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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


MUSEU NACIONAL

Zeladores de Mistérios: Memórias do Tronco Velho Pankararu

Bartolomeu Cícero dos Santos – Pankararu

Rio de Janeiro, 2019.


Zeladores de Mistérios: Memórias do Tronco Velho Pankararu

Bartolomeu Cícero dos Santos – Pankararu

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos re-
quisitos necessários à obtenção do título de Mestre em An-
tropologia Social.

Orientador: Professor Dr. João Pacheco de Oliveira Filho

Rio de Janeiro,
2019.

II
Zeladores de Mistérios: Memórias do Tronco Velho Pankararu

Bartolomeu Cícero dos Santos – Pankararu


Orientador: Professor Dr. João Pacheco de Oliveira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia So-


cial, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Examinada por:

Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira Filho (PPGAS/MN) – Orientador

__________________________________________
Profa. Dra. Claudia Mura (UFAL) – Membro

Profa. Dra. Rita de Cássia Melo Santos (UFPB) – Membro

__________________________________________
Prof. Dr. Edmundo M. Mendes Pereira (UFRJ) – Suplente

__________________________________________
Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres (UFF) – Suplente

Rio de Janeiro,
Fevereiro de 2019.

III
Santos – Pankararu, B. C.
S237z
Zeladores de Misérios: Memórias do Tronco Velho Pankararu/ Bartolomeu
Cícero dos Santos – Pankararu – Rio de Janeiro, UFRJ, PPGAS, Museu Nacional,
2019.
Fl. 143
Orientador: prof. Dr. João Pacheco de Oliveira Filho
Dissertação de Mestrado – UFRJ / Museu Nacional – Programa de Pós-Gra-
duação em Antropologia Social, 2019.
Referências Bibliográficas: f. 138 – 141.
1. Zeladores de Tonã; 2 Ciência Pankararu; 3. Atividades Rituais; 4.
História; 5. Política; 6. Cosmologia. I. Pacheco de Oliveira, João. II. Título.

IV
A Força Encantada,
A aqueles que se encontram nesse e noutros mundos,
E ao Tronco e Pontas de rama (as famílias) que constituem Pankararu.

V
AGRADECIMENTOS

Sou imensamente grato aos meus parentes Pankararu, especialmente aos Zeladores
de Tonã, por fazerem parte deste trabalho se envolvendo com suas narrativas diversas e con-
tribuindo de diferentes maneiras para que juntos pudéssemos germinar o trabalho que segue.
Ao professor João Pacheco, carrego intensa gratidão e admiração pelos momentos de
transmissão de seu largo conhecimento. Gratidão por aceitar e me guiar na comunidade aca-
dêmica como seu orientando. Admiração por sua habilidade, motivação, generosidade, ani-
mação, observações e, sobretudo, interesse nas memórias Pankararu. Seu incentivo e atenção
foram cruciais na montagem desse trabalho contrastado por narrativas distintas.
À CAPES pelos dois anos de bolsa, pois o presente trabalho foi realizado com seu
apoio por meio de bolsa específica destinada ao Programa Memórias Brasileiras – Biogra-
fias, através do projeto de pesquisa “Os Brasis e suas memórias: os indígenas na formação
do Brasil”, coordenado pelo prof. João Pacheco de Oliveira.
Aos que fazem o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social no Museu
Nacional, e as formas de trabalhar em parceria com os estudantes, sobretudo os optantes,
indígenas e negros.
Aos professores do PPGAS, que ministraram os cursos no ano de 2017, e aqueles
que conheci durante reuniões e conferências naquele espaço de discussões calorosas. A Adri-
ana Vianna, Maria Elvira, Antônio Carlos de Souza Lima, Edmundo Pereira, John Comer-
ford, Adriana Facina, Luisa Elvira Belaunde, Marcio Goldman entre outros.
Aos que fazem a secretária do PPGAS/MN, pelo compromisso, cobranças e informes
de documentos.
Aos que integram a biblioteca Francisca Keller, pela colaboração e atenção prestada.
Às velhas ramas parentais que se fizeram presentes em diferentes momentos e luga-
res: compadre Vasco (George de Vasconcelos ou Sarapó Pankararu) e ao Conselho Tribal
Pankararu.
Especialmente à comadre Claudia Mura, por seu diálogo e atenção prestada nos di-
ferentes momentos de minha trajetória acadêmica e de vida.
Às ramas brotadas em Belo Horizonte: Gabriel Nascimento, Vanessa Silveira e
Hanna Simões por me tirarem e colocarem mais questões nos primeiros rascunhos deste
texto. Aos profs. Paulo Maia e Ana Flávia pela dedicação e incentivo em minhas escritas

VI
iniciais sobre os Pankararu (apresentadas em 2017). À Desirée Poets, por me acompanhar
antes e depois de ser entrevistado pela comissão de seleção do Museu Nacional, sobretudo,
pelas conversas que atravessaram dias. E à Helena Assunção pelos momentos nas cidades
de beagá e carioca.
Às novas ramas no Rio de Janeiro. À Cauê Machado e Evandro Bonfim, por serem
meus anfitriões (companheiros de casa) e de longas conversas sobre os quilombos, indígenas
e seus mundos linguísticos. Aos colegas de cursos do PPGAS-MN 2017, especialmente Ma-
theus Antonieto, Luana Batista, Gabriel Holliver e Túlio Amaral.
Aos companheiros do projeto “Os Brasis e suas Memórias: os indígenas na formação
do Brasil”, Aline Moreira; Pablo Antunha; Bianca França; Daniela Alarcon; Rafael de An-
drade; Rodrigo Reis; Rita Santos entre muitos outros que realizam um trabalho valioso para
a memória e protagonismo indígena no Brasil.
Aos novos parentes indígenas que conheci naquele espaço acadêmico: Franci Ba-
niwa; Nelly Marubo; Anari Pataxó; Sandra Benites; Tonico Benites; Idjahure Kadiwel; Si-
mone Terena; Valdo Xagope e Batista Kaingang pela convivência e aprendizados múltiplos.
À extensão de minha família indígena Tupinikim Marciana Marques, Ervaldo Al-
meida e seus filhos, entre eles, especialmente à Carol por ajudar-nos a cuidar de Mayá nos
últimos dias da escrita desse texto para que eu pudesse dar sequência a escrita que segue. À
Alzenira Marques (Tia Ninha) por seu enorme carinho e por comemorar minhas conquistas.
Ao meu Tronco familiar, meus pais, irmãos, sobrinhos, avós e demais familiares pela
atenção, carinho, incentivo e orientação precisa em campo e na vida.
E à minha família, Maria Gabriela e Mayá ‘Ybotyra, por cuidarem e me guiarem
pelos dias bons e “sombrios” que se foram e que estão por vir.
À todos deixo meu agradecimento!

VII
RESUMO

A presente dissertação busca compreender a sociedade Pankararu através dos relatos sobre
a sua origem e formação. A narrativa sobre as três Marias parece constituir um mito de
origem daquela sociedade, permitindo compreender sua organização social e cosmológica,
cuja configuração atravessa diferentes gerações. Cada Maria cultivou um conjunto de ativi-
dades particulares em sua época, do fim do século XIX até as primeiras décadas do século
XX. Atualmente tais atividades são exercidas por seus netos e bisnetos, descendentes diretos
de cada uma das três Marias. Os três descendentes (assim como os demais Zeladores de
Tonã (todos com posição de prestígio social por ser liderança e especialista ritual)) ancoram
na narrativa de sua própria história de vida traços de seus antepassados. As informações do
passado levam a compreender de forma dinâmica, tensa e disputada a construção do presente
e as perspectivas de futuro. A complexa relação com os Encantados evidencia que as cons-
truções cosmológicas, rituais e políticas não só constituem um universo fixo e imutável, mas
também estão em movimento e se associam à história das diferentes famílias e às múltiplas
situações em que vivem os Pankararu. Dessa forma busquei através dos relatos locais obter
informações sobre seus Tronco. Este trabalho ao abordar diferentes memórias desenvolveu
uma espécie de memória guarda-chuva, a qual pode ser acessada pelas atuais e futuras gera-
ções Pankararu, a fim de apresentar os registros narrativos de nossos anciões. Tais registros
narrativos trouxeram diferentes questões em sua maioria desconhecidas para a maior parte
do povo Pankararu por serem específicas de grupos familiares, além de revelar detalhes que
enriquecem ainda mais a nossa história, do povo Pankararu.

Palavras chave: Zeladores de Tonã; Ciência Pankararu; Atividades Rituais; História; Polí-
tica; Cosmologia.

VIII
ABSTRACT

The present master thesis seeks to understand the Pankararu society through the reports about
its origin and formation. The narrative about the three Marias seems to constitute a myth of
origin of this society, allowing to understand its social and cosmological organization, whose
configuration crosses different generations. Each Maria cultivated a set of private activities
in her time, from the end of the XIX century until the first decades of the XX century. Cur-
rently these activities are exercised by their grandchildren and great-grandchildren, who are
direct descendants of each of these three Marias. The three descendants (as well as the other
Zeladores de Tonã (all with social prestige positions for being community leaders and ritual
specialists)) anchor in the narrative of their own life story traces of their ancestors. The re-
constructions of the past lead to a dynamic, tense, and disputed understanding of the con-
struction of the present and also of future prospects. The complex relationship with the En-
cantados shows that cosmological, ritual, and political constructions constitute not only a
fixed and immutable universe, but are also in motion and are associated with the history of
different families and the multiple situations in which the Pankararu live. In this way I sought
through local reports to obtain information about their Tronco. This work, in addressing
different memories, has developed a kind of umbrella memory, which can be accessed by
the current and future generations of Pankararu, in order to present the narrative records of
our elders. Such narrative records have brought different questions largely unknown to most
of the Pankararu people for they are specific to family groups, and besides they reveal details
that will further enrich our history as Pankararu people.

Keywords: Zeladores de Tonã; Pankararu Science; Ritual Activities; Story; Politics; Cos-
mology.

IX
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO (CABECEIRA) ......................................................................................... 14

Pankararu ......................................................................................................................... 14

Retomando as tradições ................................................................................................... 17

Os preliminares desta pesquisa ........................................................................................ 26

As condições de pesquisa: a psicologia indígena e os efeitos da escrita ......................... 30

Das etnobiografias ........................................................................................................... 38

A casa dos espelhos e a descrição etnográfica ................................................................. 40

MEMÓRIAS DE NARCISO PEDRO – I ........................................................................... 49

LEMBRANÇAS DE ÍNDIO ........................................................................................... 51

O contato com o Tronco Pedro .................................................................................... 51

Organização social e política Pankararu ...................................................................... 56

O tempo-bom ................................................................................................................ 59

Circuitos tradicionais.................................................................................................... 65

Conexões parciais ......................................................................................................... 68

Narciso Pedro, Cacique Pankararu ............................................................................... 69

Semeando as três sementes de Pankararu .................................................................... 69

Cacique Pankararu e as sementes do Tronco Velho ..................................................... 73

O brotar das sementes ................................................................................................... 76

Em sua oca ................................................................................................................... 79

LUIS CABOCO – II ............................................................................................................ 82

FILHO DE TRADIÇÃO .................................................................................................. 83

A abordagem ................................................................................................................ 83

Os laços da tradição...................................................................................................... 87

A ordem Chulé e os endereços da tradição .................................................................. 88

O Tronco Aciole ........................................................................................................... 91

X
A abertura do Espaço Sagrado ..................................................................................... 92

A mística Chulé ............................................................................................................ 95

Lembranças de rituais................................................................................................... 97

Danças, cantos e curas .................................................................................................. 98

Dançar praiá ................................................................................................................. 99

Puxar (cantar) Toante e Toré...................................................................................... 101

A prática dum curandeiro Pankararu ......................................................................... 103

Os filhos de tradição do Tronco Aciole ..................................................................... 107

FIRMINA CALÚ – III ...................................................................................................... 109

“A GEMA PANKARARU” .......................................................................................... 110

Tradições, Tronco e Pontas de rama ......................................................................... 115

O ato de apanhar conhecimento ................................................................................. 118

O manejar da ciência Pankararu ................................................................................. 121

“O Tempo de revoltoso” ............................................................................................ 123

“Índio de coração” ...................................................................................................... 125

A festa do Imbu .......................................................................................................... 128

A noite dos passos e As corridas ................................................................................ 130

CONCLUSÃO (COICE) ................................................................................................... 134

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 138

APÊNDICE ....................................................................................................................... 142

GLOSSÁRIO ..................................................................................................................... 142

XI
Lista de figuras

Figura 1. Mapa do Brejo dos Padres. Fonte: Mura, C. pp. 41. 2013.Erro! Indicador não
definido.
Figura 2. Terras Indígenas Pankararu e Entre-Serras de Pankararu. Fonte: Funai. ............. 45
Figura 3. Terra Indígena Pankararu, homologada na década de 1987. Fonte: Funai. ......... 46
Figura 4. Terra Indígena Entre-Serras de Pankararu, homologada em 2007. Fonte: Funai. 47
Figura 5. O Tronco e algumas Pontas de Rama Pankararu entre os Estados brasileiros. Fonte.
Matta, P. 2005...................................................................................................................... 48
Figura 6. Genealogia do Tronco Pedro (adaptada). Fonte: Mura, C. Apêndice: Diagrama I.
2013. .................................................................................................................................... 52
Figura 7. Narciso e Maria Bernadina juntos ao seu neto, nos anos 80. Imagem: acervo
familiar Pedro. ..................................................................................................................... 53
Figura 8. Conjunto administrativo do SPI na Aldeia Brejo do Padres, TI Pankararu. Fonte:
NEPE/UFPE. ....................................................................................................................... 56
Figura 9. Esquema duma organização sociopolítica da comunidade Pankararu antes do SPI.
............................................................................................................................................. 57
Figura 10. Esquema duma organização política da Comunidade Pankararu, durante o SPI.
............................................................................................................................................. 58
Figura 11. Crianças, Maria Pedro, véi Serafim e Maria Calú. Imagem: Carlos Estevão de
Oliveira. 1935 - 7. Fonte: CMTVP. ..................................................................................... 70
Figura 12. Maria José (Caboca) e o Batalhão de Tonã do Tronco Pedro. Imagem: Bartolomeu
Santos. 2018 ........................................................................................................................ 81
Figura 13. Vicente e Antônio, Zeladores de Tonã e Cantadores de Terreiro do Tronco Aciole.
Imagem: Matheus Pereira, 2019. ......................................................................................... 83
Figura 14. Ilustração de Luís Caboco feito por seu neto. Imagem: Matheus Pereira, 2019.
............................................................................................................................................. 85
Figura 15. Representação esquemática (genealógica) do Tronco Aciole (adaptado).
Bartolomeu Santos 2019. ..................................................................................................... 87
Figura 16. Terreiro de Mestre Andorinha, visto de frente da casa de Luís Caboco. Imagem:
Matheus Pereira, 2019. ........................................................................................................ 94
Figura 17. Luís Caboco, o segundo da esquerda para direita. Participando da Queimada de
Cansanção. 1935 - 7. Imagem de Estevão de Oliveira. C. Fonte: CMTVP. ..................... 101

XII
Figura 19. Da esquerda para direita estão Vicente, Antônio e Bernadete, os três filhos de
Luís Caboco puxando o ritual da festa-ritual Menino do Rancho. Imagem: Larissa Machada,
2018. .................................................................................................................................. 108
Figura 20. Da esquerda para a direita está Neta, também filha de Luís Caboco entre seus
irmãos Vicente e Antônio. Os três são Cantadores e Zeladores e Tonã. Imagem: Larissa
Machada. 2018. ................................................................................................................. 108
Figura 20. Genealogia do Tronco Calú (adaptada). Fonte: Mura, C. Diagrama III. 2013. 111
Figura 22. Esquema gráfico de parte da genealogia de Miguel Calú. Bartolomeu Santos,
2019. .................................................................................................................................. 111
Figura 22. Arqueiros a postos para o Flechamento de Imbú, Imagem: Oliveira, C. 1935.
Fonte: CMTVP. ................................................................................................................. 130
Figura 23. Queimada de Cansanção no Terreiro do Muricizeiro. Imagem: Oliveira, C. E.
meados de 1930. Fonte: CMTVP. ..................................................................................... 132

XIII
INTRODUÇÃO (CABECEIRA) 1

“– É o efeito de viver de trás para a frente [...] – A pessoa sempre fica tonta
a princípio [...] ..., mas existe uma grande vantagem em viver assim, é que
a memória funciona nos dois sentidos.” 2 (CARROLL, L. pp. 88. 2015).

Pankararu

“Pankaru Geritacó Kalancó Umã Tatuxi de Fulô”, ou “Umã Jeripancó Pankaru Ka-
lancó”, é a enunciação estendida do etnônimo do povo Pankararu, uma povoação que habita
e ocupa a diferentes épocas e gerações um vale entre-serras, próximo ao rio São Francisco,
numa zona fronteiriça entre os municípios de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá no sertão per-
nambucano. Cada etnônimo mencionado acima é a dilatação de Pankararu e remete às lem-
branças (de uma confederação) de povos ajuntados no aldeamento Brejo dos Padres. Se-
gundo as narrativas, orais e escritas, os povos que se agruparam aos Pankararu foram em
épocas de precisão, principalmente nas últimas décadas do século XIX e nas duas primeiras
décadas do século seguinte. Aquele ajuntamento de povos constituiu (o Tronco Velho) Pan-
kararu. O qual tem por seu significado: Povo que vive entre-serras; ou Serra de quatro pontas.
As primeiras citações do etnônimo Pankararu, foram registradas no início do século
XVIII, nos relatórios de missionários capuchinhos que peregrinavam as margens do rio São
Francisco entre os sertões baiano e pernambucano (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992, pp.
432). Mais de dois séculos depois, em 1930, ainda na mesma região, os Pankararu tiveram
suas primeiras descrições de caráter etnográfica ao serem abordados alguns aspectos sociais
e tradicionais presentes entre os indígenas sertanejos que ali se encontravam. Aquelas des-
crições foram emblemáticas para a afirmação identitária, como também, delineou demais

1
Cabeceira é uma expressão usada frequentemente pelos Zeladores de Tonã/(Praiá) para se referir àquele que
fica na frente, no início, das atividades rituais.
2
Este trecho pode ser encontrado numa passagem entre o diálogo de Alice e a Rainha Branca no livro: “Alice
através do espelho: e o que ela encontrou lá”. A obra de Lewis Carroll despertou-me várias ideias, mas foi o
diálogo citado a cima que me levou a este caminho de reflexão em particular. Porém, a expressão “casa do
espelho” exposta no primeiro capítulo do livro ficou martelada em meu pensamento. As ideias encontradas
naquela obra me permitiu interpretar, a partir de uma perspectiva distinta, o mundo Pankararu utilizando parte
do conhecimento antropológico para tentar desenvolver uma narrativa indígena maior.

14
fronteiras étnicas existentes entre os povos tradicionais (indígenas e sertanejos) que habita-
vam aquela região sertaneja. 3
Desde a formação do Tronco Pankararu, o aldeamento Brejo dos Padres é tido como
centro de força. É naquele aldeamento que se concentra a maioria dos Troncos de famílias
fundadoras, do que conhecemos e praticamos nas Tradições Pankararu por diferentes sécu-
los.

1. Complexo do Posto da Funai, Escola, Armazém; 2. Igreja Santo Antônio; 3. Pólo Base Funasa; 4.
Horta comunitária; 5. Cemitério; 6. Casa de farinha; 7. Rua dos Oliveira; 8. Rua dos Negros; 9. Terreiro
de João Binga; 10. Terreiro Poente das Calú; 11. Terreiro da Fonte Grande; 12. Terreiro Araticum; 13.
Terreiro Muricizeiro; 14. Terreiro de João Gouveia; 15. Terreiro de Rosinha Preta; 16. Terreiro de Vi-
cença.
Figura 1. Mapa da aldeia Brejo dos Padres. Fonte: Mura, C. pp. 41. 2013.

A imagem acima é uma ilustração feita por Claudia Mura e eu, em 2010. Na figura
(1) estão enumerados alguns dos lugares que tem representatividade política e tradicional
para os Pankararu. Como pode-se observar na figura o aldeamento Brejo dos Padres concen-
tra a maioria das famílias do Tronco Velho, geralmente próxima de um Terreiro. Já ao centro
da aldeia fica o complexo do Posto Indígena Pankararu [1] e a igreja de Santo Antônio [2]
entre outras construções tutelares.

3
Para uma descrição aprofundada sobre as distinções e relações étnicas Pankararu no NE, ver Arruti, A árvore
Pankararu. In: Pacheco de Oliveira. A viagem da volta, 2004.

15
No contexto contemporâneo são poucos membros do Tronco Velho que conhecem –
e menos são aqueles que guardam informações sobre as primeiras Zeladoras de Mistérios,
das famílias fundadoras, da presença e influência das ações missionárias, do cangaço e dos
coronéis. Atualmente a população indígena está em sua oitava, outros estão em sua nona
geração – desde a reorganização do povo Pankararu no século XX. Como os Zeladores di-
zem “a geração [Pankararu] cresceu muito”. Por este motivo tomo alguns dos apontamentos
elaborados, na década de 1930, por Carlos Estevão como ponto de partida, numa tentativa
de compreender parte das memórias familiares fundacionais d’As Marias na contemporanei-
dade. – As Marias, ou as três Marias além de apresentarem parte central do mito de origem
Pankararu: são aquelas que estabeleceram conexões com os Encantados para orientar a vida
dos Pankararu. Elas foram as primeiras Mulheres de Ciência de sua geração a desenvolver
uma relação com o sobrenatural. Ao mesmo tempo que se alimentavam dessa relação com o
sobrenatural organizavam a vida da comunidade. — Há menções de alguns indígenas sobre
uma quarta Maria, Maria Pastora. No entanto, Maria Peba (como ficou conhecida) não se
enquadrava na categoria do que os Zeladores de Tonã definiram como Mulher de Ciência,
por ela não estar no mesmo patamar das outras três. 4 São essas e outras memórias que nos
fazem perceber a disputa existente nos contextos sociais e temporais entre os Pankararu ser-
tanejos.
Durante meu contato com os representantes de cada Tronco familiar, e por sensibili-
dade própria, pude perceber que não é comum nossos pais, avós ou tios passarem adiante os
“acontecidos” (as narrativas de antigamente) aos seus novos membros, talvez, pela maioria
das informações estarem – para eles – manifestadas, isto é, vivas nas atividades rituais que
praticam(os), as quais estão no campo da Ciência Pankararu, portanto, no campo do não-
dizer. E, sobretudo, pelo fato de acreditar que “o saber morre com seu dono” (Santos – Pan-
kararu, 2018), ou não querer trazer suas memórias carregadas de sofrimentos que, avaliam,
nem sempre são necessárias (recorrê-las) por estarem na dimensão do silêncio, do segredo.
Estabelecendo contato com as atuais famílias Zeladoras de Mistérios, me foi possível
perceber que parte das lembranças de nossos ancestrais são transmitidas na vivência diária,
nos momentos das festas-rituais que se fazem necessárias durante a trajetória de cada mem-
bro. É por este motivo que começo esse texto com parte de minha trajetória a qual me levou

4
Para mais informações ver trecho in: “Todo Mistério tem dono!”. Mura, C. pp. 69. 2013.

16
a refletir as formas distintas da transmissão de nossa tradição de conhecimento, e de avaliar
o desconhecido no cotidiano.

Retomando as tradições

Eu, Bartolomeu Cícero dos Santos, filho de Maria do Carmo e Cícero Pinto, fui pego
nos anos 1990 por Maria das Dores – mãe Dora – uma parteira tradicional, na Aldeia Brejo
dos Padres. Por ser descendente de famílias de Tronco tradicionais, tanto paterna quanto
materna, convivi com meus familiares e parentes indígenas por duas décadas ouvindo e
acompanhando intensamente nossas tradições e narrativas em diferentes contextos.
Enquanto de dentro, conheci e participei de diferentes atividades rituais praticadas
por meus familiares. Cresci ouvindo e observando as manifestações cotidianas das tradições
existentes em nossa vida comunitária. O primeiro contato que tive foi quando criança, ao
acompanhar meus pais nos divertimentos, cantorias e nas demais festas-rituais –, a maioria
dessas atividades atravessam a madrugada exigindo muito dos participantes.
No início de minha adolescência lembro que meu pai, por diversas vezes, tentou me
passar alguns Toantes.5 Havia momentos em que o próprio Toante se achegava.6 Quando
nos sentávamos na sala, meu pai sempre dizia qual Encantado estava puxando e contava-me
sua história, ou parte dela. Permissão ritual para passá-los ele teve, mas sempre éramos in-
terrompidos antes de finalizá-los. Às vezes ele mencionava o nome de alguém de nossa fa-
mília que eu nunca ouvira antes, sem entrar em detalhes sobre aquela pessoa. Para os pan-
kararu mais experientes é uma obrigação saber qual Encantado se chama e quem foi seu
Zelador. A maioria dos Toantes dos Encantados que ele tentou me passar são zelados por
seu Tronco familiar Calú. Tempos depois das tentativas dei mais atenção aos Toantes ento-
ados pelos Cantadores nos Terreiros7 durante as festas-rituais. Como ainda não tinha per-
missão ritual de “pegá-los” não consegui guardá-los –, pois senão lembramos é porque os
Encantados não deram permissão. E foi assim por um tempo até passar meu interesse, o qual
havia despertado em minha infância.

5
Canto para evocar e invocar os Encantados.
6
Há momentos em que os Toantes se achegam no indígena antes mesmo que ele puxe o Toante. Quando isso
acontece é porque o dono daquele Toante quis se achegar no indígena.
7
Cantadores, são Zeladores dotados de dons e tem a permissão para cantar Toantes em Terreiros. Terreiros,
são espaços sagrados destinado às atividades rituais.

17
Aos 11 anos de idade iniciei o meu ensino fundamental e finalizando aos 17 anos de
idade meu ensino médio, na Escola Estadual de Itaparica – EEI, atual Escola de Referência
em Ensino Médio de Itaparica – EREMI. Naquela escola conheci vários colegas, entre eles,
os filhos de sertanejos não indígena que vivem em áreas Pankararu e aqueles naturais de
Jatobá e sua região. Durante várias horas semanais por sete anos fomos estabelecendo afini-
dades e rotinas que nos deixavam mais próximos. Pensar naqueles anos me fez perceber o
quanto estávamos geograficamente próximos, mas culturalmente distantes. Ao longo da-
quela convivência pude perceber que os sertanejos não indígena são guiados por seus este-
reótipos. E que tal sentimento é refletido, sobretudo, naqueles não indígenas que vivem em
terras Pankararu o que desperta em tempos em tempos atritos, desavenças entre os envolvi-
dos. Tal vivência fez os estereótipos oscilarem, dependendo da situação entram em desar-
monia principalmente quando envolve as extensões do território indígena que interfiram em
questões políticas e econômicas. Com o tempo, também percebi que a distância cultural foi
superada por parte dos envolvidos devido as novas alianças familiares ou por interesses si-
milares.
Durante minha trajetória escolar, sem perceber, tomei distância de algumas ativida-
des rituais que faziam parte de minha rotina quando criança por estar num transito intenso
entre comunidade e escola (na cidade).
Um período que me atraiu para o campo das narrativas locais foi em 2006, ao fazer
parte da equipe de monitores do projeto “Índios Online” da ONG Thydwêá.8 Projeto ligado
a diferentes povos indígenas e instituições. Participar daquela iniciativa me aproximou das
narrativas locais, pois como integrante fizemos pequenas entrevistas, edições sobre as histó-
rias Pankararu e narrativas de nossos anciões enfatizando suas trajetórias políticas. Também
numa aba do portal (índios) online foi destinado uma sala para chats (conversas) em tempo
real entre os parentes indígenas e demais visitantes (não indígenas).
Um impulso marcante que me conectou ao campo tradicional foi em 2007. Aos meus
16 anos tive febre reumática, fiquei sem andar e com muitas dores pelo corpo por semanas.
9
Naquele momento minha mãe me levou para alguns curandeiros (xamãs) na aldeia, os

8
“Índios Online” é um projeto de aliança entre os diferentes povos do Nordeste, do Brasil e do mundo. Seu
principal objetivo é divulgar a vivência e as diferentes narrativas indígenas através de seu portal online. Já a
organização Thydwêá é uma ONG que trabalha com a diversidade cultural dos povos indígenas desenvolvendo
diferentes projetos sociais desde 2002.
9
Curandeiro é uma expressão local para se referir àqueles que usam as práticas de curas com o auxílio do
sobrenatural, dos Encantados, Guias de Luz. É importante enfatizar que tal expressão tem seu sentido próprio,
semelhante ao de xamã (pajé). O curandeiro é um especialista ritual de cura auxiliado pelo Encantado de seu
Tronco ou de seu círculo ritual.

18
quais nos passaram instruções para preparar três banhos de remédios (com plantas locais
(específicas)). Como ordenado, fizemos. Esperamos durante um tempo e não tive melhoras.
Numa manhã de quarta-feira da Semana Santa daquele ano, meu vizinho, mais velho que eu
dois dias, insistiu em me chamar para acompanhar os Zomi (a procissão dos penitentes) (Oli-
veira, 1942. Mura, 2013). Respondi que não poderia acompanhá-los. No estado físico em
que eu estava, seria impossível segui-los. Sua resposta: – “tenha fé, e diga que vai!” – tomou
conta de meu espírito por horas. Pensei em muitas coisas que deixei passar quando, ainda
criança, acompanhava os rituais. Obstinado, naquela noite de quarta-feira, eu me compro-
meti a acompanhar a Venerada Santa Cruz, se ela e os pai véi10 permitissem, se fosse de suas
vontades, iria me levantar para acompanhá-los. E como os Encantados e a Venerada Santa
Cruz me permitiu, desde então acompanho ambas Tradições Pankararu.
No momento em que fui aceito pelo dicurião11 para participar do grupo de penitentes
senti que meu campo de tradição e narrativas se reconectou. Lembro que as primeiras pala-
vras do dicurião foram: “o que se vê e faz aqui, aqui fica!”. Ao fazer parte daquele grupo
dos zomi, aprendi muito de suas práticas, mas o que me chamou atenção foram suas rezas e
nos intervalos as narrativas religiosas dos velhos penitentes. Eles têm muitas histórias que
só podem ser contadas naquele momento religioso, por criar um ambiente de memória ritual
específico do grupo de penitentes, o que torna especial.
Para que o indígena sertanejo participe do grupo de penitentes tem que ter um bom
histórico social e familiar, ser um bom rapaz a vista de todos na comunidade, e principal-
mente ser levado por um penitente veterano (ancião) de prestígio entre os demais daquele
grupo, para que os participantes confiem os segredos ao novo integrante. Essa é uma das
regras do grupo que deve ser aplicada à risca. Um veterano ao torna-se responsável pelo
novo integrante mesmo que tenha outro parente próximo daquele indígena, como um tio ou
irmão também veteranos, não terão a mesma autoridade/responsabilidade sobre o integrante
novato.
De início meu pai não simpatizou muito com minha participação na penitência, talvez
por sermos ligados a uma corrente de tradição familiar específica.12 Para minha surpresa
meu avô, João Pinto, o convenceu a me deixar acompanhar o grupo. Noutro momento

10
Maneira habitual de se referir aos Encantados.
11
Sujeito dotado de grande moral religiosa. Especialista em orações para momentos específicos, e por isso
torna-se o Chefe da penitência.
12
Entre os Pankararu existem dois importantes circuitos rituais principais tradicionais, indígena e católico,
ambos trabalham com diferentes entidades sobrenaturais. Ambos circuitos possuem suas próprias correntes e
seus praticantes têm modos distintos de executá-las, mas não são indissociáveis.

19
quando contei para meu bisavô, Joaquim Pinto, que eu estava acompanhando os Zomi, ele
me disse que também foi um penitente quando era “rapaz novo”. Já a minha avó paterna
quando soube que seu neto estava na irmandade masculina ficou muito feliz. Ela é beata e
acompanha a Venerada Santa Cruz desde seus doze anos de idade. Antes disso, sua mãe,
Ana Guida, já acompanhava as beatas desde a fundação da irmandade feminina13 no período
de sua juventude. Ao participar da penitência, fui descobrindo novas narrativas e do envol-
vimento de minha família nas diferentes tradições locais. Entendi o porquê de meu pai e meu
avô se manterem estritamente numa prática recorrente de tradição familiar. Como eles di-
zem: “já vem de família” e por isso respeitam os “limites” das práticas tradicionais locais,
mesmo que ambas as tradições estejam cruzadas e contextualizadas, “há limites” que devem
ser mantidos.
Nos anos que acompanhei os “zomi”, aprendi que devemos prezar pelo que é prati-
cado nos momentos sagrados. Pois, o que fazemos naquele momento religioso, por ser único,
torna-se segredo para aqueles que estão de fora. Com os anos vamos aprendendo como de-
vemos agir, qual o papel dos penitentes na comunidade, os tabus que devemos seguir para
continuar conhecendo e praticando aquelas atividades religiosas e as demais obrigações do
grupo. Participar dessa tradição religiosa centenária me jogou de volta ao campo de tradi-
ções.
Uma primeira oportunidade me foi apresentada por meu bisavô, Joaquim Vieira, co-
nhecido na aldeia como Joaquim Pinto, um estimado curandeiro e Zelador de Tonã. No
tempo em que ele caiu doente se mudou para casa de meus pais, o que me possibilitou uma
aproximação com as narrativas das tradições pankararu de seu tempo-bom, pois eram raras
as vezes que ele ia nos visitar. Mesmo quando íamos visitá-lo, ele sempre contava alguns
casos interessantes os quais me deixava curioso.
Durante a temporada que pai Joaquim, meu bisavô, ficou na casa de meus pais, apro-
veitei para conversar com ele todos os dias, sempre pelas manhãs. Por volta das 12hrs eu
seguia para a escola na cidade vizinha e quando chegava da cidade de Itaparica, já no final
de tarde, voltava em seu quarto para continuarmos com algumas narrativas. Suas memórias-
narrativas me apresentavam um mundo maravilhoso e desconhecido, eram fáceis de me apri-
sionar num lugar até então inimaginável. Depois de ouvi-lo por semanas, ele me pediu que

13
Sobre a constituição e ralações das romeiras Pankararu ver: “O ‘tempo do conselho’: a atuação de Maria
Barbara Binga, penitente e romeira Pankararu”. Mura, C. 2018. In:<https://osbrasisesuasmemorias.com.br/bi-
ografia-maria-barbara-binga/>.

20
chegasse mais perto, pois tinha sua visão baixa. – É que ele havia recebido uma “flechada”
em seu olho esquerdo numa disputa de força espiritual com outro curandeiro, o que preju-
dicou toda sua visão. Ao me aproximar ele tentou me passar (ensinar) o Toante de Mestre
Kroazinho, Encantado do qual ele zelava seu Mistério. O Toante tem um tom de oração, de
súplica, é difícil segurar as lágrimas ao ouvi-lo. Pai Joaquim, assim como meu pai, também
não conseguiu me passar o Toante por completo. Aquele Encantado só me permitiu guardar
uma parte. E até hoje me recordo perfeitamente daquele Toante, da cena, do tom e da mesma
sensação que dividimos.
Quando meu bisavô ficou melhor, ele resolveu voltar para sua casa. Após recuperado,
meses depois, os filhos dele que vivem numa Ponta de rama Pankararu em Alagoas vieram
buscá-lo para ficarem juntos por um tempo. No final de 2008, pai Joaquim voltou para sua
casa na Aldeia Brejo dos Padres. Caiu novamente doente, voltou para casa de meus pais, se
recuperou e retornou para sua casa e lá faleceu em 2009, aos 86 anos de idade, segundo a
data de seu registro. Os Mistérios que ele zelou nesse mundo ficou com Ivanildo Vieira, seu
filho caçula de seu último casamento, o qual ainda os sustenta.
O tempo que convivi com pai Joaquim despertou uma sensibilidade, uma conexão
com as práticas tradicionais de nossa família, que até então só havia sentido durante as mi-
nhas atividades como penitente. Com ele aprendi que existem Encantados ligados a diferen-
tes elementos e a diferentes práticas religiosas. Por exemplo, o próprio Mestre Kroazinho é
um Encantado ligado à Igreja, seu Toante se assemelha a uma oração. Depois dessa reapro-
ximação retomei a rotina de quando criança. Assisti alguns divertimentos e curas em casa,
na casa de meus avós paternos e de meus tios. Ao participar dessas atividades rituais restritas,
consegui “apanhar” (entender) pedaços da Ciência Pankararu o que me permitiu traçar re-
lações de como funcionam as práticas da Tradição de Conhecimento Pankararu.
Outro momento oportuno de ampliar consideravelmente meu interesse já despertado
quando criança surgiu em meados de 2009 com o projeto Casa de Memória do Tronco Velho
Pankararu (CMTVP).14 Naquele ano fiz a inscrição para seleção de pesquisadores indígenas.

14
A Casa de Memória do Tronco Velho Pankararu – CMTVP, foi um projeto submetido ao edital do Sistema
de Informações Culturais ao Governo do Estado de Pernambuco em 2009. Tal projeto constitui um acervo
bibliográfico, iconográfico e documental sobre o povo Pankararu contando com um etnolevantamento das ex-
pressões culturais Pankararu. Muitos pesquisadores, inclusive Mario de Andrade durante sua Missão de Pes-
quisas Folclóricas de 1938, passaram e registraram aspectos singulares da cultura material e imaterial do povo
Pankararu, invariavelmente não devolvendo à população indígena a produção relativa. Esse projeto é uma ini-
ciativa propriamente nossa, George de Vasconcelos, Tiago Oliveira, Ainda Paulina, Luciano Henrique, Rose-

21
Algumas semanas depois recebi a convocação, pois fui selecionado, para fazer parte da
equipe de pesquisadores daquele projeto organizado pelos próprios indígenas, com auxílio
de pesquisadores indigenistas de diferentes instituições do Brasil. Como pesquisador da
CMTVP tive diversos encontros com lideranças indígenas locais, as quais nunca havia tido
contato antes. Ao longo daquele primeiro ano de atividades organizamos entrevistas, via-
gens, exposições e reuniões entre outras tarefas, para ajuntar memórias de nossas lideranças
Pankararu, com o objetivo de torná-las conhecidas e acessíveis a toda comunidade indígena,
e aos demais interessados em saber sobre aqueles que fizeram nossa história ao longo de
suas gerações.
Naquele tempo aprendi o significado de muitas expressões, por exemplo, eu não sa-
bia a diferença entre liderança tribal15 e as atuais lideranças indígenas. Sabia que meu avô
paterno realizava atividade rituais por ser Zelador de Tonã, mas não sabia de sua atuação
junto às sementes políticas16 e de liderança tribal entre os Pankararu. Sabia também que os
Zeladores de Tonã têm um peso maior nas tomadas de decisões que envolvam a comunidade,
na escolha de um novo cacique, e que a organização de atividades rituais da TI são de res-
ponsabilidade do Conselho Tribal formado exclusivamente por poucos Zeladores. – Já as
atuais lideranças indígenas, conhecidas como Conselho Jovem, lidam com questões buro-
cráticas enquanto integrantes do movimento (político) indígena. Muitos do Conselho Jovem
são dos Troncos familiares fundadores, mas nem todos são Zeladores de Encantos (Misté-
rios).
Foi como pesquisador da CMTVP que comecei a entender algumas de nossas tradi-
ções e narrativas, o que me fez estranhar o que era até então familiar. Naquele ano de ativi-
dades tive uma experiência valiosa ao conversar com diferentes lideranças indígenas Panka-
raru. Ao escutá-las durante as entrevistas fiquei feliz com as diversas narrativas, pois aqueles
personagens guardam memória-narrativas que remontam grande parte de nossas conquistas
territoriais e étnicas, além das práticas transmitidas por seus pais e até seus avós. Depois de

ane Oliveira e eu, todos pesquisadores Pankararu com a participação e capacitação de pesquisadores não indí-
genas, entre eles, Claudia Mura (UFRJ/MN), Andrea Cadena (USP), Geórgia Silva (UFPE) e Gustavo Villar.
O propósito do projeto foi estimular, a partir dos materiais escritos, visuais e da memória, um processo de
autoconhecimento da questão histórica Pankararu, dando também continuidade à história de organização e luta
de nossas lideranças indígenas passadas e contemporâneas. (Grifos nossos).
15
A Liderança Tribal é integrante do Conselho Tribal Pankararu. Esse grupo foi formado na década de 1970,
por Zeladores de Tonã de grande prestígio social para atuar com as sementes políticas (Cacique, Pajé e Capi-
tão).
16
Cacique, Capitão e Pajé.

22
retomar tais diálogos e ouvir as gravações de nossas conversas, pude ir tecendo interpreta-
ções de como eram suas moradas, suas lutas, suas atividades e as práticas daquele tempo
passado, as quais se tornam nossas referências contemporâneas. Pois a manutenção e enten-
dimento das Tradições Pankararu são transmitidas pelas vivências familiares e expressas nas
atividades rituais como abordado por Mura (2013). O que me fez lembrar e dar sentido às
histórias que pai Joaquim me contou em seu último ano neste mundo (dos vivos).
Durante as andanças pelas terras Pankararu conheci lugares e pessoas, que pela pri-
meira vez tive contato com os vivem mais distantes da aldeia Brejo dos Padres. Ao ter con-
tato com aquelas lideranças uma de suas perguntas iniciais era: “de quem você é filho?”. Ao
responder (sou filho de Cícero Pinto, ou neto de João Pinto), era bem recebido. Achava que
a pergunta era apenas por curiosidade, mas percebi que a questão ia mais além de uma pos-
sível curiosidade. Ao saber de quem sou filho e neto logo sou associado a trajetória de mi-
nhas famílias originárias na aldeia. Até então, eu mesmo não conhecia muito de minhas ori-
gens paternas e de suas atuações sociais e políticas.
Em 2010, o projeto deu continuidade com algumas entrevistas e por fim com a orga-
nização do material recebido e relatórios finais das atividades de campo ao longo daqueles
meses de atividades. Ao final daquele ano foi iniciada uma reforma no antigo armazém do
conjunto administrativo da Funai para abrigar a futura sede da CMTVP e os materiais cole-
tados em campo17 pelos pesquisadores indígenas com o objetivo de que todos os interessados
tenham acesso aos materiais.
Em setembro de 2010, a UFMG em parceria com a FUNAI, lançou o Vestibular In-
dígena. O processo seletivo destinou seis cursos em quatro entradas anuais, são eles: Agro-
nomia, Ciências Biológicas, Ciências Sociais, Enfermagem, Medicina e Odontologia, com
duas vagas suplementares para cada curso. Me inscrevi na seleção para concorrer uma das
vagas de Ciências Sociais por estar “familiarizado” com a área. Tendo o resultado em mãos
– aprovado – pensei mais a frente, serei “um indígena antropólogo”, estudarei os povos in-
dígenas e principalmente os Pankararu. Apesar disso já sentia um grande pesar por ter de
deixar minha vida na aldeia. Por fim organizei os materiais que tinha apanhado durante mi-
nhas entrevistas e passei para o coordenador local do projeto.

17
Para maiores informações sobre a restruturação museológica ver: Athias, Renato. e Gomes, Alexandre. 2016.
Apontamentos etnográficos sobre a Casa de Memória do Tronco Velho Pankararu. In: Coleções etnográ-
ficas Museus e processos museológicos.

23
Em 2011, me mudei para a cidade de Belo Horizonte com o objetivo de cursar Ciên-
cias Sociais, na UFMG. Como de praxe conheci os demais parentes indígenas e professores
responsáveis pelo Programa Especial de Admissão de Estudantes Indígenas, e da Comissão
de Acompanhamento de Estudantes Indígenas – CAEI. Uma semana depois na capital mi-
neira sofri um forte choque cultural. Viver num sistema totalmente diferente e longe do que
me era conhecido não foi fácil. Disposto a me tornar um “indígena acadêmico”, aprendi
novas rotinas, rituais, tabus, a observar e, sobretudo, a questionar quando necessário (algo
que não fazemos na comunidade). Já no próximo ano fui me adaptando com mais facilidade
àquela estrutura acadêmica, principalmente pelas oportunidades de pesquisa que estavam
surgindo.
No início do primeiro semestre de 2012, até o final do segundo semestre de 2013,
desenvolvi minhas atividades como bolsista de extensão no projeto “Índios na Cidade”, co-
ordenado pelos professores Luís Roberto de Paula e Ana Gomes, ambos do Departamento
de Ciência Aplicadas à Educação – FaE/UFMG, em parceria com o projeto Centro de Ser-
viço para as Populações Indígenas da Região Metropolitana de Belo Horizonte – RMBH,
financiado parcialmente pela ONG Gruppo di Voluntariato Civile – GVC e União Europeia
– UE.
No projeto “Índios na Cidade”, pude conhecer os demais parentes indígenas que vi-
vem desde a década de 1960 na RMBH. Escutei atentamente suas trajetórias, conheci suas
rotinas, suas agendas de lutas, tendo como sua principal pauta o reconhecimento étnico.
Ainda em campo, pudemos pontuar questões fundamentais, destacando as maiores necessi-
dades daqueles povos indígenas urbanos ao analisar os dados coletados. O projeto “Índios
na Cidade”, permitiu que sua equipe apresentasse nos diversos eventos organizados na
UFMG e em Centros Culturais da grande RMBH, as diferentes situações vivenciadas pelos
os indígenas urbanos. Como um dos resultados do projeto elaboramos um perfil sociodemo-
gráfico e um relatório técnico antropológico sobre os povos indígenas da Região Metropoli-
tana de Belo Horizonte, especificando os elementos essenciais, como também, registrando
algumas narrativas do movimento migratório para a RMBH. O estudo mapeou parte de al-
guns aspectos, para uma melhor compreensão daqueles indígenas citadinos que vivem mar-
ginalizados na RMBH.
Conhecer de perto a luta dos grupos indígenas da RMBH me fez perceber o quanto
são necessários os estudos que auxiliam as populações tradicionais e suas atividades políticas
para que possam ter seus direitos e deveres reconhecidos nos espaços que ocupam. Como

24
também pleitear novas formas de se fazer políticas públicas destinadas aos povos indígenas
urbanos. Posteriormente, o estudo preliminar demográfico e o relatório tornaram-se uma
ferramenta de “legitimidade” para aqueles grupos indígenas citadinos, pois só assim as au-
toridades (municipais e estadual) aceitaram dialogar e possivelmente a desenvolver estraté-
gias para um melhor atendimento daquelas populações indígenas citadinas.
Em 2014, me inscrevi numa seleção de bolsista no Programa de Educação Tutorial –
PET/Indígena. Após ser selecionado, comecei a me organizar seguindo o cronograma pro-
posto pela tutora do PET, Simone Dutra Lucas. No PET, por estar fora da vivência de minha
comunidade, poderia retomar minhas pesquisas iniciadas em 2006, nos “Índios Online” e
em 2009, na CMTVP, sob um olhar “treinado”. Então, para escrever a proposta inicial de
pesquisa, separei alguns textos sobre os Pankararu. Ao ler com calma, percebi que muito das
narrativas me eram desconhecidas, outras eu sabia de um jeito semelhante. A fim de ir mais
a fundo propus um projeto de pesquisa que me permitisse analisar os textos sobre os Panka-
raru, mas pelo cronograma do PET acabei não podendo realizá-la.
Nas férias, em meado de 2014, fui para casa, para a Aldeia Brejo dos Padres. Dias
depois me reuni com algumas lideranças, Zeladores e meus colegas da CMTVP para apre-
sentar minha proposta de pesquisa. Ao expor minhas ideias, os mesmos me ajudaram nas
dúvidas e apontaram sugestões. Em agosto retornei para Belo Horizonte, após finalizar meu
projeto de pesquisa entreguei para meu orientador (de pesquisa e monografia) Paulo Maia.
O projeto de extensão foi baseado nas entrevistas realizadas entre as lideranças e alguns
fichamentos de etnografias sobre os Pankararu, as quais selecionei por desconhecer muito
das expressões ali utilizadas. O próprio título de meu projeto de extensão: “Tronco e Pontas
de rama Pankararu”, me era algo até então desconhecido por completo, eu mesmo não havia
escutado e nem sabia de seu significado. Minha proposta inicial era de dar continuidade às
investigações iniciadas na Casa de Memória do Tronco Velho Pankararu.
Posteriormente aquele projeto se tornou parte fundamental de meu trabalho de con-
clusão de curso defendido em fevereiro de 2017. O qual estimulou minha curiosidade em
conhecer o passado daqueles que ouvi na minha infância, na penitência e nas entrevistas. No
decorrer do trabalho e do contato com os Zeladores e suas narrativas, aprendi que Pankararu
significa: “Povo que vive entre serras, ou Serra de quatro pontas”, como já mencionado. E
que o etnômio Pankararu remete aos pedaços de aldeias que se ajuntaram no atual vale du-
rante um longo processo de luta das minorias pela sua sobrevivência no sertão nordestino.

25
Após o “ajuntamento” a expressão local Tronco Velho e Pontas de rama tornou-se referência
aos grupos de famílias fundacionais e suas extensões.
Aos poucos, durante minha trajetória como pesquisador indígena e acadêmico, bus-
quei me aprofundar nas narrativas escritas e orais sobre os Pankararu. Foi no ano de 2013,
ao ler a etnografia “Todo Mistério tem dono!” (Mura, C. 2013), que me deparei com uma
breve descrição de quatro Marias e a expressão recorrente As Marias sobre a qual nunca
havia lido ou escutado antes. Quando iniciei os diálogos para a monografia descubro que
Maria Calú e Manuel Calú são meus escanchavós18 paternos, avôs de minha bisavó Theo-
dora Calú, primeira esposa de Joaquim Pinto. Essa informação alimentou meu interesse in-
vestigativo em conhecer as raízes de meu Tronco familiar e tradicional. Por sorte, existem,
mesmo que poucas, descrições e imagens etnográficas sobre o período em que Elas – As
Marias – eram protagonistas rituais. O que me possibilitou desenvolver uma narrativa mais
próxima do acontecido, com o auxílio de seus descendentes diretos, os atuais Zeladores de
Tonã de seus troncos familiares que tiveram contato direta ou indiretamente com elas, atra-
vés de suas atividades rituais, narrativas e principalmente pelos Encantados (Mistérios).

Os preliminares desta pesquisa

Uma nova oportunidade de reunir, analisar e aprofundar as memórias pankararu do


tempo-bom19 com mais folego me surgiu em 2017, ao fazer parte da equipe do projeto “Os
Brasis e suas memórias: os indígenas na formação nacional”, financiado pela CAPES e co-
ordenado pelo prof. João Pacheco de Oliveira. No primeiro semestre daquele ano, o prof.
João Pacheco e Aline Magalhães ministraram o curso “Os indígenas na formação do Brasil”
direcionando suas leituras para uma postura crítica, ao observar os campos de interação entre
os personagens indígenas e outros agentes, ao focar no resultado de tais interações percebe-
se uma narrativa indígena dinâmica e protagonizada pelos próprios povos. Ainda naquele
primeiro semestre, participei de várias reuniões realizadas pela equipe do projeto para dis-
cutirmos a elaboração e a operação do site “os brasis e suas memorias”. 20
Já no segundo

18
Expressão usada para os precursores de tataravó, tanto paternos quanto maternos.
19
Tempo-bom, foi um termo muito usado pelos entrevistados ao se referirem no tempo de seus pais e avós o
qual se findou em meado do século passado (XX). Para ser mais exato, segundo os Zeladores de Tonã o tempo-
bom foi até 1970. É importante ter em mente que aquele tempo-bom não é uma oposição ao tempo atual. Pois
o tempo atual para muitos é um bom tempo por terem auxílios do governo e diversas outras “facilidades”.
20
https://osbrasisesuasmemorias.com.br

26
semestre daquele ano, Aline Magalhães ministrou (junto com o prof. João Pacheco) o curso
“Histórias, Memórias e Biografias”. Tal curso propôs uma leitura crítica da história dos in-
dígenas no Brasil a partir de uma ótica histórica e antropológica, tendo como o objetivo final
para os integrantes do curso desenvolver, através de narrativas, memórias de personagens
esquecidos e até mesmo declaradas inexistentes.
Como proposta final daqueles cursos trabalhei com a memória-narrativa que se man-
tém viva (entre os Pankararu) de Maria Quitéria de Jesus, conhecida como Quitéria Binga,
uma mulher de grande importância para as jovens lideranças Pankararu. Sua caminhada po-
lítica evidenciou a presença dos indígenas do Nordeste e, sobretudo, de seu povo Pankararu.
Quitéria Binga teve uma participação importante na constituinte de 1988. Segui firme nas
pautas educacionais, de saúde e na reivindicação (retomada) das terras Pankararu. Ela de-
sempenhou um protagonismo conhecido internacionalmente que levou à visibilidade dos
povos Indígenas do Nordeste, ficando conhecida por muitos como a Cacique do Nordeste
indígena. Certamente me foi um grande desafio descrever parte de sua trajetória e ensina-
mentos por suas lembranças se manterem presente. A descrição de sua caminhada política
foi um primeiro exercício que elaborei para o site do projeto “Os Brasis e suas Memorias”.
Aquele exercício me fez refletir diversas questões sobre minha falta com meus vínculos e
com a própria interlocução entre meus parentes indígenas de antigamente.
Meu primeiro ano no Museu Nacional foi um momento de reflexão sobre muitos
assuntos que envolvem os povos indígenas e aqueles que desenvolveram pesquisas entre
eles. Ter acesso a uma diversidade de informações que foram e são produzidas, me fez pensar
que serão poucos os parentes que terão acesso ao material produzido sobre suas próprias
histórias. Estar naquele ambiente acadêmico distante de minha realidade e próximo de uma
história que remonta o passado daqueles que recorremos e chamamos de nossos ancestrais
me deixou tonto a princípio.
Ao finalizar os cursos obrigatórios no Museu Nacional e encerrar parte das ativida-
des, volto para casa, para aldeia Brejos dos Padres com a finalidade de iniciar as pesquisas
em campo. Distante da capital carioca segui o curso proposto pelo projeto atual, e após con-
versarmos (João e eu), desenhamos uma estrutura de pesquisa, a qual me possibilitou explo-
rar questões apontadas inicialmente em meu primeiro trabalho acadêmico sobre os meus
parentes (Santos – Pankararu, 2017) explorei memórias-narrativas mitológicas elaboradas e
interpretadas entre os próprios Pankararu sertanejos.

27
Ao esquematizar as narrativas de líderes indígenas que viveram suas infâncias e ju-
ventudes naquele tempo-bom, pude analisar com propriedade algumas das narrativas tradi-
cionais e torná-las uma espécie de subsídios para entender parte de nossa formação. A esco-
lha de trabalhar com fragmentos de um passado absolutamente vivo tornou-se um desafio
imenso, pois cada personagem teve sua memória-narrativa guardada por sua família, mesmo
que parte dela seja de conhecimento dos demais Pankararu. O que exige também uma análise
atual e contemporânea, pois são relatos suscetíveis de interpretações e avaliações do tempo
diversas.
Na medida que ia conhecendo as narrativas mitológicas pude ir elaborando um es-
quema para examinar em duas partes cruciais. A primeira tomei como foco o centro da Terra
Indígena Pankararu, a aldeia Brejo dos Padres, mais tarde conhecida como aldeia de força,
por se concentrarem os principais grupos familiares definidos como Troncos Velhos. A mai-
oria dos grupos familiares levantaram seus ranchos às margens dos Terreiros fundacionais
com a finalidade de dar manutenção sustentando as tradições e narrativas de seus Troncos
familiares. A segunda, cada grupo familiar tem um especialista ritual, conhecido como Ze-
lador de Tonã. O Zelador é detentor de grande conhecimento (material e espiritual) e por
acessar a ciência se torna uma espécie de líder (representante) de sua família e dos Mistérios
que ela conserva, portanto sustenta. A esse Zelador de Tonã, são atribuídos vários dons, o
que lhe permite desempenhar uma grande capacidade de reunir lembranças, as quais lhe
auxiliam diariamente, manifestadas pela Natureza. 21 As velhas lembranças chegam por so-
nhos ou, como entendemos, por avisos.
O Zelador de Tonã é a pessoa encarregada (de conduzir) o Terreiro e os Mistérios
transmitidos por seu Tronco familiar originário sob a ordem dos Encantados. Por ser o en-
carregado, a ele é permitido acessar parte especial da Ciência Pankararu. Caso não seja
capaz de sustentar as obrigações, os Encantados de seu Tronco familiar chamarão um su-
cessor da família que assumirá a posição de Zelador de Tonã, tornando-se a cabeceira (es-
pecialista ritual) daquele tronco. Quando o Zelador ocupa tal posição, o conhecimento – a
noção – logo lhe chega. A noção é algo que não pode ser dito e nem visto, apenas expressado
por uma força sobrenatural. É a presença do invisível. Parte dos segredos da Ciência Pan-

21
Natureza é uma expressão recorrente entre os Zeladores de Tonã para se referirem aos Encantados e todos
os Mistérios e dons sobrenaturais.

28
kararu são acessíveis aos Zeladores quando estão no estado da noção (manifestados). É na-
quele estado que o Encantado auxilia e orienta aqueles que estão a sua volta, como um ver-
dadeiro guia espiritual, o qual se torna presente através da mateira humana do Zelador.
As famílias tradicionais possuem e zelam seus Mistérios como é passado pelos seus
a diferentes gerações. São poucos os integrantes, além do Zelador, que podem acessar (pe-
gar) os endereços de cada Mistério, por existir uma série de tabus envolvendo modos de
transmissão e dons específicos. Aqueles que zelam um, ou mais de um Mistério, é por pos-
suir dons. Ao acessar parte da Ciência Pankararu, sempre haverá algo a ser apanhado (reu-
nido) por ser uma fonte de conhecimento, de saberes infinita. Os Mistérios nesse caso estão
próximos do que se entende como tradições, de memórias, pois é através delas que somos
remetidos a um passado e ao por vir, de como proceder a determinadas práticas e nos afazeres
da vida Pankararu. Os dons são uma espécie de caminho para que o Zelador possa seguir na
tradição se dedicando ao(s) Mistério(s) de seu tronco familiar. Segundo os Zeladores
“quanto mais se acessa, mais complexo torna-se o conhecimento até chegar num ponto do
não-dizer, ou do não-fazer”.
Foi em tal contexto preliminar da pesquisa, antes de iniciar minhas investigações,
que tive acesso a diferentes abordagens teóricas entre elas destaco, Casagrande, J. 1964;
Pollak, M, 1986; Benjamin, W. 1986; Bourdieu, P. 1996; Nora, P. 1984; Goody, J. 2009
entre outros que poderiam me amparar na escrita e interpretações das narrativas sobre o meu
povo.
Casagrande em seu prefácio no livro “In the company of man” ilustra diversas cate-
gorias as quais podem ser trabalhadas nos dias atuais pela antropologia, bem como pela pró-
pria ciências humanas. Algumas delas me nortearam e me fizeram questionar suas posições
enquanto Pankararu e antropólogo. – Claro que se deve levar em consideração a década em
que foi escrito. Mas como a antropologia permite que façamos o movimento indelével, o
recorro para questionar aqueles que usam atualmente categorias questionáveis, sobretudo,
para os pesquisadores indígenas. Por exemplo, durante os textos do livro é muito usada a
categoria informante, por se tratar de uma narrativa entre pesquisador e pesquisado durante
o campo. Mas o que me chamou atenção são as formas de sua adjetivação. Que coloca o
interlocutor numa situação de dependência ao dizer: “The relationship between the anthro-
pologist and a key informant has many of the attributes of other kinds of primary relation-
ships: between student and teacher, employee and employer, friends or relatives—as a matter
of fact, it is often assimilated to the latter. In some respects it is most closely paralleled by

29
the relationship between the psychiatrist and his patient”. (Casagrande, J. p. xi 1964). Por-
tando cabe aqui plenamente o uso da expressão interlocutor e não de informante por razões
evidentes. No entanto, também uso uma outra expressão a qual é comum entre os indígenas
brasileiros a de: “parente”.

As condições de pesquisa: a psicologia indígena e os efeitos da escrita

A maioria das páginas dessa dissertação foram escritas durante minha estadia em
campo, em casa, na aldeia Brejo dos Padres. Durante os meses entre meus familiares, tive
diferentes experiências e possibilidades para abordar temas fundamentais sobre a trajetória
daqueles que suspenderam o Tronco Velho Pankararu após sua reorganização nos anos de
1930. Aqueles meses foram intensos. Somando os dias que levei meu gravador – consegui
registrar mais de cinquenta e duas horas de áudio com os Zeladores. As informações jorra-
vam como fontes inesgotáveis. Por ter um objetivo me contive em cada conversa aos deta-
lhes, as descrições que me auxiliassem nas narrativas sobre os primeiros descendentes d’As
Marias, e, quando me fosse possível, usar suas trajetórias para moldar uma narrativa das
atividades rituais ancestrais Pankararu. Como Pankararu e antropólogo coube a eu desem-
penhar e reunir algumas das narrativas de nosso passado, as quais estavam em silêncio, e,
portanto, esquecidas (como nos diz Pollak, 1986), para que as atuais e próximas gerações
possam ter acesso às nossas narrativas ancestrais.
Estar em campo e poder iniciar a escrita é algo único, é um privilégio, assim como,
ter a possibilidade de retornar às casas dos parentes interlocutores quando me faltavam da-
dos, ou me surgiam novas dúvidas ao ouvir as gravações. No entanto, sempre que retornava
aos interlocutores, eles me passavam mais informações antes não ditas. Daí fui percebendo
que estava entrando numa rede extremamente complexa. Pois as narrativas além de serem
extensas pareciam se conectarem ao mesmo tempo que contrastava com a de outros Zelado-
res. O que me deixou atordoado e instigado.
Nas primeiras semanas de julho conversei com vários Zeladores de Tonã, os quais
ficaram felizes em contribuir com suas narrativas a um parente indígena. Antes de iniciar as
conversas fui em suas casas para explicar minha proposta e agendar um dia que lhes fosse
possível. Ao fazer o primeiro contato, eles saberiam do que se tratava – além de poder recu-
sar ou preparar – suas reflexões e lembranças. Aquelas primeiras conversas deveriam ser

30
apenas de apresentação da pesquisa, mas por termos uma relação próxima já introduzia vá-
rios assuntos. Para surpresa dos entrevistados as perguntas eram sobre os ancestrais de seus
Troncos e não sobre os mesmos como de costume. Eles aproveitaram minhas investigações
para pontuar um momento delicado que estavam enfrentando –, a desintrusão dos nãos in-
dígenas nas aldeias Bem-Querer de Cima, Bem-Querer de Baixo, Caldeirão, Caxiado e
Karira, nas terras Pankararu. Aquele movimento de desintrusão dificultou os agendamentos
com alguns Zeladores, pois muitos estavam a frente das retomadas sendo alvos de ameaças
por parte dos posseiros. Houve casos em que tive conversas pela noite, ou eles iam a minha
casa (por ser de fácil acesso).
O primeiro Tronco que tive contato foram os Pedro, tendo como referência de inter-
locução Zé Auto, Cacique de Pankararu e zelador dos Mistérios de seu Tronco. Depois de
várias tentativas, finalmente consegui conversar com ele. Durante nossas conversas percebi
que ele recorria com frequências às referências etnográficas sobre os Pankararu, tentando
fazer uma ponte com suas memórias de infância. As conversas com Zé Auto, eram sempre
interrompidas, pois como Cacique Pankararu as pessoas iam a sua casa para que ele assinasse
seus documentos entre outros assuntos. As interrupções quebravam seu raciocínio narrativo,
me fazendo sempre retomar sua fala antes de sermos interrompidos. Conversando com mi-
nha mãe, sobre minhas impressões a partir da conversa com Zé Auto, ela me sugere que eu
conversasse com Caboca. Pois Caboca é a pessoa que sempre esteve na cabeceira do Tronco
Pedro após seu pai, Narciso Pedro, filho de Maria Pedro, mudar de mundo.
No dia seguinte fui à casa de Caboca. Marcamos uma primeira conversa para a manhã
seguinte. Às 9hrs chego a sua casa, já me aguardando, ela estava manejando um trançado de
palha de licurí para me mostrar como eram feitas suas camas em seu tempo-bom. Conversa-
mos muito de seus pais e de sua vivência em seu tempo de amarguras. – Na comunidade
Caboca é tida como tímida, então esperava que conversássemos por pouco tempo. O que me
surpreendeu. Pois na primeira conversa passamos mais de três horas, e nas outras vezes que
fui a sua casa passávamos sempre o mesmo tempo ou mais conversando. Percebi que ela não
é tímida, mas contida. Como percebi ela espera o momento e a situação certa para falar. Já
meu contato com Inocêncio, o primogênito de Narciso Pedro, foi breve. Por ele residir pró-
ximo ao Terreiro do Tronco Pedro –, após eu sair da casa de sua irmã, Caboca, aproveitei
para marcar uma possível conversa com ele em sua casa. Ele e eu conversamos por mais de
1 hora, e ao final de nossa conversa ele disse não saber de nada, e que por motivo de saúde
não poderia ficar por muito tempo em pé, ou sentado (Inocêncio sofreu um grave acidente

31
de carro ao ir para a feira de Paulo Afonso vender frutas). Essa foi uma forma educada de
dizer que não queria um próximo encontro. Mas, o tempo que conversamos foi produtivo
ouvi atentamente sua fala ao descrever o pouco que lembrava de sua avó Maria Pedro e como
era a Aldeia Brejo dos Padres – “só casas de barro coberta por palhas de licurí, e também
por telhas de cerâmica de fabricação caseira” – em seu tempo-bom.
O segundo Tronco que tive contato foram os Calú. Como interlocutor daquele
Tronco, tive meu avô, João Pinto. A princípio ele me questionou por várias vezes, enquanto
não entendesse “aonde eu queria chegar com a pesquisa”, não iria conversar comigo sobre
as narrativas ancestrais de seu Tronco e das Tradições. Foi uma posição compreensível a
sua. Tentei conversar com tia Dida 22 (Cantadeira e responsável pela Noite dos Passos, ati-
vidade-ritual executada apenas no Terreiro Poente), mas por ela se encontrar doente e se
emocionar fácil disse que não poderia. Ela me sugeriu que eu conversasse com meus primos,
Fernando Monteiro (seu irmão) e Francisco Assis (seu filho). Mas por razões e sugestões de
outros Zeladores não fui conduzido a fazer tais entrevistas com eles, pois muitas pessoas a
minha volta questionaram a legitimidade dos indicados por tia Dida, por serem muito jovens
e estarem envolvidos em outros movimentos políticos o que também dificultaria possíveis
agendamentos. Como trabalhei com prioridade, procurei pessoas mais consensuais, – outros
parentes que auxiliavam os Zeladores e alguns moços de praiá do Tronco Calú, mas pouco
se sabia das narrativas ancestrais. Por diferentes motivos resolvi focar nas narrativas de meu
avô, pois ele como o primeiro bisneto de Maria Calú e um dos “sucessores” da ordem da-
quele Tronco seria a pessoa mais indicada para contar sobre sua mãe de tradição Firmina
Calú. Nos momentos em que conversávamos ele foi me perguntando sobre minha atuação,
com quem eu trabalhava, como funcionava o lugar que eu estudava e se eu respondia a al-
guém. Expliquei de todas as formas possíveis sobre minha pesquisa, depois sobre (PPGAS)
Museu Nacional, meu orientador e o seu papel na presente pesquisa, o qual ele o chamou de
“homem de lei (letra)”. E depois perguntou se o “meu chefe” iria ler o material e “divulgar
para o Brasil geral”. Percebi que ele tinha uma dificuldade de falar a palavra orientador, pois
tentou várias vezes, ao perceber sua dificuldade o alertava que poderia se referir ao João
Pacheco como (seu) professor, mesmo assim insistiu em chamá-lo de “seu chefe” ou “ho-
mem de lei”.

22
Tia Dida é minha prima de quarto grau pela via paterna (seu pai, filho de Maria Paturnia) e de segundo grau
pela via materna (sua mãe minha tia avó). Como de costume os primos mais velhos chamamos de tio.

32
O terceiro e último Tronco foram os Chulé. Tive como referência Antônio Caboco,
expliquei meu propósito enfatizando no que estava investigando. Depois que ele me ouviu,
de imediato iniciou diversas narrativas sobre a Tradição, por ser um primeiro contato deixei
ele continuar, sem interrompê-lo. Não quis gravar e nem tomar nota naquele momento por
achar que não deveria, pois como havia feito entre os outros interlocutores, escutava atenta-
mente o que eles tinham a me dizer e assim tomar notas de suas lembranças, em casa, para
quando eu retornasse pudéssemos discutir os pontos específicos das narrativas ancestrais.
Por indicação de meu avô, nos dias seguintes fui à casa de Vicente Aciole e de João Gouveia.
Na primeira conversa com Vicente, contou muito de sua vivência na aldeia Tapera, dos dias
que acompanhava seu pai, Luís Caboco, a casa de sua madrinha Maria Chulé e do véi Lo-
rindo. Em outras conversas, falamos sobre sua atuação como liderança comunitária, canta-
dor e curandeiro a fim de entender o papel dum Zelador. Já a conversa com João Gouveia
foi breve, como ele mesmo disse não sabia muito dos acontecidos do tempo-bom para trás.
O motivo foi por ter saído da aldeia quando criança, aos seus 11 anos de idade. E voltou com
mais de 20 anos de idade, após se casar com sua esposa Tereza – a qual vive juntos até os
dias atuais. Sua narrativa foi importante por ter alcançado parte das atuações das filhas de
Maria Calú, como também, das sementes políticas (Cacique, Pajé e Capitão), na comunidade
e fora dela.

Em todos os momentos de diálogos com os Zeladores de Tonã, deixava claro que


minha proposta era de aprofundar as memórias-narrativas fundacionais. Quem eram e como
atuavam As Marias. Para tanto apontamos naqueles que sustentaram seus conhecimentos, os
primeiros descentes d’as Marias. Como abordado nas conversas, eu não tinha a intenção em
saber dos Mistérios ou dos pontos. Por ser integrante daquele povo sei que determinadas
conversas envolvem diretamente a Ciência Pankararu – área que é restrita para os demais
indígenas, até mesmo para aqueles que se alimentam de seu conhecimento.
Durante as conversas com meus parentes ficou nítido que eles tinham um momento
de pausa, as vezes, prolongada como se tivessem tentando lembrar de algo, outros desenvol-
viam suas falas de acordo com o rumo da conversa, guiados por suas sensações para não
entrarem nas questões do indizível, pois para os Zeladores de Tonã ou mesmo para o antro-
pólogo e Pankararu não resulta de um trauma ou lembrança extremamente ruim, (como no
caso analisado por Pollak), mas sim de conhecimentos que pertencem aos Encantados que,
portanto não podem ser partilhados e nem lembrados sem a concordância Deles.

33
Por estar em casa (em campo) reunindo informações sobre as trajetórias de persona-
gens importantes, fui entrando numa região desconhecida aos demais pesquisadores e aos
próprios Pankararu. O meu conhecimento como pesquisador e Pankararu resultava do que
Eles queriam que eu soubesse e registrasse. Tal como nós pesquisadores indígenas sabemos
que em função de avisos somos alertados pelas sensações sobrenaturais. Sensações que me
eram constantes enquanto escrevia as páginas seguintes.
Existem diferentes narrativas, orais e escritas, que descrevem como nossos ancestrais
viviam e praticavam suas atividades rituais em tempos remotos. Atualmente na comunidade
indígena se tem poucas informações daquelas lembranças, entre elas, de como era alimenta-
ção, a vivência, as diferentes práticas agrícolas e rituais. Ao recordarem de seu tempo de
infância ouvia a frase: “aquela vida, que era vida” se referindo ao tempo-bom.
Os interlocutores, durante nossas conversas, narraram muito das relações e das in-
fluências existentes entre os indígenas e sertanejos regionais. Por estarmos localizados numa
área de confluência de estados, próximos ao rio São Francisco, tornou-se uma região natural
para a reunião de grupos indígenas em diferentes situações. Como resultado do ajuntamento
de grupos distintos naturalmente as memórias-narrativas se agruparam e desenvolveram in-
terpretações que podem variar de um grupo familiar para outros. E desde então as variações
de memórias-narrativas disputam-se constantemente.
Os indígenas pankararu ao longo de suas relações, tiveram diversas quebras, ou me-
lhor, emendas ao narrar o mito de origem. Por essa razão busquei através de entrevistas
específicas com Zeladores de Tonã, despertar memórias que estão em disputas entre os re-
presentantes de cada tronco familiar. Especialmente aqueles que exercem papeis centrais em
suas famílias e para o Aldeamento Indígena Pankararu. Tais narrativas têm como proposta
de nos levar o mais próximo de um dos pontos de origem que regula nossa atual organização
social e cosmológica.
Segundo os Zeladores muito do que praticamos na comunidade não se tem mais lem-
branças como antigamente por diversas questões, porém, foram destacadas três. A primeira
questão se dá pelas novas gerações estarem vivenciando diversas oportunidades. A Terra
Indígena Pankararu, fica entre três municípios. Muitos indígenas estudam nas escolas e ou
trabalham nas cidades vizinhas. Na primeira década deste século os indígenas saiam da al-
deia apenas da 5ª série (atual 6º ano) em diante. Atualmente crianças de três anos de idade
já frequentam as creches nos municípios vizinhos. Esse trânsito se intensifica a cada geração.
Mesmo que na TI Pankararu, se tenha todos os períodos escolares nem todos pais colocam

34
seus filhos para estudar na área indígena por diversos motivos. A segunda questão são os
bailes (as festas) em clubes locais, não respeitarem a tradição nos dias que se tem atividades
sagradas. Essas festas “aumentam” o “desinteresse” dos adolescentes e jovens a não partici-
parem das atividades rituais. A terceira questão apontada pelos Zeladores de Tonã, 00pode
ser considerada a mais preocupante, ao questionarem da falta de diálogos ou mesmo de in-
teresse por parte dos jovens e adolescentes pankararu. É preocupante pelo fato da ausência
de diálogos levar a uma carência na manutenção das próprias narrativas indígenas, do res-
guardo e do decoro com o sagrado. Para que se continue a tradição de conhecimento é preciso
que os jovens indígenas tenham uma dedicação com as tradições, as narrativas locais, os
mitos familiares e os tabus para não se suprimam a cada ano que se passa.
É possível encontrar registros importantes nas escritas etnográficas desenvolvidas
nas últimas décadas pelos pesquisadores não indígenas entre os Pankararu no sertão pernam-
bucano. Muitas das informações registradas são narradas pelos anciões pankararu que já não
estão nesse mundo. Tais registros nos permitem acessar uma memória-narrativa a qual para
muitos da geração atual é desconhecida. Algumas etnografias escritas sobre os Pankararu no
século XX foram desenvolvidas em meio a determinadas famílias, em seus períodos de ritu-
ais, tornando um momento único e produtivo para apanhar informações privilegiadas. Atu-
almente as etnografias sobre os Pankararu auxiliam os próprios pesquisadores indígenas a
terem acesso as narrativas de seu (ou de outro) Tronco familiar. Nos anos que tive contato
com os textos sobre os Índios do Nordeste, especialmente sobre os Pankararu, me deparei
com uma grande contribuição naqueles escritos, principalmente por conter informações de-
dicadas ao tema indígena do sertão em tempos remotos. Algumas etnografias ao ilustrar e
descrever detalhes nos causa um efeito familiar por ser uma narrativa interpretada pelo pan-
kararu. Muitas etnografias e principalmente as citações nos faz perceber que existe uma
questão importante em nossas rotinas, a qual não damos uma “atenção” por nos ser “co-
muns”, mas que estão carregas de significados.
A abordagem etnográfica me fazer “olhar de volta” para as nossas próprias atividades
– numa perspectiva ampliada enquanto Pankararu e antropólogo, mesmo que nos esbarremos
em questões que possa parecer conflitante com as quais conhecemos. Pois cada família tem
uma perspectiva própria de como funciona determinado elemento ou prática de seu Tronco
familiar, a qual pode ser desconhecida ou entendida de outra maneira aos demais Troncos
familiares.

35
Os Pankararu habitam um espaço que residem diferentes seres (entidades) sobrena-
turais. Por sermos “pegos” (nascidos) naquele espaço sagrado estamos conectados de dife-
rentes maneiras, uns mais, já outros com menos intensidade, mas o que estreitará tal relação
será o dom de cada um. O dom que será aflorado no dia-a-dia. Para viver nesse aldeamento
é preciso conhecer os espaços ao andarmos pela comunidade para não sermos “pegos” e nem
“flechados” pelos seres que ocupam e transitam. Conhecendo determinados lugares, no mí-
nimo aqueles que mais frequentamos, tomamos precauções, pois a maioria dos locais são
protegidos e comandados por determinadas entidades. A exemplo, evitamos andar sem per-
missão, ou “despreparados” em locais, tais como, a Serra de Leonor, o Serrote da Missão, a
Fonte Grande, ou atravessarmos encruzilhadas (entre outros locais) em determinados mo-
mentos do dia ou da noite, por sabermos que ali existem seres que transitam naqueles espa-
ços. E quando é de suas vontades essas entidades passam seu conhecimento, como também
podem dar “flechadas” naqueles que tentem apanhar sua ciência em suas “moradas” (mesmo
que esse não fosse seu propósito). Os Encantados dizem que: “quando o ‘caboco’ entra num
local ao ver, ouvir e sentir algo daquele lugar já está apanhando conhecimento que não lhe
pertence”, por este motivo muitos são alvos das “flechadas”.
Viver num lugar com saberes existentes próximos e distantes é de uma complexidade
profunda. Como diz Jararaca: 23
“A relação que temos com os Encantados é um puxa e
encolhe”. Puxar e encolher, são expressões certas. Tais ações são constantes entre os Panka-
raru, pois quando nos deparamos com o conhecimento através das “sensações” ou “flecha-
das” o tomamos, mesmo que não seja nossa vontade naquele momento. Uma vez que agar-
ramos, encolhemos, suprimimos parte do conhecimento que nos era distante.
Nós, indígenas Pankararu, nem sempre estamos preparados, com isso algumas de
nossas sensações (sentidos) serão nossos alertas, tais como, vontades, intuição e principal-
mente arrepios. Desde os antigos sabemos que existem, de forma simples, dois lados: o de
dentro e o de fora; em frente e detrás; em cima e embaixo. Alcançamos (aprendemos) que
aquelas sensações são manifestações numa das duas posições, as quais também podem ser
entendidas em correntes de força direita e esquerda, ou bom e ruim, mas nem sempre podem
ser consideradas como opostas. Por exemplo, quando é o nosso lado direito que se arrepia
entendemos que é um Encantado, uma entidade boa, que não nos fará mal. Se for o nosso

23
Vicente Aciole (conhecido como Jararaca), é o primogênito do finado Luís Caboco, atualmente ele é um dos
principais Cantadores de Terreiro, Liderança tradicional e Zelador de Tonã. Enquanto conversávamos sobre
nossas tradições ele deu um breve exemplo da relação que temos com os Encantados, como a frase a cima.

36
lado esquerdo que se arrepia pode ser entendido como sinal de perigo por parte de um En-
cantado ou uma entidade que está prestes a nos atentar, pegar, flechar. Existem entidades
da corrente esquerda que possuem mais força, estas podem nos “pegar” sem percebermos.
Mas através de incômodos (sensações desconfortáveis) em nossos corpos, tais como, mãos
geladas, dores musculares estranhas, dor de cabeça em determinados momentos – do dia,
calafrios ao passar em um lugar são sinais de algo errado. Tendo tais sinais não devemos
ignorá-los, devemos nos consultar com um curandeiro, um especializa ritual. As vezes os
sintomas podem ser castigos, ou como dizemos “pisas” (surras), por termos feito ou menci-
onado algo que não poderíamos ter realizado ou falado. Aqueles que estão com tais sensa-
ções precisam ir na casa dum curandeiro para que ele possa dar um diagnóstico ou mesmo
iniciar um tratamento de cura, para limpar /fechar o corpo.
Desde pequenos, aos poucos, vamos conhecendo os lugares e os perigos que lá pode
existir. As vezes somos alertados de quem pertence os espaços em que estamos. É comum
reagirmos naturalmente aos locais por se sentir uma presença, ou mesmo uma imposição de
como se algo nos tomasse, nos ocupasse. Temos a mesma sensação em diferentes momentos,
tais como, conversar, andar, dormir, trabalhar entre outras atividades diárias. Segundo An-
tônio Caboco, funcionamos de acordo com: “a vontade de Deus e Deles (os Encantados) não
é a nossa”. Mas assim como os servimos, Eles devem nos servir.
Os Zeladores de Tonã acreditam que não se pode dizer ou fazer determinadas ativi-
dades porque o conhecimento que temos não é nosso. É Deles. Por este motivo não podemos
dar ou dizer sem a permissão dos donos. Essa questão é crucial para se começar a entender
as determinações existentes na Ciência Pankararu. Nos é passado pelos mais experientes de
nosso Tronco familiar que “a ciência do índio [Pankararu] é: se falar esquece”, pois “se Eles
dão, Eles tiram”. Essas são frases recorrente entre os diferentes Zeladores de Mistérios.
Para saber o que pode e o que não pode é seguirmos com as atividades até chegarmos
num ponto, o qual Eles nos impõem, fazendo-nos esquecer até o momento que nos seja per-
mito lembrarmos, falarmos ou fazermos. Por vivermos num espaço conectado todos estão
sujeitos aos avisos. O limite nos é uma experiência direta das potências sobrenaturais que
dimensionam e avaliam o “dizer” e o “fazer”.
Os efeitos das escritas etnográficas sobre os Pankararu me conduziram a entrar em
diferentes campos de nossa história. Através delas pude me relacionar de uma maneira mais
pontual ao abordar determinados temas, pois haviam momentos que o campo de pesquisa
me colocava a prova, ora como pesquisador, ora outra como indígena daquele grupo nos

37
diálogos sobre diferentes assuntos que julgava conhecer. Por vezes os interlocutores faziam
considerações de uma versão que eu havia tido contato através das narrativas orais e das
leituras etnográficas, o que me deixou cauteloso nos diálogos e de como as etnografias po-
dem nos levar a diferentes caminhos de interpretações desconhecidas. No entanto, nos ajuda
a pensar e apontar possíveis conexões. Por estarmos vivenciando uma forma de apanhar
conhecimento distinto toda entrada como toda saída gera mudanças que se não tivermos
decoro podem desiquilibrar o convencional.
Talvez meu problema diagnosticado como febre reumática pela medicina não tenha
sido só uma infecção, mesmo que o quadro tenha se apresentado daquela forma. Por ter tido
problemas em minhas pernas, muitos de meus parentes disseram que pode ser que eu tenha
andado onde não deveria e tenha recebido uma “flechada”. E a confirmação recebi quando
me comprometi em acompanhar as Tradições.

Das etnobiografias

A etnografia é algo que consiste numa observação, registro e análise de coletivos


visando a restituição de seu modo de vida e de seu dinamismo. Ela “produz e consome” as
informações que lhes são disponíveis (Geertz, 1974; grifos pessoais). Segundo Gonçalves
(2012), a biografia é algo que corresponde à descrição de uma trajetória estritamente indivi-
dual, que não se ocupa da recuperação analítica de um contexto, e que por tal motivo “as
biografias e as histórias de vida foram tratadas como algo que precisa ser explicado e não
como algo que explica, por si só”. Ao apontar breves encaminhamentos dos dois métodos
citados, cabe aqui assinalar o termo etnobiografia como uma capacidade que pode “inter-
cambiar experiências” entre etnógrafo e narrador, ao potencializar os discursos transmitidos
de pessoa para pessoa e de suas características próprias, contribuindo para uma descrição e
análise de maior alcance (Benjamin, W. pp. 198. 1994 apud Gonçalves, 2012.). Pois “a no-
ção de entnobiográfico problematiza (...) o etnográfico e o biográfico, as experiências indi-
viduais e as percepções culturais, refletindo sobre como é possível estruturar uma narrativa
que dê conta desses dois aspectos (...), pessoa e cultura (Gonçalves, 2012).
A oportunidades de elaborar uma etnobiografia tive em 2017, no curso História, Me-
mórias e Biografias ministrado por Aline Magalhães e o prof. João Pacheco. Naquele curso
discutiu-se diferentes “biografias” de indígenas e não indígenas que narravam sobre líderes

38
importantes para seu povo e para a questão indígena no Brasil. Ao ler aquelas “biografias”
percebi que as trajetórias eram marcadas fortemente pela presença de fatores culturais do
começo ao fim. Ter contato com tais leituras onde os protagonistas são indissociáveis de seu
contexto cultural, i.e., de seu coletivo. Foi curioso para repensar o que até então chamava de
biografia (no sentido apresentado), principalmente por trabalhar com trajetórias de indígenas
sertanejos que representam seus coletivos. Ademais aquelas “biografias” me possibilitou
exp0,erienciar e fazer um exercício biográfico, pois na maioria daqueles textos percebe-se
que são trajetórias “individuais” mas que carregam seus contextos culturais.
Ao desenvolver essas etnobiografias busquei privilegiar minha experiência e alguns
textos que me auxiliassem diretamente em detrimento de discussões teóricas mais amplas.
No entanto, pelo limite de tempo e a finalidade do trabalho, não alcançarei debates teóricos
relevantes sobre os temas que são abordados durante essa escrita. Alguns deles, certamente,
seriam: a experiência autoetnográfica; as diversas etnografias sobre os Índios do Nordeste,
sobre os Pankararu; as relações interétnicas, entre outras temáticas. Tais temas, certamente,
serão retomados em futuras discussões.

Este texto é montado por três etnobiografias de representantes espirituais e políticas


de Pankararu. Aqui descrevemos uma “sucessão de acontecimentos históricos” que remon-
tam, em parte, um tempo de trajetórias, cosmológica e política daqueles que suspenderam
seus Troncos fundacionais Pankararu (Bourdieu, P. 1996). Cada etnobiografia tem como ego
(um representante) que sustentou as atividades rituais de seu Tronco Velho familiar (Pedro,
Calú e Chulé (Aciole)), o que nos possibilita ter informações que se ajustam ao dia-a-dia da
comunidade através das atividades rituais familiares e seus Mistérios. É importante destacar
que existem famílias 24 que não são mencionadas nesse texto, mas são tão importantes quanto
as que são abordadas nas páginas que seguem.

A etnobiografia inicial é uma narrativa da trajetória de Narciso Pedro dos Santos, o


primeiro Cacique Pankararu. Neste texto buscamos desenvolver sua vida espiritual e política
em dois momentos. Na primeira parte será abordado o percurso como líder espiritual do
Tronco familiar Pedro, descrevendo sua vivência a partir de relatos de seus filhos, de suas
as alianças, arranjos familiares e demais relações foram importantes para a realização de

24
Há outros Troncos familiares que constituem o Tronco Velho Pankararu, como por exemplo, Monteiro da
Luz, conhecido como Binga, Machado, entre outros.

39
suas atividades tradicionais deixada por seus pais, Maria Pedro e Francisco Carapina. Na
segunda parte será narrada sua atuação como chefe comunitário, atuando em seu período de
cacicado, sustentando a tradição, a vida social e política da comunidade.
A segunda etnobiografia é sobre Luís Aciole de Oliveira, conhecido Luís Caboco.
Sua narrativa é distinta das outras duas abordadas por duas razões. Primeira, o véi Luís Ca-
boco teve uma relação distinta das duas sementes políticas (Narciso Pedro, Joaquim Serafim)
e de Firmina Calú, por não ter nascido dentro dum Tronco fundacional de tradição especí-
fico. A segunda razão, envolve sua trajetória, pois ela o levou a sustentar o Tronco Chulé, e
posteriormente a fundar o seu próprio Tronco familiar. Por ser filho de tradição os endereços
antes manobrado apenas pelos Zeladores Tronco Chulé. Seus motivos o levou líder espiritual
e comunitário, como aqueles de sua geração que iniciaram as peregrinações na luta pela terra
e melhorias para o povo Pankararu.
A última abordagem foi sobre de Firmina Calú, neste texto tentamos esboçar um
pouco das práticas do Tronco Velho Calú, como também o papel desempenhando por ela e
seus familiares próximos. Aqui desenvolvo em duas partes. A primeira tem de se atentar
para uma descrição da atividade ritual, até então, manobrada exclusivamente pelo Tronco
Calú, na Aldeia Brejo dos Padres, no Terreiro Poente. Com uma breve descrição das fases
da Festa do Imbu praticada naquele tempo-bom, com as alianças dos Zeladores de Tonã, dos
quais muitos são nossos contemporâneos. Na segunda parte retomo especificamente a traje-
tória de Firmina Calú e suas relações em seu contexto social e tradicional voltando para as
questões lançadas na primeira parte.
— Esse conjunto por si torna-se uma tentativa de ilustrar uma perspectiva da multi-
plicidade de memórias-narrativas existentes entre os Pankararu. Por ser membro do Tronco
Calú, uma das famílias fundadoras da comunidade, posso transitar entre as demais narrativas
das famílias Pedro e Chulé (Aciole), compreendendo-as de forma familiar por ter sido criado
entre elas. Com as técnicas adquiridas em minha nova comunidade acadêmica, poderei co-
locar em prática minha experiência como indígena e antropólogo, cujo objetivo aborda o
entendimento do mito de origem do povo Pankararu.

A casa dos espelhos e a descrição etnográfica

40
O projeto “Os Brasis e suas Memórias: Os indígenas na formação do Brasil” coorde-
nado pelo prof. João Pacheco, assim como o curso ministrado por ele e Aline Magalhães no
primeiro semestre de 2017, me causaram um efeito semelhante à da personagem Alice, ilus-
trado na epígrafe desta introdução. O efeito de funcionar nos dois sentidos, de trás para a
frente e de frente para trás, foi a sensação que tive ao trabalhar com memórias indígenas,
especialmente as narrativas Pankararu no sertão pernambucano. Não que tal sensação tenha
sido cômoda ou fácil, mas justamente o contrário, por ter me possibilitado uma espécie de
questionamentos de minha memória pessoal – que para qualquer um é tomada como um
registro fotográfico – do passado. Ao invés disso vim acessar a memória de frente para trás,
observando-a de maneira sombria e instigante, antes de desenvolve-la de trás para a frente
por meio das narrativas orais dos Zeladores de Tonã.
Até então eu não havia tido contato com trabalhos que propusessem ou apresentas-
sem uma perspectiva crítica e dialógica, na qual o foco fossem os personagens indígenas
como protagonistas na constituição de seus próprios espaços (políticos e rituais). Ou mesmo
que permitisse observação da memória nos dois sentidos. – Cabe aqui ressaltar que, não
estou afirmando a não existência de trabalhos sobre o tema, apenas não tive a oportunidade
de conhecer e/ou participar de atividades que abordem os indígenas como protagonistas na
formação dos brasis, ao perfazer um caminho “de trás para a frente e de frente para trás”.
“Alice através do espelho: e o que ela encontrou lá” é certeiramente uma obra ines-
gotável para inspirar nossas ideias. Por se tratar de uma obra clássica torna-se uma imagem
de referência para o que eu propor ao descrever e analisar as trajetórias pankararu. – Não
que eu esteja me colocando no papel da personagem, mas por ser um indígena que atravessou
e vive no mundo inventivo e interpretativo da Antropologia tenho experimentado a sensação
nos dois sentidos.
Por ser indígena e estudante de antropologia tenho o privilégio de transitar entre as
comunidades, acadêmica e indígena, o que talvez possa ser entendido na expressão de “in-
dígena antropólogo”, ou de “antropólogo indígena” onde a afirmação da lealdade principal
parece disputar o primeiro lugar na expressão (Benites, 2016; Baniwá, 2016). No entanto
proponho outra expressão a de “indígena [e] antropólogo”. O “e” uso como um aditivo, um
ponto de conexão entre duas comunidades que se relacionam e produzem experiências, pois
na condição de Pankararu e antropólogo posso vivenciar os conhecimentos existentes em
ambos campos de interação.

41
Diante de tal intercâmbio a imagem das etnografias elaboradas sobre meu povo Pan-
kararu pelos pesquisadores Oliveira, 1942; Pinto, 1952; Arruti, 1996; Athias, 2004; Cunha,
1999; Matta, 2005; Mura, 2013; Giberti, 2013, entre outras, me nortearam e me levaram
25
praticar a experiência autoetnográfica. Tal experiência me permitiu conhecer narrativas
do mundo dos Encantados e com suas permissões registra-las.
É de certo que as memórias reunidas ao longo dos anos pelos pesquisadores não in-
dígenas em nome da ciência antropológica sobre os Pankararu e os indígenas sertanejos,
estiveram a alimentar nossos espectros e nossos demônios através de uma herança cultural
que funciona nos dois sentidos. 26 Alguns Zeladores suspendem e sustentam a memória das
tradições pela oralidade, outros por registros, objetos e lugares sagrados, de modo a não
esquece-las e assim sempre que precisarem acessar suas lembranças rituais recorrem às suas
práticas mágico-religioso e aos lugares. Foi a partir de tal ideia que percebi que a própria
memória Pankararu funciona nos dois sentidos, num tempo que retoma velhos e novos ele-
mentos de tradições.
A antropologia como empresa pioneira construiu sua própria casa de espelhos, na
qual existe um corredor que se pode vislumbrar a infinita variedade da imagem do homem e
de suas teias de significados – que transportam (e atualiza) o próprio tempo. Lá existem
reflexos inventivos e interpretativos sobre as populações autóctones de todas as partes do
mundo. Aos pesquisadores que se arriscaram a entrar na casa de espelho da antropologia
foram naturalmente guiados por sua bússola interna para não ficarem a vagar entre suas pró-
prias imagens ou se aprisionar noutras já cristalizadas. O mesmo serve para os indígenas que
entram ou pretendem apropriar-se de conhecimentos que lhes são próximos. Diferente da
casa de espelho da antropologia, na ciência indígena existe um interminável labirinto de
narrativas que se adapta de tempos em tempos dificultando seu próprio conhecimento. Tal
sensação foi recorrente enquanto tentava ouvi por várias vezes as gravações dos Zeladores
de Tonã. Por não ter a permissão e me encontrar “despreparado” ao escutar trechos dos diá-
logos percebi que estavam me tomando informações e não me fornecendo. Após algumas
tentativas me veio a noção, a permissão. – Essa foi uma ação recorrente enquanto escrevia
sobre a ciência dos Encantados.

25
Experiência aliás que os etnólogos passam ao entrarem e viverem entre as sociedades autóctones. Tal expe-
riência debato em (Santos – Pankararu, 2017) monografia de fim de curso.
26
No trabalho final de curso (de Teoria Antropológica II, 2/2017) explorei esse caminho, de trás para frente e
de frente para a trás, realizado por pesquisadores da Antropologia com uma expressão a qual venho chamando
de: “Antropologia Indelével e o movimento pendular”.

42
Ao acessar a casa de espelho da antropologia encontrei diversos reflexos das narrati-
vas pankararu. Muitas registraram descrições de como eram determinadas práticas-rituais e
técnicas de tempos remotas. Imerso nos reflexos, pude “olhar de volta” e me deparar com
uma parte do passado de meu povo tão presente. É realmente encantador e envolvente as
falas dos anciãos que mantiveram suas memórias registradas nas etnografias, as quais certa-
mente serão acessadas por outros parentes indígenas e não indígenas.
Quando se entras noutro espaço, deve se estar acompanhado ou com permissão de
seu dono para não se perder. A antropologia nos abastece com teoria, metodologias e crono-
gramas, mas nem sempre é suficiente para nos guiar nos vastos corredores do conhecimento.
Constituímos uma geração distinta de nossos anciões, e por esse motivo somos dis-
ciplinados noutro sistema, o que nos faz pensar e agir, em alguns momentos, diferente dos
costumes de nossos Zeladores de Tonã. Porém, as lembranças que nos são confiadas se ade-
quam de acordo com as regras e hábitos do jeito Deles. Ao participarmos dos rituais perce-
bemos que as lembranças permanecem, pois são irredutíveis a mudança temporal se man-
tendo nos objetos e espaços.
No final do século XX entra em cena uma nova maneira de entender a prática da
etnografia. Além de ser vista como a principal ferramenta descritiva e analítica da antropo-
logia, também ficou conhecida como uma “tendência autoreflexiva” nas ciências humanas
(Geertz, 2009; Clifford e Marcus, 2016). Tal investimento “reduziu” a distância entre o
“eu/outro”, o “nós/eles” ao desenvolver uma descrição etnográfica mais próxima do interlo-
cutor. Anteriormente a essa nova abordagem os pesquisadores não só construíram como
também destruíram muitas interpretações e contextos socioculturais na tentativa de refletir a
imagem do homem ocidental sobre as populações autóctones de maneira unilinear e depois
comparativa em suas descrições etnográficas.
Esse novo tempo o pós-moderno (utilizado pela própria antropologia) tem um quadro
diversificado de pesquisadores, colocando as descrições etnográficas em outras chaves de
interpretações, pois são analisadas e desenvolvidas também como autoetnografias. Como é
o caso desta dissertação ao interpretar três memórias-narrativas originarias dos Pankararu.
Como se sabe, as descrições antropológicas foram iniciadas a partir de observações
externas e desde então elas vêm se transformado, adaptando-se aos novos agentes, embora
ainda sejam um campo de discussão inicial, já se pode notar a contribuição dos autóctones
ao formularem seu próprio conhecimento em relação a um modo de se fazer ciência.

43
A imagética construída sobre os Índios no Nordeste pela etnografia vai mais além de
uma ferramenta descritiva, pois registrou partes da vida das populações autóctones em dife-
rentes gerações. Tais registros podem ser acessados sempre que preciso, pois os reflexos
etnográficos ajudam a entender e a olhar as situações históricas (Pacheco de Oliveira, 1988),
tornando-as não só informações sobre aquela população autóctone, mas também demarcam
“lugares de memórias” (Nora, P. 1993). – Lugares estes, que estão são atravessados por di-
ferentes agentes que também produzem conhecimentos com o próprio tempo que vai e volta.
As preocupações que deram as primeiras formas a este trabalho são, em parte, uma
extensão de meu primeiro exercício monográfico de fim de curso (Santos - Pankararu, 2017)
como já mencionado. Aquele trabalho me possibilitou regressar, me colocando diante de um
reflexo extremamente largo. Por mais que eu tentasse me aproximar, mais distante eram os
diferentes olhares que atravessam aquelas narrativas Pankararu preexistentes. Ao mergulhar
naquelas lembranças, pude entender e começar a interpretar nossas atividades sagradas re-
fletidas nas narrativas dos atuais Zeladores de Tonã. Esse “olhar de volta” só foi possível,
em parte, após distanciar-me de minha comunidade de origem, de estar fora da “gema” 27 e
observar outras partes que a constitui. Por estar fora, pude ressaltar os vínculos que a comu-
nidade Pankararu estabeleceu entre as suas diversas partes e componentes.
Depois que entrei na comunidade acadêmica, comecei a utilizar técnicas cientificas
e ter acesso aos diferentes materiais produzidos sobre o meu povo. Isso despertou minha
curiosidade, meus questionamentos e principalmente meu interesse em ouvir as narrativas
dos Zeladores, com a finalidade de apanhar, capturar e guardar tais informações sobre o
passado, conservando pela via da oralidade – as memórias rituais que alcançaram parte do
tempo-bom.

27
“Gema” é uma expressão local para nos referirmos algo que seja do cerne, central i.e., de raiz.

44
Figura 2. Terras Indígenas Pankararu e Entre-Serras de Pankararu. Fonte: Funai.

45
Figura 3. Terra Indígena Pankararu, homologada na década de 1987. Fonte: Funai.

46
Figura 4. Terra Indígena Entre-Serras de Pankararu, homologada em 2007. Fonte: Funai.

47
Figura 5. O Tronco e algumas Pontas de Rama Pankararu entre os Estados brasileiros. Fonte. Matta, P. 2005.

48
MEMÓRIAS DE NARCISO PEDRO – I

49
O pulo do Jaguar

“Um certo dia o Jaguar saiu a procura de um mestre para aprender a pular. Visitou
vários de seus parentes e deles escutou com atenção algumas dicas. Ainda insatisfeito
por não conseguir pular bem, procurou um Gato Velho –, o qual muitos falavam dele
por ser habilidoso e astuto. Ao encontrar o Gato Velho, o Jaguar pediu que o ensi-
nasse a dar pulos. O Gato Velho, como sempre desconfiado, aceitou ensinar-lhe a
pular. O Jaguar praticou por vários dias as orientações dadas pelo Gato Velho para
pular bem. Quando o Jaguar aprendeu a pular igual ao Gato Velho, tentou abocanhá-
lo [devorá-lo]. Mas para a surpresa do Jaguar, o Gato Velho deu um pulo cambalhota.
Surpreso o Jaguar exclama: esse pulo você não me ensinou! Em resposta o Gato ve-
lho diz: – Então, imagine se tivesse...” (Inocêncio Pedro, 2018).

Aquelas foram as primeiras palavras de Inocêncio, quando o abordei para conversarmos


sobre seu pai, Narciso Pedro. Tal narrativa desenha muito do sentimento dos velhos Zela-
dores da comunidade. Por não saber o que pode ser feito, ou como pode ser usado os co-
nhecimentos dos antigos ou da Ciência Pankararu, eles deixam a suspeita como sua pri-
meira defesa.

50
LEMBRANÇAS DE ÍNDIO

O contato com o Tronco Pedro

Ao apresentar minha pesquisa e pedir que três dos seis28 filhos vivos do primeiro
Cacique de Pankararu me narrassem a trajetória de seu pai, percebi o contentamento que lhes
deixei com tal iniciativa, por se buscar as lembranças daquele homem que lutou junto aos
seus parentes indígenas pelo reconhecimento étnico e pela terra habitada pela sociedade in-
dígena Pankararu. Como também retomar a memória de uma das fundadoras da tradição e
sobretudo de Pankararu, Maria Pedro29.
O primeiro que entrevistei foi José Auto dos Santos, nascido em 1951, atual Cacique
de Pankararu e líder espiritual. Como esperado, nossa conversa rendeu muitas informações,
as quais me auxiliaram no entendimento da trajetória de seu pai. A segunda conversa foi
com Maria José, nascida em 1948, conhecida como Caboca, apelido dado por sua avó pa-
terna, Maria Pedro. Nessa segunda conversa muito ouvi da vivência da família Pedro, das
dificuldades que enfrentavam naquele tempo-bom30. O último que conversei foi Inocêncio
Pedro dos Santos, nascido em 1943, primogênito de Narciso Pedro, o qual não quis marcar
uma próxima conversa. O motivo foi claro, ele alegou que não sabia de nada, que não tinha
uma boa memória depois que sofreu um acidente de carro. Mas, durante a nossa conversa
falou muito de suas experiências junto ao seu pai, além de ter contado um pouco sobre as
famílias fundadoras da aldeia e de passar algumas palavras que os Encantados lhe ensinaram
em sonho na língua Pankararu. – Seu sogro, o véi Manezinho, foi um grande amigo de seu
pai. O véi Manezinho conhecido como um dos últimos grandes anciões da comunidade que
sabia “falar por língua” (a língua Pankararu) e por ter batizado muitos locais, algumas aldeias
de Pankararu, inclusive tornando a sua região conhecida como “rua dos manezinhos”.
Durante os dias em que durou a pesquisa de campo, pude acompanhar os rituais,
inclusive várias promessas pagas no Terreiro de Capitão Dandaruré, e quando me surgiam
dúvidas sobre algum assunto, retomava o contato por viver perto de meus parentes interlo-
cutores. Por vezes, Zé Auto ao passar em frente à minha casa me cobrava visita, pois haviam

28
Mariinha, primeira a falecer dos sete filhos de Narciso Pedro e Maria Bernadina.
29
Uma das três Mulheres de Ciência.
30
Ver informações detalhadas sobre a expressão tempo-bom na página 47.

51
lembrado de algo que não me relatou e que considerava importante para completar as infor-
mações anteriores, e assim darmos continuidade às “lembranças dos antigos”.
Antes de retornar a capital capixaba, fiz um último contato com a Zeladora de Tonã
Caboca, a qual vive as margens do Terreiro de Capitão Dandaruré, assim como seus irmãos
e sobrinhos. Abaixo segue uma figura de parte da genealogia com alguns dos membros do
Tronco Pedro que viveram e vivem as margens do Terreiro de Capitão Dandaruré, conhecido
como: Terreiro de Sábado de Aleluia. Naquela conversa pude ler a primeira versão deste
trabalho para Caboca. Feliz com o que ouviu duma trajetória de luta e conquistas trilhadas
por seu pai e demais lideranças daquela época, ficou grata pelas lembranças de índio, de pai
Agradeceu-me mais uma vez e ao ficar em minha frente repentinamente puxou Toante be-
líssimo de Capitão Dandaruré. Em meio as nossas emoções sentamo-nos. Logo, ela me deu
novas lembranças de seus pais naquele tempo-bom, e ficamos conversando por horas no
salão – local onde fica os forguedos de Tonã.

Figura 6. Genealogia do Tronco Pedro (adaptada). Fonte: Mura, C. Apêndice: Diagrama I. 2013.

52
Figura 7. Narciso e Maria Bernadina juntos ao seu neto, nos anos 80. Imagem: acervo familiar Pedro.

No início do século XX na Aldeia Brejo dos Padres, Terra Indígena Pankararu, Mu-
nicípio de Tacaratu – PE, nascia Narciso Pedro dos Santos, filho de Maria Pedro dos Santos
e Francisco Carapina – oriundo de Serra Negra (PE). Com sua esposa, Maria Bernadina de
Jesus, teve sete filhos. Os quais vivem na Aldeia Brejo dos Padres, numa região de terras
que foram de seus avós maternos e posteriormente de seus pais e tios, com exceção de um
dos filhos que reside na cidade de São Paulo. Entre seus 75 – 80 anos, mudou-se da Aldeia
Brejo dos Padres para a aldeia Carrapateira, onde viveu sozinho durante alguns anos. Um
tempo depois sua esposa fez o mesmo caminho para ficar junto de seu marido, e lá, na Car-
rapateira, os dois ficaram residindo por alguns anos. O casal ao cair doente voltou para o seu
local de origem, ficando sob os cuidados de seus filhos. Não resistiram muito tempo. A
primeira a mudar de mundo foi Maria Bernadina, enterrada numa quinta-feira, dois dias de-
pois seguiu Narciso, em abril de 1993. Ele foi enterrado no dia de Sábado de Aleluia. Dia
em que se celebra o ritual de vigília de Páscoa no Terreiro de Capitão Dandaruré, o qual ele
zelou e executou todas as fases da festa-ritual durante sua estadia neste mundo.

53
Narciso Pedro, ficou conhecido por todos do Aldeamento Indígena como um grande
líder Pankararu no sertão pernambucano, atuando por quase três décadas em seu cacicado.
Ao longo de sua trajetória desenvolveu diversas tarefas na companhia do primeiro Pajé31,
Joaquim Serafim, entre os rituais da comunidade e nas caminhadas políticas. Na segunda
parte deste texto, voltarei a discutir as atuações das caminhadas políticas das primeiras se-
mentes políticas de Pankararu.
O jovem Narciso recebeu a primeira patente de Cacique “a nível de governo”32, de
um “homem de lei”. A patente de cacique foi uma das três sementes [políticas] deixada pelo
pesquisador Carlos Estevão de Oliveira33, na década de 1930, para que cuidasse da comuni-
dade e, sobretudo, do curso da tradição junto as outras duas sementes (Pajé e Capitão). As
expressões usadas pelos indígenas Pankararu ao se referirem ao investigador Carlos Estevão
era por ele ser culto e estar pleiteando junto ao Governo e SPI em favor dos indígenas. Sua
posição de investigador entre os indígenas o fazia ser visto como a mais alta autoridade,
aquele que poderia “garantir”, mesmo que lhes fosse pouco, as questões cruciais para a ma-
nutenção e sobrevivência do povo Pankararu.
As três sementes [políticas] de Pankararu, se tornaram reconhecidas pela sua atuação
em ambas as esferas, na aldeia e nas capitais brasileiras. Ao receberem as patentes do “ho-
mem de lei”, e assinarem um termo de líderes, assumiram o compromisso de atuarem como
autoridades indígenas, iniciando uma empreitada pelo reconhecimento territorial e da tradi-
ção Pankararu. As sementes [políticas], carregavam por garantia, (mesmo que não soubes-
sem ler), um documento timbrado que legitimava sua patente e sua autoridade lhes dando
voz e visibilidade aonde fossem apresentadas por estarem outorgada com brasão dum órgão
correspondente do Governo brasileiro.
Mais tarde as preocupações de Carlos Estevão, foram registradas em seus escritos e
publicada pelo boletim do Museu Nacional anos depois de sua palestra no Instituto Histórico
Arqueológico Pernambucano, na cidade de Recife (PE), com um tom de denúncia e apelo
para as autoridades superiores de Pernambuco e aqueles que estavam a Serviço de Proteção

31
Antes de ter recebido a patente de Pajé, na comunidade o véi Joaquim Serafim era conhecido como Sarapó.
Sarapó foi um “apelido”, pois seu pai, o velho Serafim Gomes de Sá, era conhecido como véi Sará. Ambos
atuaram como curandeiros (Pajés).
32
A expressão a “nível de governo” foi empregada pelos Pankararu, daquela época, ao Cacique por ele ser uma
autoridade reconhecida dentro e fora da comunidade indígena pelo Governo e por exercer uma atuação seme-
lhante e reconhecimento dos funcionários do SPI.
33
Chamado de cientista, “homem de letra” e ainda “homem de lei”.

54
aos Índios – SPI, para que se mobilizassem contra as ameaças que se abatiam sobre os Al-
deamentos Indígenas nos sertões nordestinos. Uma não ação do órgão indigenista oficial
poderia implicar profundamente na extinção das práticas rituais, como também na ameaça à
própria sobrevivência dos indígenas nordestinos. A reorganização de caráter político do Al-
deamento Indígena Pankararu, por parte do investigador, possibilitou a entrada e atuação do
SPI, tendo como sede o Posto Indígena. Os postos indígenas ao mesmo tempo que tutelavam
os indígenas numa empreitada nacionalista, atuavam, em parte, como repelente às ameaças
que cercavam as áreas de Pankararu.
Como instituição, o SPI teve um papel fundamental ao instalar postos indígenas nas
comunidades autóctones nordestinas, o que possibilitou uma ação administrativa em conso-
nância com os indígenas. Tal relação, entre o órgão indigenista e índios, apresentava uma
aparência exterior como uma instituição protetora, mas na realidade também intermediava
outras relações entre índios e não índios. Algumas vezes os defendeu, outras se omitiu ou
até apoiou os poderosos, permitindo que realizassem seus projetos quanto à terra. Como
abordado e debatido por Oliveira (1988), a tutela tem uma atuação ambígua nas relações que
se estabelece com índios e não índios, chamando atenção para os “contextos de antagonismo
e de cooperação” (Oliveira, 1988. pp. 222) já que os agentes tinham seus códigos de conduta,
suas ideologias dominantes distintas das de Carlos Estevão.
Segundo relatos dos atuais Zeladores que alcançaram o início daquela atuação, a im-
pressão deixada naquelas décadas e que se mantiveram em suas lembranças, fora apenas
uma: a do órgão assistencialista, protecionista e apaziguador. Talvez a relação positiva esta-
belecida entre Carlos Estevão e os indígenas, tenha estendido tal sentimento ao órgão indi-
genista oficial. Segundo Caboca, seu pai Narciso Pedro, dizia: “pai nos falava que dr. Carlos,
era um homem viajado que havia visitado muitas tribos pelo Brasil. Afirmava ser índio de
coração, que ele [Carlos Estevão] dizia: ‘tá vendo esse cabelo, olhos e pele de cor claras,
mas meu coração é todo de índio’”. Claramente sua “preocupação” em estabelecer garantias
para o povo Pankararu se reproduzirem culturalmente foram levadas em consideração pelas
sementes políticas da comunidade.
Após a construção do conjunto administrativo, muitos indígenas começaram a traba-
lhar para o chefe de posto em serviços braçais, tais como, limpar as roças, cuidar dos gados,
buscar água, cultivar e moer cana-de-açúcar no engenho do posto. Estes indígenas eram tidos
como “puxa saco” pelas atividades prestadas ao chefe de posto. Aqueles que desenvolviam

55
tais atividades ganhavam terras, benfeitorias, se destacando economicamente, o que causava
um certo desconforto e até mesmo atrito entre os próprios indígenas daquela época.
Entre os anos de 1940 – 42, o SPI instalou um conjunto administrativo (tutelar) for-
mado por um Posto Indígena, que ficou conhecido como PIN – Pankararu, uma escola, uma
enfermaria e um armazém na Aldeia Brejo dos Padres, por ser a aldeia central em relação a
todo território indígena. Na aldeia Brejo dos Padres residem a maioria de Zeladores de Tonã
e os principais Terreiros, ali ocorrendo, portanto, a concentração das famílias do Tronco
Velho. – Posteriormente o território Pankararu foi dividido em duas Terras Indígenas demar-
cadas e homologadas, em períodos distintos, a primeira (TI Pankararu), na final da década
de 1980 e a segunda (TI Entre-Serras (de Pankararu)), homologada nos anos iniciais do sé-
culo XXI.

Figura 8. Conjunto administrativo do SPI na Aldeia Brejo do Padres, TI Pankararu. Fonte: NEPE/UFPE.

Organização social e política Pankararu

56
A organização social e política Pankararu apresentada a seguir tem como base minhas
observações a partir das informações coletadas em campo. O esquema da figura nove é ba-
seado nas entrevistas com os atuais Zeladores de Tonã, – das narrativas que ouviram dos
seus familiares quando criança, antes da instalação do Posto Indígena Pankararu e da atuação
do SPI. O Aldeamento Pankararu era encabeçado pelos mais experientes, ou como eles di-
zem “os mais seguros”, os chefes de cada Tronco familiar, são eles, Maria Pedro, Maria Calú
e o véi Sará, que junto aos missionários religiosos pelejavam e atuavam com as autoridades
locais e de governo para manterem-se na légua em quadro praticando suas tradições locais.

Governo

Missionários (padres)

Zeladores de Tonã

Famílias Pankararu

Comunidade

Figura 9. Esquema duma organização sociopolítica da comunidade Pankararu antes do SPI.

Sob o regime tutelar do SPI, o chefe de posto, autoridade e representante administra-


tivo do Posto Indígena, atendia as demandas da comunidade com a mediação das três se-
mentes [políticas] e dos Zeladores de Tonã que eram representantes de suas famílias e se
reportavam as Sementes tradicionais, mantendo uma certa hierarquia, seguindo uma ordem,
como mostra a figura a seguir.

57
Governo

Chefe de posto

Sementes tradicionais

Zeladores de Tonã

Famílias Pankararu
Comunidade

Figura 10. Esquema duma organização política da Comunidade Pankararu, durante o SPI.

A organização política (Cacique, Pajé e Capitão), implantada pelo investigador na


comunidade indígena em meado da terceira década do século XX, se mantém até os dias
atuais. Cada uma dessas três sementes políticas desempenhou uma tarefa específica atribuída
pela tríade de líderes Pankararu e por Carlos Estevão (como descrito na citação da pág. 72).
A atuação daquelas líderes políticos teve início na década de 1940 até os anos de 1970.
Desde então as novas gerações de lideranças ampliaram a organização e atuação dessa es-
trutura formando dois grupos, o Conselho Tribal, composto apenas por “pais e mães de
praiá” – Zeladores de Tonã e o “Conselho Jovem”. O Conselho Tribal foi desenvolvido nos
anos iniciais década de 1970 a 80 pelos próprios Pankararu por incentivo do chefe de posto
daquela década. Tal Conselho teve como principal papel dar continuidade às caminhadas
das primeiras lideranças (as sementes políticas) ampliando a reivindicação de um território
junto a outras mobilizações coletivas que se formavam nos anos finais da mesma década de
1980. E por último, recentemente em meados de 1990, os indígenas jovens formam o “Con-
selho Jovem”, integrado por jovens indígenas que estudam e/ou trabalham com o objetivo
de manterem uma certa ordenação e representatividade nas diferentes áreas, tais como, fun-
diárias, tradicionais, de educação e de saúde nas Terras Indígenas de Pankararu. O “Conselho
Jovem” teve o mesmo propósito do Conselho Tribal, de dar continuidade a caminhada polí-
tica dos mais velhos. Com uma atuação, uma mobilização mais “politizada” e autônoma

58
podendo estabelecer comunicações nos mais variados contextos, utilizando suas próprias
falas. Diferente de seus predecessores que precisavam de assessores técnicos para as reivin-
dicações.
Na organização atual o Conselho tribal e “Conselho Jovem” participam das tomadas
de decisões, tanto na organização social e política, quanto nas tradições, diferindo da orga-
nização anterior em que os Zeladores de Tonã não formavam um grupo consolidado.

O tempo-bom

A família Pedro é uma das famílias extensas do Tronco Velho Pankararu, considerada
uma das famílias fundadoras da Árvore Pankararu. Segundo os integrantes das famílias da
comunidade naquele tempo viviam apenas de caças, pescas, das frutas da estação, das co-
lheitas de sua agricultura de subsistência e dos comércios nas cidades vizinhas. Caboca e
Inocêncio, relatam que seu pai sempre devia sair para caçar junto ao seu primeiro filho, pois
tinha mais sete para dar de comer. Porem nem sempre ele retornava com alguma caça por
ser uma época de mingua. Já Maria Bernadina, sua mãe saía de quinze em quinze dias com
seu jumento, na busca de alimentos nas cidades vizinhas, entre elas, Petrolândia Velha, Bar-
reira, Tacaicó e Tacaratu. Por dia ela percorria bem mais de dez léguas. Ao chegar no fim
de tarde seus filhos iam de encontro a ela para ajudá-la a carregar as doações que havia
ganhado em sua caminhada. Com o chegar da noite todos comiam o que tivesse e, logo
preparavam suas camas para dormirem. As camas das crianças eram feitas de palhas de licurí
estiradas no chão. Já a cama de seus pais era feita com sacos de pano preenchidos com folhas
secas de bananeiras suspensa por seis forquilhas. Suas ocas – casas, eram construídas de
barro e cobertas com palhas de licurí, outras com telhas de barro de fabricação caseira.
Naquele tempo cada família desempenhava uma habilidade de confecção, por exem-
plo, os Calú e Pedro com palhas de licurí confeccionavam vassouras, tapetes, cestos, abanos
entre outros objetos; e os Chulé, com o manuseio do barro faziam olarias de cerâmica, tais
como, potes, moringas, pratos, tachos (panelas) e telhas. Os casamentos entre as famílias
aumentaram os fluxos de trocas e experiências ampliando a produção desses objetos. As
demais famílias também desempenhavam suas produções próprias, algumas fiavam algodão
e produziam goma de mandioca, entre outras práticas.

59
Eram poucos indígenas que trabalhavam na roça naquela época por diversos agra-
vantes. Os maiores fatores foram apontados pelos interlocutores. O primeiro agravante foi
marcado pelo longo período de estiagem, consequentemente deixou largas estações impro-
dutivas. Para aqueles que plantavam em épocas propícias, por não se saber ao certo se o
plantio daria resultado, era plantado junto as sementes e manivas (de mandioca) suas espe-
ranças. O segundo agravante foram as invasões por coronéis e pequenos fazendeiros que
expandiram seus pastos (inclusive mais tarde em meados da década de 1940, haviam grandes
áreas da aldeia ocupadas por gados do SPI, sob os cuidados de indígenas a mando do chefe
do PIN – Pankararu) essas ações impossibilitavam a própria agricultura, caça ou coleta dos
indígenas em suas terras. Naquele tempo tudo era regulado. De um lado a seca, doutro os
interesses econômicos e políticos a fim de ampliar “suas” propriedades em meio às terras
férteis na área dos indígenas.
A maioria dos indígenas era de caçadores e coletores. Alguns indígenas se aventura-
vam em viagens para estados vizinhos para trabalharem em fazendas na coleta de café, corte
de cana ou mesmo nos trabalhos de cuidados de animais, bois, cavalos, porcos e cuidando
de pastos.
Para aqueles que ficavam no Aldeamento Indígena seus alimentos eram a pinha as-
sada, xiquexique-do-sertão, facheiro; semente de mucunã34, maniçoba, batata-de-porco –,
com esses faziam o bró, espécie de beiju —, a quixiba35 (massa da mandioca) era lavada a
sete águas, a mucunã era lavada com nove águas para expelirem seus venenos.
As diversas investidas dos grandes empreendimentos governamentais e de fazendei-
ros contribuíram intensamente para o apagamento de algumas atividades dos indígenas. An-
tes das investidas várias foram as formas que os indígenas habitavam os locais às margens
da região do rio São Francisco para se manterem firmes e cultuando seus costumes, sua
tradição. Com a implantação das ferrovias e posteriormente a construção das Usinas Hidro-
elétricas de Itaparica (PE) e de Paulo Afonso (BA), sobretudo, com as instalações de cantei-
ros de obras dos trabalhadores, resultou na extinção da cachoeira sagrada e dos rituais de
encantamento, no século XX. O tempo de largas estiagens, de seca, não regulava ou mesmo
tivera enfraquecido as práticas rituais daqueles índios sertanejos. Isso porque existiam ele-

34
Também conhecido popularmente com olho-de-boi, feijão-da-florida, entre outros. A semente da mucunã é
partida e feita a farofa nutritiva.
35
A quixiba é feita da mão de puera (líquido extraído da prensagem da mandioca ralada) de um tipo específico
de mandioca, após o preparo torna-se uma bebida extremamente adocicada.

60
mentos naturais de sua época que auxiliavam aqueles indígenas em suas obrigações tradici-
onais. Diferente da construção do empreendimento que extinguiu o ritual de encantamento
realizado antigamente na cachoeira sagrada pelos indígenas Pankararu.
A primeira vez que ouvi a expressão tempo-bom foi numa conversa com Caboca.
Depois que percebi a utilização frequente do termo pelos Zeladores de Tonã durante minhas
entrevistas, dei atenção a essa expressão, o que despertou e atiçou uma certa curiosidade.
Então, fui guardando os momentos que eles usavam o termo na esperança de entender melhor
essa expressão recorrente, pois sempre que resgatavam lembranças de suas vivências, eles
usavam tal expressão para finalizá-las. Depois de ouvir uma segunda vez esse termo pelos
mesmos interlocutores, em diferentes situações, comecei a compreender a referência que os
Zeladores fazem ao termo tempo-bom. Tal termo não foi só um tempo marcado pela chuva,
com uma fartura de alimentos e brincadeiras tradicionais, pois o tempo-bom foi marcado
pela seca, pela escassez de alimentos, pela caça que não se capturava para se manterem nu-
tridos. Aquele período foi predominado pelas amarguras. Tendo como o principal alimento
sua fé. Contudo, era um tempo de decoro com o sagrado, o que fazia ser um tempo-sadio, de
disciplina. Se os Zeladores, ou qualquer outra pessoa conversasse com o “vento” ou uma
“árvore” não era visto como louco. Ao ver um parente indígena conversando sozinho tam-
bém não pressuporia de que estivesse doente. Pois aquele indígena estava se apegando (pe-
dindo) a Natureza.
Quando perguntei para alguns dos Zeladores que entrevistei sobre o que eles acha-
vam dos dias de hoje, se comparássemos com aquele tempo-bom, – muitos consideraram que
vivemos num bom tempo, no entanto doente, por ser um tempo-hostil às nossas tradições e
completam com o comentário: “mas, a gente colhe o que se planta”.
No tempo-bom a tradição da família Pedro era organizada e manobrada pela Zeladora
de Tonã e Cantadeira Maria Pedro. Ela recebeu a ordem de Zeladora de Capitão Dandaruré,
sendo o seu Terreiro também, conhecido como Terreiro de Sábado de Aleluia. Por ser mu-
lher de ciência, de fibra, foi conhecida e respeitada pela sua atuação na comunidade e região,
pois por ser ligada às tradições, local e católica, muitos a procuravam para tratamentos de
curas e rezas, vivendo como uma grande líder espiritual. Em troca recebia alguns agrados.
Maria Pedro tornou-se conhecida como Mulher de Ciência por executar em seu cír-
culo mágico-religioso diversas atividades que conectam a terra aos astros. Usando métodos
que se manifestam através dos representantes da terra (animais e plantas) e dos astros (luz e
estrelas), isto é, apanhando a noção transmitida pelos Encantados, podia utilizar os seus dons

61
e desenvolver “sua” Ciência Pankararu. – Não há registros anteriores que explorem como
era o tempo-bom de seus pais. A única memória dos pais de Maria Pedro que obtive, foi
lembrança distante de Inocêncio (seu primeiro neto) o qual contou ter uma lembrança lon-
gínqua de sua bisavó e bisavô paternos ao dizer:

“Naquele tempo as coisas eram do jeito que Deus e Eles queriam. Eram como Eles
dissessem; o que tinha que ser, era! E outra, menino não podia chegar perto e nem
ouvir o que os mais velhos conversavam. Bastavam passar um rabo de olho. Por isso
que foram poucos os momentos que tive com eles [bisavôs]. E meu pai não falava
muito de seus avós, apenas diziam que nossa tradição já vinha dos mais véi [dos avós
dele] para trás. Bem assim, foi de minha avó [Maria Pedro]. Não me disse nada
mesmo!”. Inocêncio, 2018.

Segundo Inocêncio, essa memória é de seus sete ou nove anos de idade. Ele lembra
vagamente de seus bisavôs maternos por terem vivido na aldeia, diferente dos bisavôs de seu
avô, que são de Serra Negra. Os outros dois entrevistados, filhos de Narciso Pedro, afirmam
que esse ritual praticado no Terreiro de Sábado de Aleluia, já vem dos pais de Maria Pedro
“pra trás”, assim repassam os mais velhos de sua família. É importante pontuar que fora
Maria Pedro que intensificou a relação com alguns Encantados de seu Tronco. Deixando a
herança, ou como se diz deixando a ordem dessas atividades religiosas e os quatro Mistérios
para as próximas gerações da família Pedro, a qual ficará responsável por zelá-los. Como é
feito desde que se tem alcançado as práticas dos mais velhos.
É da tradição dos antigos o tabu para as crianças não se sentarem próximo dos Zela-
dores mais velhos em períodos rituais, até mesmo as mulheres em relação aos homens. Da
mesma forma que, quando as mulheres se reúnem para conversarem, os homens tendem a
manterem-se distantes. Para criança, mulheres e homens manterem-se distantes em momen-
tos de atividades rituais é considerado, por grande parte, uma obrigação.
Quando Maria Pedro mudou de mundo, Narciso Pedro recebeu a ordem de sua mãe
para dar continuidade ao serviço, e de sustentar tradicionalmente os rituais praticados pela
sua família com auxílio de seus irmãos. Mas, antes dele ser a cabeça espiritual da família
Pedro, ele já trilhava o caminho como Cacique Pankararu. O que fez ocupar duas posições
de prestígio.

62
A trajetória de Narciso Pedro como sucessor de Maria Pedro e de Francisco Carapina
entre sua família (como muitos dizem) já estava escrita nos astros, pois “tudo é como Deus
e Eles, [os Encantados], querem!”. Narciso Pedro e seus três irmãos, Joaquim Pedro, Hen-
rique Pedro e Badú Pedro, foram criados às margens do primeiro Terreiro de Capitão (Mes-
tre) Dandaruré, cravado entre uma quixabeira e um imbuzeiro – duas das três árvores sagra-
das36 para os Pankararu. Ele e seus irmãos viviam nas condições dadas pelo tempo-bom, que
não excluía as amarguras como já foi descrito a cima. Por terem vividos naquele tempo, estes
herdaram diretamente grande parte da Ciência Pankararu manuseadas por seus pais. Lhes
restando apenas desenvolvê-la quando e conforme fosse a vontade dos Encantados do
Tronco Pedro. Desde então continua-se a fazer o ritual de vigília de Páscoa em seu Terreiro
pelos seus filhos. Os quais dão sequência às atividades deixadas por seu pai Narciso Pedro,
e avós.
Atualmente, Caboca é a cabeceira do Terreiro de Capitão Dandaruré e, Zeladora,
junto aos seus irmãos, dos seis Mistérios que outrora foram zelados por sua bisavó, sua avó
e seu pai o qual lhe entregou a ordem dois dias antes de mudar de mundo. Nas atividades
rituais que só podem ser praticadas por homens, como o poró, Zé Auto fica na cabeceira,
seguido por seus irmãos.
Nos assuntos exclusivos sobre os Mistérios de Pankararu entre os Zeladores de Tonã,
meninos e mulheres37 não podiam chegar nem perto dos velhos Zeladores quando esses da-
vam início aos seus rituais e, principalmente quando marchavam rumo ao poró38. Pois, há
momentos únicos e especiais para os Zeladores que estão no ponto. Esse tabu é imposto pela
tradição e sustentado pelos Zeladores e líderes religiosos para autoproteção do conhecimento
praticados por eles, como também, para proteger aqueles que não se encontram preparados
para suportar as forças que ali se encontram e ficam na espera de um momento para fugirem.
As crianças e, sobretudo, mulheres que não fazem parte do círculo ritual mais restrito no
poró, estão numa mesma categoria, estas ficam vulneráveis aos possíveis ataques e assom-
bros até os dias de hoje. São vários os tabus que existem acerca dos Mistérios (e elementos
rituais) em nossa Aldeia Indígena.

36
As três árvores sagradas (Quixabeira, Juremeira e Imbuzeiro) são de grande importância para todos que
trabalham com a Ciência Pankararu.
37
Mulheres Zeladoras de Tonã podem participar de atividades desde que não sejam praticadas no poró.
38
Local arrudiado de palhas, exclusivo para zeladores e moços de praiás/ Tonã executarem suas atividades
mais resguardada. Os poró sempre ficam à sombra de alguma árvore da caatinga, tais como imbuzeiro, quixa-
beira ou cajueiro.

63
As últimas memórias vivas de Zeladores de Tonã que tiveram parte de suas infâncias
e da fase adulta naquele tempo-bom contam que não era nada fácil. Dum lado ao outro eram
um deserto, só se via mata. A mata sempre governada pelos encantos bons e ruins. Haviam
várias experimentações por toda parte, o “caba” (a pessoa) devia estar minimamente em
resguardo para não ser apanhando, nem flechado facilmente pelos espíritos da natureza, ou
mesmo pelos Encantados que praticam a força contrária. Aqueles que fossem apanhados, ou
“flechados” pelos espíritos, os parentes deviam levar o sujeito doente a uma curandeira, Pajé
ou Cacique. Se esses não pudessem dar jeito na situação, (coisa que era quase impossível)
pediam para uma das três Marias, ou ao velho Serafim que intercedesse na causa. Os melho-
res momentos de aprendizados são também aqueles das horas aperreadas.
Naquele tempo-bom as principais famílias eram representadas pelos líderes Maria
Pedro, Maria Calú, Maria Chulé e o véi Sará. Os líderes das famílias eram bem relacionados
e influenciavam-se mutuamente em diversas questões da comunidade, um sempre auxiliando
o outro em diferentes momentos. As famílias por terem boas relações desenvolveram um
círculo ritual estreito, de decoro com o sagrado, tradicional e católico, pois suas alianças
eram para suspender (levantar) e manter a tradição do Aldeamento Indígena Pankararu.
As tarefas rituais foram bem executadas pelas primeiras lideranças e posteriormente
foram seguidas à risca pelas três sementes políticas, Narciso Pedro (Cacique), Joaquim Se-
rafim (Pajé) e João Moreno (Capitão)39, junto aos demais Zeladores. As três sementes foram
um pouco mais além das primeiras lideranças que os precederam por atuarem como prota-
gonistas políticos representando os Pankararu nos campos externos, e ao mesmo tempo, elas
tinham de manter suas funções internas, da ordem de suas famílias e dos circuitos rituais.
Portanto seguindo uma orientação do “homem de lei”, o Cacique Narciso Pedro e o Capitão
João Moreno, junto a outros parentes indígenas deveriam fazer as caminhadas políticas, en-
quanto o Pajé (o véi Sarapó), deveria ficar e acompanhar os circuitos rituais junto aos demais
Zeladores de Tonã na comunidade.
Cada semente representou seu Tronco familiar dando continuidade às tarefas de suas
famílias, e ao passo que lutavam pelos reconhecimentos, étnicos e fundiários, foram tor-
nando-se chefes da Aldeia Pankararu, pelo empenho dedicado aos diferentes elementos e

39
Narciso Pedro, Joaquim Serafim e João Moreno, foram as primeiras sementes políticas de Pankararu, esco-
lhidas por Carlos Estevão e a tríade de lideranças (Maria Pedro, Maria Calú e o véi Serafim). Cada semente
teve sua patente com uma função específica (de Cacique, Pajé e Capitão) para que seguissem com as atividades
rituais de seu Tronco familiar somadas as novas atividades políticas na luta pela terra e o reconhecimento
étnico.

64
atividades tradicionais existentes na comunidade. Por suas atuações foram considerados os
primeiros e únicos líderes de Pankararu. Ou como os Zeladores dizem: “foram guerreiros e
heróis, por enfrentar os desafios e batalhas entre os dois mundos”40 para manter as relações
da Aldeia Indígena em equilíbrio e ordem.
Todo circuito ritual tem seu Zelador responsável, por mais coletivo que seja, pois em
algumas obrigações durante o ritual exigem habilidade singular do responsável. Os demais
protagonistas e espectadores dos rituais também contribuem para que o ritual siga num bom
curso, caso o responsável deixe escapar algo ou não possa conduzir.
No tempo-bom eram as Zeladoras cantadeiras que tinham exclusivamente a tarefa
de zelar os Mistérios e cantar nos Terreiros, eram elas que manobravam as festas-rituais
públicas. Já o poró é exclusivamente de orientação masculina, comandado por um Zelador,
que geralmente é chefe do Tronco familiar.
Os líderes daquele tempo-bom tinham de saber transitar e lidar com os diferentes
planos existentes entre os Pankararu. Por vivermos nesse ambiente, cada semente se torna
um ponto fixo pois elas representam elos de conexões entre os seres que habitam os espaços
sagrados o mundo espiritual e o nosso mundo material. Os atuais Zeladores de Tonã acredi-
tam que as primeiras patentes políticas foram ocupadas por via da Ciência Pankararu,
mesmo que cada uma delas tenha sido “assegurada” pelo “homem de lei”, ao lhe definirem
como Cacique, Pajé e Capitão. Pois vivemos num mundo que lida com diferentes planos,
forças, que têm seus próprios modos de reagir, as ações assim se mantem em sintonia numa
cosmologia política dos Pankararu.

Circuitos tradicionais

Os círculos rituais são praticados pelas famílias de Pankararu, antes da atuação e da


reorganização política feita pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Cada atividade ritual
tem sua especificidade, isto é, tem maneira própria de praticá-la, no entanto, ela se conecta
aos demais circuitos rituais durante sua realização, seja católica ou não –, existem casos em
que se conecte aos dois. O que pode dar a impressão, num primeiro momento que são cir-
cuitos rituais singulares sem relações.

40
As batalhas entre os dois mundos eram, de um lado os espíritos da natureza, Encantados, e doutro humanos
que vivem nas terras indígenas invadidas por coronéis, fazendeiros e o Governo.

65
Em parte, as extensões das atividades rituais entre os Pankararu já eram intensifica-
ções de contatos com outros povos, religiosos e indígenas, carregados de seus costumes. E
que vieram a somar-se às atividades do Aldeamento Indígena em diferentes situações. Con-
sequentemente, houve um estreitamento dos circuitos rituais devido às expedições de colo-
nização, nas margens dos rios São Francisco, Pajeú, entre outras regiões dos sertões nordes-
tinos e, por último, o ato imperial que impôs a extinção de aldeamentos indígenas, que teve
início na legislação de 1850 (a Lei 601) e foi concluído em 1878.
Segundo relatos etnográficos41, aqueles Pankararu em conjunto com grupos indíge-
nas provenientes de lugares distintos, a maioria oriundos de Serra Negra – PE, outros de
Brejo do Burgo – BA, entraram em contato e uniram suas esperanças, costumes e cultos a
diferentes entidades estabelecendo conexões entre suas práticas rituais. É importante enfati-
zar que vários povos indígenas faziam suas viagens em ciclos rituais e em movimentos di-
aspóricos de fuga em razão de diferentes fatores, tais como, climáticos, reuniões familiares,
por peregrinações religiosas, mas eram as perseguições de bandeirantes e jagunços a mando
de fazendeiros que geravam maiores os deslocamentos das populações autóctones.
Os Pankararu, tinham suas peregrinações messiânicas manobradas pelo velho Sera-
fim, vindo de Curral dos Bois, também conhecida como Brejo do Burgo, atual (Santo Antô-
nio da) Glória – BA, com seu destino a aldeia Brejo dos Padres. Em tempos difíceis, alguns
saíam de Brejo dos Padres para outros locais, tais como, Inajá, Águas Belas, São Paulo,
Minas Gerais entre outros locais. Mas sempre a preferência por parte dos grupos que deixa-
vam o Tronco Velho eram os locais próximos às margens do São Francisco à procura de
tranquilidade e de locais favoráveis para cultivar suas lavouras de subsistência.
Entre os Pankararu já havia um circuito ritual mais largo devido as influências cató-
licas e de escravos fugidos de fazendas da região, com suas práticas rituais e cultos distintos,
sendo isso anterior ao ato imperial. Relatos escritos por missionários descrevem que por
influências das primeiras missões católicas jesuíticas em 1650 foram criados os primeiros
aldeamentos na região do São Francisco (ARRUTI, 1996). Essas atividades rituais regula-
vam o comportamento social desse grupo indígena, tendo como referências centrais as prin-
cipais famílias, denominadas como Troncos, cada uma mais empenhada a determinada ati-
vidade ritual que outras. É importante destacar que entre os Pankararu sempre foi uma adição

41
Para mais informações dos fluxos e arranjos interétnico consultar Estevão, 1945; Pinto, 1952; e Arruti,1996.

66
de atividades rituais vindos de outros segmentos culturais, tais como, religiosos católicos,
sertanejos e de escravos.
Um exemplo dessa fusão de povos de outros locais nos rituais, segundo Zé Auto, foi
o caso de seu avô Francisco Carapina, oriundo de Serra Negra, pai de Narciso Pedro, numa
leva de indígenas trazidos através de “correrias” e organizadas pelos missionários nos anos
finais do século XIX. Ao chegar na aldeia Brejo dos Padres conheceu Maria Pedro nos cir-
cuitos rituais que participou (ele também por ser índio, tinha “seus” praiás que trouxe para
o Brejo dos Padres). Ele demonstrou ter conhecimento e experiência com determinadas ati-
vidades rituais semelhantes aos Pankararu. Após se arranjar na aldeia, anos depois casou-se
com Maria Pedro, ficando responsável pela organização e atuação dos moços de praiá, no
poró do Terreiro de Capitão Dandaruré. Caboca diz que: “o Terreiro dos Pedro era de Maria
Pedro, era ela que manobrava, dava o comando para os trabalhadores dela [os moços de
praiá no Terreiro]. Já no poró tinha o marido dela, e lá era ele que comandava”.
Os circuitos rituais da Aldeia Indígena Pankararu seguem dois calendários. O pri-
meiro que chamamos de tradicional e o segundo que dividem datas das festividades e co-
memorações católicas e nacionais. O calendário local Pankararu se inicia com A festa do
Imbu, entre os meses de outubro e novembro. Esse ciclo ritual é dividido nas seguintes ati-
vidades, Flechamento de imbú, Puxamento de Cipó, Os Passos, As Corridas de imbú e Quei-
mada de Cansanção, com seu encerramento no Terreiro do General Mestre Guia, na aldeia
Serrinha, até então o Terreiro era zelado por Joaquim Serafim, o primeiro Pajé de Pankararu.
Para outras informações sobre A festa do Imbú ver a seguir na narrativa de Firmina Calú.
Após finalizada as Corridas de imbú, depois do carnaval, inicia-se a Quarta-Feira de
cinza, momento que dá sequência ao período dos rituais católicos, durante sete quartas-feiras
e sete sextas-feiras, as beatas andam (a maior parte) pelo dia e os penitentes sempre andam
pela noite percorrendo pontos específicos nas aldeias de Pankararu, tais como, cruzeiros e
igrejas, rezando a noite toda pedindo e rogando proteção, paz e harmonia às entidades espi-
rituais e santos que estão presentes e são recorridos em nossa vida comunitária. O encerra-
mento da quaresma ainda é realizado pela dança de praiás (Tonã) no Terreiro de Sábado de
Aleluia, tempo de vigília anterior ao Domingo de Páscoa. Atualmente esse ritual é mano-
brado por Caboca e seus irmãos, os filhos do véi Narciso Pedro42.

42
Um outro ponto importante é que o véi Narciso Pedro não colocava seus Tonã em outros terreiros. Eles só
dançavam em ano-e-ano no Terreiro de Mestre Capitão Dandaruré. Manobrando por ele mesmo. Ou quando
aparecia uma promessa para ser paga naquele terreiro como era feito no tempo de sua mãe, Maria Pedro.

67
Em meio a tantos desafios impostos pelo tempo-bom, os indígenas sertanejos também
tinham de se policiar ao realizar seus circuitos rituais, devido às ameaças que se montavam
por parte daqueles que demonstravam interesses econômicos, políticos cheios de arrogância
com aqueles que impediam as tentativas de expansão de terras. As principais investidas eram
de coronéis e fazendeiros das cidades de Tacaratu e Petrolândia.
Há famílias ou membros que praticam as duas Tradições, como o caso de minha
família e meu próprio. Alguns não participam por existir limites, regras, tabus a serem se-
guidos. Como eles dizem: “há o momento certo para tudo”, pois são atividades que exigem
dedicação e preparo.

Conexões parciais

Do final do século XVIII até meados do século XX, nas margens do Aldeamento
Indígena vieram juntar-se a famílias de camponeses, que auxiliaram desde o descimento dos
Panka(ra)ru, vindos das Serras de Tacaratu e Tacaicó, unidos com os povos oriundos de
Serra Negra, Brejo do Burgo (Glória) – BA, entre outros grupos das regiões que percorre o
rio São Francisco. Muitos povos se concentram na “légua em quadro” delimitada numa área
de 14.290 ha, por obras de missionários religiosos. Alguns camponeses estabeleceram ali-
anças com os indígenas por estarem em situações semelhantes, a de expropriação de suas
propriedades por parte de fazendeiros. Os camponeses por residirem em território indígena
pagavam renda aos missionários; além de participarem de pequenas celebrações católicas
proferidas pelos padres. Os personagens principais eram os líderes religiosos e espirituais
que se organizavam para manterem seus rituais, não confrontando os fazendeiros e coronéis,
os quais sempre estavam carregados de arengas e afrontas aos indígenas e seus simpatizan-
tes. Os líderes religiosos geralmente eram aqueles que zelavam as capelas, ou igreja em suas
comunidades. No mais, havia fazendeiros que buscavam cativar os indígenas para que tra-
balhassem em suas propriedades cultivando e pastoreando seus animais. Em troca, os indí-
genas ganhavam a meia (metade) de algumas safras de feijão e milho, pequeno “pedaço” de
terra ou mesmo as crias (filhotes) de vacas, porcos ou cabras pelo serviço prestado.
“Dizem os mais velhos” que na época em que foram iniciadas as intrusões na Área
Indígena os grandes agricultores chegaram a colocar arsênico em algumas árvores que os
indígenas usavam para consumo, como por exemplo, nos licurí, com o objetivo de envenenar

68
os indígenas que usavam aqueles frutos para fazer o bró para seus rituais, principalmente na
semana santa no preparo dos beijus. Alguns indígenas se envenenaram, felizmente nenhum
faleceu, mas, houve pessoas que ficaram aleijadas com tal ação.
Depois dessa investida maldosa, os indígenas tomaram receio de apanhar frutos para
realizar suas atividades rituais em áreas próximas as fazendas vizinhas das aldeias indígenas.
Os padres denunciavam as ações dos fazendeiros às autoridades regionais, mas não tinham
resposta. Por sua parte os fazendeiros alegavam que os índios eram desleixados, preguiçosos
e lhes roubavam seus bodes, carneiros e em época de safras lhes saqueavam as plantações.
Sob essas alegações faziam suas malfeitorias contra a população indígena, segundo eles,
eram para protegerem suas propriedades dos bugres.
Os circuitos rituais dos Pankararu, foram constituídos e mediados por diferentes ex-
tensões religiosas mantendo a prática local. Mesmo que se coloque cada circuito numa co-
luna separada as conexões entre elas estarão presentes. O importante é que existe uma auto-
manutenção gerenciada pelos Zeladores e líderes religiosos da Tradição existente entre os
Pankararu. Mesmo que em determinados períodos um ritual seja predominante, por ser o
único praticado em seu calendário, não há impedimentos para a realização de rituais meno-
res, desde que haja uma alternância com o próximo, garantindo um equilíbrio entre os cir-
cuitos rituais. Tais práticas se fazem necessárias, pois são complementares e fundamentais
para dar manutenção do Sagrado em nossa comunidade indígena.
É importante pontuar que a tradição católica aproximou alguns camponeses que fa-
zem fronteiras com a aldeias indígenas Pankararu, ambos participam de celebrações e demais
rituais católicos, criando laços de amizades entre famílias que atravessaram décadas. Narciso
Pedro, como líder espiritual e penitente, estabeleceu diferentes contatos com os camponeses
não indígenas durantes as décadas que acompanhou a Santa Cruz.
Narciso Pedro, Cacique Pankararu

Semeando as três sementes de Pankararu

69
Figura 11. Crianças, Maria Pedro, véi Serafim e Maria Calú. Imagem: Carlos Estevão de Oliveira. 1935 - 7. Fonte: CMTVP.

A figura a cima foi capturada pela “roleflex” de Carlos Estevão de Oliveira. Nela
estão três crianças com Maria Pedro; o velho Serafim (conhecido como o véi Sará) e Maria
Calú. Aquela tríade é constituída por personagens importantes para os Pankararu contempo-
râneos, embora, atualmente a maioria de suas atuações sejam desconhecidas pelas novas
gerações do presente século. As duas Marias estão empunhando suas marcas (maracás). Por
serem mulheres de prestígio e de vasto conhecimento, tinham grande influência na vida so-
cial, política e religiosa para com seus seguidores. Ao centro segurando um bastão entre suas
pernas está o velho Serafim, segundo Estevão de Oliveira “chefe” da aldeia. O véi Sará foi

70
responsável pelo movimento messiânico dos Pankararu vindos de Curral dos Bois, atual
(Santo Antônio da) Glória, município da Bahia, para o aldeamento indígena Pankararu, na
aldeia Brejo dos Padres. Cada um desse três personagens desempenharam seu papel de líder
religioso até onde alcançou do tempo-bom. Os indígenas do tempo-sadio em sua maioria
deslocavam-se intensamente tendo alguns locais fixos para encontros rituais e de descanso
durante suas movimentações messiânicas pelos estados do Nordeste.
Nos anos de 1935 a 1937, Carlos Estevão de Oliveira, realizou suas investigações
etnográficas no Nordeste entre os estados de Pernambuco, Bahia e Alagoas. “Com este pro-
pósito, em princípio de 1935, visitei os ‘Pancararús’, do Brejo-dos-Padres, em Tacaratú, e
os ‘Fulniôs’, de Águas-Belas” (Oliveira, pp. 156. 1942). Em sua visita aos Pankararu43, Car-
los Estevão alcançou os rituais das corridas de imbú, Menino do Rancho e atividades da
penitência no Tempo de Quaresma. Ao presenciar ambos circuitos rituais, tradicional e ca-
tólico, posteriormente fez algumas observações e estabeleceu semelhanças com as atividades
rituais entre outros povos do sertão nordestino, os quais também visitou durante sua investi-
gação entre os estados do Nordeste. Após assistir os rituais e perceber a rica manifestação
cultural, tal impressão lhe fez despertar interesse em procurar uma instituição que pudesse
resguardar o que ainda restava de “traços originários” daqueles indígenas do sertão nordes-
tino vindo a justificar a atenção do Serviço de Proteção ao Índio.

Foi numa sombra de quixabeira no Terreiro Poente que a tríade do Tronco Velho
Pankararu e o investigador fincaram as três sementes de Pankararu: Narciso Pedro, Cacique;
Joaquim Serafim, Pajé; e João Moreno, Capitão. As escolhas não foram feitas só pelo véi
Sará nem pelas Marias do Tronco Velho Pankararu, mas pode ser que tenham influenciado
o investigador a escolher dois filhos da tríade por saber que eles teriam condições de executar
essa empreitada sem deixar de seguir os traços tradicionais de suas famílias. A terceira pa-
tente foi de interesse do Tronco Velho.
Segundo João Pinto, bisneto de Maria Calú e aprendiz de Firmina Calú, sua tia avó,
a qual lhe passou as narrativas daquele tempo (de 1935 - 37) diz que:

43
O investigador Carlos Estevão, ficou quase um mês entre os Pankararu, na casa de Bernardo primo carnal
(de primeiro grau) de Maria Calú.

71
“dr. Carlos Estevão veio em 193344, ele e Joaquizinho desceram para a casa de
Maria Calú, sentaram na quixabeira. Aí minha bisavó [Maria Calú] mandou convi-
dar, Maria Pedro, João Moreno, Bernardo Calú e Mariano. Só! — Olhem, agora,
aqui, a aldeia estava orelhuda. Agora ela vai ser ferrada. Vai nascer três sementes...
Aí Carlos Estevão diz: eu sei que vocês não estão entendendo. Só têm duas que tá
sabendo. Só duas que tá sabendo. – ‘A véia Pedro e Maria Calú tudo sabiam onde
eram essas três sementes, mais o resto inocente [ficou] sem saber’. Tem a tradição,
tem! Mas num têm as três sementes. Mais agora vai nascer as três sementes para a
aldeia ser ferrada! O Pajé: Joaquizinho, Cacique: Narcizinho e Capitão João Mo-
reno. Capitão da tribo. Pronto, agora ela vai ser ferrada, a Aldeia. Vai ficar dois
Terreiros Nascente e Poente! Nascente pra Menino do Rancho e Três Rodas, e Po-
ente para Corrida de Imbú. Pode fazer também a festa do Menino do Rancho e Três
Rodas, mas a principal atividade é a Corrida de Imbú. [...] Aí saltou a veia Maria
Pedro, (– porque todo Sábado de Aleluia, ela fazia lá a brincadeira como faz [agora],
botava os praiás pra dançarem. Quando ele disse que ia só ficar os dois Terreiros),
ela disse: ‘dr. Vou fazer pedido deixe o meu Terreiro [de Capitão Dandaruré]. CEO:
– ‘disse, mas não pode Dona Maria. Só é Nascente e Poente! Outro terreiro não’.
MP – ‘Mas, já venho fazendo é de ano e ano doutor. Eu tenho minha devoção com
eles’. CEO: – ‘Tá certo! Então se é de ano em ano, só saíra de ano e ano [para fazer
festa-ritual]. Então vai ficar!’ – Aí saltou o Pajé, o véi Joaquizinho e disse: ‘Então
doutor como você deixou pra Maria [Pedro], vou pedir para deixar a festa do Ter-
reiro de General Mestre Guia que também é de ano e ano’. CEO: ‘Pronto, então
pajé –, agora posso te chamar de pajé – fica a aldeia encruzada pelos quatro Ter-
reiros e mais nada!’”. João Pinto, 2018.
São pouquíssimos indígenas e até mesmo Zeladores de Tonã contemporâneos que
sabem como foram semeadas, ou como deveria de ser a atuação das três sementes tradicio-
nais de Pankararu naquela época.
A narrativa a cima descreve o nascimento, a formação política (e cosmológica) da
comunidade. Após as definições das patentes pelo investigador (“o homem de lei”) e pela
tríade do Tronco Velho, as sementes tornaram-se a imagem dos Pankararu. Cada semente

44
Essa é uma data dita pelo entrevistado segundo sua tia avó que acompanhou a permanência e as atividades
de Carlos Estevão na Aldeia Brejo dos Padres. Mesmo sabendo que suas escritas datam em 1935 (informei ao
meu avô João Pinto no fim da entrevista que essa data, nos escritos se encontra registrado no ano de 1935),
mas ele disse que menciona esse ano de 1933 por ter ouvido sempre essa data.

72
ficou encarregada de uma tarefa. Tarefa que se junta ao longo do caminho. Como dito por
Zé Auto, são três líderes que têm práticas distintas, mas deveriam ter e agirem com um só
pensamento, um único conhecimento para que as missões pudessem ser semeadas e terem
sucesso.

Cacique Pankararu e as sementes do Tronco Velho

Como mencionado anteriormente, Narciso Pedro foi uma das três sementes que,
atuou como o primeiro Cacique Pankararu conhecido a “nível de governo”. Após receber a
patente e ter adesão do Tronco Velho Pankararu, deu início a trajetória como líder comuni-
tário. Sua atuação como Cacique se deu na companhia do Pajé, o véi Sarapó. Ambos desem-
penhavam atividades em conjunto, quando um não podia o outro assumia a obrigação –, de
acompanhar e organizar as atividades rituais da Aldeia Indígena, ou nas caminhadas políti-
cas. Posteriormente ficaram conhecidos como “os pais da nação” e da Tradição Pankararu.
Já o Capitão João Moreno45, ficou como intermediador entre diferentes assuntos comunitá-
rios, administrativos e, sobretudo, como conselheiro de Pankararu. As três patentes foram
aceitas pelos Zeladores de Tonã, pela comunidade e, sobretudo, pelos Encantados de Pan-
kararu.
Como descrito na narrativa a cima, a aldeia ficou encruzada por quatro Terreiros de
referências46, são eles: (ao Leste) Nascente, Terreiro de Mestre Xumpunhum; (ao Oeste)
Poente, Terreiro de Mestre Afogais; ao Norte, Terreiro de General Mestre Guia; e ao Sul,
Terreiro de Capitão Dandaruré, ou Terreiro de Sábado de Aleluia. Os dois primeiros; Nas-
cente e Poente, ficaram destinado a pagamentos de promessas em rituais frequentes, tais
como, Três Rodas e Menino do Rancho. Além desses rituais mais frequentes, o Poente foi
reservado exclusivamente para as atividades rituais d’A festa do Imbú. Os outros dois, os
braços da crus, foram reservadas para as práticas anuais: o Terreiro do Norte foi destinado
para finalização do ritual d’A festa do Imbú, realizado no momento sagrado em que “saí” o
Mestre Guia, zelado pelo primeiro Pajé, o véi Sarapó. E por fim, no Terreiro do Sul, para o

45
João Moreno, nesse tempo era um dos poucos que sabiam falar por língua fluentemente. “Por língua” é uma
expressão usada pelos mais velhos para ao se referirem a língua indígena Pankararu já extinta. Atualmente seu
filho Antônio Moreno, o atual Capitão, fala poucas palavras.
46
Como tudo na aldeia existem dono, em alguns locais há Terreiros importantes que ficaram as margens dessa
centralização, a exemplo, o Terreiro de Mestre Andorinha, na aldeia Tapera, zelado por Maria Chulé e poste-
riormente pelo seu filho de tradição Luís Caboco.

73
ritual de vigília no Sábado de Aleluia, finalizando o tempo ritual da Quaresma, sendo zelado
pelo primeiro Cacique, Narciso Pedro. Ao centro no espaço dos quatros Terreiros, foi cons-
truída a igreja do padroeiro da aldeia Santo Antônio, embora não haja uma relação direta
com a posição dos Terreiros. Mas, para alguns penitentes a igreja é o ponto central quando
eles encruzam a aldeia: pai (Cruzeiro principal da aldeia); filho (na igrejinha, próximo ao
Poente); espírito (no Jitó); e santo (nos Oliveira).
Mesmo com as definições dadas pelo investigador, as sementes, os Zeladores e os
demais indígenas faziam seus rituais pela vontade dos Encantados. Aquele esquema estabe-
lecido por Carlos Estevão já seguia, em grande parte, o praticado pelos Pankararu. Porém
essa reorganização foi delineada pelos envolvidos para uma melhor atuação administrativa
interna, principalmente para melhor caracterização e divulgação das atividades rituais reali-
zadas entre os Pankararu do sertão pernambucano para as autoridades externas. Pois, as ati-
vidades rituais deveriam ser expostas e entendidas para que não fossem ignorados 47 pelo
Governo de Pernambuco mais uma vez, mas o objetivo era que as políticas indigenistas do
SPI “garantissem” o “reconhecimento” territorial e étnico.
Até o fim do tempo-bom (1970) só existiam vinte e cinco Tonã levantados e foi assim
durante a atuação das sementes políticas. Narciso Pedro e Joaquim Serafim, na Aldeia Indí-
gena Pankararu, garantiram que se mantivessem apenas os Tonã de tradição por uma questão
de conhecer e de ter alcançado de seus avós e pais dessa maneira, para manter o respeito à
Força Encantada.
Cada Tonã representa seu Mistério, ou melhor, um Encantado. Os Mistérios dos En-
cantados são distribuídos entre famílias distintas, conhecidas como famílias Tronco Velho.
Algumas famílias possuem apenas um Mistério, essas não são consideradas famílias de
Tronco Velho. As famílias que são consideradas Tronco Velho possuem quatro ou mais Mis-
térios, o qual se é definido como batalhão48. O Encantado, dono do Terreiro, é naturalmente
chefe daquele batalhão zelado por um Tronco familiar, por ser dono do Terreiro ele deve
ser chamado de capitão49. – Naquele tempo, os Mistérios eram zelados exclusivamente por
mulheres, pois eram elas que manobravam a maioria das obrigações (diferente dos dias atu-
ais). Os homens também têm suas obrigações, mas no privado, no poró. Contudo eram as

47
Tanto pela falta de conhecimento por não se saber da existência ou mesmo da disposição em ignorar essas
populações indígenas sertanejas.
48
Batalhão é um conjunto de Mistérios, os quais tem vários Tonã levantados e zelados por uma família em
especial.
49
Apenas o Encantado Mestre Guia tem a definição de “General”.

74
mulheres que tomavam a cabeceira e iam ao público executar as atividades rituais. Há mo-
mentos que mulheres e homens (Zeladores de Tonã) participam juntos para celebrar os En-
cantados, tais momentos são chamados de Cantorias e/ou divertimentos.
Os Tonã daquele tempo tinham prioridade para dançar nos quatro Terreiros princi-
pais, ou melhor de referência, mas haviam outros considerados de fibra, em ambos os casos
os Tonã eram acompanhados pelos seus Zeladores e pelos pais da nação, o Cacique e o Pajé.
Os Terreiros são espaços sagrados. O Zelador do Terreiro convida outros Zeladores
para participarem de uma atividade ritual, esses zeladores levam seus Tonã (praiás) para
dançarem. Pois como tarefa das duas sementes, uma delas era acompanhar as atividades
rituais, fazendo a ronda. Outro momento importante que exigia a presença do Cacique ou
Pajé era na renovação do ropante dos Tonã, i.e., de levantar os forguedos50 tinha de ser do
conhecimento das duas sementes, se um dos dois não pudesse participar o outro deveria estar
presente a fim de garantir que tudo ocorresse de acordo como deveria de ser.
Caso se apresentasse um novo Encantado os pais da nação também eram consultados
pedindo que eles averiguassem a situação e dessem seu entendimento. Isso porque existem
vários tipos de Encantados, alguns não são para serem levantados, pois podem ser de mesa,
outros são de força contrária que podem ser interpretado de outra maneira. Os Encantados
de mesa não devem ser “levantados”, não podem ter o Tonã, o ropante, pois a função deles
é ser chamado apenas em momentos específicos. Tal cuidado de se saber quem seja é por
se ter uma disputa diária entre as entidades nos dois mundos, no deles e no nosso. Aqui no
nosso mundo material os pontos de contatos são os Toantes, as sementes (Mistérios) e os
Tonã (praiá/forguedos). Os Zeladores sempre devem manter o equilíbrio das correntes exis-
tentes entre os Pankararu, a direita e a esquerda, para que não haja uma desordem ou “quebra
de mundo”. Se a quebra de mundo viesse a ocorrer seria catastrófico para não só para os
Pankararu, pois não teríamos mais proteção contra as forças que nos espreitam do mundo
sombrio, o que poderia causar nossa destruição.
Assim como os Encantados, os Zeladores de Tonã se tornam irmãos de tradição, se
unindo com o objetivo de proteger a comunidade das forças contrárias. Suas bases são os
Terreiros e os poró – suas ocas, locais sagrados de decoro.
O Cacique e o Pajé são tidos como pais da nação enquanto curadores e detentores da
Ciência Pankararu, mantendo esses locais em ordem. (Antes dessas sementes atuarem as

50
Forguedo seria uma referência a roupa material do praiá. O qual também é chamado pelos moços de praiá
de ropante.

75
“mães” da nação eram as três Marias e o véi Sará). Por ser grande a Aldeia Indígena para
dois líderes comunitários percorrer a pé, ou até mesmo montado em seus jumentos, segundo
Zé Auto, cada semente teve seis conselheiros, espécie de soldados (todos Zeladores), para
acompanhar e demandar suas atividades dentro da área indígena.
Narciso Pedro durante sua trajetória nesse mundo ficou responsável por executar
duas tarefas distintas, zelar pela tradição deixada por sua família e seguir com sua nova tarefa
de Cacique, chefe comunitário.
As três sementes, mediadas pelo investigador, não foi algo que ocorreu por acaso. O
véi Sarapó assim como as três Marias, já exerciam atividades de xamã na comunidade. O
Capitão João Moreno por fazer várias viagens pelos estados nordestinos entre os aldeamen-
tos indígenas tinha relações e conhecimento sobre a situação de outras comunidades. Por ele
ter boas relações e um bom diálogo facilitava as negociações entre indígenas e sertanejos. Já
o Cacique, com sua preocupação em manter tudo em ordem, como vinha dos mais velhos,
demostrou uma postura de condutor, desenvolvendo uma organização social e tradicional na
comunidade junto aos Zeladores. O Tronco Velho, os primeiros líderes das famílias, assegu-
ram que o destino da Tradição estaria em mãos competentes, pois as sementes eram de força.

O brotar das sementes

Foi da povoação de Flores que partiram diversas expedições, compostas de portu-


gueses, de índios e escravos capturados, a mando do português Garcia d‘Ávila, dedicadas a
colonização das terras às margens do rio São Francisco, na segunda metade do século XVI.
O Município de Flores é um dos mais antigos do estado de Pernambuco, localizado as mar-
gens do rio Pajeú. Passados três séculos os trâmites provinciais reduziram as terras que ou-
trora estavam em posse da família d’Ávila, transferindo a sede de Flores para o município
de Serra Talhada. Depois de uma nova repartição de municípios no ano de 1891, Flores
tornou-se município autônomo, ficando sob a sua jurisdição outras áreas, como o futuro mu-
nicípio de Tacaratu. Cinco décadas depois, com a implantação do Posto Indígena Pankararu
na Aldeia Brejo dos Padres e, em parte, a atuação do Governo através do Serviço e Proteção
aos Índios, os Pankararu retomaram com afinco suas peregrinações políticas no sertão per-
nambucano na tentativa de acessar seus direitos territoriais e de reconhecimento étnico. Ini-
ciando suas demandas no município local de Tacaratu, seguindo para Petrolândia e por fim

76
Flores, localizado ao Norte de do Estado de Pernambuco, a mais de 200 km do Aldeamento
Indígena Pankararu.
Nas idas a Flores, a comitiva indígena era formada por João Moreno, Narciso Pedro,
Mariano Tiú, Bernardo e Antônio Barros. Gastavam mais de dois dias andando a pé e em
outras partes da viagem iam com seus jumentos. Alimentavam-se a base de farinha, carne
assada, rapadura, frutas da estação e moringas de água. Por sorte, algumas vezes ganhavam
uma carona até a cidade mais próxima de seu destino – diminuindo o tempo de suas viagens.
As viagens políticas ampliavam a rede de contatos com outras populações indígenas
que outrora habitavam as margens dos rios São Francisco e Pajeú, as quais se mudaram para
o sertão adentro mediante as perseguições. Posteriormente esses povos desenvolveram no-
vos circuitos rituais, durante suas peregrinações políticas por aqueles caminhos árduos nos
sertões pernambucano. As sementes políticas ao seguirem caminho encontravam outros pa-
rentes indígenas e, por conhecê-los, descansavam em seus aldeamentos antes de seguirem
viagem. O momento de descanso nesses aldeamentos fazia com que eles mantivessem rela-
ções de contato e rituais entre os demais povos daquelas regiões sertanejas.
As primeiras caminhadas políticas dos líderes Pankararu, são um movimento que
reúne as primeiras lideranças de caráter político e tradicional para iniciar suas viagens na
peleja dos reconhecimentos do povo e da área Pankararu em outros estados brasileiros na
tentativa de pleitear o reconhecimento étnico e territorial, seguindo viagens para o Rio de
Janeiro e Brasília.
As ameaças por parte dos fazendeiros contavam com o apoio dos líderes municipais
da região, o que dificultava os possíveis acordos. Por esse motivo no final da década de 1940,
até meados dos anos de 1960 os indígenas realizavam suas peregrinações políticas em suas
viagens para a capital do Rio de Janeiro, na tentativa de falar com os superintendentes a fim
de dar um parecer definitivo sobre a situação conflituosa que os indígenas Pankararu estavam
vivenciando em suas terras a séculos.
Já nas décadas de 1970 e 1980, a comitiva de indígenas seguia para Recife e quando
não conseguiam resolver na capital pernambucana, os Pankararu seguiam para Brasília –
Capital Federal, na tentativa de negociar com as autoridades parlamentares e o próprio re-
presentante do órgão indigenista a mesma situação.
Em meados da década de 1960 as primeiras sementes ficaram cansadas, devido ao
“peso” da idade diminuindo sua participação nas caminhadas. Por este motivo elas nomea-
ram de acordo com suas patentes temporariamente os seus familiares próximos, sobrinhos e

77
filhos como líderes interinos. Narciso Pedro, deixou Abílio Pedro, seu sobrinho, como seu
substituto no Cacicado; Joaquim Serafim, deixa Miguel Binga, seu sobrinho na pajelança, e
João Moreno deixa Antônio Moreno, seu filho, na capitania para darem continuidade as pe-
regrinações políticas, e manter o zelo da Terra Indígena e da Tradição Pankararu. Enquanto
essas “novas” lideranças davam sequência às caminhadas já iniciadas pelas três sementes.
O véi Narciso e o véi Sarapó ficam com suas atividades iniciais deixadas por seus
pais, zelando seus Mistérios, seus Terreiros, ficando como especialistas rituais e conselhei-
ros, no entanto mantendo sua autoridade tradicional e política. Enquanto isso os novos indí-
genas que acompanhavam estavam se formando verdadeiros líderes que dariam continuidade
às andanças dos mais velhos. Ao tomar frente das empreitadas, ganharam destaque Abílio
Pedro, Zé Luzia, Mané Besouro, Miguel e Antônio Binga, Quitéria Binga, João Thomas,
Claudio Thomas, João Binga, Antônio Moreno, Luís Caboco, Antônio Mutuca, Maria Berto
entre muitos outros indígenas Pankararu. A primeira conquista das lideranças foi na década
de 1980, quando o Grupo de Trabalho efetivou em 8.100 ha a terra Pankararu. No entanto,
fica uma área restante submetida a um novo processo de identificação.
Uma década depois, nos anos 90, as lideranças que antes participavam da caminhada
cindem. As lideranças da aldeia Serrinha, onde vivem os Binga de cima, uma das maiores
concentrações dos descendentes do véi Sarapó, iniciaram suas caminhas políticas a fim de
pelejar para avançar no processo de demarcação e homologação numa área mais de 7 mil
hectares que ficou de fora na primeira homologação da terra Pankararu na década de 1980.
É nesse recorte de tempo, entre as décadas 80 e 90, que os indígenas começam a ter o status
de liderança num sentido mais político e não menos tradicional. Eram voluntários não ne-
cessariamente Zeladores, mas integrantes das famílias do Tronco Velho. Antes, como des-
crito eram apenas as três sementes políticas tradicionais e os Zeladores de Tonã escolhidos.
Depois de mais de uma década de peleja, nos anos 2005 – 7, brota-se uma nova Ponta
de Rama do Tronco Velho Pankararu, a Terra Indígena Entre-Serras (de Pankararu). Com
essa “nova” Terra Indígena as lideranças que já estavam cindidas, formam uma nova orga-
nização social e política, rompendo, em parte, os vínculos com o Tronco Velho. Aqueles que
receberam as patentes das primeiras sementes tradicionais permaneceram na primeira TI do
Tronco Velho, inclusive os descendentes do véi Sarapó, os Binga de Baixo.
Para as atuais lideranças do Conselho Tribal esse movimento enfraqueceu a luta in-
dígena Pankararu, pois cada povo começou a ter as próprias praticas tradicionais, e andando
sozinhos dividiu-se ainda mais os interesses que eram os mesmo desde o começo, tais como,

78
saúde, educação e demais subsídios. As lideranças tradicionais de Pankararu lamentam tal
divisão, a distância que se estabeleceu entre os irmãos de sangue.

Em sua oca

Narciso Pedro, sempre esteve acompanhado pelo Pajé Sarapó e os demais Zeladores
nos assuntos que envolvessem a nação e/ou tradição. Porém haviam ocasiões que estes ti-
nham seus momentos rituais para com seu Tronco familiar. Ele, por ser o cabeça espiritual,
deveria seguir com a ordem deixada pela sua mãe, Maria Pedro. Uma delas foi sempre estar
em sintonia com os Encantados zelados por seus familiares, e como ponto de conexão, nunca
poderia deixar faltar pó-î (fumo) no matringó (campiô/cachimbo). Pois o pó-î e o matringó
são elementos (objetos) rituais (naturais) de defesa e ataque usados pelos Zeladores de Tonã
em diferentes situações.
O decoro que Narciso Pedro tinha com suas atividades em seu Terreiro, era a mesma
aplicada aos demais Terreiros que o convidava. O reconhecimento a sua pessoa o fazia ser
respeitado e requisitado para acompanhar as festas-rituais sagradas como também na tessi-
tura de forguedos em toda área indígena. Durante sua jornada como chefe comunitário e
mestre ritual foi um grande curandeiro e rezador.
Segundo Caboca, os forguedos de seu pai brincavam, não era todo tempo, é só de
ano em ano, no Sábado de Aleluia. Ao realizar os rituais ele sempre a dizia: “olhe minha
filha tudo que eu fazer aqui na tradição, no Terreiro dos Pedro preste atenção que, quando
eu morrer é para depois você fazer a mesma coisa. Vai ter experimenta pra ver onde foi que
a força ficou. Se prepare, se cuide para fazer sua defesa e a defesa da família”. Após essas
palavras Caboca, sentia agonia e guardou aquelas palavras pesadas. Já Inocêncio ouviu de
seu pai as palavras: “olha meu filho, daqui a vinte e dois dias não estarei mais nesse mundo”.
Segundo Inocêncio achava que ele estava delirando, mas não desacreditava daquelas pala-
vras. Mesmo estando sobreaviso seguiram com as atividades, pois aparentemente ele estava
bem.
O primeiro Terreiro e a oca dos Pedro foram entre uma quixabeira e imbuzeiro. Ca-
boca, narra que uma chuva muito forte derrubou suas casas (de seu pai e de sua avó). Por
opção, Narciso Pedro resolve levar o Terreiro de Capitão Dandaruré para o atual local, a

79
sombra de cajueiros, ao fazer essa mudança construiu sua nova casa à margem de seu ter-
reiro. Como Maria Pedro já havia mudado de mundo, Narciso Pedro como líder e mestre
espiritual tinha autoridade para abrir um novo Terreiro, mas só seria levantado se o dono
permitisse, o Capitão Dandaruré, como de fato permitiu.
Os Zeladores que entrevistei tem a seguinte noção: se o sujeito aprende de uma de-
terminada forma, tem de ser praticado daquele jeito, se há de pôr o pé e mão de um jeito tem
de ser do jeito que lhe foi passado, não se deve tentar fazer diferente. O pensamento indígena
é ajustado a tal comportamento para estar em sintonia com o cosmo. Aqueles que desviam
são alvos de castigos, ou como conhecemos, “pisas”, “surras”, algumas podem até mesmo
matar.
Há casos em que os Encantados abrem exceções, como no caso da família Pedro.
Maria Pedro por ter quatro homens teve de passar a ordem para seu primogênito, mesmo
sendo Encantados a serem zelados por mulher tivera de ser zelado por homens. Mas como
sabemos, se Eles permitem, então não há castigos, como o levantamento do Terreiro do
Capitão Dandaruré. Há casos semelhantes com a morte do antigo Zelador e a mudança na
localização do Terreiro51.
Segundo Caboca, numa reunião recente entre lideranças e Zeladores ela foi questio-
nada por ser uma mulher que está na cabeceira e zela pelos Mistérios, que outrora eram
zelados pelo seu pai. Sua resposta foi: “A gente tem que cumprir com os deveres dos de
antigamente. Se era pôr mulher, tem que ser por uma mulher. Possa ser que em algum mo-
mento Eles [os Encantados] permitam que um homem zele [como foi o caso de Narciso
Pedro, o pai dela], pois estamos aqui para servi-los do mesmo jeito que eles nos servem
numa precisão”. Antes de Narciso Pedro, esses Mistérios foram zelados por uma linha femi-
nina (desde as referências de nossos interlocutores) a primeira sua bisavó, segunda Maria
Pedro, terceiro por Narciso Pedro e atualmente por Maria José (Caboca).
E como é sabido por poucos Zeladores de Tonã antes da reorganização política tra-
dicional eram apenas as mulheres que sustentavam e zelavam os Mistérios de Pankararu.

51
Sobre os levantamentos de novos terreiros irei abordar essa questão no texto de Luís Caboco.

80
Figura 12. Maria José (Caboca) e o Batalhão de Tonã do Tronco Pedro. Imagem: Bartolomeu Santos. 2018

81
LUIS CABOCO – II

82
FILHO DE TRADIÇÃO

A abordagem

Figura 13. Vicente e Antônio, Zeladores de Tonã e Cantadores de Terreiro do Tronco Aciole. Imagem: Matheus Pereira,
2019.

Para escrever a etnobiografia sobre Luís Caboco conversei com seus filhos, em es-
pecial, Vicente Aciole (1943) conhecido como Jararaca, e Antônio Aciole (1954) conhecido
como Tõe Caboco, ambos são cantadores de Terreiro, Zeladores de Tonã e lideranças tra-
dicionais. Ao descrever meu projeto de pesquisa – de imediato – eles ficaram curiosos para
saber “até onde vai chegar essa história”, pois suas conversas com outros pesquisadores in-
dígenas e não indígenas, até então, eram sobre suas atuações na comunidade como líderes.
Ao pedir-lhes para contarem narrativas de seu pai, e de sua relação e da atuação de
Maria Chulé na Tradição Pankararu, certamente lhes foi colocado um grande desafio. Pri-
meiro, por nunca terem falado sobre o véi Luís Caboco vivo e menos ainda depois de sua
morte em 2006. Segundo, por terem alcançado Maria Chulé num tempo em que eles eram
muitos novos deixando lembranças sobre ela incompletas, ou confusas.

83
Durante as entrevistas iniciais com os irmãos, Jararaca e Tõe Caboco, tive informa-
ções importantes sobre Luís Caboco e sua trajetória de vida entre os Pankararu. No entanto,
foi ao conversar com João Gouveia52, após explicar meu projeto de pesquisa sobre As Marias
e seus filhos, me foi revelado que Maria Chulé não era a mãe biológica do véi Luís. Tal
informação me deixou preocupado, pois essa investigação sairia do prumo inicialmente pro-
posto pela pesquisa sobre grandes líderes contemporâneos de famílias fundadoras as quais
suspenderam a Tradição Pankararu. No dia seguinte, ao entrevistar Jararaca, ele confirma
aquela informação e saio de sua casa pensativo sobre como abordar essa pesquisa.
Chegando em casa, ao conversar com minha companheira, expliquei das frustrações
que me tomavam naquele momento. Para minha surpresa, ela joga um termo brilhante ao
dizer: “ele pode não ser filho biológico, mas é filho de tradição. – É o que entendi quando
você me explicou sobre o que é ser um moço de praiá”. Aquele termo foi de uma precisão,
algo, que até então não havia me atinado. E é importante ressaltar que Gabriela não lembrou
de ter me dito essa expressão. O que nos faz acreditar que tenham sido Eles, a Natureza que
tirou minhas frustações.
Nos dias seguintes realizei algumas entrevistas como agendado e aproveitei para per-
guntar sobre a expressão filho de tradição aos Zeladores, curioso, pedi a eles que a descre-
vessem se lhes fosse possível. Os Zeladores de Tonã, me deram algumas de suas definições,
ao dizerem que um filho de tradição é aquele que recebe a ordem, os endereços de seus pais,
ou de seu Tronco familiar. Tem de ser passado direto do pai, ou da mãe para o filho, ou para
a filha com a finalidade de não deixar a tradição [do Tronco Familiar] se findar. A obrigação
mais importante do filho de tradição é “suspender” a ordem de sua geração confiada a ele,
ou a ela. Cabendo ao responsável se unir com os demais Zeladores de Tonã para que todos
possam dar manutenção e sustentar a Tradição Pankararu.
Ao ouvir a definição do significado dum filho de tradição dos próprios filhos de tra-
dição, lhes perguntei se eu poderia considerar Luís Caboco naquela categoria local, pois ele
não era filho biológico de Maria Chulé. Eles responderam que sim. Mas, quando fiz essa
mesma pergunta ao meu avô João Pinto, ele me devolve perguntando o que eu achava, pois
segundo ele, eu também teria potencial para ser um filho de tradição. Para ele, eu deveria
ter uma noção sobre a questão feita. “Disse que sim, o considerava”. Ele me volta a pergun-
tar, “por que o considera? Um pesquisador daqui de dentro tem que saber aonde chegar, né

52
Zelador de Tonã e liderança tribal Pankararu. Compadre e amigo de Jararaca.

84
isso!?”. “Imagino que se ele não fosse filho de tradição – pelo que entendi – os Mistérios
dos Encantados não ficariam com ele. Teriam procurado os zeladores da raiz Chulé, ou até
mesmo outros Zeladores que fossem capazes de sustentar e zelá-los. Ou pudesse ser que Eles
voltassem e permanecessem nos astros até o momento em que decidissem voltar e fundar
um novo Tronco. Como sabemos, Eles são vivos e não podem ser “segurados” contra suas
vontades. E como o senhor disse antes, Eles estão em todo lugar, basta pensar [neles] e, se
quem o “chama” merecer Eles vão até o sujeito aonde precisar. Por fim, meu avô finalizou:
“É isso! Só acrescento, que quem escolheu o véi Luís, foram Eles. Eles já sabiam a onde ia
dar [desde] o dia que Luís se pegou com a Força Encantada”.
Os primeiros contatos com os atuais Zeladores do Tronco Aciole e aqueles que os
auxiliam nortearam tal investigação por se tratar de uma Ciência que se reatualiza, se forma
e transmite sem uma conexão indissolúvel e única com uma família. Os descendentes de
Maria Chulé, em função de mortes prematuras e viagens longas, deixam o Terreiro com um
filho de tradição, que posteriormente vai reagrupar ao seu entorno o seu próprio Tronco
(Aciole).

Figura 14. Ilustração de Luís Caboco feito por seu neto. Imagem: Matheus Pereira, 2019.

85
Filho de “Criança”53, Luís Aciole de Oliveira nasceu no ano de 1915 na aldeia Ta-
pera, e faleceu aos 91 anos de idade. Ficou conhecido na Terra Indígena Pankararu e região
como Luís Caboco, um estimado cantador, curandeiro e liderança de grande exímio social
e tradicional. Casou-se com Maria Luísa dos Santos, conhecida na comunidade por Maria
Caboca (hoje, ela se encontra com mais de 100 anos de idade, embora já não fale e nem se
movimente). O casal teve nove filhos. Entre eles há cantadores de Terreiro, Zeladores de
Mistérios entre outras atuações de destaque na organização e Tradição Pankararu.
Luís Caboco viveu toda sua infância na aldeia Tapera, junto aos seus pais e com mais
dois irmãos, Manoel Aciole de Oliveira, conhecido com Mané Caboco, e Dionília Aciole de
Oliveira, conhecida como Dion. Seus dois irmãos ao formarem suas famílias, construíram
suas moradas às margens do Terreiro de Mestre Andorinha, aberto por ele na aldeia Jitó.
Como já mencionado, essa é uma característica comum dos familiares levantarem seus ran-
chos às margens dum Terreiro principal.
Parte de sua vida adulta, já que a situação na Terra Indígena era insustentável pela
seca, sem o tempo certo das estações para coletar seus alimentos e com poucas alternativas
para praticar qualquer agricultura, Luís Caboco, optou por viajar na busca de trabalho em
diferentes profissões entre os estados de Bahia, Alagoas, Sergipe e Piauí no Nordeste brasi-
leiro. Foi numa dessas viagens, no estado de Alagoas, que conheceu sua esposa Maria Ca-
boca, casando-se aos seus 26 anos de idade. Após se casar na década de 1940, ficou na Terra
Indígena Pankararu para construir seu rancho junto a sua esposa na aldeia Jitó, numa parte
de terras de sua família materna. Tornou-se pai aos seus 28 anos de idade. – Naquela mesma
década foi construído o Posto Indígena Pankararu (PIN – Pankararu). Sua esposa, Maria
Caboca, temia que o chefe do PIN – Pankararu, não aceitasse sua presença na área demarcada
por ela não ser indígena.
Entre as décadas de 1930 e 40 a terra Pankararu foi marcada por diferentes interven-
ções importantes, tais como, “reconhecimento” da população, estruturação administrativa
interna e fundiária. Segundo alguns interlocutores, nesse período se realizava o cadastra-
mento de indígenas no posto para uma “melhor apuração” da população indígena local a
pedido do chefe de posto, afim de esclarecer os serviços e as despesas realizadas no Aldea-
mento ao SPI. A maior parte das documentações sobre os indígenas Pankararu foram quei-
madas pelo fogo em meado do século XX. No entanto, alguns documentos foram reportados

53
Entre seus netos, não se sabe o nome de batismo ou de registro de sua avó paterna e nem o nome de seu avô.

86
ao Rio de Janeiro, para a sede do SPI. Atualmente o que restou se encontram no Museu do
Índio.
Durante os anos em que Luís Caboco esteve em suas viagens nos estados do Nor-
deste, em jornadas de trabalho, era certo de seu retorno à comunidade para encontrar sua
família, amigos e participar d’A festa do imbu54. Também, aproveitava o momento de sua
estadia entre os seus para acompanhar atividades rituais mais restritas com o Tronco de sua
família tradicional estreitando os laços da tradição.

Figura 15. Representação esquemática (genealógica) do Tronco Aciole (adaptado). Bartolomeu Santos 2019.

O esquema a cima foi apresentado de acordo com as informações dos filhos de Luís
Cabo. Em tal esquema uso apenas as informações dadas pela geração que tive contato du-
rantes as conversas de campo. Por não haver mais tempo para que eu fizesse adequação deste
tronco, não ampliei os pontos que não foram focalizados por Mura, 2013.

Os laços da tradição

Foi no início de sua juventude que Luís Caboco teve seu “chamado” para ser o pró-
ximo moço de praiá de Mestre Andorinha, Zelador pelo Tronco Chulé. Maria Chulé, chefe

54
Ver figura 18 na página 101.

87
da ordem e fundadora do Terreiro e do Tronco de sua família, ocupou uma posição impor-
tante na trajetória tradicional do jovem Luís. Ao acompanhar parte de sua vida, ela pode lhe
transmitir muito de seus entendimentos sobre os Mistérios da ordem Chulé e dos processos
que envolvem a cura espiritual e a base de plantas.
Após o jovem Luís ter recebido o “chamado”, o primeiro moço de praiá o auxiliou
nas obrigações que deveria seguir, como também lhe passou instruções para serem executa-
das no poró, pois algumas tarefas só os homens podem realizar nesse espaço sagrado. É de
costume que o moço de praiá seja chamado no início de sua juventude, pois precisa de um
tempo para que o jovem seja preparado fisicamente e espiritualmente, e assim possa suportar
o rojão (a pressão) ao vestir o forguedo e dançar horas a fio, seja sob sol ou chuva.
Para “tornar-se” moço de praiá, há duas investidas conhecidas. Na primeira investida
há casos em que o próprio Encantado faz o chamamento ao moço escolhido para servi-lo,
i.e., vestir o forguedo e representa-lo nos Terreiros. Geralmente, essa comunicação direta é
feita em sonho. Há casos no qual o chamamento se manifesta pela própria Natureza, alguns
Zeladores e moços dizem que a comunicação pode vir através dum pássaro, duma árvore, ou
mesmo pelo vento apontando uma “alumiação” (indicações) do que se deverá fazer para
alcançar tal graça. Na segunda investida, o chamamento pode ser manifestado pela Zeladora
de Tonã, que possua um forguedo levantado (tecido). As Zeladoras também podem sonhar
com uma indicação, ou ao ver um jovem lhes chega a noção. É neste momento que se faz o
chamamento para que o jovem seja moço de praiá. Independente da investida, o moço deve
ser testado com frequência pelos Encantados, pois o sujeito deve respeitar e seguir à risca
uma série de tabus paulatinamente. Caso o moço demonstre aos Encantados o merecimento,
continuará nas obrigações e seguirá aprofundando seu conhecimento, atiçando seus dons ao
máximo através da transmissão de conhecimento de sua Zeladora com auxílio dos próprios
Encantados (da Ciência Pankararu).
São comuns os filhos de sangue (os filhos biológicos), dos Zeladores de Tonã, serem
os moços de praiá de seu Tronco familiar, mas apenas quando esses demonstram competên-
cia. Mesmos aqueles que nasçam dentro do berço de tradição também precisam ser testados,
tem que ser merecedor, seguir os tabus e as obrigações para vestir o ropante sagrado. Os
laços da tradição precisam estar firmados para que possam sustentar as Tradições Pankararu.

A ordem Chulé e os endereços da tradição

88
A ordem Chulé é oriunda de Serra Negra. Nas décadas finais do século XIX, Maria
Chulé e seu esposo, o véi Lorindo, correram para a terra Pankararu. Ao chegarem no Alde-
amento Brejo dos Padres, se estabeleceram na aldeia Tapera, logo construíram seu rancho e
abriram o Terreiro de Mestre Andorinha. Naquela aldeia tiveram dois filhos, são eles Liço
Chulé e João Chulé, ambos criados até sua juventude as margens daquele Terreiro. Liço
Chulé, ficou conhecido como Mané de Chico, filho mais velho do casal, e logo se mudou
para a Serra da Jurema, lugar em que se casou e viveu até se mudar de mundo. Já João Chulé,
quando se casou com Nega Chulé (como era conhecida na comunidade) sua primeira esposa,
juntos construíram seu rancho às margens do Terreiro zelado por seus pais, naquela aldeia,
vivendo durante um tempo nas dependências para auxiliar velhos nas atividades rituais.
Após a partida de Maria e Lorindo, os primeiros Zeladores da ordem Chulé para o
outro mundo, seu filho João Chulé ficou sustentando as obrigações deixadas por seus pais
junto com seu irmão de tradição mais velho, Luís Caboco. Como herdeiros do Tronco, os
filhos continuaram com as obrigações durante um tempo no Terreiro e no poró de Mestre
Andorinha55.
Era certo que eles, João Chulé e Luís Caboco, seguissem à risca as demandas para
operarem seus deveres nos Terreiros principais. Se fosse anunciado uma festa-ritual (do Me-
nino do Rancho) ou uma promessa (de Três Rodas) em nome de Mestre Andorinha, ou dos
Encantados zelados pela ordem Chulé, deveria realizá-las no Terreiro da Fonte-Grande
(Nascente), ou no Terreiro “das Calú” (Poente) como foi orientado por Carlos Estevão e a
tríade de lideranças das famílias tradicionais –, mas devia seguir a ordem (vontade) dos En-
cantados.
Nos momentos de seca, quando a situação apertava, obrigava João Chulé e Luís Ca-
boco, como também outros jovens, a fazerem várias viagens para os estados nordestinos em
busca de trabalho nas plantações de café, em cortes de cana entre outros serviços. Por obri-
gação um deveria ficar para sustentar as obrigações enquanto o outro estivesse trabalhando
fora da aldeia.
João Chulé após se separar de sua primeira esposa, continuou residindo na casa de
seus pais por algum tempo, e ficando próximo do Terreiro, lhe foi possível continuar com
as atividades rituais. Quando lhe chegou uma oportunidade de trabalho que o fez se mudar

55
As obrigações só eram realizadas nos Terreiros principais (Nascente ou Poente) quando fosse da vontade de
Mestre Andorinha, ou dos demais Encantados.

89
para o estado de Piauí, ele deixou a comunidade indígena e lá residiu por algumas décadas.
Antes dele seguir em sua viagem, passou a ordem e os Mistérios do Tronco Chulé (ou como
os Zeladores dizem os endereços) ao seu irmão de tradição, para que ele continuasse e se
responsabilizasse a dar manutenção e receber os pedidos para realizar as atividades rituais.
– Seus filhos acreditam que o motivo de seu pai, João Chulé, ter deixado os endereços do
Tronco Chulé com seu irmão de tradição, foi porque “não havia outra pessoa com tanto
conhecimento e dedicação a serviço daquela ordem”. Sobretudo pelo empenho e respeito
que Luís Caboco manteve com a memória de sua família de tradição.
Luís Caboco foi moço de praiá de Mestre Andorinha por mais de três décadas. Du-
rante aquele tempo seus laços com o sobrenatural o aproximaram e o fizeram conhecedor de
determinadas obrigações para com os Mistérios antes zelado pela ordem Chulé. Durante o
período em que dançou, foi aflorando sua devoção com os Mistérios. Após a morte de sua
mãe de tradição e do véi Lorindo, entre os anos de 1950 – 1955, João Chulé já havia deixado
o Mistério de Mestre Andorinha com seu irmão de tradição antes da entrega dos demais
Mistérios.
Vicente Aciole, primogênito de Luís Caboco, conhecido na comunidade por Jararaca
(como já mencionado). Ao lhe perguntar detalhes sobre a ordem (antes zelada pelos Chulé)
e que posteriormente seu pai zelou e sustentou em vida, ele disse:

“Meu pai ficou tomando conta das Sementes [dos Mistérios] por merecimento. Serviu
aqueles ‘zomi’ [os Encantados] ainda no tempo que quem comandava e zelava era
minha madrinha, a véia Maria Chulé e o véi Lorindo. Pode ser né, que foi por isso
que meu compadre João Chulé, levou em grande consideração e confiou as Sementes
ao véi meu pai, para que ele continuasse com a obrigação [de zela-las]”. Jararaca,
2018.

Como é sabido pelos mais velhos e por aqueles que estão nos círculos tradicionais da
comunidade, os Zeladores podem passar a ordem dos Mistérios para aqueles que estão se
preparando para receber e se comprometer com tais obrigações ao receber os endereços da
tradição. Porém quem escolhe se os sucessores ficam zelando as obrigações são os Encan-
tados, pois além do decoro precisa de dons, habilidade e sensibilidade com as diversas ex-
perimentações que haverá de vir do mundo sobrenatural para testar a capacidade do Zelador.

90
Mestre Andorinha é um Encantado recorrido, ou como dizemos, é válido pela sua
força e resposta ao atender os pedidos daqueles que lhes recorrem e precisam de sua força.
Ele é um Encantado que está em todos os lugares, só basta rogá-lo (puxar seu Toante) que
ele se achega. Sua personificação neste mundo (o forguedo) é certa nos Terreiros, pois ele é
sempre convidado a visitar os Terreiros de sua irmandade. Seu Terreiro originário, o prin-
cipal, se encontra num pé-de-serra, na aldeia Tapera, aberto nas décadas finais do século
XIX, logo depois que os Chulé, construíram sua morada naquela aldeia. No entanto, depois
dos Chulé viajarem e venderem o terreno, para dar continuidade às obrigações foi preciso
que Luís Caboco abrisse um novo Terreiro e levar os endereços para o novo local.
Manter a ordem e os endereços do batalhão antes zelada pelo Tronco Chulé foi fun-
damental para a manutenção da Ciência Pankararu pelo Tronco Aciole. Um ponto impor-
tante a ser considerado é que se os endereços mudar de Zelador o dono permanece, o qual
ira auxiliar o novo Zelador.

O Tronco Aciole

Com o passador dos anos os membros da família Aciole entre eles, seus tios, irmãos,
primos, sobrinhos, filhos, netos, compadres, afilhados e amigos de Luís Caboco foram se
agregando às margens do Terreiro de Mestre Andorinha. Tais alianças constituíram e con-
solidaram o que entendemos como Tronco familiar. Tendo em sua cabeceira Luís Caboco,
por possuir um grande dom e ter sido um fino Zelador de força e uma vasta experiência com
os Mistérios, seu Tronco familiar. Com os anos tornou-se um importante Tronco de Tradi-
ção, tendo como referência fundacional o Tronco Chulé.
Segundo seus filhos não foi sua vontade levantar (abrir) outro Terreiro e como con-
sequência fundar seu próprio tronco tradicional, foram a vontade dos Encantados. Em res-
peito ao Capitão do Terreiro (Mestre Andorinha), as demais famílias que tinham relações
com os Aciole destinaram uma parte de seus terrenos a Ele, para que suas festas-rituais ti-
vessem um espaço adequado e os seus convidados pudessem realizar as brincadeiras rituais.
Com o local amplo, o Terreiro de Mestre Andorinha, poderiam receber as promessas de Três
Rodas e também realizar todas as fases da festa do Menino do Rancho, pois essa festa-ritual
requer um espaço largo para que no momento das peitadas (de confronto) entre praiás e
padrinhos, na luta pelo Menino, pudessem correr de um lado para o outro sem obstáculos.

91
Quando João Chulé retornou a Pankararu, não foi retomar os endereços de sua famí-
lia, do Tronco Chulé, a qual tinha deixado sob o comando de seu irmão de tradição mais
velho, Luís Caboco, por reconhecer o trabalho que ele tivera feito em sua ausência. Pouco
tempo depois João Chulé se mudou para um vilarejo chamado Quixaba, distrito do município
de Glória – Bahia, próximo a TI Pankararé –, uma das Pontas de rama de Pankararu, vivendo
lá com sua última esposa até mudar de mundo. Em sua nova morada, na Quixaba, o véi João
Chulé recebia com frequência indígenas vindos de Pankararu e de outros povos próximos da
região do São Francisco, em busca de uma cura, outros o pediam que rezasse para tirar o
atraso, fechar o corpo entre outros pedidos de rezas. Mesmo não zelando diretamente os
Mistérios deixado por sua mãe, Maria Chulé, ele manteve por todo tempo os laços, o decoro
com os endereços de seu Tronco familiar e em especial com seu irmão de tradição.
O véi João Chulé visitava com frequência o Tronco Velho Pankararu para participar
das tradições mais frequentes, entre elas, o Menino do Racho e as Três Rodas na comuni-
dade. Ia ao Tronco Velho especialmente quando o dono da festa-ritual ou promessa fosse
Mestre Andorinha, aproveitando sua estadia para visitar seu irmão Luís Caboco.
Atualmente o Tronco Aciole realiza as festas-rituais no Terreiro aberto pelo véi Luís,
e no primeiro Terreiro de Andorinha na aldeia Tapera, por seu filho Tõe Caboco, após ne-
gociações com o antigo proprietário.

A abertura do Espaço Sagrado

Para abrir um novo terreiro é preciso ter permissão (geralmente parte da vontade dos
Encantados), pois para tal ação se exige experiência e coragem. Ao abrir o Terreiro o Zela-
dor, terá muitos desafios, ou como dizem terá experimentações das forças contrárias e de
demais Zeladores que queiram testar a força do Zelador do Terreiro para saber se ele é
sabido. Pode parecer simples, mas antigamente o Zelador de Tonã, quando recebia a ordem
de abrir um Terreiro, devia “ir longe” com seu espírito e ficar dias noutro mundo apanhando
conhecimento. Esse é um ato de apanhar a Ciência Pankararu, as noções necessárias de
defesa e quando preciso de ataque. Ao retorno de sua viagem espiritual o Zelador deveria ir

92
à procura do véi Narciso e/ou do véi Sarapó56 para marcarem o dia que deveria abrir o Ter-
reiro. Para realizar a abertura se faz o convite aos Zeladores de Tonã, esses são acompanha-
dos pelos moços de praiás vestidos com seus forguedos para juntos celebrarem o novo es-
paço sagrado. Como diz o Zelador de Tonã, João Gouveia:

“Em meu tempo, aqui era tudo passado para os chefes da nação, se tinha respeito.
Antigamente para se levantar um forguedo, tinha que ir ver [consultar] o Pajé, senão
o Cacique, ou os dois. A mesma coisa era para abrir um Terreiro para esses ‘Homens’
dançarem. Se eles dois autorizassem, coisa que era difícil, podia abrir sem medo que
nada há de ‘empatar’ [atrapalhar], podia fazer o serviço que estaria seguro [firme]”.
João Gouveia, 2018.

Como mencionando por João Gouveia, para se levantar um forguedo, ou abrir um


Terreiro, até mesmo tomadas de decisões que envolvessem a Tradição [e a comunidade], os
interessados tinham de ir consultar os primeiros líderes políticos do Tronco Velho. Já no seu
tempo tinha que ir aos “pais da nação”, o véi Narciso e o véi Sarapó. Por serem grandes
líderes, as primeiras ramas do Tronco Velho, tinham um vasto conhecimento sobre as múl-
tiplas relações existentes na comunidade. Naquelas situações eles saberiam como proceder
se tivesse que abrir um novo Terreiro, ou levantar um novo forguedo, pois, feito o contrário,
poderia desequilibrar a Tradição Pankararu. E por esse motivo –, “um ou outro era a primeira
cara a ser vista quando se chegava num terreiro”, a presença desses líderes espirituais nos
rituais era para fazer a ronda, auxiliar os demais Zeladores caso fosse preciso.
Depois que Luís Caboco assumiu a cabeceira e os endereços do Tronco Chulé, os
Zeladores de Tonã apoiaram a abertura do Terreiro na aldeia Jitó. A abertura do espaço
sagrado pelo véi Luís, foi movido por propósitos essenciais, tais como, de seus praiás “brin-
carem” aos finais de semana e de receber as “entregas” destinadas aos Encantados, além de
manter as memórias de seus pais de tradição vivas.
A abertura do Terreiro de Mestre Andorinha ao centro da Terra Indígena Pankararu,
foi bem aceita pelos demais Zeladores de Tonã. O novo espaço sagrado ficou próximo aos
quatro Terreiros fundacionais da Aldeia Brejo dos Padres, numa localização entre dois ter-

56
Quando as Marias ou o véi Sará eram vivos eram as referências sobre esses assuntos, por serem os líderes
do Tronco Velho. Após todos mudarem de mundo seus filhos tomaram de conta dessas obrigações.

93
reiros principais o de Xumpunhum (no Nascente) e de Capitão Dandaruré, conhecido tam-
bém como Sábado de Aleluia. O novo Terreiro logo tornou-se um espaço de força, adorado
e respeitado pelos integrantes da comunidade indígena.

Figura 16. Terreiro de Mestre Andorinha, visto de frente da casa de Luís Caboco. Imagem: Matheus Pereira, 2019.

Abrir, sustentar e fechar o Terreiro, são três tarefas crucias e mortais para o Zelador
de Terreiro, que será o cantador responsável. Essas tarefas, ou como se diz, esses três pontos
devem ser realizados sempre que tiver atividade ritual. Na mão direita do cantador a marca,
noutra o matringó e a tira colo o aió57 essas são as ferramentas do cantador para realizar a
festa-ritual no espaço ritual sagrado.
Depois de algumas décadas da viagem feita por João Chulé para o estado de Piauí,
Luís Caboco abre um “novo” Terreiro para Mestre Andorinha na aldeia Jitó em frente à sua
casa. Segundo as lembranças de Tõe Caboco, seu pai abriu o Terreiro no final da década
1960. Pois o terreno que antes eram dos Chulé, havia sido vendido, e o primeiro Terreiro de
Mestre Andorinha fazia parte daquela propriedade.
No final do século XX, o novo proprietário do terreno, fez uma proposta a Luís Ca-
boco –, seus filhos não lembram a época exata. Só lembram do pedido feito pelo proprietário,

57
O aió é semelhante a uma bolsa que fica a tira colo feita de fibras de kroá, mesmo material usado para o
tecimento dos forguedos.

94
ao seu pai: que mantivesse as festas-rituais no Terreiro de Mestre Andorinha, na Tapera,
como havia de ser. Embora o véi Luís em resposta a sua proposta, vendo as condições que o
local se encontrava – todo cercado com arame farpado – disse que estava grato pela boa
vontade, em oferecer aquele espaço sagrado para as atividades rituais, mas não poderia acei-
tar por dois motivos. O primeiro foi pelo local estar cercado, o que poderia impedir que eles
brincassem à vontade, ou se fosse destruído o cercado pelos participantes da festa-ritual
quem haveria de arcar com os custos? O segundo motivo, e o mais decisivo, foi ao dizer que
o dono daquele espaço sagrado é Mestre Andorinha e que aquela área deveria ficar acessível,
– se referindo aos arredores do Terreiro, como era no tempo de Maria Chulé e do véi Lorindo
quando cuidavam daquele espaço ritual sagrado. Sua sugestão ao proprietário de deixar uma
parte daquele terreno aberto, foi para que os parentes tivessem acesso ao pé-da-serra, porque
lá tem locais específicos para fazer as “entregas” para os Encantados, os quais ficam próxi-
mos de suas moradas ou pontos de conexão com seus mundos.

A mística Chulé

Aos meus 17 anos de idade, acompanhei uma sessão de cura realizada por João
Chulé, numa tarde de setembro de 2008. Antes desse momento não o conhecia pessoalmente.
Nessa época, eu já tinha me conectado com o cosmo, sabia que existia algo que não havia
explicações, apenas sentir a presença de algo tornava-se o bastante.
Ao chegarmos na sua casa, ficamos um tempo à sombra de uma algaroba (Prosopis
juliflora) enquanto ele estava preparando o local para iniciar o ritual de cura. Tempo depois
ele nos chama. Entramos. Todos ficam em círculo e eu fico próximo a porta. Depois da
sessão de cura todos saem de sua sala e voltamos para a sombra daquela árvore. Enquanto
esperávamos algo, não me recordo o quê, João Chulé nos conta algumas histórias dos acon-
tecidos, que “Ele” (ao receber o Encantado) tinha que interver. Uma narrativa em particular
me deixou com muitas dúvidas. Foi a primeira vez que ouvi sobre a existência de outros
mundos. Fiquei me perguntando se realmente existia um outro mundo. Depois de tanto pen-
sar lembro que os Encantados vivem em outro mundo. E porque não poderia existir mundo
subaquático comandado pela mãe d’água? Naquele dia fiquei particularmente “suspenso”,
primeiro por presenciar o trabalho dum homem chamando um Encantado de força, e se-
gundo, pelas narrativas que ele contou por estar em sintonia com Mestre Andorinha.

95
Os irmãos de tradição, apanharam as primeiras práticas de benzimento (de cura) com
sua mãe, Maria Chulé, para continuarem com as atividades de seu Tronco. Jararaca conta de
uma experiência ímpar que teve em sua infância, quando acompanhou seu pai à casa de sua
madrinha; e ela do nada disse:

“‘Lorindo, vai arrumar lenha que antes do ‘soliposto’ vai chegar gente.’ – Pela fé de
Deus, era como a véia dizia, na boquinha da noite, de tardezinha, quando pensa que
não três do cangaço montados nos lombos de seus burros com aqueles ‘aifole’ de
couro se achegavam. Quando chegava na ponta do Terreiro de minha madrinha eles
diziam: ‘Oh, Maria Chulé, nós viemos mandados para senhora rezar ne nós’. Sei que
ela entrava lá pra dentro [de sua casa] se apegava com os zomi [os Encantados], [...]
dava uma rezada nos caba, oxi, pronto. Quando terminava eles davam banda de bode,
arroz, café. Sei que era tanta coisa...”.

Era comum entre as Mulheres da Ciência Pankararu, saber quando algum forasteiro
estava a sua procura e com quais intenções. Elas recorriam às práticas místicas-religiosas
para se proteger e aos seus. Segundo os Zeladores de Tonã haviam orações e Toantes para
cada situação.
Os Pankararu por viverem numa região de confluência, estavam sujeitos a todos que
passassem, acampassem entre as serras, ou na caatinga daquela região. Aqueles que se alo-
javam escutavam que na margem esquerda do rio São Francisco, haviam mulheres sabidas
que limpavam, fechavam o corpo e tiravam os atrasos (as doenças). Maria Chulé, era de
referência para os que viviam na região. “Possuía um vasto conhecimento no uso de plantas,
ervas e sementes. Os quais eram preparados em seu tempo” (SANTOS – Pankararu, 2017;
Mura, 2013). Ela sempre foi diferente das outras duas Marias (Pedro e Calú), quando tinha
de ser boa era, e quando não, não hesitava em ser ruim. É por este motivo que a respeitavam.
Eram poucos que a procuravam e muitos a temiam, chamando-a de feiticeira da região. Se-
gundo os Zeladores aconteceu um episódio misterioso que provou sua capacidade e porque
era temida. Eles contam que no PIN – Pankararu, havia um saguão para prender indígenas
que desacatassem ordens. O chefe de posto mandou uma ordem de prisão para Maria Chulé,
que a mesma deveria comparecer no posto indígena. Quando tal ordem chegou a ela, ela
mandou levar a seguinte resposta: “diga que vou, mas antes de eu chegar no posto, ele

96
morre!”. E como ela disse aconteceu, o chefe de posto morreu de causa misteriosa no dia em
que ela deveria se apresentar para ser presa no PIN – Pankararu por ser considerada feiticeira.
Luís Caboco e João Chulé, tinham em seus trabalhos de curas referências diretas de
sua mãe. Eles usavam técnicas desenvolvidas por ela em seus trabalhos. Quando um não lhe
chegava a noção (a permissão) para rezar ou curar, o outro sustentava o trabalho. A relação
que os dois Zeladores exerciam como curandeiros era válida. Um em Pernambuco o outro
na Bahia, ambos ficaram conhecidos e respeitados pelas cidades que frequentavam e vive-
ram em suas andanças quando jovens.
Os dois, diferente de Maira Chulé, não eram temidos pelos parentes. Cada um em
seu rancho mantiveram as atividades da tradição do Tronco Chulé. Tornaram-se grandes
especialistas rituais em curas e rezas, ajudando os povos indígenas com suas garrafadas e
banhos de plantas medicinais. E até hoje, segundo os Tõe Caboco, depois de 12 anos de sua
morte, seu pai Luís Caboco ainda é procurado na comunidade por pessoas quem vem dos
estados vizinhos a sua procura.

Lembranças de rituais

Conheci Luís Caboco, ainda muito novo. Lembro de quando ia para a casa de meus
avós paternos, Aurelina Bráulio e João Pinto, e passava em frente à casa dele, às margens do
Terreiro de Mestre Andorinha, lugar que brinquei toda minha infância (sempre às beiradas
e nunca pelo meio de seu Terreiro, por nunca se saber quem está em seu centro –, essa era
uma orientação de minha avó e de seu padrinho Luís Caboco).
As lembranças que tenho de Luís Caboco, são dum homem alegre, que brincava,
conversava com todos e contava muitas histórias. Quando se tratava de fazer seus rituais sua
expressão mudava para uma aparência de tranquilidade, mas nunca deixava de cumprimentar
e brincar sutilmente com todos. Essa expressão logo se ia quando terminava o trabalho di-
zendo, depois duma cantoria: “cantar é a infância do índio”. Lembro doutra frase semelhante
que também era dita depois que ele terminava uma cura: “curar é a infância do índio”.
Luís Caboco, nos anos 2000 (com 85 anos de idade), foi cantador da festa de Menino
do Rancho de meu irmão. Naquele ano meu irmão estava com seus onze, e eu estava com
nove anos de idade. Por ter aquela idade não pude acompanhá-los em todas as etapas da
festa-ritual realizada no poró. A entrada de crianças e mulheres no poró são um tabu. Durante

97
o tempo-bom a entrada no poró só era permitida depois 16 anos. Com exceção do Menino
do Rancho, por ele ser parte fundamental da festa-ritual.
Já com meus 13 a 14 anos de idade, participei de alguns rituais restritos como um
espectador e fui me envolvendo, despertando cada vez mais curiosidades sobre aqueles atos,
aquelas palavras, aquelas frases. E, foi nesse momento que me veio a lembrança de já ter
escutado quando participei de alguns rituais restritos como espectador (um curioso), na casa
de Luís Caboco.
Essas lembranças só pude retomá-las depois que escutei durante a entrevista com Tõe
Caboco a frase: “A cantoria é a infância do índio. Quando precisamos, ela cai na memória”.
Depois de ouvir aquela frase, com uma sensação de familiaridade, fui embora. Só me foi
possível retomar a lembrança quando ouvi a gravação em casa, ao tomar notas da entrevista.
Sem entender o que queriam dizer com as frases. Após um tempo de reflexão e de escutar as
entrevistas realizada com os filhos de Luís Caboco e de alguns Zeladores que conviveram
com ele durante os rituais, comecei a entender o que poderiam ser aquelas frases. As quais
irei desenvolver.
A seguir tento desenhar uma narrativa do que pode ser a infância do índio, tendo
como ponto de partida a noção (conhecimento) passado pelos Zeladores de Tonã do Tronco
Aciole.

Danças, cantos e curas

Luís Caboco nasceu nas bordas da tradição do Tronco Chulé, como já abordamos.
Por toda sua vida, se nutriu ao observar as práticas rituais de sua família de tradição e das
atividades rituais na comunidade. Como todos daquele tempo-bom, aprendeu onde “colocar
e tirar a mão e o pé” desde cedo. Praticou apenas o que alcançou com os mais velhos de seu
tempo. Quando jovem, participou das queimadas de cansanção, depois atuou como moço de
praiá, e por fim como cantador e curandeiro.
A seguir tento descrever as performances de Luís Caboco como protagonista em três
atos fundamentais que marcaram sua vida neste mundo. É importante nos atentar para as
descrições e não a ordem que segue aqui.

98
Dançar praiá

A dança de praiá é uma parte central de qualquer festa-ritual na Tradição Pankararu.


Segundo os Zeladores, foram através de Toantes e da rítmica dos praiá, ao dançar no Ter-
reiro Sagrado da Antiga Cachoeira58 que os mais véi se encantavam59. É através da dança
que os praiá trazem animação, expressam conquistas, boas energias, como também, podem
trazer prenúncios aos seus Zeladores, os quais são transmitidos, posteriormente, para comu-
nidade.
Contam os mais velhos que nas últimas décadas do século XIX, haviam apenas nove
praiá (forguedos) levantados (tecidos), para cada forguedo levantado havia um moço de
praiá. Até meado do século XX, durante a atuação do Cacique, Pajé e Zeladores deste
mundo, foram tecidos outros 16 forguedos de fibra, se totalizando 25 Encantados, ficando
conhecidos como: os 25 Mistérios de Pankararu. Cada Encantado deixou um praiá para sua
personificação nesse mundo. Luís Caboco, foi chamado para representar e dançar como
moço de praiá de Mestre Andorinha, zelado e sustentado por Maria Chulé (até meado do
século XX).
O moço de praiá desempenha um papel importante para a Tradição Pankararu. É
através de suas performances executadas nos Terreiros, no ato de dançar, que ele se conecta
com parte da força do Encantado e o “traz” para este mundo. Os praiá tem que pisar (dançar)
nos Terreiros levantados na Aldeia Pankararu (se for convidado). Enquanto seguem para seu
destino, ao andar pela comunidade, sua presença é reforçada, logo os indígenas o identificam
pela cinta (uma parte da vestimenta que fica nas costas do forguedo), e gritam: “Olha meu
avô! Deus acompanhe – vá com Deus e os pai véi”, outros pedem benção e o segue para ir
para os praiás (a expressão os praiás com “s”, é para dizer que vai ao ritual, quando não se
sabe se é Menino do Rancho ou Três Rodas).
Segundo Tõe Caboco, seu pai o dizia que os praiá estão nesse mundo para serem
convidados e irem visitar sua irmandade em seus Terreiros de fibra (apenas nos principais).
Não se pode dançar em qualquer lugar. Ao chegarem lá, nos Terreiros convidados, vão dar
início ao trabalho, ou melhor vão “brincar” uns com os outros. – A participação (a presença)

58
Atualmente local extinto após a construção da Barragem Hidroelétrica de Itaparica, entre os Municípios de
Jatobá e Petrolândia – PE.
59
Para maiores informações sobre a antiga cachoeira ver Arruti, 1996 e Oliveira, 1942.

99
do praiá convidado no Terreiro para dançar com sua irmandade, é para manterem estreitos
os laços de união, respeito e força entre Zeladores, Encantados e comunidade.
Naquele tempo-bom não era “qualquer” indígena que quisesse pisar forte com um
forguedo do Encantado que podia. Para vesti-lo tinha quer ser merecido (chamado). Quando
o jovem se torna moço de praiá, ele é exclusivamente responsável pelo forguedo, não po-
dendo dividir a vestimenta com outro moço, pelo fato de que seu suor está presente, encar-
nado naquele ropante sagrado. O que o “torna parte de seu corpo”. Para explicar melhor,
Jararaca, dá um exemplo:

“A farda de um militar, ou uma roupa [jaleco] do médico pode até servir pra mim,
mas se usar onde ele trabalha não vou desenvolver a função do militar, ou do médico
por não saber o que se deve fazer na hora do pega pra capar [cumprir com a função]
a mesma coisa é com esses ‘Homens’ de kroá (croá) aqui”. Jararaca, 2018.

O moço de praiá quando veste o forguedo para dançar, ele torna-se uma extensão a
materialização Encantado aqui nesse mundo. A Zeladora deve sempre acompanhar “seu”
praiá, observá-lo enquanto dança no Terreiro e se relacionar com sua irmandade. Ela,
mesmo distante, deve estar em sintonia com o praiá de seu Tronco.
Segundo Jararaca, o moço de praiá, assim como aqueles moços e as moças que dan-
çam nas Corridas de imbú, antigamente tinha de ir para o mato e ficar lá de 10 a 15 dias
apanhando ciência, limpando o corpo, para quando colocar o forguedo, ou se pintar de tauá
estar leve, estar na ordem em sintonia com o sagrado e dançar com alegria. Essa era uma
lição bem-feita por seu pai, Luís Caboco. Ele ia para mata e ficava dias. Quando saia dela,
ele ia direto para o poró, só depois que acabasse sua disciplina que ele voltava para sua casa.
Luís Caboco entre 20 a 22 anos de idade, participou das Corridas de imbu. Abaixo
segue uma foto dele e de seus parentes antes do ato da Queimada de cansanção. A imagem
foi registada por Carlos Estevão de Oliveira na década 1930.

100
Figura 17. Luís Caboco, o segundo da esquerda para direita. Participando da Queimada de Cansanção. 1935 - 7. Imagem
de Estevão de Oliveira. C. Fonte: CMTVP.

Puxar (cantar) Toante e Toré

O maracá e o Toante são os primeiros atos para abrir qualquer ritual Pankararu. É
também a maneira de chamar (evocar) os Encantados. Cada Encantado tem mais de um
Toante e todos são diferentes uns dos outros. A variação de Toantes existentes são para
chamá-los de acordo com a situação que se faça necessária, por exemplo, para abrir e fechar
as atividades rituais no Terreiro, para o momento de párea, de entrega, fazer os praiás res-
ponderem aos comandos enquanto dançam entre outras atividades.
Em festa-ritual e nas promessas sempre há dois cantadores, enquanto um canta o
outro fica na expectativa para substituí-lo. Porém há casos que um único cantador fica noite
e dia cantando. O cantador fica no braço direito no Terreiro, no sentido norte, quando é uma

101
festa-ritual de Menino do Rancho ou promessa. Já n’A festa do imbu, durante os passos as
cantadeiras ficam posicionadas no sentido Leste, nascente, na cabeça do Terreiro.
Há Toantes específicos para ser puxados (cantados) apenas no momento de dançar o
Toré. Sempre aos finais de todos rituais são dançados três Torés – cada Toré tem um Toante
diferente – o cantador fica ao centro do círculo enquanto os praiá e espectadores rituais
participam dando voltas dançando em páreas. O Toré é uma ocasião que todos, espectadores
e protagonistas rituais, podem participar, é um momento de integração daqueles que estão
no espaço ritual sagrado para finalizar a festa.
Já nas cantorias (nas curas) os Toantes são puxados de outras maneiras, ou seja, os
Zeladores ficam por alguns segundos balançando suas marcas (maracás) até o Toante ir de
encontro com quem o chama. Nas cantorias a prática é diferente daquela exercida no Ter-
reiro como descrevo a seguir. Mas ambas devem ser seguidas a risca.
É comum para os Pankararu cantarolar Toantes, principalmente Toantes de Toré por
ser mais animados e permitidos no dia-a-dia, sejam enquanto as crianças brincam, como
também, nos afazeres dos mais velhos enquanto plantam, constroem, limpam e etc. Para nós,
espectadores-protagonistas Pankararu, cantarolar os Toantes são formas de trazer energias
positivas da natureza, para que as nossas tarefas tenham sucesso; além de nos manter em
sintonia com os Encantados que conhecemos.
Já o ato de puxar Toantes, para os Zeladores de Tonã, é diferente. Os Zeladores, tem
uma noção de especialista ritual. Devido sua disciplina e dedicação, quando um cantador
puxa um Toante é para trabalhar, seja em Terreiros (aqueles Zeladores que tem autorização
de cantar em Terreiros) ou em cantorias, nas curas/divertimentos.
O cantador tem um papel importante para que os rituais Pankararu sejam executados.
Existem vários Zeladores, mas, entre eles há aqueles que podem cantar em Terreiro e outros
apenas em rituais restritos de acordo com a função do Encantado que zele. Os Zeladores, ao
puxar um Toante ele evoca um Encantado, diferente de nós, espectadores-protagonistas Pan-
kararu por ter se preparado por dias ou semanas para aquela ocasião.
Luís Caboco, atuou como Cantador de Terreiro por décadas, realizou incontáveis
rituais de Menino do Rancho e Três Rodas destinada aos Encantados de sua ordem de seu
Tronco. Enquanto Cantador foi responsável pelas ações realizadas naquele espaço ritual sa-
grado, contando com auxílio de outros Zeladores e de seus filhos para determinadas obriga-
ções sejam no poró ou para substituí-lo quando cansasse.

102
Como especialista ritual ele teve um papel central nas relações sociais e políticas da
comunidade. Pois os Zeladores, especialmente os que são Cantadores de Terreiro tem des-
taque em tomadas de decisões nos assuntos que envolvam toda comunidade.
Depois que Luís Caboco ficou atuando como cantador, ele pedia para que os moços
que representava seu batalhão (que dançassem nos forguedos) fizessem esse mesmo cami-
nho para aprender com a Natureza.

A prática dum curandeiro Pankararu

As maiores informações orais (e escritas) que se tem de curandeiros entre os Panka-


raru são d’as três Marias (Pedro, Calú e Chulé) e o véi Sará (Serafim de Sá) como detentores
de grandes habilidades sobrenaturais. É por certo que existiu, como existem, tantos outros
curandeiros, embora nenhum se compare às suas atuações e habilidades daqueles que fun-
daram o Tronco Velho. Cada tempo, ou melhor, em cada geração existem aqueles que se
destacam por acessar grande parte da Ciência Pankararu. Nesse tempo, o qual me foi con-
temporâneo, tínhamos Luís Caboco, João Chulé, Firmina Calú, Zidorinha, a véia Nana60,
Narciso Pedro e Joaquim Serafim como grandes referências nas práticas de cura.
Entre os Pankararu, antes da reorganização social e política, não existia uma única
figura conhecida que centralizasse ou tomasse referência da prática de cura como a de Pajé
(xamã). A maioria dos Zeladores possuem o dom de curar através dos Encantos que zelam.
Cada Encantado desempenha uma habilidade de cura em particular, transferindo parte de tal
conhecimento para “seu” Zelador – o um especialista ritual que desenvolvera sua especiali-
dade.
Os especialistas rituais citados a cima desenvolveram habilidades e práticas deixadas
por em seus Troncos iniciados por seus pais, pelos Encantados i.e., pela própria Natureza.
Para melhor desenvolver sobre a habilidade dum curandeiro uso minhas experiências
por ter acompanhado Luís Caboco e o seu batalhão em especial o seu Capitão Mestre An-
dorinha em alguns atos de cura. Luís Caboco, foi pajé durante um tempo, assumindo essa
tarefa do véi Sarapó, por reconhecer sua habilidade de manusear a Ciência Pankararu.

60
Zidorinha e a véia Nana, foram Zeladoras de Tonã de grande prestígio social entre os Pankararu. Seguindo
a ordem da véia Nana, seu neto João Gouveia.

103
Existem trabalhos de cura e sessões de cura. O primeiro é quando se faz necessária a
cura. Quando a coisa é pesada. O segundo é quando o indígena sente a necessidade de ir a
uma sessão para que o(a) curandeiro faça o ritual (diagnóstico) a fim de encontrar um pos-
sível problema e neutralizá-lo antes que o deixe doente. É durante a sessão de cura que des-
cobre se há Encantados ou espíritos de entes próximos encostados naquele indígena.
Luís Caboco tornou-se referência no ato de cura entre os Pankararu e nas regiões do
rio São Francisco por desenvolver habilidade sobrenatural manobrada por Mestre Andori-
nha, pois quem cura de fato é o Encantado. Luís Caboco como Zelador de Tonã empresta a
sua matéria humana para que Mestre Andorinha se achegue próximo de seu corpo e faça a
cura. Por “emprestar” o corpo, Luís Caboco toma experiência, ou melhor toma conhecimento
de como proceder em determinada causa. Por exemplo, quando alguém for lhe procurar e
apresente os mesmos sintomas ele já sabe como proceder, pois, o Encantado já passou as
instruções para determinado caso. E se não for a mesma situação, ele se achega com novas
informações para que a pessoa (o indígena) seja curada.
Há casos em que o próprio Encantado se achega, fazendo o próprio ato de cura por
meio do sonho, alcançado tão pedido, a pessoa deve pagar seja Menino do Rancho ou Três
Rodas. Como descrevo a seguir:

“O Menino do Rancho, antes de ser um ritual de agradecimento pela cura alcançada,


era também um rito de passagem para poucos. Muitos perguntam como se ‘torna’ um
Menino do Rancho? [Na verdade ele é pedido pelo Encantado]. Meu irmão nasceu
com uma doença que nem os médicos das cidades vizinhas conseguiu diagnosticar,
devido a sua situação delicada disseram que ele teria apenas alguns dias de vida.
Depois daquela observação, Sando, meu irmão, voltou para casa com meus pais.
Tempo depois chegaram em casa, meu pai preocupado e cansado foi dormir e nesta
noite ele sonhou com uma voz dizendo: ‘dê ele pra mim’, e foi a mesma coisa na
segunda noite: ‘dê ele pra mim’, até que a terceira vez ele [o Encantado] falou com
meu pai ainda em sonho num tom bravo: ‘Essa é a última vez que venho pedi-lo! Dê
ele pra mim’. Então meu pai acordou atordoado na madrugada, pensou, pensou e
respondeu: – ‘é seu!’ – e voltou a dormir. Meu irmão que não chorava há alguns dias
começou a chorar na mesma manhã. Durante esses três dias meu pai, sabia do que se
tratava, mas por aflição deles, os Encantados, não terem indo antes, pai ficou na dú-
vida do que fazer, se deveria recorrer. E assim, meu irmão foi ‘dado’ por meu pai ao

104
Encantado Mestre Andorinha, fazendo de meu irmão seu Menino do Rancho. Como
meu pai tem um forte compromisso com os Encantados ele sabia qual era o “dono”
de meu irmão.
É hora de pagar a promessa! Aos 11 anos de idade, meus pais estavam em melhores
condições financeiras. Então meu pai falou com o responsável Zelador do Terreiro,
Luís Caboco e este falou com o moço do praiá que haveria uma promessa a ser paga
em seu Terreiro. Depois de confirmarem essa data, o moço, foi até meu pai dizer que
estava tudo certo para iniciar a ‘cerimônia’.
– Para os preparativos meus pais foram comprar arroz, farinha e um rolo de fumo.
Depois foram a uma loja comprar um tecido vermelho para fazer a roupa de meu
irmão. E por fim mataram um boi. Agora é hora de escolher a ‘noiva’ para o Menino
do Rancho. Esse é um dos primeiros passos depois que a data da cerimônia está con-
firmada com os responsáveis do Terreiro. O termo ‘cerimônia’ ainda é usado porque
outrora, quem fosse o Menino do Racho, já estava certo de que haveria de se casar
com uma ‘noiva’ escolhida pelos pais envolvidos na festa-ritual. Atualmente não fa-
zem mais essa cerimônia obrigando a ‘noiva’ e o Menino do Rancho se casarem. Mas
ainda é escolhida a ‘noiva’ e duas ‘madrinhas’ para participarem e acompanhar o
Menino durante todo o ritual junto com os ‘padrinhos’.
A festa-ritual Menino do Racho, começou no sábado à noite dançando apenas os
praiás orientados pelos cantadores Luís Caboco e Ocrido (Euclides). No dia seguinte,
domingo de manhã, o cantador, os praiás e os padrinhos foram em casa buscar o
Menino do Rancho. Ao chegar em casa, o dono dele, – o praiá dono do Terreiro,
acompanhado por padrinhos e os cantadores o vestiram com uma roupa, colocando
a cinta (roupa laterais) e uma bermuda vermelha, pintando-o com tauá (barro
branco), colocando a tira colo o rolo de fumo, ficando como uma alça de uma bolsa
capanga, finalizando a vestimenta com um chapéu de palha de licurí e logo o Menino
do Rancho estava pronto e preparado para ir a próxima casa buscar a ‘noiva” seguido
pelos praiás, padrinhos e espectadores. Chegando a casa da ‘noiva’, esta já deveria
estar pronta, os aguardando para dançarem três rodas no terreiro de sua casa. E para
fechar essa segunda parte da festa-ritual que dura a manhã inteira, vão buscar as duas
‘madrinhas’. Após pegar a primeira e a segunda ‘madrinha’ todos seguem para o
Terreiro de Mestre Andorinha. Quando chegamos no Terreio já tinha um pessoal de
nossa família preparando a comida (o dicomer) para todos os participantes do ritual

105
inclusive os espectadores da comunidade. Os pais do Menino do Rancho, geralmente
matam um boi, ou vários, carneiros para preparar o dicomer apenas com sal, alho e
pimenta do reino, acompanhado por um pirão e arroz branco.
Na festa-ritual do Menino do Rancho há uma disputa em jogo que se passa no Ter-
reiro, entre “padrinhos” que representam o nosso mundo, o mundo dos Homens de
um lado e no outro estão os praiás que representam o mundo dos Encantados, ficando
ao centro da disputa o menino. Na margem do Terreiro tem um rancho que é usado
em alguns momentos para colocar o menino dentro e ficando cercado pelos padrinhos
enquanto os praiás avançam para ver quem vence a barreira e consegue tocar, ou
pegar algum objeto que esteja no Menino do Rancho. Essa disputa é simbólica, pois
o Menino do Rancho já está curado e sob cuidado e proteção do Encantado respon-
sável.
Próximo de encerrar o ritual, todos os praiás, os ‘padrinhos’ e as demais pessoas que
estão em volta do Terreiro se juntam e começam a dançar três Torés para encerrar a
festa-ritual. Depois do Toré, o Menino do Rancho é levado ao local chamado poró,
que apenas homens a partir de doze anos podem entrar. O local conhecido como poró,
é semelhante a maloca de cana-braba, a qual meu avô mencionou que os antigos pais
de praiás iam fazer seus rituais na serra. É no poró que se passa de fato a finalização
do ritual, o Menino é cruzado com matringó [cachimbo] e o maracá, pelo cantador e
pelo praiá responsável, selando um compromisso entre Homens e Encantados. É
neste ato final o fumo de rolo é cortado em vários discos, fatias e dado entre os ho-
mens ali presentes. Depois desse encerramento todos saem do poró e vão à Fonte-
Grande 61, tomar um banho para tirar de seus corpos o tauá deixando o corpo leve e
protegido. Em seguida vão para suas casas no cair da tarde de domingo”. (Santos –
Pankararu, pp. 64 – 67. 2017).

Os Encantados tanto “usam” os Zeladores para alcançar e auxiliar aqueles que ne-
cessitam de intervenções como também vão direto ou próximo de quem precisa ser curado.
A cura estabelece um vínculo forte entre Zeladores, Encantados e indígenas, pois sempre
recorremos aos especialistas rituais para muitas tarefas.

61
Uma nascente sagrada e respeitada por todos pankararu, por haver um grande mistério em seus arredores.

106
Os filhos de tradição do Tronco Aciole

Atualmente os filhos de Luís Caboco sustentam os Mistérios e o Tronco fundado por


seu pai, especialmente Vicente (Jararaca), Antônio (Tõe Caboco) e Luzinete (Neta). Cada
filho desempenha uma, ou mais de uma, atividade que foi praticada antes por seu pai, em
particular cantar, curar ou de tecer “levantar” forguedo.
Vicente acompanhou muitas das atividades de seu pai, aprendeu alguns pontos, mas
nunca exerceu a atividade de curandeiro. Quando lhe chegou seu tempo, se achegou “seus”
próprios Encantados os quais se somam ao Tronco Aciole. De seu pai, seguiu apenas com
as atividades de Cantador e de liderança tribal.
Luzinete, mais conhecida como Neta, também é Zeladora de Tonã, Cantadeira e
curandeira, todas atividades foram passadas a ela por seu pai. Ela é recorrida por muitos da
comunidade para que possam ser curados de seus atrasos.
Já Tõe Caboco tem sua atuação estritamente na tradição, ele é o atual cabeceira da
família – responsável em zelar os Mistérios que foram do Tronco Chulé e atual Aciole. É
também o responsável por ter levado os Mistérios e de reabrir o Terreiro de Mestre Andori-
nha para a Aldeia Tapera, onde eram zelados por Maria Chulé e o véi Lorindo. Dos filhos
vivos ele é quem desempenha todas as atividades de seus pais, são elas, Zelador de Mistérios,
Curandeiro, Cantador e responsável por tecer (“levantar”) forguedos.

107
Figura 18. Da esquerda para direita estão Vicente, Antônio e Bernadete, os três filhos de Luís Caboco puxando o ritual da
festa-ritual Menino do Rancho. Imagem: Larissa Machada, 2018.

Figura 19. Da esquerda para a direita está Neta, também filha de Luís Caboco entre seus irmãos Vicente e Antônio. Os
três são Cantadores e Zeladores e Tonã. Imagem: Larissa Machada. 2018.

108
FIRMINA CALÚ – III

109
“A GEMA PANKARARU”

Firmina Calú nasceu nos primeiros anos do século XX, e faleceu em meado da dé-
cada de 1990 daquele mesmo século. Filha caçula de Maria Calú da Luz e Manuel Calú, foi
criada e residente por toda sua vida na aldeia Brejo dos Padres, no berço da tradição do
Terreiro de Capitão (Mestre) Afogais, conhecido com Terreiro Poente. Mãe solteira, rami-
ficou-se em duas Pontas de rama, Hilda Calú e Manuel de Olímpio. Os quais constituíram
ramas familiares aos arredores do Terreiro Poente, até então zelado por sua mãe, assim como
os filhos e netos de seus tios mais velhos, Miguel Calú e Maria Paturnia.
Tomando como estimativa a vida dos filhos, Manuel e Maria Calú, ambos são de
meados do século XIX. A primogênita do casal foi Maria Paturnia, mãe de três filhos, são
eles, Maria Filomena (conhecida como Bia)62, José Monteiro (conhecido como Duó) e Adão
Monteiro; o segundo filho do casal foi Miguel Calú (nascido na década de 1890 e falecido
na década de 1980) pai de seis filhos, são eles, Theodora, Pedro, Crispim, Balbino, Marta e
Constância; e por derradeira a filha do casal, Firmina Calú, mãe de dois filhos já menciona-
dos. Essas três Pontas de ramas, os filhos do casal Calú, tiveram sua infância centrada no
Tronco da tradição praticada por seus pais, tios, primos carnais63, sobrinhos e, sobretudo,
pela comunidade.
Todos do Tronco Calú se somavam naquele mesmo espaço sagrado durante as ativi-
dades rituais. Os circuitos rituais têm um papel importante de juntar num só lugar as Pontas
de rama (famílias) que estão em outras localidades que não só na TI Pankararu, como tam-
bém, indígenas provenientes de outros povos dos sertões nordestinos.

62
Bia na genealogia está referida Cantadeira,
63
Primo/a carnal entre os Pankararu é o primo/a primeiro de grau. Geralmente os/as primos/as são criados aos
arredores dum Tronco Familiar comum, e por este motivo todos tornam-se próximos, considerando uns aos
outros como irmão.

110
Figura 20. Genealogia do Tronco Calú (adaptada). Fonte: Mura, C. Diagrama III. 2013.

Figura 21. Esquema gráfico de parte da genealogia de Miguel Calú. Bartolomeu Santos, 2019.

111
Observação: este esquema prático apresenta a relação do interlocutor João Pinto com o
Tronco Calú, e a minha ligação com tal tronco. E por não haver mais tempo para uma ade-
quação, não sendo ampliada a genealogia apresentada por Mura (2013).

Nas primeiras décadas do século XX, Firmina, seus pais, irmãos, sobrinhos e demais
parentes, por viverem em condições extremas infligidas pela seca do sertão, moldaram-se a
geografia e as circunstâncias entre outros elementos de seu tempo garantindo a sobrevivên-
cia. Para se alimentarem desenvolviam trabalhos agrícolas nas roças durante a época de plan-
tio. E aos finais de semana se mantiveram fortes ao praticar suas brincadeiras, pois essas
duas atividades fazem parte da rotina daquela vida árida dos indígenas do sertão. Nessa
época era comum que as crianças, muito cedo, produzissem vassouras, chapéus, abanos com
o uso de palhas de licurí e esteiras (tapetes) com palhas de bananeiras ajudando seus pais na
confecção e posteriormente a venderem suas peças nas feiras das cidades vizinhas, de Petro-
lândia (velha), Tacaratu e de Paulo Afonso. Com o dinheiro compravam alguns alimentos
mais necessários. A maior compra feita pelos indígenas daquele tempo era a de arroz e sal,
isso porque entre os indígenas sertanejos ainda não havia energia elétrica, muito menos ge-
ladeira em suas casas. Salgando as carnes de caça, essas ficavam sem estragar dias, até
mesmo a semana inteira.
Em sua infância Firmina demonstrava ser sensível e reagia às práticas rituais realiza-
dos por seus familiares. Sua dedicação e interesse a fez entrever que estava a dar continui-
dade a ordem praticada pela sua família. Pois seu chamamento teve afinco antes mesmo de
participar das atividades d’A festa do imbu (ritual executado anualmente no Terreiro Poente).
Sua participação nos circuitos rituais é desde seu nascimento64, como a maioria dos indíge-
nas daquela época eram flechados ou desejados pelas forças contrárias. Posteriormente ela
acompanhou sua irmã mais velha nas atividades rituais do Poente. Mas, aflorou-a sua parti-
cipação durante sua adolescência ao fazer parte, integrando-se A festa do imbu, como uma
das moças d’A noite dos passos. Ao demonstrar possuir grande desempenho tradicional,
ocupou uma das posições de destaque durante sua participação no ritual da Noite dos passos,
ficando no coice (ou melhor, na retaguarda) durante a dança dos praiá –, círculo ritual feito
pelos protagonistas dessa festa, e na cabeceira (na dianteira), puxando o batalhão de Tonã

64
Os partos eram realizados nas casas sob a execução de uma parteira experiente em cura, conhecida como
mulher que pega menino. Para fazer o parto se usa ervas, chás, defumando entre outras técnicas se apegando
aos Encantados para que tudo ocorra bem e assim fechando o corpo da criança e da mãe.

112
sua irmã, Maria Paturnia. A cabeceira e o coice, são duas posições importantes que marcam
na abertura e no fechamento os movimentos dos Tonã no Terreiro.
As moças que se dispõe a participar do ritual podem ser “tiradas” (escolhidas) depois
da menarca (primeira menstruação). Após essa fase as moças já podem se posicionar como
candidatas a serem escolhidas pelos praiás, e assim participarem d’A Festa. Embora no pe-
ríodo em que elas estejam menstruando, não podem participar d’A noite dos passos, por uma
série de tabus. O principal tabu é pelo fato de a menstruação deixar o corpo vulnerável,
portanto nesse período, as moças ficam com seus corpos abertos e, estando nessa situação,
os espíritos e entidades podem dominá-lo, torná-lo alvo fácil para ser flechado (“pego”) o
que pode causar serias doenças na adolescente. Esse é um dos motivos pelo qual a moça
deve se resguardar até passar seu período menstrual, mais três dias tomando banhos com
plantas medicinais para que seu corpo fique limpo e fechado.
Já no final de sua juventude, Firmina, participava e observava de perto os rituais mais
particulares, tais como, cantorias e divertimentos. Tais atos a fizeram ganhar experiência
além de ir deixando-a mais “próxima” ao trabalhar junto aos Mistérios zelados por sua fa-
mília. Foi no período final de sua mocidade que iniciou a fazer seus pontos e pedidos a Eles,
aos Encantados, com mais afinco por alumiações.

II.

Seguindo o curso das narrativas fundacionais, elas nos dizem que o Tronco Calú é
um dos principais fundadores do Aldeamento Indígena Pankararu. É Tronco de força tradi-
cional, social e político. Como dito por João Pinto, aprendiz de sua tia-avó Firmina Calú, “a
família Calú é a gema Pankararu”65. Os Calú são (ou deveriam ser) reconhecidos como os
filhos da noite ou da lua, pois são ligados ao Terreiro Poente e lá, naquele espaço sagrado,
fazem suas atividades rituais noturnas. Aquele Tronco tradicional preza pelas relações soci-
ais entre seus semelhantes. É também em seu Terreiro que os Calú manobram e celebram a
maior atividade ritual junto à comunidade, a sagrada Festa do Imbu66. Tendo como ponto
mais alto as práticas noturnas – A noite dos passos.

65
Após fazer essa afirmativa João Pinto, completa ao dizer que os Pedro, Chulé e Binga também são partes
constituintes do que ele chama de: a gema Pankararu.
66
Irei retomar descrevendo as fases do ritual da Festa do imbu na sequência.

113
Esse ritual é ordenado pelas Cantadeiras dos passos –, a primeira Cantadeira (desde
que se têm lembranças) foi Maria Calú, Zeladora dos Mistérios e fundadora do atual Ter-
reiro Poente. Ela contava com o auxílio de Maria Pedro, (Zeladora dos Mistérios e funda-
dora do Terreiro de Capitão Dandaruré67), para manobrarem os rituais d’A festa do imbu.
Ambas Cantadeiras revezavam a cabeceira, para sustentarem os 25 Toantes entoados du-
rante toda noite, enquanto os praiá executavam suas performances apresentando uma parte
da história e das práticas Pankararu na Noite dos Passos.
Após Maria Calú mudar de mundo, seguindo com sua ordem ficou Firmina Calú,
Miguel Calú e Maria Paturnia, seus três filhos, “herdeiros” e responsáveis de darem sequên-
cia à ordem no Poente, aos Mistérios, aos Praiás/Tonã e as ramas que estavam brotando do
Tronco Calú, para executarem de ano em ano durante suas vidas nesse mundo a sagrada
Festa do Imbu.
As atividades tradicionais realizadas anualmente nos Terreiros Poente, Aratikum e
Muricizeiro68 mantêm a comunidade unida e centrada, pois este é um momento especial e
aguardado por todos da comunidade para celebrar, agradecer e oferendar aos Encantados
pelos pedidos menores e maiores alcançados, os mais recorrentes são, paz, saúde, curas, boas
colheitas entre outros.

III.

Essa narrtiva torna-se complexa por ter de lidar com questões que pertencem a Eles,
ao campo do não-dizer, ou como é dito pelos Zeladores: “é da Ciência Pankararu”. As ati-
vidades praticadas pela família Calú estão na esfera do Sagrado, do Tradicional e da Natu-
reza; portanto falar da Zeladora Firmina Calú, como qualquer outra memória de Zeladores,
é invadir o campo da dita Ciência Pankararu. Porém, essa “invasão” se faz necessária por
ter como proposta: – buscar a memória de um Tronco Velho Pankararu, estabelecendo
uma interlocução com aqueles que hoje em dia são os responsáveis por atualizar tal
tradição. Por se tratar de uma das famílias fundadoras da Tradição contemporânea Panka-
raru, suspendida inicialmente pela ordem de sua mãe, Maria Calú, é importante destacá-la
assim como os seus filhos (as Ramas) e atualmente segurado por seus bisnetos (as Pontas de
rama), nas tarefas já mencionadas (de zelar o Terreiro Poente, os Mistérios, os Tonã e os

67
Como já abordado na biografia de Narciso Pedro.
68
Cada um daqueles Terreiros representa uma das três correntes fundadoras de Pankararu.

114
rituais). – São as atividades praticadas nos “bastidores” pelos Zeladores que suspende e sus-
tenta a comunidade indígena Pankararu, por estarem na obrigação, dando manutenção diária
junto aos Encantados.
A “escolha” de escrever a trajetória sobre a véia Firmina me veio involuntariamente.
Até então tinha planejado para escrever uma biografia sobre Maria Filomena (Bia), por todos
da comunidade quando se referem ao Terreiro Poente (das Calú) de “terreiro de Bia”. Ao
conversar com meu pai sobre minha intenção de pesquisa, ele me indica meu vô para falar
sobre o assunto. Mas, antes de falar com ele, meu avô, sobre fazer uma biografia da véia
Firmina, conversei com outros Zeladores, em diferentes aldeias (Serrinha, Tapera, Carrapa-
teira, Jitó, Brejo dos Padres entre outras). Naquelas conversas tive informações preciosas
fornecidas pelos Zeladores de Tonã, os quais sempre se referiam a véia Firmina como mulher
de fibra. Mesmo com os poucos dados que obtive sobre sua trajetória foram suficientes para
me fazer guardar o nome Firmina Calú. Fiquei mais empolgado quando descobri, ao entre-
vistar meu avô paterno, João Pinto, que ele foi seu primeiro e único filho de tradição, vi-
vendo com sua tia-avó no Poente, até o momento de ela mudar de mundo. Em nossas longas
conversas foram levantados diversos pontos sobre a família e especialmente da tradição, os
quais desconhecia ou conhecia parcialmente, ou mesmo outra versão distante da narrada por
ele.
Firmina Calú por seguir a ordem de seus pais, junto aos seus dois irmãos, mantiveram
as boas relações familiares com as demais famílias Zeladoras da tradição do Tronco Velho
Pankararu, mesmo sendo uma Rama de outro Tronco familiar tradicional e não ter uma par-
ticipação política semelhante às três sementes tradicionais. Por esse motivo percebi, ou
como meu avô sempre diz; veio-me a noção de que ela deveria ser a pessoa descrita do
Tronco Calú.
Essa etnobiografia será uma tentativa de desenvolver uma imagem do “elemento fe-
minino” Pankararu a partir da trajetória da filha da lua Firmina Calú. Para tanto, abordamos
os elementos cruciais de sua prática tradicional, entre elas, Zeladora de Terreiro e de Tonã,
Cantadeira e especialista ritual. Tais atividades serão entrelaçadas com o presente, partindo
especialmente da tradição, já mencionada, organizada pelo Tronco Calú.
Tradições, Tronco e Pontas de rama

115
“[Foram] os mais véi que manejaram a ciência, eles não deram, mas deixaram algo
pros seus filhos, [deixando para os] netos e alguns bisnetos. Os pais, assim como os
mais véi, podem mostrar [alguma prática] a quem tem o Dom, mas quem vai ensinar
é Deus e Eles. (...) Foi por isso que Eles viajaram [para o outro mundo] porque quem
tem o dom da Natureza (...) é que ensina, como ensinaram os de primeira geração”.
João Pinto, 2018.

Segundo João Pinto, a Natureza deixou quatro gerações nos quatro cantos desse
mundo material. A primeira geração foram os índios; a segunda foram os africanos; a terceira
foram os índios de mesa branca (os Sarapó69) e por derradeira, a quarta, os brancos (ociden-
tais). A última geração trouxe consigo a destruição do conhecido, ou a reconstrução do des-
conhecido. Cada uma dessas gerações se estabeleceu de acordo com seus locais e momentos
de sua origem. Aqueles que surgiram na noite tornaram-se filhos dela, da lua. Os que nasce-
ram pelo dia tornaram-se filho dele, do sol. As duas últimas gerações que surgiram entre os
dois momentos, noite e dia, escolheram se posicionarem ficando ao meio, uma ficou posici-
onado para cima ficando ao céu e a outra se posicionado mais abaixo, essa ficou como a terra
(o chão).
Nas primeiras descrições etnográficas de Estevão Pinto (1938) e Oliveira (1942) suas
hipóteses sobre a organização social indígena Pankararu são descritas basicamente em duas
bandas “isogâmicas” (exogâmicas). A primeira os “filhos da lua” e a segunda os “filhos do
sol”, porém não há descrições e nem narrativas mais profundas sobre tais arranjos parentais
exogâmicos. No entanto, as velhas famílias revelam que prezavam suas relações com outras
famílias de seu círculo ritual, a fim de manterem suas tradições num núcleo familiar já con-
solidado. Tal prática é o que constitui o Tronco familiar. A exemplo, o Tronco Calú sempre
teve relações tradicionais, especialmente, com o Troco de Maria Pedro e do véi Sará. Os
quais são de bandas distintas dessa. Após a refundação, do reconhecimento e atuação do
Serviço de Proteção ao Índio na Terra Indígena Pankararu, essas duas bandas ficaram repre-
sentadas por dois Terreiros, Nascente e Poente. Tal reorganização pode ter quebrado e in-
fluenciado ainda mais nas relações conjugais da comunidade, ao que se aparenta tornaram-
se amplas, com menos imposições por parte das famílias tradicionais, segundo os Zeladores.

69
O Sarapó é um peixe. Acredita-se que os índios de terceira geração tenham vindo da água, diferente daqueles
que vieram de primeira geração, da terra. Os Pankararu são de ambas gerações, primeira e terceira. Cada gera-
ção desenvolve atividades específicas ligadas aos seus Encantados. Como já mencionado existem Encantados
que cuidam, protegem seu domínio seja na terra, na água ou no céu.

116
Atualmente as famílias contemporâneas do Aldeamento Indígena Pankararu, são di-
vididas em duas classificações, Troncos e Pontas de rama. Um Tronco pode ser formado por
várias relações familiares segmentares, as quais tendem a sustentar uma velha família de
maior protagonismo ritual.
Numa primeira observação, para as novas gerações, as divisões podem não ser notá-
veis por elas darem forma a uma comunidade sertaneja rural comum. Porém na medida em
que se aprofunda a observação percebe-se os traços existentes de uma organização social
propriamente nativa, que se molda ao contexto em qual está desenvolvendo-se em Pontas
de rama. As Pontas de rama são famílias que descendem como uma das finalidades de man-
ter as atividades rituais de seu Tronco Velho; depois serão chamadas de aldeias ou locais
com nomes característicos que façam referência às famílias fundadoras daquele espaço ha-
bitado.
As Pontas de rama têm basicamente o papel de sustentar, ao mesmo tempo que es-
tendem suas relações agregando novas famílias, ao seu tronco originário assumindo as obri-
gações familiares. Quando possível as Pontas de rama levantam seus ranchos próximos de
seu Tronco Velho, geralmente às margens dum Terreiro, desse modo, acompanham ou rea-
lizam as atividades rituais restritas com mais frequência.
O levantar de seus ranchos próximos a sua velha família é feita geralmente pela via
virilocal. Como referência primária, as Pontas de rama estão fincadas ou tomam como men-
ção aos quatro Terreiros fundacionais nas direções cardeais (Leste, Oeste, Norte e Sul) que
encruzou a Terra Indígena Pankararu, definidas pelos Zeladores junto ao investigador Calos
Estevão em 1935, usando as narrativas simbólicas das primeiras Zeladoras que contam a
origem de seu Tronco Velho familiar. Essas narrativas sobre os Terreiros fundacionais, tor-
naram-se uma espécie de memória guarda-chuva para as Pontas de rama descreverem suas
origens. Como de costume seus descendentes, ao levantarem seus ranchos aos arredores dos
Terreiros fundacionais, dão manutenção e continuidade à memória e às práticas. Por outro
lado, existem Pontas de rama que se agregam por regiões da comunidade indígena de acordo
com as terras da família, com suas funções ou mesmo pela nova aliança conjugal, suas novas
famílias. Há casos mais isolados em que sujeitos de destaque constituem ou se mudem para
locais distantes, e mesmo longe do espaço ritual sagrado continuam nas funções centrais na
ordem de seu Tronco familiar.
As Pontas de rama apanharam (aprenderam) muito das narrativas e conhecimentos
de seu Tronco Familiar pelos três filhos de Manuel e Maria Calú. Assim como eles tomaram

117
a ordem de seus pais. Maria Calú, tornou-se uma referência simbólica atemporal por ter uma
intensa experiência tradicional ao zelar o Terreiro Poente e seus Mistérios. Ela teve uma
participação marcante durante investigação realizada entre os Pankararu por Carlos Estevão
de Oliveira nos anos de 1930. É importante destacar que essa investigação apartou as famí-
lias fundadoras ao delegar funções políticas as sementes, pois cada tronco quis assegurar
suas patentes. Após as novas sementes desempenharem suas funções de Cacique, Pajé e Ca-
pitão, as mulheres deixaram de ter papeis centrais nas funções que antes exerciam.
As práticas e organização da família Calú já vem de raiz. Por esse motivo as crianças
têm um papel fundamental para a manutenção da tradição de seu Tronco Familiar. As crian-
ças são as sementes que seguirão com a tradição, com os hábitos dos mais véi. Desde cedo
os mais novos participam, se “alimentam” de práticas, destinadas ao povo, que são de todos.
Na medida que a criança vai tomando gosto, vai germinando, amadurecendo e estabelecendo
uma forte devoção, carisma com o ritual e sobretudo com Eles, os Encantados. Os rituais
públicos são um dos momentos de contato importante para despertar entre os mais novos o
envolvimento (pertencimento) às tradições e práticas rituais. Geralmente eles são acompa-
nhados pelos seus pais, que em contrapartida vão explicando as dúvidas que surgem durante
a realização do ritual.
Os Zeladores acreditam que as crianças são sementes que darão continuidade com a
nossa tradição Pankararu. Por este motivo é preciso cultivá-los, deixá-los próximo das nar-
rativas históricas dos mais véi. E aqueles que despertarem o Dom seguirão com nossas brin-
cadeiras e com a ordem de sua família.
Era a veia Firmina que determinava os dias que os indígenas fariam suas peregrina-
ções políticas, pois durante o manejar de sua reza, ela recebia avisos da natureza de como
seria a viagem, se o trajeto seria seguro, se encontrariam o que procuravam entre outros
presságios.

O ato de apanhar conhecimento

As comunicações se dão de diferentes formas. Formas definidas por Eles, os Encan-


tados. Quando entrevistei meu avô percebi que nele há uma grande fonte de conhecimento
sobre as práticas tradicionais dos Pankararu. O que sempre me deixou curioso; então um dia

118
o perguntei: — “como o senhor sabe essas coisas, foi Firmina Calú que lhe passou [ensi-
nou]”? Respondendo, disse: “só basta dizer isso, quem ensina é a Natureza, você sabe!”.
Depois desse primeiro encontro tentei organizar meus pensamentos baseados naquela con-
versa inicial, lembrei de fatos que me ocorreram os quais descrevi para ele há mais de uma
década. No entanto, comecei a entender o que ele dissera naquele primeiro encontro, após
seguirmos com nossas conversas, pois ao finalizá-las ele sempre completava dizendo algu-
mas frases seguindo a ordem: “o que eu sei, aprendi com a natureza (...), ela tá aí pra nos
ensinar, basta dar valor. O valor que eu digo, é cuidar dela, porque ela é quem cuida de nós.
(...) Ela [a natureza] nos ensina e nos mostra por onde devemos caminhar nesse e noutros
mundos...”.
Numa declaração sua ficou um pouco mais claro quando ele disse: “Tia Firmina, me
passou muito do que sei, mas foi tia Paturnia que ‘mostrou’ como fazer pontos de conexão
com os Encantados, com a natureza”. Maria Paturnia tinha a experiência de que nada se
“ensina”, pois, essa tarefa de se “ensinar” não é da matéria humana. Para ela, quem quer
aprender tem que apanhar (pegar) o conhecimento transmitido pela própria natureza, pelos
Encantados. O que se pode fazer é “mostrar” os pontos e se o sujeito merecer Eles vêm
ensinar. Isso porque o Saber, a noção, só é uma e toda ela tem seu dono que não somos nós,
os humanos, são Eles.
Os Pankararu sabem ou deveriam saber que só se estabelece os canais de comunica-
ções com a Natureza, i.e., com os Encantados, se o sujeito tiver ou despertar o dom para
alcançar as comunicações com Aqueles que vivem nos astros. Para isso é preciso saber dis-
tinguir sonhos, avisos, sinais e outras formas de conexões com as nossas vontades. Pois a
conexão verdadeira se dá (ou se dava) pela manifestação nos astros representados pelos ele-
mentos da Natureza. É sabido que há comunicação manifestada pelos sonhos. Neles são
apresentadas maneiras de lidar com ciência, sobretudo, para as Zeladoras de Tonã as quais
estão mais próximas a Eles em os ambos os sentidos, material e sensorial.
A véia Firmina por viver dentro da tradição e ter acompanhado as ações de seus avós,
tios, pais e irmãos apanhou muito da ciência, das experiências que ali eram praticadas pelos
filhos da lua de primeira geração. Como ela passou ao seu filho de tradição ao dizê-lo: “ói
meu fi, observar e guardar como se faz os pontos não é suficiente, pois mesmo que se apanhe,
conheça todas as manobras sem a permissão Deles não serve. E outra uma vez que apanha-
mos o conhecimento não devemos derrubá-lo. Escute o que tô dizendo!”. É por este motivo

119
que os mais véi são apenas Zeladores de seus Mistérios, porque o conhecimento, o saber, a
noção é Deles e são exclusivamente os donos que tem que ensinar.
As lembranças guardadas pelo meu avô sobre suas idas à procura de sua tia-avó para
escutá-la são mais ou menos de seus sete anos de idade. Porém, por ser muito novo não podia
participar; era muito cedo para ele e por este motivo não suportaria as atividades da força da
tradição. Mesmo assim ele sempre acompanhava sua tia-avó às feiras nas cidades da região.
Nessas idas ela sempre dizia alguma coisa para ele, além das muitas histórias contadas.
Como naquele tempo não havia energia, as distrações eram contar histórias, observar as es-
trelas, ler os sinais do tempo, conversar com a natureza e, aos finais de semana, participar
ou assistir os praiás saírem para dançarem como de praxe.
Quando meu avô completou seus 14 anos de idade começou sua disciplina com Fir-
mina Calú, por ela já está ciente de que ele estava “pronto”, então iniciaram suas longas
sessões. Como via de regra, meu avô deveria sempre aos sábados levar um “meota”70 – de
vinho e de preferência o vinho branco – para que seguissem com as tarefas. Esse ato era uma
permuta, um pedido de permissão a Eles para mostrá-lo os pontos.
Passaram alguns anos, segundo ele, entre seus 20 a 22 anos, passou para outro “ní-
vel”, começou a sentir o peso da Tradição Calú. Por ser jovem pôde observar muito os mais
velhos em seus atos rituais. Por ser homem podia frequentar o poró – espaço restrito para as
mulheres. Por ele ter alcançado os conhecimentos de uma zeladora de fibra pôde associar
suas práticas com aquelas praticadas pelos homens no poró, o que o fez ser conhecedor da
Tradição Calú. Mesmo após seu casamento, ele manteve suas idas para a casa de sua tia-avó
passando as manhãs em sua companhia, pois para ele sempre havia algo a ser apanhado. Foi
sua dedicação que o fez ser a cabeceira do Tronco Calú.
Os netos e sobrinhos de Firmina narram que ela tirava todo seu conhecimento das
situações que se manifestavam a sua volta. Ela acreditava que tudo está conectado por um
cordão de forguedo. O cordão de forguedo é um fio que ultrapassa as barreiras erguidas
entre os mundos, material e espiritual. Já para o Tronco Pedro, o cordão de forguedo é uma
linhagem parental a qual todos os descendentes estão ligados ao seu tronco pelo cordão de
forguedo. Quanto mais descendentes mais largo se torna o cordão, aumentando a ordem
Tradicional familiar.

70
¼ de bebida, nesse caso ¼ de vinho branco.

120
O manejar da ciência Pankararu

“Todo e qualquer conhecimento só vem da natureza. Vem e volta. Ela dá, ela tira.
Muita gente atenta, mas num tem quem tire... porque o que a natureza deu só quem
pode tirar é ela, mais ninguém. Diferente, cedo ou tarde, ela nos tira tudo, tudo
mesmo.” João Pinto, 2018.

A Ciência Pankararu vem da Natureza. Dela vem todo conhecimento e é para este
lugar, de onde vem, que ele há de voltar. No mundo da Natureza existem seres que vivem
dentro de suas fronteiras, como também, peregrinam em outros domínios que não os seus
por mediação de cordão de forguedo. Cada Ser regula suas relações existentes com seres de
outros mundos. O “mundo Pankararu” se regula em três, são eles: nós, os Humanos, Eles, os
Encantados, ambos do mundo dos vivos, e os espíritos, do mundo dos mortos. Algumas
famílias de Pankararu “trabalham” com estes seres, Encantados e espíritos, por estarem em
suas famílias há diferentes gerações; o que torna uma atividade de transmissão de conheci-
mento.
São nos momentos de precisão, especialmente entre Zeladores e beatas, que se esta-
belece uma comunicação entre Eles, os Encantados e os espíritos (dos mortos chamados de
Guia de Luz) e nós, os humanos. É a partir dessa comunicação que se iniciam as novas rela-
ções, que se estendem a cima das fronteiras mantidas por nós e Eles. A comunicação se dá
através dos circuitos rituais, são nesses momentos que se maneja a Ciência Pankararu e
estabelece uma nova fronteira, uma fronteira possível de contato, de troca de conhecimento
entre Eles e nós.
Segundo João Pinto, quem deixou as primeiras Zeladoras de Tonã foi a Natureza71.
Entre as primeiras Zeladoras também foi deixado os vinte e cinco Mistérios de Pankararu.
Destaco aquelas que tiveram protagonismo nas narrativas fundacionais da comunidade e de
seus troncos familiares, são elas, Maria Calú, Maria Pedro e Maria Chulé com quatro Misté-

71
Os Encantados são seres constituintes da natureza. E por este motivo quando se fala da natureza fala-se em
Encantados e vice-versa.

121
rios cada uma delas; Maria Pastora com dois Mistérios; Maria Thomas; Zidorinha; Sebasti-
ana e Geralda Urbano72 (zeladora do pai da nação, o General Mestre Guia), entre as demais
um Mistério cada uma73.
Os primeiros humanos a manejarem a Ciência Pankararu e seus Mistérios foram
exclusivamente as mulheres como já mencionamos. Essas Zeladoras nasceram com o dom
e por esse motivo os Encantados escolheram-nas. Eles viram que essas mulheres teriam
competência para manusear i. e., zelar parte do conhecimento da Natureza junto a Eles. En-
tão iniciaram os aprendizados, o manejar da ciência divina. Das mulheres citadas apenas as
três Marias (Calú, Pedro e Chulé) são mulheres de ciência, e por este motivo são a gema da
noção e da Tradição Pankararu.
O conhecimento, ou a Ciência Pankararu, é algo que pode ser entendido em seu
tempo, por cada geração, e não pode ser explorado como muitos atentam por se ter o mo-
mento específico de acessá-lo. Entre os Pankararu existem os circuitos rituais da Ciência
Pankararu. A primeira é a tradicional, realizada nos Terreiros (e com os Encantados) a qual
os indígenas lidam com as diferentes entidades vivas; a segunda é a católica, realizada nas
igrejas, a qual os indígenas beatos lidam com os espíritos dos mortos (os Guias de Luz). Ou
como os Zeladores, beatas e beatos dizem: “essas obrigações são nossas penitências [indí-
genas]”.
Inicialmente, ambas penitências aparentam ser praticas distintas, os quais depois de
um tempo percebe-se que na verdade são “híbridos”, ou melhor são práticas nativas situadas
nas atividades rituais indígenas, que ao realizar seus rituais usam técnicas específicas, tais
como, performances, elementos, palavras que podem ser evidentes em outros segmentos
tradicionais da comunidade.
A Ciência Pankararu é delimitada por uma linha frágil. Essa linha deve ser mantida
pelas Zeladoras, beatas e beatos, os quais sustentam uma corrente de força positiva para a
comunidade. A corrente positiva se divide em duas, são elas: A Força Encantada e a Vene-
rada Santa Cruz. Cada Tronco familiar tem sua sina para com uma, ou as duas obrigações.
Poucas famílias praticam as duas ciências, os dois conhecimentos, a exemplo dessas práticas
duais temos o Tronco Pedro. Já outras praticam mais uma que outra, por exemplo, o Tronco
Calú, durante a ordem de Firmina Calú, assim como da sua mãe Maria Calú, foi dedicado à

72
Geralda Urbano é irmã do véi Sará e tia paterna de Joaquim Serafim.
73
Aqui cito apenas as mulheres mais mencionadas nas entrevistas e conhecidas pelos mais velhos de Pankararu.
As demais é por não serem mencionadas nas entrevistas que fiz.

122
tradição da Força Encantada, como nos diz seu filho de tradição: “Elas viviam dia e noite
só para a tradição. Era uma fina devoção para Eles”.
Firmina Calú foi uma mulher que adquiriu uma grande experiência das práticas da
natureza por ser filha de Maria Calú, uma mulher de primeira geração, assim como seus
irmãos, ela apreendeu muito de sua mãe. Ela, enquanto nesse mundo, só vivia na espera para
manejar e usar seus dons naqueles que precisassem e procurassem-na para serem curados
em sua casa. Ficou conhecida como uma fina curandeira e Cantadeira. Para a comunidade,
ela realizava três pontos (cantar, rezar e curar). Como muitas mulheres Pankararu, ela des-
taca prestígio social pela cultura, ou seja, pela tradição indígena. Os indígenas de sua época
a procuravam para pedir que curasse os enfermos, rezasse para afastar o mal, suspender as
dores, entre outros sintomas; inclusive os líderes da comunidade a consultavam antes de
seguirem em suas “viagens rituais” e “viagens políticas”. Os mais frequentes a pedirem suas
rezas eram Narciso Pedro, João Moreno, Bernardo e Mariano Tiú, pois esses seguiam via-
gens com frequência aos municípios da região numa batalha pelo reconhecimento fundiário
e étnico.
Nas décadas de 1950 a 1960, as caminhadas políticas foram intensificadas havendo
um maior número de indígenas a acompanhar as primeiras sementes políticas, pois todos
estavam cabreiros, por ser um momento de “negociação” e de enfrentamento com coronéis
e fazendeiros que estavam adentrando na área indígena Pankararu.

“O Tempo de revoltoso”

Segundo os Zeladores mais velhos do Poente, contam que suas tias Paturnia, Firmina
e as moças Teodora Calú e Bia, contaram-lhes inúmeras vezes que Maria Calú enquanto
cantava o Terreiro mandou um sinal para o cabeceira (o praiá), e ele deu um esturro74
incomum. Então a véia Calú pediu aos participantes que ninguém corresse, que ficassem
todos próximos da quixabeira sentados. Pouco tempo depois, vieram de todos os cantos uns
revoltosos, descidos de Tacaratu e região, atirando em todas as direções no Terreiro com o
objetivo de matar Maria Calú e os vários indígenas que ali estivessem. – Completando a
narrativa dos demais Zeladores, João Pinto prossegue dizendo: “Aí minha mãe [Teodora

74
Grande estrondo, grito incomum.

123
Calú], Bia, e minhas tias, [Paturnia e Firmina], arrudiaram a quixabeira e desceram dizendo:
‘vamos entrar na oca?’ Aí minha bisavó, disse: ‘Não! Vamos ficar aqui mesmo na cabeceira
do Terreiro.’ Logo ela jogou um pano em cima delas. E os revoltosos ficaram caçando elas
para matar. [Não seguindo a ordem dada pela Cantadeira, de ficarem sentados], aí Mané
Tantã e a véia sua mãe, ambos saíram baleados, com um tiro cada, em suas costas”.
Maria Calú, como os demais líderes religiosos naquele tempo de revoltoso, por ser
uma véia “teimosa”, além de conhecida como uma mulher sabida, foi por muitos assediada
e ameaçada para que desocupassem suas terras. Sua recusa despertava revolta nos coronéis,
fazendeiros e camponeses da região por não arredar de seu espaço para que os intrusos inte-
ressados seguissem avançando naquele vale de terras férteis e com riachos. Os fazendeiros
tinham interesses nas terras Pankararu para abrir novos pastos e colocarem seus bois. Foi
nesse cenário conflituoso que cresceu Firmina Calú, entre muitos outros parentes que se
resguardaram. Muitos se agarravam na fé.
Foram várias investidas feitas no Aldeamento Indígena Brejo dos Padres por parte
dos revoltosos de Tacaratu e região. Aquele ato de livramento místico realizado no Terreiro
Poente por Maria Calú fez Firmina, bem como muitos que ali registraram o momento, en-
tenderem o porquê a chamavam de mulher ciência, com uma confiança extraordinária nos
Encantados, na Natureza e em Deus, ela pôde fazer o livramento do que seria uma tocaia
certeira.
Assim como Firmina, seus irmãos e pais nasceram no aldeamento indígena Brejo dos
Padres. O que não se sabe é se seus avós ou mesmo bisavós nasceram na atual Terra Indígena
Pankararu ou no primeiro aldeamento de fuga Pindaé, posteriormente conhecida como Cana
Brava, atual Município de Tacaratu. No entanto, a memória que se mantem até o presente é
que uma parte dos Pankararu são provenientes das Serras de Tacaicó e Tacaratu. Devido às
investidas dos fazendeiros e coronéis, expulsaram os índios da Serra de Tacaicó a ferro e
fogo. Sem suas moradas, os indígenas refugiaram-se nas serras de Tacaratu, denominada de
Pindaé com seu significado de cana brava, ou cana-flecha por existir muitas canas de açúcar
naquela região. (É dá cana de açúcar que se faz uma garapada, entregue aos Encantados).
João Pinto muito ouviu de seu avô paterno, o véi Mané Vieira, que:

“A aldeia aqui começou pra lá de Tacaratu, era na Serra de Tacaicó. Muitos dos ín-
dios daqui eram de lá. O Terreiro deles era na Pedra d’água, na Folha Branca. E no
pé da serra [...] tem uma furna do tamanho dessa casa, lá eles tomavam o Ajucá.

124
Quando terminavam, iam para dentro da mata fumar. Só participavam aqueles que
tinham ciência mesmo.”

Passados sete anos desde aquelas investidas assassinas dos revoltosos vindos de Ta-
caratu e região, segundo os atuais Zeladores de Tonã as Pontas de Rama muito escutaram
daqueles que lhes contavam que em 1932 e 1933, houve uma terrível seca. Foi considerado
na era do castigo. Pois acabou com muitas das plantações dos fazendeiros. Num deixou um
pé de pau com folhas para fazer sombra nas roças em nenhum pé-da-serra durante todo
tempo de seca – por conta da longa estiagem que castigava todos que andavam em cima
daquelas terras. Quanto aos nascidos, foram poucos que sobreviveram, pois, a comida ficou
extremamente escassa. O pouco que tinha de bichos domésticos morria de fome e sede. Com
pouca esperança, muitas famílias subiam para os lajeiros na busca da pornunça (maniçoba),
de licurí, mucunã e batata-de-porco, para fazer o bró. Os únicos locais que se tinham água
eram as nascentes e riachos.
A dificuldade daquele tempo-de-revoltoso fez muitos indígenas deixarem seus filhos
nos trilhos de trem por não conseguirem fugir. A exemplo, meu bisavô paterno, Joaquim
Vieira, conhecido como Joaquim Pinto, esposo de Teodora Calú, foi encontrado na linha de
trem por Mané Vieira, indígena Pankararu filho de índio de Alagoas, próximo a um aldea-
mento indígena do Estado de Alagoas. Mais tarde aos seus 19 anos Joaquim Pinto retomou
contato com seus parentes biológicos do Estado de Alagoas, mais tarde se casando e vivendo
em trânsito, entre aldeias.

“Índio de coração”

Em meado da década de 1930, Firmina Calú já em seus primeiros anos de sua idade
adulta, assim como seus irmãos e alguns sobrinhos carnais, testemunharam o que prometera
ser uma nova era para o Aldeamento Indígena Brejo dos Padres – Pankararu. Como, já men-
cionamos foi na década de 1935 que Carlos Estevão de Oliveira, fez sua primeira visita, e
em 1937 fez sua segunda abordagem investigativa na aldeia Brejos dos Padres. Em ambas
investigações o pesquisador hospedou-se na casa de Bernardo Tiú (família dos Calú), so-
mando suas estadias, ficou por quase um mês. Na primeira visita os indígenas responsáveis
pela tradição da comunidade, de início, não souberam como lidar com a presença do então
investigador, como ele registrou:

125
“Como, em geral, todos os nossos caboclos, o povo do ‘Brejo-dos-Padres’ é hospita-
leiro e obsequiador, muito embora desconfiado. Os quatro séculos de perseguições
que vibram no seu subconsciente explicam, muito bem, essa desconfiança. Como,
porém, já era a segunda vez que eu visitava aquele ‘Brejo’ a minha recepção foi a
mais cordial possível.” (OLIVEIRA, C. E. pp. 159. 1942).

De início o receberam desconfiado, mas por se tratar de um homem que vinha sob a
ordenança do Governo, Carlos Estevão de Oliveira teve seus momentos de se agarrar às
oportunidades que lhes foram dadas após longas conversas com as cabeças que organizavam
os rituais. – O título de “chefe da tribo” é empregado ao véi Sará, pelo investigador, talvez
para atribuir mais uma centralidade nas futuras negociações, além de demonstrar-lhe um
grande político-religioso responsável pela vinda duma parte dos Pankararu vinda de Curral
dos Bois (Santo Antônio da Glória – BA). No entanto, eram sempre reunidos as Marias e o
véi Sará, para tratarem do futuro do Aldeamento Pankararu, os quais definiram uma centra-
lização política as três sementes, (como descrito na biografia de Narciso Pedro).
O investigador chegou no aldeamento Pankararu no período d’A Festa do Imbu. Por
demonstrar ser um “homem de grande experiência” e sempre na afirmativa de seu coração
ser todo de índio, assistiu as fases da festa e, particularmente, o ritual do Ajucá (o vinho da
Santa Maria), fazendo várias fotos das atividades rituais praticadas pelos Pankararu. As quais
lhe possibilitou desenvolver algumas descrições e classificações sensacionalistas sobre os
rituais realizados pelo povo indígena dos sertões aldeados no Brejo dos Padres, Pankararu.
Após a atuação de Carlos Estevão de Oliveira, os Pankararu iniciam suas peregrina-
ções políticas para os municípios vizinhos na busca de reconhecimento étnico e fundiário.
Com a construção do Posto Indígena Pankararu na década de 1940, os indígenas Pankararu
tinham “reconhecimento” além da tutela do Governo para pleitear suas terras, pois já esta-
vam demarcadas, embora ocupadas por posseiros intrusos.
Mais de uma década (por volta de 1948) passada da última visita do investigador,
Maria Calú falece. Deixando a ordem do Poente para seus três filhos prosseguirem com
todos os seus endereços. E as duas Ramas sustentarem A festa do imbu. Apoiados pelos
Zeladores dos vinte e cinco Tonã, entre eles as duas sementes políticas herdeiras dos Troncos
Pedro, o Cacique Narciso Pedro e Gomes de Sá, o Pajé Joaquim Serafim.

126
Com a atuação das três sementes e posteriormente o Conselho Tribal formado por
líderes, geralmente homens, também pelo fato de serem realizadas as reuniões no poró entre
zeladores. No caso das mulheres que tinham destaque social, naquela época, ficaram “igno-
radas” por suas atuações ser mais locais, de zelar o que encontrou de seus pais como os
Terreiros e Mistérios, além do fato de elas não poderem entrar no poró. Deixando a tarefa
dada por Carlos Estevão apenas para os homens na busca dos “direitos” naquele primeiro
momento. Já entre as décadas de 1960 a 1970, as mulheres começam a participar das reuni-
ões nos terreiros, logo após elas também iniciam suas caminhadas junto aos seus parentes.
O prestígio moral e social de Firmina lhe é “dado” já em sua fase adulta, após mano-
brar as atividades rituais sagradas no Terreiro Poente junto a sua irmã, Maria Paturnia. Ao
passo que sua mãe, Maria Calú, se encontrava muito limitada pela sua idade, elas foram
tomando a cabeceira. Um fator principal e hereditário são os Toantes d’A noite dos passos,
eles devem ser cantados por uma mulher do Tronco Calú – essa determinação será aceita ou
não pelos Encantados, isso se eles não chamarem antes, como o caso das duas primeiras
Ramas Calú.
Depois que a véia Maria Paturnia faleceu (na década de 1980), as Pontas de rama,
seus filhos e sobrinhos, sob o comando da véia Firmina sustentaram a ordem junto aos de-
mais Zeladores Pankararu. Não foram muitos anos e a véia Firmina falece. Como os filhos
e sobrinhos das véias Paturnia e Firmina já haviam apanhando alguma experiência ficaram
com a ordem, manobrado por Maria Filomena, Bia. Bia era beata, muito ligada às mulheres
da reza.
No Tronco Familiar Calú suas memórias se constroem a partir de Maria e de seu
esposo Manuel Calú. Segundo as Pontas de Rama dessa velha família, mesmo que Maria
Paturnia, Firmina Calú, Bia entre outros, tenham alcançados seus avós ou tios paternos e
maternos, estes não passaram muitas informações de seus familiares aos seus filhos, netos e
sobrinhos. Talvez por ser uma época de decoro, a qual seguiam à risca os tabus impostos
pela cultura do tempo-bom, de não invadir, nem escutar e nem falar sobre o que se passava
com os mais velhos. Por outro lado, essa falta de informações pode ser pelo fato de Maria
Calú fundar seu próprio Tronco, iniciando uma nova estrutura tradicional e, portanto, novas
memórias. A constituição de um Tronco é marcada não apenas pelas relações estritamente
familiares, mas algo que a família principal tenha para que tais relações permaneçam coali-
zadas, neste caso os Calú tinham o decoro para com os Mistérios e com as atividades rituais
d’A festa do imbu.

127
A festa do Imbu

“A Festa do Imbu começou nós fazendo festa e eles avisando que precisava disso. O
primeiro imbu que aparecer dentro dessa área não tem quem chupe, não tem quem
chupe aquele imbu. Desde os antigos, não tem quem chupe aquele imbu. Tem de
trazer dois ou três que achar... aí se chega... fica duas forquia [forquilha] como na-
quele pé de pau e cada um vem com um arco para espetar aquele imbu. Quem vem é
nós paisano, logo, logo os Encantados. E adepois vem os pai, os principal... até
quando acerta. Quando acerta, aí já tem achado um cipó de mucunã. Aí um puxa prá
cima, outro puxa prá baixo, um puxa de lado, até quando toram... é... nós aqui é bes-
teira, né”. (Mané Besouro, apud CUNHA, pp. 73. 1999).

Os circuitos rituais se iniciam com A festa do Imbu. O imbuzeiro, e principalmente


seu fruto, são símbolo de resistência, de força e de vida para os Pankararu filhos de tradição.
Como já mencionado na biografia de Narciso Pedro, o imbuzeiro é uma das três árvores
sagradas, sendo a única a dar o fruto que junto a ele nasce e renova a esperança e os valores
da Tradição Pankararu.
A festa – corrida – do imbú tem início ao cair o primeiro imbú maduro no chão, entre
os meses de outubro a novembro, isso acontece quando o período de chuva contribui para
que o imbuzeiro dê o fruto no período destinado. Quando achado os primeiros imbus são
levados ao Terreiro Poente. Daí, convoca-se os demais Zeladores de Tonã para organizarem
A festa. É a partir dessa festa que começa o calendário tradicional e agrícola da comunidade
indígena Pankararu.
Esse evento é dividido em diferentes atividades rituais, a primeira fase é iniciada pelo
Flechamento de imbu [figura 24.]: o qual é um momento em que vários dos arqueiros pai-
sano, por não estarem vestidos com o forguedo, apenas pintados de tauá (barro branco) e
com chapéus de licurí, tentam flechar os imbus envoltos nas folhas de cansanção pendurados
sob duas forquilhas, ao acertar a bolsa de imbus de primeira não haverá pragas, na segunda
tentativa haverá poucas, e de terceira haverá pragas.
Em seguida, após o flechamento, os indígenas vão para Puxamento de cipó: havendo
um instante de disputa entre dois lados, um lado direcionado à nascente (representado pelos

128
de cima) e outro ao poente (representado pelos de baixo) ou povo do sertão. O lado que
ganhar a disputa aponta o presságio das possíveis condições climáticas ou mesmo catastró-
ficas na Aldeia Indígena Pankararu. Se o cipó de mucunã partir ao meio, a aldeia continuará
na condição que se encontra, sendo ela melhor ou pior. O Flechamento de imbu é um mo-
mento em que apenas os homens participam. Já o Puxamento de Cipó conta com a partici-
pação de homens e mulheres que se atirem no cipó ao chão.
Na citação anterior, o já falecido zelador de Tonã, o véi Mané Besouro, descreve em
algumas palavras como se deu a “existência” da Festa do Imbu. Na citação destaco na frase
o trecho: “(...) eles [os Encantados] avisando que precisava disso”. É um trecho importante
que carece de atenção, pois nos diz que nada é feito ao acaso e sim por obrigação, para
darmos manutenção em nossas crenças Sagradas. O avisar se dá através de uma comunica-
ção meticulosa, entre nós e Eles, mediada por uma série de tabus estabelecidos por cada
ritual. Eles usam os animais e a Natureza para falar conosco, já nós usamos os elementos,
tais como, maracá, matringó, pontos, Toantes entre outros modos de comunicação.
Essa obrigação e comunicação é reciproca. Tudo que é feito entre os Pankararu há
um propósito consistente e fecundo. É o caso das Corridas de Imbu e dos demais rituais
praticados pelos Pankararu. O véi Mané Besouro, ao descrever a festa, aponta na primeira
etapa duas fases iniciais da festa: o Flechamento de imbu e Puxamento de Cipó, como já
mencionadas e descritas, esse momento é de confluência organizado pela família do Terreiro
Poente, junto com todos Zeladores de Tonã e realizado por toda comunidade. Cada etapa
executada traz um significado que permite fazer uma possível “leitura” do por vir. E assim
os indígenas Pankararu podem ir estabelecendo, se ajustando maneiras de fazer suas defesas
caso sejam-lhes precisos.

129
Figura 22. Arqueiros a postos para o Flechamento de Imbú, Imagem: Oliveira, C. 1935. Fonte: CMTVP.

A festa do Imbu, é considerado a festa-ritual mais importante por contar com todos
da comunidade. O que a difere dos demais rituais que ocorrem durante o ano na comunidade,
pois os demais “centram” em elementos rituais, tais como, Menino do Rancho e Três Rodas
tendo como principais protagonistas os praiá, madrinhas, padrinhos e o/a indígena pagante
de promessa para “um” Encantado específico.

A noite dos passos e As corridas

Quando o fruto da imburana – o imbu – está em seu auge de colheita é o momento


de iniciar a segunda etapa da festa que se divide em duas fases: Os passos e As corridas entre
os meses de fevereiro e março. Entre esses meses não deve haver outro ritual, pois como dito
todos estão centrados para aquela festa em especial.
Os passos, ou A noite dos passos, também conhecida, como A noite das pombas: é
uma atividade ritual noturna, importante para os Pankararu, pois é uma ocasião central que

130
evoca os animais, principalmente os noturnos, da caça e da pesca. Essa atividade ritual, A
noite dos passos, é realizada em cinco sábados. Durante a ordem da véia Firmina, as manhãs
dos sábados festivos, os praiás percorriam as casas da aldeia na busca de alimentos, entre
eles, farinha, carne, feijão e rapadura, para a festa. Aquele momento de visitar e pedir con-
tribuições nas casas ficou considerado uma ocasião simbólica, porque todos contribuíam
com o pouco que tinham para a realização daquela grande festa.
Na noite do primeiro sábado acontece a abertura dos passos, como também, momento
da tirada (escolha) das moças que irão fazer páreas com os praiás. Já os quatro sábados
seguidos serão performáticos, respondendo aos Toantes evocativos entoados pelas Canta-
deiras75. Em resposta aos Toantes os praiás e as moças apresentam-se de acordo com os
movimentos dos animais locais da caatinga, das matas, das águas das nascentes da região, e
do rio São Francisco. A Noite dos Passos é um momento especial celebrado pelas moças.
Nessa ocasião o “elemento feminino” é o protagonista ritual. Durante a Noite dos passos a
dança é exclusivamente entre moças e praiás.
As corridas, diferentes da Noite dos passos, são realizadas sob a luz do sol em até
quatro domingos. Por volta das 15hrs todos os participantes, entre eles, Cantadoras, tocado-
res de gaita e do rabo de tatu, os praiás, moças, moços, as mulheres e seus cestos cheios de
imbus junto com os espectadores rituais, todos seguem para o terreiro de Mestre Aratikum,
ao chegar dançam três vezes em seu terreiro, seguindo para finalizar esse ciclo ritual no
terreiro do Muricizeiro. Ao chegarem a seu destino, é realizada a Queimada de Cansanção:
momento ritual sagrado de flagelo com a finalidade de queimar as pragas que venham per-
manecer mesmo após serem flechadas, que porventura ataquem os plantios e as frutas da
comunidade. Esse ritual também tem de descarregar as energias ruins dos participantes du-
rante a queimada de cansanção, deixando seus corpos limpos, com uma sensação de sereni-
dade física e espiritual. Pelo dia, aos domingos, as páreas também são compostas por moças
e moços somente para a queimada.
As atividades rituais das Corridas de Imbu são praticadas durante os três domingos.
Só nos três domingos que há Queimada de Cansanção, já no quarto domingo é realizada a
Corrida do Mocó. Nesse ritual estendia-se uma corda de croá (ou karoá) próximo à cabe-
ceira do terreiro, onde ficam as Cantadeiras, até o outro lado do terreiro, nessa corda colo-
cava-se animais de caça, tais como, cutia, mocó, camaleão, nambu, peba, preá e tamanduá

75
Por vez as Cantadeiras não se misturam com os demais participantes da festa, elas só saem de seu local de
resguardo no momento de puxar (iniciar) os Toantes.

131
para serem preparados (cozidos) na noite da “saída” do Mestre Guia em seu Terreiro, na
aldeia Serrinha, zelado até então pelo Pajé Joaquim Serafim. Esse ato, a saída do pai da
nação, o General Mestre Guia, encerra a Festa do Imbu.

Figura 23. Queimada de Cansanção no Terreiro do Muricizeiro. Imagem: Oliveira, C. E. meados de 1930. Fonte: CMTVP.

Na noite que anuncia a “saída”, os imbus que estavam nos cestos das mulheres du-
rante as corridas são feitos a imbuzada – uma bebida feita com a polpa de imbu, leite de
vaca, coco e rapadura –, em oferenda aos Tonã, o General e os participantes daquela noite
ritual. Acredita-se que os imbus que estão nos cestos durante as corridas estão sendo aben-
çoados pelos bons espíritos da mata.
Nesta noite de domingo apenas os praiá dançam até a primeira hora da madrugada.
Depois da primeira hora da segunda-feira todos que tiverem no terreiro devem ficar em si-
lêncio, aqueles que estiverem deitados devem sentar-se e voltar sua atenção em respeito à
“saída”, presença do General Mestre Guia. No momento em que Ele sai, os participantes
formam uma fila para que ele abençoe com um ato de encruzar aqueles que estão à sua frente.

132
É nesse período de festa que se conta com a presença do primeiro ao derradeiro Pan-
kararu, inclusive das sementes políticas, o Cacique Narciso Pedro e o Pajé Joaquim Serafim.
A reunião da Aldeia Indígena Pankararu neste evento ritual vem do “tempo dos mais véi pra
trás”. No caso aqui a narrativa é referente ao tempo-bom para trás, o qual foi manobrado por
Maria Calú, com o auxílio de Maria Pedro, o véi Serafim, Maria Pastora e Maria Chulé, que
posteriormente ficou sustentada por seus filhos, Firmina Calú, Maria Paturnia, Miguel Calú,
com o auxílio de Narciso Pedro, Joaquim Serafim, Antônio Binga, Miguel Binga, Luís Ca-
boco, Mané Besouro entre muitos outros Zeladores de Tonã. Foram através desses e outros
líderes tradicionais que sustentaram a comunicação e o decoro com os Encantados.
Os Pankararu sabem (ou deveriam saber) que os Encantados são integrados a Natu-
reza e que suas moradas são nos astros. É a através dela, da Natureza, que recebemos avisos,
indicações, sinais entre outros métodos de contato com o mundo dos Encantados como men-
cionado por João Pinto, à primeira Ponta de rama Calú e um dos principais realizadores d’A
festa do Imbu.
A festa do imbu é um momento sagrado – para usar uma expressão local é finíssima
e poderosa. Os Zeladores da tradição chegam a dizer que essa festa pode ser considerada
um ritual divino, e por esse motivo é uma “luz”. Pois, é nesse momento finíssimo que se
unem Humanidade e Natureza, a noite e o dia, através dos rituais de celebração e evocação.
Os filhos da lua foram, como os são, os responsáveis por esse ritual tendo como uma das
últimas cabeceiras em nosso contemporâneo a véia Firmina Calú, que foi uma das últimas a
manejar a Ciência Pankararu do Tronco Calú deixando a ordem para seu filho de tradição
João Pinto, o qual conta com seus primos Eurides, conhecida como Dida (cantadeira dos
Passos) e Fausto (cantador). – Atualmente se encontram as Pontas de Rama Barbara, Fer-
nando Monteiro e Francisco de Assis na cabeceira e no coice Duda (bisneto da véia Firmina)
e os demais Zeladores de Tonã para celebrarem A festa do imbu.

133
CONCLUSÃO (COICE76)

Cabeceira e coice são duas expressões que definem posições, ou melhor que definem
funções fundamentais em qualquer atividade ritual Pankararu executada nos espaços sagra-
dos. Tais posições também podem ser entendidas num contexto mais geral ao determinar
numa atividade quem a dirige e quem fica no coice para tomar os “apontamentos”. Por este
motivo cabe aqui recuperar algumas questões utilizadas neste trabalho. Principalmente reto-
mar nesse momento de considerações finais o sentido do coice e sua função. Quando Zelador
de Tonã está na função de coice, cabe a ele desempenhar a tarefa de fazer a ronda – um
movimento contrário daquele que esteja na cabeceira e dos outros que o seguem – a fim de
dar equilíbrio e ordem aos movimentos executados naquele espaço. Em nosso caso, as dis-
cussões já apresentadas nesse texto.
A minha ronda se iniciou em 2006, no projeto “Índios Online”, foi naquele espaço
virtual que comecei a entrar na realidade do meu povo indígena. Foi lá que também comecei
a descrever as narrativas Pankararu, após ter tomado contato com os anciões e conversado
sobre suas narrativas locais. Mas, foi a partir de 2009 ao participar como pesquisador indí-
gena da Casa de Memória que entrei num ritmo de práticas e experiências profundas. Nesse
projeto, eu conversava diretamente com os interlocutores para que relatassem suas experi-
encias durante suas caminhadas políticas na luta pela terra. O que me permitiu reunir muitas
das informações e apontamentos sobre líderes e alguns zeladores naquele período. No atual
projeto “Os Brasis e suas Memórias” o nosso objetivo são os contextos, as relações daqueles
personagens na construção dos espaços “políticos e rituais” e as memórias por eles guarda-
das.
A maior oportunidade de ir mais além daquelas investigações foi no atual projeto
“Os Brasis e suas Memórias: os indígenas na formação nacional”. Tal projeto colocou ques-
tões cruciais para que eu pudesse investigar e ir mais a fundo como indígena e pesquisador,
por meio dos relatos biográficos dos personagens sobre outros protagonistas que marcaram
a formação e atuação dos Pankararu. Neste trabalho, também foi possível encontrar elemen-
tos descritivos sobre as diferentes relações e entendimentos daqueles que zelam e encantam
o espaço e as narrativas Pankararu em suas próprias dimensões.

76
Posição derradeira. Nessa posição o coice tem a função de pontuar todo o movimento feito pelo praiá/Tonã
que esteja na cabeceira do Terreiro bem como aqueles que o segue, mas na posição contrária.

134
Como abordado ao longo do trabalho as sistematizações sobre a lógica Pankararu
decorrem de cada um dos interlocutores, o que me coloca sob uma perspectiva de “indígena
intérprete” que fala dos Pankararu a partir de cada Tronco Pedro, Aciole/Chulé e Calú para
desenvolver uma narrativa que incorpora múltiplas interlocuções.
É certo de que como indígena Pankararu experenciei novas sensações ao transitar em
cada um dos três troncos familiares, as quais me permitiram entrar, conhecer e reunir parte
da memória de meu povo Pankararu através de meus familiares. Por sermos próximos, nos-
sas conversas eram de parente para parente. Mesmo deixando claro de que eu estava fazendo
uma pesquisa, sempre fui tratado como de dentro, alguém que lhes é próximo por sangue ou
por tradições. O que me exigiu um maior cuidado uma maior delicadeza ao descrever e a
interpretar as falas de meus interlocutores, ao passo que tentava desenvolver uma síntese de
cada família numa categoria mais abrangente de um “nós” Pankararu.
Durantes os diálogos com os interlocutores, muito foi enfatizado que as atividades
rituais de nossas Tradições Pankararu, são mecanismos que se comunicam e nos aparecem
em diferentes momentos, desde que mantenhamos sua conservação. Embora exista uma
grande advertência por parte dos Zeladores de Tonã atuais sobre a maneira que segue essa
manutenção por seus sucessores. Segundo os Zeladores, os jovens acreditam que conhecem
muito, são mais “sabidos” por terem leituras e articulações nos movimentos indígenas naci-
onais e isso pode fazer com que esqueçam, ou ignorem a forma que vivenciamos o mundo
Pankararu.
O “mundo Pankararu”, como já disse anteriormente, se regula em três dimensões,
são elas: nós, os Humanos, Eles, os Encantados, ambos do mundo dos vivos, e os espíritos,
do mundo dos mortos. Como nos é sabido, os Encantados usam os animais e a Natureza para
se comunicar frequentemente conosco, já nós usamos os elementos, objetos específicos tais
como, maracá, matringó, pontos, Toantes entre outros modos de comunicação para evocá-
los, chamá-los. Já o mundo dos mortos se manifesta de diferentes formas, as quais estão
relacionadas com as práticas católicas. Tais comunicações precisam estar em sintonia com
o sagrado, seguindo os tabus e as demandas necessárias, para que possamos manter os canais
de comunicação com as entidades em seus mundos e dessa maneira permitam que nós Pan-
kararu tenhamos sucesso em nossas lutas, atividades e tarefas do dia-a-dia.
Nesta investigação pude observar que é na vivência diária que nós nos inventamos
como Pankararu, vendo nossos pais, avós e demais parentes atuarem nas tradições e ouvindo-
os contar sobre as lembranças de seu passado. Por vezes, nos contam de alguns personagens

135
importante para os Pankararu que se foram deste mundo para o outro, deixando partes do
que conhecemos e praticamos na tradição da comunidade. Também ao descreverem com
detalhes suas amarguras vividas naquele tempo-bom, de como era dificultoso encontrar ali-
mento e de praticar sua tradição num período coronelista, percebemos o quanto mudamos.
Ao escutar as narrativas de nosso Tronco familiar, desenvolvi minhas próprias ficções dum
passado que não alcançamos, mas o emendamos em partes de nossa história, as quais se
atualizam nos ofertando possibilidades.
Assim como falei do passado, também caberia compreender de forma dinâmica,
tensa e disputada, a construção do presente e as perspectivas de futuro. Como comentei an-
teriormente, alguns dos zeladores mais antigos divergem da atuação de outros mais novos e
apelam para uma dimensão viva, expressa no domínio político e ritual, da relação com os
encantados. O tema do deslocamento ou retraimento dos encantos evidência que as constru-
ções cosmológicas, rituais e políticas não constituem um universo fixo e imutável, mas tam-
bém estão em movimento e se associam à histórias vividas por múltiplas famílias e as situa-
ções em que vivem os Pankararu. Há um messianismo presente que parece dialogar com
outras cosmologias, como a dos Ticunas (Pacheco de Oliveira, 1988, pgs. 271-276), onde a
dinâmica política está relacionada ao tema do “fim do mundo”.
No início das investigações, essa dissertação semeou diversas expectativas para mim
como investigador e indígena e sobretudo para os Zeladores de Tonã por esperarem que seus
frutos contribuam para ampliar e guardar uma parte de nossa memória coletiva. Para que as
futuras gerações ao terem acesso a este trabalho tenham o conhecimento de suas raízes, ou
parte delas.
Esta investigação só foi possível por que os Encantados permitiram que fosse escrita.
Pois como mencionei “o Saber, a noção, só é uma e toda ela tem seu dono que não somos
nós, os humanos, são Eles, os Encantados”. E como dizia Firmina Calú: “observar e guardar
como se faz os pontos não é suficiente, pois mesmo que se apanhe, conheça todas as ‘mano-
bras’ sem a permissão Deles não serve”. Isto é, este trabalho não chegaria onde chegou,
como também não apontariam outros caminhos a serem percorridos.
É necessário ressaltar a importância da presença do investigador Carlos Estevão de
Oliveira entre os Pankararu na década de 1930. Já que foi a partir de sua estadia entre os
indígenas que se estabeleceu a cristalização, a consolidação de uma memória ritual Panka-
raru, que antes não era objeto de destaque, de isolamento ela era mutável. Ela não tinha a
mesma valorização que antes. É a presença de Carlos Estevão, as fotografias, as mediações

136
e o reconhecimento e o registro que ele dá, enquanto uma pessoa de fora para aqueles indí-
genas, que torna os Zeladores da época (de 1930) uma referência permanente no tempo. E
por ele ter observado, anotado e registrado aspectos importantes, ele alterou os regimes de
memórias daquela comunidade indígena ao dar valorização ao papeis rituais. Cabe destacar
o importante impacto que a antropologia causa nas populações indígenas com as quais ela
estuda. E que o antropólogo, o investigador não é apenas alguém que observa.
Por fim a “infância do índio” é feita de momentos e lembranças, que guardam mun-
dos de experiências vividas e observáveis. E por nós, os Pankararu, vivenciarmos na órbita
dos Mistérios da Ciência Pankararu, apanhamos conhecimento e maneiras de lidar com di-
ferentes situações que nos surgem, sejam elas materiais ou espirituais.

137
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141
APÊNDICE

GLOSSÁRIO

Aió: Objeto semelhante a uma bolsa capanga feita de kroá. Utilizada, geralmente, por Ze-
ladores.
Avisos: Manifestações representadas por animais, sensações
Cabeceira: Praiá que fica na dianteira e puxa os demais praiá na dança executada nos
Terreiros. Para o sentido de Zelador(a) (líder espiritual) cabeceira é a pessoa responsável
pelos Mistérios de seu Tronco.
Cantadores: Indígenas dotados de dons e de conhecimento que tem a permissão para cantar
Toantes em Terreiros.
Cantorias: ritual restrito, para uma cura geralmente praticado a noite
Ciência Pankararu: fonte de conhecimento e mistérios guardados pela Força Encantada
Cinta: Pano que fica atrás do praiá, com a finalidade de identificá-lo
Conselho Tribal: Grupo de Zeladores de Tonã que auxiliavam as sementes na luta pela
terra Pankararu.
Coice: Praiá que fica na traseira fazendo o movimento contrário a fim de manter a ordem
e sentido da dança dos praiá nos Terreiros.
Coité: Fruto usado para fabricação de Marca (Maracás)
Cumbuca: Objeto feito de coité para guardar pó-î (fumo) e sementes
Curandeiro: Especialista ritual que detém habilidades de cura auxiliado pelos Encan-
tado(s).
Dicurião: Chefe da penitência
Divertimento: ritual restrito, praticado a noite, para celebrar os Encantados entre Zeladores
e convidados.
Dons: Habilidades, seja de cantar, curar, liderar ou todas.
Encantado: Divindade sobrenatural
Escanchavós: Termo usado para designar gerações anteriores às tataravós.
Festas-Rituais: Cerimônias rituais, tais como, Menino Rancho, Três Rodas, Toré
Força Encantada: Batalhão de Encantados
Forguedo: Referência secundaria, interna, para se dirigir a um praiá
Líder: pessoa dotada de determinado conhecimento

142
Marca: Conhecido como Maracá, ferramenta musical indispensável para a execução das
festas-rituais
Matringó: Também conhecido como cachimbo
Menino do Rancho: Festa-ritual de celebração, consagração das relações entre Homem e
Encantados. Tem caráter público.
Mistérios: Referência primaria de sementes.
Noção: Expressão para conexão com as forças sagradas
Oca: Casa
Os pai véi: Referência secundaria para Encantados
Os 25 Mistérios de Pankararu: Reunião dos primeiros Encantados
Pankararu: Serra de quatro pontas ou povo que vive entre serras.
Penacho: Amontoado de penas que fica a cima da cabeça do praiá.
Pó-î: Fumo
Poró: Local sagrado, reservado estritamente ao público masculino.
Pontas de rama:
Praiá: Representação de Encantado
Primos carnais: primos de primeiro grau.
Ropante: Referência terciaria para praiá
Salão: Lugar construído para pendurar os ropantes
Sementes: Ponto de morada física dos Encantados
Tauá: barro branco
Terreiro: Espaço Sagrado destinado as festas-rituais
Toá: Pedra usada para pintar os ropantes
Toantes: Canto para evocar e invocar os Encantados
Tonã: forma primária para praiá
Toré: Momento em que todos participam da dança para finalizar a atividade ritual
Tradicional: Costume dos antigos
Três Rodas: Ritual menor, geralmente pagas por mulheres. De caráter particular, domés-
tico. Pagos em Terreiros menores.
Tronco: Núcleo (parte central) de uma família ou grupo Pankararu
Zeladores de Tonã: Líderes espirituais que detêm conhecimentos cósmicos

143

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