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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MESTRADO INTERINSTITUCIONAL EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


MUSEU NACIONAL E UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA/MG

RAMON DA SILVA TEIXEIRA

RIO DE JANEIRO / RJ
2020
RAMON DA SILVA TEIXEIRA

COMO A RAMA DA ABÓBORA: O MOVIMENTO DA BOA NOVA, O


“TRABALHO DE BASE” E (RE)INVENÇÕES DE SABERES-FAZERES

Dissertação apresentada junto ao Mestrado


Interinstitucional em Antropologia Social -
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e Universidade Federal de Viçosa
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. John Cunha Comerford

Co-orientador: Prof. Dr. Fabrício Roberto Costa


Oliveira

RIO DE JANEIRO/ RJ
2020
CIP - Catalogação na Publicação

Teixeira, Ramon da Silva


Tc Como a rama de abóbora: o Movimento da Boa Nova,
o "trabalho de base" e (re)invenções de saberes
fazeres / Ramon da Silva Teixeira. -- Rio de
Janeiro, 2020.
213 f.

Orientador: John Cunha Comerford.


Coorientador: Fabrício Roberto Costa Oliveira.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, 2020.

1. Movimentos Sociais. 2. CEBs. 3. Mobon. 4.


Zona da Mata mineira. 5. Transformações. I.
Comerford, John Cunha, orient. II. Oliveira,
Fabrício Roberto Costa, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-
7/6283.
Altar da casa de minha falecida vó Alaídes.

Vó Olinda e vô Mário

Dedico esse trabalho a meus avós. A Alaídes,


falecida em 2019, com quem aprendi tantas coisas,
entre elas, a gostar das rezas, benzições e da
religiosidade popular. E a Mário e Olinda, também
pelas lições sobre reza e benzições, bem como sobre
o catolicismo popular na prática.
AGRADECIMENTOS

Ao (à) criador (a) das belezas do mundo, seja lá qual nome se dê a Ele(a).

Aos meus pais, Renato e Onicia, pela educação, incentivo e apoio incondicionais. E nesse
percurso de realização de um mestrado e de escrita de uma dissertação, pela paciência e
torcida.

À minha irmã Renata e minha sobrinha Lanna, pela amizade, carinho, apoio e torcida.

Ao meu irmão Rodrigo, pelas conversas sobre as escritas e desenho. Pelo compartilhamento
de músicas e filmes que me inspiraram e motivaram, principalmente no período da escrita da
dissertação. Agradeço pela leitura atenta do texto. E não poderia deixar de agradecer a sua
parceria como designer gráfico na formatação, tratamento de imagens, composição de fotos e
arte e finalização da HQ que compõe o preâmbulo deste trabalho. Sem sua parceria, essa
dissertação seria menos lúdica.

À grande família da qual faço parte, na ancestralidade representada por meus avós paternos
Olinda e Mário, e aos maternos, Alaídes (in memorian) e Francisco (in memoriam).

Nas pessoas de Farinhada, Eliane e Zé Maria – que me deram as mãos e me conduziram em


boa parte do caminho durante a pesquisa de campo –, agradeço aos mais diversos movimentos
sociais, pastorais, grupos culturais e organizações que sempre me receberam, acolheram e
deixaram as portas abertas para minhas curiosidades e contribuições. Refiro-me a uma ampla
rede formada por Sintrafs de Espera Feliz e Divino; Movimento Fé e Política de
Manhumirim; Fórum Mineiro de Entidades Negras (FOMENE); Rede de Saberes dos Povos
Quilombolas (Sapoqui); banda de congo José Lúcio Rocha; Folia de Reis Robadel; Fórum
Mineiro de Economia Popular Solidária e Fórum de Economia Popular Solidária da Zona da
Mata mineira; Escola Maju de Terapias Holísticas de Caratinga; Centro de Tecnologias
Alternativas da Zona da Mata mineira (CTA-ZM); Pastoral Afro-Brasileira da Arquidiocese
de Mariana; Pastorais da Juventude e da Juventude Rural de várias paróquias da Diocese de
Caratinga; Escolas Família Agrícola da Zona da Mata mineira; Escola Nacional de Energia
Popular (ENEP); Cooperativa de Produção da Agricultura Familiar Solidária de Espera Feliz
(COOFELIZ); Organização Cooperativa de Agroecologia (OCA) e grupo de artistas
populares Panela Cultural. Sem fazer parte dessa rede meu despertar para o tema
desenvolvido nessa dissertação não teria acontecido, ou teria acontecido de outro modo.

À Marília Angelo – minha companheira nessa viagem que foi fazer um mestrado conciliado
com o trabalho – agradeço pela paciência, atenção, carinho e companheirismo. Assim como,
pela leitura atenta de toda a dissertação e pela voluntária revisão gramatical e ortográfica
realizada. Sou eternamente grato por isso!

Aos colegas de MINTER, Wilemar, Mário Felix, Bruno, Everton, Emanuel, Wagner, André,
Amanda e Lívia. A todos vocês, agradeço pelo convívio, trabalho coletivo, reflexões e
também pelos momentos que nas vezes que nos encontramos no Rio de Janeiro.
Especialmente, agradeço a André pelo acolhimento em sua casa sempre que precisei, bem
como pelas reflexões teóricas sobre a vida acadêmica e sobre a escrita etnográfica que
tivemos. À Amanda e Wagner por partilharem comigo alguns desafios ao se fazer um
mestrado e trabalhar no projeto Inovar Mais, assim como pelos animados e interessantes
debates sobre a vida, antropologia, etnografia e conjuntura atual. À Lívia, minha companheira
de pesquisa de campo e de reflexões sobre religião, movimentos sociais na Zona da Mata e
Mobon, pela escuta, pela leitura atenta da dissertação e pelas dicas e sugestões. Ainda ouço
sua voz quando escrevo, já não sei bem o que é meu e o que é nosso. Esse trabalho é nosso,
companheira!

Aos professores do Departamento de Ciências Sociais, especialmente, Marcelo Oliveira,


Douglas Mansur e Guillermo Sanabria, pelas lições sobre antropologia visual, antropologia
política, antropologia rural, teoria antropológica, debate sobre os movimentos sociais, em toda
sua multiplicidade teórico-metodológica. Aos dois últimos, incluindo Daniela Resende e Ana
Luisa Gediel (DLA/UFV) e Raquel Lima (Coluni/UFV), por terem aceitado o desafio de
implementar o MINTER em Viçosa e terem dado a oportunidade de poder frequentar um
curso de alta qualidade no “quintal de casa”.

Aos professores do PPGAS/MN/UFRJ, Renata Menezes, Edmundo Pereira, Adriana Vianna,


Moacir Palmeira, Luiz Duarte e John Comerford, e a professora da UFF, Ana Paula da Silva,
que doaram seu tempo e partilharam conosco um rico manancial de referências bibliográficas
em antropologia, etnografia, teoria antropológica, campesinato, família e identidade, rituais e
performance entre outros temas.
A John Comerford, meu orientador, agradeço de maneira especial por ter aceitado a tarefa de
me orientar. Agradeço pela paciência, pela atenção, pelas várias reuniões de orientação
presenciais e virtuais que tivemos, pela leitura atenta do que escrevi e pelas dicas e sugestões.
Nesse longo percurso que foi dar forma escrita ao que estava pensando, você me ensinou
muita coisa. Esse texto é nosso!

A Fabrício Oliveira, meu co-orientador, pelas palavras de incentivo e por compartilhar parte
de suas reflexões e me ajudar a entender o que significa um mestrado na vida de um filho de
trabalhadores da classe popular, como eu. E claro, agradeço pela orientação sempre atenta e
cuidadosa, e por ter me iniciado (e incentivado) no tema do estudo sobre CEBs e Mobon na
Zona da Mata mineira. Esse texto é nosso!

A todos os colegas de projeto Inovar Mais, bem como aos coordenadores Ana Luísa Gediel e
Victor Mourão. À primeira, agradeço também pela oportunidade de tê-la em meu convívio
também como conselheira e amiga. Obrigado pelas palavras de incentivo de sempre!

Por meio dos amigos e colegas de Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares e em


nome de sua coordenadora, Bianca A. Lima Costa, agradeço aos diversos programas e
projetos da UFV que, durante a minha graduação e pós-graduação em Viçosa, me
possibilitaram viajar, conhecer alguns Brasis e o México, assim como me formar de maneira
ampla e crítica para além da sala de aula e, por fim, me deram condições de permanecer em
Viçosa por meio de suas bolsas de extensão, pesquisa e ensino. Agradeço assim aos
coordenadores e envolvidos com o Programa Teia de Extensão Universitária; com a
Articulação dos Cursinhos Populares da Zona da Mata mineira; com o Núcleo de Educação
do Campo e Agroecologia (ECOA), com os projetos “Comboio de Agroecologia do Sudeste”
e “ECOAr: Práticas, Ciências e Movimentos”; com o projeto de pesquisa “Do campo à
cidade: políticas de desenvolvimento, territorialidades e migrações na Zona da Mata mineira.
Uma comparação triangular”, por fim, com o cursinho de educação popular do campo
“Tecendo Sonhos”.

Aos amigos e amigas de cantoria, prosa e luta “de Viçosa”, Marcinho, Fabrício, Júlio
“Regional”, Priscila Schultz, Maysa, Bianca, Guilherme “Padero”, Joubert, Romário,
Lindinho, Junior, Thamara, Daiane, Thamyres, Wagner, Thays e Cleo, pelos bons momentos
vividos. Ao Marcinho, em especial, agradeço pelas reflexões sobre educação popular e
trabalho, sindicalismo rural e agroecologia.

Aos irmãos que a vida meu deu, Paulo Júnior (PJ) e Leandro, pelo convívio, escuta e
companheirismo nos bons e maus momentos. Agradeço também pelas dicas sobre o trabalho
de campo, movimentos sociais na Zona da Mata e sobre a escrita.

Aos amigos do Coletivo Repentistas do Desenho, Glauber, Sara, Samuel, Flávio, Cainã,
Pedro, Tatá, Yasmine e Juliana Furtado pelo convívio, pelos trabalhos realizados
conjuntamente e por todo o aprendizado em desenho e facilitação gráfica compartilhado entre
nós. Serei eternamente grato a essa experiência.

À Regina (in memorian), moradora do bairro Romão do Reis, em Viçosa, que me contou ter
pedido a Nossa Senhora Aparecida e a São Jorge pela minha aprovação no processo seletivo
do MINTER. Em sua pessoa, agradeço aos demais conhecidos e conhecidas do bairro Romão
do Reis, minha casa desde que cheguei a Viçosa.

A Yan Victor da Silva, pelas incontáveis conversas e pela sugestão e compartilhamento de


referências bibliográficas.

Aos membros da banca avaliadora, por terem aceitado ler a dissertação em tempo menor que
o previsto, e também pela leitura atenta do trabalho e pelas importantes críticas e sugestões
dadas para o aperfeiçoamento da dissertação.

Às famílias da comunidade do Cruzeiro, em Espera Feliz e aos “antigos” do Mobon de


Tarumirim por terem aberto suas casas para me receber e conversarem comigo, assim como
para poder participar de uma reunião de grupo de reflexão.

A meu padrinho Zé Geraldo, sua esposa Teca e família, pela amizade e pelo incentivo.
Agradeço ao meu padrinho também pelo compartilhamento de informações e sugestões de
bibliografia.

A toda a família de Sr. Guanair - em especial a ele e seus filhos Eliane e Zé Weber – pelo
acolhimento e pela troca de experiências, informações e reflexões.
Aos missionários sacramentinos de Nossa Senhora fundadores e/ou envolvidos com o Mobon,
Alípio Jacinto, João Resende e Denilson Mariano, por terem aberto a Casa do Mobon, os
arquivos do movimento e terem partilhado comigo suas memórias e saberes.

A Sra. Conceição, ao Sr. Roberto, a Sra. Matilde e ao Sr. Darcy, pela hospitalidade, cuidado e
amizade durante os dias que estive na Casa do Mobon, em Dom Cavati.

Aos entrevistados Alípio, padre Marcos Resende e Irene Cardoso, pelo compartilhamento de
suas memórias e pontos de vista. Às pessoas que me forneceram informações das mais
diferentes formas, como Maria José, Cesar Medeiros, Paulo Félix Delesposte, Farinhada,
Eliane, Elaine, padrinho Zé Geraldo. Agradeço também à Denilson Mariano e Marcio Gomes
da Silva por terem compartilhado comigo algumas entrevistas.

Aos professores Willer Araújo Barbosa, Irene Maria Cardoso e Lídia Maria Nazaré, pelos
conselhos, incentivo e apoio à minha escolha pela vida acadêmica.

Aos amigos do “103”, em Conceição do Mato Dentro, Andreia, Hellen e Higor agradeço
demais pela paciência, pelo incentivo (Hellen, ainda escuto sua voz: “vai escrever, vai
escrever”), pelo cuidado comigo e por me proporcionarem momentos felizes e descontraídos
nessa reta final que foi dar vida à essa dissertação.

A todos os colegas de trabalho e coordenadores da Assessoria Técnica Independente aos


atingidos pelo projeto Minas-Rio, em Conceição do Mato Dentro, prestada pelo Núcleo de
Assessoria aos Atingidos por Barragens (NACAB). Agradeço pela paciência que todos
tiveram comigo, pelo incentivo e pela oportunidade que me deram de terminar esta
dissertação.

Àqueles e aquelas que, por ventura, eu não tenha enunciado os nomes, mas que fizerem parte
do caminho percorrido até aqui, meus agradecimentos!
“Nenhuma ‘ordem’ opressora suportaria que os
oprimidos todos passassem a dizer: ‘Por quê?’”

PAULO FREIRE, Pedagogia do Oprimido.


RESUMO

Perseguindo a resposta para a questão “como católicos comuns se tornaram (tornam)


lideranças?”, interessa neste trabalho identificar e analisar as transformações de pautas e
práticas nos movimentos sociais de base católica na Zona da Mata mineira. Tratarei,
especificamente, dos movimentos que possuem vínculo histórico, direto ou indireto, com o
Movimento da Boa Nova (Mobon). Para tanto, utilizarei uma bricolagem de fontes
documentais e etnográficas e procederei por uma análise fundamentada por uma perspectiva
ritual, sem que se perca de vista a dimensão histórico-processual do fenômeno. O foco da
análise será situações e eventos vivenciados durante o trabalho de campo. Em linhas gerais, o
trabalho irá explorar a potencialidade heurística da observação sistematizada do movimento
de pessoas e performances/saberes em diferentes tempos e contextos situacionais, a fim de
que se identifiquem continuidades e inovações de sentidos e ações dentro do incessante
processo socializador promovido pelo Mobon desde meados de 1960 até os dias atuais.

Palavras-chave: Aggiornamento; movimentos sociais; trabalho de base; Zona da Mata


mineira; Mobon
ABSTRACT

Pursuing the answer to the question “how did ordinary catholics become leaders?”, It is
interesting, in this work, to identify and analyze the transformations of agendas and practices
in the social movements of catholic base in the Zona da Mata of Minas Gerais. I will
specifically deal with movements that have a direct or indirect historical link with the Boa
Nova Movement (Mobon). For this purpose, a bricolage of documentary and ethnographic
sources will be used and an analysis based on a ritual perspective will be carried out, without
losing sight of the historical-procedural dimension of the phenomenon. The focus of the
analysis will be situations and events experienced during the fieldwork. In general, the work
will explore the heuristic potential of systematic observation of the movement of people and
performances/knowledge in different times and situational contexts, in order to identify
continuities and innovations of meanings and actions within the incessant socializing process
promoted by Mobon from the mid-1960s to the present day.

Key-words: Aggiornamento; social movements; groundwork; Zona da Mata de Minas Gerais;


Mobon
LISTAS DE SIGLAS

APN – Agente Pastoral Negro

Cebi – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos

CEBs – Comunidades Eclesiais de Base

CELAM – Conferência Episcopal Latino-Americana

CF – Campanha da Fraternidade

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CTA-ZM – Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata mineira

DAPE – Departamento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho

ENEP – Escola Nacional de Energia Popular

FETAEMG – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais

FETRAF – Federação dos Trabalhadores em Agricultura Familiar

FOMENE – Fórum Mineiro de Entidades Negras

FOPPIR – Fórum de Promoção da Igualdade Racial

GTs – Grupos de Trabalhos

JOC – Juventude Operária Católica

LGBTQIA+ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros, Queer, Intersexo,


Assexuais e mais.

MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens

Mape – Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho

MEB – Movimento de Educação de Base

Mobon – Movimento da Boa Nova

MRCC – Movimento de Renovação Carismática Católica

MST – Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra


OCA – Organização de Cooperativas de Agroecologia da Zona da Mata

ONGs – Organizações Não Governamentais

PJ – Pastoral da Juventude

PJR – Pastoral da Juventude Rural

PT – Partido dos Trabalhadores

SINTRAF – Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar

STRs – Sindicato dos Trabalhadores Rurais

UFV – Universidade Federal de Viçosa


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Organização territorial (e de governança) da Igreja Católica Apostólica Romana ....


.................................................................................................................................................. 35
Figura 2 - A missão soteriológica da Igreja Católica na prática: um diálogo tenso entre dois
polos significativos. .................................................................................................................. 53
Figura 3 -“Havia encontrado a garotada daqui no maior abandono. Reuni uns quinze meninos
e iniciei com eles um trabalho de difusão do bem” (Pe. J. Maria – Macapá – 1913) .............. 57
Figura 4 - Pe. Júlio Maria (à frente) e seu confrade, Pe. Hermano Elsing, em missão entre os
caboclos da Amazônia. “O mais perfeito, o mais heroico, o mais agradável a Deus era ir para
as missões, deixando para trás as sedutoras esperanças” (Pe. J. Maria) .................................. 57
Figura 5 - Recorte de revista. “A política como amor e serviço”............................................ 92
Figura 6 - Configuração da Casa do Mobon.......................................................................... 105
Figura 7 - Fotografia apresentada pelo Mobon em seu site para ‘ilustrar’ o texto “Sobre nós”
................................................................................................................................................ 107
Figura 8 - Casa do Mobon, uma “faculdade dos trabalhadores rurais” onde se gera um
sentimento de pertencimento. ................................................................................................. 122
Figura 9 - João Resende, de pé, em frente ao quadro negro, 1970 ........................................ 124
Figura 10 - João Resende, de pé, em frente ao quadro negro e à tela de projeção, Curso CF
2018, na Casa do Mobon. ....................................................................................................... 124
Figura 11 - Croqui sem tratamento que retrata a espacialidade e a situação média de interação
entre o missionário e o público durante o curso. .................................................................... 125
Figura 12 - Desenho sobreo o trabalho em grupo, Curso CF 2018, Casa do Mobon.
Lembrança da discussão empreendida pelo grupo que discutiu a “Chave de Leitura” do 5º
Encontro do curso: “Bem-aventurados os que promovem a paz”, do qual participei ............ 126
Figura 13 - Materiais de trabalho CF 2018 e seu uso em curso do Mobon. .......................... 131
Figura 14 - Estatísticas sobre a violência apresentadas por João Resende, utilizando
apresentação PowerPoint (2º Encontro: “O sangue do irmão clama a Deus”). ..................... 132
Figura 15 - Alguns quadros com fotos encontradas no escritório de um dos fundadores do
Mobon, Alípio ........................................................................................................................ 134
Figura 16 - A classe pequena de cabeça grande. Reprodução do desenho feito por João
Resende no quadro. ................................................................................................................ 137
Figura 17 - A Igreja como uma construção. Reprodução do desenho feito por João Resende
no quadro. ............................................................................................................................... 138
Figura 18 - Caderno utilizado por uma liderança durante o Curso da CF 2018. ................... 139
Figura 19 - Coisas, plantas e insetos. Casa do Mobon, fevereiro de 2018. ........................... 142
Figura 20 - Missa com padre Zé Leão, na manhã do dia 10/02/2018. As fotos retratam o
compartilhamento entre sacerdotes e entre o público do poder de consagrar e de manipular os
objetos e substâncias litúrgicas. .............................................................................................. 145
Figura 21 - Lideranças ensaiam as músicas da CF 2018 na Casa do Mobon, durante o
intervalo após o almoço. ......................................................................................................... 147
Figura 22 - Cancioneiros ‘históricos’ ornamentam o cenário do 1º Encontro de Música e
Espiritualidade na Caminhada, realizado de 30 e 31/03/2019, em Manhumirim................... 149
Figura 23 - O sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon. ........................................................... 152
Figura 24 - Agenda coletiva da Zona da Mata mineira, utilizada por participante do
movimento negro e da Pastoral Afro Brasileira. .................................................................... 162
Figura 25 - Oficina de Cantiga de Roda e Ciranda. Curso de Férias 2018, Caratinga, 11 a
13/01/2018. ............................................................................................................................. 169
Figura 26 - Croqui sem tratamento e fotos que retratam a situação média de interação entre
público, coordenação e equipe de frente (palestrantes). ......................................................... 172
Figura 27 - ‘Estrutura de diálogo’ entre público, palestrantes e coordenadores do curso
durante o Curso de Férias de 2018. ........................................................................................ 174
Figura 28 - Apresentação das oficinas de cantigas de roda e ciranda e de dança circular do
bem viver. Curso de Férias de 2018, Caratinga...................................................................... 175
Figura 29 - Continuidades e inovações com o sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon no Curso
de Férias de 2018, Caratinga. ................................................................................................. 181
Figura 30 - Continuidades e inovações com o sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon no Curso
de Férias de 2018, Caratinga. Fotos: extraídas da página do Facebook ® do evento. ......... 182
Figura 31 - Cartaz de divulgação do 7º Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas,
realizado em Ipatinga, nos dias 06 a 08/07/2018. .................................................................. 184
Figura 32 - Discussão sobre os modelos de igreja durante a palestra “Sujeitos na Igreja em
Saída, Sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13-14)”, coordenada por Farinhada e Eliane. 7°
Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas, Ipatinga, 07/07/2018. ...................... 187
Figura 33 - Painel de registro gráfico feito durante as palestras do 7° Encontro Diocesano de
Formação de Leigos e Leigas, Ipatinga, 07/07/2018.. ............................................................ 188
LISTA DE MAPAS

Mapa 1 – Principais lugares da história do Mobon. ................................................................ 86


Mapa 2 – Casa do Mobon e outras referências. ....................................................................... 87
Mapa 3 – Mobon e a política partidária ................................................................................... 88
SUMÁRIO

PREÂMBULO ........................................................................................................................ 17

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 18
Contextualizando: a importância dos ‘movimentos’ da Zona da Mata mineira e minhas
questões ................................................................................................................................. 18

A pesquisa de campo ............................................................................................................ 22

Construção, enquadramento e análise dos ‘dados’ de campo ............................................... 24

Sobre o texto ......................................................................................................................... 26

CAPÍTULO 1 – O CATOLICISMO “DA LIBERTAÇÃO” E AS CEBS ......................... 30


1.1. Campanhas de políticas culturais e transformações....................................................... 34

1.2. Campanhas de Políticas Culturas da Igreja Católica ..................................................... 40

1.2.1. Campanha Ultramontana......................................................................................... 40

1.2.2. Aggiornamento ........................................................................................................ 44

1.3. Dois modelos de Igreja na continuidade da “caminhada do Povo de Deus” ................. 51

1.4. Efeitos locais das campanhas de políticas culturais da Igreja Católica: o caso da
Diocese de Caratinga/MG ..................................................................................................... 53

1.4.1. A missão de um padre belga em uma paróquia da Diocese de Caratinga .............. 54

1.4.2. Do confronto midiático às aulas bíblicas: o legado combativo de Pe. Júlio Maria e
o surgimento do Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho (Mape) .......... 60

CAPÍTULO 2 – RASTROS: O MOBON, AS CEBS E OS MOVIMENTOS .................. 65


2.1. Contextualização: a rama de abóbora e limites que vazam ........................................... 65

2.2. O Movimento da Boa Nova (Mobon): alguns rastros de sua sociogênese .................... 69

2.2.1. Apoio de párocos e a ‘expansão’ do Mobon ........................................................... 75

2.3. O Movimento da Boa Nova e algumas alterações nas realidades locais ....................... 78

2.4. Mapas e os diferentes recortes “geográficos” em jogo .................................................. 86

2.5. Movimentos “igrejeiros”: O papel do Mobon no florescimento do engajamento político


............................................................................................................................................... 89
CAPÍTULO 3 – MOBON NA ZONA DA MATA MINEIRA: CONTINUIDADES
COMO BASE PARA TRANSFORMAÇÕES ..................................................................... 95
3.1. Curso do Mobon: a base para a transmissão da ideologia “da libertação” .................... 96

3.1.1. Os cursos disponibilizados pelo Mobon aos leigos interessados ............................ 96

3.1.2. A Casa do Mobon em Dom Cavati ....................................................................... 104

3.2. Ajustando o foco: o que mostra um retrato “Sobre nós”, o Mobon ............................. 106

3.3. O Curso da Campanha da Fraternidade de 2018, na casa do Mobon .......................... 113

3.4. Ler, registrar, usar mapas e desenhos, cantar, celebrar e fazer mística: as técnicas
potencializadoras................................................................................................................. 127

3.5. O sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon ..................................................................... 150

3.5.1. O sistema de aprendizado ‘do’ Mobon e a formação de lideranças ...................... 152

CAPÍTULO 4 – OS SABERES FAZERES HOJE: DIVERSIDADE, VITALIDADE E


(RE)INVENÇÕES NOS MOVIMENTOS POPULARES “IGREJEIROS” .................. 156
4.1. A Rama de Abóbora continua a se espalhar e dar frutos: notas sobre articulação,
reconstrução de saberes fazeres e vitalidade dos movimentos da Zona da Mata ............... 156

4.1.1. Curso de Férias para Educadores Populares de 2018: um “curso” diferente ........ 163

4.1.2. 7º Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas ..................................... 185

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 190

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 195

APÊNDICE 1 ........................................................................................................................ 206

APÊNDICE 2 ........................................................................................................................ 209


17

PREÂMBULO
18

INTRODUÇÃO

“Eu acho muito interessante quando alguém se


interessa a buscar essas histórias, aí você percebe que
essas comunidades ainda estão vivas”.

Sebastião Farinhada1

Contextualizando: a importância dos ‘movimentos’2 da Zona da Mata mineira e minhas


questões

Assim como é difícil colocar um ponto final no texto, também é difícil começá-lo.
Mas, sem delongas, é importante dizer que o trabalho que o leitor possui em mãos, entre
muitas coisas que representa, trata-se do resultado de uma reflexão que vem maturando há
muitos anos em minha cabeça. Ele nasce de uma curiosidade ‘simples’ que me acompanha
desde o meu contato com um projeto transformador de educação popular do campo
implementado pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar
(Sintraf) de Espera Feliz/MG. Falo do Curso Pré-Vestibular de Educação Popular do Campo
“Tecendo Sonhos”, onde trabalhei como voluntário/bolsista durante cinco anos de minha vida.
Conforme informado no site Agroecologia em Rede3, o projeto, que durou de 2008 a
2016, consistiu em um pré-vestibular em alternância que visava facilitar o acesso de jovens do
meio rural à Universidade Pública, bem como sua formação integral, buscando, através de
ações entrelaçadas num processo de troca de conhecimento, trabalhar conteúdos referentes ao

1
Farinhada, cantador e educador popular da Zona da Mata mineira, em entrevista ao pesquisador Márcio Gomes
da Silva, no dia 06/08/2020. Sobre a biografia de Farinhada, falarei mais no capítulo 2.
2
É importante informar ao leitor a maneira como o “registro de citações” funciona. Assim, a experiência de
reviver comigo algumas conversas, histórias e cenas e refletir sobre elas se tornará mais confortável e, creio,
mais interessante. Para esse trabalho – inspirado no jeito de escrever de Guedes (2011) – me utilizarei das aspas
simples (‘x’) para problematizar termos e expressões, bem como para marcar as aspas duplas dentro de citações
bibliográficas longas; das aspas duplas (“x”) para as falas dos informantes e citações bibliográficas; do itálico (x)
para as categorias nativas e palavras estrangeiras e o sublinhado (x) para marcar minhas próprias ênfases.
3
Disponível em: <https://agroecologiaemrede.org.br/experiencias.php?experiencia=1124>. Acesso em: 14 fev.
2020.
19

vestibular, a partir de elementos inerentes ao contexto no qual estão inseridos. Entre os


princípios que nortearam a ação dessa experiência, esteve a agroecologia, a educação popular
e a economia popular solidária4.
Em 2009, época de minha entrada como educador voluntário de literatura no projeto –
como ‘menino de cidade’, morador de Manhumirim, com 17 anos e cursando o primeiro
período de Letras na FAVALE/UEMG –, além da novidade da experiência de dar aula, me
instigou saber que a poucos quilômetros de Manhumirim (aproximadamente 47 Km de
distância), que também possui um sindicato de trabalhadores rurais e problemas semelhantes
aos enfrentados pela população da zona rural de Espera Feliz, existia um projeto dessa espécie
e magnitude, coordenado pelos “pequenos” do lugar, organizado quase todo de maneira
voluntária e já mostrando resultados5.
Deixou-me ‘encucado’ a organização do sindicato e o quanto era avançado entre as
pessoas da coordenação do projeto o debate sobre acesso a direitos, à conservação do meio
ambiente, cooperação e solidariedade, educação e cultura popular. Essa foi a minha primeira
experiência de contribuição com algum movimento social que buscasse mudanças. Foi através
de minha ‘entrada’ no movimento sindical que passei a ter maior contato com os outros
movimentos sociais da Zona da Mata. Foi a partir desta oportunidade que conheci o campus
da UFV e uma ampla rede de pessoas ligadas a diversas bandeiras como a agroecologia, a
educação popular, a economia solidária, a cultura popular, a pauta da negritude e dos povos
originários, etc. Desde então, venho aprendendo e mudando. Boa parte de minha formação
enquanto pessoa advém desse contexto. Quase tudo que aprendi (ou reaprendi) “fora das salas
de aula” enquanto estudei Ciências Sociais na UFV – como tocar triângulo; fazer facilitação
gráfica; organizar eventos; fazer mística; escrever e gerenciar projetos, coordenar reuniões;
falar em público em oficinas, reuniões, congressos, seminários; participar/fazer manifestação
4
A ideia do projeto surge em 2007, a partir da “reflexão” feita por agricultores e agricultoras ligados aos Sintraf
do município que recebiam em suas casas estudantes universitários da UFV e outras instituições para realizarem
o Estágio Interdisciplinar de Vivência nas comunidades rurais da Zona da Mata. A questão principal levantada
pelos “pequenos” foi: se ‘o povo da universidade’ vem até o campo, por que nossos filhos, “do campo”, não
podem acessar/ir até à universidade? Essa reflexão levou a uma ação concreta. Isto é, a articulação do Sintraf
com o Programa Teia de Extensão Universitária da UFV, o Centro de Tecnologia Alternativas (CTA-ZM) e
educadores voluntários vindos de Viçosa e também das Faculdades Vale do Carangola/Universidade do Estado
de Minas para a implementação do curso. Assim, o “Tecendo Sonhos” inicia suas aulas em 2008. O projeto foi
pensado, sobretudo, para atender aos interessados em prestar o vestibular para acessar o ensino superior,
principalmente, filhos e filhas de agricultores que há muito haviam terminado os estudos do ensino básico. De
porta em porta foi divulgado o projeto que durou por oito anos. Teve seu ‘fim’ deliberado em reunião de
planejamento do Sintraf de Espera Feliz no ano de 2016, em decorrência da baixa participação dos filhos de
agricultores e agricultoras ligados ao sindicato em suas atividades, momento em se estabeleceu que o “trabalho
de base” seria a prioridade e se investiria mais na “Escolinha Sindical” para a formação de “novos quadros” para
o movimento. Para mais informações e reflexões sobre o cursinho, cf. Maia (2009), Amorim Júnior e Lopes
(2011), Teixeira, R. S. e Lopes (2013) e Teixeira, R. S. et al. (2016).
5
Em 2009, o cursinho teve um de seus estudantes aprovado no curso de Cooperativismo da UFV.
20

ou ato público; valorizar as coisas que vêm da terra; gostar de folia, congada, caxambu,
ciranda, roda de samba e romaria, etc. – tem relação com esse ‘ambiente de aprendizado” dos
‘movimentos’.
Quanto mais entrei de cabeça nos ‘movimentos’, mais entendi o quão “revolucionária”
– como diz Farinhada – foi a experiência do cursinho popular “Tecendo Sonhos”. Afinal, a
experiência representou muito no que se refere à “mudança da realidade”. Sua implementação
em um ambiente rural, marcado muitas vezes pela baixa escolaridade e até mesmo pelo
analfabetismo, em que apenas os filhos dos “grandes” fazendeiros tinham oportunidade de
estudar e “virar doutor”, mudou vidas, incluindo a minha. Desde então, me acompanham e
aguçam meu olhar/sentir esses relacionamentos com as “lideranças” dos movimentos algumas
questões. Como essas pessoas do sindicato/movimentos/pastorais aprenderam tudo isso?
Como aprenderam a se organizar e a defender seus direitos? Em quais fontes bebem para
poderem criar, se reinventar e resistir às intempéries colocadas pela história?
Com o passar do tempo, vivendo uma infinidade de processos, participando de uma
diversidade de eventos, “caminhando” junto com as lideranças para lá e para cá, ouvindo suas
histórias e vendo fazerem as coisas é que me dei conta da importância desses
movimentos/pastorais. Como procura demonstrar esse trabalho, esses movimentos – incluindo
a criação dos sindicatos de trabalhadores rurais – tiveram como base os saberes e valores
formados por um setor da Igreja Católica que buscava (busca) a “libertação” dos “oprimidos”.
Como demonstram uma série de pesquisadores, esses movimentos possuem um valor capital
para a mudança das relações sociais e de poder na região da Zona da Mata mineira e outras
regiões que com essa região possuem contato. Demonstrar-se-á que o empreendimento
iniciado no final da década de 50 do século XX por um movimento coordenado por padres da
Congregação dos Missionários Sacramentinos junto aos “pequenos” (sitiantes e meeiros) dos
córregos, na Diocese de Caratinga, se desenrolou com o passar dos anos, sem automatismos e
considerando as contradições inerentes ao processo, uma série de “resultados inesperados”,
isto é, empreendimentos comunitários e/ou associativistas com vistas a “ajudar o outro”
(THEIJE, 2002, p.270-271), bem como, a conformação de partidos políticos e de carreiras
políticas.
Fundado pelos missionários sacramentinos de Nossa Senhora no final da década de
1960, o Movimento da Boa Nova (Mobon) é uma espécie de continuidade ‘com mudanças’ do
Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho (Mape). O Mobon é um movimento
católico de evangelização baseado na formação bíblico teológica popular continuada, que se
efetiva a partir de cursos de formação de lideranças e de “cursos de base”. Os objetivos
21

principais do movimento são a criação e manutenção de comunidades; e a formação de


lideranças. O Movimento, a partir do final da década de 1970, se politiza mais (OLIVEIRA,
F. R. C., 2012) e contribui com a formação de diversos sindicatos e diretórios do Partido dos
Trabalhadores (PT), bem como para a eleição de alguns políticos desta legenda.
Portanto, o ponto de partida é entender como o Mobon contribuiu com a abertura de
uma nova fronteira que possibilitou organização e atuação política de camponeses e
moradores de pequenas cidades. Isto é, como o ‘movimento’ de cunho religioso, iniciado para
se criar comunidades de base e formar lideranças, possui conexão com a formação dos
sindicatos de trabalhadores rurais; o fomento à atuação político-partidária, a origem de
cooperativas; a conquista de terras em conjunto; a construção do ‘movimento agroecológico’,
o desenvolvimento da Pastoral da Saúde e da Homeopatia na Zona da Mata; o
desenvolvimento do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), no Alto Rio Doce,
entre outros resultados, como a própria criação do “Tecendo Sonhos”. Assim, procuro
oferecer mais uma leitura possível acerca de um ponto compartilhado por muitos
pesquisadores, de diversas áreas do conhecimento, o de que o clero e os leigos progressistas –
aqueles denominados religiosos e leigos “da libertação” –, principalmente com a organização
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), foram importantes vetores para diversos
processos de formação cidadã e de mudança das realidades sociais.
Desta forma, este trabalho é resultado das reflexões surgidas na investigação realizada
por mim sobre a relação entre a formação bíblico pastoral popular advinda do contato de
católicos comuns6 com o Mape/Mobon/ CEBs e o engajamento político-social, em seu sentido
mais amplo7, de grupos de leigos8 de comunidades rurais e urbanas que possuem vínculo

6
Por católicos comuns pode-se entender, primeiro, as pessoas que por se dizerem católicas, automaticamente,
fazem parte do universo católico. Segundo, utilizando-se dos esquemas nativos oriundos das CEBs de Minas
Gerais e do Rio de Janeiro descritos por Lespaupin et al. (2004), são os participantes e os frequentantes. Os
participantes sendo aqueles que “pagam dízimo ou estão envolvidos em um ou outro serviço, mas não
representam a comunidade nas atividades de articulação, nem participam da coordenação” (LESBAUPIN et al.,
2004, p.151-152) e os frequentantes, aqueles que frequentam apenas as missas, os assim chamados misseiros.
7
Não apenas na dimensão político-partidário, mas também do ponto de vista institucional (se organizar em
sindicatos, associações, cooperativas, partidos, etc.), assim como também envolve o “fazer política” no próprio
cotidiano, expresso por uma maneira sui generis de se relacionar com as pessoas e o mundo cotidianamente.
Pressupõe um certo modo de se encontrar, de cantar, de partilhar a comida, de conversar, de se vestir, de falar e
de se organizar.
8
A expressão “leigo”, “leiga” ou “liderança leiga” é recorrente tanto entre missionários quanto entre os fiéis com
que tive contato. O termo é utilizado para designar aqueles que possuem o papel de missionário, mas que não
fizeram votos religiosos. Embora o termo “leigo” no seu sentido comum seja um termo pejorativo – isto é, quem
não possui conhecimento especializado em determinada área, visto como “ignorante” –, aparece no discurso
tanto dos clérigos quando dos fiéis como uma qualidade, um status importante. Nas narrativas clericais, o termo
“leigo” vinha sempre seguido da sua importância e dever, leigo é todo aquele que foi batizado e assume o
compromisso de ser cristão. Na perspectiva “da libertação”, como escreveu o missionário sacramentino Denilson
Mariano da Silva, “Trata-se de pessoas que assumem a missão própria de seu batismo e exercem o seu
protagonismo na vida eclesial e social” (SILVA, Denilson Mariano da, 2019a, p.69). Entre as ditas “lideranças
22

histórico, direto ou indireto, com o Mobon. Meu anseio fundamental é compreender como
ocorreu (ocorre) o processo de formação das lideranças de diversos ‘movimentos’ sociais e
religiosos (ou político-religiosos, ou vice-versa)9 da referida mesorregião de Minas. Em outras
palavras, uma das perguntas que objetivo responder na dissertação é “como católicos comuns
se tornaram (tornam) lideranças?”. Mas não só.
Inserida no escopo de investigações sobre o catolicismo “da libertação”, interessou-me
também mapear o conjunto de saberes fazeres comuns de “fazer a luta” e analisar os
diferentes modos como são apropriados e ressignificados pelas lideranças “filhos(as) de
Mape/Mobon/CEBs”. Por fim, uma questão que norteou a investigação foi compreender o
modo como o que se está chamando de sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon10 foi/é
incorporado, reproduzido e ressignificado em diferentes escalas. Ou seja, entre gerações e
entre diferentes contextos situacionais.

A pesquisa de campo

A pesquisa de campo foi realizada seguindo os passos de algumas lideranças em


diversos eventos e/ou acompanhando parte de seus cotidianos. Em outras palavras, fiz um
“giro etnográfico” me valendo das oportunidades em que, como
parceiro/colaborador/voluntário/participante, participei, eventualmente, de reuniões,
encontros, cursos e festas comunitárias e religiosas, isto é, de alguns encontros marcadamente
ritualizados, durante os quais as lideranças estabeleceram sociabilidade, fizeram uso da
palavra, promoveram debates, ‘representaram’ seu ‘movimento’, fizeram mística, conduziram
“preces” e articulações.
Participei mais que observei. Nos eventos, desenhei, toquei triângulo, tomei cafés,
cantei e/ou proseei e assumi – conforme descrito nos crachás ‘de participação’ nos eventos
que me foram entregues – os papéis de “participante”, “convidado”, “membro da corte na
festa de Nossa Senhora do Rosário”, “membro da comissão organizadora”, “oficineiro” ou
“assessor”. Grosso modo, em muitos casos, fiz parte da “coordenação” ou da “equipe de

leigas”, o termo aparece como “eles chamava a gente assim”. Neste trabalho, tal como em Rabelo (2019),
sempre que me referir a “lideranças” estou remetendo a ditas “lideranças leigas”.
9
Não é objeto deste trabalho a discussão sobre o tipo de movimento de que fazem parte os agentes de CEBs, por
isso a construção “sociais e religiosos (ou político-religiosos, ou vice-versa)”. Para indicar a diversidade e
complexidade dos movimentos dos quais as lideranças que conheço participam e/ou mantém contato.
10
Como escreve minha companheira de pesquisa, o termo “se refere a um conjunto de técnicas, conhecimentos e
saberes que foram aprendidos pelas lideranças religiosas durante suas experiências nos cursos do Mobon, bem
como na vivência cotidiana nas CEB’s e as atividades proporcionadas por essa rede social” (RABELO, 2019,
p.42).
23

frente” (COMERFORD, 1999) nos eventos, uma vez que realizei algumas tarefas
desempenhadas por este grupo de pessoas, como (i) contribuir com o andamento dos
trabalhos; (ii) relatar por escrito ou em desenhos “aquilo que foi falado nas discussões” (idem,
1999, p.60) e (iii) elaborar documentos escritos que circularam em determinados espaços e
geraram “novas interpretações e efeitos a partir das reuniões, ou que vão permanecer como
uma espécie de ‘comprovação’ ou registro oficial, cuja simples existência pode ser invocada
em determinadas circunstâncias...” (ibdem, p.57).
A pesquisa não foi realizada em imersão no cotidiano das comunidades de base, mas
abordando, esporadicamente, as lideranças ‘no’ movimento. Acompanhei, portanto, os
católicos “de base”, nos ‘bastidores’ e em suas atuações em cursos, oficinas, encontros,
congressos, seminários, festas e reuniões. Assim, o foco não foi acompanhar ‘qualquer’
agente de CEBs, mas aqueles militantes “engajados” e “atuantes” que, em razão de sua maior
circulação por entre cursos e encontros nas “casas de curso” e “nas bases”; em suas e em
outras comunidades de base, e; e por diferentes municípios, estados e até fora do país,
adquiriram e possuem a “capacidade de falar bem ou falar bonito” (COMERFORD, 1999,
p.55) e são extremamente articulados local, regional, estadual e nacionalmente. Considero,
pois, a perspectiva dos que se comportam ou são ‘obrigados’ a se comportar como pessoas
“engajadas”, que possuem “caminhada”.
A pesquisa de campo foi dividida em pré-campo, campo e pós-campo e realizada de
outubro de 2017 a novembro de 2019. Nesse período, a partir do convite feito por algumas
lideranças, circulei por diferentes localidades de Minas Gerais11 e ‘naveguei’ por uma extensa
rede social ‘católica’ “da libertação”. Ao todo, vivenciei 33 situações e eventos12. Também
realizei algumas entrevistas, recorri a algumas outras feitas por terceiros e troquei
informações via Whatsapp®, Messenger® ou por telefone, com religiosos e lideranças
leigas13; visitei algumas lideranças em suas casas, e; acompanhei conversas de grupos
Whatsapp® de lideranças do Mobon e os perfis de Facebook® de algumas delas. Foram

11
Barão de Cocais, Belo Horizonte, Caratinga, Cataguases, Divino, Dom Cavati, Espera Feliz, Ipatinga,
Manhumirim, Muriaé, Paula Cândido, Tarumirim e Viçosa. Enquadrando esses municípios nos territórios de
governança da Igreja Católica, o pesquisador circulou pelas dioceses de Caratinga, Itabira e Coronel Fabriciano,
Leopoldina e pelas arquidioceses de Mariana e Belo Horizonte.
12
Incluem-se aí os eventos acadêmicos em que pude compartilhar minhas ideias e análises com outros
pesquisadores. Bem como, também aquelas situações que “de casa” pude, por meio de conversas com as
lideranças por meio das redes sociais, contribuir com a elaboração de identidades visuais de diferentes eventos.
Para acesso à lista de eventos e situações, conferir Apêndice 1.
13
Para acesso à lista de entrevistas, conferir Apêndice 2. As conversas presenciais, por telefone ou por troca de
mensagens via aplicativo de troca de mensagens, quando foram utilizadas, em sua maioria, foram referenciadas
nas notas de rodapé. Fragmentos de entrevistas extraídas de documentos e ou da literatura científica consultada
também foram referenciadas.
24

registradas as narrativas por meio da gravação de áudios de reuniões, de anotações em blocos


de notas e diário de campo, de desenhos e de painéis de registro gráfico. Utilizei também a
fotografia e os vídeos para registrar os fatos.
A pesquisa foi feita no movimento. Quer dizer, o trabalho de campo se fundamentou
na minha movimentação por localidades, eventos e tempos distintos. Em deslocamento, de
evento em evento, o pesquisador foi ‘descobrindo’ que “para julgar e saber de julgamentos, é
necessário movimentar-se” (COMERFORD, 2014, p.107). Assim, tal como os bem
informados adivinhos entre os Azande14, deparei-me com várias gerações ‘do Mobon’,
narrativas, situações, julgamentos e conflitos sociais. Deste modo, a etnografia que se tem em
mãos trata-se de uma “etnografia multisituada” (MARCUS, 1995).
Durante o giro, consideraram-se as informações que os agentes da cultura acharam que
o pesquisador “deveria saber” (SEEGER, 1980, p.38). Durante toda a movimentação, os
agentes da cultura mostraram objetos15, apresentaram pessoas, narraram (e julgaram)
situações sobre outros agentes da cultura, indicaram leituras e filmes/vídeos. A escolha
metodológica foi pela ‘observação direta’, em que o pesquisador se “situou” como
empreendimento científico (GEERTZ, 2008a). Essa escolha foi determinante para a
realização do trabalho, uma vez que a observação direta de um evento apontava uma série de
pistas de contextualização (GUMPERZ, 2002) que marcavam as observações e situações face
a face (GOFFMAN, 1985) vivenciadas, subsequentemente, pelo pesquisador em campo.
Ao fim, em contato com um emaranhado de processos comunicativos (BAUMAN,
BRIGGS, 2006) e enredando distintas situações, percepções e relações comuns e discrepantes,
foi possível edificar um corpus narrativo polifônico que será utilizado para descrever e refletir
sobre uma totalidade social e cultural.

Construção, enquadramento e análise dos ‘dados’ de campo

Primeiro, abordo o Mobon e suas consequências a partir de Minas Gerais. Em relação


ao trabalho que o movimento desenvolveu em Mato Grosso, só tive contato com ele nos
momentos finais da pesquisa, por meio da observação de conversas em dois grupos de
WhatsApp ®, todavia, pouco ou nada dessas conversas foi acionado para a interpretação dos
dados. Assim, a atuação dos missionários sacramentinos e suas consequências nesta região
não serão tratadas nesta pesquisa.

14
Cf. Evans-Pritchard (2005, p.104-108).
15
Cf. Teixeira, R. S. e Rabelo (2018).
25

Segundo, falo de situações e eventos, pois me utilizo do entendimento construído pelo


pesquisador Souza Santos (2019), no qual se entende a

“(...) situação social como sendo um encontro entre duas pessoas ou mais de modo
casual, envolvendo espaços, equipamentos e meio ambiente onde o encontro
acontece. Em relação à categoria evento social, utilizo-a no sentido de um encontro
mais planejado, programado, com lugar, data e hora marcada; um encontro previsto
de acontecer, embora a sua ocorrência e desdobramentos vai depender propriamente
dito dos ‘engajamentos’ individuais e de sua ‘força agregadora’ no momento em que
acontece” (p.27).

Ambos, situações e eventos, foram enquadrados como speech events (BAUMAN,


BRIGGS, 2006) e analisados por mim a partir da noção de ritual como estratégia analítica
(PEIRANO, 2001)16. Quero dizer com isso que direcionei minhas observações para a
linguagem “em uso”. Isto é, fixei meu interesse

“(...) na ação (e compreendemos inclusive a fala como tal), exatamente porque


entendemos que o ato e o processo têm uma dimensão teórico-política que nasce da
temporalidade do evento, da criatividade do vivido, da perda e do ganho inevitáveis
do instante histórico. No exame do evento e do ritual, objetivos teórico-intelectuais e
político-pragmáticos se unem” (PEIRANO, 2001, p.10).

Atento aos modos de dizer e fazer das lideranças nas situações e eventos que
vivenciei, posso dizer que tive acesso a “atos de sociedade” que deixaram “entrever
classificações implícitas entre seres humanos, humanos e natureza, humanos e deuses (ou
demônios), por exemplo” (idem, p.10). Em outras palavras, pude compreender melhor as
visões de mundo dominantes dos grupos que acompanhei. Bem como, por meio da
observação e análise do ritual, ‘acompanhar’ o processo de mudança de pautas e práticas, e a
transformação de identidades.
Li os dados a partir da teoria da “campanha de política cultural” e seus termos
correlatos (cf. THEIJE, 2002, 2004). Dessa forma, vali-me do paradigma da prática (THEIJE,
2002) para o enquadramento dos ‘dados’ de campo17. Fazendo um recorte explicativo (afinal
de contas, os fenômenos sociais são multifatorialmente condicionados), procurei analisar mais
detidamente como se deu a “passagem de uma coisa à outra”, ou antes, como uma coisa pode,
por meios de processos variáveis, tornar-se outra coisa. Como um católico comum se torna
um católico engajado, como um movimento religioso ‘se transforma’ em movimentos “mais

16
Digo, os tomarei como eventos performados em que seus participantes “calcula[m] o lugar olhado das coisas”
(BARTHES, 1990, p.85 apud DAWSEY, 2005, p. 6). Conferir também Turner (2005); Schechner (2012); Taylor
(2013) e Silva, R. A. (2005).
17
É mister dizer que utilizo a obra da pesquisadora de maneira instrumental, uma vez que foi esta etnografia que
durante o levantamento bibliográfico – não exaustivo – sobre o tema do catolicismo “da libertação” e das CEBs,
foi a que sinalizou a melhor maneira de ordenar meus dados.
26

políticos” e incentiva outros ‘movimentos’, como esses saberes se transformam em ‘outros’


saberes, etc. Assim, o que orientou a escrita foi a análise das práticas educativas colocadas em
movimento pelo Mobon e como estas foram (re)produzidas, apropriadas e modificadas por
lideranças em outros contextos sociais.
Por fim, a análise dos dados foi construída pela afetação de quem tem uma relação
ambígua, de estar ‘dentro’, mas também ‘fora’. Deste modo, as afetações do campo e as
memórias de minha trajetória de vida – moldadas em muito pelo catolicismo a partir de minha
vivência familiar e comunitária18; meu contato com as ações da Congregação dos
Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora19 e meu contato e participação em uma ampla
variedade de ações juntos aos diversos movimentos sociais que se desenvolveram a partir de
meu contato, em 2009, com o Sintraf de Espera Feliz – afetaram o meu pensamento “no
gabinete”, auxiliando-me no processamento dos dados construídos durante a pesquisa de
campo.
Vale mencionar a questão tantas vezes refletida pela turma do MINTER,
especialmente no âmbito das aulas da disciplina “Etnografia: Campo, Escrita, Teoria,
Subjetividade”: “Quando começa e quando termina o trabalho de campo?”. No relatório de
pesquisa elaborado e enviado aos orientadores ao ‘fim do trabalho de campo’, apresentei
alguns eventos de que participei em um período que vai de outubro de 2017 a julho de 2018.
Todavia, o campo não sai de nós e nem nós saímos dele. Assim, além de ter estendido a
pesquisa de campo até novembro de 2019 (!), o trânsito de informações que recebi e
processei, mesmo quando ‘terminei’ o trabalho de campo, foi contínuo e me auxiliou no
entendimento de uma ‘totalidade’ que era meu objetivo entender. Deste modo, a escrita se
construiu como um processo de vida, com todas as alegrias, dores, compassos e
descompassos, gestado a partir de um saber prático, isto é, um “saber-viver” (AGIER, 2015,
p.11).

Sobre o texto

Parti da imaginação socioantropológica (cf. GEERTZ, 2008a; BERGER, 1986) para a


tessitura de uma teoria social possível sobre a conformação de lideranças e militantes
camponeses com atuação social e política na Zona da Mata mineira e além. Assim, produzi –

18
“Do batismo” até a entrada no Ensino Superior (2009), participei da vida religiosa das comunidades de Santa
Rita, Sagrada Família e Santo Expedito, todas da Paróquia do Senhor Bom Jesus, em Manhumirim/MG.
19
Trabalhei na gráfica “O Lutador” dirigida pelos missionários sacramentinos de 2007 a 2011 e frequentei os
encontros vocacionais promovidos pela Equipe Vocacional da congregação em 2008.
27

por meio de um artesanato intelectual e jogando com contextos (STRATHERN, 2013) – uma
tradução possível, (de)limitada, para o amplo saber popular com o qual tive contato.
Ao contrário do que planejei fazer no início, i.e., um texto escrito e revisado
previamente, em um processo construído coletivamente, pelas pessoas com quem conversei.
O trabalho “de gabinete” foi ‘solitário’. Mas, tenho certeza, trata-se de um texto escrito “de
ouvido”20, em que busquei escutar diversas vozes (faladas e escritas) e organizá-las a partir da
vista de um ponto sobre a totalidade que busquei investigar. Quero dizer que a
responsabilidade pela edição dos dados é minha, mas o enquadramento (footing) dos fatos foi
feito baseado na “escuta atenta” e séria do que me disseram os interlocutores, da mesma
maneira, se fundamentou em experiências e memórias compartilhadas (anotadas, ou em forma
de sinapses nervosas).
Crendo que os desenhos são ferramentas com que se pode fazer antropologia
(KUSCHNIR, 2016), o texto é composto também por desenhos meus e dos outros. Os
‘grafismos’ que abrem cada parte da dissertação são desenhos feitos em diferentes momentos
por algumas pessoas com quem conversei durante a pesquisa de campo. Desenhos feitos
durante momentos de reunião ou em momentos de lazer ou ainda extraídos de outros
trabalhos que li. Assim, os grafismos que abrem essa introdução e o capítulo 1 foram feitos
pelo cantador e educador popular Sebastião Farinhada durante a reunião para se pensar a
identidade visual do 11º Fórum pela Promoção da Igualdade Racial (FOPPIR), em Viçosa. Os
capítulos 2 e 4 são abertos por desenhos feitos à giz em um quadro negro por Farinhada e sua
sobrinha enquanto ‘brincavam’ de fazer arte em um fim de tarde, em Manhumirim. O desenho
extraído da capa do livro “Mobon: missão e fé libertadora” (2011) abre o capítulo 3. Por fim,
a conclusão do trabalho é precedida pelo desenho feito pela jovem Irene Cardoso, em 1977,
quando participava das reuniões do Grupo de Jovens “Estamos Ligados no Amor de Cristo –
ELAC”, na Diocese de Caratinga.
Utilizei também do desenho durante a pesquisa de campo, e alguns desses traços
(croquis, desenhos de observação, esquemas e um painel de facilitação gráfica, bem como a
história em quadrinho presente no preâmbulo que antecede esta introdução) são trazidos para
o corpo do texto para dar vivacidade e auxiliar o leitor a reviver algumas cenas e a
compreender o que estou dizendo. Junto com as fotografias, os desenhos compõem um painel

20
Faço alusão ao modo como o missionário sacramentino João Resende apresentou Lívia e eu durante o Curso
da Campanha da Fraternidade de 2018, em Dom Cavati. Ele disse para o público do curso que erámos
“pesquisadores de oreia”, e que estávamos participando do curso para escutar o que eles tinham a dizer e fazer
nosso trabalho de faculdade.
28

de imagens-textos que possibilitam ao leitor aproximar-se da aura21 do fenômeno que


apresento, sobretudo, nos capítulos 3 e 4.
O texto que o leitor tem em mãos é apenas “um ponto final no meio da conversa”
sobre a sociogênese do sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon e os processos variáveis
decorrentes de sua criação e difusão na Diocese de Caratinga e outras dioceses parceiras. Isto
posto, o que farei é, “misturando as palavras sagradas da ciência com as da religião”
(BRANDÃO, 2007, p.20), responder às questões mencionadas nesta introdução. Para isso, no
Capítulo 1, faço uma contextualização sociohistórica que situará o leitor no tempo e no
espaço, dando-lhe informações que ancorarão os fatos que permitiram o Mobon florescer na
Diocese de Caratinga a um contexto macrossocial. Apresento também uma discussão teórico-
metodológica que ajudará a entender a minha abordagem dos dados. Em ambas as discussões,
vou tecendo o texto com dados sobre os missionários sacramentinos, o Mape/Mobon, a
realidade brasileira e dos ‘córregos’ da Zona da Mata, encontrados em documentos e outras
fontes de pesquisa.
No Capítulo 2, dando continuidade à contextualização e também bastante
sociohistórico, detenho-me em apresentar no detalhe o surgimento do Mobon, sua expansão e
articulação com outras inciativas de evangelização na Diocese de Caratinga e outras dioceses,
assim como apresentar as principais alterações e desdobramentos que o movimento fez nos
córregos da Zona da Mata mineira, sobretudo, falando sobre o seu papel no florescimento do
engajamento político e na organização dos “pequenos” destes córregos.
No Capítulo 3, mais etnográfico, é onde apresento a base para a transmissão e
(re)produção da ideologia “da libertação”, isto é, as várias modalidades de encontro
promovidas pelo Mobon. Aproveito também para descrever e analisar os saberes ‘do’
movimento “em uso” durante um curso que participei na Casa do Mobon, em Dom Cavati.
Por fim, apresento uma discussão sobre o que nomeei de sistema de aprendizagem ‘do’
Mobon e como ele formou (forma) lideranças.
No Capítulo 4, demonstro como foram (vão sendo) apropriados, (re)criados e
diferenciados por ‘novos’ movimentos – como exemplo, os movimentos que envolvem jovens
e o movimento negro – os saberes fazeres ‘do’ Mobon. Faço esse processo a partir da
descrição e análise de dois eventos dos quais participei durante a pesquisa de campo, em que

21
Aura é um termo apropriado por Walter Benjamin em seu ensaio “A obra de arte na era da sua
reprodutibilidade técnica” (Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, 1936). O
conceito foi utilizado para designar os elementos únicos de uma obra de arte original. Para o autor, a aura está
relacionada à autenticidade; a existência única de uma obra de arte. Aura para Benjamin está relacionada à
unicidade e autenticidade, ou seja, o que o autor chama de “aqui e agora”.
29

busco captar as semelhanças e diferenças com o que chamei de sistema do Mobon, buscando
chamar a atenção, por meio da análise ritual, para a diversidade de agentes envolvidos nesses
eventos. O capítulo é ilustrativo das (re)invenções que garantem vitalidade aos movimentos
populares “igrejeiros” na região.
Ao fim, teço algumas considerações finais acerca do que discuti ao longo do texto,
procurando analisar em que se avança na pesquisa antropológica sobre os movimentos sociais
na Zona da Mata mineira, sobretudo, considerando a atuação de suas lideranças no contexto
político atual.
30

CAPÍTULO 1

O CATOLICISMO “DA LIBERTAÇÃO” E AS CEBS

O Concílio Vaticano II, iniciado em 11 de outubro de 1962 e terminado em 8 de


dezembro de 1965, foi um importante evento promovido pela Cúria Romana. Suas
implicações foram sentidas em diversas partes do mundo. Pode-se dizer que se criou um
contexto favorável a uma revisão do modo como a Igreja Católica Apostólica Romana
colocava em prática a própria doutrina e interpretava a “História Sagrada”, sobretudo, o
Evangelho. O que se viu foi uma mudança no modo como certos setores da instituição se
relacionavam com seus fiéis, antes vistos apenas como espectadores de um ritual salvífico que
só os sacerdotes sabiam operar. O tempo pós-conciliar, para aqueles leigos que aderiram ao
Aggiornamento22, significou uma oportunidade de serem protagonistas em um contexto
hierárquico23, cujo caminho apresentado pelos ‘de cima’ foi o de desfazer o divórcio fé e vida.
Como termo nativo, Aggiornamento é muito encontrado na literatura sobre o
catolicismo “da libertação”. O Aggiornamento pode ser considerado um processo de
modernização católica, cujo ‘ápice’ se revelou de maneira mais contundente no Concílio
Vaticano II. Desse modo, como aponta Paiva (1985):

“Se a Igreja no passado não logrou impedir a libertação do pensamento


político e social da teologia, o seu ‘aggiornamento’ permitirá o
desenvolvimento de correntes teológicas que buscarão integrar o moderno
pensamento político e social, incorporando a discussão dos assuntos públicos
o componente religioso e avançando na luta por impedir que a religião se
torne definitivamente assunto privado” (p.14).

22
Isto é, “atualização” em italiano.
23
Apesar de todo o discurso de abertura, a hierarquia permaneceu bastante forte dentro da Igreja Católica. A
mudança proposta pelo Vaticano II, por exemplo, só era de fato permitida e implementada se houvesse “boa
vontade” da hierarquia local. “É enganoso pensar que, em todas as comunidades, ramificadas pelo país,
emergisse um discurso de mobilização social contra as condições vigentes (Burdick, 1998). A história das
comunidades tem uma relação direta com: interesse de pároco, bispo, agentes de pastoral, além de problemas
locais. Ou seja, a entrada e a adoção de um conjunto de ideias eram dependentes da mediação dos interesses dos
párocos” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012. p.61).
31

No que tange ao propósito desta dissertação, focada, entre muitas coisas, em uma
antropologia do conhecimento, o evento representa – histórica e etnograficamente24 – a aurora
de um novo jeito de realizar a exegese bíblica, marcada pelo método “ver, julgar, agir” 25,
também conhecido como método da “revisão de vida”. Como escreveu Castelhano (2017),
por intermédio de Joseph Cardjin, padre conciliar, a “revisão de vida” constituiu-se
“caminho” para ensinar os católicos comuns a serem católicos “da libertação” e se tornarem
lideranças comunitárias. Neste novo ‘esquema de pensamento’, a salvação (de si, do outro e
do mundo) deve ser buscada nas coisas que são visíveis, que estão neste mundo, “aqui e
agora”. Como Oliveira. F. R. C., Zangelmi e Schiavo (2010) escreveram, “é postulado
importante na teologia da libertação o fato de que a salvação ‘deve ser encontrada nesta vida:
não é um prêmio a ser obtido após a morte’ (ibid, p. 23)” (p.34).
Em outras palavras,

“(...) a revisão de vida está construída como um caminho gradual e sistemático, o


qual está assente no trinómio ‘Ver, Julgar, Agir’. Tem como objectivo levar a uma
união profunda entre a fé professada e a vida concreta. Isto é, o método de revisão
de vida procura levar à unidade de Vida, pretendendo situar a vida concreta do ser
humano, pessoal e colectiva, no Evangelho, conduzindo à unidade entre a fé e o agir,
entre aquilo que se professa e aquilo que se vive. A revisão de vida é, por isso, um
método indutivo que aponta para o interior e para o concreto, uma vez que parte da
situação concreta, e a partir das ideias gerais e universais deduz o que se há-de fazer.
O método parte de uma análise profunda da realidade concreta, orientando para o
estudo conjunto dos problemas e procurando que se chegue, em conjunto, à solução
para os mesmos, levando a que as pessoas em causa se comprometam e animem
mutuamente na resolução das dificuldades com que se deparam. (...). A revisão de
vida só tem uma missão: ‘situar de novo as nossas vidas no desígnio de Deus,
empurrar-nos para o encontro com o Pai, cujo desígnio está escondido em tudo o
que é visível; quer dizer, à luz do Evangelho’” (CASTELHANO, 2017, p.34).

24
Em um livro que comprei, na banca de uma editora católica, a Paulus, em um evento promovido pela
Arquidiocese de Mariana, em Barão de Cocais, li um trecho que dizia: “O Concílio Vaticano II não foi somente
um evento do passado, mas constitui, de fato, o hoje da Igreja Católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido
fundamental para a sua caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual” (PASSOS, SANCHEZ,
2015, p.9). Em campo, muito se ouviu histórias, comparações e julgamentos sobre o que era a Igreja Católica e a
relação do clero com seus fiéis antes e depois do Concílio Vaticano II. Para os fundadores de um ‘movimento’
de evangelização da Diocese de Caratinga, o Mobon, e para as lideranças de ‘movimentos’ religiosos e políticos
formados direta ou indiretamente pelo movimento, o evento é percebido como o ‘marco-zero’ de uma mudança
significativa do modo de “ser igreja”. Narra-se a partir do evento uma mudança na “estrutura” da Igreja. Uma
liderança de Manhumirim, por exemplo, diz que a Igreja antes do Concílio era “adormecida”, ao passo que, após
seu acontecimento, narra-se o ‘começo’ do processo de constituição de lideranças leigas e comunidades de base.
A mudança de direcionamento do Mobon, no final da década de 1960, se deu em decorrência de seu alinhamento
com a doutrina católica pós-conciliar. Como disse recentemente um de seus fundadores, o sr. Alípio Jacinto, “O
Mobon de hoje é o Mobon da mensagem ligado com o Vaticano II” (em entrevista, 08/02/2018).
25
Hoje fala-se “ver, discernir, agir”. O método também já se expressou como “ver, julgar, agir, revisar e
celebrar”, especialmente no âmbito da Pastoral da Juventude (PJ), conforme atesta o Documento de São
Domingos 119 (1992) e a memória de um leigo da Diocese de Caratinga, que relembrando sua trajetória de
comunidade de base, relatou que em sua época de PJ, “as CEBs trabalhava com o ver, julgar e agir e o celebrar”
(entrevista, 06/11/2018).
32

Desse modo, a “mudança ideológica” foi importante na construção da legitimidade


para a constituição de uma nova maneira de agir. Novidade, não no sentido de ruptura total
com o que passou, mas no sentido de oferecer um outro olhar, principalmente para as
maneiras populares, quiçá rústicas26, de praticar a religiosidade católica. Como aponta
Oliveira, F. R. C. (2012), “As organizações pré-existentes deram importantes contribuições à
emergência de CEBs, criando o que Teixeira (1988) chama de espaços eclesiais” (p.61). Os
sacerdotes, alinhados à nova ‘política’ eclesial, passaram a “dar ouvidos” e a fazer valer como
referência os contextos de vida dos “pobres” deste mundo, sobretudo, de operários e de
camponeses. Como escreveram Passos e Sanchez (2015):

“(...). A própria renovação conciliar se deparou imediatamente com as velhas


práticas religiosas do povo e com essas teve que dialogar. Pode-se dizer que esse foi
um dos grandes desafios dos tempos pós-conciliares. (...). A postura conciliar de
leitura dos ‘sinais dos tempos’, em cada época e lugar, permanece como método de
escuta, discernimento e diálogo com a fé do povo na busca dos meios mais
concretos de anunciar o evangelho da vida” (p.11-12).

Os católicos comuns – isto é, as pessoas que por se dizerem católicas,


automaticamente, fazem parte do universo católico – contaram com a “abertura” para falarem,
se expressarem e refletirem sobre suas condições concretas “à luz do Evangelho”. Como disse
um religioso brasileiro sobre os primeiros “cursos de base” fundamentados na “novidade das
reflexões” e do método dialógico trazidos pelo Vaticano II, o leigo “Podia falar à vontade,
[que eu] não cortava nunca. (...). Podia falar mal do padre, falar mal de quem eles quisessem,
e assim ia discutindo”. E assim, leigos e missionários refletiam sobre as condições que lhes
afetavam. E “discutindo”, os missionários iam exercitando a “ideia de ouvir” as ideias dos
“pequenos” e “os pequenos” aprenderam a aprender sobre as coisas de Deus, sobre si e sobre
o outro. Nesse processo, com certa eficácia, alguns católicos comuns passavam a se
reconhecer e a serem reconhecidos como “lideranças”.

***

Para entender a novidade eclesiológica e ritual posta em andamento pelo Concílio


Vaticano II dentro da Igreja Católica ‘universal’, especialmente na América Latina, levada a
cabo a partir da “opção pelos pobres” orientada pela Conferência Episcopal de Medelín
(1968), é preciso encontrar uma maneira teoricamente adequada de enquadrar os fatos. É
desta maneira, inspirado no trabalho sobre as Comunidades de Base de Garanhuns/PE da

26
O “catolicismo rústico” é uma expressão de Queiroz (1973, p.77 citado por THEIJE, 2002, p.122) e é também
utilizada por Brandão (2007). Essa classificação serve “para dar ênfase ao contexto rural” em que se inseria o
catolicismo da época.
33

antropóloga Marjo de Theije (2002), que adotarei os termos das “campanhas culturais”
católicas como parte do compósito analítico que contribuirá para a ‘leitura’ dos diversos
‘dados’ elaborados durante a pesquisa de campo e ‘coletados’ durante as pesquisas
documental e bibliográfica.
Como escreveram os estudiosos das CEBs da Zona da Mata e Leste de Minas,
Fabrício Roberto C. Oliveira, Arnaldo José Zangelmi e Reinaldo Azevedo Schiavo (2010):

“O Concílio Vaticano II (1962 - 65) foi o acontecimento que, a nível mundial,


desencadeou essa leva de renovações eclesiásticas, ‘abrindo as portas’ da Igreja de
Roma à modernidade e proporcionando novas formas de eclesialidade a partir da
realidade das Igrejas particulares. (...). Na América Latina, os ecos conciliares
soaram através da Conferência Episcopal de Medellín (1968), onde a Igreja latino-
americana teria consolidado sua ‘opção preferencial pelos pobres’ a partir de uma
teologia voltada para a realidade do continente configurada por uma expressiva
desigualdade social proporcionada pelo sistema capitalista que por aqui se
desenvolveu. Tendo como tema: Presença da Igreja na Atual Transformação da
América Latina, essa Conferência fomentou um novo modelo de catolicismo
preocupado com os problemas sócio-políticos e, ao mesmo tempo, deu legitimidade
a uma nova forma de organização” (p.35-36).

A pesquisa que descreverei, portanto, está focada exatamente no processo de mudança


religiosa no âmbito da prática da Igreja Católica e na (re)produção de saberes fazeres
provenientes do contato histórico de agentes pastorais e intelectuais católicos de uma região
específica de Minas Gerais, a Zona da Mata mineira, com a política cultural difundida pela
“campanha liberacionista” empreendida por certo setor da instituição romana desde o referido
Concílio. O que se busca é uma análise a partir da observação de “seres humanos que agem”,
da produção e (re)produção dos saberes fazeres aprendidos no desenrolar histórico da referida
campanha até os dias atuais.
Para procurar entender a relação entre mudanças ideológicas e a agência de “seres
humanos que agem”, é preciso de “uma abordagem ampla, que fique atenta aos aspectos
institucionais, políticos e locais e às interligações entre esses diferentes focos” (THEIJE,
2002, p.68), bem como é necessário entender o modo como os católicos comuns entendem os
significados dos termos e orientações fornecidas ‘de cima’, observando e analisando,
principalmente, como dão forma, na prática, àquilo que lhes é nominado ‘no campo das
ideias’ como o “caminho a seguir”.
Theije (2002), em sua obra, fornece um breve panorama sobre os estudos do
catolicismo “da libertação” no Brasil. Segundo ela, há três ordens de estudos para descrever
as transformações religiosas e a formação das Comunidades Eclesiais de Base no catolicismo
brasileiro. Segundo o enfoque utilizado e o conceito escolhido, pode-se dizer que os estudos
34

desenvolvidos se distribuem em três paradigmas. Primeiro, o paradigma das instituições, em


que se “relaciona as transformações religiosas ao desenvolvimento institucional da Igreja
nacional e internacional” (p.54). Nessa abordagem, foca-se na análise das ideias e do
comportamento das elites e “no poder que a instituição tem de transmitir uma nova
interpretação do religioso” (p.57), porém, ‘falha’ ao não explicar como e porque pessoas
comuns também se envolvem no projeto. Segundo, o paradigma da política, em que se “toma
a política (secular) brasileira como esfera de referência” (p.54). Os pesquisadores que partem
desse paradigma “tentaram avaliar o impacto dos esforços de conscientização nas CEBs sobre
a (consolidação da) democratização do Brasil” (p.60). Isto é, o foco da análise está na
avaliação do quanto as comunidades de base motivam as pessoas a se engajarem na política e
a transformarem a sociedade.
E por último, o paradigma da cultura, em que se “usa o religioso como ponto de
partida e, não raro, tem uma base local de referência” (THEIJE, 2002, p.54). Nesta
abordagem, “Os autores tomam o campo religioso como um domínio, frequentemente em
ligação com uma forte ênfase no dia-a-dia dos fiéis comuns” (Idem, p.63). Parte-se de uma
pesquisa microscópica que estuda os significados e as práticas das comunidades de base a
partir de trabalho de campo que observa o cotidiano das CEBs urbanas, geralmente, nas
periferias das grandes cidades. Relevante contribuição desse paradigma para as pesquisas
sobre as CEBs foi ter transformado a categoria geral e uniformizante de “os pobres” em
indivíduos e grupos específicos, com suas particularidades, “com sua própria condição de
vida e identidade” (Ibdem, p.65).
Theije (2002) elabora uma síntese e apresenta o paradigma da prática para evitar as
“ciladas observadas” nos três paradigmas, isto é, algumas semelhanças de análise comuns às
três abordagens como (i) “o fato de que os estudiosos muitas vezes pressupõem uma relação
quase direta entre mudanças da ideologia, por um lado, e a prática social e a consciência do
povo, por outro” (p.67); (ii) os estudiosos tratarem a mediação cultural como “uma atividade
das elites”, bem como (iii) enfocarem mais os aspectos políticos e institucionais do que as
propriedades religiosas do catolicismo “da libertação”. Desse modo, o paradigma da prática é
basilar para a leitura dos ‘dados’ da pesquisa que empreendi. Neste trabalho, busco “oferecer
uma perspectiva da construção estrutural e cultural da ideologia27 quanto da prática”
(THEIJE, 2002, p.68).

27
Ideologia aqui assume a definição de “uma ordem simbólica pública que está sujeita ao debate público e à
revisão intencional” (ORTNER, 1989b apud THEIJE, 2002, p.85).
35

Antes, porém, é mister explicitar aos leitores sobre o que estou me referindo quando
aciono o conceito de “campanha de política cultural” e seus termos correlatos. É também
necessário escrever brevemente sobre as principais campanhas empreendidas pela Igreja de
Roma, assim como fazer uma reflexão sobre as transformações religiosas impulsionadas pela
“campanha liberacionista” (‘nativamente’ denominado Aggiornamento) que, desde a década
de 1960, introduziu no catolicismo latino americano – logo, no catolicismo brasileiro – uma
nova maneira de interpretar e “fazer” o catolicismo.

1.1. Campanhas de políticas culturais e transformações

De acordo com as explicações dadas pelos meus interlocutores e a discussão


desenvolvida por Oliveira. F. R. C. (2012, p.67-68), em termos de governança, a Igreja
Católica se organiza hierarquicamente em uma estrutura descendente expressa pelo esquema
“Papa (Igreja Católica internacional) → Bispos → Padres → Leigos (Igreja Católica local28)”.
A Cúria Romana ‘conserva’ sua jurisdição mundo afora, por meio de uma interlocução entre
suas unidades de governo ordenadas conforme a figura 3:

Figura 1 | Organização de governança da Igreja Católica Apostólica Romana.


Fonte: Adaptação de Oliveira, F. R. C. (2012, p.94).

28
Local aqui se refere à Igreja Católica ‘nacional’. Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2012), “Se, por um lado, o
papa e a Cúria Romana são responsáveis pela Igreja Católica internacional, o bispo e seus sacerdotes tomam
conta da Igreja local, em que a diocese é unidade não só jurídica, como também geográfica. Assim, ‘o bispo
transfere ao padre parte de seu poder e de suas tarefas, das quais a distribuição dos sacramentos aos católicos
pode ser considerada a mais fundamental. A organização das funções da Igreja está, portanto, intimamente ligada
ao zoneamento do território da diocese’ (Theije, 2002:171)” (p.67).
36

A estrutural piramidal é utilizada para representar a hierarquia. A imagem utilizada


por Oliveira, F. R. C. remonta às anotações de uma liderança leiga – Dona Cora – realizada
durante um curso do Mobon de nome “Evangelho na Vida”, de 28/01/1975, em Iapu. A
estrutura representa a “forma hierárquica tradicional de organização” da Igreja Católica em
que “os leigos ocupam a base – estando sujeitos aos ditames de Papa, Bispos e Padres”
(idem). É através dessa estrutura que a gestão sobre os negócios sagrados, em síntese, o poder,
se distribui de modo complementar e desigual (BRANDÃO, 1999) entre religiosos e leigos.
Em última instância, nas comunidades podem conviver, complementando-se ou rivalizando-
se, diversos movimentos religiosos (THEIJE, 2002, 2004) e “estilos culturais de ‘ser
católico’” (TEIXEIRA, F., 2009a, p.19). É onde, notadamente, os leigos podem exercer sua
“autonomia relativa frente ao exercício crescente do controle religioso da Igreja Católica”
(BRANDÃO, 2007, p.56).
Como “religião do livro”, o sistema de pensamento da instituição, i. e., sua Teologia29
é formulado em forma de doutrina. A religiosidade cristã, pelo menos idealmente, ‘se faz’ por
meio de “uma circularidade permanente entre fé pensada (teologia), fé formulada (doutrina) e
fé vivenciada (religiosidade popular)” (PASSOS; SANCHEZ, 2015, p.12). É mister dizer que,
através da história, a Igreja de Roma se utiliza de diversas estratégias para manter o controle
sobre as definições públicas do que é verdade sobre a História Sagrada e o catolicismo. Para
isso, a organização se utiliza de todo um aparato burocrático eclesial que se faz por
constituições, documentos, decretos, bulas, resoluções, notas, cartas e leis canônicas.
As autoridades da Igreja (geralmente bispos, arcebispos, cardeais e o papa) agrupadas
em conselhos, reuniões e, sobretudo, nos Concílios30, também possuem poder de nomear e
renomear o que é sagrado, traçar normas doutrinais, prescrever orientações para a ação
eclesial e pastoral. Além dessas estratégias, um tanto quanto restritas àqueles que leem e
estudam essas normativas, a instituição utiliza-se dos mais diversos instrumentos de

29
A Teologia diz do modo como a Igreja Católica pensa, debate e difunde cientificamente a ideia de Deus, do
divino, do eterno. Como a instituição é formada por pessoas que possuem agência, que por sua vez, se juntam em
diferentes grupos com diferentes maneiras de pensar-agir, pode-se falar em teologias. Para citar algumas, há as
teologias “Católica Tradicional”, “do Laicato”, “do Avivamento Pentecostal”, “da Libertação”, “da
Prosperidade” entre outras. Essas diversas teologias convivem/rivalizam dentro da instituição. Como veremos, a
teologia parte de uma política cultural específica. A depender da ‘elite’ que se sobressai na nomeação das coisas
e na orientação da verdade da fé católica, evidencia-se uma ou outra teologia.
30
Baseando-se nos cânones 337 e 341 do Código de Direito Canónico, “um concílio ecuménico (ecuménico:
universal, ou seja, toda a Igreja Católica) é uma reunião de todos os Bispos da Igreja para reflectir sobre pontos
de doutrina e de disciplina que precisam ser esclarecidos, promulgar dogmas, corrigir erros pastorais,
condenar heresias e, em suma, dirimir sobre todas as questões de interesse para a Igreja universal. É convocado e
presidido pelo Papa ou por algum Bispo, isso porque não é necessário o Papa estar presente para a realização de
um concílio, mas para ele ser válido precisa de sua confirmação. São 21 os concílios ecuménicos, entendendo
‘ecuménico’, aqui, com o sentido de ‘universal’, com a participação de todos os bispos católicos do mundo”
(CONCÍLIO..., s.d.).
37

divulgação, em especial, os meios de comunicação – boletins, jornais, revistas, livros,


programas de rádio e televisão, e, em período mais recente, as diversas plataformas digitais
conectadas à rede mundial de computadores, como websites, blogs, webcanais e redes sociais
virtuais. Faz parte também desse universo a organização de eventos (encontros, cursos,
jornadas, seminários entre outros) para públicos variados de todas as faixas etárias, para a
comunicação da doutrina e a veiculação de diretrizes sobre os modos de “ser católico”.
Em síntese:

“(...). O catolicismo é uma religião que luta por hegemonia ideológica que abranja
todas as esferas da sociedade. Nesse contexto, a ideologia aparece sob a forma de
uma doutrina que é disseminada através do discurso e do ritual, de regras e
atividades simbólicas e organizacionais” (THEIJE. 2002, p.69).

Explicado tudo isso, é importante retornar ao que nos interessa. Na esteira de


transformações que ocorriam no seio da Igreja Católica brasileira desde o fim da II Guerra
Mundial até a década de 1960 (cf. OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p. 54-61)31, à luz das
orientações pós-conciliares adequadas à realidade socioeconômica e cultural dos países latino
americanos a partir dos debates da Conferência Geral do Episcopado Latino Americano de
Medellín e das subsequentes conferências – Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e
Aparecida (2007) –, “foram introduzidas uma interpretação e uma prática ritual totalmente
diferentes e novas, iniciadas por uma nova teologia disseminada por agentes da instituição”
(THEIJE, 2002, p.69).

“(...) Foram aprovadas inovações, como missas em línguas nacionais (substituindo o


latim), e dada ênfase aos leigos como o ‘povo de Deus’, proporcionando-lhes
espaços de atuação nos rituais e organizações católicas, anteriormente vistas como
exclusivas do clero. Isso implicava ‘em mudanças no universo religioso e em uma
articulação constante entre ser cristão e participar tanto da transformação da Igreja,
quanto da sociedade’ (Novaes, 1997: 119). O Concílio Vaticano II tinha como
objetivo ‘melhorar e fortalecer a sua relação com os leigos, permitindo-lhes
inclusive um determinado grau de autonomia e delegação de funções’ (Almeida,
2000: 86). A noção de ‘povo de Deus’ era um símbolo desse desejo de aproximação
dos leigos, inculcando-lhes novas responsabilidades” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012,
p.56).

Tais novidades fazem parte de “uma campanha intencional de mudança da forma e do


conteúdo do catolicismo brasileiro” (THEIJE, 2002, p.69). Theije (2002, 2004) usa para
designar esse processo o termo “campanha de política cultural”. Referindo-se ao catolicismo

31
Como escreveu o pesquisador, “Antes do Concílio Vaticano II, muitas das inovações legitimadas por ele já
estavam em processo no Brasil. Contudo, as decisões vindas de Roma eram de suma importância, pois eram
legitimadas pela principal hierarquia da Igreja Católica” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.55).
38

brasileiro, ela define essas campanhas como “campanhas para transformar o catolicismo
brasileiro e até mesmo a sociedade e a cultura brasileiras” (2004, p.39) empreendidas pelo
Clero e pelos intelectuais católicos. Segundo a autora, o termo foi cunhado a partir das
reflexões desenvolvidas por Ortner em sua pesquisa entre os Sherpas sobre a fundação dos
mosteiros budistas celibatários do Nepal, no início do século XX32. Como elucida Theije,
Ortner usa o termo “política cultural” para designar

“(...) as políticas da ideologia pública ou como ela define, ‘as lutas sobre as
representações simbólicas oficiais da realidade que prevalecerão numa dada ordem
social num dado tempo’. Na política cultural está em jogo o controle do que se
define como verdade e como valor (Ortner 1989a, 1989b)” (THEIJE, 2004, p.38).

Nesse empreendimento sistematizado por (re)definir as “representações simbólicas


oficiais da realidade” dentro do universo religioso, podemos distinguir dois tipos de atores,
“aqueles que iniciam uma campanha e aqueles que são os ‘alvos’ do processo de
transformação cultural” (THEIJE, 2002, p.70). Os primeiros geralmente são os “mediadores”
– teólogos, membros do clero e, no caso do catolicismo “da libertação”, alguns ativistas leigos
– que definem as ‘regras do jogo’. Os segundos são os que – “em razão tanto dos vínculos e
oportunidades estruturais quanto da subjetividade do ator” (THEIJE, 2002, p.70) – atribuem
distintos significados e dão diferentes formas para o que foi definido como regra.
Como escreveu a antropóloga, “(...) o objetivo último de toda campanha de política
cultural é mudar as idéias, os sentimentos e as práticas do povo” (THEIJE, 2002, p.72),
todavia, não é possível por parte dos grupos limitados de nominadores controlarem a recepção
e os efeitos da mensagem veiculada.

“Assim, o contexto de receptividade (Ortner, 1989b p.208) é tão importante para o


resultado do processo quanto o próprio conteúdo da campanha. Ademais, uma
campanha intencional de um grupo pode revelar-se significativa em diferentes
sentidos para outros grupos. Os significados nunca são fixos, pois são contextuais e
abertos à reinterpretação. Assim, uma política cultural intencional pode ter
conseqüências indesejadas” (THEIJE, 2002, p.70).

Uma questão fundamental a se considerar nessa relação entre estrutura e agência até
aqui descrita é o processo de “mediação cultural”. Afinal, “a cultura sempre implica
mediação” (THEIJE, 2002, p.75). Como dito, os significados ideológicos postos por uma
campanha não são fixos. Eles são sempre interpretados, ajustados situacionalmente, e, desse
modo, apropriados ou rejeitados.

32
Cf. Ortner (1989a, 1989b).
39

“(...) uso a palavra mediação para chamar atenção para a interligação entre estrutura
e agência. Tal como a vejo, a mediação refere-se ao processo de interpretação e
apropriação para uso próprio e a transmissão a outros. Também inclui a rejeição e
transformação, bem como o empenho em se mudar as condições estruturais da
cultura. Assim, a mediação cultural inclui a interpretação e a reinterpretação do
discurso, do símbolo, do ritual e da ação por partes dos atores, bem como os fatores
culturais, sociais e estruturais que situam essa interpretação e reinterpretação (cf.
Ortner, 1989a, p.17). Este significado da mediação amplia o conceito para incluir a
prática” (THEIJE, 2002, p.73-74).

A mediação cultural “não se restringe aos basistas ou ao clero. Os leigos também estão
envolvidos em expressar e retrabalhar as imagens e os valores religiosos” (THEIJE, 2002,
p.74), afinal, eles também ‘fazem o catolicismo acontecer’. “Eles também estão dando
significados e cumprindo tarefas que julgam importantes e relevantes para suas vidas pessoais
e para as vidas dos outros membros de sua comunidade, e, neste caso, para sua religião”
(idem, p.75).
Como Theije (2002) procura demonstrar, por meio de um esquema descritivo, a
cultura é formada pela relação dinâmica entre a estrutura e a agência, ou, nos termos de
Ortner (1989b), entre a ideologia e a consciência33. Assim, é o processo de mediação cultural
que liga a ideologia (ordem pública) à consciência (subjetividade) e cria um ambiente
propício às transformações. Todo significado, prática, valor ou ritual é mediado culturalmente
pela subjetividade dos atores. Assim, “(...) a relação entre as mudanças ideológicas dentro da
igreja institucional nunca pode ser traduzida diretamente para a prática religiosa e criadora de
significado dos leigos nas paróquias brasileiras” (THEIJE, 2002, p.72). Há sempre uma
‘distorção’ no processo de apropriação (ou não) da ideologia religiosa pelos leigos e/ou
grupos de leigos. Em outras palavras, os leigos fazem um “ajustamento situacional” da
ideologia e seus pressupostos.

“Na prática cotidiana os indivíduos são forçados continuamente a ‘ajustarem’, ou a


adaptarem as ‘teorias’, ‘ideologias’ e discursos a realidade que vivem (Moore 1975).
O conceito de ‘ajustamento situacional’ se refere a essa interpretação
contextualizada de discursos e mensagens. Nesse processo, a interpretação de uma
mensagem de determinada campanha, bem como a forma pela qual essa mensagem é
colocada em prática, podem ir numa direção distinta da proposta originária. As
ideologias, rituais e conceitos básicos podem, portanto, mudar e ganhar várias
interpretações nesse processo de ‘ajustamento situacional’” (THEIJE, 2002, p.40-
41).

33
O conceito de consciência aqui empregado corrobora com a definição desenvolvida por Ortner (1989b), isto é,
“refere-se a ‘uma ordem mais tácita de pressuposições e de estruturas de sentimento que os atores trazem à sua
vida social’ (Ortner, 1989b p.200), ou seja, à subjetividade do ator” (THEIJE, 2002, p.75).
40

Não é por acaso que assumi a perspectiva das “campanhas de políticas culturais” para
a leitura dos dados que compilei. A meu ver, é seu aspecto fundamental – a mediação cultural
da ideologia pelos atores – um dos fatores que explica as continuidades e inovações de
sentidos e ações dentro do contínuo processo socializador promovido pelo Mobon, desde
meados de 1960. É exatamente a mediação cultural dos valores e saberes fazeres aprendidos
que possibilita, para usar o termo de outro antropólogo, a constante “invenção da cultura”
(WAGNER, 2010) dos ‘movimentos’ da Zona da Mata mineira.

“A parte essencial de qualquer campanha de mudança cultural é, portanto, a


mediação de formas culturais por parte dos atores. É exatamente esse processo de
mediação de (novos) elementos culturais que cria e recria a cultura. A questão passa,
então, a ser a de como o povo reage a novas idéias religiosas” (THEIJE, 2002, p.71).

Para Theije (2004), tiveram impactos significativos na organização do catolicismo


nacional três tipos de campanhas conduzidas pelo Clero: (i) a Campanha Ultramontana (ou
Romanização), baseada em um catolicismo tradicional e dogmático; (ii) a Campanha
Liberacionista (Aggiornamento), baseada na Teologia da Libertação, e; (iii) a Campanha
Carismática, baseada em uma Teologia do Avivamento Pentecostal34 e da cura espiritual.
A primeira se fez sentir em terras brasileiras de meados do século XIX até metade dos
anos 1960 do século seguinte. A segunda de meados da década de 1960 até 1980/1990. E a
terceira teve seu início no final dos anos de 196035 e se encontra em ascensão desde a década
de 1990 até os dias atuais, principalmente a partir do desenvolvimento do “catolicismo
midiático” (CARRANZA, 2004; TEIXEIRA, F., 2009a, p.27-28). É útil dizer que nenhuma
dessas campanhas suprimiu uma a outra. Seus significados e rituais são a ‘matéria-prima’ com
que contam religiosos e leigos para ‘fazerem’ o catolicismo. Em maior ou menor medida, os
termos da política cultural de cada campanha rivalizam/convivem e continuam disponíveis
para a agência dos atores. Desde que foram implementadas até os dias hodiernos, os efeitos de
cada uma delas, de uma maneira ou de outra, se fazem presentes no catolicismo e na
sociedade de modo geral.

34
A título de informação, tal como as comunidades de base, as comunidades de vida da Renovação Carismática
Católica (RCC) se fundamentam nas experiências de comunidade dos primeiros cristãos, diferenciando-se pelo
fato de darem ênfase à experiência com os “Dons do Espírito Santo”, que na perspectiva carismática, devem ser
recuperadas na prática do catolicismo (MARIZ; LOPES, 2009, p.83). Para mais detalhes sobre a lógica de
operação da teologia do avivamento e da cura, cf. Oliveira, E. M. (2004).
35
O Movimento da Renovação Carismática Católica (MRCC), ou Pentecostalismo Católico, teve início em 1967
em Pittsburg, Pensylvania, Estados Unidos. O primeiro contato brasileiro com o MRCC se deu em 1968, através
do padre Eduardo Dougherty. Assim, em 1969 inicia-se em Campinas/SP, através do padre Dougherty e padre
Haroldo Joseph Rahm, o movimento carismático no Brasil.
41

A seguir, me limitarei a explanar sobre as duas primeiras, a Campanha Ultramontana e


o Aggiornamento, uma vez que elas, analiticamente falando, são as campanhas essenciais para
explicar a sociogênese do Movimento da Boa Nova36.

1.2. Campanhas de Políticas Culturais da Igreja Católica

1.2.1. Campanha Ultramontana

A Campanha Ultramontana é uma campanha de política cultural implementada pela


Igreja Católica em reação ao avanço da ideologia liberal e, consequentemente, em resposta à
diminuição de sua hegemonia na sociedade. O termo ultramontano surge deste contexto.
Como explica Azzi (1992), em um ambiente em que até mesmo membros do clero aderiam à
ideologia liberal, um grupo dentro da Igreja Católica se posicionou e ganhou o título de
ultramontano. Nas palavras do autor:

“(...). Como a partir de meados do século XVIII, parte expressiva do clero francês
aderira à ideologia liberal, veiculada pelos enciclopedistas, o grupo fiel à Santa Sé
passou a ser designado como ultramontano, ou seja, aquele que se alinhava ao lado
do Pontífice Romano, o qual residia, a partir da ótica francesa, além dos Alpes, ou
seja, ultramontes” (apud OLIVEIRA, L. C.; MARTINS, 2011, p.260).

A Campanha Ultramontana:

“(...) faz parte de um processo muito mais amplo, iniciado, segundo Oliveira (1985),
no pontificado de Pio IX (1846-1878) e pretendia envolver toda a comunidade
católica mundial. Diante do avanço do liberalismo e das relações de produção
capitalista no mundo, a Igreja viu seu poder temporal diminuído e, como reação, o
Papa chamou a si o efetivo controle sobre o poder espiritual. A proposta
romanizadora visava a reafirmar a hierarquia eclesiástica e assim introjetar nas mais
diversas dioceses e paróquias os princípios definidos diretamente por Sua
Santidade” (FERREIRA; BOTELHO, 2011, p.346).

Oliveira, L. C. e Martins (2011) observam que “o doutrinário ultramontano procurou


colocar em prática os principais ditames do Concílio de Trento37, ocorrido entre 1545 e 1563,
especialmente os relacionados à moral do sacerdote e a seu ofício religioso” (p.261). Como
demonstram os autores, a política cultural ultramontana se fundamentava no combate aos

36
A Campanha Carismática e o seu movimento correligionário, o Movimento de Renovação Carismática
Católica (MRCC) – sem desprezar a importância da mesma – atuará, quando convier, apenas como elemento
contrastivo: o Mobon, segundo nos disseram os leigos e os religiosos, e como pôde ser observado, faz-se ‘em
contraste’ com o MRCC.
37
O Concílio de Trento (1545-1563) foi convocado pelo papa Paulo III em reação à Reforma Protestante,
iniciada simbolicamente com a publicação na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, Alemanha, em outubro
de 1517, das 95 teses escritas por Martinho Lutero.
42

ideais liberais e às ideias modernizantes; no respeito à hierarquia católica, na moralização e


formação intelectual do clero e na “luta contra aquilo que pareceria ameaçá-los: o
Liberalismo, a Maçonaria e o Protestantismo” (OLIVEIRA, L. C., MARTINS, 2011, p.260)38,
bem como todo tipo de catolicismo “desgarrado” do dogma católico, por isso, definido como
“não autêntico”.
A Campanha Ultramontana se tratava, portanto, de uma campanha “tridentina”,
centralizadora e hierárquica, que se voltava “para dentro da sacristia” em um movimento de
‘distanciamento’ do mundo. São marcos importantes na trajetória de implementação da
ideologia ultramontana nos quadros da Igreja Católica a ascensão de Gregório XVI ao
pontificado (1831-1846), e, posteriormente, o papado de Pio IX (1846-1878), momento em
que “as intenções ultramontanas se efetivaram, principalmente a partir da publicação das
encíclicas Quanta cura e Syllabus, além da realização do Concílio Vaticano I em 1869/1870”
(OLIVEIRA, L. C., MARTINS, 2011, p.263).
No Brasil, somente na segunda metade do século XIX é que se começou a sofrer a
influência da igreja europeia de formação tridentina.

“Os ultramontanos começam a agir no Brasil principalmente a partir das orientações


de Bispos como D. Antônio Ferreira Viçoso. No início do século XIX, Padre Viçoso
aportou no Rio de Janeiro a convite de D. João VI. Sua maior influência em terras
brasileiras [todavia] começou na década de 1844, quando se torna Bispo da Diocese
de Mariana. A partir de então, D. Viçoso empreendeu uma reforma nos quadros da
Igreja, especialmente no campo intelectual. Além disso, investiu na criação de
escolas e instituições de caridade, dada sua ligação com a Congregação da Missão
de tendência Vicentina, também conhecida como lazarista” (OLIVEIRA, L. C.,
MARTINS, 2011, p.263).

“[No país] A romanização foi fortalecida pela vinda de muitos padres e religiosos
estrangeiros que reforçaram o sistema das paróquias, assumiriam a formação do
clero nos seminários e passaram a orientar os santuários de romaria e os meios de
comunicação. A ‘Pastoral Coletiva’ (1910) deu grande incentivo às irmandades e
associações novas e mais clericais para os leigos (pia união das filhas de Maria, pia
união das filhas de Maria imaculada, confraria da Imaculada Conceição de Nossa
Senhora, congregação mariana, pia união de Santo Antônio, sociedade São Vicente
de Paulo (SSVP), associação das mães cristãs e das damas de caridade, união dos
moços católicos, guarda de honra do sagrado coração de Jesus, liga católica Jesus
Maria e José, apostolado da oração, cruzada eucarística, pia união dos cooperados
salesianos, liga da boa imprensa) e devoções como a do Sagrado Coração de Jesus.
No país todo, o clero entrou em choque com os leigos das irmandades tradicionais
(...). ♦ As prioridades eram o catecismo romano, as missões populares e os retiros
espirituais (...). Fazia-se apologética contra protestantes, espíritas e maçons,
considerados inimigos da igreja. O poder eclesiástico centralizou-se em Roma, com
o papa e a cúria (...). Muitas manifestações da religiosidade popular passaram a ser
censuradas” (ROMANIZAÇÃO, 2013).

38
Com o passar do tempo, soma-se aos três elementos mencionados a luta contra o Comunismo.
43

Conhecida também como “ultramontanismo” no país, pode-se dizer que a campanha


ultramontana, desde sua implantação até “o final dos anos 1950” ( THEIJE, 2002, p.140), foi
preponderante na dimensão pública do catolicismo e da sociedade e orientou a prática
religiosa de leigos e leigas, objetivando lhes mudar o pensamento, os comportamentos e os
costumes, forjados por um “catolicismo rústico” praticado até então no Brasil.
Para se citar um exemplo, na Diocese de Caratinga, Minas Gerais39, em Bom Jesus do
Pirapetinga (hoje, Manhumirim)40 – onde anos mais tarde se gestou o Mobon – o Pe. Salvador
Cetrângolo lança o Jubileu do Bom Jesus, em setembro de 1917 (BOTELHO, 2011a, p.197),
para centralizar a gestão da devoção popular ao Bom Jesus no curato. Assim, numa ‘primeira
onda’ dessa campanha, o clero se reorganizou, colocando-se mais próximo da população;
lutou contra as “superstições”; e com a implantação de “grupos leigos de origem européia em
todo o Brasil”, ensinou à população “novas devoções” (THEIJE, 2002, p.128). Como bem
escreveu Ferreira e Botelho (2011), nessa ‘primeira onda’ da campanha:

“Chamando a si a responsabilidade pela difusão da fé católica, o clero passou a


combater certas práticas comuns à religiosidade popular, tidas como supersticiosas,
e a primar pelo ensino de uma pretensa doutrina autêntica. Nesse sentido, o discurso
dos agentes romanizadores enfatizava a importância dos ritos ‘legitimamente’
católicos, sobretudo os sacramentos, como meios indispensáveis para se alcançar a
salvação eterna. (...). Assim, aquelas práticas religiosas remanescentes do
catolicismo rústico português, desprovidas dos rigores dogmáticos e marcadas pelo
fervor familial para com os santos, e o culto devocional e festivo promovido pelas
irmandades – todos conduzidos com parca participação de agentes clericais –
passaram a ser condenados e seus seguidores encarados como ‘ovelhas desgarradas’
que precisavam ser reconduzidas ao rebanho cristão (GAETA, 1997). (...) os padres
passaram a se esforçar para difundir dentro de suas paróquias um culto mais austero
de santos e santas vinculadas ao ideal romanizador. Uma estratégia bastante comum
nesse processo foi recuar, gradual e discretamente, para os cantos das igrejas as
imagens tradicionalmente adoradas pelos confrades, deslocando-as depois para as
sacristias e logo em seguida encerrando-as em cômodos escuros e empoeirados,
juntamente com outros apetrechos paroquiais de menor valor. Pari passu, imagens
do Sagrado Coração de Jesus, Imaculada Conceição, Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, São José, entre outras sublimadas pelos agentes romanizadores, foram
ganhando espaço no altar-mor e nos locais de maior destaque dentro do templo
(p.346).

Numa ‘segunda onda’ (1930-1960), a campanha assumiu o escopo de um “movimento


de ‘Recristianização’, pactuado pelo ideal da ‘Neocristandade’” (SOARES, 2015, p.158)41,

39
Sobre os impactos da Campanha Ultramontana em Minas Gerais, cf. Oliveira, L. C. e Martins (2001). Cf.
também Ferreira e Botelho (2011).
40
O município foi criado em 7 de setembro de 1923, através da Lei Estadual nº843/1923, e sua instalação
ocorreu em 16 de março de 1924 (BOTELHO, 2011a, p.128).
41
O Estado brasileiro se separou da Igreja Católica desde a primeira república, por meio da promulgação da
nova Constituição em 1891. Todavia, como explicita Soares (2015), na década de 30 do século XX, a laicidade
do Estado brasileiro é fortemente “contaminada” pelos ideais da Igreja Católica, uma vez que a “ideia de unidade
nacional [foi] vinculada à igreja católica” por meio de “processos colaborativos entre a igreja católica e o Estado
44

em que a Igreja Católica estreitou laços com o Estado brasileiro, chegando ao ápice de,
durante o regime populista de Getúlio Vargas (1930-1945), o Estado e a instituição se
tornarem aliados (THEIJE, 2002, p.134) na tarefa de construir uma unidade nacional42.
O processo de romanização foi forte o bastante para mudar os termos do catolicismo
popular, mas, por uma série de problemas práticos enfrentados no âmbito do catolicismo
vivido pelos fiéis no dia-a-dia, “não [foi] o suficiente para implantar a forma romana na
grande massa dos católicos” (OLIVEIRA, P.A.R., 1988 apud TEIXEIRA, F., 2009a, p.21). A
referida campanha perdeu força no final da década de 1950 e início da década de 1960, e
abriu espaço para o surgimento de outra campanha, com uma ideologia contrastante. O
processo de mudança do religioso permaneceria nos anos seguintes, todavia, sob nova
orientação ideológica. Quer dizer, uma orientação vinculada à Teologia da Libertação.

1.2.2. Aggiornamento

Aggiornamento, como dito em outra oportunidade, é um termo nativo. O termo é mais


comum de se encontrar da literatura sobre o Vaticano II, a Teologia da Libertação e o
catolicismo “da libertação”. Todavia, Theije (2002) se utiliza do termo Campanha
Liberacionista para falar desse processo. Desse modo, neste item, bem como no decorrer do
texto utilizarei essa nomenclatura.
Como termo nativo, Aggiornamento é muito encontrado na literatura sobre o
catolicismo “da libertação”. O Aggiornamento pode ser considerado um processo de
modernização católica, cujo ‘ápice’ se revelou de maneira mais contundente no Concílio
Vaticano II. Desse modo, como aponta Paiva (1985):

“Se a Igreja no passado não logrou impedir a libertação do pensamento político e


social da teologia, o seu ‘aggiornamento’ permitirá o desenvolvimento de correntes
teológicas que buscarão integrar o moderno pensamento político e social,
incorporando a discussão dos assuntos públicos o componente religioso e avançando
na luta por impedir que a religião se torne definitivamente assunto privado” (p.14).

pactuados pelo ideal de ‘Neocristandade’ e expressos em arranjos políticos institucionais; dentre outros. Esses
processos e dinâmicas, ao nosso ver, que constituem particularidades da laicidade brasileira, realmente, não
excluíram o elemento religioso católico da ‘esfera pública’” (p.144-145). Durante esse período, a Igreja Católica
foi uma das grandes responsáveis por criar e manter casas de caridade, asilos, hospitais, escolas e colégios,
orfanatos entre outros, intervindo, assim, nas áreas, a priori, de responsabilidade do Estado, como a educação, a
saúde e o bem-estar social. Particularmente, o artigo de Soares (2015) discute as intervenções religiosas no
campo da política tomando como objeto de pesquisa as ações de Pe. Júlio Maria de Lombaerde, na Paróquia de
Manhumirim e região.
42
A ideia de uma comunidade imaginada nacional no Brasil se construiu, entre muitas coisas, através da ideia da
profissão de fé única, “própria” dos brasileiros: a fé católica (SOARES, 2015).
45

A Campanha Liberacionista é uma campanha empreendida pela Igreja Católica a partir


da década de 1960, cujo marco foi a convocação do Concílio Vaticano II pelo Papa João
XXIII. Como apontam alguns teóricos (THEIJE, 2002; TEIXEIRA, F., 2009a, p.27;
LESBAUPIN, 2009, p.57), esta campanha teve maior força na Igreja Católica mundial até a
década de 1980/1990. Período a partir do qual “os novos ventos da conjuntura eclesiástica
internacional” (TEIXEIRA, F., 2009a, p.27) começaram a soprar, levando a um “esfriamento”
da Igreja designada por “Povo de Deus” 43.
A autora usa o termo catolicismo liberacionista para designar o catolicismo que possui
“suas fontes ideológicas na teologia da libertação” (THEIJE, 2002, p.22)44. Isto é, designa um
tipo de catolicismo dos reafiliados (TEIXEIRA, F., 2009a, p.26)45 que se fundamenta em três
ideias centrais: o pressuposto da não separação entre teologia e contextos socioeconômico e
político; a alegação de que Deus faz “uma opção pelos pobres e oprimidos”, e, por último;
que a salvação se encontra e se faz nessa vida, aqui e agora. “Assim, nessa teologia, o
significado simbólico da pobreza é modificado e é formulada uma forte propensão à ação
política” (LEVINE, 1986, p.11 apud THEIJE, 2002, p.23).
Nesse tipo de catolicismo, libertar e salvar são sinônimos. Afinal, parte-se
ideologicamente da noção de que a busca pelo transcendente deve se orientar não somente
pela salvação dos pecados e falhas pessoais, mas também na busca da “salvação sociopolítica
e econômica dos pobres” (TEOLOGIA..., 2013). Ou como expressou uma liderança “dos
antigos” de Manhumirim, trata-se de uma profissão de fé em que se deve rezar com os olhos

43
Após a entrada do Papa João Paulo II, começa-se um período de “restauracionismo identitário” na Igreja
Católica Mundial. Esse período que compreende o papado de João Paulo II até o governo do Papa Bento XVI, é
definido pelos religiosos “da libertação” de “inverno eclesiástico”, momento em que a instituição se volta “para
dentro da sacristia” e “sai do mundo”. Para acesso a uma análise sobre a conjuntura internacional católica nos
pontificados de João Paulo II e Bento XVI, cf. Teixeira, F. (2009b). Vale a pena assistir também o programa
“Religare - Conhecimento e Religião” (Parte 1, bloco 1), com Manoel Godoy. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=0Gkh0T9f_G0>. Acesso em: 09 maio 2018.
44
Cujo teórico mais conhecido entre os leigos brasileiros é o teólogo Leonardo Boff que publicou em 1981
“Igreja: Carisma e Poder”. “Livro polêmico”, como ouvi um leigo dizer certa vez, essa obra – que em síntese diz
que a “marginalização é conseqüência do tipo de organização elitista, de acumulação privada, enfim, da própria
estrutura econômico-social do sistema capitalista” – empresta seus termos às conversas entre alguns leigos e
leigas com que tive contato.
45
Faustino Teixeira (2009a) escreve que “o fiel católico insere-se num quadro diversificado de modos de ser e
participar, configurando uma forma plural de exercer sua vinculação” (p.19). O autor trabalha com a ideia de
“tipos de catolicismo” e aponta quatro tipos de catolicismo: o catolicismo “santorial”, o catolicismo “erudito ou
oficial”, o catolicismo “midiático” e, por fim, o catolicismo dos “reafiliados” (idem, p.20). O catolicismo dos
reafiliados é caracterizado pela inserção num “regime forte” de intensidade religiosa. Neste tipo de catolicismo,
inserem-se tanto os católicos “de CEBs” quanto os “da RCC”, sendo que no catolicismo das comunidades de
base, a reinserção na tradição católica se constrói a partir de “uma nova relação com o sagrado, que implica
agora a centralidade da conscientização, um novo compromisso ético e político e a ênfase na participação em
lutas populares” (ibdem, p.26).
46

abertos46 e com os pés no chão. Como sintetiza um de seus pensadores, o catolicismo “da
libertação” se dissemina “na base” da Igreja Católica, nas comunidades por meios dos
círculos bíblicos e/ou grupos de reflexão47, espaços ideais para a reflexão sobre a fé e a vida.
O catolicismo “da libertação”, ‘em teoria’,

“(...) geralmente, começa com círculos bíblicos. Depois se passa à criação da


pequena comunidade eclesial de base. Sua tarefa, inicialmente, é aprofundar a fé
internamente, preparar a liturgia, os sacramentos e a vida de piedade. Num estágio
um pouco mais avançado se passa a tarefas de mútua ajuda nos problemas da vida
dos membros. Na medida em que estes se organizam e aprofundam a reflexão se dão
conta de que seus problemas possuem um caráter estrutural. (...). Aí emerge a
questão política, e o tema da libertação ganha conteúdos concretos e históricos. (...).
É aqui que se faz importante a verificação de como o povo faz a passagem do
religioso ao político. Geralmente para ele as duas realidades vêm unidas. Começa
pelo religioso. Aí ele se dá conta das injustiças que são pecado que Deus não quer.
Depois passa para a compreensão das estruturas reais que produzem as injustiças.
Importa mudá-las para que não produzam mais o pecado social. O compromisso
político nasce da própria reflexão da fé que exige mudança. Mesmo quando se
fazem análises sobre os mecanismos da opressão nunca está ausente a fé, como
horizonte de compreensão, como mística poderosa para a ação e como ponto de
chegada de todo agir humano. A comunidade não se transforma numa célula
política. Ela é aquilo que é: lugar da reflexão da fé e de sua celebração. Mas ao
mesmo tempo é o lugar onde se ajuízam eticamente, à luz de Deus, as situações
humanas. A comunidade cristã e a comunidade política não são dois espaços
fechados, mas abertos, por onde circula o cristão: na comunidade cristã, este celebra
e alimenta sua fé; aí ele ouve a palavra de Deus, que o envia para o compromisso
para com seus irmãos; na comunidade política age e atua ao lado de outros,
realizando concretamente a fé e a salvação; aqui ele escuta a voz de Deus que o
chama a expressar-se na comunidade cristã. Tanto um espaço quanto o outro vêm
recobertos pela realidade do Reino de Deus, que se realiza, embora sob signos
diferentes, num e noutro espaço (BOFF, 1994, p.28-30).

Quem promoveu a campanha liberacionista foram os “basistas” (THEIJE, 2002), ou,


em outro termos, pessoas “de base”. Como escreveu Theije (2002), “os promotores dessa
concepção eram muitos, e incluíam sociólogos, teólogos, membros do clero e ativistas leigos,
que defendiam diferentes interpretações e concepções da libertação como a concepção dos
basistas” (p.70). Esses basistas atores convergiram ação religiosa e engajamento político, e
assumiram uma posição política clara dentro da Igreja Católica. Esse grupo ‘seleto’
desempenhou o papel de liderança e seus atores eram os intelectuais que disseminaram a
crença “na autonomia para a resolução de problemas” (THEIJE, 2002, p.26). Entre os leigos,
os “de base” são pessoas ativas que “constituem um estrato entre o clero e os membros
comuns” (THEIJE, 2002, p.244). Dessa maneira,

46
Gravação, 05/01/2018.
47
Como são nomeadas no contexto da pesquisa que empreendi em campo as reuniões semanais nas
comunidades, de casa em casa, para a leitura e interpretação da Bíblia, a partir de roteiros organizados por
grupos de missionários e/ou lideranças.
47

“(...) provavelmente são mais conscientes das escolhas que fazem e refletem sobre as
motivações e explicações dos diferentes elementos de sua religião. Tomaram uma
decisão deliberada num contexto em que ‘todo o mundo’ é católico. Em outras
palavras, é provável que esses atores ‘teologizem’ (Harrel, 1986, p.101-2) sobre suas
convicções e ideais religiosos e sobre suas práticas coletivas e individuais relativas
ao religioso. Eles são ‘entendidos’ (Fernadez, 1982 p.79)” (THEIJE, 2002, p.29).

Como dito, foi o Concílio Vaticano II que possibilitou à Igreja Católica, em nível
mundial, renovar-se. Processo que ficou conhecido como Aggiornamento. Foi o momento em
que a Igreja Católica da Europa se abriu para a realização de uma evangelização mais atenta
às especificidades das culturas locais, partindo delas para fomentar o envolvimento mais
efetivo daqueles que compõem a base da pirâmide eclesial48, ou seja, leigos e leigas.
Esse evento criou um novo cenário para a prática do catolicismo, oferecendo àqueles
que se dispuseram e se envolveram na difusão/(re)produção da Campanha Liberacionista49
novos valores, símbolos e práticas rituais para serem digeridos culturalmente. Ofereceu-se
também às igrejas locais um novo método pastoral, i.e., o método “Ver, julgar, agir”. Assim,
há uma mudança de pressuposto e de método para a evangelização. Floresceram os caminhos
do ecumenismo, do diálogo entre as religiões e os não-crentes, revelando um “aggiornamento
da vida e das estruturas pastorais da Igreja, de seu serviço ao mundo e de sua reflexão
teológica” (BEOZZO, 1993, p.7 apud OLIVEIRA, F.R.C.; ZANGELMI; SCHIAVO, 2010,
p.35).
Como já mencionado, o método “Ver, julgar, agir” é uma marca desta campanha. O
método foi gestado pelo religioso Joseph Léon Cardjin no seio do mundo operário belga ainda
na década de 30. Difundiu-se após o congresso da Juventude Operária Católica (JOC), de
1935, e foi ganhando escopo até ser incorporado pelo Concílio Ecumênico Vaticano II50.
Trata-se de um método baseado nas noções jocistas de “revisão de vida”, “trabalho em
equipe”, “descoberta do evangelho” e “inquérito-campanha” (CASTELHANO, 2017, p.14).
Alicerça-se em três verdades. Primeiro, a verdade da fé, em que a “obra salvífica” de Cristo (a

48
Essa figura era representativa do modelo distributivo de poder dentro da Igreja Católica até aquele momento.
49
Oliveira, F.R.C., Zangelmi e Schiavo (2010) analisam que mesmo com todo o esforço por difundir a ideologia
liberacionista, a adesão à campanha não se deu de uma maneira ‘massiva’. Como disseram, “apesar do enfático
trabalho de ‘conscientização’ promovido por dioceses e pastorais católicas alinhadas ao discurso “da libertação”,
a maioria da população é pouco ativa e desinteressada em movimentos sociais ou em política partidária. Assim,
consideramos que o ajustamento dos atores sociais às suas experiências de vida e contextos locais faz com que
haja um descompasso entre o que desejavam os agentes pastorais e intelectuais católicos engajados com as idéias
“da libertação” e a forma com que os fiéis participantes das CEBs compreendem e respondem às mensagens da
‘campanha cultural’ católica na prática cotidiana” (p.33).
50
Como documenta Castelhano (2017), Cardjin trabalha e colabora com João XXIII, na redação da encíclica
Mater et Magistra. O religioso “participa, já octogenário, no Concílio Ecuménico Vaticano II, inicialmente como
perito. No entanto, a 22 de Fevereiro de 1965, é nomeado cardeal pelo papa Paulo VI (...). A partir de então,
participa na fase final do concílio como padre conciliar, ajudando na reflexão sobre o lugar dos leigos no seio da
Igreja e do Mundo” (CASTELHANO, 2017, p.16).
48

Boa Nova do Evangelho) deve ser tomada como base para a leitura do mundo. Segundo, a
verdade da experiência, que se fundamenta no conhecimento da realidade concreta dos
oprimidos, juntando “fé e vida”. E, terceiro, a verdade da prática pastoral, em que a solução
para os problemas apontados durante as reflexões das duas verdades anteriores deve ser dada
pelos próprios oprimidos.
Essa maneira de refletir a palavra de Deus parte de questões sobre fatos bíblicos e
fatos históricos (sempre contextuais) em busca da melhor intervenção prática para a resolução
de problemas socioeconômicos (CASTELHANO, 2017). Em linhas gerais, o método se
baseia em uma pedagogia experiencial, participativa e transformadora (BEOZZO, 2017,
p.15). Pode-se dizer que, tempos depois, o método foi se metamorfoseando e que muito do
modo de operá-lo passou a se orientar também pelos estudos da pedagogia do oprimido e da
esperança desenvolvidas pelo educador e filósofo brasileiro Paulo Freire (1921-1997), que
começou a se internacionalizar a partir de seu exílio em 196451.
No Brasil, além da abordagem freiriana, povoam a memória dos “de base”, como
referências para a ação educativa “da libertação”, os “círculos bíblicos” e os cursos do Centro
Ecumênico de Estudos Bíblicos (Cebi) de Carlos Mesters52 e as ações da Igreja Católica no
Nordeste, coordenadas e/ou apoiadas por Dom Hélder Câmara, tal como o surgimento do
Movimento de Educação de Base (MEB), a partir de 1961.
“A idéia principal do projeto da Igreja dos pobres é despertar a consciência dos
pobres” (THEIJIE, 2002, p.76). Assim, o Aggiornamento possui o objetivo de “conscientizar”
o laicato para gerar autonomia e senso de corresponsabilidade. Conscientizar, neste caso, pode
ser definido como o processo de tomar conhecimento (consciência) “da situação política e
social de seu país e traduzi-la numa adequada ação política e social”. Segundo Theije (2002):

“Os teólogos consideravam as comunidades de base como o meio mais adequado


para criar um contexto em que os católicos pobres pudessem desenvolver uma
consciência da situação política e social de seu país e traduzi-la numa adequada ação

51
É mister lembrar que Paulo Freire trabalhou de 1970 a 1980 no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra,
Suíça. Momento em que atuou como consultor nas questões ligadas à educação desse organismo ecumênico. Seu
livro “Pedagogia do Oprimido”, publicado em 1968, é uma obra basilar para muitos religiosos ligados à teologia
da libertação. Por exemplo, em entrevista, no dia 06/01/2018, o missionário João Resende atesta ter estudado a
obra de Freire. Como ele disse, “Pedagogia do Oprimido tava em alta...”, então a mensagem freiriana que diz
“‘antes de ensinar matemática ao Pedro, conheça o Pedro’ nos marcou muito”. Sobre a relação entre Paulo Freire
e o catolicismo, vale a pena conferir o programa da TV UFPB “Paulo Freire vive”, número 11, em que se debate
o catolicismo radical do pedagogo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2fOiGZZmMSA>.
Acesso em: 19 mar. 2019.
52
Como disse João Resende em entrevista concedida a Denilson Mariano em 06/01/2018, frei Carlos Mesters foi
seu professor de Bíblia. Ambos se encontraram, nos primórdios do Mobon, em uma reunião do Cebi em Angra
dos Reis/RJ, em 1977. Assim, segundo o missionário, a atitude de querer aprender, a metodologia e a leitura
popular da Bíblia ensinadas pelo frade carmelita foi grande influência para o desenvolvimento do trabalho do
Mobon.
49

política e social. A consciência social era o caminho da salvação. A religião era vista
como uma fonte de mudança cultural, social e política. Inspirados em leituras da
Bíblia críticas em relação à estrutura social, os pobres seriam emancipados para se
filiarem aos partidos políticos e aos sindicatos e para exigirem serviços e infra-
estrutura dos governos locais, fazendo assim sua parte na criação de uma sociedade
justa aqui e agora. A noção que veio a simbolizar esse processo foi a
conscientização, às vezes traduzida em raising the conciousness of [tomada de
consciência de]” (p.23-24).

Retoricamente, o clero “da libertação” enfatizou a aposta no conhecimento e na


racionalidade “como ferramentas necessárias para se formar uma ideia do progresso social e
da responsabilidade individual do progresso social e da responsabilidade individual no projeto
de criação do Reino de Deus na terra” (THEIJE, 2002, p.76). Ao fim e ao cabo, essa
campanha incentivou e fomentou a participação do laicato nos negócios religiosos. Na prática,
a Igreja Católica redistribuiu o poder por entre sua estrutura de governança, procurando
romper com o modelo de “Igreja piramidal” e sugerindo a construção de uma Igreja “Povo de
Deus”. Como escreveu Gomes e Andrade (2011):

“(...) é a Constituição Lumen Gentium [gestada durante o Vaticano II], que apresenta
um modelo de Igreja que foge da estrutura hierárquica piramidal para um modelo de
Igreja como povo de Deus, com a missão de anunciar e instaurar o Reino de Cristo e
de Deus em todos os povos e constitui o germe e o princípio deste mesmo Reino de
Deus na terra. Um reino que começa aqui e agora. Está em semente, um germe
presente nesta história humana. Uma Igreja que existe para o Reino de Deus e cuja
missão é de todos. “Estas funções são de todos os batizados e constituem a missão
da Igreja, que não é responsabilidade de alguns, mas de todos” (p.20).

Dessa maneira, a ênfase passou a ser a orientação para a formação de lideranças e de


comunidades de base, que “eram vistas como a maneira de materializar a participação dos
leigos na Igreja” (THEIJE, 2002, p. 146). Deste modo, reconfigurou-se a autonomia relativa
dos leigos, dando-lhes mais possibilidade de participação e intervenção nas decisões pastorais
em âmbito comunitário, paroquial e diocesano, além da possibilidade de assumir cargos
ministeriais, assumindo assim a manipulação ritual das coisas sagradas, como realizar a
homília da Palavra e/ou administrar a hóstia consagrada (a eucaristia) durante as celebrações
nas comunidades. Como argumenta Theije (2002, p.318), o maior aprendizado dessa
campanha foi o aprendizado ritual da democracia, a partir da participação dos leigos em
âmbito paroquial e diocesano em assembleias anuais, cursos e escolas de formação, na criação
e manutenção de conselhos, na formação de comunidades de base, na participação de grupos
religiosos, grupos de reflexão e plenários.

***
50

Na América Latina, o Vaticano II foi fundamental para “a emergência de novas


práticas católicas, sobretudo no que se refere ao papel dos leigos” (OLIVEIRA, F.R.C., 2010,
p.41). Para o continente, a “opção pelos pobres” teve um significado contextual muito forte e
exigiu mudança maior que na Europa (MAINWARING, 1989 apud OLIVEIRA, F. R. C.,
2010, p.41). Assim,

“Apesar de ter sido um evento europeu, dominado por bispos e teólogos desse
continente, o concílio conduziu a mudanças mais significativas em alguns países da
América Latina do que na própria Europa. Tanto para críticos como para partidários,
a relevância do evento era clara, assim como eram conhecidas suas ideias-chave –
enfatizar a missão social da Igreja Católica; declarar a importância dos leigos;
motivar maior corresponsabilidade entre o papa e os bispos e entre padres e leigos;
propagar a ideia a da Igreja Católica como ‘o povo de Deus’; valorizar o diálogo
ecumênico; modificar a liturgia de modo a torná-la mais acessível (Mainwaring
1989:62). Em suma, o Concílio Vaticano II sancionou oficialmente uma atmosfera
de abertura e participação na Igreja Católica, o que acarretou também uma
intensificação do trabalho dos leigos na América Latina, incentivando a criação de
pequenos grupos para o estudo da Bíblia e dos ensinamentos religiosos”
(OLIVEIRA, F. R. C., 2010, p.42-43).

Nos anos seguintes ao Vaticano II, dois eventos foram fundamentais para a realização
de uma leitura contextualizada das orientações do Concílio e para sua amplificação na
América Latina. O primeiro evento se trata da II Conferência Geral do Episcopado Latino-
Americano, que aconteceu em Medellín/Colômbia, em 1968. O segundo refere-se a III
Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla/México, em
197953.
No Brasil, certos setores da Igreja Católica ‘assimilaram’ a nova eclesiologia. Desta
forma, bispos, padres e missionários, bem como as lideranças formadas pela política cultural
liberacionista, atuaram em diversas frentes de trabalho, “seja na organização de CEBs pelos
confins do país, seja na articulação de sindicatos e movimentos sociais, ou mesmo na
produção de uma vasta literatura militante sobre a Teologia da Libertação” (OLIVEIRA, F. R.
C.; ZANGELMI; SCHIAVO, 2010, p.37)54.
Por fim, cabe ressaltar que o Aggiornamento “não obteve sucesso contínuo e regular
nas diversas paróquias brasileiras” (OLIVEIRA, F. R. C.; ZANGELMI; SCHIAVO, 2010, p.37).
Houve (e há) disputas internas no Clero, e, consequentemente, resistência por parte de bispos

53
A I Conferência Geral do Episcopado Latino Americano aconteceu no Brasil, em 1955. Depois de Puebla
(1979), aconteceram mais duas conferências, a saber: Santo Domingo/República Dominicana, em 1992, e
Aparecida/Brasil, em 2007. Essas duas últimas já influenciadas de forma significativa por uma nova conjuntura
eclesial internacional, sobretudo, a partir do empreendimento restauracionista colocado em curso desde o
pontificado de João Paulo II. Sobre a conferência de Medellín e seus desdobramentos no tempo, vale a leitura de
Beozzo (2017).
54
É nesse contexto que, na Diocese de Caratinga, o Movimento do Apostolado do Evangelho (Mape), de cunho
mais romanizador, se transmuta em Movimento da Boa Nova, como será abordado no capítulo 2.
51

e padres aos ideais e práticas tidas como “da libertação”55. Além disso, as dificuldades
práticas, como é o caso da inadequação dos conceitos liberacionistas ao linguajar popular, da
incompatibilidade situacional para a ação libertadora em muitos contextos, somadas ao alto
índice de analfabetismo encontrado no Brasil à época, foram empecilhos para que o projeto se
difundisse por completo. Todos esses fatores juntos dificultavam que os ideais do
Aggiornamento fossem internalizados pelos católicos e os orientassem para práticas
consonantes às novas propostas conciliares (Idem).

1.3. Dois modelos de Igreja na continuidade da “caminhada do Povo de Deus”

Feito esse percurso de apresentação das duas campanhas culturais que se sucederam
no tempo, é importante marcar que os efeitos de ambas continuam em curso. Como já
mencionado, não é possível dizer que a Campanha Ultramontana deu fim às práticas
religiosas populares; que o Aggiornamento suprimiu os efeitos da Romanização; assim como
não é possível dizer que, após o crescimento do MRCC, os valores e práticas liberacionistas
foram abandonados. O que nos parece correto dizer é que todas essas campanhas coabitam e
transformam uma mesma tradição religiosa. Assim, são lidas pelos leigos e leigas e
contribuem para a construção de múltiplos catolicismos na prática.
No que se refere às duas campanhas apresentadas aqui, é possível dizer que entre uma
e outra, considerando todas as limitações próprias de uma organização hierárquica como a
Igreja Católica, o que houve foi uma pretensa mudança sistemática e orientada de um modelo
de igreja piramidal, que marcou o período ultramontano, para uma igreja “Povo de Deus”,
própria do período em que a Igreja Católica implementou o Aggiornamento (cf. OLIVEIRA,
F. R. C., 2012, p.92-95)56. Assim, baseado nos estudos realizados e tomando como

55
É importante mencionar que dentro da Igreja Católica muitos sacerdotes demonstraram/demonstram
resistência aos preceitos e práticas desta campanha “da libertação” que, entre outras coisas, propunha ‘abrir’ a
Igreja para o protagonismo leigo. Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2012), um grande indício disso foi o período
de crise institucional que marcou esse período de implementação da campanha baseada na Teologia da
Libertação. Houve um grande número de evasão de sacerdotes no período. Para certo setor, as mudanças
propostas, representavam um “erro”. Como disse um dos entrevistados de Oliveira, F. R. C. (2002), Monsenhor
Raul, “Foi depois do concílio que aconteceu isso [grande evasão de sacerdotes], depois do concílio que a gente
via muitos leigos pregarem a frente da coisa, ai muitos padres pensaram: ‘O que eu vou fazer mais’, os leigos já
fazem tudo, até batizados já fazem, então foi uma crise no mundo inteiro” (p.63).
56
Variações sobre esses dois modelos de Igreja Católica, foram refletidos pelo Mobon em 1984 em seu curso, a
partir do livro “Reconstrução do Povo” (MEDC, 1984). Nesse curso é que se discutem os modelos de igreja caju,
abacate e laranja, que em um sentido decrescente parte da igreja afastada do povo à igreja que se mistura com o
povo. Esse tema voltou a ser pauta de reflexão 34 anos depois, durante o 7º Encontro de Formação de Leigos e
Leigas, em Ipatinga (07 e 08/07/2018), momento em que Sebastião Farinhada e Eliane ministraram uma palestra
com o tema “Sujeitos na Igreja em Saída, Sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13-14)”. Nesse encontro trabalhei
52

pressuposto que uma campanha não substitui contínua e regularmente a outra, é possível dizer
que a Reforma Ultramontana e o Aggiornamento 57 deixaram como legado dois “modelos de
Igreja”. Dessa forma, apresento a tabela abaixo, que aglutina as principais características das
duas campanhas.

Tabela 1: Ultramontanismo e Aggiornamento, dois modelos de Igreja


Campanha Ultramontana Aggiornamento
Igreja Piramidal Igreja “Povo de Deus”
Modelo centralizado e hierárquico Modelo descentralizado e hierárquico
Leigos e leigas não participam dos negócios Leigos e Leigas participam dos negócios da
da Igreja Católica Igreja Católica (“todos são padres”)
Igreja “para dentro”, voltada para a sacristia, Igreja “para fora”, que se mistura com o
fora do mundo povo, está no mundo
Organização autoritária (a decisão do Organização democrática (as decisões são
religioso é a que importa) tomadas coletivamente em conselhos,
reuniões, assembleias e o leigo possui voz e
possibilidade de fazer propostas e intervir no
processo de decisão)
Ênfase na afirmação da doutrina positiva da Ênfase na formação de líderes leigos e de
Igreja Católica e da hierarquia romana comunidades de base
Linguagem doutrinária, baseada na Doutrina Linguagem ao alcance do povo, baseada na
Positiva da Igreja Católica Doutrina Social da Igreja Católica. Há o
objetivo da simplificação como horizonte
para a evangelização
Missão: ensino da doutrina Missão: conscientizar/libertar/humanizar
Missão-como-salvação-dos-pecadores Missão-como-libertação-dos-oprimidos
Catolicismo tradicional Catolicismo dos reafiliados
Fonte: Elaborado pelo pesquisador.

Deste modo, “enquanto o católico pré-conciliar se volta para Deus numa atitude de
submissão e auto renúncia, o católico pós-conciliar aprende a ver Deus trabalhando pela
liberdade humana” (BURDICK, 1998, p. 36 citado por OLIVEIRA F. R. C.; ZANGELMI;
SCHIAVO, 2010, p.35)58.
Na prática, como se demonstrará ao longo da dissertação, o significado da “missão do
povo de Deus” propagada por religiosos e leigos “de base”, é construído por um diálogo tenso

tocando triângulo e desenhando como relator gráfico um painel que sintetizou as “palestras” que aconteceram
durante o evento. Algumas cenas deste encontro serão apresentadas no capítulo 4.
57
Incluindo suas releituras pela Cúria Romana. Em outras palavras, a romanização retomada sob o
empreendimento de “Restauração Identitária” empreendida durante os papados de João Paulo II (Pontificado de
1978-2005) e Bento XVI (Pontificado de 2005-2013), que propôs a “Igreja comunhão” como modelo a ser
seguido; e a retomada do Aggiornamento, com o governo de Papa Francisco (Pontificado de 2013 até os dias
atuais), que propõe como objetivo da evangelização a humanização ao invés da doutrinação.
58
Para acesso a um estudo que trata do conflito entre os dois projetos de Igreja Católica, a partir de uma análise
da participação da congada nas festas de devoção a Nossa Senhora do Rosário em Brás Pires/MG, cf. Ferreira e
Botelho (2011).
53

entre noções opostas e complementares da compreensão do compromisso soteriológico59


assumido pela Igreja Católica: a “missão-como-salvação-dos-pecadores”, cujo significado foi
construído no período ultramontano e a “missão-como-libertação-dos-oprimidos”, cujos
significados foram construídos no período do Aggiornamento (cf. figura 2). Doravante, o que
se constata é a prática de um catolicismo plural (TEIXEIRA, F., MENEZES, 2009;
TEIXEIRA, F., 2009a). Ou melhor, um movimento de “evangelização inculturada”60 repleto
de fluxos e contradições, “feito” por diversas pessoas, tendo como horizonte ideal o
distanciamento (discursivo e ritual) do modelo de missão como empreendimento etnocêntrico
violento61.

Figura 2 | A missão soteriológica da Igreja Católica na prática: um diálogo tenso entre dois polos significativos.
Fonte: Elaborado pelo pesquisador.

59
Soteriológico refere-se à doutrina ou estudo da salvação do ser humano por um redentor. Como escreve Portier
(2009), “A Igreja recebeu de início uma missão soteriológica: ela combaterá o pecado e conduzirá os homens à
salvação” (p.76).
60
Evangelização inculturada, nos termos nativos, assume o sentido de evangelização que respeita e busca se
adequar às culturas específicas, integrando ao rito romano, símbolos, discursos e sons que representem a cultura
dos camponeses, operários, indígenas, povos tradicionais, etc. Tal como representado pelo discurso dos basistas
da Diocese de Caratinga, é uma evangelização de “(...) profundo respeito. (...) [é quando] a Igreja se encarna
nesse povo e assume a sua cultura. Assim, diante das culturas indígenas, afro-americanas e mestiças, o
evangelho deve ser apresentado como força de vida e de libertação. Seria como entrar em uma horta: muito
cuidado para não pisar no canteiro e para não arrancar as coisas boas que foram semeadas por Deus. Porém, com
o mesmo cuidado devemos identificar as ‘ervas daninhas’, o ‘mato’ que abafa e quer matar os sinais de vida no
meio do povo” (in: Roteiro para os Grupos de Reflexão, jul. 2006, caderno 292, p.07).
61
Muitas vezes, representado pelo modo de evangelizar de um Clero centralizado e organizado
hierarquicamente, onde a gestão dos negócios sagrados é restrita aos religiosos e, ao fim e ao cabo, apenas suas
decisões é que importam.
54

A seguir, apresento algumas notas sobre os efeitos das duas campanhas no contexto da
Diocese de Caratinga, mostrando o quanto uma esteve imbricada na outra e gerou resultados
inesperados.

1.4. Efeitos locais das campanhas de políticas culturais da Igreja Católica: o caso da
Diocese de Caratinga/MG

Na Diocese de Caratinga, mais especificamente, em Manhumirim/MG, o segundo


momento da Campanha Ultramontana foi marcado por uma fé combativa e realizadora de
“obras”, especialmente, durante o período em que o Pe. Júlio Maria de Lombaerde – um
missionário belga enviado ao Brasil – administrou a Paróquia de Manhumirim, i.e., de 1928 a
1944 (cf. BOTELHO, 2011b, p.224-241; COMERFORD, 2001, p.226-249; OLIVEIRA, F. R
C., 2012, p.38-47; SOARES, 2015). Nos itens 3.1 e 3.2, respectivamente, seguem alguns
detalhes da atuação do missionário nesse local e uma breve discussão das ‘reminiscências’
deixadas por esse tempo, importantes para a compreensão do desenrolar do primeiro
movimento rumo à consolidação do Mobon: a criação do Movimento de Apostolado dos
Pioneiros do Evangelho (Mape).

1.4.1. A missão de um padre belga em uma paróquia da Diocese de Caratinga

Como se sabe, no Brasil “A romanização foi fortalecida pela vinda de muitos padres e
religiosos estrangeiros que reforçaram o sistema das paróquias” (ROMANIZAÇÃO, 2013). A
Diocese de Caratinga não ficou isenta dessa conjuntura. Como se notou – tanto na leitura dos
livros de história (LOMBAERDE, 1991; BOTELHO, 2011b, p. 216-242; GOMES E
ANDRADE, 2011, p.25-57) e da literatura científica consultada (ARAÚJO, 1999;
COMERFORD, 2001, p.226-247; OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.38-70; SOARES, 2015 entre
outros), quanto na escuta das conversas e na observação dos fatos – não é possível contar a
história sobre a sociogênese do movimento de evangelização da Boa Nova sem abordar,
mesmo que sumariamente, a história de padre Júlio Maria de Lombaerde62.

62
Concordando com Comerford (2001, p.227), o intento não é afirmar uma “linearidade genealógica”
automática “entre as ações do padre Júlio Maria e o MOBON ou as CEBs” e seus resultados inesperados, como a
atuação política de leigos e leigas em partidos políticos e sindicatos, por exemplo. O objetivo é apresentar ao
leitor os fatos históricos representativos da romanização empreendida pelo missionário, que por um sem-número
de processos variáveis, possivelmente influenciaram fatos históricos ocorridos posteriormente (cf., por exemplo,
55

As histórias sobre a “brabeza” do missionário são famosas em Manhumirim e, em


algumas ocasiões, foram ponto de partida ou chegada em conversas que tive sobre religião e
evangelização no município. Muitos foram os causos das pelejas do padre belga com os
protestantes, maçons, espíritas, comunistas e autoridades políticas locais, contados pelas
pessoas. Povoam o imaginário das pessoas com quem convivi em Manhumirim tanto os
episódios que entraram para os anais da história – como quando tentaram matar o sacerdote
durante uma missa em 1930 (BOTELHO, 2011b, p.238-239) – quanto outros causos contados
pelos mais velhos. A memória do missionário é muito presente na região, e se materializa em
nomes de ruas, praças ou em monumentos públicos erguidos em sua homenagem.
Em alguns eventos que participei, se viu circular santinhos com a “Oração pela
beatificação do servo de Deus – Pe. Júlio Maria de Lombaerde”63 ou folders com a “Novena
ao servo de Deus: Pe. Júlio Maria de Lombaerde”64. Existem alguns religiosos e leigos que se
empenham em “não deixar morrer” a história do padre. Alguns leigos, mais próximos do clero
manhumiriense, contribuem, inclusive, no processo para a sua beatificação. Por fim, ter
conhecido e, sobretudo, convivido com o missionário é um marcador de distinção e confere
legitimidade aos que narram e escrevem a história da Igreja Católica do município. Padre
Geraldo Silva Araújo (1912-2003) e padre Demerval Alves Botelho (1923-2019), por
exemplo, que o tiveram como instrutor no seminário em Manhumirim, ainda quando
adolescentes, são ‘lidos’ dessa forma. No que se refere ao trabalho pastoral, o primeiro
sacerdote é visto como um discípulo direto do religioso belga (COSTA, 2009, p. 2; GOMES,
ANDRADE, 2011, p.32).

***

Nascido em Waereghen (Bélgica), em 8 de janeiro de 1878, padre Júlio Maria foi


ordenado padre no dia 13 de janeiro de 1908, pela recém-fundada Congregação dos
Missionários da Sagrada Família. Em 1912, foi enviado em missão para o Brasil. Aportou
primeiramente na região Norte, onde trabalhou por 15 anos entre os índios e caboclos65. O
religioso, movido por um dever soteriológico, desde sua chegada empreendeu diversas ações
romanizadoras com o objetivo de reconfigurar uma religião “que se desfazia”. As suas

OLIVEIRA, F.R.C., 2012). Essa perspectiva histórico processual orientou diversos trabalhos que tomam como
objeto de estudo a relação entre prática religiosa e prática política a partir da Diocese de Caratinga. Além de
Comerford (2001) e Oliveira, F. R. C. (2012), cf. Cintrão (1996), Campos (2006), Gomes e Andrade (2011),
Schettini (2013), Rabelo (2019) entre outros.
63
No Curso de Férias para Educadores Populares, Caratinga, 10/01/2018.
64
Na visita à Paróquia do Senhor Bom Jesus, Manhumirim, 30/07/2018.
65
Quem foi? Disponível em: <http://obraspejulio.blogspot.com/p/quem-foi.html>. Acesso em: 12 mar. 2019.
56

primeiras impressões sobre a religiosidade no Brasil demonstram uma visão que reconhece a
existência de uma religiosidade local, mas não lhe confere a alcunha de “verdadeiro
catolicismo”. Assim, ele toma para si o dever de reerguer o catolicismo por onde andou.
Como escreveu em seu Diário Missionário:

“Sem a presença de padres, e principalmente de padres piedosos e zelosos, há


milhares de paróquias - Estados inteiros, - onde há 40, 50 e mesmo 60 anos talvez,
não se oferece o Santo Sacrifício. Muitas pessoas idosas se lembram de se ter
confessado e comungado na juventude. Porém, depois, nada de sacramento, nada de
exortação, sobretudo, nada de confissão. Pense, pois, em quê consiste a religião
deste povo. Poder-se-ia chama-la de uma religião transmitida por tradição. A
ignorância é completa. (...). Fato curioso: o brasileiro tem um fundo de fé sincera;
um imenso respeito e veneração pelo padre; um amor profundo pelo Senhor morto e
pela Virgem das Dores. Ama sua religião sem conhecê-la; glorifica-se de ser cristão,
sem saber os deveres que este título lhe impõe. Tem uma afeição especial pelas
imagens, medalhas e cerimônias religiosas. Quanto aos valores da família, a
autoridade dos pais é coisa sagrada. Os filhos cometeriam um pecado, faltando o
respeito a eles e mesmo indo deitar-se, à noite, sem ter-lhes pedido benção. A
veneração pelo padrinho e a madrinha não é menor. Eis aí, pois, mais ou menos, o
resumo de seus valores. (...). Entre os seus costumes, naturalmente bem diferentes
dos nossos, há coisas muito bonitas. (...). São resquícios de u’a religião enraizada e
amada, a despeito da ignorância e indiferença que, pouco a pouco, a desfiguram e
ameaçam abafá-la. São como restos que subsistem ainda, ou melhor, dizendo, uma
fagulha de fé viva sob as cinzas, mas quase a se apagar se u’a mão sacerdotal não
vier reaviva-la” (LOMBAERDE, 1991, p.84-85).

Tocado, deste modo, pelas “mazelas” encontradas, o missionário logo inicia seu
‘projeto modernizador’ dos catolicismos locais onde atuou. Em Macapá, construiu o Colégio
Nossa Senhora de Lourdes, voltado para a educação das moças, e fundou a Congregação das
Irmãs do Imaculado Coração de Maria (1916), que passou também a abrigar as órfãs do local;
contribuiu para o cuidado com os doentes; administrou os sacramentos; deu catecismo; cuidou
dos leprosos, e até fundou uma banda de música (LOMBAERDE, 1991)66. Das fotos
encontradas no “Diário Missionário do Pe. Júlio Maria” (1991), traduzido e organizado pelo
padre Demerval Alves Botelho, duas fotos (cf. figuras 3 e 4, abaixo) são icônicas e
representativas da maneira ultramontanista que significou o investimento pastoral do padre
belga entre os caboclos da Amazônia. Leia-as antes de prosseguir67.

66
Como estava escrito em uma legenda para uma foto em Lombaerde (1991), “‘Ele (o Pe. JM) era tudo em
Macapá, médico, farmacêutico, professor e vigário’. Fundou uma farmácia para socorrer a pobreza, e até uma
banda de música para alegrar a vida do povo tão sofrido de Macapá. Ele mesmo fazia parte dessa banda, tocando
saxofone” (p.286).
67
As fotos e as legendas que as acompanham foram extraídas de Lombaerde (1991), páginas 254 e 01,
respectivamente.
57

Figura 3 | “Havia encontrado a garotada daqui no maior abandono. Reuni uns quinze meninos e iniciei com eles
um trabalho de difusão do bem” (Pe. J. Maria – Macapá – 1913)

Figura 4 | Pe. Júlio Maria (à frente) e seu confrade, Pe. Hermano Elsing, em missão entre os caboclos da
Amazônia. “O mais perfeito, o mais heroico, o mais agradável a Deus era ir para as missões, deixando para trás
as sedutoras esperanças” (Pe. J. Maria)
58

Ao longo de dez anos de trabalho, saltou-se de “somente três ou quatro comunhões por
ano” para, “em 1921 – 1.350 com. por mês, seja 16.200 por ano” (LOMBAERDE, 1991,
p.292-293). Como notou “o padre é respeitado e consultado. O povo reconhece sua
autoridade. (...) aos domingos, a casa de Deus se enche” (idem). Não satisfeito, padre Júlio
Maria faz uma investida no sentido de criar uma congregação para a formação de padres.
Todavia, “Não conseguindo... contar com a aprovação e a cobertura do Sr. Arcebispo daquela
Arquidiocese, depois de muito rezar, refletir e na inteira dependência do Senhor, deliberou
tomar os caminhos de Minas Gerais” (BOTELHO, 2011b, p.217).
Destarte, o missionário “foi descoberto por Dom Carloto [Fernandes da Silva Távora],
Bispo de Caratinga” (BOTELHO, 2011b, p.217). O bispo demonstrou interesse pela fundação
da congregação e não mediu esforços para convencer padre Júlio a construí-la em sua diocese.
Proposta aceita, o missionário foi licenciado em 1927 por seus superiores de Grave/Holanda
para dedicar-se por inteiro a fundação do instituto. Assim, com total liberdade dada por Dom
Carloto para que escolhesse o local onde seria fundada a congregação, em abril de 1928, Júlio
Maria assumiu o Curato de Manhumirim.
Ao assumir o curato, lugar em que a religiosidade católica era pouco organizada68,
padre Júlio Maria logo trabalhou para tornar o Curato uma Paróquia. Feito realizado em abril
de 1928. Daí em diante não parou mais. Ainda naquele ano,

“Após o mês de maio, já havia ambiente para a fundação e organização de diversas


irmandades. Pe. Júlio Maria criou a Liga Católica para os homens e a Cruzada
Eucarística para o meninos e meninas; reorganizou o Apostolado da Oração e as
Filhas de Maria, e fundou o catecismo para a meninada. (...). Cresceu, a olhos vistos,
a participação nos atos religiosos e funções litúrgicas. (...) Pe. Júlio Maria era
também o homem da pena. O jornal ‘MANHUMIRIM’ publicava, frequentemente,
os seus artigos. Mas, quando entrou numa linha polêmica, provocada pelos

68
Como escreveu o historiador Pe. Demerval Alves Botelho (2011b), “Pelo que se tem notícia, os padres, que
passaram por Manhumirim, desde os tempos de Pirapetinga, seguiam mais a linha de uma pastoral de
atendimento, de manutenção, sem aquele espírito genuinamente missionário, que os levava a fazer evangelização
mais ampla e mais profunda” (p.230, grifo nosso). Assim, a época da chegada de padre Júlio Maria ao Curato, a
participação dos homens nas coisas da Igreja Católica era ínfima, a atuação das mulheres nos movimentos
religiosos era tímida e desorganizada, as obras da Igreja-Matriz de Manhumirim estavam paralisadas, e pouco
era o apreço dados pelos leigos aos sacramentos. Como atesta Botelho (2011b), “estavam presentes à primeira
missa, que Pe. Júlio Maria celebrou nas terras do Bom Jesus, algumas mulheres e somente (...) três homens (...).
Para se ter uma idéia do desinteresse do povo pela vida cristã daquele tempo no Curato, basta dizer que, na missa
de posse, houve apenas cinco comunhões, que o próprio Pe. Júlio Maria enumera: ‘D. Edwiges, os velhos
Cantamissa e o meu amigo Pedro... E foram só.’ Na cidade havia a loja maçônica e dois templos evangélicos:
um presbiteriano e outro batista. Uma outra denominação, talvez uma congregação iniciante, funcionava em casa
particular. Não havia nenhuma irmandade canonicamente ereta. Tão-só umas quinzes senhoras com a fita do
Apostolado da Oração que faziam a comunhão mensal no primeiro domingo. Existiam dezoito Filhas de Maria.
Que nem apareceram no princípio, e tinham somente a fita e o véu, mas sem nenhuma organização. As crianças
não tinham catecismo e o Cura não tinha o costume de fazer homilia, nem mesmo nas missas dominicais. Uma
vez ou outra, fazia sermão” (p.223-224).
59

evangélicos (...) decidiu-se a fundar ‘O LUTADOR’” (BOTELHO, 2011b, p.224-


225).

Um ano depois (1929), fundou no local a Congregação dos Missionários de Nossa


Senhora do Santíssimo Sacramento, bem como a Congregação das Irmãs Sacramentinas de
Nossa Senhora (BOTELHO, 2011b). No período de 1928 a 1944, conforme consta no Livro
de Tombo da Paróquia do Senhor Bom Jesus, o missionário também realizou “obras
assistenciais, como o Colégio Santa Teresinha, Ginásio Pio XI, Seminário Apostólico e
Hospital São Vicente de Paulo” (SOARES, 2015, p.150) entre outras.
O trabalho desenvolvido pelo padre, sem demora, começou a incomodar os
protestantes, maçons e os chefes políticos. Da mesma maneira, suas ações passaram a
representar uma ameaça para os espíritas e os maçons. Especialmente, a devoção mariana foi
“o princípio das afogueadas polêmicas com os protestantes que perduraram por muitos anos”
(BOTELHO, 2011b, p.224). Assim, durante todo o tempo em que geriu a paróquia, marcou o
estilo polêmico e apologético de fazer evangelização. Como escreveu Botelho (2011b):

“Era o costume da época daquele modelo de Igreja, em que estava em voga esse tipo
de evangelização [apologética]: DEFESA e ATAQUE, mormente contra
protestantes, maçons e espíritas. (...). A polêmica era o estilo próprio de
evangelização daquele modelo de igreja do passado. Tanto os grandes apóstolos da
Igreja Católica como os pastores evangélicos de maior renome eram hábeis
esgrimistas das armas da polêmica. Tanto num campo, como no outro, havia
célebres apologetas (...). As atividades pastorais do Pe. Júlio Maria, de maneira mais
intensa, com a celebração festiva do mês de Maria de 1928, despertaram a atenção
também dos evangélicos que reagiram, lançando um folheto de ataque aos culto
católico à Mãe de Jesus, e desafiando o Cura para que provasse pela Bíblia diversos
pontos doutrinários professados pelos católicos e negados por eles, sobretudo com
relação à pessoa de Maria” (p.225-232)69.

O padre belga faleceu em um acidente de carro, no córrego de Vargem Grande, em


dezembro de 1944. Contudo, como se irá demonstrar a seguir, a prática de defesa do
catolicismo tal como praticada por ele, baseada no ataque público aos “inimigos da fé”,
principalmente, aos “crentes” (protestantes), os quais se combatiam fazendo o uso da Bíblia
Sagrada para o contra-ataque, irá influenciar em muito a prática católica em Manhumirim,
região e além até meados da década de 1960.

69
Sobre a luta político-religiosa em Manhumirim na época de padre Júlio, vale também a leitura de Comerford
(2001, p.226-247), Oliveira, F. R. C. (2012, p.38-54) e Soares (2015).
60

1.4.2. Do confronto midiático às aulas bíblicas: o legado combativo de Pe. Júlio


Maria e o surgimento do Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho
(Mape)

Como se viu, o aprendizado de combater os crentes iniciou-se com padre Júlio Maria.
O gosto pelo “bom combate”, ou pela apologética, são reminiscências de seu tempo. Foi
durante sua governança na Paróquia de Manhumirim que o Apostolado das Massas e o uso da
Bíblia como uma arma “para católicos e protestantes se digladiarem” (BOTELHO, 2011b,
p.232) se tornaram expressões conhecidas no meio eclesiástico da região. Publicamente, em
seus sermões, em artigos escritos nos jornais “Manhumirim” e “O Lutador” e em debates
públicos70, padre Júlio defendeu “com unhas e dentes” a doutrina católica. Naquele período,

(...) a pastoral da Igreja Católica (...) era baseada numa linha apologética e, de um
certo modo, de mentalidade triunfalista. Fazia-se muita questão do número, das
grandes passeatas e concentrações públicas, para as quais se convidavam oradores
sacros de renome. O chamado ‘Apostolado das massas’ tornou-se até uma expressão
consagrada no meio eclesiástico (BOTELHO, 2011b, p.233).

Assim é que os embates públicos e o conhecimento da Bíblia “de cabo a rabo” para
guerrear em defesa da doutrina positiva da Igreja Católica adquiriram importância capital. Os
dois elementos também foram estruturantes da maneira de evangelizar dos participantes do
Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho (Mape) (cf. COSTA, 2009, p.2-20;
ARAÚJO, 1999, p.49-74).

***

Como já mencionado, padre Júlio Maria formou vários discípulos, dos quais, um se
destacou: o jovem Geraldo da Silva Araújo. Filho de fazendeiros, ele nasceu em São Miguel
do Anta, em 11 de dezembro de 1912. Após concluir o ensino primário, foi para
Manhumirim, onde estudou até se tornar padre em 1945 (ARAÚJO, 1999). “Um dos
primeiros alunos de Júlio Maria” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.47), o religioso foi
responsável pela manutenção e inovação do modo de empreender apologético iniciado no
tempo julimariano. Como missionário sacramentino, foi professor da Congregação e formou
outros religiosos a partir da perspectiva mencionada. Por exemplo, foram seus estagiários
Alípio Jacinto71 e João Resende72. Missionários sacramentinos que, tempos depois,

70
Como conta o livro da história de Manhumirim, em “uma noite de julho de 1930” travou-se um debate público
entre o padre Júlio Maria e quatro pastores, na Praça da Estação (BOTELHO, 2011b, p.235).
71
Atualmente com 80 anos de idade.
72
Atualmente com 79 anos de idade.
61

adequaram às ideias “da libertação” o que aprenderam com o padre e deram luz ao
Movimento da Boa Nova (Mobon).
Após o falecimento do fundador da Congregação, padre Geraldo da Silva, provocado
pelo contexto de embates que persistia entre católicos e protestantes, e constatando a
necessidade de formar mais “soldados” para a batalha apologética, deu início ao Mape, em
1946. Fato iniciado no momento em que ministra a primeira “aula bíblica” em Presidente
Soares (hoje, Alto Jequitibá)73 e se oficializa em 1959, em Carangola, quando o religioso,
transferido e tornado o pároco do local, registra o movimento como sociedade civil. O Mape
foi um movimento majoritariamente masculino, de cunho apologético, que objetivava formar
“oradores de renome”, ou, exímios leigos apologetas. Como se expressou em uma carta
endereçada ao seu irmão de congregação, padre Demerval Alves Botelho:

“Em 1946, no meu primeiro ano de padre, fui designado para atender Presidente
Soares. Ia aos sábados e ficava lá o domingo. Como os moradores daquela
localidade eram em sua maioria protestantes e a época era de luta religiosa, senti a
necessidade de fazer uma pastoral a partir da Bíblia a fim de esclarecer as muitas
dúvidas que estavam na mente dos católicos e mostrar que nossa fé e nossa Igreja,
vinham da Palavra de Deus” (BOTELHO, 1996, p. 210 apud OLIVEIRA, F. R. C.,
2012, p.48).

A sede do Mape era em Vargem Grande-MG, zona rural de Presidente Soares, onde se
construiu um centro de formação com o objetivo de capacitar lideranças leigas (ARAÚJO,
1999, OLIVEIRA, F. R. C., 2012). Como detalha Oliveira, F. R. C. (2012):

“O Mape transmitia informações bíblicas, instrumentalizando leigos para refutar


argumentos dos protestantes. Esse processo era uma busca pelo monopólio da gestão
dos bens de salvação e internalização de esquemas de pensamentos comuns entre
fiéis católicos. (...). Dessas aulas, participavam grupos leigos, sobretudo ‘onde os
párocos eram mais ausentes. Ele [padre Geraldo] teria começado suas atividades
com pessoas: mais humildes, semi-analfabetos ou analfabetos de tudo. Muitos foram
alfabetizados nestas aulas bíblicas. Aprendiam ler e anotar os textos bíblicos.
Monotonia’ (Costa, 2009: 4). As aulas eram adaptadas para grupos católicos de
baixa escolaridade, uma espécie de catequese de adultos, em que se exigia esforços
desses últimos para defenderem o catolicismo” (p.48-49).

Desde a primeira aula, o movimento foi ganhando força. De 1962 a 1965, as aulas
bíblicas se tornaram “semanas bíblicas” (COSTA, 2009, p.10) e, em razão do trabalho e
circulação do padre Geraldo, de seus estagiários e, por fim, de seus leigos “pioneiros do
evangelho”, o Mape se difundiu por entre várias paróquias da Diocese de Caratinga e de
outras dioceses de Minas Gerais, e até por algumas paróquias do estado do Espírito Santo
(ARAÚJO, 1999; COMERFORD, 2001; CARDOSO, 2006; COSTA, 2009; GOMES,
ANDRADE, 2011; OLIVEIRA, F. R. C., 2012). Enfim, a espiritualidade missionário-

73
Onde, como informa Cardoso (2006, p.25), predomina o Protestantismo.
62

eucarística passou a motivar não só os religiosos, como os leigos também. Como relata Alípio
Jacinto:

“Com a Bíblia nas mãos, textos decorados na ponta da língua, os pioneiros partiram
para as praças, córregos, dentro de ônibus ou em qualquer lugar que aparecesse uma
oportunidade, falavam de seus conhecimentos e até provocavam protestantes e
espíritas para terem o gostinho de desmenti-los na frente de outros. Pe. Geraldo
buscou equipar seus pioneiros com alto falantes, quadros bíblicos etc. No começo
iam a cavalo e mais tarde de jeepe. Passamos a carregar um harmônio que atraía e
estimulava o povo a cantar” (COSTA, 2009, p.3).

Considerando as limitações dos leigos, ainda mais em uma época em que a locomoção
entre um lugar e outro era mais custosa e as condições financeiras e de autonomia do controle
de seu próprio tempo pelos mais humildes eram precárias, pode-se dizer que o desejo de “ser
dado, partido e repartido ao povo” 74 em missão ultramontanista de defesa da doutrina católica
passou a orientar, de modo geral, a prática dos católicos mais envolvidos com as coisas da
Igreja. A valorização do deslocamento para a realização da missão apologética se tornou um
pressuposto estruturante da prática missionária na Diocese de Caratinga em um sentido mais
amplo.
De acordo com o que se conta, com o Mape deu-se o primeiro aceno para o
pressuposto de que o movimento religioso se faz no movimento75. Corrobora com essa análise
a justificativa dada por padre Geraldo Silva para tão rápido ter mudado a classificação do
empreendimento fundado por ele de Departamento de Apostolado dos Pioneiros do
Evangelho (DAPE) para Mape. Como relembra Alípio Jacinto da Costa (2009):

“Já em Manhumirim com o apoio de membros da Congregação dos Missionários


Sacramentinos, o trabalho do Pe. Geraldo se expandiu, e já não estava preso numa
paróquia. Ele mesmo explicou que departamento dava uma ideia de coisa parada e
ele queria era que houvesse uma movimentação. Movimento sim, Departamento
não” (p.8-9).

74
A citação faz referência à suposta espiritualidade missionário-eucarística, difundida pelos Missionários
Sacramentinos de Nossa Senhora desde a fundação da congregação, em 1929. Como define a Equipe Vocaional
SDN (2006, p.16-20), essa espiritualidade é representada como a expressão do grande desejo da pessoa de ser
tomada por Deus e consagrada para a missão. Ou seja, do religioso (ou leigo) ser partido e repartido, e dado por
Deus ao povo.
75
Não se quer dizer com isso que não havia deslocamentos antes do Mape. Sabe-se que antes da ação de
romanização, os brasileiros faziam a religião a partir do movimento. Isto é, fazendo peregrinações a santuários e
cruzeiros, indo à casa dos sabidos da religião (geralmente aqueles que possuíam altares em suas casas) para rezar
o terço ou procurar as rezadeiras para cozer o destroncado, curar o cobreiro, benzer o mau-olhado ou endireitar a
espinhela, faziam campanhas de folias e congados, entre outras andanças (THEIJE, 2002). Dito isso, o que
analiticamente se está afirmando é que, a partir do Mape, o deslocamento passa a ser pensado em termos de uma
teoria institucional nativa sobre “como deve ser” a evangelização (leia-se, romanização) para que ela seja
eficiente. Viu-se que para ser eficaz, a ação missionária deve criar condições para que a força do Evangelho
corra pelas paróquias, atinja o máximo de pessoas possíveis, e dê suporte para o protagonismo dos leigos em
suas localidades. Esse pressuposto será aprofundado no período de Movimento da Boa Nova, como se irá
demonstrar ao longo da dissertação.
63

Nos itens 3.1 e 3.2, o que se quis apresentar ao leitor foram as implicações da
Campanha Ultramontana na prática do catolicismo da Diocese de Caratinga e, por extensão,
para o surgimento do Mape, a “gesteira”76 do Movimento da Boa Nova, que se desenvolveu
no final da década de 1960, sob os auspícios do Aggiornamento. Em síntese:

“(...) Padre Júlio Maria deixou como legado uma militância fundamentada na
necessidade de defesa do catolicismo. Nesse propósito, o Padre Sacramentino
Geraldo Silva foi um dos primeiros e um dos principais alunos de Júlio Maria. Ele
deu continuidade ao trabalho de combate ao protestantismo, em que Alípio Jacinto
da Costa e João Resende tiveram suas primeiras experiências missionárias,
fundamentais para a fundação do Mobon. (...). As concepções e estratégias utilizadas
na defesa dos ideais católicos e políticos de Júlio Maria influenciaram o padre
Geraldo Silva, fundador do Movimento de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho
(Mape), que deu origem ao Mobon. Geraldo Silva – um dos primeiros alunos de
Júlio Maria – foi professor da Congregação e uma referência importante aos
fundadores do Mobon, já que os dois – Alípio Jacinto e João Resende – foram seus
estagiários” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.47).

Todo o saber fazer adquirido foi colocado a serviço da evangelização no tempo pós-
conciliar. As “aulas bíblicas” tornaram-se ambiente de difusão da nova ideologia “da
libertação” e, tão logo, o movimento passou a ser chamado de movimento da Boa Nova.
Como contou Alípio Jacinto, após participar de um curso no Chile, em 1966, “foi possível dar
continuidade ao sistema Mape dentro do espírito do Concílio Vaticano II, sob orientação do
Papa João XXIII” (COSTA, 2009, p.3). Assim, “não havia necessidade de desfazer do
passado com críticas. A saída seria apresentar a mensagem da Igreja dentro do espírito do
Concílio Vaticano II. A outra questão era aproveitar tudo de bom que o Mape nos trouxe”
(COSTA, 2009, p.22).
Na Diocese de Caratinga, Dom José Eugênio Corrêa fundou o Seminário Diocesano
Nossa Senhora do Rosário, implantou as reformas do Concílio e apoiou todas as ações
voltadas para a criação de comunidades de base, tornando esse modelo um “manancial de
pastoral” que “suscitou um grande movimento de evangelização” (BOTELHO, 2011c, p.163)
em toda a diocese. Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2010, p.41), o bispo apoiou em muito o
Mobon, dando destaque aos trabalhos de evangelização do movimento.
É na procura por se afastar ideológica e ritualmente do modelo de igreja piramidal,
sem, contudo, deixar de prezar pela salvação e de contar com a ‘parceria’ da hierarquia
católica para ‘autorizar’ a reprodução de “um discurso democratizante e ideal de menor
diferenciação entre os estratos da Igreja Católica” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.94)77, que a

76
O termo é do educador, cantador popular e contador de histórias, Farinhada. Em entrevista, 06/11/2018.
77
Isto é, “A Igreja Católica tem, na sua organização hierárquica, um de seus maiores pilares. Assim,
paradoxalmente, para grupos religiosos divulgarem concepções mais democratizantes, os bispos precisavam
64

jornada do Mobon se inicia no final da década de 1960. No próximo capítulo, pretendo contar
um pouco mais sobre a origem do Movimento da Boa Nova e descrever como os atores
envolvidos mediaram e se apropriaram dos pressupostos e do ritual liberacionista.

intervir. Isso mostra que as mudanças eram limitadas e que o poder de ação do leigo era muito pequeno. O
Mobon, embora reforce de forma contínua a importância dos leigos e tenha promovido a formação de
importantes lideranças, só pode exercer suas atividades missionárias com efetivo empenho de bispos e padres.
Sem essa legitimidade, não havia como chegar ‘ao povo’ e apresentar-lhes suas novidades” (OLIVEIRA, F. R.
C., 2012, p.94-95).
65

CAPÍTULO 2
RASTROS: O MOBON, AS CEBS E OS MOVIMENTOS

“O padre conseguiu colocar homens semi-


analfabetos a anunciar a Palavra de Deus com a
Bíblia na mão. Estudavam em casa e ensinavam
pelas comunidades”.

Padre Léssio Lima Cardoso78

2.1. Contextualização: a rama de abóbora e limites que vazam

Para cumprir o propósito de ‘contextualização’, geralmente nos deparamos com a


tarefa de apresentar mapas e delimitações geográficas, características ‘típicas’ de cada região,
entre outras ‘representações’ que auxiliem o leitor a localizar os dados sociais e culturais
descritos pelo pesquisador. Nesta pesquisa, não farei diferente. Todavia, não me concentrarei
em construir uma “exatidão regional” sobre a abrangência do Movimento da Boa Nova
(Mobon). Deste modo, o objetivo aqui é produzir uma “colcha de retalhos” em que seja
possível apresentar a sociogênese do Mobon, das Comunidades de Base (CEBs) vinculadas a
esse trabalho e alguns de seus ‘resultados inesperados’, como a criação dos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais (STRs), os diretórios do Partido dos Trabalhadores (PT) e outros
movimentos sociais. Nesse processo irei descrevendo por onde os caminhos foram sendo
traçados, evidenciando as trilhas “mais batidas”.
Tendo em consideração que muito já se escreveu sobre o Mobon (cf., por exemplo,
ARAÚJO, 1999; COMERFORD, 2001, p.222-309; COSTA, 2009; GOMES, ANDRADE,
2011; OLIVEIRA, F. R. C., 2012), neste capítulo pretendo apresentar ao leitor um pouco mais
sobre a origem do referido movimento e seus desdobramentos no espaço-tempo, a saber, a
(re)produção de ‘seus’ saberes-fazeres no seio da vertente “igrejeira” (SANCHIS, 1990) dos
‘movimentos’ ‘da Zona da Mata’.

78
In: Cardoso (2006, p.25).
66

As diversas aspas no parágrafo acima servem para indicar certas imprecisões que
marcam o desenvolvimento do Mobon desde seu primeiro momento, ainda como Movimento
de Apostolado dos Pioneiros do Evangelho (Mape). Primeiro, quando digo ‘seus’ saberes (isto
é, ‘do Mobon’), não quero afirmar que tais saberes são exclusivos, originários ou uma
inovação do movimento da Diocese de Caratinga79, “mas sim que as experiências de
interações foram, aos poucos, sistematizadas e aplicadas numa espécie de bricolage (Lévi-
Strauss, 1970) metodológica que foi e ainda é transmitida não somente nos cursos, mas
também de geração para geração familiar dentro das comunidades” (RABELO, 2019, p.42),
bem como fora delas, uma vez que ao se deslocarem, as lideranças levam consigo tais saberes
por onde “caminham”. Neste caso, sinaliza também que o Mobon é uma continuidade, em
certos aspectos inovadora, de um conjunto de práticas que vêm sendo exercitadas desde as
“aulas bíblicas” do Mape, fundamentadas em um vocabulário moral que aproxima luta, ação
e obras, incutido no meio das “famílias católicas” dos córregos desde o período em que o
padre Júlio Maria andava pelo território80.
No caso dos ‘movimentos’, as aspas simples servem para evidenciar que neste
trabalho não me interessa construir uma ‘teoria sobre os movimentos sociais’ ‘da Zona da
Mata’. Não é o foco classificar os movimentos de que falarei ao longo dos capítulos e muito
menos explorar nas minúcias suas lógicas de funcionamento. Tanto neste capítulo, quanto no
próximo, quando os apresentar, o farei de maneira sumária para indicar a existência de uma
diversificada rede de movimentos sociais e religiosos que, grosso modo, são “consequências”,
tal como definiu Alípio Jacinto, do trabalho de animação de comunidades e formação de
lideranças realizadas pelo Mobon. Teoricamente, esses movimentos são resultados
inesperados e/ou “consequências indesejadas” (THEIJE, 2002, p.70) de uma campanha de
política cultural, que possuía, supostamente, um objetivo apenas religioso81. Qual seja, fazer

79
Vale mencionar que os saberes do Mobon se aproximam e se diferenciam de outros movimentos de
evangelização alinhados ao catolicismo “da libertação” Brasil afora, como o Movimento Evangélico Popular
Eclesial (MEPE) da Arquidiocese de Mariana; o Movimento Nacional Fé e Política; os “Círculos Bíblicos” de
Carlos Mesters, e; a Escolinha da Fé em Garanhuns/PE, para citar alguns exemplos.
80
Como lembra Comerford (2001), “‘A fé sem obras é morta’ é um lema recorrente entre as lideranças das
CEBs, que, como veremos, parece se adequar bem à visão promovida pelo padre Júlio Maria” (p.230).
81
Analiso assim (“o objetivo era, supostamente, apenas religioso”), a partir da leitura de que a concepção do
“religioso” para os mediadores do Mobon abrange mais que a questão estritamente ‘soteriológica’. O objetivo
dos missionários, como membros da Igreja Católica, era (é) ‘expiar as almas’, isto é, oportunizar ambientes de
“conversão” em que católicos comuns se tornem “verdadeiros católicos” em uma operação de reafiliamento em
que as pessoas sejam re-inseridas em um “regime forte” de intensidade religiosa (TEIXEIRA, F., 2009a).
Todavia, essa “verdade” é buscada não só no envolvimento dos leigos nas obrigações religiosas (p. ex.,
envolver-se com os trabalhos de cuidado e manutenção das capelas, “gostar de religião”, participar dos conselhos
paroquiais, tornar-se ministro da palavra ou da eucaristia, etc.), mas também é validada por outros aspectos ‘não
religiosos’, como “dar o testemunho de vida”, realizar “obras”. Apesar de Alípio afirmar que no início do Mobon
não estava clara para eles “a questão social” (COSTA, 2009, p.23), como expressou, eles viram que saber e
67

com que católicos comuns se interessassem pela religião católica, se envolvessem na


constituição de uma comunidade e dessem seu testemunho de vida82.
Neste caso, as aspas valem também para indicar que, apesar da diversidade de pautas e
valores de cada movimento, como “movimentos igrejeiros”, eles bebem de uma fonte comum:
dos saberes fazeres aprendidos em cursos de base e de formação de lideranças e de um rico
vocabulário vinculado a termos como missão, igreja em saída, conscientização e
engajamento, e os sentidos e valores a eles associados, gestados no contexto das CEBs da
Zona da Mata e Leste de Minas, em boa medida, ofertados pelos missionários e agentes
pastorais do Mobon.
Assim, refiro-me, de um modo geral, aos diversos “movimentos” sociais e religiosos
(ou político-religiosos, ou vice-versa) que tiveram origem, se estabeleceram no que se
convencionou chamar de Zona da Mata mineira e, posteriormente, se ramificaram por outras
partes de Minas Gerais e do país. Falo de uma ampla gama de ‘ajuntamento’ de pessoas ‘em
movimento’ que se organizam em torno de uma bandeira ou objetivo, que pode ser religioso,
sociopolítico, econômico, entre outros. Falo de um engajamento político-social, em seu
sentido mais amplo, no movimento sindical de trabalhadores rurais; em movimentos sociais
diversos; em partidos políticos e na atuação na política institucional em âmbito municipal,
estadual e federal; em diferentes tipos de associações; em cooperativas; na fundação e
manutenção de escolas família agrícolas; em movimentos religiosos e pastorais sociais da
Igreja Católica, etc.83.
Por fim, problematizo a noção de Zona da Mata mineira para mostrar que, como
movimento, o Mobon se inicia em área específica, mas, desde a época do Mape, ele se
constrói no movimento, ou seja, na circulação de sacerdotes e lideranças por diversos locais.
A gênese do movimento se encontra em ações ‘estratégicas’ desenvolvidas no “rastro” da
ação pastoral de padre Geraldo Silva Araújo e seus “pioneiros do evangelho” em municípios
situados na mesorregião da Zona da Mata, como Manhumirim (sobretudo, no distrito de

refletir os argumentos bíblicos era muito bom, porém, não era mais suficiente. Deste modo, o “grande
argumento” seria testemunhar a fé. E isso, na concepção dos mediadores do Mobon, passa pela “conversão diária
dentro de nossas famílias e na comunidade” (idem), a fé deve se expressar também em “participação familiar e
comunitária”. Esse esquema de pensar está alinhado aos pressupostos do Aggiornamento, campanha de política
cultural que ganhava fôlego naquele período da história da Diocese de Caratinga.
82
Como apresentou Cardoso (2006), essa preocupação é permanente para um dos fundadores do Mobon até os
dias atuais. Como escreveu, “Algumas das preocupações expostas pelo Alípio resistem até hoje: ‘Gente que vai à
missa, casa-se na Igreja e batiza filhos. Precisamos pensar como fazer essa classe de pessoas se interessar pela
religião. Formar uma pequena comunidade que possa dar testemunho na paróquia’” (CARDOSO, 2006, p.32).
83
Como disse uma liderança de Manhumirim, “A palavra ‘engajamento’, eram pessoas que estavam ligadas as
CEBs, ao sindicato, ao movimento que dá sustentabilidade” (entrevista, 06/11/2018).
68

Martins Soares84), Presidente Soares85 e Carangola. Mas não se resume a isso. Ao longo de
seu desenvolvimento, o Mape se capilarizou por outros municípios de Minas e do Espírito
Santo.
Como escreveu Cardoso (2006):

“O interesse do Mape não era só dos sacramentinos. Por exemplo, o seminarista


diocesano Léssio Guedes atuou em um curso, em Novo Horizonte, de 17 a 21 de
julho de 1963 (...). João Resende e outros Pioneiros deram curso em Piaçu, ES, em
1964. No mesmo ano, houve trabalhos do Mape em Caratinga, Dom Cavati
(segunda semana bíblica), Taruaçu (Residência), Novo Horizonte, Conceição de
Ipanema, Chalé, Vargem Grande, Água Limpa, Tarumirim, Sacramento, Alto
Caparaó, Belford Roxo, Lajinha, Manhumirim, Bom Jesus do Galho, Vermelho
Velho, Entre Folhas, Vargem Alegre, Simonésia, Santana, Divino e Muniz Freire”
(p.27-28).

Como se vê, desde o Mape que os ‘limites’ de atuação do Mobon escapam a uma
exatidão regional e se constroem tendo como principais regiões de atuação “a Zona da Mata,
em localidades próximas ao município de Muriaé-MG, e a região do Vale do Rio Doce, em
localidades entre os municípios de Caratinga-MG e Governador Valadares-MG” (OLIVEIRA,
F. R. C., 2012, p.16), sem contar, sua extrapolação para o estado do Espírito Santo e para a
região norte do Mato Grosso86. Quero demonstrar que este movimento é, como os próprios
missionários o definem, uma “rama de abóbora [que] não fica presa nos limites do quintal
onde nasceu” (MEDC, 1993, p. 23). O movimento – apesar de possuir ‘centros de irradiação
missionária e promoção social’ – é como a rama de abóbora que sai do controle de quem a
plantou, isto é, não possui limites e contornos rígidos, sendo sua área de abrangência vazada e
aberta em várias direções, conforme demonstrarão os “passos” de suas lideranças e alguns
diferentes recortes ‘geográficos’ que serão apresentados a seguir.

84
O distrito foi emancipado em 1995, mas apenas recentemente (2014) deixou de ser um “setor” da Paróquia do
Senhor Bom Jesus, de Manhumirim e ganhou status de paróquia independente. A saber, Paróquia Nossa Senhora
Mãe dos Homens.
85
Hoje Alto Jequitibá. Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2012), “O trabalho do Mape era sediado em Vargem
Grande-MG [distrito de Presidente Soares], onde “construiu-se um centro de formação com o objetivo de
conscientizar e capacitar os líderes leigos” (Torri, 1999: 66)” (p.48). E as “obras” na localidade não pararam por
aí. Como relatou Comerford (2001), “O MAPE construiu também uma escola (onde trabalhavam irmãs
sacramentinas) e estabeleceu uma cooperação com a UFMG na área de saúde (através do irmão do padre
Geraldo, que era casado com uma professora de medicina da UFMG). ‘Montou-se em Vargem Grande um
miniposto de saúde para o atendimento da população’, além de se realizarem cursos de medicina preventiva e
saneamento. Estudantes de medicina de Belo Horizonte também passaram a estagiar na região. Com ajuda das
prefeituras de Presidente Soares e Manhumirim, o SESACO também distribuiu filtros e promoveu a construção
de fossas. ‘Enfim, Vargem Grande se tornou um grande centro de irradiação missionária e promoção social’,
numa configuração que, como veremos, se repetirá em outras localidades da região” (p. 253).
86
Como já dito na introdução, a atuação dos missionários sacramentinos nesta região não serão tratadas nesta
pesquisa. Para uma descrição do trabalho pastoral desenvolvido por padre Geraldo Silva Araújo na região, cf.
Araújo (1999, capítulos 3 a 5) e Silva, M. M. (2019).
69

2.2. O Movimento da Boa Nova (Mobon): alguns rastros de sua sociogênese

Como já dito, no ‘jogo’ de mediação de campanhas de política cultural existem dois


tipos de atores, os “mediadores”, que definem as ‘regras do jogo’87 e os ‘alvos’ deste processo
de transformação cultural (THEIJE, 2002, p.70). Ambos atuam mediando os significados e
práticas das referidas campanhas. Diante disto, para que se entenda o enredo a seguir, antes de
tudo, é importante lembrar ao leitor que o Mobon, como se conta (ARAUJO, 1999;
COMERFORD, 2001; CARDOSO, 2006; OLIVEIRA, F. R. C., 2012 entre outros), surgiu da
atuação, devidamente autorizada pela Diocese de Caratinga, de três principais mediadores:
padre Geraldo da Silva Araújo e os missionários consagrados Alípio Jacinto da Costa e João
da Silva Resende.

***

Em 1965, Dom Eugênio Côrrea, bispo da Diocese de Caratinga, que já se mostrava


entusiasmado com a “nova evangelização” proposta pelo Concílio Vaticano II, “ganhou uma
bolsa para um curso no Ispac88, em Santiago do Chile” (CARDOSO, 2006, p.28) e a ofereceu
ao padre Geraldo Silva Araújo, à época superior geral da Congregação dos Missionários
Sacramentinos de Nossa Senhora89, em Manhumirim. Essa escolha, de certa maneira,
evidencia o reconhecimento dos serviços prestados à diocese pelo padre sacramentino90 e seus
“pioneiros do evangelho”. Afinal, desde 1946, com o propósito de combater os protestantes e
defender o catolicismo, o sacerdote vinha organizando os camponeses católicos (sitiantes e

87
Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2012) a partir da leitura de Neves (2008), os mediadores são aqueles que
possuem uma concepção de mundo pré-construída, e se veem como “portadores da função pedagógica destinada
a mudar comportamentos e visões de mundo” (NEVES, 2008, p.37 apud OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.108).
Deste modo, nos cursos do Mape/Mobon “acontecia [acontece] uma mediação que procurava [procura] anunciar
decisões e motivações ‘pré-proclamadas’ as quais levariam [levam] os leigos a pensarem de acordo com os
pressupostos dos missionários” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p. 93), assim é que os missionários sacramentinos,
tal como concebido por Neves (2008), podem ser considerados mediadores políticos que “desenham
comportamentos sociais correspondentes a uma almejada sociedade (pré-proclamada)” (NEVES, 2008, p.35
apud OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p. 93). A noção de mediador aqui utilizada – acrescentando-se a essa relação à
ideia de cocriação dos significados por parte dos mediadores e seus alvos (i. e., os ‘alvos’ sempre interpretam e
ajustam situacionalmente as decisões e motivações ‘pré-proclamadas’) – alinha-se a essa noção.
88
Instituto Superior de Pastoral Catequética.
89
O padre foi o terceiro superior geral da Congregação fundada pelo Pe. Júlio Maria.
90
O reconhecimento do Clero aos serviços prestados pela Congregação dos Sacramentinos de Nossa Senhora é
coisa antiga. Foi a partir do trabalho do Mape que o trabalho desenvolvido pelos missionários foi reconhecido
pelo Clero da Diocese de Caratinga e possibilitou o surgimento do Mobon. Como lembra Oliveira, F. R. C.
(2012), “Foi no Mape que Alípio e João Resende adquiriram experiências de trabalho junto aos leigos de
comunidades rurais e o reconhecimento do clero local, fatores que os potencializaram para a formação do
Mobon” (p.47).
70

meeiros), introduzindo o uso da bíblia e instruindo-lhes por meio de celebrações públicas e de


cursos, chamados “aulas bíblicas”. Processo que se cristalizou na fundação do Mape91.
De outro modo, em um contexto em que “o Concílio Vaticano II, com sua orientação
ecumênica, desautorizou o confronto com os protestantes” (COMERFORD, 2001, p.251), o
ato de Dom Eugênio Côrrea se tratou de um reconhecimento da ação do Mape nos córregos,
e, ao mesmo tempo, um ‘convite’ à mudança. Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2012):

“Os conflitos com os protestantes ficaram circunscritos à região de Manhumirim-


MG, até o início da década de 1960. (...). Segundo Alípio, o Mape chegou a uma
estagnação, no início da década de 1960, porque os protestantes não topavam mais
os debates, as pessoas já tinham adquirido os conhecimentos que seriam necessários
para aquele momento e estariam preocupadas com o futuro, pois, visitando alguns
lugares, não havia mais disposição para debates e, ‘como não sabíamos bem o que
fazer, o que dizer, ficávamos esperando os novos planos do Pe. Geraldo’ (Costa,
2009: 18). Essa ‘crise do Mape’, no plano local, estava imersa no contexto de
transformações do catolicismo nas décadas de 1950 e 1960. O Mape era um
movimento pré-vaticano II, e os propósitos do Concílio Vaticano II – de formação
de leigos e comunidades católicas – corroboraram para a emergência do Mobon em
detrimento do Mape” (p.53-54).

A decisão de Padre Geraldo foi, “a despeito de outros mais estudados, mas muito
ocupados com estudos ou pastoral” (CARDOSO, 2006, p.28), indicar para a realização do
curso o jovem Alípio Jacinto, à época seu braço direito entre os “pioneiros do evangelho”. A
partir daí, como se conta (ARAÚJO, 1999; CARDOSO, 2006; COSTA, 2009; GOMES,
ANDRADE, 2011; OLIVEIRA, F. R. C., 2012), houve uma mudança de curso na trajetória
do serviço de evangelização organizado pelos missionários sacramentinos de Nossa Senhora.
Assim, em 1966, após ter se preparado por sete meses em Divino/MG, o missionário
embarcou para o Chile. Por lá, de março a outubro, participou do curso promovido pela
Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM) que tratava basicamente da catequese92.
Para a realização do trabalho final do curso, Alípio solicitou a João Resende que enviasse o
material que usavam para desenvolver o curso do Mape. Todavia, ele “não conseguiu
aproveitar. Porque, ao comparar a história da catequese com a experiência do Mape, Alípio
percebeu alguns problemas no conteúdo e na metodologia dos trabalhos do Mape”
(CARDOSO, 2006, p.28). Ao final do curso, entretanto, ele conseguiu montar um plano de
trabalho para a evangelização. Como escreveu ainda do Chile:

91
Abordamos o Mape no capítulo 1. Neste capítulo, o movimento será mencionado ora ou outra, para evidenciar
rupturas e continuidades com o Mobon.
92
Segundo o sentido dicionarizado, catequese é a explicação oral, metódica, dos mistérios da fé e das coisas
religiosas em geral.
71

“Em Caratinga, MG, Brasil, está em experiência um movimento de catequese para


adultos, que já tem apresentado alguns resultados positivos. Trata-se de formar
evangelizadores leigos, cristãos líderes, capacitados para dirigir pequenas
comunidades. Partindo das experiências passadas, vejo a possibilidade de levar
avante essa obra dando início a uma verdadeira catequese de adultos com base na
apresentação do kerigma93. Para tanto partiria dos seguintes itens: 1º - formação de
uma equipe de trabalho constituída por elementos do clero secular, religioso e
leigos; 2º - O objetivo principal seria a formação de líderes cristãos capacitados para
dedicar-se a catequese de adultos, no próprio meio em que vivem; 3º - Os meios
para atingir esse objetivo seriam: a) realizar cursos nas paróquias e capelas, onde
encontramos as melhores possibilidades, promovendo nesse primeiro encontro uma
vivência comunitária, um contato pessoal com a Palavra de Deus escrita e
recrutamento de líderes, b) promover cursos de especialização para os líderes; 4º -
Estimular o ensino catequético renovado nas paróquias, colégios e grupos escolares;
5º - A organização do ensino religioso na diocese será iniciada no momento
oportuno. Santigo do Chile, 22 de outubro de 1966. Alípio Jacintho da Costa” (in:
CARDOSO, 2006, p.28-29).

Ao retornar ao Brasil, Alípio, “com a cabeça completamente zuada”94 e com o


programa pronto, sentiu que “daquele jeito não tava bão. Não podia ser. E que o ponto de
partida seria ligar a nossa vida pessoal”95 à fé cristã. Ao mesmo tempo, o seminarista não
poderia descartar tudo aquilo que aprendeu com padre Geraldo Silva, para não gerar um
conflito dentro da congregação. Assim, “as mudanças que iria promover não poderiam ser
consolidadas com críticas direcionadas ao Mape” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.65). Como
explicou Oliveira, F. R. C. (2012, p.66), baseado em Bourdieu e Saint-Martin (2009), é
próprio do campo religioso “fazer grandes investimentos nos agentes católicos com o objetivo
de trabalharem para manter uma representação de unidade”. O processo de mudança foi se
dando gradativamente, mas, aproveitando o máximo de práticas aprendidas durante o “tempo”
do Mape.

“Alterar hábitos e costumes arraigados, considerados ‘uma verdade’, era um


processo difícil e, nesse caso, ainda mais complicado por partir de um missionário
subordinado a um Padre que havia lhe viabilizado a oportunidade de estudar no
Chile. Essa dívida de favores e cooperação são relevantes, pois foi a Instituição
representada pelo pároco que lhe permitiu uma carreira religiosa” (OLIVEIRA, F. R.
C., 2012, p.66).

93
Kerigma é uma palavra de origem grega: κήρυγμα, kérygma. Trata-se de um termo usado no Novo
Testamento com o significado de mensagem, pregação, anúncio ou proclamação. Refere-se ao ato no qual Jesus
se anunciou como o Messias, isto é, aquele que traria as boas novas, o Evangelho, “aos pobres, para proclamar a
libertação dos cativos, recobrar a vista aos cegos, pôr em liberdade os oprimidos, proclamar um ano de graça do
Senhor” (Is. 61, 1). Essa afirmação é conhecida como kerigma e é a base da pregação de Cristo aos homens
(KERIGMA, s.d).
94
Entrevista, 08/02/2018.
95
Entrevista, 08/02/2018.
72

Como relatou João Resende96, a transição de um método para o outro, isto é do


sistema antigo (Mape) para o sistema novo (Mobon), não foi uma tarefa fácil e sem conflitos.
Segundo ele, padre Geraldo Silva por muito tempo não viu no método do Mobon um trabalho
que ensinasse alguma coisa aos fiéis. Como também escreveu Alípio, “Se eu chegasse em
casa e dissesse ao Pe. Geraldo que era preciso fazer uma mudança em nossos trabalhos e
apontasse falhas naquele sistema de ensinar, estaria tudo perdido. Eu não teria liberdade de
fazer trabalho nenhum” (COSTA, 2009, p.22).

“(...). Nessa perspectiva, Alípio buscava formas de conseguir articular práticas


aprendidas no Mape com o que tinham incorporado do Concílio Vaticano II, para
avaliar97 tensões com o Padre Geraldo: ‘a saída seria apresentar a mensagem da
Igreja dentro do espírito do Concílio Vaticano II. A outra questão era aproveitar tudo
de bom que o Mape nos trouxe. (...)’ (Costa, 2009: 22). Essas adaptações eram
estratégias na procura de inserir grandes mudanças, sem grandes rupturas. As
divergências entre propósitos católicos eram enormes; não obstante, havia
admiração de Alípio ao Padre Geraldo, pessoa com quem muito aprendeu a se
relacionar com os leigos e a utilizar uma linguagem popular” (OLIVEIRA, F. R. C.,
2012, p.65).

Desta maneira, como analisa Oliveira, F. R. C. (2012), “algumas práticas do Mape


foram fundamentais para a consolidação do Mobon” (p.53). Com tudo isso, quero dizer que o
Mobon não parte do zero. Os mediadores do Boa Nova não fizeram desaparecer a militância
do Mape, mas a transformaram (COMERFORD, 2001; OLIVEIRA, F. R. C., 2012). Em
outras palavras:

“(...). Os grupos que se reuniam semanalmente para reflexão bíblica, já no âmbito do


MAPE, passaram a ser qualificados como ‘grupos de reflexão’. (...). Aparentemente,
nas novas circunstâncias, os Pioneiros tenderiam a perder seu caráter militante, de
luta contra os inimigos, e passariam a voltar-se mais para a estruturação das
comunidades em si. (...) a militância da organização não desapareceu, mas
transformou-se” (COMERFORD, 2001, p.252).

Dos elementos que o Mape “deixou de bom” foram aproveitados pelos missionários
Alípio e João Resende para o desenvolvimento do Mobon98:

 A consideração do modo de vida dos camponeses, sobretudo, pequenos


sitiantes e meeiros (que trabalhavam para fazendeiros médios ou “grandes”
para os parâmetros locais), que plantavam café e lavouras brancas;

96
Entrevista, 06/01/2018.
97
Na tese do autor está escrito “avaliar”, mas acredito que seja algum erro de digitação. Penso que, no contexto
do argumento, o autor quisesse dizer “aliviar”.
98
A lista foi elaborada a partir da compilação de informações extraídas de Comerford (2001), Oliveira, F. R. C.
(2012) e de Costa (2009).
73

 A estruturação de comunidades em torno das capelas (casa que se pretende “de


todos”);
 A inserção da leitura bíblica (palavra escrita) no seio do povo e o ensino da
exegese bíblica;
 O incentivo do anúncio da palavra de Deus por leigos;
 O incentivo à “andança” missionária dos leigos por diversas localidades;
 O alcance intermunicipal e interparoquial do movimento;
 O ensino aos leigos do exercício da paciência (de ouvir e deixar o nervosismo e
o cansaço para o adversário);
 A formação dos leigos por meio de cursos (“aulas bíblicas”);
 A publicação de folhetos/roteiros em linguagem acessível;
 A utilização e linguagem mais simples “ao alcance de todos”;
 A preocupação com o desenvolvimento de um trabalho que não seja somente
religioso, mas que preveja ações em matéria de promoção social.

Todavia, como Alípio percebeu no Chile, em contato com as ideias advindas da


Teologia da Libertação durante o curso – sobretudo, as ideias comunitaristas –, o importante
naquele “novo tempo” era a comunidade (COSTA, 2009, p.23) e a conversão99. O foco não
deveria mais ser o combate aos protestantes e a defesa da doutrina positiva da Igreja Católica,
mas deveria se pautar na formação de lideranças e na criação, animação e manutenção de
comunidades de base (OLIVEIRA, F. R. C., 2012). Comunidades de base entendidas como
“pequenas comunidades religiosas, em torno da reflexão da Palavra de Deus” (ARAÚJO,
1999, p. 20).
A conversão sendo entendida como uma “mudança acentuada na maneira pessoal e
coletiva de se viver a experiência da própria religião (...) que implica agora a centralidade da
conscientização, um novo compromisso ético e político e a ênfase em participação em lutas
populares”, isto é, um refiliamento em “uma mesma tradição (...) até então mantida
formalmente” (TEIXEIRA, F., 2009a, p.26). Em termos ‘nativos’, trata-se de conectar “fé e
vida”, “encarnar” a mensagem do Evangelho dando “testemunho de vida” nas comunidades.
Sendo que naquela época, como relatou Alípio, “ainda não estava claro para nós a questão
social” (COSTA, 2009, p.23).

99
Alípio, entrevista, 08/02/2018.
74

Como narra Alípio, é “através da conversão [que] descobrimos que o grande


argumento é TESTEMUNHAR A NOSSA FÉ. Buscar vida nova de conversão diária dentro
de nossas famílias e na comunidade. Nossa grande força estava em nossa participação
comunitária” (COSTA, 2009, p.23). Dessa forma, mesmo com certa resistência por parte de
padre Geraldo Silva e de outros irmãos de congregação que protestavam contra a liberação
total do missionário para as atividades comunitárias (COSTA, 2009, p.25), Alípio – com o
apoio de João Resende e de outros “que ajudaram a resolver as dificuldades que surgiram”
(CARDOSO, 2006, p.29) – deu início a um “novo jeito” de fazer evangelização na Diocese de
Caratinga.
De outra maneira, a “turma do Boa Nova” que ia se formando desde a primeira
experiência do novo curso, em janeiro de 1967, em Muniz Freire e Piaçu100, fez o Mobon
endossando “algumas características do Mape, como a ênfase na formação de lideranças,
numa linguagem popular, por meio de cursos católicos (...) apesar deste último ter propósitos
diferentes – focado na formação de lideranças e comunidades (OLIVEIRA, F. R. C., 2012,
p.47). Como disse João Resende101, empreende-se uma escalada em direção a um sistema de
ensino ‘novo’. Assim sendo, em síntese:

“O Movimento da Boa Nova é fruto de tensão entre diferentes propósitos de


evangelização: um com a finalidade de formar lideranças para combater protestantes
(Mape), e o outro com o objetivo de formar lideranças para serem atuantes em suas
comunidades católicas (Mobon). O novo movimento não apresentava apenas
rupturas: a realização de cursos para os católicos leigos com estímulos aos debates –
numa linguagem próxima ao universo simbólico dos trabalhadores rurais – mostra
que havia importantes continuidades na lógica do fazer-se dos movimentos”
(OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.230).

Dito isso, é importante frisar que seus mediadores, prezando pela unidade, adaptaram
as contribuições do Mape aos pressupostos do Vaticano II. Assim, os missionários
desenvolveram um modelo pastoral fundamentado em três principais características: a
centralidade das Sagradas Escrituras, a valorização do leigo e a descentralização da estrutura
paroquial em benefício de pequenas comunidades (ARAÚJO, 1999). Deste modo, “o Boa
Nova é: um movimento que visa despertar os leigos para a sua missão na Igreja,

100
Como historiou padre Léssio Cardoso, “A primeira experiência do novo curso aconteceu em Muniz Freire e
Piaçu, de 7 a 19 de janeiro 1967. (...). Depois foi Caputira, a convite do recém-ordenado padre Levy Paula
Figueira, de 1º a 3 de fevereiro, e Alto Caparaó, de 4 a 10. E assim, naquele mesmo ano, houve trabalhos em
outros lugares: Chalé, Conceição de Ipanema, Manhumirim, Caiana, Santana do Manhuaçu, Novo Horizonte,
Inhapim, São João do Oriente, Entre Folhas, Vargem Alegre, São Cândido etc. De 25 de fevereiro a 4 de março
de 1967, foi dado um curso “Boa Nova” para os líderes do Mape, gente já treinada pelo Mape durante cinco
anos” (CARDOSO, 2006, p.29).
101
Entrevista, 06/01/2018.
75

organizando-os em pequenas comunidades religiosas, em torno da reflexão da Palavra de


Deus” (idem, p.19-20).

2.2.1. Apoio de párocos e a ‘expansão’ do Mobon

Como já mencionado, marca a sociogênese e a lógica de reprodução do Mobon o seu


alcance intermunicipal e interparoquial. O movimento se faz no movimento, e seu alcance
extrapola o previamente planejado. Todavia, como movimento surgido no bojo da estrutura
hierárquica católica, para se “espalhar”, ‘apenas’ com o apoio do Clero. Como explicitado
acima, esse foi um dos grandes trunfos dos missionários sacramentinos de Nossa Senhora,
que, para o desenvolvimento e difusão do Boa Nova, contaram “com o apoio do bispo da
Diocese, Dom Corrêa” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.68). Mas, esse apoio não se deu só “de
cima”.
Ao mesmo tempo em que encontraram resistência de alguns párocos102, os
missionários do Mobon contaram também com o apoio de alguns outros sacerdotes, como o já
mencionado padre Léssio Guedes e o padre Gwenael Kerandel103. O primeiro é o “principal
articulador do Mobon” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p. 73), sendo responsável por levar o
movimento para alguns municípios da microrregião do Vale do Rio Doce e região Leste de
Minas Gerais, na Diocese de Caratinga. O segundo é um padre francês que, ‘tocado’ pela
mensagem pós-conciliar e querendo se fazer representar por mais espaços de suas paróquias
(OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.89), procurou os missionários sacramentinos e replicou a
experiência de formação de lideranças e comunidades de base na zona rural de
Eugenópolis/MG e Vieiras/MG, na Diocese de Leopoldina104. Tanto um quanto outro

102
Diversos são os relatos trazidos por Alípio e João Resende sobre a resistência de certos párocos em relação ao
trabalho de evangelização do Mobon em seus primórdios. Como demonstra Gomes e Andrade (2011, p. 56-57
apud OLIVEIRA, F. R. C., 2012), “havia resistências e conflitos de alguns párocos em relação ao Mobon: ‘Em
geral, quando há esses problemas, como num caso lá em Conceição do Castelo, em que o padre dizia que o bispo
me chamava de ‘capivara comendo na roça dele’ então quando há esses choques assim a gente tem uma tática
que é a seguinte: não se desgastar muito com as autoridades religiosas, mas continuar entrando pela porta da
cozinha, porque a porta da cozinha é livre e ninguém pode impedir. Então é uma tática de não se desgastar muito
com as autoridades religiosas, porque eles são a força perante o povo; se entrar em desgaste com ela então o
próprio povo se ressente desses problemas. Ele não quer, então não tem problema. Aí é como a abóbora: entra
por baixo da cerca e se sai muito melhor... ’ (João Resende; Entrevista, 2010)” (p.105). Para acesso a outros
casos de conflito dessa espécie, cf. Costa (2009).
103
Deter-me-ei na descrição do apoio destes dois padres, mas, é importante mencionar que outros padres foram
fundamentais para a expansão do Mobon. Além dos padres Léssio e Gwenael, Alípio cita como “heróis do Boa
Nova”, os padres Jésus Resende, José Herval, Sebastião Batista, José Lopes, José de Paula (cf. COSTA, 2009,
p.62-63).
104
Experiência devidamente sistematizada em uma monografia, escrita em espanhol pelo padre e Luis Mario del
Canto, intitulada “Evangelizacion y Promocion em Comunidades Eclesiales de Base (médio rural – Brasil)”
(KERANDEL, DEL CANTO, 1977).
76

compartilhavam o objetivo de que era necessário formar lideranças católicas, “motivação


diretamente relacionada ao tamanho da paróquia, que era muito grande e inviável para um
único padre” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.89).
Padre Léssio – conhecido de Alípio desde muito jovens, por serem conterrâneos do
município de Inhapim/MG –, ainda seminarista, “acompanhou os trabalhos do Mape. Depois
de ordenado pároco, suas paróquias eram os principais espaços de atuação do Mobon,
destacando-se o município de Miraflores-MG105, onde trabalhou de 1970 a 1986”
(OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.73). Como analisa Oliveira, F. R. C. (2012):

“A relação desse Padre com os missionários foi fundamental para a consolidação do


Movimento: ‘O apoio do Pe. Léssio foi um grande impulso para nosso trabalho. Os
primeiros cursos começaram em VARGEM GRANDE (Presidente Soares-MG). O
Pe. Léssio levou muita gente lá pra fazer cursos e ele também participava junto com
seus paroquianos. Em Sobrália e São João do Oriente, onde ele era vigário, foram
plantadas as primeiras sementes do nosso trabalho nesta região. Padre Léssio foi
transferido para Miraflores e Iapu. Ele se dedicou totalmente ao trabalho. Em
Miraflores improvisou-se uma casa de cursos. Tudo difícil, mas era muito grande o
entusiasmo’. Padre Léssio era quem fornecia o maior número de pessoas para cursos
e era o responsável para que o Mobon se consolidasse na região leste de Minas
Gerais. Ele convocava os leigos e também participava dos cursos. Era mais que um
simples colaborador; era alguém que ‘se dedicou totalmente ao trabalho’. O
empenho dele na formação das comunidades e lideranças ganhou reconhecimento na
Diocese de Caratinga, com os trabalhos em São João do Oriente e Iapu” (p.75).

Padre Léssio além de ser um articulador que fomentou a circulação “de muita gente...
pra fazer cursos”, bem como a itinerância dos cursos do Mobon, com a evidente expansão dos
cursos para o Vale do Rio Doce e a região Leste de Minas da Diocese de Caratinga, foi
também um importante ator no processo de escolha pela construção de uma “casa central”106
do Movimento, construída em mutirão e inaugurada em 1979107, em Dom Cavati, às margens
da BR 116, que liga o estado do Rio de Janeiro à Bahia. Como escreveu Alípio:

“A casa do MOBON foi construída com a ajuda de muita gente. Mas essa ajuda não
viria, se não fosse o Pe. Léssio com seu desapego e popularidade. Em certos casos
ele impunha, obrigava certas pessoas, que às vezes não tinham condições. (...).
Falava no altar o nome da pessoa e a ajuda saia com certeza” (COSTA, 2009, p.42).

Padre Gwenael, que já iniciara um trabalho de “implementar um ‘maior compromisso


com o povo’ e ‘conhecer a realidade’” (COMERFORD, 2001, p.260) por meio de visitas
sistemáticas à área rural da Paroquia São Sebastião da Mata, em Eugenópolis, durante dois
anos (1967 e 1968), interessou-se pela maneira como os missionários do Mobon trabalhavam

105
Isto é, Tarumirim/MG.
106
João Resende, entrevista, 06/01/2018.
107
Cujos detalhes sobre sua lógica de funcionamento serão melhor abordados no capítulo 3.
77

junto a “camponeses humildes” os problemas da evangelização, e convidou, em 1969, Alípio


e “a equipe do curso da Boa Nova” para conhecerem e ministrarem “cursos de base” nas
paróquias de Eugenópolis e Vieiras108. Deste modo, Gwenael atuou como “ponte” entre dois
processos paralelos de formação de comunidades de base e sindicatos de trabalhadores
rurais109, que aconteciam em regiões vizinhas (COMERFORD, 2001).

“Em fins da década de sessenta, um processo paralelo ao Movimento dos Pioneiros


do Evangelho/Movimento da Boa Nova (MOBON) passa a ocorrer em uma outra
região vizinha, a partir da iniciativa de assuncionistas franceses sediados em um
seminário no município de Pinhalzinho, pertencente à diocese de Leopoldina mas
situado na intersecção de três dioceses [Diocese de Leopoldina, Diocese de
Caratinga e Diocese de Campos/RJ]. Em um segundo momento, o contato do padre
que coordenou essa iniciativa [Padre Gwenael] com o MOBON fez com que esses
processos até então paralelos se encontrassem. Foi através de encontros como esse
que se deu a progressiva expansão nessa região da dinâmica associada ao MOBON e
às CEBs e que se formou uma rede de lideranças católicas de cunho regional,
suporte fundamental da criação de todo um conjunto de STRs” (COMERFORD,
2001, p.259).

Assim, como analisa Oliveira, F. R. C. (2012), “A atuação do Padre Gwenael foi


fundamental tanto para se instituir o Mobon localmente [Eugenópolis e região], bem como
para a formação dos sindicatos” (p.130), uma vez que o padre atuou sistematicamente para a
formação de lideranças e para a constituição de comunidades110, e, ao fazê-lo, fomentou a
“ação comunitária construtiva” e se posicionou ao lado dos interesses dos trabalhadores
rurais, o que “inibia reações por parte dos patrões, que também são católicos e que, portanto,
respeitam a autoridade do pároco” (idem). Como detalha Comerford (2001):

“A partir da primeira metade dos anos setenta, nessa paróquia, passa a tomar forma
mais concreta a preocupação com a promoção humana, conforme as comunidades
‘vão descobrindo o plano de Deus para os homens’, nas palavras do padre Gwenael.
‘As comunidades reconhecem que muitos males encontram soluções nelas mesmas
e, cada vez mais conscientes de sua responsabilidade comunitária, vão
transformando o fatalismo e a passividade em que viviam em uma ação comunitária
construtiva, confiando na força que existe na união de todos’” (p.273).

A descrição acima se relaciona a Eugenópolis, mas se assemelha ao que se viu em


outras localidades da Zona da Mata (e Leste de Minas), com destaque para a formação de
108
Para acesso a uma análise desse processo, cf. Comerford (2001, capítulo 3, p.259-279). Vale dizer que a
maneira como procederam o padre francês e seus auxiliares lembra em muito a maneira de fazer orientada por
Paulo Freire, no “Pedagogia do Oprimido” (2017, p.143-166), para investigar o tema gerador ou a temática
significativa antes de iniciar o trabalho de alfabetização entre adultos. Isto é, em linhas gerais, primeiro se
investiga, conhece-se a realidade com todas as suas contradições, para, só depois, realizar uma intervenção.
109
Processo sobre o qual falarei mais adiante.
110
Para se ter ideia do trabalho desenvolvido pelo padre, em 1967, em Eugenópolis, se contava a Igreja Matriz e
mais 8 capelas rurais (KERANDEL, DEL CANTO, 1977, p.3), já em 1976, neste mesmo “setor”, considerando
as comunidades da nova paróquia de Senhor Bom Jesus dos Aflitos, de Vieiras, existiam mais de 40
comunidades de base (idem, p.60).
78

parte importante do núcleo dirigente do Polo Sindical, sediado em Muriaé (COMEFORD,


2001).
Por fim, é importante frisar que a dinamização intermunicipal, interparoquial e
interdiocesana promovida pelos mediadores do Mobon, com o apoio dos referidos sacerdotes,
foi estratégia utilizada para o controle do “rebanho” o que levou à criação e manutenção das
comunidades de base, mas não só. A circulação de pessoas para além de seus córregos
garantiu o intercâmbio entre as comunidades, a expansão da ‘rede social total’ do Boa Nova,
assim como a formação de novos mediadores de cursos (lideranças comunitárias,
multiplicadores) e a expansão dos saberes fazeres do Mobon, de seu vocabulário e dos valores
associados. A saída de lideranças e sacerdotes para os encontros interdiocesanos de CEBs e
para ministrarem cursos de base em outras paróquias, além da formação de “grupos de
missão” compostos de líderes de distintas paróquias, foi essencial para a expansão do Mobon
e para o desenvolvimento de um cenário propício ao aparecimento de ‘resultados inesperados’
a partir do final da década de 1970.

2.3. O Movimento da Boa Nova e algumas alterações nas realidades locais

“É a Palavra de Deus que forma comunidade”

Padre Gwenael Kerandel111

Como se lembra Sr. Guanair112, homeopata e liderança comunitária “das antigas” de


Manhumirim/MG, no final da década de 1960 e início de 1970 tudo iniciava a partir da
escolha do nome da comunidade (geralmente o nome de algum santo que seria o padroeiro da
comunidade), assim, eles rezavam uma novena para o santo ou santa e começavam dali a
construir em mutirão o barraco de bambu no local onde seria construída a capela em
definitivo. Segundo ele, era mais difícil constituir uma nova comunidade onde já havia uma
capela mais antiga. Disse que era difícil convencer os padres desses lugares, além do fato de
que nessas comunidades mais antigas os fazendeiros eram “donos” das capelas, pois eles
doavam o terreno e enterravam seus familiares ao lado do recinto. Esta memória se conecta a
síntese sobre o modus operandi da constituição de CEBs produzida por Oliveira, F. R. C.
(2012). Como escreveu:

111
In: Kerandel; Del Canto (1977, p.72).
112
Gravação, 05/01/2018.
79

“Os agentes que participavam da missa, nas localidades onde se objetiva formar uma
comunidade, eram estimulados a escolher um local para a construção da capela –
esta seria uma referência para a comunidade que estava se formando. Normalmente,
o espaço era doado por algum dos membros, que possuía terras e estava disposto a
participar da comunidade. As capelas se tornaram um ponto de referência; era nela
que os fiéis se encontravam para celebrações religiosas, faziam festas e reuniões”
(p.76).

Nem todo córrego possuía capelas. Desde o Mape, isso nunca limitou a ação dos
missionários sacramentinos e daqueles católicos interessados em (e com condições de) acessar
o serviço de evangelização. As ações de evangelização aconteciam debaixo de árvore, dentro
de curral, em casas de famílias de meeiros e pequenos sitiantes, praças, etc. É importante
mencionar que, antes da construção ou revitalização das capelas existentes, os católicos das
áreas rurais se “animavam” com outras ações estimuladas pelos “padres-camponeses”, isto é,
com os “cursinhos de base” e seus desdobramentos imediatos, os “grupos de reflexão” e os
“plenários dos grupos de reflexão”. Muitas vezes, as reflexões em tais espaços é que
“gestavam” a necessidade ‘coletiva’ de se construir uma capela ou outro tipo de prédio, em
que as pessoas das comunidades pudessem refletir, se formar e formar outras pessoas.
Os cursos promovidos pelo movimento passaram a promover uma renovação no modo
como se vivenciava a religiosidade nos córregos. Com os cursos promovidos pelo Mobon
instaura-se:

“(...) uma forma de celebração centrada, por um lado, naquilo que as rezas evitavam:
a conversa, forma de manejo da palavra que, ao contrário da oração e do canto, é
mais ‘arriscada’ em um contexto transpassado por tensões subjacentes; e por outro,
naquilo que as rezas enfatizavam, o canto e a festa. O padre incentiva a fala pública
dos sitiantes nas celebrações. Ao mesmo tempo, essa nova maneira de celebrar
reaproveita inúmeros elementos das rezas tradicionais, em especial a música e a
dimensão festiva, de comensalidade, acrescentando algumas novas modalidades,
como as dramatizações” (COMERFORD, 2001, p.284).

Durante os cursos e celebrações nos córregos, além da ênfase na conversa e o fato dos
padres passarem a aproveitar as maneiras “rústicas” de devoção – como o canto, a festa, a
comensalidade – para entusiasmar os fiéis, como já dito, outra “grande novidade foi a leitura
da Bíblia” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.130). Pode-se dizer, apropriando-se da análise de
Barbosa (2005) para os propósitos desta pesquisa, que o envolvimento de alguns leigos e
leigas no serviço de evangelização promovido pelo Mobon incidiu sobre as identidades
camponesas – para o autor, derivadas de uma identidade amerindiafricana – dos moradores
dos córregos e pequenas cidades da Zona da Mata mineira,

“(...) reconfigurando a residual estrutura de sentimentos, quase que forçando as


pessoas a reinventarem uma raiz cultural que sempre esteve associada a valores, tais
80

como: a diversificação no plantio, o trabalho coletivo, a visita a outros grupos


sociais, o gosto das ervas do mato, a fartura de alimentos, a liberdade da roça, a
facilidade do riso e da narração de histórias” (p.58).

Deste modo, a formação de “comunidades” afetou de maneira significativa a


sociabilidade dos córregos da Zona da Mata e demais regiões que com essa mesorregião
possuíam algum laço religioso. Não podemos esquecer que os sacerdotes são nominadores
considerados pelos católicos comuns dos córregos. São eles que possuem o poder de nomear e
renomear o que é sagrado, prescrever orientações para a ação eclesial e pastoral, bem como
autorizar quem pode e quem não pode falar em nome da Igreja Católica. Deste modo, em um
ambiente marcado por uma sociabilidade agonística113 entre famílias, fundamentada em uma
forte política de reputação em que o que se busca é ser uma “família que ‘conta’”
(COMERFORD, 2001)114, o objetivo central dos sacerdotes de formarem comunidades nas
zonas rurais – com seus processos de “escolhas” (o local para a construção da capela, o nome
do padroeiro, por exemplo) – dinamizou as relações ‘comunitárias’, gerando “entusiasmo”,
conflitos, cisões e reagrupamentos de pessoas em ‘novas’ “famílias”. Como analisou
Comeford (2001):

“(...) se essa onda de entusiasmo gera uma ação coletiva, pode gerar também tensões
e mesmo conflitos. O foco mais comum de tensões é o terreno: a capela será
construída no terreno de quem? Isso pode levar a questões, litígios, reuniões,
intervenção do padre para promover o entendimento, insatisfações quanto ao local
(por estar fora do centro da comunidade, longe do córrego, e por outros motivos).
Outro foco possível de tensão é a escolha do padroeiro. Essa escolha não parece de
todo independente da escolha do terreno: o santo pode ser escolhido em homenagem
ao doador do terreno. O padre deve benzer a pedra fundamental, consagrando o local
escolhido” (COMERFORD, 2001, p.258).

113
Por sociabilidade agonística pode-se entender as relações conflituosas que fazem as e são feitas pelas famílias
nos córregos. Trata-se do conflito iminente. Em outras palavras, em um ambiente onde a política de reputação –
baseada em princípios morais ligados à noção em particular de união – classifica as famílias, e, por
consequência, as pessoas que importam e as que não, refere-se “a conflitividade permanente, que é de certo
modo a própria matéria do cotidiano dessas localidades. (...). [São os] (...) estados de notável tensão interpessoal
e inter- ou intrafamiliar, e a atos ou atitudes que potencializam tensões e provocam conflagrações de diferentes
intensidades ao declarar publicamente as tensões (...). Tais conflitos públicos acabam se colocando como marcos
nas relações entre famílias e dentro delas, portanto na própria definição dos limites entre as famílias e nas
atribuições de boa ou má reputação (fama) a cada uma das famílias, além de se tornarem matéria de reflexão
sobre as relações interpessoais e intra ou interfamiliares, sobre os critérios de avaliação e hierarquização das
pessoas e famílias, sobre os campos em que as famílias podem se antagonizar ou competir, e sobre a falibilidade
da justiça dos homens em comparação com a de Deus, ganhando uma relevância que não guarda relação
imediata ou necessária com a sua importância ‘quantitativa’” (COMERFORD, 2003, p.67). Para um melhor
entendimento do conceito, sugere-se a leitura de Comerford (2003, p.25-137).
114
Como explica Comerford (2001), “A política de reputações onde as famílias e localidades ganham sua razão
de ser se faz acionando a todo momento marcos ‘externos’ (dos quais a política é certamente um dos mais
evidentes na região) em função de suas tensões ‘internas’ (e vice-versa). Por isso há a possibilidade socialmente
aceita de caracterização alternativa das contendas [nos córregos] (como políticas, familiares, e, como veremos,
religiosas), bem como as lutas para classificá-las de um ou outro modo (em grande medida através de narrativas
públicas)” (p.226).
81

O que aconteceu foi um processo de refamiliarização (COMERFORD, 2001), isto é, a


instauração de uma “familiarização” de segunda ordem em que córregos ‘se transformam’ em
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)115.

“Mas não se trata de afirmar a substituição de uma coisa pela outra, a transformação
de córregos em comunidades, o que seria substancializá-los. O que se está
apontando aqui é a convivência e acomodação de diferentes princípios de
socialização e organização, ligando as mesmas pessoas de modos distintos. Os
camponeses da região podem vincular-se convivendo ‘como córregos’, ou seja,
através da lógica do fazer-se das famílias, ou organizando sua convivência ‘como
comunidades’, através da lógica de unir-se à hierarquia eclesial” (COMERFORD,
2001, p.296).

Isto é, em um ambiente em que as famílias – geralmente aquelas detentoras de terras –


‘já’ faziam de tudo para “contarem” nos córregos, passam a ‘disputar’ com as demais famílias
que importam, e, agora, também com os camponeses que trabalhavam em suas terras, a
governança relativa autorizada aos leigos pelos sacerdotes nos córregos. O fato de “gostar de
religião” passa a ser acionado como mais um capital que confere prestígio às famílias. As
capelas, que antes eram utilizadas apenas para as missas mensais, configuram-se como
ambientes de referência, tanto como espaços de aprendizado em decorrência dos “cursos de
base” e “plenários dos grupos de reflexão”, como também espaços de construção e
representação (no jogo das reputações) de pessoas (e famílias) que “contam”.
Assim, pode-se dizer que “A organização comunitária que se quer totalidade é
também, em outro nível de enquadramento, uma parcialidade” (COMERFORD, 2001, p.226).
Não que antes as capelas não funcionassem como ‘palco’ para as representações de quem
“importava”, mas é que, com a criação das comunidades, tais ambientes se tornaram mais um

115
Não é meu objetivo aprofundar a discussão sobre as definições, mas, em linhas gerais, os córregos “mais do
que unidades fixas inseridas em uma hierarquia, são resultados, mais ou menos temporários, das próprias
modalidades tensas de convivência e de conflito, que estão constantemente sujeitos a fissões e segmentações,
cuja escala é controlada, de certo modo, pela própria conflitividade, pela própria configuração local das tensões,
pelas hierarquias da política de reputação e pelas simetrias e assimetrias da poética do respeito, estabelecidas
‘performaticamente’ (sem esquecer que a qualidade da performance não está desvinculada da assim chamada
‘base material’ pressuposto, resultado e matéria prima das operações ‘semióticas’ de performance social)”
(COMERFORD, 2001, p.296). Para um debate completo sobre a transformação de um enquadramento social
(córregos) em outro (comunidade), conferir Comerford (2001, capítulo 3). O que é importante mencionar, é que
“Nem todos, porém, se integraram às comunidades, como já vimos: alguns não se entusiasmam com os
incentivos dos padres-camponeses nem com a liderança dos camponeses-padres, nem com a música, nem com as
leituras, nem com os estudos e perguntas, nem com os cursos. Em maior ou menor grau, córrego e comunidade
não coincidem, não se situam no (ou não definem o) mesmo plano de relações, apesar da pretensão evidente da
comunidade de abranger a totalidade do córrego (revelada pela própria ambiguidade do uso do termo
comunidade). O córrego exerce um controle sobre a comunidade, do mesmo modo que controla as famílias que
o compõem e os estranhos que entram nele em função de seus laços com as famílias, mas talvez com intensidade
ainda maior, por se tratar de uma entidade ambígua” (COMERFORD, 2001, p.303).
82

importante espaço para a formação de lideranças e ‘atuação’ das famílias que “contam”, mas
também “daqueles que não sabiam falar”, e, por conseguinte, não “contavam”.

“Segundo Araújo, as capelas eram usadas apenas para missas mensais, e com os
cursinhos ‘essas capelas começaram a se estruturar, constituindo-se a partir daí em
autênticas comunidades religiosas’. Ou seja, aos poucos a presença dos ‘padres-
camponeses’ e dos ‘camponeses-padres’ vai alterando a própria temporalidade
dessas localidades, ampliando o ‘tempo’ da religião vinculada seja diretamente à
paróquia, seja à diocese por via do Movimento (em acréscimo ou substituindo
parcialmente o tempo das rezas e novenas tradicionais) e também sua espacialidade,
ao erigir a primeira obra, fundamental, da ‘comunidade’ que vai se gestando no seio
das famílias dos córregos: a capela, que quando não é construída do zero, é
reformada e conservada. Além disso, vai inserindo nas relações locais a palavra
escrita, que ganha uma importância renovada e mais ‘próxima’, multiplicando os
agentes locais que a ela tem acesso sistemático. Se antes vizinhos e parentes se
reuniam em um terreiro da casa de uma família para rezar e celebrar em torno dos
rezadores, conhecedores da força das fórmulas tradicionais da palavra falada (ver
adiante), agora a ‘comunidade’ se reúne na casa que pretende-se ‘de todos’, em
torno de agentes que dominam não só as orações tradicionais, como também a
exegese do texto bíblico” (COMERFORD, 2001, p.251).

Assim, o “despertar” para o apostolado da Igreja Católica passou a ser dinamizado


distribuindo-se a gestão da Igreja Católica local entre os leigos e promovendo pequenas
comunidades religiosas, em torno da leitura e da reflexão da Bíblia Sagrada (ARAÚJO, 1999;
THEIJE, 2002, p.22). Como nos conta Sô Guanair, ao falar de sua caminhada como líder de
comunidade, que se inicia na década de 1970, em Mutum, fica evidente a ênfase que é dada à
formação de comunidades, à interlocução dos leigos com os sacerdotes-nominadores, aos
“cursos de base” para se sair de uma condição em que “ninguém conhecia nada de bíblia” e,
sobretudo, para a centralidade da “missão”, isto é, sair do conforto do lar e circular pela
comunidade, entre comunidades, entre paróquias, entre dioceses, etc.
Como relatou durante uma roda de conversa:

“(...) quando foi 1972 o ... Cisino, ele a Ilza vieram de Mutum, eles já tinha uma
caminhada muito grande com, com ... o padre... Herval e o padre Batista. Então eles
mudaram pra Lajinha e o padre Agostinho abriu as portas ... ‘oh, vocês vão formar
comunidade’. E formamos um grupo... a gente passou muito aperto porque ninguém
conhecia nada de bíblia. Ai teve as primeiras oficinas de base em todas as
comunidades, teve cursinho que funcionou debaixo de árvore, dentro de curral.
Quem nem escola na zona rural quase que não existia. Então a gente foi assim...
aquele trabalho. (...). A gente ia a pé, de bicicleta... tinha novena que a gente ia rezar
a vez 10, 15 quilômetros de distância a noite... a gente ia pra rezar, né. Então foi
nessa caminhada e quando foi 1975 eu fiz o primeiro cursinho de Semana Santa lá
no Centenário com o Luiz Altino e o Cisino e ai eles me escalaram pra Mutum pra ir
pra Humaitá. (...). Então a gente foi naquela caminhada, né. 116

116
Gravação, 05/01/2018.
83

Sair do conforto de casa para participar dos cursos – que incialmente eram realizados
em até cinco dias – não era (e não é) tarefa das mais fáceis. Como disse Farinhada117,
geralmente quem assumia as CEBs e esses compromissos com cursos era “quem tinha certa
autonomia (...) quem já tinha uma estrutura, para dar conta de viajar, de ficar uma semana na
estrada”. Nas palavras dele, geralmente brancos e pequenos proprietários. Como também
constatou Kerandel e Del Canto (1977), sair de casa para participar dos cursos para líderes era
um problema tanto pela questão do tempo, pois quem trabalha no campo, possui tarefas
diárias que precisam de dedicação quase que exclusiva, quanto pelo fato de se ausentar do
convívio com a família (principalmente para as mulheres). Como escreveram os padres
franceses que assumiram a paróquia de Pinhalzinho:

“A maioria nunca havia frequentado um curso e obstáculos de toda índole


apareciam: afetivos – ‘saudade’ – meninos pequenos... problemas práticos: mulher
só em casa, com medo, esposo sem cozinheira... problemas financeiros, problemas
com o patrão que não deixava sair, etc... Mas tudo isso habitualmente se solucionava
com a ajuda dos vizinhos, dos parentes, dos compadres e comadres e
principalmente, mais tarde, graças ao espírito de corresponsabilidade dos membros
da comunidade” (KERANDEL; DEL CANTO, 1977, p.36, tradução própria).

Vale acrescentar que a circulação desses primeiros “leigos treinados”, geralmente,


meeiros e pequenos sitiantes, era marcada pelo sofrimento e pela dor. Como estavam
desafiando as relações de poder locais ao aprenderem a “falar sua palavra”, marcam a vida e a
memória das lideranças – que Rabelo (2019) convencionou chamar de “primeira geração”118 –
o sofrimento e a dor. Ou seja, ao evangelizar e “fazer a luta”, em um ambiente de contendas,
muitos vivenciaram a dor de apanhar dentro da capela, a dor de ser ameaçado de morte, a dor
de perder amigos e familiares, a dor da fuga que deixa para trás mais que uma casa, mas uma
vida que se reconstrói em outro espaço, com outras relações (RABELO, 2019, p.18).
Dessa forma, leigos e leigas, de acordo com suas possibilidades, começaram a circular
mais de um lugar ao outro. A circulação que havia se iniciado com o Mape se intensifica e os

117
Farinhada tem 43 anos, é educador e artista popular de família camponesa negra da região da Zona da Mata
mineira. Sua experiência com os ‘movimentos’ teve origem com seu protagonismo na Pastoral da Juventude e
nas CEBs, nos anos 1990. Na classificação desenvolvida por Rabelo (2019), ele pode ser considerado uma
liderança da 2ª geração. Atualmente, atua em diversas frentes “de luta”, “levantando a bandeira” do movimento
Negro (através de sua participação no Fórum Mineiro de Entidades Negras - FOMENE), dos povos quilombolas
(Rede de Saberes dos Povos Quilombolas), da Agroecologia (como coordenador geral do Centro de Tecnologia
Alternativas – CTA-ZM e como membro do Polo Agroecológico da Zona da Mata), da espiritualidade negra
(Pastoral Afro-Brasileira e ao fazer diálogos ativos com os povos e movimentos de terreiros), da política
partidária (como assessor do deputado estadual Betão – PT-MG). Além disso, a liderança mantém um diálogo
contínuo com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Espera Feliz e região, com os mestres das manifestações
culturais populares da região, com as cooperativas de agricultores familiares, universidades, etc. Para mais
informações sobre a biografia-memória dessa liderança, vale a leitura de Conte (2018).
118
Esta classificação será abordada adiante, na parte final do capítulo.
84

leigos que tinham “certa autonomia” passaram a se deslocar entre-um-estado-e-outro; entre-


uma-diocese-e-outra; entre-uma-paróquia-e-outra; entre-uma-comunidade-e-outra; entre-uma-
casa-de-curso-e-outra; entre-uma-casa-e-outra-nas-comunidades para participar de diversas
ações de evangelização, tais como os cursos pré-Boa Nova, Boa Nova, de Semana Santa (hoje
chamado de Curso da Campanha da Fraternidade) e de Natal (hoje, Curso do Mês da Bíblia)
nas casas de curso e/ou nas comunidades; das reuniões do grupo de reflexão e dos plenários; e
de outros eventos promovidos pelas paróquias e a Diocese de Caratinga e outras dioceses
parceiras119. Como escreveu Kerandel e Del Canto (1977):

“Este espírito missionário aumentou muito mais a partir de 1971, época em que a
equipe de Evangelização de Caratinga começou a chamar alguns líderes para dar
cursos de base em outras paroquias. Vastos campos e trabalho se abriram para eles
porque muitos párocos se interessaram por iniciar este trabalho de comunidades. No
começo trabalharam juntos com outros líderes mais experientes, logo sós, mas
sempre a missão era organizada pelo sacerdote encarregado da pastoral rural ou pela
equipe de Caratinga. Hoje o normal é que os grupos de missão sejam compostos por
líderes de distintas paróquias. Deste modo, sem contar com os cursos dados na
paróquia (cursos de base, Semana Santa e cursos de Natal) os líderes de Eugenópolis
e Vieiras partciparam na formaçãode mais de 80 comunidades em 10 paróquias da
Diocese. Em 1972 alguns foram chamados a fazer missão fora da paróquia e da
diocese. Em 1976 começaram a sair fora do estado de Minas Gerais, para levar a
Boa Nova do Evangelho até os estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Maranhão,
Piauí, Mato Grosso e território de Rondônia (os 4 últimos estados distam 1500 a
2000 Kms de Eugenópolis)” (p.69-70, tradução própria).

Assim, promoveu-se uma articulação eclesial entre-sacerdotes-e-leigos-nos-cursos,


entre-leigos-e-leigos-nos-cursos, entre-leigos-e-leigos-na-comunidade, entre-leigos-e-
sacerdotes-em-algumas-paróquias, entre-leigos-e-sacerdotes-em-algumas-dioceses, entre-
leigos-e-sacerdotes-em-alguns-estados brasileiros. Processo essencial para a manutenção da
“pertinácia”120 do Movimento da Boa Nova. Em síntese, como escreveu Rabelo (2019):

“Frente à especificidade do Mobon em relação à sua dispersão espacial, apesar dos


cursos terem se concentrado na Casa do Mobon em Dom Cavati a partir de 1979, o
Movimento é caracterizado por sua mobilidade – as “andanças” – anterior a Casa e
mesmo após sua construção, já que os missionários responsáveis são convidados por
diversas paróquias para realizarem os cursos em suas regiões. Além disso, a abertura
da Igreja para os leigos, e a horizontalização de alguns conhecimentos bíblico-
religiosos, gerou um efeito multiplicador, em que lideranças leigas católicas, agora
aptas a ministrarem cursos, se espalhavam não só por comunidades adjacentes às
suas, como viajavam para longe para ministrarem cursos” (RABELO, 2019, p.18-
19).

119
Sobre o deslocamento de leigos e religiosos ligados ao Mobon por entre diversas comunidades, paróquias,
dioceses de Minas e de outros estados brasileiros, vale a leitura das seguintes partes do livro “Mobon: Missão e
fé libertadora” (2011), de Wanda Lúcia Gomes e Durval Ângelo Andrade: “A constituição e a expansão do
MOBON” (p.54-57) e “A articulação das CEBs em Minas Gerais e o MOBON” (p.73-83).
120
Refere-se à persistência de longa duração, social e política, de alguma prática. Cf. Silva, Douglas Mansur da
(2006, p.132 e 145).
85

Toda essas alterações nas realidades locais, sobretudo, as “andanças” de leigos que
possibilitaram um ‘intercâmbio’ de saberes e experiências entre diferentes localidades,
somadas ao apoio de alguns padres-camponeses dispostos a ‘dividir’ a gestão dos negócios
sagrados com os leigos e apoiar “o povo se organizar em sua classe social (agricultores,
operários, etc.)”121, geraram uma série de outros “movimentos” que merecem ser brevemente
abordados na sessão seguinte, para que o leitor possa melhor compreender sobre que ambiente
de aprendizado será abordado no capítulo 3. Antes, todavia, já que iniciamos este capítulo
falando de uma contextualização, apresento alguns mapas122 que ajudarão na visualização de
alguns rastros mais importantes para o desenvolvimento do Mobon e dos “movimentos
igrejeiros” correlatos da Zona da Mata e Leste mineiro.

121
Documento “O Movimento da Boa Nova” (s.d.), datilografado, p.2.
122
É importante mencionar que os mapas que se seguem, não possuem uma exatidão cartográfica, isto é não
foram construídos a partir de dados georreferenciais exatos e não necessariamente estão reproduzidos com a
escala correta. Eles cumprirão o papel didático de ilustrar para o leitor alguns recortes geográficos em jogo, mas
sem a intenção de representar cartograficamente a realidade.
2.4. Mapas e os diferentes recortes “geográficos” em jogo

Mapa 1 | Principais lugares da história do Mobon. No mapa é possível visualizar as principais cidades descritas até o momento. Neste mapa, a intenção é “borrar” os limites políticos (mesorregiões) e os limites de governança da Igreja Católica (os
limites diocesanos, com destaque para as dioceses de Caratinga e Leopoldina, que respondem pela sociogênese do Mobon). Estão em destaque também alguns pontos considerados importantes: a sede da Congregação dos Missionários Sacramentinos
de Nossa Senhora, as casas de curso/centros de formação, a sede da Diocese de Caratinga e a BR 116. Em razão da referência, para que o leitor se localize, estão também plotados no mapa, a capital do estado – Belo Horizonte – e os municípios de
Muriaé e Governador Valadares, uma vez que, como se escreveu no texto, “desde o início do Mape que os ‘limites’ de atuação do Mobon escapam a uma exatidão regional e se constrói tendo como principais regiões de atuação ‘a Zona da Mata, em
localidades próximas ao município de Muriaé-MG, e a região do Vale do Rio Doce, em localidades entre os municípios de Caratinga-MG e Governador Valadares-MG’ (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.16)” (p.68, desta dissertação).
Mapa 2 | Casa do Mobon e outras referências. Extraído de Oliveira, F. R. C. (2012, p.71 – Figura 01) no mapa, o leitor poderá ver também algumas referências que o ajudarão a se localizar e a ilustrar alguns desses pontos como a Casa do Mobon e a Sede
da Congregação dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora.
Mapa 3 | Mobon e a política partidária. Extraído de Oliveira, F. R. C. (2012, p.147 – Figura 03). No mapa, é possível ilustrar para o leitor um caso em que houve a intercessão entre os territórios de atuação do Mobon e os da política partidária (o nome da
figura é sugestivo nesse sentido: “O Mobon e a política”). Neste caso, Oliveira, F. R. C. (2012), apresentou o caso da eleição de Raul Messias (PT). No mapa é possível visualizar as cidades com atuação do Mobon em que o deputado estadual, eleito em
1995, obteve votos.
89

2.5. Movimentos “igrejeiros”: O papel do Mobon no florescimento do engajamento


político

“Não podemos ficar igual cabrito da corda,


pastando só em volta do toco, sô na praça das
igrejas. Como a rama de abóbora, temos de ir além
das fronteiras de nossas comunidades”.

Movimento de Evangelização da Diocese de


Caratinga123.

“a gente via que Deus queria aquilo”.

Narrativa de uma liderança sobre a formação e


filiação a um Sindicato de Trabalhadores Rurais da
Zona da Mata mineira124.

Não é exagero lembrar: o Mobon construiu-se (constrói-se) no movimento. Foi por


meio da circulação de pessoas, valores e coisas (cf. TEIXEIRA, R. S., RABELO, 2018) por
diferentes contextos de recepção da “mensagem” que garantiu ao Boa Nova se expandir, se
perpetuar e se transformar (não esqueçamos que “a ética comum ao ‘pessoal do Mobon’
desloca-se, ou transita com eles, entre contextos distintos, regido por regras que nem sempre
são compatíveis com a moralidade construída” (RABELO, 2019, p.24), assim, sempre
acontecem “ajustes situacionais”, o que gera “particularizações”, i. e., diferentes apropriações
e transformações “do método”). Ao formar lideranças católicas, por diferentes regiões, gerou-
se um “efeito multiplicador” (RABELO, 2019). Como escreveu Comerford (2001):

“O MOBON, disseminando-se na região principalmente de fins da década de


sessenta em diante (sobretudo na área rural), multiplicou uma estrutura de cursos,
equipes de reflexão, comunidades, plenárias e coordenações que formou uma
considerável camada de lideranças camponesas católicas” (p.227).

O Movimento da Boa Nova floresceu com um suposto objetivo exclusivamente


religioso: aproximar católicos comuns da Igreja Católica, formar lideranças católicas e formar
comunidades. Por isso, em um contexto em que o país passava por um momento político
crítico, representado pelos “anos de chumbo” da Ditadura Militar (1964 - 1985)125 e em que o

123
In: MEDC (1993, p. 25).
124
In: Comerford (2003, p.263).
125
Como escreveu Oliveira, F. R. C. (2012), “No Brasil, desde fins da década de 1960, setores da Igreja Católica
já demonstravam resistências ao Regime Militar que fora implantado no país. O apoio de setores da Igreja
Católica a grupos que se mobilizavam pela democracia e pelo fim do Regime contribuía para um distanciamento
entre a Igreja Católica e o Governo estabelecido. Em 1969, um sacerdote foi assassinado com crueldade e muitos
outros foram presos; bispos eram acusados de subversão; e muitos cristãos leigos foram presos, assassinados e
90

conhecimento da realidade dos “córregos” mostrava uma situação de “exploração” que


precisava ser ‘superada’126, o Mobon sofreu algumas críticas por ser um movimento
“rezador”. Os missionários sacramentinos sofreram pressões de alguns setores da Igreja
Católica, e também, de alguns leigos “mais políticos” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012) para que
essa ‘postura’ mudasse. Como analisou Oliveira, F. R. C. (2012):

“Entre meados da década de 1970 e início da década de 1980, as críticas se


tornavam contundentes: ‘a questão de nossa ausência na questão social foi se
tornando uma dor de dentes constante. Em nenhum momento forçamos a barra,
entrando num caminho só porque estavam falando e nos criticando’ (Costa, 2009:
29). Essas críticas incomodavam os missionários, situação que é bem ilustrada com
a metáfora de ‘dor de dentes constantes’. O Movimento se via desafiado a converter
o capital religioso em capital político. Agentes atuantes nos dois campos [político e
religioso] queriam agregar o Mobon às causas políticas” (p.122-123).

Deste modo, é salutar a leitura da tese de Oliveira, F. R. C. (2012). Nela, o


pesquisador oferece aos interessados pelo tema da intercessão entre política e religião, uma
análise da maneira pela qual o Mobon emergiu e se politizou. Consoante a outros
pesquisadores (CINTRÃO, 1996; COMERFORD, 2001; RICCI, 2002; entre outros), ele
afirma que além de solucionar um “problema local” – a ausência de padres para atender a
todos os rincões das paróquias –, o Mobon foi responsável por formar agentes leigos
compromissados, moral e socialmente, com as comunidades.

“Foi se formando um grupo de agentes com um habitus militante próprio, agentes


engajados na defesa de suas comunidades e da religião católica. Tudo isso foi se
constituindo nos ambientes coletivos de formação de comunidades e lideranças do
Mobon, através de encontros, reuniões, debates e concepções religiosas contidas nos
livretos escritos pelos missionários...” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.69-70).

torturados (Oliveira, 1992). Segundo Oliveira (1992), a partir de fins da década de 1960, a repressão se
generalizou: ‘não são mais padres e leigos – individualmente considerados – os acusados de subversão, é a Igreja
enquanto instituição que se torna suspeita de infiltração comunista’ (p. 44)” (p.119). Padre Gwenael também
relata o conflito com instâncias do Estado. Ele descreve a prisão de alguns padres e a invasão do seminário de
Pinhalzinho pela polícia. Comerford (2001) detalha o caso. Segundo informações descritas no trabalho escrito
pelo referido padre (KERANDEL; DEL CANTO, 1977) e de acordo com entrevista concedida em 2001, o padre
descreve “a prisão de três padres e um diácono em Belo Horizonte e a invasão e busca no seminário de
Pinhalzinho pela polícia (na versão escrita; pelo exército, na entrevista concedida em 2001), bem como as
acusações contra o trabalho da paróquia na área rural por parte dos políticos e da elite local. Na entrevista, ele
chama a atenção para o interesse redobrado dos militares (que os acusavam de estar formando “30.000
guerrilheiros”) em relação aos seus instrumentos de conhecimento, planejamento e ação pastoral sistemática –
gravador, binóculo, mapas” (COMERFORD, 2001, p.264-265).
126
Como notou padre Gwenael em sua pesquisa junto às comunidades de Eugenópolis, na década de 1960, “(...).
Se nota que os grandes proprietários vivem bem, os medianos e pequenos proprietários lutam para sobreviver e
os demais (a maioria) são explorados (não conhecem seus direitos ou têm medo de perder o emprego)”
(KERANDEL; DEL CANTO, 1977, p.15, tradução própria). Essa análise era recorrente até meados da década de
1970, e foi se transformando, a partir, sobretudo, da criação de Sindicatos de Trabalhadores Rurais na região.
91

Como bem analisou Comerford (2001), “Foi sobre a base dessa estrutura e dessas
lideranças que se construiu a parcela hegemônica dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais na
região [da Zona da Mata]” (p.227). Esse reconhecimento está presente na narrativa de várias
lideranças recorrentemente denominadas como o “pessoal do Mobon/Ceb’s/sindicato/PT’”
(RABELO, 2019, p.17). Farinhada, em recente entrevista127, disse que as CEBs foram o
“despertar para esse olhar do todo”. O todo aqui no sentido de entender o “Reino de Deus”,
maneira como se referem à realidade social em que vivem os católicos “da libertação”, como
uma complexidade que não pode ser mudada “apenas rezando”, mas que exige “ação
concreta”, “luta”, “obra”. Como afirmou na mesma ocasião, a liderança, “As CEBs, eu vejo
como uma ‘gesteira’ desses movimentos que foram surgindo a partir dos processos que ela foi
mobilizando”.
Essa é uma constatação que – considerando que “até meados dos anos de 1980, as
diretrizes hegemônicas da CNBB orientavam-se pelos pressupostos da Teologia da
Libertação, incentivando a formação de CEBs e dando forte suporte à organização das
pastorais sociais” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.122) – possuía um lastro nacional. Como
escreveu Almeida (2000, p.77), “As bases das organizações populares e grande parte das
oposições sindicais, ‘que no final da década de 70 tiveram uma importância decisiva no
processo de redemocratização eram formadas por militantes das CEBs, ou das pastorais
específicas (pastoral operária, pastoral da terra, etc.)” (apud OLIVEIRA, F. R. C., 2012,
p.122).
No caso da Zona da Mata e Leste de Minas,

“(...) o Mobon incentivava a formação de sindicatos de trabalhadores rurais; este


partiria dos ‘princípios morais católicos tradicionais, mas promovia reuniões de
comunidades de várias regiões e, aos poucos, introduzia a crença na possibilidade de
mudanças sociais no meio rural’” (RICCI, 2002, p.116 apud OLIVEIRA, F. R. C.,
2012, p.26).

Com uma “base religiosa” fundamentada a partir de valores liberacionistas (cf.


THEIJE, 2002, p.261-273; 327-352) – quer dizer, valores como: localidade (viver em
comunidade); unidade (evitar a divergência, pois “somos todos irmãos”); ajudar aos outros
(fazer caridade e/ou engajar-se sociopoliticamente), e a valorização do deslocamento de si
para os outros e de um lugar ao outro –, movimento de meados de 1970 a meados de 1980
passa por um período de politização (OLIVEIRA, F. R. C., 2012). Neste período, os
missionários Alípio e João Resende, ao se aproximarem de (ou aproximarem do Mobon)

127
Entrevista, 06/11/2018.
92

pessoas “mais políticas”128, sem forçar a barra e entrar num caminho “só porque estavam
falando e nos criticando” (COSTA, 2009, p.29), operam uma “mudança” de “engajamento”
do Movimento da Boa Nova. A política passa a ser “(...) apresentada como um instrumento
necessário para a melhoria das condições sociais” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.139).
O “combate ao Mal” passou a se referir “à realidade concreta, à injustiça e ao
sofrimento, cuja solução se encontra na escolha do bem, isto é, na saída do eu
(individualismo, o Pecado Original) para o outro (Deus, que se expressa na vida em
comunidade), uma vez que, “Pelo Batismo não lutamos sozinhos, pois somos unidos a Igreja,
a Cristo e aos irmãos”129. Uma caricatura encontrada na pasta de recortes de revista e jornais
que me foi dada em 2008 pelo missionário sacramentino Denilson Mariano130 traduz
imageticamente essa maneira de conceber a política que era (é) transmitida aos leigos nos
“cursos” e, muitas vezes, (re)produzida pelas lideranças “de caminhada” por onde circulam.
Leia a imagem:

Figura 5 | Recorte de revista. “A política como amor e serviço”. Fonte: Acervo próprio.

128
Oliveira, F. R. C. (2012) destrincha esse processo em sua tese. Alguns dos nomes cuja aproximação junto ao
Mobon foi essencial para essa mudança de engajamento dos referidos missionários citados pelo pesquisador
foram padre Gwenael; Carlos Mesters, importante liderança católica ligada à Teologia da Libertação no Brasil;
Raul Messias, sitiante e funcionário do Programa de Desenvolvimento da Zona Mata (PRODEMATA), que em
fins da década de 1970, trabalhava na formação de cooperativas na Zona da Mata; Tilden Santiago, importante
liderança do PT mineiro, conhecido pelo vínculo com a Teologia da Libertação; Durval Ângelo professor e
deputado pelo PT-MG.
129
Lição extraída das anotações do “Caderno de Dona Cora” sobre o Curso de Formação de Bíblia acontecido
em 1973, em Curumirim.
130
A pasta me foi doada no tempo em que ainda trabalhava na gráfica “O Lutador”, em Manhumirim/MG. A
pasta possui aproximadamente 180 folhas A4 com colagens de diversos recortes de revistas e jornais. Trata-se de
um acervo de imagens com motivos religiosos ‘de cunho liberacionista’; cenas bíblicas; imagens de santos e de
outras personalidades da Igreja Católica, etc. organizadas pelo missionário. Como explicou Mariano, em
conversa por telefone no dia 13/03/2019, ele começou a juntar os recortes na época em que começou a trabalhar
junto ao Mobon, em 1991, contribuindo com João Resende na organização dos materiais para a animação das
comunidades. Em um período anterior à popularização do uso da rede mundial de computadores e das
ferramentas online de busca de imagens, os recortes eram muito utilizados para a composição de livretos de
curso, folhas de cântico e roteiros para os grupos de reflexão.
93

O Mobon passou a incentivar o engajamento sindical e político-partidário de leigos,


transmitindo aos que passavam por seus cursos

“(...) a concepção de que os políticos religiosos poderiam trazer grandes benefícios


para as gerações futuras, com saúde, educação etc. O Movimento investia na
formação política de suas lideranças, fornecendo-lhes motivações e argumentos para
que se engajassem na política partidária. Esse convencimento passa pela idéia de que
é função do ‘profeta de hoje’ promover o casamento ‘fé + política’. O que se
pretende é romper fronteiras entre o campo religioso e político; nesse contexto,
objetiva-se que o capital religioso seja convertido em capital político” (OLIVEIRA,
F. R. C., 2012, p.139).

Assim, o Mobon cimentou um ‘contexto de reflexão’ que moveu as lideranças


católicas, em um período de redemocratização, para a fundação de sindicatos, associações e
diretórios do Partido dos Trabalhadores (PT) (cf. COMERFORD, 2001; OLIVEIRA, F. R. C.,
2012; RABELO, 2019). Passaram a compor as reflexões dos cursos, dos grupos de reflexão e
plenários, as narrativas que abordavam as relações históricas de exploração entre fazendeiros
e trabalhadores rurais na região da Zona da Mata e Leste de Minas, que se davam (e ainda se
dão) em torno da dependência para obtenção das terras e sob a “lógica do favor” (CINTRÃO,
1996). A reflexão coletiva nos encontros sobre as perguntas “O que fazer?” e “Como resolver
isso?”, presentes ao fim das “chaves de leitura” dos livretos e roteiros de grupos de reflexão,
“provocou” as pessoas a efetivamente se organizarem e realizarem ações para saírem da
condição de oprimidos (OLIVEIRA, F. R. C.; ZANGELMI, 2009, p.223). Como sintetizou
Oliveira, F. R. C. (2012), “o engajamento político foi um desdobramento da organização das
comunidades católicas” (p.15).
Ao longo do tempo, do ponto de vista de um movimento pretensamente de cunho
religioso, gerou-se uma série de resultados inesperados, isto é, empreendimentos comunitários
e/ou associativistas com vistas a “ajudar o outro” (THEIJE, 2002, p.270-271). Além dos
sindicatos e da atuação político-partidária, direta ou indiretamente, a ação do Mobon, ajustada
situacionalmente por aqueles que “fazem a luta”, deu origem a cooperativas (cf. SILVA, M.
G., 2010; FREITAS, FREITAS, 2013); motivou a “conquista de terras em conjunto” (cf.
VILLAR, 2014; CAMPOS, 2006); serviu como uma das bases para a construção do
‘Movimento Agroecológico’ (cf. CINTRÃO, 1996; VILLAR et. al, 2013; SILVA, M. G.,
SANTOS, 2016; SILVA, M. G. 2017b) bem como, contribuiu para o desenvolvimento da
Pastoral da Saúde e da Homeopatia na Zona da Mata (cf. RIBEIRO; COELHO; TEIXEIRA,
T. H., 2015); foi parte importante para o desenvolvimento do Movimento dos Atingidos por
barragens (MAB) no Alto Rio Doce (OLIVEIRA, F. R. C., ROTHMAN, 2008); entre outros
resultados.
94

Disto isso, pode-se dizer que os movimentos surgidos com base no Mobon foram
feitos por três gerações (RABELO, 2019). Isto é:

“A primeira geração, [foi] responsável pela fundação/dinamização de comunidades,


dos STR’s, e do PT, sofreram as pressões mais intensas do confronto com a
fazendeiros locais entre fins da década de 1970 e a década de 1980. O contexto de
redemocratização do período de transição e a perseguição marca os relatos dessa
geração na “luta”. De acordo com Comerford (2001) entre os fundadores estavam
mulheres, jovens solteiros e casados, em geral, sitiantes ou meeiros. A Segunda
Geração cresce em uma comunidade religiosa já estabelecida, participa dos grupos
de reflexões também estabelecidos e iniciam a participação nos sindicatos dos
trabalhadores rurais num período menos conflituoso. Um ambiente menos hostil de
‘luta’ possibilita refletir e repensar a organização e hierarquia dentro do sindicato. É
a geração que entra para os Sindicados dos Trabalhadores Rurais entre a década de
1990 até os anos 2000 que vão pautar novas bandeiras no Movimento, buscando
espaço para novas lideranças. Por fim, a Terceira Geração, que eu chamo de geração
emergente, a partir de um processo de sindicato e partido já consolidado e no poder
a nível nacional, se envolve com as atividades relacionadas a organizações sociais,
ao sindicato e ao partido, ampliando a briga por novas discussões que favoreçam as
minorias” (p.71).

Assim, de geração em geração, mudaram-se (mudam-se) as “bandeiras de luta”,


transformaram-se as práticas. No capítulo seguinte, portanto, o propósito será me embrenhar
nos dados da pesquisa de campo, gestados junto a eventos promovidos por esses diversos
“movimentos” e “lideranças” para poder pensar em que medida a vertente “igrejeira”
(SANCHIS, 1990) dos “movimentos” da Zona da Mata mineira se (re)produz e se transforma
nos dias de hoje, sobretudo, buscando compreender a relevância dos saberes fazeres
aprendidos nos “cursos de base”, “grupos de reflexão”, etc. para a construção das “lutas” e da
“identidade” de alguns movimentos que acompanhei.
95

CAPITULO 3

MOBON NA ZONA DA MATA MINEIRA: CONTINUIDADES


COMO BASE PARA TRANSFORMAÇÕES

Cruzando dados das pesquisas documental e bibliográfica com as percepções e


afetações (FRAVET-SAADA, 2005) vividas durante a pesquisa de campo, tornadas ‘dados’
(construídos durante a participação observante e a observação participante de diferentes
situações e eventos promovidos por diversas “lideranças” de diversos “movimentos”), este
capítulo tem como objetivo ‘Mapear’ a maneira como se aprende-ensina e se (re)produz os
saberes fazeres ‘do Mobon’ e buscar compreender a relevância de tais saberes aprendidos nos
“cursos de base”, “grupos de reflexão”, “plenários”, “reuniões”, etc. para a construção das
“lutas” e da identidade militante de alguns movimentos “igrejeiros” (SANCHIS, 1990) que
acompanhei. A ideia é fazê-lo a partir de uma descrição etnográfica que leve em conta as
várias dimensões em jogo relacionadas ao como se aprende-ensina e se transformam “pessoas
simples” em “mediadores”/multiplicadores de uma “maneira liberacionista de fazer as coisas”
– em alguns casos, expressões de um “catolicismo vivido” (THEIJE, 2002, p.318).
Para isso, tendo em vista o grande volume de eventos e situações que
participei/observei, não é meu objetivo descrevê-los um a um de maneira detalhada, mas sim
trazer à baila cenas que serão importantes para ilustrar o que é fundamental neste capítulo:
‘Mapear’ os saberes fazeres ‘do Mobon’ in acto e discutir como se reproduzem e como se
diferenciam.
Farei a descrição de um evento “igrejeiro” do Mobon. A saber, trarei ao conhecimento
do leitor cenas vividas durante o Curso da Campanha da Fraternidade de 2018, realizado de
09 a 11 de fevereiro, na Casa do Mobon, em Dom Cavati. Essa descrição, comparada às
descrições de dois eventos mais “de movimentos” apresentadas no próximo capítulo, servirá
para discutir alguns ‘resultados’ (esperados e não esperados) do Aggiornamento empreendido
pelo Mobon, a partir, sobretudo, do “trabalho de base” e dos “cursos” disseminados pelos
missionários sacramentinos e pelos leigos “formados por eles”. Tudo isso a partir de um
enquadramento que considera a perspectiva ritual como estratégia analítica (PEIRANO,
96

2001). Os tais saberes fazeres ‘do’ Mobon emergirão, portanto, das ênfases que darei a pontos
específicos em cada evento.
Para que se entenda melhor a descrição, nos itens 3.1 e 3.2 forneço ao leitor dados e
reflexões que o ajudarão a se situar melhor quando da descrição do evento em si, bem como o
auxiliará a acompanhar as análises que realizei dos ‘dados’.

3.1. Cursos do Mobon: a base para a transmissão da ideologia liberacionista

“(...) vós sois a carta de Cristo, ministrada por nós,


e escrita, não com tinta, mas com o Espírito do
Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas
de carne do coração”.

2 Coríntios 3, 3

Como enunciou Theije (2002), “O ritual é um recurso importante na campanha


liberacionista” (p.310). Assim, antes de qualquer coisa, devemos nos debruçar sobre o
principal “veículo para a mensagem” (idem) “da libertação” dos missionários sacramentinos
de Nossa Senhora, isto é, os cursos promovidos pelos missionários sacramentinos e/ou pelas
lideranças formadas por eles. Isto porque é durante os cursos que os leigos entram em contato,
por meio da ritualização, com o conhecimento liberacionista sistematizado (ideologia)
elaborado pelos missionários sacramentinos e realizam a primeira mediação cultural de suas
práticas e seus significados. É através dos cursos que os leigos entram em contato com a
‘pedagogia’ do movimento, aprendem seus saberes fazeres e ‘recebem as credenciais’ para
poderem multiplicá-los em suas comunidades ou em outras, onde forem convidados.
Como ‘ritos de passagem’ em que católicos comuns adquirem (ou iniciados reforçam)
um novo status (o de liderança) com todas as obrigações que o novo papel carrega, os cursos
funcionam como ‘base’ para a transmissão da ideologia liberacionista. Ao se dedicar na tarefa
de descrevê-los e analisá-los, nos aproximaremos de uma matriz de saberes fazeres que está
presente, reproduzida ou transformada, em vários espaços de movimentos sociais e religiosos
que, de algum modo, possuem uma raiz ‘cebista’ na Zona da Mata ou mesmo para além dela.

3.1.1. Os cursos disponibilizados pelo Mobon aos leigos interessados

São quatro os tipos de cursos organizados pelo Mobon. A saber: (i) os cursos de base
(ii) os cursos de aprofundamento e revisão; (iii) os cursos preparatórios para a vivência dos
97

tempos do Advento131 e da Quaresma132; (iv) o curso de cântico litúrgico-pastoral. Os cursos


de base acontecem nas comunidades. Geralmente, são preparados pela equipe coordenadora
do Mobon (atualmente, João Resende ou Mariano) ou pelas lideranças mais experientes
treinadas para esse serviço, sempre em duplas, os chamados “Missionários do Reino”. Para
esses cursos são convidados todos os que moram na comunidade, sem distinção. O objetivo
principal é formar e/ou dinamizar nas comunidades os Grupos de Reflexão. Tanto nos cursos
quanto nos grupos de reflexão são despertadas novas lideranças.
A “menina dos olhos”133 dos missionários do Mobon, os grupos de reflexão
geralmente são formados por 8 a 12 famílias. Possuem um coordenador ou dirigente, um vice
dirigente, um secretário e um tesoureiro geral. Reúnem-se semanalmente em torno da reflexão
da leitura e interpretação da Bíblia auxiliadas pelos roteiros de reuniões produzidos pelo
Mobon e/ou outras equipes missionárias da Diocese de Caratinga. Os encontros são
organizados em 9 momentos e não duram mais que 1 hora. Nesses grupos, podem-se discutir
“Problemas de catequese, de escola, política, Igreja, economia, associação de moradores,
sindicatos, saúde, cooperativismo, mutirões, ação comunitária, etc.” (IORRES, 1988, p.16).
Ao fim das chaves de leitura propostas pelos roteiros, as perguntas problematizadoras
provocam a reflexão aproximando “vida e fé” e o encaminhamento da “tarefa da semana”
desperta para a ação comunitária. Por fim, os grupos, em algumas paróquias, se encontram
mensalmente para apresentarem os resultados das reflexões durante a reunião do Plenário.
Nos grupos de reflexão:

“(...) os leigos sentem o valor da Bíblia como livro seu. Fazem da Bíblia o ‘farolete’
da caminhada. ‘Ferramenta’ de trabalho. (...) os participantes, aos poucos, vão
adquirindo o desejo de partilha. Os grupos de reflexão, em princípio, são grupos
apostólicos que formam apóstolos leigos. Uma escola de missionários leigos...”
(COSTA, s.d., p.2).

Os plenários dos grupos de reflexão (idem, p.3):

“- unem os vários grupos de reflexão de uma comunidade.

131
O Advento é o tempo litúrgico que antecede o Natal. Começa na noite do sábado, véspera do 1.º domingo, e
vai até o dia 24 de dezembro. Neste tempo, os símbolos utilizados nas missas e celebrações (as cores roxa e rosa,
a coroa ou grinalda do Advento, por exemplo) ajudam a mergulhar no mistério da encarnação. Disponível em:
<https://catequesehoje.org.br/diverso/liturgia-e-catequese/1162-o-tempo-do-advento>. Acesso em: 26 jan. 2020.
132
A quaresma abrange o tempo litúrgico que antecede a Páscoa, isto é, compreende o período que vai da
Quarta-feira de Cinzas até ao Sábado Santo. Contudo, a liturgia propriamente quaresmal começa com o primeiro
domingo da Quaresma e termina com o sábado antes do Domingo da Paixão. Este tempo foi instituído como a
preparação para o Mistério Pascal, que compreende a paixão e morte (sexta-feira Santa), a sepultura (sábado
Santo) e a ressureição de Jesus Cristo (domingo e oitava da Páscoa). Disponível em:
<http://catequisar.com.br/texto/materia/celebracoes/quaresma/04.htm>. Acesso em: 26 jan. 2020.
133
Alípio, entrevista 08/02/2018.
98

- aprofundam a fé
- Partilham as descobertas dos grupos.
- Desenvolvem nos participantes o senso crítico
- Desenvolvem o senso de Igreja (pluralismo de opiniões)”

Os grupos assumem uma centralidade, pois são eles que mantém a ideologia e as
práticas do Mobon mais próximas dos leigos, de uma forma ‘cotidiana’. É através dos grupos
que “A palavra circula e toca o coração dos participantes; ajuda-os a entender a realidade,
ilumina a vida, abre-os para a Comunidade, transforma-os”134. Junto com os “cursos de base”
possibilitam a transmissão da maneira de fazer do Mobon de geração para geração familiar
dentro das comunidades, assim como fora delas. Nos grupos de reflexão é onde a autonomia
relativa (BRANDÃO, 2007) se faz valer da forma mais plena: é o leigo evangelizando o leigo
“na base”, tendo como referência um roteiro desenvolvido pelos religiosos e/ou leigos
basistas. O que por sua vez confere uma unidade ao que se discute, criando uma “comunhão
eclesial de toda uma diocese que se reúne” 135
. Assim, a Igreja Católica divide a gestão sobre
a interpretação da História Sagrada e se faz presente em ‘todos os lugares’. Como explicou
Alípio:

“(...) o ponto principal [do trabalho do Mobon] seria a animação dos grupos de
reflexão, porque é a Igreja na base, é a Igreja nas famílias, é a Igreja nas varandas...
em qualquer lugar tá lá o grupo discutindo a palavra de Deus e a Igreja ali presente.
(...). No começo nós mostramos pra eles como é que conversa em torno de um texto
bíblico. Ai eles começavam a conversar. Ai ia pro grupo de reflexão. Lá no grupo de
reflexão fala, comenta o texto bíblico, comenta os fatos da vida, como é que é,
porque lá em casa a coisa tá desse jeito” 136.

Para Farinhada, é exatamente a discussão dos “fatos da vida” o que possibilitou aos
camponeses – sitiantes, meeiros, trabalhadores rurais e “boias frias” – “ad-mirarem”
(FREIRE, 2017), isto é, tomarem distância em relação à realidade concreta de “exploração do
trabalho” para pensar, avaliar e agir em busca de uma solução. Isto é, foi a reflexão sobre tais

134
Extraído do documento “A missão do(a) coordenador(a) de Grupo de Reflexão” distribuído às lideranças
comunitárias em 2018, na Paróquia do Senhor Bom Jesus de Manhumirim. Apesar do documento não ser
elaborado pelos fundadores do Mobon, o utilizo aqui e em outras partes desta sessão do texto por entender que
como documento elaborado e disponibilizado por um sacerdote formado pela Congregação dos Missionários
Sacramentinos de Nossa Senhora, a saber, padre Marcos Antônio A. Duarte, ele está em consonância com as
linhas de ação da Congregação, que “na letra g) da p. 44 lemos: ‘Destacar os Grupos de Reflexão ou Círculos
Bíblicos, como sementeira de comunidades missionárias e canteiros de novas lideranças; Continuar a dinâmica
de cursos de aprofundamento para lideranças e membros dos Grupos de Reflexão’. E entre os meios a serem
empregados, na letra e) p.46 está o MOBON” (COSTA, 2009, p.49).
135
Mariano, entrevista, 18/09/2018, online, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=GtD_vy3uVRA>. Acesso em: 23 set. 2018.
136
Entrevista, 08/02/2018.
99

fatos, nos grupos de reflexão e nos cursos, que provocou “essa coisa da organização social da
classe trabalhadora”. Como se expressou:

“(...) os roteiros dos grupos de reflexão, elaborado por uma equipe muito boa da
diocese, sempre trazia as perguntas com o fato da vida. O fato da vida é uma
historinha. Aí a pessoa contava uma historinha, um fato da vida, e ali embaixo
colocava uma pergunta: a pergunta que te obriga a dizer sim ou não, mas que depois
tinha o porquê, o como fazer. Por exemplo, se o fato da vida estava relacionado a
questão da exploração do trabalho, por exemplo, você acha que é justa a pessoa ter
dupla jornada e não ter careteira assinada. Aí embaixo tinha a pergunta, sim ou não.
Os cursos de natal, de semana santa eram também muito provocativo para essa coisa
da organização da classe trabalhadora”137.

Criados os grupos de reflexão e despertadas as novas lideranças, o segundo tipo de


cursos (de aprofundamento e revisão), mais conhecido como Pré-Boa Nova e Boa Nova,
possui o objetivo de formar lideranças para darem continuidade à animação comunitária.
Esses cursos acontecem nas casas de treinamento nas diversas paróquias. Em algumas
paróquias existem casas de curso/retiro específicas para a realização de cursos dessa espécie,
em outras se utiliza o salão paroquial ou a sede de seminários. Destaque para os cursos
realizados na Casa do Mobon, em Dom Cavati, que desde 1979 recebe novas lideranças para a
formação, e ao longo do tempo passou a ser vista como uma “casa central” do movimento.
Como informa Gomes e Andrade (2011), o Pré-Boa Nova no princípio durava 6 dias;
atualmente dura apenas 3. Já o Boa Nova, devido à dificuldade de disponibilidade de tempo
das pessoas, a partir de meados de 1990 foi dividido em Boa Nova 1ª fase e Boa Nova 2ª fase,
cada etapa com duração de 3 dias. Respectivamente, os temas debatidos são:

“[Pré-Boa Nova:] 1. Palavra de Deus anunciada para formar um povo; 2. A partir


deste povo forma-se a Igreja (da baixada = de base, diferente/contrário da Igreja do
alto, distante do povo e ligada à situação); 3. Nesta Igreja destaca-se o leigo que vai
fazendo sua experiência de vida comunitária. (...). [Boa Nova:] 1. O Evangelho; 2.
Evangelização; 3. Conversão no Antigo Testamento; 4. Conversão no Novo
Testamento; 5. Apostolado; 6. Vida de comunidade” (GOMES; ANDRADE, 2011,
p.64).

O terceiro tipo de curso (de animação para os eventos do tempo litúrgico anual) diz
respeito aos cursos de Natal e de Semana Santa, que nessas épocas tentam “atualizar estes
acontecimentos dentro das situações de hoje” (RESENDE, 1988, p.12). Desde 1995, o curso
de preparação para a Quaresma passou a incorporar os temas da Campanha da Fraternidade
organizados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sendo então
renomeado para Curso da Campanha da Fraternidade. E a partir de 2000, o curso de Natal

137
Farinhada, entrevista, 06/11/2018.
100

deixa de existir138 e se passou a trabalhar com o Curso do Mês da Bíblia, a partir da reflexão
do tema também sugerido pela CNBB. Como explicou Mariano139, as mudanças foram muito
mais que apenas uma questão de nomenclatura. Tratou-se efetivamente de uma busca
intencional por maior “sintonia” do Mobon com as orientações da Igreja Católica do Brasil140.
Esses cursos da Campanha da Fraternidade e do Mês da Bíblia devem ser replicados
em massa, isto é, quem participa deles torna-se responsável por reproduzi-los nas
comunidades141. Geralmente esse repasse é feito numa espécie de “mutirão missionário”
(GOMES; ANDRADE, 2011, p.59), ou seja, os missionários, em duplas (geralmente, 1
homem e 1 mulher) ou trios, reproduzem o que aprenderam em suas ou em outras
comunidades da paróquia a qual pertencem e/ou outras paróquias. Esses cursos replicados
acontecem nas casas de cursos ou salões paroquiais, com duração entre 1 a 3 dias, geralmente
nos finais de semana e reúnem em média 20 pessoas. Reside nesse imperativo a força do
“efeito multiplicador na transmissão da Boa Nova” (RABELO, 2019).
A quarta espécie de curso (de cântico litúrgico-pastoral) é onde são ensinadas as
músicas “da caminhada”. Costuma acontecer na Casa do Mobon no início do ano, mas não só
neste local e nesse período. Há algum tempo, o curso e os materiais para o mesmo (livrinho
com as letras, livro de cifras, CDs e fitas K7) são organizados por Paulo Félix Delesposte –
leigo dono do estúdio e gravadora Sonorplay Records, em Matipó – com a supervisão de
Mariano. Este curso é um nos quais se aprende e se ensina a cantar as canções “da religião
libertadora”142 que serão utilizadas nas celebrações e missas nas comunidades, incluindo as
músicas da Campanha da Fraternidade do ano corrente, além de ser um espaço onde músicos
e compositores das comunidades criam e apresentam seus cantos, ensaiam e trocam
experiências, técnicas, letras e melodias. Geralmente, os participantes desse curso fazem parte
da “equipe de cântico” ou “de animação”.
Como crê um dos fundadores do Mobon:

“Essas atividades vão despertando o povo ao ponto de ‘pedir marcha’, isto é, o povo
começa [a] pedir esclarecimentos, cursos, treinamentos, tudo isso como exigência de
uma caminhada. Aqui não se trata de cursinhos que dá diplomas ou certificados.

138
Como me relatou Mariano, em conversa de WhatsApp®, do 09/02/2019, “não existe mais preparação para o
natal, esta fica por conta da novena de Natal” que é realizada nas comunidades, fomentada pelos párocos e
coordenadores de grupos de reflexão.
139
Conversa por telefone, 13/03/2019.
140
Essa maneira de explicar as mudanças do missionário relaciona-se com a “representação de unidade” que
orienta as ações dos sacerdotes da Igreja Católica sugerida no capítulo 2 (p.71).
141
Reside nesse imperativo a força do “efeito multiplicador na transmissão da Boa Nova” (RABELO, 2019).
142
Aqui, faz-se referência à música de padre Zezinho, do disco “Sol nascente, sol poente” (1990), “religião
libertadora”, uma das canções quem bem retrata o espírito “da libertação” das canções que se aprende em
contato com os cursos promovidos pelo Mobon.
101

Trata-se de cursinhos periódicos que animam e fortificam a caminhada de


comunidade e, aos poucos, levam o povo a se organizar em sua classe social
(agricultores, operários, etc.). Naturalmente o povo vai se organizando oficialmente
em associações para ajuda mútua e os sindicatos combativos, os quais vão lutando
por sua real autonomia e contra peleguismos de quaisquer tipos...” (COSTA, s.d.,
p.2).

Em resumo, esses cursos funcionam como uma espécie de “catequese para adultos”.
Um momento em que os cursistas, cada um à sua maneira e dentro de suas possibilidades para
a ação, ‘incorporam’ uma série de princípios que dão fundamento ao ser e fazer CEBs
dinamizadas pelo Mobon. Com poucas alterações desde a aurora do Mobon até os dias de
hoje, os cursistas entram em contato, a partir de uma série de ritualizações que “desencadeiam
emoções e criam quadros mentais receptivos” (KERTZER, 1988, p.99 apud THEIJE, 2002,
p.312), com “alguns princípios básicos capazes de criar em todos uma certa disciplina”
(COSTA, s.d., p.4). Ao participar do Curso da Campanha da Fraternidade, em fevereiro de
2018, na Casa do Mobon, pareceu-me que eram permanentemente repetidos, por atos e
palavras, por João Resende (por Alípio, quando ele tomava a palavra; e pelo padre Zé Leão143
durante a missa que celebrou) nove ‘mandamentos’ encontrados em um documento sobre “O
Movimento da Boa Nova” datilografado por Alípio144. A partir do que se viu, se ouviu e se
leu em tantos documentos, materiais de trabalho do Mobon e registros escritos dos cursos,
afirmo que em todos os cursos do movimento “todos, quer novatos, quer veteranos vão
recebendo uma catequese adulta” (COSTA, s.d., p.3) em que são sempre ‘lembrados’ dos
seguintes princípios:

“1º) VALORIZAR OS COMPANHEIROS DO GRUPO, considera-los como


verdadeiros irmãos. Confiar neles sabendo que cada um tem seu carisma pessoal.
Existe também o carisma grupal. Se foi Deus que reuniu o grupo e lhe deu o
carisma, torna-se uma questão de fé levar muito a sério a conservação desse dom.
Conservar e desenvolver. Ser amigos na base da fé.
2º) NÃO DAR RÓTULO A NINGUÉM. O Movimento não dá diploma ou
certificado a ninguém. Quem participa dos trabalhos do Boa Nova deve ser uma
‘carta viva’ de que fala São Paulo (2 Cor 3, 2-3). ‘Carta’ do grupo que o envia,
‘carta’ de Cristo escrita pelo Espírito Santo...
3º) ESTAR SEMPRE A SERVIÇO DI EVANGELHO, evitando ser uma estrutura a
mais na paróquia ou na comunidade. Nada de concorrência. O Movimento é leve
para poder melhor se mover no trabalho da evangelização...
4º) RESPEITAR MUITO OS PASSOS DO POVO... ‘Mais vale cem pessoas darem
um passo do que uma só dar cem passos’. E muito cuidado. Ficar atento para o fato

143
Trata-se de José F. Leão. O sacerdote se candidatou ao cargo de prefeito na cidade de Alpercata, como “Padre
Zé Leão” (nome que apareceu nas urnas) pelo Partido dos Trabalhadores, coligado à frente “Transparência e
participação popular”, no ano de 2008. Obteve 1.002 votos, não sendo eleito para o cargo.
144
Neste documento, sem data, em 7 páginas o missionário procura fazer uma síntese sobre o Mobon. O modo
como está organizado uma espécie de ‘documento definitivo’ para aqueles que buscam informações sobre o
movimento. No documento ele escreve sobre a “dinâmica” (p.1-3), os “princípios” (p.4), a “espiritualidade” e a
“mística” (p.5-6) do movimento.
102

de que nos trabalhos, é leigo falando para leigo. Caminhar juntos! Procurar dar
passos acertados... Quem anda sozinho, fica sozinho...
5º) VALORIZAR MUITO A ESCUTA. Ajudar o outro a falar, a se manifestar, a
‘pensar alto’. Ajudar o outro a crescer, a não ser infantil... ‘infantil’ é o que não fala
ou, se fala, só fala repetindo os outros...
6º) PROCURAR MOVER O CORAÇÃO DAS PESSOAS, pois não adianta só falar
à cabeça a modo de palestrante. É preciso entrar no coração, na alma do povo, pois
atingindo o coração, é fácil dar a todos as razões da fé. Foi isso que Jesus fez com os
poderosos...
7º) USAR MUITO A LINGUAGEM DO POVO. Usar muito as comparações,
provérbios e ditados populares. As comparações não levam tanto a saber mas
descobrir as coisas... Isso supõe a escuta do povo. Supõe muita observação na
natureza. É a ‘leitura da vida’... O Movimento da Boa Nova faz questão de usar esse
linguajar, pois isso significa entrar na alma do povo, a levar o povo a entender,
concretamente as razões de sua fé. Fé que leva a tudo o mais...
8º) SER MUITO FIEL À DINÂMICA DO MOVIMENTO: Cursos de Base não só
por causa do conteúdo, o que é muito simples, mas para os participantes possam ir
se inteirando da dinâmica... Grupos de Reflexão toda a semana. Plenários do Grupos
de Reflexão todos os meses. Não deixar isso por nada, nem colocá-los em segundo
plano.
9º) VALORIZAR MUITO O TEMPO DO NATAL E DA SEMANA SANTA.
Nessas épocas (Advento e Quaresma), cuidar de uma evangelização especial. Fazer
isso ministrando cursinhos ao alcance de todos que o desejarem” (COSTA, s.d., p.4,
neste caso os sublinhados são do autor).

Analisando os ‘mandamentos’ em seu conjunto, é possível identificar uma série de


imperativos que fomentam a necessidade de compromisso moral com o movimento, e mais,
com a evangelização. Os cursistas devem “levar muito a sério” e ter “muito cuidado”. Onde
estiverem atuando, a liderança precisa ser:

“1 – ... um (a) cristão (ã) apaixonado (a) pela Palavra de Deus e confia a Deus a sua
missão.
2 – Pessoa de esperança, que tem sempre uma palavra que anima e incentiva o
grupo.
3 – Motiva os participantes a se prepararem para o encontro, lerem o texto bíblico
antes.
4 – Escuta mais e fala menos.
5 – Cultiva os tímidos (as) a falar, dar sua opinião.
6 – Valoriza a partilha de cada um (a).
7 – Incentiva os tímidos (as) a falar, dar sua opinião.
8 – Com jeito, não deixa desviar do assunto. Um fato que ajude na reflexão é bom...
9 – Pontual para começar e terminar, não deixando o encontro se prolongar demais.
10 – Atento aos ausentes. Procura saber a causa, visita e busca os afastados.
11 – Faz as devidas comunicações...
12 – Marca presença nos plenários” 145.

E esse compromisso não deve ser assumido à revelia, mas se atentando para o ditame
da dialogicidade com os “pequenos”, mediante o uso de “comparações, provérbios e ditados
populares”, bem como, principalmente, em tempos de Advento e Quaresma, por meio da
organização de “cursinhos ao alcance de todos que o desejarem”. Ditame esse que se

145
Extraído do documento “A missão do(a) coordenador(a) de Grupo de Reflexão” (2018).
103

fundamenta em uma “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 2017), pois como se expressou João
Resende, se referindo a uma das lições de Paulo Freire com a qual teve contato, “‘Antes de
ensinar matemática ao Pedro, conheça o Pedro’ nos marcou muito”146. Pressupõe, portanto, a
paciência, “a escuta do povo” e observação atenta e sistematizada dos “relacionamentos
homem-mato” (BRANDÃO, 1999, p.81)147 dos “pequenos” (meeiros e sitiantes), em sua
relação de produção e afetiva com a/“na natureza”.
Como relata João Resende, na fase inicial, ele “[...] ia pra beira da lavoura, ajudava o
pessoal apanhar café e a gente pegava o ritmo, pegava o jeito”148. A observação desses
relacionamentos homem-mato é o que estrutura a práxis comunicativa entre missionários do
Mobon e grupos católicos leigos na Zona da Mata e região, pois as comparações utilizadas
pelos mediadores “tinham o meio rural como foco principal de análise” (OLIVEIRA, F. R. C.,
2010, p.49). Como creem os missionários sacramentinos:

“Um dos pontos marcantes da Boa Nova é o uso da linguagem simbólica através de
comparações que vão encontrando a porta de entrada na cultura do povo. Este tipo
de linguagem deixa todos mais à vontade. Isto desinibe o leigo e leva a colaborar
fortemente na evangelização”149

Os ‘mandamentos’ também veiculam alguns valores liberacionistas (THEIJE, 2002)


que formam um “sistema ético”150 que ampara a conduta daqueles que se propõem a se
comprometer com o movimento. Os cursistas para o trabalho de evangelização devem
considerar, por exemplo, a localidade (THEIJE, 2002, p.263-265) por meio dos “cursos de
base para participantes se inteirarem. Grupos de reflexão toda semana”; a unidade (idem,
p.265-270), evitando-se a “concorrência” e “se entrosando em tudo que já existe na paróquia e
na comunidade, desde que seu entrosamento seja mais na base, mais ‘nos cantinhos’”

146
Entrevista, 06/01/2018. É provável que o missionário, ao dizer esta frase, quisesse se referir à famosa citação
do educador popular que diz: “Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição
que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”.
Como mencionado no capítulo 1, na nota de rodapé número 51 (p.47), nesta entrevista, João Resende diz ter
estudado o livro “Pedagogia do Oprimido”, obra publicada em 1968.
147
Ao analisar o trabalho cotidiano na terra entre agricultores e criadores sitiantes do bairro dos Pretos, nas
encostas paulistas da serra da Mantiqueira, em Joanópolis, Brandão (1999) considera a relação não só entre seres
humanos-e-sociais e os seres não-humanos naturais (animais, plantas, minerais, enfim, os elementos que
compõem o ecossistema que circunda os camponeses), como também considera a relação entre estes e os seres
não-humanos supranaturais (Deus, Jesus Cristo, a Sagrada Família, a Trindade, o espírito dos mortos, etc.). Essa
perspectiva nos é útil, uma vez que Brandão fala em termos de um pensamento camponês. Consideradas as
devidas particularidades locais, os termos de sua análise podem ser replicados para os camponeses da “Zona da
Mata”.
148
Entrevista, novembro de 2009. In: Oliveira, F. R. C. (2010, p.49).
149
Esse fragmento se trata de parte do texto presente no site do Mobon que acompanha a foto que abre esse
capítulo. Disponível em: <https://www.Mobon.org.br/about_us>. Acesso em: 04 jan. 2020.
150
Quero dizer, “integração orgânica (de sentidos, princípios, valores, elementos e factores substantivos relativos
a uma conduta)” (SILVA, Douglas Mansur da, 2006, p.136).
104

(COSTA, s.d., p.5), em outros termos, valorizando a comum-unidade, e o deslocamento, uma


vez que, a serviço da evangelização, os que fazem os cursos devem ser “cartas vivas” que
circulam e repassam a mensagem ao grupo que os envia e além.
Como escreveu João Resende a respeito da metodologia do Mobon que perpassa todos
os cursos e perdura até o presente:

“A Bíblia é o livro básico. É a luz da caminhada. É a balisa. O MOVIMENTO DA


BOA NOVA – MOBON usa mais o método da conversa. Em seus cursinhos não se
fazem propriamente palestras. Há uma preocupação grande com a inculturação. Por
isso usam-se muito comparações tiradas do mundo dos participantes. O dirigente
procura deixar os participantes bem à vontade, para que tenham condições de dizer o
que estão sentindo. O debate é muito valorizado. Através dele a pessoa se
compromete mais e, ao mesmo tempo, se responsabiliza mais. Procura-se fazer tudo
com mais simplicidade. (...)” (RESENDE, 1988, p.12).

Pode-se dizer que ao participarem dos cursos, por meio da prática de uma série de
saberes fazeres, os cursistas aprendem a maneira liberacionista de fazer as coisas do Mobon e
“incorporam”151 “uma lista de prescrições de conduta do líder” (RABELO, 2019, p.56), as
quais “dizem respeito a como a pessoa deve ser (...) sobre o trabalho da liderança em
construção consigo mesma. [e] (...) também de um trabalho da relação com a comunidade”
(idem, p.56-57). No fim, as pessoas aprendem a aprender (BATESON, 1972) e se
transformam em “um tipo de sujeito moral (Foucault, 2018) específico” (RABELO, 2019,
p.57).

3.1.2. A Casa do Mobon em Dom Cavati

A Casa do Mobon, onde acontecem os cursos de aprofundamento e revisão; os


preparatórios para a vivência dos tempos do Advento e da Quaresma e de cântico litúrgico-
pastoral, é configurada por um conjunto de edificações que circunda a capela152. Para se
aprender-ensinar e debater nos cursos, a casa conta com um grande salão. Para os trabalhos
em grupo, além da ampla área verde externa, o local conta com uma pequena área verde
interna com banquinhos. Toda a área interna é dotada de um corredor coberto que facilita a
locomoção e entrosamento dos participantes. Além dos espaços de trabalho e de lazer, para
receber bem e proporcionar aos/as cursistas um ambiente receptivo, em que se sintam seguros,

151
No sentido dicionarizado de “dar encarnação a”, “meter-se pela carne” e “entranhar-se”. Ou, ainda, nos
termos nativos de vivenciar de forma profunda “uma fé encarnada” (GOMES; ANDRADE, 2011, p.30).
152
Lembrando que esse não é o único lugar onde acontecem esses tipos de cursos do movimento. Eles podem ser
ministrados por lideranças “de confiança” dos irmãos sacramentinos ou pelos próprios em outras casas de curso,
salões paroquiais, seminários, etc. em outras localidades.
105

se alimentem e descansem, a Casa possui dormitórios masculinos e femininos, refeitório e


garagem para aqueles que vêm de carro; e, durante os dias de curso, a cozinha complementar
funciona. O mapa abaixo ilustra as principais acomodações que compõem a Casa do
Movimento da Boa Nova.

Figura 6 | Configuração da Casa do Mobon. Fonte: Acervo próprio.


Elaborado por Rodrigo Teixeira.
106

3.2. Ajustando o foco: o que mostra um retrato “Sobre nós”, o Mobon

Em antropologia visual aprendi que muito pode ser extraído a partir da interpretação
de uma fotografia. Escreveu Rial (1995, p.120) que a “imagem é mais do que representa”.
Como mais um instrumento técnico que pode ser utilizado para o registro e compreensão da
realidade social, a fotografia – e o espírito da cena (visual-scape) que a circunda (RIAL,
1995) – é uma ferramenta poderosa para “mostrar” aquilo que, por descuido ou rotina, não se
vê/percebe no devir da vida. A fotografia, assim, possibilita a re-situação entre etnógrafo e
nativo como sujeitos-sede de representações simbólicas (ROCHA, 1995), além de que, a
partir dela e por ela é possível a construção de “uma leitura de”. Aliada ao texto, portanto, no
status de “imagem-texto”, ela proporciona ao seu interlocutor a possibilidade de se aproximar
da aura do fenômeno.
A foto é um objeto bom para pensar. E não só isso. Para além de uma questão teórica,
como se verá em seguida, o registro fotográfico possui significativa importância na trajetória
sociohistórica do Mobon. Durante os cursos do Boa Nova, o momento de tirar a “foto dos
participantes” pode se tornar um episódio que compõe o processo ritual de transformação de
católicos comuns em pessoas “conscientes” e “engajadas”. Não só as fotos dos participantes,
mas todos os registros fotográficos que são gerados e socializados se tornam ‘artefatos de
memória’ que os cursistas fazem questão de guardar, e, às vezes, de mostrar. Dito isso,
convido o leitor a ler atentamente a fotografia a seguir dos participantes de um curso na “Casa
de Curso do Mobon” 153, em Dom Cavati.

153
A qual me referirei daqui para a frente apenas por “Casa do Mobon”.
Figura 7 | Fotografia apresentada pelo Mobon em seu site para ‘ilustrar’ o texto “Sobre nós”
108

Como constatado na pesquisa de campo, apesar de existirem relatos e dados sobre a


baixa participação nos cursos envolto por uma ‘retórica da perda’ entre os sacerdotes e os
leigos, que falam do ‘esfriamento’ do interesse, principalmente dos jovens, pelas CEBs e suas
atividades correlatas e, em alguns casos, narram o ‘fim’ da dinâmica dos cursos em que
“leigos formam leigos”154, as pessoas continuam se reunindo, celebrando, fazendo os cursos e
os replicando nas comunidades. Como disse certa vez Farinhada155, por ocasião de uma
reflexão sobre a atualidade das comunidades de base, “Por mais desarticulado que hoje
estejam as CEBs, mas você chega nas comunidades e o povo ainda continua resistindo. (...).
Pode ter a crise que for, mas o povo não abre mão de celebrar”. A fotografia acima pode ser
considerada uma evidência dessa “resistência”.
Nela é possível ver diversos elementos que dizem um pouco sobre a maneira
liberacionista de fazer as coisas dinamizadas pelo Mobon. Em um primeiro olhar se vê um
“ajuntamento” de pessoas que, por si só, já nos informa sobre a “força agregadora” (VELHO,
G., 2003)156 que um evento como o curso de formação do Mobon possui. A foto mostra leigos
– tendo a dizer, a maioria “lideranças comunitárias” – com as mais diversas trajetórias de
vida, vindos das mais diferentes localidades, pertencentes a distintas “gerações”157 e com as
mais diversas expectativas que se juntaram em um determinado espaço-tempo em ‘busca’ de

154
Diversos foram os momentos em que se ouviu sobre esses ‘temores’. Lembro-me de uma conversa com meu
tio Zezinho, liderança na comunidade Nossa Senhora Aparecida, em Manhumirim/MG, no dia 29/07/2018, em
que ele refletia sobre a baixa participação no curso do Mês da Bíblia. Ele refletiu sobre a diferença dos “tempos
de hoje”, em que os dirigentes não circulam tanto, que “nunca podem participar” e, por não poderem, não
deixam os grupos se reunirem. Segundo ele, diferentemente, no “tempo passado” as pessoas andavam de 2 a 4
km para poderem participar dos grupos de reflexão, visitando até mesmo outras comunidades. O tema também
dinamizou a conversa que tive com o pároco de Manhumirim, padre Marcos Antônio A. Duarte, no dia
31/07/2018. Ao perguntar a ele sobre a importância dos grupos de reflexão, sobre qual a impressão que ele tem
sobre a dinâmica deles atualmente, sobre o que tem sido feito na paróquia em termos de formação religiosa e
como tem sido feito, ele teceu algumas constatações: (1) os dirigentes estão cansados e é necessário fazer o
trabalho de animação dos dirigentes – animar quem está cansado; (2) o desânimo dos grupos se deu pela não
realização da Plenárias. Muitas comunidades voltaram a fazê-la; (3) é necessário suscitar novos dirigentes. Nesse
ano se está preparando para fazer o movimento de retomada, i.e., animar os dirigentes, retomar as plenárias e
suscitar novas lideranças. Segundo ele, os jovens se interessam pouco pelo modelo de igreja “em saída”, por que
“o jovem que está concentrado em si mesmo”. Sobre a baixa participação no curso do Mês da Bíblia, ele
justificou dizendo “houve baixa participação por conta dos horários [do curso”. Por fim, o tema da “baixa na
participação” foi alvo de reflexões em alguns artigos na Revista Diretrizes, órgão oficial de comunicação da
Diocese de Caratinga/MG, e na Revista O Lutador, revista da Congregação dos Missionários Sacramentinos de
Nossa Senhora. A saber: “Trocando em miúdos”, especificamente a parte “A queda na frequência” (Revista
Diretrizes, n. 809, fev. /2009, p.31-32); “A queda da casa” (Revista Diretrizes, n. 809, fev. /2009, p.34-35) e
“Um fermento evangelizador” (Revista O Lutador, n. 3911, maio 2019, p.8-9).
155
Entrevista, 06/11/2018.
156
É certo dizer que Gilberto Velho utiliza o conceito para analisar eventos sociais em contextos complexos
como grandes cidades e metrópoles, todavia, a noção é “boa para pensar” a lógica da congregação de pessoas em
torno de qualquer situação social. E mais, a considerar que as comunidades de base dinamizadas pelo Mobon se
desenvolve nas malhas de uma sociedade pluralista e complexa, o conceito é muito útil. Para detalhes, sugere-se
a leitura de Velho, G. (2003, p.11-30).
157
Cf. Rabelo (2019, p.70-72).
109

novas informações para poderem ‘levar’ para suas comunidades, paróquias e dioceses e
formarem mais leigos. Em outras palavras, os cursistas se reuniram para realizarem “Uma
ação coletiva organizada, sustentada em crenças e valores compartilhados” (VELHO, G.,
2003, p.14).
O grupo, formado em sua maioria por homens (dá para contar quantas mulheres estão
na foto, i.e., aproximadamente 12)158, é composto por um uma mistura de cores de pele,
tendendo para o “pardo” e com baixa participação de pessoas de pele negra. Desconfia-se que
a maior parte das pessoas retratadas é de origem camponesa, isto é, advindas de comunidades
rurais. Como dá para ver, há também uma tímida miscelânea de faixas etárias – crianças,
jovens, com a preponderância de adultos, anciões e anciãs. Se se busca pelo detalhe, é
possível ver que há um ‘padrão’ na maneira de homens e mulheres se portarem corporalmente
para a foto. Há uma recorrência também na maneira de se vestirem. Para os homens, por
exemplo, quando não se está utilizando uma camisa de botão, se está vestindo alguma camisa
‘de movimento’ ou de pastorais da Igreja Católica.
Como dissemos em outra oportunidade, essas pessoas são “marcadas” por uma
maneira específica de se vestirem, de se portarem (TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018).
Geralmente, esses leigos se vestem e circulam por diversos lugares levando/representando
consigo parte de sua identidade por meio de

“(...) camisas, bonés, embornais, cordões, amuletos, guias, fitas de amarrar nos
braços, anéis (de tucum, por exemplo) entre outros, que atuam como ‘fardas’, como
se referiu um agente da cultura em uma conversa sobre as ‘camisas do movimento’
Compõem uma indumentária ‘da luta’ que distingue uma pessoa da outra, ao mesmo
tempo em que a aproxima de um universo identitário comum de um ‘novo jeito de
ser Igreja’” (TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.629).

Desta maneira, suas roupas e acessórios – que classificamos como “coisas-que-atuam-


como-segunda-pele” (TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.629-630) – funcionam como
sinais diacríticos que dizem de uma identidade militante católico-política.

158
Não sei dizer ao certo qual é a média de participação de homens e mulheres nos cursos promovidos pelo
movimento ao longo da história. Em um artigo d’O Lutador, de título “Um Fermento evangelizador” (n. 3911,
maio 2019, p.8-9), escrito pelo missionário sacramentino Mariano, há um compilado de informações sobre a
participação geral nos cursos. Como escreveu, “(...). No primeiro período, de 1979 a 1988, a média de
participantes em cada curso era de 45 pessoas, subindo para 49 na segunda década e para 89 na terceira,
chegando 108 pessoas em média nestes últimos dez anos” (SILVA, Denilson Mariano da, 2019b, p.8). A título
de informação, no curso da Campanha da Fraternidade de 2018, que participei nesta mesma casa de cursos em
Dom Cavati, constatou-se que das 60 pessoas que participaram, 36 eram homens e 24 mulheres, o que está em
consonância com a realidade que a foto retrata. Não quero dizer que isso é recorrente em todos os cursos,
reuniões de grupos de reflexão, plenários. Apenas apresento a reflexão, parece-me que a participação nos cursos
é ‘dominada’ pela presença masculina. Todavia, para se chegar a uma melhor compreensão do exposto, é
necessário maior aprofundamento por meio de uma pesquisa de escopo mais sociométrica, atento a esse aspecto
de gênero. Outras questões que envolvem a questão de gênero serão abordadas adiante.
110

Na foto é possível observar mais. Quem a escolheu para ‘ilustrar’ a página do Mobon
queria informar parte importante da história do movimento. Ela não foi tirada em qualquer
lugar. O cenário escolhido diz muito também sobre a sociogênese do Mobon. Ela foi
registrada em frente à entrada principal da Casa do Mobon, a “casa central” do movimento,
em Dom Cavati, local de extrema importância para a difusão dos saberes fazeres ‘do’
movimento de evangelização da diocese de Caratinga. Como escrevemos, a casa é um dos
principais pontos “de chegada e de partida” para muitas pessoas (TEIXEIRA, R. S.;
RABELO, 2019). Um espaço de formação e sociabilidade para aqueles que querem se tornar
lideranças ou para aqueles que, já sendo lideranças, buscam o aprimoramento de seu saber/sua
performance.
A árvore emoldurando o canto esquerdo da foto faz lembrar ao observador atento à
história do movimento ‘o tempo em que’ os cursos aconteciam embaixo de árvores e
currais159. O banner segurado por alguns cursistas à frente do ajuntamento de pessoas, com
uma foto ampliada, em preto e branco, dos participantes de um “curso” se trata de uma
espécie de metalinguagem do que aqui estamos falando (da importância da fotografia para o
movimento), isto é, uma fotografia vira “símbolo” que compõe a cena, ou como definimos,
transmuta-se em “coisa-que-atua-como-compósito-de-cenário” (TEIXEIRA, R. S.; RABELO,
2018). Além, quando se olha o que a fotografia do banner registra, vemos ser colocado em
destaque ‘mais uma vez’ para a posteridade um dos importantes momentos da história do
Mobon em que mediadores-missionários sacramentinos e mediadores-leigos realizaram um
‘intercâmbio’ de conhecimentos com Carlos Mesters, um dos importantes agentes da rede
social aqui estudada, responsável por ‘converter’ o Mobon de um movimento “rezador” para
um movimento “mais político” (cf. OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.119-131).
A foto dentro de outra foto registra o “Encontro Bíblico com Carlos Mesters na Casa
do Mobon, de 01 a 03 de outubro de 1979, em Dom Cavati - MG”. Como abordado no
capítulo 2, Carlos Mesters “era um dos agentes que se aproximou do Mobon porque
ministrava cursos bíblicos em Minas Gerais” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.123). Ele é um
dos responsáveis por difundir os “círculos bíblicos” por Minas Gerais e pelos Brasil. Como
disse Mariano,

159
Como notou-se, grosso modo, apesar da existência de várias casas de curso espalhadas pelas paróquias de
várias localidades do território que estamos a tratar (conforme ‘delimitação’ apresentada no capítulo 2), os
cursos ‘ainda’ continuam a acontecer debaixo de árvores. Na Casa do Mobon, por exemplo, onde há uma ampla
área verde no entorno da casa (cf. Mapa da Casa do Mobon, p.105 desta dissertação), os cursistas procuram as
sombras das árvores como espaços para a realização de reflexões em grupo e/ou descansar nos momentos de
lazer.
111

“(...) a Diocese de Caratinga, que tem assim uma caminhada com os grupos de
reflexão que surge ao mesmo tempo em que surgiu os círculos bíblicos com Carlos
Mesters. São caminhadas diferentes, mas com um mesmo foco: essa importância da
Bíblia na mão do povo, na mão das comunidades”160.

Para citar alguns encontros dos mediadores do Mobon com o frade carmelita, é sabido
que Alípio participou de “um encontro para discutir questões bíblicas em Angra dos Reis-RJ,
em fins da década de 1970” (OLIVEIRA, F. R. C., 2012, p.123), bem como o frade
assessorou o 1º Encontro de Padres na Casa Central do Mobon, de 03 a 04/10/1979161. A foto,
portanto, sinaliza a centralidade da “Bíblia na mão do povo” como pressuposto para a ação de
evangelização, a proximidade e a relação direta com os círculos bíblicos, e, por fim, o quanto
um movimento “impingiu” um no outro.
À frente, na parte central da foto, vestido de camisa azul, está um dos “cabeça” do
Mobon, João Resende. À direita, de óculos e também de camisa de botão azul, apoiando as
mãos em uma cadeira, está outro fundador do movimento, Alípio Jacinto. Como certa vez
escreveu Gomes e Andrade (2011, p.15), “sem eles esta história não seria contada, ou seria de
outra forma”. Completa o time de missionários sacramentinos dedicados a “contar a história”
do Mobon, desde 1991, Denilson Mariano162. Os três missionários, “embora o Mariano tenha
menos tempo, devido a outros encargos na Congregação” (COSTA, 2009, p.49), dividem as
tarefas e se ajudam para ministrar os cursos na Casa do Mobon e “para atender às várias
paróquias que não vão ao Mobon”163. João se dedica mais ao “repasse” do Curso da
Campanha da Fraternidade (geralmente ministrado entre fevereiro e março); Mariano fica
mais por conta do curso do mês da Bíblia (entre julho e agosto), e; Alípio Jacinto, quando não
é convidado para ministrar algum curso ou fazer uma fala para alguma comunidade164,
desempenha o papel de “presidente” da Casa do Mobon, respondendo pela recepção dos

160
Entrevista, 03/09/2018, online, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ks1DCWvDOSI>.
Acesso em: 23 set. 2018.
161
Conforme registro fotográfico apresentado no artigo “Uma casa que fez história” (Revista Diretrizes, n.809,
fev. /2009, p.27).
162
Denilson Mariano tem 51 anos e, como documentou Alípio, “com o exemplo e o incentivo do João Resende,
[é] mais um membro da nossa Congregação [que] fez opção pelo Movimento da Boa Nova. (..). Desde jovem
(...) se empolgou com nosso trabalho e, finalmente, fez a opção por ser missionário leigo, dentro da Congregação
com a finalidade de se dedicar inteiramente neste serviço ao povo, através do anúncio da palavra de Deus dentro
do Movimento da Boa Nova” (COSTA, 2009, p.49).
163
Mariano, conversa de WhatsApp®, 09/02/2019.
164
Como contou, quando provocado na entrevista sobre a ligação do Mobon com os sindicatos de trabalhadores
rurais, “Eu fui chamado pra ir numa comunidade chamada São Sebastião do Batatal, aqui no Ubaporanga, até
quem me convidou foi os crentes... me deram a sugestão de me convidar pra ir lá, pra falar sobre questão da...
dessas organizações sociais. (...) Ai eu fui lá, fiz... Ubaporanga. É pertinho aqui, a esquerda. São Sebastião. Eu
fiquei até muito honrado com o convite” (Entrevista, 08/02/2018).
112

cursistas, pelo planejamento e organização do funcionamento da Casa em dias de curso ou


não165.
Voltando à imagem, nas mãos dos cursistas é possível visualizar os livretos de curso
(azuis, no formato A6) e a Bíblia Sagrada, que chamamos, em outro momento, de “coisa-de-
informação/formação-sistematizada” (TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.629). O que
sinaliza, em parte, de onde vem o conhecimento que re-situou a vida de tanta “gente simples”
da Zona da Mata. Nos faz lembrar do fato de que “(...). Eles que nunca leram Marx e que, na
maior parte dos casos, situados ainda bastante a margem da cultura exageradamente letrada,
que é o estofo de nossas vidas, fazem da Bíblia Sagrada e de outros livros de conhecimento e
devoção cristão os textos com que se aprende a ser e a viver (BRANDÃO, 1999, p.13).
À frente do ajuntamento de pessoas, vemos uma série de materiais que funcionam
como “símbolos” históricos, religiosos e “da luta” de trabalhadores e trabalhadoras: uma
enxada, uma pá, uma colcha de retalhos, sobre a qual estão colocados o livro da História da
Casa do Mobon aberto (!), diversos livretos dos cursos já realizados e um par de sandálias
Havaianas®. Isto é, um conjunto de “coisas-que-atuam-como-compósitos-de-cenários”
(TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018), que juntos transmitem uma série de mensagens e
valores. Etnograficamente falando, tais símbolos ‘podem representar’166 a trajetória de
formação, “caminhada” e “de luta” do Movimento da Boa Nova, as comunidades rurais e a
“classe roceira”167 em busca de seu valor, ou seja, a gente “simples”, “pequena”, “pé no chão”
e “caminhante” que “faz” o movimento.
No canto direito da foto, vemos objetos e substâncias litúrgicas, ou seja, objetos rituais
utilizados no rito católico durante a “celebração da palavra” e “da eucaristia”, durante os
cursos. Quais sejam: o círio, o cálice e a âmbula (ambos de madeira), o manutérgio, a água, o
vinho, as galhetas e a pala. Mais atrás, o púlpito, utilizado pelos oradores e leitores da
celebração. Se estão alocados do lado de fora, provavelmente foi porque a celebração ou
missa aconteceu (ou acontecerá) do lado de fora da Casa. Esse simples deslocamento, como

165
Como fez questão de atestar, no fim da tarde do dia 07/02/2018, ao mostrar a mim e Lívia a ata da reunião em
que foi eleito, o missionário desempenha esse cargo desde 1995.
166
Como escrevemos “Em linhas gerais, em todas as classes de coisas mencionadas [neste caso, me refiro às
coisas-que-atuam-como-compósitos-de-cenários] o simbólico é passível de várias interpretações (as coisas são
polissêmicas), o que coloca sempre em jogo uma tensão interpretativa entre pontos de vistas antagônicos”
(TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.632). Assim, ao interpretar os símbolos, estamos falando sempre de um
‘campo de possibilidades’. Os significados aqui atribuídos, se ancoram na observação e atenção para as
conversas e narrativas ouvidas durante a pesquisa de campo.
167
Parte da letra da música “A grande esperança” de Chico Rey e Paraná. A canção compõe vários cancioneiros
que tive acesso ao longo do trabalho de campo, e foi cantada algumas vezes por algumas lideranças, como no dia
da festa de lançamento do disco “Vozes da Mata” (2017), gravado por Sebastião Farinhada e músicos parceiros,
ocorrida na sede do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata mineira (CTA-ZM), no dia 08/12/2017.
113

veremos, é uma prática comum em dias de curso na Casa do Mobon. Este conjunto de
objetos, substâncias e prática ritual de fazer a celebração “do lado de fora” da capela ou do
salão de cursos dizem muito de uma prática católica “da libertação”, pautada, no caso do
Mobon, em uma “espiritualidade e... mística libertadoras” (RESENDE, 2011, p.151).
Por fim, como fotografia que funciona como “imagem-texto” para ilustrar o que é o
Movimento da Boa Nova168, a imagem possuí uma poderosa capacidade de sintetizar sobre os
principais aspectos, as pessoas e as coisas que compõem os cursos promovidos pelos
missionários e/ou seus ‘alunos’ (as lideranças leigas). Sua descrição serviu para trazer vários
temas que serão discutidos a seguir.
No item abaixo, pretendo apresentar os saberes fazeres ‘do’ Mobon (reunir, falar,
escutar, ler, interpretar, celebrar, fazer mística, se emocionar, “cantar a religião libertadora”,
registrar, estudar, usar mapas bíblicos, desenhar e/ou valorizar o desenho) “em uso” durante o
Curso da Campanha da Fraternidade que acompanhei e como eles, em seu conjunto,
transformam “católicos comuns” em católicos “conscientes” e “engajados”. Isto é, estruturam
uma identidade militante católico-política.

3.3. O Curso da Campanha da Fraternidade de 2018, na Casa do Mobon

A saber, a Campanha da Fraternidade (CF) surgiu como uma atividade para arrecadar
recursos financeiros para as atividades assistenciais e promocionais da Cáritas Brasileira, em
Natal/RN, em 1962. Sem êxito financeiro, a campanha foi “(...) o embrião de um projeto
anual dos Organismos Nacionais da CNBB e das Igrejas Particulares no Brasil, realizado à luz
e na perspectiva das Diretrizes da Ação Pastoral (Evangelizadora) da Igreja em nosso país”
(CNBB, 2017, p.101). Alinhada ao espírito do Concílio Vaticano II, tem o projeto lançado em
âmbito nacional em 1963 e realização, pela primeira vez, na Quaresma de 1964.
A reflexão gerada durante as atividades integradas e integradoras realizadas durante o
período de vigência da campanha (de fevereiro a março) prepara os leigos para a vivência dos
tempos litúrgicos da Quaresma. A reflexão do tema proposto para a CF anual ‘atravessa’
todas as ações das dioceses que aderem à campanha. O tema ampara “cursos de formação”
para as “equipes de campanha” (cf. CNBB, 2017, p.118-121), as ‘conversas’ e reflexões nos

168
Disponível em: <https://www.Mobon.org.br/about_us>. Acesso em: 04 jan. 2020.
114

grupos de reflexão, e, até pode extrapolar, guiando, por exemplo, a feitura de presépios, já no
tempo do Advento169.
Alinhado aos pressupostos da campanha de política cultural liberacionista, os
objetivos “permanentes” da CF são:

“a. Despertar o espírito comunitário e cristão no povo de Deus, comprometendo, em


particular, os cristãos na busca do bem comum;
b. educar para a vida em fraternidade, a partir da justiça e do amor, exigência central
do Evangelho;
c. renovar a consciência da responsabilidade de todos pela ação da Igreja na
evangelização, na promoção humana, em vista de uma sociedade justa e solidária
(todos devem evangelizar e todos devem sustentar a ação evangelizadora e
libertadora da Igreja)” (idem, p.102).

Por fim, a CF se ‘encerra’ com a realização de um “gesto concreto”, ou seja, com a


coleta nacional da solidariedade, realizada no Domingo de Ramos. Os recursos arrecadados
são destinados para os fundos diocesano e nacional para que financiem projetos comunitários
das mais diversas espécies que atendam aos objetivos propostos pela CF do ano corrente170.
Como já disse, o Mobon só se aproxima da Campanha da Fraternidade (CF) em 1995, ano em
que se discutiu “A fraternidade e os excluídos – Eras Tu, Senhor?!” (CNBB, 2017, p.105).

***

Tive a oportunidade de vivenciar o Curso da CF do ano de 2018 em todas as suas


etapas: preparação, realização e parte do pós-evento. Estive na Casa do Mobon junto com
Lívia Rabelo, companheira de pesquisa, no período de 06 a 11 de fevereiro. O Curso
aconteceu de 09 (sexta-feira) a 11 (domingo), começando por volta de 16h20 e terminando
após o almoço.
Desde que chegamos até a manhã do dia 09, quase todas as atividades realizadas na
casa por Dona Conceição, Alípio, Sr. Roberto e Darcy, com apoio de Matilde, foram em
função de preparar a Casa para receber o público do curso. Em uma sala, vi um amontoado de
pacotes com os livretos de cursos com “um resumo bem feito pelo Ir. João Resende, SDN, um
dos experimentados dirigentes do Mobon..., em nossa Diocese”171 que seria vendido aos

169
Durante a pesquisa de campo, vi o tema da CF de 2017, “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida”
inspirar o planejamento e a elaboração do presépio de Natal que ajudei a construir, no dia 22/12/2017, no interior
da capela da comunidade de Nossa Senhora Aparecida, em Manhumirim. Bem como, em relação à CF de 2018,
me deparei, em uma comunidade rural de Espera Feliz, com um roteiro de Grupo de Reflexão (Caderno 431),
organizado por João Resende, que dinamizou as discussões nos grupos de Reflexão da Diocese de Caratinga em
fevereiro. O tema do 3º Curso de Férias para Educadores Populares, realizado em Caratinga, de 10 a 14/01/2018,
foi o tema da CF de 2018, e orientou a maior parte das palestras oferecidas ao público.
170
Para acesso à natureza e histórico completo da CF, vale a leitura de CNBB (2017, p.101-121).
171
Dom Emanuel Messias de Oliveira, bispo diocesano de Caratinga, no texto de apresentação do livreto (p.3).
115

cursistas para serem utilizados durante o evento. Em um vai e vem pela Casa, desde muito
cedo, homens e mulheres se dividiam para realizarem as tarefas preparatórias: limpar e
organizar o salão de cursos, o refeitório, a cozinha auxiliar, os dormitórios e banheiros
(masculinos e femininos) e a área externa em torno do prédio. Lembro-me que na medida em
que se aproximava o dia do curso, mais intensas eram as ‘mudanças’ vistas na espacialidade e
sociabilidade da casa.
O ápice das mudanças se deu na manhã do dia 09 até a hora de se iniciar o
credenciamento. Neste dia, levantei-me atrasado. Já eram quase 8 horas da manhã. A casa é
“um local para retiros”172 e, como tal, possuí um temporalidade bem marcada, que se acentua
com a proximidade da realização de cursos, isto é, durante dias mais movimentados. Desde a
minha chegada, percebi que a Casa ‘emana’ um clima “de trabalho” e “de oração”. Durante os
dias de curso, esse é o clima que ‘domina’, pontuado por um clima de celebração festiva,
amizade e cooperação, sobretudo, nos momentos das refeições e de intervalo173. Como
dissemos:

“Como um ambiente onde os membros das comunidades podem refletir, atualizar e


celebrar na vida a Palavra de Deus, a Casa do Mobon é um lugar onde se levanta
cedo e – teoricamente – se dorme cedo. Como orienta um documento de 1981, às
06:00 é o horário de se levantar e às 22:00 o momento de silêncio. De lá para cá, não
houve tantas alterações nessa maneira de organizar o tempo. Durante os dias mais
movimentados da Casa, quando os missionários recebem os cursistas, geralmente de
08:00 às 20:00 é o horário de trabalho, em que os presentes fazem (COMERFORD,
1999) os cursos. Ou seja, colocam em prática e (com)partilham, durante três dias,
um conjunto de práticas e saberes aprendidos na ‘caminhada missionária’”
(TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2019, p.50-51).

Após acordar, levantei-me, me aprontei e fui ver o que estava acontecendo. No


caminho para a cozinha principal, me deparei com Lívia restaurando com um pincel atômico
o letreiro da entrada do refeitório. Dona Conceição estava na cozinha auxiliar conversando
com a cozinheira responsável por cozinhar durante os dias do curso. Os bebedouros, que
durante o tempo comum (sem cursos na Casa) ficam desligados, estavam ligados e próximo a
eles se via algumas canecas de plástico e alguns copos de vidro e alumínio. Uma prateleira
com copos de vidro e garrafas com café e chá também foram dispostas em uma pia do lado de
fora do salão de cursos, para que as pessoas pudessem se servir. Nesse dia, a divisão do
trabalho entre gêneros ficou mais marcada. As mulheres lavaram vasilhas, prepararam os
utensílios para a utilização durante as refeições, calcularam o quanto de comida seria feita,

172
Caderno História do Mobon, p.77.
173
Sobre as características que marcam esses momentos (e de outros de uma “reunião”), cf. Comerford (1999,
p.53-57).
116

cozinharam, cuidaram de explicar como seria feito o credenciamento dos participantes,


explicando como seria realizado o registro dos presentes, bem como seria feita a venda dos
livretos e demais materiais de trabalho e disseminação da mensagem do curso (CDs com as
canções, livros de Cifra e livrinhos de cânticos). Os homens, eu incluído (dessa manhã em
diante de fato passei a contribuir com a organização do evento), foram designados para
descascar batata, trocar lâmpadas, verificar as instalações elétricas, principalmente as do salão
de curso, instalar os equipamentos para a realização do curso (caixas de som, microfone,
datashow, notebook), mover móveis pesados do lugar, carregar fardos e sacos de alimentos,
etc.
Na parte da tarde do dia 09/02, Lívia, Ronilson (cursista de Entre Folhas que chegou
pela manhã) e eu trabalhamos no credenciamento dos participantes do curso. Logo após o
almoço, por volta das 13h, eles começaram a chegar. Neste momento orientávamos as pessoas
e íamos as conhecendo e tendo uma dimensão de quantas participariam do curso e de onde
estavam vindo. Muitas foram as conversas feitas durante esse momento. Foi o momento em
que ouvimos muitas histórias de quem conhece quem, da ligação das pessoas com a Casa e os
cursos. Ouvimos algumas histórias de vida.
Como já informado, ao todo, participaram do curso 60 pessoas, entre anciãos e anciãs,
adultos e jovens (não me lembro de ver alguma criança), sendo 36 homens e 24 mulheres,
advindos das seguintes localidades: Alvarenga (13 pessoas); Inhapim (10 pessoas);
Ubaporanga (6 pessoas); Dom Cavati (5 pessoas); Entre Folhas (5 pessoas); Imbé (4 pessoas);
Ipaba (4 pessoas); Tarumirim (3 pessoas); Simonésia (3 pessoas); São Domingos das Dores (2
pessoas); Iapu (2 pessoas); Caratinga e Viçosa (ambas 1 pessoa). Em um primeiro olhar,
observando as ‘indumentárias’ das pessoas (TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.629) e
conversando com algumas delas durante os dias do curso, foi possível ver as diversas
‘filiações’ dessas lideranças. Havia pessoas ligadas aos sindicatos de trabalhadores rurais, ao
PT, às cooperativas de produção, a Sociedade de São Vicente de Paula, ao ‘movimento’ da
“medicina alternativa” (homeopatas, raizeiros e benzedores), ao ‘movimento’ agroecológico,
ao Movimento de Renovação Carismática Católica, etc.
A maioria dos cursistas era proveniente de comunidades rurais. Notei apenas 2 pessoas
do meio urbano: uma professora, que me disse ser de comunidade urbana de Caratinga e um
cursista ‘veterano’ na Casa, que soube por terceiros ser de uma comunidade de base da área
urbana de Viçosa. Como escreveu João Resende (1988), “O MOVIMENTO DA BOA NOVA
– MOBON se ocupa mais da Evangelização do meio rural e pequenas cidades” (p.11). Ou,
como apontaram os pesquisadores Oliveira, F. R. C. e Zangelmi (2009), “O maior público dos
117

cursos era e continua sendo pessoas provenientes de comunidades rurais” (p.216). Essa
percepção está em muito ‘enraizada’ na ideia de que nas cidades a ‘solidariedade orgânica’
dificulta o trabalho coletivo, bem como na percepção de que no ambiente urbano o
desenvolvimento de uma linguagem simbólica que de fato comunique e seja entendida por
todo o público, se faz uma tarefa mais difícil174. Como analisa o missionário Mariano, não é
que a atuação do Mobon seja ‘um fracasso’, mas se trata de “um desafio”. Em recente
entrevista, assim se expressou:

“Dizer então que os grupos então seriam uma coisa da roça, superadas, e que não
respondem à cidade, acho meio complicado, até porque o seguinte, é também um
fenômeno urbano que as pessoas estão vivendo uma grande solidão no mundo
urbano, as pessoas vêm pra cidade, embora, próximas de muitas, muitas... muitas
pessoas, muita gente, mas se sentem isoladas. E o que que faz justamente os grupos
de reflexão, aproxima os vizinhos, rompe essa barreira da indiferença, rompe essa
barreira, né, de cada um pra si. Então é um desafio a gente apostar nesses grupos
também no mundo urbano” 175.

De certa maneira, contrapõem esses ‘dados’ parte da literatura com a qual tive contato
(GOMES; ANDRADE, 2011)176, que aponta haver uma ligação ‘forte’ do Mobon com o meio
urbano, especificamente com os bairros operários de Belo Horizonte (como, por exemplo, o
bairro Barreiro, onde, por sinal, está situada a Escola Sindical 07 de Outubro, palco de tantos
eventos e formações dos movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores rurais da Zona da
Mata). Lembro-me também do relato do pároco de Manhumirim, padre Marcos Antônio A.
Duarte, que disse177 que, apesar de 18 das 33 comunidades de base da Paróquia do Senhor
Bom Jesus serem rurais, dos 68 grupos de reflexão que existem, a maior concentração deles se
encontra na zona urbana. Disse também que:

“A metodologia do MOBON é uma linguagem que vai se adaptando as diversas


realidades – de parábolas rurais para as parábolas mais urbanas, para dialogar com a
juventude tem que se usara essa linguagem moderna. Mariano, por exemplo, tem
feito esse movimento”.

Durante o curso, Lívia e eu fomos muito bem recepcionados por João Resende e pelo
público do curso. João Resende nos apresentou como pesquisadores que fazem “pesquisa via
oreia” interessados na relação entre “religião e vida”, e fez questão de nos colocar ‘para
174
Para João Resende, “A linguagem rural é mais simbólica, ao passo que a linguagem chamada urbana ou
cibernética é muito abstrata, sem símbolo. ‘Quem vai entender de placa mãe? Uma minoria’” (OLIVEIRA, F. R.
C., 2010, p.49).
175
Entrevista, 03/09/2018, online. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GtD_vy3uVRA>.
Acesso em: 23 set. 2018
176
Cf. capítulos “A constituição e a expansão do MOBON” (p.54-57) e “A articulação das CEBs em Minas
Gerais e o MOBON” (p.73-83).
177
Em conversa, no dia 30/07/2018.
118

dentro’ do curso, solicitando a nós que o apoiássemos no manuseio dos equipamentos de


projeção e até mesmo atuando como “equipe de frente” (COMERFORD, 1999)178, ao
contribuir, ao final do curso, com a celebração de encerramento, em que li o texto bíblico do
dia; fizemos as preces e falamos sobre nossa experiência de participar do curso de maneira
emocionada, com choro e tudo mais. Aprendemos a nos emocionar.
No momento de encerramento do curso, na celebração final, João Resende nos
surpreende, chamando Lívia e eu à frente para falar nossas impressões. Neste momento, a
emoção se desaguou em choro. Ao agradecer a oportunidade de poder estar ali, ouvir, ver,
sentir junto com os “camponeses-padres” (o público) e os “padres-camponeses” (João
Resende, Alípio, padre Zé Leão e outros sacerdotes que por ali passaram) durante 3 ‘longos’
dias, minha fala foi engasgando, veio o silêncio (como que querendo ‘fugir’ do choro) e
depois as lágrimas. Lívia, ao me ver emocionado, se emocionou também. Choramos os dois.
Houve uma comoção geral, e mais gente começou a chorar. Choramos todos juntos.
Logo em seguida, veio a ‘consolação’ dos presentes. Momento em que mais nos
‘igualamos’ do status de cursistas, por termos nos emocionado junto com eles, como eles.
Como observamos, após termos atuado como “equipe de frente”, celebrando a Palavra de
Deus, bem semelhante ao modo como atuam os ‘ministros da palavra’ – performance
intensificada pelo choro e pela fala engasgada que rompeu toda a representação ‘científica’ a
qual fomos enquadrados desde nossa chegada, tal como aconteceu com padre Zé Leão ao fim
de sua missa na manhã do dia anterior, os presentes fizeram uma fila para nos cumprimentar.
Uma sinalização de que agora também éramos (ou, poderíamos ser) ‘camponeses-padres’ (ou
‘padres-camponeses’?). Enfim, sentimo-nos mais ‘de dentro’ do “jogo absorvente”179. Todos
os presentes, um a um, iam nos colocando ‘dentro’ de um abraço. Alguns apenas abraçavam,
de forma rápida. Outros falavam palavras de incentivo para continuar “gostando de religião”;
outros diziam palavras de afago.

178
Comerford (1999), inspirado na analogia do teatro desenvolvida por Goffmnan em “A representação do Eu na
Vida Cotidiana” (1975), descreve a “equipe de frente” como o grupo de pessoas que na reunião se destacam por
falar mais vezes e mais longamente nos momentos de discussão. Esta equipe está em destaque em relação ao
“público”, isto é, àqueles que basicamente assistem os membros dessa equipe falarem.
179
Da perspectiva do público, até este momento, éramos tratados como cientistas. No máximo, como jovens
interessados pela religião. Quando me lembro desse momento, me vem à mente episódios ‘clássicos’ da história
da antropologia. Como quando Geertz e sua esposa que só se igualaram (e ganharam a confiança) dos balineses,
quando correram junto com centenas de pessoas, quando de uma batida policial fortemente armada reprimiu uma
rinha de galos: “Em Bali, ser caçoado é ser aceito” (cf. GEERTZ, 2008b, p.186-187) e Fravet-Saada, que para
conquistar a confiança dos feiticeiros no Bocage francês teve que se ‘embruxar’ (cf. FRAVET-SAADA, 2005).
Lembro-me também do filme brasileiro de ficção “A Antropóloga” (2011), cuja trama conta a estória de uma
pesquisadora em etnobotânica, que ao investigar o tratamento com ervas entre os descendentes açorianos de
Costa da Lagoa acaba entrando em contato com o sobrenatural, e “passa a enfrentar o ceticismo científico, e
tenta provar a experiência que vivenciou” (Adoro Cinema. Disponível em:
<http://www.adorocinema.com/filmes/filme-202602/>. Acesso em: 27 jan. 2020).
119

Nesse episódio de fechamento de um ‘rito de passagem’, para mim, que sou homem,
me marcou ter ouvido de outros homens palavras que procuravam aliviar a ‘barra’ que foi
chorar. ‘Pior’, chorar “em público”. Lembro-me de um dos presentes me dizer que ele não
tinha costume de chorar (porque como dizem ‘homem não chora’180), mas que com o tempo,
participando dos cursos do Mobon e das coisas de Deus, ele aprendeu que ‘não tem problema
chorar’, que se emocionar é humano.
Como demonstra Theije (2002, p.216-236), religião é coisa de mulher ou, “ser
religioso é função da orientação em relação ao gênero, e não de ser homem ou mulher. (...).
[Assim,] Pessoas com uma orientação feminina em relação ao gênero têm maior possibilidade
de serem religiosas” (idem, p.234). Todavia, como se notou, a maneira de evangelizar desde o
padre Júlio Maria colocou em curso na região um processo de ‘masculinização’ da prática
religiosa de formação de líderes católicos181. Como demonstra Comerford (2001), as ações
pastorais desenvolvidas à época eram arregimentadas por uma linguagem bélica, e
dinamizaram as contradições e os costumes da região pautada, sobretudo, em uma
sociabilidade agonística típica dos córregos. Como escreveu:

“Esse movimento [o Mape, do qual o Mobon é correligionário], que de início


contava apenas com homens entre seus agentes diretos, vai como que colocar a
virilidade desses homens a serviço da fé e como que testar a sua firmeza ou
resistência, a sua capacidade de ocupar a arena pública de luta, ao arregimentá-los
para a missão de evangelização” (COMERFORD, 2001, p.247).

Essa maneira viril é reminiscente nos dias atuais e enquadra a prática da conversão
religiosa e os termos com os quais se conversa sobre essa experiência. Em outras palavras, a
conversão é praticada e conversada sob as cláusulas da transformação de homem machão à
homem religioso. Para citar um exemplo, como escreveu Costa (2009), um homem, de
Vieiras/MG,

“(...) se converteu através do trabalho do Pe. Guinael. O Paulo usava bigodes


grandes, andava sempre armado, valentão e gostava e confusão. Pelos seus feitos
corajosos ganhou o cargo de delegado. ‘Delegado da roça’, como ele gostava e

180
Poderia colocar essa frase entre aspas duplas (“x”), afinal esse é um ditado popular, todavia, a coloco entre
aspas simples (‘x’) para evidenciar o problema que tal dizer representa para a educação ‘de meninos’, que, no
fim são seres humanos. E seres humanos se emocionam. Para além disso, vale lembrar que em contextos de
expressão da religiosidade popular como, por exemplo, nos casos dos giros das Folias de Reis, não é uma cena
tão incomum ver choros de homens. Eles choram especialmente ao agradecer por graças difíceis alcançadas.
Citando caso parecido, presenciei o mestre da Folia de Reis Robadel chorar e cantar (ou vice-versa) quando da
entrega da bandeira na matriz da Paróquia Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Martins Soares, no dia
06/01/2017, dia de Santos Reis.
181
Para uma análise sobre a dimensão viril das ações pastorais do período polêmico de padre Júlio até a
apologética do Mape na Diocese de Caratinga, conferir Comerford (2001, p.227-259).
120

brincar. Homem mau e perigoso, era temido por todos. (...). Assim foi até sua
conversão” (p.64).

Assim, a conversão de que tanto ouvi Alípio falar durante os dias em que estive na
Casa do Mobon, dentre os vários sentidos, também quer se dar quando “se tira a arma da
mão”. Isto é, quando se deixa de dar ênfase às relações belicosas e se passa a cultivar o
cuidado com o próximo. Momento em que o homem, agora religioso, torna-se “metade
macho, metade fêmea” (THEIJE, 2002, p.234). Em termos conversacionais ouvidos durante o
Curso da CF 2018, “Fraternidade é superar a violência!/ É derramar, em vez de sangue, mais
perdão!/ É fermentar na humanidade o amor fraterno!//: Pois Jesus disse que ‘somos todos
irmãos’ (bis)”182. Por extensão, pode-se dizer que a ‘conversão’ do Mape em Mobon se deu
nesses termos. A Bíblia que era utilizada na época do Mape como “arma” para se ‘atacar’ e
proteger a Doutrina Positiva da Igreja Católica com “argumentos de igual para igual diante
dos ataques protestantes” (COSTA, 2009, p.2), após a adesão de parte dos fundadores do
movimento à ideologia liberacionista, passa a ser vista como uma ferramenta “de libertação”.
Diferente, por exemplo, do Curso de Férias para Educadores Populares – evento de
formação que havia acompanhado em janeiro de 2018, em Caratinga –, o pequeno número de
inscritos para este curso possibilitou maior interação entre o público e os pesquisadores,
principalmente nos momentos de intervalo. A Casa do Mobon, com sua espacialidade e
sociabilidade, que faz quem se achega se sentir “em casa”, ajuda, em muito, os cursistas a
conhecerem novas pessoas e a trocarem experiências. São nas relações na e possibilitadas pela
Casa que se acumulam causos e memórias, constroem-se relações sociais (duráveis ou não).
Enfim, tecem-se trajetórias de “irmãos e irmãs na missão evangelizadora”.
Dias antes, durante e depois dos cursos, a Casa se torna um lugar dinâmico, vivo, pois
seus espaços possibilitam a vivência comunitária. “Sua vida depende da vida das
comunidades”183. Destarte, como casa que recebe o “povo de Deus”, gente pobre do campo e
da cidade, de tempos em tempos o lugar se torna “uma pequena capela familiar” (POEL,
2013, p.663). Como disse Tilden Santiago, ex-deputado federal (PT-MG) e frequentador da
Casa:

“(...) as pessoas se sentem muito à vontade, é um local onde as pessoas entram com
muita alegria, participam com a alma inteira, com as entranhas, uma vivência muito
espontânea, isso é muito importante. O segundo é de vivência mesmo, sabe? Acho
que para os trabalhadores rurais, este cume de montanha aqui, ele é uma espécie de
uma faculdade dos trabalhadores rurais, aqui eles vêm e abrem os olhos para

182
Refrão do Hino da CF 2018, cantado todos os dias, durante vários momentos, durante o curso.
183
Caderno História do Mobon, p.1.
121

conhecer a realidade melhor, aprendem a ver melhor a realidade da vida, a traçar


projetos para melhorar a vida. E coletivamente, isso dá o exercício do esforço
coletivo. Uma pessoa lá de Sobrália, encontra com o outro lá de Muriaé e se foi no
Mobon, é como se fossem dois irmãos já, entende? É uma fraternidade muito forte
estabelecida, há um sentimento de naturalidade, espontaneidade e vivência, um dado
religioso” 184.

Tudo isso gera “um sentimento de pertencimento ao Mobon” (OLIVEIRA, F. R. C.,


2012, p.16). Pois, durante o partilhar possibilitado pelo espaço da Casa, criam-se e/ou se
fortalecem laços fortes e permanentes, configurando uma grande “família”, como se fossem
parentes por consideração. Ao partilhar os problemas domésticos, de família ou da
comunidade, os fiéis se deparam com temas semelhantes que aconteciam em outros lugares.
Mais do que a partilha da dor e a identificação dos problemas – o que por si só já pode ser
visto como procedimentos que aliviam e conectam uns aos outros de forma afetiva – é comum
ver em grupos de fiéis conversando alguém que apresente uma possível solução baseada em
uma vivência parecida.
O corredor é repleto de grandes bancos de madeira dispostos frente às muretas que
separam a parte interna e coberta do jardim. Essa disposição possibilita que as pessoas se
reúnam em grupinhos durante o “trabalho de grupo” ou durante as horas de lazer. Nos
momentos de descontração, os grupinhos se formam e se desfazem conforme a fluidez da
prosa (e cantoria). Os interesses diferenciados em experiências específicas podem
desmembrar o aglomerado em duplas ou trios que tomam notas dos contatos e nomes de
pessoas que devem conhecer... As fotos reunidas na figura 8 abaixo ilustram o que disse até
aqui.

184
In: Oliveira, F. R. C. (2012, p.110).
Figura 8 | Casa do Mobon, uma “faculdade dos trabalhadores rurais” onde se gera um sentimento de pertencimento. Fotos: Acervo próprio.
123

Como escreveu Alípio, “A pregação dentro de uma casa, em regime de internato, tem
outro valor”185. A suspensão do cotidiano proporcionada pelo regime de internato traz uma
intensa imersão na evangelização que se está aprendendo. Deste modo, a sociabilidade da
Casa não se dá apenas durante os momentos em que estão efetivamente no Salão. A forma de
interação informal e sem roteiro dos intervalos, períodos de comensalidade e tarefas de
organização e limpeza da Casa, são de fundamental importância para o conhecimento do
outro e para o autorreconhecimento como um/uma “irmão/irmã de luta”.

***
Durante os dias de curso, vivenciei a mediação feita por João Resende. O tema da CF
foi “Fraternidade e superação da violência” e o lema “Vós sois todos irmãos” (Mt 23, 8). O
missionário utilizou o livrinho da campanha, cujo texto foi escrito por ele e Mariano. O curso
aconteceu a maior parte do tempo em um salão. O formato do curso é como uma aula, em que
o professor explica o texto e faz perguntas à classe. É aqui que leigos e leigas aprendem ou
reforçam o saber falar e escutar.
Esse processo de aprendizado se equipara, em muito, ao formato de uma “aula”.
Lembremos, a Casa “é uma espécie de uma faculdade dos trabalhadores rurais”, e, de certa
forma, perpassa todo o empreendimento de evangelização uma visão pedagógica própria de
um curso que se propõem ser uma “catequese para adultos”. Como se nota, apesar das
mudanças de conteúdo e da intenção das “aulas bíblicas” do Mape para os “cursos” do
Mobon, o formato de fazer o compartilhamento do conhecimento, na maior parte do tempo,
continuou sendo a partir de aulas, em seu formato convencional, em que o missionário
cumpre o papel de professor, se posicionando à frente dos catequizandos, utilizando, ora ou
outra, o quadro e o giz (ou mais recentemente, o projetor) e controlando a fala do público.
Vi muitas pessoas do público do Curso da CF 2018 reclamando que João Resende não
escreve no quadro mais como antigamente e, ao mesmo tempo, vi pessoas felizes em poderem
levar o material completo do curso em um pendrive. Segundo explicou Mariano, a inserção do
uso de projetor e apresentações PowerPoint para a condução dos cursos é coisa recente. Se
iniciou na Casa do Mobon “de uns 4 anos para cá”186. A demora para a utilização dessa
tecnologia foi algo “consciente”187. Conforme me disse, eles não utilizavam esses aparatos
tecnológicos de projeção para “diminuir a distância de estrutura para o repasse dos cursos

185
Caderno História do Mobon, p.77.
186
Conversa por telefone, 13/03/2019.
187
Conversa por telefone, 13/03/2019.
124

entre os religiosos [nas casas de curso] e os leigos [nas comunidades]”188. A simplificação


deve se dar tanto no nível da linguagem, quanto no da estrutura. Nem toda a comunidade
conta com projetor, computador e tela de projeção.

Figura 9 | João Resende, de pé, em frente ao quadro negro, 1970. Foto: Extraída de Araújo (1999, p.46).

Figura 10 | João Resende, de pé, em frente ao quadro negro e à tela de projeção, Curso CF 2018, na Casa do
Mobon. Foto: Acervo próprio.

188
Conversa por telefone, 13/03/2019.
125

O croqui do primeiro dia de curso nos fornece a dimensão da espacialidade do salão e


uma noção da situação média de interação entre o missionário e o público que se viu nos
outros dias.

Figura 11 | Croqui sem tratamento que retrata a espacialidade e a situação média de interação entre o
missionário e o público durante o curso. Desenho próprio extraído de anotações do dia 09/02/2018 (p.2).

Essa configuração, em que se separa a “equipe de frente” do “público”


(COMERFORD, 1999), foi observada em outros eventos de que participei durante a pesquisa
de campo. Na maioria das vezes, essa configuração foi recorrente nos momentos de
“plenário” ou “assembleia”, isto é, nos momentos em que se reúnem todos os presentes para
escutarem palestras, escutarem os que falam na “fila do povo” (espécie de tribuna para que o
“público” também possa falar e apresentar suas questões para a “equipe de frente”) ou
apresentarem os resultados dos “trabalhos de grupos”, “grupos de trabalho” ou “oficinas”.
Muitas vezes, essa maneira de organizar o espaço de interação era feita em razão de uma
126

necessidade: acomodar o maior número de pessoas no espaço (quadras esportivas em escolas,


salões de reuniões em paróquias), bem como porque os espaços não possibilitavam outra
maneira de organizar, caso dos auditórios com cadeiras fixas de escolas e universidades.
Independente dos motivos, percebeu-se que, em comparação às configurações “em círculo”,
essa maneira de configurar o espaço – em que as pessoas “não conseguem se olhar umas às
outras” e onde se determina um ponto de atenção para o “público” – conformou as conversas,
dando-lhes o ar de “sala de aula”.
No primeiro dia, João Resende explica como será o curso e fala da importância de os
presentes darem “testemunho” em suas comunidades, “na base”, do que aprenderiam durante
os dias na casa. Feito isso, ele separou o público em 7 grupos (um para cada um dos 7
encontros do livrinho). Os grupos saíram do salão e se espelharam pela casa para fazerem a
leitura do texto bíblico e posterior reflexão. Ao longo dos dias, cada um dos grupos foi
chamado a frente para apresentar o que discutiram para os demais presentes, no salão. Esse
momento cumpria a função de um “plenário”, onde os diversos grupos se encontravam e
compartilhavam o que refletiram e se deparavam com a diversidade de opiniões. Essa foi a
principal dinâmica do curso. Por meio dela, e não somente, os presentes vão aprendendo a se
reunir.

Figura 12 | Desenho sobre o trabalho em grupo, Curso CF 2018, Casa do Mobon. Lembrança da discussão
empreendida pelo grupo que discutiu a “Chave de Leitura” do 5º Encontro do curso: “Bem-aventurados os que
promovem a paz”, do qual participei.
127

3.4. Ler, registrar, usar mapas e desenhos, cantar, celebrar e fazer mística: as
técnicas potencializadoras

O catolicismo é uma religião “de conversão” e letrada. Como tal, seus sacerdotes
“ensinam o mito”, ‘re-ligam’ céu e terra e estabelecem o contato com os iniciados e iniciantes
na religião através de um “livro sagrado” (GOODY, 2004)189. Como pensa o antropólogo, as
religiões letradas são consideradas ‘superiores’ não:

“(...) apenas pelo fato de seus sacerdotes serem letrados e poderem ler bem, mas
também por poderem fornecer à sua congregação a possibilidade de ela própria se
tornar letrada. Aderir a uma crença depende não mais da transmissão oral dos seus
ritos e preces, mas do conhecimento dos textos sagrados que, por muito tempo,
foram de acesso exclusivo dos sacerdotes” (FRIDMAN, 2006, p.109-110).

Como uma maneira sui generis de evangelizar integrada ao catolicismo, pode-se


afirmar que as várias modalidades de encontro promovidas pelo Mobon/Mape – cujo Curso
CF 2018 que vivenciei é um exemplo –, familiarizaram os camponeses com o uso de certas
técnicas e “instrumentos de conhecimento, planejamento e ação pastoral sistemática”
(COMERFORD, 2001, p.265). Esse acesso possibilitou à “classe roceira”190, sitiantes,
meeiros e trabalhadores rurais dos córregos da Zona da Mata e de outras regiões, que
geralmente constroem seu conhecimento a partir da prática, isto é, do trabalho na terra e da
observação dos ‘sinais’ que a vida e a natureza dão (BRANDÃO, 1999; SILVA, M. G.,
2017a, 2017b) entrarem em contato com uma “espécie de ‘razão gráfica’”191 por meio da
aprendizagem de um conjunto de técnicas de conhecimento tais como ler; registrar; usar
mapas e desenhos. Ao aprenderem essas técnicas, incentivados pelos mediadores do Mobon a
manterem o costume de estudar, leigos e leigas que tiveram contato, direto ou indireto, com o
movimento aprenderam a interpretar o texto escrito e a reinterpretar o mundo em seu entorno.
Nos encontros promovidos pelo Mobon/Mape, a evangelização se construiu (constrói)
por meio de uma “alfabetização bíblica” (ARAÚJO, 1999) que reinseriu, de maneira mais

189
Síntese da leitura de Pallares-Burke e Burke (2004, p.329) e Fridman (2006).
190
Trecho da letra “Grande Esperança”, mais conhecida como “Classe roceira”, de Zilo e Zalo. A faixa faz parte
do disco “Caminhos da Vida” (1963). Durante a pesquisa de campo ouvi várias vezes e em vários lugares essa
música ser cantada.
191
Como escreveram Pallares-Burke e Burke (2004), sobre o que defende Goody, e, relação à ‘grande partilha’
entre oralidade e escrita, “Goody tem defendido, com bastante coerência e originalidade, que no âmago da
cultura escrita habita uma espécie de ‘razão gráfica’ que sempre faz a diferença, desde que aparece e se
dissemina” (p.329, grifo meu).
128

‘formalizada’192, os “pequenos” dos córregos em “uma ‘cultura bíblica’ que serviria de


referência para se pensar as experiências vividas” (VELHO, O., 2007, p.106).
Em outros termos, a conformação de lideranças promovida pela catequese do Mobon
se constitui, entre muitos processos, a partir de uma reconfiguração das técnicas “artificiais”
de inteligência (organizar, listar, classificar, selecionar, simplificar, abstrair, analisar,
sintetizar, completar, reajustar, etc.) dos camponeses, em muito consolidadas pelo “aprender
fazendo” e/ou “aprender trabalhando”. Ao entrar em contato com os cursos, grupos de
reflexão e plenários, os leigos reconfiguraram as técnicas de inteligência sob o signo das
‘escritas’193, passando a valorizar não apenas a oralidade, mas também a escrita como base
para se expressarem, interpretarem e representarem o mundo194.
Faz parte das narrativas da ‘origem’ do Mobon e das comunidades de base, sobretudo
na zona rural, o relato feito pelos sacerdotes que se depararam com uma situação ‘típica’ dos
córregos daquela época (e que, em parte, permanece hoje), que contava com um grande
contingente de pessoas que não sabia ler. Essa era umas das muitas dificuldades enfrentadas
antes mesmo da implementação do Aggiornamento, ainda na época de Mape. Uma vez que tal
campanha de política cultural parte – entre tantos pressupostos neste trabalho já discutidos –
dos imperativos da democratização da leitura bíblica e do fomento ao exercício de o
“oprimido” falar “sua palavra” (ou, prise de parole como se refere o teórico “da libertação”,
Leonardo Boff195), esse foi um obstáculo com o qual os mediadores da Igreja Católica se
depararam. Como escreveu padre Gwenael:

“(...) Um dos problemas mais urgente e mais vividos or todos era o analfabetismo.
Por isso as primeiras pesquisas realizadas no município para conhecer com mais
exatidão a situação no campo, contou com a colaboração espontânea dos líderes que
trouxeram dados de suas respectivas comunidades. Como se comprovou que 50% da
população adulta [de Eugenópolis] era analfabeta” (KERANDEL, DEL CANTO,
1977, p.49).

192
Quero dizer no sentido de uma intensa formalização do discurso relacionada ao que acontece na ‘cultura
escrita’. Isto é, com a leitura da Bíblia e do material de trabalho dos cursos e grupos de reflexão conformou-se a
fala, transformando-lhe o padrão do discurso.
193
Aqui, no plural, para evidenciar que não falo apenas da escrita em si, um tipo entre tantos de registrar (-
grafia), mas falo de outros processos de inscrição das ideias, tais como a fotografia, a cartografia, o desenho.
Bem como a correspondência dessas escritas com os processos próprios de decodificação desses tipos de registro
das ideias. Falo dos processos de ler, registrar/escrever, estudar e interpretar.
194
As leituras de Samain (1998) e parte da obra de Mandel (2006) foram inspiradoras para a estruturação dos
termos dessa análise.
195
In: Boff (1994, p.29-30).
129

Problema “concreto”196 esse que encontrou soluções nas próprias comunidades, por
meio da própria organização comunitária (mais um saber fazer reaprendido). Por exemplo,
para resolver esse problema em Eugenópolis, explica o padre francês naturalizado brasileiro
que:

“(...) se organizou um curso de formação de monitores de alfabetização, da qual


participaram 40 monitores (a maioria camponeses). Isso possibilitou a criação
imediata de 2 centros de alfabetização no município atendido, em uma primeira
etapa, para 300 adultos, utilizando o método S.D.B (Dom Bosco). Ainda não existia
o ‘MOBRAL’ (Movimento Brasileiro de Alfabetização) criado depois pelo
governo” (KERANDEL, DEL CANTO, 1977, p.49).

Essa é uma das ações sistemáticas mais ‘drástica’, que pode ser citada. Mas, em linhas
gerais, a maioria dos leigos das comunidades rurais que se propuseram a se tornar lideranças
ou se envolveram com as formações “de base”197 aprenderam a ler e a escrever lendo ‘no seu
tempo’ e ‘do seu jeito’ a Bíblia e tomando notas sobre as leituras que eram realizadas. Como
escreveu Alípio:

“O trabalho do Pe. Geraldo começou com os mais humildes, semi-analfabetos ou


analfabetos de tudo. Muitos foram alfabetizados nestas aulas bíblicas. Aprendiam ler
e anotar os textos bíblicos. Ninguém recebia a aula escrita. Tudo era anotado com
muita paciência e monotonia” (COSTA, 2009, p.4).

Deste modo, uma percepção que advém ‘ainda’ da Campanha Ultramontana, a de que
a “leitura bíblica não deveria ser só ‘coisa de crente’ (GAMITO, 2017, p.73), o movimento de
evangelização desenvolvido pelos missionários sacramentinos de Nossa Senhora escolheu,
com a autorização de cima, fomentar a catequese bíblica, e, por extensão, impingiu na
realidade dos córregos, possibilitando aos “pequenos” terem acesso a uma ferramenta de

196
Para saber mais, em Kerandel e Del Canto (1977, p.42-43) padre Gwenael fala de outras dificuldades
(internas e externas) que rondaram a experiência dos cursos, equipes de reflexão em Eugenopólis.
197
Sempre faço essa delimitação, uma vez que é sabido que o Aggiornamento não teve tanta adesão, ou, a adesão
esperada pelos seus intelectuais nas bases (cf. OLIVEIRA, F. R. C., ZANGELMI, SCHIAVO, 2010), além de
que, para o caso do aprender a ler (e a escrever), recente estudo realizado com população da zona rural de Ubari,
distrito de Ubá mostra que o ler não é um hábito nessa localidade. Penso que essa constatação, alvo algumas
exceções, pode ser replicado para outras localidades da Zona da Mata. Como analisou a pesquisadora, no corpus
das respostas sobre o que a população jovem e de terceira idade de comunidades rurais faz como lazer (um dos
motivos que leva algumas pessoas a lerem), “a leitura de livros aparece apenas em uma das respostas, associada
à leitura religiosa, de livros de orações. No campo de proximidade com a leitura, ainda aparece o interesse pela
escrita, em uma das respostas, como forma de registrar memórias e perpetuá-las entre os familiares. Ler e
escrever como atividades de lazer e descontração são, portanto, aparentemente pouco comuns, sendo que,
quando ocorrem, tem sua efetivação justificada por uma relação de sentido diretamente ligada à experiência
pessoal: religiosa, familiar, sentimental” (FIRMIANO, 2015, p.66). A pesquisadora aponta que nesse contexto, a
Bíblia é o livro mais lido pela população idosa, o que pode estar relacionado a “uma ligação muito forte dos
habitantes do local com a religiosidade ou o constrangimento de não citar nenhum livro, recorrendo à Bíblia
como forma de não deixar de citar ao menos um texto lido” (idem, p.81).
130

poder, que até então estava nas mãos de poucos (filhos dos fazendeiros e da elite agrária e dos
‘centros’ urbanos locais, por exemplo). É deste modo que está impresso na memória das
lideranças está história de transformação, tanto no que se refere a uma mudança de si, quanto
ao que refere à mudança da realidade local baseada na ampliação do campo de possibilidades
para os que até ali não tinham oportunidade. Farinhada afirma:

“As CEBs têm um papel fundamental na questão da educação, porque eu antes de


ler qualquer outra coisa, eu aprendi ler nos grupos de reflexão, eu aprendi a ler na
bíblia. É a primeira oportunidade que as pessoas encontrava para mostrar o
pouquinho que ela sabia fazer era nesses espaços”198.

Tudo isso, como já dissemos no capítulo 2, com o tempo alterou os ‘jogos de poder’
nos córregos, principalmente, a partir da organização dos trabalhadores rurais em sindicatos,
em meados da década de 1980.

***

Durante os dias em que estive na Casa do Mobon foi possível ver a importância que
tem para as pessoas envolvidas com os cursos do Mobon os processos de ler, registrar,
estudar, interpretar, usar mapas, usar desenhos. E mais importante que perceber a importância
desses saberes fazeres, foi poder vê-los “em uso”. Esses saberes fazeres mobilizam e
organizam a vida dos missionários sacramentinos que ali residem, bem como deixam ‘rastros’
em toda a paisagem da casa de formação. Não só isso. Esses processos, sobretudo os quatro
primeiros, estruturam as interações sociais durante os três dias do Curso da CF 2018. E é
através desses saberes que os leigos repassam a mensagem liberacionista nos rincões por onde
caminham.
O aprender a ler se constrói pelas leituras concomitantes (ou não) da Bíblia e do
“material de trabalho” elaborado pelo próprio movimento da Boa Nova. Nos momentos de
exegese bíblica (individual ou coletiva), o texto bíblico é utilizado ideal e sentimentalmente
como referência para enquadrar as mais diversas experiências vividas e ressignificá-las (ou
vice-versa). Ou seja, os interlocutores, por uma série de processos variáveis de mediação
cultural, combinam noções do campo da cultura bíblica (VELHO, O., 2007)199 às noções
fundantes do pensamento popular camponês (BRANDÃO, 1999). É por meio da exegese dos
textos bíblicos, orientada muitas vezes pela “chave de leitura” presente na abertura de cada

198
Farinhada, entrevista 06/11/2018.
199
Isto é, uma cultura em que se toma a Bíblia Sagrada como referência para “além do mero recurso instrumental
a termos e expressões, e atinge o nível das crenças e atitudes profundas” (VELHO, O., 2007, p.107). Refere-se,
portanto, a uma “força da referência bíblica” (p.105) como orientadora de crenças e comportamentos.
131

“Encontro” dos livretos de curso, que os camponeses dos córregos revisitam suas vidas
pessoais e em comunidade e tomam conhecimento de ‘novos’ temas, e, consequentemente,
‘buscam’ soluções para os seus problemas.

Figura 13 | Materiais de trabalho CF 2018 e seu uso em curso do Mobon. Fotos: Lívia Rabelo e acervo próprio.
Composição: Rodrigo Teixeira

Por exemplo, no Curso da CF 2018, os cursistas, ao lerem os textos e responderem as


perguntas da “chave de leitura” dos sete encontros escritos por João Resende e Mariano
(Equipe Missionária, SDN), tiveram acesso a uma releitura das histórias bíblicas (ajustadas
situacionalmente) e a uma infinidade de temas para reflexão. Alguns temas ‘novos’, como os
temas do “machismo”, “racismo” e “homofobia”200 e outros nem tanto, como o tema da

200
Falo ‘novos’, talvez por considerar a surpresa de alguns presentes em relação aos temas, no momento em que
eram enunciados. No Curso CF 2018, ao observar os termos conversacionais, viu-se que os conceitos tal como
os conhecemos ou enquadramos nos debates acadêmicos e/ou mesmo nos movimentos sociais, não eram os
mesmos com que o público entedia os assuntos. Nesse sentido, um episódio chamou a atenção. João Resende, ao
perguntar ao público se já tinham ouvido falar sobre “gênero”, um cursista se levantou, e de maneira confiante e
segura, disse que em sua comunidade há um monte de “gêneros” de problemas. Não que a palavra não carregue
esse significado (-tipo, classe, espécie... de problemas), mas o mediador estava falando das violências de gênero:
como a desigualdade salarial entre homens e mulheres, feminicídio, assédio de mulheres, desigualdade na
divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres, etc. Ainda sobre a ‘novidade’ dos temas, é importante
dizer que quando se olha para os materiais de trabalho do Mobon, constata-se que os temas citados (pelo menos,
machismo e racismo) são recorrentemente tratados nas reflexões nos cursos. Claro, debatidos e entendidos a
partir do contexto situacional de cada época.
132

violência, que marca a realidade de todo o país, e de maneira sui generis, está presente nas
narrativas das gentes dos córregos da Zona da Mata, marcados por uma sociabilidade
agonística.

Figura 14 | Estatísticas sobre a violência apresentadas por João Resende, utilizando apresentação PowerPoint
(2º Encontro: “O sangue do irmão clama a Deus”). Fotos: Acervo próprio. Composição: Rodrigo Teixeira.

Parece que, em parte, o “falar bonito” ou “falar bem” que garante às lideranças exercer
seus papéis bem e com reconhecimento de seus públicos (COMERFORD, 1999), sem incorrer
em preconceito linguístico e dizer com isso que “a fala não possa ser elaborada sem a escrita”
(GOODY, 2004 in PALLARES-BURKE, BURKE, 2004, p.335), está relacionado ao
aprendizado da leitura e da sistematização das informações e mensagens que devam ser
reproduzidas dos cursos “nas bases”. Esse processo ‘organiza’ o pensamento e, por
consequência, a fala.
Etnograficamente, constatou-se que entre lideranças as orientações para a ação
religiosa e/ou política, realizadas no escopo do esquema pastoral-metodológico “ver-julgar-
agir”, foram/são dadas através da leitura e da exegese da Bíblia Sagrada. Nesse processo, as
passagens e as parábolas bíblicas atuam como textos ilustrativos e conectores de um tempo
imemorial (dos eventos bíblicos) ao tempo presente dos fatos vividos. As chaves de leitura
133

presentes nos livros de cursos e roteiros de grupos de reflexão enquadram as situações sobre
as quais o indivíduo ou o grupo quer conversar e refletir durante os cursos, reuniões de
grupos de reflexão e, por extensão, durante todos os outros espaços observados, onde a leitura
bíblica atua como compósito das situações de interação, como em místicas, aberturas de
reuniões de sindicatos, de associações de bairros, celebrações de aniversário e formatura, etc.,
dando às conversas uma qualidade de ‘continuidade’ perante a “História do Povo de Deus”.
Ler é levado tão a sério, que os suportes para a leitura (as coisas-de-
informação/formação-sistematizada) se transformam “coisas-que-atuam-como-compósitos-
de-cenários” (cf. TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.628-632) e ornamentam cômodos da
casa, os cenários de místicas e celebrações (como na foto que abre esse capítulo) e compõem
performances. Como notei, os materiais de curso de outras épocas são cuidadosamente
expostos em uma vitrine, que pode ser vista logo que se adentra a casa pela portaria principal.
O material está lá para todo mundo ver e lembrar. A Bíblia, sempre aberta, compõe cenários e
performances do público. Como, por exemplo, quando o público, na manhã do dia 10 de
fevereiro, ao cantar o refrão da música “Tua palavra é”, de Zé Vicente201, levanta a mão com
a bíblia aberta, todos ao mesmo tempo, como que fazendo o livro sagrado voar, ‘mostrando’ a
quem quisesse ver a “Bíblia na mão do povo”, símbolo maior do Aggiornamento.
Por fim, a leitura do material de trabalho é, junto a escuta atenta e o registro
sistemático das conversas durante os cursos, o principal canal para a transmissão da
mensagem “da libertação” do Mobon. Atualmente, tendo em vista a inserção do movimento
na era da cibercultura, além da versão impressa, os materiais também são disponibilizados de
forma “virtual”, em pendrives e smartphones, ou de forma online, através do
compartilhamento nos grupos de WhatsApp® do movimento: o “Missionários do Reino”,
grupo mais restrito às lideranças mais experientes e ‘de confiança’ dos religiosos
sacramentinos) e/ou o “Boa Nova”, ‘mais aberto’ à participação de quem se interessar em
fazer parte. Em ambos os grupos, lideranças dos estados de Minas Gerais e Mato Grosso
trocam mensagens. Por exemplo, são compartilhados de forma virtual (nos cursos) e/ou
online, arquivos MP3 das músicas da CF, a apresentação PowerPoint (cf. figura 13, p.131) e
um mini-documentário sobre a CF, organizado e disponibilizado pelo CNBB. Isto é,
ferramentas de trabalho utilizadas por João Resende em seu trabalho de mediação.
Por falar em registro, como notei, por onde olhei na Casa do Mobon vi inscrito,
pendurado nas paredes, um conjunto de artefatos de memória que registram as ideias e a

201
Faixa do disco “Dádivas” (2015).
134

história do Mobon. Em torno da casa, vi fotos dos ‘fundadores’ de que ouvi falar nas
conversas pela casa: São Paulo, missionário lido como o difusor do cristianismo primitivo ‘de
base comunitária’; padre Júlio Maria; padre Léssio; os missionários João Resende e Alípio
com outras pessoas, tais como Mariano, Carlos Mesters, os “pioneiros do Mobon”, etc. Vi
fotos que registram a história da construção da casa. Sem contar a infinidade de fotos de todas
as épocas no quarto/escritório de Alípio. Vi muitas fotos dos participantes de cursos. Essas
fotografias mostram quem participou dessa história, os elementos que compuseram a luta, e
como em um álbum de fotos, mostra o devir do movimento da Boa Nova com todas as suas
mudanças e continuidades.

Figura 15 | Alguns quadros com fotos encontradas no escritório de um dos fundadores do Mobon, Alípio. Fotos:
Acervo próprio. Composição: Rodrigo Teixeira.

Essa é uma maneira de registrar com a qual tem contato os cursistas, isto é, o registro
fotográfico. Tirar o “retrato” dos participantes do curso, por exemplo, já foi um “evento”.
135

Como me explicou Alípio na manhã do dia 07 de fevereiro de 2018, antigamente, diferente


dos dias de hoje em que é possível tirar fotos a todo tempo com os celulares, o momento de
tirar o retrato era um ‘evento’, em que se marcava com o retratista a hora e o lugar para
acontecer. A foto geralmente era/é tirada após a missa de encerramento (conforme alguns
relatos ouvidos em campo), mas não necessariamente precisa proceder esse momento. Tirar
fotos era coisa de gente “rica” e não era tão fácil conseguir realizar esse tipo de registro. Para
que se tenha ideia, a primeira fotografia da Casa do Mobon foi mote para a escrita de um
trecho do caderno da História da Casa do Mobon202, escrito por Alípio com a ajuda de uma
leiga.
As fotografias de participantes são artefatos muito valorizadas pelos leigos. Lembro de
uma filha de duas lideranças antigas da zona rural de Caputira/MG me dizer que as fotos em
preto e branco que ela me disponibilizou – de cursos de Pré-Boa Nova de 20 a 24/10/87 (em
que participou seu pai) e de 26 a 30/04/1988 (em que participou sua mãe) – à época eram
encomendadas e compradas pelos leigos.
Atualmente, o episódio não se trata de um momento ritual forte – como 'em outros
tempos' – por uma série de circunstâncias. Para acontecer, ela depende da disponibilidade do
fotógrafo, do interesse dos cursistas, da lembrança e/ou da orientação dos mediadores para se
realizar o feito. Com isso, não quero dizer que hoje em dia que o registro fotográfico não tem
importância, mas que sua prática e compartilhamento mudaram. Com as redes sociais,
sobretudo os grupos de WhatsApp ® e Facebook ®, a produção e circulação de imagens
continua a ser importante, apesar de não ser necessariamente “ritual” no sentido em que era
antigamente. Como já sinalizou Alípio, no ‘tempo da imagem’ e da cibercultura em que
vivemos, ‘tudo vira foto’ (ou vídeo) e é compartilhado imediatamente nas redes sociais. O
próprio Mobon possui uma rede social onde posta seus vídeos e fotos.
Mudou-se a maneira com que se faz o registro das coisas203. Desse modo, pode-se
dizer que, em algumas situações em que a foto acontece, ela se trata de um momento ritual
‘menor’ ou complementar a outros momentos dentro do processo todo. No Curso CF 2018
não foi feita uma foto ‘oficial’ dos participantes, por exemplo, ao passo que, todo mundo (os
jovens, principalmente) estava tirando fotos, em todos os momentos.
Outra maneira de registrar que se aprende, inevitavelmente, ao se entrar em contato
com as modalidades de encontro promovidas pelo Mobon e seus “missionários do Reino”, é o

202
No documento, se lê a história “O primeiro retrato e mais encontros”.
203
Como me contou Mariano, a inserção do Mobon se inicia na década de 2010, fazendo o uso de Facebook ®,
blog e grupos de WhatsApp ® (conversa por telefone, 13/03/2019).
136

registro escrito. É por essa modalidade de registro, por meio de palavras e desenhos, que são
‘fixados’ os mandamentos morais do que representa “ser comunidade”, ser cristão “engajado”
e “consciente”.
Durante o curso, os leigos ficam atentos ao que está sendo dito por João Resende
(comparações, orientações, exemplos da vida) e/ou as respostas às perguntas da “chave de
leitura” ditas pelos próprios cursistas nos momentos de trabalho de grupo e de discussão em
plenário. Anotam ‘tudo’ o que está sendo dito, bem como reproduzem em seus cadernos e
agendas, os desenhos que são feitos por João Resende no quadro. Atualmente, o missionário
se utiliza pouco do quadro (tanto para escrever quanto para desenhar), motivo de reclamação
por parte de alguns, e de alegria para outros, uma vez que com o ‘advento’ do uso do projetor
pelo Mobon, a ilustração para os temas é dada nos próprios slides da apresentação
PowerPoint. Percebi que esse fato gera certa dificuldade para os participantes mais “antigos”
sobre o que deve ser registrado nos cadernos de anotações que eles levam para o curso.
Como notou padre Gwenael, “Muitas vezes a exposição de um tema termina ilustrada
por um desenho idealizado a fim de sintetizar as ideias mais importantes” (KERANDEL;
DEL CANTO, 1977, p.39). Em entrevista concedida a Ricci (2002), Tereza Gomes, uma
liderança comunitária, fala da forma como João Resende explica as coisas durante o curso.

“Para poder discutir com a gente política partidária, por exemplo, ele [João Resende]
desenhava no quadro. Pegava uma árvore e falava do poleiro da galinha. Então,
assim, por exemplo, ele pegava galinha caipira, galinha D’Angola e um pato. Então
dizia: qual o discurso que os políticos fazem da dificuldade e de sofrimento? Na
realidade – ele dizia – eles estão na parte mais alta do poleiro, como a galinha
D’Angola, que está lá por cima... e desenhava a galinha no alto. A galinha caipira
fica um pouco abaixo. E o pato fica na parte mais baixa. E aí ele fazia a discussão
conosco. E acabávamos nos identificando com os patos, porque nós somos pobres e
nós não temos poleiro. Só as galinhas D’Angola e caipira têm. E ele perguntava: e
onde ficam as galinhas? E o pato? Então, quer dizer, entediamos que o pato fica
embaixo do poleiro e o que sobra pra ele? Aí a gente começava a refletir e percebi
que o lugar do pato não é o poleiro, mas a lagoa. Então ele fazia essa discussão de
classe social por aí. (depoimento ao autor da tese, set.1999)”204

Ainda no tema dos desenhos, me lembro das figuras que João desenhou no quadro
para explicar alguns “conceitos” como o “da classe pequena de cabeça grande” durante a
apresentação do 4º Encontro: “O fruto da justiça será a paz da CF 2018”, no dia 10/02/2018.
Como explicou, a classe pequena, que só pensa no dinheiro e se esquece dos outros, de ser
solidário, possui cabeça de gente “grande”. Ia falando e desenhando. Primeiro, desenhou um
rosto (com orelhas, olhos, nariz/olfato, boca, cérebro/pensamento) e embaixo um coração, em
forma de gota. Enquanto ia explicando o conceito, ia desenhando cifrões nos ‘órgãos’ e
204
In: Ricci (2002, p.123-124) apud Oliveira, F. R. C. (2015, p.140).
137

dizendo que quem é pequeno da cabeça grande possui o cifrão em todas as partes: no “olho”,
no “farejo”, na “oreia”, na “cabeça”, na “boca”, no “coração”. Com isso, ele quis dizer que a
classe dos “grandes” ou dos “pequenos” que tentam se equiparar a ela é um ‘tipo’ de gente
que “só pensa em dinheiro”. Reproduzi em meu bloco de notas os traços tais como foram
feitos pelo missionário na lousa205.

Figura 16 | A classe pequena de cabeça grande. Reprodução do desenho feito por João Resende no quadro.
Extraída de anotações sobre curso da CF 2018 do dia 10/02/2018 (p.25).

Outro desenho interessante feito pelo missionário foi o da estrutura de uma casa para
falar da Igreja como uma construção206. João Resende disse ao público “quando Jesus morre a
Igreja não estava pronta”. Portanto, ele começa a apontar para o desenho e tecer algumas
explicações. Primeiro diz que a Igreja deve ser alicerçada na “Boa Nova do Reino”, pois “uma
igreja que não está alicerçada na Boa Nova [do evangelho] é uma igreja fechada em si
mesmo”. Depois, fala de ‘subir’ as paredes, o que deve ser feito utilizando-se um “fio de
prumo”, que deve ser a “Palavra de Deus”, pois Igreja sem prumo é “cheia de barriga – que
acerta na massa depois”. A reflexão provocava os presentes. Lembro de ter anotado a
conversa entre dois cursistas, logo após a fala sobre as paredes. Alguém do público pergunta
para outra pessoa: “como está a parede da sua igreja?”. Abaixo segue a reprodução do

205
Importante mencionar que nas reproduções aqui apresentadas o que está escrito em vermelho se trata do que
registrei das explicações de João Resende sobre o desenho ou comentários do público.
206
Na reflexão elaborada junto ao público, mesclam-se os sentidos da palavra (“-edifício onde se dedica ao
culto”, “ajuntamento de católicos sob a obediência ao seu clero”, “instituição católica”, “comunidade de fé” e
“projeto de Deus”).
138

desenho que serviu para ilustrar a explicação do texto bíblico de Efésios 2, 11-18, proposto no
7º Encontro: “Cristo é a nossa paz da CF 2018”, no dia 11/02/2018.

Figura 17 | A Igreja como uma construção. Reprodução do desenho feito por João Resende no quadro. Extraída
de anotações sobre curso da CF 2018 do dia 11/02/2018 (p.6).

Além dos desenhos, como já mencionado, os cursistas também escrevem (no próprio
livrinho do curso ou em outros suportes) o conteúdo das conversas. Uns vão além. Como me
mostrou uma liderança de Alvarenga, atualmente ele utiliza o ‘caderno de cursos’ para fazer
reflexões sobre “a casa comum”, sobre os desafios que enfrenta no convívio com os vizinhos
e familiares, enfim, sobre sua vida como liderança.
139

Figura 18 | Caderno utilizado por uma liderança durante o Curso da CF 2018. Foto: Acervo Próprio.

Esta é uma das maneiras pela qual se perpetuam as coisas. É a partir desse hábito que
o movimento conta sua história e dissemina suas ideias. O Mobon possui boa parte de seus
cursos documentados. Alípio, por exemplo, se preocupa muito em registrar a história
escrevendo e revisitando o que de fato aconteceu. Lívia e eu tivemos acesso a uma infinidade
de “papéis velhos” desde que chegamos à casa, no dia 06 de fevereiro. O caderno com a
História da Casa do Mobon, o caderno de registro de presença dos cursos, e por fim, os
cadernos de Dona Cora207 (onde está anotado cuidadosamente o conteúdo dos cursos durante
quarenta anos), foram nossos ‘companheiros’ nesses dias de pesquisa de campo na casa do
Mobon.
Todos esses suportes chamamos de “coisas-de-registro-escrito-da-memória”
(TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018). Isto é, uma classe de coisas

“(...) composta por cadernos, blocos, livretos de curso e agendas onde os cursistas,
‘leigos’ e ‘filhos de CEBs’, registram por escrito e/ou utilizando desenhos o que é
conversado durante os cursos ou onde se copia o que escreveram no quadro ou
exibiram no projetor os ministrantes das formações” (idem, p.632).

207
Como apresentou Oliveira, F. R. C. (2012), “Dona Cora, [é] uma leiga participante do Mobon, desde sua
fundação, que: anota cuidadosamente, desde 1970, o conteúdo dos cursos que eram escritos nos quadros, arquiva
os livros distribuídos pelos missionários, as respostas construídas pelos grupos formados durantes os cursos e,
algumas vezes, seus sentimentos em relação ao curso. O caderno de Dona Cora é uma fonte importante. Sua
formação em história contribuiu muito para que valorizasse o arquivamento de tantas informações” (p.35). Todas
suas anotações foram digitalizadas pelo Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos
Sociais e Políticas Públicas no Campo/CPDA/UFRRJ e estão disponíveis em: Caderno 1:
<http://www.nmspp.net.br/dona_cora/caderno1/>; Caderno 2: <http://www.nmspp.net.br/dona_cora/caderno2/>;
Caderno 3: <http://www.nmspp.net.br/dona_cora/caderno3/>. Acesso em: 01 fev. 2020.
140

Por fim, em menor proporção, os missionários utilizam de mapas para a condução dos
cursos. Na casa, encontrei um mapa da “Palestina no tempo de Jesus”, pintado em um tecido
de algodão, em cores bem vivas. Como explicou Alípio, esse mapa é utilizado em alguns
cursos. No Curso CF 2018, a ferramenta não foi utilizada.
É por meio do registro escrito que são ‘transportadas’ ideias religiosas e concepções
políticas de um lugar ao outro, junto com as lideranças que circulam “nas bases” repassando
os conhecimentos adquiridos para os paroquianos (OLIVEIRA, F. R. C., ZANGELMI, 2009).
Essa prática, em sua configuração fotográfica e/ou escrita, irá se reverter em um saber fazer
relatório, relatorias e atas para as reuniões dos diversos movimentos, associações
comunitárias, pastorais sociais da Igreja Católica e partidos políticos nos quais os
camponeses-padres se filiaram208, com algumas transformações ao longo do tempo, como
tratarei mais à frente.

***

“Não vamos nos enganar/nem ficar nessa frieza,/ já


nos mostra Abraão:/ Cuidado com a ‘japonesa’./
muitos querem nos usar/ pra aumentar sua
riqueza./Vamos nos organizar/ e agir com mais
presteza”.

Música “Abraão e Sara somos nós” 209.

Como escreveu padre Gwenael após ter passado 2 anos (1967-1969) conhecendo a
realidade dos córregos de Eugenopólis e Vieiras, “A tomada de consciência da realidade
camponesa permitiu reunir os principais dados com os quais a Igreja de Eugenópolis deve
contar para a Evangelização” (KERANDEL, DEL CANTO, 1977, p.18). Como analisa o
sacerdote, conhecer os costumes camponeses e valorizar seu modo de pensar e agir, em muito,
ensinou ao Clero sobre o que, na concepção “da libertação” de ser Igreja Católica, são (ou
deveriam ser) os valores cristãos.

208
Como escreve Comerford (1999), a feitura de documentos escritos é uma atividade importante do “pós-
reunião”, afinal, as anotações geradas durante as “reuniões” – no nosso caso, cursos – circulam em determinados
espaços (como reuniões de grupo de reflexão, reuniões de conselho pastoral, nos cursos de base e, pode
acontecer, em instâncias do movimento sindical ou dos diretórios do Partido dos Trabalhadores) gerando “novas
interpretações e efeitos a partir das reuniões” ou “permanecer como uma espécie de “comprovação” ou registro
oficial, cuja simples existência pode ser invocada em determinadas circunstâncias” (COMERFORD, 1999, p.57).
209
Fragmento da letra da música, presente em um livro de curso da Semana Santa (s.d.). A foto das páginas 28 e
29 do material me foi enviada por Farinhada, via WhatsApp (s.d.). Vale reparar no trecho “Cuidado com a
‘japonesa’./muitos querem nos usar/ pra aumentar sua riqueza”. Aqui há um alerta, utilizando-se da imagem da
abóbora japonesa, geralmente a abóbora que é produzida em larga escala visando o lucro, para que os leigos
tomem cuidado para não serem usados para outros “enricar”.
141

“(...). Felizmente, a convivência com o campesinato permitiu descobrir muios


valores portadores da esperança na posibilidade da construção de um futuro melhor.
(...) atrás de uma aparência rude e insensível se descobre uma grande delicadeza e
um grande sentido da hospitalidade. No campo não há forasteiro. O camponês sabe
acolher, deixar seu trabalho para dedicar um tempo a escutar o outro. Existe um
profundo sentido de solidariedade, sabe compartilhar, não só o tempo, sua casa ou
sua comida mas também as alegrias e as tristezas alheias. Ser pobre, para ele, não é
uma vergonha, sua riqueza é a família, os filhos; sua glória é o trabalho (suas mãos
de trabalhador) e este trabalho está orientado em direção ao outro (sua família). Sua
ambição é de poder proporcionar a seus filhos uma vida melhor que a sua e viver
honestamente. (...). O contato diário com a natureza moldou seu caráter; lhe dotou
de uma grande capacidade de observação e de imaginação. Sabe transcender a
imediatez das coisas, improvisa com a maior facilidade. Sua linguagem
frequentemente se ilustra de comparações ou imagens sacadas de seu meio
ambiente. Enfim, vivendo em uma região pitoresca, o camponês ‘mineiro’ da ‘Zona
da Mata’, conhedido por sua astúcia e picardia, é também muito sensível à beleza da
natureza, à poesia e a música, é um conteplativo” (KERANDEL, DEL CANTO,
1977, p.18-21).

Assim, engana-se quem pensa que o processo de ensino aprendizagem neste universo
de cursos do Mobon se deu de maneira unilateral. Como já foi enunciado, camponeses
‘viraram’ padres e padres ‘viraram’ camponeses. Nesse processo de catequese adulta, Clero e
Laicato estabeleceram uma troca. Digo isso, porque, assim como os processos de simplificar a
mensagem se utilizando de comparações e linguagem simbólica, os saberes celebrar, fazer
mística e cantar a religião libertadora foram gestados sob os imperativos dos costumes, modos
de criar, fazer, produzir, festejar e “fazer a luta” dos camponeses.
Por meio da escuta atenta da maneira como o “povo simples” “da roça” conversa e
através da observação sistemática de seus costumes (KERANDEL, DEL CANTO, 1977, p.7-
22; OLIVEIRA, F. R. C., ZANGELMI, 2009; OLIVEIRA, F. R. C., 2010; OLIVEIRA, F. R.
C., 2012) é que os padres conheceram a realidade, viram o que ‘faz sentido’ para a população
leiga dos córregos e adequaram o discurso e as práticas rituais, a fim de melhor transmitir a
mensagem liberacionista, organizar “o povo” e formar comunidades. E não só, pois as noções
de família, trabalho e honestidade, valores fundantes da vida camponesa, serviram de
subsídios para o processo de conformação de pessoas do Mobon.
Como li no livro da História da Casa do Mobon, há uma ‘ode’ ao modo de vida dos
agricultores. Nesta coisa-de-registro-escrito-da-memória pode-se ler no “Evangelho do
Agricultor”:

“(...). De acordo com as necessidades o movimento da Boa Nova vai procurando


tirar as consequências práticas da fé. No momento a concretização desta exigência
de fé está se concretizando através do aviso: Evangelho do Agricultor. Este aviso é
142

uma tentativa de fazer uma leitura do Evangelho diante das necessidades e


problemas do homem do campo” 210.

As ‘reminiscências’ desse processo podem ser observadas na casa através da


observação de seu entorno, sobretudo, olhando para o quintal que rodeia a capela. Quintais
são espaços de vida e memória (LEAL DA SILVA et al., 2017; LEAL DA SILVA, 2018).
Por mais que se diga que nos dias do curso, as pessoas ‘saem’ de seus ambientes cotidianos de
trabalho, na Casa do Mobon, não se pode dizer que os leigos, sobretudo, provenientes do
meio rural, deixam de ter contato com o “mato” ou com o ambiente de trabalho.
Em um passeio rápido pela casa, registrei as seguintes cenas:

Figura 19 | Coisas, plantas e insetos. Casa do Mobon, fevereiro de 2018. Fotos: Acervo próprio. Composição:
Rodrigo Teixeira.

Nas fotos, o leitor vê instrumentos de trabalho espalhados pelos corredores, tais como
um carro de boi e uma máquina de costura (sem contar a infinidade de ferramentas utilizadas
por todos da casa, de canetas a talheres, panelas, cadernos, etc.); a presença de alguns insetos
como o louva-a-deus (Mantodea), a esperança (algum gafanhoto da família Tettigoniidae) e
um tanto de insetos que procuram o calor das lâmpadas; algumas plantas como o boldo
(Peumus boldus), uma rama de abóbora (Cucurbita) entre outros matos. Elementos do mundo

210
Caderno História da Casa do Mobon, f.81, verso.
143

do trabalho camponês/operário que fazem lembrar dos “relacionamentos homem-mato” que


podem virar símbolos nas falas e na preparação de cenários e místicas durante os cursos. Tudo
remete ao universo simbólico camponês, de onde é tirada a maior parte das comparações
utilizadas por João Resende durante os cursos.
Como veremos, em outros espaços, sejam eles cursos, reuniões, assembleias, eventos
acadêmicos ou instalações artístico-pedagógicas (I.A.P.)211, esses elementos atuam como
“coisas-que-atuam-como-compósitos-de-cenários”. Em outros termos:

“(...) tratam-se de produtos e objetos, como frutas, legumes, tubérculos, raízes,


imagens de santo, a Bíblia Sagrada aberta, as ferramentas de trabalho (geralmente a
foice, a enxada e/ou facão), bandeiras, estandartes, pano de chita ou chitão, cabaças,
ervas medicinais, velas, fumaça, instrumentos musicais, sementes, etc. que
compõem a simbolização de plenárias, celebrações, reuniões, congressos, rodas de
conversa, e atualmente, em decorrência da aproximação dos agentes da cultura
investigada com a Universidade, as instalações artístico-pedagógicas (I.A.P.)”
(TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.630).

Como documentou Keradel e Del Canto (1977), para “favorecer a participação e


integrar alguns valores do camponês nas celebrações, foram introduzidas algumas
modificações na liturgia” (p.65). Das missas em latim, com o padre de costas para os fiéis,
próprio da Igreja Católica da ‘época da Romanização’, após as orientações do Concílio
Vaticano II, e após a observação da vida camponesa em Eugenopólis e Vieira, em algumas
oportunidades foi se inserindo representações cênicas da liturgia da palavra, leituras
dialogadas, apresentaçãos das folias de Reis nas missas (que antes da leitura do Evangelho
cantavam a história do nascimento de Cristo, a visita dos Reis e depois escutavam
atentamente os textos sagrados e os comentários sobre os mesmos), coroação da imagem da
Virgem Maria (no mês de maio) pelas meninas e pelas mães de família, etc. (cf. KERADEL E
DEL CANTO, 1977, p.65-66).
Como escreveu a estudiosa da liturgia212 católica Buyst (2011), “A ‘ferramenta’ básica
da ação ritual é o corpo” (p.77). Sobretudo para o público camponês, que, como já dissemos,
“aprende fazendo” e/ou “trabalhando”, “Essas experiências podem ser mais importantes do
que os conteúdos racionais ou cognitivos do religioso” (THEIJE, 2002, p.312). Analisadas do

211
As I.A.P. são um mote metodológico criativo e dinamizador de diálogos e socializações que se fundamenta na
criação de ambiências artístico-pedagógicas compostas por elementos da realidade, deslocados e exagerados,
instalados num local fixo e que são observados pelos participantes, que provoquem os sentidos para determinado
tema e que serão o ponto de partida para a discussão de sentires e saberes sobre o que podem representar
(ALVIM, 2013). Essa metodologia se desenvolveu e foi testada na Universidade Federal de Viçosa. Passou a ser
muito utilizada por diversos movimentos sociais, pastorais como a Pastoral da Juventude e o movimento
agroecológico desde a realização do III Encontro Nacional de Agroecologia, realizado em 2014, em Juazeiro.
212
Do grego leitourgía, (-as, serviço público, serviço do culto), em seu sentido dicionarizado significa o
conjunto das cerimônias eclesiásticas. Isto é, trata-se do rito.
144

ponto de vista da eficácia ritual, o que se realiza nas celebrações da palavra e nas missas só
“consegue significar” se houver uma “relação entre a celebração litúrgica e a vida ‘litúrgica’
no cotidiano”. Como explica a estudiosa:

“(...) a sacramentalidade213 depende da ritualidade. Os sacramentos não ‘funcionam’


automaticamente; sua eficácia depende daquilo que conseguem significar para
aquela determinada assembleia, com sua cultura e seu contexto de vida. Daí a
necessidade de aprofundarmos a relação entre os elementos rituais e a fé que
professamos e também a relação entre a celebração litúrgica e a vida ‘litúrgica’ no
cotidiano, ou seja, a vida vivida como serviço amoroso prestado a Deus, ao
cuidarmos das sementes do Reino de Deus e sua justiça, nas relações sociais e
interpessoais” (p.19).

Como demonstra o exemplo citado por Kerandel e Del Canto (1977), bem como uma
infinidade de outras histórias de variações no rito em celebrações que ouvi das pessoas
durante a pesquisa de campo e que também estão documentadas no Caderno de Dona Cora, os
mediadores “da libertação” estiveram e estão atentos a esse fato. Como escreveu Theije
(2002), “Os rituais liberacionistas envolvem variações no ritual católico tradicional. Através
desses rituais, os fiéis fazem a experiência do religioso de sua ligação com a comunidade
religiosa e do sagrado” (p.312).
Essas variações no rito, permanecem ‘até’ os dias de hoje. E por elas os cursistas
tomam contato e aprendem a celebrar e a fazer mística214. Na Casa do Mobon, os cursistas
foram convidados – uma equipe por dia – a planejar e realizar a celebração de abertura dos
trabalhos, pela manhã. Esse é um momento importante para as pessoas “mostrarem o
pouquinho que elas sabiam”. Neste momento as pessoas cantavam, faziam preces, liam a
bíblia e interpretavam publicamente o texto. Nestes dias, as celebrações não foram marcadas

213
No sentido de tornar algo ‘inerte’ em “sagrado”.
214
Mística aqui entendida como uma força impulsionadora, mas, mais do que isso, como ritual. Como sintetiza
Lara Junior (2007), “(...) a mística do cotidiano cria a impressão de que é uma força impulsionadora que faz das
pessoas alguém ‘extraordinário’, com uma força especial. (...). A mística tem a função, principalmente nas
religiões, de oferecer à pessoa uma força extraordinária, uma sensação de plenitude, capaz de fazê-la superar as
maiores adversidades por acreditar numa verdade de fé. (...) Percebemos que o conceito de mística se abre para
algumas possibilidades de compreensão como aquilo que se refere a ritos ou iniciado pelos ritos – ‘mystiká’. Os
ritos são eficazes para mostrar as formas de organização social, ratificar lugares hierárquicos no grupo social e
criar regras de convívio. Esses elementos mostram-se mais eficazes através do rito, que investe de sentido a
realidade das pessoas. Por outro lado, o rito mostra-se numa relação direta com o mistério, ou seja, com aquilo
que está encoberto, mas que, através dos rituais, reorganiza toda a produção simbólica de um grupo, uma vez que
através dos símbolos, o ‘misterioso’ é descoberto e materializado (...). Os ritos, através dos símbolos, são
provedores de sentido para a vida das pessoas que deles participam. Os ritos podem ser religiosos e também
sociais como, por exemplo, cantar o hino nacional diante da bandeira (...). Também nesse conceito de mística
como ritual, aponta-se para algo que escapa às explicações racionais, como o deslocamento para a área do
imaginário-simbólico” (p.5-7).
145

por tantas modificações em relação ao rito tradicional católico. Exceto, no dia da missa com
padre Zé Leão, na manhã de 10 de fevereiro.

Figura 20 | Missa com padre Zé Leão, na manhã do dia 10/02/2018. As fotos retratam o compartilhamento entre
sacerdotes e entre o público do poder de consagrar e de manipular os objetos e substâncias litúrgicas. Foto:
Acervo próprio.

Nesta missa, tudo se tornava algo a ser ‘refletido’ pelos presentes. Diferentemente dos
demais padres que só executam os ritos, padre Leão explicava o passo a passo do que estava
fazendo, dizia o que significava cada objeto que manipulava e em sua homilia tratou de temas
como a violência contra a população negra, carcerária, trabalhadores em terra e povos
indígenas. Em sua homiliam, falou também de alguns símbolos do “compromisso com a luta”,
como o anel de tucum (que fez questão de mostrar os que estavam em suas mãos para Lívia e
eu), que segundo disse, representa uma “aliança com a causa dos pobres e oprimidos”.
Sugeriu também que se assistisse os filmes “O Anel de Tucum” (1994)215 e “Molokai, a ilha
maldita” (1959).
O momento mais marcante foi a comunhão. Todo o rito de consagração da hóstia e do
vinho foi dividido entre o sacerdote e os irmãos sacramentinos João e Alípio. Na hora de
distribuir a comunhão, padre Zé Leão disse que faria tal como faz com a população carcerária
que acompanha, isto é, as pessoas é que se serviriam de “pão e vinho”. Assim, alterando o que
é comum nas missas católicas, na hora da comunhão, as pessoas fizeram uma fila, para elas
mesmas se servirem. A alteração no rito, apesar de gerar um burburinho, foi acatada pelos

215
O filme foi indicado por diversas vezes e por diversas lideranças diferentes ao longo do trabalho de campo.
As pessoas perguntavam: “Já assistiu o filme “Anel de Tucum?” e diziam logo em seguida, “se não assistiu, tem
que assistir, você vai gostar”, “tem tudo a ver com o que você está estudando”.
146

presentes. Todo esse movimento reforçou o senso comunitário, a partilha e aproximou mais
“do mistério da fé” os católicos que estavam ali. Fez com que se sentissem parte do “corpo da
Igreja Católica”, reforço, “da libertação”.
Deste modo, as pessoas puderam experimentar “por meio de celebrações, cânticos,
danças, dramatizações e realização de gestos rituais, uma revelação ou uma iluminação
conservada por um grupo determinado e fechado” (LARA JUNIOR, 2007, p.10). Neste
momento, se os neófitos ainda não tinham se integrado ao grupo, se sentiram fazendo parte
dele, e as lideranças já iniciadas reforçaram sua identidade de grupo. Como escreveu Lara
Junior:

“A mística é formadora de uma identidade coletiva, regada pelo sentimento de


pertença, que não é mera abstração, mas um ‘arrepio da alma que se materializou
em choro’. A experiência mística traz para os sentidos toda uma gama de emoções
vividas nas práticas grupais. (...) A mística proporciona o contorno necessário para
esse sentimento de pertença que é provocado por um ou vários dos elementos que
ela articula em sua estrutura (Lara Junior & Prado, 2004)” (LARA JUNIOR, 2007,
p.10-11).

Esse saber fazer mística será revertido em força mobilizadora e prática de manutenção
da memória da luta para os movimentos sociais. Nos espaços dos movimentos sociais que tive
contato, tal como acontece com a mística do MST, estudada por Lara Junior (2007),

“(...). Os temas da mística envolvem a história do movimento, acontecimentos


marcantes, sofridos e alegres, martírios e lutas. (...). Nesses momentos de profunda
concentração, geralmente são proferidas palavras de ordem, que vêm reforçar os
princípios de luta” (p.13).

Utilizadas em todos os momentos rituais, as músicas da “religião libertadora”, ou, as


“músicas da caminhada”, muitas vezes são gravadas sobre bases bem conhecidas da
população da zona rural: modas de viola, baiões, forrós, marchas, ladainhas, louvores, sambas
e cantigas. As letras tratam da realidade do campo, dos interiores do país, bem como do
universo camponês, suas “lutas” e pautas. Durante o Curso da CF 2018, viu-se a cantoria dos
hinos da CF em vários momentos. João Resende não ensina apenas o conteúdo do curso, mas
a todo o momento lembra aos presentes de cantar e decorar as letras da CF em questão. Essas
canções são replicadas nas comunidades. Pede-se às lideranças que cantem essas músicas nas
celebrações e missas nas capelas.
As pessoas ensaiavam, cantavam e tocavam seus instrumentos durante as celebrações
matutinas organizadas por diferentes equipes em cada dia, durante a missa celebrada pelo
padre Zé Leão, nos momentos de refeições e intervalos. Cantar a religião libertadora é tão
147

central que motiva a realização de um curso específico no início de cada ano. Falo dos cursos
de cântico litúrgico-pastoral, que já abordei aqui (cf. p.100). Esses cursos são importantes
para que se conheçam as letras das novas músicas que “animarão” as celebrações, missas e
demais eventos da Igreja Católica, nas comunidades, durante o ano corrente. Como explicou
Farinhada, educador, cantador popular e “animador” conhecido dos eventos dos movimentos
sociais e da Igreja Católica “da libertação”, as músicas cantadas são feitas por “pessoas
simples”, são compostas e “tiradas” (aprendidas) por pessoas das comunidades que começam
“a cantar sua história”216.

Figura 21 | Lideranças ensaiam as músicas da CF 2018 na Casa do Mobon, durante o intervalo após o almoço.
Foto: Acervo próprio.

Como explica a liderança:

“(...) tem uma coisa fundamental, que para mim é o divisor de águas dentro do
elemento chamado Comunidades Eclesiais de Base, é a mística e a animação movida
pela música relacionada aos temas. Aí o povo começa a cantar nas comunidades, as

216
Entrevista, 06/11/2018.
148

músicas falando dos problemas da comunidade. Músicas do tipo: ‘nosso direito vem,
se não vem nosso direito, o Brasil perde também’. Isso era música cantada na missa.
Outra música ‘De repente nossa vista clareou, clareou... nós descobrimos que o
pobre tem valor, tem valor, tem valor...’ ‘irá chegar um novo dia’. (...) é muito
bonito perceber que os sindicatos, os partidos dos trabalhadores, o MST, o MAB,
esses movimentos todos bebem desta fonte”217.

Nesta reflexão, Farinhada cita algumas músicas como “Nossos direitos vêm”218,
“Nossa vista clareou”219, “Irá chegar” como canções que “cantam a história” e a “luta” dos
“pequenos”. Mais uma infinidade de outras músicas pode ser citada (para além das que
escutei na casa do Mobon). Canções como “Classe roceira”, “Espinheira santa”, “Eu sou feliz
é na comunidade”, “Utopia”, “Ofertório do povo” entre outras, retratam a vida em
comunidade, falam da família e também apresentam “denúncias” e “anúncios” sobre a
realidade sobre o campo brasileiro. Estas músicas, como mais uma maneira de rezar e “fazer a
luta”, conformaram as consciências de diversas lideranças das mais distintas gerações dentro
das comunidades de base e dos movimentos sociais “de base” na Zona da Mata. Como se
alegra o cantador, “é muito bonito perceber que os sindicatos, os partidos dos trabalhadores, o
MST, o MAB, esses movimentos todos bebem desta fonte”.
A propósito desta análise, vale repetir o que escreveram Menezes e Pereira (2012) a
respeito das músicas que marcam a memória de trabalhadores rurais da Zona da Mata de
Pernambuco:

“(...). As condições de vida são um tema privilegiado nas letras das canções: (...).
Há, portanto, um elemento de denúncia nessas canções, expresso por um certo tom
“melancólico” adquirido pelas melodias, em situações apresentadas pelas letras que
podem produzir uma identificação entre quem canta e quem escuta, enquanto
participantes de uma experiência semelhante de sofrimento e exploração. No
entanto, as músicas vão além da apresentação das dificuldades: elas trazem uma
alternativa. Ao denunciarem uma situação, lançam a centelha para que ela seja
considerada intolerável e canalizam a insatisfação para a luta política” (MENEZES;
PEREIRA, 2012, p.477-479).

Por fim, o tema das músicas “da libertação” possui uma significativa força agregadora
(VELHO, G., 2003). Estudar e se aprofundar no tema mobilizou um ajuntamento de pessoas
de várias regiões e filiadas aos mais diversos movimentos para a realização do 1º Encontro de
Música e Espiritualidade na Caminhada, que aconteceu de 30 e 31 de março de 2019, em

217
Entrevista, 06/11/2018.
218
Não encontrei a autoria da música, mas sabe-se que ela é uma música muito conhecida na memória dos
sindicalistas ligados aos STRs. A título de informação, a música foi gravada por trabalhadores rurais da Zona da
Mata pernambucana, no CD “Lutando e Cantando” (faixa 18), um produto do projeto “Memória Camponesa e
Cultura Popular”, do NUAP/PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.
219
De Zé Vicente. Presente no cancioneiro da 14º Intereclesial das CEBs, que aconteceu em Londrina, de 23 a
27/01/2018.
149

Manhumirim220. Neste momento – cantando, analisando cancioneiros, os ritmos das músicas,


quem as compõe, fazendo comparações com outras musicalidades – lideranças puderam
relembrar e aprender as músicas “da libertação”221.

Figura 22 | Cancioneiros ‘históricos’ ornamentam o cenário do 1º Encontro de Música e Espiritualidade na


Caminhada, realizado de 30 e 31/03/2019, em Manhumirim. Foto: Acervo próprio.

Todos esses saberes aqui descritos foram potencializados e canalizados para a


transmissão da mensagem liberacionista. O aprendizado dessas técnicas repercute não só para
a dimensão do próprio Mobon como para a organização dos movimentos que estão na esfera
“igrejeira” dos movimentos sociais na Zona da Mata e além.

3.5. O sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon

O conjunto de saberes fazeres do Mobon aprendidos pelas lideranças definiremos,


doravante, como sistema de aprendizagem ‘do Mobon’. Este sistema é orientado pela
pedagogia de Jesus, pois como disse João Resende:

“O Missionário não é o que despeja. A gente usava a comparação, que a gente não
podia ser caminhão basculante, que ao chegar no monte de terra, dar as costas ou de

220
Inicialmente marcado para ser realizado em maio de 2018, em Espera Feliz, em razão da greve dos
caminhoneiros que ocorreu no período, o evento foi adiado.
221
Matéria sobre o evento disponível em: <http://revista.olutador.org.br/noticia/1-encontro-musica-e-
espiritualidade-da-caminhada-19042019-215324>. Acesso em: 02 fev. 2020.
150

banda e a cara fica pra lá e depois que encheu tan, tan, tan e vai embora. E chega lá
no buraco, ele chega de ré, entorna. A gente foi percebendo que a pedagogia de
Jesus, não é a pedagogia do despejo, mas chegar de frente e tocar o coração da
pessoa, quando toca o coração a cabeça abre”222.

Esta pedagogia possui uma maneira de ensinar ‘dialógica’ que se constrói a partir de 5
ações complementares, a saber: (i) escutar o que têm a dizer os leigos/cursistas; (ii) “puxar a
língua” dos leigos, isto é, provocar e deixar falar à vontade; (iii) fazer comparações, ou seja,
se utilizar de metáforas e parábolas para teologizar; (iv) simplificar a linguagem, traduzindo
os termos acadêmicos e teológicos para a linguagem do povo simples; (v) provocar a reflexão,
sobretudo, a partir de questões problematizadoras que em última instância quer indagar: “o
que a fé cobra de nós?” aqui e agora.
Em contato com o sistema, os leigos aprendem uma miríade de saberes que,
relacionados e em sua unidade, compõem o ‘método do Mobon’. Etnograficamente, Mapeou-
se os seguintes saberes: reunir, falar, escutar, ler, interpretar, celebrar, fazer mística, se
emocionar, cantar a “religião libertadora”, registrar, estudar, usar mapas bíblicos, desenhar
e/ou valorizar o desenho.
De maneira dinâmica, durante os cursos esse sistema em seu conjunto veicula valores
liberacionistas (THEIJE, 2002, p.261-273; 327-352), quer dizer, valores ligados à Teologia da
Libertação como: localidade (viver em comunidade); unidade (evitar a divergência, pois
“somos todos irmãos”); ajuda aos outros (fazer caridade e/ou engajar-se sociopoliticamente),
e valorização do deslocamento – de si para os outros, de um lugar ao outro – para
implementar a “Igreja em Saída”, esse “modo novo de ser Igreja”.
A propósito deste trabalho, o último valor é uma ‘força’ fundamental para a
reprodução do sistema. Se deslocar “nessas estradas da vida”, “estar no trecho”, fazer o
caminho caminhando é incentivado. O ‘movimento’ torna-se uma obrigação moral para as
lideranças. Os missionários sacramentinos incentivam os leigos a “saírem do conforto” de
suas casas e caminhar a serviço do “anúncio da Palavra de Deus”. Dessa forma, o movimento
literalmente se faz pelo movimento. Os leigos são ‘provocados’ a se desprenderem e a
comporem o discipulado missionário. Como explicou Mariano, a lógica “do Boa Nova” não é
prender ninguém em um “movimento que possui camisa”, mas “criar condições para que a
força do evangelho corra nas comunidades”.
Como disse, “O Mobon é como se fosse uma canaleta, o importante é a água correr e
não represar”. Portanto, o ‘papel’ do movimento é formar protagonistas que ‘façam diferença’
222
Entrevista concedida em 2009. In: Oliveira, F. R. C. (2015, p.139).
151

em seus lugares de origem, vizinhanças e por onde “caminharem”. O crucial é estar em


“constante estado de missão”. Como escreveu recentemente o irmão sacramentino, talvez
‘justificando’ uma crescente diminuição do número de cursos realizados na Casa do Mobon
desde sua fundação223:

“(...) alguns levantamentos feitos revelam que houve um significativo crescimento


dos cursos realizados nas paróquias, descentralizando o trabalho e favorecendo a sua
expansão. Ou seja, o trabalho do MOBON espalha-se muito além dos cursos que
acontecem na Casa do Mobon. Antes mesmo da proposta do Papa Francisco,
antecipam-se os passos de uma Igreja ‘em saída’, em constante estado de missão. É
interessante perceber que ao período da diminuição dos cursos na Casa na do Mobon
corresponde um aumento dos cursos nas paróquias e Dioceses vizinhas. (...). Neste
sentido, há uma menor visibilidade do trabalho, mas uma maior capilaridade do
mesmo, ramificando-se nas várias paróquias. (...). Um fermento do Evangelho
favorecendo o crescimento das comunidades” 224.

Além da circulação “nas bases” para a realização de cursos, as lideranças ‘mais


engajadas’ circulam por outros eventos – encontros, cursos, jornadas, seminários, entre outros
– de cunho religioso, político e/ou acadêmico. E assim fazendo, praticam os saberes e ajustam
os valores do sistema a esses contextos. Dessa maneira, vão ‘expandindo’ o sistema,
submetendo-o a constantes “trocas de saberes” com outros sistemas de aprendizado, que ao
fim e ao cabo, vão se transformando mutuamente. Por onde passam, portanto, os “basistas”
estão a dar continuidade à “História do Povo de Deus”. Assim, os saberes do Mobon “foram
sendo absorvidos, inculcados, refletidos, reproduzidos e produzidos em contextos diferentes,
além de produzir realidades diferentes” (RABELO, 2019, p.24).
Certa vez, Augusto Boal (1991), importante teatrólogo brasileiro, disse “(...). Todo
esquema é insuficiente (...)” (p.69). Portanto, sem engessar a realidade em um ‘esquema’
inerte, apresento a figura 23 abaixo que busca de maneira ideal ‘sintetizar’ o modo de
operação deste sistema.

223
Como apresenta Léssio Cardoso no artigo, a partir dos dados levantados em 2009, nos primeiros 10 anos de
atividade da Casa do Mobon havia uma média de 66 cursos por ano. Depois, essa cifra cai pela metade entre
1989 a 1998, passando para uma média de 30 cursos por ano. Outra queda acontece entre 1999 e 2008, com uma
média de 18 cursos por ano. A recente pesquisa aponta que na última década (de 2009 a 2018) a média de cursos
realizados na Casa ficou ainda mais baixa, cerca de 9 a 10 cursos por ano (SILVA, Denilson Mariano da, 2019b,
p.8).
224
In: Silva, Denilson Mariano da (2019b, p.8).
152

Figura 23 | O sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon | Fonte: elaborado pelo pesquisador | Arte: Rodrigo Teixeira

3.5.1. O sistema de aprendizado do Mobon e a formação de lideranças

Nesse sistema o aprendizado é duplo (THEIJE, 2002, p. 224-226). Isto é, ‘ao mesmo
tempo’, em que se aprende sobre “as coisas de Deus”, aprende-se sobre a gestão de si. No
âmbito das coisas de Deus, os católicos comuns têm acesso aos saberes da leitura,
interpretação da e fala em público sobre a Bíblia Sagrada; da oração; da celebração da palavra
e da eucaristia; e da cantoria da “religião libertadora”. O que no nível dos leigos representa
um passo importante no acesso ao ‘mundo moderno’225 e rumo à identificação e ao
pertencimento a um grupo ‘autorizado’ a falar, nomear as coisas e classificar pessoas.
No âmbito do aprendizado de si, esses mesmos leigos (re)aprendem a gerir os ‘corpos
morais’, sobretudo aqueles de origem camponesa. Isto é, camponeses com suas estruturas de
pensamento e sentimento específicos (BRANDÃO, 1999), um ritmo “mais lento” que

225
Como sugere Banck (1990, p.75 apud THEIJE, 2002, p.224), ao acessar a Palavra de Deus, o leigo ou leiga
passa a ter “acesso ao mundo das palavras escritas, sagradas, mágicas ou profanas, os códigos escritos que tantas
vezes se mostram importantíssimos no mundo moderno”.
153

demanda mais tempo para formarem suas ideias (KERANDEL, DEL CANTO, 1977) e uma
héxis corporal característica (BOURDIEU, 2006) aprendem, por exemplo, a permanecer
prestando atenção em quem fala, não importando quanto tempo isso levar. Além disso,
“homens e mulheres são incentivados a verbalizar suas opiniões e suas crenças e a falar em
público. Isso não é fácil para todos226” (THEIJE, 2002, p.225).
Nos cursos do Mobon não se apresentam “apenas os conteúdos temáticos, mas
também alguns aspectos de capacitação daquelas pessoas para a reprodução dos cursos, tais
como planejar seu trabalho, dinamizar os encontros, saber coordenar, etc.” (GOMES E
ANDRADE, 2011, p.60).
Para aqueles que se sentem “chamados”, os cursos funcionam como ‘ritos de
passagem’, em que se adquire um novo status (católico comum → liderança) com todas as
obrigações que o novo papel carrega (noblesse oblige). Com o tempo, a hexis corporal e a
performance em público se transformam. Como disseram os fundadores do Mobon, João
Resende e Alípio Jacinto, foi prestando atenção no “jeito simples do povo”, deixando os
leigos falarem e debaterem acaloradamente durante os cursos e plenários, que aprenderam a
evangelizar de uma maneira que envolvesse as pessoas, transformando-as de ‘meros
expectadores’ a agentes pastorais responsáveis pela resolução dos problemas e desavenças
comunitárias. Tudo “sob a luz da Palavra de Deus”.
Alguns leigos, ao falarem sobre o que aprenderam com o Mobon, dão mostras de
algumas mudanças que foram operadas nas subjetividades e no relacionamento com os outros.
Para José Carlos Caon, de Espera Feliz, o contato com os grupos de reflexão lhe forneceu um
“caminho” de como ser um “cristão de verdade”. Júlio Maria do Amaral, também de Espera
Feliz, diz que, em contato com o Mobon, aprendeu a importância dos “ensinamentos da
Palavra de Deus”, o que lhe trouxe “uma mudança pessoal” e o fez se tornar “um bom líder”
em sua comunidade. Por fim, para Iano Pereira, um dos que ajudaram na construção da Casa

226
Jessé de Souza (2016) ao comentar sobre a diferença entre os processos de aprender da classe popular (que
chama de “ralé”) e da classe burguesa, chama atenção para um aspecto que, grosso modo, possui muita relação
com o que no parágrafo está se desenvolvendo. Segundo o autor, “Ao entrevistarmos os membros adultos da ralé
acerca de sua experiência escolar, nos surpreendemos com a afirmação generalizada de que ‘fitavam a lousa por
horas a fio sem aprender’. Ora, a ‘capacidade de concentração’, que é o que permite aprender, não é um dado
natural de qualquer ser humano ‘normal’, como ter dois olhos, uma boca e dois ouvidos. Sem estímulo à leitura e
sem o pressuposto da leitura como parte do cotidiano vivido, sem o estímulo que leituras noturnas cheias de
fantasia oferecem à criança, sem estímulo ao pensamento abstrato, não existe ‘capacidade de concentração’. Sem
capacidade de se concentrar, por sua vez, não existe aprendizado real (...). Nenhum de nós nasce com os
atributos da disciplina, do autocontrole, do pensamento prospectivo e da capacidade de concentração. Esses
atributos são, como vimos antes, privilégios de classe. Algumas classes os têm ‘desde o berço’, como a classe
média, outras os constroem precariamente, como a nossa classe trabalhadora, e outras ainda nunca os constroem
em quantidade adequada, como os nossos excluídos” (SOUZA, 2016, p.63-77).
154

do Mobon, assumir o compromisso do Mobon é assumir “o compromisso e a responsabilidade


do aprender e repassar a Boa Nova para os outros” (cf. AFONSO, 2019, p.146-148).
As lideranças, ao se formarem nos cursos, não estão apenas adquirindo saberes fazeres
(fenômenos de aprendizagem simples para os quais olhamos primeiro e podem ser descritos),
mas, se tornam pessoas que “aprenderam a aprender”227. E quando digo isso, quero dizer que
tais leigos aprenderam mais que ‘truques simples’ de mediação de reuniões, cursos e
plenárias. Essas lideranças desenvolveram “essa experiência em toda a sua filosofia de vida”
(BATENSON, 1972, p.129-130)228, de uma maneira que vai além do “aprendizado de
primeiro grau”. Isto é, tornaram-se pessoas que, ao encontrarem “certos tipos de contexto,
tendem a ver esses contextos estruturados em um padrão familiar anterior” (BATESON,
1972, p.130)229, que lhe possibilita ‘antecipar’ e improvisar soluções – narrativas e rituais –
que ‘acomodem’ as novidades (diferentes questões, “pautas” e reflexões) que os distintos
contextos situacionais (ou, contextos de receptividade230) com que se deparam lhes apresenta.
Em síntese:

“(...) poderíamos dizer que o sujeito está aprendendo a se orientar para certos tipos
de contextos, ou está adquirindo ‘insight’ nos contextos de resolução de problemas.
No jargão deste artigo, podemos dizer que o sujeito adquiriu o hábito de procurar
contextos e sequências de um tipo em vez de outro, o hábito de ‘pontuar’ o fluxo de
eventos para repetir um certo tipo de sequência significativa” (BATESON, 1972,
p.131)231.

227
Nos termos de Batenson (1972), expresso pelo conceito de deuteroaprendizado (deutero-learning). Como
escreveu, “(...) ‘aprender a aprender’ é sinônimo de aquisição dessa classe de hábitos abstratos de pensamento
(...) os estados de espírito que chamamos de ‘livre arbítrio’, pensamento instrumental, domínio, passividade etc.
são adquiridos por meio de um processo que podemos equacionar como ‘aprender a aprender’” (BATENSON,
1972, p.131). No original: “(...) ‘learning to learn’ is a synonym for the acquisition of that class of abstract
habits of thought with which this paper is concerned; that the states of mind which we call ‘free will,
“’
instrumental thinking, dominance, passivity, etc., are acquired by a process which we may equate with learning
to learn’”. É o deuteroaprendizado que possibilita a plasticidade da aprendizagem e a consequente transformação
cumulativa do conhecimento de dada cultura. Como escreveu Bauman (2008), “(...) Batenson afirmou que o
deuteroaprendizado, esse ‘aprendendo a aprender’, é mais do que inevitável, é um complemento indispensável de
todo proto-aprendizado; sem o deuteroaprendizado, o ‘aprendizado de primeiro grau’ resultaria numa mente
dissecada e ossificada, incapaz de assimilar uma situação alterada ou algo não pensado de antemão” (p.159).
228
No original: “(...) they will build this experience into their whole philosophy of life”.
229
No Original: “(...) they will tend to see these contexts as structured on an earlier familiar pattern”.
230
Quando se pensa em contexto, pensa-se em contexto da situação recebida: onde, quando, com quais
subjetividades se está comunicando, em que momento político a situação está se desenrolando, por exemplo.
Pode-se pensar na noção de “saber localizado”, isto é, que considere o local de onde emerge o saber
(HARAWAY, 1995), bem como a subjetividade daqueles que mediam a mensagem-ritual.
231
No original: “In semigestalt or semianthropomorphic phraseology, we might say that the subject is learning
to orient himself to certain types of contexts, or is acquiring “insight” into the contexts of problem solving. In
the jargon of this paper, we may say that the subject has acquired a habit of looking for contexts and sequences
of one type rather than another, a habit of “punctuating” the stream of events to give repetitions of a certain
type of meaningful sequence”.
155

Esses leigos ao passarem pelos cursos onde são levados a saírem de seu “lugar de
conforto” e forçados a performarem o papel de mediadores, não apenas aprendem a repetir o
que lhes é ensinado nos cursos (os gestos, o tom de voz, os esquemas que são desenhados no
quadro negro ou apresentados em apresentações PowerPoint, o provocar o público com
questões problematizadoras, a comunicação por metáforas, etc.), mas aprendem a lidar com
contextos de aprendizagem. Eles aprendem a identificar e usufruir de ambientes em que se
aprende232, transformam essa aprendizagem e, consequentemente, transformam o movimento
que fazem parte. Grosso modo, “indivíduos reais que têm padrões emocionais complexos de
relacionamento com outros indivíduos” (BATENSON, 1972, p.??)233 aprendem por uma
espécie de redescobrimento dirigido (isto é, um misto de imitação e improvisação) próprios
do ato humano de “dar forma”. À medida que leem as coisas “para frente”, “inventam a
cultura” (WAGNER. 2010) a partir do contato com os diferentes contextos de aprendizagem e
seus elementos234.

232
No caso deste universo das CEBs/Movimentos representados por momentos de ‘suspensão do cotidiano’, em
que as pessoas que se ajuntam se ‘isolam’ do restante do mundo, por algumas horas ou alguns dias, e passam a
“ad-mirar” o que viveram/vivem, e, buscar soluções. Esses ambientes podem ser reuniões, assembleias, cursos
de base e de liderança, reuniões de grupos de reflexão, círculos de cultura, grupos de trabalho, etc.
233
Em nosso caso, camponeses com suas estruturas de pensamento e sentimento específicos (BRANDÃO,
1999), um ritmo “mais lento” que demanda mais tempo para formarem suas ideias (KERANDEL, DEL CANTO,
1977) e uma héxis corporal característica (BOURDIEU, 2008).
234
A leitura de Ingold (2010) foi inspiradora para o desenvolvimento dessa noção.
156

CAPÍTULO 4

OS SABERES FAZERES HOJE: DIVERSIDADE, VITALIDADE E (RE)INVENÇÕES


NOS MOVIMENTOS POPULARES “IGREJEIROS”

Como enunciado, neste capítulo objetivo demonstrar como foi (vai sendo) apropriado,
(re)criado e diferenciado por ‘novos’ movimentos – como exemplo, os movimentos que
envolvem jovens e o movimento negro – os saberes fazeres ‘do’ Mobon. Deste modo, nos
itens 4.1.1 e 4.1.2 apresentarei cenas de dois eventos mais “de movimentos”. A saber, farei
breves descrições do Curso de Férias para Educadores Populares e do 7º Encontro de
Formação de Leigos e Leigas da Diocese de Itabira/Coronel Fabriciano, trazendo à tona as
cenas que foram importantes para a minha compreensão das (re)invenções. Creio que serão
também importantes para o leitor compreender o que quero dizer. Antes, apresento uma breve
introdução que servirá de amparo para os dados descritivos.

4.1. A Rama de Abóbora continua a se espalhar e dar frutos: notas sobre articulação,
reconstrução de saberes fazeres e vitalidade dos movimentos da Zona da Mata

Farinhada, iniciado na militância político-católica via Pastoral da Juventude (PJ)235,


que teve contato com as formações conduzidas por João Resende, e passou a se interessar,
‘ainda’ no âmbito das ações da Igreja Católica “da libertação”, cada vez mais pela pauta da
negritude, desde que um Agente Pastoral Negro (APN) de Muriaé lhe apresentou alguns
materiais de formação236, disse certa vez em uma entrevista que uma das coisas que estava
buscando era compreender como as CEBs demorou tanto tempo para incorporar “outros
debates, negritude, juventude”237, por exemplo.

235
E vale repetir o que Mariano disse em conversa de WhatsApp®, no dia 01/03/2019. Isto é, na avaliação do
missionário sacramentino “O que se firma ao lado do trabalho da Boa Nova é a Pastoral da Juventude”.
236
Conversa, 28/12/2019.
237
Entrevista, 06/11/2018.
157

O modo como Rabelo (2019) inicialmente ‘responde’ à questão posta pela liderança
parece-me útil. Como expliquei no Capítulo 2, os ‘movimentos’ surgidos com base no Mobon
na Zona da Mata e outras regiões são bem diversificados e, baseando-me na classificação feita
pela pesquisadora, digo que eles foram feitos por três gerações. Segundo Rabelo, para cada
geração há um contexto de fala/expressão e um tipo de oportunidade específica. Em se
tratando dos movimentos populares da região que se relacionam com a ‘matriz’ de saberes
disponibilizada pelo Mobon – sobretudo, no que se refere à história de formação dos
sindicatos de trabalhadores rurais e do Partido dos Trabalhadores ‘dos grotões’ das matas de
Minas Gerais238–, podemos dizer que à medida que a ameaça e a violência física (que afetou a
primeira geração), assim como o acesso a direitos trabalhistas e acesso a políticas públicas de
fomento à agricultura, principalmente, dos “pequenos” (segunda geração)239 ia sendo
alcançada, “outras pautas puderam entrar em debate de forma mais intensa, como são a
negritude, o papel da mulher na sociedade, o protagonismo da juventude, seus
intercruzamentos, etc.” (RABELO, 2019, p.122).
Essa maneira de enquadrar os fatos é uma das maneiras de explicar. É a ‘ponta do
iceberg’ e merece maior investigação em outra oportunidade. Mas, para o propósito desta
dissertação, corroborando com a pesquisadora, é importante dizer que:

“A geração à qual pertence a liderança também influi na diferenciação da


experiência, dadas as etapas distintas de um processo de criação e consolidação das
atividades sociais. Se por um lado, as lideranças da primeira geração, dado o
enfrentamento, passaram pela dor da perseguição, violência física e morte dos seus.
Por outro lado, a segunda geração, responsável pela manutenção das instituições,
passaram pelo sofrimento atribuído a ‘pegar estrada’ dadas as limitações financeiras,
o que é visto como parte do auto sacrifício da “missão”. Está também foi a geração
que abriu brechas para a disputa da significação do “povo de Deus”, afinal, outras
formas de opressão foram se mostrando ao longo da caminhada, como a que ocorre
contra as mulheres, jovens, negros, etc. A terceira geração, é a geração emergente,

238
Junto com as CEBs, segundo a fala de um político reproduzida por Sanchis (1990), os sindicatos e o PT
formam o ‘”tripé” que fez as pessoas se organizarem por um tempo na região da Zona da Mata. Segundo disse o
político, “o que mantém a gente na comunidade é a fé; o que mantém a gente no sindicato são os direitos
trabalhistas; o que mantém a gente no partido é a ideologia, é o projeto de sociedade. Este tripé se une em
determinado ponto – base comum – mas ao mesmo tempo se distingue” (in: SANCHIS, 1990, p.64).
239
Silva. M. G. (2010), a propósito do estudo do STR de Espera Feliz, por exemplo, afirma que a história da
organização foi marcada por valores, lógicas de atuação e características distintas a partir de dois contextos de
atuação. Como escreveu, “A primeira fase foi marcada pelos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base
(CEB), que se propunha a formar lideranças com uma orientação mais atuante frente aos conflitos que
permeavam as relações agrárias no Brasil. (...). Na década de 1980, a atuação do STR de Espera Feliz estava a
orientada em resguardar os direitos trabalhistas, bem como ao atendimento previdenciário dos trabalhadores.
(...). O segundo contexto teve início a partir de agendas de atuação vinculadas a questões produtivas e
econômicas da agricultura familiar e ao acesso a políticas públicas de desenvolvimento rural. [Em que se] (...)
assumiu, gradativamente, um projeto alternativo de desenvolvimento rural, “ancorados na expansão e
fortalecimento da agricultura familiar”. (...). Essas mudanças conjunturais refletiram na atuação do STR de
Espera Feliz, sendo inseridas em seus trabalhos questões produtivas, de comercialização, do crédito, mais
especificamente para atender a demandas apresentadas pela agricultura familiar do município” (SILVA, M. G.,
2010, p.39-42).
158

que tem contribuído para a ampliação das instituições, e suas articulações com
outros movimentos sociais” (RABELO, 2019, P.142).

Por fim, não é que os debates colocados por Farinhada não fossem feitos pelo “povo
do Mobon”. Pois, ao se observar os materiais de curso organizados pelos missionários
sacramentinos, os temas da campanha da fraternidade, vê-se que eles eram ‘pontuados’ nos
cursos. Todavia, “de forma mais intensa”, esses debates foram feitos muito depois e
“puxados” pelos “filhos de CEBs/Mobon” ‘mais críticos’, já socializados em outras ‘matrizes’
de saberes, como aconteceu com Farinhada, que aprendeu a “ser liderança” por meio de sua
vivência de PJ e, também, do Movimento Negro em suas diversas frentes.
Assim, o questionamento de quem era o “povo de Deus” – no início muito enquadrado
apenas pelas categorias de “pobres”, “oprimidos”, “pequenos”, “empregado”, etc. – gerou
uma mudança significativa no rumo das coisas no contexto do desenvolvimento de uma
campanha liberacionista. A indagação, levada a cabo por alguns leigos, negros, mulheres,
indígenas, jovens, explica algumas visões diferentes e muitas críticas internas. A partir da
década de 1980, período de redemocratização do país, o leque de possibilidade para se pensar
o conflito entre “grandes” e “pequenos” se ampliou. Sanchis (2018), por exemplo, estuda o
caso dos APNs. Como explica, o Movimento dos Agentes Pastorais Negros surge em 1983 e
nasce:

“(...) dentro da corrente da Teologia da Libertação, mas se distinguindo dela na


medida em que esta reduzia em um nível único – o das classes, ou mais
simplesmente, da pobreza – os conflitos estruturais na sociedade brasileira. Para os
APNs, a variável ‘negro’ (utilizam para expressá-la as categorias de ‘raça’ ou
‘etnia’), bem como a variável ‘mulher’ – sobretudo quando se somam – criam outras
articulações de conflitos” (p.153).

É importante dizer que as “lideranças” não ficaram circunscritas ao ambiente das


CEBs. Elas circulam e estabelecem um trânsito por diversos eventos, sejam eles organizados
pela Igreja Católica, por pastorais sociais, por ONGs (como o CTA-ZM), pelos movimentos
sociais populares, por universidades, poder público, organizações representativas dos
trabalhadores do campo e da cidade, etc. Isso tudo fez transformar as pautas que eram
discutidas por esses leigos “engajados” e “conscientes”. E mudança de pautas, em uma
medida ou outra, representam também mudanças de práticas que alteram o que já estava
estabelecido. Quero dizer que, por exemplo, com a inserção nos ambientes das comunidades
de base e dos movimentos “igrejeiros” da pauta da negritude, consequentemente, há a
inserção no ritual (místicas, celebrações, reuniões, cursos, etc.) de musicalidade,
159

corporalidade, indumentária, enfim, sem querer essencializar, de modos de ser representativos


e correspondentes a esse pensamento. O mesmo vale para qualquer outra ‘nova’ pauta levada
para o centro das atenções nesses espaços. Esse processo gera inovações.
Todavia, como se verá nas descrições adiante, mesmo com toda a inovação, há uma
certa constância na organização do ritual quem vem sendo reproduzido ao longo dos anos por
essas lideranças. Isso se faz necessário para que se crie um ambiente reconhecível e para que
não seja necessário criar tudo do zero todas as vezes em que as pessoas se reunirem. Desse
modo, como veremos, “(...) a estrutura do ritual é o fator constante. O conteúdo da mensagem
pode variar. No entanto, enquanto a estrutura for reconhecível, o ritual induz certos
sentimentos e atrai o povo” (THEIJE, 2002, p.311). Por mais que haja inovações, pode-se
dizer que as pessoas estão (re)inventando o que já sabem/aprenderam.
Como escreveu Theije (2002), “(...) as muitas aberturas da Campanha Liberacionista
tornam os resultados imprevisíveis” (p.346). Isso porque “A posição estrutural dos atores,
associada à sua busca contínua de significado, levou a um processo sustentado de ajuste
situacional” (idem, p.347). Esses processos de ajustes situacionais possibilitam variados
arranjos do sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon, que a depender de onde, como e por quem
for acionado na rede militante “igrejeira”, gerará – em contato com outros ‘sistemas’ de
aprendizados e por meio de processos criativos de invenção (WAGNER, 2010) – diferentes
interações, reflexões e resultados. Isto é, podem ocorrer, de acordo com as circunstâncias
situacionais, variações discursivas e rituais na aplicação de ‘velhos’ saberes-fazeres.
Assim, apropriando-me de uma leitura de Barbosa (2005) voltada para os propósitos
desta discussão, pode-se dizer que há uma historicidade comum que flui e permite (re)criar
“em sua imediação generativa” (p.21)240 a maneira liberacionista de fazer as coisas que se
aprendeu com os mediadores do Mobon.
É ilustrativo disso o que falo no seguinte episódio. Certa vez, Irene Cardoso,
professora do Departamento de Solos da UFV, formada em sua adolescência por um
movimento da Igreja Católica241, filiada e uma das fundadoras do PT ‘de Viçosa’, uma das
fundadoras do CTA-ZM e atualmente referência do movimento agroecológico no Brasil e no
mundo, disse que as Instalações Artístico-Pedagógicas242, tão utilizadas pelos movimentos
sociais e pela própria universidade como método de ensino, são como um “presépio”. Em

240
Isto é, em sua contiguidade que tem a propriedade de gerar.
241
“Movimento Shalom” da Diocese de Caratinga, do qual participou por meio do Grupo de Jovens “Estamos
Ligados no Amor de Cristo – ELAC”. Sua participação o grupo nos anos de 1977 está registrada em cadernos de
anotações que foram a mim disponibilizados.
242
Cf. definição nota de rodapé 215, página 143 deste capítulo.
160

outras palavras, em um contexto de uma entrevista para essa pesquisa, em que eu perguntava
à professora sobre a origem de algumas metodologias utilizadas pelo movimento
agroecológico – que sabemos possuir relação estrita com as CEBs243 –, ela disse que tem a
impressão de que tudo, na verdade, trata-se de um processo de reelaboração, ressignificação,
retrabalho e reconstrução de um “aporte da educação popular que tá na CEBs...”. Como se
expressou:

“(...) a instalação artístico-pedagógica, eu costumo brincar que isso é um presépio,


só que invés de Deus, Nossa Senhora e a manjedoura tem outros elementos, mas a
gente ressignifica e reelabora e devolve esse material. (...). A gente ressignifica,
reelabora e coloca outros... e aporta. (...). O aporte da educação popular que tá na
CEBs, que tá no camponês a camponês244, então a gente vai desenvolvendo isso, a
gente vai juntando, fazendo síntese, ressignificando, reelaborando mas depois cê vai
vendo que a gente não inventou nada, tá tudo aí espalhado em algum lugar (...) mas
a gente ressignifica, a gente retrabalha, então eu acho que a gente vai aportando isso,
a gente vai... é... trazendo a intencionalidade pedagógica, a gente vai adaptando as
metodologias. E se falar assim: ‘qual metodologia que nós criamos do nada,
nenhuma. Eu tenho a impressão que nenhuma. (...). A gente vai adaptando, criando,
reconstruindo” 245

Mais uma evidência de que, na verdade, as pessoas em contato com as CEBs


“aprenderam a aprender” (BATESON, 1972). Circulando por diversos eventos e vivendo as
mais diversas situações, convivendo nos mais diferentes círculos sociais, o que as lideranças
da Zona da Mata mineira fazem é acionar – cada um a seu modo – ajustando situacionalmente
e considerando o espírito do tempo (zeitgeist), a ‘matriz’ de saberes aprendidas com o Mobon,
em diálogos com outras ‘matrizes’ de saberes.
Tudo garante vitalidade a esses espaços de movimentos populares “igrejeiros” na
região. Essa constante reelaboração, ressignificação, retrabalho e reconstrução “atrai o povo”,
conecta experiências e fomenta a criatividade. Essa confluência de pautas, práticas, saberes
fazeres em busca da solução de alguns problemas gera resultados concretos que garantem a
pertinácia dos movimentos. O pressuposto inicial de “leigo formando leigo” foi intensificado
e continua “gerando frutos”.
Atualmente, exemplifica todas essas confluências, a construção da Escola Nacional de
Energia Popular (ENEP), uma “universidade popular na Zona da Mata mineira”, construída

243
Cf. Cintrão (1996); Villar et. al (2013); Silva, M. G. e Santos (2016); Silva, M. G. (2017b).
244
Trata-se de uma metodologia a partir da qual camponeses ligados à Asociación Nacional de Agricultores
Pequeños (ANAP) de Cuba realizaram a “transição agroecológica” (cf. MACHÍN SOSA et al., 2012, VASSALI,
2015, P.81-85). A metodologia foi o que inspirou os intercâmbios agroecológicos tão utilizados pelo movimento
agroecologico brasileiro (cf. VASSALI, 2015).
245
Entrevista, 12/09/2018.
161

após o trágico rompimento da barragem de Fundão, distrito de Mariana, em 2015246. A escola


foi construída por movimentos sociais de atingidos por barragens e pela mineração,
articulados a outras organizações políticas, religiosas e educacionais atuantes no estado de
Minas Gerais (cf. VIEIRAS, 2019). No local, situado na zona rural de Viçosa, conflui uma
infinidade de ‘movimentos’, tais como o Levante Popular da Juventude, a Escola Família
Agrícola Dom Luciano, o movimento Evangélico Popular Eclesial, o Movimento dos
Atingidos por Barragens, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o Instituto Universo
Cidadão, a Comissão Justiça e Paz e Paula Cândido, Coletivo de Terapias Naturais e o
Movimento Fé e Política, a Pastoral Afro-Brasileira da Arquidiocese de Mariana, a Rede de
Saberes dos Povos Quilombolas (Rede Sapoqui), o Fórum Mineiro de Entidades Negras
(FOMENE), o SindiUTE Viçosa, o Movimento “Quem luta educa”, a Organização
Cooperativa de Agroecologia da Zona da Mata (OCA), a Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares da UFV (ITCP-UFV), a Cáritas Diocesana de Leopoldina, os
educadores da Licenciatura em Educação do Campo da UFV e o próprio Mobon, na pessoa de
João Resende que, por diversas vezes, esteve na escola dando cursos de formação247. Todos
esses ‘movimentos’ utilizam do espaço para a formação e articulação – por meio de cursos,
encontros, reuniões, oficinas, etc. – de pessoas interessadas em fazer as diversas “lutas”.
Em 2017, a partir das discussões feitas na escola por ocasião do Acampamento dos
Movimentos Sociais248 que reuniu diversos ‘movimentos’ da região, foi tirada como uma das
“ações concretas” do evento que os movimentos sociais da região precisavam compartilhar e
integrar suas agendas. Desde então, todo início de mês chega nos e-mails dos participantes do
Acampamento e de outras pessoas que foram sendo adicionadas à lista de contatos, uma
agenda mensal dos movimentos, uma espécie de “agenda coletiva” que busca organizar e
informar aos interessados uma extensa programação de eventos a serem realizados na escola
ou fora dela, na Zona da mata ou em outras regiões ou estados, bem como em outras dioceses.
Essa agenda, inclusive, já se materializou em uma versão impressa. Dando
continuidade àquela discussão feita em fevereiro de 2017, em uma reunião do Conselho de
Cooperação do CTA-ZM que reuniu “todas as organizações e grupos parceiros envolvidos

246
O rompimento da barragem da Samarco, Vale, BHP Billiton ocorreu em 05/11/2015. Como noticiaram os
jornais, a tragédia matou 19 pessoas.
247
Por exemplo, em julho de 2016, o missionário esteve na escola e assessorou a terceira etapa do Curso de
Teologia Popular, cujo tema foi “A dimensão social da evangelização à luz do papa Francisco”. Disponível em:
<https://arqmariana.com.br/noticia/curso-em-vicosa-trabalha-questoes-relacionadas-a-teologia-popular/>.
Acesso em: 04 fev. 2020.
248
O Acampamento ocorreu nos dias 18 e 19/02/2017.
162

com os trabalhos”249 da ONG, decidiu-se por dar forma a uma “Agenda Coletiva da Zona da
Mata”. Como se vê na figura 24, um planner que reúne as agendas de eventos de diversos
movimentos, além de contar suas origens, histórias, pautas e conquistas. A agenda foi
comercializada a um preço acessível e serviu de ferramenta para “a luta” nas mãos de quem a
adquiriu250.

Figura 24 | Agenda coletiva da Zona da Mata mineira, utilizada por participante do movimento negro e da
Pastoral Afro Brasileira. Fotos: Acervo próprio. Composição: Rodrigo Teixeira.

Dito isso, nos itens a seguir, utilizar-me-ei da descrição de dois eventos que vivenciei
em 2018 para demonstrar continuidades e transformações do sistema de aprendizagem ‘do’
Mobon realizadas por mediadores formados por essa ‘matriz’. Observando/participando dos
eventos tive oportunidade de analisar “em uso” alguns dos saberes que descrevi mais acima,
para além dos cursos do Mobon. Como se verá, nos eventos descritos cruzam-se agentes e
movimentos populares da região que se relacionam com essa ‘matriz’, mas que trazem
algumas diferenças importantes e desdobramentos que são significativos para se pensar a
dinâmica dos movimentos na região e a dinâmica da “herança” do Mobon.

249
Mensagem WhatsApp ®, Maria José, 11/02/2020. Contemporânea de PJ de Farinhada e atualmente ligada à
ENEP, à Pastoral Afro-Brasileira da Diocese de Mariana, ao Movimento Negro, ao FOMENE, à Rede Sapoqui,
ao MAB. Ela já foi também rainha de Congo na centenária festa de Nossa Senhora do Rosário, de Airões,
distrito de Paula Cândido. Maria José é a responsável por organizar e compartilhar a agenda por e-mail.
250
Como explicou Maria José “A agenda virtual de atividades surgiu depois do Acampamento e a agenda
impressa passou a ser uma proposta e se consolidou nesta atividade do CTA pelo fato de reunir várias
organizações da Zona da Mata” (Mensagem WhatsApp ®, 11/02/2020).
163

4.1.1. Curso de Férias para Educadores Populares de 2018: um “curso”


diferente

Antes de começar a falar do “Curso de Férias”251 em si, buscando apresentar


semelhanças, diferenças e novidades de tema e enfoque com o que estou chamando de sistema
de aprendizado do Mobon, vale citar a maneira como fiquei sabendo da existência do evento e
também como fui convidado para ele. Esse dado importa na medida em que ele nos informa
sobre a extensa rede social formada por lideranças “filhos(as) de Mobon/CEBs”, sindicalistas,
pessoas ligadas a diferentes pastorais e movimentos sociais e sua relação de adjacência em
que as informações, os saberes ‘do’ Mobon e outros saberes advindos de outros círculos
sociais ‘só’ podem ser (re)produzidos e transformados porque estas pessoas circulam,
encontram-se e “impigem” umas nas outras (BARNES, 2010; HIGGINS, RIBEIRO, 2018). O
dado informa também, a partir de que ponto de vista, assumo, a descrição e análise dos dados
deste curso que apresentarei a seguir.
Farinhada já tinha me falado, em outro tempo, de ‘um tal’ Curso de Férias. Um evento
do qual ele participa todos os anos no mês de janeiro desde a primeira edição. Mas foi durante
o 11º Fórum de Promoção da Igualdade Racial (11º FOPPIR) – evento promovido pelo
FOMENE e parceiros do movimento negro, quilombola e indígena – ocorrido em Cataguases,
em novembro de 2017, que eu e mais dois amigos do coletivo de estudantes-artistas
“Repentistas do Desenho”252 ‘oficialmente’ recebemos o convite para participar do evento.
No 11º FOPPIR, meus amigos e eu atuamos como relatores gráficos relatando em
painéis as principais discussões dos grupos de trabalhos (GTs)253. O convite ocorreu logo após

251
Maneira como os cursistas e organizadores divulgam e falam do curso. A maneira como me referirei ao curso
daqui em diante.
252
O Coletivo Repentistas do Desenho é um grupo do qual faço parte. O grupo é composto por estudantes de
diversos cursos da UFV que se dedicam a trabalhos de desenho e ilustração, sobretudo, de facilitação gráfica.
Seus membros, desde a fundação do coletivo, têm apoiado na elaboração de artes para romarias, encontros,
congressos, capas de livro, além de viajar para participar de vários eventos realizando facilitação gráfica. O
objetivo do grupo é apoiar “com sua arte” os diversos movimentos sociais populares. O grupo e seu nome
surgiram no Seminário Sudeste - Por um Brasil Agroecológico, realizado em junho de 2015, em Viçosa.
253
O registo gráfico das conversas foi feito em um painel de papel utilizando-se da técnica da facilitação gráfica.
A técnica “(...) consiste em participar como ouvinte em um grupo que esteja construindo ou debatendo algo
(reunião, debate, encontro, treinamento, palestra), registrar ao vivo o que o grupo produz de conteúdo, ou a que
conclusões chegam, sempre focando no essencial do que foi dito, de modo a, no fim do dia, se ter um resumo do
que foi falado e as deliberações registradas em palavras, frases, expressões e, sempre que possível, desenhos,
ilustrações e metáforas visuais. (…) [trata-se de] um processo composto por partes iguais de ouvir, pensar e
desenhar. O ouvir é o input, o pensar é o processo e o desenhar é o output. As três qualidades andam juntas e de
forma igual” (MEO, 2014, p.16-17). O relator gráfico, ou seja, quem desenha o painel, trabalha em parceria com
os colheitadores gráficos, isto é, pessoas responsáveis por escutar atentamente as conversas e selecionar as
informações que mais importam (ideias-força) para munir o facilitador com informações para a composição do
painel.
164

a mística de encerramento do evento. Na hora do almoço Eliane Pataxó, terapeuta holística


pataxó, educadora da Escola Maju de Terapias Holísticas de Caratinga e mediadora dos GT e
da Vivência Cultural “Terapia dos Sonhos – Saúde” durante FOPPIR, se aproximou de nós
repentistas e disse que estava encantada com nosso trabalho e que gostaria de contar conosco
em janeiro de 2018, para registrarmos graficamente algumas conversas durante o referido
curso. De pronto, aceitamos o convite e nos comprometemos a estar presente. Todavia, por
uma série de imprevistos, meus amigos de coletivo não puderam participar. Então, mantive
minha participação, porém, atuando como “oficineiro”254 ao auxiliar Farinhada, Eliane e Zé
Maria Pedro. na mediação da oficina de Cantigas de Roda e Ciranda e também como membro
da “banda Junto e Vamos” que acompanhou Farinhada em sua apresentação de lançamento do
disco “Vozes da Mata” (2017)255 e em outros momentos em que o cantador animou o público
do curso e da própria oficina que coordenou.
Deste modo, parti para o evento saindo de Manhumirim, no dia 10 de janeiro de 2018.
Almocei na casa de Eliane e Farinhada, ajudei a organizar os materiais que seriam levados e
logo depois disso, às 14h50, com o carro lotado de instrumentos musicais, de CDs “Vozes da
Mata”, de peneiras e caxixis feitos de bambu para serem comercializados, de bandeiras dos
movimentos e pastorais, estandartes e uma colcha feita com camisas ‘velhas’ de movimentos,
seguimos para Caratinga. Fomos de carro em quatro pessoas. Eliane, dirigindo. Farinhada, Zé
Maria e eu “viajando sem dormir e dormindo viajando”256. Todos conversando sobre a vida,
se atualizando sobre os feitos de cada um, bem como falando sobre o planejamento da oficina.
Durante o curso, observei quando era possível... e participei desenhando, cantando,
tocando, fazendo cartazes, ajudando a planejar místicas, fazendo cortejos. É dessa
perspectiva, somado à minha participação como espectador nos momentos das palestras e
noites culturais que, na maior parte do tempo, vivenciei o Curso de Férias.

***

254
No credenciamento do evento são cinco modalidades de inscrição possíveis. Além de “cursista”, os
participantes poderiam ser enquadrados como “oficineiro”, “palestrante”, “equipe de trabalho” e “visitante”.
Importante contrastar com os cursos do Mobon. Com um público muito menor que o do Curso de Férias, nos
cursos do Mobon não se ‘rotulam’ os participantes. O que quero dizer é que, apesar das pessoas terem posições
diferentes no Mobon, como trabalhei no credenciamento, vi que as atividades durante o curso se desenrolam sem
esta classificação.
255
Na ocasião, toquei triângulo. Participei também das apresentações de lançamento do referido disco durante a
confraternização da diretoria do CTA-ZM e comemoração de 30 anos da ONG em sua própria sede, em Viçosa,
no dia 08/12/2017, e; na cultural do V Congresso FETRAF-MG/CUT, em Belo Horizonte, no dia 15/03/2018.
256
Faço alusão ao trecho escrito por Rabelo (2019), “(...) o movimento – característico – dos missionários
sacramentinos – segue o curso dos corpos morais em viagens para cursos, encontros e congressos, valorizando a
troca de saberes. É nessa andança que o sofrimento se faz presente novamente nos corpos que andam, que viajam
sem dormir e dormem viajando (...) ‘nessas estradas da vida’” (p.18).
165

O Curso de Férias para Educadores Populares é um evento promovido por alguns


sacerdotes da Diocese de Caratinga, com apoio de seu bispo257. Como disse padre João,
coordenador do evento, o curso foi inspirado em um curso que acontece em São Paulo/SP. A
saber, o “Curso de Verão”, um curso

“Popular, ecumênico e realizado em mutirão [que] é organizado para um grande


número de pessoas e, ao mesmo tempo, garante trabalho em pequenos grupos. (...).
[E que] combina reflexão e criatividade, arte e celebração, além da convivência
fraterna e o compromisso transformador no retorno à prática nas pastorais e
movimentos sociais. (...). Dedica especial atenção às juventudes, que iniciam a sua
militância pastoral e social” 258.

O Curso de Férias em tela ‘tudo’ tem a ver com este referido curso. Com contribuição
dos mais diversos órgãos institucionais ou da sociedade civil259, o evento é realizado há cinco
anos260, sempre no mês de janeiro, e possui uma programação bastante diversificada, que
conta com místicas, tendas da cura, lançamentos de livros, DVDs e CDs261, feira de economia
solidária, banca de livros, cortejos, palestras, mesas-debate, oficinas e noites culturais.
O evento, tal como a sua inspiração paulista, é “organizado para um grande número de
participantes”262, ao mesmo tempo, que oferece a oportunidade a cada cursista de receber uma
formação mais “atenciosa”, ‘de perto’, ao lhe possibilitar ser “acolhido em grupos menores,
dentro da metodologia da educação popular, através de oficinas que combinam reflexão e
criatividade, arte e celebração, vivência e compromisso” 263.
Na edição de 2018264, observando as listas de inscrições para as oficinas que foram
disponibilizadas para conferência pelos cursistas, foi possível contabilizar 441 pessoas

257
Atualmente, Dom Emanuel Messias de Oliveira, que iniciou seu governo em 2011.
258
Vale a pena conferir o site do curso, com atenção especial para as fotografias, disponível em:
<https://www.cursodeverao.com/>. Acesso em: 08 fev. 2020.
259
Segundo informações do site, o evento é realizado pela Pastoral Social da Diocese de Caratinga; pelo
‘governo’ de Dom Emanuel Messias de Oliveira; pelo governo do estado de Minas Gerais, especificamente, com
apoio das secretarias de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social e de Cultura; pela Cáritas Brasileira e
pela organização católica alemã Adveniat. E recebe apoio da Fundação Perseu Abramo, da Universidade Federal
de Ouro Preto, do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), da editora Paulinas, da empresa de life coaching Ajajá, do
Grupo São Benedito Afro-Brasileiro, da Escola Maju de Terapias Holísticas; da Superintendência Regional de
Ensino de Caratinga; das prefeituras municipais das cidades que sediam o evento entre outros parceiros.
260
O evento tem origem em 2016, sendo a primeira edição aconteceu em Caratinga, de 21 a 24/01/2016. As
demais edições ocorreram em (12 e 15/01/2017); Caratinga (10 a 14/01/2018); Divino (23 a 27/01/2019) e a
Ipaba (22 a 26/01/2020).
261
Como dito, no curso de 2018, por exemplo, foi lançado o CD “Vozes na Mata” (2017) do cantador popular
Farinhada. Dom Paulo Mendes Peixoto, também aproveitou a oportunidade para falar de seu livro “Valores para
a Vida – Reflexões” (2016).
262
Disponível em: <http://cursodeferiaseducadorespopulares.ajaja.com.br/>. Acesso em: 05 maio 2018.
263
Idem.
264
Para acesso completo à programação e conhecimento dos palestrantes/facilitadores do curso de 2018, confira
as informações disponíveis em: <https://cursodeferiaseducadorespopulares.ajaja.com.br/outras-edicoes/2018-
caratinga>. Acesso em: 08 fev. 2020.
166

inscritas. Lembrando que o número de pessoas envolvidas no evento é um pouco maior, uma
vez que essas listas não incluíam os nomes das pessoas credenciadas com base nas outras
categorias de participantes mencionadas na nota de rodapé 256, acima265.
As oficinas são como os “trabalhos em grupo” ou em “grupinhos” que se viu durante o
curso do Mobon, que, em certa medida, possuem similaridade com um dos dez momentos de
reuniões descritas por Comerford (1999). Quero dizer, as oficinas são momentos em que o
grande público ‘espectador’ das palestras (realizadas geralmente em locais bem espaçosos que
comporte todas as pessoas sentadas ao mesmo tempo) é subdividido de forma coordenada em
grupos menores formados de acordo com “algum critério considerado pertinente”
(COMERFORD, 1999, p.56), que se dirigem para outros locais (salas de aula, por exemplo)
para ‘aprenderem alguma coisa’. No caso do Curso de Férias, os participantes são divididos
de acordo com o interesse pelos temas das oficinas, informados pelos próprios participantes
no ato da inscrição, ao preencherem o formulário online no site do evento.
Conforme previsto na programação, as oficinas aconteceram em etapas e ocorreram
durante três dias. Elas aconteceram no período da tarde, geralmente de 13h30 às 17h. O Curso
de Férias de 2018 contou com 17 oficinas, a saber: 1. Agricultura familiar e biodigestores; 2.
Percussão afro; 3. Terapias indígenas; 4. Ritmos, canto e expressão corporal; 5. Dança criativa
e afro-consciência; 6. Montador de projetos; 7. Permacultura, água e energia – agricultura
familiar e biossistema; 8. Agroecologia e resiliência – água, solo, ar e segurança alimentar; 9.
Educação ambiental e escolas sustentáveis em rede; 10. A bíblia na mão do povo; 11.
Contador de história e bonecos mamulengos; 12. Dança circular do bem viver; 13. Circo/
teatro; 14. Associativismo, cooperativismo, programas da agricultura familiar; 15. Músicas e
confecção de instrumentos; 16. Cantigas de roda e ciranda; 17. Confecção de turbantes.
Destas, como disse, observei/participei da oficina de número 16.
Nesta oficina coordenada por Farinhada e Eliane, e apoiada por Zé Maria e eu,
chamou atenção a maneira como os participantes apenderam sobre “cantigas de roda e
ciranda”. Antes de tudo, os coordenadores “deixaram falar” os participantes. Ao perguntarem
aos presentes o que significava para eles, em apenas uma palavra, as cantigas de roda, se
ouviu do grupo – formado por nove homens e sete mulheres (incluindo nós, “equipe
coordenadora”), entre crianças, adultos e anciãos/anciãs advindos de várias cidades da

265
Tentei obter informações mais precisas sobre o curso e sobre o público que o frequenta por meio de uma
conversa com um dos organizadores do evento, mas após algumas tentativas de fazermos uma reunião por Skype
e o envio de um e-mail perguntando essa informação e mais algumas coisas, não obtive retorno.
167

Diocese de Caratinga266 – as palavras “música de criança”, “infância”, “dança”,


“brincadeiras”, “versos”, “contar histórias”, “cultura”, “namoro”, “calango”, “roda”,
“transmitir”, “união”, “inclusão”, “diversidade, “envolver”, “saber dos mais velhos”, “cultura
popular como bandeira”, “cultura regional”, “reverência”, “respeito”, “resistência”, “doula”,
“recordação”, “ancestralidade” e “memória”. Todas as palavras devidamente registradas no
quadro à frente dos cursistas sentados em semicírculo para a discussão.
Depois, os coordenadores pediram que cada participante explicasse porque disse a
palavra que disse. Enquanto escutavam o que diziam os cursistas, Eliane e Farinhada – que
possuem “uma capacidade de ‘manejo da diversidade’” (CONTE, 2018, p.17)267 –
‘teorizavam’ sobre as cantigas de roda e ciranda, contando um pouco a origem dessas músicas
e brincadeiras incluindo em suas narrativas as percepções do público da oficina. Em seguida,
foram priorizadas algumas palavras-geradoras, i.e., aquelas palavras que melhor
representavam o assunto debatido pelo grupo. Essas palavras foram convertidas em desenhos
que compuseram a superfície do estandarte. Por último, os participantes construíram o
estandarte da oficina.
Além do estandarte, ao longo das três tardes que se sucederam (de 11 a 13 de janeiro)
os cursistas que se interessaram pela oficina aprenderam/relembraram, na prática, cantigas de
roda, construíram uma roupa e uma máscara para um palhaço de folia, auxiliaram na
maquiagem de um palhaço de circo, ouviram histórias e causos sobre a vida na roça ou nas
comunidades (incluindo histórias de assombrações), montaram um boi-bumbá , ajudaram a
construir mais um estandarte para a oficina “Dança circular do bem viver”, dançaram ciranda
e, por fim, organizaram em parceria com os participantes da oficina “do bem viver” uma
apresentação para o público maior do curso. Deste modo, “aprenderem fazendo” o que
significa a noção de cultura popular como bandeira.
Excetuando o boi-bumbá, que os coordenadores já sabiam que ia ser feito, e, portanto,
levaram os materiais adequados, é importante mencionar que se decidiu por fazer os demais
‘artefatos’ mencionados acima durante as discussões entre os presentes. Assim, para construí-
los usou-se com criatividade os materiais disponibilizados pela organização do Curso de
Férias, e também materiais recicláveis que foram encontrados no local do evento. Deste

266
Manhumirim, Manhuaçu, Caratinga, Chalé, Simonésia, Espera Feliz.
267
Segundo Conte (2018), essa capacidade do educador e cantador popular advém de seu contato com a Pastoral
da Juventude, CEBs, sindicatos de trabalhadores rurais que o chamaram a “assumir cargos de presidente, e
funções burocráticas nessas entidades” (p.17). Mas, o pesquisador afirma que essa capacidade ‘vem mesmo’ é da
escolha feita por Farinhada de “ficar como cantador, animador das culturais e com as feituras das místicas”
(idem). Como o pesquisador que ‘pesquisandou’ com a liderança concebe “(...) é deste lugar, da arte, um lugar
que marginaliza, que ele faz a educação popular, feita pelos caminhos” (ibdem).
168

modo, diferentemente de um estandarte convencional, confeccionado em tecido, os dois


estandartes construídos durante a oficina de ciranda e durante o intercâmbio com a oficina de
“Dança circular do bem viver” foram feitos com cartolina; a roupa do palhaço de folia foi
confeccionada com “tecido não tecido” (TNT), assim como a máscara feita de papelão de uma
caixa que se encontrou na escola, pintada com tinta guache. Tudo isso demonstra a
capacidade de improviso, criatividade e de inventar a cultura (WAGNER. 2010) que o público
da oficina possui. A figura 25 mostra o espírito da cena que diz sobre o que e como foram
feitas as coisas na oficina.
Figura 25 | Oficina de Cantiga de Roda e Ciranda. Curso de Férias 2018, Caratinga, 11 a 13/01/2018. Fotos: Acervo próprio. Composição: Rodrigo Teixeira.
170

Uma das diferenças das oficinas para os “grupinhos” que se formam nos cursos do
Mobon é que, na maioria das oficinas, as reflexões não são realizadas baseadas na leitura de
material de trabalho e/ou a partir de “chaves de leitura”. Mas, as “questões
problematizadoras” emergem do fazer uma atividade prática que é ensinada pelo(s)
coordenador(es) da oficina. Atividades como organizar um cortejo do boi-bumbá ; identificar
editais de programas de fomento a agricultura familiar e saber como escrever um projeto para
captar recursos; construir um biodigestor; dançar ciranda ou dança circular do bem viver ou
dança afro; amarrar um turbante na própria cabeça ou na cabeça de alguém; fazer e tocar
instrumentos de material reciclável; tocar percussão afro; dar vida a bonecos mamulengos e
contar histórias; identificar o mal e/ou doença e saber que erva do mato, palavras ou gestos
usar para curar; andar de perna de pau, fazer malabares e interpretar um palhaço entre outros
saberes.
Todos os saberes práticos aprendidos durante as oficinas, principalmente, por meio das
‘operações’ “do corpo” (SOUZA SANTOS, 2019, p.56-58)268, como sentir os cheiros, os
sabores, se afetar pelas diversas musicalidades, pelos movimentos como sair em cortejos
animando os presentes, tocar algum instrumento, dançar, representar personagens, manipular
– prática e simbolicamente – as coisas, somados aos saberes ‘do’ Mobon (como reunir, ouvir,
falar, ler, registrar, desenhar, celebrar, fazer mística, se emocionar e cantar a religião
libertadora), enfim, o “aprender a aprender”, ‘trazidos’ por muitos dos presentes é o que torna
o evento ímpar e possibilita a (re)construção e (re)produção de identidades dos personagens
políticos “na luta” que acompanhei.
Do ponto de vista da participação do público, há algumas diferenças também. Por
exemplo, durante as palestras raramente há interação entre mediador e público como nos
cursos do Mobon. Nesse momento, pede-se que o palestrante não seja interrompido e que se
deixem as perguntas para o momento posterior, o “de conversa com o palestrante”. Mas,
grosso modo, excetuando esse controle maior dos momentos em que cada pessoa (mediador e
público) falam, a estrutura de participação e oportunidade de se “falar a própria palavra”

268
É certo que o pesquisador fala de “corporalidade surda”, todavia, para falar dela, aciona uma série de
conceitos que nos interessam aqui, sobretudo a noção de que “(...). É através do corpo, compreendido a partir
dos processos de composição e modelagem, que se dão as relações interpessoais fabricadas em eventos e
situações (encontros sociais). [Assim] (...). As corporalidades abarcam um conjunto de fatores que englobam
práticas, hábitos, crenças e técnicas corporais. As corporalidades, portanto, são produzidas pelos agentes, pelas
instituições, pelos encontros sociais, com base nos tipos de interações e posição social que os indivíduos ocupam
no momento do encontro. Desse ponto, a realidade discursiva encarnada nos corpos expressa seu pertencimento
político no mundo social, sua preparação e adaptação junto às instituições sociais, e ainda, as motivações e
interesses advindos dos próprios agentes – síntese entre aspectos subjetivos (individual) e objetivos (coletivo)”
(SOUZA SANTOS, 2019, p.56-57).
171

lembra a estrutura de “sala de aula” vista na Casa do Mobon. Para o diálogo entre os cursistas
(público) e a coordenação e a equipe de frente, utilizam-se os momentos de “bate papo com o
palestrante” e de “compartilhamento das vivências do Curso de Férias na Forania”, momentos
em que a palavra é franqueada de maneira limitada (como são muitas pessoas que participam
do curso, não dá para todas falarem) e com o tempo controlado entre os presentes269.
Além desses dois momentos que acontecem durante o dia, as “noites culturais” são
onde são apresentados – para animar (e fazer pensar) o público do curso – os resultados das
oficinas, como apresentações de dança, música/percussão, teatros, cortejos ‘de folia’,
apresentações com o boi-bumbá, apresentações de circo, encaminhamentos, etc. Nas noites
culturais do curso se misturam as lógicas dos momentos de lazer coordenado e de intervalo
descritas por Comerford (1999, p.56-57). Nesse momento e durante as místicas e celebrações
(de abertura e encerramento do curso), como trataremos adiante, foi onde mais se observou
inovações narrativas e, principalmente, de performance em relação ao modo de fazer
sintetizado pelo sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon.
O Curso de 2018 utilizou-se dos espaços das escolas estadual Prof. Joaquim Nunes
(onde aconteciam as palestras, místicas, noites culturais e onde estava situada a feira de
economia solidária) e municipal Barquinho Amarelo, unidade I (onde aconteceram as oficinas
e onde eram preparados e servidos o almoço e o jantar). A figura 26, representando o espaço
da quadra poliesportiva da escola estadual dá uma dimensão ao leitor da situação média de
interação entre palestrantes e o público durante o curso. Como se vê, os palestrantes ficam à
frente do público, alguns em cima do palco, outros no chão, andando de um lado ao outro ou
mesmo indo em direção aos cursistas, andando pelo corredor.

269
Conforme diz a orientação n.4 da folha de “Orientações importantes” que é distribuída aos presentes no
credenciamento, “Ao fazer a pergunta para o palestrante ou para a mesa de debate, pedimos que a pergunta seja
breve e objetiva não ultrapassando mais que 01 minuto”. Ou seja, diferente do Mobon, não se pode ‘deixar falar
à vontade’. Como já dito, os cursos do Mobon têm um público bem menor que o do Curso de Férias e a ideia,
muitas vezes, é de não ‘investir’ tanto no controle das falas. Há inclusive relatos de cursos que ficaram até muito
tarde porque as pessoas queriam falar e isso é muito valorizado pelos irmãos sacramentinos e pelos medidores
formados por eles.
172

Figura 26 | Croqui sem tratamento e fotos que retratam a situação média de interação entre público, coordenação
e equipe de frente (palestrantes). Fotos: Acervo próprio. Composição: Rodrigo Teixeira.

Deste modo, a ‘estrutura de diálogo’ entre as partes (público, palestrantes e


coordenadores do curso) pode ser representada por um vaivém entre os momentos ‘mais
estáticos’, em que se escuta e se registra o que os palestrantes estão falando – episódios que
lembram muito uma sala de aula (como nos cursos do Mobon) –, momentos mais ‘animados’
e ‘quentes’ em que os cursistas possuem a oportunidade de explicitarem “seus pontos de vista,
num diálogo geralmente de caráter polêmico, por vezes abertamente conflitivo”
173

(COMERFORD, 1999, p.55) e mostrarem “o pouquinho” 270


que eles sabem/aprenderam a
fazer durante o curso. Seja apresentando os resultados das oficinas durante as noites culturais,
fazendo místicas de abertura de cada manhã (cada dia a cargo de um grupo distinto) ou,
falando bonito nos momentos de discussão (idem) como no bate papo com o palestrante, no
compartilhamento das vivências do curso ou apresentando suas questões para os facilitadores
das mesas temáticas de debate. Momentos de diálogo que “se dá diante do público que...
acompanha atentamente e produz um certo nível de ‘ruído’ (comentários baixos, observações
pontuais, ‘zum-zum-zum’)” (ibdem).
Esse fluxo comunicacional se assemelha muito ao modo de fazer aprendido no
Mobon/CEBs. Um modo de trabalhar, refletir e aprender/ensinar que pressupõe um fluxo
conversacional entre os pequenos grupos e o grande grupo, em outras palavras, entre
“grupinhos” e “plenário”. Isto é, tal como se aprendeu nos cursos do movimento da Boa
Nova, para que a discussão e a reflexão em grupo serem boas, dando oportunidade para todos
falarem, devem ser feitas em grupos com poucas pessoas, seja durante os cursos, ou seja “nas
bases, considerando os grupos de reflexão271. Para só depois, após discussão mais qualificada,
olhando no olho uns dos outros, os responsáveis por darem o repasse para o público, possam
ir para ao “plenário” e apresentar as ideias do grupo.
O esquema abaixo (figura 27) desenvolvido por mim ilustra esse fluxo
comunicacional. Os diferentes círculos representam os “grupinhos” que se reúnem para fazer
as oficinas272. O retângulo, o espaço do “plenário”, onde acontecem as apresentações “em
público” do que se fez nas oficinas. Enfim, onde “o povo” fala e performa em momentos mais
controlados, além de ser o espaço privilegiado de atuação da coordenação e da equipe de
frente do curso.

270
Faço alusão à reflexão de Farinhada, entrevista 06/11/2018.
271
Por exemplo, é ‘regra’ que os grupos de reflexão sejam formados por no máximo 12 pessoas, para não
‘inchar’ e dificultar o debate a reflexão. Como demonstrado no capítulo 3, nos cursos do Mobon, geralmente, há
momentos de discussão e reflexão “em público”, que é quando se vai para o espaço onde todos ficam reunidos
de uma só vez, e há trabalhos em grupos, em que as pessoas se dividem e ocupam espaço distintos para poderem
conversar entre si e chegar a uma resposta a ser apresentada “em público”.
272
A escolha por esse formato se deu em razão da observação que fiz que, geralmente, quando as pessoas se
dividem para trabalhos em grupo, quando o ambiente onde se realizam as conversas possibilita, a tendência é as
pessoas se reunirem em círculo. Isso foi observado em quase todos os momentos e divisão em grupos, dos
diversos eventos que participei.
174

Figura 27 | ‘Estrutura de diálogo’ entre público, palestrantes e coordenadores do curso durante o Curso de Férias
de 2018. Fonte: Elaborado pelo pesquisador.

A figura 28 retrata o momento em que apresentamos os ‘resultados’ da oficina de


cantigas de roda e ciranda, em parceria com os participantes da oficina de dança circular do
bem viver. Momento em que apresentamos “o pouquinho” que aprendemos para o público
maior do Curso de Férias.
Figura 28 | Apresentação das oficinas de cantigas de roda e ciranda e de dança circular do bem viver. Curso de Férias de 2018, Caratinga. Fotos: extraídas da página do
Facebook ® do evento. Composição: Rodrigo Teixeira.
176

O curso – como nas modalidades de formação do Mobon – se baseia no método ver,


julgar e agir. Todavia com o acréscimo dos pressupostos “agir, rever e celebrar”. Apesar do
curso se orientar pelo tema e lema da Campanha da Fraternidade (CF) anual e possibilitar o
preparo dos cursistas interessados para viverem o tempo da Quaresma (como no Curso CF
2018 que vivi em Dom Cavati), diferentemente dos cursos do Mobon, o objetivo explícito
perseguido não é formar “lideranças” ou “equipes de coordenação e animação” para
replicarem os encontros da CF. Para isso, como disse ao público Dom Paulo Mendes
Peixoto273 em sua palestra “A Campanha da Fraternidade e Superação da Violência” –
inclusive chamando João Resende, que se encontrava no local274, à frente –, os interessados
devem procurar os materiais preparatórios para a CF 2018 organizados por João e os cursos
oferecidos pelo Mobon.
Durante o curso, se não me falha a memória, a palavra “liderança” era acionada de
uma maneira distinta que em um contexto ‘mais’ “de CEBs/Mobon”. Quando ouvia a palavra,
ela não se referia só à liderança de comunidade de base (se referindo a uma prática militante
católico-política), mas ampliava seu sentido para comportar uma militância “nas pastorais e
movimentos sociais”, muitas vezes, expressa por uma práxis afroameríndia-política
(TEIXEIRA, R. S.; RABELO, 2018, p.629) interseccionada por outras militâncias (como as
militâncias feministas, LGBTQIA+, pela soberania na mineração, agroecológica, pela cultura
pop negra, pela moradia popular, pela cultura popular, etc.) fundamentadas na práxis que “as
juventudes que iniciam a sua militância pastoral e social” trazem consigo e colocam à
disposição das outras gerações. Essas ‘outras militâncias’ ora dialogavam com a prática
católico-política, ora lhe apresentavam críticas.
Como descrito no site do evento:

“O Curso de Férias para Educadores Populares tem por base a inspiração divina e o
método ver, julgar, agir, rever e celebrar. (...). O Curso de Férias é um projeto de
formação popular no campo sócio-político cultural, a partir da realidade e seus

273
Arcebispo metropolitano de Uberaba e especialista em Direito Canônico.
274
Mais cedo, na hora do café, encontrei-me com João Resende. Como desde junho de 2016 – data em que
realizei um registro gráfico de uma fala dele como assessor de motivação à luta sindical, durante o 1º Congresso
Eleitoral do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na Agricultura Familiar de Espera Feliz (cf.
TEIXEIRA, R. S. 2017, p.29-40) – não havia o encontrado mais pessoalmente, e muito menos conversado com
ele, Eliane me apresentou a ele. Ele disse já ter ouvido falar em mim, uma vez que Fabrício, meu co-orientador,
já havia comentado com ele sobre a pesquisa que eu estava realizando. Foi nesse momento que pela primeira vez
conversei com o missionário e me prontifiquei a ajudar com o que fosse necessário durante o Curso CF 2018 que
participaria dali um mês. Por fim, João Resende e Denílson Mariano já palestraram Curso de Férias. Isto é,
apresentaram a palestra “Ecumenismo e Diversidade” na segunda edição do curso, em Iapu (2016). Esses fatos
demonstram uma ligação dos organizadores do curso com os missionários responsáveis pelo trabalho do Mobon
e vice-versa.
177

desafios, à luz da Bíblia, Teologia, Pastoral e do empenho na transformação da


sociedade. É um espaço ecumênico e inter-religioso de convivência, partilha de vida,
intercâmbio de experiências, celebração e compromisso para juntos superarmos toda
forma de violência. É um curso realizado em mutirão. Pessoas, famílias,
comunidades, movimentos populares e instituições educativas e religiosas colocam-
se gratuitamente a serviço de sua preparação ao longo do ano e de sua realização.
(...). Esta proposta é resultado da demanda apresentada pela comunidade de
Caratinga-MG, através da Diocese de Caratinga e da comunidade em geral,
representada pelas seguintes instituições: Associação Terapeutas das Comunidades
Tradicionais e do Cineclube Maria Cena. Ainda dos Movimentos Sociais Negros,
escola Maju de Terapias Holísticas, Associações de Jovens, Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais, FETAEMG”275.

Como se nota, o curso ‘nasce’ de “uma demanda apresentada pela comunidade de


Caratinga”, sobretudo, como uma demanda de setores organizados da sociedade, que
articulam pautas para além da pauta da ausência de direitos para os trabalhadores rurais e pela
reforma agrária aprendida “na época [em que se] falava patrão e empregado”276 – discussão
‘típica’ da 1ª geração e rediscutida pela juventude da 2ª geração que fez os movimentos
“igrejeiros” surgidos com base no trabalho do Mobon. O evento é “ecumênico e inter-
religioso” e busca formar o seu público a partir da “convivência, partilha de vida, intercâmbio
de experiências, celebração e compromisso”. Assim, o curso é ‘mais’ que um curso da
Diocese de Caratinga, isto é, da Igreja Católica. Ele é um curso que forma “educadores
populares” e que lhes garante ao final um certificado que pode ser colocado em circulação no
mercado dos diplomas e dos cursos profissionalizantes (GUEDES, 2011).
O curso possui um público bem diversificado. Em sua edição de 2018, constatei a
participação de lideranças de CEBs; políticos (vereadores, deputados, vice-prefeitos,
secretários de estado, etc.); professores da rede pública e particular de ensino; agentes
pastorais negros; artesãos e agricultores familiares, alguns organizados em associações e/ou
cooperativas e/ou filiados ao movimento de economia solidária277 (que participaram do curso
e aproveitaram para comercializar seus produtos); artistas de rua e praticantes de arte circense;
mulheres organizadas em associações; jovens ligados a diversos ‘movimentos’ e grupos

275
Ibdem.
276
Farinhada, entrevista, 06/11/2018. Como explicou o educador popular, “(...) João [Resende] tevê essa
sapiência, de ter o movimento da teologia da libertação fazendo uma discussão da libertação do povo. (...) de
popularizar a bíblia, de pegar os textos de desmistificar aquilo, usando muito da metodologia freiriana, para o
povo entender o que é opressor e o que é oprimido. Eu aprendi na época falava patrão e empregado”.
277
As barracas que utilizadas para a comercialização dos produtos eram barracas cedidas pela Secretaria de
Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social (Sedese) no ano de 2015/2016 ao Fórum Regional
de Economia Solidária de Governador Valadares. Na oportunidade pude reencontrar com algumas pessoas com
quem trabalhei na época em que, como bolsista do Programa de Extensão Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares da UFV (ITCP-UFV), secretariei o Fórum Mineiro de Economia Solidária.
178

culturais278; indígenas (krenaks, puris e pataxós); mães, pais e filhos de santo; irmãs/freiras,
frades e padres; estudantes e professores universitários; terapeutas, massagistas, aplicadores
de reiki e homeopatas; representantes de entidades dos trabalhadores rurais (FETAEMG,
FETRAF, STRs, Polo Sindical da Zona da Mata); militantes do MST e MAB; cristãos ligados
a denominações protestantes; mestres e integrantes de folias e congadas; ministros da palavra
e da eucaristia; participantes de diversas organizações, pastorais, grupos e movimentos da
Igreja Católica279. Enfim, mulheres e homens, brancos e negros, crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos, advindos dos mais diversos lugares280.
Como já dito, as discussões durante os dias do curso se baseiam no tema e no lema da
Campanha da Fraternidade (CF) do ano em que é realizado. Portanto, o tema do curso foi
“Fraternidade e superação da violência” e o lema “Em cristo somos todos irmãos”, o mesmo
trabalhado na Casa do Mobon, em fevereiro. Assim como nos cursos do Mobon, o curso
possui regras, e por mais que os organizadores e mediadores construam-no fundamentado em
uma perspectiva ‘mais festiva’ do que a se constatou na Casa do Mobon, por serem pessoas
‘igrejeiras’ e pelo evento se tratar de uma atividade organizada pela Igreja Católica, percebe-
se um ‘clima de retiro’.
Apesar de o local de realização do curso não ser um lugar isolado e ‘fechado’ como a
Casa do Mobon281, pressupõe-se que as pessoas estão ali para aprenderem e trabalharem, isto
é, para se dedicarem ao curso “de corpo e alma”. Teoricamente, prestar atenção nas palestras,
nas mesas temáticas de debate e participar das oficinas deveriam ser as únicas preocupações
dos cursistas. Concebido como uma atividade de aprendizado e de trabalho, os participantes
devem acordar cedo e dormir cedo. Devem evitar a ingestão de bebida alcoólica. E, como
regra básica, deve-se prezar pelo “convívio fraterno” e zelar pelo local onde ocorrem as
atividades do curso. As falas dos animadores do curso entre uma palestra e outra, entre uma
278
Por exemplo, Grupo Pérola Negra, de Dom Cavati, Grupo de Consciência Negra “Tá no Sangue”, de Inhapim
e Grupo de Canto e Dança Afro Justino de São Vicente de Cataguases.
279
Observando as bandeiras que entraram na Celebração de Abertura, no dia 10/01/2018 e que permaneceram
ornamentando o espaço do plenário, e conversando com as pessoas, posso listar a presença de participantes
ligados às pastorais Afro-Brasileira, da Juventude, da Juventude Rural, da Criança, Carcerária, do Dizimo, da
Pessoa Idosa, da Saúde; às organizações como Cáritas, CPT, CIMI; às grupos e movimento católicos como
Sociedade São Vicente de Paulo, Alcoólicos Anônimos, etc.
280
Estiveram representados durante o curso os seguintes municípios: Aimorés, Alto Caparaó, Araponga, Bom
Jesus do Galho, Caputira, Caratinga, Cataguases, Colatina (ES), Conceição do Ipanema, Conselheiro Lafaiete,
Contagem, Coronel Fabriciano, Divino, Dom Cavati, Entre Folhas, Espera Feliz, Faria Lemos, Fervedouro,
Governador Valadares, Iapu, Ibiruçu; Imbé, Inhapim, Ipaba, Ipanema, Ipatinga, Lajinha, Manhumirim, Martins
Soares, Muriaé, Mutum, Nova Era, Piedade de Caratinga, Novo Oriente de Minas, Poços de Caldas, Pocrane,
Raul Soares, Rio de Janeiro (RJ), Rio Doce, Santana do Manhuaçu, São Domingos das Dores, São Francisco do
Glória, São José do Mantimento, São Sebastião do Anta, Simonésia, Tarumirim, Timóteo, Tombos, Ubaporanga,
Vermelho Novo, Vermelho Velho, Vitória da Conquista (BA).
281
As escolas onde acontecem o curso são integradas à paisagem e não são afastadas do centro como é o caso da
Casa do Mobon, em Dom Cavati.
179

mística e outra, entre uma apresentação e outra dos resultados das oficinas reforçam esse
sentimento o tempo todo. Os pontos 3, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da folha de “Orientações Importantes”
entregue aos participantes no credenciamento ‘sacramentam’ estes pressupostos.

“(...)
3) Pedimos que, no momento da palestra, o palestrante não seja interrompido.
Deixar as perguntas para o momento de conversa com o palestrante
(...)
5) O café da manhã será servido de 7:00 ás 8:30. Assim que iniciar a palestra o café
será recolhido. Pedimos a todos que não se atrasem na chegada de cada dia.
6) Ao se recolher, pedimos que não cheguem muito tarde na casa da família que está
hospedando, respeitando o horário máximo de 22:30, uma vez que a noite cultural se
encerra sempre às 22:30.
7) Pedimos que todos os cursistas participem das oficinas, não será permitido ficar
perambulando no horário das oficinas.
8) Pedimos que ajudem a cuidar e zelar pela Escola e os ambientes que fazem parte
do curso mantendo-os organizados.
9) É proibido vendas de bebidas alcoólicas, como também usá-las nos ambientes do
curso e nas oficinas em todo e qualquer momento.
10) O cursista somente deixará a oficina após concluídos os trabalhos ou com a
autorização do oficineiro ou da coordenação
(...)”.

Todavia, mesmo aqueles militantes históricos das CEBs, ao chegarem ao evento,


adequam seu discurso. Parte de uma abordagem ‘mais aberta’, com a inclusão da pauta não só
da “desigualdade” entre “pequenos” e “grandes”, mas que pontua as especificidades das
diversas “lutas”, como a do povo negro, dos povos tradicionais, dos povos de terreiro, dos
povos originários e daqueles que buscam reconhecimento de sua cultura e recursos para fazê-
la resistir. Como exemplo, podemos citar as palestras ‘mais políticas’ do secretário de estado
adjunto de cultura de Minas Gerais, João Batista Miguel e do deputado federal Patrus Ananias
(PT-MG), ex-ministro do Desenvolvimento Agrário. Ambos, como foi anunciado pelos
animadores, são “filhos de CEBs”, e filiados a uma esquerda católica que se fundamenta na
Teologia da Libertação. O primeiro, logo após sua fala – cheia de acertos e desacertos
atentamente rebatidos pelo público quando do “bate papo com o palestrante” –, ao ser
provocado sobre o que o estado tem feito para promover a cultura popular, ‘saiu’ de seu papel
de representante político e buscou em sua história “de luta”, conhecida por alguns presentes,
argumentos para mostrar que ele está atento a essa demanda. Ao fim, fez uma exposição das
formas pelas quais os presentes podem acessar editais e recursos.
O segundo, em sua análise de conjuntura sobre “as raízes da crise política atual”, como
‘era de se esperar’, fez um balanço das políticas públicas do período em que esteve à frente do
extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário estendendo sua análise para os anos em que
PT governou o país (2002-2016), apontando as benesses do período e fazendo uma crítica ao
180

momento que estávamos vivendo. Feito isso, não deixa de incluir em sua narrativa os termos
que compõem o ‘vocabulário’ de algumas das militâncias mencionadas acima. Assim, em sua
palestra ele afirma

“(...) que existem identidade e desafios compartilhados entre o Brasil e os países


irmãos latino-americanos. Partilhamos em nossas histórias uma enorme dívida social
que tem raízes profundas na violência contra os índios, na escravidão dos negros, na
fortíssima concentração da terra e das riquezas, na ausência de políticas públicas de
inclusão e desenvolvimento social, na subordinação dos interesses do grande capital
e de nações econômicas e militarmente mais poderosas”282

E não é só no nível do discurso que as inovações e continuidades se expressam. O


enfoque é bem mais diversificado, com a inclusão, por exemplo, de outras corporalidades,
musicalidades, gestos, símbolos, cheiros, sabores, etc. nos ‘ritos’ do curso. Ao mesmo tempo
em que o jeito de se fazer visto no evento se afasta do sistema ‘do’ Mobon, ele também lhe
faz menção. Um exemplo disso foi a mística da manhã do domingo (14/01/2018), organizada
por Eliane e Farinhada, para a qual contribui fazendo alguns cartazes. Como me escreveu
Eliane, a apresentação esteve ancorada nos seguintes pontos e momentos:

“Animação: trem das CEBs; Canto: Quando Espírito de Deus soprou... [Passo a
passo da apresentação:] Entrou um casal com uma faixa do Espírito Santo. Acolhida
da Palavra de Deus. Na frente entraram duas pessoas, uma trazendo um roteiro de
Grupo de reflexão e a outra uma faixa escrito “testemunho profético”. Depois, veio a
Bíblia envolvida na colcha de retalhos dos Movimentos Sociais. Em cada canto, foi
colocada uma corda ligando a colcha a uma faixa: Religioso/Cultural;
Socioambiental; Político; Econômico, recordando alguns cursinhos de base do João
Resende que dizia que a bíblia tem que ser lida pelos 4 lados; [leitura do] Texto
bíblico: Isaías 43, 1-4. Após a leitura, foi feito o encontro da imagem de Francisco
de Assis e Senhora Aparecida, ao som da Ladainha de São Francisco”283.

Os mosaicos de fotos a seguir (figuras 29 e 30) são peças importantes para que o leitor
entenda melhor o que escrevi até o momento. Neles, podemos ver o ‘velho’ e o ‘novo’
coabitando em um mesmo espaço, e compondo um rico contexto de aprendizagem. Não quero
dizer com isso, que não há contradições, tensões e descompassos. Mas, as ‘auras’ das fotos
são bastante significativas do que quis dizer até aqui. Leia as fotos, reparando em seus
detalhes, seus personagens, suas cores e tons.

282
Extraído de seu discurso, apresentado no Encuentro de Católicos com responsabilidades políticas al servicio
de los pueblos latino-americanos (s.d.), cujo tem foi “Inclusão Social na América Latina”. O texto foi
reapresentado no Curso de Férias pelo deputado em sua palestra.
283
E-mail, enviado a mim por Eliane, no dia 18/01/2018.
Figura 29 | Continuidades e inovações com o sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon no Curso de Férias de 2018, Caratinga. Fotos: Acervo próprio.
Figura 30 | Continuidades e inovações com o sistema de aprendizagem ‘do’ Mobon no Curso de Férias de 2018, Caratinga. Fotos: extraídas da página do Facebook ® do
evento. Composição: Rodrigo Teixeira.
183

Por fim, vale dizer que o curso é organizado como um “projeto de formação popular
no campo sócio-político cultural” à luz da Bíblia (como na CEBs/Mobon), mas a partir de
uma ‘releitura’ do texto e da vida (VELHO, O, 2007) a partir do ponto de vista dos
esquecidos, menosprezados e que tiveram sua história ocultada na Zona da Mata mineira e
além (CRUZ, ZANGELMI, HENRIQUES, 2015)284. Representados nesse contexto de
implementação de uma campanha de política cultural liberacionista na região, sobretudo,
pelos atores que fazem as organizações dos jovens e os movimentos sociais negros e
indígenas (ou movimentos amerindioafricanos), incluindo os povos de terreiro, os
quilombolas, os(as) curandeiros(as), os(as) benzedores(as), os(as) raizeiros(as), as parteiras,
os(as) pajés, os(as) folieiros(as), os(as) jovens rapers, b-boys (b-girls) e MCs; os (as)
funkeiros (as); os(as) congadeiros(as), os(as) terapeutas holísticos, enfim, jovens e alguns
mestres-griós da região. Atores coletivos e individuais que estiveram (estão) por muito tempo,
obviamente por razões e processos distintos, sob jugo da produção da ausência e do
ocultamento de “sua palavra” e sua história285.
Assumindo essa perspectiva, o Curso de Férias, a meu ver, pode ser enquadrado como
uma ação que ‘dá continuidade’ no tempo presente ao Aggiornamento, mas que busca ‘dar
voz’ e amplificar – por meio de uma maneira de fazer aprendida no caminho pavimentado
pelo Mobon e com todas as contradições inerentes ao processo – a história, os saberes, os
costumes, as pautas e bandeiras, e consequentemente, as práticas “do povo” em sua
multivocalidade, diversidade e complexidade. Isso tudo, não poderia ser diferente, realizado
por um diálogo criativo entre o passado e o presente, entre o ‘velho’ e o ‘novo’ para se
conectar ao espírito do tempo, refletir sobre a realidade presente e buscar soluções. Em
síntese, esse processo é feito por um conjunto de continuidades e inovações narrativas e
rituais.

284
Por exemplo, durante a pesquisa de campo foi apreendida uma outra maneira de ler e interpretar a Bíblia entre
APNs e pessoas ligadas ao Movimento Negro e/ou à Pastoral Afro-brasileira. Esses leigos partem de uma
perspectiva não comum para a maior parte das “lideranças” católicas que não possuem contato com esses
movimentos. Essas pessoas consideram a história bíblica como a própria história do povo negro em busca da
libertação do cativeiro/escravidão. Nessa perspectiva, a maioria dos personagens da Bíblia é negra, afinal, como
se afirmaram várias vezes algumas lideranças destes movimentos, a “história sagrada” se passou no continente
africano. Como debateram os participantes do Grupo Temático “Religiosidade de Matriz Africana”, durante o
11º FOPPIR, dia 18/11/2017, a religiosidade cristã é uma religiosidade negra, marcada pela história da África.
Esse sentido também apareceu durante uma “sessão cinema” na casa de Farinhada e Eliane, no dia 29/12/2017,
dia em que os presentes assistiram partes da ópera “Alabê de Jerusalém” (2005) de Altay Veloso, em que a
história de Cristo é contada a partir do ponto de vista de Ogundana, um negro africano de Daomé,
contemporâneo de Jesus.
285
A leitura de Santos (2006), Cruz, Zangelmi, Henriques (2015) e Cruz (2015), somadas as reflexões, aos
questionamentos e as críticas à ação evangelizadora da Igreja Católica na região escutadas e anotadas durante a
pesquisa de campo foram inspiradoras para a elaboração dessa noção apresentada no parágrafo.
184

Foi durante o Curso de Férias que Farinhada e Eliane receberam o convite para
assessorarem um espaço durante o 7° Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas
que aconteceu em Ipatinga nos dias 06 a 08 de julho de 2018. Eles convidaram Zé Maria e eu
para juntos assessorar o espaço. Aceitei o convite. Tempos depois, Farinhada compartilhou
comigo o cartaz do evento.

Figura 31 | Cartaz de divulgação do 7º Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas, realizado em


Ipatinga, nos dias 06 a 08/07/2018. Enviado a mim via WhatsApp ® por Farinhada no dia 20/03/2018.

Nós quatro, como divulgado em outro cartaz que circulou pelas redes sociais, fomos
enquadrados como representantes da Diocese de Caratinga e fomos responsáveis por
assessorar a palestra “Sujeitos na Igreja em Saída, Sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13-14)”
que encerrou as atividades da tarde do dia 07 de julho. Além da palestra, Farinhada também
fez a animação do evento. Além de Farinhada e Eliane, também falaram para o público
formado por até quatro de “todas as paróquias” da Diocese de Itabira e Coronel Fabriciano,
Jairo Moura (responsável por fazer uma análise de conjuntura sócio-política) e Ana Maria de
Sena (que fez uma análise de conjuntura eclesial). A seguir, faço uma breve descrição do que
ocorreu, sem muitos detalhamentos, mas apresentando ao leitor mais um evento em que se
pode identificar semelhanças e diferenças com o que estou chamando sistema ‘do’ Mobon.
Farei isso, recortando algumas cenas que vi e que ‘dão continuidade inovando’ a maneira de
185

fazer aprendida, direta ou indiretamente, no caminho histórico traçado pelos agentes do


Mobon.

4.1.2. 7° Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas

Como já dito, o 7° Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas é um evento


promovido pela Diocese de Itabira e Coronel Fabriciano. Como informado, o evento
objetivava fornecer aos participantes “momentos de formação e informação, celebração,
avaliação, animação, festa, folia”. O encontro também teve o objetivo de ser um espaço em
que os representantes das paróquias da referida diocese fizessem a partilha do que cada
regional iria fazer para a Festa de Cristo Rei, a ser realizada em novembro daquele ano.
Nesse encontro, fui enquadrado como um dos “assessores” da palestra “Sujeitos na
Igreja em Saída, Sal da terra e luz do mundo (Mt 5, 13-14)”. Nesse lugar, atuei como
facilitador gráfico, registrando graficamente o conteúdo das conversas das três palestras do
dia 07 de julho e tocando triângulo durante os momentos em que Farinhada fez a animação do
evento. Foi deste ponto de vista que pude ‘captar’ os significados do que foi tratado durante o
evento.
Durante as reflexões coletivas sobre o papel do leigo na Igreja, os ideais
liberacionistas “ajustados” estiveram “a flor da pele”. Em meio a uma série de evidências que
dizem dos ‘rastros’ deixados pelo movimento da Boa Nova na diocese que sediava o
evento286, o que mais chamou a atenção foi o retorno de uma reflexão empreendida pela
“turma do Mobon” há 34 anos atrás. Falo da reflexão sobre os modelos de Igreja Católica
encontrada no material de trabalho organizado pelo Mobon para o curso “Reconstrução do
Povo”, de 1984. As comparações utilizadas nesse curso dizem muito da capacidade de
observação e adequação da linguagem teológica, acadêmica e técnica ao “jeito de falar” do
“povo”, fundamento de um dos pressupostos básicos do sistema do Mobon que é simplificar.
No curso “Reconstrução do Povo” é que se discutiu, por meio de comparações, os
tipos de igreja. Isto é, a igreja caju, a igreja abacate e igreja laranja. As comparações falam de
“diferentes formas possíveis da Igreja Católica tratar o povo” (RABELO, 2019, p.32).
Como escrito no livreto:

286
Entre as evidências, podemos citar a maneira que os palestrantes conduziram suas palestras, em formato de
“sala de aula” com a utilização de tecnologia para a projeção de apresentação PowerPoint, a utilização de
“material de trabalho” impresso entregue pelos dois palestrantes da diocese anfitriã aos participantes do encontro
para que pudessem ler, rabiscar e acompanhar o que era dito, a presença de João Resende na missa que abriu o
dia 08/01/2018, etc.
186

A) IGREJA TIPO CAJU – No caju vemos que a semente não se mistura com o
resto da fruta. A semente é só para pega. Uma igreja tipo caju não entra nos
problemas da vida. Para ela tudo está muito bom. Se houver algum problema, é
coisa secundária, que se resolve com uma moralização dos costumes. Por isso
mesmo a preocupação da igreja tipo caju é mais moralizar do que anunciar. Ela tenta
ficar neutra diante da vida. Ele é como uma canoa que desliza por cima dos
problemas, sem mergulhar neles. Essa igreja tipo caju tenta resolver os problemas
fazendo um assistencialismo junto aos necessitados. Ela tem medo de mudanças.
Prefere conservar as coisas. A conservação é o modo dela se sentir segura. Mas ela
se esquece que é mudando que se conserva. Seu ponto de referência é o passado.
(...). Não caminha junto. As coisas são feitas de cima para baixo. Para esse tipo de
igreja a reconstrução do povo já está pré-fabricada. Ela tem receita e respostas para
tudo. (...). Este tipo de igreja não vai à raiz dos problemas. Está fora da história. (...).
Este tipo de Igreja entristece o Espírito Santo. Enrola o povo.

B) IGREJA TIPO ABACATE – No abacate, a semente está por dentro, mas não
se mistura com a massa da fruta. Uma igreja abacate é aquela que parece estar por
dentro dos problemas. Tem uma linguagem atualizada. Cita muito os documentos do
Concílio. Fala de povo. Em seus planos tem como trabalho número um a formação
de comunidades eclesiais de base. Gosta de planejar. Fala de libertação. Sua
aparência e renovada. Mas, apesar de toda a aparência de renovação, seu plano de
reconstrução do povo não vai à raiz dos problemas. Acha que é possível transformar
o mundo sem ir ao pé da rama. Por isso mesmo se contenta em mudar seu modo de
agir. Ela fala de encarnação, mas sem mudar seu lugar antigo que era de ficar mais
por cima. Por isso mesmo fica muito nas teorias. Tem medo de entrar pra valer. (...)
Age como jabuti. Na hora de dizer as teorias põe a cabeça para fora. Na hora da ação
concreta esconde a cabeça. (...).

C) IGREJA TIPO LARANJA – Na laranja, semente, gomos estão misturados.


Na igreja tipo laranja há entrosamento e comunhão entre as pessoas. Não há tanta
preocupação com os cargos e títulos. (...). A Igreja tipo laranja age como profeta.
Conhece sue povo. Ama seu povo. Dá a vida para defender o povo. Te coragem
diante das autoridades (At 6). Igreja do tipo laranja [...] não tem medo de
descentralizar o poder. Acredita na capacidade do povo. Por isso seus planos não são
feitos de cima para baixo. São fruto de uma escuta de uma convivência com as
pessoas. São respostas às necessidades do povo. Por isso mesmo seus planos não são
complicados. Seu palavreado é simples. As reuniões desta Igreja são marcadas por
ações fraternas. Não há distinção de pessoas. Suas revisões são RX de sua
caminhada. Esta Igreja tipo laranja, onde domina a comunhão, é uma, não só porque
tem os mesmos ritos, mas, sobretudo, porque tem uma mesma missão libertadora.
[...] Suas grandes virtudes são a solidariedade, a participação nas decisões
comunitárias, amadurecimento das decisões na base, ser perseguida por causa da
justiça. [...] Esta Igreja, tipo laranja, se concretiza nas Comunidades Eclesiais de
Base. Estas comunidades são o encontro do povo crente e sofrido. [...] As
Comunidades quando são de fato Eclesiais e de Base, vivem em profundidade a
solidariedade que as leva a uma oração séria, que lhes dá força para enfrentar as
perseguições que têm levado muitos de seus membros ao martírio. Somente uma
Igreja deste jeito tem condição de lutar pela verdadeira reconstrução do povo.
Somente nesta Igreja o povo vai acredita (MEDC, 1984, p.23-30).

Isso é o que está escrito. Mas, durante o Encontro de Formação para Leigos e Leigas,
Farinhada e Eliane fizeram a reflexão junto ao público aludindo a esse debate, todavia, sem a
utilização do livrinho. Utilizando-se da provocação com “questões problematizadoras”, os
dois iam fazendo os participantes falarem. Perguntaram aos presentes – em sua maioria
composta por adultos e anciãos/anciãs – se alguém já tinha ouvido falar dos tipos de igreja de
187

que falava João Resende. Alguns presentes se recordavam. Levantaram e falaram. Enquanto
iam falando, Eliane ia anotando em ‘tarjetas’ o que era dito. O que foi sistematizado em um
organograma que foi disposto no chão para que os participantes pudessem olhar e continuar a
reflexão (cf. figura 32, abaixo).

Figura 32 | Discussão sobre os modelos de igreja durante a palestra “Sujeitos na Igreja em Saída, Sal da terra e
luz do mundo (Mt 5, 13-14)”, coordenada por Farinhada e Eliane. 7° Encontro Diocesano de Formação de
Leigos e Leigas, Ipatinga, 07/07/2018. Fotos: Acervo próprio. Composição: Rodrigo Teixeira.

Essa maneira de proceder, conforme me explicaram Eliane e Farinhada, em muito


aprendida no contato com a Pastoral da Juventude, mas também, do contato de Eliane com o
trabalho em escola, tornou a discussão bastante dinâmica e atualizou o debate e a prática de
fazer um debate para o espírito do tempo presente. O painel de registro gráfico em si – mais
uma forma de registro escrito incorporado por diversos movimentos com base na Igreja na
Zona da Mata e além287 – mais o que nele foi registrado, corrobora essa afirmação.
Como o evento se tratava de um evento ‘mais da Igreja Católica’, as palestras e as
conversas ali registradas se referiam a maior parte do tempo sobre “vida e fé”. A discussão
que fiz em parte no capítulo 1 e no capítulo 2, no que se refere ao contexto, lógicas de atuação
e fatos que marcaram a Igreja Católica de antes e após o Concílio Vaticano II, foi ‘tema’ das
conversas. Leia o painel a seguir...

287
Principalmente após seu uso pelo movimento agroecológico desde a realização do III Encontro Nacional de
Agroecologia, em 2014, em Juazeiro.
Figura 33 | Painel de registro gráfico feito durante as palestras do 7° Encontro Diocesano de Formação de Leigos e Leigas, Ipatinga, 07/07/2018.
189

O debate era sobre os tipos de igreja de que se falava em 1984, mas, como uma
discussão que se encaixava em um ‘processo ritual’ que dava seguimento a outras duas
palestras que disponibilizaram às conversas elementos novos, a reflexão foi referenciada por
temas e questões atuais. Neste momento, vimos “em uso” uma série de saberes do Mobon,
todavia, transpassados por outros saberes absorvidos pelos mediadores e pelo público
presente. Desde a maneira de se sentarem (em círculo) até a maneira como foi ‘sistematizada’
a conversa, tudo demonstra um grau de inovação, mas sem colocar a perder um conhecimento
acumulado ao longo da trajetória de vida que, em grade medida, como os próprios afirmam,
possui uma origem nos “cursinhos de base do João Resende”.
Esse exemplo e a descrição feita do Curso de Férias servem para apresentar de que
modo as “lideranças” ‘do’ Mobon aprenderam a aprender. Esses episódios falam da
incorporação, por atores coletivos e individuais “igrejeiros”, de novas temáticas,
preocupações e práticas que não estavam presentes de início no escopo do Mobon ou das
CEBs. Enfim, traduzem etnograficamente o desenvolvimento do “trabalho de base” e suas
potenciais (re)invenções de saberes fazeres.

***
190

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, busquei responder a algumas questões que me perseguiam fazia algum
tempo, entre as quais se destaca a pergunta: como católicos comuns se tornaram (tornam)
lideranças? O processo para responder essa questão até chegar nestas considerações finais não
foi fácil. Lembro-me de um primeiro texto que escrevi, ainda no primeiro semestre de aulas
do MINTER. Nele, eu dizia que para conseguir romper com o tempo que “só anda de ida”288
existe apenas um jeito, “basta sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e
começar a escrever”289. Foi isso que fiz nesses mais de dois anos desde que comecei a
pesquisa de campo até o momento atual. Período marcado por muitas intermitências,
descompassos, dificuldades. Mas, também, por alegria, curiosidade, motivação em buscar
mais respostas sobre essa força que move as pessoas com as quais me encantei desde o
“Tecendo Sonhos”.
Dessa forma, objetivei com minhas letras trazer mais uma leitura da realidade para o
centro do debate sobre o catolicismo “da libertação” e sua intercessão com a formação
política de agentes de ‘velhos’ e ‘novos’ movimentos sociais, partidos políticos e demais
“espaços” de exercício da cidadania. Neste caso, realizada a partir de um lugar ambíguo, ou
seja, de quem vive “de dentro” os episódios descritos, mas que também se afasta para ver o
que não se vê de dentro e poder realizar uma análise.
Mesmo que não tenha sido o foco da dissertação mapear, classificar e entender as
especificidades dos movimentos sociais de base católica da Zona da Mata mineira, bem como
compará-los a outras experiências de formação de movimentos sociais no Brasil, ou mesmo
fora do país, a análise que empreendi implicitamente se constrói considerando esse debate.
Movimentos sociais, partidos políticos, carreiras políticas e outras maneiras de a sociedade
civil e os cidadãos se organizarem e defenderem seus interesses podem se originar dos mais
variados processos históricos e sociais. Todavia, como dito, neste trabalho procurei delimitar

288
Como escreveu Manoel de Barros.
289
In: Britto (2004, p.9-12).
191

a análise e considerar os movimentos sociais e atuações políticas de militantes da Zona da


Mata mineira, formados por um processo sociohistórico específico que marcou a Diocese de
Caratinga. Isto é, a conformação da realidade dos “córregos” e pequenos bairros de pequenas
cidades da Zona da Mata em “comunidades de base”, processo que, diferentemente de outras
regiões do Brasil, se realizou a partir da atuação evangelizadora dos missionários
sacramentinos de Nossa Senhora.
Como mostrei no capítulo 1 e 2, a formação de lideranças leigas e de comunidades de
base não é uma invenção dos missionários sacramentinos, mas trata-se de uma ‘orientação’
“vinda de cima”. De outro modo, o Aggiornamento, de diferentes maneiras, reverberou em
todo o mundo e, de maneira específica, na América Latina. No Brasil, ela deu origem a uma
série de processos “sociotransformadores”290 como, por exemplo, as diferentes iniciativas
empreendidas pelo clero do Norte e Nordeste brasileiro encabeçadas por Dom Hélder Câmara,
na década de 1960291. Contexto etnográfico no qual se insere, por exemplo, o estudo
antropológico desenvolvido por Theije (2002) que utilizei como ‘guia’ ao longo da leitura dos
dados de campo. Na Zona da Mata de Minas, a campanha foi ajustada situacionalmente e se
expressou, por exemplo, por meio de metáforas, comparações e simplificações empreendidas
pelos irmãos sacramentinos após um período de observação e análise do “jeito” do povo da
roça fazer e falar.
Ao analisar a relação entre Igreja Católica e engajamento político-social, portanto,
implicitamente empreendi uma perspectiva comparativa. Seja comparando o
Mobon/movimentos sociais da Zona da Mata de Minas Gerais com a experiência
liberacionista de Garanhuns/PE estudada por Theije292, seja com outras experiências, como os
Círculos Bíblicos de Carlos Mesters. Deste modo, analisar a sociogênese e os desdobramentos
do Boa Nova, nascido na Diocese de Caratinga, ao mesmo tempo que nos informa sobre a
relação mais ampla já investigada por diversos pesquisadores entre CEBs e a organização de
movimentos sociais, também informa aos pesquisadores interessados sobre uma maneira sui
generis de “fazer a luta” de movimentos sociais no campo brasileiro.
Em outros termos, a pesquisa ‘avançou’ em relação a estudos realizados na região
sobre atuação política de lideranças leigas camponesas em movimentos sociais, partidos
políticos, sindicatos e ONGs – como, por exemplo, Comerford (2001) e Oliveira, F. R. C.

290
Para usar um termo nativo.
291
Como mencionei, nesse contexto, são empreendidas ações como a criação do Movimento de Educação de
Base (MEB), a criação da Campanha da Fraternidade, a criação das primeiras comunidades de base, etc.
292
Theije desenvolve um estudo antropológico do catolicismo “da libertação” em Garanhuns, município situado
no agreste pernambucano.
192

(2012) – na medida em que aborda as transformações contemporâneas dos movimentos. Em


um plano político nacional, em que o legado “liberacionista” está sendo atacado intensamente
por certos setores da sociedade, o estudo buscou captar como o sistema de aprendizagem ‘do’
Mobon vem sendo acionado para “fazer a luta” pela (re)conquista de direitos, pela luta contra
a violência “das armas” e contra os retrocessos político sociais. A etnografia, assim, busca
colocar no centro do debate acadêmico como os militantes “igrejeiros” estão vivenciando um
processo complexo e realizando adaptações de pautas e práticas no tempo presente.
Como escrito no livrinho de curso do Mobon, “A mensagem por imagem” (MEDC,
s.d.), “A mensagem pode vestir a roupagem de cada tempo”. Assim, as lideranças e os irmãos
sacramentinos – contra todo o pessimismo que marca a leitura de ampla maioria da população
sobre os rumos políticos do país – continuam a circular, a fazer cursos, reuniões, encontros,
celebrações, místicas, festas em que refletem e buscam respostas concretas para ‘velhos’ e
‘novos’ problemas. João Resende, com seus quase 80 anos, por exemplo, esteve presente em
‘todos’ os eventos e situações de campo que vivenciei. Isto é, quando não esteve
presencialmente, suas ideias e ideais estavam embasando as reflexões.
Utilizando-se de ‘velhos’ saberes, potencializados pelas ferramentas online de
comunicação, continuam falando de reforma agrária, políticas públicas para o campo e a
cidade, agroecologia, direitos trabalhistas, bem como sobre ‘novas’ pautas como a promoção
da igualdade racial, a defesa dos direitos dos povos indígenas e povos tradicionais (tão
ameaçados no momento atual), a soberania nacional na mineração e contra a impunidade que
marca os episódios do rompimento das barragens de rejeito de minério que vitimou centenas
de pessoas em Mariana (novembro, 2015) e Brumadinho (janeiro, 2019), etc.
Como disse Farinhada durante uma reunião de planejamento do Sintraf de Espera
Feliz, em janeiro de 2017, tanto os dirigentes dos grupos de reflexão quanto os dirigentes
sindicais devem “acompanhar as mudanças de cada época” a fim de que se consiga realizar
comunicação efetiva com os jovens – os quais, espera-se, darão continuidade à luta. Na
ocasião, o educador construiu uma reflexão que é pertinente repetir. Como enunciou:

“Nós temos os grupos de reflexão nas comunidades, então esse dirigente dos grupos
de hoje vai lá no grupo. O grupo é o fato da reflexão, por isso chama grupo de
reflexão. Então você falou a palavra ‘educadores populares’ (...) um dirigente
sindical é um educador popular. Ele tem uma questão da educação popular. Mas da
maneira do João [Resende] (...) [para quem a educação popular] é uma bandeira
muito forte. Porque quando a gente fala grupo social, de base social, nós precisamos
acompanhar as mudanças de cada época (...) a realidade em movimento (...). Como a
gente faz pra ter esse trabalho de base com a juventude, pra eles compreenderem que
são educadores populares, tendo celular, tendo zap [WhatsApp]. A internet é uma
aliada pra fazer esse tipo de trabalho. Então é não ter pressa em algumas coisas (...)
[é preciso] priorizar o tempo para fazer cada coisa. Nós estamos aqui vamos ficar
193

dois dias. Nesses dois dias é o tempo que nós temos pra gente pensar [a formação]
(...). O que a gente está fazendo aqui é ver a história, procurar um referencial (...) o
tempo de hoje, o que que o tempo de hoje proporciona (...) que a gente pode
aproveitar, pra gente conseguir dialogar com essa juventude (...). Pode fazer
baderna, botar fogo em carro, fechar estrada, [mas fica a questão:] como vamos
formar os jovens, novos educadores populares?”293

Portanto, considerando o contexto atual com todas as suas agruras, a pesquisa foi um
exercício de entender como essa complexa e sofisticada ‘gente simples’ que, geralmente,
aprende fazendo e trabalhando, se formou (forma) liderança e/ou militante camponês. Mas
não só isso. O foco foi entender como essas lideranças colocam em prática e ‘em movimento’
por onde passam uma série de saberes que adquiriram durante os cursos do Mobon, as
reuniões de grupo de reflexão e discussões no Plenário. É certo que outros pesquisadores já
realizaram análises sobre esse processo, mas a história é aberta e esses saberes fazeres são
sempre ajustados situacionalmente, o que torna essa realidade um manancial que permanecerá
por muito tempo desenvolvendo inovações.
Assim, a partir de uma perspectiva histórico-processual e sem perder de vista a análise
dos eventos e situações que vivenciei durante a pesquisa de campo sob a ótica da análise ritual
e da performance, cheguei em respostas que extrapolam o que perguntei inicialmente. Ao
viver e me afetar convivendo esses anos todos com essas diversas lideranças, percebi o quanto
as coisas estão conectadas. Isto é, como as práticas “da luta” dos movimentos da Zona da
Mata mineira possuem uma origem comum, ao mesmo tempo, que ao longo da história esses
‘mesmos’ modos de fazer o “trabalho de base” foram se alterando. Como sabemos,
movimento se faz no movimento. E parte dessas mudanças diz respeito ao poder de
articulação, interpretação e aproveitamento dos saberes do Mobon, mas sem uma ‘camisa de
força’ que lhes fizesse parar no tempo. Caminhando por várias estradas, circulando por vários
eventos, e momentos distintos, essas lideranças que “aprenderam a aprender” estão
inventando sua cultura, transformando-a a partir de uma simbiose de saberes dessa ‘matriz’
“da libertação” com outras matrizes de saberes.
Como se constatou, fazendo “a luta”, essas lideranças vão reelaborando,
ressignificando, retrabalhando e reconstruindo os modos de fazer “de base” na Zona da Mata
mineira e outras regiões com um “aporte da educação popular que tá na CEBs...”. Isso, como
procurei demonstrar, é o que mantém a vitalidade dos movimentos na Zona da Mata mineira.
A presente pesquisa faz avançar, assim, a investigação científica sobre os movimentos
sociais na Zona da Mata. Ao fazer uma mesma pergunta feita por outros pesquisadores, mas

293
In: Teixeira, R. S. (2017, p.45).
194

atenta ao espírito do tempo, buscou captar a mudança que foi realizada na maneira de “fazer a
luta” dos movimentos sociais e religiosos da região.
195

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206

APÊNDICE 1

RELAÇÃO DOS EVENTOS E SITUAÇÕES (SPEECH EVENTS) DO PERÍODO DE


TRABALHO DE CAMPO
2017 (Pré-campo)
Evento Local do evento Data
129º Festa de Nossa Senhora do Rosário Comunidade Quilombola
Córrego do Meio, distrito 15/10
de Airões, Paula
Cândido-MG
11º Fórum de Promoção da Igualdade Racial Cataguases-MG 17 a 18/11
(FOPPIR)
Lançamento do álbum “Vozes da Mata” Sede do CTA-ZM, 08/12
Viçosa-MG
Construção do presépio de Natal, que aludiu ao tema Comunidade Nossa
da CF 2017 cujo tema foi “Fraternidade: biomas Senhora Aparecida, 22/12
brasileiros e defesa da vida” e o lema, “Cultivar e Manhumirim-MG
guardar a criação” (Gn 2, 15).
Sessão cinema “da libertação” e cantoria de músicas Comunidade Nossa
de CEBs na casa de Eliane e Farinhada Senhora Aparecida, 29/12
Manhumirim-MG
2018 (Campo)
Evento Local do evento Data
Encontro “Celebrando a esperança com músicas da Comunidade Nossa
caminhada” na casa de Eliane e Farinhada Senhora Aparecida, 05/01
Manhumirim-MG
3º Curso de Férias para Educadores Populares. Tema Caratinga-MG 10 a 14/01
“Fraternidade e superação da violência”, lema “Em
Cristo somos todos irmãos” (Mt 23, 8)
Colaboração, como membro do Coletivo Repentistas Período de trocas
do Desenho, na elaboração da identidade visual da 3ª de informações
Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce, entre solicitante e
tema “Bacia do Rio Doce, nossa Casa Comum”, lema Ponte Nova-MG repentistas e
“Cuidando da terra e plantando água, com justiça e elaboração da
soberania popular” arte: de Janeiro a
Fevereiro
Colaboração, como membro do Coletivo Repentistas Período de trocas
do Desenho, na elaboração da identidade visual da 28ª de informações
Romaria dos Trabalhadores e Trabalhadoras, entre solicitante e
“Mineração para que e para quem? Por uma economia Congonhas-MG repentistas e
a serviço da Vida” elaboração da
arte: Março
Evento em homenagem à duas estudantes da
Licenciatura em Educação do Campo da UFV Espera Feliz-MG 01/02
(LICENA) recém formadas, organizado pelo Sintraf-
Espera Feliz
Vista à Casa de Cursos do Mobon e participação do
Curso da CF 2018 cujo tema foi “Fraternidade e Dom Cavati-MG 06 a 11/02
superação da violência” e o lema, “Vós sois todos
irmãos” (Mt 23, 8).
207

Reunião com os “antigos” do Mobon Tarumirim-MG 08/02


5º Congresso FETRAF-MG/CUT. Tema “Por Belo Horizonte-MG 14 a 16/03
democracia e nenhum direito a menos” e lema
“Agricultura Familiar as mãos que alimentam a
nação”
Sítio Portal de Luz,
Candeeiro de Luz – evento pré-IV Encontro Nacional Comunidade do 21/04
de Agroecologia (IV ENA) Cruzeiro, Espera Feliz-
MG
Pesquisa de campo para a realização de Diagnóstico Comunidade do
Produtivo da Rede Comunitária Sabor do Quintal, Cruzeiro, Espera Feliz- 23 e 24/04
para projeto da ITCP-UFV MG
Comunidade do
Reunião de Grupo de Reflexão Cruzeiro, Espera Feliz- 23/04
MG
1º Encontro de Músicas da Caminhada Espera Feliz-MG 26 e 27/05
(adiado)
7º Encontro de Formação de Leigos e Leigas da
diocese de Itabira e Cel. Fabriciano. Tema “Sujeitos Ipatinga-MG 06 e 07/07
na Igreja em Saída. Sal da terra e luz do mundo” (Mt
5, 13-14)
Pesquisa nos arquivos da Paróquia do Senhor Bom Manhumirim-MG 30 a 31/07
Jesus (Livros de Tombo 03 e 04)
10ª Troca de Saberes “Oxum Ñhama – Viçosa-MG 13 a 15/07
Ancestralidades da Natureza Agroecológica”
Defesa da Dissertação “Mestres Boi e Farinhada:
Travessando de volta às memórias e histórias Viçosa-MG 14/08
socioculturais das Zonas das Matas mineira” de
Guilherme Menezes Conte
12º Congresso da Sociedade Brasileira de Sistemas de
Produção/Conversa com Carlos Rodrigues Brandão Viçosa-MG 03 e 04/09
sobre educação, cultura e religiosidade popular, CEBs
e temas afins
Comunidade Quilombola
130ª Festa de Nossa Senhora do Rosário Córrego do Meio, distrito 19 a 21/10
de Airões, Paula
Cândido-MG
Participação e apresentação de trabalho em coautoria
com Lívia Rabelo, “Observando coisas, desvelando
políticas de conhecimento: a edificação da identidade
militante católica de agentes da cultura das CEBs” no Juiz de Fora-MG 06 a 08/11
3º Congresso Nacional de Graduações e Pós-
Graduações em Ciência(s) da(s) Religião(ões) (III
CONACIR)
2019 (Pós-campo)
Evento Local do evento Data
4º Curso de Férias para Educadores Populares. Tema 23 a 27/01
“Fraternidade e políticas públicas”, lema “Serás Divino-MG
libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1, 27)
Período de trocas
208

Colaboração na elaboração da identidade visual do 1° de informações


Encontro de Música e Espiritualidade na Caminhada Manhumirim/MG entre solicitante e
eu e elaboração
da arte: março
Colégios Santa
Terezinha, sede da
1° Encontro de Música e Espiritualidade na Congregação das irmãs 30 e 31/03
Caminhada sacramentinas de Nossa
Senhora,
Manhumirim/MG
Ginásio Poliesportivo, Período de trocas
Colaboração, como membro do Coletivo Repentistas um dos pontos de de informações
do Desenho, na elaboração da identidade visual do 7° encontro em caso de entre solicitante e
Fórum Social pela Vida rompimento da barragem eu e elaboração
de Congo Soco, Barão de da arte: junho
Cocais/MG
Colaboração, como membro do Coletivo Repentistas Período de trocas
do Desenho, na elaboração da identidade visual do 12º de informações
Fórum pela Promoção da Igualdade Racial (12º Muriaé/MG entre solicitante e
FOPPIR) eu e elaboração
da arte: junho
Período de trocas
Colaboração, como membro do Coletivo Repentistas de informações
do Desenho, na elaboração da identidade visual da *** entre solicitante e
capa do livro “O Reino segundo Joãozão” de padre eu e elaboração
João do Carmo Macedo da arte: Junho a
julho
Participação e apresentação do trabalho “‘A
mensagem pode vestir a roupagem de cada tempo’:
Catolicismo ‘da libertação’ na Zona da Mata mineira,
movimento(s) e transformações” no X Seminário Rio de Janeiro/RJ 12 e 13/09
dos/as Alunos/as, do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, do Museu Nacional de 2019
Ginásio Poliesportivo,
7° Fórum Social pela Vida. Tema “A terra clama por um dos pontos de
justiça e os pobres, por direitos”, lema “Eu ouvi o encontro em caso de 26 a 29/09
clamor e desci para libertá-lo” (Ex 3, 7-8) rompimento da barragem
de Congo Soco, Barão de
Cocais/MG
Apresentação de trabalho “Vida, fé e a lógica e a
simbólica da comunicação popular entre missionários
sacramentinos e católicos de comunidades rurais da Juiz de Fora/MG 10/10
Zona da Mata de Minas Gerais” no IV CONACIR.
12º FOPPIR. Tema: “Do chão dos novos quilombos
brota a força que nos faz resistir. Mineração aqui Muriaé/MG 14 a 17/11
não!”
209

APÊNDICE 2

RELAÇÃO ENTREVISTAS E GRAVAÇÃO UTILIZADAS


Entrevistas
Entrevistado(a) Data da Observações
entrevista
João Resende 06/01/2018 Cedida pelo missionário sacramentino Denilson
Mariano
Alípio Jacinto 08/02/2018
Padre Marcos Antônio A. 30/07/2018
Duarte
Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=GtD_vy3uVRA>.
03/09/2018 Acesso em: 23 set. 2018

Denilson Mariano
Disponível em:
18/09/2018 <https://www.youtube.com/watch?v=GtD_vy3uVRA>.
Acesso em: 23 set. 2018.
Irene Cardoso 12/09/2018

Sebastião Farinhada 06/11/2018 Cedida pelo pesquisador Márcio Gomes


Gravação
Situação/evento Data Local do evento
Encontro “Celebrando a
esperança com músicas da 05/01/2018 Comunidade Nossa Senhora Aparecida, Manhumirim-
caminhada” na casa de Eliane MG
e Farinhada

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