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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Paula de Mattos Colares

Viver em comunidade, experimentar com a escola:

os Ashaninka do rio Amônia

Rio de Janeiro

2019
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

Paula de Mattos Colares

Viver em comunidade, experimentar com a escola:

os Ashaninka do rio Amônia

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Antropologia
Social.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Aparecida Vilaça


PPGAS/MN/UFRJ

Rio de Janeiro

2019
Viver em comunidade, experimentar com a escola: os Ashaninka do rio
Amônia

Paula de Mattos Colares

Tese de doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como requisito parcial à obtenção
do título de Doutor em Antropologia Social

Aprovada por:

_________________________________________________
Profa. Dra. Aparecida Maria Neiva Vilaça - Orientadora
PPGAS/ MN UFRJ

_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Luiza Elvira Belaude
PPGAS/MN/UFRJ

_________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Célia Collet
UFF

_________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Tatiana Arnaud
UFF

_________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Joana Miller
UFF

_________________________________________________
Prof. Dr Luiz Antônio Lino da Costa (suplente)
UFRJ

_________________________________________________
Prof. Dr. Frederico Neiburg (suplente)
PPGAS/ MN UFRJ

Rio de Janeiro
2019
Colares, Paula de Mattos
Viver em comunidade, experimentar com a escola: os Ashaninka do rio Amônia/
Paula de Mattos Colares. – Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2019.
220 f.

Orientadora: Aparecida Maria Neiva Vilaça

Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de


Janeiro/Museu Nacional/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. 2019.

1. Ashaninka. 2. Educação escolar indígena. 3. Comunidade. 4. Conhecimento


I. Vilaça, Aparecida (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu
Nacional/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. III. Título
Dedico esta tese à minha mãe, Lucia, a mais entusiasmada leitora deste trabalho. Ela,
que sabe ser força e leveza ao mesmo tempo, é minha maior inspiração na vida.
AGRADECIMENTOS

Aos funcionários e funcionárias do Museu Nacional, pelo suporte e


atenção dedicados. Aos professores, sou muito grata pela oportunidade de
aprender.
Agradeço aos Ashaninka da Apitwxa pela generosidade de terem me
permitido passar um pouco de tempo vivendo com eles. Minha admiração pelos
moradores do rio Amônia e pelas suas formas de conduzir a vida, levo sempre
comigo. Em especial, agradeço Isaac, Fátima, Komãyari, Cláudio, Wewito,
Alzelina, Antônio, Piti, Joana, Alípio, Irãtxo, Txotxoe e à todas as crianças da
comunidade.
À minha orientadora, Aparecida Vilaça, por ter me acompanhado no
mestrado e no doutorado, e me ensinado tanto. Obrigada também pela amizade
e pelo apoio.
À Luisa Elvira Belaunde, Celia Collet, Joana Miller e Tatiana Arnaud, por
terem aceitado participar da banca. À Carlos Fausto agradeço pelos comentários
e sugestões na qualificação.
Aos amigos de uma vida, Fernanda, Vladimir e Tati.
Agradeço aos meus pais, Lucia e Damião, à minha irmã Joana e ao
Thiago, e aos meus tios Tamar, Celso e Joana. Os caminhos que me levaram
ao Acre acabaram me levando de mudança para o Pará no meio do doutorado,
mas vocês, de todo modo, estiveram presentes e cuidaram de mim e da Ceci.
Amo vocês.
Em Santarém, durante a escrita da tese, a companhia de Lorena, Augusto,
Felipe e Giu foi muito importante. À Denize e Marília, minhas colegas de trabalho
na Ufopa, agradeço por terem viabilizado, nos últimos meses da escrita, um
pouco mais de tempo para que eu me dedicasse à tese.
Ao Erick, meu companheiro, que viveu comigo intensamente todo o
processo do doutorado, me acompanhou no trabalho de campo e me deu força
e suporte nesses dois últimos anos em que estive trabalhando, escrevendo tese
e passando por situações pessoais bem difíceis. Agradeço pela nossa vida
juntos, por compartilhar a criação da Ceci, por todo o amor.
À minha filha, que eu tive o prazer de ter comigo durante o tempo da
pesquisa na Apiwtxa e que é a melhor pessoa do mundo. Ceci me deu muita
força e carinho na escrita da tese, me acalmando mesmo nas dificuldades e
frustrações que escrever produz.
RESUMO

Colares, Paula de Mattos. Viver em comunidade, experimentar com a escola: os


Ashaninka do rio Amônia. Tese de doutorado em Antropologia Social.
PPGAS/MN/UFRJ. 2019.

Este trabalho é fruto de uma pesquisa etnográfica junto aos Ashaninka que vivem
na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no estado do Acre, e trata do lugar da
escola na criação e reprodução da comunidade Apiwtxa. Busco discutir como os
Ashaninka se apropriam da escola e como a equacionam com seus modos
próprios de produzir pessoas e conhecimentos. Procuro apontar, ainda, as
maneiras através das quais esses indígenas fazem da escola um laboratório no
qual experimentam as suas relações entre si e aquelas com os “brancos”.

Palavras-chave: Ashaninka; educação escolar indígena; comunidade;


conhecimento.
ABSTRACT

This thesis is the result of an ethnographic research with the Ashaninka who live
in the Kampa Indigenous Land of the Amônia River, in the state of Acre. We shed
light on the functioning of the school in the creation and reproduction of the
Apiwtxa community. We discuss how the Ashaninka manage the school through
their own modes of producing people and knowledge. As we present, these
indigenous group makes the school a laboratory in which the subject of
experimentation is their relations with each other and their relations with the
"whites".

Keywords: Ashaninka; indigenous school education; community; knowledge.


SUMÁRIO

Introdução ... 1

Capítulo I - Seguindo linhas de história ashaninka ... 7


1.1 - Ao longe: fluxos e fronteiras da alteridade ... 7
1.2 - Os tempos do caucho e as dinâmicas ashaninka ... 16
1.3 - Os Ashaninka no Rio Amônia: “Cada lugar aqui é de um jeito, mas é tudo
comunidade” ... 29

Capítulo II - O corpo da comunidade ... 43


2.1 - Pessoas e socialidades amazônicas ... 43
2.2 - Fazendo parentesco entre os Ashaninka ... 47
2.3 - Os Ashaninka e os Outros ... 53
2.4 - Puros e misturados ... 58
2.5 - Aproximações e distanciamentos entre comunidades ashaninka ... 65
2.6 - Dona Piti, seus filhos e a comunidade ... 71
2.7 - Sobre fluxos, migrações e o dinheiro ... 74

Capítulo III - Produzindo conhecimentos e relações ... 83


3.1 - Os movimentos da vida na comunidade ... 85
3.2 - A criança e a família ... 94
3.3 - A criança Ashaninka e seu desenvolvimento ... 96
3.4 - Aprender com as plantas ...103
3.5 - Conhecimento embriagado: a caiçuma ... 106
3.6 - O xamã e o conhecimento especializado ... 113

Capítulo IV - A “escola diferenciada ashaninka” ... 123


4.1 - Diferentes concepções de escola indígena ... 128
4.2 - A CPI/AC e o projeto “Uma Experiência de Autoria” ...135
4.3 - A escola Samuel Piyãko ...139
4.4 - Educação tradicional, educação escolar e a educação diferenciada dos
Ashaninka ... 147
4.5 - Pequenas cenas escolares ... 152
4.6 - A pesquisa, a escola e a comunidade ...163
Capítulo V - Experimentando a cultura ... 168
5.1 - Usos e sentidos da “cultura” ... 168
5.2 - As “políticas culturais” e os conhecimentos indígenas ... 172
5.3 - A preparação da festa ... 176
5.4 - Ritual de comunidade ...189

Conclusão ...192

Referências ... 200


Introdução

Este trabalho pretende discutir o lugar que a escola ocupa na vida dos
Ashaninka que vivem na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no estado do
Acre. O objetivo da tese é analisar as formas através das quais eles imprimem
sentido a essa instituição e como a equacionam com seus modos próprios de
produzir e fazer circular conhecimentos. Em suma, trata-se de perceber de que
formas a escola é apropriada por eles, e, como com ela, eles passam a compor
seus movimentos, vivendo em comunidade. O texto aqui apresentado é fruto de
uma pesquisa de campo desenvolvida entre 2014 e 2017, totalizando cerca de
dez meses na comunidade Apiwtxa1.
Nesta introdução, pretendo situar a experiência do trabalho de campo,
apontar alguns dos caminhos que a tese percorre, e, por último, indicar algumas
das limitações de minha análise.
Minha relação com os Ashaninka iniciou-se em 2013, quando cheguei
pela primeira vez ao Acre como aluna de mestrado. Naquele momento, eu
desejava apresentar a eles meu interesse em desenvolver uma pesquisa. Eu
tinha em mente que, menos do que caracterizar-se por um trabalho de campo
propriamente dito, aquela viagem me permitiria conhece-los e situar-me em
relação às questões das quais eu começava a me aproximar, relacionadas à
educação indígena e ao contexto acreano. Para mim, tratava-se de semear a
possibilidade de retornar e realizar uma etnografia durante o doutorado que eu
pretendia fazer futuramente.
Durante o tempo em que estive no Acre naquele ano, pude pesquisar nos
arquivos que ficavam no centro de documentação que pertence à Comissão Pró-
Índio do Acre (CPI/AC), uma organização não-governamental que atua na região
há mais de trinta anos. A CPI/AC foi responsável pela formação dos primeiros
professores indígenas no estado, assim como ajudou a instituir a categoria dos
agentes agroflorestais indígenas, além de desenvolver um trabalho importante
relacionado ao etnomapeamento de Terras Indígenas e proteção das áreas de
fronteira, principalmente onde a presença de índios em isolamento voluntário é
evidente. Nesse centro de documentação, pude ter contato com os relatórios dos

1
Apiwtxa é o nome da Associação Indígena dos Ashaninka do Rio Amônia, e também termo utilizado
para fazer referência à comunidade. Uma tradução aproximada seria “nós juntos”.

1
cursos de formação de professores e com os diários de aula e de pesquisas
elaborados pelos professores durante o ano letivo, que eram então levados à
CPI durante as etapas presenciais anuais dos cursos de formação no espaço da
Ong.
Depois do primeiro mês pesquisando nos arquivos da CPI, pude
acompanhar um encontro de professores e lideranças indígenas para discutir as
políticas públicas para os povos indígenas no Acre, entre elas a questão da
educação escolar indígena. Só ali, ouvindo os professores ao longo dos dias do
encontro, percebi que aquelas experiências de educação escolar indígena que
eu começava a descobrir nos materiais da CPI, não eram exatamente
continuadas. Foi também nesse encontro que conheci Isaac e Wewito, dois
professores e lideranças da Apiwtxa.
A principal questão levantada pelos participantes do evento era a
dificuldade na relação com as Secretarias de Educação2, responsáveis desde
um decreto presidencial de 1991, pela implementação local das diretrizes da
educação escolar indígena, em colaboração com o MEC, que passa a ser gestor
da política. No caso do Acre, a CPI manteve-se como principal articuladora da
formação e do planejamento pedagógico da formação de professores indígenas
em magistério até o ano 2000, quando findou o convênio entre a Ong e a
Secretaria Estadual de Educação do Acre (SEE/AC). Reclamava-se do hiato
entre os módulos de formação (pois havia mais de três anos sem que fosse
oferecida a continuidade das etapas de formação em magistério) e o modelo de
curso ofertado; da falta de concurso para professor e da consequente
manutenção de contratos temporários, da falta de assessoria aos professores,
da falta de diálogo entre os órgãos públicos e os indígenas.
Esta compreensão, a de que a educação escolar indígena vivia um
“retrocesso”, me foi apontada muitas vezes depois, no convívio com os
professores na Apiwtxa. Para eles, ainda que a escola tenha se expandido, o
número de alunos tenha aumentado (assim como os professores em exercício)
e se tenha aprendido na prática a fazê-la funcionar, eles perderam nos últimos

2
No Acre, algumas escolas indígenas são estaduais – a maioria -, e outras, municipais, como é o caso da
escola da Apiwtxa. A formação em magistério, no entanto, é nos dois casos responsabilidade da SEE/AC,
a Secretaria de Educação do Estado do Acre.

2
anos muito de sua autonomia na gestão e concepção da escola, movimento que
os professores, especialmente os mais antigos, buscam frear.
As etapas da pesquisa aconteceram em 2014, 2015 e 2017. Em 2014,
passei dois meses na aldeia, dando início à pesquisa e atinando com os
professores como seria o meu “retorno” para a comunidade. No final do mesmo
ano, voltei ao Acre para acompanhar uma etapa de um curso de formação em
magistério indígena promovido pela SEE/AC. Este processo foi interessante,
porque em julho e agosto na Apiwtxa, eu havia tido muitas conversas com os
professores sobre as dificuldades que eles enfrentavam em sala de aula devido
à falta de referências e modelos pedagógicos, especialmente por conta do hiato
de anos entre etapas de cursos de formação. Por exemplo, os professores que
haviam passado a trabalhar na escola há menos de três anos, não haviam tido
qualquer formação para atuar, com exceção de pequenos encontros com outros
professores e a coordenadora pedagógica para auxiliar na preparação das aulas.
Ao mesmo tempo, outros professores que atuavam há mais de dez anos na
escola, ainda não haviam se formado em nível médio, e não haviam informações
claras por parte da SEE de como ou quando os professores estariam
efetivamente formados.
Ainda que minha presença no curso, como pesquisadora, tenha sido
breve (dez dias), pude dimensionar com os professores suas expectativas,
frustrações e percepções da formação oferecida. Quando retornei à Apiwtxa em
2015, os professores tinham várias análises comparativas entre a CPI e a SEE,
e me disseram um pouco do que desejavam de um curso de magistério.
Entre maio e novembro de 2015, morei por seis meses na Apiwtxa, e esta
foi a etapa mais importante do meu trabalho de campo. Havíamos acertado, eu
e os professores, e compactuado em reuniões com a comunidade, que eu
desenvolveria minha pesquisa e simultaneamente levantaria informações a partir
dela para auxiliar na elaboração do Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola.
Para que esse processo acontecesse, os professores pediram que eu
elaborasse também algumas oficinas de formação/discussão de temas para o
PPP, que aconteceram durante todo o período que passei em campo naquele
ano. Os temas de nossos encontros foram, por exemplo, os marcos legais e
diretrizes da política de educação escolar indígena, objetivos da escola,

3
calendário da escola e calendário da comunidade, a pesquisa na escola indígena
e apontamentos para a construção do currículo.
Logo na primeira reunião que fizemos em 2015, eu, os professores e
algumas lideranças da comunidade, Isaac sugeriu os caminhos para a
construção do documento, orientando-me, também, quanto ao que deveria
conduzir meu olhar:

A sala de aula vai ser a base de orientação da construção do projeto


a partir do ponto de vista do planejamento dos professores. A outra
parte de comunidade (...) vão ser as entrevistas relacionadas a
quem tá fora, o ponto de vista sobre a escola, sobre a cultura, sobre
o que deve ser ensinado e o que não deve, porque esse ponto de
vista vai fundamentar a orientação do projeto político-pedagógico,
vai dar o contexto, a justificativa e o objetivo geral. Nós vamos aqui
trabalhar em cima do ponto de vista dessas lideranças maiores,
tradicionais. Esse vai ser o nosso ponto de partida porque nós não
queremos de forma alguma partir do nosso ponto de vista, nós
vamos aprofundar esse ponto de vista dentro das tradições. Nós
vamos aprofundar o ponto de vista das lideranças dentro do nosso
conhecimento como professor, interagindo o mundo tradicional com
o mundo ocidental pra que fortaleça cada vez mais o ponto de vista
tradicional, a sua concepção, suas ideologias, seu ponto de vista.
É a partir disso que nós vamos ter os planejamentos tanto das aulas
de português, de ciências, de geografia, de matemática, enfim. É
esse o ponto do planejamento dos professores, sempre
direcionando pra um planejamento com a ideologia ashaninka, sem
perder de vista a divisão das aulas dos espaços de ensinamento,
pra que não seja só a sala de aula (Isaac Piyãko).

Durante praticamente todo o trabalho de campo, fui hospedada por Isaac


Piyãko e sua esposa Fátima. Em 2017, passei um curto período na casa de
Wewito, irmão de Isaac, que é casado com Alzelina. Isso teve muitas
consequências positivas, mas colaborou para uma das maiores limitações desse
trabalho, a minha falta de domínio sobre a língua nativa, uma vez que as
interações domésticas aconteciam quase exclusivamente em português. Além
disso, é interessante apontar que se opera um mecanismo de diferenciação, na
interação dos Ashaninka do Rio Amônia com os brancos, mesmo com aqueles
que moram na aldeia, através da língua. Brevemente, cito o caso de duas
mulheres não-indígenas casadas com homens ashaninka na Apiwtxa, uma delas
vivendo na aldeia há mais de 50 anos e a outra há 20 anos. Nenhuma delas
utiliza a língua indígena em suas conversas diárias – mesmo quando alguém fala

4
em ashaninka com elas, elas respondem em português. Isto não se dá,
obviamente, por um desconhecimento da língua, mas de um lugar marcado, que
se mantém ativamente, como não-ashaninka.
Os professores Isaac e Komãyari são os dois maiores interlocutores de
minha pesquisa e de meus pensamentos durante a escrita dessa tese. Minhas
conversas com eles foram férteis e constantes desde minha primeira visita, ainda
no mestrado. Dois sujeitos atravessados por histórias e relações muito
diferentes, mas igualmente fascinantes, e que não fortuitamente, são citados
muitas vezes nesse trabalho.
Durante o tempo em que estive na Apiwtxa, eu era alguém que “ajudava
na escola” e esta posição possibilitou conversas e interações com pessoas que,
talvez, de outro modo, não teriam se disposto a compartilhar comigo um pouco
de seu tempo e sua visão de mundo.
O pai de Komãyari, Seu Cláudio, me disse um dia, enquanto bebíamos
cerveja de mandioca, que eu estava começando a “ver como o Ashaninka vive”,
depois de passado um tempo na Apiwtxa. Mas ressaltou, em seguida, que para
saber mesmo, só se eu ficasse lá por uns dez anos.
Além do tempo curto, as condições do meu campo foram dadas pelos
movimentos e pela forma de organização da comunidade, e a família Piyãko foi,
sem dúvida, mediadora do que pude ver. Foi da casa de Isaac, a partir dela, que
me desloquei para outros lugares, e, principalmente, foi com sua família que
circulei na maioria do tempo.
Outra dificuldade que tive foi no levantamento de informações sobre as
relações de parentesco que envolvem o conjunto da comunidade. A falta desses
dados certamente coloca problemas para o presente trabalho.
No capítulo I, busco apresentar uma leitura da história dos Ashaninka do
rio Amônia, partindo de uma escala mais distante, para chegar até a comunidade
da Apiwtxa hoje. O objetivo dessa primeira parte é esboçar uma compreensão
sobre os movimentos ashaninka, buscando traçar as fronteiras móveis da
identidade e da alteridade, para chegar até a criação da vida em “comunidade”,
em torno de uma escola. O capítulo II trata, especialmente, das novas
configurações políticas que se produziram com a vida em comunidade,
apresentando as dinâmicas de emergência de um novo modelo de liderança
“misturada”, que produz por contraste um conjunto de pessoas “puras”. No

5
capítulo III, discuto a produção de pessoas e conhecimentos fora da escola, nos
contextos “tradicionais”. O capítulo IV centra-se, objetivamente, na escola e em
seus modos de funcionamento entre os Ashaninka do rio Amônia. O capítulo V,
por último, busca, a partir da descrição dos eventos que aconteceram no
contexto de uma festa que celebra anualmente a demarcação da TI Kampa do
Rio Amônia, homologada em 1992, apontar o lugar da escola na recriação de
contextos para a circulação de saberes não escolarizados.

6
Capítulo I - Seguindo linhas de história ashaninka

1.1 - Ao longe: fluxos e fronteiras da alteridade


Falantes de uma língua da família arawak e pertencentes a um conjunto
que foi descrito como arawak pré-andino ou arawak sub-andino, conhecidos
como Campa ao longo de toda a história de seu contato com os brancos, o povo
que inspira o presente trabalho se reconhece como Ashaninka ou Asheninka -
nós humanos (Mendes 1991)3. O coletivo Ashaninka-Asheninka é um dos mais
populosos dentre as populações indígenas amazônicas, mas as estimativas
numéricas variam consideravelmente. No Peru vivem nos rios Perené, Tambo,
Ene, Pichis, Urubamba e Pachitea, além da área montanhosa de interflúvio dos
rios (Rojas, 2002)4. Lenaerts (2004), utilizando-se de dados levantados pelo
censo peruano em 1993, contabiliza pouco mais de 51 mil pessoas (p.23)
somente no Peru. Para a mesma época, escrevendo em 1992, Veber sugere que
o número variava entre 50.000 a 80.000 (1992: 52), e em 2007 (2007: 5) sugere
um número aproximado de 90.000 pessoas, constituindo provavelmente “o maior
grupo etno-linguístico na bacia amazônica hoje” (1992: 52). Em 2007, um novo
censo chegou a um contingente populacional ainda mais expressivo: 97.477
pessoas5. A este total, deve somar-se aqueles que migraram para o que hoje se
encontra definido como território brasileiro, para viver às margens de rios
acreanos, precisamente os rios Amônia e Breu, no Alto Juruá, no município de
Marechal Thaumaturgo, e no Rio Envira, que tem a cidade de Tarauacá como
aquela mais próxima. Assim, no Brasil, encontram-se em sete diferentes Terras
Indígenas, todas homologadas.6 Delas, cinco são compartilhadas com outros
povos, sendo apenas as TIs Kampa do Rio Amônia e Kampa do Igarapé
Primavera habitadas somente pelos Ashaninka. No Rio Amônia vive cerca de

3
Em oposição à palavra nosheninka, a palavra isheninka retira aquele que fala da relação: são os
parentes dele/ dela.
4
Lenarts (2004: 23), por outro lado, distingue as áreas de ocupação e pertencimento Ashaninka e
Asheninka de forma que o primeiro termo corresponderia aos que moram nos rios Tambo, Ene e no Alto
Perené, e o segundo àqueles não só no Gran Pajonal, mas também aos do Rio Pichis e os da região do
Ucayali.
5
Informação disponível no site do Instituto Socioambiental (ISA), na parte referente ao povo Ashaninka.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ashaninka. Acesso em 10/09/2018.
6
São elas: Kampa do Rio Amônia; Kampa do Igarapé Primavera; Kampa e Isolados do Rio Envira;
Kaxinawa/Ashaninka do Rio Breu; Kaxinawá do Alto Humaitá; Riozinho do Rio Envira; e Jaminawa/Envira.

7
metade da população total de mais de 1.6007 pessoas. Em 2010, o Censo do
IBGE contabiliza 414 moradores nessa TI Ashaninka, mas em 2015 esse número
já passava dos 8008.
Como apontam Veber e Hvalkof, (2005) persiste uma imprecisão nas
tentativas de dar conta das variações – linguísticas, ambientais, nas relações
com outros povos (indígenas ou não) – que a palavra Ashaninka, como
referência a um povo, não deixa ver. Weiss utiliza Campa para caracterizar dois
subgrupos que para ele estão englobados no termo, ainda que para o autor
tratem-se de sistemas culturais distintos: os Campa ribeirinhos – Ashaninka, e
os Campa do Gran Pajonal – os Asheninka. Se Weiss (1974; 2005) sugere que
as diferenças linguísticas entre os dois grupos são superficiais, variações
dialetais, Veber e Hvalkof (2005), inspirados no trabalho do linguista David
Payne, apontam que longe de pequenezas, as diferenças podiam mesmo
embaralhar a comunicação, e assim propõem a existência de duas línguas
distintas. Ashaninka e Asheninka, além disso, veem-se como dois grupos
distintos (Veber, 2007 Hvalkof e Veber, 2005; Weiss, 2005). Meus interlocutores
no Rio Amônia denominam-se Ashaninka ou Asheninka sem seguir essa
distinção, mas se referem a sua língua como asheninka, e oscilam entre ver a
todos os Arawak sub-andinos como seus iguais e a apontar as inúmeras
diferenças entre eles, que podem ser descritas por vezes dentro de uma mesma
comunidade9. Adotarei nesta tese os termos Ashaninka para falar daqueles com
quem convivi, estendendo também em momentos específicos seu uso para dar
conta do “povo” (principalmente levando em consideração que a maioria das
fontes utilizadas são a respeito dos grupos considerados ribeirinhos), e também
porque os trabalhos existentes sobre a região do Alto Juruá adotaram esta
convenção, e respeitarei as definições utilizadas por cada autor quando me

7
Informação disponível no site do Instituto Socioambiental (ISA), na parte referente ao povo Ashaninka.
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ashaninka. Acesso em 10/09/2018.
8
Informação repassada pela equipe de saúde do Polo de Saúde Indígena que atende a aldeia, e também
pelos responsáveis (da Secretaria de Assistência Social) pelo recadastramento de famílias indígenas no
Programa Bolsa-Família no município de Marechal Thaumaturgo.
9
Os autores do capítulo sobre os Asheninka no volume V do “Guia etnográfico da Alta amazônia” (2005),
Hvalkof e Veber, sugerem que “[p]ossivelmente a região do Ucayali foi ‘colonizada’ diretamente pelos
pajolinos [os Asheninka do Gran Pajonal] através de suas antigas rotas comerciais em algum momento de
um passado do qual ninguém se recorda” (p.159). Lenaerts (2004), que trabalhou com aldeias no Peru e
em uma comunidade no rio Envira, em território brasileiro, utiliza a denominação Asheninka para se
referir aos grupos que vivem no Brasil, inclusive os do Alto Juruá.

8
referir a sua obra. Mas afinal, porque é tão difícil encontrar os limites e interiores
da identidade Campa?
A história dos Ashaninka-Asheninka com os brancos se deu através de
diferentes eventos de contato que variaram não só no tempo, mas também de
acordo com a região ocupada. As missões jesuítas, o empreendimento
caucheiro, o atravessamento pela guerra entre os senderistas10 e o governo
peruano, o sistema de extração de madeira, tudo isso marca momentos distintos
da história ashaninka nos últimos 500 anos. Aquilo que sabemos de antes da
entrada em cena dos brancos é o que foi recolhido e descrito nos relatos
missionários produzidos no início da colonização, além das reverberações dos
encontros que haviam entre as gentes e os modos de se viver, como a mitologia
dos povos da floresta do sopé andino deixa ver (Renard-Casevitz, 1985).
O Império Inca reinava nas montanhas andinas, mas viu frustradas as
suas tentativas de dominação dos povos Anti – denominados assim como
conjunto pela lente dos colonizadores espanhóis (Weiss, 2005: 6), e
correspondente precisamente aqueles grupos das florestas densas, entre eles
os Ashaninka, cujos movimentos conjuravam a emergência de um poder central
hierarquizado, mantendo-se em grupos familiares autônomos. Os modos de
ocupação do território e de organização social e política fez-se limite para a
incorporação dessas “sociedades contra o Estado” pelos Incas.11 Não eram, no
entanto, entidades isoladas – os povos da floresta e os povos das montanhas
altas – pois uma relação equilibrada pela guerra e pelo comércio animava essa
fronteira. Essa rede de comércio entre os povos Anti e os Incas, baseava-se num
fluxo de produtos como mel, tabaco, algodão no sentido floresta-Andes, e
tecidos, objetos de metal no sentido terras altas-terras baixas (Hvalkof e Veber,
2005; Renard-Casevitz, 1993). A guerra e a ativação de redes de intercâmbio e
comércio eram, como geralmente o são, dois polos de uma mesma relação
oscilante e complementar. Entre os povos Arawak e Pano também se constituía
uma larga malha de circulação de produtos, o principal deles o sal.

10
Sendero Luminoso, grupo de guerrilha de inspiração maoísta que atuou também no território
tradicional campa, provocando violências diversas e a morte de milhares de pessoas colocadas entre os
senderistas e as forças nacionais.
11
“Sociedades contra o Estado” é como Clastres caracteriza os coletivos humanos que ativamente
impedem a emergência de um poder centralizado e a divisão interna entre dominantes e dominados
(2003).

9
Renard-Casevitz (1992: 200) sugere a emergência de uma solidariedade
entre os grupos das florestas, formada da oposição em bloco, muitas vezes
impulsionada em confederações guerreiras, contra inimigos comuns – como o
Império dos Inca e a frente colonial espanhola. Essas ações que coordenavam
grupos que se reconheciam como distintos e mesmo como inimigos, como
alguns arawak em oposição aos [povos de língua] Pano, no entanto, foram
sempre temporárias e fluidas. Como sugeri acima, encontrar qualquer unidade
evidente ashaninka não é tarefa fácil, talvez sequer possível tamanha a
instabilidade e a existência de fluxos e de segmentações não hierarquizadas e
cujas associações são momentâneas.
Entre os povos Anti encontravam-se os diferentes grupos Arawak pré-
andinos, como os Ashaninka, os Matsiguenga, os Nomatsigenga, além dos
Yanesha e dos Piro, que se distinguem marcadamente dos primeiros em termos
culturais e linguisticos. A região também era (e é ainda hoje) ocupada por povos
de língua Pano, como os HuniKuin e os Shipibo-Conibo. Diversos autores
buscaram traçar os limites entre interioridade e exterioridade para os Ashaninka,
de modo a definir ou problematizar sua composição enquanto grupo étnico. O
que parece configurar-se comum é a oscilação, o movimento entre unidades
menores dipersas ou englobadas não permanentemente.
Isso não significa que os Ashaninka sejam grupos atomizados e sem
qualquer atravessamento comum. Ao lado das impossibilidades de descrever um
“conjunto étnico”, percebe-se um forte sentimento de pertencimento e de
produção de uma origem e de um modo de existir compartilhados. A própria
autoidentificação como Ashaninka ou Asheninka implica o reconhecimento de
um “nós” que supera os laços mais estreitos de parentesco, uma vez para fazer
referência aos parentes próximos se utiliza a palavra nosheninka. Em ambos os
casos aquele que fala se inclui na relação. Como veremos na continuidade desse
capítulo, os grupos Ashaninka-Asheninka fizeram e fazem sempre coexistir uma
forte autonomia de suas unidades concretas (ainda que também oscilantes), os
grupos domésticos ou assentamentos familiares, e uma rede de relações de
afinidade extensa, conectadas através, especialmente, do piyarensti, a bebida
de mandioca fermentada que funciona como articulador político (Mendes, 1991)
entre suas unidades mais ou menos estáveis, e de um sistema de intercâmbio
que faz operar redes de relação em níveis e localidades distintas, o ayompari,

10
importante para as relações de troca e a produção de afinidade nos grupos
ashaninka-asheninka. Komãyari, professor na Apiwtxa traduz o termo ayompari12
por “pessoa estranha/ parceiro de negócios”, e Killick (2008), define a rede de
relações comerciais entre parceiros no sistema ayompari como “a prática de
produzir relações formais duradouras entre parceiros de troca (ayompari) de
áreas distantes” (p.24). Para o etnólogo, o piyarentsi e o ayomapari funcionam
em diferentes escalas, interligando o local ao que está mais distante, que
conectam indivíduos e grupos familiares e, ao mesmo tempo, possibilitando a
autonomia e a independência entre as unidades menores (Id.).
Voltando à busca por um conjunto totalizante, uma discussão que permeia
diversos trabalhos sobre os Ashaninka é a tese da proibição da endoguerra,
sugerida por Renard-Casevitz (1985), entre os grupos Campa, que determinaria
então os contornos desse conjunto. Alguns questionam a possibilidade de uma
unidade, como é o caso de Mendes (1991: 116), que questiona a hipótese da
proibição da endoguerra, sugerindo que Renard-Casevitz minimiza a importância
do conflito e da guerra na esfera interna. Weiss (1972) identifica mesmo os dois
sub-grupos que descreve, os Campa ribeirinhos e os Campa montanheses,
como potencialmente inimigos. O que o conjunto de hipóteses formuladas
através dessas fontes aponta é que os Ashaninka foram (e são, como pretendo
apontar) capazes de manejar fluxos de abertura e fechamento para o Outro,
fazendo do movimento aquilo que melhor lhe caracteriza e tornando qualquer
identidade relacional.
O contexto das transformações que reorientaram as políticas indigenistas
no Brasil e no Peru a partir dos anos 1980, especialmente a partir da titulação de
Comunidades Nativas, no caso do segundo país, e da demarcação de Terras
Indígenas, no caso brasileiro, afetou este universo, mas não o alterou
substancialmente, de modo que, como irei discutir a respeito dos Ashaninka do
Rio Amônia, esses indígenas se mantêm produzindo mecanismos para evitar
uma unificação estável.
A ideia de um conjunto que de suas similaridades pode se destacar, sob
determinados prismas, como unidade, abarcando numa mesma denominação
Arawak sub andinos ou Arawak pré-andinos (Gow, 2002), incluiria três línguas

12
Segundo Hvalkof e Veber (2005), uma provável origem da palavra ayompari é a termo em espanhol
“compadre”, que se transforma em “cumpari” em quéchua antes de chegar à sua forma final (p. 228).

11
provenientes do tronco Maipuran: “Piro, os vários dialetos Campa-Matsiguenga,
e Yanesha” (Gow, 2002: 149). Gow, no entanto, duvida da história antiga de
integração dos Piro nas redes Anti, sugerindo que as relações entre eles e os
Campa e Yanesha podem ao reverso ser de data recente (Id.). Como aponta o
antropólogo, outro pesquisador, Gerald Weiss (1972), já havia notado que os
Piro figuravam deslocados do conjunto; Renard-Casevitz sugeriu que isso era
fruto da prolongada influência, sobre eles mas também sobre os Yanesha, de
seus vizinhos falantes de língua Pano, através de quem se modificaram
progressivamente (1993). Gow reconhece que esse possa ser o caso para os
Yanesha, mas nota que entre os Piro, as evidências linguísticas sugerem pouca
efetivação dessa influência (2002: 152). Gow afirma que em determinados
contextos os Piro reconhecem outros Arawak pré-andinos, no caso os Campa,
como “gente como nós”, identificação que repousa num modo de viver
compartilhado – todos usam roupas, comem comida cozida e temperada, tomam
cerveja de mandioca (2002: 154). Essa unidade só pode aparecer, no entanto,
aponta Gow, em situações em que se se busca diferenciar-se dos “índios
brabos”, como os Amahuaca, de língua Pano (Id: 155). Em outros contextos, o
“gente como nós” pode ser referência aos Conibo com quem partilham certa
“estética da vida” (Id.), e que não encontra semelhança com os Campa.
O modelo de identidade preconizado por noções englobantes como as de
Arawak pré-andino ou Arawak sub-andino, ressalta Gow, é estranho ao que se
conhece sobre como os indígenas amazônicos concebem identidade (2002:
157). Por isso, sugere, modelos como esse podem ser interessantes como
instrumentos analíticos, especialmente em estudos etnohistóricos (Id.), sob
lentes que nos permitam olhar a certa distância e ignorar o que diverge em prol
de um entendimento mais global. Não devem, no entanto, ser confundidos com
modelos nativos e com categorias de sentido dos próprios grupos objetos dessa
classificação (Id.). Gow conclui então que:

Pouco se sabe sobre como as relações de troca


interétnicas eram pensadas exatamente e como eram
constituídas socialmente pelos indígenas. No entanto, uma
questão deve ser destacada a respeito desse comércio: as
relações de troca não parecem afetar a identidade de seus
componentes. Isto é, quando os Piro realizam trocas com
os Campa ou com os Matsiguenga ou com os Conibo, isso

12
não significa uma fusão de identidades. Na verdade,
suspeito que as relações de troca eram o que constituíam
os seus componentes. Seguindo Viveiros de Castro, é a
posição global em relação ao outro que constitui o eu: é o
fato de que os Campa e os Conibo existem como parceiros
de troca o que constitui os Piro, e reciprocamente (Gow,
2002: 163).

Levando a sério o alerta de Gow, é necessário ajustar as lentes para ver


os diferentes contextos e, sobretudo, desconfiar das unidades estáticas e
lembrar que na Amazônia indígena, a posição de sujeito é sempre relacional, e
a maneira de ver e de ser visto pelo outro depende de onde se fala e da situação
donde a enunciação parte.
Aquilo que é consenso entre os antropólogos que trabalharam com os
Ashaninka e pelos missionários que insistiram mesmo depois de muitas
tentativas frustradas de podar a “inconstância dos selvagens”13, era que suas
redes de relação eram feitas mesmo de fluxos, de eixos de distribuição, de linhas
que se encontravam em pontos distintos. Um desses pontos estratégicos do
controle de prestígio e mercadorias era o Cerro de la Sal, centro produtivo da
iguaria tão apreciada pelos diferentes povos do sopé andino. Localizado na
confluência do território Yanesha e Ashaninka, o Cerro de la Sal fazia orbitar em
torno de si redes de intercâmbio. Dessa forma, fazia circular, através de homens
prestigiosos, chefes de grupos domésticos campa, por exemplo, as mercadorias
desejadas para aqueles que se mantinham mais afastados dos pontos de
contato, antes e depois da colonização espanhola. Santos Granero cita um
missionário (Fernando de San Joseph) que escreveu em 1716 que os diferentes
grupos da região se proviam ali de sal, assim como de ferramentas (1993: 72).
Foi justamente na confluência dos rios onde vivem até hoje os Ashaninka,
povo afeito de andanças e capaz de cobrir de relações a malha de um território
tão extenso, onde os jesuítas fundaram suas missões, as duas primeiras nas
cercanias do Cerro de la Sal (Weiss, 2005: 9; Santos Granero, 1993: 70). Desses
pontos que atravessavam os fluxos ashaninka, os missionários buscavam atrair
e seduzir os Campa oferecendo as tão desejadas ferramentas de ferro. Depois

13
Viveiros de Castro percebe, a partir das descrições deixadas por missionários sobre o período colonial,
que o indígena era vistos como sujeito que “ávido de novas formas, mostrava-se entretanto incapaz de
se deixar impressionar indelevelmente por elas” (2002: 184).

13
da atração inicial, os Ashaninka não permaneciam por muito tempo nessas
missões. A proliferação de doenças, agravada pela vida aglomerada, gerou
novos movimentos de dispersão (Hvalkof e Veber, 2005). Além disso, os
Ashaninka reagiram ao empreendimento colonial com o assassinato de diversos
padres.
Em 1642, um homem chamado Juan Santos Atahualpa, autodesignado
filho dos Incas, uma figura provavelmente mestiça e que encontrou seguidores
entre os povos Anti com seu discurso contrário às forças coloniais, liderou uma
revolta de proporções impressionantes e que foi capaz de manter as incursões
espanholas distantes por mais de um século (Hvalkof e Veber, 2005; Brown e
Fernandez, 1991). Por que os Ashaninka seguiram Juan Santos? Alguns autores
(Brown e Fernandez, 1991; Zolezzi, 1994; Pimenta, 2002) apontam o caráter
messiânico do pensamento ashaninka, e sugerem a associação entre Juan
Santos e o “deus tecnológico” de sua cosmologia, Inka. Este último, detentor do
conhecimento necessário para a criação de todas as coisas – de aviões a
motores –, em versões da mitologia do grupo, retornará um dia para reverter a
desigualdade tecnológica entre os brancos e os Ashaninka.
O domínio das técnicas da produção de coisas como aviões, espingardas
e ferramentas de metal, era de direito dos Ashaninka, pois foi Pawa, sua
divindade maior, quem deixou para eles quando subiu ao céu. O tema da
assimetria material entre eles e os brancos, objeto desse mito, encontra nas
versões recolhidas em regiões distintas, variações importantes. Em alguns
casos, como entre os Ashaninka no Rio Amônia, os brancos roubaram o
conhecimento; em outros, os brancos sequestraram Inka e o obrigaram a lhes
ensinar as coisas; ainda existem versões em que Inka escolheu ir com os
brancos e produz voluntariamente para eles tudo o que existe (Zolezzi, 1994).
No caso dos Yanesha (Santos-Granero, 1993), onde uma mitologia similar se
faz presente, o tema central não é o do roubo do conhecimento, mas o da má
escolha dos antigos que gerou como resultado a assimetria material.
Nas versões Ashaninka, encarregado de ensiná-los ficou Inka ou
Pachakamaite (Zolezzi, 1994; Pimenta 2002), um dos filhos de Pawa.
Excetuando a versão da escolha voluntária de Inka por ajudar os brancos, deixa-
se a ver no mito o comportamento anti-social e sovina que caracteriza os
brancos. Por terem realizado a espoliação daquilo que era de direito dos

14
Ashaninka, os brancos obtiveram o conhecimento de como fazer todas as coisas,
exceto aquelas que os Ashaninka já haviam aprendido, como a usar a coca e a
ayahuasca, a plantar mandioca, a cantar nas festas de piyarentsi. Entre os
Ashaninka do Rio Amônia, como já notou Pimenta (2002), Pawa teria deixado o
conhecimento sobre tudo o que se pode fazer anotado num papel, sob
responsabilidade de Inka. Os espanhóis então roubaram o papel, e aprenderam
a fazer as coisas porque sabiam como ler as palavras no papel. Discutirei a
relação dessa ideia com a escola no capítulo IV.
A dependência tecnológica dos Ashaninka com relação aos brancos foi
impulsionada pelo sistema colonial que fazia das ferramentas de aço a força de
atração para os povos da floresta tropical nas cercanias do sopé andino. Santos-
Granero (1993) aponta que diante da demanda dos indígenas pelas ferramentas,
foram construídas em missões, que ocupavam territórios Yanesha e Ashaninka,
ferrarias que depois do levante de Atahualpa foram mantidas e aprimoradas
pelos grupos Arawak, que desenvolveram então tecnologias para produzir
autonomamente aquilo de que haviam se tornado dependentes. Já no contexto
do chamado “boom do do caucho”, no período republicano, tratou-se de destruir
toda e qualquer ferraria, após a reabertura da região, obrigando os índios a se
aproximarem novamente dos brancos, depois do século que se seguiu ao
levante liderado por Juan Santos Atahualpa (Santos Granero 1993; Zolezzi,
1994). No entanto, pode-se questionar a tese de Zolezzi, de que neste momento
chega ao fim a autossuficiência dos Ashaninka. Feitos de grupos comerciantes
que construíam seu mundo sempre em relação ao Outro, a incorporação daquilo
que não é próprio é parte da constituição como um “nós”. A ideia de
independência do outro me parece estranha ao pensamento ashaninka, e, pode-
se dizer, aos pensamentos indígenas nas Terras Baixas. O que os brancos
impediram, com a recriação da exclusividade na produção de ferramentas de
metal, foi a possibilidade de exercer domínio sobre as redes de relação,
submetendo todos a sua mediação. O problema seria não a necessidade do
Outro, mas o controle desse Outro sobre as relações a partir da usurpação – por
terem roubado o conhecimento que fora destinado aos Ashaninka, os brancos
buscaram controlar os fluxos e pontos de circulação.

15
1.2 - Os tempos do caucho e as dinâmicas ashaninka
Renard-Casevitz (1993) sinaliza uma contradição que aparece nos
escritos sobre a região e a organização dos Arawak sub andinos: de um lado
uma descrição que sugere uma coisa amorfa, sem qualquer estrutura central e
feita à imagem da “selvageria e do caos libertário” (p.26), de outro se fala da
existência de grandes chefes capazes de mobilizar e fazer orbitar em torno de
seu domínio grupos de uma extensa região para expulsar missionários, colonos
e outros invasores (Id.). A autora dissipa, porém, a estranheza a partir de uma
análise sobre o funcionamento desse poder dos “strongman” (Weiss, 1974). A
chefia ashaninka não se produz como cargo, mas como meio de colocar
diferentes grupos autônomos em relações de afinidade. Segundo Hvalkof e
Veber, entre os Ashaninka-Asheninka:

O líder não existe como função pela necessidade do grupo


de ter uma liderança; pelo contrário, o grupo existe graças
à função do líder como centro em torno do qual se reúnem
diversas famílias. Suas capacidades e qualidades pessoais
constituem um elemento central. (...) Desta maneira, de
uma perspectiva temporal, se pode observar uma flutuação
constante entre uma sociedade muito atomizada e uma
sociedade momentaneamente centrada em torno de um
uma série de ‘grandes’ líderes (2005: 171)14.

Esses mesmos autores sugerem que mesmo o sucesso da rebelião de


Juan Santos Atahualpa, se deu na manutenção da forma atomizada e sua
articulação em redes para o comércio interno e a guerra externa.
Nos fios de história que busquei costurar, percebe-se que o que é
constante é o desejo de buscar relacionar-se com o Outro mantendo níveis
distintos de conexão, traçando redes em que alguns de seus grupos mantinham-
se distantes porque outros, com quem teciam relações através dos sistemas
tradicionais Arawak, aproximavam-se de pontos de circulação interétnica. Como
definiu precisamente Mendes, a respeito do sistema de intercâmbios tradicional
Ashaninka,

14
Esta ideia remete-nos a proposta de Clastres sobre o estatuto da chefia indígena (2003) e o paradoxo
do chefe sem poder.

16
Os grupos que habitam regiões mais próximas às fazendas
trabalham para os patrões e são pagos com mercadorias
(era o caso dos Ashaninka do Amônia até recentemente);
mas os Ashaninka que se recusam a entrar em contato
direto com os brancos, e que habitam regiões mais
afastadas, dentro da floresta fechada, conseguem esses
manufaturados por meio de seus ayumpari [parceiros de
troca] (1991: 22)15.

A organização em pequenos grupos sem poder central, permitiu aos


Ashaninka impedir o avanço do Império Inka, uma vez que “a eventual conquista
de um grupo local nada significava face as ambições do Império que visavam a
submissão de conjuntos étnicos inteiros” (Mendes, 1991: 14). O sucesso da
rebelião de Juan Santos Atahualpa no século XVII deve-se também às suas
formas. Hvalkof e Veber (2005) sugerem que durante o levante, não houve um
englobamento dos grupos numa unidade, mas a manutenção dos fluxos de
comércio entre grupos que se mantiveram espacialmente e politicamente
separados, ainda que unidos contra um inimigo comum.
Com relação aos modos de funcionamento das redes comerciais no
tempo do caucho, pode-se dizer que este era um sistema de tipo fractal (Carneiro
da Cunha, 1997: 10), assim como era aquele dos intercâmbios tradicionais
Arawak pré-colonização. Isto porque, como sugere Carneiro da Cunha: “é esta
a própria essência da rede de crédito e de produção de caucho” (Id.), distribuído
ao longo dos rios e de pontos do sistema de aviamento. No entanto, ressalta a
autora, não se deve por essa semelhança perder de vista a diferença radical
entre os dois sistemas,

[a] saber, aquela que separa um sistema igualitário de um


sistema de dominação. Sob o antigo regime, todos os
pontos de vista, ao mesmo tempo homólogos e
independentes entre si, eram equivalentes: não havia
ponto de vista privilegiado sobre o conjunto. Ao contrário,
no caso do aviamento, estrutura de ordem, o crédito e a
dívida eram transitivos: transmitiam-se entre negociantes,
patrões, subpatrões e seringueiros. De tal sorte que a
jusante se tinha um ponto de vista relativamente "mais
geral" sobre quem se achava a montante. Cada patrão ou
subpatrão, por assim dizer, abraçava com o olhar o

15
Um sistema de comércio funcionando por pontos em diferentes posições também é descrito para as
Guianas (ver, por exemplo, Costa, 2007).

17
conjunto das ramificações e das capilaridades dos rios e
afluentes até o menor igarapé que suas mercadorias
atingiam, e que, em troca, o abasteciam de caucho. Sem
deixar de ser particular, em cada foz de rio o ponto de vista
tornava-se assim mais englobante (2007: 10-11).

No que diz respeito às redes de relações comerciais mobilizadas pelos


patrões madeireiros no rio Amônia, num período posterior, o mesmo modelo de
exploração do sistema de aviamento foi ativado. Foi contra esse sistema
englobante que os submetia aos patrões, no qual as trocas favoreciam sempre
a esses brancos e não aos Ashaninka, que, no final dos anos de 1980, os
moradores do rio Amônia se rebelaram. Como transcrevi acima, Mendes, em
1991, aponta que os Ashaninka naquela região viviam até pouco antes daquele
momento sob influência direta dos patrões madeireiros, trabalhando para eles,
ainda que mantendo o sistema em que determinados grupos que mantinham
contatos mais intensos com patrões faziam chegar as mercadorias para aqueles
que escolhiam manter-se em relativo afastamento. Com a criação da
comunidade, com a escola e a cooperativa como novos meios de manejar suas
relações com os brancos, os Ashaninka vivem hoje a reformulação desse
modelo.
Muito já se escreveu sobre as transformações e a violência relacionadas
à exploração intensiva do caucho e da seringueira, árvores nativas amazônicas,
para a produção de borracha para uma indústria de demandas ilimitadas. No
final do século XIX, este produto virou o elemento em torno do qual diversos
movimentos migratórios ocorreram, assim como novos ciclos de relação com os
brancos, no caso dos Ashaninka. O empreendimento caucheiro e seringueiro
atraiu trabalhadores de outros lugares para a Amazônia, como no caso brasileiro,
com a expressiva migração nordestina para a região norte. O estado do Acre,
especificamente, era povoado apenas por populações indígenas antes desse
momento, e era até 1903 parte da Bolívia, sendo anexado posteriormente à
descoberta das riquezas que a presença considerável de árvores seringueiras
prometia, ainda que a região do Alto Juruá tenha sido disputada não com a
Bolívia, devido a sua distância, mas pelo Peru, com o qual faz fronteira (Pimenta,
2002).

18
A economia da borracha funcionava através do modelo do aviamento, que
se baseava na entrega da produção de caucho ou seringa em troca de créditos
que posteriormente seriam convertidos em bens para circular em sentido oposto.
Na prática se realizava como um sistema de dívidas que se constituía numa
hierarquia entre os grandes patrões da borracha – alguns se tornaram mesmo
figuras históricas, como Fitzcarraldo -, aqueles intermediários brancos
localizados em diversos pontos entre a floresta e as cidades, e os trabalhadores
diretos (Gow, 1991: p.41). Os Ashaninka, mestres nas artes do comércio e das
articulações em extensas redes, operaram historicamente, como vimos, sem um
controle central, num sistema de ramificações e distribuições entre grupos
autônomos, que atravessava essa rede comercial. Já no caso do modelo do
aviamento, explica Gow:

Todo o sistema estava baseado no controle sobre o


trabalho: havia sempre uma oferta menor do que a
demanda de trabalho na indústria da borracha, devido a
sua constante expansão. Apesar da imigração massiva
para a Amazônia, a oferta e a demanda nunca se
equalizaram (1991: 41).

Os indígenas foram, durante o empreendimento caucheiro e seringueiro,


alvo das chamadas “correrias”, ataques, assassinatos e captura (no caso de
mulheres e crianças), pois eram vistos como obstáculo para o avanço das áreas
de exploração para a retirada da seringa ou na derrubada do caucho. Por outro
lado, eram a mão-de-obra mais qualificada pelo seu conhecimento da floresta e
das dinâmicas da região. Migrantes nordestinos e indígenas tornaram-se dois
polos centrais de exploração que se encontravam sob o campo de dependência
dos patrões seringalistas.
A ocupação permanente dos territórios ashaninka no Brasil foi um
processo que teve impulso com a indústria caucheira, mas são muitas as lacunas
que colocam o desafio de apresentar com precisão qualquer reconstituição
desses eventos. A presença ashaninka no Alto Juruá remonta ao século XVII,
mas foi somente no início do século XX que o lugar passou a ser residência
permanente. No alto e médio curso do Amônia viviam outros grupos indígenas,
provavelmente de língua Pano, principalmente Amahuaca e Santa Rosa
(Pimenta, 2002). Estima-se que os Santa Rosa tenham sido praticamente

19
eliminados por epidemias, mas que alguns de seus descendentes diretos vivam
ainda hoje no Amônia, na área que no presente é reconhecida como TI Apolima-
Arara. Os Amahuaca que ali viviam foram exterminados pelos Ashaninka (mas
não no Peru) que, atraídos por patrões como “guardiões dos seringais”,
promoviam ataques aos “índios brabos”.
Especula-se, então, que o principal motivador das primeiras migrações
tenha sido consequência dessa percepção, pelos patrões da borracha, de que
alguns índios eram aliados, aqueles que aceitavam trabalhar diretamente na
extração do caucho ou da seringa, e de que outros deveriam ser retirados do
caminho, aqueles como os Amahuaca que não aceitavam participar dessas
relações com os brancos, e atacavam colocações de seringa, roubavam as
ferramentas dos seringueiros e impediam a abertura de novos caminhos na mata
para a expansão da extração. Os Ashaninka não participaram da exploração
seringueira que ocasionou a sedentarização nas colocações para muitos grupos
indígenas no Acre, no entanto, empregaram-se na retirada do caucho, conciliável
com seu padrão de deslocamento, uma vez que o caucho, diferente da
seringueira, precisa ser derrubado e pede sempre a busca por novas áreas para
extração.
Assim, a busca por um bom patrão, escapando daqueles considerados
violentos e mais exploradores, além das guerras com seus inimigos Amahuaca,
fizeram com que algumas famílias que já conheciam a região se assentassem e
atraíssem assim outras famílias. Esse movimento em direção ao Alto Juruá não
se deu de uma só vez, e nem de forma permanente ou em uma só direção.
Alguns chefes de família chegaram bem depois, para trabalhar na exploração da
madeira, num novo ciclo de patrões. Outros ficaram por um tempo e depois
seguiram para outros locais, como os rios Breu e Envira.
O que se sabe é que essa movimentação se deu provavelmente partindo
da região do Ucayali, e seus caminhos eram traçados por varadouros (vias
terrestres abertas na mata), ou por navegação. Recentemente foi publicado o
“Etnomapeamento da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia: o mundo visto de
cima” (Apiwtxa et al, 2012), e para a sua produção foram levantados dados
importantes sobre esses deslocamentos. Wewito, professor ashaninka, conta um
pouco desses caminhos utilizados nos primeiros deslocamentos e ativados até
os dias de hoje:

20
A gente colocou um caminho aqui [no mapa] do Amoninha
que vara para o Tamaya, do Tamaya segue e vara para o
Sheshea, e outro aqui que vara do Tawaya, vara paras as
cabeceiras do Mashante, e do Mashante vara para o
Tamaya também. Era caminho tanto de Ashaninka, como
também de madeireiros, cacucheiros peruanos que vinham
aqui no Amônia comprar farinha, alguns mantimentos para
o trabalho deles aqui nessa região de fronteiras Brasil e
Peru. Eles faziam essa varação e vinham comprar alguns
materiais que faltavam, ao invés de descer o rio Tamaya e
ir lá para Pucallpa que era muito distante. Eles faziam essa
rota aqui que ficava mais perto. Aqui já existia patrão.
Então era mais fácil eles virem para cá do que descer para
Pucallpa. Tem outro caminho que a gente fez. Um caminho
de invasão dos peruanos também nessa época do caucho,
das madeiras, de carne, de pele de animais. (...) Tem
outros caminhos que a gente faz para visitar os parentes.
Por exemplo, parentes que moram aqui no Amônia, têm
parentes que moram no Breu, então eles fazem uma
varação para o Breu. Tem gente que vem do Envira
também pelo caminho. Tem gente que vara por terra, vem
para o Breu, desce o Breu, desce o Juruá sobe o Amônia
e chega até aqui até nós. Outros Ashaninka também têm
parentes no Sheshea. Para chegar lá, eles sobem o
Amônia e nas cabeceiras do Amônia, eles varam para o
Sheshea. Tem outros que varam da ponta da área para o
rio Tamaya, também para visitar os parentes. Então, esses
são os caminhos mais usados. Tem também um caminho
do Sawawo para Tipisca, que é um município que vem
subindo o rio Juruá. Dali, a gente vai para Dulce Gloria, na
foz do Vacapistea, onde tem uma comunidade ashaninka
peruana. Eles vem visitar a gente aqui, e a gente também
vai visitar eles. Esses caminhos ainda são usados para
visitas, tanto no Envira, como no Tamaya, no Sheshea e
aqui no Dulce Glória. Existe um caminho muito antigo
mesmo que vem do Pookiaki, vai para o Sheshea e depois
pro rio Amônia” (Wewito, 2004, em Apiwtxa et al 2012: 33-
34).

Os moradores do Rio Amônia relatam que a primeira família ashaninka a


ocupar o Rio Amônia foi a de um homem conhecido como Tenente. Um de seus
filhos, Bandeirão, casou-se por lá e viveu no mesmo rio até 2017, quando
faleceu16.

16
Bandeirão casou-se com Julieta, uma das filhas de Samuel Piyãko. Desde que conheci a Apiwtxa, o
homem encontrava-se adoentado. Sua casa era próxima ao rio, o que não é comum nas habitações
ashaninka, e ele passava a maior parte do dia olhando para a água. Disseram-me que ele havia sido

21
As informações mais consistentes referem-se à chegada da família de
Samuel Piyãko, que se instalou no rio Amônia provavelmente nos anos 1930,
estabelecendo-se permanentemente no alto curso do rio depois de uma visita,
junto ao seu sogro, que convenceu aos dois da vantagem da mudança. Samuel
tinha duas esposas irmãs, uma delas Mariwãtxo (Mariquinha), com quem teve
nove filhos (Pimenta, 2018) Era respeitado como sheripiari – xamã – e
demonstrou-se habilidoso em aproximar-se dos brancos e com eles fazer
negócios.
Trabalhando para os patrões, principalmente na derrubada de madeira,
mantendo o sistema de aviamento, herança das relações desiguais na produção
da borracha, esses indígenas mantinham um padrão de mobilidade
considerável, especialmente levando em conta a estratégia, já notada por
Seeger e Vogel (1978: 50.), de abandono periódico de um patrão para buscar
por outro com quem pudessem sentir-se menos explorados. Assim, da extração
de madeira e o comércio de carne de caça e pele, os Ashaninka se ocuparam
para ter acesso aos produtos manufaturados, que não só eram importantes como
produtos de uso, mas também como modo de prestígio e afirmação de grandes
homens, que inflavam assim suas redes de parentesco.
Como nota Pimenta (2002), as relações dos Ashaninka do Rio Amônia
com os brancos, se transformam na região a partir da chegada da família de
Chico Coló, que foi morar ainda criança no Alto Juruá e, quando casou-se, foi
morar no baixo rio Amônia (Pimenta, 2018: 209), iniciando o deslocamento
depois acompanhado por outros posseiros. Chico Coló é, sobretudo, o coagente
de uma aliança entre os índios e os brancos com o casamento de sua filha Piti
com Antônio, filho de Samuel. Samuel, posteriormente, tornou-se o primeiro
“chefe” do Rio Amônia com a chegada da Funai ao Alto Juruá. Através da aliança
matrimonial, Antônio, seguiu como chefe após a morte de Samuel ainda nos
anos 80, pois pôde garantir a circulação de mercadorias, o que lhe permitiu uma
posição de prestígio e sua consequente posição de influência em todo o território.

diagnosticado com Alzheimer, e pouco se lembrava. Ainda assim, moravam ele e a esposa juntos, com
mais uma neta que os auxiliava. Em 2017, quando visitei à Apiwtxa depois de quase dois anos longe,
Bandeirão estava morando com sua filha Txotxoe, do outro lado do rio. A mulher dele, já idosa, não tinha
condições de realizar os cuidados do marido, que foram ficando mais intensos. A filha me disse, enquanto
bebíamos caiçuma, que aquele era o último verão do pai - no próximo ele iria embora. Assim aconteceu,
e Bandeirão faleceu no ano de 2018.

22
Conforme detalha Mendes, os grupos domésticos ashaninka, autônomos
e marcados pelas relações de reciprocidade, são articulados através de uma
instituição, a do piyarensti, reunião para o consumo de uma bebida fermentada
à base de mandioca, que define e movimenta suas relações. Esses grupos
podem ou não se reunir em torno de um homem devido ao seu prestígio como
guerreiro (nos tempos que já se passaram), suas habilidades comercias e
decorrente capacidade de fazer pulsar as redes e a circulação das mercadorias,
ou como nos dias de hoje, devido a qualidades centradas no trato com os
brancos. Um conjunto desses grupos – que, no entanto, não se dissolvem numa
mistura – torna-se um nampitsi, o que Mendes traduz por “território político”, e
que pode ser considerado o território articulado sob a esfera de influência de um
chefe ou strongman, e definido essencialmente pela partilha da cerveja de
mandioca.
O nampitsi “aparece, sobretudo, como uma unidade política cimentada
pelo ritual do piyaretsi” (Pimenta, s/d, p.3). Um território político não significa um
agrupamento espacial das famílias que dele fazem parte, mas um recorte e
direcionamento de seus fluxos. Como descrevem Mendes (1991) e Pimenta
(2002), quando a Funai chega ao Alto Juruá existiam três importantes nampitsi,
um deles liderado por Samuel e depois por Antônio; outro liderado por um
homem conhecido como Thaumaturgo Kampa, contrário à descontinuidade das
relações com os patrões e articulador, em torno de si, de famílias “misturadas,
caboclas” (Mendes, 2002); e um último Kishare, a favor da delimitação da área
e da expulsão dos madeireiros, assim como Antônio17. Tanto Antônio quanto
Kishare receberam da Funai incentivo econômico para iniciar cooperativas. No
entanto, Kishare não foi capaz, como Antônio, de produzir para as famílias em
seu entorno o fluxo de mercadorias para manter em sua órbita um número
considerável de famílias. Aquelas lideradas por Thaumaturgo, em sua maioria,
se deslocaram e passaram a viver no que hoje é delimitado como Terra Indígena
Apolima-Arara, também no rio Amônia, a caminho do município de Marechal
Thaumaturgo.
Em meados da década de 1980, um conjunto de mudanças arrebata a
vida dos Ashaninka: deu-se o início de uma nova etapa, em níveis inéditos e

17
É interessante notar que nesse processo, a família de Piti, com o apoio dela, também teve de se deslocar
da Terra Indígena demarcada, enquanto a esposa de Antônio permaneceu vivendo com os Ashaninka.

23
alarmantes, da exploração madeireira, com a introdução de maquinários
capazes de devastar rapidamente uma extensa área (Pimenta, 2007);
simultaneamente, com a emergência de movimentos indígenas e de
seringueiros, especialmente do encontro entre a UNI (União das Nações
Indígenas) e do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), que fez florescer no
Acre, terra de Chico Mendes recém assassinado, uma Aliança dos Povos da
Floresta. Seu Antônio conta que:

Antes a gente trabalhava a madeira, vivia em todo canto. Era


muito trabalho e não tinha como a gente se juntar, antes da
Funai. A gente tirava madeira e entregava para o patrão. A
gente trabalhava muito e não dava tempo de plantar roçado,
plantava só um pouco de algodão, um pouco de macaxeira
(Entrevista na Apiwtxa, 2015).

Tratando anteriormente da chegada das primeiras famílias ashaninka ao


rio Amônia, mencionei a história de Samuel Piyãko, que há cerca de 70 anos fez
moradia por lá. Este homem, falecido em 1987, antes de ver a TI demarcada, foi
o primeiro chefe atribuído assim pela Funai, recém-chegada àquelas terras nos
anos de 1970. O papel do órgão indigenista na mudança de dinâmicas de
assentamento e de organização política de grupos indígenas já foi discutido em
muitos trabalhos, e no caso dos Ashaninka, é ressaltado tanto no caso do rio
Envira, pela antropóloga Martha Ioris (1996), quanto por José Pimenta (2002)
em referência ao rio Amônia. Este último autor transcreve as palavras de Alípio,
filho também de Samuel e, portanto, irmão de Antônio, que explica como as
coisas aconteceram naquele tempo:

Quando começou FUNAI, papai [Samuel] foi Kuraka 18.


Depois, papai morreu, ficou o Antônio. FUNAI chegou,
colocou o papai primeiro porque não tinha chefe. Primeiro,
precisava de um chefe para começar o trabalho
[demarcação da terra]. FUNAI chegou e falou: ‘Bora botar
chefe? Bora fazer comunidade’? (...) Não tinha chefe, não
tinha comunidade. Tinha só casa assim, espalhada, aqui
uma, outra lá em cima. Aí papai foi kuraka, depois o
Antônio, e fizemos comunidade (Alípio em Pimenta, 2002:
313).

18
Palavra de origem quéchua que é traduzida por chefe.

24
Tanto Ioris quanto Pimenta sugerem que a organização em comunidades
centradas num modelo de chefe como aglutinador de um coletivo totalizante
representa uma inovação nos padrões dos grupos ashaninka. Pimenta, no
entanto, afirma ser o caso de analisar essa mudança a partir da relação entre as
noções de estrutura e evento proposta por Sahlins (2008 [1981]), que sugere
que os acontecimentos imprimem elementos novos que adentram um esquema
anterior, e que são acomodados a ele, de forma que as mudanças são
manejadas pela estrutura, permitindo que ela se reproduza variando. As
capacidades comerciantes, o reconhecimento como xamã e as relações que ele
já travava com os brancos o permitiram destacar-se. Pouco tempo depois de ser
chefe, Samuel falece e é substituído por um de seus filhos, Antônio, nas
negociações com a Funai, como contou Alípio. Antônio, como ressaltei
anteriormente, casou-se com Piti, filha de Chico Coló, que habitava então a área
que pertence hoje a TI Kampa do Rio Amônia.
Francisco Piyãko, filho mais velho de Antônio e Piti, define assim a união
de seus pais:

(...) meu avô chamou meu pai e disse: ‘Vamos fazer o


casamento de vocês porque vai ser muito bom pra gente.
Vamos ver se essa família de branco tem mesmo alguma
coisa séria com a gente, e nós precisamos de alguém para
ajudar a fazer esse contato’. Então o casamento não foi feito
assim só um casamento, o meu avô já pensava na aliança
com essa família como uma porta de entrada pro contato, pra
ter mais facilidade. (...) aí ele [Samuel] foi muito claro [com a
família de Piti]: ‘Olha, eu não estou pedindo aqui a tua filha só
pra casar com meu filho, nós estamos vindo aqui numa
missão de fazer uma aliança muito forte com vocês. Ou a
gente vai firmar essa aliança com esse casamento, ou a gente
não tem mais negócio. E a sua filha, ela não vai casar só com
meu filho, ela está casando com um povo (Jornal Papo de
Índio, 30/04/2006, entrevista com Francisco Piyãko).

25
A aliança com os brancos foi efetuada num momento em que a presença
desses “outros” se fazia sentir de forma mais intensa entre os Ashaninka naquela
região. Nesse cenário, algumas famílias passaram a se organizar para reverter
o quadro que estava posto então, e emergiram no contexto interétnico a partir
dos filhos do casamento de Dona Piti19 e Seu Antônio.

Figura 1 Dona Piti com a filha Dora no colo, Samuel Piyãko, e seus filhos Antônio e Julieta. Acervo Isaac Piyãko

19
A foto com Samuel Piyãko é o único registro que vi de Dona Piti usando a vestimenta tradicional
ashaninka. A esposa de Antônio me disse que as poucas vezes que usou, “foi só mesmo pra tirar uma
foto”.

26
Figura 2 Família Piyãko: Antônio, Piti, seus filhos e filhas.

Dona Piti e Seu Antônio tiveram sete filhos de nascença e outros de


criação. Piti deu à luz, em ordem temporal, a Francisco, Moisés, Isaac, Dora,
Wewito, Benki e Alexandrina. Todos ocupam posições estratégicas na relação
com o exterior da aldeia, e a maioria deles desempenha cargos ou papéis de
destaque na política interétnica. Francisco e Moisés foram os mais ativos no
processo de enfrentamento aos madeireiros e destacaram-se como lideranças
devido ao seu domínio da língua portuguesa e as suas habilidades de mediação.
O filho primogênito, depois de sua atuação na defesa do território, assumiu na
aldeia cargos de presidente da cooperativa e presidente da associação, já em
Marechal Thaumaturgo foi Secretário de Meio Ambiente, e em Rio Branco foi
Secretário de Políticas Indígenas do estado, ocupando ainda na Funai o cargo
de secretário da presidência. Há cerca de 12 anos, vive na capital do Acre e é
exímio articulador dos projetos e políticas externas ashaninka. Moisés é
presidente da associação e hoje liderança principal, ao lado de Seu Antônio, na
Apiwtxa, além de xamã. Isaac tornou-se o primeiro professor quando da criação
da escola, atuou, como Francisco, como Secretário de Meio Ambiente no
município de Thaumaturgo e até 2016 era respeitado como liderança maior na

27
aldeia, quando se mudou para a cidade para fazer campanha e posteriormente
assumir a posição de prefeito no mesmo município. Deve-se destacar o processo
de ida de Isaac para a cidade seguido de seu retorno para viver novamente na
comunidade, trajetória admirada pelos Ashaninka, e rara nas migrações
indígenas para a cidade. Após terminar seu mandato, diz ele, pretende mais uma
vez fazer esse caminho. Benki vive em Thaumaturgo após ter tido um papel
fundamental na concepção e implementação da Yorenka Ãtame, que significa
saberes ou conhecimentos da floresta, uma espécie de escola para difundir
práticas de sustentabilidade e conscientização ambiental para os brancos, criada
em 2007, e que teve papel fundamental nas mudanças de percepção dos
moradores do entorno com relação à Apiwtxa. Dora é agente de saúde e uma
liderança feminina. Wewito é professor, pesquisador e cineasta. Alexandrina é
professora e hoje cursa mestrado em antropologia na UNB. Com exceção de
Moisés, que se casou com uma prima cruzada, filha de sua tia paterna Ririta,
todos são hoje casados com pessoas não-ashaninka. Além desses, quase não
acontecem casamentos interétnicos. Apenas Irãtxo, neta de Samuel Piyãko e
filha de Julieta, é casada com Lethero, um homem peruano que vive há mais de
vinte anos com ela no rio Amônia. No entanto, como pretendo apontar, os
Ashaninka não percebem da mesma forma essas uniões distintas.
Existem quatro acontecimentos que ressoam em conjunto e se
apresentam como eventos de coletivização, e que atuaram como uma força
centrípeta que aproximou as famílias dispersas para a vida em comunidade.
Foram eles: a criação de uma cooperativa, que permitiu a obtenção de
mercadorias sem a figura do patrão; a escola, que atraiu as famílias que
desejavam obter acesso aos conhecimentos “dos brancos”; a mudança de
famílias que viviam ao longo do Igarapé Amoninha para a entrada da território,
no rio Amônia, como estratégia de defesa contra invasores e, por último; a
conquista da demarcação da terra, que produziu um território limitado, porém de
posse coletiva. Nesse sentido, a vida em comunidade, ainda que em partes
relacionada ao contexto de relações com a Funai, reflete as iniciativas ashaninka
para viver autonomamente sem submeterem-se a patrões brancos. Desta
maneira, a comunidade ashaninka guarda muitas semelhanças com o processo
de criação de escolas e Comunidades Nativas no Peru, conforme detalhado por
Gow (1991), Killick (2005) e Barletti (2011).

28
1.3 - Os Ashaninka no Rio Amônia: “Cada lugar aqui é de um jeito,
mas é tudo comunidade”
Os Ashaninka do Rio Amônia dizem que hoje vivem em comunidade, de
modo diverso de como viviam seus pais ou avós. Chamam esse lugar de
Apiwtxa, traduzível por algo como “nós juntos”, nome também da associação
indígena através da qual estruturam hoje os projetos com os brancos.

Figura 3 Disposição aproximada das famílias no núcleo central da comunidade. Disposição aproximada das famílias no núcleo central da
comunidade: 1 – Moyoki, Mamixita e filhos; 2 – Hatã, Txamãpo, filho e alguns filhos de casamentos anteriores; 3 – Tsinãpare, esposa e filha;
4 – Isaac, Fátima e filhos; 5 – Kãkari, Txuriana e filhos; 6 – Cozinha do grupo doméstico de Cláudio e Eriwira; 7 – Cláudio, Eriwira e netos; 8 –
Pita e filhos; 9 – Minari, esposa e filhos; 10 – Inhopi, Alípio e netos; 11 – Seria e filhos; 12 – Pitxi, Taina e filhos; 13 – Meyãto, Kamami e filhos;
14 – Julieta, Bandeirão e netos; 15 – Iriashe, Moxa e filhos; 16 – Nheko, Mãkoya e filhos solteiros; 17 – John, Andreia e filhos; 18 – Antônio e
Piti; 19 – Sãkori, esposa e filhos; 20 – Paulo; 21 – Enisson, esposa e filhos; 22 – Lethero, Irãtxo e filhos solteiros; 23 – Dora e filhos; 24 – Wewito,
Alzelina e filhos; 25 – Eerishi, Geovani e filha; 26 – Moisés, Rika e filhos; 27 – Marita e seu filho adulto Thori; 28 – Escola; 29 – Cooperativa; 30
– Ponto de cultura – sala de internet; 31 – Waldecir e Matxawo

29
Breve contextualização da família de Samuel Piyãko e dos interlocutores dessa
tese:

Casamento de Samuel Piyãko e Mariquinha – filhos: Paulo, Jacamim,


Antônio, Manoel, Laurencinha, Julieta, Ririta, Hilda e Alípio

Casamento de Antônio e Piti – filhos: Francisco, Moisés, Isaac, Dora, Benki,


Wewito e Alexandrina
.
Filhos de Piti e Antônio

Francisco Casado hoje com uma mulher


Yawanawá, com quem vive na cidade
de Rio Branco. Seus filhos não moram
mais na aldeia.
Moisés Casado com Rika, sua prima cruzada,
filha da tia paterna Ririta
Isaac Casado com Fátima, com quem tem
seis filhos: Saari, Kenashe, Eeriki,
Pãyoite, Fernanda e Francisco.
Kenashe e Eeriki casaram-se com
homens não-Ashaninka.
Dora Casada com Mazinho, homem
Kuntanawa. Tem um filho pequeno
desse casamento e, Eerishi, Bianca,
Piyãko e Thari de um anterior. Eerishi
é casada com Geovani, homem
Kuntanawa.
Benki Foi casado, mas hoje está separado.
Uma de suas filhas do casamento
com Marlene (que hoje é casada com
Otxe) vive na aldeia com a mãe.

30
Wewito Casado com Alzelina, mulher
Yawanawá, com quem teve Yara,
Kamoshi, Piyõkari e Piyãkri

Alexandrina Casada com Maicon, homem não-


indígena, com quem tem dois filhos

Cláudio Filho de Paulo, criado por Shomõtsi,


casado com Eriwira
Shomõtsi Pais desconhecidos, irmão de Joana
Aricêmio Pais desconhecidos, casado com
Ririta
Joana Filha de Romão e Margarita, casada
com Alípio
Komãyari Filho de Cláudio e Eriwira, casado
com Simone
Irãtxo Filha do primeiro casamento de
Julieta, casada com Lethero
Enisson Filho de Irãtxo e Lethero
Simone Filha de Irãtxo e Lethero, casada com
Komãyari
Kãkari Filho de Cláudio e Eriwira, casado
com Pretinha
Minari Filho de Cláudio e Eriwira
Wîko Filho de Manoel, casado com Laura
Hatã Filho de Aricêmio e Ririta, casado com
Txamãpo
Shãpi Filho de Hilda

31
A comunidade é composta por três lugares onde se concentram áreas de
moradia. No entanto, respeita-se o modo de organização social em grupos
domésticos que podem se restringir a uma única família nuclear, ou reunir até
cinco delas, caso um homem mais velho tenha conseguido, através de seu
prestígio, reunir em relações de reciprocidade as famílias de seus filhos casados.
Cada grupo doméstico possui seu próprio caminho para o rio, e as atividades
produtivas, assim como a distribuição de caça, restringem-se geralmente a essa
unidade. Dessa forma, os três locais ocupados pela comunidade na TI – o núcleo
das circulações20, o centro e o estirão, correspondem a três parcialidades não
homogêneas na sua composição. Nesse núcleo das circulações, estão
localizadas a escola e a cooperativa, e é onde mora o chefe e todos os seus
filhos que residem na aldeia. Todos os moradores deste local têm relações de
parentesco com Samuel Piyãko. O centro, termo utilizado regionalmente para
fazer referência a lugares mais distantes dos cursos principais dos rios, é para
os Ashaninka alusão às casas localizadas do outro lado do rio em relação ao
núcleo, que são construídas geralmente mais afastadas do Amônia, algumas
próximas a igarapés. O estirão é uma parte do rio sem muitas curvas, por isso
nomeado dessa forma, onde moram diversas famílias em grupos domésticos
dispersos. As casas ashaninka são altas, seu assoalho é feito de paxiúba e o
teto de palha. Como escada, geralmente um tronco é talhado e colocado numa
ponta da casa. São quase sempre abertas, ainda que algumas casas,
geralmente as das lideranças e especialmente no núcleo da comunidade,
apresentem hoje um cômodo fechado. A cozinha é sempre separada da
habitação - construída como uma casa separada, ou feita num nível abaixo da
casa. Em algumas casas menores, pode ser mesmo um pequeno tapiri, como
uma casa temporária, para fazer cobertura ao fogo. Numa viagem que produziu
o primeiro relatório sobre os Ashaninka no Alto Juruá para a Funai, Seeger e
Vogel (1978: 29) notaram a existência de dois modelos de casa – o “tradicional”,
e àquelas sobre as quais se fazia ver uma influência regional, casas fechadas,
“com portas e janelas”, na altura do chão. Essa divisão, notam os antropólogos

20
Centro e estirão são nomes utilizados pelos moradores da Apiwtxa. Para esse núcleo chefia-escola-
cooperativa, faltam definições puras, uma vez que se pode falar de comunidade para fazer referência
exclusiva a esse lugar e, em outros momentos, à comunidade como um todo, reunindo todos os
assentamentos dispersos, no sentido de uma entidade coletiva, e o mesmo vale para a palavra aldeia.
Assim, utilizo aqui núcleo de circulações por falta de um termo melhor.

32
que visitavam os Ashaninka, correspondia a uma divisão espacial, onde as casas
do segundo tipo eram aquelas localizadas próximas as margens do rio,
especialmente as casas que podiam ser vistas pelos regionais que
atravessavam o Amônia. As casas afastadas da vista dos outros eram feitas dos
materiais usados tradicionalmente. Além disso, as casas tinham diferentes
funções e uma família podia ter uma de cada. Samuel Piyãko, por exemplo, tinha
duas casas, uma tradicional, e outra no novo modelo. Os autores do relatório
registram que as duas casas eram reservadas para atividades específicas e,
assim, o artesanato era confeccionado apenas na casa suspensa e de palha,
assim como reuniões com autoridades aconteciam lá exclusivamente. Seeger e
Vogel interpretam a existência dessas casas “regionalizadas” como uma
tentativa de esconder dos regionais a diferença que sua existência colocava
(1978: 30). Hoje não se encontram casas assim na Apiwtxa, e mesmo nas casas
em que se construíram paredes ou divisórias, utiliza-se um “padrão ashaninka”,
principalmente na escolha dos materiais. O abandono de uma tradição já criada
e observada pelos pesquisadores, pode ser vista como uma mudança deliberada
que passa por fazer ser vista a diferença. Assim, podem se relacionar com os
outros a partir de uma posição como Ashaninka. O mesmo pode ser dito do uso
da cushma como símbolo da tradicionalidade, que produz sua aparência
específica, como um povo diferente, e que também foi retomada com a luta pela
demarcação da TI no início dos anos 1990.
O núcleo de circulação da aldeia tem uma estrutura diferente dos outros
dois lugares, não apenas por conta da escola e da cooperativa, e alguns
moradores por vezes brincam que lá “já é quase uma vila”. Neste canto há
certamente menos privacidade, e ainda que se mantenha uma organização em
grupos domésticos, o espaço é limitado e os caminhos levam não só da casa pro
rio, mas à linhas de circulação por onde se pode passar pelas casas e não se
demora mais de trinta minutos para se chegar de um assentamento familiar à
outro localizado à maior distância possível por terra. Por isso também utilizo a
proposta de núcleo de circulação para me referir a esta parte da Apiwtxa, pois é
lá que chega qualquer visitante, seja alguém não-indígena – alguém do governo,
parceiros de projetos ou antropólogos -, mas também quem mora mais longe,
para ir à escola ou levar artesanatos para trocar na cooperativa. Quem chega lá

33
caminha da escola para a cooperativa, para a casa de Seu Antônio e de outras
lideranças.
Mesmo nesse núcleo, que parece fixar as estadias, os movimentos de
dispersão continuam. Em idas a campo vi casas serem construídas e
abandonadas; vi moradores mais velhos se mudarem para o centro ou o estirão
para “ficar mais sossegado” e mais um tanto de moradores que nos limites desse
núcleo fizeram e desfizeram casas, por vezes para morar a poucos metros de
onde antes habitavam. Não é incomum, também, que os moradores tenham mais
de uma casa. A família de Nheko, por exemplo, um filho de Julieta e Bandeirão,
fazia parte do grupo doméstico de seus pais, mas tinha também uma casa no
estirão, onde ficava seu roçado e onde passavam grande parte do verão. Em
2015, decidiram-se por mudar de vez para lá.
Morei durante todas as etapas do trabalho de campo no núcleo da aldeia,
na casa de Isaac e Fátima, e por um período curto, em minha última estadia para
pesquisa, na casa de Wewito e Alzelina. Nesta última viagem, em 2017, Isaac já
era prefeito de Marechal Thaumaturgo, onde hoje vive com seus filhos numa
casa que divide o terreno com a casa dos pais de Fátima, que chegaram ao Alto
Juruá para que Seu Antenor, o pai, encontrasse trabalho como seringueiro.
Fátima fugiu para a Apiwtxa para se casar, o que seus pais terminaram por
aceitar porque, como me disseram “ele era índio, mas tinha parte branco
também”. Já a esposa de Wewito é Yawanawa. Depois de se conhecerem no
sítio da Comissão Pró-Índio do Acre, em Rio Branco, o Ashaninka foi até o rio
Gregório, onde vive a família da atual esposa, e ela, assim como Fátima, fugiu
para se casar.
Citei quatro eventos como aqueles que produziram a Apiwtxa. Buscarei
trazer elementos para a compreensão deles, mas focarei em um, a criação de
uma escola, como mecanismo de atração das famílias e criação da comunidade.
Deve-se ressaltar primeiramente a singularidade dos Ashaninka do
Amônia em relação à realidade da educação escolar para índios no Brasil, assim
como em relação aos seus vizinhos peruanos. Quando Seeger e Vogel chegam
ao Alto Juruá nos fins dos anos 1978, notam a presença de cartilhas Mobral
(Movimento Brasileiro de Alfabetização) em algumas casas e se perguntam
sobre os possíveis efeitos desse material. Esses antropólogos apontam o desejo
de muitos por aprender português e matemática para impedir a exploração pelos

34
patrões (1978: 50). Afirmam, no entanto, a inexistência de escolas, apontando
que apenas quatro moradores frequentavam, no Remanso, comunidade no rio
Bagé, um curso de alfabetização com um professor do Mobral. Entre eles
estavam Cláudio (Pishiro) e sua esposa Eriwira, que, apesar de não terem nesta
época aprendido a ler e escrever, são dos maiores entusiastas da escola na
comunidade hoje, e seus filhos são agora maioria entre os professores.
Peter Gow (1991) descreveu de forma bela e precisa o lugar da escola no
pensamento e nos movimentos dos Piro. Assim como no caso dos Ashaninka do
Amônia, Comunidades Nativas (o equivalente legal a Terra Indígena no Brasil),
constituem-se basicamente em torno de uma escola, veículo de conhecimentos
“civilizados” cuja apreensão tem a potência de impedir a escravização pelos
brancos e, por isso, permitir que os índios mantenham e defendam suas redes
de parentesco.
No caso dos Ashaninka no rio Amônia, a aproximação das famílias antes
dispersas ao longo do rio se deu através da escola, que funcionou como uma
força de atração e de permanência ao redor de sua órbita. Como me explicou
Komãyari, um dos mais antigos professores da Apiwtxa e filho de Pishiro e
Eriwira:

Antes de eu ser aluno, os meus pais também viviam nos seus


cantos, assim, isolados, com poucos contatos. Só tinha
contato quando tinha caiçuma, e era difícil. E esse contato
entre crianças também era difícil. Mas depois da demarcação
da Terra, começaram a se juntar mais perto. Mas assim
mesmo, juntando perto, muita gente não conseguia segurar
as famílias. Conversava, fazia reunião, mas só juntava
quando tinha caiçumada, festa, naquele momento. Mas
quando terminava iam pros seus cantos, ficava vazio.
Mas com a existência da escola eu vi muita mudança.
Quando chegou a escola, começaram as famílias a se juntar.
Quem vivia mais distante teve que morar mais perto, para
seus filhos irem para a escola, porque dificultava muitos os
seus filhos virem de muito longe.
E uma coisa que eu achei também: o povo Ashaninka daqui
do Amônia, quando surgiu a escola era uma coisa como se
fosse... importante. Como se surgisse uma coisa bonita aqui
na comunidade e todo mundo quer ir por dentro, todo mundo
quer conhecer. Então todo mundo mandava os seus filhos:
vamos estudar, agora já tem escola. Como se fosse a
escola... Eu não sei como achar essa palavra. Tem muita
família que falava: ter uma escola, porque quem tinha escola

35
só eram os brancos, só o não indígena, só tinha escola era na
cidade. Então por isso quando chegou a escola na
comunidade, todo mundo ia em cima para conhecer a escola.
Todo mundo queria acessar as aulas. Então por diversos
motivos a escola atraiu as famílias, as pessoas. Então por isso
a escola é muito importante. Além de ela ser uma referência,
ela tem um significado muito forte, ele atrai as pessoas,
ela tem uma coisa muito bonita e todo mundo quer – todo
mundo quer ter. (...) muitas famílias falavam muito, meus
pais, meus avós, que não tinham muito contato com a escola,
ouviam que existia a escola, essa tal.

Nas etnografias recentes produzidas sobre o povo Ashaninka,


especialmente no Peru, o processo de criação das “Comunidades Nativas” e
suas implicações nas dinâmicas territoriais e políticas vem sendo objeto de
reflexão, especialmente a partir do caminho trilhado pelo trabalho de Peter Gow.
Por exemplo, a tese de Barletti (2011), desdobra os sentidos do “viver bem” para
os ashaninka, constatando que no Baixo Urubamba hoje, viver bem depende do
viver junto, como uma comunidade capaz de se defender coletivamente de
relações de exploração; Killick (2005), sugere que no rio Ene, o desejo de que
seus filhos frequentassem a escola foi também a motivação central para a vida
em comunidade.
A criação de escolas é mobilizada, em alguns lugares, para a criação de
novas aldeias, quando a escola e os cargos assalariados produzidos através
dela funcionam como força de dispersão. Entre os Ashaninka do Rio Amônia, no
entanto, a escola produziu em torno de si a comunidade. Gow define que para
os Piro vivendo no Baixo Urubamba: “A escola, ao lado do status legal de
Comunidade Nativa é o maior símbolo da existência da comunidade e o evento
principal de sua fundação” (1999; p.248), e sugiro o mesmo para o caso dos
Ashaninka no rio Amônia.
Os autores que produziram etnografias junto aos Ashaninka no Peru
oferecem chaves de entendimento da relação entre a produção de escolas,
comunidades e pessoas (individuais e coletivas). Suas conclusões nos permitem
também observar, por contraste, como a política indigenista nos dois países –
Peru e Brasil – e a construção legal dos territórios – a saber “Comunidade Nativa”
no caso do primeiro e “Terra Indígena” no caso do segundo – combinou-se com
as formas sociais ashaninka. Pimenta (2002) apresenta uma breve imagem

36
comparativa entre a escola na Apiwtxa e a existente entre os vizinhos também
Ashaninka na Comunidade Nativa de Sawawo, no Peru. Segundo o antropólogo,
o objetivo da escola em Sawawo é o de “transformar os índios em cidadãos
peruanos através do aprendizado da língua espanhola” (Pimenta, 2002, p.290).
Uma das distinções centrais entre os dois modelos de escola21, sugere Pimenta,
é que na Apiwtxa todos os professores são indígenas e são parte da
comunidade. Já em Sawawo as aulas são ministradas por professores não-
indígenas designados pelo governo, e que na maioria das vezes pensam sobre
si mesmos como desbravadores à frente de um projeto civilizador (Pimenta,
2011, p.108). No rio Amônia, os Ashaninka seguiram um modelo de “educação
diferenciada” que conheceram com as experiências de formação na CPI/AC 22 e
que foi tornado política oficial posteriormente, ainda que com muitas
transformações. Diferentemente do lado peruano da fronteira, onde segundo
Pimenta (2002):

Em Sawawo, a partir dos 6 anos de idade, as crianças cantavam


diariamente o hino nacional, homenageando a bandeira, içada
permanentemente na aldeia. O material didático fornecido pelo
Ministério da Educação do Peru anunciava de forma explícita
que o principal objetivo da escola era formar patriotas. Em
capas, cadernos e livros escolares expunham claramente os
símbolos da nação: escudo, bandeira e hino nacional (p. 109).

No rio Amônia, eu dizia, não haviam experiências formais de escola entre


os Ashaninka. No início da década de 1990, um dos filhos de Antônio e Piti,
Isaac, que havia feito o ensino fundamental numa escola em Cruzeiro do Sul, a
cidade “grande” mais próxima do Alto Juruá, foi escolhido para ser o primeiro
professor na escola que então se desenhava. Com a mediação da antropóloga
Margareth Mendes, a primeira a desenvolver pesquisa no Amônia, os Ashaninka
produziram uma ortografia da língua com o linguista Wilmar D´Angelis. Logo em
seguida, Isaac começou a participar do Projeto “Uma Experiência de Autoria” da

21
Silvia Tinoco (2006) desenvolve em sua tese de doutorado uma comparação também muito
interessante entre dois modelos de escola na fronteira, dessa vez entre a Guiana Francesa e o estado do
Amapá, na Amazônia brasileira. Nesse trabalho, a antropóloga explora as diferenças entre a escola dos
Wajãpi no Brasil, estruturada como a dos Ashaninka em um modelo de escola diferenciada em diálogo
com Ongs, e nas Guianas, onde a educação é pensada como a formação de cidadãos franceses.
22
Ong responsável por um programa alternativo, depois oficializado, de formação de professores
indígenas e escolas “diferenciadas”, questão melhor desenvolvida no capítulo IV dessa tese.

37
Comissão Pró-Índio do Acre23. É um momento particular, pós-Constituição de
1988, em que se começa a esquadrinhar uma política de formação de
professores indígenas e de criação de escolas “diferenciadas” sob gestão do
Estado. Como veremos no capítulo IV, a CPI iniciou esse projeto como uma
oposição radical ao modelo até então oferecido para os povos indígenas, modelo
esse centrado na ideia de “civilização” e “integração” dos índios.
Certamente, como chamou atenção Peter Gow (1991), as tentativas, por
parte do Estado, de civilizar os índios encontram, entre os nativos, uma
contrapartida semântica do que significa civilizar-se. Trata-se de um equívoco
entre duas conceituações a partir de pontos de vista distintos. O antropólogo
define para o caso dos Piro o que aparece também nas etnografias sobre os
Ashaninka vizinhos a eles no Peru: “Ser ‘civilizado’ é ser autônomo, é ser capaz
de viver em comunidades de acordo com os valores próprios das pessoas
nativas, e não sob os desejos caprichosos de um patrão” (1991: 2). Gow aponta
que esses valores nativos podem ser resumidos na ideia de “viver bem”, que
significa, especialmente, comer “comida de verdade” produzida da articulação
do trabalho de homens e mulheres e coabitar em comunidades pacíficas que
cultivam suas relações através do idioma do parentesco. Para isso, a criação de
comunidades e da escola, seu motor de atração. Como espaço propício para a
aquisição de conhecimentos civilizados, a escola possibilita a apreensão de
ferramentas que lhes permitem impedir que se retorne à vida sob o jugo dos
patrões, que era também um tempo em que as pessoas não sabiam se defender.
Os Ashaninka me diziam constantemente que um dos principais motivos
para quererem a escola para seus filhos e netos é para que eles não sejam
humilhados na cidade, para que saibam se comunicar no posto de saúde, para
calcular o troco e para falar com os brancos que passam períodos na aldeia. Os
mais velhos dizem que era por não entenderem o português que eles eram
explorados pelos patrões. “Eles não sabiam se defender”, diziam os Ashaninka
do Gran Pajonal para Killick (2005: 197), referindo-se aos seus antepassados. O
mesmo me disse Moisés, liderança e xamã Ashaninka:

O surgimento da escola foi uma necessidade que veio do


contato com o mundo do não-índio. Mesmo na época dos

23
No capítulo IV apresento uma descrição do projeto e suas implicações.

38
patrões, uma das nossas maiores dificuldades, uma das
maiores explorações, vinha de as pessoas não conhecerem
contabilidade. Então um patrão chegava e trocava um
isqueiro por uma árvore de mogno. Pra gente era um grande
valor: um isqueiro pode te dar comida, dar fogo. Então a gente
tinha consciência da importância daquilo pra gente. Mas o
lado do patrão, que conhecia essas coisas, era de má fé,
porque sabia que uma árvore de mogno comprava milhões de
isqueiros. Então em cima de toda essa exploração que a
gente vinha sofrendo, a gente conseguiu buscar a escola,
depois da demarcação da Terra, pra que a comunidade
pudesse ter um pouco dessa noção e começasse a se
defender (entrevista na Apiwtxa, 2014).

Esta questão aparece no relatório de Seeger e Vogel (1978) também


como a motivação para as famílias que queriam apreender os códigos do mundo
dos brancos. “São explorados no seu trabalho e nas suas transações comerciais
porque ignoram o sistema de valores que nos rege” (p.49), notam nesta visita.
Os dois antropólogos descrevem exemplos similares ao da troca do isqueiro por
uma árvore de mogno relatado por Moisés, como o de: “[u]m roçado de 50
paneiros de farinha [que] custou ao patrão um quilo de açúcar, outro de sal e
uma garrafa de querosene” (Id.).
Para os Ashaninka que vivem no rio Amônia, a escola aparece como um
veículo que os permite viver como uma comunidade de famílias autônomas ao
invés de grupos dispersos trabalhando para os madeireiros, mas mantidos por
eles em relações de servidão. Assim como para os Piro, a educação escolar se
tornou o vetor de um movimento que impede a sujeição e a escravização. No
caso da Apiwtxa, no entanto, a tônica de criação e manutenção da comunidade
e da escola é focada num discurso da “cultura tradicional” e, como veremos
adiante, numa particular equação entre pureza e mistura, que em muito se
relaciona ao caso Piro, mas com uma determinação do “sangue misturado”
(Gow, 1991) como restrito à família das lideranças.
A cultura como meio de relação com os brancos é fruto de uma criação
ashaninka a partir do diálogo com os primeiros indigenistas a trabalharem com
eles, e se seguiu com a parceria com a Comissão Pró-Índio do Acre, na formação
de professores. Antônio Macedo, então funcionário da Funai, e figura de
destacada importância no indigenismo acreano, afirma (em entrevista para o

39
antropólogo José Pimenta) que o seu trabalho no rio Amônia foi de
“conscientização”:

Eu chegava aqui e eles diziam que eram pobres. Eu trazia um


pedaço de tabaco para fumar e eles pediam tudo dizendo que
eram pobres (...) aí comecei a explicar para eles o conceito
de riqueza, capital e dizer pra eles que eles não eram pobres
porque as terras onde eles moravam eram ricas e eles é que
não estavam sabendo como desenvolver-se aqui dentro da
terra onde eles viviam. Aí foram se conscientizando, se
conscientizando. (...) esses meninos [os filhos mais velhos de
Antônio e Piti] eram pequenos, mas não me deixavam quieto.
(...) tinham uma fome de aprender muito grande. (...) eles
perguntavam muitas coisas, eles perguntavam tudo. Aí eles
foram crescendo, crescendo e eu explicava para eles que não
adiantava eles crescerem sozinhos e se tornar uma elite pura
e simples, o meu trabalho não ia ter valor. O meu trabalho só
ia ter valor se eles conseguissem trazer ao povo deles todo
esse crescimento. Por isso é que você chega aqui e vê essa
aldeia organizada do jeito que está aqui. Antes, não era
assim, eram casas dispersas, não tinha essa coordenação de
esforços e pensamentos” (Pimenta, 2002: 152).

Assim, o que deve ser ressaltado não é a transformação ditada pelos


indigenistas, mas o modo através do qual os Ashaninka passam a mobilizar, na
relação com os brancos, não mais o idioma, por exemplo, da pobreza (que
certamente era também induzido para gerar efeitos relacionais), mas outro viés
utilizando um novo léxico, o do tradicionalismo.
Isaac Piyãko explica como, também na criação da cooperativa, estava
presente além da busca pela autonomia econômica, um processo de
“revitalização” e valorização do tradicional:

(...) a política de valorização também já existia [antes da


criação da escola], porque a cooperativa foi criada nesse
sentido. Como iríamos trabalhar os produtos? Madeira
ninguém trabalhava mais, carne [de caça pra vender]
ninguém ia trabalhar mais, então a única alternativa era a
cultura, ver o que a gente tinha ali de conhecimento
tradicional, pra poder trabalhar. Uma das alternativas foi o
artesanato. E aí na época a Margarete [Mendes, antropóloga],
quem iniciou mesmo foi o Terri [Aquino] e o [Antônio] Macedo
e disseram: “na situação mesmo de vocês, pra vocês se
libertarem, a cooperativa é um caminho”, e nos ajudaram,
Macedo e Terri, a criar uma organização. Quando a

40
Margarete chega já tínhamos essa política, então ela entra
para estruturar melhor a produção. (...) ela começou a
pesquisa e começou a ajudar também a comunidade, na
busca de artesanato. E o pessoal, no artesanato, até tampa
de caneta usavam, nos colares, nos adornos... Para fazer a
linha era linha dessas de naylon mesmo, então a linha mesmo
das agulhas estava sendo perdida, o pessoal não ligava muito
mesmo. Então ela ajudou a valorizar isso e o artesanato foi
feito a partir de uma pesquisa do que a gente tinha no
passado, o que tinha no presente e o que podia melhorar.
Então a partir dessa pesquisa, fomos encontrando as peças
de artesanato e foi sendo trabalhada essa valorização da
cultura, da língua, da vestimenta. Naquela época ninguém
usava muito a cushma mais. Pouca gente... Meu pai mesmo
não usava mais. Quem usava mesmo éramos nós, os filhos
da mãe [de dona Piti]. Mas o papai por conta da influência dos
brancos não usava mais, porque era uma forma dele se livrar
do preconceito. Muitas famílias não usavam mais cushma,
mas quando a gente começa a valorização, começam a voltar
a usar também. Isso foi muito forte (Entrevista na Apiwtxa,
julho de 2014).

Como nos ensina Isaac, a escola dá seguimento a uma “política cultural”


iniciada no encontro das lideranças (então jovens) com agentes da Funai e a
antropóloga Margareth Mendes. Esses sujeitos, especialmente Francisco,
Moisés e Isaac, os filhos mais velhos de Piti e Antônio, tiveram um papel ativo
nas transformações da socialidade ashaninka, conduzindo eventos que
promoveram mudanças e novas possibilidades de relação entre as famílias e
entre os Ashaninka e os brancos.
No processo de se fazer como coletivo Ashaninka, reduzindo a totalidade
do território a uma Terra Indígena, produzindo uma comunidade que integra os
diferentes grupos familiares autônomos num único nampitsi (território político),
os moradores do rio Amônia passaram a se perceber como um conjunto sob
liderança de um chefe e seus filhos lideranças. Essas lideranças são
reconhecidas como tais porque dão continuidade ao modelo do sistema de
famílias independentes que se organizam ao redor do chefe de um grupo
doméstico, sem que as diferenças se dissolvam numa coisa só. Assim, as
famílias que desejam viver em assentamentos mais afastados do núcleo da
aldeia conseguem, através da comunidade – da escola e da cooperativa -,
manter um fluxo de bens e relações à distância. No entanto, essas lideranças,
filhas do casamento de Antônio e Piti, aparecem como feitas da mistura das

41
famílias de Chico Coló e Samuel Piyãko, que através desse parentesco
“misturado” podem fazer emergir um coletivo “puro”, como um coletivo que é
ativado para dar conta de todo o território.
Torna-se, assim, importante que sejam traçadas algumas questões para
que se faça compreensível o papel exercido pelas novas lideranças, os irmãos
Piyãko, como são chamados na esfera interétnica os filhos de Piti e Antônio, na
produção da vida em comunidade, e de que forma o estabelecimento deles como
figuras mediadoras, como tradutores entre os Ashaninka e os brancos, permitiu
aos moradores da Apiwtxa fortalecer suas unidades autônomas através de um
manejo de suas relações com o exterior.

42
Capítulo II - O corpo da comunidade

2.1 - Pessoas e socialidades amazônicas


Clastres, em 1974, havia situado a prática ocidental de imprimir àquilo que
não espelha a sua própria imagem uma distorção que aponta para faltas,
ausências, carências (2003: 208). O antropólogo francês falava sobre a cegueira
das sociedades com Estado frente a política da vida das sociedades contra o
Estado, que, descritas como gente “sem fé, sem lei e sem rei”, só podiam
aparecer como amorfas e selvagens comparadas as estruturas hierarquizadas e
burocráticas ocidentais. Clastres buscou então traçar uma antropologia política
dessas sociedades, de suas formas de organização política, seus instrumentos
para impedir que a forma Estado – que diz respeito a uma construção a um só
tempo coletiva e subjetiva – pudesse se instaurar. A essas sociedades nada
faltaria – haveriam nelas estruturas complexas que conjuram ativamente a
emergência de relações de coerção e subordinação.
No 42º Congresso dos Americanistas, em 1976, Overing afirmava em
seus comentários que “o kit de ferramentas analíticas da antropologia tradicional”
(1977: 387), falhava em elucidar as formas de organização social e políticas dos
povos indígenas nas terras baixas sul-americanas. Era necessário, convocava a
etnóloga, buscar uma nova linguagem a partir das etnografias, costurando assim
modelos em articulação com os conceitos nativos, uma vez que noções como
grupos de descendência, construídos a partir dos materiais africanistas, não
encontravam paralelos nas realidades concretas na América do Sul.
Grande parte da pesquisa em etnologia que daí se seguiu tratou de
acompanhar os caminhos abertos por essas reflexões e traçar ainda outros a
partir deles. A perspectiva da articulação dos sistemas sociais, especialmente as
formas de conceber o parentesco e a organização política, às cosmologias e
epistemologias indígenas, indicam as singularidades das pesquisas sul-
americanas, como nos trabalhos paradigmáticos da própria Joana Overing
(1989; 1992) e o de Seeger, Da Mata e Viveiros de Castro (1979). Em meados
da década de 1990, Viveiros de Castro (1996) e Tania Stolze Lima (1996) lançam
novas luzes sobre o material das terras baixas quando produzem a teoria do
perspectivismo como modelo de relação, produção e reprodução dos mundos
ameríndios.

43
O artigo de Seeger, Da Mata e Viveiros de Castro (1979) busca responder
à questão levantada no Congresso de 1976 por Overing e afirma, em
concordância com a autora, que a etnologia sul-americana até aquele momento
vinha lidando com os conceitos antropológicos de forma que tudo, “ou era
encaixado à força, ou era considerado anômalo e desviante” (1979: 17). Por isso
eles propõem “elaborar conceitos que deem conta do material sul-americano em
seus próprios termos, evitando os modelos africanos, mediterrâneos ou
melanésios” (Id: 19). O trabalho aponta a centralidade do corpo nas cosmologias
ameríndias, como foco de uma “elaboração particularmente rica da noção de
pessoa” (Id: 12). A estrutura social, teria de ser buscada ali. Afirmam os autores
que:
“A fabricação, decoração, transformação e destruição dos
corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a
vida cerimonial e a organização social. Uma fisiológica dos
fluidos corporais – sangue, sêmen – e dos processos de
comunicação do corpo com o mundo (alimentação,
sexualidade, fala e demais sentidos) parece subjazer às
variações consideráveis que existem entre as sociedades sul-
americanas sobre outros aspectos” (Id: 20-21).

Assim, sobre as muitas variações, as sociedades indígenas teriam como


universo comum “uma ordenação da vida social a partir de uma linguagem do
corpo” (Id: 22). Esse idioma da corporalidade, analisam os autores, desequilibra
dualismos aparentemente estáticos: a produção da pessoa que se faz no/com o
corpo é ao mesmo tempo “individual e coletiv[a], social e natural” (Id: 24).
Viveiros de Castro (1979) escreveu no mesmo ano, a respeito de uma
sociedade xinguana que:
“As mudanças corporais não podem ser consideradas nem
como índices, nem como símbolos, das mudanças de
identidade social. Para os Yawalapiti, transformações do
corpo e da posição social são uma e a mesma coisa. Desta
forma, a natureza humana é literalmente fabricada, modelada,
pela cultura. O corpo é imaginado, em vários sentidos, pela
sociedade” (1979: 41).

Quer dizer, o corpo não é a aparência ou o efeito da sociedade sobre o


indivíduo, uma vez que “[o] social não se deposita pelo corpo Yawalapiti como
sobre um suporte inerte: ele cria este corpo” (Id: 32). Este corpo é o corpo
tornado humano, que para constituir-se como tal opera negando as

44
possibilidades de metamorfose não-humanas (Id: 24). As imagens como a da
parentalidade múltipla de crianças formadas do acúmulo do sêmen durante toda
a gestação; os ritos de puberdade que envolvem reclusão ou provocação de
experiências de dor física; os sistemas de couvade que implicam restrições para
os parentes próximos de uma criança recém nascida, ou mesmo o corpo
enfeitado que pretende produzir efeitos sociais, tudo isso aponta para o conjunto
de “intervenções sobre as substâncias que comunicam o corpo e o mundo” (Id:
31) ou sobre uma tecnologia de “intervenções sobre os canais de contato entre
o corpo e o mundo” (Id: 37). Sobre o complexo ritual da reclusão xinguana,
Viveiros de Castro sugere a existência de uma ideia central que pode ser
estendida para muitas outras realidades indígenas: “o corpo é corpo humano a
partir de uma fabricação cultural” (Id: 35). O fluxo de entrada e saída de
substâncias diversas como o sangue, o tabaco, o sêmen ou alimentos, pode
fazer crescer e fortalecer o corpo (Id: 37); pode fazer também com que ele se
transforme a ponto de perder sua forma/natureza humana.
Se esses autores enfatizam o corpo como idioma das relações e da
construção da pessoa ameríndia, Overing (1991) também vai tratar desse corpo
que é ao mesmo tempo individual e coletivo, refletindo especialmente sobre as
categorias morais e políticas envolvidas numa ética da vida e da socialidade que
informa os povos da região das Guiana, e que, mais uma vez, é também útil para
olhar para outros contextos. Retomando o conceito de “senso de comunidade”
de Vico, Overing aponta, em diálogo com as reflexões de Goldman sobre os
Cubeo, uma ética da socialidade que é ao mesmo tempo uma estética das
relações, pautada na autonomia como valor central e na produção e criação de
seres humanos. Essa noção de autonomia não equivale em ponto algum a uma
noção ocidental de independência do indivíduo em relação a outros, ou a
capacidade de fazer sozinho coisa alguma. A autonomia para os Cubeo, Piaroa
ou Ashaninka, valoriza e é codependente de “relações de harmonia e
cooperação” (1991: 14). O lugar da chefia nesse contexto, sugere Overing, é
aquele do manejo dos ânimos (Id: 14), e não da instauração da ordem
institucionalizada. Essa equação entre autonomia e cooperação pode ser bem
vista, segundo a antropóloga no caso dos Cubeo, para quem:
“A privacidade, própria e alheia, era fundamental para o seu
senso de comunidade, o que incluía o dogma moral de que

45
não se deve invadir os sentimentos e humores alheios. Este
senso de privacidade não era o do Ocidente moderno, porque
a valorização Cubeo da privacidade era afeita ao domínio das
emoções e da dignidade pessoa, e não ao mundo da
propriedade e dos bens pessoais” (Id: 15).

Essa ressonância entre autonomia pessoal e produção de laços de


cooperação necessita de um controle de emoções e características como a raiva,
a dominação e a sovinice, vistas como forças que ameaçam a socialidade
(Overing, 1991: 24). Voltando aos Ashaninka, uma pessoa que sabe agir de
maneira bela, correta e boa – kametha, na definição ashaninka – é aquela que
tem o conhecimento necessário para tal (porque seu corpo sabe agir
corretamente), o que faz com que alguém não apenas viva sem se submeter às
ordens de outros, mas que não busque coagi-los também. Aquele que precisa
mandar não é sábio, poderiam dizer os Ashaninka, ou não sabem usar bem seus
conhecimentos. Por isso os brancos são poderosos, mas não são sábios.
A tentação de uma visão romântica que poderia postular um igualitarismo
dado a priori não faria sentido nas Terras Baixas, uma vez que as forças
predatórias fazem parte da esfera de construção das relações, como fundo sobre
o qual se pode produzir, pela negação, a humanidade (Taylor e Viveiros de
Castro, 2006; Vilaça, 2002). Mesmo entre pessoas que vivem como parentes
coabitando uma mesma comunidade, a possibilidade da transformação e da
captura e do enfeitiçamento ameaçam a produção contínua de corpos
semelhantes. A questão não é a inexistência de relações de hierarquia na
Amazônia indígena, sugere Overing (1991: 12), mas o fato de que que essas
relações são englobadas pela produção de relações de cooperação, e por isso
devem ser entendidas através das instituições igualitárias.24
O perspectivismo ameríndio é uma teoria produzida no processo de pôr
em relação materiais diversos, seguindo caminhos abertos por duas proposições
de Levi-Strauss (1993a): a alteridade como imanente à criação da vida nas
sociedades ameríndias, e a centralidade de um tempo mítico onde reinava a
indiferenciação entre os seres viventes, quando os animais e plantas que hoje
são vistos como tais eram humanos. Viveiros de Castro (1996) sugere que, se
nas cosmologias ocidentais predica-se a existência de uma natureza humana,

24
Sobre formas de hierarquia na Amazônia, ver, por exemplo, Fausto (2008).

46
que se opõe a animalidade e que conjuga diferentes modos de habitar e existir
– as culturas - nesse mundo natural, nas cosmologias ameríndias haveria uma
inversão: uma cultura humana como fundo, um modo de intencionalidade e de
socialidade compartilhado pelos diferentes seres – todos os viventes veem-se
como humanos, possuem famílias, trabalho, produzem filhos e comunidades,
bebem cerveja de mandioca, etc., mas vivem sob diversas naturezas, corpos
diversos que fazem com que os conteúdos materiais, as substâncias, as
relações, sejam definidas pela forma que esse corpo toma (ver, por exemplo,
Lima 1996, Vilaça 2002)
Nas etnografias, como a de Weiss entre os Ashaninka – uma das
referências na construção do perspectivismo ameríndio –, apontava-se uma
estreita relação entre a produção do corpo humano e as possibilidades de
transformação desse corpo que podiam levar a mudanças de natureza. O fato
de os animais que são caçados hoje serem anteriormente humanos coloca
problemas para os viventes, uma vez que eles guardam a potencialidade da
agência humana, e podem aparecer de forma enganosa e sedutora, e assim
tomar o lugar de sujeito, objetivando o outro. A caça e a relação entre predador
e presa tornam-se uma imagem poderosa para balizar outras interações (Vilaça,
2005).

2.2 - Fazendo parentesco entre os Ashaninka


Nas relações que se produzem na Amazônia indígena, como já definiu
Viveiros de Castro (1993; 2002), ser parente não é dado de nascimento, mas
uma construção ativa, de modo que a esfera da consanguinidade é extraída da
afinidade e englobada por ela. Nessa criação, o corpo é o substrato a partir do
qual é possível fazer-se na relação com seres e coisas, cujo estatuto depende
da partilha ou não de espaços, substâncias, alimentos e cuidados (Vilaça 2002;
Belaunde, 2001) e é, ao mesmo tempo, o produto dessas relações. Dessa forma,
é possível aparentar-se de alguém quando seu corpo se produz nos mesmos
fluxos e relações, quando se é composto de maneira semelhante. Por isso
Vilaça, em um texto cujo título deixa entrever as discussões a que me refiro,
“Making kin out of others in Amazonia” (2002), sugere que a comensalidade e a
convivência podem produzir concretamente corpos de mesma natureza, assim
como transformar aquilo que a princípio se apresenta como alteridade, fazendo

47
do outro parente a partir de processos corporais. Por isso os Wari’ diziam que
comendo a mesma comida que eles, a antropóloga seria capaz de falar sua
língua e tornar-se também, Wari’.
Entre os Ashaninka, também há a produção dessa semelhança
corporificada na produção do parentesco. O processo de materializar a
semelhança entre os corpos (Tylor e Viveiros de Castro, 2006) para produzir uma
perspectiva partilhada pressupõe ao mesmo tempo a suspensão e negação das
relações de predação - se deve criar a semelhança em contraste com a diferença
mais radical (Vilaça, 2002). Desse fundo de diferenças do qual se extrai a
produção de semelhanças por oposição, estão não apenas os animais que
compartilham com os humanos a possibilidade de ocupar a posição de sujeito
(sendo o lugar predador e o lugar presa posições intercambiáveis), mas também
outros tipos de humanos que possuem igualmente características
potencialmente predatórias: os brancos.
Para muitas sociedades indígenas, é necessário manejar as diferenças
potencialmente perigosas de modo a incorporar suas potências e forças, mas
negar seu poder de captura. Os Wari´, por exemplo, até recentemente, negavam
a possibilidade do casamento com os brancos, afim de evitar uma proximidade
excessiva, que levaria a consubstancialidade e produziria, assim, uma ameaça
a recriação da socialidade (Vilaça, 2002). Os Piro, por outro lado, constituem-se
hoje como “gente de sangue misturado” através dos intercasamentos entre os
diferentes “tipos de gente” puros. Esses intercasamentos começaram com o
evento da escravização, que ao mesmo tempo produziu a coabitação e deu início
à história – e ao parentesco – contemporâneos. A história Piro é a história de
grupos inimigos que não sabiam viver juntos, pois guerreavam entre si, e que,
ao mesmo tempo, eram ignorantes a respeito dos conhecimentos que os patrões
passaram a utilizar para os obrigar a trabalhar para eles. É também o processo
de mistura progressiva dos sangues e das gentes que possibilita que os Piro
contemporâneos vivam em comunidades tituladas, em volta de uma escola,
como “gente civilizada”, que tem o conhecimento civilizado para se defender,
mas também como “gente nativa”, que come a comida verdadeira produzida com
o seu trabalho autônomo e que vive como parentes (Gow, 1991).
Diante do papel da família Piyãko, introduzida no capítulo anterior, e que
constitui a principal referência dos habitantes do rio Amônia, parece que os

48
Ashaninka ocupam um lugar intermediário entre a estratégia Piro e a estratégia
Wari’: eles restringem os casamentos com os brancos a essa única família, e
assim são capazes de, contrastivamente, produzir uma comunidade de pessoas
puras e semelhantes, tanto consanguíneos como afins. Dessa forma, eles
produzem um limite para a incorporação da alteridade e a recusa da
transformação daquilo que é radicalmente outro, o branco, em igual.
No primeiro capítulo apontei que o grupo doméstico é uma unidade
cooperativa marcada por laços de reciprocidade e coabitação, composto por
poucas famílias nucleares, cada uma delas vivendo numa casa com roçado e
fogo próprios. Elas compartilham um mesmo espaço e a ligação com a floresta
– um caminho para o rio, e um porto, um lugar de onde se parte e para onde se
volta.
O parentesco ashaninka se estrutura a partir de um modelo dravidiano,
onde os primos cruzados são cônjuges potenciais. Nos termos utilizados nas
relações entre parentes, essa preferência se mostra visível uma vez que as
palavras empregadas para tio e sogro são as mesmas, adicionando apenas o
sufixo -shori no caso do sogro ou sogra. O casamento entre primos cruzados,
ainda que seja o casamento em sua forma ideal, não existe como regra e as
configurações podem compreender uma ampla gama, excluindo-se apenas os
casamentos considerados incestuosos, como aquele entre primos paralelos.
Quando não é possível encontrar parceiras numa mesma comunidade,
recorre-se a viagens para outras aldeias, especialmente para aquelas onde se
pode encontrar um parente ou um afim, mas a tendência é a exogamia no grupo
doméstico e a endogamia na comunidade (Mendes, 2002). Os termos
empregados pelo ego masculino ou feminino variam de acordo com o gênero
daquele que fala e daquele sobre o qual se fala.
Alguns autores (Weiss, 1974; Mendes 2002) apontam uma tendência à
uxorilocalidade: o casal recém-formado preferencialmente indo morar no grupo
doméstico da mulher, a relação sogro e genro desempenhando papel central e
mantendo-se durante cerca de um ano num sistema de serviço da noiva – o
genro deve trabalhar para o sogro. O casal pode viver, temporariamente, na casa
dos sogros, mas deve logo construir sua própria casa e fazer seu roçado
independente. A tendência à coabitação no grupo doméstico da mulher, no
entanto, pode ser também flexibilizada. Após o casamento, o casal pode

49
escolher conviver com o grupo doméstico do homem ou da mulher. A principal
variável para definir onde o casal irá morar é o prestígio do chefe do grupo
doméstico, que deve articular tanto o fluxo de bens quanto, e este é talvez o mais
importante, um espaço onde se pode viver de maneira tranquila, em relações
harmoniosas e fundadas na cooperação. Assim, o grupo doméstico é liderado
por um homem, geralmente mais velho, com prestígio e habilidade para
promover a cooperação e o fluxo de bens para seus co-residentes. Uma família
nuclear pode, se o desejar, abandonar a qualquer momento seu grupo doméstico
para ir morar em um outro, ou fundar um novo.
Num grupo doméstico, as famílias nucleares ativam constantemente
relações de apoio mútuo e reciprocidade. Se os produtos do roçado são da
família nuclear, a caça é sempre repartida entre as casas do grupo doméstico.
O melhor exemplo da ativação da cooperação nesses grupos é o trabalho mais
pesado na derrubada da roça para o início de um novo ciclo de plantio, ou a
construção de uma casa. Uma instituição que hoje maneja essa rede de
solidariedade é a “minga”, que, os Ashaninka gostam de frisar, não era feita
tradicionalmente, constituindo-se como um empréstimo dos “peruanos”. A minga
é um sistema de mutirão que se fundamenta no grupo doméstico, mas se abre
para incluir outros parceiros, produzindo a obrigação de retribuir em círculos
maiores. Uma família nuclear que realiza uma minga fará da seguinte forma: a
mulher prepara a caiçuma (bebida fermentada de mandioca), o homem trata de
convidar seus parentes e afins para auxiliá-lo, por exemplo, na limpeza do
roçado. Ele deve prometer bastante bebida e, preferencialmente, uma refeição
feita de carne de caça. Os homens então se reúnem ao amanhecer para as
primeiras cuias de caiçuma na casa do anfitrião, e pouco tempo depois seguem
juntos para o trabalho na roça. A mulher ou uma de suas filhas acompanha o
grupo improvisando baldes e panelas como recipiente para a caiçuma que irá
matar a sede e estimular o trabalho dos homens. A mulher irá servir em cuias,
como no piyarentsi regular, a bebida àqueles que apareceram para ajudar.
Finalizado o trabalho, todos retornam para a casa da família para terminar de
beber a caiçuma que, a essa hora, já baixou mais da metade da grande caixa
d´água onde está armazenada. Caso haja comida, ela é servida em pratos ou
folhas de bananeira compartilhadas.

50
Quando um homem se dispõe a cooperar com outros numa minga, não
se subentende de forma alguma uma doação unilateral. Ele espera “pagamento”.
O pagamento principal é a caiçuma. Mas mais do que isso, espera-se que o
anfitrião de hoje responda positivamente ao chamado, numa próxima minga,
daqueles que trabalharam com ele. Como me explicou Claudio, morador do Rio
Amônia, aquele que só quer realizar as suas mingas mas não participa da dos
outros é alguém que não sabe se portar corretamente e, por isso, não terá a
continuidade da ajuda de seus companheiros sem que aprenda a reciprocar.
As relações de igualdade e reciprocidade não podem ser postas sem que
se reconheça igualmente o papel das relações de sedução e predação. A
composição mútua entre pessoas só é possível na manutenção da capacidade
de ver e ser visto como sujeito pelos seus parentes, o que implica a busca por
impedir a capacidade de captura pelo Outro. A relação entre caça e sedução é
tema explorado na teoria perspectivista e já foi enfatizada em muitos trabalhos.
Gostaria apenas de chamar atenção para o fato de que a sedução, entre os
Ashaninka, é modelo também das relações entre humanos.
Há uma tensão para harmonizar uma noção de privacidade – como
postulada por Overing (1991) – como uma espécie de dignidade da pessoa, que
não deve ter seus sentimentos tolhidos e invadidos (p. 14-15), e uma lógica da
sedução e do atravessamento pelo desejo do outro, que faz a agência sempre
relativa. Assim, todo casamento, separação, traição, assim como o adoecimento,
é provocado pela agência de um sujeito (Taylor, 2012). Todo sujeito é vulnerável
não apenas à atração que pode se originar numa entidade que, para aquele que
é por ela enredado, tomou forma humana, como também por seu semelhante.
Uma noção presente em diversos contextos indígenas e não-indígenas no
Peru, a “pussanga”, é hoje central nas relações ashaninka. Geralmente tendo
como veículo o cheiro, a pussanga é um encantamento produzido a partir de
plantas cultivadas, sementes, perfumes industriais e penas de animais, e é
direcionada para aquele que se busca atrair. As caiçumadas, me contaram as
mulheres ashaninka, é o espaço preferencial para os encantamentos com
pussanga: ela pode ser feita esfregando as folhas na cushma da pessoa que se
quer atrair ou utilizada como perfume para se banhar e se fazer passar perto,
fazendo com que o outro inale. Pode também ser misturada à pasta de urucum
e assim feita num desenho com intenção de seduzir (Beysen, 2008). Aquele ou

51
aquela que é seduzido – a se encantar ou desgostar de alguém – é visto como
levado a agir pela pussanga. A pussanga conduz a pessoa que foi seu alvo a
seguir um caminho25.
Shomõtsi é um dos moradores mais velhos do rio Amônia. Quando jovem,
andou por muitos lugares, vindo do Peru. Ele vivia com a esposa e seus sete
filhos. Quando o menor deles tinha poucos meses, um homem botou pussanga
para que a mulher deixasse de gostar de Shomõtsi. Ela mal podia sentir o cheiro
do marido após o feitiço. Abandonou ele e os filhos, pois não podia mais viver
junto. Shomõtsi então cuidou das crianças e ao menor deles dava macaxeira que
ele mesmo mascava. Sofreu muito para cuidar do filho, disse ele. No momento
em que Shomõtsi me contou essa história, um outro filho seu, Otxe, professor na
Apiwtxa, comentava e traduzia partes do que havia dito o pai.
Ele contou que foi no tempo em que o pai estava trabalhando no Tamaya,
rio peruano, para um patrão madeireiro, que o feiticeiro botou a pussanga. O
feitiço feito pelo homem não era para se casar com a sua mãe, apenas para fazer
com que ela desejasse largar o marido. Quando a mulher se separou de
Shomotsi ainda mamava no peito o mais novo, hoje um homem casado e com
filhos. Mas ele costuma arranjar confusão em caiçumadas, se meter em brigas.
Otxe diz que o pai sempre fala para o filho, aquele para quem mascou macaxeira,
que “sofreu muito para ele crescer” e que, por isso, ele deveria “trabalhar para a
mulher dele e não fazer problema”, já que quando era pequeno, Shomotsi o
alimentou. Lembrei-me imediatamente, quando me contavam essa história, da
afirmação de Gow de que para os Piro o parentesco é produzido na memória
das relações de cuidado e afeto na infância – a alimentação como a principal
delas (1991: 193). Esse cuidado é literalmente feito corpo. O filho mais novo de
Shomõtsi não mostrava, em suas atitudes, a memória do cuidado que o formou
como pessoa, e por isso o velho reclamava. Ele sofreu para criar o filho, mas o
cuidado não foi depois retribuído.
O exemplo de Shomotsi deixa entrever algumas questões interessantes,
como os deslocamentos ashaninka e a importância da partilha da comida nas

25
Uma nota do tradutor Paulo César de Souza no livro “Além do Bem e do Mal”, de Nietzsche (2005: 188),
aponta que “A palavra Verfubrung, que é normalmente traduzida por ´sedução´, tem o sentido literal de
´desencaminhamento’. O prefixo ver- denota erro ou desvio neste caso (como o nosso des-), modificando
o sentido do verbo seducere, em latim: ‘conduzir para o lado, desviar’”.

52
relações de parentesco. Mas é interessante também por outro motivo. No mesmo
dia da conversa com Shomotsi e seu filho, segui com Otxe e outro de seus irmãos
para uma caiçumada na casa de seu cunhado. Lá, por coincidência, estava a
mãe de Otxe, cuja história de feitiço pela pussanga me havia sido contada pouco
antes. A mulher mora há anos junto aos Apolima-Arara porque “não gosta de
viver junto de kamparia” (como referia-se aos Ashaninka antigamente, uma
variação do termo Kampa), me disse. O irmão de Otxe, que havia também
acompanhado o relato do pai, pediu para a mulher que também me contasse a
mesma história. Ela, contou e, também, afirmou que depois do feitiço nunca mais
havia se casado. Teve outros filhos, mas nunca mais viveu junto de nenhum
homem. Nenhum de seus filhos a responsabilizavam por abandono. Ela fora
levada, pela magia da pussanga, e não havia qualquer culpabilização da mulher.
Aquele que foi objeto da pussanga é assim retirado de seu caminho e levado a
fazer e desfazer relações.
Para além das relações amorosas, a sedução se mantém como idioma
que organiza a socialidade. Se não há ordens, também não há solicitações
diretas. As únicas situações em que se convida explicitamente alguém são para
beber caiçuma e para comer, regra que nunca é quebrada – se refeições serão
servidas e visitantes estiverem em casa, eles são sempre convidados a se juntar.
Beysen (2008) conta de situações entre os Ashaninka do rio Envira que são um
ótimo exemplo do que viemos discutindo, por exemplo: um homem que precisa
de ajuda no roçado não vai nunca dizer: “quero que você me auxilie, o trabalho
é pesado”, mas dirá de passagem para o roçado: “estou indo lá e tem muitas
bananas, você poderá comer também” (p.31).

2.3 - Os Ashaninka e os Outros


Gow (1991) aponta dois extremos da diferença para os Piro, pontos fora
das possibilidades de parentesco para as pessoas nativas: os “brabos”, índios
que vivem “isolados” na floresta e não possuem conhecimento civilizado; e os
“gringos”, os “brancos verdadeiros”. Entre os Ashaninka, essas duas categorias
também funcionam como alteridades radicais. Dos brabos, que chamam
genericamente pelo nome de um dos grupos que viam como inimigos, Amahuaca
(Pimenta, 2018), eles contam histórias de como esses índios temiam as flechas
dos guerreiros Ashaninka, e que os fizeram desaparecer do rio Amônia.

53
Amahuaca hoje, explicam, só no Peru, “mas agora já estão civilizados”. As
histórias que ouvi falavam de características sempre negativas nos brabos,
especialmente do hábito de entrarem sorrateiramente nos assentamentos
ashaninka, enquanto as famílias dormiam, para roubarem panelas, comida e
roupas. Certo dia, quando um primo de Isaac, filho de uma irmã de dona Piti,
tomava caiçuma conosco da aldeia, ele, seu Cláudio e outros homens presentes
passaram a conversar sobre os tempos em que os brabos ainda habitavam o rio
Amônia e saqueavam os assentamentos dos seringueiros quando estes se
ausentavam para o trabalho. Contaram da aliança que tinham, já que os
Ashaninka protegiam os seringueiros perseguindo os Amahuaca. Na casa feita
para a cooperativa da Apiwtxa, onde ficam expostos os artesanatos para
comercialização, há também um artigo que é curiosamente o único exposto por
lá que não pode ser vendido: um cinto de dente de macaco que veio de um brabo
que fora morto nas cabeceiras do Envira26. Tal como para os Piro (referência
Gow), os gringos são figuras poderosas e potencialmente maléficas. Evocam a
imagem dos pishitacos e pelacaras, descritos por Gow (1991, 2003), Santos
Granero e Barcley (2010) e lembrados por Taussig (1993), que buscam predar
e extrair as energias vitais e substâncias corporais dos índios. Santos Granero e
Barcley (2010) analisa essas imagens e suas recomposições como uma
interpretação e resposta dos Ashaninka à violência que lhes foi imposta nas
relações com os brancos, produzindo assim uma leitura das características anti-
sociais dessas figuras de alteridade. Segundo os autores:

As histórias que circulam entre os awajún, wampis e ashaninka


sobre seres sobrenaturais brancos que os importunam para
despojá-los de suas forças vitais se referem tanto aos brancos
peruanos, quanto aos estrangeiros “gringos”. De acordo com as
cosmologias desses povos, os brancos como categoria
ontológica não são seres inteiramente humanos (2010: 42).

Para buscar tratar dessa questão para os Ashaninka, conto uma história
que se desdobrou durante os dois meses que passei na Apiwtxa em 2014 e que

26
No Rio Envira os Ashaninka compartilham a TI com grupos isolados e os conflitos são antigos. Para
uma análise especialmente das relações desempenhadas pela FUNAI na mediação com os Ashaninka,
como parte da política de evitar o contato, ver tese de Ioris (1996).

54
retornou como questão, um pouco amortecida nos momentos posteriores da
pesquisa, depois de passados os eventos que descrevo.
No final de julho de 2014, cheguei um dia na casa de Dona Piti e duas
mulheres que moram no Estirão, subindo o rio Amônia, estavam sentadas num
dos bancos de madeira da casa de Dona Piti e Seu Antônio. Suas expressões
eram mesmo de pavor. Os donos da casa estavam deitados do outro lado da
habitação, em suas redes. Dona Piti, antes de me explicar o que havia
acontecido àquelas mulheres, perguntou o que sabíamos sobre discos voadores
e seres extraterrestres. Depois contou o motivo do temor: no dia anterior, “na
boca da noite”, por volta das 19h, uma forma que parecia uma nave, como as
dos filmes que passam na televisão, fez voo por cima das casas onde moram os
que compõe o grupo doméstico das mulheres que eu havia encontrado na casa
de Dona Piti. Aquilo que sobrevoava fazia brilhar uma luz muito forte, que era
branca, mas ficava verde, azul... Aquilo ficou voando no alto e depois de um
tempo voltou a aparecer baixinho, na altura das árvores do terreiro e iluminou
todas as casas do assentamento. As mulheres disseram a Dona Piti que o que
viram se parecia com olhos que emitiam uma luz forte demais. Nesse momento
em que a “coisa” baixou, todos, com medo, se jogaram das casas para se
esconder embaixo do assoalho. No desespero, a filha de uma das mulheres que
se encontrava ali, grávida, pulou com o outro filho no colo. As casas ashaninka
são sempre suspensas, e podem ser bem altas. Na queda, a mulher sofreu um
aborto. Outra mulher, disseram, olhou de perto e diretamente para a luz e ficou
“meio doida”. Passado o evento, ela estava voltando a si, mas ainda atordoada.
Aquelas mulheres não queriam voltar para casa ainda. Passaram quase uma
semana se dividindo entre a casa de Dona Piti e Seu Antônio, e a do filho deles,
Moisés. Naquela mesma noite do acontecido, outro morador, que estava
acampado numa praia do rio, viu também aquela luz passando.
Dona Piti e Seu Antônio então passaram a contar que no Peru eventos
como esse acontecem há muito tempo. O chefe dos Ashaninka disse que são
coisas que muita gente viu no tempo do bisavô dele. Mas que no Amônia, “desse
lado da fronteira”, é coisa nova. Eles contaram ter visto pela primeira vez dois
anos antes de nossa conversa, mas que viram só bem alto, passando por eles
acampados na praia. No Peru, disse Antônio, contam histórias de que a nave
levava gente para estudar seus corpos e que outras vezes pegavam as pessoas

55
e tiravam toda a pele, abrindo pela parte de trás da cabeça para retirá-la por
completo. Depois largavam o que havia restado. Outra coisa que faziam, me
disse Seu Antônio, era matar alguém e pendurar a pessoa pelos pés e então
retirar toda a banha para utilizar para fazer voar avião pequeno. Seu Cláudio,
morador da Apiwxa, em outro momento me contou que os gringos haviam
também montado hospitais numa aldeia Shipibo, e lá faziam experiências com
os corpos deles e de seus vizinhos, inclusive Ashaninka. Outros homens
posteriormente me contaram histórias que aconteceram no Peru, onde o
pelacara, depois de retirar os órgãos do corpo, deixava sacos de dinheiro na
barriga e costurava por cima (apontado também em Gow, 1991: 245).
O pelacara passou a aparecer todas as noites. Muitas famílias deixaram
de acampar nas praias naquele verão, temendo encontros infelizes. As crianças
faziam desenhos das “naves” do pelacara na escola e os homens mais valentes
diziam sonhar em matar os invasores. Alguns especulavam a relação entre os
eventos da presença do pelacara e as casas com crianças pequenas, concluindo
que devia se tratar de tentativas de sequestro dos mais novos. Outros afirmavam
que o objeto pretendia com suas luzes paralisar e enfeitiçar as pessoas para
mata-las e levar seus órgãos para famílias de gringos. Ainda outros,
especialmente as lideranças, passaram a levantar a possibilidade de tratar-se de
câmeras operadas por drones, para monitoramento dos Ashaninka. Vi algumas
vezes serem feitas relações entre a presença de pessoas estrangeiras – uma
mulher francesa, representante de uma ONG que desenvolvia um projeto na
comunidade e um pesquisador brasileiro, que, no entanto, morava nos Estados
Unidos – e o aparecimento dos pelacara.
Seu Cláudio refletiu assim sobre os eventos:

Vamos falar do pelacara, como diz peruano, pelacara. Só


na cara tira... E leva. No Peru, quando eu era pequeno, dez
anos, assim como menino agora, eu já sabia de história do
pishitaco, que chamava no Peru pishitaco. São gringos.
Saiam no Peru os gringos, que consquistaram todo
Ashaninka, fizeram colônia, que chamava primeiro colônia.
No Peru, quem começou a botar escola foram os gringos,
não peruanos, os gringos, que ajudavam Ashaninka.
Ajudava todos, Shipibo... Botava escolas. Quem botava
escola eram os gringos, botavam escola em cada
comunidade, ajudava a estudar para não ter nenhum

56
Ashaninka ou Shipibo sem saber ler, sem saber escrever,
aí botavam escola. Esses eram os gringos, botavam escola
e faziam comunidade. Fazia comunidade em todo canto, os
gringos. Aí pegaram Ashaninka. Até o Pajonal, até no Alto
Ucayalli... São gringos. Ai botaram escolas em tudo, e
depois de uns anos, não sei se uns vinte anos, começaram
a aparecer os pishtaco, começaram a matar. Começou
primeiro com Shipibo, que chegaram [para os Ashaninka]
e disseram que viram pishitaco. De noite saía e matava
Shipibo com um pau assim... Chama cassetete né, um pau
pra matar. Eles pegavam assim. Na praia, quando achava
ashaninka dormindo aí ele levava. Era pishitaco, que
chamava lá no Ucayali. Acontecia isso e todo mundo sabia
que o pishitaco matava e tirava óleo, levava e tirava óleo,
fazia tudo, fazia conserva... Os pishitacos, os gringos. Aí
tinha colônia, com casa assim, tinha gringo, umas cinco
casas, uma bem grande do tamanho dessa arvore, não sei
se uns 50 metros. Ninguém entrava, só escutava o motor
funcionando todo dia, máquina assim. Não se sabia o que
estavam fazendo lá dentro. Era pishitaco. Quando pegava
pessoa, ele tirava o óleo.
O presidente peruano não fazia nada, né. Nem obrigava,
vamos dizer: "vamos matar esses gringos que estão
acabando [com os índios].". Não faziam nada. Até hoje.
Mas hoje acalmou. Mas não acabou, o pishitaco. Ele
continua fazendo essas coisas. Aí esses tempos, há mais
de 10 anos atrás, disseram: "não tem mais", mas daí
apareceu pelacara, que chamavam agora pelacara, que
disseram que estavam pelando a cara da gente. Por isso
que chama pelacara. Agora já apareceu outro.
Ninguém sabe o que está dentro dessa bola... Se são
pessoas, pessoas para matar a gente... Esse tempo, esse
pelacara já saiu do Peru. Por isso as pessoas estão
preocupadas agora. Porque disseram que já viram. As
pessoas que viram disseram que é gente. Só desce aqui
mesmo, em terreiro, desce onde está silêncio, onde não
tem muitas pessoas, escondido mesmo. Aí sai e aí mata a
pessoa e leva. Mas esse aqui [que apareceu agora] agora
não se sabe se é pessoa, se é a mesma coisa que no Peru
e está vindo pra cá. Ninguém sabe. Eu estava esperando
a Funai também, mas não chegou.

A situação estava preocupando tanto as famílias, que as lideranças


solicitaram uma investigação da Polícia Federal, que foi até a aldeia, entrevistou
os moradores e visitantes, como eu, mas nunca deu resultados. Sem poder dizer
como a história se desdobrou entre os Ashaninka – um ano depois, quando

57
retornei, o pelacara já não aparecia mais nem no céu nem nas conversas.
Quando eu insistia em perguntar, as respostas eram bem pouco elaboradas.
Entre os gradientes brabo e gringo há um universo de gentes, inclusive
brancos que já foram potencialmente domesticados pelos Ashaninka e assim
tiveram suas características predatórias apaziguadas. Com eles é possível hoje
desenvolver projetos. A mediação com essas gentes é feita através dos filhos de
Piti e Antônio.

2.4 - Puros e misturados


Certo dia, o professor Otxe, me convidou para tomar caiçuma em sua
casa, do outro lado do rio. Éramos eu, meu companheiro e filha, a esposa do
dono da casa, seus filhos e poucos homens. Ele me perguntava sobre os
projetos que estavam acontecendo na comunidade27. Ele me dizia que ainda que
esses projetos fossem discutidos ou apresentados em reuniões, a comunidade
não entendia necessariamente do que se tratavam. Quem entendia de projetos
eram as lideranças, aqui fazendo referência aos irmãos Piyãko. Logo depois ele
passou a me contar que há mais de 10 anos, numa reunião chamada por uma
dessas lideranças, foi decidido (segundo ele, pelos irmãos Piyãko) que os
casamentos interétnicos poderiam tornar-se um problema para a comunidade e
que por isso estavam proibidos. Mas, como disse ele, os casamentos com
pessoas de fora continuaram a acontecer dentro daquela família. Ele então
passou a formular, sob os olhares e ouvidos atentos dos outros homens, que
falavam ou davam sinais de concordância, sua percepção da mistura de
sangues.
Segundo ele, os irmãos Piyãko eram uma mistura de branco e ashaninka,
porque assim eram seus pais. Já seus filhos, e então mais ainda seus netos,
estariam cada vez mais próximos do polo branco, mais misturados. O professor
citava uma mulher, filha de uma das filhas de Antônio e Piti, cujo pai não era
indígena. Seu cabelo era encaracolado e sua pele branca, diferente do cabelo
liso e da “cara de índio” dos Ashaninka “verdadeiros”. Essa mulher teve uma filha

27
Naquele momento desenvolvia-se, com patrocínio do Banco do Brasil, um projeto de
construção de açudes, além da mobilização para um grande projeto, iniciado alguns meses
depois, com fundos do BNDES e da ida de uma equipe de uma marca de roupas que havia
desenvolvido uma coleção inspirada na arte ashaninka.

58
com um pai também branco e por isso, era difícil dizer que a menina era
Ashaninka, segundo ele, embora ela estivesse sendo criada na aldeia, junto com
os Ashaninka. Depois de elencar casos, ele concluiu que daqui a pouco tempo
mais casamentos com pessoas de fora iriam acontecer, não apenas na família
Piyãko. Contou que ele mesmo, quando se casou, não teria casado com uma
mulher ashaninka se pudesse se casar com alguém da cidade. “Daqui há 10, 15
anos, vamos ser todos misturados”, terminou o assunto.
Essa ênfase num modelo genético, estranho às descrições amazônicas
onde a consanguinidade é aquilo que é englobado pela afinidade e que precisa
ser produzido ativamente, me chamou atenção. O corpo dos irmãos Piyãko, de
seus filhos e netos aparecia assim como um dado de nascimento, feito do
compartilhamento de substâncias de seus pais e que os fazia diferentes,
fisicamente e epistemologicamente. Esta impressão se manteve em conversas
como a que destaco abaixo, com Dona Piti, que evidencia a mistura de sangues
que define o modo de ser de seus filhos. Numa entrevista, ela compartilhava
comigo sua análise sobre o papel deles na luta pela demarcação da TI e pela
manutenção da comunidade, e dizia que:

Eles, os índios mesmo que não tem nenhuma parte do


branco, é difícil pegar essa marcha. É difícil pegar essa
rota porque tem outra cabeça, outra memória, outro
jeito, sabe? O índio mesmo, ele não tem isso não... Ele
tendo uma roupinha pra vestir, um pedacinho de comida
pra comer, não tá nem aí. Para juntar um povo desses,
como foi junto aqui... Os meninos [seus filhos, lideranças]
lutam aqui, os meninos lutam lá no Breu, lutam lá no Envira,
não sabe? É uma luta grande a desses meninos. Se fosse
só eles mesmos sem ter um sangue de branco, acho
que eles não lutavam assim não. Digo eu assim. Porque
tendo por esses que tão aqui... Não tão nem aí... Tendo
uma comidinha pra comer... Eles não são pessoas
ambiciosas, eles não são pessoas invejosas. Índio não é
invejoso. Índio não gosta de inventar coisa. O índio não
sabe dizer não. Os que são é porque já aprenderam com o
branco (Dona Piti – entrevista na aldeia Apiwtxa, 2015).

Essa concepção de corpos distintos formados pelo sangue de seus pais


fica também explícita numa fala de Komãyari, professor ashaninka, em uma das
oficinas que desenvolvemos para a escrita do Projeto Político-Pedagógico da

59
escola. Tratávamos das diferenças entre a formação promovida pela CPI/AC,
que deu início aos cursos para professores indígenas no estado, e a SEE/AC,
que, como veremos detalhadamente no capítulo IV, passou a responsável por
essa formação no início dos anos 2000. A crítica de Komãyari centrava-se na
oposição entre um modelo universalista da SEE e um outro que tratava das
especificidades de cada aldeia, para frisar as diferenças entre as crianças
brancas, Ashaninka, e aquelas oriundas de uniões interétnicas na Apiwtxa. Nas
palavras do professor:

A Secretaria [Secretaria de Educação do Estado do Acre]


fala mais da educação nacional, da educação do comum,
de todos. "Tem que ser ensinado assim, isso tem que ser
aprendido, a aprendizagem tem que ser assim, a educação
da criança é assim..." Ele não pensa que o aluno indígena
é diferente do aluno branco, das crianças brancas, dos
jovens brancos. Então essas coisas eu vejo também... A
CPI pensa na realidade, na diferença de cada índio, que é
diferente de branco. Ensinar o branco é diferente de
ensinar indígena. Até pensando aqui, eu não sei se os
professores podem perceber também, pois tem
experiência aqui. Por exemplo, eu vejo diferença. Aqui
bem pertinho, nós aqui. Alunos como a Luisa, o Owiro
[filhos de Moisés]. É diferente daquele aluno indígena
puro, é diferente... O Pãwoyte, a Eeriki [filhos de Isaac],
é diferente. [Otxe interrompe e diz para mim: "é aquilo
que eu falei pra você aquele dia na minha casa"]. Então
imagina o não indígena puro, branco? É diferente de
nós, dos nossos alunos. Até comportamento, o jeito de
escrever, de estudar com o professor... (Komãyari – Oficina
para elaboração do PPP, 2015).

Assim, observa-se que esse professor também utiliza os idiomas da


pureza e da mistura, sendo a mistura a criação de um outro corpo, diferente tanto
do Ashaninka quanto do branco.
Numa entrevista com Enisson, jovem professor filho de Irãtxo e Lethero,
homem peruano não-indígena, eu perguntava sobre a alfabetização das crianças
filhas de casamentos interétnicos, pois eu notava certos constrangimentos de
algumas delas na escola, que nos primeiros anos é exclusivamente vivenciada
em língua asheninka e depois se mantém como língua da quase totalidade das
interações. Irãtxo e Lethero, deve-se ressaltar, são o único casamento misturado
além daquele de Dona Piti e Seu Antônio e seus descendentes. Enisson, em

60
nossa conversa, me disse que: “[q]uem tem mais dificuldade é a família do nosso
cacique. Eles não falam bem a língua. Mas Ashaninka mesmo aqui, o próprio
Ashaninka mesmo, ele não tem dificuldade com a língua” (Entrevista realizada
na Apiwtxa em 2014). Quer dizer, para ele a língua e o seu domínio são parte da
identidade do “Ashaninka mesmo”, e, sendo ele também filho de um casamento
interétnico, este fator, a mistura, que parecia implicar igualmente sobre ele, ao
menos isoladamente, não fazia de alguém algo diferente de um Ashaninka puro.
A partir disso, comecei a me perguntar sobre o papel da mãe nessa construção
da variação ashaninka, pois os irmãos Piyãko, sendo filhos de uma mulher
branca, tiveram a língua portuguesa como primeira língua em casa, mantendo-
se também durante sua infância e, no caso dos mais velhos, parte da juventude,
em contato estreito com a família de Piti, que antes da demarcação do território
vivia nas proximidades, compartilhando espaços e relações. Enisson e seus
irmãos, por outro lado, apesar de terem pai branco, falam o português como
segunda língua, e suas irmãs, sobretudo, falam quase somente o asheninka.
Lethero, assim como Piti e as mulheres não-indígenas que vivem na
comunidade, evita falar em língua asheninka, e não usa a cushma. No entanto,
as relações dessa família restringem-se hoje, basicamente, ao contexto intra-
aldeia, e todos os filhos de Irãtxo e Lethero casaram-se na comunidade (o que é
exceção apenas para os dois filhos mais novos do casal, ainda solteiros).
Sobre esta família, ou sobre os filhos de relações pontuais com os
brancos, como de uma filha de Joana e Alípio, que se envolveu com um visitante
numa festa sem com ele se casar, e que desse encontro teve uma filha que é
criada pelos avós maternos, não ouvi nenhuma vez se falar em mistura, ou em
qualquer composição em que eles aparecem como menos “puros”. Por isso, a
percepção que parecia se produzir, de uma concepção genealógica do
parentesco, que determinaria a priori puros e misturados pelo sangue de seus
pais, se mostrou insustentável. Ao mesmo tempo, não é possível ignorar a
proposta de Dona Piti, de que os sangues branco e ashaninka que formavam
seus filhos lhes permitiam agir de determinada forma diferente, ou a ideia
apresentada por Otxe de que a mistura progressivamente tomava o corpo dos
Piyãko numa escala de gerações
Além disso, a previsão inevitável da mistura futura, em outros momentos
é vista como algo que deve ser impedido de acontecer. O mesmo professor que

61
havia afirmado que em pouco mais de uma década todos na Apiwtxa seriam
misturados, me disse numa entrevista poucas semanas depois, em relação a
sua própria família que:

A preocupação nossa, até com a minha filha, é assim,


quem quiser casar, juntar com ela, muito bem. Se for do
povo Ashaninka. Se minha filha casar aqui, muito bem.
Porque casou com Ashaninka. Eles vão ensinar mais na
língua, porque aqui no nosso território, [as pessoas] são
Ashaninka. Agora, se minha filha casasse pra puxar lá pra
fora [com um branco], pra cidade, é outra coisa. Vai chegar
muito problema para nós. Com isso temos que ter cuidado
mesmo.

A mistura é indiciada sobretudo pela mistura nas línguas. Segundo


Aricêmio, velho xamã na Apiwtxa, as pessoas da família Piyãko falam enrolado,
“mistura [a língua] asheninka com brasileiro, com peruano”. A interpretação da
mistura que avança a cada geração parece também ter relação com isso, e o
problema que alguns de meus interlocutores parecem apontar é o da
intensificação da mistura pelo casamento, que progressivamente leva a uma
mistura das línguas e dos jeitos. A família Piyãko é a exceção às práticas
matrimoniais que sugerem a endogamia na comunidade, já que os casamentos
nessa família têm acontecido, sobretudo, com pessoas não-Ashaninka –
brancos, mulheres Yawanawa (caso hoje de Wewito e Francisco) ou homens
Kuntanawa (caso de Dora e de uma de suas filhas, Eerishi) ou Apolima-Arara
(caso de Kenashe, filha de Isaac). A questão, então, é uma preocupação com a
continuidade das misturas nas gerações descentes dos filhos de Antônio e Piti,
uma vez que dentre os netos e netas adultos de Piti e Antônio, nenhum casou-
se na comunidade.
Perguntei para Dona Piti sobre a criação de seus filhos e da capacidade
deles de transitar entre dois mundos, e ela me disse que:

Eu ensinava só o português, a língua eles aprenderam por


eles mesmos, com o povo deles eles foram aprendendo.
Nem o Antônio ele não conversa, é difícil ele conversar na
língua. Ele acompanhava mais os filhos dele no português.
Mas eles aprenderam por eles mesmos, porque a gente
morava sempre com eles, não morava junto com os
brancos. Então eles cresceram e foram conversando todo

62
o tempo. É como esses meninos aí ó [apontando os netos
que brincam na paxiúba], sabem porque foram criados o
tempo todo junto com os índios. E a escola veio depois pra
aqueles que não sabiam bem, a escola ensinou muito
também”.

Quando se define como contexto o interior da comunidade, se separa um


conjunto que aparece como homogêneo liderado por uma família feita na
mistura, mas em outras situações e relações, as que envolvem diretamente
outros Ashaninka e outros brancos, as diferenças marcadas ali podem dar lugar
a semelhanças que se opõe a distinções mais amplas.
A ênfase no corpo feito na mistura branco/ashaninka, para os irmãos
Piyãko e seus descendentes, deve ainda ser equacionada com um dado que se
destaca na pesquisa de campo e já apontado na etnografia de Pimenta (2002),
a saber, o papel das lideranças na articulação de um discurso e de uma prática
voltados à “tradição” e à “cultura”, que estruturaram a comunidade e direcionam
hoje a relação com o mercado de projetos. Quando da visita de Seeger e Vogel
ao rio Amônia em 1978, os antropólogos notaram que:

Os regionais – seringalistas, madeireiros, autoridades civis,


militares e eclesiásticas – que nos tinham fornecido as
informações preliminares sobre os grupos indígenas do Alto
Juruá, foram unânimes na afirmativa de que se tratava de
caboclos “civilizados”. (...). Tendiam a vestir-se como nós,
falavam português, bebiam cachaça e dançavam nos forrós.
Trabalhavam para obter e consumir produtos da sociedade
nacional (Seeger e Vogel, 1978: 38).

Como sugeri no primeiro capítulo, a valorização cultural como política não


apenas interétnica, mas de produção de uma comunidade de iguais que se
libertam dos patrões liderados por lideranças misturadas, é central no movimento
dos Ashaninka do rio Amônia nos últimos anos, e, como veremos ao longo deste
trabalho, inseparável do projeto de escola na Apiwtxa.
A comunidade dos Ashaninka tem relação estreita com a chamada
“Aliança dos Povos da Floresta”, movimento que colocou em relação de aliança
índios e seringueiros no Alto Juruá. Os caboclos do Alto Juruá, como foram
descritos os índios dessa região para Seeger e Vogel, como vimos no fragmento
acima, se tornaram, como efeito dessa aliança e das mobilizações que deram a

63
ela continuidade por outros meios, depois de seu fim, o protótipo da “tradição”.
Almeida e Pantoja notam que:

O exemplo dos Ashaninka, em sua Terra Indígena, próxima a


sede municipal, foi particularmente impressionante:
menosprezados como ‘os Campa’ até 1990 pelo menos, já
após a virada do século, a principal parentela deste grupo
havia se convertido em uma das principais forças políticas
indígenas do estado do Acre, como porta-vozes da
conservação ambiental e do tradicionalismo étnico, como
líderes de projetos ecológicos e econômicos exemplares, e
como participantes da administração estadual (Almeida e
Pantoja, 2011: 124).

Outra coisa que se deve destacar é que nos exemplos que apresentei a
partir das falas de meus interlocutores Ashaninka, a mistura não leva
progressivamente à pureza branca, apenas a gradientes outros da interação
entre os sangues. Nunca ouvi que os Piyãko eram brancos, ou que no futuro os
moradores da Apiwtxa seriam eles brancos. O componente Ashaninka
permanece presente, deslocando sempre a possibilidade de uma perspectiva
englobante que anule a parte indígena.
Algumas reflexões importantes têm sido desenvolvidas para dar conta de
uma questão que exige um princípio de precaução para ser interpretado: o
fenômeno de sujeitos e grupos indígenas dizendo explicitamente que estão
“virando brancos”. O que autores como Vilaça (2000), Kelly (2005; 2016) e Nunes
(2010; 2014) apontam é a impossibilidade de pensar esse fenômeno pela chave
das teorias da aculturação ou da transfiguração étnica. Isto porque, afinal, se
num contexto os atores sociais afirmam essa transformação, em outros, quando
são relações diversas que permeiam quem fala e para quem se fala, se confirma
uma diferença marcada com relação aos brancos.
Kelly (2016) afirma que no caso Yanomami, a composição da pessoa
dupla Yanomami/ nape é específica para o contexto de interação com os não-
yanomami, como aquele com as equipes de saúde com quem se relacionam de
forma mais ou menos distante dependendo da posição que ocupam, tendo o rio
como parâmetro. Essa noção de pessoa dual é emprestada, aponta o autor, dos
sistemas xamânicos e da alternância entre pontos de vista que neles se realiza,
especialmente nos processos que configuram a doença e a morte (p.51). O

64
processo de “hibridização” yanomami, assim, não funde as diferenças, criando
uma identidade misturada, porque o que acontece é uma operação de adição de
uma nova socialidade vizando a manutenção de processos de diferenciação. O
sentido dessa operação é produzir efeitos políticos nas relações entre os
próprios grupos Yanomami. (p. 52), e ao mesmo tempo equalizar suas relações
com os brancos (p.54).
Dessa forma, a pessoa dupla Yanomami/nape não produz uma redução
da parte Yanomami. O mesmo sugeriu Peter Gow (1991) a respeito da mistura
Piro: a mistura não implica um coeficiente Piro diminuto. Ainda que estas
pesquisas apontem para práticas e discursos nativos diversos, elas têm em
comum algo que Kelly sugeriu num trabalho recente (2016): a incorporação de
novas identidades não implica a produção de híbridos como nas teorias da
mestiçagem.

2.5 - Aproximações e distanciamentos entre comunidades ashaninka


Os Ashaninka da Apiwtxa mobilizam em diversas ocasiões, além da
distinção interna puros e misturados, uma comparação, por contraste, com seus
vizinhos, também Ashaninka, de Sawawo, comunidade a quatro horas de
distância, atravessando pelo rio a fronteira com o Peru. Os que moram no país
vizinho, dizem eles, trabalham para os madeireiros, deixam de usar a cushma, e
alguns já estão esquecendo a língua nativa. Lideranças e pessoas mais velhas
da comunidade costumam, em reuniões e caiçumadas, reforçar a importância de
se viver em comunidade, em oposição à vida sob exploração pelos patrões, que
viviam antes. A comunidade de Sawawo é, para eles, o exemplo de que sem
uma comunidade organizada, não se pode ter autonomia. É também indicação,
na para muitos moradores do rio Amônia, de que seus vizinhos estão “perdendo
a cultura”, diferentemente deles.
Algo similar aparece na fala de Wewito, professor Ashaninka, comentando
a respeito de uma viagem que fez por diversas aldeias mais distantes, no Peru:

Eu fiz uma viagem agora que foi uma das mais importantes
da minha vida. Conheci toda a rota por onde eu ouvia falar
histórias. E onde eu passava eu estava preocupado com a
questão da educação. E é lamentável a gente ver isso com
o nosso povo. Eu ficava me perguntando e observando

65
como eles estão trabalhando. E eles não tem o apoio que
a gente tem aqui no Brasil, é totalmente diferente. Mas o
pouco que eu observei, a educação ela está acabando
com o nosso povo. Do mesmo jeito se nós aqui não
tivermos cuidado, não soubermos o que nós queremos,
nós também vamos nos ferrar. Por isso cada um de nós,
cada professor, nós temos que colocar isso dentro de nós
para que nós possamos fazer aquilo que é mais importante,
que é o da nossa cultura e fortalecer. A política lá é
totalmente destruidora. É madeireira, as empresas e
empresários que estão ali ao redor. E problemas que
aconteceram antes e não foram resolvidos, é o seu
território pequeno, de 30 hectares. É uma luta que eles têm
que trabalhar bastante, porque se for no caminho que está
indo daqui a uns 20 anos não tem mais ashaninka falante
no Peru. E eu falo isso porque vi a situação agora. É muito
triste. Isso eu trouxe comigo para poder ajudar naquilo que
eu achar, no que eu vejo que é importante de ser
trabalhado. Tudo o que é aplicado, é o governo que manda,
então para as comunidades não se fortalecerem, todo ano
eles trocam de professor, então o professor daqui vai dar
aula lá no Perené, mas vem de Pucalpa, vem de Lima, é
Shipibo... Todo ano troca de professor então ele não
consegue fazer um trabalho importante para a
comunidade. É complicada a situação. Quando eu olho
para eles lá e eu olho pra cá, aqui sim nós somos
Ashaninka de verdade. No rio Ene ainda tem Ashaninka
que veste cushma, aí tem mais... No Tambo tem algumas
comunidades. No rio Perene aí sim não tem mais nada. Só
os velhos que falam ainda alguma coisa e tem muito
conhecimento de histórias, da língua, de música, de seus
iwenki [plantas mágicas]. Mas não tem mais ãtame
[floresta] então eles dizem que perderam toda a medicina.
Se eles conseguirem ir para um canto que ainda tenha
floresta viva... Porque eles têm muito conhecimento, mas
lá não tem mais mata, é só uma capoeirazinha. Eu ficava
sonhando de noite. Pensava, rapaz, como que nós no
Brasil ainda tá forte, mas no Peru não... Se não tiver uma
mobilização forte daqui há 50 anos não tem mais
Ashaninka. Nem 50, porque os jovens já não falam mais.
Em Ucayalli, por exemplo, só fala peruano. No Perene
também. Eles têm vergonha de falar. Mas têm que assumir
o que é. Você ser ashaninka e assumir aquilo (Wewito –
Oficina para construção do PPP, 2015).

Ser Ashaninka de verdade, na fala de Wewito refletindo sobre o que viu


nas aldeias no Peru, ganha outros contornos quando as relações extra-
comunidade estão em questão. Nessas relações, os irmãos Piyãko aparecem

66
como representantes da comunidade do rio Amônia e dos projetos que os
permitem viver fora das imposições dos patrões. Aparecem ainda como
condutores de novas articulações com outras aldeias Ashaninka, participando de
uma costura de pessoas que, mesmo espalhadas numa grande área geográfica,
se enlaçam numa unidade momentânea e contingente.
Ainda que apareça uma identidade misturada e uma pura nas interações
na aldeia, não se pode perder de vista que qualquer identidade é ainda produto
de seu contexto relacional, e por isso se deve escapar de olhar o estatuto
misturado dos Piyãko como fixo e um produto de sua genealogia.
A política interna da Apiwtxa é também uma política externa. Enfatiza-se
no discurso das lideranças que manejar seu próprio mundo depende de saber
também se articular para compreender e atuar nos dos outros. Eles são afetados
pelos madeireiros que exploram a área que faz fronteira com seu território;
sabem que se as comunidades vizinhas na RESEX não produzirem também para
si seu auto sustento, mantendo a floresta que compartilham em pé, vão entrar
na TI para caçar; que os rios correm e levam o impacto de outros cantos para
eles. Souberam fazer, como bem apontou Pimenta (2002, 2007), do
ambientalismo dos brancos um meio de comunicação que transformaram em
política interétnica. As lideranças do Amônia tornaram-se porta-vozes da
“preservação ambiental” e exemplo de uma comunidade que vive do que planta
e caça retomando e produzindo biodiversidade num território que vinha sendo
devastado pelo maquinário pesado dos madeireiros. É a partir desse lugar que
eles falam com os brancos e, também, com outros indígenas, inclusive pessoas
Ashaninka de outros cantos. Apresento a seguir a descrição de um evento que
aconteceu durante um dos períodos de meu trabalho de campo, no sentido de
tornar melhor compreensível o que estou dizendo.
“Hay que seguir luchando”, disseram repetidamente as mulheres de
Saweto no fim de uma tarde, numa reunião na casa de Isaac, em junho de 2015.
Essas mulheres eram filhas e esposas dos homens que, fazia menos de um ano,
haviam sido assassinados quando utilizavam um antigo varadouro que conecta,
na distância de poucos dias de caminhada, a aldeia no Peru aos Ashaninka na
Apiwtxa. Esses homens, em especial Edwin Chota, travavam há anos uma luta
pela titulação de suas terras, e por isso vinham sendo ameaçados pelos
madeireiros e pistoleiros que organizaram a emboscada. Desses anos de luta

67
acendeu-se uma aliança estratégica com os moradores do rio Amônia, que
haviam passado pelo que as pessoas de Saweto passam no presente e haviam,
com a demarcação do território em 1992, superado a exploração dos madeireiros
organizando as famílias e produzindo modos de auto sustentação econômica
numa comunidade. Assim, as lideranças da Apiwtxa já haviam feito reuniões com
os Ashaninka de Saweto, e as lideranças da aldeia no Peru haviam visitado em
diversas ocasiões a Apiwtxa e traçado com eles acordos e modos de
cooperação. O caminho que eles faziam quando foram mortos era para mais um
encontro entre eles, no rio Amônia.
As mulheres contaram que os homens estavam “traumatizados” em
Saweto. Tinham medo de enfrentar os madeireiros, temendo o mesmo destino
de Chota e seus companheiros. Elas não podiam parar, pois seus maridos e pais
haviam morrido por isso, então era preciso continuar a luta deles e garantir o
reconhecimento oficial da comunidade28. O assassinato, interpretaram as
pessoas Ashaninka de Saweto e da Apiwtxa, era um recado para que não
agissem, tanto uns quanto outros, para pôr em risco os lucros e o controle dos
madeireiros sobre aquele território na fronteira.
Isaac foi o primeiro a falar após as mulheres, e foi quem conduziu a
reunião. Sugeriu um encontro na aldeia peruana para “fortalecer os homens de
Saweto” e passou a propor uma agenda conjunta baseada em dois pontos:
projetos de apoio que poderiam ser articulados com a Apiwtxa, e o fortalecimento
da organização comunitária de seus “parentes” peruanos. Uma das mulheres
presentes na reunião havia recebido um prêmio em dinheiro29, em nome da
comunidade de Saweto, como reconhecimento pela luta contra a extração de
madeira nos territórios indígenas. Isaac defendeu a importância de estruturar as
famílias e utilizar o dinheiro do prêmio em um projeto de “economia comunitária”
citando como exemplo e modelo a cooperativa da Apiwtxa. A comunidade, dizia
a liderança do Amônia, precisava encontrar formas para definitivamente se livrar
dos patrões, pois sem isso mesmo com a titulação eles se veriam necessitando
daqueles.

28
Eu me lembrava, ouvindo essas mulheres, nas mães que perdem seus filhos pelas mãos do Estado nas
armas de policiais. As mães de maio e o lema de “transformar o luto em luta”. As mulheres não têm
opção que não “seguir luchando”.
29
Entregue pela Fundação Alexander Soros.

68
Benki concordou com a análise de seu irmão Isaac concluindo: “Tudo o
que vocês passaram na terra de vocês, eu creio que foi por conta das
madeireiras”. Frisou a importância de trabalharem o diálogo com os vizinhos no
território, no sentido de impedir que mais mortes acontecessem. Defendeu a
criação de uma união entre os Ashaninka dessa região de fronteira e alertou
sobre a necessidade dessa articulação conjunta, lamentando a informação que
havia chegado até ele, de que em Sawawo, nas proximidades de Saweto e da
Apiwtxa, havia se realizado outro contrato com madeireiros para a exploração
dentro de suas terras.
A mulher mais velha vinda do Peru lamentou que em Saweto não se tinha
a mesma organização que na Apiwtxa, e que por isso, logo após a titulação (que
naquele momento já era certa, muito em consequência da atenção que o conflito
ganhou após o assassinato dos homens), deveriam organizar um grande
encontro para dar os primeiros passos, com auxílio da Apiwtxa, no projeto de
uma cooperativa.
A morte dos homens ativou também outras articulações de universos
ashaninka. Marichori, oriunda da Selva Central peruana, havia, em decorrência
dos assassinatos, retomado um contato, iniciado anos antes, e que havia se
estabelecido apenas pela internet, com Benki e Isaac. Ela chegou à Apiwtxa
alguns dias antes da reunião para o início de uma relação que se mantem até
hoje, com visitas entre pessoas Ashaninka desses dois lugares geograficamente
distantes. Presente na reunião, Marichori sinalizou que “A família Perene (rio
onde localizam-se aldeias Ashaninka) está muito atenta ao que acontece ao
redor do mundo Ashaninka” e que seu objetivo ali era promover e estreitar
relações entre diferentes territórios que compõe um mesmo povo. “A Apiwtxa é
um centro de muito valor, muito importante”, apontou, chamando atenção para o
lugar que hoje essa comunidade no Amônia tem de articular esse “mundo
Ashaninka”. Essa solidariedade étnica, que, como busquei discutir no capítulo I,
é em grande medida ausente na história conhecida dos Ashaninka, ou pelo
menos mantida historicamente num movimento de composição com a
atomização das famílias e o fechamento dos limites do que seria um “nós”, é
tecida hoje de forma que, como resumiu Cláudio, ao fim da reunião,
potencialmente todos os Ashaninka “são como família”.

69
A Apiwtxa, que fora definida numa brincadeira, feita em outro momento,
como a “Dubai amazônica” por Marichori, é, para os Ashaninka de outros
lugares, uma referência por sua organização, pela forma como se mantem
vivendo sem trabalhar para os patrões, pelos projetos que desenvolvem. Ao
longo dos períodos em que vivi na Apiwtxa, vi muitas pessoas chegarem e
saírem: pessoas Ashaninka das comunidades de Sawawo, Saweto, Shahuaya,
Dolce Gloria e também dos rios Breu e Envira do lado brasileiro da fronteira e
indígenas de outros povos como Kuntanawá, Huni Kuin, Poyanawa e Wayjãpi,
pessoas do governo do Estado e políticos locais; parceiros de projetos variados
– gente do BNDES, do Banco do Brasil, de ONGs estrangeiras e acreanas, de
uma grife de roupas; cineastas; pesquisadores e funcionários de equipes de
saúde, da Secretaria de Assistência Social, da Secretaria de Educação. Todos
com quem eu conversava comentavam com admiração sobre a Apiwtxa como
exemplo de uma comunidade bem organizada. Ricardinho, Ashaninka do rio
Envira, foi um dos que passou alguns dias no rio Amônia durante uma de minhas
estadias, chegando com pessoas da Comissão Pró-Índio do Acre para um
encontro para estratégias de articulação transfronteiriça, envolvendo não apenas
o Alto Juruá. Nesses dias na aldeia, ele conversou comigo sobre a vontade de
articular formações e intercâmbios para que pudessem também estruturar
melhor as comunidades no Envira. A escola, a cooperativa e os projetos eram
aquilo que, na visão de Ricardinho, eram a estrutura da Apiwtxa, e o que faltava
melhorar no Envira.

70
Figura 4 Mapa com a localização das Comunidade Nativas Sawawo e Nueva Shahuaya, limítrofes com a Terra Indígena
Kampa do rio Amônia. Fonte: Seter de Geoprocessamento da CPI-AC, Fev/2017.

2.6 - Dona Piti, seus filhos e a comunidade


Piti me contou numa entrevista, em 2015, que:

Eles [os filhos] queriam soltar muitas vezes, mas eu dizia:


“não pode não, porque você está lutando pelo seu povo.
Eu, que não tenho o sangue deles, já lutei esse tempo
todinho, e vocês que tem o sangue deles, vocês não vão
lutar por eles?” Quando eles querem falar que querem sair,
eu falo com eles e eles se juntam de novo. E eles [os
moradores da Apiwtxa] gostam muito deles, gostam muito
do trabalho deles. E eles dizem para os filhos deles que
precisa ajudar, precisa ajudar os meninos da Piti. “Quem é
de nós que vai ter um filho para ajudar, quem é de nós que
vai ter um filho como os filhos dela, para nos ajudar?” Eles
falam, quando estão numa reunião eles falam.

A mistura, ainda que expressa no idioma do sangue, passa além de


determinações puramente genéticas. Trata-se da ativação das potências da
alteridade e da diferenciação que são postas através do compartilhamento e
manutenção de relações da família Piyãko com a família de Chico Coló. A família
Piyãko recebe na aldeia tios e primos maternos, que quando visitam dormem na
casa ou de Piti e Antônio, ou de um de seus filhos. Eles participam de

71
caiçumadas e por vezes nelas contam histórias dos tempos passados do rio
Amônia. Comparecem a todas as celebrações na aldeia – da festa da
demarcação aos campeonatos de futebol com os regionais. Além disso, parentes
por parte de Piti são eventualmente chamados para trabalhar em projetos na
aldeia ou são contratados, por exemplo, como marceneiros. Além disso, quando
na cidade, as famílias dos irmãos Piyãko não ficam, como outros Ashaninka, a
dormir na praia, mas na casa de parentes ou nos alojamentos da Yorenka Ãtame.
Para fora do círculo de relações com a família de dona Piti, os irmãos costumam
viajar com frequência, geralmente para representar a comunidade a convite de
parceiros de projetos.
Minha hipótese é que, para haver uma unidade sempre a se fazer em
torno de uma comunidade, os Ashaninka do rio Amônia escolheram orbitar no
entorno de lideranças que aparecem como misturadas, feitas do sangue das
famílias de Samuel Piyãko e Chico Coló, que, assim, permitem que as demais
famílias apareçam como puras, como iguais. É a partir dessa diferença
interiorizada que se produz um corpo coletivo puro.
Proponho um exercício de pensar a relação pessoas puras / lideranças
misturadas, como uma dualidade estruturalmente análoga, hoje, àquela entre um
marido e uma mulher no matrimônio. A relação marido e mulher baseia-se na
existência de uma mútua demanda (Gow, 1991) que é também uma co-
dependência, uma vez que eles são uma unidade produtiva que não pode ser
completa sem os trabalhos que são desempenhados exclusivamente por cada
um no par. É a sua diferença o que pode produzir a relação entre eles. No caso
da comunidade, ela é produto dessa relação de composição mútua entre as
lideranças – que por conta de seus corpos misturados podem agir para extrair
dos brancos projetos, experiências, mercadorias – e as famílias que foram
atraídas para viverem juntas sob a condição de as lideranças não serem como
os patrões, e, portanto, serem generosas. Na relação entre os puros e
misturados, de suas mútuas demandas, produz-se continuamente comunidade.
Se, como sugerem Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979), a
corporalidade, como idioma relacional, é um conceito que permite interpretar
papeis sociais – como chefe, xamã, cantador, parece ser também uma categoria
útil para pensar o papel de lideranças e professores, que são os atores sociais
que mediam relações com forças exteriores, passam tempos regulares nas

72
cidades, aprendem a falar melhor a língua dos brancos, entendem os projetos,
projetam a comunidade. Nesses momentos fora da aldeia, comem outra comida,
aprendem a ver as coisas de outros jeitos, inclusive através das palavras
escritas, e voltam transformados corporalmente por essas relações.
Os professores viajam e trazem novidades do mundo de fora, além de
chaves de leitura para compreender essas informações 30. Eles, como as
lideranças, funcionam como um filtro que processa o que é estrangeiro. Isso
pode ser notado na explicação de Komãyari sobre seu papel como professor e
a importância de circular, viajar, acompanhar o que acontece além da aldeia, que
afeta as suas vidas:

É importante a escrita, conhecer mais o conhecimento dos


brancos, principalmente na área acadêmica. Se nós não
acompanhamos esse conhecimento, aí dificulta para nós.
Por exemplo, eu fui agora em Rio Branco, e eu não estava
sabendo, se eu não fosse eu não ia saber o que estava
acontecendo. Aí fui em Rio Branco, por um convite que
recebi da Comissão Pró-Índio para fazer uma tradução de
um material didático nosso. E no dia seguinte veio o convite
para participar de um seminário organizado por um
deputado federal, para discutir sobre as novas leis, novas
emendas, a questão de mudar a responsabilidade dos
direitos dos povos indígenas, principalmente a questão da
demarcação das terras indígenas, com a PEC 215. Então
quando eu fui lá eu participei e eu soube, porque eu não
estava sabendo do que estava acontecendo. Por isso eu
digo que quando a gente acompanha o processo lá fora, a
gente traz informação para a comunidade e, também a
gente fica sabendo o que está acontecendo lá fora. Por isso
é importante a participação do professor, por isso eu digo:
eu sou a favor da escola. Então, por isso quando a gente
sai, a gente encontra muitas coisas que podem ser contra
nós, coisas que podem ser a favor de nós, por isso é
importante. Para isso, para responder, a gente precisa ter
esse domínio, principalmente das leis, da Constituição
Federal brasileira. Se a gente não entender as leis, como
nós vamos responder para eles? Então por isso a escola é
importante, por isso é importante o professor, a sua
formação. Ter mais conhecimento de fora, conhecimento
do branco, para a gente poder se defender, defender os
nossos direitos. Então, por exemplo, a questão das leis,
porquê querem mudar as leis, já existem as leis, para quê

30
Sobre viagens como meios de aquisição de conhecimentos entre os Huni Kuin ver Zoppi (2017).

73
fazer mais leis contra os índios, para destruir os povos
indígenas? Então é importante, porque todo mundo que
estava lá, os representantes indígenas, falaram contra
essa lei.

Isto porque o papel da escola, e por isso dos professores, é, junto das
lideranças, “organizar a comunidade”, o que implica ter a sabedoria de utilizar
conhecimentos provenientes de mundos distintos. Em outra entrevista, em 2014,
Komãyari, refletindo sobre o papel dos professores, afirmou:

Eu considero o professor uma segunda liderança da


comunidade. Ele observa, ele pesquisa, ele avalia a
comunidade, ele tem decisão, ele tem esse peso, esse
poder. Então ele sabe o que ele está colocando, o que ele
está fazendo, então é muito importante o papel do
professor. Em muitas aldeias o próprio professor é
liderança da sua comunidade, é cacique da sua
comunidade e ele é considerado porque ele sabe dos
trabalhos, ele sabe administrar, ele entende da política de
fora, ele entende o conhecimento das leis, da Constituição.
Porque não adianta colocar uma liderança que não tem
noção, que não entende das leis, nem entende o contexto
de fora, da política, até mesmo essa questão dos projetos,
o que vai beneficiar, para que vai servir os projetos para
levar na comunidade.

Assim, a boa liderança (e o bom professor) é aquela que sabe entender o


contexto de fora e extrair dele aquilo que vai beneficiar, especialmente através
de projetos, a comunidade. Ou seja, alguém que se apropria de outros
conhecimentos e sabe usá-los para a manutenção da Apiwtxa. Como resumiu o
mesmo professor, em outra ocasião: “No primeiro momento, no tempo em que
começou as terras indígenas, era obrigatório que as lideranças tradicionais
representassem o seu povo. Hoje em dia tem que ser pessoas que tem uma
noção diferente, que entendem as políticas, as leis, pra poder dialogar”.

2.7 - Sobre fluxos, migrações e o dinheiro


A expansão das escolas pelas aldeias indígenas no Brasil se mostra
acompanhada também de um processo de migração para as cidades próximas,
seja para dar continuidade aos estudos ou para conseguir trabalho remunerado.

74
A maior parte das escolas indígenas hoje é de nível fundamental, ainda
que as modalidades de educação infantil e ensino médio estejam em
crescimento, especialmente a partir do relevante aumento do número de
indígenas no ensino superior (nos cursos regulares ou nas chamadas
licenciaturas interculturais). No caso dos Ashaninka do Rio Amônia, a
comunidade optou por iniciar a vida escolar das crianças no primeiro ano do
ensino fundamental, por volta dos seis anos, para que os primeiros anos de vida
da criança sejam exclusivamente vivenciados na família e na extensão de suas
relações. A escola funciona, portanto, do 1º ao 9º ano, o ensino fundamental
completo (a escola, durante seus primeiros anos, funcionou até o 4º ano,
posteriormente ampliando as turmas até o 9º). Mas os professores reivindicam,
assim como fazem diversos professores indígenas por todo o Brasil a criação do
ensino médio na aldeia. A justificativa central para isso é o movimento dos alunos
para as cidades, realidade em diversas áreas indígenas. Dona Piti explica a
diferença na Apiwtxa apontando que:

Os daqui ainda não estão saindo da aldeia, por exemplo, para


se formar. A derrota de muitas comunidades é a saída da
comunidade. Aqui os meninos [as lideranças] tem colocado
escola e não tem colocado um branco pra dar aula, somente
os daqui mesmo, formados aqui, que eles vão colocando, pra
eles não saírem daqui (...). Porque muitos que vão assim não
querem voltar mais. Em muitas comunidades por aí, eles
saem pra se formar e por lá ficam, não voltam para as
comunidades. Aqui isso não está acontecendo ainda, porque
os meninos têm lutado por isso. A escola tira muitas pessoas
das comunidades.

Na Apiwtxa não existe um movimento de ida permanente à cidade e


apenas três lideranças hoje moram fora da comunidade: uma no município de
Marechal Thaumaturgo administrando um centro de educação ambiental, a
Yorenka Ãtame, que pertence aos Ashaninka, outra recentemente assumiu a
prefeitura do município e uma terceira que mora na cidade de Rio Branco. Mas
o fluxo para compras e visitas a cidade aumentou expressivamente nos últimos
anos, como consequência direta da chegada do programa “Bolsa Família” na
comunidade. Como me disse Claudio, homem ashaninka segurando nas mãos
seu txoshiki (longo colar de sementes usado pelos homens, sempre cruzado do

75
ombro ao peito sobre a cushma) “antes esse era nosso dinheiro”. A cooperativa
Ayompare era a principal fonte de abastecimento de produtos vindos da cidade:
as famílias produziam artesanato, como o txoshiki de Claudio, e vendiam para a
cooperativa, recebendo em troca crédito para a compra de itens como óleo, sal
e açúcar. Quando visitei a aldeia pela primeira vez, em 2013, meses antes da
chegada do programa Bolsa Família, muitos moradores da Apiwtxa me diziam
nunca ter ido à cidade de Marechal Thaumaturgo. Hoje praticamente todas as
famílias vão mensalmente. Em Thaumaturgo, armam tapiris na praia na margem
oposta às casas do município e acampam por lá, próximos ao porto da Yorenka
Ãtame.
Após a entrada dos benefícios sociais do governo federal, a cooperativa,
na visão de alguns moradores, enfraqueceu-se, já que hoje um número menor
de famílias produz artesanatos para ela. Dessa forma vem-se criando, na análise
de alguns moradores da Apiwtxa, como Cláudio, o que chamaram de uma “volta
ao tempo dos patrões”. Gow descreve assim as relações de dívida no sistema
de aviamento do empreendimento da borracha:

O dinheiro não desempenhava nenhum papel nessas


transações exceto como padrão abstrato, já que todas as
transações tomavam não a forma de compra e venda, mas de
criação e cancelamento de débito. O que era crucial para o
sistema era o fluxo constante de mercadorias e de borracha
nas relações de dívida, o que deu grande poder as casas de
comercialização e as companhias de transporte (Gow, 1991:
39).

No rio amônia, observa-se o reaparecimento de um sistema de dívidas


desse tipo: algumas das famílias Ashaninka fazem as compras com um dos
comerciantes da cidade, a quem chamam de “patrão” e o cartão fica retido nesse
comércio. Alguns dos itens mais almejados pelos Ashaninka, como um motor de
barco, são comprados pelo patrão que “parcela” a compra com juros, retirando
no banco todo o benefício recebido. Nessas transações, como sugere Gow para
o tempo da borracha, o dinheiro não circula materialmente, só a dívida e o
crédito. O dinheiro, no entanto, é hoje mais do que padrão abstrato, ele se torna
referente central em muitas relações, ainda que os Ashaninka por vezes não
tenham o controle da entrada e da saída.

76
Os benefícios sociais, como bolsa família e o auxílio maternidade, além
da aposentadoria e dos salários de professores, agentes de saúde, agente
agroflorestal e agentes de saneamento ambiental, vêm produzindo, além das
transformações nas relações com os brancos e com a cidade, um processo de
monetarização das relações na própria comunidade. Certamente, o dinheiro
circula na aldeia também como modo de expandir as redes de relações e
fortalecer laços de parentesco, mas é curioso observar que hoje o dinheiro virou
o referente para as relações de troca, mesmo quando ele como elemento não
está presente. Assim, se uma mulher deseja miçangas e outra um jabuti, elas
irão converter tantas colheres de miçanga em dinheiro (uma colher equivale a x
reais) e botar um preço também no jabuti, que deve ser equivalente então nas
colheres de miçanga (observei essa transação e diversas outras similares). Além
disso, em algumas famílias de professores, tornou-se comum contratar os
serviços de outros, geralmente para limpar o roçado, na construção de uma casa,
ou mesmo para lavar roupas ocasionalmente, pagando em dinheiro. Um
professor me disse que com a difusão dessas práticas com pagamentos por
serviços, muitas pessoas não querem participar de mingas, pois preferem
receber em dinheiro pelo trabalho. Mas talvez um processo ainda mais relevante
seja que com a chegada do dinheiro muitos moradores da Apiwtxa hoje, mesmo
os que contam com uma fonte de renda, dizem que o dinheiro é pouco. Muitos
moradores da comunidade reclamam da dificuldade de prover sua família, o que
sempre fizeram, e descrevem por vezes a sua própria subsistência em termos
de falta.
Uma outra questão, para além dos processos de monetarização, é o
conjunto de coisas atrelado ao “bolsa-família”, que se produz em contrapartida
como uma espécie de crivo de cidadania. Além da relação patrão-empregado
que se produz com os comércios de Thaumaturgo, a rede de comércio agora
envolve também o governo, com quem a relação parece de uma via só – eles
são os beneficiários, mas que, na verdade, impõe uma espécie de “dívida
civilizatória”: para receber o benefício eles devem se adequar a uma espécie de
grau mínimo da cidadania, e cumprir obrigações de escolarização, provisão de
dados populacionais, procedimentos de saúde como vacinação e
acompanhamento pré-natal. As famílias cadastradas passam a fazer parte de
um sistema que produz e acessa dados sobre elas. Para o recebimento do

77
benefício, observam-se critérios obrigatórios como a realização de exames
ginecológicos preventivos, acompanhamento pré-natal durante a gestação,
vacinação de crianças até sete anos e matrícula atualizada na escola e
comprovação de frequência escolar. O controle é feito através de um sistema
integrado das secretarias de assistência social, saúde e educação, o SICON –
Sistema de Registro de Condicionalidades. As contrapartidas para o acesso ao
bolsa-família produzem tensionamentos, uma vez que o programa é aplicado
sem critérios específicos para os povos e realidades indígenas. Isaac Piyãko
aponta as implicações disso a partir do exemplo da saúde:

A gente percebe que cada vez mais o contato, dos programas


sociais, os programas do não-índio, vão tirando essa
possibilidade da saúde mais a partir das dietas tradicionais.
Faz o pré-natal, faz não sei o quê... E isso é feito pela mão de
qualquer profissional que nem conhece muito da medicina e
nem conhece o mundo tradicional, então eles fazem para
cumprir um sistema que pede que tem que ter isso para
acessar os benefícios. É muito precário.

Em julho de 2015, chegou a comunidade uma equipe da Secretaria de


Assistência Social de Marechal Thaumaturgo, com o duplo objetivo de fazer a
atualização do cadastro das famílias inscritas no programa Bolsa Família (que é
feito a cada dois anos), e reunir-se com a comunidade para uma conversa sobre
as possibilidades de ajuste no recebimento do benefício, de modo a minimizar
efeitos negativos da adesão recente ao programa, no final de 2013. A
coordenadora da equipe contou que a visita deles tinha sido solicitada
diretamente por Isaac, que já havia procurado a Secretaria algumas vezes para
discutir os problemas que vinham acontecendo desde 2013, como os
deslocamentos constantes das famílias para a cidade, e, como consequência,
uma mudança nos sistemas de roçado tradicionais, devido as ausências da
aldeia e o consumo de alimentos industrializados.
A coordenadora contou que a Apiwtxa havia sido a última aldeia no
município de Marechal Thaumaturgo a aceitar o benefício. No rio Breu, por
exemplo, as famílias Ashaninka estavam cadastradas desde 2008. O problema
da retenção de cartões por comerciantes no município é um problema comum
às diferentes aldeias do Alto Juruá (e, de fato, o problema parece ser ainda mais

78
ostensivo, pois em diversos contextos indígenas o mesmo se repete),
fomentando uma situação de exploração através de dívidas e juros. Por isso, a
proposta das lideranças da comunidade, como foi dito a mim por Isaac e como
foi apontado por Moisés e Wewito na reunião, era que se chegasse a um modo
de manter o benefício e ao mesmo tempo conter o deslocamento para a cidade.
Uma das possibilidades era tratar, em um diálogo com a Caixa Econômica,
mediado pela Assistência Social, um caixa para saque na comunidade. Outra
era uma alteração no tipo de conta e cartão, para que se abandonasse o modelo
atual, no qual passados três meses sem que seja feito um saque, a conta é
bloqueada e a pessoa beneficiária perde o direito ao benefício. Ainda outra era
fazer com que o dinheiro fosse distribuído a partir da associação indígena. Dessa
forma, buscava-se refletir sobre maneiras de aumentar os intervalos de tempo
entre as idas à cidade.
Na reunião um dos primeiros a falar foi Moisés Piyãko. Transcrevo um
trecho de suas palavras ao início da reunião:

É preciso organizar as coisas para que esses benefícios de


fato tragam benefícios. O bolsa família realmente mexeu com
a estrutura da comunidade. Hoje a comunidade tem mais
dificuldade de reunir a população do que antes, quando não
existia esse benefício. As pessoas da comunidade estão se
espalhando cada vez mais, estão andando por causa desse
recurso. Vão pra Thaumaturgo direto. Todos os meses vão
800 pessoas pra Thaumaturgo daqui. Nós temos aqui 850
pessoas aqui, né? Então todo mês esse recurso está levando
as pessoas pra Marechal Thaumaturgo, aonde muito deles
não respeitam, começam a tomar álcool, e fazem coisas que
fazem vergonha pra gente. A gente está batalhando para
acabar com isso, pra que possa trazer coisas boas, não isso
aí. Então para nós dificultou muito, aqui. Numa reunião
[acontece] por exemplo [de alguém perguntar]: “cadê fulano?”
“Não está aqui, foi pra Thaumaturgo.” Então essa é a
realidade que o recurso está trazendo. Para outras pessoas,
em outros pontos, ele serve muito. Dá condições para
comprar coisas para os filhos e tudo. Mas o que está faltando
também é a consciência nas pessoas do porquê de estar
recebendo, pra quê, como utilizar. Também [tem] esse
negócio de ficar andando pra cima e pra baixo comprando o
que não deve com isso aí.
Esse problema iniciou depois do bolsa-família, porque deu
essa condição para as pessoas fazerem isso. Vários outros
povos tiveram problema também. Muitas pessoas estão

79
morando em Thaumaturgo hoje por conta do benefício. A
comunidade, por exemplo, dos Ashaninka e Kaxinawa do
Breu, os Ashaninka viviam mais pra beixo e os Kaxinawá mais
pra cima. O que aconteceu por causa desse benefício? Por
causa disso de estar subindo e descendo, eles [os Kaxinawá]
desceram lá da ponta da área deles, e empurraram os
Ashaninka, que já entraram pra dentro da Reserva [a RESEX
Alto Juruá], porque eles disseram que na época do verão não
podem estar subindo tudo de novo pra ir pra Thaumaturgo
receber o benefício. Então isso começa a gerar confusão. Eu
vejo essa dificuldade. Eu estive agora numa reunião lá nos
Poyanawa. Muitas lideranças lá pro Tarauacá estão
reclamando da mesma coisa acontecendo lá, porque as
pessoas começam a receber esse benefício e entrar para
outro canal. Eu, por exemplo, recebo esse benefício. Mas o
meu benefício eu estou investindo em uma coisa que vem
trazer um recurso para garantir pros meus filhos a nossa
alimentação. Vai que o bolsa família daqui a um tempo se
acaba. Será que a cerveja que eu tomei [em Thaumaturgo]
vai servir quando acabar isso aí? Será que o aparelho de som
que eu comprei vai servir, quando isso não tiver
continuidade?

A coordenadora da equipe seguiu a fala de Moisés, no sentido de alertar


para o funcionamento do programa – por exemplo o que configura irregularidade,
como a retenção do cartão com comerciantes – e de explicar a diferença entre o
benefício e um salário. O benefício, disse ela, “um dia pode acabar”. E continuou:

Por isso você não devem deixar de cultivar o plantio de vocês,


abandonar o lugar de vocês e ir para a cidade, porque não é
um benefício seguro. Desde 2013 quando eu vim pra cá [a
primeira vez], a gente ficou de acompanhar sempre vocês,
fazendo reunião, alertando. O Isaac já tinha conversado com
a gente que ele tinha medo de acontecer essas coisas que
estão acontecendo com vocês, que estão deixando o plantio
de vocês de lado e só ligando para o bolsa família, indo para
a cidade. Algumas famílias demoram a voltar, passam mais
de semanas lá.

Nessa reunião, além de Moisés e da equipe, Wewito e Komãyari, ambos


professores, tiveram papel importante. Wewito também fez uma análise dos
impactos do programa e da necessidade da comunidade se organizar para que
as famílias não fiquem dependentes do dinheiro e produzam seu auto sustento.

80
Komãyari traduzia na língua asheninka, para os demais, em forma de
resumo, as discussões, ao mesmo tempo em que ele mesmo refletia sobre o
problema e dizia que era preciso utilizar o benefício de forma “iropero”, uma
palavra na língua nativa que, além de kametha, quer dizer também uma coisa
bela.

Figura 6 Reunião com a Secretaria de Assistência Social do Figura 5 Recadastramento das famílias no programa Bolsa Família.
município de Marechal Thaumaturgo. Aldeia Apiwtxa, 2015.

Diante de questões como essas, levantadas numa reunião, a escola


aparece não apenas como o espaço físico no qual as reuniões comunitárias
acontecem, mas como dispositivo de organização da vida em comunidade, e os
professores como os que tem o papel de guiar esse processo. A escola é um
mecanismo de reflexão e tentativa de resolução de problemas, e tem a potência
de colocar reunidas as diversas famílias. Nas palavras de um professor:

81
(...) a escola tem uma direção política também, de articulação,
de ordenamento das famílias. Ela tem uma ligação forte com
o professor, com o aluno, com a família. Porque todo dia as
crianças vão na escola, conversa com o professor, depois
conversa com... Porque antes da escola, dificilmente havia
contato entre diferentes crianças. Porque era uma cultura
diferente. Aí depois da existência da escola, aí todo
mundo ficou manso assim.

Todo mundo ficou manso vivendo numa comunidade onde crianças de


diferentes famílias crescem compartilhando o espaço da escola – e a comida da
escola, o caminho de barco, um modo de sentar na cadeira, de escrever, além
de coisas vistas, cheiradas, experimentadas. A escola cria um contexto de
produção efetiva da consubstancialização das crianças e jovens da comunidade,
e por extensão, dos seus familiares, que por sua vez participam juntos de
reuniões e atividades mediadas pela escola.
Manter-se em comunidade hoje é um meio de viver bem, e a escola é um
dos pontos centrais da produção contínua do “corpo” da comunidade. Através da
comunidade se pode viver “como Ashaninka”. Como definiu Seu Cláudio:

Tem gente que fala que aquele que estuda mais vai sair
fora, vai trabalhar, não sei o que. Aqui pensa outra coisa.
Esse é o pensamento de outras tribos. Por exemplo
Jaminawa, Kaxinawa, não sei o quê. Em Brasília, tem
Xavante, né? Xavante é outra tribo. Eles deixam as aldeias
e vão pra cidade. Mas nós aqui não. Eu falo sempre isso.
Aqui nós [somos] diferentes de outro povo. Aqui é outro,
aqui é o Ashaninka. Nunca vai perder cultura, costume, né?
Porque isso é nosso.
(...)
Sempre fala o Francisco [liderança], porque ele conhece,
ele já andou em aldeias fora do Acre, em outros cantos, em
Brasília. E vê que [Ashaninka] é diferente de outro povo.
Tem pessoas que estão pedindo comida na rua, estão
morrendo de fome. Rapaz, tem aldeia lá. Por que deixou a
aldeia? Na aldeia é melhor porque lá pode mariscar, comer
tranquilo, né? Fazer roçado que é pra comer.

82
Capítulo III – Produzindo conhecimentos e relações

Neste capítulo, busco produzir uma reflexão sobre as práticas de


conhecimento entre os Ashaninka, tratando daquilo que meus interlocutores
identificam como atividades, espaços e relações onde se aprende e se ensina,
especialmente no que diz respeito às crianças. A ênfase aqui está no que
acontece fora da escola, não para afirmar uma separação completa entre esses
dois universos – o da educação “tradicional” e o da educação escolar – mas para
organizar o pensamento seguindo o caminho que os moradores da Apiwtxa
constroem no discurso e na prática: um e outro como dois sistemas
complementares que seguem como rotas que correm separadas, mas se
encontram em cruzamentos, fazendo com que as movimentações em uma
interfiram no fluxo da outra. Essa divisão e seus cruzamentos será melhor
desenvolvida no capítulo V.
Por decisão da própria comunidade, a escola no rio Amônia não oferece
educação infantil, modalidade que nos últimos anos tem se difundido em
diversas aldeias indígenas no Brasil e, especificamente, no Acre. A justificativa
dos moradores é que as crianças precisam passar os primeiros anos de vida
junto a seus pais e irmãos, acompanhando suas atividades e imersas nas
atividades familiares. Na perspectiva dos professores, a educação infantil só faz
sentido onde a educação tradicional foi por demais afetada pelos processos
decorrentes de encontros com a sociedade nacional e suas contínuas forças de
tipo colonial, especialmente com efeitos na política linguística. Onde os pais não
falam mais as línguas nativas, me disseram, a educação infantil é um meio de
fazer a língua operar no dia a dia das crianças. Os Ashaninka não se veem nessa
mesma situação, e por isso seu vocabulário não é o de resgatar conhecimentos
que se perderam, mas de fazer circular, valorizar e fortalecer sua “cultura”.
Nesse processo, a escola e os professores são os que promovem uma
reflexão sobre esses conhecimentos, seus espaços, e, especialmente, sua
vitalidade, tratando de pensar e discutir com a comunidade aquilo que perde
força dentre um conjunto de práticas e contextos que passam a ser vistos como
saberes tradicionais.
É desses saberes, seus lugares e relações, que procuro tratar nesse
capítulo. Esses conhecimentos e espaços, para os Ashaninka, são pensados

83
como a própria produção da vida social em comunidade e em família: a criação
de crianças, a produção das roças, a caça e a pesca, a tecelagem e a produção
de artefatos, o piyarentsi (bebida fermentada de mandioca). “Os espaços de
aprender são todos os espaços”, me diziam. Além desses conhecimentos – que
imprimem também um modo de conhecer – as pessoas no rio Amônia distinguem
saberes que são especializados e que não podem circular livremente,
especialmente os conhecimentos xamânicos. Assim, hoje os moradores
diferenciam conhecimentos que devem ser coletivos, e aqueles que permeiam
outros modos de relação31.
Primeiro, busco apresentar um pouco do cotidiano da comunidade e da
vida de seus moradores, com o objetivo de apontar que o tempo das atividades
produtivas vai em consonância com os tempos das famílias e os movimentos de
coletivização e atomização dos grupos domésticos.
Em seguida, traço um esboço dos primeiros anos de vida das crianças 32,
aqueles antes da entrada na escola, e suas relações familiares. Sugiro que esses
anos são vistos como a base da produção de um corpo capaz de aprender e agir
socialmente (McCallum, 1998). Para isso, as crianças devem ser colocadas
numa relação com o ambiente e com a vida dos adultos, para que possam
desenvolver seus sentidos e apreender o mundo através deles, para em seguida
atuar nele, primeiro reproduzindo à sua maneira as práticas e maneiras de se
portar, e progressivamente tornando-se uma pessoa autônoma.
A partir daí, pretendo descrever os modos de conhecimento veiculados
através do compartilhamento da cerveja de mandioca, que nutre crianças e
adultos. As reuniões de piyarensti, constituem o modo principal de interação
social entre os grupos domésticos (Mendes 2002; Killick, 2009), e tem um papel
articulador de relações políticas, econômicas e de parentesco (Mendes, 1991:
111). Sugiro que ela produz também relações de aprendizagem.
Por fim, trato dos conhecimentos especializados do xamã e da
ayahuasca, uma de suas plantas mestras. Esses saberes, também para os
Ashaninka, ao mesmo tempo possibilitam a reprodução do parentesco e

31
No capítulo V discutirei essa ideia a partir da proposta teórica de Carneiro da Cunha (2009).
32
Uma crescente bibliografia vem se desenvondo nos últimos anos sobre a vida das crianças indígenas.
O livro pioneiro no tema foi lançado por pesquisadores do MARI/USP, e organizado por Lopes da Silva,
Macedo e Nunes (2002). Entre os autores de artigos nessa obra, estão Clarice Cohn (2005) e Antonella
Tassinari, (por exemplo, 2009), que vem realizando pesquisas e orientando outras sobre o mesmo tema.

84
ameaçam as relações humanas com seu poder transformativo, assim como a
escola (Gow, 1991).

3.1 - Os movimentos da vida na comunidade


No capítulo I, busquei apontar que um movimento de dispersão e reunião
se fez continuamente nas relações entre os Arawak sub andinos, e entre os
diferentes grupos Campa, constituindo sempre um motor de produção de
fronteiras mais e menos englobantes com a alteridade, tendo como pano de
fundo a complementaridade e instabilidade entre guerra e comércio. O mesmo
movimento se reproduz quando a guerra não é mais um horizonte possível, e se
passa a viver em comunidade. Grandes dispersões que se seguem, por
exemplo, a morte de um chefe, foram amplamente documentadas nas Terras
Baixas, e entre os Ashaninka no Brasil esse processo foi descrito por Ioris (1996)
a respeito dos moradores do rio Envira, e Mendes notou o mesmo padrão no rio
Amônia (1991).
A dinâmica relação entre atomização das famílias e agregados sociais
mais amplos se mantém no interior da comunidade, acompanhando a divisão
inverno/ verão que estrutura os tempos das atividades produtivas e o calendário
das famílias. O rio atravessa a perspectiva ashaninka – quando ele vaza ou
enche a vida muda; além disso, a posição de qualquer um se define rio abaixo e
rio acima – que é para onde se pode ir. O inverno e o verão amazônicos, os
tempos da chuva e da seca, compõe com as atividades das famílias Ashaninka,
que durante a estação seca aproveitam as praias que se formam nos rios para
viajar e dormir em tapiris, comendo ovos de tracajá e peixe assado, além de
visitar parentes em outras aldeias. É também o tempo de preparar os roçados
para um novo ciclo de plantio. Uma família pode passar semanas dormindo numa
praia próxima ao seu roçado, trabalhando aproveitando o verão. Esse período é
marcado por relações mais ativas entre os grupos domésticos, pois é quando
mais mobilizam seu círculo de parentesco para o trabalho cooperativo nas
mingas (sistema organizado de mutirões). No verão tem caiçuma em todo o
canto, e por isso as pessoas se encontram mais, tornando a comunidade uma
imagem um pouco mais nítida para um estrangeiro. Nessa época, um homem
que sobe o rio com seu cunhado para pescar, por exemplo, irá encontrar
certamente em seu caminho outros portos onde será convidado para uma cuia

85
de cerveja de mandioca. Por todo o verão as famílias sobem e descem o rio todo
o tempo, seja para viajar, pescar, acampar ou tomar caiçuma. É também quando
as pessoas recebem visitas de seus parentes de outras aldeias – uma irmã que
veio por uns dias ou um sobrinho que procura esposa.
É também época de fartura de caça, quando as frutinhas de manishi e
pama, que nascem na mata, estão maduras e assim atraem muitos animais,
oferecendo um cenário perfeito para as armadilhas que os Ashaninka gostam de
preparar. As águas amansadas pela seca do rio ficam límpidas e assim
favorecem igualmente a pescaria.
No inverno as pessoas ficam mais recolhidas, e ainda que aconteçam
caiçumadas, as famílias parecem viver de forma mais independente. É o tempo
de fazer artesanato em casa, seja para uso pessoal ou de alguém da família,
seja, hoje, para a cooperativa. Tempo de parar um pouco com as andanças. No
auge das chuvas, janeiro e fevereiro, até março, a escola não funciona e aqueles
que moram mais distantes do núcleo da Apiwtxa pouco circulam por lá.
No inverno há mais dificuldade para encontrar caça, e os cultivares dos
roçados ganham importância maior na alimentação, assim como a coleta de
larvas de palmeiras.
Nas reuniões que fizemos em 2015, eu e os professores, para trabalhar
numa proposta de calendário para o Projeto Político Pedagógico (PPP) da
escola, discutimos os tempos da roça, da caça e da pesca, o ritmo de vida das
famílias no inverno e no verão. Essa divisão entre um tempo de fartura, de
deslocamento e da abundante vida social, e outro do recolhimento das famílias,
da primazia da família nuclear e da escassez de caça e pesca foi descrita por
todos. Komãyari, por exemplo, explicou:

No inverno a gente fica mais nas nossas casas, está mais


concentrado e as atividades só acontecem dentro de casa,
como artesanato, porque é muita chuva e lá fora no mato está
tudo molhado, não tem como limpar roçado. Então [a gente]
fica mais em casa. A água está cheia, não tem como você
andar, pescar no rio. Então tem esses tempos. No inverno a
gente concentra mais na nossa casa. E quando é verão, já é
diferente, todo mundo quer viajar. Todo mundo quer dormir
nas praias, todo mundo quer pescar. Não é nossa cultura a
gente ficar permanente na comunidade, (...) a gente tem que
acompanhar também a nossa tradição.

86
É interessante que o professor aponte que o verão é o tempo das
andanças porque não é “cultura” deles ficar só na comunidade: aqui comunidade
e o espaço físico de moradia são uma coisa só. Mas ao mesmo tempo, no verão
as pessoas circulam, viajam, dormem nas praias e, assim, a vida social se torna
mais abundante e as famílias se colocam numa relação mais intensa. Como
escreveu Mendes (1991, p.61), no verão “a ordem é o movimento, que os
arranca de suas casas”.
Tanto no inverno quanto no verão, a roça, a caça e a pesca estão
presentes, o que as pessoas descrevem é que na relação com o ambiente, uma
ou outra atividade ganha predominância. Se no verão o roçado ocupa grande
parte da atenção das famílias, pois é o tempo de derrubar, coivarar e queimar
para iniciar um novo ciclo de plantio, o inverno é o tempo propício para fazer
artesanato, quando a chuva dificulta o movimento. A produção de artesanato é
importante considerando tanto o lugar central que o uso, por exemplo, da
vestimenta tradicional tem para os Ashaninka na produção de corpos
semelhantes, quanto o valor, na economia local, da produção de peças para a
cooperativa. Além disso, a confecção de artefatos é ao mesmo tempo necessária
para que alguém possa observar e aprender uma atividade. Uma família que
deixa de fazer artesanato, deixa de ensinar seus filhos a um só tempo.
Na Apiwtxa as mulheres vestem cushmas (kitharensti) que levam uma
abertura de ombro a ombro: uma costura mais fechada se a mulher não tem
filhos pequenos, e um pouco desfeita quando é o tempo de amamentar uma
criança. Essas roupas são produzidas hoje com tecidos comprados na cidade.
Esses panos podem ser coloridos e de diferentes materiais, mas o tecido
preferido é o algodão, que pode ser vermelho ou amarelo. Depois de cortado o
tecido em duas partes iguais, no tamanho certo, bem solto no corpo e indo até
cerca de um palmo antes de chegar ao calcanhar, a mulher costura com linha de
algodão grosso as duas laterais inteiras e a abertura para a cabeça. Depois é o
momento de tingir. A mulher irá buscar na mata uma casca de árvore que
chamada de patstaki, que é cozida para liberar a tinta. O tecido vermelho quando
tingido fica vinho, quase marrom, e o amarelo aberto se torna de um mostarda
escuro. Essas são as cores mais apreciadas numa cushma. Num recipiente
como uma bacia, a mulher põe de molho o tecido, repetidas vezes, com cuidado

87
para nenhuma dobra ocasionar manchas desiguais. Finalizada a etapa de pôr
na tinta e deixar secar ao sol por boas horas, a mulher deve buscar o barro para
fazer o desenho na cushma, se assim o desejar. A reação do corante com o
barro faz com que o desenho permaneça no tecido após muitas lavagens.
Quando a pintura fica fraca, utiliza-se o barro outra vez, seguindo o processo de
tingimento novamente. Muitas mulheres hoje utilizam quase sempre a cushma
sem desenhos, outras fazem elaborados padrões gráficos. Quando são feitos
desenhos eles são sempre no sentido horizontal. Por último, se pode acrescentar
sementes, geralmente pintadas com urucum, chamadas tathane, que são presas
à costura nos ombros. O tathane, notou Weiss, também pode ser costurado no
pano que as mulheres utilizam sobre a cushma, pois “pendurado à tipóia utilizada
pela mãe ashaninka para carregar seu bebê pode servir de distração para ele
pelo som de chocalho que o movimento provoca” (2005: 22).

Figura 7 Professor Otxe e sua família

As cushmas masculinas são tecidas pelas mulheres, num processo


elaborado e demorado. As mulheres cultivam algodão nos roçados para a
produção dessas vestimentas. Depois de colhido, o algodão é deixado ao sol e

88
batido diversas vezes até ficar bom para começar a ser fiado. Fiar o algodão é
tarefa para dias seguidos, geralmente acompanhada de um punhado de coca
para mascar33. Só depois começa o trabalho de tecer. Nesse momento há
sempre uma menina ou várias delas – filhas ou netas – observando
silenciosamente e, no caso de uma moça jovem, auxiliando naquilo que a mulher
mais velha solicita, geralmente esticando as linhas. Algumas mulheres compram
hoje linhas de algodão na cidade e iniciam daí o processo de confecção. As
cushmas masculinas tem sempre linhas verticais e a costura da gola em V. As
cushmas de cor mais clara, especialmente as de algodão cru apenas com linhas
mais escuras, são depois de alguns anos tingidas totalmente em patstaki, para
escurece-las e disfarçar o desgaste do tempo. Também marcadamente diferente
das vestimentas das mulheres é comprimento, que nos homens deve chegar até
quase os pés.

Figura 8 Irãtxo tecendo uma cushma

Além da cushma, as mulheres produzem para os homens uma bolsa,


também tecida em algodão, seguindo os padrões de listras verticais. Essa bolsa

33
A coca é uma substância de importância singular para os Ashaninka, e é utilizada quase
diariamente.

89
é utilizada cruzada sobre o peito com a alça propositalmente comprida, de forma
que a abertura da bolsa se posiciona quase na altura dos joelhos quando no
corpo34. Os demais artefatos que são utilizados pelos homens são produzidos
por eles mesmos, especialmente o chapéu e o txoxiki, um longo colar de
sementes utilizado cruzado sobre o peito, que são essenciais para a vestimenta
completa em dias de festas e reuniões importantes. As mulheres produzem tudo
o que usam, mas a partir de materiais quase sempre estrangeiros, como os
tecidos e os colares e pulseiras de miçanga. Mulheres e homens se pintam com
pasta de urucum exclusivamente no rosto, ou em forma de desenhos, ou
pintando todo o rosto, no caso dos homens.
Além de produzirem em si mesmos uma diferença de gênero nas
vestimentas, as atividades produtivas são quase sempre generificadas, uma vez
que as relações de autonomia do casal implicam a separação e a
complementaridade de suas produções. Essa articulação do trabalho feminino e
masculino gera aquilo que é a própria matéria da vida, aquilo que segundo os
moradores, se uma família não é capaz de fazer, ninguém vive ali. Mais uma vez
é o professor Komãyari que explica:

A gente vê a vida da comunidade, a vida do povo aqui. Que é


roçado, que todo mundo é obrigado a aprender a fazer
roçado, a plantar e ter roçado. Todo mundo. E outra coisa,
tem que aprender a caçar e pescar. É obrigação, como disse
a Eerishi [outra professora na mesma reunião]. Se alguém
não sabe caçar e pescar, como é que ele vai sobreviver com
a sua família? Então por isso tem que ser respeitada essa
atividade, como atividade de existência da própria
comunidade. Como se fosse uma obrigação nossa que todas
as crianças, todas as famílias, que quando ele crescer ele,
pode se responsabilizar pela sua família e mesmo repassar
esse conhecimento para os seus filhos depois. Então esse
conhecimento passa de geração em geração, é uma coisa
que você aprende. É uma coisa da existência do povo.

[T]odo mundo é obrigado a aprender também, praticar e tirar


os alimentos da mata, na floresta, e não esperar no mercado,
como na cidade. Comparando com uma cidade: ninguém
sabe mais caçar nem pescar. Só os pescadores lá. Mas quem
mora lá mesmo, que está estudando, só compra, então não
34
Essa bolsa utilizada pelos homens e carrega sempre um pouco de pasta de urucum, um punhado de
coca, além do pó e do pedaço de cipó que acompanham seu uso. Além disso, costuma conter folhas e
ervas perfumadas, as pussangas, para o encantamento e sedução de outros.

90
pratica mais pescaria. Então nós somos diferentes. Todo
mundo é obrigado. Como eu falei, uma coisa que é importante
na nossa vida é o roçado. As três coisas mais importantes são
roça, caça e pesca. Claro que os outros aspectos também são
importantes, como as práticas de tecer. Eu falo esses três
como os mais necessários, porque se você não souber fazer,
você não tem como sobreviver. E aí para sobreviver você tem
que trabalhar ou comprar de alguém. Já não é mais nossa
tradição, é já pensar de outra realidade (Komãyari – oficina
sobre o calendário para o PPP – 2015).

Roça, pesca, caça, e, também a tecelagem, aparecem como as coisas


que são da ordem “da existência do povo”. Em cada uma dessas atividades, o
trabalho da mulher e o do homem são conjugados. Na roça os homens preparam
a terra para o cultivo, e o plantio pode ser feito por ambos, com exceção do
algodão que é exclusivamente cultivado pelas mulheres. As mulheres arrancam
e transportam os produtos do roçado, e o cesto, o paneiro, é das mulheres tanto
quanto o arco (ou a espingarda) é dos homens. A partir da caça, atividade central
na vida dos homens, o trabalho das mulheres transforma os animais em
alimento, e por isso o que é oferecido as crianças também associa ambos. A
pesca é principalmente feita pelos homens, mas pode perfeitamente ser feita por
um casal, e diferente da caça, não é um universo que determina a produção dos
homens como tal. A tecelagem é o paralelo da caça como atividade exclusiva
das mulheres, que, no entanto, hoje confeccionam a partir do algodão apenas
as vestimentas que são usadas pelos homens.
Para pensar o calendário da escola, os professores confeccionaram
calendários das famílias para servir de base para os tempos da escola. Todos
eles utilizaram como modelo a divisão inverno / verão como estruturante da vida
no rio Amônia. Alguns deles marcaram a passagem do tempo relacionando os
meses, as frutas, os animais e o rio35.

35
Sobre os “calendários” Ashaninka, ver Mendes (2002) e Mesquita (2012).

91
Figura 9 Calendário produzido pelo professor Komãyari

92
Figura 10 Calendário produzido pelo professor Ãtxoki

93
3.2 - A criança e a família
“Estranhamento” é um conceito que Starhawk (1997) utiliza para dar conta
de um sentimento de separação diante do mundo e do cosmos, de uma
percepção da vida desencantada. Essa divisão eu e mundo, é consequência de
uma divisão primeira entre um domínio da natureza e um da ação humana,
atribuindo a última a necessidade de domar a primeira para existir. A partir dessa
atitude de estranhamento “nos tornamos estranhos para a natureza, para outros
seres humanos, para partes de nós mesmos. Vemos o mundo como feito de
partes separadas, isoladas, não-viventes e sem valor intrínseco” (1997: 5).
Somente quando o mundo vivente é visto como existindo a parte de nós, e os
nossos sentidos, que mediam a relação de exterioridade e interioridade do corpo,
se tornam portadores de enganos, é que a educação pode ser vista como mera
transmissão de conteúdos intelectuais dissociados de seus contextos, relações,
práticas e experiências corporais.
Desde o livro do historiador Philippe Ariès, “História Social da Criança e
da Família”, de 1973, aprendemos a ver que a infância não é uma fase natural
do desenvolvimento humano, e depois disso que a proposição de uma evolução
cognitiva progressiva e universal da pessoa, independente dos contextos
sociais, não pode ser sustentada. Na antropologia, a criança, como aponta um
dos estudos pioneiros sobre o tema na etnologia indígena, “Crianças Indígenas:
ensaios antropológicos” (Lopes da Silva, Nunes e Macedo, 2002), não era
percebida como sujeito de interlocução ou de produção de perspectivas
relevantes nas etnografias produzidas nas Terras Baixas ou alhures. A noção de
socialização como processo de assimilação de valores coletivos fez com que a
vida das crianças fosse negligenciada na história da antropologia.
Ariès indica como as crianças eram retratadas, por exemplo, em pinturas
da Grécia antiga como adultos de tamanho reduzido, numa espécie de “recusa
em aceitar na arte a morfologia infantil” (1981: 51), e que na arte medieval
também se deformavam os corpos das crianças de forma que suas proporções
eram igualmente irreais. Defende Aries que “[é] difícil crer que essa ausência se
devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não
houvesse lugar para a criança nesse mundo” (1981: 50). Desse desinteresse
pela infância como fase da vida separada e especial, o historiador se pergunta
como chegamos aos dias de hoje, dos álbuns de família e elaboradas fotografias

94
que pretendem capturar o desenvolvimento desse ser que se torna indefeso e a
quem se deve dirigir o cuidado – pela família, pelo Estado, pelas instituições. A
transformação e ampliação dos colégios no século XVII, afirma Aries, é um
momento crucial para moldar uma nova concepção de infância. A partir daí, no
Ocidente, a vida passa a ser dividida em etapas equivalentes a modos de
atividade desejados correspondentes a um desenvolvimento cognitivo, tipos
físicos, tempos e espaços. A escola passa a organizar uma produção social da
infância constituindo para a criança um espaço exclusivo e separado do mundo
dos adultos, definido pelas relações de trabalho.
Guattari (1977) aponta que nas semióticas capitalistas a criança deve ser
a todo tempo instruída, primeiro nas creches e na escola, mas depois também
em cada uma de suas atividades, inclusive nos desenhos animados que tem de
ser “educativos”. A criança deve ser constantemente estimulada a desenvolver
capacidades criativas em sociedades que desaprenderam a produzir os objetos
que compõe sua vida. Como sugere Lévi-Strauss (1983: 386), “somos nós
próprios, tornados consumidores desenfreados, quem se mostra cada vez
menos capaz de criar”. Por não sabermos mais gerar o que nos rodeia
materialmente, voltamos, numa prece desesperada, para a criança. O
antropólogo sugere que nossa noção de criatividade por vezes não nos deixa ver
a capacidade de produzir com as mãos parte do mundo que compõe as técnicas
produtivas das sociedades indígenas, e como a reprodução implica sempre
variação e invenção. Segundo Lévi-Strauss:

“[A]s mais humildes técnicas dos chamados primitivos fazem


apelo a operações manuais e intelectuais de uma grande
complexidade que é preciso ter compreendido e aprendido e
que, de cada vez que se executam, reclamam inteligência,
iniciativa e gosto (Id, p.383).

“Ele me acompanha para aprender”, “eu chamo meu menino pra ir


mariscar comigo, pra que ele não fique só em casa, preguiçoso”, “ela vai
acompanhando a mãe e fica só brincando, aí começa a se interessar e aprende
também”. Dessas maneiras as pessoas na Apiwtxa afirmam que as crianças
aprendem, necessariamente imersas nas atividades produtivas que
desempenham os adultos, compartilhando com eles um mesmo ambiente.

95
Figura 11 Joana com seus netos no roçado

Ingold propõe, no lugar das noções de transmissão e socialização (que


estão imbricadas), o conceito de enskillment, ou habilitação (2010). Esse
processo depende da experiência situada no ambiente e nas relações com
pessoas, outros seres e coisas. É esta noção, ao lado de outra também utilizada
por esse autor, a de “educação pela atenção”, que parece traduzir aquilo que
meus interlocutores me diziam e aquilo que eu podia observar junto deles.
Além destes empréstimos de Ingold, são importantes aqui um outro
conjunto de ideias que foram elaboradas por autores como McCallum (1998) e
Kesinger (1995) que apontam a mutua produção de corpos e conhecimentos
entre grupos ameríndios, de modo que produzir um corpo apto a envolver-se
com o mundo de forma produtiva e criativa é um processo contínuo de aprender
e ensinar, e que é sempre acompanhado de transformações corporais.

3.3 - A criança Ashaninka e seu desenvolvimento


Gerald Weiss, que realizou uma pesquisa pioneira sobre a cosmologia
ashaninka, buscou também definir os Ashaninka, a quem identifica como Campa
ribeirinhos, a partir de uma tipologia de suas “instituições sociais”. Entre elas

96
estariam aquelas descritas pelo autor como “instituições pedagógicas”. Weiss
sugere que:
A organização da educação ocupa-se da ‘produção’ de
componentes humanos adequadamente modificados através
de alterações na matéria-prima fornecida pela procriação. O
processo de enculturação e de moldagem de seres humanos
para ajustarem-se a sua cultura produz componentes
humanos que não só pensam e agem, mas que tem a
aparência que deveriam ter, pois os seres humanos
engendram não apenas modificações neurais, mas também
mudanças físicas no curso de sua educação (1974: 393).

Essa educação ashaninka, como sugere o autor em questão, produz


pessoas que pensam, agem e mostram-se de uma maneira singular e
propriamente humana. Para isso, as atividades produtivas e as relações que elas
engendram são centrais na produção de conhecimentos no corpo e o centro das
memórias de cuidado que constroem o parentesco concreto.
O nascimento de uma criança é um evento íntimo e silencioso. Mesmo
durante a gestação, uma mulher evita tornar público seu estado. As cushmas
são bons disfarces para a barriga crescente, e uma mulher pode mesmo rir e
desconversar sobre perguntas sobre sua gravidez até suas últimas luas. Isso
não impede, obviamente, que todos comentem e saibam das mulheres próximas
de parir. Uma mulher não faz barulho e não grita para ganhar neném. Seus
vizinhos podem nem se dar conta do evento até que no dia seguinte se veja uma
pequena rede balançando na casa. Weiss descreve que entre os Campa
ribeirinhos: “Uma mulher pare segurando no esteio da casa e agachada numa
esteira ou pano cobrindo a terra. Ela geralmente é assistida por uma mulher
sábia, geralmente sua mãe ou sogra, ou até mesmo por seu marido” (Weiss,
1974: 391).
As mulheres na Apiwtxa preferem dar à luz sozinhas depois do primeiro
parto, que é visto como uma transição, uma vez que neste momento o corpo da
mulher não possui ainda os conhecimentos necessários, ainda que ela tenha
sido preparada desde bem nova com o uso de ervas e dietas alimentares para
ter força para esse evento. Permanecem sentadas sobre seus joelhos, pois
assim podem aparar a criança quando estão sozinhas, mas também podem parir
de cócoras se tiverem companhia. Dora Piyãko, agente indígena de saúde na
aldeia, contou-me que: “As mulheres gostam de ter [neném] no terreiro, do

97
ladinho assim, onde tiver uma mata, ela gosta de ter lá. Normalmente elas têm
mais lá. Agora aqui onde tem mais casa junto, aí ela não pode ter lá, então ela
tem na casinha dela” (entrevista, 2015)36.
Também não se ouve choro de recém-nascido. Aos primeiros sinais de
desconforto, a mãe amamenta, canta, distrai o bebê. Nos primeiros dias de vida
o bebê será diversas vezes banhado com ervas iwenki para que não fique
doente. Se manterá envolvo com um pano apertado para que não tome “susto”,
acontecimento que pode fazer a alma deixar o pequeno corpo, prática já notada
por Weiss: “Os recém-nascidos são envolvidos com um tecido, que por sua vez
é envolvido por uma corda ou pedaço de tecido para evitar que se movimentem
demasiadamente” (2005: 35).
Depois das primeiras semanas, a mãe já vai com o bebê para as
caiçumadas. Nesses momentos, ela leva uma rede pequenina, pendura na casa
em que chega e amarra em cada extremidade um pedaço de tecido. Dessa
forma, o bebê fica protegido com a rede quase toda fechada e, com os panos
nas pontas, a mãe balança a rede enquanto conversa com outras mulheres e
bebe cerveja de mandioca
Os pais deverão, nos primeiros meses da criança, seguir restrições
alimentares, uma vez que o corpo do bebê é, inicialmente, uma extensão das
relações de seus pais, e o que eles comem e fazem influi diretamente sobre o
bebê. Seu Cláudio diz que:

Nós, Ashaninka mesmo, temos respeito para comer comidas


quando tem menino pequeno. Quando tem menino pequeno
aí os pais não comem nada. Não pode comer o peixe remoso.
É como [no] hospital, que tu não pode comer nada quando
está doente, só come as coisas que manda o doutor. Os pais
não podem comer peixe sem escama, só com escama, como
o curimatã. O pai não vai no rio mariscar, ele vai se guardar
até uns oito dias, nove dias, dez dias. Ele não vai no rio, vai
ficar na casa. Diz que quando a pessoa desce [para o rio] o
menino começa a chorar, aí vai ficar doente, vai morrer. Carne
de caça só pode nambu, aves assim. A mãe e o pai. Tem dieta
até uns cinco meses, sete meses, até quase dar um ano. Aí
quando a criança começa a andar [os pais] já podem comer
tudo. Aí a criança começa a usar a cushma. Antes usa só um

36
Belaunde (2003) escreveu com detalhes sobre os partos entre as mulheres Piro, caso que muito se
assemelha ao Ashaninka.

98
pano, quando está pequenino (Seu Cláudio – entrevista
2014).

Weiss também observa que as restrições alimentares “tem como objetivo


evitar efeitos negativos na criança e/ou nos pais” (2005: 34). As restrições
alimentares dos pais vão se atenuando com o crescimento do bebê, finalizando-
se quando a criança dá seus primeiros passos (Id.). O conjunto de cuidados,
tanto em relação à alimentação, quanto as atividades desempenhadas, só deixa
completamente de se impor sobre os pais da criança quando esta começa a
andar. É também neste momento que a cushma passa a ser usada pela criança,
que passa de eentxo, bebê, para shirampari, menino, ou tsinane, menina.
Enquanto não são capazes de caminhar por conta própria, as crianças
permanecem sempre junto de sua mãe. Weiss (2005) notou em seu trabalho de
campo que:

Conforme crescem, as crianças participam cada vez mais das


atividades dos maiores e assim aprendem as habilidades que
lhes serão necessárias quando adultos. As meninas ajudam
a preparar o masato37 [cerveja de mandioca] e cuidar das
crianças menores, e começam a utilizar o cesto. Os meninos
começam a utilizar arcos e flechas de brinquedo e logo
praticam com arcos e flechas reais feitos por suas mãos,
começam a caçar e pescar, a conduzir canoas e balsas, e são
cada vez mais independentes (p.35).

As crianças, assim, começam a formar-se para atuar de forma


generificada conforme seus corpos e os de seus pais vão assumindo maior
independência entre eles. Wiko, morador do Amônia, descreveu para mim numa
entrevista essa progressiva diferenciação entre as crianças a partir das
atividades produtivas:

Quando o menino tem três, quatro anos, ele começa a andar


no mato e aí pode acompanhar, vai acompanhando o pai até
ficar grande. Só olhando. Primeiro, quando ele não sabe
trabalhar, ele acompanha mas fica sentado, só trabalhando o
pai e ele só olhando. Depois, quando ele vai crescendo, ele
pode pegar o terçado e cortar. As vezes planta roça também,

37
Weiss utiliza o termo masato, que é como se nomeia genericamente a cerveja de mandioca indígena
no Peru, onde localizam-se as aldeias Ashaninka onde o antropólogo desenvolveu pesquisas.

99
pega um pedaço de maniva e planta. O pai dele do lado
ensinando.
As meninas aprendem com as mães delas, que mandam lavar
a roupa, fiar algodão também para aprender a fazer a cushma,
manda limpar e varrer todinho o terreiro, lava prato, manda
arrancar e cozinhar macaxeira, ensina a fazer caiçuma. A
mãe ensina a mulher (Wiko).

Aprendizagem silenciosa (Beysen, 2008), aprendizagem informal (Weiss,


2005), ou educação onde a criança deve “aprender por ela mesma” (Lenaerts,
2004: 179), fato é que “[u]ma criança depende fortemente da observação dos
adultos e das lições de sua experiência pessoal” (Weiss, 1974: 392) para
apreender o mundo. Essa observação é articulada a uma produção própria num
processo de reprodução que não exclui a criação. O papel dos pais é criar os
filhos corretamente e prepara-los para serem autônomos em uma nova unidade
familiar, propiciando para eles os contextos para que desenvolvam suas
habilidades, e o dos filhos é ativamente tornar-se agente, um ser humano
produtivo. Por isso Irãtxo explica:

O pai leva os meninos pequenos pro roçado, chama toda a


meninadazinha pra aprender também a trabalhar. Quando é
nenenzinho não deixa pegar o terçado porque ele pode se
cortar, vai só acompanhando mesmo pra olhar. Maiorzinho o
pai já manda pegar o terçado pra aprender a cortar. Com 10
anos o menino já sabe brocar, limpar roçado. Só não derruba
pau grosso ainda. Desde pequeno, olhando, ele vai
aprendendo. Se o pai não levar, nunca o menino vai aprender.
O menino pequeno anda mais o pai e a menina fica junto da
mãe. As meninas vão com a mãe pra aprender a tirar
macaxeira, fazer caiçuma, ensinar a limpar também. Pequena
a mãe já leva pra aprender a carregar o peso. Se não carregar
o peso ela não tem força. Tem muito índio que a mãe não
chama pra carregar e daí a menina fica mole, bota o paneiro
nas costas e já cai. Menina que já carrega o paneirinho tem
força.

Diferente das fisiologias ocidentais em que o corpo da criança é visto


como uma entidade frágil que deve ser poupada, por exemplo, de carregar peso,
no entendimento de que isso produziria um corpo que não se desenvolve da
maneira correta, e pode mesmo atrofiar os músculos e impedir o crescimento, as
crianças ashaninka precisam fazer de seu corpo gradativamente forte, e para

100
isso suas atividades são as mesmas dos adultos, mas com responsabilidades
diferentes. Não existem objetos mediadores na aquisição dos papéis sociais de
gênero. No lugar de representações, como bonecas e panelinhas em miniatura,
há um contínuo entre o mundo das coisas dos adultos e o mundo das coisas das
crianças. Em suas brincadeiras, as crianças Ashaninka reproduzem a vida dos
adultos. Quando brincam no terreiro os meninos constroem um tapiri e fazem o
fogo para as meninas cozinharem numa panelinha a macaxeira para fazer
caiçuma, como veem os mais velhos fazerem. Tapiri em miniatura, caiçuma
docinha, mas tudo de verdade. Assim como as meninas desde bem pequenas
andam com suas tipoias atravessadas, que logo carregarão seus irmãos e
depois seus filhos. Crianças e adultos vivenciam o mesmo mundo diante de suas
vulnerabilidades e capacidade de agir autonomamente, ou seja, a capacidade
de ser produtivo e cuidar de outrem. A criança não é apenas cuidada, ela é
também chamada a cuidar, assumindo progressivamente mais
responsabilidades na economia familiar.
É importante, me disseram repetidas vezes, que os pais façam com que
seus filhos os acompanhem em suas atividades cotidianas, como sugere Hatã,
que vive na Apiwtxa, quando se refere àquilo que ele, como pai, ensina aos seus
filhos:

Meu filho, quando sai da escola, eu levo para o roçado para


ensinar a plantar macaxeira, limpar e trabalhar. Eu sempre
falo para o meu filho coisas importantes: é assim que planta,
é assim que trabalha. Quando você ficar grande, aí quem é
que vai plantar pra tu? Ninguém. Então vamos trabalhar e
você vai aprender. Então tem que aprender também com o
pai. Eu aprendi com meu pai. Agora eu já sei fazer minha casa
sozinho, eu sei fazer roçado, eu sei como é que derruba
árvore, sei tudo. Ele me ensinava. A criança vai estudar e aí
chega e fica na casa? Não! Tem atividade pra ele fazer ainda.

Eu levo desde pequenininho meu filho pro roçado, que é


para ele andar, pra ele olhar, participar, aí ele vai
aprendendo. Quando está desse tamanhozinho [ainda bem
pequena], ele não sabe plantar ainda, mas ele pode andar no
roçado, acompanhar, brincar lá. Aí quando fica maior eu
chamo. Como o meu outro filho, que já tem 10 anos, esse daí
já sabe plantar, já sabe cavar um barro pra plantar. Aí eu
chamo ele (Hatã – entrevista 2014).

101
Isaac explicou a aprendizagem situada das crianças ashaninka a partir de
uma percepção sua como professor:

Se eu digo [para os alunos]: desenha um peixe. Ele nunca


desenha só aquele peixe: ele desenha o peixe, quem pega
aquele peixe e o local que o peixe está. E o ambiente. Ainda
faz o ambiente. É uma forma de pensar. Eu vejo assim, a
visão dele não está focada só no peixe, está em quem come,
no ambiente em que ele está, em tudo. Sempre é assim. Se
você pede para uma criança que não é dessa escola, que eu
tenho visto também, porque tenho participado de algumas
oficinas e palestras: desenha aí. Ela vai lá e desenha só
aquilo. (Isaac, entrevista 2014)

De fato, desenhar o peixe, quem pega o peixe e o ambiente traduz uma


“forma de pensar” que coloca pessoas e coisas sempre em relação. A criança
não aprende, por exemplo, os nomes das coisas sem lhes tomar uma imagem
total e relacional. A progressiva percepção do ambiente e de sua participação
nele é assim central na educação ashaninka. Estar junto é parte desse processo.
Enisson conta:

Eu vejo que quando as crianças nascem, até elas


completarem uns 6 anos, é muito importante aprender as
coisas com os pais, com as mães, porque as crianças gostam
de estar onde está a mãe enfiando artesanato, porque aí ela
senta também, elas ficam mexendo, já começam a brincar e
fazer o dela (Entrevista, 2014)

O mesmo professor, em outra ocasião, em 2015, deu mais exemplos: “as


crianças, quando vão para o roçado, elas gostam mais de brincar. O menino
chega lá e corta um pedaço de pau, faz uma canoinha, vai cortando e vai
fazendo, desenvolvendo sozinho mesmo”. Sua mãe Irãtxo complementou:
“quando chega na mata já corta o pauzinho para fazer o peão dele, a flecha”, e
Fátima terminou dizendo que

Quando vai toda a família, como geralmente vai, as crianças


começam a fazer uma casinha de palha, vão inventando,
fazem tocaia. Vão testando tudo, e com isso aprendem: fazer
foguinho, cozinhar a macaxeira, fazer uma panelinha de
caiçuma. Olhou a mãe fazendo e logo vão testar.

102
Além dos pais, e geralmente dos avós, as crianças aprendem a agir no
mundo convivendo ativamente com outras crianças de diferentes idades, com as
quais vive compartilhando um grupo doméstico. Essa “aprendizagem horizontal”,
como sugeriu Codonho (2009) para o caso dos Galibi-Marworno, é de especial
importância uma vez que estas relações são basilares no dia a dia, pois uma
criança está sempre rodeada por seus irmãos e primos. Essa mesma
configuração se mantém quase sempre mesmo nos espaços onde se encontram
crianças de famílias diferentes, como nas caiçumadas, e na escola. Entre as
crianças de um grupo doméstico é que se desenrolam as brincadeiras e a
vivência das atividades cotidianas, e seus vínculos são produzidos e estreitados
no compartilhamento de comida, especialmente entre irmãos que sempre se
alimentam dividindo seja o prato, seja um pedaço de carne.

3.4 - Aprender com as plantas


Antigamente, me disse Julieta, uma das irmãs de Antônio Piyako,
ninguém tinha preguiça, e os meninos e meninas trabalhavam junto de seus pais
sem reclamar porque naquela época “todo mundo tomava sheri [tabaco]”. O
sumo do tabaco era utilizado, contaram meus interlocutores, nos meninos e nas
meninas, especialmente na puberdade. Muitas famílias deixaram de dar tabaco
de beber para seus filhos. “Primeiro não tinha pena, obrigava mesmo à força:
“tem que tomar!”. Mas agora a mãe tem pena da filha”, disse Irãtxo. Ela mesma
tinha pena de suas filhas hoje, contou. Quando se bebe o tabaco, “começa a dar
coceira na boca e faz provocar [vomitar]”. Na primeira menstruação as mulheres
davam às suas filhas sheri para beber, de forma a fazer seus corpos ativos e
sem preguiça. Nessa mesma conversa, Fátima, esposa de Isaac, perguntou para
Joana, cunhada de Julieta, sobre algo que havia visto certo dia: a outra pingar
tabaco nos olhos do neto criança. A mulher mais velha respondeu: “ah, chora
muito!”. O tabaco era um meio de ensiná-lo a agir de maneira correta e serena.
Outras “plantas na mata”, disse, servem também “para provocar, para tirar a
preguiça”. Irãtxo, que havia dito ter pena de dar de beber tabaco contou que um
dia chamou uma de suas filhas, com o genro, para “tomar tabaco”. Falou para
eles: “Bora tomar que nós temos preguiça, que antes o pessoal tomava e não
tinha preguiça”. Ela não duvidava da eficácia do sheri.

103
Além do sheri, existe um conjunto de plantas que são de extrema
importância para os Ashaninka, chamadas de iwenki ou piripiri (Cyperus
giganteus). Dessas plantas cultivadas masca-se o bulbo e utiliza-se das folhas
para fazer chás, banhos, ou para esfregar no corpo. Assim como o tabaco,
possuem propriedades relacionais e agentivas. Essas plantas rizomáticas são
geralmente cultivadas no terreiro das casas, e seus usos são dos mais variados.
Alguns iwenki são utilizados como anti-inflamatório e cicatrizante para cortes e
feridas, outros para picada de cobra ou outros animais peçonhentos. Mas além
destes, há iwenki específicos para os homens – como aqueles utilizados para a
caça, de modo a atrair as presas, ou ainda aqueles que eram utilizados na
guerra, na ponta das flechas, e faziam seus inimigos sangrarem
demasiadamente – ou para as mulheres, que dispõem de variedades para a
gestação, o parto e os cuidados com o recém-nascido, além de outras para
“perder a preguiça” e tecer. Shãpi, agente indígena de saúde no rio Amônia conta
que:

Piripiri tem vários, tem muito. Tem piripiri para a mulher


plantar no terreiro para ter neném. Aí ela come pra não sentir
dor muita, pra passar o neném normal. Tem outro piripiri que
é para golpes [cortes], que a gente planta no terreiro mesmo.
Tem outro que o homem usa que é mais forte. Esse não
planta no terreiro não. Forte não planta perto da casa, planta
mais distante, para não mexer a criançada, para não pegar,
para não machucar. É para buscar caça. Se não tiver piripiri é
difícil pra encontrar caça (Shãpi – entrevista 2014).

Seu Cláudio me contou que o piripiri é utilizado tradicionalmente para


muitas coisas, especialmente como medicina para tratar das doenças e estados
conhecidos, mas que não pode agir para curar doenças que passaram a
conhecer com os brancos. Disse ele que:

Ashaninka sabe remédio para o que já conhece. Tem piripiri


que usa pra caça, pra matar caças na flecha. Porque
antigamente não tinha espingarda, era só na flecha. Passava
piripiri na flecha e matava caça. Tem piripiri pra mulheres, pra
fazer cushma, passa na mão e todo dia não parava, como
máquina, só fazendo (Seu Cláudio).

104
Shãpi afirma que sem piripiri o homem não encontra caça facilmente, e
Seu Cláudio fala da mulher que masca o bulbo de piripiri para tecer e através de
uma analogia com uma máquina que não para de trabalhar. Ambos se referem
às capacidades dos piripiri de fazer o corpo agir – os homens caminham com
maior destreza na mata e podem ver com facilidade a caça, as mulheres tecem
de forma ágil quando comem. Além disso, as mulheres são unânimes a citar o
uso dessas plantas no parto, de modo que, como me disse Dora sobre as
mulheres na Apiwtxa, quando tomam piripiri no trabalho de parto: “elas não
gritam, aguentam mesmo. Eu sei que dói muito. Mas tem o iwenki que toma.
Quando toma ou dói logo mesmo pra ganhar o neném, ou dá uma acalmada e a
gente fica sentindo pouca dor até a hora de nascer, aí a dor aperta mesmo pra
ter”.
Outra planta companheira dos Ashaninka é a coca, mascada para dar
vitalidade no trabalho diário ou para ativar memórias numa roda de caiçuma. A
coca, contam os Ashaninka, era a mulher de Pawa (demiurgo e divindade
ashaninka) antes do tempo das transformações. Ela tirava as folhas de seu
próprio corpo para dar ao marido, mas seu filho também pedia insistentemente
para mascar. Incomodada com a teimosia do menino que desejavam mascar a
coca que era de seu pai, a mulher transformou-se na coca que é hoje cultivada.
Quando Pawa viu o que tinha acontecido, a mulher-coca exclamou: “Deixa ele
aí que agora ele vai ficar tirando coisas dos outros, como o passarinho que ele
foi atrás! –o filho transformou-se no passarinho e ficou tirando coisas dos outros,
[como o passarinho] entrando em buraco” (Aricêmio em Mendes, 1991, parte II:
4).
Hoje a coca é mascada sempre acompanhada de um cipó, e de um pó
extraído da queima de um mineral, que dá gosto adocicado, mas provoca
queimaduras na boca se é colocado diretamente sobre a mucosa, devendo ser
consumido por cima das folhas de coca na boca. As crianças não mascam coca,
apenas os adultos, homens e mulheres. A coca parece ter uma relação estreita
com o trabalho produtivo, como sugere, por exemplo, uma fala de Alípio, que me
disse que seu pai Samuel “gostava muito de coca, de comer quando a gente ia
trabalhar. Se tivesse coca, ele gostava de limpar. A gente limpa e come coca no
roçado. Se não tiver coca mais, ele não ia trabalhar não”. A coca tem especial
relação com a tecelagem, pois fora a mulher de Pawa, que era a própria coca,

105
quem começou a tecer e “foi a partir daí que os outros ashaninka aprenderam a
fazer tecido; o tecido começou feito por ela” (Mendes, p.2). As mulheres quando
fiam e tecem estão sempre a mascar a coca e, como acontece com alguns tipos
de piripiri, os corpos das mulheres ganham disposição para trabalhar e o fazem
de forma eficiente e desenvolta através da agência da coca.
O corpo, na Amazônia indígena, é desenvolvido através de práticas de
conhecimento (McCallum, 1998). Kensinger (1995) escreveu que quando
realizava trabalho de campo junto aos Huni Kuin (Kaxinawá) no Peru, buscava
compreender onde, para eles, se localizava o conhecimento. Os índios lhe
respondiam que o conhecimento acontecia no e através do corpo (p.243). Nas
palavras do autor, entre os Huni Kuin: “Uma pessoa sábia não é somente aquela
cujo corpo sabe baseado em experiências passadas, mas aquela cujo
conhecimento continua a ser incrementado como conhecimento em ação” (Id:
246). E continua: “O conhecimento é vivo. Ele vive e cresce num corpo que age,
pensa e sente (Id.).
Essa teoria do “corpo pensante” Huni Kuin, como observa Weber (2006:
p.200), não é exclusiva desse grupo, e é similar a outros sistemas de
conhecimento indígenas. Mesmo novas habilidades, como aquelas produzidas
através da escola, quando introduzidas, devem operar através da “in-
corporação”, em um novo contexto de aprendizado. (Id, p.201).

3.5 - Conhecimento embriagado: a caiçuma


A caiçuma é a bebida do Ashaninka, como ouvi diversas vezes. Preparada
quase sempre a partir da mandioca, ela também pode ser feita de pupunha. Na
língua Ashaninka a bebida se chama piyarentsi, e é consumida não apenas em
ocasiões festivas, mas também servida no dia-a-dia das famílias, esquentada
como a primeira refeição do dia, ou bebida para energizar aqueles que passarão
o dia trabalhando na roça. Além disso é também o primeiro alimento diferente do
leite da mãe que é oferecido ao bebê, de forma que “as crianças são literalmente
amamentadas com masato doce” (Weiss, 2005: 28). Como notou também Weiss,
a gradação alcoolica da caiçuma, no cotidiano, define distâncias geracionais,
pois as crianças bebem geralmente a caiçuma doce, recém feita, enquanto os
adultos bebem sempre fermentada. É comum que se tenha um pouco de

106
caiçuma em casa também para receber visitas. Oferecer uma cuia da bebida é
símbolo de hospitalidade e generosidade.

Figura 12 Criança tomando caiçuma

Além da caiçuma para a família, acontecem as caiçumadas, as festas de


piyaretsi. A depender do ânimo da comunidade e da disponibilidade da mandioca
nos roçados, as caiçumadas podem acontecer apenas um ou dois dias na
semana – geralmente nos finais de semana, tamanha a influência do calendário
escolar, ou, em certas épocas, todos os dias. Elas podem acontecer
simultaneamente em várias casas ou em um só lugar que reúne todos os
desejosos por cerveja de mandioca.
Para o acontecimento de uma caiçumada, a mulher ou o homem
manifestam o desejo de oferecer uma festa. A mandioca é uma co-produção do
casal, pois geralmente é o homem quem planta a maniva, e é sempre quem
preparou o terreno para o plantio. A mulher vai arrancar a macaxeira com a ajuda
de suas filhas, e o marido irá buscar lenha com os seus filhos. A partir daí o
trabalho é exclusivamente feminino. Com a ajuda de suas filhas mulheres e,
possivelmente, de suas irmãs ou cunhadas, a esposa lava e descasca o
tubérculo, cozinha a mandioca e então despeja o conteúdo da panela num
recipiente em formato de canoa. Com uma pá de madeira a mulher mexe a
massa que vai se formando da mandioca que é mascada em pequenas porções

107
com um pedaço de batata doce crua. Durante algumas horas, as mulheres
mascam, devolvem a massa para a gamela, mexem e misturam até que a
consistência esteja adequada. Depois, a canoa é coberta com folhas de
bananeira e deixada para descansar. Para uma caiçuma forte, mas não azeda
em demasia, se deixa descansar a massa por dois ou três dias, período em que
o homem irá fazer os convites para a festa. Todos sabem a “agenda” das
caiçumadas, onde vai acontecer, quando começou a ser preparada, a
quantidade disponível, e mesmo fazem comentários sobre as mulheres que
preparam boas caiçumas, aquelas que são mais generosas e servem nas
maiores cuias. Uma mulher que está preparando caiçuma em grandes
quantidades, uma outra que prepara o piyarentsi azedo demais, enfim, a bebida
é sempre assunto de conversas do cotidiano.
Para uma caiçumada, toda a família se produz com suas melhores
cushmas, homens, mulheres e crianças pintam o rosto com urucum e utilizam
adornos que são geralmente dispensados nas tarefas do dia a dia, como o
chapéu e o txoxiki (tipo de cordão transpassado, feito de sementes, utilizado
pelos homens Ashaninka). Como notou Mendes a respeito desses eventos no
rio Amônia, o grupo doméstico, mesmo quando acontecem diversas caiçumadas
simultaneamente, permanece bebendo no mesmo local (1991: 80). As mulheres
e os homens sentam-se em grupos separados e as crianças circulam livremente,
mas dificilmente brincam com crianças de grupos domésticos com os quais não
tem laços de parentesco bem definidos. Mendes nota que: “[a]s mães dão
piyarentsi às suas crianças desde bem pequenas (...). Beber piyarentsi constitui
o modo mais significativo de interação social entre os Ashaninka e por esta razão
os filhos são iniciados desde cedo”. (1991: 83).
Uma caiçumada pode durar dias e noites, e só acaba quando a bebida
chega ao fim, quando as pessoas retornam para as suas casas ou se deslocam
para a próxima festa, se assim houver.
Mendes descreveu o piyarentsi ashaninka como uma instituição que
equaciona política, economia, parentesco, religião e cosmologia (1991: 111), e
que define as relações e alianças entre grupos domésticos. A autora sugere que
as caiçumadas definem os limites das relações e reiteram as alianças existentes,
de modo que a proximidade em termos de parentesco e a afinidade ou inimizade
com quem estará em uma reunião de piyaretsi são os principais fatores a se

108
levar em conta na decisão de onde beber (p. 80). Numa caiçumada se planejam
viagens, casamentos, discutem-se problemas comunitários e conflitos entre
famílias; as pessoas cantam e dançam embriagadas; os homens se põe a contar
histórias. Beber caiçuma junto é o idioma central da produção de semelhança
entre os corpos, e, portanto, de produção de socialidade. A seriedade e a
atomização cotidiana das famílias dão lugar às emoções que fluem sem a
contenção usual.
Numa caiçumada, as mulheres também conversam, riem, se embriagam.
Numa reunião de caiçuma na casa de Wiko, Fátima me disse que alguns homens
brincavam com as mulheres porque nas reuniões elas pouco falavam, mas nas
caiçumadas ficam “só na fuxicagem”. Ela me contou que no início daquele ano
de 2015, duas mulheres de uma “organização da Noruega”, que desenvolve
projetos com os Ashaninka, foram até a Apiwtxa com o objetivo de fazer uma
reunião com as mulheres para discutir a participação política delas na
comunidade. Para a tal reunião, compareceram apenas cinco mulheres, que
pouco falaram. As mulheres norueguesas impressionaram-se, disse Fátima, com
o que julgaram ser uma inexpressividade política das mulheres Ashaninka. A
esposa de Isaac então me explicou que o que ficou obscurecido nessa visão foi
que as mulheres não falam usualmente nas reuniões – o que é “da cultura”, em
seu entendimento – mas conversam com seus maridos em casa, “dizem seu
pensamento”. Assim, o que aparece nas reuniões, a fala dos homens, é o
conjunto das reflexões do casal. Mesmo Weiss, que afirma que os homens
Ashaninka exercem um papel de dominação sobre as mulheres, admite que “em
algumas ocasiões elas possam sugerir pautas de ação aceitáveis para os
homens” (p.29). Bebendo caiçuma as mulheres falam de projetos comunitários,
sobre quem nasceu e aonde, sobre casamentos e separações, sobre conflitos
internos.
As crianças estão sempre presentes e quando não conseguem mais
permanecer acordadas com os adultos elas se deitam ao lado de suas mães e
deixam o sono lhes embalar. Uma cena comum é a de uma roda de mães
abanando as crianças estiradas ao seu lado, para que os carapanãs não as
devorem.
O estado de embriaguez é ao mesmo tempo produtor de vida social e de
interação entre pessoas que passam seus dias separados, mas, sendo lugar

109
onde o controle das emoções perde sua força, é também onde acontecem os
conflitos, onde são expostos problemas que não se fazem ver no cotidiano, onde
as rivalidades e o ciúme são explicitados. O ciúme é quase sempre o motor das
brigas, e relações sexuais fora do casamento e conquistas com pussanga
acontecem especificamente ali. Os atritos podem manter-se na ofensa verbal ou
gerar enfrentamentos físicos (Mendes, 1991: Lima, 2005).
Os homens falam com os seus filhos e netos no início da noite, depois
que todos já deram por terminadas suas atividades do dia, quando já se
banharam e se alimentaram. Narram mitos, que por vezes se misturam com
histórias da luta pela terra e a dureza do tempo dos patrões, e ao mesmo tempo
aconselham as crianças. O mesmo acontece nas caiçumadas, quando depois
de muitas cuias, as pessoas começam a “contar histórias”, como relata Wiko:

Eu conto para os filhos o que meu avô contava pra mim, e o


meu pai também. De tarde, umas seis horas, depois que a
gente toma banho, eles ficam sentados comigo e eu fico
conversando com eles até eles não aguentam mais e com
sono vão dormir. Às vezes na caiçumada também eu conto as
histórias, pra ele aprender mais, aprender muito, né. Porque
meu vô contava pra mim, e meu pai também. Às vezes eu
canto música pra eles.

Conversando com Alípio e Joana, o homem me dizia, também, que


contava muitas histórias para seus netos, mas que “só contava quando queria
mesmo”. Sua esposa logo exclamou: “ele só conta história quando está
bêbado!”. Ele riu e confirmou. Ãtxoki me disse que nas caiçumadas, os homens
“quando começa[m] a beber, começa[m] a contar história e a criança senta
pertinho dele[s]”.
As caiçumadas se mantem como um espaço central na socialidade
ashaninka, mas muito do que meus interlocutores, e do que os pesquisadores
narram a respeito das festas de piyarentsi, como as músicas tocadas no tambor
e nas flautas, os rituais de homens e mulheres que aconteciam nessas ocasiões,
com provocações sexuais e brincadeiras jocosas, acontecem hoje com pouca
frequência. No auge da embriaguez, o forró regional e a cumbia são os ritmos
preferidos para as danças hoje, e são tocados em rádios espalhados por todas
as casas. Para Isaac:

110
A caiçumada era importante, eu vejo, até uns tempos atrás.
Essa é uma discussão muito grande. Ela está se tornando
uma coisa desequilibrada. Isso no meu ponto de vista. Tenho
discutido isso com o Komãyari nas reuniões, com os
professores. Nós temos que observar muito bem o que é uma
caiçumada hoje para ela não se tornar uma coisa perigosa no
futuro. Mas que a caiçuma é uma coisa muito importante nas
relações, para as trocas, para negociação, para o
planejamento, para as histórias, para os mitos, é. A
caiçumada é responsável por tudo isso. Se ela não tem mais
espaço por causa da música, da televisão ocupando esses
espaços, já foi, a caiçumada acabou porque não faz mais
sentido manter os alunos38 numa caiçumada.

A caiçumada deve ser, na visão da liderança, discutida para que


mantenha seu sentido, para que continue a ser um contexto de aprendizagem e
do fortalecimento de relações e trocas entre as famílias e entre as gerações.
Isaac continua, nessa entrevista, a analisar a caiçumada como o que chama de
um “espaço de ensinamento” e diz que a música nos rádios não pode impedir
que os velhos narrem os mitos porque:

É o estudo da ciência também que está ali presente e muito


forte. Eu considero dentro da minha análise: mitos que no
passado diziam [pessoas não-indígenas] que não era muita
coisa, que era coisa inventada, o mito hoje é um fato que
aconteceu no passado e que foi transmitido através do mito.
Então por trás do mito existe uma verdade, existiu uma
verdade. Ele é muito importante para tirar algumas
conclusões. Um exemplo, eu conto muito essa história que
meu avô contava sobre os rios, sobre o rio que não corria pra
cá, corria pra uma outra direção. Esse mito é contado até hoje,
qualquer pessoa tradicional aqui conta até hoje. Foi um
caranguejo que subiu e fechou o rio e ele teve que mudar o
curso. Aí diz: ah, isso é um mito. Não é um mito, foi um fato
que aconteceu. Aí hoje a ciência diz que nessa região de fato
o rio não tinha esse curso. Com um vulcão a terra subiu e o
rio voltou a correr pra essa direção e mudou o curso. A ciência
está comprovando isso. Tem até um livro: uma vez eu tava
contando essa história, aí um rapaz historiador ficou de me
mandar um livro que conta essa história que meu avô contava
quando eu era criancinha. Ele contava também, e o pessoal
dizia que era mito, que aqui era cheio de animais muito
grandes e que o bisavô do bisavô dele já contava, há mais de
quatro séculos, oito séculos atrás, mito de quase mil anos
38
Essa fala de Isaac aconteceu numa entrevista comigo em 2014. Conversávamos sobre a escola e o
papel dela na comunidade. Por isso a liderança fala em “alunos”.

111
atrás, que ele contava. Que aqui existiam animais muito
grandes, que não eram esses animais. E hoje o pessoal está
encontrando os fósseis (Isaac, entrevista, 2014).

Na concepção de Isaac, o mito é uma verdade da qual se podem extrair


muitas conclusões. Algo similar me disse Komãyari certa vez. Ele me dizia que
os mitos eram como receitas de bolo, que mostravam para as pessoas como
viver corretamente, como ser um Ashaninka. No entanto, a análise dos dois
parece operar em regimes diferentes: para Komãyari, trata-se da relatividade da
verdade – o mito produz uma verdade, uma realidade que não é a única. Para
Isaac trata-se de uma verdade factual, uma que pode ser “comprovada pela
ciência”.
Komãyari, na mesma conversa a qual me refiro, afirmou também que o
mito, quando contado sempre, pelos mais velhos, produz efeitos. Deu como
exemplo, o uso dos piripiri como medicina, explicando que uma pessoa precisa
conhecer a história de quando a planta era gente e foi deixada no tempo das
transformações para os Ashaninka, Só assim a planta pode fazer efeito.

Todo tipo de planta dá conselho, incluindo as plantas


alimentícias, como a mandioca, que tem uma ação
energizante, pedagógica e protetora. Por isso beber
masato [caiçuma], feito da mandioca fermentada pela
saliva das mulheres, é muito diferente de beber álcool ou
refresco comercial. O masato contém múltiplos
ensinamentos sociais (Belaunde, 2010: 130-1).

Além de um espaço onde as pessoas se encontram e onde situações de


aprendizagem ganham contexto, é necessário ver o ato de oferecer caiçuma às
crianças, e de compartilhar a bebida produzida com a transformação da
mandioca através da saliva e do trabalho das mulheres, a partir de seu “caráter
pedagógico” (Belaunde, 2010). Taylor e Viveiros de castro sugerem que:

Em muitas culturas amazônicas, ela [a bebida de


mandioca] é um componente essencial da sociabilidade. O
conjunto das relações afetivas, de gestos, de habilidades e
do saber viver que circundam o consumo desta bebida
fazem dela o índice por excelência da condição humana
(2007, p.155).

112
3.6 - O xamã e o conhecimento especializado
Os conhecimentos xamânicos, diferente daqueles que “todo mundo tem
que saber” são necessariamente especializados e não podem circular
amplamente. A distinção entre conhecimentos coletivos e especializados não é
exatamente fundada numa relação público x privado, uma vez que mesmo os
conhecimentos que devem circular entre as famílias não são igualmente
difundidos e praticados entre elas (Carneiro da Cunha, 2009), o que permite a
troca e as relações entre as pessoas, que podem sempre aprender sobre um
novo piripiri, uma história, uma variedade de cultivar. O que é essencial, na visão
dos moradores, é que estas práticas estejam presentes entre as famílias, mas
sem homogeneizar seus conteúdos e relações. Veremos no próximo capítulo a
relação desta ideia com os objetivos da escola entre os Ashaninka do rio Amônia.
Em relação às “medicinas tradicionais”, os professores afirmam que é necessário
trabalhar com a escola a valorização e a manutenção das práticas e
conhecimentos nas famílias, mas Isaac aponta que para isso eles “ainda não
encontraram uma forma”. Isaac, então diretor da escola, sempre frisava, em
nossas conversas, as dificuldades, e ao mesmo tempo a necessidade, de fazer
com que a escola seja promotora de contextos tradicionais de aprendizagem
sem “escolarizar os conhecimentos”, mas “fortalecer nas famílias”. As práticas
relacionadas à medicina são o símbolo dessa complexidade, uma vez que, na
análise de Isaac:

A medicina, apesar de ser uma coisa muito forte, todo mundo


tem esse conhecimento ainda, ele é um conhecimento
individual, ele também é as vezes restrito a determinadas
pessoas. Às vezes alguém passa para alguém em quem
confia, alguém muito próximo. Esse deve ser um dos motivos.
A questão espiritual também não é para qualquer pessoa.
Também não é permitido dentro da comunidade, desde os
ancestrais, qualquer pessoa aprender sobre o mundo
espiritual. Então não é que a escola não queira envolver, mas
eu acho que ela não pode. Nem deve, nem pode, porque são
caminhos diferentes. Assim como a escola tem um poder, o
mundo espiritual também constrói um poder. Como ele é a
base de tudo, a escola não pode interferir. Não sei aonde isso
vai dar, eu não sei ainda hoje medir o tamanho da
consequência.

113
Quer dizer, mesmo para os conhecimentos que não são “especializados”,
como os do xamã, com relação aos saberes que “todo mundo tem”, os
professores analisam que muitas famílias vêm deixando de cumprir as dietas, os
cuidados relacionados à gestação, parto e aos primeiros anos de vida da criança,
e o uso de plantas na prevenção de doenças. Esses conhecimentos que todo
mundo tem, sugere Isaac, são ao mesmo tempo individuais e circulados apenas
quando há uma relação de confiança que permite o intercâmbio, o ensino e a
aprendizagem. Para a continuidade dessas práticas e seus processos de
produção, Isaac indica que alguns desses conhecimentos, para se manterem
existindo, têm que “se tornar públicos”:

Eu acho que sobre a prevenção, muitas das coisas devem se


tornar públicas sim. Por exemplo uma dieta. Muita coisa pode
se tornar pública sim. Tipo uma dieta: uma criança não pode
comer determinada coisa. Isso pode se tornar público sim. As
músicas tradicionais, sem ser as do cipó, do kamarãpi, sem
ser as espirituais, tem que se tornar de todos. Isso pode, isso
deve se tonar. Já o kamarãpi não pode se tornar público.

Como fica explícito na fala de Isaac, os conhecimentos relacionados ao


kamarãpi não podem circular, pois, ele continua: “se eu estiver cantando e repetir
várias vezes numa sala de aula, eu posso estar invocando uma força espiritual
que pode prejudicar quem está ali”.
Por ora, gostaria de tratar das práticas médicas relacionadas ao
xamanismo, um outro caminho de conhecimento, como descreveu Isaac. Para
isso, primeiro descreverei o lugar e a atividade do xamã na Apiwtxa partindo de
uma “aula” que foi dada a mim por Komãyari, numa de nossas muitas e frutíferas
conversas.
Os xamãs (ou pajés, como os moradores da Apiwtxa se referem em
português aos seus sheripiari), me disse o professor e intelectual do rio Amônia,
precisam da ajuda de muitas guias para curar de forma eficaz. As guias são
animais-espíritos que auxiliam o xamã e podem trazer de volta o espírito de uma
pessoa que fora levado, causando adoecimento. Alguns animais, como o beija-
flor, são boas guias, pois voam rápido e por isso podem ir ligeiro buscar um
espírito que já está distante. As guias mais poderosas, no entanto, são a onça e
o japó. O pássaro japó é também Ashaninka, mas não sente raiva e nem sovina,

114
emoções negativas às quais os Ashaninka não-japó estão suscetíveis39. As
guias, nas palavras de Komãyari, “são como filhas do pajé”. As habilidades de
curar de um xamã dependem de suas guias – da quantidade e da qualidade
delas. Assim elas podem seguir os caminhos do espírito para busca-lo. Pode
acontecer, por exemplo, do espírito ser levado pela jibóia para o fundo das
águas. Se o xamã não tiver como guia um animal que pode mergulhar fundo,
não pode encontrar o espírito que, se separado do corpo por muito tempo, faz a
matéria definhar e morrer.
O pajé, continuou, cura em três planos: o real 40 – com as medicinas; a
miração – com o uso do kamarãpi e do tabaco; e no sonho. Se o pajé não
consegue diagnosticar o que causa a doença, “precisa dormir um pouco para
poder sonhar”41. Um bom xamã deve ser um viajante e precisa ter andado muito
na juventude. Para os Ashaninka, me disse ele, viajar é aprender. Essa máxima
é verdadeira não apenas no caso do xamã, pois quando qualquer um sai para
outros cantos, para outras aldeias ashaninka, a pessoa diz que vai passear. Na
verdade, disse meu interlocutor, quem vai, volta cheio de coisas novas: aprende
uma nova história, uma nova música, uma nova “medicina”.
O lugar do xamã me foi melhor detalhado por ele a partir de uma “história”,
uma “não tão antiga, que deve ter acontecido há uns cem anos”. A narrativa
conta de um pajé bem velho, que quando morreu resolveu acabar com tudo,
matar todos os Ashaninka. Assim, mandou muitas onças gigantes para tal. Elas
tinham o couro tão grosso e tantos pelos que nenhuma flecha atravessava sua
carne e por isso ninguém podia mata-las. As onças iam devorando os Ashaninka
até que outro pajé, este vivo, e, também muito poderoso, tomou kamãrapi para
saber como matar as feras. Resolveu parte do problema com o fogo, matando
quase todas queimadas. No entanto, a maior de todas, o chefe das onças, não
morria de jeito nenhum. Aos Ashaninka que sobreviveram, o pajé mandou que
fugissem. O pajé, depois que todos se foram, sonhou com a solução: mandou
suas guias onças – que não eram gigantes como aquela, mas eram de muitos
outros tipos, preta, pintada e muitas outras – na direção contrária dos Ashaninka.

39
Carneiro da Cunha (1998: 15) comenta sobre a importância do japó no pensamento Ashaninka.
40
Dessa forma definiu meu interlocutor, precisamente com esses termos.
41
Ãtxoki, professor ashaninka, contou-me que quando o pajé dorme, seu espírito viaja no sentido literal.
Se um “pajé de verdade” diz que vão chegar pessoas de fora da aldeia, é porque seu espírito os viu
viajando enquanto dormia.

115
Foram ao encontro da onça gigante para dizer a ela que também procuravam
pelos Ashaninka para mata-los. Contaram que do lado que vinham (a direção
para qual estavam o pajé e, também, os fugitivos), não havia sobrado ninguém,
mas que sabiam que na direção oposta haviam muitos ainda. A maior de todas
desconfiou e disse que se fosse mentira todas as outras iam ser devoradas por
ela. As onças foram juntas e ao longe viram uma grande montanha – isto
aconteceu na Selva Central peruana e ao fundo ouviam o som de uma aldeia:
vozes de pessoas, risos de crianças. As onças menores disseram que a outra
podia ir na frente, pois era maior e por isso também era maior a sua fome. Do
alto da montanha, as guias do xamã vivo empurraram aquela enviada pelo xamã
morto. O que a onça pensava ser uma aldeia, eram apenas pedras. A onça
gigante ficou soterrada num grande buraco. Quando os Ashaninka escutam
trovejar, sabem que é a onça tentando sair. Por isso a morte de um pajé é sempre
perigosa: ele pode tentar novamente acabar com os Ashaninka, pode até libertar
a onça. O pajé, me disse Komãyari, é muito importante, mas também é perigoso,
principalmente para sua própria família, e mesmo para uma comunidade inteira.
Isso porque o xamã pode ter guias boas, mas também guias más. Algumas
guias, como a jibóia, podem levar o xamã a fazer o mal, inclusive afetando
negativamente ele mesmo.
O principal pajé vivo, no rio Amônia, é Aricêmio, contou meu interlocutor.
Ele, na verdade, era um grande pajé, mas agora estava doente, o que
provavelmente fora provocado por outro pajé. Os pajés mais novos da
comunidade não são tão fortes, porque não contam com muitas guias, e por isso
não podem curar “doenças sérias”, só algumas situações mais simples.
O xamã ashaninka, afirma Lenaerts (2006), não é um especialista
botânico e não conhece incontáveis variedades de plantas e seus efeitos. Isso
porque o sistema médico ashaninka não se baseia nas mesmas premissas da
medicina ocidental, que pressupõe o corpo como unidade estável e o agente
terapêutico como a molécula isolada de uma substância, adequadamente
selecionado para tratar uma manifestação de uma moléstia. Uma substância não
pode ser isolada e nem a pessoa doente, pois a substância só pode agir sobre
uma relação, agenciando novas conexões, já que doença é uma desordem de
mundo, e sempre foi provocada por alguma coisa. O xamã, especialista médico
ashaninka, se não é botânico, é porque o que importa é a capacidade de compor

116
com uma planta específica, ou preferencialmente com algumas plantas
específicas, e agir com ela, ou com elas. O tabaco é a mais importante delas,
fazendo do xamã um composto pessoa-tabaco.
A palavra na língua ashaninka para o xamã é sheripiari, literalmente
aquele que cura com o tabaco (Mendes, 2002). Weiss afirma que o trabalho do
xamã de examinar o paciente e tornar visível a fonte da doença (1974: 297), seja
através do sonho ou do uso da ayahuasca, não efetua por completo o processo
de cura. Depois de descoberta a causa do adoecimento, ativa-se a composição
xamã-tabaco, quando este sopra o fumo ou quando expele o sumo da planta
sobre as partes do corpo afetadas pela enfermidade. Depois, o xamã puxa com
a boca o agente da enfermidade, chegando a regurgitar alguma coisa – uma
folha, um pedaço de osso ou parte de um tecido (Id.). O xamã então poderá
atribuir a algum ser o ato do adoecimento do outro, a um “demônio”, kamári, ou
a um feitiço feito por agentes humanos ou não humanos, mátsi, ou então à perda
da alma (Id). “No caso de uma alma que se perdeu do corpo o xamã envia sua
própria alma em busca daquela perdida” (Id). Essa alma do xamã é conduzida
por suas guias ou espíritos auxiliares. No caso de a fonte do adoecimento ser o
sopro de um demônio, descreve Weiss, banhos de ervas e chás podem ser
utilizados, mas “[s]e o paciente experimentou uma confrontação direta com esse
demônio”, ressalta, “então nada mais pode ser feito e é esperado que ele morra”
(Id.). Ele fora capturado e assujeitado.
O xamã, entre os Ashaninka, não desempenha suas funções por um dom
de nascimento e não existe hereditariedade no desenvolvimento dessas
práticas. Quem deseja aprender deve encontrar alguém disposto a ensinar e
travar com essa pessoa uma relação de confiança. Depois disso, toda a sua
formação baseia-se na produção de transformações corporais através de dietas,
abstinência sexual e o uso abundante de ayahuasca e tabaco. Esse processo é
longo e poucos são os homens que conseguem deixar-se evitar aquilo que é
restrito. O abandono da formação como xamã me foi descrito por Hatã, filho de
Aricêmio:

Eu comecei a aprender com o meu pai. Mas eu não aguentei


e saí. Não aguentei porque quando toma não pode nem
agarrar na mulher, tem que fazer dieta. E eu não cumpria
dieta. Aí saí. Mas eu tomava muita ayahuasca. Eu tomei

117
muita, muita, muita mesmo. Agora que eu tenho 29 anos, já
tem um ano que eu nem tomo mais ayahusca. Quando eu
tinha uns 18 anos, eu tomava muito com o meu pai.
Pequenininho eu não conhecia nem nada de miração da
ayahuasca. Aí eu bebi e bebi e conheci e fui conhecendo. Mas
aí não cumpri dieta. O meu pensamento era de aprender isso
daí. Mas eu não aprendi isso daí não. Eu queria namorar e
dieta também já era.

Outra pessoa que foi descrita a mim como xamã importante foi Samuel
Piyãko, falecido no final dos anos 1980. Este homem, como procurei apontar
anteriormente, fazia orbitar em torno de si uma grande parentela – parentela que
se mantém hoje vinculada ao seu filho Antônio. Muitos moradores,
especialmente filhos e netos de Samuel, me disseram que tomavam ayahuasca
junto ao homem, mas que deixaram de tomar a bebida após a morte dele.
Aricêmio hoje já está bem velho, e ainda que continue a tomar ayahuasca, o faz
cada vez mais raramente, e somente sua mulher e alguns filhos o acompanham
eventualmente. O xamã, com a saúde debilitada, já não tem a força que um dia
era associada a ele, e atualmente viaja ao Breu, como muitos moradores da
Apiwtxa, para procurar curadores poderosos quando as dores são insuportáveis.
Por muito tempo, o velho morou no núcleo de circulações da Apiwtxa, atrás do
núcleo doméstico de Pishiro e Eriwira, família com a qual alguns de seus filhos
se uniram através de casamentos. Nessa época, dois jovens desejaram que ele
os auxiliasse a tornarem-se também xamãs: Moisés Piyãko, que se casou com
Rica, filha de Aricêmio e Ririta, e Benki, seu irmão. Hoje são eles os que
conduzem a quase totalidade das cerimônias de ayahuasca – Benki em
Thaumaturgo, onde vive, e Moisés na aldeia, hoje ele mesmo treinando neófitos.
Aricêmio, como fazem outros velhos na Apiwtxa, desejou uma vida mais
tranquila e mudou-se para se afastar das circulações constantes de visitantes.
Hoje vive no centro, distante de outras casas, mantendo seu roçado no entorno
da casa, auxiliado pelos netos que vivem com ele e a esposa. Um dos motivos
para querer tranquilidade, me explicou um morador da Apiwtxa, era que Benki,
sempre que levava parceiros de projetos ou viajantes, levava-os para conhecer
Aricêmio e para tomar ayahuasca com o xamã. Aricêmio, no entanto, vê de uma
perspectiva negativa as inclinações dos brancos para o consumo da ayahuasca,

118
vista por ele como uma bebida dos Ashaninka, feita para seu corpo que difere
do corpo branco.
Descrevi na minha dissertação de mestrado (Colares, 2014) a primeira
cerimônia de ayahuasca da qual participei quando cheguei ao Acre em 2013
para conhecer e conversar com os Ashaninka. Convidada por Benki,
acompanhei o ritual conduzido por ele junto aos jovens que vivem como
“Guerreiros da Floresta”, participando de um projeto político-ecológico liderado
pela liderança ashaninka, que produz ações de conscientização e manejo
ambiental no município de Thaumaturgo. Cerca de 12 pessoas, vestidas com
cushmas, pintados de urucum, com chapéus e aparamentados de toda a
indumentária “tradicional”, ingeriam a bebida e cantavam músicas do kamarãpi,
as mesmas que eu ouviria tantas vezes na Apiwtxa posteriormente, e em
seguida, com o acompanhamento de violões, músicas em português que, como
nos hinos regionais, falam do espírito da floresta e da força das mirações
ayahuasqueras.
Benki é um grande mestre da ayahuasca, mas seu poder é reconhecido
principalmente entre os não-Ashaninka, sejam jovens de Marechal Thaumaturgo
ou da aldeia kuntanawa que fica localizada na Resex do Alto Juruá, sejam
pessoas das cidades grandes brasileiras ou europeias, que o procuram como
guia espiritual. Os rituais conduzidos por Benki podem ser bem diferentes dos
realizados tradicionalmente, que acontecem sempre à noite, num terreiro limpo,
preferencialmente na escuridão da lua nova. Por exemplo, certa vez participei de
uma cerimônia ao pé de uma samaúma na margem oposta do Juruá da cidade,
próxima à Yorenka Ãtame. Os jovens que o veem como uma figura quase
messiânica nos acompanhavam a beber a ayahuasca à luz do Sol que queimava
pouco depois das 15h da tarde. Algum tempo depois, conversando com
Aricêmio, o velho me dissera que ouvira dizer que Benki tomava ayahuasca de
dia, embaixo de uma árvore e não no terreiro pronto. Ele reclamava e via como
um erro, primeiro levar os brancos para tomar o kamarãpi, depois pelo desvio
nos procedimentos do ritual.
Na aldeia Moisés ensina hoje a Wewito, seu irmão, a Waldecir, filho de
Irãtxo que fora adotado por Dona Piti, Enisson, filho de Irãtxo e Lethero, e
Geovani, homem kuntanawa que se casou com Eerishi, sua sobrinha, filha de
sua irmã Dora. Durante o ano de 2015, nos seis meses corridos que passei na

119
Apiwtxa, esses homens, por vezes acompanhados de suas mulheres e filhos,
bebiam e cantavam durante toda a noite, embalando o sono de todos nós que
dormíamos no núcleo central da aldeia. As crianças, filhos do xamã e dos seus
aprendizes, participam dos rituais de kamarãpi eventualmente, mas apenas as
mais velhas, de modo que não vi crianças menores de dez anos beberem. Era
como me descreveu Hatã, que me disse que “pequenininho não conhecia nem
nada de miração da ayahuasca”.
Em nenhuma das cerimônias que participei, vi moradores de outras
famílias. São poucos os que tomam kamarãpi regularmente hoje, no rio Amônia,
e quando o fazem, me contaram, ficam entre seus parentes próximos.
Hoje, além do tabaco e das folhas de urtiga utilizadas pelos xamãs,
aparecem gotas de “água florida”, uma colônia que é vendida na cidade de
Thaumaturgo, na barraca de um homem conhecido como “peruano”. Junto ao
sopro do xamã como veículo de bem-estar, desenha-se o sinal da cruz na testa
de quem passa por um caminho tortuoso com as mirações.
No caso de doenças mais simples, me foi explicado, Moisés pode ser
chamado a intervir, mas em casos graves procura-se um xamã poderoso
alhures. Se, como ressaltou Carneiro da Cunha (1998) a partir da descrição da
história de Crispim, pajé kaxinawá que devido a suas viagens para as cidades
reuniu prestígio e conhecimentos potentes, as viagens dos irmãos Piyãko e os
conhecimentos que eles acessam através de seu corpo misturado os qualifica
como tradutores em outro sentido. São pensados como lideranças, articuladores,
professores, mas seu conhecimento “tradicional” é visto como limitado por isso
mesmo42
Aricêmio, que fora mestre de Benki e Moisés, tem ideias bem distintas em
relação ao uso de ayahuasca entre os brancos. Ele despreza as leituras neo-
xamanísticas, new age, a respeito da ayahuasca. Diz que os antigos contavam
que não se podia beber kamarãpi com os brancos, porque os brancos eram de
uma “qualidade” diferente dos Ashaninka. “Qualidade” é também o termo que os
índios da Apiwtxa usam para falar das variedades de seus roçados: são muitas
qualidades de batata, qualidades de mandioca. O corpo dos brancos difere
porque sua origem é distinta – os Ashaninka de cima da terra, os brancos do

42
Diferente do xamã Crispim descrito por Carneiro da Cunha (1998).

120
mundo subaquático (Pimenta, 2002), mas também porque as relações que
atravessam esses corpos são diferentes. Assim, o Ashaninka precisa tomar
grandes quantidades de kamarãpi, o branco com um pouco já tem miração ruim
(Pimenta, 2002), vê coisas defeituosas. Como consequência dessas diferenças,
e porque a ayahuasca existe para os Ashaninka, pois é filha de Pawa que foi
deixada pela divindade para ensinar o que somente eles podem aprender, os
brancos tomam esperando efeitos impossíveis, me contou o xamã. Os brancos
esperam falar com Deus, pensam que podem ver e pedir coisas para Deus. Os
Ashaninka sabem que não é assim que funciona. Se fosse possível falar com
Deus tomando Kamarãpi, me disse, ele, que já bebeu tantas vezes, saberia
como curar todas as doenças e elas não mais existiriam. Aricêmio não acha que
se pode falar com Deus. Ele – Pawa - deixou na terra, quando subiu pela escada
que o beija-flor fez para leva-lo ao céu, meios, seus filhos, para fazer com que
os Ashaninka pudessem aprender o que precisavam através das músicas e
mirações. O Kamarãpi é para poder aprender a curar, explicou Aricêmio. A
conversar com outros seres, com espíritos diversos, mas não com Deus.
Ainda que esta seja a visão de Aricêmio, meu objetivo aqui não é de forma
alguma implicar que Benki e Moisés são xamãs inferiores. A questão é que a
agência deles se propaga sobre diferentes contextos e põe em relação diferentes
sujeitos. Benki, especificamente, é visto como um curandeiro poderoso, fora da
Apiwtxa, pelas suas qualidades “tradicionais” e, ao mesmo tempo, por suas
capacidades de mediação. Ele teve um papel importante nos processos de
etnogênese, ou reafirmação étnica do povo Kuntanawa, etnia antes considerada
extinta. As relações da família Piyãko com os Kuntanawa mantem-se até hoje, e
diversos jovens trabalham e vivem junto com Benki. Além disso, nos últimos anos
aconteceram dois casamentos de mulheres Ashaninka com homens Kuntanawa
– Dora casou-se com Mazinho e sua filha Eerishi com Geovani. As cerimônias
de ayahuasca desempenharam papel importante na reativação ritual kuntanawa.
Pantoja e Almeida notam que os Ashaninka da Apiwtxa, e, também, os
Kaxinawá do Jordão:

[H]aviam realizado desde a década de 1970, suas próprias


trajetórias de conquista de território e de revitalização de
conhecimentos, linguagem, rituais e cosmologias. Os
Kuntanawa, ao deixarem de ser ‘caboclos’ para se tornarem

121
‘índios’, aliaram-se a esses povos como seus principais
interlocutores para ‘reaprender’ línguas, cantos, e ritos. Mas
também se utilizam sistematicamente das técnicas xamânicas
e dos rituais coletivos para se reconstruírem como entes
sociais – em outras palavras, para se reconstruírem no plano
ontológico (2011, p.130).

Recentemente, Lima escreveu sobre a recriação do xamanismo Yudjá,


afirmando que “o que se oferece quando se toma ayahuasca é uma infinidade
de caminhos, e entroncamentos de caminhos com seus desvios, seus obstáculos
e becos sem saída” (2018: 129). Dos encontros que produziram a relação (que
eles vão apontar como um reencontro) com a ayahuasca, Lima cita os percursos
de um dos homens Yudjá que se tornou entusiasta da planta e de suas
potências, dizendo que “Yabaiwa [homem Yudjá] também frequenta o caminho
dos Ashaninka e de outros povos” (Id: 130).

122
Capítulo IV - A “escola diferenciada ashaninka”

Qualquer tentativa de traçar uma história das relações dos povos


indígenas no Brasil com a instituição escola esbarra na multiplicidade de
experiências, contextos e apropriações diferentes, variando não apenas por
macrorregião, mas constituindo uma infinidade de universos mesmo entre
territórios vizinhos. Assim, ainda que possamos distinguir modelos e políticas
oficiais, devemos ter em conta que as fases da escolarização dos povos
indígenas não são ciclos sucessivos que finalizam seus propósitos para dar lugar
a uma nova etapa que supera a anterior. A história da educação escolar indígena
é feita de entroncamentos, de sentidos que permanecem atuantes em novas
roupagens, de rompimentos de guardam lembranças, de novas interpretações
de ideias antigas, apropriações criativas e outras complexidades do tipo.
Sabe-se que dentre estas fases, algumas podem ser destacadas pela
atuação direta do Estado e daqueles que foram eleitos como seus parceiros na
implementação de políticas escolares. A concepção pedagógica e política que
norteou, desde o Brasil colônia, a história da educação projetada sobre os povos
indígenas pautou-se na premissa evolucionista da conversão civilizatória, não
apenas religiosa, tendo sido os missionários os primeiros a implementar entre os
indígenas práticas de educação formal desde o século XVI, que incluíam a
alfabetização em português, o ensino de práticas agrícolas e ofícios manuais,
além de “boas maneiras”.
Para os fins dessa tese, entretanto, interessa-nos um período bem
posterior e começaremos por apresentar brevemente um panorama das
propostas educativas para os povos indígenas a partir de sua uniformização e
consolidação com a criação do Serviço de Proteção ao Índio, em 1910. Durante
os anos de atuação do SPI a escola foi veículo de assimilação cultural, o que as
imagens da época, além dos relatos marcados no corpo dos índios, não deixam
negar. A iconografia do período mostra as crianças vestidas uniformemente,
sentadas em cadeiras dispostas em fileiras, voltadas para o professor ou
professora não-indígenas, repousados ao lado da bandeira brasileira. As vozes
que ecoam nos relatos contam dos castigos físicos, da rígida disciplina, da
proibição do uso das línguas indígenas. Com o objetivo expresso de moldar a
uma só identidade a sociedade brasileira, que deveria também falar uma só

123
língua, o SPI criou diversas escolas onde instaurou seus Postos Indígenas, para
assim “amansar”, “atrair”, “pacificar” e “integrar” os índios (e ao mesmo tempo
liberar seus territórios para a expansão da fronteira econômica). Quando, em
1967, poucos anos após o Golpe Civil-Militar de 1964, a Funai é criada para
substituir, como órgão tutor dos índios, o SPI, em meio a denúncias de violações
de direitos, de corrupção e escravização dos indígenas, as prerrogativas que
orientam as ações e concepções com relação aos povos indígenas se mantêm,
mas acontecem mudanças nas formas da relação. A educação missionária, que
era oficialmente rejeitada pelo SPI, de cunho mais militarista e nacionalista,
nunca deixou de estar presente por meio de experiências como a dos internatos
salesianos no Alto Rio Negro, que conviveram e ultrapassaram em duração a
existência dos Postos Indígenas.
No entanto, é com a criação da Funai que ganha força a educação
missionária como modelo de ação do Estado, que, seguindo a emergência de
um discurso em defesa da educação bilingue que se impõe naquele momento,
passa a adotar convênios com organizações como o o Summer Institute of
Linguistics (SIL), que mascara até os dias de hoje o proselitismo religioso que é
seu objetivo, com um discurso que busca apresentar suas metodologias como
científicas, voltadas à pesquisa sobre as línguas indígenas. O SIL geriu
oficialmente diversas escolas indígenas em toda a América do Sul, incluso o
Brasil.
A educação bilingue, que se pauta hoje na defesa da vitalidade das
línguas indígenas, tem suas origens no modelo missionário. Os integrantes do
SIL entendiam que a conversão só poderia ser eficaz se feita nas línguas faladas
pelos indígenas e por isso empenhou-se na tradução da bíblia para diversas
dessas línguas. O chamado “bilinguismo de transição” (Franchetto, 1994), se
orientava pela concepção de que a escrita das línguas indígenas, além de
fundamental para a tradução dos textos bíblicos, servia também para facilitar a
assimilação dos índios, como uma etapa de passagem. Ao lado dessas
experiências, com o mesmo fundo, a integração dos indígenas à chamada
sociedade envolvente, e, também sua inserção, como trabalhadores
precarizados, nas economias locais. Nesse sentido, foram essenciais as
experiências das escolas de patrões, como no caso dos Huni Kuin (Weber,

124
2006), implantadas nas terras voltadas ao extrativismo de borracha, que
empregavam índios como mão de obra.
Com o surgimento do movimento indígena e de organizações de apoio
aos índios nas décadas de 1970 e 1980, acontece uma reformulação das
possibilidades oferecidas pela instituição escolar, com a proposta de escolas
alternativas ao modelo assimilacionista oficial, partindo-se do pressuposto de
que a escola poderia oferecer aos povos indígenas meios de conhecer e dominar
ferramentas do mundo dos brancos, para então superar relações de
desigualdade e opressão. As primeiras experiências de escolas “diferenciadas”,
pensadas como parte de um conjunto de lutas por autonomia e território,
aconteceram do encontro de ONGs pró-índio com grupos indígenas, como no
caso da Comissão Pró-Índio do Acre com os Huni Kuin ou do Centro de Trabalho
Indigenista com os Wajãpi, no Amapá. No caso da CPI/AC, o diálogo entre a
organização indigenista e os Huni Kuin estendeu-se para outros povos da
mesma região, compondo um projeto de formação de professores e de gestão
de escolas que promoveu a relação entre diversos grupos indígenas do estado
do Acre, que passaram a se encontrar anualmente nos cursos realizados pela
ONG.
Seguindo os caminhos abertos pela Constituição de 1988, que reconhece
o Brasil como país pluriétnico, afirma a demarcação de Terras Indígenas como
obrigação do Estado (por entender território como um direito originário dos povos
indígenas) e sinaliza a existência e possibilidade de manutenção de formas
próprias de aprendizagem dos grupos indígenas, além do uso das línguas
maternas nos processos escolares, a legislação brasileira passa a inspirar-se
nas propostas até aquele momento alternativas e em contraposição à oficial,
para assim constituir uma política pública.
Em 1991, através do Decreto Presidencial número 26, de 4 de fevereiro,
atribui-se ao Ministério da Educação (MEC) à competência sobre as ações
relacionadas à educação escolar indígena, transferindo a responsabilidade que
era antes da FUNAI, para esse órgão. No mesmo decreto, define-se que além
do MEC como promotor das políticas educacionais para povos indígenas, os
estados e municípios passam a ser atores centrais na implementação e
aplicação das diretrizes nacionais, através das Secretarias de Educação. Em
1996, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) fixa,

125
pela primeira vez, normas para o funcionamento da educação escolar indígena,
repetindo o texto constitucional no sentido de reconhecer as práticas educativas
tradicionais dos povos indígenas. Além disso, estabelece o caráter específico da
educação escolar indígena, que deve ter características diferentes da educação
nacional, prevê a adequação dos calendários das escolas indígenas e permite
que o ensino fundamental seja desdobrado em ciclos, e não necessariamente
por séries. Em seu Artigo 78, aponta que a oferta de educação para os povos
indígenas deve ser bilíngue e intercultural, com o objetivo de simultaneamente
promover a recuperação de memórias históricas e afirmação das identidades
étnicas; e garantir o acesso, pelos indígenas, aos conhecimentos técnicos das
sociedades não indígenas. Depois da LDB, a Resolução 03/99, da Câmara
Básica do Conselho Nacional de Educação, continua o processo de
estabelecimento de diretrizes para a educação escolar indígena, propondo a
criação da categoria “escola indígena” no âmbito da educação básica, afirmando
a importância de reconhecer essas escolas a partir de normas e ordenamento
jurídico próprios. Nesta mesma resolução, anuncia-se a obrigatoriedade da
criação de programas diferenciados e regularização profissional para os
professores indígenas, além da participação das comunidades indígenas da
definição do modelo de organização e gestão das escolas. Posteriormente,
normas internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169,
reafirmam o caráter diferenciado da educação escolar indígena, e, no âmbito
nacional, novas propostas para a organização dessa modalidade de educação
nos sistemas de ensino, como a da criação dos Territórios Etnoeducacionais
(Decreto Presidencial 6861/2009) são propostas.
O reconhecimento da educação diferenciada para os povos indígenas,
assim como a adoção de políticas públicas para sua efetivação, foram bandeiras
de luta dos índios e seus apoiadores. No entanto, os desafios da promoção de
políticas de valorização das diferenças por um Estado sempre homogeneizador
são imensos, fazendo da implementação das conquistas legais um campo de
tensões.
São diversos os trabalhos que se centram na escolarização que foi
promovida através de um ou mais desses atores, descrevendo tanto os impactos
desses modelos nos mundos ameríndios, quanto as transformações que os
indígenas imprimiram a eles. Muitas das análises, no entanto, terminam por

126
fechar-se sob uma de duas referências: ora a escola é vista como instrumento
de dominação e mudança, ora como elemento chave em novos processos de
construção de autonomia (para uma crítica a essas abordagens, ver Tassinari,
2001 e Paladino e Czarny, 2012). Mais interessante, no entanto, são os trabalhos
que não procuram encerrar as ambiguidades e contradições que, como sugeriu
recentemente Gallois (2014), são inerentes à instituição escolar e sua
apropriação pelos povos indígenas. Nessas investigações, busca-se apresentar
os modos através dos quais a escola funciona no encontro entre pessoas,
coletivos, saberes e epistemologias, como um “espaço de fronteira”, para
utilizarmos a definição de Tassinari, ou como encruzilhadas, como define
Luciano (2013). A escola remete, sobretudo, a tensões e negociações políticas,
como lugar de reconstrução de mundos em transformação. Como propõe Silvia
Tinoco (2007: 256), ela é primordialmente um “laboratório político” (2007: 256),
no qual se experimentam ideias sobre os outros e sobre si mesmos.
O que quero chamar atenção nas pesquisas realizadas sobre o tema, é
que a escola é, em partes, uma co-criação, no sentido de que os modelos que
foram, hoje ou antigamente, impostos, figuram como meio de criação, como pano
de fundo do qual se pode extrair a construção de novos caminhos. Sobre esse
ponto, a co-criação que sugiro não deve ser interpretada como uma contínua e
total indigenização de toda e qualquer prática, sob pena de negar assim a
violência e os impactos irreversíveis, como aponta Luciano (2014), que
experiências como a dos internatos jesuítas provocaram. Trata-se de pensar que
mesmo as composições tão opressoras como a da separação das crianças da
vida de seus familiares e a imposição de novos modos de vida, sob pena de
castigos físicos e agressões psicológicas, produziu efeitos destrutivos, mas que
não impediram completamente a agência indígena. Sobre o exemplo dos
internatos, Luciano afirma que alguns daqueles que foram letrados nessas
instituições disciplinadoras, por exemplo, converteram-se em lideranças
indígenas posteriormente, denunciando as políticas de assimilação. Depois das
mudanças no final da década de 1980, com a promulgação da nova Constituição
e a afirmação dos povos indígenas como sujeitos de direito, as experiências
anteriores serviram de referência para a construção de novas relações com a
escola.

127
Como pretendo apontar, a escola dos Ashaninka teve como modelo,
desde seu princípio, uma escola “diferenciada”, e é a partir dela que hoje
constroem sua proposta e suas práticas de educação escolar, dessa forma
constituindo-se como um caso particular de apropriação dessa instituição.

Figura 13 Professores reunidos na escola

4.1 - Diferentes concepções de escola indígena


Entre os Huaroani com quem Laura Rival conviveu, a primeira experiência
de escolarização foi implementada por missionários do SIL em 1973. A criação
de escolas intensificou as migrações em seu território e atraiu esses indígenas
caçadores coletores para a vida em comunidades (2000: 318). Por ter
desenvolvido pesquisa em diferentes aldeias, tanto as que se constituíram no
entorno de escolas quanto naquelas onde os Huaroani permaneceram vivendo
em malocas habitadas por famílias extensas na floresta, Rival pôde traçar
comparações entre os contextos educativos e a organização das famílias em
ambos os cenários.
Para Rival, um povoado escolarizado se diferencia dos demais porque a
escola reestrutura as relações sociais, os modos de existência e as identidades
(2000: 332), uma vez que os novos conhecimentos e os novos contextos

128
necessários para a sua produção se apresentam como incompatíveis com a
participação nas atividades tradicionais (Id:333). A eficácia na apreensão dos
saberes escolarizados, sugere a antropóloga, depende tanto do isolamento do
contexto “tradicional” – a floresta -, quanto da produção de uma nova identidade
moderna (Id.). Assim como acontece com os Ashaninka, entre os Huaraoani os
pais não “ensinam” as crianças, no sentido de transmitir conhecimentos a elas,
mas incentivam sua participação nas atividades produtivas, para que desta forma
possam crescer e aprender. (Id: 329). A cultura não é apreendida pela
interiorização de valores e normas, ou pela transmissão de conteúdos abstratos,
mas pela interação, configurando-se como uma aprendizagem pela prática (Id:
333). A continuidade cultural, afirma Rival, depende da continuidade de práticas
compartilhadas, quer dizer, de contextos possíveis de imersão e experiência
(Id:334).
Segundo Rival, tornar-se Huaroani na floresta é equivalente a tornar-se
civilizado numa comunidade em torno de uma escola. Nos dois processos, o que
difere é o contexto, além das habilidades que se almeja aprender (1997: 143),
mas a experiência, em ambos os casos é imprescindível na produção de um
saber (Id: 144). Para as pessoas Huaroani, o processo de letramento está
diretamente associado à aquisição de novos hábitos, de novas maneiras de se
portar, se vestir, se alimentar (2000: 322), pois:

Aprender novas habilidades é aprender uma nova identidade


para converter-se em uma pessoa ‘educada’, ‘moderna’ e
‘civilizada’. Os pais acreditam que se as crianças tiverem
acesso a uniformes escolares, mochilas, alimentação escolar
e pasta de dentes, elas certamente aprenderão a escrever, ler
e fazer contas (2000: 325).

A escola que promove a sedentarização, aponta Rival, promove também


a agricultura, e apresenta explicitamente, por meio dos professores, a caça e a
coleta como atividades inferiores, e a produção de hortas como uma evolução
racional. Dessa forma, a escola “desabilita” os alunos acerca dos conhecimentos
da floresta, pois devido à presença cotidiana na escola, os alunos estão menos
expostos aos contextos de aprendizagem na floresta do que as crianças em
aldeias não escolarizadas (2000: 325).

129
Como espaço ideal para a performance dos comportamentos modernos,
a escola é como um “ensaio” para que os Huaroani possam se produzir como
cidadãos modernos (2000: 320), e por isso sua edificação, os materiais
utilizados, a comida que é oferecida, sua localização ao lado da pista de pouso
de aviões, tudo isso é necessário para a eficácia na incorporação dos
conhecimentos modernos (Id: 321). Além disso, a escola funciona como espaço
de observação minuciosa dos hábitos civilizados dos professores não-indígenas,
essencial para a aquisição desses comportamentos, que passam a ser
performados. As crianças em comunidades escolarizadas aprendem a ser
modernos, aponta Rival, através da incorporação de hábitos de higiene e de uma
nova dieta, e, principalmente, observando atentamente e imitando seus
professores, seus modos de andar, de se vestir, de conversar, de comer e
cozinhar (2002: 167). A autora sugere que mais do que os métodos de ensino
formais, a escola é um espaço central de aprendizagens informais a partir da
percepção dos alunos sobre o comportamento de seus professores, modelos de
“modernidade” (2000:322).
Nos textos de 1997 e 2000, Rival afirma que a escola promove a produção
de uma identidade que suplanta a anterior, ainda que reconheça que aconteçam
processos de “resistência” ao ethos que acompanha a modernidade. Em seu
livro, publicado em 2002, ela sugere que talvez algumas variáveis tenham sido
deixadas de lado em sua análise, e afirma que a escola reestrutura a vida dos
Huaorani e seu senso de identidade, porém, seguindo a perspectiva dos
indígenas, ela é também reestruturada por eles, que a utilizam como parte de
sua estratégia antiga de garantir a reprodução de suas relações de parentesco
e aliança (2002: 156). Assim, sugere que a aparente estabilidade e
sedentarização, que promoveria a desabilitação dos Huaroani para sua vida na
floresta, tem sempre como pano de fundo certa instabilidade que pode
reorganizar seus movimentos (Id: 176). O exemplo que Rival oferece para
demonstrar esse processo é o da reversão do contexto de permanência nas
comunidades quando acontecem as férias escolares, momento em que os
professores se ausentam, a escola para, e assim, a performance civilizada deixa
de fazer sentido e as pessoas voltam à floresta (Id: 172). Isso fica ainda mais
explícito em outro exemplo oferecido pela autora, o de uma comunidade com
uma infraestrutura completa em torno da escola, com o prédio mais moderno, e

130
que foi permanentemente abandonada quando o professor responsável deixou
a comunidade (Id: 173). Assim, se retomamos a discussão do capítulo II sobre
os modos de produção de identidades indígenas e da noção de corpo duplo,
proposta por Vilaça (2000) para o corpo Wari’, o que parece acontecer no caso
Huaroani é a adição de uma perspectiva, a civilizada, com a criação de contextos
relacionais para a sua promoção, no entanto, sem substituir completamente a
perspectiva produzida pelo contexto da floresta.43 Uma e outra estariam
eclipsadas em determinadas relações e espaços, enquanto atuariam em outros.
Resta saber, no entanto, se o processo de desabilitação que descreve Rival pode
permanentemente impedir as condições de possibilidade de atuar como
Huaroani “tradicional”.
Essa dupla produção de uma identidade “civilizada” e a manutenção
daquela “tradicional” é sugerida por Collet (2006, 2007) para descrever a relação
dos Bakairi com a instituição escolar. A autora aponta como no caso dos Bakairi,
a primeira experiência de educação escolar, com o SPI, iniciada na década de
1940, se configurou como modelo e, assim, como ponto de partida para qualquer
transformação na instituição (2006: 235). A escolarização, vista naquele primeiro
momento como veículo de civilização dos índios, cumprindo o papel de fazer a
transição de selvagens em índios genéricos para então transformá-los em
cidadãos integrados (escala essa proposta por Darcy Ribeiro), encontrou, com
relação aos seus métodos, ressonâncias naquilo que os próprios Bakairi
concebem como educação em seus moldes tradicionais: tanto a imersão num
contexto como instrumento pedagógico, quanto a repetição e a cópia como
modelo de ensino e aprendizagem, e ainda a ênfase em rituais escolares
coletivos, possibilitaram aos índios a apropriação da instituição. No novo
contexto da educação diferenciada, eles se livraram dos castigos físicos, dos
uniformes e filas, da negação da língua nativa e de tudo o que se colocava em
contradição com seus processos educativos, mas mantiveram a ordenação da
escola como espaço civilizatório, para eles lugar onde se pode performar uma
identidade branca. Para que a escola produza de forma eficaz o efeito de tornar
as pessoas civilizadas, na perspectiva dos Bakairi, ela deve ser como a do
branco (2006: 272). Isto porque, para Collet, o que importa extrair da escola não

43
Como sugere a teoria da “antimestiçagem” de Kelly (2016).

131
é tanto um conjunto de técnicas ou produtos de conhecimento, mas modos de
ação e relação, de forma que o conteúdo veiculado nas salas de aula é menos
importante do que o que se passa através da instituição escolar. Assim como
sugere Rival para os Huaroani, Collet aponta como a escola funciona como
espaço onde, através da experiência e da performance de uma identidade
civilizada, os Bakairi aprendem novos conhecimentos pela imersão e
participação ativa num contexto, assim como acontece com a incorporação dos
conhecimentos “tradicionais” (2007: 151). Assim, a apreensão de novas
habilidades, incluindo a leitura e a escrita, dependeriam menos de “exercícios”
ou explicações verbais, mas de todo o ambiente: o lugar do professor em
destaque, o uso de cadernos e lápis, a bandeira nacional exposta, a postura que
a cadeira impõe ao corpo (Id). Exatamente na adoção desse modelo de escola
que preza pelos conhecimentos alógenos, pela repetição e pela cópia, pela
divisão em disciplinas, enfim, uma escola aparentemente alheia à “educação
diferenciada”, é que a escola se faz tipicamente bakairi (Id).
Assim como os Bakairi encontraram na ideia, que orientava as ações do
SPI, de que a escola é espaço de produção de uma identidade civilizada, um
reflexo de suas próprias concepções sobre corpo, aprendizagem e contexto,
entre os Huaroani (Rival, 2000: 321) as concepções dos professores não-
indígenas, que atribuíam ao que eles identificavam como uma dificuldade de
aprendizado das crianças Houarani seus hábitos de higiene e a alimentação,
encontraram ecos com o pensamento dos Huaroani, que postulam que para
acessar uma identidade moderna, é preciso modificar seu corpo e garantir sua
inserção num contexto de relações com os bens manufaturados que vem de fora.
Tanto para Collet (2007: 150), quanto para Rival, o aprendizado de novas
habilidades é inseparável da produção de uma nova identidade. Como vimos,
para a antropóloga que trabalhou com os Huaroani, a escola se opõe à floresta
como contexto de aprendizado, potencialmente deslegitimando os modos de
conhecer tradicionais e seus contextos, afastando as crianças das atividades de
seus pais e as “desabilitando” para a vida na caça e na coleta, tornando-as
consumidoras daquilo que é produzido exclusivamente pelos adultos. Segundo
a autora, a escola seria um espaço onde identidades dominantes minam a
reprodução das identidades minoritárias (2000: 236), impedindo suas condições
de florescimento, ainda que aconteçam apropriações e transformações

132
produzidas pelos indígenas na escola, processos de “resistência” subjacentes à
presença da escola entre os povos indígenas. Collet aponta especificamente
para o modo como os Bakairi operam as duas identidades das quais hoje são
compostos, por exemplo na separação entre a língua bakairi, a qual se orgulham
de terem mantido viva, apesar de todas as tentativas de seu extermínio, como
língua falada e o português, que também se envaidecem de terem aprendido,
como língua escrita (2007:152).
Essa longa exposição dos argumentos de Rival e Collet tem como objetivo
colocar questões que serão pano de fundo para as discussões do capítulo, não
tanto por suas semelhanças, mas pelos contrastes que, penso, podem ser
produtivos para um melhor entendimento do caso dos Ashaninka do rio Amônia.
A primeira questão que eu gostaria de abordar é a que mencionei rapidamente
na introdução desse capítulo, a dos modelos de referência, que nos exemplos
descritos, foram apropriados e transformados pelos indígenas. Entre os
Ashaninka, pelo fato de a escola ter surgido para eles como “diferenciada”,
outras composições se produziram. Em segundo lugar, gostaria de pensar o
desejo explicitado pelos Ashaninka, de que a escola possa ser, além de um
espaço de apreensão seletiva dos conhecimentos dos brancos, (o que não deve
ser menosprezado) um contexto de valorização e um meio de produzir a
circulação de conhecimentos “tradicionais”. Sobretudo, a escola é o lugar através
do qual se materializa uma comunidade. Para os moradores do rio Amônia, é
imprescindível para sua vida hoje a criação de meios de relação com os brancos
que não sejam pautados no idioma da dominação.
Luciano (2013), apresenta a longa relação dos povos indígenas do Alto
Rio Negro com a “escola colonizadora”, desde os internatos salesianos e as
escolas da missão Novas Tribos do Brasil, passando pelas escolas do SIL, até
a reformulação da atuação das entidades católicas, após a revisão de seus
princípios de atuação com o Concílio do Vaticano (1962-1964), quando
passaram a adotar a “preservação da cultura” como norte. Dessa forma, aponta
o autor, coexistiram diferentes modelos de escola na região. Além desse
histórico e de seus efeitos, o antropólogo nos conta da emergência da “educação
diferenciada” e de seus modos de funcionamento. Para Luciano, a escola
colonizadora não foi capaz de garantir aos indígenas aquilo que desejam: o
controle e a capacidade de agência em dois mundos, o “seu” e o “dos brancos”.

133
Ainda que o autor identifique, inclusive a partir de sua própria experiência, certa
eficácia da educação nos internatos, e associe a constituição do movimento
indígena à atuação daqueles que foram escolarizados, Luciano também aponta
a violência e o desejo etnocida que pautaram a agenda desse modelo de escola.
No entanto, sugere Luciano, a escola diferenciada também não se mostrou
capaz de suprir essa necessidade de domínio de diferentes códigos e sentidos
(Id: 25). Segundo o autor:

A escola colonizadora buscou sufocar e negar as


perspectivas indígenas, ao passo que a escola indígena
diferenciada busca muitas vezes diminuir a importância dos
conhecimentos, das tecnologias e dos valores do mundo
moderno, seja supervalorizando o mundo indígena, seja
buscando um meio termo que aposta numa escola híbrida,
empobrecida, contraditória e ainda colonizadora (Id).

A demanda por escolas aponta, segundo Luciano, para o fato de que a


educação tradicional sozinha não é capaz de atender as realidades indígenas na
contemporaneidade, tanto no que se refere às questões ligadas ao
fortalecimento de suas culturas e identidades, quanto à produção de condições
para o enfrentamento das relações desiguais com os não-indígenas (Id: 125). A
premissa do autor é a de que a escola diferenciada não se sustenta se seu foco
está na resolução de problemas ligados às tradições e culturas indígenas. Ela
existe para responder a problemas específicos inerentes ao contexto histórico
de transformação nas relações interétnicas, e, assim, “não pode substituir as
instituições educacionais dos povos indígenas” (Id: 126). Luciano propõe três
questões que devem orientar a educação escolar indígena para que ela seja
capaz de cumprir com o objetivo de ser ferramenta para o manejo do mundo
atual: 1: A escola deve estar sob o controle dos índios, tanto no que se refere à
gestão administrativa, quanto a suas concepções políticas e pedagógicas; 2:
Essa instituição deve centrar-se na transmissão de conhecimentos técnicos
necessários para a vida nas comunidades indígenas hoje; 3: O espaço da escola
deve se constituir também para a promoção do respeito e da valorização dos
conhecimentos tradicionais, fomentando a articulação entre diferentes universos,
mas sem tomar da família e da comunidade o papel na educação tradicional (Id:
126-127). A questão, para Luciano, é que educação moral e conhecimentos

134
técnicos podem manter-se em separado, a primeira como relativa à família e a
segunda à escola (Id: 128). Deve-se buscar, através da escola, defende o autor,
não um hibridismo de conhecimentos, mas a sua complementaridade (Id: 171),
tendo a escola a prerrogativa não de ensinar os conhecimentos tradicionais, mas
garantir sua valorização numa comunidade.
Nesse sentido, gostaria de apontar a semelhança da proposta de Luciano
com aquela construída pelos professores Ashaninka, que também desejam que
a escola seja espaço de complementaridade entre conhecimentos “tradicionais”
e “dos brancos”, almejando a organização e manutenção da vida em
comunidade. No entanto, parece relevante perguntar, sem a possibilidade de
oferecer uma resposta satisfatória, sobre as possibilidades e impossibilidades da
separação, proposta pelo antropólogo indígena, entre a moral e técnica, ou entre
cultura e política (Luciano, 2013: 147), uma vez que, como vimos nas duas
autoras previamente apresentadas, Rival e Collet, a aquisição de conhecimentos
produz necessariamente mudanças no corpo e na perspectiva. Os Ashaninka,
assim como os Baniwa, etnia de Luciano, veem nos conhecimentos dos brancos
uma parte do que almejam com a escola, como meio para a superação de
condições de desigualdade a que foram submetidos. No entanto, eles entendem
que a escola deve ser também espaço de ensinar conhecimentos “tradicionais”,
mas, mais do que isso, de garantir que esses conhecimentos e seus modos de
produção mantenham sua vitalidade fora da escola.

4.2 - A CPI/AC e o projeto “Uma Experiência de Autoria”


Nos anos 1970, quando a Funai chegou ao Acre, o encontro dos povos
indígenas com as frentes de exploração e expansão econômica datava de quase
um século e suas consequências haviam produzido no imaginário não-indígena
local a percepção de que ali não haviam mais índios, apenas caboclos, sujeitos
em processo de transformação e assimilação. Grande parte dos grupos
indígenas havia sido sedentarizada em colocações de seringal, e vivia no
entorno de patrões para quem trabalhavam sob o regime de escravidão por
dívidas. Mesmo após a decadência da borracha, novas frentes de exploração
foram postas em jogo, e naquele momento havia um incentivo e uma inclinação
à promoção da pecuária nas terras onde viviam grupos indígenas, além da
expansão da frente madeireira.

135
Alguns estudantes e militantes acreanos, que nesse tempo começavam a
se aproximar das questões dos coletivos indígenas, passaram a viajar e produzir
relatórios com o objetivo de qualificar o trabalho da recém-chegada Funai. O
antropólogo Terri Aquino visitou naquele momento algumas aldeias Huni Kuin,
enquanto realizava pesquisas, levantou dados sobre a situação em que viviam
os índios, apontando as relações de exploração às quais estavam submetidos.
Para Monte (2008), coordenadora do projeto de educação da CPI/Acre, é
aí que se encontra o germe dessa instituição pró-índio, que surge para atuar
politicamente na transformação do contexto apontado por essas experiências de
pesquisa. Depois de Aquino, outras duas pessoas, estimuladas por ele,
passaram a produzir, em 1978, relatórios de viagens que são ao mesmo tempo
pesquisas de campo e o início de uma parceria fundada numa perspectiva de
construção de relações menos desiguais e de alternativas de reconstrução de
autonomia para os povos indígenas nas florestas acreanas. Essas viagens
centravam-se, sobretudo, no apoio logístico e prático à viabilização de
cooperativas como meio de forçar o fim do monopólio dos patrões aos bens
industrializados e garantir algum controle dos índios nas transações, inclusive na
venda da borracha que produziam como “índios seringueiros”.
O projeto das cooperativas indígenas foi basilar no início das políticas
indigenistas no Acre, e esteve associado às lutas pelo reconhecimento dos
povos indígenas do direito ao território. A CPI surgiu em 1979 imbuída de um
espírito de militância política pró-índio que vinha tomando forma no Brasil, e
produzindo um diálogo entre as universidades, especialmente entre os
antropólogos, de um lado, e o movimento indígena em construção, de outro.
Assim, a CPI se empenhou em apoiar as lutas indígenas e buscou intervir
numa realidade que previa o fim dos povos indígenas naquele estado. O projeto
das cooperativas, no entanto, apontou os desafios para a sua implementação,
uma vez que se fazia necessário habilitar os índios a gerirem suas cooperativas
e controlarem comunitariamente sua economia. O programa de educação da CPI
partiu dessa demanda pela formação de quadros internos para tornar possível a
manutenção das cooperativas, e se delineou a partir dos primeiros relatórios
escritos pelos fundadores da ONG. A ideia que norteia seu rascunho é
profundamente influenciada pela educação popular e as propostas de Paulo
Freire, para quem a educação deveria ser uma prática coletiva de libertação.

136
Além da necessidade do português e da matemática instrumentais, para
uma utilização prática na gestão de cooperativas, percebeu-se que as relações
com os patrões haviam deixado marcas entranhadas não só nos corpos – como
aqueles que marcavam a fogo a pele de “seus” trabalhadores – mas também na
autoestima daqueles sujeitos. Assim, se libertar dos patrões não era apenas
uma questão de separar-se deles fisicamente, mas de impedir a continuação dos
efeitos de sua dominação.
Em 1983, a partir da identificação desses problemas e da demanda de
lideranças Kaxinawá, a CPI organizou o primeiro curso de formação de
“monitores indígenas”.
A formação de monitores, que posteriormente se torna formação de
professores indígenas, aconteceu de 1983 a 2000, compreendendo assim um
período de intensas transformações não só nas políticas de educação para os
povos indígenas no Brasil, mas também da construção de um campo de direitos
específicos para os índios. Não se pode esquecer que desde os tempos em que
esta terra era colônia de Portugal, as tentativas de conversão – religiosa e
civilizatória – não cessaram. Com o SPI, criado em 1916, se qualifica uma
atuação para o Estado republicano na “proteção” dos índios, que significava
concretamente a liberação de seus territórios para as frentes de exploração e da
incorporação dos indígenas como “trabalhadores nacionais” através de uma
reeducação promovida pela escola e pelo trabalho. A “localização de
trabalhadores nacionais”, que completou o nome do SPI nos seus primeiros anos
– Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
(SPILTN) -, manteve-se como projeto nem sempre declarado, mas atuante. A
partir do reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos de direitos coletivos
diferenciados, com a Constituição Federal de 1988, toda a proposta da política
pública de educação escolar indígena se produz em contraposição ao modelo
integracionista anterior, adotando os adjetivos “diferenciada, específica, bilingue
e intercultural”.
No caso do Acre, antes de 1988, em 1985, a CPI assinou um convênio
com a Funai e a Secretaria de Educação do Acre (SEE/AC), para a formação de
professores indígenas e gestão das políticas educacionais para esse público.
Através desse convênio, se tornou possível, já naquela época, a inclusão des
professores índios e suas escolas no sistema estadual de ensino. O objetivo da

137
CPI, afirma Monte, (2000, p.57), era o de que esta experiência e suas
concepções políticas e pedagógicas, fossem adotadas como modelo para uma
política pública, o que aconteceu na década de 1990.

Além dos cursos de formação, o projeto “Uma Experiência de Autoria”


baseava-se no acompanhamento contínuo através de assessoria nas aldeias,
junto aos professores em exercício, além do estímulo à pesquisa e à produção
de diários de sala de aula. Malu, que trabalha na CPI/AC e compôs durante
muitos anos o setor de educação da Ong, descreve a formação de professores
pela CPI:

Cada módulo de formação na CPI era de 350 a 400 horas,


em cursos presenciais. E ainda tinham os cursos a
distância, eles tinham o diário do professor, onde eles
registravam sua prática e isso contava também como curso
a distância. Tinha também as assessorias, as oficinas que
se realizavam, os intercâmbios e a produção intelectual, de
materiais didáticos ou outros livros (entrevista, Apiwtxa,
2015).

Percebe-se, explicitamente no contexto acreano, o atual processo de


homogeneização da “diferença” proconizada como norte para a educação
escolar indígena, quando esta é incorporada sob a responsabilidade dos
sistemas de ensino estaduais e municipais. As assessorias, intercâmbios e
pesquisas, ou os materiais didáticos específicos, estão hoje longe da realidade
das escolas indígenas no Acre (e em todo o Brasil). No caso da Apiwtxa, é de
extrema importância o papel dos professores mais antigos, formados pela
CPI/AC, na manutenção das propostas pautadas na reflexão dos problemas
vividos pela comunidade, internos ou nas relações com o entorno, e na
concepção da escola como ferramenta de produção de sujeitos aptos a viver
nessa comunidade.

138
4.3 - A escola Samuel Piyãko

Figura 14 Crianças em sala de aula

Em 1989, quando o processo de luta pela demarcação de seu território e


pela consequente expulsão dos madeireiros e retirada dos posseiros ganha força
entre os Ashaninka do rio Amônia, Isaac Piyãko, filho de Antônio, foi estudar na
cidade de Cruzeiro do Sul (a maior da região e segunda do estado), retornando
em 1991. Em 1992, ano da homologação da Terra Indígena Kampa (Ashaninka)
do Rio Amônia, as famílias construíram no Igarapé Amoninha, onde vivia a maior
parte dos Ashaninka, uma casa pequena, coberta de palha e assoalho de
paxiúba, como são as casas tradicionais, e Isaac começou a ser professor. A
necessidade de uma escola se devia ao contexto de transformações nas
relações com os brancos à criação da cooperativa, surgida um ano antes para
retirar dos patrões o controle da circulação de bens manufaturados, impedindo
a manutenção das relações de exploração a que estavam submetidos. Com a
cooperativa, necessitavam aprender a administrá-la. A escola recém-criada
atraiu mais famílias para a órbita de Antônio Piyãko, acelerando o processo de
formação e organização de uma comunidade que havia se iniciado com a
cooperativa. Segundo Isaac:

139
Quando a gente começa a escola o sentido era organizar a
comunidade. Antes da escola a gente já tinha organizado,
porque a cooperativa tinha esse sentido de unir o pessoal e
se libertar da mão dos patrões e dali começar a tirar os
patrões e trabalhar a autonomia. Então antes da escola já
havia uma organização por parte da comunidade. Quando a
escola entra já tinha uma organização política interna, então
a escola entra pra complementar (entrevista na Apiwtxa,
2014).

O professor Komãyari define assim o início do projeto da escola:

O primeiro objetivo da escola, veio do pensamento das


lideranças. A gente já tinha o território demarcado, limitado,
então a gente tinha a necessidade de um administrador da
cooperativa, tinha que ter uma pessoa para dominar a escrita
e a leitura, escrever documentos, assinar papéis. Qual era o
pensamento das lideranças? Era capacitar os jovens para que
futuramente eles fossem responsáveis nessa parte de
documentação, ler ofícios, anotar as coisas da cooperativa,
pagar os fornecedores dos produtos. Esse era o objetivo da
escola na época. E outro pensamento quando se iniciou a
escola era o de capacitar jovens para serem lideranças,
lideranças formadas também no conhecimento não indígena,
ter uma visão do contexto mundial e ter uma visão política
bilíngue, com domínio do português e do asheninka. O maior
desafio era aprender a falar português. A comunidade criou a
escola, com professores para responderem, dar conta dessa
parte, da obrigação de articular e organizar para capacitar
futuras lideranças ou pessoas que pudessem contribuir na
comunidade (entrevista na Apiwtxa, 2014).

Para realizar o que a comunidade havia decidido, foi feito o contato,


através das lideranças, com a Comissão Pró-Índio do Acre, que, desenvolvia o
projeto de formação de professores indígenas, ao qual me referi, há quase dez
anos. Naquele momento Terri Aquino e Antônio Macedo, dois dos fundadores da
Ong, já haviam travado há alguns anos relações de amizade e aliança com a
família de Antônio Piyãko. A CPI enviou a assessora Sandra Machado para
ajudar no início da escola e em 1993 o professor Isaac começou a participar dos
cursos de formação. No relatório que elaborou sobre essa primeira viagem, a
assessora da CPI descreveu assim o que encontrou:

140
A organização Ashaninka é espantosa, naquela região
vemos o verdadeiro conceito de ‘comunidade’. Um
exemplo disso é a questão da escola: quando cheguei lá,
pensei que teria de reunir a comunidade, discutir quem
seria o professor, como seria a escola, discutir a educação
que queriam, etc. Porém, tudo isso já tinha sido pensado
por eles, já tinham escolhido o professor, como seriam as
aulas, o calendário, o local da escola, enfim, tudo já estava
resolvido, e só esperavam por mim para ‘oficializar’ suas
decisões (Relatório de viagem de 1992, da assessora
Sandra Machado apud Monte 2008, p.104).

Naquela época também havia uma pesquisadora na comunidade, a


antropóloga Margarete Mendes, que realizava pesquisa para sua dissertação de
mestrado, e auxiliou no projeto de criação da escola. Esse projeto permitiu a
compra de materiais e o diálogo com o linguista Wilmar D´Angelis, que elaborou,
em 1994, junto com a comunidade, uma ortografia da língua asheninka,
possibilitando a criação da primeira cartilha da escola, lançada em parceria com
a CPI/AC.
Em 1995, os Ashaninka realizaram a mudança da aldeia para a ponta da
terra indígena, as margens do Rio Amônia, com o objetivo de fiscalizar e impedir
a invasão da TI pelos brancos. Nessa mudança, a escola também foi do rio
Amoninha para a atual aldeia. No ano de 1996, já haviam mais de 80 alunos
matriculados e só um professor para trabalhar com as turmas multisseriadas
criadas. Por isso, Isaac selecionou dois de seus alunos, Wewito e Komãyari, para
o auxiliarem no trabalho da escola, além de sua esposa Fátima, não-indígena,
que havia feito o ensino fundamental na cidade.
Depois de estruturada a comunidade, e ao longo do processo de formação
dos professores nos cursos da Comissão Pró-Índio, os Ashaninka foram
ampliando os sentidos que construíam para a escola. O “tempo dos patrões”,
que se encerrava com a construção de uma comunidade autônoma, marcou a
vida dos Ashaninka no Rio Amônia e teve impactos diversos na vida das famílias.
Então, como explica Wewito:

A comunidade discutiu junto o que seria, para nós, a escola,


que aluno nós queríamos formar e pra quê nós queríamos
formar. Pra competir com o mercado fora ou para prepara-los
para sobreviver dentro desse território com os seus
conhecimentos, para fortalecer seus conhecimentos,

141
fortalecer sua cultura e colocar em prática aquilo que é da
cultura que também é ensinamento e é importante para nós?
Tudo isso foi discutido e a gente começou a ver que aquelas
coisas que estavam sendo esquecidas, mas que não estavam
perdidas, eram nossas e precisavam ser trazidas de volta.
Antes não tínhamos a liberdade de fazer nossas festas
tradicionais porque os brancos proibiam ou chegavam e
acabavam com as festas. Quando conseguimos nosso
território, passamos a ter a liberdade de fazer isso. Então a
escola foi junto, conversando com cada aluno, explicando a
importância disso, porque é importante para nós ter nossa
cultura e nossos conhecimentos, tanto da confecção dos
nossos artesanatos, da nossa medicina, da nossa cura, das
nossas histórias, dos nossos mitos. Para nós a escola é um
conhecimento, mas o nosso conhecimento tradicional, na
oralidade e na prática, é como uma universidade que estava
ali sem ter uma organização de seus ensinamentos, pra que
a gente pudesse tomar um rumo. Não temos que tornar tudo
isso uma coisa “da escola”, mas é importante mantermos
esses conhecimentos, que são conhecimentos milenares que
vem sendo repassados pelo nosso povo e que nós temos que
dar continuidade. E a gente discutia muito com outros
professores indígenas [do Acre], era a maior das nossas
discussões com outros professores. Muitos deles não
queriam a educação tradicional, ou seja, a educação do povo,
queriam uma educação que viesse de fora (entrevista, 2014).

Também Komãyari aponta a emergência da “cultura” na escola, afirmando


seu sentido para além, apenas, do acesso a conhecimentos dos brancos:

Hoje a gente pensa que [o objetivo da escola] não é só


capacitar futuras lideranças, ou administradores de
cooperativa e associação, pessoas que possam ler e assinar
documentos. Além disso, temos que registrar e ampliar a
educação para defender o interesse, o direito da comunidade,
o que a comunidade precisa. Nós precisamos registrar nossos
conhecimentos, nossa cultura, nós precisamos ter material
didático, nós precisamos construir sem depender de alguém
que vem de fora que vai dizer que nós temos que fazer assim.
A escola tem que ser independente pra que a gente possa
aprender mais, ter mais conhecimento e mais professores
para atender a comunidade. A gente tem que pesquisar o que
está se perdendo. E aprender o português não é só aprender
a ler e escrever, pra isso tem que ler muito, interpretar a
história.

142
Além dos professores Isaac, Wewito, Komãyari e Fátima, outros, que
foram alunos desses primeiros, passaram a compor o grupo de docentes.
Apenas um deles, Ãtxoki, estudou alguns anos fora da escola do rio Amônia,
quando ainda vivia no Peru. O corpo de funcionários da escola, em 2014 e 2015,
era composto por onze professores vinculados à Secretaria Municipal de
Educação (SEMEC) de Marechal Thaumaturgo. Apenas Isaac e Fátima, que
atuavam então como diretor e coordenadora pedagógica respectivamente, eram
professores efetivos, contratados por meio de concurso público. Os demais são
contratados anualmente como professores temporários, de duração de dez
meses, e sem direitos trabalhistas como férias e décimo terceiro. Além dos
professores, haviam naquele momento dois barqueiros – um para o turno da
manhã outro para a tarde, duas cozinheiras e duas pessoas responsáveis pela
limpeza. Em 2015, havia um total de 208 alunos matriculados.
Até o 6º ano as turmas são conduzidas por um único professor. Do 7º ao
9º ano os dois professores mais experientes, Wewito e Komãyari, dividem as
disciplinas (em 2014 e 2015, o 8º e o 9º ano, pelo número baixo de alunos, foram
reunidos em uma turma só). Percebe-se a prática de colocar sob
responsabilidade dos professores menos experientes as turmas iniciantes e
deixar os professores que há mais tempo trabalham na escola, com as turmas
dos anos finais.
As disciplinas que compõe a grade oficial da escola são as mesmas das
escolas rurais e urbanas, acrescentadando-se apenas “religião” e “língua
indígena” como parte “diferenciada” do currículo. Nos diários que os professores
preenchem para enviar para a SEMEC, deve constar a carga horária de: 4h
semanais de matemática e língua portuguesa, 3h semanais de ciências,
geografia e história, além de 2h de educação física e artes. Soma-se a este total
1h semanal de língua indígena e 1h de religião. Na prática, nem sempre a divisão
das disciplinas corresponde a uma diferença de conteúdo, pois a separação em
diferentes campos de saber não é familiar para os professores. Além disso, a
língua indígena é trabalhada em todas as disciplinas, e apenas nas aulas de
língua portuguesa, a partir do terceiro ano do ensino fundamental, se utiliza o
português. O que acontece, muitas vezes, é que os professores têm dificuldade
de preencher os diários e relatórios para a SEMEC porque eles não são
adequados e não correspondem à realidade.

143
Depois da mudança da comunidade para o rio Amônia, foi construída pela
prefeitura uma casa de alvenaria com três salas de aula. Essa edificação foi
abandonada poucos anos depois, quando um espaço que havia sido projetado
para funcionar como uma instalação para visitantes, no modelo das casas
tradicionais – com teto de palha e piso de paxiúba, sem paredes -, foi adaptada
para a escola, que hoje é composta por quatro salas de aula, duas delas com
divisórias para funcionar para duas turmas diferentes.

Figura 15 Foto da escola Samuel Piyãko, 2014

Figura 16 Desenho da escola feito por criança da Apiwtxa

144
Além das salas de aula, compõe o espaço da escola uma cozinha com o
mesmo formato das salas e uma biblioteca, única construção de alvenaria, que
funciona tanto para armazenar documentos, livros enviados pela Secretaria de
Educação e materiais como cadernos e lápis, quanto como sala da coordenação.
Desde o início da escola, como sugere uma primeira tentativa de
construção de um Projeto Político-Pedagógico, que foi desenvolvido junto aos
assessores da CPI no final dos anos 1990, as aulas acontecem presencialmente,
com professor e alunos, quatro dias por semana: segunda, terça, quinta e sexta.
Às quartas-feiras são contabilizadas como dias letivos, inclusas no planejamento
escolar como aulas práticas, quando os filhos acompanham os pais durante todo
o dia em suas atividades cotidianas, aprendendo junto deles a observar e se
situar no ambiente. A presença dos alunos junto de seus pais deve-se também,
a importância que as crianças têm na vida produtiva da família. Assim explica
Alzelina, esposa de Wewito e hoje professora na aldeia:

Eu vejo assim: é importante [a manutenção das quartas como


dia de aula prática] porque uma criança da cidade, ela não
sabe nem cozinhar, lavar uma roupa, cuidar de outra criança.
E as crianças aqui da aldeia são muito diferentes, porque
desde os cinco anos ela sabe lavar uma roupa, fazer uma
comida, fazer um fogo, cuidar do próprio irmãozinho dentro de
casa quando a mãe deixa. É muito importante o dia de quarta-
feira, ela acompanha os pais. As meninas acompanham as
mães, né? A mãe ensina a cozinhar, lavar uma roupa, limpar
um terreiro, tomar conta de casa. E os meninos aprendem
com o pai a pescar, caçar, cuidar do roçado. E a gente como
pais precisa muito deles também. Se eles ficarem os cinco
dias na escola, a gente não tem nem como conviver com eles,
nem ensinar eles também (Alzelina, oficina calendário, 2015).

Isaac, na mesma oficina em que Alzelina compartilhou essa sua


perspectiva, complementou a professora apontando que na Apiwtxa, diferente
do que acontece com os brancos, não existe um “sistema de empregado”, e que
as crianças são componente indispensável na economia doméstica.

145
Diferente daquilo que Laura Rival (1997) afirma sobre as transformações
nas aldeias Huaroani escolarizadas, onde se produz uma separação entre
adultos – pais de família – produtivos, e crianças que deixaram de acompanhar
seus pais nas atividades cotidianas para frequentar as salas de aula, onde
aprendem conhecimentos que os distinguem dos adultos, as famílias Ashaninka
apontam enfaticamente que as crianças “aprendem na escola, mas aprendem
com os pais também”, e que ambos os conhecimentos são complementares.
A escola funciona, através da organização dessas aulas práticas e das
reuniões comunitárias sempre convocadas e conduzidas por professores e
lideranças, como uma espécie de observatório de todas as parentelas que
compõe a comunidade, pois a partir dos alunos, os professores olham também
os pais. A descrição dos professores de como as quartas-feiras devem compor
o planejamento escolar, nos dá indícios disso:

As atividades das quartas-feiras, quando não tem aula dentro


da escola, é pros filhos acompanharem os pais nas atividades
do cotidiano, nos roçados, nas pescarias. É muito importante,
mas eu vejo que isso precisa estar definido mesmo. Tem que
ser definido pelo professor no dia anterior, o professor tem
que orientar o aluno, dizer para ele para perguntar pro pai, ou
pra mãe o que eles vão fazer na quarta-feira, se vai ser uma
caçada, se vai pro roçado. O professor tem que dar essas
orientações, para o aluno ter aquele compromisso mesmo de
ir acompanhar o pai. Porque tem aquele que tem uma
preguicinha né? O pai vai pro roçado, ou vai pescar, e o filho
fica em casa só brincando, jogando bola, jogando pião. Então
essas orientações do professor, obrigando mesmo ele a ir,
quer dizer assim, quase obrigando, a acompanhar essa
atividade, é muito importante. E também não só orientar, mas
depois, no dia seguinte, perguntar: “você foi pra onde? O que
você aprendeu? Vamos compartilhar com os outros colegas e
cada um vai falar o que foi que fez na quarta-feira durante o
dia todo”. Com a conversa informal e depois sistematizar
também, junto com o professor, "vamos escrever agora um
texto", [e assim] pode desenvolver várias atividades dentro
daquele planejamento. Isso tem que ser definido como
compromisso dos professores (Fátima, oficina do calendário,
2015).

Nós discutimos todo ano a quarta-feira como um momento de


orientar o aluno e acompanhar o aluno através do que ele fez
com os pais. Quarta-feira é muito importante para isso, para
fortalecer tanto o dia do aluno com os pais, quanto o professor

146
na sua atividade. Isso não significa que ele vai estar junto,
mas aluno e professor tem que sair orientados, sabendo o que
vão fazer naquele dia (Isaac, oficina do calendário, 2015).

4.4 - Educação tradicional, educação escolar e a educação


diferenciada dos Ashaninka

Com a força que a gente já tinha da cooperativa, com a


valorização e organização, a formação na CPI ajudou.
Quando eu comecei nos cursos, lá também existia uma
política dos outros povos, cada um com a sua história, e os
cursos, sua metodologia e organização, eram criados
baseados nessa história dos problemas, de como superá-los
trabalhando seus conhecimentos. E a gente conseguiu criar
uma política de educação diferenciada, específica,
intercultural. Então tinha todos esses conceitos. Eram
palavras que criavam conceitos muito importantes de
valorizar as culturas. Quando se falava diferenciada, muitas
lideranças mesmo dentro do movimento indígena, não
aceitavam a palavra diferenciada, ou intercultural, como é até
hoje. E a gente resistiu, não todos os professores, mas
principalmente pessoas como eu, o Joaquim [Joaquim Maná,
professor Huni Kuin], depois vem a Francisca [Francisca
Arara, professora Shawadawa], mas anteriormente tinham
outros. A gente defendeu a educação indígena diferenciada,
com a palavra diferenciada como algo que pudesse marcar.
Diferenciado por quê? Criava uma interrogação, né? (Isaac,
entrevista, 2014).

As tensões e múltiplos sentidos que são construídos para a criação e


manutenção de escolas são parte dos processos de apropriação dessa
instituição entre grupos indígenas. Assim, os Tukano desejam uma
“etnoeducaçao” que se diferencie dos projetos missionários que experenciaram
e que se formalizou na marginalização dos pajés e na retirada das crianças da
responsabilidade parental (Hugh-Jones, 1997: 105), e que seja também capaz
de valorizar a “cultura”; os Xikrin (Tassinari e Cohn, 2012) desejam uma escola
como aquela dos brancos, e rejeitam a ideia de uma educação “diferenciada”,
enquanto outros grupos encontram diferentes composições com a escola.
Os professores Ashaninka, como aponta Isaac no trecho de entrevista
transcrito acima, defenderam desde o início das discussões que levaram,
posteriormente, à criação da OPIAC, a Organização dos Professores Indígenas
do Acre, e à educação diferenciada como uma questão de onde se partia, e não

147
como um ponto de chegada pré-determinado, uma concepção genérica de
“indío”. Não à toa, os nomes citados por ele, o de Joaquim Maná e Francisca
Arara, são de pessoas que, junto a Isaac, tiveram papel importantíssimo na
criação e/ ou na gestão da OPIAC. 44.
Os cursos da CPI, diferentemente do que se consolidou em outros
programas de formação de professores indígenas, como aquele entre os Wajãpi,
através do CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e depois da ONG Iepé, eram
pensados para professores de diferentes povos indígenas, como parte do
processo pedagógico do projeto “Uma Experiência de Autoria”, da CPI/AC. Esse
projeto pautava-se nos intercâmbios e reflexões coletivas dos professores
indígenas, estimulados a pensar a realidade de suas aldeias elaborando essa
reflexão em relação àquela de seus colegas.45 Essa dimensão de interação e
constituição de semelhanças na produção de uma identidade “professor
indígena”, ao mesmo tempo promovia o entendimento e a construção daquilo
que lhes era, enquanto povo ou comunidade, específico. Além de diferente do
modelo de educação nacional, as escolas nas aldeias deveriam estar em sintonia
com as realidades particulares que lhes constituíam46. Ainda hoje (sobretudo
hoje), me disse Komãyari, a educação diferenciada ainda é ponto de
interrogação, como dizia Isaac para os tempos da CPI:

As pessoas não indígenas, os profissionais da Secretaria [de


Educação], ou mesmo alguns professores, ainda não
entendem o que é diferenciada. Tem muita gente que fica
duvidando do que é diferenciada. Até quando se fala de
especificidade do povo indígena, ou educação específica,
intercultural, as vezes acham que é todo mundo igual. Que a
escola do Kaxinawa, do Yawanawa, do Poyanawa, é igual à
do Ashaninka (Komãyari – oficina com os professores, 2015).

44
Chica Arara é hoje presidente da OPIAC,
45
Esses programas serviram de modelo para diversos projetos realizados depois de 1991 pelas
secretarias de educação ou por organizações conveniadas, com graus diferentes de “diferenciação” e
participação indígena.
46
A partir de 1991, essas experiências não oficiais se tornam modelos para as diretrizes da política
pública, especialmente com a publicação na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
em 1996. No Acre, a CPI vinha desde 1983 realizando a formação de professores indígenas, portanto
anteriormente a essa incorporação.

148
A educação escolar diferenciada, na perspectiva do professor, deve ser
um efeito produtivo da construção particular que cada comunidade empenha, e
não um lugar comum.
Existe diferenciada, mas a diferença é a especificidade de
cada povo que organiza o seu conhecimento diferente, como
ele ensina, os processos de aprendizagem e de ensinamento,
de como os são os tratamentos, os atores da comunidade, as
pessoas mais velhas, a organização comunitária, distribuição
de conhecimentos, enfim. São totalmente diferentes. Eu digo
isso porque escutei muita gente dizendo: “não é igual quando
você fala de educação específica, diferenciada, intercultural,
não é igual entre vocês?”. É igual nas palavras, mas na prática
nós temos educação diferente, nós temos planejamento
diferente, projeto político diferente, nós temos calendário
escolar diferente, nós temos diversos conhecedores de cada
conhecimento diferente do que o povo Kaxinaxa tem, então
tem que especificar. Até na sua pesquisa [falando para mim],
tem que especificar: educação diferenciada ashaninka,
porque confunde muita gente, que acha que toda educação
diferenciada é igual. (Komãyari – oficina objetivos da escola,
2015).

Como orientou-me Komãyari, é necessário enfatizar que aqui trata-se de


descrever a “educação diferenciada ashaninka”, uma particular equação assim
resumida por Seu Cláudio: “É importante a escola: aprender, saber mais da
escrita, saber mais da sabedoria dos brancos. Mas a escola diferenciada é
também para gente não esquecer os nossos costumes. (entrevista, 2014).
Komãyari também aponta a composição desses termos explicitando seu ponto
de vista:

No meu entender a educação escolar envolve a escrita.


Envolve também a divisão em disciplinas, como história e
matemática. Mas na educação diferenciada também tem a
participação dos velhos, a relação do aluno com a
comunidade, tem o professor que participa também da
comunidade. Por isso para mim são diferentes a educação
escolar, a educação indígena e a educação diferenciada
(entrevista, 2014).

Ainda que apropriada pelos Ashaninka para viver em comunidade, a


escola está sempre imersa numa tensão entre algo que promove sua autonomia,

149
mas também como algo que pode representar uma ameaça se não for
adequadamente controlada:

Para a gente é muito bom [a existência da escola], porque a


gente garante esse lado de não ser mais explorado da forma
que a gente era antes. Mas também a escola desperta muito
um lado não-indígena. É importante marcar um limite. A nossa
educação aqui não é para o mundo de fora. Lá tem um milhão
de doutores, pessoas formadas e lá segue. A gente tem que
se voltar para a nossa cultura, os nossos costumes. É por isso
que a gente tem a escola diferenciada, para voltar os estudos
para dentro da cultura. Por exemplo no ashaninka como
primeira língua e só depois o português. É importante
trabalhar dentro da cultura e, também, fazer a adaptação da
educação lá de fora para um formato que não venha
prejudicar a cultura, que venha fortalecer a cultura e fazer as
pessoas entenderem porque tantas comunidades foram
exterminadas, exploradas, entenderem também a nossa
história, trazer isso tudo para o presente, para fazer as
pessoas enxergarem a cultura como a pátria delas. (Moisés,
entrevista, 2014).

Por sua vez, Wewito afirma:

Se a gente prende o aluno na sala de aula, perdemos muitos


ensinamentos da nossa cultura: na roça, na pesca, na arte de
pescar, na arte de caçar, na ciência de plantar o roçado,
aquilo que os pais conhecem para dar um bom fruto, uma boa
safra, como acordar bem cedinho, lavar a mão com algumas
folhas, enfim, conhecimentos que são da cultura. Se as
famílias não entenderem isso a gente vai acabar perdendo,
então a escola considerou tudo isso. Aquilo que a gente não
tinha mais liberdade, como a questão dos rituais, a gente
começou a fortalecer, a chamar as pessoas. Antes a
proibição, a interferência dos brancos era tão forte, que
muitas pessoas não faziam mais caiçuma. Depois retomamos
(Wewito, entrevista, 2014).

Como espaço que é atravessado pelo exterior, pelas relações de


alteridade, a escola deve ser manejada para poder funcionar como ferramenta
para o “manejo do mundo”, na feliz expressão de Luciano (2013). Por isso é
preciso exercer certo controle sobre o experimento com a escola, pois se ela
hoje é vista como meio de promoção e reprodução da cultura e domesticação de

150
conhecimentos alógenos, ela também abre outros caminhos e a possibilidade da
transformação, como sugere dona Piti:

A escola educa, mas ela também tira muito o índio do caminho


dele. Por isso que precisa dar os primeiros anos na língua
deles e, também ter assim como os meninos [os professores]
dão aula aqui, quatro dias. Porque aí eles saem para andar
com os pais para eles ensinarem também, para não sair da
rota do costume deles. Mas é muito bom ter escola (Dona Piti,
entrevista, 2015).

Nesse sentido, Mariana Kahn afirma que:

O fato é que não existe Educação Indígena que caiba num


modelo de escola. O que se vem fazendo, é, sim, uma
Educação para o Índio, pois todos os programas
desenvolvidos no sentido de se implementar um processo de
ensino e aprendizagem entre grupos indígenas tem como
parâmetro – seja para reproduzir, seja para contestar – a
escola formal. Ao longo da história do Brasil, as ações
educativas que vem sendo desenvolvidas em contexto
indígena – reacionárias ou progressistas, religiosas ou leigas,
assimilacionistas ou libertadoras – estão atreladas ao modelo
escolar formal, ocidental, hierarquizado e individualista (1994,
p.137).

Lopes da Silva, no entanto, sugere que: “(...) o interessante é pensar a


escola e a educação escolar como instituições indígenas, na medida em que,
apropriadas historicamente e simbolicamente processadas em contextos
indígenas específicos, tornam-se eventos significativos” (1997, p. 2). No sentido
de encontrar o lugar que os Ashaninka constroem para a escola, faço eco às
palavras de Lopes da Silva, pensando ao mesmo tempo que a escola é tornada,
para os moradores do rio Amônia, uma escola ashaninka, diferente tanto das
escolas da cidade quanto das de outras aldeias, mas que, como sugere Souza,
as experiências escolares remetem necessariamente às relações sociais,
políticas e burocráticas com os não índios (2007: 188). Talvez porque, como
sugeri, a escola esteve desde sua criação sob a gestão dos professores e da
comunidade, não é a escola formal aquilo que os Ashaninka têm como
referência, seja para contestar ou para reproduzir, mas a escola a partir do
modelo da CPI (esta sim, baseada, mesmo que para se contrapor, no modelo

151
formal). Sua referência, inclusive para pensar as transformações com a
burocratização da escola gerida pelas Secretarias de Educação, é a proposta da
CPI.
A escola continua a ser vista como espaço de desconstrução de
assimetrias e produção de relações controladas com os brancos. Especialmente
para os moradores mais velhos, que viveram concretamente as amarras do
tempo dos patrões, a escola deve ser capaz de evitar que o desconhecimento
da língua portuguesa, da matemática e da escrita se mantenha nas gerações
mais novas, para que os Ashaninka possam se comunicar, em contextos
específicos, com os brancos. Como sugerem as entrevistas com os moradores
mais velhos, a questão é que a impossibilidade da comunicação produz
situações de humilhação, como sugere Ririta, irmã de Antônio Piyãko: “A
mulherada aí vai na cidade e perguntam: ‘diz aí, esse menino, o quê que esse
menino tem?’ E ela só abaixa a cabeça, nem fala nada (Ririta, entrevista, 2015).
Ou ainda Aricêmio, seu marido: “Aprender português na escola é bom. Tem que
aprender essa coisa. Para quando vai andar por aí, porque quando chegar na
cidade ele não vai poder saber porque não vai poder falar. E não vai entender o
que o branco está falando” (Aricêmio, entrevista, 2015).

4.5 - Pequenas cenas escolares


Professor Otxe 10/09/2015 – 6º ano
Essa é a turma com menor número de alunos – são no total 8, mas hoje
compareceram 6. É dia de avaliação. São três meninas, enfileiradas em um
extremo da sala, e três meninos do lado oposto, colados à divisória que separa
esta sala de outra.
O professor escreve no quadro:
Disciplina: Ipaãte Asheninka [língua asheninka]
Avaliação: dinâmica47

47
A coordenadora pedagógica em 20015, Fátima, buscava participar dos cursos de formação continuada e
alfabetização promovidos pela secretaria municipal de Marechal Thaumaturgo para os professores do
município. A metodologia e os conteúdos utilizados eram produzidos para os professores não indígenas e
por isso quase nenhum professor indígena comparece a essas formações (acompanhei um deles, parte de
um Programa para Alfabetização na Idade Certa, junto com Fátima). A coordenadora tinha então que
adaptar algumas propostas para os professores, que tem uma imensa dificuldade em planejar suas aulas e
os conteúdos, especialmente de elaborar programas a longo prazo – eles não fazem um plano de curso,
apenas de aula. Nessas reuniões pedagógicas, Fátima usou como exemplo um modelo de aula do curso, em
que se separava: disciplina, tema, atividade e objetivo. A maioria dos professores começou a reproduzir

152
Objetivo: Ayotero oitaka importância iwenki ashi asheninka [descrever
qual é a importância dos iwenki (piripiri) entre os Ashaninka].
Atividade: Iroka patê apani texto [produzir um texto]
O professor distribui a cartilha dos Ashaninka e pede que todos abram
numa página que mostra um desenho de um iwenki (piripiri). Ele explica, sempre
em asheninka, que os alunos devem escrever um texto falando sobre os iwenki
(uma variedade de plantas), desenhando um dos tipos conhecidos por eles, e
para que serve. Depois que acabou de explicar aos alunos, o professor explicou
para mim e complementou: “eles têm que falar coisas como: foi Pawa quem
deixou para nós”.
Essa avaliação durou toda a aula, e ao final dela os alunos entregaram ao
professor as folhas que lhes haviam sido distribuídas para a atividade.

Professor Komãyari - 01/10/2015 – 7º ano


O professor inicia a aula escrevendo no quadro:
Ipaãte Asheninka [língua asheninka]
Komãyari distribui uma folha pautada para cada aluno e explica,
oralmente, na língua asheninka, a atividade. Reparo que esse professor se
demora mais tempo explicando oralmente a atividade para os alunos, método
pouco explorado pelos professores em suas aulas. A atividade proposta consiste
em escolher um animal, desenhá-lo e em seguida escrever um texto sobre ele a
partir da “realidade deles”. Komãyari dá o exemplo da cotia (shawo), que come
macaxeira, pama e outras frutas. Os alunos tinham então 20 minutos para
realizar o exercício. Três alunas haviam saído durante a explicação. No turno
da tarde, os alunos e alunas passeiam pelo centro da escola, observam
pretendentes e por vezes trocam bilhetes amorosos. Quando as alunas
retornam, o professor chama a atenção das meninas, sem alterar a voz.
Passado o tempo para a atividade (certamente mais de 20 minutos), os
alunos devem ir até a frente da sala e ler o que escreveram. Sentada no fim da
sala eu não consigo ouvir nenhum deles. Um por um os alunos vão, tapam o
rosto com suas folhas de papel e leem de forma incompreensível, tomados pela
vergonha. Uma aluna lê de costas para a turma, de frente para o quadro, outra

isso nos seus quadros, utilizando formalmente parte do roteiro proposto por Fátima, mas, desconfio, sem
compreender como dar a ele sentido.

153
de lado. Certamente nem o professor é capaz de escutar o que dizem. Apenas
um menino faz uma leitura um pouco mais eloquente, que me deixa entreouvir
algumas palavras. A atividade parece funcionar como um estímulo para que os
alunos “percam a vergonha”, como me disseram algumas vezes os professores
para explicar práticas como essa.
Em seguida, outra atividade, dessa vez utilizando a cartilha na língua
asheninka. O professor entrega exemplares, retirados da biblioteca, para cada
aluno. Pede aos alunos que abram na página certa e auxilia individualmente
aqueles que tem dificuldade para encontrar. Antes de pedir para um dos alunos
ler um dos pequenos textos da apostila, o professor alerta a todos para que
prestem atenção à pontuação e ao título. Depois, mais dois alunos leem outros
trechos, todos igualmente inaudíveis. Komãyari trabalhou a partir dos trechos
lidos algumas regras de pontuação.
Por fim, Komãyari passa um último exercício, agora de língua portuguesa.
Ele dá explicações em asheninka, mas dita a orientação da atividade em
português: “Escreva 20 palavras na língua portuguesa”. O professor então
caminha entre as carteiras, observando se os alunos estão fazendo o que lhes
foi proposto.

Professor Enisson - 05/10/2015 – 3º ano


O professor inicia o dia corrigindo as tarefas do dia anterior. Permanece
sentado em sua mesa, enquanto os alunos levam até ele os seus cadernos.
Depois disso, o professor vai até a biblioteca e traz um livro didático de
ciências da coleção “Girassol”, desenvolvida para as escolas do campo e
enviadas pelas secretarias de educação para as escolas indígenas. Junto do
livro, ele traz folhas de papel, cola e uma tesoura de picotar, cujo corte é
enviesado. Ele recorta imagens do livro de ciências, enquanto alguns meninos
brincam de pião no chão, e outros alunos, meninos e meninas, saem da sala
para beber água na cozinha, passear por entre as salas e observar o que
acontece no entorno. Quando o professor termina de selecionar as imagens, os
alunos retornam para as suas mesas, e então Enisson distribui os recortes entre
as crianças. As imagens são das mais variadas: uma onça na floresta, uma
capivara, uma onça num zoológico, um arranha-céu, uma fogueira, uma partida
de futebol... O professor, então, pede que cada aluno leve a figura que recebeu

154
até a sua mesa, onde ele recorta cada imagem em pedaços pequenos, para que
as crianças montem, como num quebra-cabeça. As crianças ficaram
profundamente entretidas e a atividade dura até o horário que deveria ser o da
merenda. Pela falta de repasse da verba destinada a merenda escolar, os alunos
estão sendo, quase todos os dias, liberados nessa hora.
Professor Ãtxoki – 12/10/2017 – 1º ano
O professor Ãtxoki mora no estirão e chega à escola no barco que também
traz os alunos. Depois de pegar seu estojo com apagador e giz para o quadro na
biblioteca, ele chega na sala de aula, cumprimenta os alunos: “Kithaitere” (que
os Ashaninka traduzem para o português como bom dia) e se senta em sua
mesa. As crianças chegam todas vestidas com cushmas e algumas carregam
mochilas, que permanecem em suas costas durante todo o tempo que passam
na escola. As carteiras são dispostas em pequenos grupos, mas separados de
um lado da sala os meninos e de outro as meninas, sem que haja regra formal
sobre isso. É fácil identificar que as crianças não interagem com outras que não
seus irmãos ou primos. Todos os alunos concentram suas carteiras bem
próximas da mesa do professor.
Ãtxoki faz a chamada e então começa a escrever no quadro:
Disciplina: Arte
Tema: Omapãtsi Ashenika [música ashaninka]
Hame amãpayawo omapãtsi rashi mashako [uma tradução aproximada,
feita pelo professor para mim, é “vamos cantar a música do jaburu”].
2x Rowashire, shireta, nomashako, terãki
2x Irinka tekitxa irinka tekitxa
2x Hami nai natairo noshako terãki
2x Iyatõko tekitxa iyatõko tekitxa
Enquanto o professor copia a atividade no quadro, alguns meninos,
deitados no chão de barriga para baixo, brincam de “golzinho” com uma
semente: um faz com as mãos o “gol”, para os outros acertarem. Eles riem e
comemoram os gols, enquanto as meninas permanecem silenciosas. Algumas
das meninas estão sentadas e outras em pé, apenas apoiadas na mesa e com
um joelho na cadeira, como costumam ficar. O corpo desacostumado com a
rotina escolar encontra maneiras de se mexer: sentam, levantam, se apoiam nas
carteiras, sentam ou deitam no chão. As meninas saem em duplas para fazer

155
xixi. Dois banheiros foram construídos no entorno da escola, mas nunca são
utilizados pelas crianças. É atrás dos banheiros, no mato que cresce próximo,
que as meninas vão se aliviar.
Quando o professor acaba de copiar o exercício no quadro, os alunos que
brincavam no chão rapidamente se sentam nas carteiras. O professor lê a letra
da música que fala sobre o jaburu (mashako) e a explica para os alunos (sempre
em asheninka) a primeira atividade, que consiste em acompanhar com o
professor a música.
Ãtxoki então aponta, com uma régua, cada palavra da letra escrita no
quadro enquanto canta e chama atenção para quantas vezes cada parte será
cantada. Os alunos devem acompanhar e assim associar a palavra cantada à
palavra escrita. Os meninos acompanham a canção e Ãtxoki me diz que eles são
mais interessados que as meninas.
Depois, o professor vai até a biblioteca para buscar os materiais para a
próxima atividade. Os meninos imediatamente voltam à brincadeira de golzinho
no chão. Quando Ãtxoki retorna à sala com lápis de cor e folhas, os alunos se
sentam e recebem em suas carteiras o material. O professor desenha no quadro
dois jaburus, abaixo do comando da atividade:
Hame ateseyateri mashako apite [vamos desenhar dois jaburus]
Um dos animais olha para cima e o outro para baixo. Depois dos alunos
desenharem copiando o quadro, o professor pergunta (em asheninka): “Para
onde o jaburu olhou primeiro?”. “Para baixo, respondem os alunos”. Na letra da
música, um jaburu olha para baixo e depois para cima.
Então o professor se senta na carteira e pede que os alunos levem os
cadernos para que ele olhe os desenhos. As crianças rapidamente se juntam em
torno do professor e disputam com seus cadernos atenção dele.
Nesse dia também não tem merenda e por isso as aulas acabam as 9:30h.
Os alunos e o professor logo voltam para as suas casas.

Apresentei esses pequenos quadros do que acontece nas salas de aula


para que a partir deles possamos extrair algumas características e modos de
funcionamento da pedagogia escolar na Apiwtxa. Em primeiro lugar, utilizei
propositalmente como exemplo aulas nas quais os professores utilizaram
materiais didáticos – a cartilha em língua asheninka, que fora desenvolvida para

156
o início das atividades escolares no rio Amônia, no início da década de 1990, e
um livro de uma coleção desenvolvida para escolas rurais e enviada para as
escolas indígenas. Isso porque quero chamar atenção para o fato de que esses
momentos com materiais de apoio são exceções, pois geralmente as aulas
acontecem apenas com o uso do quadro pelo professor. Nas aulas em que
descrevi o uso de livros didáticos, esses materiais eram entregues para os
alunos e depois recolhidos, permanecendo na biblioteca. Os professores me
disseram que as cartilhas já haviam sido distribuídas aos alunos, e que por isso
elas existem em algumas casas. No entanto, me explicaram, os alunos não
tinham cuidado com o material, que facilmente era perdido ou rasgado. Os livros
que chegam da secretaria de educação anualmente são empilhados na
biblioteca ao lado daqueles mais antigos, elaborados pela CPI/AC ou distribuídos
pela ONG, entre eles livros didáticos de outros povos indígenas ou as cartilhas
para “aprender português nas escolas da floresta”, que foram escritas a partir do
projeto “Uma Experiência de Autoria”.
Outra questão que eu gostaria de apontar nessas cenas escolares é a
repetição de um método de aprendizagem por “atividades”, sem que sejam
trabalhados conteúdos de forma expositiva. Essas atividades são baseadas
quase sempre naquilo que o aluno pode observar na própria comunidade, mas
com uso do desenho e da escrita como ferramenta. Em todas as aulas, incluindo
as de língua portuguesa, a língua de interação é o asheninka, utilizada também
como língua escrita. Para diversas palavras, na gramática escolar, os
professores da escola Samuel Piyãko “ashaninkizam”, formando novos termos –
desenhar vira ateseyateri (uma vez que no alfabeto asheninka não existe a letra
d, utilizando-se o t), papel paperi e escola iskuera.
A cópia exaustiva de textos é apontada tanto por Collet (2007) quanto por
Weber (2006) como características da metodologia escolar, respectivamente,
dos Bakairi e dos Huni Kuin. Em ambos os casos, as autoras apontam a
aproximação desse método, dissonante das propostas “diferenciadas” para as
escolas indígenas (inspiradas nas ideias da educação popular), dos processos
nativos de ensino e aprendizagem, onde a observação e a repetição são a base
da apreensão de uma nova habilidade. Na escola Samuel Piyãko, no entanto, a
cópia de textos a partir de livros didáticos é inexistente. O mais comum,
principalmente entre os professores mais jovens, é que a duração das aulas seja

157
quase toda tomada por “atividades”, sempre escritas pelo professor no quadro,
sem muitas orientações, seguida pela realização individual pelos alunos,
finalizada pela correção do professor. Aulas expositivas não fazem parte da
metodologia dos professores, excetuando-se em partes os professores mais
antigos, Komãyari e Wewito48, que utilizam de exemplos e referências da vida na
aldeia para explicar os exercícios propostos. Minha hipótese é que esta forma
de ensinar por atividades é também similar às formas tradicionais dos Ashaninka.
Explico: quando pequena a criança acompanha seus pais e a sua exposição ao
ambiente possibilita que a criança ativamente apreenda o mundo que a rodeia e
as relações que constituem seu universo. Os pais oferecem pouca orientação
verbal, e a medida que a criança demonstra interesse e capacidade para
conduzir por conta própria tarefas da vida cotidiana, seus familiares a mandam,
sem instruções, fazer por conta própria. Assim, a autonomia é produto do
empenho da criança em aprender, devendo os pais atuar incentivando e
garantindo a imersão da criança nos espaços variados, seja o roçado, a
caiçumada, a casa ou a floresta.
Na escola, os professores também não oferecem conteúdos para serem
absorvidos simplesmente pelas crianças. Tratam de mediar o seu processo de
“leitura do mundo”, como dizia Paulo Freire (2005), testando suas habilidades e
conhecimentos e introduzindo a escrita e a leitura a partir daquilo que rodeia a
criança. A rotina escolar se produz desta forma: o professor inicia a aula
escrevendo no quadro uma atividade, um exercício, a ser realizado quase
sempre individualmente pela criança. Depois, os alunos levam os cadernos até
a mesa do professor, que avalia assim a capacidade da criança de desenvolver
o que lhe foi solicitado, ou corrige no quadro, com pouca participação dos
estudantes. Algumas vezes, os alunos são convocados a compartilhar o que
escreveram para a atividade, mas nunca são repreendidos pelo professor pela
leitura inaudível. Especialmente nos primeiros anos do ensino fundamental, as
crianças são estimuladas a desenhar, a partir da orientação do professor, o que
fazem com seus pais e a vida na comunidade. As atividades para casa, quando

48
Isaac e Fátima, durante meu trabalho de campo, não atuavam mais como professores: ele era, durante
as principais etapas de minha pesquisa, diretor da escola, e ela coordenadora pedagógica. Quando
retornei em 2017, Isaac e Fátima haviam se ausentado da comunidade para que Isaac assumisse o cargo
de prefeito do município de Marechal Thaumaturgo.

158
existem para os mais velhos, costumam basear-se no registro, pelo aluno, de
conhecimentos de seus familiares: histórias para serem buscadas com os avós,
plantas que a família cultiva, o que fizeram no final de semana. Assim, a escola
é um teste da vida em comunidade, um observatório das famílias, uma produção
contínua dos laços que unem todas as parentelas a partir das crianças que se
reúnem na escola. Daí emergem, do empenho da criança no universo letrado e
na disposição para atuar para a comunidade, aquelas que futuramente atuarão
como professores, agentes de saúde, agentes agroflorestais ou lideranças.
Diferentemente do processo que acompanha a escolarização em muitas
aldeias indígenas, onde a escola é vista pelas famílias como ponte para o
trabalho na cidade, entre os Ashaninka, como afirmou para mim Wiko, barqueiro
da escola, “as crianças aprendem na comunidade para trabalhar na
comunidade”. Komãyari analisa assim a escolarização para as crianças e jovens
no rio Amônia:

É uma comparação que eu faço: uma escolinha de futebol,


um timezinho que vai começar a formar uma equipe, ele vai
treinar, vai aprender, conhecer as regras e até mesmo ter
habilidade no futebol, na bola. Aí depois ele vai aperfeiçoar,
mas não são todos desse time, os que estão treinando, não é
todo mundo que vai aprender, ou seja, não é todo mundo que
vai ter a mesma habilidade, o mesmo desenvolvimento. Vão
ter diferenças. Um vai se interessar mais, um que tem mais
habilidade, pode se interessar em jogar lá fora. Com a escola
é a mesma coisa: ela leva um grupo de pessoas, comparando
com a turma de alunos em sala de aula, todos os alunos,
vamos dizer que tem uns 50 alunos numa sala. Esses 50
alunos não vão todos se formar, outros vão ficar no meio do
caminho e o outro vai terminar o ensino fundamental. Aí vai
diminuindo. Pode ser que todo mundo termine o ensino
fundamental, mas daí depois no ensino médio vai diminuir,
outros vão fazer outras atividades, podem se casar, construir
família e não se interessar mais por estudar. Aí depois chega
o momento de terminar o ensino médio e depois chega fazer
faculdade. Esses que terminaram o médio, uns poucos vão
fazer faculdade. Então o conhecimento é assim 49 (Komãyari,
entrevista, 2015).

49
É importante notar que hoje praticamente todas as crianças Ashaninka que vivem no rio Amônia
frequentam a escola. Um dos motivos é a chegada do Programa Bolsa Família, que condiciona o
recebimento do benefício à algumas condicionantes, entre elas a frequência escolar. No capítulo II da
tese apresento de forma breve a adoção das famílias ao Programa e seus impactos.

159
Komãyari, certo dia, me contava da dificuldade das crianças com a escrita
e a leitura, e o pouco interesse que por vezes demonstravam por essas
linguagens. Eu também percebia que a escrita e a leitura pareciam estar
reduzidas ao espaço da escola, e no máximo a algumas interações na cidade, e
que até onde eu via, não ganhava sentido no dia a dia das crianças. Ele então
sugeriu que os professores deveriam pensar em ações para despertar a
curiosidade das crianças, como cartazes e placas em lugares importantes da
aldeia, como a cooperativa ou um dos açudes. A preocupação do professor
também era referente a necessidade de fazer os textos produzidos na escola,
pelos alunos, circularem pela comunidade, uma vez que a escrita estava
confinada ao seu uso no espaço escolar. Komãyari então me contou uma história
sobre uma viagem que havia feito alguns anos antes à Bolívia. Disse-me que
uma vez almoçava num restaurante quando um grupo de músicos entrou e
depois de tocar algumas canções, passou um chapéu para recolher dinheiro e
saiu. Ninguém se incomodou e tudo permaneceu do mesmo jeito, contou. Sua
conclusão era a de que se isso acontecesse numa cidade no Acre, ia ser
diferente, as pessoas não estão acostumadas. Já lá, na Bolívia, disse ele, “é a
cultura deles”. Komãyari disse que por isso a escrita não se espalhava pela
comunidade, “não é nossa cultura”. Para fazer sentido e as crianças aprenderem
de fato a ler e a escrever, precisava virar parte da cultura. E era isso que ele
queria incentivar através das ideias que compartilhava comigo. É preciso criar
uma cultura da escrita, defendia o professor, porque esta é a forma de
comunicação dos brancos, dos documentos, dos projetos. Em outra de nossas
muitas conversas, Komãyari me disse que antes da escola era difícil para eles
comunicarem-se com “autoridades”. “Até mesmo com o exército, com a polícia,
com a Funai, a gente não tinha essa possibilidade, nem oportunidade de a gente
chegar. Então eu acho que a escola é uma porta, é uma ponte, pra gente chegar
onde a gente quer chegar”, definiu meu interlocutor. Essa cultura escrita, de
extrema importância, deve se manter sob certo controle, e seu domínio não seria
compartilhado homogeneamente, mas entre aqueles que se especializassem,
como na analogia da escolinha de futebol. A maioria dos moradores do rio
Amônia, no entanto, está “focada na parte tradicional”:

160
Eu acredito que não é todo mundo, não são todos os alunos
da aldeia Apiwtxa, que vão se formar, não vão todos os alunos
ser liderança, não vão todos ser doutores ou responsáveis
pela comunidade, só alguns deles. Sabe por que? Porque nós
ainda não temos essa cultura de fora, essa cultura de ser,
vamos dizer assim, política, de conquistar um espaço, se
individualizar. Eu analiso que os Ashaninka, esses alunos,
talvez a quinta geração vá chegar a esse nível, mas nesse
momento, ainda é difícil. Principalmente as mulheres, ainda
não tem isso. Está focada muito na parte cultural, na parte
tradicional. Ela cuida do roçado, da família, da casa, não vai
se interessar de sair para participar de alguns eventos lá fora.
Mas nós ashaninka, se a gente participa de um evento, de
uma formação, a gente vai como se fosse obrigado a gente ir,
não porque a gente quer. Os professores, as formações, eles
são obrigados a fazer, porque é uma demanda da
comunidade. É como se fosse um compromisso da
comunidade (Komãyari, entrevista, 2015).

Tenho como hipótese que para os Ashaninka a cultura escrita é vista


como uma tecnologia que pode produzir uma nova cultura sem obliterar a
“tradicional”. Isto porque a escrita não é pensada como a fonte de conhecimentos
específicos dos brancos, ainda que seja seu veículo. Como me contou Aricêmio:

Estava tudo anotado quando Deus50 foi para o céu. Vieram os


espanhóis para a tentar matar Deus. (..) Deus estava lá em
cima já. Estava anotado num papel a sabedoria de Deus e aí
os espanhóis tomaram esse papel. Por isso o branco hoje
sabe escrever, fazer essas coisas, porque Deus deixou
primeiro. Meu vovô me contou assim. Ele não viu, mas ele
escutou assim (entrevista, 2015).

Pimenta registrou com mais detalhes a narração, pelo mesmo Aricêmio,


deste mito, que conta como um papel com as instruções escritas sobre os mais
diferentes modos de fazer as coisas, deixado por Pawa a Inka, foi roubado pelos
brancos, denunciando o caráter a-social do comportamento dos brancos, que
subtraíram dos Ashaninka aquilo que havia sido destinado a eles, utilizando
desse evento para adquirir conhecimentos poderosos e tornar os verdadeiros
donos dependentes deles, apropriando-se daquilo que era originalmente desses
índios. Na versão do mito narrada por Aricêmio e recolhida por Pimenta (2002):

50
Os Ashaninka, embora não tenham lidado com a atuação de missionários no Amônia, conhecem a
atuação dessas organizações no Peru. Muitos deles traduzem Pawa por Deus.

161
Primeiro, Pawa estava pensando onde ele vai, se vai ficar
para cá, em nossa Terra, se vai viver no céu. Ele estava
pensando, estudando. Aí, ele pensou: ‘Eu não vou deixar
os meus filhos assim. Tenho que ensinar tudo para eles,
para saber fazer canoa, fazer motor, para mulher fazer
kushma, fiar algodão...’ Ele estava ensinando tudinho.
Todas as coisas estavam dentro da cabeça dele. Deus
estava estudando tudo, tudo, tudo (...). Ele sabia como
fazer flecha, como fazer remo pra poder remar. Estava
explicando isso para Inka. Estava tudo anotado no livro
dele: como fazer máquina para a fábrica de roupa, como
fazer motor com gasolina para poder andar, como fazer
avião. Deus sabia fazer tudo. Ele anotava tudo assim num
papel. Aí quando wiracotxa [branco] chegou, ele pegou o
papel que estava anotado, escrito, pegou todinho (...). Foi
o branco que tomou. Pawa deixou para o Inka ensinar nós
e ele [Inka] misturou com o branco e o branco, ele pegou
esse papel de Deus. Estava tudo anotado: para fazer avião,
para fazer terçado, para fazer panela, fazer prato, fazer
espingarda, fazer qualquer coisa. Agora o branco sabe
fazer porque ele pegou o livro de Deus (...). Por isso,
branco, ele tem fábrica, tem tudo. Deus, ele pensava deixar
isso para Kamparia [Ashaninka], para saber fazer tudo:
fazer uma lata, fazer uma faca, um motor (...). Agora,
Ashaninka não pode fazer. Ele não sabe porque ele não
aprendeu, porque não sabia nem ler. O branco era mais
sabido, ele sabia ler e escrever. Kamparia [os Ashaninka]
não sabia nada. Ele só sabia fazer canoa a remo e varejar,
caçar no mato, matar qualquer bicho (...). Branco, ele tem
mercadoria porque ele roubou de Deus (p.360).

O fato de que eram os brancos os que sabiam ler o papel, aliado ao seu
modo de ser sovina e moralmente negativo, fez com que pudessem aprender as
instruções que vinham de Deus. Assim, através da escrita e do papel, foi possível
aos brancos incorporar conhecimentos poderosos. Nas técnicas da escrita e da
leitura hoje, os Ashaninka buscam acessar aquilo que foi deixado para eles, mas
tomado pelos brancos. Este episódio do roubo do conhecimento, de acordo com
Pimenta (2002: 361), é para os Ashaninka a razão de sua dependência
econômica em relação aos brancos. Através da escola e da apreensão do
universo do letramento, eles buscam hoje, avalia Pimenta (Id.), reverter essa
situação.

162
4.6 - A pesquisa, a escola e a comunidade
Refletindo sobre sua própria experiência na Licenciatura Intercultural
Indígena (na Universidade Federal do Acre), Fátima me dizia que elaborou ali
um trabalho que buscava fortalecer os conhecimentos e práticas de roçado. Ela
desenvolveu uma pesquisa, quando trabalhava como professora, para o
Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade sobre a variedade de batatas
cultivadas pelos Ashaninka e, numa conversa, sugeriu que além dos roçados,
era possível através da escola fortalecer ou reavivar outros conhecimentos
tradicionais. Ela explicou:

O que está sendo menos trabalhado [pelas famílias] é a parte


de artesanato e da medicina. Se a escola trabalhar isso, as
pessoas vão ficar mais interessadas e o conhecimento vai se
multiplicar, indo para outras famílias. Quando um filho
conhece, ele já quer levar pra plantar na família dele. Eu digo
isso porque quando nós fomos fazer a pesquisa sobre as
batatas nos roçados, sempre alguém dizia “ah, lá em casa eu
não tenho esse tipo de batata, então eu vou levar pra plantar”.
No ano seguinte os roçados estavam todos cheios de batatas,
tivemos uma variedade grande de batatas. O mesmo caso
poderia ser o da medicina. Se levarmos um velho ou uma
mulher para uma turma de alunos, daí os alunos com certeza
vão se interessar e levar pra plantar perto, no roçado ou em
casa, onde for melhor pra plantar.

As batatas são importantes para os Ashaninka não apenas na


alimentação, mas também na produção da caiçuma. Cada tipo de batata doce
faz uma bebida diferente, que varia na coloração e no sabor. Diagnosticando que
os roçados estavam se empobrecendo em qualidades de batata, a pesquisa da
professora pretendia fazer um levantamento das variedades cultivadas e dos
possíveis motivos para a sua diminuição. Visitando, junto aos alunos, as
mulheres nas casas durante o processo de sua pesquisa acadêmica, os
procedimentos “tradicionais” relacionados à agricultura, como os intercâmbios
de mudas ou sementes, passaram a operar e, assim, fazer aparecer uma maior
variedade de batatas.

A análise de Fátima me parece oferecer uma imagem particularmente fértil


para pensar a educação escolar dos Ashaninka. Numa reunião com os

163
professores para discutir o lugar da pesquisa nas práticas escolares, cerca de
um ano depois de minha conversa com a professora, ficou explícito como na
operação intelectual narrada por Fátima, estava um princípio central operante na
relação dos Ashaninka com a escola, que buscam nela um meio de valorizar os
conhecimentos tradicionais sem escolarizá-los. Os professores Ashaninka
disseram-me, naquele momento, que existem dois tipos de pesquisa: a
tradicional e a acadêmica. A segunda, explicaram-se é aquela com um método
pré-definido e o uso da escrita. A primeira, a tradicional, é fundada na oralidade
e na produção de relações de intercâmbio de saberes diversos: plantas, músicas,
mitos. Nesse caso, trata-se da pesquisa feita através de viagens a parentes em
outras aldeias, na relação de confiança que se desenvolve entre alguém que
busca aprender e aquele que ensina, de uma neta que se senta ao lado da avó
para observar como se tece uma cushma. Na escola, a questão era de fazer a
pesquisa acadêmica aliada à produção de contextos para a pesquisa tradicional.
Mas para produzir esses contextos, é necessário, na visão dos professores, que
a escola seja capaz de funcionar como um observatório das dinâmicas da
comunidade a partir das famílias que a compõem. Os professores são aliados
das lideranças no sentido de apreender o mundo de fora, mas também de
apreender um mundo de dentro, de encontrar os movimentos e relações que o
constituem, de apontar problemas e pautar com os demais moradores suas
possíveis soluções.
Malu Ochôa, que trabalha na CPI e atuou por muitos anos no programa
“Uma Experiência de Autoria”, explicou-me que, quando, em 2000, formou-se a
turma de magistério indígena e se articulava com o Estado a responsabilização
pela educação escolar indígena no Acre, findando a parceria - através de um
convênio -, que garantia a gestão da formação de professores indígenas CPI, o
setor de educação da CPI elaborou uma reflexão sobre o perfil dos professores
que haviam concluído os cursos e chegou à seguinte conclusão:

A gente viu que muitos que passaram pelos cursos da CPI


haviam se tornado representantes, lideranças, começaram a
dialogar com as políticas públicas, muitos deles começaram a
ser representantes nas associações indígenas. Então a gente
começou a perceber que tinha também esse professor
mesmo de escola, e tinha professor que tinha mais uma
tendência para a pesquisa e sistematização de

164
conhecimentos para elaborar materiais didáticos. O outro
perfil era esse que eu falei, do professor articulador, com
papel político. O professor mais pedagógico começava a
pensar os PPPs [Projetos Político-Pedagógicos] das escolas,
com essa proposta de levar em conta as escolas
diferenciadas, a escola kaxinawa, a escola ashaninka, de ser
indígena, mas respeitando as especificidades de cada povo,
de cada terra indígena. Tinha o que estava na sala de aula,
mas tinha muito o perfil de buscar os conhecimentos junto aos
velhos de sua comunidade e, também, buscava em
documentos sobre a terra, principalmente documentos como
os laudos antropológicos do processo de demarcação de
terra. E na articulação política, é até por isso que a OPIAC
surge, atuava o professor que estava na sala de aula, que
também trabalhava com pesquisa, mas que acompanhava
principalmente as políticas nessa fase de implementação,
acompanhava o trabalho das secretarias de educação
também (Malu, CPI, entrevista em 2015).

No entanto, como se pode notar na fala de Malu, esses três papeis -


professor “de sala de aula”, pesquisador e mediador político se articulavam, mas
não estavam igualmente distribuídos na ação desses professores. É sua
conjunção e relação que promove a educação diferenciada, respeitando-se os
interesses e particularidades. Após a incorporação, como política pública, da
educação diferenciada como modelo para a política oficial, a formação dos
professores indígenas pautou-se, oficialmente, na promoção dessas três
dimensões: política, pedagógica e da pesquisa. O professor indígena foi forjado,
na legislação e nos documentos de apoio, como central para a produção de
escolas “verdadeiramente indígenas”. Num documento, lançado em 2002 pelo
MEC, o Referencial para a Formação de Professores Indígenas, desenha-se um
profissional que deve apresentar condensados nele mesmo uma série de papeis
e habilidades (Grupioni, 2013: 74):

Espera-se, entre outras competências, que o professor


indígena seja um profundo conhecedor da história e das
práticas culturais de seu grupo; que seja capaz de pesquisar
e sistematizar conhecimentos, que tenha interesse e
conhecimento por sua língua materna, de modo a
compreender sua estrutura e gerar materiais para o seu
estudo em sala de aula; que exerça o papel de mediador e
articulador de informações entre sua comunidade, a escola, e
a sociedade envolvente; que seja capaz de propor uma
organização curricular que oriente o trabalho a ser produzido

165
na escola, sequenciando conhecimentos e habilidades que
seus alunos irão desenvolver (2013: 74).

O problema, no entanto, é a criação de meios para efetuar uma formação


que de fato promova as condições para que o professor indígena construa, junto
com sua comunidade, as possibilidades de ação necessárias. Sobre a pesquisa
especificamente, as Secretarias de Educação passaram a pauta-la a partir de
outros prismas, pois, como notou Grupioni, estão em jogo diferentes concepções
sobre o que são e como se produzem os conhecimentos indígenas (Id: 75). Ao
invés de pensar a pesquisa como instrumento pedagógico de formação do
professor, como acontecia, por exemplo, na CPI/AC, os gestores nas Secretarias
de Educação concebem a pesquisa como mero registro de conhecimentos já
dados, cabendo ao professor dominar as técnicas da escrita para coloca-los no
papel e transformá-los em material didático (Id). Dessa forma, trabalham com os
conhecimentos indígenas como produtos coletivos. Os professores, assim,
seriam depositários de uma “cultura” homogeneamente distribuída e não
passível de transformações, uma vez que esta é vista como um conjunto de
saberes passados de geração em geração.
Os professores Ashaninka pensam a pesquisa a partir de outros
referenciais e buscam com ela produzir e fazer florescer relações de ensino e
aprendizagem. A pesquisa, na concepção deles, envolve tanto os professores
quanto os alunos.

A escola não tem como ensinar toda a cultura para os alunos.


A escola vai garantir e colocar a frente a importância da
cultura, do que a criança aprende com os pais e com os mais
velhos, pra que ela possa respeitar e ter um conhecimento de
que aquilo é um valor, de que aquilo é a cultura dele, pra que
aquilo venha a trazer o fortalecimento do seu povo e não
derrotar. Buscar proteger dessa forma. E vai proteger como?
Dessa forma ele vai conhecer ler e escrever e vai conseguir
também entender as mensagens que vem, que precisa
mandar. Ter essa noção do mundo lá fora. E a noção daqui
também, pra poder comparar e ver como é o mundo nosso
direito com é.
A escola ela ensina mais uma parte. A maior parte quem
ensina são os pais. Ela tá ensinando a parte da letra. E as
aulas dentro da cultura, como é nossa cultura e como
preservar a nossa cultura pra não acabar, dando exemplo de
outros povos que já acabaram e que hoje poucos povos estão

166
ainda firmes, outros querendo resgatar. É difícil quando você
parte do outro lado pra olhar pro seu, pra você voltar tudo de
novo, aí perde. (Moisés, entrevista 2014).

167
Capítulo V - Experimentando a cultura

Neste capítulo, pretendo discutir a participação da escola nas redes de


produção e circulação de conhecimentos entre os Ashaninka do Rio Amônia.
Trata-se de: compreender como as “rotas de aquisição dos conhecimentos”
(Oliveira e Santos, 2014: 119) atravessam ou são atravessadas pela escola; de
perguntar a respeito da relação entre contextos educativos escolares e os não
escolarizados, e, por último; compreender como, na visão dos professores
ashaninka, a escola pode colaborar para fazer a cultura circular.
Para isso, busco reconstruir, baseando-me nos dados da etnografia junto
aos Ashaninka, o processo de elaboração e realização de um ritual, uma grande
festa que comemora a data da demarcação de seu território e a consequente
expulsão dos madeireiros dessas terras. Nessa reconstrução, objetivo destacar
o envolvimento da escola. Como pretendo explicitar, essa festa, cujo ápice é o
consumo do piyarentsi, bebida fermentada de mandioca e espaço por excelência
do encontro entre diferentes núcleos familiares, cotidianamente separados, gera,
como efeito, a recriação da memória e dos laços de “comunidade”, nova
configuração relacional, espacial e política na história ashaninka. Na descrição
dessa festa, pretendo apontar a emergência da “forma-povo” (dos Santos, 2014:
148), que é articulada ali, produzindo intencionalmente uma diferenciação
coletiva tanto dos brancos, quanto de outros povos indígenas presentes na festa.
Ao mesmo tempo, quero chamar atenção para as diferentes expectativas e
percepções da “cultura” ashaninka nesse contexto.
Para situar a proposta desse capítulo, pretendo, de início, apresentar uma
discussão a respeito dos encontros entre a noção de cultura formulada no campo
da antropologia e a cultura tal como é falada e mobilizada pelos indígenas e seus
parceiros no campo das relações interétnicas.

5.1 - Usos e sentidos da “cultura”


A cultura, como conceito caro à antropologia, foi dotado de diferentes
sentidos na história da disciplina. Lévi-Strauss, no paradigmático ensaio “Raça
e História” sugere que a diversidade cultural não é função do isolamento de
unidades fechadas – sociedades, mas das aberturas e vizinhanças que o
encontro com o Outro possibilita. A variação é produto de trocas que aproximam

168
culturas, mas principalmente das transformações que são ativadas para que uns
e outros se diferenciem a partir do estabelecimento de uma relação.
Fato é que por muito tempo as etnografias decretaram a morte ou o
processo de adoecimento das culturas indígenas por ação da sociedade
dominante. Diversos antropólogos decretaram o assassinato, por etnocídio ou
genocídio, dos povos com quem trabalhavam ou dos índios em geral. O Estado
brasileiro, pelo menos até 1988, implementou como política oficial a “integração”
e a “civilização” dos índios, com o intuito de forjar um estado-nação com uma
língua única e valores “nacionais”. O processo de atração e “pacificação” dos
povos indígenas, veiculado de 1910 a 1967 pelo SPI e continuado até o final da
década de 1980 pela Funai era anunciado como uma ação benevolente que
auxiliava os pobres selvagens a se elevarem em direção ao futuro inegociável
da assimilação cultural e da incorporação de um modo de ser “civilizado”,
especialmente através do trabalho e da escolarização.
Os antropólogos brasileiros, como testemunhas históricas, denunciaram
as políticas etnocidas, mas acreditavam igualmente na sua conclusão profética
– os índios eram ainda índios, mas haveriam de deixar de sê-lo. Aculturação,
transfiguração étnica, caboclização, enfim, foram algumas das leituras desse
processo.
Especialmente na década de 1980, um movimento indígena de nível
nacional se constituiu em torno das discussões sobre um novo texto
constitucional. Através da campanha “Povos Indígenas na Constituinte”,
promovida pela UNI (União das Nações Indígenas) e por várias organizações de
apoio aos índios, concretizou-se uma das maiores vitórias desse momento
político: a abolição, no texto legal, do vocabulário da transitoriedade cultural e da
aculturação (Grupioni, 2008). Na primeira versão escrita, os direitos garantidos
pela nova Constituição seriam restritivos, retirando como tributários deles os
indígenas considerados “em elevado estágio de aculturação”. Essa manobra
para excluir, como sujeitos de direito, os povos indígenas já em algum grau de
contato permanente com a chamada “sociedade nacional”, foi encerrada com a
aprovação de uma emenda proposta pela UNI, que terminou por retirar tanto o
poder de “tutor” do Estado (exercido através da Funai) quanto o seu poder de
determinar o que é ser índio, ou ainda, quem deve ser considerado índio.

169
O texto constitucional anuncia como direito, além da demarcação das
terras, o reconhecimento e possibilidade da continuidade das diferenças
indígenas que são manifestadas (de acordo com o texto legal), nas suas
“línguas, costumes e tradições”. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica, tão presente
nesse projeto colonial de transformação dos índios, passou por uma mudança
substancial com o Concílio Vaticano II e a “teologia da enculturação” que passou
a orientar sua atuação no sentido da manutenção das “culturas” indígenas.
Na antropologia, por outro lado, começava a se desenhar, desde os anos
1980, com a crítica pós-moderna e os estudos feministas, uma crítica ao conceito
de cultura como modelo de identidade diacrítica, como correspondente a uma
categoria coletiva e, principalmente, como um constructo frágil e em vias de
desaparecimento como variedade, caminhando para uma homogeneização da
cultura ocidental, dominante. O texto de Sahlins (1997), que se ergue contra o
que o autor nomeia de “pessimismo sentimental” da antropologia, sistematiza,
com ricas ilustrações etnográficas o debate em curso. Trata-se de uma
concepção mais dinâmica de cultura, que aponta para a complexidade de seus
processos e efeitos. Lembremos do texto “Raça e História” de Lévi-Strauss
(1993b), que sugere que a diversidade das culturas é consequência de seus
contatos mais do que seus afastamentos no tempo e no espaço. Essa ideia pode
potencializar aquilo que Sahlins identifica: as situações de contato, mesmo as de
tipo colonial, podem favorecer o florescimento de dinâmicas culturais, ao invés
de levar à supressão das diferenças. Assim, desde a década de 1980, a
antropologia e, em seu meio, a etnologia das terras baixas, vem buscando
combater a tese da transitoriedade cultural, que depois de ser derrubada na
legislação oficial, continua a assombrar o pensamento, mas agora enunciado por
um conjunto de sujeitos de quem não se esperava os usos tão “ultrapassados”:
os próprios índios passam a defender a ideia de cultura. A anunciação do fim
dos povos indígenas, felizmente, não se concretizou, e hoje, no lugar do discurso
da morte das culturas, trata-se da “revitalização” das mesmas, como política dos
índios e como política para os índios (Carneiro da Cunha, 2014).
No entanto, como alerta a antropologia, transformar a cultura em
identidade ou em um conjunto composto por um acervo pronto, no qual nada se
acrescenta e nada se cria, pode promover uma desvitalização dos processos de
produção e circulação de conhecimentos, para os quais os conceitos ocidentais

170
de propriedade individual ou mesmo de propriedade coletiva não dão conta
Carneiro da Cunha, 2009). Entre a imagem do espelho e a inversão dela,
escapam outras possibilidades, que as etnografias podem fazer aparecer.
Roy Wagner (2010) radicaliza o grande divisor nós e eles, que foi testado
de diversas formas na história da antropologia – primitivos e civilizados;
sociedades orais e sociedades escritas; pensamento selvagem e pensamento
científico, para referência a alguns modelos, mas faz isso mantendo-se no entre,
na relação. No pensamento de Wagner, a cultura é um fenômeno relacional e
sua invenção é um processo criativo, que “ocorre de forma objetiva, por meio de
observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia” (2010:
30). O antropólogo é por excelência, para Wagner, um inventor de culturas: a do
outro e da sua própria. Para compreender uma variedade do fenômeno humano
diferente da sua, ele deve fazer aparecer, isto é, tornar visível aquilo que é tido
como dado, como auto evidente, sua própria cultura (Id.:31). Só depois de
produzir inventivamente para si uma cultura, o antropólogo pode experimentar,
através de “extensões analógicas” (Id: 31), a cultura do outro. Para que a cultura
“inventada” pelo antropólogo para as pessoas com as quais ele estudou, faça
sentido para seus leitores, essa sua invenção deve ser de modo a ter
consistência e sentido dentro do que se concebe como “cultura”, produto
conceitual de sua sociedade, de seu “estilo de entendimento”.
Se “o estudo da cultura é na verdade a nossa cultura” (Id.:46), a
antropologia consiste na tarefa paradoxal de “imaginar uma cultura para pessoas
que não a concebem para si mesmas” (Id: 62). A questão que quero discutir a
partir disso é: o que acontece quando essas pessoas passam a imaginar um
conceito de cultura, para si e para os outros? Elas imaginam da mesma forma
que nós? E o que se passa no entre, na maneira como concebem a relação entre
essas invenções?
Viveiros de Castro (2002) sugere que o que deve ser intencionalmente
apreendido no contexto etnográfico não é exatamente o conjunto de relações
mobilizada por uma dada sociedade, mas o que pode ser uma relação. Neste
trabalho, procuro construir possibilidades para refletir sobre como, para os
Ashaninka, a escola pode ser um modo de relação, uma relação que inventa
precisamente um interior e um exterior para uma “cultura”. Ou, de outra forma,
trata-se de traçar elementos para pensar como os Ashaninka se relacionam

171
através da escola e como pensam sobre eles mesmos e sobre os brancos a
partir da escola.
Para isso, voltemos a Wagner. Minha hipótese é a de que os professores
se forjam como antropólogos, no sentido wagneriano, quando se tornam aqueles
que enunciam a “cultura” se fazendo mediadores entre eles e os brancos,
assumindo a premissa de que “toda compreensão de uma outra cultura é um
experimento com [sua] própria cultura” (p.41). A escola é o laboratório desse
experimento.

5.2 - As “políticas culturais” e os conhecimentos indígenas


Os sistemas de produção e circulação de conhecimentos ameríndios
devem ser observados se buscamos compreender o que são e como funcionam
os processos educativos vividos entre os povos indígenas. Uma das questões
centrais para tratar dessa circulação de saberes é a compreensão de que os
“conhecimentos tradicionais” não são necessariamente coletivos, ou seja,
compartilhados pela totalidade dos membros de uma dada sociedade (Carneiro
da Cunha, 2009). Nesses sistemas de transmissão não há separação entre o
conteúdo dos conhecimentos e os seus contextos e formas de circulação
(Carneiro da Cunha, 2014: 14). Para ilustrar essa ideia, Jackson (1995)
descreve, a partir dos dados de sua pesquisa, as percepções dos indígenas
Tukano que vivem na região do Vaupés colombiano, a respeito de um projeto
que havia sido promovido ali. O projeto, uma “escola de xamãs”, era fruto das
propostas bem-intencionadas, porém equivocadas, de funcionários públicos e de
um antropólogo, e baseava-se na constatação de que o ofício de xamã tinha
cada vez menos apelo entre os jovens. O curso, proposto num formato
escolarizado, rendeu interpretações e percepções diversas, mas pode-se
concluir, não deu certo. Isso porque as relações entre um xamã e seu neófito
tem suas formas adequadas e baseadas na construção de confiança, muitas
vezes dependendo mesmo da existência de laços de parentesco; e, também, por
uma questão essencial em nossa discussão: a aprendizagem xamânica envolve
transformações corporais, efeito das longas dietas, manipulação de plantas,
interdições sexuais, etc. Assim, conclui-se, são saberes que, se escolarizados,
perdem suas dinâmicas próprias, porque deslocados de seus contextos.
Contexto, conhecedor e conhecimento são inseparáveis.

172
Sobre os Ashaninka, Lenaerts (2011) escreveu a respeito da dimensão
relacional dos conhecimentos indígenas sobre saúde, apresentando outro
projeto bem-intencionado que não alcançou os resultados esperados.
Trabalhadores do Ministério da Saúde, preocupados em fortalecer a medicina
tradicional ashaninka no Gran Pajonal (Peru), construíram uma horta medicinal
e “capacitaram” uma respeitada curandeira, no ofício de cuidar da horta e
orientar os moradores. Essa mulher, antes procurada por suas habilidades com
as plantas, perdeu qualquer prestígio quando seus processos deixaram de ter
eficácia, isto é, de produzir os efeitos relacionais esperados. Isto porque a mulher
havia adotado como sistema de entendimento aquele em que a cura se dá pela
ação de uma substância sob um corpo abstrato, sistema apreendido no curso de
capacitação, e de base diferente do sistema ashaninka.
Como sugere Coelho de Sousa:

(...) em regimes em que o conhecimento é demonstrado


nas pessoas, na pessoa dos conhecedores, assim como
nas pessoas que eles conhecem, o desafio crítico não é a
preservação de conhecimentos eventualmente ‘passados
adiante’, mas a sua continuação nas pessoas, enquanto
efeitos perceptíveis em corpos que conhecem e são
conhecidos (efeitos em/ de suas ‘relações’) (2014:198).

A escola é, por excelência, uma instituição formatadora, que trata da


transmissão de um conjunto de conhecimentos considerados “universais” e
modos de ação propagados através de práticas disciplinares. Como espaço
exclusivo de instrução das crianças, em oposição ao espaço do trabalho adulto,
etapa posterior ao projeto de escolarização da infância, o ambiente escolar se
pretende como “o” espaço legítimo do saber, ou como meio para moldar
“cidadãos”. Em diversas aldeias indígenas, foi esse o modelo de escola que
chegou com o SPI (Collet, 2006) ou com os internatos missionários (Luciano,
2013). No caso Ashaninka, entretanto, a escola chega já “diferenciada”, como
busquei apresentar no capítulo IV. Para eles, especialmente para os professores
e lideranças, uma das questões importantes colocadas para a escola em sua
relação com a comunidade, é a de buscar com a escola dar continuidade aos
movimentos e modos de circulação dos conhecimentos ditos tradicionais, no
contexto atual de relação com os brancos, sem escolarizá-los.

173
Essa questão foi explorada por Isaac Piyãko, que, numa entrevista em
2014, me disse:

Mesmo que tenha aula, a gente para e prioriza a reunião


porque ela é um espaço muito importante. É lá que a gente
decide: como as crianças estão participando da escola,
como elas estão participando da cultura, como que os pais
estão... É uma coisa muito forte da cultura ashaninka, mas
a gente vê também se perdendo algumas coisas nesse
sentido. A gente vê que a população vai crescendo e vão
criando mais resistência de ouvir seus pais. A gente está
estudando também uma forma de não prejudicar essas
crianças, mas garantir o espaço além da escola para
que elas possam também se desenvolver. E a gente
tinha até colocado que seria importante focar não só
na escola, mas em outros espaços de ensinamento. É
[através de] uma viagem para a praia para acampar, mas
que essa viagem não seja [feita pela] escola, que os pais
fortaleçam seus conhecimentos para transmitir nesses
momentos.

Para os Ashaninka, de acordo com as falas de seus moradores, há uma


separação, hoje, entre os conhecimentos que são coletivizáveis e os que são
exclusivos para especialistas. Entre os primeiros, está o artesanato, tanto por ser
considerado um elemento que os diferencia imediatamente de outros povos
indígenas (os Ashaninka consideram diversos de seus artefatos como
exclusivos, como o chapéu, a cushma e o txoxki, longo colar de sementes
utilizado pelos homens), quanto por ser fonte de obtenção de mercadorias
através da cooperativa da aldeia. O uso de algumas plantas específicas, para o
tratamento de picadas de cobra ou inflamações, ou o respeito a dietas e formas
de prevenção de doenças são considerados também conhecimentos “que toda
família tem que ter”. Isso não significa que esses últimos possam ser ensinados
no espaço da escola. No entanto, como pretendo descrever, são considerados
saberes que a escola deve promover e valorizar, no sentido de buscar a
vitalidade deles em seus contextos próprios.
Carneiro da Cunha (2009) caracteriza a percepção, alimentada no senso
comum, dos “conhecimentos tradicionais” como acervos acabados, cuja
reprodução não prevê criação ou alteração, apenas a transmissão entre as
gerações de produtos dos saberes dos antepassados, e diverge dessa imagem

174
definindo que: “Nada é mais equivocado: o conhecimento tradicional reside tanto
ou mais nos seus processos de investigação quanto nos acervos já prontos
transmitidos pelas gerações anteriores” (2009: 302). Assim, seguindo a reflexão
dessa autora, conhecimentos de tipo tradicional são conhecimentos que
procedem a partir de outros modos de criatividade, outras epistemologias que se
diferenciam dos protocolos da produção e definição do conhecimento científico.
Um exemplo dos modos de operação dos conhecimentos tradicionais, e de suas
inovações e pesquisas, é dado também por essa autora em outro trabalho
(2012), e é o da agricultura. Igualmente exemplar nesse caso, segundo a
antropóloga, são as possibilidades de relações de troca entre a ciência e os
saberes tradicionais, que devem manter-se distintos nos seus processos, mas
aprender mutuamente com seus resultados sem que haja um sistema de fusão 51.
A partir da descrição dos sistemas agrícolas de povos indígenas rio-negrinos, a
autora sugere que o gosto por coleções e as redes tradicionais de intercâmbio
de sementes e manivas, foi, e mantem-se sendo, capaz de produzir uma
biodiversidade impressionante, onde se faz “convergir cultura e agricultura”.
Mencionei no capítulo IV a pesquisa para a Licenciatura Intercultural
realizada por uma professora da escola Samuel Piyãko. Nela, fez-se operar
justamente os protocolos de produção e circulação de conhecimentos agrícolas:
através da pesquisa a rede de troca de cultivares se atualizou. Esse é, para os
Ashaninka, um modo positivo de atravessamento da cultura pela escola e vice-
versa.
Outro exemplo dessa relação entre a escola e os contextos de criação e
circulação de conhecimentos tradicionais é o das “aulas práticas”. No capítulo IV
descrevi uma das formas através das quais os Ashaninka concebem como “aula
prática”, um dia da semana letiva em que os alunos acompanham integralmente
seus pais nas atividades produtivas. Pretendo apontar agora outro sentido,
utilizado no rio Amônia, para essa expressão, exemplificado a partir da descrição
dos acontecimentos de preparação da festa da demarcação.

51
Para Carneiro da Cunha, a ciência deve proceder em suas relações com os conhecimentos tradicionais
buscando aprender com aquilo que deles resulta, mas sem buscar validar os seus processos a partir de seu
próprio sistema de operações. A antropologia, por outro lado, teria o papel de compreender o funcionamento
dos sistemas tradicionais.

175
5.3 - A preparação da festa
Retornei à Apiwtxa no final de maio de 2015, para mais uma etapa de
minha pesquisa. Logo percebi a expectativa com a chegada de uma data
importante, o aniversário da demarcação de seu território. Na casa da principal
liderança na comunidade naquele momento, que era também quem me recebia
e me acomodava, os dias de preparação para a festa foram embalados por
memórias da luta pela criação da comunidade, da cooperação entre famílias, dos
velhos que se foram desde então.
Isaac, a liderança que me hospedava, teve a ideia de fazer, durante uma
das noites previstas na programação das festividades, uma projeção de fotos do
povo Ashaninka e a exibição de filmes realizados por cineastas da Apiwtxa. Nos
seus álbuns guardados e nos arquivos de computador, me mostrava as pessoas,
lugares, acontecimentos e me contava as histórias que rodeavam as imagens.
Algumas eram fotos antigas, que Isaac havia conseguido em viagens ou por
intermédio de amigos indigenistas, que mostravam, em preto e branco, homens
ashaninka no Peru. Aquelas da história da comunidade, como uma em que o
cacique Antônio Piyãko, Moisés Piyãko e Winko aparecem em primeiro plano
com símbolos da capital brasileira ao fundo, momentos da construção da
conquista do território, são o mote de um tanto de lembranças. Os homens
velhos que já se foram, a infância dos que hoje já são adultos, tudo isso é
mobilizado nessas imagens. Enquanto olhamos as imagens, as crianças da
aldeia se juntam para ver também as histórias contadas ali.
Numa noite, acompanhei Isaac e Fátima até a casa de Seu Antônio e
Dona Piti, chefe da comunidade e sua esposa. Os donos da casa estavam
reunidos com uma de suas filhas e alguns de seus netos, mascando coca ao
redor de uma vela acesa. Sentamo-nos, e então Isaac perguntou a sua mãe por
fotos guardadas, para exibir na festa. Dona Piti encontrou em velho álbum com
fotos de distintos tempos. As fotos e a coca evocaram lembranças, como a de
homens que haviam já falecido. Uma das fotos mostrava um homem conhecido
como Tenente. Na imagem ele estava já bem velho, sentado a beber uma cuia
de caiçuma. Isaac me mostrou a foto e disse que a família de Tenente havia sido
a primeira a chegar ao rio Amônia, e que algum tempo depois veio Samuel, avô
de Isaac. Outra foto mostrava Iran, chefe ashaninka no rio Envira que também já

176
tinha morrido52, também relembrado. Depois foi a vez da foto de Ayo, um antigo
professor que vivia no rio Breu, e que havia morrido afogado anos antes. Ayo
frequentou também os cursos de formação de professores da Comissão Pró-
Índio do Acre, junto de alguns professores do rio Amônia. E a memória dele
passou a servir de suporte para a lembrança de outros velhos do Breu, que,
segundo decretou Dona Piti, “já se foram todos”.
Nesse mesmo contexto, dias depois, Isaac me mostrou uma pasta de
documentos com os marcos da concretização da luta pelo território: os relatórios
da Funai que apresentam o processo de demarcação. Em um deles, a equipe da
Funai que realizava a demarcação física, narrava de modo épico a marcação
dos limites físicos do território: a primeira impressão sobre os Ashaninka “que se
pareciam com padres” por conta das longas túnicas; o cansaço físico, as roupas
que nunca secavam com a umidade da floresta. Todos os homens, me contou
Isaac, foram participar da expedição de demarcação, mas ele ficou junto às
mulheres – que haviam ficado encarregadas de preparar caiçuma para receber
os homens53. No fim de junho, meu interlocutor narrou, quando os homens
retornaram, aconteceu uma grande festa de piyarentsi como celebração. Essa
festa é rememorada no festejo anual do dia 24 de junho.

52
A dissertação de Ioris, realizada no Rio Envira, conta da morte de Iran e das transformações ocorridas
com a morte do chefe, como o abandono da antiga aldeia.
53
Nessa época a maioria das famílias vivia na área do igarapé Amoninha, dentro dos limites da TI de hoje,
mas diferente do lugar em que vivem agora, às margens do rio Amônia. Essa mudança se fez como
estratégia de vigilância territorial poucos anos depois, em (Pimenta, 2002), no sentido de combater e
fiscalizar a entrada de não-indígenas, especialmente madeireiros e caçadores. Essa mudança é um dos
marcos da promoção de uma forma coletiva, comunidade, por meio da ativação de redes de relações entre
todas as diferentes famílias ashaninka

177
Figura 17 Projeção de fotos durante a festa

Esse momento em que a memória da “comunidade” é ativada, é também


contexto de auto-(re)produção ashaninka. A seguir a essa exposição das
experiências contaminadas pela expectativa da festa, passemos às reuniões
comunitárias, nas quais se produziram as mobilizações para a organização não
apenas da festa como evento, mas da comunidade para o acontecimento.
Na minha primeira semana na aldeia naquele ano, duas reuniões
aconteceram na escola. Nas duas, a festa foi pauta, articulada às atividades
escolares. A primeira, no dia 31/05/2015, foi uma reunião dos professores para
discutir a implementação, na escola, de um programa do MEC chamado “Mais
Educação”, que previa a contratação de monitores e materiais, com uma
pequena verba para a sua viabilização. Esse programa é uma estratégia federal
de ampliação da jornada diária nas escolas brasileiras, e foi implementado em
instituições em diversos estados. Nesse programa, existem atividades previstas
para ocupar o tempo em contraturno escolar. O “Mais Educação”, dessa forma,
é uma espécie de contrassenso no caso das escolas indígenas, cujos problemas
identificados por professores e comunidades, não se assenta numa percepção
de que as crianças precisam passar mais tempo na escola. É comum o
entendimento de que um dos perigos potenciais da escola é justamente o de

178
afastar as crianças da vida familiar, universo dos conhecimentos tradicionais. Os
objetivos do MEC, no entanto, não foram simplesmente adotados pelos
Ashaninka. O eixo central do programa 54, a ampliação da jornada escolar
visando escolas com baixo desempenho nas análises para o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), sequer foi mencionado na reunião
escolar sobre o projeto, que foi apresentado por Isaac como um apoio à escola,
“um programa que veio para ajudar o que já estava sendo planejado”, através de
uma verba, para que eles realizassem atividades com os alunos. Nessas
atividades, estariam envolvidos outros sujeitos, não só os professores, mas
monitores, alguns não escolarizados, como irei apresentar.
Isaac, então diretor da escola, e sua esposa Fátima, coordenadora
pedagógica até 2015, eram naquele momento os principais interlocutores da
Apiwtxa com os funcionários da Secretaria de Educação, e com frequência
buscavam informações com pessoas desse órgão. Na citada reunião, Isaac
apresentou o programa “Mais Educação” e um material enviado pelas
Secretarias de Educação (responsáveis no âmbito local pela execução de
programas nacionais), com opções de áreas temáticas para o desenvolvimento
de atividades. Eles, Fátima e Isaac, propuseram quatro modalidades de atividade
para os demais professores: “canteiro sustentável”55, “futebol e jogos”,
“acompanhamento pedagógico” e “artesanato”. Os professores, depois de
escolherem as atividades, sugeriram os monitores para atuar em cada uma
delas. Esses nomes foram posteriormente apresentados como proposta numa
reunião comunitária.
Para o canteiro sustentável, foram selecionados dois professores, Wewito

54
“O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado
pelo Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção
da agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas
escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos macrocampos:
acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura
e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias; investigação no campo das
ciências da natureza e educação econômica. (..) Os territórios do Programa foram definidos inicialmente
para atender, em caráter prioritário, as escolas que apresentam baixo Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB), situadas em capitais e regiões metropolitanas”. (Site do MEC, acesso em
29/07/2018).
55
O canteiro, feito atrás da escola com uma grande aula prática envolvendo alunos, professores e monitores,
na qual parte dos alunos foram tirar a terra adequada num lugar subindo o rio, parte ficou fazendo mudas,
montando a estrutura da horta. No entanto, pouco tempo depois tudo o que havia sido plantado – verduras
como couve e alface, legumes como cenoura e pepino, que praticamente não são consumidos na Apiwtxa,
fora devorado por formigas e roedores.

179
e Enisson, como responsáveis por acompanhar o desenvolvimento das
atividades. Foram propostos como monitores o agente agroflorestal da aldeia,
Waldecir, e mais três jovens escolarizados. Para o futebol, Komãyari e Minari
seriam os tutores, e cinco homens, todos também formados na escola, um deles
agente de saúde. O acompanhamento pedagógico ficou sob responsabilidade
dos professores Komãyari, Fátima, Wewito e Isaac, e apenas Alzelina, esposa
de Wewito, ficou como monitora. Por fim, o artesanato foi dividido em: tambor,
txoshiki (cordão masculino), chapéu, sókari (flauta) e flecha para os meninos;
kitharetsi (cushma) e ashimairetsi (espécie de tipóia de palha) para as meninas.
Essa atividade foi incorporada nas preparações da festa, no sentido de produzir
um corpo coletivo, a comunidade para a celebração. Os artesanatos – sua
confecção através do projeto e o seu uso no dia da festa, eram para “entrar na
cultura”, como disse Isaac nessa reunião, e depois defendido na reunião
comunitária que aconteceu para apresentar o projeto para as famílias e explicar
sua operação.
Não por acaso nessa reunião de professores, às definições dos objetos a
serem confeccionados, das turmas que participariam de cada oficina, dos
monitores e professores responsáveis tanto pela oficina quanto pela coleta de
materiais na mata, seguiu-se como pauta a organização da festa. Fizeram um
levantamento sobre o que precisava ser feito e foram montando um calendário:
a limpeza das áreas comuns da comunidade e a construção de bancos para a
comemoração, quando iriam tirar lenha e preparar a caiçuma para a festa, além
da definição da programação geral.
Alguns dias depois dessa reunião, no dia 03/06/2015, aconteceu a
segunda, convocada pelos professores e conduzida por Isaac, Wewito e
Komãyari, na maior sala de aula da escola, com a presença de numerosas
famílias.
Essa reunião era para discutir, como definiu Isaac, prioritariamente a
preparação da festa e as atividades de artesanato do programa “Mais
Educação”. Komãyari, introduzindo as questões a serem pensadas sobre a festa,
disse que o dia 24/06 “não é só dia de comemorar, mas de saber a história”, e
alertou que “a festa não é só tomar piyaretsi, é para fortalecer a cultura, o social,
e entender a importância do momento”. Isaac orientou que todas as famílias
tinham que ficar bonitas para a festa, “tradicional mesmo”. Claudio, respeitado

180
como “liderança tradicional”, disse que eles tinham mesmo que usar a cushma,
e que se, na comunidade, as pessoas abandonassem a vestimenta, iriam
“acabar igual os Ashaninka de Sawawo”, “só na cachaça” 56. Uma observação
que os professores fizeram na reunião e que eu ouvi deles em outros contextos,
é a de que muitas famílias “não estão repassando aos seus filhos” os
“conhecimentos tradicionais”.
Nessa reunião comunitária, os professores comunicaram quais
artesanatos seriam fabricados – os que seriam inicialmente confeccionados em
casa para serem terminados na escola, como as cushmas, os que seriam
iniciados na escola e finalizados no espaço doméstico, e ainda aqueles que
todos os alunos deveriam preparar em suas casas, com a ajuda das famílias,
mas que também fariam parte da indumentária para a festa.
Os meninos foram separados, segundo critério de idade, para participar
em um dos três espaços onde acontecia a aula prática: uma sala para a
confecção de flechas, outra para o sõkari (um tipo de flauta) e chapéu, e no
terreiro da escola eram feitos os tambores. Para as meninas menores, numa sala
eram feitos os ashimairetsi, uma espécie de tipóia de palha (não utilizada para
carregar crianças), que eu até então nunca tinha visto ser usada na aldeia. Na
maior sala da escola eram feitos os desenhos no kitharetsi (também chamado
de cushma, a vestimenta utlizada pelos Ashaninka).
Para a oficina de sõkari e de chapéu, por exemplo, o chefe da comunidade
e “velho” da aldeia, seu Antônio, foi convidado a ser monitor. Na sala aberta,
Antônio fazia seu trabalho talhando a flauta, enquanto os jovens observavam
silenciosamente as mãos do velho, ou sentavam-se para fazer sua própria flauta,
caso já tivessem a prática. Os professores que haviam ficado responsáveis por
acompanhar essa aula, estavam também sentados confeccionando sõkari ou
seus chapéus. Assim, Antônio ensinava como costuma ensinar seus netos no
esteio de sua casa, porém em outro espaço, o da escola. Os alunos observavam
e reproduziam, sem instruções verbais, como fazem quando observam seus pais
ou avôs.

56
É essencial explicar que minha ignorância a respeito da língua asheninka, que era total nesse momento
da pesquisa (sem que eu nunca tenha de fato dominado a língua), prejudicou o meu entendimento da
complexidade das discussões. O que relatei dessa reunião foi aquilo que havia sido dito em português,
apenas uma simplificação.

181
Figura 18 Aula prática de confecção de flauta

Na oficina de kitharetsi, eram mulheres jovens as que ensinavam as


alunas da escola. Na oficina as meninas deveriam pintar suas cushmas com os
motivos desenhados por uma das mulheres no quadro negro. Apesar de todas
as mulheres ashaninka vestirem a túnica no dia a dia na aldeia, a maioria delas
as usa com o tecido liso, por vezes tingindo o algodão com a casca de uma
árvore. Entre as mulheres da família do chefe, porém, as cushmas costumam
ser desenhadas com motivos elaborados, pintados com barro no tecido tingido,
como se fazia “antigamente”, parte da política de “valorização” da cultura. Essas
túnicas desenhadas são também parte da representação dos ashaninka para
fora da aldeia, tanto para outros povos indígenas como para os “brancos”. No
caso das cushmas, são as famílias “misturadas” que promovem a aprendizagem
e retorno do artesanato “tradicional”, nesse caso da oficina na escola e em outras
ocasiões que pude acompanhar. Isso porque, essa oficina mobilizou, como pude
perceber nos meses seguintes, momentos de preparação das cushmas,
desenhadas com motivos gráficos, nas casas da comunidade, com mães e filhas
reunidas pintando tecidos. Diversas mulheres que eu nunca havia visto usando
a túnica desenhada, estavam, na festa e depois, nos dias comuns na aldeia,
usando seus kitharentsi.

182
Figura 19 Aula prática de pintura de cushma

Durante todo o mês, além das cushmas femininas, as mulheres


trabalhavam em suas casas com o tear preso à cintura para produzir novas
cushmas para seus filhos e maridos, um trabalho árduo que costuma durar mais
de um mês, e que conta com a ajuda das filhas, que aprendem e auxiliam suas
mães. Os homens preparavam seus chapéus, os meninos faziam flechas. Nas
outras duas reuniões que acompanhei antes do evento, discutia-se e organizava-
se a limpeza dos terreiros e espaços coletivos, a construção de novos banheiros,
a colaboração, em sacas de macaxeira, que cada família doaria para a
realização da grande caiçumada no dia 24 e quais mulheres participariam das
etapas de seu preparo. As lideranças ressaltavam que todos deveriam estar bem
arrumados para celebrar a história da comunidade. Um professor lembrava a
importância da data na história da Apiwtxa, dizendo que a memória é a da luta e
da organização do povo Ashaninka para conseguir sua terra
Os preparativos se intensificaram na semana da comemoração. O
calendário de atividades da festa foi fechado, os convidados confirmados e a
preparação do piyaretsi iniciada. Quatro dias antes da festa, os homens
chegavam trazendo os sacos de macaxeira e a lenha. Tudo acontecia no terreiro
da casa de Dona Piti e Seu Antônio. A gamela, que ficava geralmente virada para
baixo, suspensa por dois grandes apoios de madeiras, ao pé de uma mangueira,
183
foi limpa e aprontada para o início do trabalho. Grandes panelas foram trazidas
para a lavagem e o cozimento da macaxeira; os homens abriam buracos na terra
para fazer o fogo e o suporte para as panelas; o AISAN (agente indígena
sanitário) puxava água do poço para o preparo da bebida. Uma grande lona foi
colocada na sombra da mangueira ao lado da gamela e do fogo. Mulheres -
velhas, jovens, e crianças sentaram-se em volta da lona para descascar a
macaxeira que ia sendo despejadas no terreno e depois na lona, esperando para
ir para a panela. Elas riam, conversavam e mantinham um ritmo constante de
trabalho. Quando uma boa parte da macaxeira estava já cozida, outras mulheres
lavavam a macaxeira previamente descascada e iniciavam o cozimento. Aos
poucos as sacas foram diminuindo e a gamela enchendo. Quando o sol estava
forte, por volta de meio dia, as mulheres retornaram para suas casas, deixando
a macaxeira já cozida na gamela, tampada com folhas de bananeira. De tarde,
algumas mulheres voltaram para começar a mascar a macaxeira já cozida.
As mulheres responsáveis por mascar a macaxeira eram todas de uma
mesma família, filhas de Irãtxo e Lethero com exceção de algumas meninas bem
jovens que chegaram para ajudar. Essas mulheres são conhecidas por fazerem
caiçuma boa e com frequência. No processo de produção da caiçuma, articulam-
se a produção masculina e feminina. A macaxeira é colocada na boca junto de
um pedaço de batata-doce. Durante toda a tarde as mulheres ficaram ali,
mascando o tubérculo e misturando o que estava na gamela. Depois cobriram
com grandes folhas de bananeira para aguardar o dia seguinte. O trabalho
continuou dessa vez com menos mulheres participando. Da caiçuma feita para
ser desmanchada (quando se coloca a água) no dia seguinte, diz-se que ela é
doce e fraca. Em dois dias ela já está fermentada e boa. Quatro dias
fermentando, como aconteceu para a festa, são sinal de uma caiçuma azeda e
forte.

184
Figura 20 Mulheres descascando macaxeira para a produção de caiçuma

185
Figura 21 Preparação da caiçuma para a festa

Paralelamente ao preparo do piyaretsi, se desenrolavam as outras


atividades da festa. O grande dia era o dia 24, que amanheceria com o ritual da
caiçuma. Mas a festa teve início no dia 21, quando as competições de futebol e
de arco e flecha aconteceram. As flechas utilizadas pelos meninos, em sua
maioria, haviam sido preparadas na “aula prática” na escola, e terminadas em
casa.
Na manhã seguinte, chegaram três homens Wajãpi que vinham do
Amapá, acompanhados por três jovens não-indígenas (que estagiavam numa
Ong) com quem desenvolviam um projeto, para um intercâmbio. Chegaram
também, acompanhados de uma liderança que mora no município de Marechal
Thaumaturgo, dois irmãos, uma mulher e um homem ashaninka vindos da Selva
Central peruana. Nesse dia aconteceu durante toda a tarde o campeonato de
flechas e o futebol. Times chegaram da cidade de Thaumaturgo para participar
do torneio, e depois de todos serem derrotados por um time da aldeia, voltaram
para o município. À noite aconteceu uma projeção de fotos antigas das famílias
do Rio Amônia e de filmes de um cineasta Ashaninka.
No dia seguinte pela manhã chegou Francisco Piyãko, o mais velho dos

186
filhos de Antônio Piyãko e principal responsável pela articulação dos Ashaninka
na cidade de Cruzeiro do Sul e na manutenção de projetos. Um pouco depois
dele, chegou a equipe de uma grife de roupas carioca que havia feito uma
coleção baseada na “arte ashaninka”, e agora faria filmagens da aldeia para
publicidade. A escola foi preparada para recebê-los, junto da organizadora da
viagem, a coordenadora de uma empresa de “turismo de experiências”,
conforme se apresentou a mim. Eram o dono da marca, um crítico de arte, a
coordenadora de uma ONG ligada à empresa da marca, e vários fotógrafos e
cinegrafistas. Com eles, uma enorme quantidade de alimentos, garrafas de água
mineral e suprimentos.
No mesmo dia, à noite, foi preparado um ritual de kamarãpi (ayahuasca)
no terreiro de Dona Piti e Seu Antônio. A equipe da marca de roupas participou
e gravou partes da cerimônia (imagens que utilizaram posteriormente num vídeo
de divulgação da marca). Os homens wajãpi se juntaram, experimentando pela
primeira vez a bebida amarga. Conduziram o ritual dois filhos do chefe, Benki e
Moisés, que aprenderam com o pajé mais velho da aldeia, Aricêmio, para se
tornarem também xamãs. Além do banco que acompanha o comprimento de um
lado do terreiro, foram colocadas lonas para que os vários participantes se
sentassem. Nesse momento, haviam chegado também outros convidados não-
indígenas, além de indígenas de outras etnias, como dois homens Kuntanawa.
Ainda que poucos homens Ashaninka hoje consumam com regularidade o
kamarãpi, dessa vez alguns, como o próprio chefe da comunidade, o fizeram. A
bebida é tradicionalmente consumida à noite, no terreiro previamente preparado
e limpo. No centro um pequeno "altar" é feito, geralmente em cima de uma lona,
contendo a garrafa da bebida e as folhas de urtiga usadas no ritual. Nesse dia a
lua quase cheia iluminava a noite.
Na continuação dos eventos da festa, uma pescaria coletiva no lago foi
organizada para os convidados da marca de roupas. Subindo o barranco, antes
de chegar ao lago, foi escolhido um terreno. Alguns homens limparam e cortaram
os galhos para criar um espaço para fazer o fogo e cobrir a terra com folhas de
bananeira para que os convidados se sentassem. Os homens foram até o lago
e começaram a pescaria. As mulheres assavam a macaxeira e os peixes que
vinham trazidos pelos homens. Quando a equipe da marca chegou, estava tudo
pronto. As câmeras profissionais disparavam para todos os lados, especialmente

187
para as mulheres acocoradas sob o fogo. O dono da marca e Francisco, a
liderança que organizara sua ida combinavam os últimos arranjos da filmagem
da pescaria. Três barcos saíram mais uma vez pelo lago: um com essa liderança
e o dono da marca, outro com outra liderança e o chefe, um terceiro com
fotógrafos e câmeras. O objetivo, a conversa já anunciava, era filmar juntos a
liderança e o dono da marca de um lado; e a outra liderança vestida
corretamente, de cushma, chapéu, pintura e txoshiki e seu pai, o chefe do outro.
Antes, logo da chegada da equipe, os fotógrafos e câmeras filmavam os vários
barcos no lago e as tarrafas sendo jogadas ao lago. Os Ashaninka do Rio Amônia
são conhecidos por seus projetos de manejo, especialmente de peixes, e vistos
como símbolos do chamado "desenvolvimento sustentável" (recentemente
desenvolvem um projeto patrocinado pelo BNDES, por exemplo, para ações de
reflorestamento e manejo de animais, beneficiando não só a Apiwtxa, mas
também diversas outras comunidades no Alto Juruá). Essas pescarias coletivas,
como pude perceber em mais uma ocasião, são eventos que costumam
acontecer para serem filmados, pois entre os Ashaninka a pesca é uma atividade
que envolve a família nuclear ou no máximo dois ou mais homens com relações
próximas de parentesco.
Nessa tarde, numa das salas da escola, foi organizada uma sessão de
fotos para a grife. Algumas famílias foram chamadas a comparecer, devidamente
preparadas (isto é, corretamente adornados). Os artesanatos da cooperativa
foram levados até o lugar da sessão e expostos para serem o cenário com o qual
os que eram fotografados poderiam interagir. A mulher da família que me recebe
na aldeia usava um relógio e um dos responsáveis pela sessão lhe avisou que
ela poderia mantê-lo, pois eles queriam “mostrar como as coisas eram mesmo”.
Dois jovens foram escolhidos como os modelos principais, como se viu no vídeo
promocional da marca que ficou pronto alguns meses depois. Enquanto eu
assistia o vídeo com uma das famílias, uma jovem criticou o momento em que
são filmados o menino sendo pintado no rosto, com urucum, pela menina, sua
prima: disse que ele não queria, afinal as mulheres não pintam tradicionalmente
os homens, mas a equipe insistiu, argumentando que aquela cena era
importante.
Essa descrição da participação dessa equipe da marca de roupas nos
eventos da comemoração se faz necessária porque percebi de início uma

188
relação de causa e efeito imediata: os Ashaninka se prepararam para receber a
equipe com as oficinas de artesanato da escola, as “tradições” eram produzidas
para o registro da equipe, a “cultura” era um veículo de troca para mais projetos.
Mas o dia da festa, felizmente, complicou o meu raciocínio apressado. Até então,
para mim, todo o esforço de "ficar tradicional" com as oficinas na escola, a
preparação de instrumentos, etc, deveria ser, sobretudo, para fora, ou seja, para
os ilustres convidados e suas câmeras. Mas a presença deles, ainda que tenha
orientado a forma da festa, não pode explicar seus efeitos.

5.4 - Ritual de comunidade

Figura 22 Chegada de famílias para a festa

O ritual que acontece durante a celebração da criação da “comunidade”,


é uma reinvenção, dos rituais de piyarentsi que promoviam as relações de
parentesco, de trocas, de ordem política, etc., entre diferentes grupos
domésticos que viviam distantes. Essa reinvenção ritual inclui no conjunto de
relações ativadas nesse espaço-tempo, os brancos e outros índios. Ao mesmo
tempo, e porque tem como suporte essas relações, os Ashaninka constroem
suas redes com o fora a partir de sua auto-(re)produção como coletividade

189
ashaninka. Não só o ritual propriamente dito, mas também seu processo de
elaboração mobilizam uma memória coletiva que age para o manejo e
continuidade da comunidade, através da afirmação da “forma-povo” (dos Santos,
2014), na relação com os Outros.
Dos Santos (2014) descreve a reinvenção de um ritual entre os Arara de
Rondônia, a partir das transformações em seu contexto – a “volta” da festa do
jacaré inserida no mercado de projetos, e a presença de brancos na sua
realização. De acordo com essa antropóloga, os Arara passaram a fazer a festa
novamente (depois de anos sem que ela tenha acontecido) deliberadamente
para reverter um movimento, identificado por eles, de “virar branco”, definido
como “uma vontade generalizada de viver individual ou separado” (p.152). Ser
Arara, no contexto produzido no ritual, é ao mesmo tempo não ser Gavião, seus
vizinhos de quem procuram se diferenciar, agora diante dos brancos, naquilo
que caracterizam como “apresentação” no ritual. A festa acontece, segundo a
autora, para efetivar um processo de “virar índio” ou, precisamente, “virar Arara”,
assumindo que “somente enquanto Arara as pessoas podem se diferenciar dos
Gavião e apresentar-se para si mesmas e para os brancos” (p.161).
A festa dos Ashaninka, assim como a dos Arara, promove um encontro
entre as famílias, mobilizadas, em ambos os casos, através do consumo de
caiçuma. Assim como os Arara, os Ashaninka “viram Ashaninka”, no sentido de
produzir para si um interior, uma identidade pautada na “cultura”, para relacionar-
se com a alteridade.
Tanto o piyartentsi “tradicional”, aquele sobre o qual falam os Ashaninka
quando se referem a um tempo em que “vivia cada família nos seus cantos”,
quanto no ritual refeito para veicular uma imagem ashaninka para os brancos,
mas também produzir uma auto-imagem, tem como objetivo comum fortalecer
os laços entre as famílias ashaninka. Agora, no entanto, essas relações
englobam uma unidade antes inexistente, a comunidade.
A escola, no caso da Apiwtxa, não “aparece” na festa – afinal não há nada
como apresentações preparadas para as crianças, nem qualquer tipo de
atividade “escolar” em sua programação. A preparação da festa é uma atividade
de responsabilidade da “comunidade”, mas o papel de manejar essa
comunidade e “construir o sentido” da celebração (como disse numa reunião
Komãyari), é da escola e dos professores.

190
Os professores ashaninka parecem estar plenamente conscientes de que,
como sugere Carneiro da Cunha (2014: 17) “exaltar a cultura indígena na escola
é valorizá-la. Mas ensiná-la dentro da escola é um paradoxo”. Por isso tratam de
buscar modos não de ensinar a cultura na escola, mas fazer desse espaço
incorporado nas suas vidas uma via por onde se pode experimentar com
movimentos e velocidades, irradiando forças, bloqueando passagens e abrindo
outros caminhos57.

57
Uma excelente descrição das possibilidades de reativação, através da escola, de conhecimentos
“tradicionais” encontra-se em Weber (2006).

191
Conclusão

Paulo Freire, cuja obra e as experiências que se produziram junto de suas


ideias inspiraram os primeiros projetos “diferenciados” de educação escolar
indígena, empenhou-se em escrever sobre a necessidade de uma “pedagogia
libertadora”. Essa pedagogia, oposta àquela da educação “bancária”, baseia-se
na produção coletiva de uma leitura crítica da realidade, com o objetivo de
produzir conjuntamente uma consciência pragmática das situações de opressão,
que, ao mesmo tempo conduziria a um processo de transformação social (Freire,
2005).
Freire inspirou-se, especialmente no texto da “Pedagogia do Oprimido”,
nos escritos de Frantz Fanon, que tratou, sobretudo, dos efeitos do colonialismo
nos povos colonizados e nos colonizadores, e que participou ativamente, ele
mesmo como oriundo de uma antiga colônia francesa, nas lutas por libertação
no continente africano. Ainda que a obra “Os Condenados da Terra” (2005) seja
aquela de referência para o educador brasileiro, um texto da coletânea “Em
Defesa da Revolução Africana”, intitulado “Racismo e Cultura” (1980), me parece
em especial sintonia com os pressupostos da “Pedagogia do Oprimido”, e de
interesse para as questões levantadas nessa tese.
Para Paulo Freire a fundamentação das relações de dominação é a
desigualdade econômica, e a divisão fundamental é a entre oprimidos e
opressores. A educação, para ele, é um meio de produzir dialeticamente a
superação dessa opressão, cuja síntese deve ser a produção de, não mais
oprimidos e opressores, mas homens em processo de libertação (2005: 38). Para
Fanon (1980), de forma explícita no texto produzido em seus anos na Argélia, a
divisão central é aquela entre colonizador e colonizados, e sua reflexão pretende
construir respostas para três problemas: 1) Como se comporta um povo que
oprime (aquele do colonizador); 2) Como se comporta o colonizado?; 3) Como
pode se dar o processo de libertação do colonizado? – essencialmente as
mesmas questões de Freire.
Para Fanon, o racismo mobilizado pelo povo colonizador é uma parte
aparente de uma estrutura maior de assujeitamento, e corresponde sobretudo a
um fenômeno cultural, específico das sociedades ocidentais. O racismo descrito
aqui é visto como um elemento que se transforma historicamente, e que, não

192
sendo mais viável, após o impacto do holocausto nazista, manter-se à vista como
pautado numa pretensa diferença biológica entre raças humanas, se modifica
para funcionar de modo que seu objeto “já não é o homem particular, mas uma
certa forma de existir” (1969, p.36).
Para esse pensador: “[s]e a cultura é o conjunto dos comportamentos
motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu
semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento
cultural” (p.36) Esse elemento cultural não seria, por isso, característica “natural”
da humanidade, pois “ há culturas com racismo e culturas sem racismo” (p.36).
O colonizador, tendo o racismo como meio, opera a partir da “destruição dos
valores culturais, das modalidades de existência” (p.37), da desvalorização e
desestruturação das práticas, comportamentos, dos valores e modos de estar no
mundo, que são então “ridicularizados, esmagados, esvaziados” (p.37). Depois
desse processo de desvitalização, que mobiliza o colonizador na direção do
colonizado, determina-se “um novo conjunto, imposto, não proposto mas
afirmado, com todo o peso de canhões e de sabres” (p.38).
Como observa Fanon:

No entanto, a implantação do regime colonial não traz consigo


a morte da cultura autóctone. Pelo contrário, a observação
histórica diz-nos que o objetivo procurado é mais uma agonia
continuada do que um desaparecimento total da cultura
preexistente. Esta cultura, outrora viva e aberta ao futuro,
fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela
canga da opressão (p.38).

Um dos modos de extrair a vitalidade de um povo, afirma o autor em


questão, é a mumificação de culturas, a objetivação dos valores e instituições
dos “colonizados” para controle do “colonizador”. É o movimento o que tenta
aprisionar o colonizador. “’Eu os conheço’, ‘eles são assim’, traduzem essa
objetivação levada ao máximo” (p.39). O exotismo seria outra das formas de
simplificação e aprisionamento de culturas e povos, pois: “[p]artindo daí,
nenhuma confrontação cultural pode existir. Por um lado, há uma cultura à qual
se reconhecem qualidades de dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade.
Uma cultura em movimento, em perpétua renovação. Frente a esta, encontram-
se características, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura” (p.39). Numa

193
definição particularmente bela, que se levanta contra esse congelamento do
Outro que move o colonizador, diz Fanon: “[a] característica de uma cultura é ser
aberta, percorrida por linhas de força espontâneas, generosas, fecundas” (p.38).
A busca por transformar o modo de vida do colonizado, no entanto, afirma
Freire, é um processo que parece impor um modelo de parecença, o objetivo
não é fazer do diferente um igual - não é um semelhante que se pretende criar,
mas um similar inferior e alienado de suas forças e por isso passível de
dominação. Por isso Fanon se interessa pelos efeitos psíquicos do racismo e do
colonialismo. Mas, como sugere seu texto, e o que veremos adiante, é aí, para
o autor, que se encontra a possibilidade de libertação.
Passemos à segunda questão: como se comporta um povo colonizado?
Primeiro, como consequência das tentativas do colonizador de destruir os
sistemas de referência do colonizado, “porque nenhuma solução lhe é permitida,
o grupo social racializado tenta imitar o opressor e com isso desracializar-se”
(Fanon, 1969: 42). Isto é resultado de um processo de humilhação e violência no
qual “o opressor chega a impor novas maneiras de ver e, de uma forma singular,
um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir” (Id.). O
colonizado, que a princípio mergulha na cultura do colonizador e rejeita qualquer
identificação com seu passado, depois, no entanto, se apercebe daquilo que
destaquei anteriormente – ele nunca se tornou um igual, e assim se mantém
objeto do racismo do colonizador. Isto porque as ambições de retirar de vida a
existência do colonizado, não são inteiramente atingidas, pois: “essa alienação
nunca é totalmente conseguida”, “surgem fenômenos imprevistos” (p.43).
Desses fenômenos imprevistos nasce a possibilidade e a necessidade da
libertação. Em seus estágios iniciais, o colonizado volta-se para sua cultura semi-
esquecida, pois “[d]escobrindo a inutilidade da sua alienação, a profundidade de
seu despojamento, o inferiorizado, depois dessa fase de desculturação, de
estranhização, volta a encontrar as suas posições originais” (p.45).
O perigo, para Fanon, é que essa cultura seja dessa vez mumificada pelo
colonizado. Segundo o autor a “cultura capsulada, vegetativa, após a dominação
estrangeira é revalorizada. Não é repensada, retomada, dinamizada de dentro.
É clamada. E esta revalorização súbita, não estruturada, verbal, recobre atitudes
paradoxais (p.47).

194
O paradoxo é que “o mergulho no abismo do passado é condição e fonte
de liberdade” (p. 47), mas deve-se escapar das armadilhas que, por reivindicar
a cultura como pura identidade, também a esvazia de sentido e interrompe seus
fluxos vitais. Não é uma recusa purista daquilo que é, ou era, alógeno, o que faz
florescer a libertação, pois, para Fanon, aquele que foi inferiorizado, para
desencarcerar-se do Outro como opressor, “põe em jogo todos os seus recursos,
todas as suas aquisições, as antigas e as novas, as suas e as do ocupante
(p.48).
Tanto Fanon quanto Freire enxergam a libertação como processo que
deve ser produzido, pois nunca é dado “naturalmente”. No texto “Racismo e
Cultura”, lembremos, o racismo é definido como um fenômeno cultural próprio
de algumas sociedades. A luta empreendida pelos colonizados, assim “se situa
num nível nitidamente mais humano. As perspectivas são radicalmente novas. É
a oposição doravante clássica entre as lutas de conquista e as de libertação”
(p.48). É interessante acompanhar o pensamento de Fanon colocando-o para
discutir com o texto de Pierre Clastres, “Do Etnocídio” (2004). O antropólogo
também pensa o racismo, motor das engrenagens etnocidas, como específico
de algumas sociedades. O divisor central na obra desse autor é aquele entre
“sociedades com Estado” e “sociedades contra o Estado”, sendo as últimas as
sociedades indígenas das terras baixas sul-americanas.
Para Clastres, se toda sociedade é etnocêntrica58, no sentido de que
compreende o mundo a partir de sua forma específica (social) de existência,
apenas as sociedades com Estado são etnocidas. O etnocídio é conceituado no
texto como a destruição de modos de vida, de formas de existência diferente da
daqueles que perpetram essa destruição. Tanto no genocídio, a morte que
assassina os corpos, quanto no etnocídio, que busca matar o espírito, o Outro é
a diferença, precisamente a má diferença (p.83). O genocídio opera na negação
da diferença – o Outro é essencialmente mau e deve ser eliminado; no etnocídio,
o Outro é mau, mas pode melhorar se se transformar em um idêntico a mim – o
etnocídio é cometido em nome da salvação do Outro (p.54).

58
Uma reflexão a respeito do estatuto do humano nas sociedades ameríndias, e que aponta a ambiguidade
dessa questão – nós somos os humanos verdadeiros / tudo pode ser humano, está no texto de Viveiros de
Castro (1996) sobre o perspectivismo ameríndio.

195
O Estado seria a máquina etnocida uma vez que, “(...) pode proclamar-se
detentor exclusivo do poder, quando as pessoas sobre as quais se exerce a
autoridade do Estado falam a mesma língua que ele. Esse processo de
integração passa evidentemente pela supressão das diferenças” (p.88). O
etnocídio, assim, se impõe como a procura de eliminar as diferenças sócio-
culturais. Nos Estados nacionais, trata-se sempre de abolir a diferença quando
ela faz oposição à uma unidade pretendida.
O que potencializa a máquina etnocida na civilização ocidental, defende
o autor, é seu regime econômico: o capitalismo. Nas palavras de Clastres: a
“sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo
a mais terrível máquina de destruir”, e o autor prossegue, “[r]aças, sociedades,
indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser
utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime de
intensidade” (p.91). Para essa máquina de produzir e destruir “[q]ue importância
podem ter alguns milhares de selvagens improdutivos comparada à riqueza em
ouro, minérios raros, petróleo, em criação de bovinos, em plantações de café,
etc? Produzir ou morrer, é a divisa do Ocidente” (p.92).
A escola foi veículo, no Brasil colonial e em diferentes momentos da
República, de tentativas de transformação deste outro improdutivo porque
“selvagem”. Para moldar novos sujeitos capazes de trabalhar como trabalham
os brancos e, o mais importante, para os brancos, a escola, como certa vez
definiu um professor Guarani para o historiador Bessa Freire59, referindo-se à
escola em que havia estudado quando criança, foi operada como “fábrica de
fazer brancos”. Basta prestar atenção a iconografia dos anos de atuação do SPI
para saltar aos olhos as imagens das escolas com crianças uniformizadas,
sentadas apropriadamente numa sala de aula com um professor branco ao lado
de uma bandeira do Brasil. Mas certamente não se fez só entre os povos
indígenas a escola como instrumento de dominação, como um dispositivo de
controle. Como espaço de formação das elites, ou de manutenção de relações
desiguais de poder, a escola como instituição é inseparável de sua dimensão
política. Ao mesmo tempo, é justamente por seu caráter intrinsecamente político
que a escola interessa tanto aos povos indígenas.

59
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1059

196
Ainda hoje, há um fosso que separa a educação das elites e a educação
das classes populares, mesmo no Brasil pós-Constituição de 1988, quando a
educação básica – incluindo aí a educação infantil e o ensino médio, torna-se
direito fundamental e dever do Estado. Com a inclusão da educação escolar
indígena como parte desse quadro, ela é, muitas vezes, associada a uma escola
de baixa qualidade, que não corresponde aos anseios das comunidades
indígenas, seja pelo acesso aos conhecimentos exógenos, ditos “universais”, ou
pela valorização de suas culturas (Luciano, 2013).
Fato é que a educação escolar indígena foi historicamente implementada
em prol da “civilização” dos índios e que há pelo menos 30 anos ela é anunciada,
seja pelos índios, por organizações de apoio e, principalmente, pelo Estado,
como peça chave para a autonomia das comunidades indígenas. A escola
parece ser algo de natureza ambígua, ambiguidade presente do discurso dos
professores ashaninka: ela é perigosa e ao mesmo tempo instrumento de
fortalecimento cultural; ela ameaça a manutenção de uma forma de existência,
ao passo em que pode renovar aquilo que se buscou assassinar outrora.
O contato dos Ashaninka, povo com quem a pesquisa para esta tese de
desenvolveu, com os brancos não é novidade, é uma construção cujo princípio
remonta ao início da colonização espanhola. No entanto, a escola é novidade de
tempos recentes, no caso das famílias que migraram para o Rio Amônia. E ela
chegou junto de outras mudanças, com a construção de uma nova forma de
organização social e política – a comunidade – que surge como estratégia de
enfrentamento ao “tempo dos patrões” e às implicações desse tempo nas
relações ashaninka.
Esse “tempo dos patrões”, definição adotada não só pelos Ashaninka,
mas também por diversos outros povos indígenas no Acre, é descrito como um
tempo de relações de exploração. Em partes, se assemelha àquilo que Fanon
descrevia para as relações coloniais, como a humilhação, a imposição da
negação daquilo que os caracterizava como diferença. É o caso de línguas
indígenas, que de tanto inferiorizadas como gíria pelos patrões, tiveram sua
renúncia decretada por alguns povos, que interromperam seu uso
intergeracional, ou da adoção de mudanças como o abandono de festas e rituais
tradicionais. Com a chegada de organizações e sujeitos “pró-índio” (como a
CPI/AC e o CIMI) naquele estado, e num contexto de reorganização da

197
sociedade brasileira e de formação dos movimentos indígenas organizados,
floresce a criação de lutas, relações e proposições de demarcação de terras
indígenas, reservas extrativistas, escolas geridas pelas comunidades e
cooperativas para auto sustento e independência dos patrões. Nesse momento,
e como parte também na narrativa indigenista da época, erguem-se projetos de
valorização, de “resgate”, de registro da cultura. Como alertava Fanon (1980)
para as colônias francesas em processo de libertação na África, esse movimento
pede certo princípio de precaução, pois o perigo é que o discurso em defesa da
cultura sufoque esta mesma cultura imobilizando-a e interrompendo seus
movimentos, sem que seja “repensada, retomada, dinamizada de dentro” (p.47).
Por outro lado, como sugere Sahlins (1997), as situações de tipo colonial
podem não provocar a morte de uma cultura, mas introduzir elementos que são
apropriados para o seu florescimento. Se faz necessário indicar o porquê da
referência a autores como Freire e Fanon, que parecem ter determinados os
atores sociais aos quais se referem em um dualismo duro, que só pode ser
superado num processo dialético que promove a libertação de “colonizados” ou
“oprimidos”.
Viveiros de Castro (1999), define duas escolas na etnologia brasileira que
funcionam através de perspectivas diferentes, a saber, a etnologia clássica, na
qual posiciona seus próprios trabalhos, e aquela das teorias do contato, tributária
dos estudos de Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e outros nomes cuja
referência é reconhecida pelo antropólogo como de grande importância, ainda
que deles se distancie. Para Viveiros de Castro, essa diferença seria, sobretudo,
relacionada ao ponto de referência de onde se situa o olhar: a segunda escola
teria centrado sua visão nos povos indígenas como parte da sociedade brasileira,
buscando os efeitos e a atuação da forma Estado sobre a vida dessas
populações; a etnologia clássica, por outro lado, buscaria a perspectiva mesma
dos grupos indígenas, tratando da “sociedade nacional” como um dos
componentes do macrocosmo dessas sociedades. Como o autor afirma, a figura
do colonizador pode ser pintada por outros traços, novas linhas, desfazendo-se
de sua onipotência e apontando para as interferências e apropriações indígenas,
para os rearranjos, a partir de suas próprias estruturas de transformação, das
mudanças do contato. No entanto, o texto de Fanon me parece atravessar
algumas questões da tese, pois sua reflexão sobre as relações entre cultura e o

198
racismo é operada utilizando um léxico de movimento – aprisionamentos,
aberturas, estabilizações e forças em relação. E este me parece ser o conjunto
de ideias adequado para pensar o caso Ashaninka, que estão longe de se verem
como vítimas sem agência de uma história dos brancos, ainda que identifiquem
nesses brancos contenções e linhas que atravessam seus fluxos.
Os Ashaninka, sem dúvida, narram sua história recente como uma luta de
libertação da dependência dos patrões. Essa é a história da comunidade e das
pessoas contemporâneas. Esse movimento de libertação – que não se findou
com a demarcação da terra e que precisa ser controlado, para que não saia de
seu caminho – está atrelado a emergência de uma força coletiva que fez romper
o isolamento das famílias, força essa estimulada, fundamentalmente, pela
emergência de novas lideranças, filhas de um casamento interétnico.
Fanon é referência importante aqui porque sua construção sobre o
processo de identificar-se, no caso do colonizado, como objeto da opressão,
parece ter sido central para a produção dos movimentos ashaninka hoje, ainda
que para eles os vetores não sejam sempre direcionados dos brancos para eles.
O próprio processo de construção como comunidade, de reunião das famílias do
território em torno de Antônio Piyãko e seus filhos, é um processo de
redirecionamento dos movimentos que tem como fundo um processo de
libertação coletivo.
Pretendi apontar ao longo desta tese, que os Ashaninka parecem saber
produzir florescimentos, novos possíveis, através de processos de
remanejamento de práticas e relações no contato com o Outro, colocando “[em]
jogo todos os seus recursos, todas as suas aquisições, as antigas e as novas,
as suas e as do ocupante” (Fanon, 1980: 48). A escola vem se construindo como
o espaço dessa reordenação do mundo com as suas armas e aquelas do
ocupante, dos brancos. Esse processo, deve-se ressaltar, não é de todo
controlável, e nem todas as mudanças que ocorrem são guiadas pelos
Ashaninka. E justamente porque, como sugeri, a escola é “naturalmente”
ambígua, ela é o lugar onde essas transformações são pensadas, vistas,
sentidas.

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