande,
entretanto de menor tamanho.
Muitas lendas correm sobre a região, mas é importante
notar que dessa memória coletiva se extraem indícios de uma
história local que por não ter sido escrita até então, mereça ser
desclassificada. Uma herança indígena, seja ela por assimilação
ou contato interétnico e mestiçagem, reflete na visão de mundo
que o caiçara tem de si, como herdeiro natural da terra de seus
ancestrais e na maneira como ele entende o mundo exterior que
entra em contato com ele. A poluição que chega através do ar e
da água, o entendimento que a terra é para os descendentes e
dela se obtém o necessário para o sustento. A irracionalidade da
acumulação de bens, a grilagem de terras enormes que não são
habitadas por seu dono. São uma série de fatores que competem
para que a diferença entre essas populações e os grupos
urbanos que entram em contato sejam acentuados.
Essa identidade que existe entre o caiçara morador da
Juatinga e o ambiente em que vive passa também por essa série
de resquícios e permanências da cultura indígena que

63
excepcionalmente conseguiu sobreviver nesta região. As
práticas cotidianas desse grupo refletem um conjunto de saberes
que eram praticados na maioria do território onde hoje está o
Brasil. Não como práticas arcaicas no sentido de atrasadas, mas
como uma forma de resistência cultural e inserção no mundo,
essa população manteve na sua vivência, conhecimentos que
permitiram sua permanência na região. Essas práticas hoje se
tornam fundamentais na criação de estratégias de resistência ao
aumento das pressões externas e na afirmação de seu direito à
posse da terra de seus ancestrais.
Também no contato com o turismo essa ancestralidade se
mostra útil, no sentido que cria vínculos de respeito do turista
para com o nativo, reconhecendo este como mais adaptado,
responsável e conhecedor dos mistérios locais. O manejo
indígena que foi herdado pelos caiçaras é um fator de poder
frente às imposições conceituais da sociedade ocidental, e deve
ser valorizado e reconhecido. Não é isso que acontece, já que
as barreiras para seu estudo se iniciam na academia. Nesta,
persiste ainda hoje uma valorização dos estudos políticos, sendo
as práticas coletivas encaradas como folclore ou etnografia. A
pesquisa da cultura de povos tradicionais como forma de
resistência política aparece como um objeto raríssimo na
historiografia. Na cadeira de História também há um receio muito
grande quanto ao estudo de povos vivos, como se fosse
necessário esperar uma cultura morrer para se debruçar sobre
ela. De fato, mortos não tem como reinvidicar revisões ou
críticas aos estudos sobre eles e a bibliografia pode ser
catalogada e contida em arquivos, ao contrário de sentimentos e
visões de mundo mutantes.
A dúvida da Academia sobre a utilidade de estudos como
esse, sobre populações isoladas foi levantada durante todo o
decorrer do projeto. Sua especificidade como estudo sobre
descendentes de povos indígenas de um estado como o Rio de
Janeiro que não apresenta mais nenhuma população indígena
nativa foi tido como irrelevante. Mesmo na falta de bibliografia
na área histórica sobre grupos culturalmente remanescentes, o
tema pareceu obviamente consensuoso. Sua relação como grupo
rural em disputa com grileiros, parecia ser a única salvação para
a originalidade do trabalho. As práticas e heranças que tornaram
esse grupo tão cheio de especificidades e possuidores de uma
relação homem-natureza tão simbiótica, que permitiram aos
mesmos, serem reconhecidos em lei, como parte do que deveria
ser preservado na reserva e mesmo a Área de Proteção
Ambiental do Cairuçu ter sido elaborada como resposta a um
violento processo de grilagem de terras, que se abatia contra
eles, o importante não era quem eles eram, mas, o que
aconteceu a eles. Como se um termo fosse independente do

64
outro e a historiografia já não ter encontrado a Biologia, a
Física, a Ecologia e a Geografia, concluindo que tudo são redes
de sistemas integrados, onde o macro está contido no micro e
vice-versa.

Capítulo III

Ambiente e Resistência: Memória Ambiental, Segurança


Alimentar, Turismo e Luta pela Terra.

“o Homem é considerado, neste livro, como parte da natureza; daí não


existir um capítulo à parte ou apêndice chamado “o Homem e a Natureza”.
(...) Comunidade no sentido ecológico, inclui todas as populações de uma
dada área. A comunidade e o ambiente inerte funcionam em conjunto como
um sistema ecológico ou ecossistema. (...) A porção da Terra na qual os

65
ecossistemas podem operar, isto é, o solo, o ar e a água, biologicamente
habitados, recebe o nome de biosfera.”42

Esse capítulo se refere aos temas que estão mais


intimamente relacionados ao meio ambiente e as questões
políticas relacionadas ao uso da terra. As leis de proteção
ambiental, já discutidas anteriormente, são analisadas quanto às
suas conseqüências diretas no ecossistema e na cultura local.
Percebe-se que após a criação das áreas protegidas, os
desmatamentos foram pelo menos ideologicamente controlados.
Há nos discursos dos moradores uma consciência ambiental, que
provavelmente se formou a partir da implementação das leis
ambientais. Entretanto, como em casos análogos no país,
apenas parte da lei é cumprida. No caso da reserva, apenas leis
proibitivas, que inclusive entram em choque com os direitos
assegurados aos povos tradicionais são aplicadas. São
negligenciadas as medidas educativas e de geração de renda
que estão previstas nos textos que criam tanto a área de
proteção ambiental quanto a reserva ecológica.
Talvez esse seja o maior dano ao meio ambiente hoje
corrente dentro da península. Apesar das restrições, muitos
caiçaras queimam todos os anos áreas de sapé, de capoeira e
também de mata, para o cultivo das roças. A falta de ações
pedagógicas, como estudos de viabilidade para implementação
de cultivos agroecológicos e o isolamento da região em relação
a projetos agroflorestais bem sucedidos em comunidades
caiçaras da mata atlântica é evidente. Um dos exemplos é a
utilização comercial da polpa dos côcos da palmeira Jussara
(Euterpe edulis), que na reserva poderiam suprir a demanda de
açaí durante as estações turísticas. Os côcos descartados do
processo de extração do suco vem com sucesso sendo utilizados
em Ubatuba e na região Sul em áreas de reflorestamento.
Dentro das atribuições da reserva e da área de
proteção ambiental, está a recomposição vegetal das áreas
degradadas, processo esse muito necessário, já que a maior
parte do Saco do Mamanguá é formado por capoeiras. Existem
grandes áreas desflorestadas, remanescentes dos antigos
cultivos coloniais, que foram sucessivamente sendo cultivados
até os dias de hoje. Os grileiros também abriram grandes
clareiras na mata argumentando a necessidade de pasto para as
criações pecuárias e a produção de carvão. Existem áreas,
entretanto, que são mantidas nuas por um costume de atear fogo
a áreas de caminho. Existem várias, as maiores são no Pouso da
Cajaíba, na Praia do Sono, no Saco das Anchovas e Cairuçu das
42
ODUM, Eugene Pleasants, 1931. Ecologia; tradução de Kurt G. Hell. 3ª Ed. São Paulo, Pioneira,
1977. p.20

66
Pedras. Áreas desmatadas pela lavoura se encontram na Praia
Grande, Martim de Sá e Ponta da Juatinga.
A falta de cobertura florestal ocasiona conseqüências
que são descritas pelos próprios moradores e contrastam com
alguns conceitos do senso comum. Segundo Seu Maneco, é a
falta de alimento que extingue a caça, e não os caçadores
locais, porque segundo ele com comida farta, a fauna procria em
abundância, muito mais do que é consumido esporadicamente
pelas comunidades. Anos atrás, quando os caçadores urbanos
freqüentavam as matas, havia uma alta taxa de morte de animais
devido à caça, aos equipamentos e aos cachorros de caça
utilizados. Mas após a proibição da caça na reserva, os caiçaras
também foram atingidos pela proibição e vão perdendo
rapidamente conhecimentos relativos à fauna que poderiam estar
sendo utilizados na ampliação desta. Conhecimentos de animais
que hoje se encontram extintos, como o tamanduá-mirim ou
anão, que poderiam ser reintroduzidos, através do conhecimento
dos caiçaras de quais os habitats mais propícios para cada
espécie. Um trabalho de viveiros de fauna, como já está sendo
feito na Ponta Negra, em que macucos estão sendo criados ao
invés de galinhas. Se essas criações forem estimuladas, e com a
taxa de fuga natural dos animais, ou até uma cota de
reintrodução na mata, em poucos anos muitos animais
reapareceriam em abundância, mas faltam pesquisas nessa área.
Uma das mais importantes práticas caiçaras
tradicionais que se perpetuou, e necessita de urgentes estudos
para um manejo mais apropriado é a puxada de canoa. Nesse
grande evento comunitário, os homens adentram a mata
procurando árvores velhas, a ponto de morrer, que dêem boas
canoas. Cedros e Guapuruvus de grossos troncos sempre foram
muito procurados, mas com a secular retirada de canoas, essas
árvores já são raras. No passado, a puxada de canoa era
acompanhada de bailes e festas, já que o trabalho de carregar
enormes toras de madeira por dentro da mata era um importante
evento social comunitário. Cada vez é necessário ir mais longe
na mata para conseguir um bom “pau”, e os fiscais florestais
também pressionam, causando muito aborrecimento para os
nativos. Os melhores fazedores de canoa são tão respeitados
dentro e fora de suas comunidades, que são citados em praias
distantes como é o caso de S.Jovino.

67
Canoa sendo feita no Cairuçu das Pedras.

Esse parece ser um caso análogo ao da produção de


sapé. Material milenarmente usado no telhado das habitações e
construções caracteriza a construção caiçara tradicional.
Entretanto, este só cresce com a força necessária para uso nos
forros, quando cresce em terreno recém queimado. Mas a partir
da imposição das leis, os caiçaras se viram impossibilitados de
utilizar o produto nativo e tem que adquirir no mercado as telhas
de amianto, que sabem que fazem mal à saúde.
Se houver um trabalho sério por parte dos órgãos
governamentais interessados realmente em proteger e recuperar
o meio ambiente, natural e humano, muitas soluções serão
viáveis. Adaptações com materiais do próprio meio como o
telhado de folhas da palmeira Pindoba, abundante na região,
podem ser utilizadas; em vez da queimada de áreas florestais, a
queimada controlada pode ocorrer em capoeiras e terrenos de
pousio determinados pelo plano de manejo e o uso da
compostagem agrícola também fornece boa quantidade de
húmus. A utilização das folhas do guandu espécie muito
cultivada nas roças tradicionais e já utilizada como adubo pode
ser incentivada e difundida nas comunidades.
Não há interesse pelo conhecimento tradicional.
Talvez porque este guarde memórias perigosas contra alguns
setores que financiam as áreas protegidas. Em três entrevistas
com antigos caiçaras foi levantada a morte de algumas espécies.
A primeira foi dos pitus e peixinhos das cachoeiras, que logo

68
após a jogada de veneno que reduziu a população de mosquitos
e maruins, patrocinada pelo condomínio Laranjeiras, ocasionou o
sumiço dos mosquitos, a mortandade de pitus e peixinhos das
beiras dos rios em três praias da costeira. Logo em seguida a
essa mortandade, os enormes bandos de macacos Muriqui ou
Buriqui, como são lembrados, sumiram. Os bandos que vinham
em grande algazarra pelos vales das matas grandes das serras,
sumiram do dia para noite, deixando perplexos os que se
lembram do fato. Foi junto da mortandade dos pitus, afirmaram
os três informantes, em três praias diferentes.

S.Jovino e as histórias dos bichos da mata.

Diferenciaram esse período de um anterior, em que o


Tamanduateí, ou Tamanduá-anão, sumiu também, restando hoje
apenas o grande. As queixadas sumiram conta S. Jovino, irmão
de S. Maneco do Martim de Sá, quando já eram poucos. Um
caçador da cidade, sem conhecer os caminhos da mata, soltou
os cachorros bravos num grande bando, que acabou por cair num
desfiladeiro e nunca mais foram vistas queixadas.
Na lei da criação a APA, fica expresso:
“Artigo V – Fica proibido o uso de biocidas capazes de causar
mortandade de animais vertebrados, exceto ratos e morcegos
hematófagos.”43 Mas a lei parece mais uma vez não estar sendo
respeitada.
As baleias até um ano atrás, segundo Jovino,
ofereciam risco às canoas de pesca no Cairuçu das Pedras.
Chegavam tão perto com as crias e eram tantas que por um
descuido do pescador, podiam virar as canoas com seu pesado

43
Lei Decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de 1983. APA Cairuçu. Sítio IBAMA/RJ
http://www.ibama.gov.br/siucweb/mostraDocLegal.php?
seq_uc=36&seq_tp_documento=3&seq_finaliddoc=7, 2006.

69
movimento. Esse ano, já era época, mas ainda não havia
aparecido nenhuma baleia, fato que Seu Jovino estranhou.
Pássaros, peixes, outros macacos, árvores frutíferas,
tantas espécies que se lembram pelo nome, descrição e
sumiram. Época em que apareciam, sua alimentação, práticas
de acasalamento, período de extinção, são infinitos os
conhecimentos que vão se perdendo na memória dos mais
antigos. Os caiçaras jovens, proibidos de caçar, de fazer roças,
se interessam cada vez mais por valores urbanos. Não há mais o
espaço do aprendizado, porque o espaço era forjado pela prática
e essa foi proibida, ao invés de pesquisada e adequada à
contemporaneidade.
Como diz Diegues,”as culturas regionais e locais
representam a soma total de experiências passadas, numa vasta gama de
condições ambientais. A incorporação seletiva de um passado
reinterpretado para um futuro liberado não ocorrerá se a memória for
destruída, ou se seus produtos culturais forem conhecidos como peças de
museu.”44
Mas existem alternativas, como os meninos que criam
macucos, os meninos da Praia Grande, Alef e Leno com suas
armadilhas e sua constante atenção com os ensinamentos do
pai, a Preta do Sono, neta de evangélicos que voltou a dançar
ciranda em Paraty, o Gilson e seus amigos do Pouso que não só
contam causos de assombração, mas morrem de medo de
encontrar com os personagens, assim como as crianças da Ponta
da Juatinga. São jovens que guardam essa importante fonte de
saber que é a memória ambiental desse povo, que em suas
características mais tradicionais, e adaptadas e dependentes ao
meio, e independentes da urbanidade, permaneceram restritas a
essa península, principalmente em decorrência de seu
isolamento.

A Poluição

A maior degradação que os aflige é a do mar. O ciclo


da pesca embarcada os transformou de pescadores artesanais
com armadilhas de taquara e cercos, em pescadores de alto-mar,
conhecedores da costa desde o Espírito Santo à Santa Catarina,
inseridos no mercado de pesca abastecedor das grandes
cidades. Hoje os peixes que forneciam para o Rio de Janeiro,
não são suficientes nem para a subsistência.

44
DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos
Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000. p.43

70
Das épocas de fartura, ficaram os relatos dos peixes
colhidos na areia, fugidos dos tubarões; das mulheres pescando
com suas saias as tainhas, e a pesca farta na arrebentação. É
chocante a comparação dos relatos do passado com os do
presente. Os caiçaras percebem o processo de degradação do
mar, mesmo que alguns jovens digam que a pesca esteve
sempre como agora. Outros, entretanto, jovens também, citam os
relatos dos antigos e sabem que a pesca acabou. Como causas
principais apontam os barcos de arrasto dos empresários, que
burlam as leis e a fiscalização, matando criminosamente a
microfauna marinha, a poluição das grandes cidades e das
indústrias.
Seu Aplígio do Cairuçu, conta indignado que é da
Usina Nuclear que vem uma maré de águas turvas, como a água
com Novalgina – remédio para dor – que afasta os peixes e
gruda nas redes. Pior do que a época em que as naus
petroleiras fundeavam na costa e lavavam seus tanques,
enchendo as praias da península de óleo, deixando marcas nas
pedras até hoje.
Segundo Seu Aplígio, o cano que solta a água da
usina de Angra, não é comprido o suficiente para evitar que a
água chegue até a costa. Segundo ele também, essa maré
viscosa e translúcida é diferente das marés de esgoto que vem
da direção de São Paulo e das correntes que trazem óleo dos
navios.
Segundo Seu Maneco, as árvores da mata não
produzem mais frutos porque a poluição vinda de São Paulo faz
baixar uma chuva diferente que faz com que as frutas caiam dos
pés antes de maduras. Assim a caça morre de fome. Esses
conhecimentos tão sofisticados do ambiente, possibilitados
apenas por uma convivência tão intíma com a terra em que
habitam e produzem, levam a uma reflexão sobre como
degradação cultural ocasionada pela pressão das leis ambientais
e o impacto cultural e econômico da urbanidade também não são
uma das facetas da própria degradação ambiental. Essas
memórias demonstram como a história da resistência desse
povo, para sobreviver em seu território, está intimamente
relacionada ao ecossistema em que habita, possuindo
conhecimentos que podem ser valorizados como forma de
enraizamento cultural.

Se
gurança Alimentar

A memória sobre aspectos do meio ambiente também


se refere aos alimentos orgânicos que hoje já são raridade. Além

71
das frutas desaparecidas, dos peixes escassos, a caça que foi
proibida representava uma importante complementação protéica
nas épocas do inverno, época da baixa da pesca. Mas o
decréscimo com maiores conseqüências foi na diminuição das
roças.
Essa atividade tradicional era a principal atividade
econômica até o ciclo da pesca embarcada e hoje, se vê
reduzida a poucos gêneros plantados, em raras comunidades. A
grande conseqüência da diminuição dos policultivos, além da
perda genética é a segurança alimentar das comunidades que se
vê abalada. Principalmente após os processos de grilagem que
reduziram os espaços coletivos, definindo limites de terrenos
particulares e impedindo o deslocamento nômade das famílias
dentro de seu território. Uma das principais causas do
nomadismo caiçara era o sistema de pousio das terras
cultivadas. Segundo os caiçaras antigos, as roças do passado
eram feitas em áreas que após a queda da fertilidade eram
deixadas em processo de regeneração vegetal por longos anos,
por isso os caiçaras se mudavam constantemente, indo habitar
próximo das áreas que seriam cultivadas.
Com o acirramento das pressões para retirar os
moradores, os processos de grilagem e a quebra das relações de
compadrio pelo protestantismo, as antigas formas de mutirão de
plantio e áreas comunitárias foram sendo substituídas por
plantios individuais. Mas as técnicas tradicionais de cultivo são
muito pesadas fisicamente, assim houve também um aumento do
trabalho individual, o que acarretou um desinteresse pelas
gerações mais novas que começaram a optar por trabalhos mais
simples e rentáveis como o transporte de turistas.
Após a desarticulação dos plantios coletivos, houve
recentemente a chegada do mercado de trabalho gerado pelo
turismo e o impacto das leis ambientais que proibiram uma série
de práticas sem sugerir adaptações e manejos. Há, porém,
comunidades que resistem e permanecem desobedecendo as
proibições e plantando seus alimentos. Outras comunidades
estão encontrando lentamente opções alternativas como é o caso
da compostagem agrícola praticada por seu Altamiro. A luta pelo
direito de plantar é uma luta implícita na luta pela posse da
terra. A história dessa luta é um alerta e oferece uma reflexão
sobre a prática da grilagem, as leis ambientais e o impacto
cultural da urbanidade.

O turismo

“o turismo nasce sob a égide do capitalismo e desde o início adquiriu a

72
racionalidade que o caracteriza, e que num primeiro momento é
profundamente individualista e consumidor dos recursos naturais” 45

Os pesquisadores Diegues e Nogara, no livro “Nosso


Lugar Virou Parque” fazem uma importante descrição do
processo de expansão imobiliária na região da Juatinga, mais
especificamente na região do Saco do Mamanguá. Caracterizam
quatro grupos: turistas de luxo, com mansões e iates; classe
média urbana, com casas de veraneio comprada dos caiçaras;
mochileiros, em geral jovens universitários e estrangeiros com
pacotes de turismo. Mais recentemente, começa a emergir, no
Saco, um turismo voltado para grupos escolares e de pesquisa,
buscando uma interação através de estudos do meio e
diagnósticos participativos. É também uma tentativa de quebrar
a sazonalidade do fluxo turístico, intenso apenas no verão e
integrar a cultura local como mais um item da rota turística, se
não o principal.
Os grupos de estrangeiros também se interessam pelas
práticas locais, sendo comum a procura pelas casas de farinha.
Os moradores vão aos poucos valorizando algumas de suas
práticas arcaicas em função desse interesse turístico. Porém,
neste caso específico, do turismo internacional, o local é visto
como exótico e remunerado, com os caiçaras ganhando trocados
pela exibição do forneamento da mandioca. Aí está uma questão
delicada, que é a da auto-representaçao das práticas coletivas,
como ressaltou Michel de Certeau, em sua reflexão sobre a
invenção do cotidiano. As práticas tradicionais perdem a
funcionalidade que guardam em si, e passam a ser exibições
exóticas sem nenhum vínculo com a prática cotidiana. Assim
como os índios Pataxós da Aldeia de Barra Velha/BA, cobram um
real para o visitante tirar uma foto e para tanto, o cacique pede
pra mulher buscar seu cocar.
Essa perda da autenticidade é problemática inclusive para
o próprio turismo, que está em geral em busca de exclusividade.
Mas, sobretudo para os caiçaras, que passam a se auto-
representar em troca de dinheiro, trocando a identidade por uma
imagem da identidade necessária para a folclorização das
práticas, de acordo com o interesse turístico. As práticas locais
assim transformadas em atividades exóticas e recreativas
estariam inseridas num processo que pode ser encarado como
um grande parque temático caiçara, em que os caiçaras seriam
atrações de um espetáculo que se assiste mediante pagamento.
Essa mercantilização das relações sociais colabora para um
clima de avidez pelo dinheiro, que já pode ser sentido em
lugares antes valorizados justamente pela hospitalidade natural
dos moradores. A Praia do Pouso, a Praia do Sono e em algum
45
DIAS, Reinaldo. Turismo Sustentável e meio ambiente. São Paulo, Atlas, 2003. p.07

73
grau Martim de Sá, já são locais em que se um estrangeiro ou
uma pessoa de classe média brasileira, chegarem,
provavelmente o primeiro será mais bem recebido.
Locais em que o fluxo turístico é menor, como a Ponta da
Juatinga e o Cairuçu das Pedras a recepção dos moradores é tão
mais generosa e sincera, que se tem vontade de nunca mais sair
dali. Inclusive, não há uma percepção apurada do turismo, sendo
o turista enxergado como um visitante. Ao contrário, em outros
locais, se sente que a todo o momento os moradores querem
tirar algum dinheiro a mais, com bolos, comidas ou a
demonstração de atividades tradicionais. Essa intenção de
comércio, às vezes coloca até em dúvida a intencionalidade da
interação do nativo com o visitante, causando uma sensação
desconfortável.
Quanto ao turismo de classe média, é o que em geral
colabora mais para o abandono das praticas tradicionais nas
comunidades. Existe sempre uma casinha de alguém sendo
construída, reformada, e é comum a cena de jovens carregando
sacos de cimento dos barcos para as construções. Os jovens das
comunidades mais turísticas, já não sentem muito apelo no
trabalho árduo e arriscado da pesca, muito menos na roça,
encarada como desgastante e de nenhuma remuneração.
Preferem ser pedreiros e ajudantes e ganhar algum dinheiro,
com o qual podem ir a Paraty, nos finais de semana e eventos.
Há também outros postos de trabalho que na época do turismo,
faz com que muitos caiçaras alternem atividades tradicionais e
comerciais.
São muitos postos de trabalho: o transporte dos turistas
com os barcos de pesca, os bares, seus garçons, cozinheiros,
carregadores de mala, traficante de drogas, o aluguel de casas,
canoas, equipamento de mergulho, etc... Enquanto essas
atividades vêm complementar a renda, que já esta garantida com
as atividades de subsistência, percebe-se uma certa melhoria
das condições econômicas de vida, sem analisar as
conseqüências culturais. Mas, a questão é quando essas
atividades se tornam a única fonte de renda familiar. Há uma
perda de conhecimentos e técnicas, bem como de formas de
interação com o meio ambiente, mesmo que exista uma gama de
conhecimentos relativos ao turismo e aos serviços.
Esses conhecimentos sobre serviços, já muito difundidos
na urbanidade, se contrastam com o conhecimento caiçara
tradicional, que envolve um “know how” muito especializado
sobre os ciclos e seres do meio em que vivem. Cada caiçara
tradicional conhece centenas de espécies arbóreas daquela mata
específica, sua localização, seus usos, os animais, seus ciclos
reprodutivos, trilhas, ervas medicinais, entre tantos outros
conhecimentos que podem ser considerados raros e ainda não

74
catalogados pela sociedade letrada. Existe a lista nacional de
animais em extinção, deveria haver também a lista nacional dos
conhecimentos em extinção, inclusive conhecimentos sobre
animais em extinção. Se esta houvesse, com certeza os caiçaras
seriam um dos que estariam em maior risco, dado o grau de
especialização de seus conhecimentos.
A cultura está sempre em transformação, por isso, que
essas novas atividades devem ser incorporadas às práticas
diárias. Entretanto, os caiçaras devem dispor de ferramentas
que os tornem capazes de selecionar as transformações que
decorrem da interação de sua cultura e da sociedade de
consumo. O que se vê quando esse contato não é planejado, são
resultados de uma interação descontrolada, que geram a
descaracterização cultural, a poluição e a falta de saúde. Os
órgãos competentes, como o IEF, responsável pela área, tem em
suas diretrizes formadoras, o papel de gerar cursos e pesquisas
que capacitem esses moradores para essa interação. Não é o
que acontece até o momento.
Esse é um dos temas principais que DIEGUES discute,
como as atividades rurais são classificadas como perigosas e as
atividades urbanas como o turismo são favorecidas através da
transformação de espaços de produção coletiva em espaços
recreativos para as levas do turismo urbano, através de
expropriações governamentais.
Essas alterações da sustentabilidade comunitária
geram uma dura dependência dos produtos e fluxos financeiros
da urbanidade. Mesmo as propostas mais contemporâneas como
o turismo consciente e o ecoturismo, possuem em si mecanismos
que permitem apenas uma melhor conservação dos espaços.
Reduzindo o lixo e os danos do turismo predatório, compromete
as práticas comunitárias e altera a produção e o conjunto
simbólico e identitário coletivo. Nesses modelos ainda há uma
dependência econômica e cultural, já que a preocupação é com a
preservação do meio natural e não com a cultura que nele
habita.
Os aspectos da urbanidade geralmente são
desarticuladores da vida comunitária. O turismo, entretanto,
apesar de causar um profundo impacto negativo na cultura e no
meio ambiente também é capaz de criar formas de interação
entre agentes urbanos e locais que geram processos de mão-
dupla como a formação de uma Ong. Esta ong que foi formada
por turistas que se ligaram aos caiçaras por laços de amizade foi
o principal fator que recentemente criou uma possibilidade de
resistência e de permanência de moradores em duas praias da
península afetadas pela grilagem.
O turismo ecológico sustentável aparece recentemente
como uma nova possibilidade de interação. Levando em conta o

75
conceito de que o turista se torna um visitante quando encontra
uma comunidade consciente, investe na educação ambiental de
comunidades e visitantes. Inclui a perspectiva histórica e
valoriza o conhecimento tradicional. Já começam a se perceber
um movimento de cursos, oficinas e encontros participativos, em
que comunidades quilombolas, caiçaras e indígenas promovem
sobre suas culturas e que cada vez mais encontram interessados
na urbanidade.

Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da


Cajaíba46

A Resistência Política

“ títulos fraudulentos sobre terras públicas – muitos dos quais


atropelando direitos de ocupantes legítimos – foram amplamente
legalizados já que os governos estaduais se mostravam em grande parte
impotentes para evitar a apropriação pública. A arte da apropriação
privada – grilagem, que vem de grilo, que salta sobre a terra de outros –
tornou-se uma profissão. Roubo de papel timbrado oficial, (...)
subterfúgios que os funcionários públicos quase sempre toleravam ou dos
quais participavam. Monteiro Lobato, (...) cita o caso de um grileiro que
“persuadiu” um tabelião a copiar um titulo em seu cartório como sendo
sobre 22 em vez de 2 léguas de terra e fez com que a cópia fosse
autenticada por um funcionário judicial, que não se deu ao trabalho de
confronta-la com a original. O grileiro mandou então um amigo advogado
tomar emprestado o original e “perde-lo”. Quando o advogado foi
devidamente preso por essa ofensa, o grileiro prestimosamente
apresentou-se com a cópia autenticada e mandou que o libertassem.”
Warren Dean – A Ferro e a Fogo.47

46
Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da Cajaíba. Agosto de 2006.
47
DEAN, Warren. A Ferro e a Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.189

76
Os processos de grilagem na região foram a partir da
década de 70, impulsionados pelo turismo, e na década 90, em
conseqüência da expansão do turismo na Baía da Ilha Grande.
O maior agente da grilagem foi Gibrail Tannus, que agiu na
Península em áreas oceânicas e da baía como Ponta Negra,
Martim de Sá, Sono, Praia Grande e Saco do Mamamguá.
Compra de escrituras e alguns terrenos, falsificação de
contratos, inclusive de comodato, criação agropecuária,
utilização da mata para carvão, pressão psicológica, violência
física, capangas armados e falta total de amparo
governamental às famílias atingidas. O principal fator que
permitiu a permanência ou migração dos grupos foi a
articulação entre os próprios moradores locais, e recentemente
a criação da ONG.
Apesar de todas as dificuldades, houve vitórias
caiçaras no processo de resistência. Na Praia do Sono, ocorreu
talvez a mais importante. Os contratos de comodato que foram
conseguidos através do golpe do pastor em benefício do grileiro
foram cobrados após o prazo de 10 anos, inclusive com a
participação da força policial paratiense. Muitos casos de
violência física e moral são lembrados, mas que ao final levaram
a um interessante desfecho, lembrado por toda península como
uma prova da importância da união caiçara.
Segundo Seu Antonio do Sono, importante líder
comunitário, após o grileiro ter dado a ordem de destruir a roça
de um morador, combinaram com as mulheres e crianças, que
apenas estes seriam os agentes da lição, os homens ficariam
observando caso algo saísse errado.
“Ele usou de mentira, de falsidade e depois ele mandou meter o
trator na roça de mandioca de um homem que tinha aí, (...) aí o povo se
alvoroçaram e achou que aquilo já era desaforo. Aí bateram nele, foi
embora e nunca mais voltou aqui.”48
Hoje, os moradores da Praia do Sono, são os que
possuem maior tranqüilidade quanto ao uso da terra. Podem
voltar a morar na praia caso tenham ido viver na cidade, podem
plantar, podem construir, mas possuem um pacto interno de
nunca venderem suas terras para pessoas de “fora”.
Ainda é contado pelos antigos, como o governador na
época, Leonel Brizola, instituiu a Reserva Ecológica, que
segundo seu Antônio, definiu a península como uma área
protegida para os caiçaras viverem.
A Ponta Negra escapou da grilagem, não totalmente,
pois mesmo sendo uma praia bem povoada, os descendentes do
grileiro ainda rondam a praia, dizendo que vão expulsar a todos,
pois a terra não é dos caiçaras. Alguns moradores venderam
terrenos para o grileiro, e foi com base em um desses registros
48 ?
Pesquisa de campo nº2. Praia do Sono / setembro de 2005.

77
de venda que o grileiro aumentou suas posses. Era o terreno da
pontinha da praia, no canto direito, pertencia a um homem velho,
e ao comprar esse terreno, o grileiro transformou a escritura
como se tivesse comprado a praia toda até a ponta que o velho
lhe havia vendido. Isso conta Seu Nelson, que foi averiguar os
processos no Fórum de Paraty, quando era um dos líderes da
resistência dos moradores.
Um dos casos relatados na Ponta Negra foi o do pai
do Dedé, que estava construindo uma casa para a família no alto
da Cachoeira das Pedras, divisa da Ponta Negra com atual
condomínio de Laranjeiras. Após abrir um roçado, a polícia de
Paraty, veio fardada e o levou preso para a cadeia de Paraty,
sob a alegação de invasão de propriedade particular. O homem
foi surrado violentamente, até que foi solto três dias depois.
Muito afetado, principalmente pelas pancadas da cabeça, não
conseguiu se recuperar sendo levado para o hospício da ilha da
Gigóia, onde morreu.
Seus muitos filhos foram criados com a ajuda da
comunidade, já que a viúva não dava conta de alimentar a todos.
Essa história foi amplamente relatada, na Ponta Negra e no
Sono. Na Ponta Negra também, houve o caso de um caiçara
bêbado que foi tirar satisfações com o capanga do Gibrail,
porque os búfalos tinham destruído a plantação de seu primo.
Este caiçara foi esfaqueado e morreu na hora, este episódio
também foi lembrado pelos moradores.
Desde o início dos processos de grilagem até o atual
momento, as populações caiçaras viveram um forte êxodo. Se
hoje vemos Altamiros, Manecos, Marias e Dicas, na verdade,
estes foram os últimos de um grupo de centenas que habitavam
as praias.
Nas praias dos Antigos e Antiguinhos, onde muitos
dos caiçaras antigos de hoje, nasceram, não existe viv´alma. A
alegação é de que haveria muito lixo e camping irregular, mas
quanto à vontade de Francino e Jango de retornar a praia onde
nasceram, mais uma vez a lei que garante aos caiçaras o direito
de habitar os lugares de nascença não parece ser respeitada.
O caso da praia do Martim de Sá foi fundamental para
a transformação dos processos de grilagem contra caiçaras. Na
década de 60, a família moradora do local, S. Roque Fermiano,
D. Capitulina dos Remédios, e os filhos, entre eles o atual
morador S.Maneco, eram os remanescentes de uma antiga
ocupação que contava com outras famílias. Mesmo ocupando a
praia desde a época do bisavô, e sempre ensinando a grafia
correta do nome da praia: Martim de Sá, nome do nobre que na
época da colônia descobriu a trilha guaianá e segundo a lenda
local esta seria sua praia preferida, a família de Seu Maneco foi
expulsa por um homem que conheceu a praia quando caçava.

78
Encantado, o militar perguntou se a praia tinha dono. Os
moradores responderam que nunca tinham visto, mas que
poderia haver. O homem, que se chamava Antonio Pacheco, já
voltou da próxima vez com a certidão de posse, comprada de
uma viúva possuidora de antigo leilão. Mesmo nessa época, a
família já possuía o direito da posse da terra, já que como
moradora há gerações, já havia adquirido o direito por uso
capião, através do uso continuo de habitação única por 10 anos.
Mas como não conheciam seus direitos, como a maioria da
população brasileira, ao ver os documentos escritos, se
resignaram a servir de empregados na sua própria terra, agora
uma fazenda de gado. Os búfalos e bois entraram nas
plantações da várzea, transformando a praia em um cenário de
destruição. Após certo período, devido a desentendimentos, a
família se retirou para o Cairuçu das Pedras, onde S.Maneco
conheceu D.Lorença e se casaram. De lá, S.Maneco foi habitar o
Saco das Anchovas. As décadas passaram e os
empreendimentos de carvão e criação de gado e búfalos do
grileiro fracassaram. Mortes, brigas e falta de salário fizeram
com que os funcionários abandonassem o local. Depois de vazia,
uma aura de maldição recaiu sobre a praia, inclusive quando
outras pessoas tentaram habitar a praia, sem sucesso.
Na década de 90, S.Maneco resolveu retornar a morar
em Martim de Sá. Conta que a mãe sempre falava da praia, e a
vontade de voltar era muita. Foi reorganizando o espaço muito
degradado pela ocupação do grileiro e reflorestando o entorno.
Reconstruiu a casa de pau-a-pique sob a grande mangueira que
plantou na juventude, no local da antiga casa dos pais. Arrumou
o rancho da praia e limpou as trilhas. Nesse período foram
chegando os primeiros turistas, e S.Maneco ia arrumando
ranchinhos e conversando com os visitantes. Até que em 1999,
uma reportagem do JB de domingo, popularizou a praia antes
praticamente desconhecida. Cariocas, niteroienses e paulistas
chegaram às dezenas, montando suas barracas e cozinhando por
toda parte, catando lenha verde, jogando garrafas de bebidas na
areia e guimbas de cigarro.
Com a chegada dos turistas, a Praia do Martim de Sá foi
sendo valorizada e em 2000, foi aberto no Fórum de Paraty, um
processo de reintegração de posse a pedido dos descendentes
do grileiro, colocando S.Maneco como réu. A dificuldade do
acesso fez com que o oficial de justiça demorasse em entregar o
mandato de reintegração de posse. Seu Maneco conta que pouco
antes disso sonhou com muitos golfinhos encalhados na praia do
Martim de Sá, o que estava lhe alertando sobre um perigo
próximo. Após tomar conhecimento do processo, Seu Maneco
resolveu permanecer na terra, recebendo duas propostas de
defesa. Uma de um advogado de Ubatuba, especializado em

79
causas de grilagem contra caiçaras. Este, que foi apresentado
pela própria filha de Maneco, lhe prometeu vitória certa, mas
cobrava como pagamento um terreno na praia.
Vendo a situação de perigo que Seu Maneco e sua família
estavam correndo, um grupo de freqüentadores da praia que se
conheceram lá resolveram se juntar e pensar em uma forma de
lutar pela permanência do amigo no lugar. O grupo que contava
com alguns jovens advogados, propôs defendê-lo sem cobrarem
honorários. A justificativa do grupo é a de que poder fazer algo
contra tamanha injustiça, em meio a tantas outras que nos
cercam, era o maior pagamento que poderiam ter, além da
certeza de que Seu Maneco continuando em Martim de Sá, o
meio ambiente seria manejado de forma a organizar a ocupação
turística e integra-la ao universo caiçara.
A justificativa aceita, ainda restava a questão de que os
jovens advogados não possuíam nenhuma experiência na área
de disputas territoriais. Mas, Seu Maneco também teve outro
sonho, que o fez optar pelos jovens advogados. Assim, o grupo
se organizou em forma de ONG, a qual chamaram Verde
Cidadania, que nascia dessa forma diretamente ligada a
necessidade de defender na justiça o amigo Seu Maneco, da
Praia do Martim de Sá. Esse processo, que ainda corre no Fórum
de Paraty, tem duas questões centrais, uma sobre o comodato,
que teria sido levado à praia pelo velho Gibrail, pouco antes de
morrer, doente, em uma praia de difícil acesso e a forte questão
da controvérsia das testemunhas do grileiro.
Dessa forma, foi dada a posse temporária da terra a
família dos Remédios. Hoje outras casas foram construídas para
os filhos de Maneco e a mulher D.Lorença, para que a praia seja
herdada pelos descendentes e também porque é mais seguro
para os pais que já estão envelhecendo. Como muitas famílias
caiçaras, o casal já velho, possuem duas casas, uma que a
mulher cozinha e passa o dia e outra central, em que vai dormir
com o marido.
Na Praia Grande, a situação foi similar. O grande
êxodo populacional foi precedido de anos de resistência. Os
moradores contam que muitos resistiram o máximo que puderam,
mas devido as pressões, a oferta de dinheiro, a destruição de
casas, muitos não agüentaram e partiram.
Houve casos de moradores que quiseram voltar, mas
foram impedidos pelos capangas dos grileiros. A paisagem da
Praia Grande parece ao de um bombardeio. Muitas casas
destruídas, demolidas, com os tijolos espalhados, mensagens de
ameaça, roças em meio ao matagal. O cenário é de intimidação e
demonstração de poder. Hoje, as três últimas famílias restantes
parecem focos isolados de um povo que outrora habitou a
região.

80
Os capangas do grileiro vigiam o local e os antigos
freqüentadores que costumavam acampar nas mangueiras de sua
roça de mandioca, foram agredidos. Um deles tomou um soco, e
quis prestar queixa na delegacia de Paraty, mas qual não foi a
surpresa do grupo, quando ao entrar na sala do delegado,
avistaram o agressor ao lado do delegado. O agressor era ex-
policial da delegacia de Paraty, e depois de horas esperando e
quase perdendo o ultimo ônibus para o Rio, os atacados
desistiram da queixa e se foram.
Há uma falta de liberdade na reserva. Um clima de terror
psicológico é uma constante em muitas comunidades. Na Praia
Grande, os capangas armados violam as leis de livre circulação
de cidadãos e são uma ameaça constante de agressões e
vandalismo. Os moradores tem medo de andar sozinhos nas
trilhas e há assédio nas relações de poder. Um dos casos mais
graves é o de D. Dica, que com sua filha moça, tem que aceitar
a presença do capanga, que geralmente paga altas doses de
bebidas alcoólicas para os moradores, inclusive para a filha de
D.Dica. A conta que soma centenas de reais é paga pelo grileiro,
frente à tão importante consumidor, as vezes o capanga dorme
bêbado na birosca.
Esse processo de grilagem promoveu uma degradação das
relações pessoais devido à longa duração do conflito. Disputas
e desentendimentos comuns entre vizinhos, se transformaram em
intrigas políticas que afetam a relação de permanência no local,
com suspeitas cotidianas de acordos secretos entre certos
moradores e os grileiros. Mas esse fator de união ou desunião
do grupo foi fundamental para o resultado do processo de Ponta
Negra e Sono e negativo decorrente da desunião dos moradores
da Praia Grande e do Mamanguá.
Um dos exemplos da violência física de que são alvos os
caiçaras, é o de D.Dica, que voltando para casa na encosta, já
que sua casa próxima à praia há muito havia sido destruída. Ao
cruzar o rio a pé, já que o grileiro derrubou a antiga ponte,
encontrou um capanga. Este estava agachado bebendo água e
ao ver a franzina senhora de 56 anos voltando com seu facão, se
assustou. Mandou que D.Dica jogasse o facão na água, ao que a
mulher argumentou que o facão era seu instrumento de trabalho.
O homem puxou a arma e apontou para a senhora, dizendo que
se não jogasse o facão, atiraria, e repetiu a sentença. D.Dica
assim fez, por não ter outra alternativa e hoje corre na Câmara
de Paraty, um processo contra o capanga.
Em O Mito Moderno da Natureza Intocada, se encontra um
trecho que resume bem o caso da Juatinga:
“Na maioria dos casos, as chamadas populações tradicionais
encontram-se isoladas, vivendo em ecossistemas tidos até agora como

81
marginais (mangues, restingas, florestas tropicais) são analfabetas e têm
pouco poder político, além de não terem títulos de propriedade de terra.” 49
Um dos marcos históricos dessa disputa entre caiçaras e
grileiros foi a destruição em setembro de 2005, do rancho onde
D.Maria vendia seus pastéis no verão, e parte dos ranchos de
D.Dica e S.Altamiro. A justificativa era de preservação
ambiental, e foi consumada pelo IEF e IBAMA, com responsáveis
do Rio, inclusive. O ato arbitrário, porém, não conseguiu
mascarar sua motivação política, sendo esta percebida pelo
ministério público na condenação dos atos do IEF. Foi proibida
sua ação contra caiçaras e definida a punição de inquérito
administrativo para os responsáveis, agora considerados réus.
“Alega o MPF que, no dia 25 e 26 de agosto de 2005, o IEF,
representado pelos outros réus, demoliu três ranchos caiçaras, em afronta
a diversos princípios constitucionais, dentre eles, o contraditório e a
ampla defesa. (...)
Por fim, requer a condenação dos servidores do IEF por
improbidade administrativa, haja vista os indícios de desvio de poder, que
indicam que a operação teve por objetivo fomentar interesses pessoais e
não o fim colimado pelas leis de proteção ambiental”50
É importante citar também o caso de D.Bidica, que era
vice-presidente da associação de moradores. A reintegração de
posse em benefício do grileiro foi emitida nas vésperas do natal
anterior, e só foi impugnada porque a certidão de posse
apresentada não constava no cartório emissor. Fato depois
questionado em juízo, pela alegação de que havia dois cartórios
em Paraty sendo fundidos posteriormente, e seus documentos
embaralhados. Mas a certidão respectiva nunca foi apresentada,
fato hoje esquecido, já que D.Bidica, cansada de tanta pressão,
vendeu suas posses, dizem na praia, que por 15 mil reais e foi
com a família para um barraco na favela da Ilha das Cobras em
Paraty. Sua casa foi demolida assim como a dos outros
moradores, inclusive a igreja protestante, sobrando apenas a
escola, por ser um bem público.
O processo mais crítico no momento, é o da família de
Seu Altamiro e Dona Jandira. Moradores do morrote do canto
direito da Praia Grande, eles estão sendo processados por
descumprir o contrato de comodato. Entretanto, o comodato está
assinado pelo casal, sendo que ambos são analfabetos na
própria carteira de identidade. O nome de D.Jandira está escrito
errado e o acusador é reconhecidamente um grileiro, a família
Tannus, que consta inclusive no Atlas fundiário do Estado do Rio

49
DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC –
NUPAUB-USP, 1996. p.43

50
Medida liminar concedida na Cautelar Inominada n° 2005.5111.000450-0
às fls. 14/16,.”

82
de Janeiro e sabe-se que o cartório de Paraty é um dos mais
fraudulentos do Brasil.

S. Altamiro alimentando o filhote de pica-pau.

Apesar de tudo isso, a juíza alega que é uma prática muito


comum dos caiçaras, receberem o dinheiro, assinar comodatos e
depois dizer que são analfabetos. Talvez por causa dessa
crença, que a mesma tenha dado reintegração de posse imediata
para o grileiro no início do processo. Mas os advogados da ONG,
agora também trabalhando no caso, conseguiram modificar a
situação. Recentemente a advogada principal do caso e esposa
de um dos filhos de Seu Altamiro foi acusada pelo grileiro, de
tráfico de drogas na Praia Grande. Apesar do absurdo de uma
advogada economicamente estável ser traficante em uma praia,
onde habitam três famílias, sendo duas delas de idosos, a
acusação foi anexada ao processo. Tendo inclusive o grileiro
ameaçado entrar com um pedido de cassação do direito de
exercer sua função de advogada.
Com essa acusação e a recente ameaça de morte de um
dos mais importantes aliados da comunidade, um velejador
estrangeiro que inclusive foi quem ensinou a Seu Altamiro o
método da compostagem, a comunidade se vê em grande risco.
Investidores internacionais visitam a praia desembarcando de
luxuosos iates e helicópteros fazem vôos rasantes, como pôde
ser comprovado em duas viagens de campo.
Até mesmo em comunidades imobiliariamente menos
cobiçadas existem conflitos. No mesmo dia em que os
funcionários do IEF, saídos da ação nos ranchos da Praia
Grande, ancoraram em uma ilha e depois se dirigiram a Praia
dos Calheus. Lá destruíram o madeirame do telhado e as
paredes prontas até a metade da casa da família do Careca, da
Ponta da Juatinga. Esta família, de muitíssimos filhos, havia

83
construído a casa para que no verão, as crianças pudessem ter
acesso à praia, e também para a pescaria. A pesca também está
sendo prejudicada na isolada comunidade da Ponta Juatinga.
Esta comunidade apresentou o maior grau de presença dos
hábitos caiçaras tradicionais, assim como a Rombuda e o
Cairuçu das Pedras. A simplicidade de seus moradores e sua
interdependência do ecossistema ainda é o principal esquema do
grupo. Lá permaneceram as redes de ajuda mútua, as roças
coletivas e um sistema de manejo da pesca.
Porém até lá na isolada Juatinga, um dos moradores
antigos e seus filhos, fecharam com uma casa a parte do
rochedo por onde subiam as canoas, faziam redes e se pescava
de linha, principalmente as mulheres e as crianças. Percebe-se
que até entre os caiçaras, os ideais de propriedade privada vêm
recentemente transformando áreas antes comunitárias, em
desentendimentos pela posse da terra. Essa também foi uma das
causas para que a família do Careca tenha construído uma casa
no terreno do pai, o velho fazedor de canoas do Calheus.
Recentemente, houve um assassinato na Juatinga, por causa de
outra construção que agrediu o espaço coletivo. Um rapaz matou
o próprio avô, porque esse foi veemente e se revoltou com a
construção de uma casa no campo de futebol da comunidade.
Essa desapropriação dos espaços reduziu o acesso
aos lugares de uso coletivo, criando uma sucessão de terrenos
particulares. Mesmo terras que antes eram consideradas como
sem dono, como as serras, as pedras da costeira, ou pixiricas,
que são atracadouros de barcos, foram sendo vendidas, muitas
baseadas em contratos fraudulentos. O processo de documentos
falsificados que grassou no país desde sua formação, nesta
região existiu e continua a existir. Os forasteiros, geralmente de
São Paulo e Rio após negociarem com descendentes de antigos
donos do século XIX, ou dos que haviam negociado com estes,
fraudavam contratos anexando aos limites registrados, as áreas
comunais.
Percebe-se que os direitos dos povos tradicionais
continuam presos aos papéis em que foram escritos, e que
trabalhos como os de educação ambiental são vistos pelos
órgãos ambientais como perigosos. Não há a percepção de que
preservar a memória coletiva também faz parte do processo de
conservação ambiental da reserva. Pelo contrário, a memória
local pode ser um empecilho para as milionárias indenizações
que possivelmente esses grileiros irão receber em caso da área
se tornar um parque.
Na verdade, Gibrail Tannus aparece em um documento
público, o Atlas Fundiário do Estado do Rio de Janeiro, como
sendo um famoso grileiro. Na bibliografia sobre o tema caiçara,
seu nome também é muito conhecido, pois foi ele que vendeu o

84
terreno da Trindade para a Incorporadora Brascan e o terreno
onde hoje fica o Condomínio de Laranjeiras. O processo de
expulsão dos caiçaras da Trindade foi um marco do movimento
de expulsão dos caiçaras e também de sua resistência, aliados à
grupos urbanos num movimento que ficou conhecido como
trindadeiros.
A luta pela posse da terra, como conta bem o livro
“Genocídio Caiçara”, teve diversos embates, manifestações
públicas em Paraty, o filme Vento Contra, e do lado dos
grileiros, foram construídos portões que limitavam o acesso, uma
enorme devastação de um manguezal para a construção de um
gigantesco empreendimento turístico, derrubada de casas,
búfalos, exploração de minérios e carvão. Houve casos de
caiçaras que tiveram que morar com suas famílias em cavernas,
como fotos antigas e relatos de antigos freqüentadores atestam.
Por fim, um acordo entre grileiros e caiçaras definiu que os
caiçaras ficariam com as posses na beira do mar, mas que todo
o enorme terreno no interior da praia seria da BRASCAN.
Esse mesmo processo foi e é vivido por muitos
moradores da Reserva Ecológica da Juatinga. Hoje, não apenas
a grilagem, mas a legislação ambiental imposta a tais áreas e o
turismo mal planejamento, é capaz de violentamente
descaracterizar grupos e promover perdas culturais, econômicas
e sociais.
Essa discussão com certeza tem reflexos sobre a política
referente aos grupos tradicionais, tanto no meio oficial como no
não governamental. Dentro desse movimento de inversão das
relações de troca e reconhecimento entre a urbanidade e a
ruralidade, se iniciou um novíssimo movimento: a aliança
estratégica entre caiçaras e urbanos.

C
onclusão:

“(...) fomos à terra e descobrimo-la tão cheia de árvores que era coisa
maravilhosa, não somente a grandeza delas, mas seu verdor e cheiro
suave que delas saía e que dava tanto conforto ao olfato que grande
recreio tiramos disto. E o que vi aqui foi de uma feíssima (superlativo)
coisa de pássaros de diversas formas, e cores, e tantos papagaios que era
deslumbrante; (...) e o canto dos pássaros que estavam nas árvores era
coisa tão suave, e de tanta melodia, que nos acontece muitas vezes

85
estarmos parados pela doçura deles. E a mata é de tanta beleza e
suavidade que pensávamos estar no Paraíso Terrestre.” 51

Contemporaneamente, os moradores caiçaras


apresentam um alto grau de consciência sobre os processos
pelos quais passam seu grupo social e a região que habitam. Os
processos são notados, mas as especificidades nem tanto. Essa
barreira da linguagem, principalmente, impede uma série de
argumentações por parte dos nativos e desloca para os meios
letrados o debate das questões que os afetam.
Há um conjunto de saberes, frutos do conhecimento
empírico acumulado através da oralidade. Esse conhecimento,
através de uma memória ambiental, se manifesta no
conhecimento etnobotânico e faunístico, que inclui a memória
dos crimes ambientais. Além disso, a variedade genética de suas
roças se mostra como um pool de espécies raras, heranças
possíveis de um roçado indígena. Mesmo estando em extinção
as roças que ainda existem, algumas delas, possuem até quatro
variedades de um mesmo gênero. Feijões de muitas cores,
mamões da mata atlântica de três raças, como chamam, diversos
gêneros de mandioca e por aí vai.
A primeira hipótese sobre a descendência indígena
caiçara se comprovou na cultura através da análise das práticas
cotidianas e dos relatos sobre lendas e histórias locais.
Biologicamente, mesmo que a Antropologia Biológica seja hoje
praticamente uma disciplina renegada, um estudo visual apontou
diversos caiçaras que são claramente descendentes diretos de
indígenas, pela fisionomia, tipo físico e por idosos que mesmo
após os 70 anos de idade conservam cabelos negros. Muitos
apelidos de jovens são demonstradores dessa origem, como foi
apontado pelos próprios caiçaras. Foi percebido que o
etnoconhecimento tradicional caiçara já está sendo utilizado em
algumas comunidades para a recomposição ambiental das áreas
degradadas, com o plantio de árvores florestais e frutíferas.
A conservação da natureza, proposta que
recentemente entrou em contato com a cultura caiçara, já mostra
hoje conseqüências políticas, principalmente na luta pela
afirmação do direito ao território. Mesmo que em muitas áreas
isoladas habitadas por comunidades caiçaras, existam extensas
áreas degradadas, principalmente pela agricultura e feitio de
canoas, o impacto dos fatores advindos da urbanidade são
capazes de degradar as relações que os caiçaras mantinham
com o ambiente, e conseqüentemente o mesmo.

51
VESPÚCIO, Américo. 1505. trad. Luís Renato Martins. Novo Mundo – cartas de viagens e
descobertas. Porto Alegre, L&PM Editores, 1984. contracapa

86
A cultura caiçara tradicional não é historicamente
defensora da natureza nem possui práticas que por si só
preservam os ecossistemas. Tem, entretanto, sistemas de
equilíbrio com o meio, principalmente por possuir uma economia
de subsistência que depende diretamente da qualidade dos
ecossistemas do entorno. Assim, mesmo que a identidade
cultural caiçara permaneça num contexto produtivo consumista,
a cultura tradicional possui um conjunto de conhecimentos que
seria mais capaz de fazer essa adaptação de um universo rural
para um contexto de globalização.
Os fatores da urbanidade introduziram novas práticas
que comparadas com as tradicionais degradaram muito mais a
natureza. A construção de casas de veraneio, o lixo derivado
dos produtos industrializados e as fazendas agropecuárias são
exemplos do impacto devastador desses novos fatores, não
havendo nenhum trabalho de adaptação ou educação ambiental,
por parte dos órgãos responsáveis. Mais a frente estes fatores
serão analisados mais profundamente. Mesmo técnicas
tradicionais tidas como principais agentes de degradação não
sofreram nenhum tipo de trabalho educativo, a não ser de
pessoas independentes como no caso da introdução da técnica
de compostagem agroecológica.
A coivara como técnica de preparação da terra para o
plantio, é ainda utilizada em locais em que a fiscalização não se
mostra agressiva, ou seja, em locais aonde o turismo não chega
com força. Indo em direção oposta a algumas análises em que o
caiçara aparece como essencialmente um homem do mar, a
presente pesquisa focou de que maneira, o caiçara possuindo
um profunda ligação com o mar, é em sua raiz, um agricultor
também. E percebendo, em que medida, como o abandono das
roças está ocasionando uma perigosa perda de sua segurança
alimentar.
Essa diminuição do número de roças acompanha um
processo histórico global, em que a partir do fim do século XIX,
atraídos pelo potencial de mercado de trabalho das cidades, e
decadência de modelos de produção agrícola insustentáveis, as
populações rurais começaram seu fluxo em direção à
urbanidade. Fluxo esse que é também de mão-dupla, já que a
lógica do consumo se funda principalmente na necessidade de
estar expandindo seu raio de influência em direção as periferias
metropolitanas. Associado a esse contexto, novas relações
homem-ambiente foram forjadas, e o campo, em oposição à
urbanidade, passou a representar um lugar onde práticas
arcaicas se contrapunham as benesses do progresso cientifico
da modernidade.
As atividades tradicionais, como as roças, o feitio de
canoas, a cestaria, as festas entre outros, entraram para o

87
conjunto de práticas relacionadas ao antigo, ao velho, em uma
sociedade que agora, privilegia acima de tudo o futuro, o novo e
a contemporaneidade. D.Capitu, vivendo seus cem anos, ao ser
perguntada sobre o ser caiçara, esclareceu que os antigos
cultivavam a terra como principal fonte de subsistência, tendo na
pesca uma complementação alimentar. Entretanto, com o início
da pesca embarcada, e da chegada da pesca com cercos, a
importância econômica da pesca ultrapassa o da agricultura, já
em franca decadência. Ainda segundo D.Capitu, o caiçara não
vive sem a farinha de mandioca, principalmente no inverno,
quando a pesca escasseia. Sobre esse aspecto é interessante
notar, que os grupos Tupis, que habitavam a costa, também
possuíam uma relação produtiva mais ligada à agricultura,
mesmo que dominassem a tecnologia da navegação.
Infelizmente, esse processo de transformação cultural
vem sendo mistificado através de uma série de estratégias que
buscam redesenhar o caiçara como um povo essencialmente
pescador. Essa que parece ser uma fraude histórica, já que nega
um passado em função de uma necessidade do presente e que
muitas vezes serve para atender interesses que não desse
grupo. Mesmo que hoje a importância econômica da pesca seja a
matriz das práticas cotidianas, há um interesse político,
inclusive relativo à posse da terra, em ignorar a prática coletiva
da agricultura, como fator importante da identidade que esse
grupo possui de si mesmo e de seus antepassados.
Além disso, o discurso homogeneizante ocasiona uma
pressão sobre os que ainda possuem essas práticas agrícolas.
Através da pesquisa de campo em todas as comunidades, com
exceção da Ponta da Juatinga, onde a fiscalização não é forte,
foram dezenas de queixas sobre o prejuízo em que se viram a
partir do momento em que a coivara foi proibida e outras
técnicas de manejo não foram propostas. Esse processo
histórico de restrição da reprodução cultural, tem na catequese
protestante, nos processos de grilagem, no turismo e culmina
nos dias atuais, nas leis ambientais seus principais fatores de
degradação ambiental e cultural, como ressalta Diegues:
“As áreas naturais protegidas, sobretudo as de uso restritivo, mais
do que uma estratégia governamental de conservação, refletem, de forma
emblemática, um tipo de relação homem/natureza.”52

As leis, foram pouco a pouco se transformando em


inimigos dos moradores, em oposição a sua gênese, quando no
ápice das disputas entre caiçaras e grileiros, foi instituída a APA
do Cairuçu. Como se vê neste trecho:

52 ?
DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo:
HUCITEC – NUPAUB-USP, 1996. p.67

88
Artigo 1º- Fica criada a Área de Proteção Ambiental (APA),
denominada Cairuçu, (...) com o objetivo de assegurar a proteção do
ambiente, (...) e as comunidades caiçaras integradas nesse
ecossistema.”53
Apesar de a lei estar sendo infringida, há casos em que a
diretriz legislativa é no sentido estrito de declarar práticas
culturais coletivas como ilegais. Não há um interesse de utilizar
o conhecimento empírico que já existe na cultura caiçara, para
que se transforme em opções de manejo viáveis, sem proibir
arbitrariamente práticas sociais e ainda favorecer a conservação
dos ambientes. Com exceção da recém criada comissão de
povos tradicionais do Ministério do Meio Ambiente e os textos
das leis que não são postas em prática, não há um diálogo entre
órgãos legislativos e comunidades tradicionais, como se as
comunidades fossem incapazes de oferecer soluções viáveis pra
necessidades da sociedade nacional. Esse parece ser o caso
dos viveiros de flora e fauna, que já existem na península que
podem ser uma opção viável para o problema da proibição da
caça e das áreas agricultáveis e reflorestadas, mas ambos são
proibidos pela legislação das áreas de reserva.
Na lei, tanto da criação da APA, quanto da criação da
reserva, não se encontra proibição expressa, nem a caça, nem a
coivara, e sim a atividades que ameacem as espécies raras:
“Artigo IV- O exercício de atividades que ameacem extinguir as
espécies raras da biota regional.”54
A caça, uma das principais heranças indígenas, foi
arbitrariamente proibida, sem levar em conta que deriva de um
complexo cultural, místico, econômico e político que envolve
preparações corporais, presságios, lideranças comunitárias,
conhecimentos da mata, e a principal argumentação dos
caiçaras: de que a caça diminuiu depois da escassez de árvores
frutíferas e do despejo de venenos contra mosquitos,
determinado pelo condomínio de Laranjeiras.
Em resposta as críticas sobre a criminilização das
comunidades, os órgãos ambientais alegam que existem opções
sustentáveis. No caso da caça, como alegar sustentabilidade em
relação a comunidades isoladas, que no inverno tem na caça
uma complementação da alimentação. A compra de carne bovina
nas cidades, carne essa que deriva de fazendas que queimam
anualmente pastos na própria região da Mata Atlântica, seria
uma opção sustentável? No caso da Juatinga, a padronização
das leis ambientais atinge em cheio a reprodução do
conhecimento tradicional. No que consiste a reprodução social
dessas comunidades, é impressionante perceber que há uma
especificidade em sua dependência do meio natural, inclusive

53
Decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de 1983. Sítio IBAMA/RJ.
54 ?
idem 52

89
acerca do novo ciclo que se estabelece com o turismo, e que
define a condição ecológica das populações tradicionais.
Há um problema de saúde pública em decorrência da falta
de alternativas de adaptação das práticas tradicionais. No caso
das queimadas, gera a extinção das roças, baixa na qualidade
da alimentação local, perda de bancos genéticos, e ultimamente
tem em sua base, não mais farinha ou peixe, mas de biscoitos de
água e sal. Esse processo histórico da expropriação das formas
de reprodução social entra inclusive no debate sobre o papel
governamental na extinção de práticas culturais, que hoje, ainda
não atingiram o status alcançado pela lista de espécies em
extinção. Sem inclusive, haver qualquer debate sobre o
patrimônio genético das espécies cultivadas pelas populações
tradicionais, que contam na área da Juatinga com espécies
indígenas. Em uma sociedade em vias de aumento das áreas
cultivadas com variedades geneticamente modificadas, a
importância desses bolsões de cultivo de espécies nativas
assume um papel fundamental na preservação da soberania
alimentar não apenas dessas comunidades, mas também em
relação da tão defendida sociedade nacional.
Não há nenhum investimento que se perceba, no sentido
de introduzir e ampliar o conhecimento de técnicas de manejo
alternativas por parte dos órgãos responsáveis. Essa visão
dicotômica que se estabeleceu, sobre a convivência negativa
entre populações locais e áreas ambientalmente protegidas, e
que faz parte de uma visão que tem o ser humano, como parte
não pertencente ao mundo natural, sendo imprescindivelmente
danoso aos ambientes naturais. Inclusive, alguns autores como
Warren Dean acabam oferecendo dados dessa relação difícil,
sem, entretanto oferecer reflexões plurais sobre o assunto.
Diegues afirma que:
“paradoxalmente, grande parte do orçamento das unidades de
conservação é usada para a fiscalização e repressão (...), e muito pouco
para melhorar as condições de vida e a manutenção das populações
tradicionais que, se organizadas e estimuladas, poderiam contribuir
positivamente para a conservação das áreas protegias.” 55
A falta de uma educação diferenciada, que abarque as
especificidades culturais das comunidades caiçaras colabora
para a perda da memória e das práticas e se correlaciona com a
saúde e todas as outras questões. Em geral, a não valorização
da cultura caiçara pelos meios institucionais, fortalece uma
adequação deficiente e muitas vezes danosa entre o universo
simbólico tradicional e as soluções oferecidas pelo mundo
contemporâneo. A falta de transporte para os doentes, é em
geral uma das justificativas para a necessidade de estradas, o

55
DIEGUES, Antônio Carlos. O Nosso Lugar Virou Parque: Estudo Sócio-Ambiental do Saco
do Mamanguá, Paraty/RJ. 2a Edição. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999.

90
que parece ser uma das questões de maior debate entre os
moradores. O aumento das doenças ocasionadas pela
transformação da alimentação e abandono da rotina de trabalhos
físicos pesados, por uma mais leve, parece ter levado a uma
série de doenças crônicas que exigem tratamento na cidade.
Essa dependência da urbanidade manifesta em
diferentes aspectos se demonstra, principalmente, na
estratégia de resistência quanto à posse da terra. A partir do
movimento de mão dupla gerado pela formação da ONG e
defesa dos interesses caiçaras, por agentes urbanos aliados, e
a interação com pesquisadores e aliados independentes, a
formação das estratégias de resistência não retira dos
próprios caiçaras o protagonismo na construção de uma
identidade favorável às estratégias de permanência. Mesmo
que essa identidade esteja acompanhada de uma romantização
do passado. A reconfiguração da imagem, muitas vezes se
aproxima de um ideal do caiçara bom selvagem, protetor do
ambiente em que vive, argumentação que não se conecta com
as práticas cotidianas tradicionais.
Um dos maiores empecilhos para uma análise mais
pormenorizada do tema caiçara é essa dualidade presente na
bibliografia entre o caiçara ambientalista e o caiçara humano,
com práticas simbióticas e destrutoras, como todos os seres.
Outro problema é a precariedade das técnicas de pesquisa, o
que faz com que as conclusões apresentadas sejam
relativizadas. Segundo Adams: “muitas afirmações sobre
populações caiçaras são feitas de forma leviana, com fundamentação
teórica metodológica deficiente ou falta de embasamento empírico
(dados).”56
Talvez o maior argumento levantado pela bibliografia e
constatado pelas pesquisas de campo, é que o caiçara possui
uma relação de subsistência através de suas práticas. Essa
cultura tende a restringir a possibilidade de destruição
avassaladora do ambiente, tal como vemos hoje na sociedade
urbana de consumo. A sociedade do status quo, que vem agora
regular as práticas desses grupos tradicionais, criando leis que
refletem suas práticas consumistas e não analisando os modos
de vida dos grupos tradicionais. Outro problema é turismo mal
planejado, que vem se transformando na principal fonte de renda
de algumas comunidades, e que mesmo sendo ainda relativo à
dependência dos caiçaras de seu ambiente, é uma passagem
drástica para as relações de produção e consumo da urbanidade.

56
ADAMS, Cristina. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa Científica versus planejamento e gestão
ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000. p.49

91
Mesmo as formas de turismo consciente, como o
ecoturismo, parecem não responder adequadamente as
necessidades locais. As outras formas apresentadas na região
do Mamanguá, de trabalho com escolas e estudos do meio,
parecem alertar para a percepção de como existem estratégias
que já estão sendo implementadas localmente e que oferecem
soluções mais adequadas às necessidades dos grupos
tradicionais. As pressões de um turismo de luxo internacional, e
de mega-condomínios, em muitos casos, impulsionam as práticas
de grilagem, descortinam um patamar de problemas relacionados
ao turismo que tem historicamente, um forte papel na região
desde a disputa na Praia da Trindade, até o desenrolar das
questões atuais na Praia Grande.
São as conseqüências de um turismo sem planejamento
por parte dos órgãos responsáveis, e que através de uma
atuação negligente e muitas vezes corrupta, inclusive por parte
dos órgãos fiscalizadores ambientais. A corrupção da
fiscalização governamental já aparece fazendo parte da
mitologia local, com diversas histórias sobre fiscais corruptos,
ações arbitrárias e juízes de imparcialidade duvidável. Esse
cenário de terra-sem-lei, em que os caiçaras ocupam o papel de
marginalidade, foi uma das percepções mais marcantes das
pesquisas de campo, quando o clima de terror psicológico e
físico, na maioria das comunidades, chocou e ao mesmo tempo
incentivou a continuidade da pesquisa.
Se há uma tradição desde um passado remoto, de guerras
entre caiçaras e fazendeiros e a utilização de policiais
paratienses por parte de grileiros em diferentes episódios,
alguns com mortes, vem se mantendo, como se percebe no caso
atual da Praia Grande. Nesta praia, em que capangas armados,
ameaçam moradores, impedindo até sua circulação, o quadro de
antecedentes históricos se mantém. Esse terror emocional faz
parte de estratégias de grilagem, que em muito se baseia na
degradação das relações pessoais. As ações de retaliação dos
grileiros forçam disputas e desentendimentos entre vizinhos
afetando as relações de alianças, e prejudicando as estratégias
de permanência no local.
A união ou desunião do grupo foi fundamental para o
resultado dos processos de resistência pela posse da terra. No
caso das Praias do Sono e Ponta Negra, em que a comunidade
se fortaleceu, houve resultados positivos, após reações
conjuntas. Entretanto, nas comunidades da Praia do Pouso da
Cajaíba, Ponta da Juatinga e Praia Grande da Cajaíba, a rede de
intrigas entre moradores parece ter sido fundamental nos
processos de desintegração comunitária. Mesmo o alcoolismo
parece ter tido um papel menor, apenas oferecendo quadros de
caiçaras dúbios, que se transformaram em informantes dos

92
grileiros e agentes amedrontadores dos próprios caiçaras. Outro
fator, que foi crucial foi o da prática corriqueira na região, de um
caiçara vender a sua posse para alguém de fora e construir sua
casa no mesmo terreno, alegando não ter vendido. Essa prática
foi tomada judicialmente como um parâmetro para julgar diversos
casos de grilagem, a partir do momento em que o grileiro
apresentava a certidão de venda assinada, tendo para tanto
essa alegação.
Todas essas questões perpassam a formação de
estratégias de sobrevivência e a criação de redes, seja entre
caiçaras, ou interesses de fora. Essas redes têm em muitos
casos sido determinantes na formação de alianças que tem
possibilitado a permanência ou exclusão dos moradores. A mais
contemporânea, e que despertou maiores conseqüências na
historia recente dos caiçaras dessa península, é a formação de
uma aliança entre moradores caiçaras e agentes urbanos. Seja a
formação da ONG por jovens turistas para a defesa dos
moradores caiçaras, seja a participação e introdução de novas
técnicas e abordagens sobre manejo de espécies por visitantes e
pesquisadores, tem criado uma via de mão-dupla, criando
conseqüências simbólicas que extrapolam as ações concretas.
Esses vínculos entre sociedade urbana e moradores locais,
influencia na própria construção identitária. Oferece alternativas
de diálogo entre as populações locais e as questões que se
apresentam, seja da grilagem, do turismo ou da reserva. O
interesse por práticas que estão sendo excluídas das categorias
que os definem no âmbito da legislação, como parece ser o caso
da agricultura, há também um processo de reflexão por parte dos
moradores, se as proibições que os atingem são realmente
inexoráveis.
A memória e as práticas desse povo, sua identidade
diretamente relacionada com a própria visão de meio ambiente
que os cerca e dos processos contemporâneos que vem
alterando essas interações, inclusive nas novas formas de
relacionamento com os agentes externos, podem ser um dos nós
da rede de reflexões acerca da contemporaneidade e a crise
ambiental planetária. Podem contribuir também com algumas
soluções práticas de manejo ambiental e visão de mundo. Apesar
de dentro das práticas caiçaras, estarem inseridas formas de
manejo hoje consideradas nocivas à biosfera, um diálogo entre
conhecimento tradicional e modernidade, não é apenas possível,
mas traz conseqüências saudáveis a questões problemáticas
como no caso específico da região, que é o de populações
tradicionais em áreas ambientalmente protegidas.

“Os administradores podem aprender muito sobre conservação e


uso dos recursos naturais, enquanto a conservação de áreas naturais pode

93
oferecer grande oportunidade para a sobrevivência das culturas
tradicionais.”57

Ainda está muito nascente uma sintonia dos discursos


governamentais, que por um lado começam a criar estratégias de
preservação do patrimônio imaterial, principalmente da memória
e da cultura popular e por outro não considera aspectos desse
patrimônio, como a memória ambiental desses povos como
aspectos relevantes a serem abrangidos pelas leis ambientais.
Apenas a superação da relação romântica e maniqueísta da
dicotomia homem X natureza, pode levar a uma percepção mais
holística e sensível das populações tradicionais, como os
caiçaras da Península da Juatinga, são analfabetos sim, mas
não analfabetos ambientais.
O processo histórico dessa população demonstra como
oficialmente há uma exclusão do papel político desse grupo,
inclusive em questões que os afetam diretamente. Inclusive
muitos processos de violência e arbitrariedade jurídica foram
levados a cabo por agentes governamentais oficiais. As
permanências de práticas historicamente repudiadas pela
sociedade democrática, parecem nessa região terem se
estabelecido de tal forma, que apenas em casos em que a
organização popular extrema e a tomada de medidas radicais
ocasionaram alguma forma de sucesso. Mesmo hoje, em que
diversas leis internacionais e ambientais oferecem espaço para
a participação e respeito à existência dessas comunidades
tradicionais, o processo político real, como no caso da
recategorização da reserva, continua não levando em conta a
participação popular significativa.
Alternativas podem ser apresentadas a problemas
recorrentes, como propõe Diegues:
“deve-se proibir a construção de casas de não residentes. Quanto a
agricultura tradicional, esta deve ser admitida, mas em áreas bem-
definidas, além de se estabelecer uma zona-tampão entre estas e as de
preservação permanente.”
Mas, mesmo havendo propostas, há um conjunto de
arbitrariedades levadas a cabo por grupos econômicos
infinitamente superiores e claramente aliados à agentes
governamentais. Os caiçaras que sobreviveram a essas décadas
de violência continuam a resistir, principalmente baseados em
uma identidade coletiva e na memória do grupo como
ancestralmente descendente de habitantes do local. Essa luta,
que tem raízes míticas, em lendas como a guerra de Maria
Francisca e os caiçaras do Cairuçu das Pedras contra a

57
DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC –
NUPAUB-USP, 1996. p.234

94
expansão da fazenda do alemão do Martim de Sá, oferecem um
panorama de como a sociedade nacional e os órgãos
governamentais responsáveis, continuam a conviver
estaticamente com problemas arcaicos, como a grilagem. Hoje
as reservas com suas leis arbitrárias acabam por instituir uma
grilagem governamental.
Apesar dos estudos científicos já alertarem para a
importante ligação entre biodiversidade e cultura, essa
consciência ainda não alcançou os níveis legislativos e
executivos. Como aponta Diegues:
“a biodiversidade existente hoje no mundo é em grande parte
gerada e garantida pelas chamadas populações tradicionais. Nesse
sentido, a conservação da diversidade biológica e a cultural devem
caminhar juntas.”58
A cultura caiçara presente na região que vai de
Mangaratiba, no Rio de Janeiro, ao litoral do Paraná, vive hoje
um estreito processo de interação com a cultura da sociedade
urbana. Esse processo mesmo sendo mais ágil do que a
capacidade de filtragem dos aspectos nocivos à essas
comunidades, também demonstra hoje, através da relação com
outros agentes externos, que possui uma capacidade de estar
conectado à processos planetários de valorização dos bancos
genéticos das espécies cultivadas, de um turismo mais planejado
e sensível a cultura local, de reinvidicações por justiça
ambiental, e participação popular na formação de áreas
ambientalmente protegidas. A descaracterização cultural é uma
realidade presente, mas deve-se perceber também que na
história dos caiçaras da Juatinga estão presentes temas muito
discutidos. A capacidade de resistência à processos políticos
aliados a interesses econômicos, e novas formas de interação da
humanidade com o ambiente que a cerca. A história dos caiçaras
da Península da Juatinga demonstra que os homens não são
apenas responsáveis pela extinção de espécies, mas também
guardiões de bancos genéticos, historicamente constituídos.

58
DIEGUES, Antônio Carlos. Etnoconservação: Novos Rumos para a proteção da Natureza nos
Trópicos. São Paulo: Annablume: 2000.

95
Mudas de palmito Jussara e Guapuruvu feitas durante a Oficina da Praia Grande.59

59
Oficina de Agroecologia e Raízes Tradicionais da Praia Grande da Cajaíba. Agosto de 2006.

96
Aqui termina essa história
Para gente de valor
prá gente que tem memória,
muita crença, muito amor
Prá defender o que ainda resta,
sem rodeio, sem aresta
Era uma vez uma floresta (...)60

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CASCUDO, Luís da Câmara. Trinta estórias brasileiras. Natal, Ed.Porto, 1955.


60
A Saga da Amazônia, música de Vital Farias. A floresta amazônica e a mata atlântica são irmãs e que
compartilham de sagas muito similares, nas histórias de suas plantas, de seus bichos e sua de gente.

97
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Juatinga. São Paulo, 2003. Dissertação (Mestrado) Orientador(a): Oliveira, Ariovaldo Umbelino de
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