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MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Entre Outros:
um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização relacional.
2019
Entre Outros:
um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização relacional.
Rio de Janeiro
Abril de 2019
Entre Outros: um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização
relacional.
Amanda Alves Migliora
Aprovada por:
_________________________________________________
Profa. Dra. Aparecida Maria Neiva Vilaça - Orientadora
PPGAS/ MN UFRJ
_________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
PPGAS/ MN UFRJ
_________________________________________________
Profa. Dra. Luisa Elvira Belaunde
PPGAS/ MN UFRJ
_________________________________________________
Profa. Dra. Joana Miller
UFF
_________________________________________________
Pós-Doc. Rafael Fernandes Mendes Junior
Biblioteca Nacional
_________________________________________________
Prof. Dr Eduardo Batalha Viveiros de Castro
PPGAS/ MN UFRJ (Suplente)
_________________________________________________
Prof. Dr Luiz Antônio Lino da Costa
UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Abril de 2019
Migliora, Amanda Alves.
Entre Outros: um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização
relacional./ / Amanda Alves Migliora. - Rio de Janeiro, 2019.
295 f.
capítulos que compõem esta tese, que o diálogo com pessoas não indígenas
estava longe de ser do interesse da maior parte dos mbyá com os quais me
deparei ao longo do trabalho de campo. Por esse motivo optei pelo uso de nomes
fictícios para meus interlocutores. Sem eles nenhuma linha seria possível, e eu
reconheço que a abertura à esse diálogo incômodo e à amizade comigo foi uma
opção “fora da curva” feita por poucos. Por isso ofereço minha gratidão
da Tekoá Ka’agui Hovy Porã, por terem, ainda nos meus tempos de graduação,
pela existência.
qualificação e por suas diversas aulas que tive o prazer de assistir. Pela
Duarte.
não teria sido concluída. Sua atenção ao que estava sendo produzido, na mesma
medida de sua compreensão em relação aos movimentos que a vida fez ao longo
do período de produção da tese fizeram dela mais do que uma orientadora, mais
mesmo do que uma amiga e provavelmente não existem palavras para expressar
Colares, Leonor Valentino, Miranda Zoppi, Tainah Leite, Rafael Mendes Júnior,
Everton Rangel, Felipe Magaldi, Tássia Áquila, Maria Luisa Lucas, Carol
Castelitti, Cecília Diaz, Virgínia Amaral, Bruno Guimarães, entre muitos outros.
No Rio Grande do Sul agradeço à Maria Paula Prates e Luíz Fernando Caldas
Fagundes.
À Gesy de Almeida Martins Migliora, minha avó, Luiz Armando Martins Migliora,
meu pai, Leila Santos Guimarães Alves, minha mãe, e Aline de Senna Migliora,
minha irmã, que, embora nunca tenham entendido muito bem no que consiste o
meu trabalho, nunca questionaram minhas escolhas e suas implicações, me
Por último, porém não menos importantes, aos meus amigos de infância e
Cardoso.
Para Gesy, Otto e Diego,
com muito amor e gratidão.
Existir é diferir; na verdade, a diferença é, em um certo sentido,
o lado substancial das coisas, o que elas têm ao mesmo tempo
de mais próprio e de mais comum. É preciso partir daí e evitar
explicar esse fato, ao qual tudo retorna, inclusive a identidade
da qual falsamente se parte. Pois a identidade é apenas um
mínimo, e, portanto, apenas uma espécie, e uma espécie
infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é
apenas um caso do movimento, e o círculo uma variedade
singular da elipse. Partir da identidade primordial é supor na
origem uma singularidade prodigiosamente improvável, uma
coincidência impossível de seres múltiplos, ao mesmo tempo
distintos e semelhantes, ou então o inexplicável mistério de um
único ser simples posteriormente dividido não se sabe por quê
Em um certo sentido, é imitar os antigos astrônomos que, em
suas explicações quiméricas do sistema solar, partiam do
círculo e não da elipse, sob pretexto de que a primeira figura
era mais perfeita. A diferença é o alfa e o ômega do universo;
por ela tudo começa, nos elementos cuja diversidade inata, que
se mostra provável por considerações de diversas ordens, é a
única a justificar, em minha opinião, sua mtiltiplicidade; por ela
tudo termina, nos fenômenos superiores do pensamento e da
história, nos quais, rompendo enfim os círculos estreitos em
que ela própria se encerrara, o turbilhão atômico e o turbilhão
vital, e apoiando-se sobre seu próprio obstáculo, ela se
ultrapassa e se transfigura. Todas as similitudes, todas as
repetições fenomênicas não me parecem ser senão
intermediários inevitáveis entre as diversidades elementares
mais ou menos apagadas e as diversidades transcendentes
obtidas por essa parcial imolação.
This thesis consists in the exposition of ethnographic data about the tangible
manifestations of some Mbyá concepts on the problem of the contact with diverse
alterities, mainly non-indigenous alterity, articulated in regular practices of
mediation. Just as the entries in the forest should be observed with particular
care, which refers to the type of relations that should not be established with its
inhabitants, so does to travel to the city. Such exposure will consist of two steps.
At first the emphasis will be placed on the village context, through the description
of the daily life of an extended family residing in a village located in the
Metropolitan Region of Porto Alegre. Then the displacements and the stays of
men and women in downtown streets and the practices adopted in urban context
by these Mbyá for mediation and control of the relations with otherness become
the focus of the exhibition. Transformations, migrations and kinship are the
themes that permeate the data collected in the field work that was carried out
between 2014 and 2017.
Prólogo 14
Introdução 17
Parte I – Contextualização 46
I - Sobre as camadas do mundo vivido dos Mbyá 47
contemporâneos.
I.I. Apresentação 47
I.I.II. Dados demográficos sobre os povos Guarani. 48
I.II. Identidades étnicas: sobre etnônimos e autodenominações. 49
I.III. O que é uma pessoa? 58
I.III.I. Vejamos como a questão da pessoa é abordada por etnógrafos 66
de outros grupos amazônicos
I.IV. Da produção da alegria 69
I.V. Virar outro: Ojepotá e Ojejavy 78
II - Caminhar é preciso: autonomia como fluxo e parentesco como 90
rede.
II.I. Apresentação 90
II.II. Descolamentos relacionais e formas de coletivização. 97
II.III. Autonomia caminhante e o modelo de Terra Indígena. 108
II.IV. História recente da rede mbyá no Rio Grande do Sul. 111
II.V. Alguns dados sobre a presença mbyá no Rio Grande do Sul nos 118
dias de hoje.
Parte II - Etnografias 122
III - Alguns caminhos para uma aldeia na Região Metropolitana de 123
Porto Alegre.
III.I. Apresentação 123
III.II. Reveses metodológicos particulares a pesquisa de campo entre 128
populações Mbyá na Região Metropolitana de Porto Alegre
III.III. Os movimentos do processo de entrada em campo: a primeira 133
etapa da empreitada etnográfica.
III.III.I. A segunda tentativa. 134
III.III.II. Entendendo o motivo dos insucessos: do papel dos homens 157
numa família mbyá e os limites do contato.
III.IV. Uma brecha. 160
III.IV.I. Fragmentos de uma casa. 163
III.IV.II. Os dias e as relações: parentesco, períodos de crise e 182
estratégias de estabilização relacional.
III.IV.III. Recursos e (re)configurações familiares. 205
III.IV. Sobre multilocalidade, vergonha, bailes, redes sociais (virtuais) 219
e porarõ.
IV - Sobre a presença Mbyá no centro de Porto Alegre. 226
IV.I. Apresentação 226
IV.II. Sobre o que é comercializado: o artesanato. 230
IV.III. Do porarõ 234
IV.IV. Particularidades da prática do porarõ. 236
IV.V. O panorama das necessidades: uma ilustração etnográfica. 238
IV.VI. Sobre a produção de dados etnográficos a respeito da presença 241
mbyá no Centro Histórico de Porto Alegre.
IV.VII. Mapas do porarõ 246
IV.VIII. Um dia de porarõ 248
IV.IX. Sobre os homens durante o porarõ no centro. 257
IV.X. Sobre a dispersão e a união de panos. 260
IV.XI. Do outro lado da “não-relação”: uma cena etnográfica. 263
IV.XI.I. A visão dos juruá que trabalham no centro da cidade. 264
IV.XII. Sobre palavras e sangue: gênero e guaraniologia. 265
V. Considerações Finais 269
ANEXO: QUADRO GENEALÓGICO DOS “GRUPOS 286
DOMÉSTICOS” MENCIONADOS NO CAPÍTULO 3.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 287
14
PRÓLOGO
Se na teoria etnológica a imagem de tal ou qual grupo é forjada por meio das
mulheres mbyá que frequentam o centro da capital gaúcha é uma ínfima porção
do todo complexo que constitui suas vidas, mas repercute de diversos modos
sobre seus passos fora das aldeias produzindo reações que analisarei ao longo
centro de Porto Alegre, onde dia após dia essa imagem é produzida pelo
encontro entre tais mulheres e seus outros, na relação entre aqueles que ali
aos brancos. Esta tese pretende demonstrar como essa “prioridade filosófica e
questão.
15
No centro de Porto Alegre imagens dos outros também são produzidas, por sua
vez, pelas mulheres mbyá. Quem são os outros? Por que visitá-los e como lidar
com eles? Essas são as perguntas que perpassam boa parte da etnografia ora
apresentada.
***
de porarõ para voltar para a aldeia. Naquele dia não havia muitos panos de
porarõ pelas calçadas do centro e ela estava sozinha em seu pano com sua filha
de poucos meses de idade. Antes de seguir para o ponto de ônibus ela precisou
ir ao banheiro. Aproveitou que eu estava ali e deixou comigo sua bebê e sua
bagagem (as coisas que não conseguiu vender e as coisas que recebeu dos
amiga veio perguntar como eu fazia para que ela falasse comigo e até me
deixasse segurar seu bebê. Respondi brevemente que conhecia muitos de seus
eu precisava que fosse para abreviar a interlocução com aquele homem branco.
bebê) que minha amiga voltasse do banheiro que ficava um pouco distante.
Quando a mãe da bebê voltou o senhor, que havia trabalhado na calçada o dia
inteiro ao lado do pano dela, tentou explicar que não era “branco” e sim “cigano”
16
e que poderiam ser amigos, pois tinham a mesma desconfiança em relação aos
brancos. Mas ele foi ignorado de modo veemente, como qualquer outro juruá
(não indígena) insistente na cidade. Fiquei com pena e tentei explicar o que o
senhor queria falar com ela, mas já andando e deixando o simpático senhor
falando sozinho, ela riu e respondeu em mbyá algo que naquele contexto poderia
Alguns meses depois, durante uma entrevista no centro da cidade com outra
interlocutora mbyá sentada sobre seu pano de porarõ, ela afirmou não travar
relações com pessoas brancas além de mim, assim como também não o fazia
dados que serão expostos, extrai-se uma certeza: cabe a nós, enquanto
INTRODUÇÃO
conceitos e valores que norteiam a vida cotidiana nas aldeias. Método cuja
formas. Nimuendaju (1947) foi um dos primeiros a falar sobre a adoção de nomes
estrangeiros como uma estratégia guarani para manter em segredo seus nomes
os dias de hoje. Essa experiência acumulada pode ser uma boa chave para a
evasivo, esquivo ou reservado dos Mbyá nas interlocuções com não indígenas
produzidas entre esses coletivos (Assis 2004, Bergamaschi 2005, Gobbi 2008,
Macedo 2009, Pissolato 2007, Silva 2008, Soares 2010, Schaden 1954 entre
muitos outros). Prates (2013) menciona que essa postura refratária ao contato
recentemente:
pessoas juruá (brancos) em suas aldeias . São meses, anos para que uma
Clastres, em Paris, uma das primeiras perguntas que ela fez ao saber que
minha tese versava sobre os Mbyá, foi: e eles continuam fechados ao contato
seguida a ser criticado por seus entusiastas iniciais como Egon Schaden (1969),
Mas se, como penso, não existe esse objeto chamado ‘contato interétnico', é
uma das partes. Não existe o ponto de vista de Sirius: não há 'situação
119)
Aparecida Vilaça:
entendem o modo como esse contato acontece? O que essas etnografias nos
para viver com muitos de seus filhos (que nasceram nesse caminhar), com os
então coletados apontavam para “(...), uma tomada das rédeas da interação
com um mundo exógeno e hostil por parte dos Mbyá que impõem sobre ele
lhes foi infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma
grifo meu)
Resistência e resiliência são dois dos conceitos mais relevantes para pensarmos
alteridade não indígena, dessa vez no Rio Grande do Sul: o ponto de partida do
1 Utilizo o conceito de socialidade com base nos trabalhos de Strathern (2014[1990]) e Overing
(2000) que convergem ao apontar na noção de “pessoa”, etnograficamente depreendida, um
compósito relacional que não pode ser confundida analiticamente com o “indivíduo” tal como
concebido pelas ontologias ocidentais.
casal que formara a aldeia onde até então se concentrava toda minha
experiência etnográfica.
De acordo com o Censo de 2010 estima-se que no Rio Grande do Sul haja cerca
mil guaranis que habitam no Rio Grande do Sul são falantes do dialeto Mbyá,
Canta Galo (Jataity) – homologada com 286 hectares e onde vivem mais de
30 famílias; Itapuã (Pindó Mirim) – não demarcada, mas que foi constituído
http://www.saude.rs.gov.br/lista/333/Sa%C3%BAde_da_Popula%C3%A7%C3%A3o_Ind%C3%
ADgena
24
24 hectares feito pelo Estado do Rio Grande do Sul; área da Estiva (Nhundy)
(Otero, 2006). A suspeita de exploração infantil que recai ainda hoje sobre as
na cidade, alguns estudos antropológicos foram realizados. Estes, por sua vez,
prefeitura de Porto Alegre chamado ‘Mulheres dos Panos’. É nesse contexto que
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smgl/default.php?p_noticia=148431&PROJETO+MULHERES
+DOS+PANOS+BENEFICIA+INDIOS+GUARANIS
26
mbyá.
A prática analisada nesta tese está inserida num complexo universo onde
Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pará,
mesmos. Isso que faz com que o deslocamento entre aldeias esteja sempre no
27
experiências locais.
Esse trânsito característico6 dos mbyá entre aldeias pode ser intensificado por
alguns mbyá no local visitado e levando consigo outros mbyá, para as aldeias de
onde vieram. A circulação entre aldeias também faz parte das possibilidades de
cada pessoa ou grupo familiar, o que costuma ocorrer tanto na forma de visitas
5Essas relações são atualmente reforçadas por meio de ligações telefônicas e redes sociais, mas
a relevância dessas linhas interestaduais de parentesco vem sendo etnograficamente
documentada desde antes da ampliação do acesso as essas tecnologias de comunicação, o que
atesta a diacronia do fenômeno e a relevância da conexão que os mbyá mantém entre si, mesmo
em aldeias distintas. Dados arqueológicos permitem aventar que essa configuração em redes
amplamente conectadas cobrindo longos espaços seja uma característica dos povos hoje
conhecidos como guarani anterior ao contato (Bartolomé 2008:50 apud Susnik 1965, Noelli
2004).
Também vale enfatizar que cada aldeia tende a possuir laços com outras aldeias
Paulo e no Paraná, ao passo que a aldeia mbyá mais próxima conta com uma
não indígenas, que fora configurado no tempo por uma sucessão de eventos e
quanto na cidade, quase que numa inversão do que ocorria no Rio de Janeiro.
29
Postura essa que fora enunciada por interlocutoras que sustentavam laçõs de
de Porto Alegre.
Grosso modo, a pergunta que norteava a pesquisa até então era: como a mistura
com essa alteridade, que caracterizava tanto meus primeiros interlocutores mbya
relacionais? Uma das motivações para esse recorte era a suposição de que
minha boa relação com o pessoal junto ao qual eu vinha pesquisando desde
2009 no Rio de Janeiro facilitaria minha entrada numa aldeia específica. Lembro
mesmo movimento de saída, fundando aldeias em suas paradas. Muitos dos que
31
Eram coletivos sobre os quais ouvi falar diversas vezes desde o início do trabalho
etnográfico na aldeia do Rio de Janeiro, desde 2009. As visitas entre eles, tanto
frequentes, mas também não eram excepcionais. Deste modo, a análise dos
Em 2014, ainda no primeiro ano do doutorado, passei a visitar Porto Alegre com
sobre meu tema preferencial, a mistura com juruá por meio de união
040, por um casal constituído por um homem Chiripá e uma mulher Mbyá e
32
Maria Paula Prates (2013), onde a autora identifica que apesar desta tendência
kaingang) tenha marcado a composição interna dessa aldeia, bem como sua
século XIX) nas quais esse tipo bem específico de união, entre mulheres mbyá
e homens outros, foi de utilidade política aos mbyá 7. O que se daria por um
7 “ À luz do que nos conta Saint-Hilaire podemos intuir que essas mulheres desempenhavam um
papel importante nas relações com os brancos, não fungindo à regra de povos falantes do Tupi
quanto a estabelecer alianças com inimigoscunhados/tovajá.” (Prates, 2013: 223).
33
etnográfico.
região. A reunião com essa mulher que chamarei de Arminda correu com
acompanhada de sua filha mais nova (uma estudante da UFRGS), uma de suas
Arminda, uma senhora de meia idade, era justamente aquela que havia se
Embora ela parecesse animada com meu interesse nas atividades escolares ali
na aldeia ela me mandou ir na casa ao lado falar sobre meu projeto com um de
pesquisa. Perguntei quando eu teria uma posição e nada me foi dito em resposta.
O silêncio que se seguiu a esse curto diálogo me fez perceber que eu deveria
voltar até minha anfitriã e informar-lhe sobre o parecer de seu filho. Diante da
minha preocupação com uma possível decisão negativa, ela reagiu como se a
Ali, como mencionei acima, moravam também o irmão do homem juruá que
Janeiro. Este era casado com uma das irmãs dessa liderança feminina que
quem de fato seria o cacique ali, um dos filhos dela com seu finado marido
como viagens até uma aldeia na Argentina, que ela pretendia visitar em busca
enquanto liderança junto à Comissão Yvy Rupá (CTI) em luta pelos direitos
territoriais dos mbyá. Planos sugeridos por minha interlocutora e que, embora
35
acreditar no futuro do trabalho de campo contínuo junto a ela. Além disso ela
outros mbyá vendiam por aí, sobretudo na cidade”), roupas costuradas por ela
mesma, contanto que eu lhe levasse os tecidos, e comidas “de mbyá mesmo”.
da Redenção não mencionados por ela. Minha interlocutora e uma de suas filhas
não indígenas. E os coletivos da rede mbyá no Rio de Janeiro (Tekoá Mbo’y ty)
daquele coletivo.
Com o tempo, ainda que nossas conversas estivessem se tornando cada vez
9 Posteriormente ficou claro para mim que o pensamento excepcional era justamente o que
aquela liderança expressava, uma vez que nenhuma avaliação pejorativa acerca da prática do
porarõ me fora apresentada por nenhuma de minhas interlocutoras mbyá subsequentes.
36
já havia passado por esse tipo de situação anteriormente, e sabia que a liderança
de Porto Alegre. Daí em diante passei a visitar a aldeia com maior regularidade.
Foi quando tive a dimensão do quanto minha presença era indesejada ali.
Certa vez combinei pelo telefone com Arminda uma nova visita. Chegando à
aldeia percebi que sua casa estava trancada, perguntei a um filho seu que
passava por ali onde estava sua mãe e ele apenas me informou que ela tinha
ido ao centro de Viamão. Esperei por mais de uma hora na varanda e aos que
passavam por ali eu parecia ser invisível. Ouvi o sinal do intervalo da escola que
suas filhas. Encontrei-a, porém não recebi nenhuma atenção dela. Quem me
dedicou algumas palavras a mais foi o cacique, que era também um professor
ali. Ele me disse, sem rodeios, que não poderia impedir sua mãe, nem ninguém,
quando cheguei na aldeia fui informada de que ela se encontrava na cidade. Ela
37
recepcionar.
Logo que constatou que não tinha ali nenhuma comida para ela almoçar e, pôs-
se a preparar para mim e para ela mesma o que ela chamou de uma “comida de
água) no tata ypy (lugar de fogo – construção onde se cozinha no fogo de chão)
da língua, sobre tipos de fumo misturados com outras ervas para petyguá
tata ypy fomos para a casa de Arminda e passamos uma tarde agradável,
10 O uso preferencial do fogo de chão em detrimento dos fogões a gás (geralmente existentes
nas habitações mbyá) é a regra, tendo sido observado entre todas as minhas interlocutoras entre
2009 e 2017.
38
que eu não seria convidada a permanecer ali aquela noite. Ainda assim as coisas
senhor mencionado com diferentes tipos de pety (tabaco) para seu petyguá
(cachimbo), acreditei que por meio desse tipo de trocas meu processo de
inserção ali caminharia bem. No dia seguinte liguei para Arminda a fim de marcar
uma nova visita e não obtive resposta. Dali em diante nunca mais nenhuma
ligação minha para aquela senhora ou para suas filhas foi atendida.
11 Ao longo do evento todos eles fariam discursos sobre a situação dos mbyá na atualidade e a
importância da educação escolar em paralelo com a importância das práticas tradicionais como
cantos e danças na Opy. Suas falas (assim como as falas de outras lideranças locais ali
presentes) majoritariamente em português se direcionavam principalmente aos convidados não
indígenas.
O evento em questão recebia diversos juruá que se encaminharam até lá em dois ônibus fretados
pela UFRGS e em carros particulares. Na parte da manhã as atividades consistiam em
apresentações musicais e danças das quais em fila os juruá participaram um a um entrando na
construção onde teriam lugar as falas das lideranças, sobretudo professores mbyá. Ali entrando
cada um proferia uma saudação ensinada pelos anfitriões que se concluía com a expressão
“Aguyje eté” diante de alguns jovens e mulheres mbyá caracteristicamente vestidos que se
encontravam dispostos em semicírculo, alguns deles tocando mbaraka-miri (chocalhos) e um
deles com um mbaraka (violão).
39
uma das filhas de Arminda, que era professora, acompanhada do professor mais
deliberadamente ignorada.
apenas meu interesse pelas aldeias que fazem parte da região hidrográfica do
Lago Guaíba, pela proximidade em relação a capital e pelas trocas e fluxos entre
Naquela etapa da festividade as lideranças afirmavam a identidade distintiva dos mbyá enquanto
o “tradicional” povo indígena do Rio Grande do Sul. Salientavam também a necessidade de
revisão das restrições a extração dos recursos provenientes da reserva ecológica do
Itapuã (que abrangia a todos, inclusive moradores da aldeia vizinha à reserva que
demandavam que uma exceção fosse aberta para eles enquanto povo tradicionalmente
relacionado àquelas matas e que delas extraiam recursos tanto para uso próprio quanto
para comercialização). Também foram tematizadas nos discursos então proferidos questões
mais amplas, como a necessidade de demarcação de uma série de Terras Indígenas para os
mbyá, na medida em que a situação fundiária no estado é marcada pela existência de diversos
acampamentos à beira de rodovias onde muitos mbyá vivem em condições perigosas e
insalubres.
Na parte da tarde ofereceram refeições que seriam vendidas aos visitantes, também
estavam à venda artesanatos produzidos pelos moradores daquela aldeia. De um modo
geral a população da aldeia parecia um tanto desligada da primeira etapa da festividade.
Tive a impressão de que se interessavam menos pelos discursos de suas lideranças e
professores, que ali falavam para os visitantes não-indígenas, do que pelas danças, pela
comida e sobretudo pela venda de seus artesanatos.
40
poderia me levar até uma casa numa aldeia mbyá, como de fato ocorreu.
Proponho uma tradução dos conceitos utilizados pelos mbyá para se posicionar
e atuar nessas relações com a alteridade não indígena, para além do tema da
pelos recursos do juruá” que a eles aparecem como desejáveis. Alterar-se para
ponto, interessa abordar essa relação específica não apenas nos discursos
que com o aldeão médio (para um outro fenômeno deste tipo ver artigo sobre o
Macedo, 2012).
socialidade em rede comum a outros contextos mbyá. Todavia essas coisas não
Seria fácil e seguro atestar que a presença de mulheres mbyá pelas calçadas da
falando apenas da cidadania que lhes fora negada pelo Estado e de que medidas
seriam interessantes para “solucionar” esse “problema”. Mas que olhar seria
questão?
mesmas por meio dessa prática. Alteração particular que, como veremos nos
maneira a fazer parte do “mundo mbyá” quando estes agentes voltam para suas
aldeias, o que ocorre por meio das histórias que trocam ou nos encontros de
são capturadas pelos mbyá em suas incursões pelas matas), da mesma forma
Por outro lado, a vida doméstica é permeada por tensões que são consideradas
Os capítulos
Parte I – Contextualização
44
contemporâneos.
analisadas. Esse quadro deverá funcionar como um léxico que permitirá a leitura
rede.
Este, que será o segundo capítulo bibliográfico da tese, consistirá num resumo
história que se constitui pelo fluxo de famílias entre aldeias e com a formação de
territorial.
45
Parte II – Etnografias
Porto Alegre.
entrada em campo para ilustrar em que medida (e por que motivos) ofertas de
distância de relações contínuas com pessoas juruá, o que não implica numa
Não por acaso a única possibilidade para realização desta etapa do trabalho de
aceitarem em suas casas uma juruá. Os pontos específicos que desejo ressaltar
dos pontos de porarõ, os fluxos de pessoas mbyá entre aldeia e cidade, entre
campo.
No capítulo final sintetizo o material exposto nos capítulos anteriores sob a forma
de uma hipótese que diz respeito ao contexto territorial, aos fluxos de pessoas
***
47
Parte I
Contextualizações
48
I.I. Apresentação
etnológica acerca dos povos Guarani, em particular aquela que versa sobre os
tem como objetivo oferecer um pano de fundo sobre o qual serão projetados os
brasileiro era de 67.523 pessoas, sendo estas 43.401 (Kaiowá), 8.026 (Mbyá) e
do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro,
grupos de pessoas.
12 Há em São Paulo coletivos classificados como Nhandeva, mas que se autodenominam Tupi-
Guarani e na Região Sul do Brasil muitos daqueles que são classificados como Nhandeva
distinguem-se deste grupo autodenominando-se Chiripá (Mello, 2006).
13 Embora não tenha encontrado dados populacionais sobre a presença Guarani no Uruguai
escolho mencioná-lo por causa do relato de uma de minhas interlocutoras, a quem chamo de
50
Kaiowá, Mbyá e Nhandeva juntamente com outras denominações que não tem
(Argentina)
(Paraguai).
segundo o qual pessoas mbyá devem casar-se com outras pessoas mbyá, faz-
Ane (no terceiro capítulo).Ela se referia então à uma visita que seu tio, que estaria morando no
Uruguai, teria lhe feito pouco tempo antes.
51
junto aos quais realizou pesquisa de campo. De acordo com o autor a palavra
Quando notei pela primeira vez que a palavra mbya não era somente um
Brasil, e um deles se referiu aos Xavante como mbya ete. Kayapó, Xavante,
contraste com eles, mas de forma equânime: são “outro índios” (mbya
amboae), por assim dizer. Assim, se o termo mbya ete é comumente usado
(“ele não é índio não”, ha’e ma mbya e’ÿ tu, disse Minju ao vê-lo certa vez na
televisão), tendo apenas se casado com uma mulher guarani, embora venha
destaque. Sempre que esta figura aparecia nos telejornais que cobriam a
ocupação, em 2012, com cocar e fumando petyngua, era motivo de risos por
Mendes Junior (2016), por sua vez, leva adiante a argumentação acima
mencionada para apontar para o uso central dos termos Nhande Va’e e,
Sugiro, então, que, mais do que designar um grupo étnico, mbya sem o
De acordo com as narrativas coletadas por Pierri (2013) esta tanga faz parte da
indumentária das divindades masculinas tal como surgem nas narrativas atuais.
Na conversa acima, esse senhor contava que os Nhanderu Mirῖ “usam roupa
bela”, “que não estraga” pois Nhanderu Tupã “traz uma nova” todo ano e “leva
adorno de cabeça (akã regua); o tetymakua, adorno feito com o cabelo das
53
termo Tambeope tenha sido utilizado por um xamã interlocutor de Pereira (2014)
para se diferenciar em relação aos demais Mbyá, arrogando ao sujeito que assim
Nas primeiras vezes em que ouvi o termo mbya ete’i ele designava os Guarani
viviam no mato, não usavam roupas dos brancos, etc. Ouvi, inclusive, de
Augustinho, que mbya, para ele, seria apenas uma língua (dentre as outras
seis formas do Guarani que ele dizia falar fluentemente) e que ele não era
Mbya, mas sim Tambeope, classificação justificada devido ao fato de não ter
segundo ele. Note-se que, se é a comida que está sendo usada para
diferenciarem dos Guarani Nhandéva, aos quais chamam de xiripa kuéry (...).
(2014: 43-44)
Aqui nos deparamos com um fato curioso: ao mesmo tempo em que o termo que
delimitar certas fronteiras, entre os critérios que são expressos nos discursos de
linguagem.
1980, estiveram entre os xiripa, na aldeia Itariri, no litoral sul de São Paulo.
Miguel fazia essa distinção étnica porque, do ponto de vista dele e de seu
grupo, eles não sabiam falar bem o idioma guarani, motivo suficiente para
Nimuendaju ([1914] 1987, p. 7): “só quem fala exatamente o mesmo dialeto
pessoa como estrangeira”. Para outros contextos guarani, ver Mello (2006, p.
Nas aldeias Guaranis do sul do Brasil há um convívio intenso entre famílias Mbyá
(para mais informações sobre o tema ver Assis, 2006, Bergamaschi 2004, Gobbi
do Ore Reko (ore - nós exclusivo, rekó – costume, modo de ser) seria para os
Mbyá mais uma das formas de marcarem uma distinção entre os seus e os
mais com os brancos e suas formas de legislar sobre os territórios, ao passo que
interlocução com os agentes do estado. O que por sua vez resultaria, de acordo
com a autora, em acusações dos Mbyá aos Xiripa de submissão ao Branco, por
56
Indígena proposto pelo Estado. Essa interpretação não foi observada por mim
em campo, nem foi reforçada pela produção etnográfica subsequente 14, que
aponta cada vez mais para o surgimento de jovens lideranças mbyá cujas
nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nos litorais do Paraná,
feitos por famílias Chiripá e Mbyá quando se trata de viajar para outras aldeias
(pessoas que se identificam como Mbyá visitam outros parentes que ostentam a
harmoniosa entre coletivos Mbyá e Chiripá nas diversas aldeias do Rio Grande
1995 e 2002, embora enfatize que o casamento entre eles não seja o preferível,
Mbyá, uma vez que eles próprios também se considerariam “índios” ou “gente”,
ou seja, mbyá. O autor sugere ainda uma analogia entre o qualificativo meme,
15 “O caso de Simão Villalba, nascido de pai e mãe Mbya, revela bem o modo que a filiação ao
subgrupo pode ser constituída e desfeita. Ele nasceu numa aldeia Mbya do oeste catarinense,
aos 19 anos, quando foi trabalhar na colheita de algodão numa fazenda no Paraguai, conheceu
sua atual esposa Nhandéva Adriana Duarte. Após o casamento, o casal foi viver na aldeia
Nhandéva Acaray-Mi, desde então, o casal e seus filhos se deslocam entre as aldeias Nhandéva
da fronteira Brasil/Paraguai e nunca mais Simão visitou as aldeias Mbya. Perguntei a Simão se
ele se considerava Mbya ou Nhandéva e me respondeu: xe chiripareiko rami aiko”, algo como,
“eu vivo conforme a maneira de viver dos Chiripá (Nhandéva)”. Tornei-lhe a perguntar: “você é
Mbya ou Chiripá (Nhandéva)? Respondeu-me em português, “Sim. Se estou no meio dos meus
parentes Chiripá, eu sou Chiripá”. No caso de casais exogâmicos, os filhos pertencerão ao
subgrupo da mãe ou do pai, sendo que o que vai definir a filiação da família é sua inserção numa
ou noutra unidade social” (Silva, 2007: 92-93)
58
que neste caso significa duplo16, e a noção Yudjá de nana uma forma de
seriam Mbyá’i, o que o autor traduz como “reduzidos” (Gobbi, 2008: 42).
Aqueles a quem venho chamando de Mbyá ao longo desta tese são os falantes
dessa variação dialetal da língua Guarani. Mas, sobretudo, são aqueles que em
assunto na aldeia onde realizei trabalho de campo, mas enfatizo que não
(EM FUNÇÃO ADJETIVA) Dois (ou mais) do mesmo tipo: toro meme junta de bois.
(EM FUNÇÃO DE MODIFICADOR DE NUMERAIS) Duas vezes: mboapy meme seis [lit., ‘três
(dedos) em cada (mão)’].
(EM FUNÇÃO DE INTENSIFICADOR VERBAL) Direto, sem parar, sem desviar-se: oo meme
oiny foi indo sem parar. (Veja também yvi.)
Mbyá, Mbyá Ete, Mbyá Ete’i, Ore Va’e, Nhande Va’e e Tambeope foram formas
comecei a visitar aldeias Mbyá. Entendo que todas elas são situacionais, ou seja,
17 A categoria “grupo doméstico” pode assumir ao longo do texto os contornos de uma família
extensa ou de uma família nuclear, dendo antes determinado pelo conjunto daqueles que
compartilham um fogo de chão (tata ypy), ou melhor, das refeições produzidas neste fogo.
60
propõe pela primeira vez uma reflexão etnológica sobre o tempo e o espaço
dos modelos africanistas até então predominantes nos trabalhos sobre os povos
diversos aspectos que esses temas adquirem nos pensamentos dos múltiplos
Viveiros de Castro (1996: 333) identifica “três estilos analíticos principais nos
ocupam a posição de parentes exercem, através das relações que devem ser
Entre os Mbyá, uma pessoa que nasce deve ser persuadida a permanecer nesse
sobreviva, tornando-se uma pessoa mbyá através dos laços que estabelece com
seus parentes. Somente quando a criança começa a andar sobre suas pernas,
ou seja, quando seu corpo se torna ereto, e quando ela começa a desenvolver o
sociocosmologia mbyá, diz respeito ao nome que uma pessoa traz consigo. Este
nome está vinculado a um território divino, de onde ele é proveniente. É por meio
Aqueles que enviam as almas que deverão encarnar nos corpos nascidos entre
os mbyá são os verdadeiros pais (nhande ru ete – nosso pai verdadeiro) e mães
dividem em quatro casais que ocupam suas moradas divinas (Nhanderu amba)
espacial das mesmas nas narrativas dos diversos coletivos mbyá que já foram
aqui. Grosso modo, pode-se dizer que essas “almas divinas” (nhe'ẽ) não
possuem nomes, mas sim que elas são os (seus) nomes. Por ocasião do batismo
(karaí, opita’i va’e) tenham acesso ao nome que passará então a ser verbalizado
propriamente dita, por meio das relações com seus parentes19. Para que isso
essa alma e que mantenham esse corpo vulnerável protegido de afetos outros
manutenção. Essa visão se expressa por meio de conceitos como yvy vai (terra
18 Sobre a configuração desses processos não há uma posição unanime entre os pesquisadores.
para discussões pormenorizadas acerca das teorias da concepção mbyá e onomástica, ver Mello
(2006), Pissolato (2007), Prates (2014), Mendes Junior (2016), entre outros.
19 De acordo com Tempass (2010: 202) uma alimentação adequada ao orerembiú (sistema
culinário tradicional dos mbyá) é capaz de alegrar a alma da criança fazendo com que deseje
permanecer nesta terra, ainda segundo o mesmo autor o apetite das crianças também é um dos
indícios desta disposição em seguir vivendo entre os seus, na medida em que a alimentação é a
condição para o desenvolvimento do corpo.
64
ruim) onde a vida é tekoaxy (sofrível, instável) Segundo Pierri (2013: 44), tekoaxy
Em um mundo visto como “ruim” – tekoaxy, ou yvy vai (“terra ruim”) – a própria
condição humana é, ela mesma, precária, de modo que aos guerreiros (ou à
aos outros seres cuja existência é igualmente tekoaxy - espíritos dos mortos,
partir de um eixo vertical, isto é, na relação com os deuses. (...). Dos tamói,
20 Quando confrontada com os deuses, uma pessoa, para produzir parentesco entre humanos,
precisa eclipsar sua parte nhe‘ẽ − índice de sua potência divina. Do mesmo modo, precisa
eclipsar sua potencialidade morto diante dos mortos, animal diante dos animais, branco diante
dos brancos e xerimbabo diante dos donos. (Mendes Junior, 2016:37)
65
imediatamente humano, mas deve ser produzido enquanto tal pelas ações de
desenvolvimento inicial de uma nova pessoa mbyá. A primeira diz respeito a uma
banana passa, amendoim (restrições alimentares que variam entre aldeias, mas
que indicam que aquilo que o progenitor (pai ou mãe) ingerir pode torná-lo ou
21 Importante mencionar que alguns de meus interlocutores formulavam suas explicações acerca
desta possibilidade de perda do bebê para sua condição anterior ao nascimento nos seguintes
termos : “Nhanderu toma de volta”. Ou seja, há que se ter cuidado para não perder a criança
nem para alteridades do polo animal, nem do polo divino. O que pode indicar uma ambiguidade
na conceitualização dessa divindade, ora agindo com benevolência, ora agindo como um Outro
perigoso.
66
corpo plástico e perecível (tekoaxy) que vive sobre essa yvy vai (terra má)22.
fixa ao corpo e a linguagem se desenvolve. Sua experiência nesta terra faz com
que sua sombra se desenvolva enquanto uma segunda alma, a alma telúrica a
existência passiva, limitando-se a imitar tudo que o seu portador faz. Após a
partir de então, ela passa a ser designada como ãgue, ex-sombra, alma
momento é o seu uso como marcador de pretérito, algo que deixou de ser
(ex-): como xera’yxy kue (minha ex-mulher). Em ambiente nasal, o “k” dá lugar
ao “g”, temos então xemengue (meu ex-marido) e, não menos, ãgue (ex-
(xe), o mesmo é válido para o espírito nhande nhe‘ẽ: nosso espírito. Do ãgue,
diferentemente, nunca se diz meu, pois ele jamais será referenciado a uma
pessoa viva. Esse termo, como afirmado no início, só ganha existência após
22 Para uma descrição detalhada sobre as teorias da concepção e os cuidados com crianças
entre os mbyá ver a tese de doutorado Elizabeth Pissolato (2007).
67
Ou seja, entre sua potencialidade divina (marcada pela fala do mbyá ayvu – o
parentesco, mas essa é uma condição que precisa ser sempre sustentada por
Lima (2002) afirma que a dicotomia entre corpo e alma não seria adequada ao
Taylor (1993) aponta para os termos não proferidos por meio dos quais os
nunca se fixa, por conta das questões relacionais apontadas. É nessa brecha
De acordo ainda com Vilaça (2005), relação entre corpo e alma pode ser
com o que eles dizem. Estabelecer relações adequadas entre parentes quer
constantes entre “os seus”, aqueles que compartilham uma linguagem que tem
a mesma origem divina que suas almas, deve garantir que todos se alegrem
outros que possam vir a desejar fazer dos mbyá enfraquecidos seus parentes.
Veremos adiante que embora essas relações tendam a ser evitadas na maioria
70
dos contextos, há uma centralidade dos bailes e das bebedeiras que ocorrem
capítulo.
pessoa mbyá corre o risco de perder sua humanidade (mbyá) passando a ser
Há, por parte dos mbyá, um investimento ativo nos comportamentos que alegram
(mbovy’a) uns aos outros. Heurich (2010) fala sobre as frequentes visitas entre
Cantagalo.
“Vim, apenas”, como não quer nada. Depois disso, conversa-se sobre o
tempo – “será que vai chover?” – e aí sim costuma-se perguntar o que de fato
visitante fique, para que não vá sem comer algo. A alegria (vy'a), como bem
bobagens que já se fez, mas também das gafes que outros cometem(...)
Aquele que conta a história é obrigado a rir, quase que forçando os outros a
ladainha. A palavra é dada pelo ñanderú (karaí) anfitrião, que é seguido pelo
chegada dos visitantes era marcada pela expressão explicita de satisfação dos
pessoas se juntarem no pátio para rir diversas vezes das mesmas piadas ao
diversas vezes riam das mesmas partes desses filmes, que ficavam comentando
A observação das relações entre cunhados (tovaja) e entre sogra e genros, com
(2014:129-131) descreve como os laços com parentes por afinidade devem ser
23 Uma vez que apenas uma pessoa vale por outra pessoa, na lógica da troca que concerne ao
parentesco ameríndio.
74
as relações. O impacto desta lógica sobre a realidade vivida pelos mbyá junto
série de atividades que são, até certo ponto, obrigatórias, tratadas pela
etnologia como “serviço da noiva” (bride service), o qual, embora não seja
parentesco mbya, toda pessoa que não se case na própria aldeia terá
mbya, e que pode ser entendido como a forma dos Mbya equacionarem
Além disso, Pereira (2013) toca em uma questão central ao nosso estudo, a
tornar-se outro inerente à condição de vivente, até sua expressão mais distante,
outro não-mbyá). Ao foco dessa análise bibliográfica, dado pelo teor dos dados
alteridade desde o âmbito das relações entre sogros e genros ou noras até os
polos mais distantes de alteridade. Cabe também ressaltar como, através dos
“parente”.
avó”) e dizem que é por respeito devido ao fato de que chamar de jurua soaria
bem mais pejorativo (...). Também se fala em xeramói ka’aguy regua (“meu
(“minha avó”). (...). Quando um genro ou nora não aparecia muito para
ajudar ou mesmo para conversar simplesmente, era tido por Lidia e Pedro
como alguém que não cuida os sogros, (...). (Pereira, 2014: 129-130)
autora:
tão respeitada e temida quanto o sogro, contudo, tem um peso social maior,
gera maior proximidade parental entre mulheres que entre homens, além de
um maior controle social detido pela esfera feminina, (feito muitas vezes
uxorilocal24 entre os mbyá ver Assis (2006), Badie (2015), Gobbi (2008) Mello
24 Tendência que Viveiros de Castro (1986: 96) descreve como uma tendência TG nos seguintes
termos:”
77
(2006). Elizabeth Pissolato, em sua tese de doutorado, faz uma afirmação com
o homem tenha prestígio suficiente para trazer sua esposa para junto dos seus
parentes.” (2006:72).
dos motores das variadas formas de deslocamento que são observadas entre os
mbyá. Foi Pissolato (2006) quem associou pela primeira vez os problemas da
(...) a "regra" residencial mais comum entre os 'TG é a uxorilocalidade "temporária" seguida de
ambi – ou neo-localidade e concebida como "serviço da noiva" (isto é mais importante que a "-
localidade") e frequentemente contornada pelos casamentos oblíquos (MB/ZD), poliginia,
endogamia aldeã, parentesco entre os cônjuges, dependendo do jogo político das parentelas e
do status dos envolvidos. Regra, se houver, é esta: os poderosos não moram uxorilocalmente,
nem seus filhos homens.
78
dentro de uma rede que liga as aldeias por meio da virtualidade do parentesco,
Faz-se necessário “cuidar os sogros” sob risco de não ser por eles
que não quer dizer que, em algum momento ela desapareça: como bem
Os índices dessa diferença generalizada, que deve ser neutralizada por meio de
pela oportunidade de trabalho que não tem, mas que seu vizinho
faz (por ele) até o medo do que o mesmo possa fazer (contra ele). Neste
Assim como atestam Heurisch (2010) Pissolato (2006), Pereira (2013) Prates
(2013), Soares (2012), entre muitos outros etnógrafos que pesquisaram junto
comunicação com um animal que se toma por gente. O que as práticas mbya
evitação de eventos deste tipo. Deve-se escutar o que vem dos deuses para
que não se venha a escutar (ou ver) outros “entendimentos” (mba’ekuaa) que
quais as pessoas são consideradas -jekoaku (estar quente), como aqueles que
velhos e dos xamãs, e neste sentido uma das posturas mais valorizadas do
sujeito mbyá é o “saber ouvir” (endu kuaa) ou o “ouvir bem” (endu porã) com
de rezas, entre outros aspectos da vida de uma pessoa mbyá, devem estar
que encontra afigura-se-lhe como gente, atrai-o e torna-o odjepotá, (...)”. O autor
conclui sua reflexão sobre o fenômeno citando uma explicação dada por
Esse tipo de casamento, que redunda na morte da pessoa mbyá, que passa a
viver sob outra forma, recebe uma formulação específica, de consequências não
Mbyá no Rio Grande do Sul para designar as relações sexuais entre pessoas
mbyá e pessoas não mbyá: sejam estas últimas juruá ou pongé (Kaingang). Sigo
Mendes Junior (2016: 89) pelo uso do termo no dialeto mbyá (não traduzido)
83
daqui por diante para não contaminar seu campo semântico com uma leitura
informada por um cristianismo que faz uso de tais conceitos num sentido que
conceito de –jejavy, que diz respeito a mistura entre os diferentes (em potência)
morte.
Este tipo de relações, além de alterar o corpo daqueles que nelas se engajam,
muda a relação da pessoa com os Nhanderu Kuery: fazendo com que não mais
sejam vistos como pessoas mbyá puras e assim não mais estando sob a
que olham exclusivamente por eles. O parentesco divino com os pais e mães
divinos, que enviaram os nhe'ẽ à terra para que vivessem enquanto humanos,
com seus corpos constituídos por meio das relações horizontais com humanos
esses outros (juruá e pongé), fazendo com que os “cuidados” que, como vimos
dispensados.
Isso se dá por conta de uma noção de poluição do sangue o que acarreta num
sexual com pessoas de outras etnias (indígenas ou não) torna o sangue das
crianças, impossibilita que estas sejam nominadas (pelo menos era assim).
No sul do país são vários os registros etnográficos que mencionam tal restrição
entre os Mbyá (Silva 2010, Heurich 2011, Prates 2014, Gobbi 2009), ao passo
aldeia de Mbiguaçu (SC) foi apontado por todos os meus interlocutores mbyá no
Rio Grande do Sul como uma situação altamente reprovável, pela posição
adotada ali em relação as uniões com pessoas juruá. Outro motivo de críticas ao
25 Para uma descrição detalhada tanto sobre o uso ritual da ayahuasca entre os Mbyá e Chiripá
do Mbiguaçu e sobre uma tentativa dos mesmos de apresentar o uso ritual da referida planta aos
parentes de uma aldeia no Rio Grande do Sul e as consequências positivas e negativas desta
experiência ver Mello (2006).
85
amiga mbyá então com 19 anos, surgiu uma conversa sobre esse tema. Essa
muitos deuses” e prosseguiu, “tem o deus da água, o deus do sol e tem também
o deus dos passarinhos e o das árvores” mas estes últimos seriam diferentes
dos primeiros. Perguntei quem era o deus da água e ela disse que era Tupã,
perguntei então quem seria o deus da neblina e ela não soube responder,
perguntei se era Jakairá Ru Ete26, e ela aceitou isso como se fosse uma
(donos), mas ao ver que havia despertado uma curiosidade em mim passou a
dizer que não sabia quase nada sobre esses assuntos e que eu deveria
perguntar aos mais velhos. Uma resposta muito comum entre os mbyá quando
26 Um dos deuses doadores de nomes-almas (nhe'ẽ) que segundo Cadogan seria o “dono” da
fumaça sagrada que sai do petyguá e que costuma ser associada a neblina que recebe o nome
de Tataxina.
86
para longe do convívio com seus parentes, por meio da sedução. Perguntei por
que ela falava com tanta tristeza sobre aquele assunto. Ela respondeu que algo
assim teria ocorrido a uma amiga sua. Perguntei onde essa amiga estava e ela
respondeu apenas que ela havia partido. Diante de minha insistência por
aldeia com o marido juruá e ela respondeu que isso não seria possível.
aldeia estavam rezando para que ela voltasse e ficasse bem. Também minha
interlocutora passara, havia pouco tempo, por uma fase de “doença “ da qual só
conseguiu se ver livre após o tratamento xamânico concluído com a troca de seu
nome. Foi sua tristeza que a levou ao “estado de crise” que os mbyá chamam de
entre parentes.
27 Embora minha interlocutora se mantivesse reticente ao falar sobre o período de “doença” que
recém havia superado, pela transformação que se operou em seu humor quando começou a
falar sobre a partida de sua amiga (até então estava bastante animada) passei a suspeitar que
o episódio que a levara a trocar de nome pudesse ter algo a ver com tal evento. Assim como
ocorre quando alguém que perde um parente tem dificuldade em superar os sentimentos do luto
e passa, assim, a estar em risco de ser abduzido pelos afetos do morto.
87
Note-se aqui que minha interlocutora relacionara diretamente esse Outro muito
particular que é o juruá, aos espíritos provenientes das matas, que seduzindo os
jepotá. A bibliografia sobre o tema conta com alguns exemplos desta relação,
ojejavy (para outros casos nos quais essa diferença é sublinhada ver Mendes
Júnior (2016)).
Interessa, todavia, comentar que algumas mulheres dizem que o sangue do juruá
é mais fraco do que o sangue dos mbyá, ao passo que outras dizem o contrário.
Há ainda aquelas que dizem que o sangue dos juruá é mais quente do que
Foi mencionado acima que alguns estados que colocam a pessoa mbyá em
d’água deverão ser evitados e mesmo a entrada nas matas deverão se dar com
medidas de cunho mágico nos estados de crise que marcam o ciclo vital do
cordão umbelical, a mãe não se pode lavar, não trabalha na roça, nem
cozinha. Não come carne, salvo a de kagwaré (tamanduá) nem chupa cana
Heurisch (2010), com base em sua pesquisa realizada entre os mbyá da aldeia
preenche o silêncio com gritos e ameaças. Isso acaba por afastar muita gente
do baile, por medo dessas cenas. A raiva provém da associação com Outros
– mortos, principalmente, mas também todos esses dos quais se pode dizer
corporais, desta vez ampliando o escopo da reflexão para abarcar tanto relações
Pereira (2013) nos diz com base em sua experiência entre os mbyá no Rio de
Janeiro:
De acordo com os mbyá o consumo de álcool a partir de certa medida faz com
dessas pessoas. Tal consciência não faz com que esse hábito deixe de existir e
90
também pela raiva que transparece durante a embriaguez mbya aponta para
músicas dos bailes, a forma da dança e a cachaça, tudo isso nos remete aos
brancos: a embriaguez que coloca até em velhos xamãs, como vimos antes,
diversos, que vão desde querelas que nascem na convivência cotidiana até os
horizontais que se insinuem para além dos limites da socialidade mbyá, é no seio
aldeias (tekoá).
***
92
II
II.I Apresentação
mas o valor central que a mobilidade tem para as pessoas mbyá é um consenso.
Neste capítulo a configuração reticular das aldeias mbyá, agenciada por meio
O foco desta exposição são os coletivos mbyá presentes no Rio Grande do Sul,
Alegre. Não obstante, alguns temas abordados no capítulo anterior deverão ser
por exemplo, por ocasião de atritos entre “lideranças”. Ou seja, o fluxo das
polos.
É por causa da constatação desta realidade vivida pelos mbyá que trato os dados
28 Ou seja, essas dinâmicas do parentesco que configuram e sustentam a humanidade dos mbyá
orientam as possibilidades de movimento ao longo dessa estrutura reticular de aldeias de modo
que pode-se mesmo falar dela em termos de caminhos superpostos dados a cada grupo ou
indivíduo de acordo com sua inserção num determinado compósito de relações entre parentes.
Configuração tal que orienta os referidos fluxos entre aldeias específicas, ligando alguns nós do
Rio de Janeiro a outros nós específicos no Rio Grande do Sul, por exemplo.
94
identidade constituída nesta interação com uma entidade exógena seria uma
transferir funções básicas de uma instituição para outra. Isso significa, creio
(teko axy) são determinantes para se pensar a condição humana entre os mbyá.
Embora não seja abolida a estrutura fundamental, a noção de feixe, se entendida à luz da
concepção das variações concomitantes, pode ser um primeiro passo rumo a um esfacelamento
do projeto que coloca o estudo etnológico baseado unicamente na noção de modelo.
96
não) por meio das relações que cultivam (idealmente) através dos valores
porque ela não pode ser tomada como suporte ou resultante de identidades
interesse para nossa análise, uma vez que, entre os mbyá, a endogamia étnica
relacional ideal.
Para uma coletividade que se desloca, o ambiente relacional ideal é uma aldeia
mesma ordem, ou a aldeia na qual o grupo que chega filia-se (por meio de laços
Assim como uma coletividade, uma pessoa também se constitui através de suas
relações. Para ela o ambiente relacional ideal é a coletividade na qual uma vida
31 Embora a tendência uxorilocal seja observada, minha principal interlocutora era uma dessas
jovens que saiu de uma aldeia em São Paulo para a aldeia em Porto Alegre em busca de um
casamento.
98
É sobre um fundo de ambiguidade, comum a todos, que o bem viver deve ser
sempre produzido (Overing, 1989, 2000), atualizado, feito, mas essa agência
mesmo (Wagner, 2010). Neste caso a alternativa é partir para evitar os perigosos
se pode partir para voltar a fluir pelos caminhos criados por eles nas terras que
32 De acordo com as narrativas mbyá (Garlet 1998, Assis 2006, Gobbi 2007, Soares 2012, Mello
2007, Tempass 2010, Prates 2013, Heurich 2010, Pierri 2013, Pradella 2009, entre outros)
Nhanderu teria criado as matas para os mbyá e os campos e a cidade para o juruá (algumas
variações nesses esquemas constam na literatura mencionada, contudo essa é uma síntese do
que há em comum entre as diversas narrativas acerca do território), porém os juruá são
gananciosos e avançam continuamente sobre as matas, de modo que o território dos mbyá se
vê a cada dia reduzido tendo que ser submetido à lógica exógena e completamente dissonante
da forma “tradicional” de ocupação territorial deste povo que são as “cercas” que delimitam as
Terras Indígenas.
99
assim mesmo, tem que estar sempre andando”. Isso ouvi de algumas pessoas
“coletividade”?
domésticos e animais que são vistos como agentes relacionais. Assim é possível
falar em mbyá kuery (os mbyá), jaguá kuery (os cães) e xivi kuery (os gatos/as
destes sufixos são: avakue (os homens), kunumigue (as crianças), porãgue
outro coletivo).
exclusiva ore, ambos podendo ser acompanhados pelo sufixo kuery34, de acordo
‘os pássaros fazem seus ninhos nos galhos de árvores/o pássaro (genérico) faz seu ninho no
galho de árvore’. *Há meios de assinalar a distinção fora dos marcadores apresentados acima:
_ verbos cuja raiz indica singular ou plural: yvyra hi'a va'e ‘a árvore que estava de pé’, yvyra
ikuai va'e ‘as árvores que existiam’;
_ modificadores que aceitam flexão do plural: yvyra porãgue ‘árvores bonitas’, ita poyikue
‘pedras pesadas’ (Dooley, 2006:95-96).
34 “ Com pronomes pessoais que designam referentes no plural, o marcador kuery ‘coletivo ou
plural’ é obrigatório apenas na 3a pessoa (quando se refere a pessoas ou, às vezes, a animais):
ha'e kuery. Nos pronomes da 1a e 2a pessoa do plural, kuery geralmente indica um grupo de
pessoas que vai além dos interlocutores:
nhande kuery ‘eu e você e pessoas associadas conosco’ (comumente o grupo guarani quando
o ouvinte for guarani),
101
expressos nas formas nhande e ore. Ou seja, nas formas de inserir ou excluir
proveniência) , “W” Roo Pygua Kuery (onde “W” é uma pessoa em relação à qual
se fala de um grupo doméstico (“W roo” siginifica casa de “W”) , podendo esta
ser o próprio falante), “Z” Retarã Kuery (onde Z é uma pessoa em relação à qual
ore kuery ‘eu e pessoas associadas comigo’ (comumente o grupo guarani quando o ouvinte não
for guarani),
pende kuery ‘você e um grupo mais ou menos fixo de pessoas associadas consigo’. (Dooley,
2008: 107).
35 Ou Nhande`i va`e [Nhande – nós (inc); `i – diminutivo; va’e – nominalizador que, quem].
36 Outra denominação comum aos não-indios é Heta va`e kuery – os que são muitos [heta –
muitos; va’e – nominalizador que, quem; kuery – coletivizador.]
102
idealmente ligadas por laços de parentesco, reguá significando nesse caso “tipo
exemplar”).
Y Reguá Kuery é a forma que levanta mais questões, na medida em que, embora
maior unidade social mais ou menos formal reconhecida pelos mbya, é por meio
meus interlocutores no Rio Grande do Sul nesse sentido era a liderança da aldeia
Não se trata apenas de uma gradação de tipo fractal da menor para a maior
37 Gobbi (2007: 62-65) menciona a forma “xe reguá” como meio de se designar um parente a
partir de ego. Embora a informação esteja correta, para a modelização ora proposta, manterei
apenas os termos acima descritos enfatizando que há variações linguísticas não abarcadas pelo
esquema que tem como finalidade a exposição de uma organização sociológica que pode ser
descrita de outras formas.
103
mais coerente com as formas sociais mbyá do que um Pygua Kuery (coletividade
fundação de uma aldeia para o grupo em particular este era referido na rede a
partir de sua liderança e não de sua localidade, que por questões de política
Assim, para se definir a menor unidade social relevante entre os mbyá devemos
nos voltar para o “grupo doméstico”, o conjunto de pessoas que formam uma
refeições produzidas num mesmo fogo (tata ypy). Esse é referido pelos mbyá
como oo pygua kuery – “os de casa”. Embora uma coletividade definida dessa
forma seja configurada por meio de relações que nós tenderíamos a classificar
estado do país. Alguns anos antes, conversava com a liderança de uma aldeia
na qual diversos de seus filhos moravam, com seus netos, sua mãe e seu pai e
esta pessoa afirmou “não ter parentes” naquela aldeia, pois não havia ali nenhum
irmão seu.
cotidiana. Mas esse é um relato isolado, pois não me deparei com essa categoria
deslocamentos que abordamos aqui são operados pelos mbyá no uso do termo
Grupo, ao longo deste trabalho, é uma tradução que apresento para o sufixo
kuéry quando este estiver posposto aos nomes pessoais e aplicado a uma
parentesco. Para um casal “a-b”, kuéry será precedido por “a” ou por “b”
“Y Reguá Kuery” pode ser descrito como o ambiente relacional local que abrange
problemáticas.
definido na rede em função de uma determinada liderança que não pode infringir
a autonomia dos seus!) podem ser descritas como “jojoapy kuery” (Gobbi, 2007:
80-85), expressão que foi traduzida para o autor como a ocupação daqueles que
vieram “um atrás do outro” (germanos). Jojo rami significa semelhantes, ou seja,
geral.
que podemos lidar com essa modalidade de coletivização. Ou seja, não seria
vinculado a coletividade alguma, uma vez que se observa que este é sempre
Feita esta observação, pode-se dizer que uma das formas de delineamento de
(para exemplos deste tipo de cisão no Rio Grande do Sul ver Assis 2006, Prates
Neste sentido Pissolato (2007: 215) descreve o que observou entre os mbyá de
de novos locais.
Schaden, em 1954, já mencionava a fluidez das linhas que dariam forma aos
Onde quer que haja Guaraní, ouve-se falar em parentelas que se opõem a
são, por outro lado, de consistência tão fraca e tão pouco permanentes que
80)
com formações aldeãs compostas por diversos coletivos desta ordem. Esse é o
deste capítulo.
39 Problemática, pois produzida pela continuidade negativa assim constituída pela desarmonia
que desequilibra o todo e cada parte, uma vez que estados de raiva (mboxy, poxy) vulnerabilizam
corpos tornando-os mais sujeitos a transformação (jepota).
109
amboa`e kuery (outro pessoal). Sugiro isso a partir das recorrentes afirmações
diferentes aldeias como estratégia de busca por cônjuges (Assis, 2006, Pissolato
próprio grupo doméstico (oo pyguá kuery). O jogo com a categoria “parente”
Embora as coletividades das quais venho tratando até aqui contem muitas vezes
definida não é bem visto por nenhum de meus interlocutores. Existem instituições
maioria das vezes aqueles que escolhem não agir de acordo optam (ou são
quais essas figuras centrais não exercem função de controle, essa configuração
assim agrupadas.
inevitáveis.
espaço precisa, volta e meia, se desdobrar, pois o “ore reko” implica o livre
o é, para que ali se possa voltar num futuro não tão próximo nem tão distante.
Se de algo se pode dizer ser “rizomático” esse algo é o uso mbyá do espaço, e
neste sentido os modelos oferecidos pelo Estado Nação não são suficientemente
sistema mbyá.
atividades de caça, pesca, coleta e agricultura, são fatores que contribuem para
das contas são igualmente reprimidos pelo estado e mal julgados pela população
não-indígena. Andar, passear, visitar, viajar, caminhar, olhar por aí, são as
sobrevivência.
Foi nesse panorama que se deu e se dá a retomada do Rio Grande do Sul por
parte dos mbyá que hoje desdobram sua rede em diversos pontos, entre aldeias
Soares (2012: 107-108) em sua tese de doutorado, a maioria dos coletivos mbyá
atualmente fixados no Rio Grande do Sul teria passagem por ocupações mais
41 “As primeiras referências dos Mbya no Rio Grande do Sul datam no ano de 1910, no Relatório
da Secretaria de Negócios e Obras Públicas, que registra a existência de duzentos Guarani, em
1909, no toldo Lagoão, município de Soledade (Relatório apud Freire, 1994: 13). No mesmo ano,
também foram encontrados coletivos Mbya e Chiripa, nos municípios de Santo Cristo e Santa
Rosa sendo que, nesse último, foi constituído um toldo, em 1919, com vinte famílias Guarani,
provenientes do Paraguai, localizado junto ao rio Uruguai, entre os rios Turvo e Buricá,
114
território gaúcho.
correspondendo aos atuais municípios de Criciumal e Três Passos (Venzon, 1993c: 170). O
governo do Estado, no início do século XX, também criou e demarcou os toldos Santa
Rosa, Paiol Grande, Guarani e Santa Lúcia, além de ter identificado os toldos Lagoão, Liso
e Santo Cristo. Entretanto, a pressão dos colonos e a política de colonização do Estado
atrelada a “inconstância” dos Mbya foram responsáveis pelo processo expropriatório de
todas essas áreas, permanecendo somente um toldo Guarani, no município de São
Valentim (Simonian apud Freire, 1994: 14). Esse processo acarretou a ida dos Mbya para o toldo
Guarita, cuja presença já existia desde o final da Guerra do Paraguai, tornando a área “ponto
obrigatório de passagem aos indígenas provenientes de Misiones, à procura de seus parentes”
(Venzon, 1993c: 170).” (Soares, 2012: 107-8)
115
circularem durante o ato da criação da terra. Essa recusa também se dava pela
autonomia sobre seu modo de ser e pela recusa ativa ao modelo estático das
rapidamente atingiu seu limite com a propagação dos conflitos por diversos
casos paradigmáticos das aldeias Tekoá Jatay’ty, onde foi realizado o trabalho
Porto Alegre):
Albion, no bairro Partenon, onde ele trabalhava juntamente com Ivori José
117
diálogos com agentes da sociedade juruá com o objetivo de garantir seus direitos
Guarani (CAPG) é reificado pelo apoio que essa organização vem recebendo de
Rupá).
Qualquer lugar que ele escolhe, ele já sabe. Sabe que é lugar tipo assim,
como juruá sempre fala: é um lugar sagrado. Que é um lugar bom pra guarani
118
porque tudo antigamente que moraram lá ele sabe que é um lugar bem
escolhido pelo Deus mesmo. E ai foi indicado pros mais velhos, pro karaí o
lugar que vai ser pro guarani. Então isso significa pra nós que o lugar já é o
lugar do guarani. Ali tem proteção do próprio Nhanderu... que vai ter a criança
que também vai ser bom pra ela. Vai ser lugar pro guarani mesmo. Então a
gente conhece isso porque é através do nosso Deus, já foi indicado isso pra
lugar pra guarani (...). Fortalecendo a cultura... tudo tem significado... o lugar
e sempre o Guarani fala que tem um teko’a. O tekó significa cultura, tradição,
agricultura, fazendo dança, significa teko, teko’a que é o que a gente sempre
103).
acesso livre aos locais que ainda tem mata e aos recursos disponíveis e
necessários para a reprodução do Ore Reko, desde que essas ocupações não
mas tem que discutir na raiz. Discutir com os mais velhos que sabem, só
pegam os que estão na cidade, que sabem o português. Tem que falar com
depois vir um confiante. A cultura entra quando tem terra. Quando fala do
tão na gaiola, tem limite. Onde tá o direito indígena? Não tá na prática. Índio
119
dono da terra, era dono da terra. A língua é um segredo, é bom para nós,
Atualmente lideranças mais jovens, com o perfil mais voltado para a mediação
Meu avô, na época dele ou, por exemplo, até a minha mãe falava que quando
ela tinha nove anos, os Guarani podiam andar livremente. Por exemplo, se
construíam uma aldeia aqui, depois tinha época de pesca, de caça que eles
iam lá no território, não sei de onde, não era área indígena e podia ficar lá
três meses lá, caçando. Podiam ficar, voltava e traziam muitas carnes na
aldeia. Então era assim, acho que pensam que tão naquele momento ainda,
(referindo-se aos mais velhos) pensam que hoje em dia podem fazer suas
velhos de que não pode mesmo, porque é tudo propriedade hoje, tem muito
tem mata, tem o rio que passa por lá, mas é poluído, até essas coisas dificulta.
É muito difícil pros mais velhos aceitar que é assim né, não existe mais mata.
mundo, que eles podiam ir construir uma aldeia aqui e daqui a cinco anos ir
lá, porque era livre né todo. Nunca imaginava que um dia o branco ia vir e
destruir tudo né, construir cidades enormes, jamais iam pensar né, se era tão
grande a mata, onde o rio não era poluído, como iam pensar que em pouco
tempo iam destruir tudo (Cacique Karaí Poty da aldeia Tekoa Porã, 16 de
Aí depois, quando eu fui lá pro Pacheca, cheguei lá... e vai fazer a casinha...
cacique aí?’. ‘Cacique não tem... eu não sou cacique. Só quero atender as
crianças, a gente daqui né?’. Aí ele falou com o sargento. ‘Quem mandou
vocês entrarem pelo mato aí? Quem mandou fazer roça aqui? Da onde vocês
depois eu atravessei lá pro Kunha Piru, San Ignácio, aonde tem ruína. Aí
depois (...) nós fomos lá pro Cerro Klano e, de lá, cheguei lá pro Cantagalo.
correndo por aí? Primeiro então você tirou licença lá pro Cantagalo, aí depois
você foi lá pro Cantagalo... e depois você me vai lá pra Pacheca! O que você
anda fazendo por aí?’. ‘Nada. Eu não to correndo não. Cantagalo é meu.
Pacheca é meu também, não é de vocês. Lá pra Pacheca tem nhambu, tem
taquaruçu, tem peixe, tem tatu, tem quati, tem mel de abelha... aquilo é meu,
Nhambré também é minha língua, não é sua. Isso é meu. Como é que vocês
descobriram com o índio Guarani. Antigamente foi o índio que descobriu. (...)
Por isso nós viemos pra cá’. ‘Tá bom, tá bom, então tá bom’. ‘Daqui nós
vamos pra onde vocês dêem carta branca. O guarani tem carta branca’. ‘Tá
bom, é verdade mesmo isso que você falou. Pode ir trabalhando, pode ir
seguindo... pra onde vocês quiserem morar então podem ir morar. Santa
II.V. Alguns dados sobre a presença mbyá no Rio Grande do Sul nos dias
de hoje.
na cidade de Porto Alegre e nos limites dessa cidade com a cidade de Viamão,
Alegre) retomada em junho de 201843, fazem com que os números e mapas ora
42 A Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), também conhecida como Grande Porto
Alegre reúne 34 municípios do estado do Rio Grande do Sul. O termo refere-se à extensão da
capital Porto Alegre, formando uma mancha urbana contínua que inclui também o Vale dos
Sinos.
43
“Comunidade Guarani Mbya da Ponta do Arado é atacada a tiros em Porto Alegre”. Site do
CIMI. Disponível em: < https://cimi.org.br/2019/01/comunidade-guarani-mbya-da-ponta-do-
arado-e-atacada-a-tiros-em-porto-alegre-rs/ >. Acesso: janeiro de 2019.
122
antes de minha chegada em campo e segundo me foi dito pelos mbyá dali
aldeias guarani por todo estado do Rio Grande do Sul. No segundo evidencia-se
Mapa 3: Aldeias em relação à proximidade ao centro da cidade Porto Alegre, representado pelo
triângulo vermelho. O ponto amarelo com o número 2 representa as aldeias do Cantagalo: Jata'ity e
Ka’aguy Mirim.
125
Parte II
Etnografias
126
III
Alegre.
III.I – Apresentação
adquire enquanto princípio para esses grupos. Embora seja difícil precisar desde
ethos Mbyá (Pissolato, 2007; Garlet, 1997), que se associa ao mborayu que se
particularidade que permeia o modo de viver dos mbyá, formulando sua reflexão
sobre o tema nos termos de um “ethos caminhante”. Para ampliar essa análise
contribuições de Bateson (2008 [1958], 173) que diz a respeito do tema que “(...)
qualquer grupo de pessoas pode estabelecer entre si um ethos, que uma vez
45“ Essa relação íntima entre ethos e estrutura cultural é especialmente característica de
pequenos grupos segregados, onde o ethos é uniforme e a “tradição” muito viva. Na verdade,
quando afirmamos que a tradição está “viva”, o que queremos dizer é simplesmente que ela
mantém sua conexão com um ethos subsistente. Mas quando consideramos, não grupos
isolados, e sim civilizações inteiras, devemos esperar encontrar uma variedade muito maior de
ethos e mais detalhes de cultura separados dos contextos etológicos aos quais estavam
ajustados, mantidos como elementos discrepantes em uma cultura que se não fosse por eles
128
mbyá está diretamente relacionado com a manutenção das boas relações entre
parentes por meio de uma forma de estar no mundo cuja tônica deve ser a calma
[1958]). Retomaremos essa discussão a partir dos dados que serão expostos.
***
etapa de observação em aldeia). Para os mbyá junto aos quais convivi, aldeados
por meio de uma organização que faz com que a comunicação com a alteridade
seria harmoniosa. Apesar disso, acredito que o conceito de ethos pode ser aplicado com proveito
mesmo a culturas amplas e complicadas como as da Europa ocidental.” (2008 [1958], 174)
129
Esta posição não envolve uma relação de poder entre o “porta-voz” e seus
vozes” um alívio para muitos. Sublinho, porém, que esse tipo de articulação
mbyá. Por meio do escopo proporcionado pela prática do porarõ tive acesso a
se insinua pelas linhas de agência observadas entre os referidos mbyá para lidar
***
que se interessam pela realidade indígena é encarada pelos mbyá como uma
ela está submetida aos mesmos critérios que qualquer outra modulação dessa
descrever.
Cada etapa com sua finalidade específica teria um escopo próprio, porém,
doméstico, cada tata ypy (fogo doméstico) (Baptista da Silva et al., 2008: 146).
população mbyá na região puderam ser realizados. O que quer dizer que dentre
maneira:
132
perigos, principalmente sobrenaturais. Isso faz com que tanto homens quanto
para realizar esses contatos. Assim, antes de sair de suas aldeias, uma série
preparados. Tal fato explica que a grande maioria dos respondentes entre os
nunca frequentou as escolas fora das aldeias e que não se sentem a vontade
mulheres mbyá-guarani nunca saiam de suas aldeias, elas apenas são mais
vulneráveis aos perigos do mundo dos brancos. (Baptista da Silva et al., 2008:
145-6)
brancos” nada observei entre as mulheres que saiam de suas casas rumo ao
133
participante em aldeias mbyá, tanto no Rio de Janeiro (ver Migliora, 2014 sobre
a existência de três “caciques” na Tekoa Mbo’y Ty) quanto no Rio Grande do Sul.
Todavia, sobre o lugar das mulheres mbyá nas relações com o universo
janeiro e abril de 2016 e entre outubro de 2016 e maio de 2017) que há para elas
doméstica, das formas de produzir e lidar com recursos materiais dentro de uma
unidade doméstica mbyá e como esses fatores orientam e se deixam alterar pela
134
mbyá no que se refere aos temas acima elencados. Ficará claro no decorrer da
exposição que essas questões foram delimitadas pelos espaços que conquistei
entre eles.
***
como operam conceitos nativos como ore reko, -vyá, jejavy, jepota, entre outros.
[1958], Wagner 2010 [1981], Strathern 2006 [1988]). É por esse motivo que na
aldeia onde trabalhei. Meu intuito com essa forma de exposição é acompanhar
para o leitor.
ao Rio Grande do Sul. Falei também sobre como minhas questões iniciais se
da empreitada etnográfica.
retracei meu objetivo para entrada em campo mantendo meu interesse pelas
sendo que as mais próximas do centro da capital gaúcha são aldeias da Lomba
que essas mulheres seriam boas interlocutoras e poderiam me levar até uma
pois todas as etnografias que eu havia lido até então sobre os mbyá do Rio
Grande do Sul tinham sido realizadas quase exclusivamente por intermédio das
lideranças ou “porta-vozes” do tipo acima referido e aquela talvez fosse uma via
Percebi que a maioria delas não era fluente em português, nesse sentido o meu
que sustentavam em relação aos juruá curiosos que lhes faziam perguntas para
surpresa divertida para as mulheres e crianças que conheci ali. Mesmo assim a
Foto 1: Um pano familiar com apresentação musical, artesanatos à venda e cesta para
recebimento de doações na feira do Parque da Redenção (Região central de Porto Alegre).
saber falar (um pouco) na língua deles, assim eu aproveitava para tentar achar
pelos filhos da liderança da Tekoá Mbo`y ty (atual Tekoá Ka’aguy Hovy Porã em
alguns dos mbyá com os quais conversei. Ainda assim, dificilmente os assuntos
visita.
139
vinham de uma das aldeias situadas na região mais próxima ao centro da capital
(ver último mapa do Capítulo 2) com seus filhos e viviam em grupos domésticos
não eram parentes seus. Os principais laços de parentesco que mantinham fora
Angra dos Reis, na aldeia do Bracuí. Não quis assustar minhas novas
conversando com elas na calçada. Enquanto isso observei que atendiam aos
transeuntes apenas informando preços aos interessados por algum dos itens
expostos: sem dar o menor espaço para as demais perguntas dos curiosos
de sua reação deixou claro o desconforto que lhe causava a ideia de me receber
em sua casa, mas não recebi uma negativa. Perguntando o que deveria levar de
comida quando fosse consegui vislumbrar uma reação um pouco menos tensa
e nisso me fiei para visita-la pela primeira vez, sabendo apenas que a casa que
carne, erva-mate e fumo de rolo, para as casas das duas mulheres. Fui recebida
Lucrécia. Cheguei um pouco depois do almoço e como ali todos sabiam que a
viagem entre o centro da cidade e aquela aldeia dura cerca de duas horas (dois
espaço reconhecido como parte das terras dos mbyá estava sob disputa com
anda cerca de 27 famílias não-indígenas para que a aldeia contasse com todo o
passaram muitos meses em outras aldeias, tanto no Rio Grande do Sul quanto
aproximadamente 200 pessoas residindo ali, mesmo que por períodos variáveis.
Porto Alegre, no início dos anos 2000. Estas eram feitas em alvenaria contando
com dois quartos, uma sala, uma pequena varanda e telhado de zinco. Quase
todos os grupos domésticos possuíam uma casa naquele formato, bem como
distribuiu pelo território indígena algumas caixas d’água que abasteciam a TI.
ali por meio de um projeto da EMATER. O espaço que entendo como sendo o
“centro da aldeia” ficava num local bastante afastado da entrada da aldeia, perto
funcionalidade determinada.
142
Mapa 4. Aldeia.
assunto, uma vez que nada que eu comentasse rendia respostas interessadas
e eu tinha a impressão de que minha presença ali lhes causava, no mínimo, certo
aos juruá em diversas circunstâncias. Ainda assim, criei espaço para perguntar
se um dia eu poderia dormir por ali. Aquela pergunta fez com que minha anfitriã
que era casado com uma de suas irmãs. As casas onde morava com marido e
Opy. Era uma área distante da entrada da aldeia, e bem mais populosa do que
ouviam e comentavam nossa conversa entre si em mbyá, pois não tinham noção
em permanecer por longos períodos em aldeias mbyá. Recorri mais uma vez às
minhas relações com pessoas que poderiam ser conhecidos em comum na rede
de parentesco mbyá e sobre a banda de forró dos meus amigos mbyá no Rio de
ocupadas, mas que eu poderia acampar, como outros juruá já haviam feito ali
na mata, para ver se tinha onça (algo mais ou menos assim: kaaguipy opitata
144
xivi omãe aguã). Rimos todos e perguntei se xivi queria dizer onça e se havia
alguma pelas matas que circundavam a aldeia. Ainda risonho ele respondeu que
voltei alguns dias depois dessa primeira visita com o material de acampamento.
óculos de grau chamado Karaí48. Esse rapaz me informou que havia outra aldeia
onde estava quando eu mencionei que já havia falado com o cacique sobre
carregar as coisas.
mbyá que eu conhecia, acenamos para pessoas que nos olhavam com
48 Soube mais tarde que aquele rapaz atuava ali como uma espécie de auxiliar do cacique e era
funcionário na escola da aldeia.
49 Algum tempo depois descobri que seguindo na estrada após a entrada da aldeia havia uma
entrada que levava ao terreno de uma comunidade daimista chamada Igreja Céu do Cruzeiro do
Sul, conhecida pelos seus vizinhos mbyá como Paim Kuery. Paim era o sobrenome do fundador
da comunidade daimista e kuery é o coletivizador utilizado para identificar grupos familiares. Essa
forma de definição da “aldeia vizinha” é um dado interessante uma vez que nenhum laço de
parentesco unia os diferentes grupos que habitavam ali.
145
chegarmos numa bifurcação que o levaria para a casa dele, ele me perguntou
pergunta. Ele me respondeu que ele percebia logo “quando é pesquisador”. Ele
antropologia”. Perguntei então se ele considerava isso bom e ele respondeu que
ajudando a carregar até ali e seguiu com sua bicicleta pela bifurcação que levava
as doações de mantimentos que havia levado para minha anfitriã, sua cunhada
e para o cacique, seus pedidos centrais eram: carne vermelha e fumo de rolo.
juruá morando ali era educadamente tornado nítido por meio de alguns
era mais amenizar o incômodo de ter um intruso juruá ali, do que de tornar a
cheguei, reparti as doações com uma senhora que então almoçava ali no pátio
localizado antes da subida que levava à parte central da aldeia. Depois disso fui
até a casa do cacique e ao entregar as doações que levei para sua família
expliquei que acamparia ali a partir de então, e tornei a pedir que me avisasse
em sua casa. Muito bem-humorado, ele respondeu que seria muito difícil que
isso ocorresse.
poderia armar minha barraca e ela sugeriu que eu voltasse até o cacique e
pedisse a ele para ficar numa casa vazia que havia ali perto. Respondi que já
filhas, entre as duas casas que pertenciam àquele grupo doméstico. Na primeira
casa Vitorina dormia e assistia televisão com seu marido e filhas menores e a
outra construção onde ficava o fogão a gás e a geladeira da era onde dormiam
contara. O fogo de chão que utilizavam para cozinhar era feito na varanda da
essa finalidade, um tata ypy, ainda que a segunda construção contasse com um
147
fogão utilizado para a feitura de alguns poucos pratos ou para esquentar água
aquilo que venho chamando de grupo doméstico, uma vez que este é definido
como aquele grupo de pessoas que comem do mesmo fogo. No caso dessa
exceção para todos os grupos junto aos quais realizei pesquisas ali, entendo que
adiante, ficará claro que essa configuração assume diversas formas, podendo
que me aceitar em sua casa estava fora de cogitação51. O pai deixou uma
lâmpada acesa do lado de fora da casa para que eu não ficasse completamente
coberta da construção de alvenaria caso chovesse, mas isso era tudo o que
51 Naquela primeira noite de acampamento na aldeia descobri que aquele tipo de permanência
não poderia durar muito, o frio que fazia naquela região de vale que ficava entre dois morros,
não me deixava dormir, mesmo com saco e isolante térmicos e cobertores. Pela manhã percebia
a barraca completamente molhada pelo sereno que caía durante a noite. Daquele modo os dias
na aldeia, embora empolgantes por conta das novas informações sobre aquele que eu esperava
que fosse se tornar meu campo, logo ficavam exaustivos e eu sentia sono enquanto o sol me
aquecia.
148
poderia fazer para tornar minha estadia ali menos desconfortável. Passei a
contexto.
primeira refeição do dia, era feito o fogo por uma das filhas, a mãe cozinhava,
uma delas passava a varrer o pátio, a mais nova dava milho para as galinhas
que eram liberadas do galinheiro e soltas permaneciam a maior parte do dia. Nos
de parentes em sua varanda. O pai como agente de saúde circulava pela aldeia
equipe de saúde trabalhava ali, mas passava também bastante tempo entre os
seus.
Enquanto estive ali não era época de plantio, por isso não pude observar
como atividades voltadas para a agricultura familiar eram distribuídas entre eles,
que de fato possuíam uma pequena roça pouco distante das casas de onde de
vez em quando a mãe ordenava a alguma filha que trouxesse mandioca (mandio)
Vitorina dizia que plantava também moranga (andaí), mas alegava não se
interessar muito pelo roçado. A caça estava fora de questão pois, segundo me
149
não existiam mais. Nada me foi dito quanto à pesca, apenas certa vez Vitorina
me pediu para descer até o mercado mais próximo da aldeia e comprar peixe
do grupo, segundo ela relatou. Aos domingos ela vendia seus artesanatos no
Brique, além disso, fazia porarõ no centro da cidade no mínimo uma vez por
semana. Suas saídas eram importantes para “comprar trigo, massa, arroz, feijão,
roupas...”52.
junto com a família e a filha mais velha logo começou a me ajudar com a língua.
lições que eu tomava ali no pátio mesmo. Volta e meia, da cozinha, a mãe
mandava sua filha escrever (-mbopara) algo, quando de longe me ouvia com
52 Dentre os homens que conheci naquela aldeia apenas o irmão do marido de Vitorina trabalhava
fora da aldeia, no supermercado Zaffari. Postura diferente daquela que os outros homens que
conheci na aldeia mantinham.
150
meio (de 12 e 16 anos) estavam sempre por perto e mais riam timidamente (-
onde ecoavam os sons dos cantos e danças que ouvíamos do quintal da família
entrada dos juruá ali, restrição com a qual meus anfitriões concordavam
na Opy, eles mesmos frequentavam bem menos e Vitorina não via nada de
ali, sobre o meu trabalho como pesquisadora, sobre o tamanho das famílias
que eu viesse a morar na casa deles, eu me sentia uma visitante estranha, mas
53 Relação recorrente também no discurso da Kunhã Karaí (xamã mulher) junto a qual realizei
pesquisas no RJ.
151
A filha mais velha, Ane, então com 19 anos, além de me ajudar com a
língua me levou, junto com sua irmã caçula, Ádna de 7 anos, para fazer trilhas
próximas. Foi numa dessas longas caminhas que descobri que ela havia
como “doença” (mba’e axy – coisa ruim). Para lidar com aquele estado
pelo qual ela deveria responder daquele momento em diante, medida que fez
imperfeita (teko axy) enquanto ser humano e, logo, enquanto parente. O alegrar-
(...), os Guarani não acumulam nome. Este, uma vez mudado – o que ocorre
Castro (1986, p. 375), em que o nome não tem função de classificação, mas
Para prosseguirmos a conversa comentei com Ane que sua irmãzinha era
uma criança muito feliz. Ela respondeu que ali todos eram felizes, exceto ela
própria. Perguntei se ela não começaria a namorar e ela disse que os rapazes
tentavam namorar com ela, mas ela nunca queria. Perguntei então se seus pais
a impediam e ela respondeu que não, que era ela quem não tinha vontade.
entre pessoas juruá e mbyá a jovem sonhava em se tornar uma fotógrafa viajante
e tinha um enorme fascínio pelas bandas de rock que ouvia no seu celular. Creio
que fora justamente essa sua tendência que a levou a se relacionar comigo de
vim a conhecer.
outros jovens mbyá ali – e me mostrava algumas postagens que fazia em seu
facebook sobre o preconceito que sofria em relação aos seus gostos, uma vez
que os estilos musicais mais populares ali eram as variações do forró e o funk.
Por esse motivo ela pensava em caminhar por outras terras, visitar um irmão por
parte de pai que morava numa aldeia do Espírito Santo de cuja existência havia
naquele contexto, mesmo depois de ter sido renomeada ela “não queria ficar” e
54 Ao longo do meu trabalho de campo junto a outro grupo doméstico naquela aldeia, mantivemos
nossa amizade e presenciei o momento no qual Ane passou a namorar com um jovem ali mesmo
tornando-se cada vez mais “estabilizada” dentro daquela realidade relacional.
153
andar por outras aldeias era a solução que ela vislumbrava dentro de seu
Em uma outra conversa sobre casamento ela afirmou que não poderia se
casar naquela aldeia por ali serem todos seus parentes. Sua irmã de 16 anos,
e, segundo sua mãe, em breve se mudaria para a casa que ela e Ane
daquela aldeia: “por um lado ou por outro, é que nem uma corrente, é tudo
ajuda aos membros da família que me recebia para achar a casa de uma
55 De fato, em português o termo “parente” e não xeretarã, era o mais comum para designar
outros moradores da aldeia por diversos de meus interlocutores entre 2015 e 2017. As respostas
as perguntas que o uso daquele termo suscitava, ao meu interesse em determinar graus
específicos do parentesco entre meus interlocutores, eram sempre bastante vagas, mas com
algum esforço achavam ou não um motivo que justificasse o uso do termo. Na sequência da
exposição apresentarei alguns destes casos.
154
cunhado de Vitorina, o cacique. Ou seja, era sogra de sua irmã. Narro esses
fatos a seguir.
mulheres mbyá que faziam porarõ, ou seja, sentavam-se sobre panos com suas
centro e apenas uma delas, moradora da mesma aldeia que Vitorina e sua
doações de comida para as crianças que disse habitarem com ela. Sua
idade, que de fato compreendia pouco o português e falava ainda menos. Seu
maioria das vezes respondiam apenas “não sei” (ndaikuaa`i). Outras pessoas
respondiam apenas que ela morarava “lá em cima” (yvyã re) e nada mais. Ane
achou que se tratava de uma de suas tias, cujo nome era parecido e me levou
até sua casa. Não era a mesma mulher e aquela (assim como as demais que eu
havia conhecido ali até então) não se interessava em me receber para além do
pátio, embora aproveitasse minha visita para aceitar o pety (fumo de rolo para o
manteve longe da aldeia por cerca de uma semana. Quando voltei as chuvas
tinham passado, mas o tempo ainda não estava firme. Parecia que choveria
ainda choveria mais e, sendo assim, seria melhor que eu voltasse para a cidade
Muitos deles almoçavam, porém daquela vez nada me foi oferecido e fui
diferença era mais marcada e alguns outros episódios de mesmo teor mostrarão
contexto.
zombar de mim dizendo: “quando chover a sua barraca vai virar uma canoinha”.
Respondi que talvez assim eu chegasse na cidade sem pegar ônibus e todos
em português: quer morrer. Nenhum abrigo me foi oferecido para caso viesse
Ao longo daquela que foi minha última permanência acampada ali, dois
Evento 1:
visitantes juruá circulando pela aldeia acompanhados pelo cacique, que vestia
um cocar, e por alguns jovens e crianças caracterizados como que para uma
a eles. Mesmo assim fiquei sabendo que eram membros de uma determinada
comunidade evangélica de Porto Alegre. Estariam ali, segundo eles, não para
56 Sobre o papel dos Corais Guarani enquanto instrumentos de afirmação da identidade cultural
Mbyá e comunicação de uma postura mais assertiva na busca por seus direitos específicos ver
Macedo (2012).
158
seguida uma grande refeição, que consistia em muitos frangos assados (com
acompanhamentos).
sobre onde comprar os materiais, sobre como era confuso o centro de Porto
Alegre e sobre a refeição que logo seria servida, e que empolgava mulheres e
contexto eu me tornei diferente dos demais juruá presentes. Entendi ali que,
embora eu ainda fosse encarada como uma fonte de recursos, como os outros
escola, como se esperasse por algo, me levou para comer em sua casa: galinha,
159
arroz e suco em pó. Ela e seu marido almoçaram junto comigo, um pouco mais
tarde ela e suas quatro filhas participaram também da refeição junto aos
visitantes. Seu marido não foi ao encontro de sua esposa e de suas filhas que
comiam com os juruá, tendo como eu se dado por satisfeito com aquele último
prato do dia. Entre os comensais dos visitantes vi apenas dois homens adultos,
entre eles o cacique que organizava o evento e era, por sua função, o “porta-
Evento 2:
entanto, enquanto eu fui ao banheiro elas sumiram do pátio. Imaginei que haviam
da aldeia. Demorou até que me desse conta de que estava tudo silencioso
venda57. No ponto minha anfitriã e suas filhas agiram com distância, quase como
57 O ônibus rumou para a cidade naquela manhã de domingo com bem mais do que a metade
dos passageiros sendo pessoas mbya. Muito mais crianças do que adultos. Todos carregando
seus artesanatos para vender no Brique. Vi apenas um homem adulto, a grande maioria eram
mulheres. O homem era bastante jovem e dividia com uma menina (cerca de 18 anos de idade)
160
a mim poucos dias antes, quando estavam recebendo visitas de seus parentes
visitante juruá. Uma atitude inversa àquela que havia experienciado no dia
ocorrem entre os meus interlocutores mbyá neste trânsito entre aldeia e cidade.
Pelo que observei em aldeias, tanto no período narrado até agora, quanto
no período que narro em seguida, em situação ideal uma família tem como seu
“porta-voz”, sua voz para fora, nas relações dentro da aldeia, um homem, a figura
o cuidado de um bebê de colo. Veremos no capítulo seguinte que é relativamente comum ver
homens participando indireta e pontualmente no porarõ de suas companheiras, sobretudo,
quando estas carregam consigo crianças muito novas.
161
extensa. Isso não quer dizer que as mulheres dentro de uma família mbyá
estejam submetidas a esses homens, mas quer dizer que a forma como se
preferencialmente masculino.
externos usa a fala firme, porém, no que se refere à captação de recursos dessa
atividade porarõ. Elas diziam que eles não faziam por “vergonha”.
Aos homens mbyá não é interessante lidar com o fluxo direto de bens
veremos no próximo capítulo. Aos homens cabe, nessa relação com a alteridade,
do Capítulo IV.
uma casa mbyá naquele contexto é justamente o tipo de aporte material que flui
do primeiro para o segundo. Mas até que ponto esses dois pressupostos de
uma família mbyá? A experiência demostrou que não há muita elasticidade neste
quesito. Penso com base nos dados já expostos e naqueles que exponho na
sequência, que foi justamente o fato de eu estar lidando com uma família padrão,
ou seja, uma família com um homem ocupante do lugar de “porta-voz” que não
curso dos eventos viria a comprovar, na medida em que passei a lidar com uma
tudo aquilo que ele tem a oferecer, ou seja, receber em casa um juruá justamente
por tudo aquilo que ele tem a oferecer materialmente (recursos dos quais aquele
que se dispôs a recebê-lo usufruirá somente com os seus), é uma decisão que
que se assume.
responsabilidades que poucos ali gostariam de tomar para si, uma vez que
163
aldeia e entre aldeias, e se seria por meio das mulheres que a entrada desse
responsabilizar pela presença desse Outro (que está ali por algum tipo de
parentes seus ou não. Todos os fatores expostos alterariam a forma de lidar com
generosidade, por exemplo. Logo, essa é uma escolha que dificilmente seria
evangélicos, recebi a atenção de uma jovem mbyá que fazia porarõ. Talvez não
sobrinha daquela senhora. Ela estava com 19 anos e dizia ter chegado naquela
Mbo’y ty , onde eu havia trabalhado antes, e por esse motivo mostrou-se ainda
pousavam sobre seu pano de porarõ e se ofereceu para me guiar pelo centro
tão perdida quanto eu, logo o motivo de tanto interesse em me ajudar certamente
era outro.
passou a escolher o que desejava. Eu, feliz em achar pela primeira vez uma
mbyá de fato interessada em conversar comigo, fui deixando que ela escolhesse
aldeia. Yvá ficou com a maior parte das compras ali realizadas. Em seguida, me
pediu para passar no mercado mais próximo com ela e comprar itens
conheci nas aldeias da Região Metropolitana de Porto Alegre): arroz, feijão, trigo,
bastante peso: aquela compra seria uma contribuição dela para sua casa. E
mesmo depois que eu entrei para o convívio da família em questão, como ficará
claro ao longo da exposição, tudo o que vinha de mim era tido como uma
Pedi para visitá-la na aldeia no dia seguinte e a resposta foi positiva; ela
disse que cozinharia para mim e me apresentaria à sua tia, a dona da casa. E,
com ela58, convidou-me para dormir lá. Soube, chegando na casa de minhas
partido alguns meses antes para viver em outra aldeia, ou seja, nada as impedia
campo se tornou possível. Mesmo que essa entrada ainda estivesse submetida
por um xeramõi59).
58 No Jaraguá ela teria assistido a um show dos Moleques da Pisadinha, banda dos mbyá junto
aos quais eu havia realizado trabalho de campo e que seriam seus primos paralelos (mantendo
contato regular com alguns deles via Facebook). A despeito do reconhecimento desse vinculo
de parentesco, um breve relacionamento se iniciou entre Yvá e um dos sobrinhos de seus primos
(a que ela se referia como Kuaray Kamba’i, apenas) por ocasião desse baile no Jaraguá. Nas
palavras dela: “namorei um menino de lá, um kamba’i (escurinho). O nome dele era Kuaray”. Em
outras conversas sobre esse ocorrido que tanto a marcara descobri que na noite deste baile os
dois ficaram juntos e ela o levou para dormir em sua casa. Porém no dia seguinte ele voltou para
sua aldeia no Rio de Janeiro. O rapaz a convidou para ir com ele, mas ela declinou o convite
dizendo que visitaria em outra ocasião. Acabou indo morar no Rio Grande do Sul, mas via em
mim sua chance de um dia se mudar para a aldeia daqueles seus parentes no Rio de Janeiro e
volta e meia tocava nesse assunto.
59 Para informações detalhadas sobre a conformação de alguns Retarã Kuery que já se fixaram
no Cantagalo ver Gobbi (2008:75).
166
Cheguei à aldeia no dia seguinte por volta das 16 horas. Apenas uma
menina, então com 10 anos de idade, se encontrava na casa. Ela sabia que uma
xinhorá chegaria procurando por Yvá naquela tarde e por isso me deixou entrar
e esperar enquanto Yvá não voltava da escola60. Yvá não me esperara em casa,
Yvá era uma mulher que falava português com uma fluência acima da
média das mulheres que conheci na região metropolitana de Porto Alegre, mas
não era a única e nem era totalmente fluente, era apenas aquela, dentre as que
conheci ali, que mais se interessava em falar na língua do branco (juruá ayvu).
Coincidentemente, ou não, Yvá também foi a única mulher de outro estado com
a qual eu vim a estabelecer relações no Rio Grande do Sul. Ela vinha de uma
fator relevante para se pensar essa abertura incomum ao diálogo com uma
xinhorá era o fato de que ela tinha uma inserção muito instável no grupo
60 Na verdade, Yvá não estava propriamente na escola, mas nas imediações da mesma utilizando
o sinal de internet da escola, que era aberto e abrangia toda a área do campinho, para acessar
a internet com seu celular. Embora os funcionários da escola insistissem que ela voltasse a
estudar essa ideia passava bem longe de seus planos, uma vez que ela considerava seu domínio
do português suficiente para conseguir até mesmo “um emprego fora da aldeia” como comentou
e cogitou em diversos momentos.
167
doméstico onde se encontrava. Sua idade, 19 anos61, também pode ter contado
para esta disponibilidade. Porém, outras jovens da mesma faixa etária foram
Pouco mais tarde Yvá chegou e depois dela mais dois jovens, um menino
receberam uma ligação no celular da casa. Então elas desceram a colina que dá
início deste capítulo) e ajudá-la a subir com as coisas que trazia: artesanatos e
compras.
apresentação formal. Fui apresentada também à sua filha mais velha, seu genro
utilizada como cozinha, tata ypy, e tomamos chimarrão enquanto ela e Yvá
fumavam o petyguá.
Naquele espaço permanecemos por algumas horas nós três e a filha mais
grupo doméstico, junto com seu marido e a filha menor. Aquele momento simples
chão e pelos petyguá. O ambiente enfumaçado e o tom das falas ali remetiam
61 A mesma idade de Ane que, embora tivesse sido minha melhor interlocutora até então, nunca
me ofereceu qualquer abertura para minha permanência em sua casa.
168
Mais uma vez me apresentei. Mais uma vez falei da minha vida na aldeia
(Camboinhas – Niterói).
ojejavypa, o que servia para insinuar que eles não seriam propriamente mbyá 62.
Além das Terras Indígenas da Guarita e da Estiva, também por meio da T.I. do
Jaraguá em São Paulo, de onde viera Yvá, meus novos interlocutores estavam
diretamente ligados ao pessoal de Zaira, Zaira Kuery (como falavam), por laços
interestaduais.
do grupo doméstico encabeçado por Níria que aqueles que ali me recebiam não
62 Assim como todos os mbyá com os quais conversei sobre o pessoal de Zaira desde minha
chegada ao estado.
169
meu nome de batismo mbyá dado por Zaira enquanto xamã ou kunhã karaí
daquele grupo, uma vez que juruá não tem nhee como os mbyá, ou pelo menos
Minhas anfitriãs, Níria e Kerexu (sua filha mais velha) diziam estar
morando naquela aldeia há cerca de dez anos. Niria que também viera da Terra
Indígena da Guarita, criara seus filhos mais velhos na Terra Indígena da Estiva.
Mudou-se desta última para a Terra Indígena onde então residia junto com
grupo delas, que o cacique63 não os atendia como aos demais grupos
De acordo com Yvá, o cacique teria sido criado por sua tia, Niria, junto
com e como os filhos dela na Aldeia da Estiva. Atualmente como cacique, ele
água64, e nisso ele falhava, segundo elas, justamente com aquele pessoal, seus
parentes que moravam mais perto da saída da aldeia do que dos demais
64 A rede de água da aldeia fora feita em meados do ano 2000 e era alimentada por uma caixa
d’agua instalada pela FUNASA no mesmo ano.
65 A localização distante fora utilizada para justificar de modo técnico a ausência de fornecimento
de água para aquele grupo doméstico algumas vezes.
170
ocorrer frequentemente.
Mas o principal problema do ponto de vista de Niria era a falta de visitas 66,
prestando realmente pouca atenção aos argumentos das outras duas mulheres.
aldeia era a real falta daquele homem para com aquela senhora, na perspectiva
dela.
matriarca inflamava ainda mais o discurso das outras duas, sua filha e Yvá 67 em
contextos. O que depois eu percebi não ter consequências práticas nas relações
mais amistosa.
66 Como já deve ter ficado claro, àquela altura eu não me encontrava em condições de questionar
meus anfitriões nem muito menos de confrontar o cacique ou quem quer que fosse acerca das
alegações feitas. Yvá falava até mesmo em denunciar a situação precária e injusta da família de
Niria no facebook, o que aquela não permitia que fizessem por ser “boazinha demais”.
Perguntavam-se ironicamente quem teria sido o karaí que viu aquele nome
inexistente para ele e riam folgadamente sempre que falavam aquele nome, a
risadaria se repetia toda vez que alguém lembrava e falava novamente o nome
aldeia em poucos segundos passava pelas casas onde minha anfitriã vivia com
seus parentes. Seu grupo doméstico tinha três construções. Uma casa onde
morava Niria (60 anos), sua filha mais nova Tamía (12 anos), dois de seus
respectivamente)70 e Yvá (19 anos). Na outra casa morava sua filha Kerexu (28
68 Para outros exemplos da importância do humor para a manutenção das relações ideais entre
coresidentes ver Anthropology of Love and Anger, em particular o artigo de Joana Overing.
69 Havia outros caminhos de entrada e saída pela mata, mas nenhuma como essa passagem
que desembocava numa estrada (uma via principal de pouco movimento) e anunciava o início e
a condição da Terra Indígena por meio de uma placa da FUNAI. Por isso me refiro àquela
passagem como “entrada e saída oficial da aldeia”.
70 Estes, assim como suas filhas, e Yvá a chamavam de “mamãe” (em português mesmo no meio
de conversas em mbyá), por isso ao falar sobre seu parentesco em relação a sua avó essas
172
anos) com seu atual marido Jonas (28 anos) e uma filha de menos de um ano
chamada tata ypy (lugar do fogo), utilizada para fazer a maior parte das refeições
Além das filhas de Níria que moravam com ela, Tamía e Kerexu, ela tinha
Metropolitana de Porto Alegre. Eram eles: Jekupe, então com 25 anos, que até
pouco tempo estava morando com a mãe e havia se mudado para uma aldeia
aldeia), Xunu, com 30 anos de idade, que havia permanecido na aldeia da Estiva
ocupação que sua irmã Kerexu tinha na escola da aldeia onde habitava junto ao
e Tamía foi a única filha da segunda união da mesma. Além destes alguns outros
crianças sempre falavam, ela é mais da minha mãe, mas eu chamo ela de mãe e minha mãe de
Kerexu.
173
não ser mais algo tão corriqueiro a mortalidade infantil entre os mbyá.
Nota-se pelas fotos abaixo que as casas do pessoal de Níria são feitas de
Nenhuma dessas construções era feita em alvenaria, como as que a maioria dos
grupos domésticos da aldeia possuíam por doação feita no ano 2000, cinco anos
antes da data em que afirmaram ter se mudado para aquela aldeia, pela
banho íamos até uma pequena retenção de água no meio de um córrego estreito
que era compartilhada com outros grupos familiares, numa trilha dentro da
mata72. As margens dessa trilha possuíam pequenas entradas que nos serviam
como sanitário.
71 Penso que por ninguém reclamar a falta de uso daquele banheiro e por acharem perfeitamente
normais os recursos que tinham para tomar banho e fazer suas necessidades, possivelmente se
o abastecimento fosse normalizado aquele banheiro seria tão utilizado quanto o fogão a gás.
72 O rio que atravessa a aldeia não estava em condições apropriadas para banho.
177
cômodo voltou a ser de Yvá e eu passei a ficar numa cama no mesmo cômodo
cômodo, onde havia uma “cama de viúva” que passei a dividir com Yvá. Quando
os visitantes eram Jaxuka e seus filhos, com ou sem seu marido, eu e Yvá
(farofa feita de farinha de trigo, óleo, água e sal formando uma massa que ao ser
assada deve ser constantemente mexida para que ganhe sua consistência
flocada) sentadas no tata ypy, eu, Kerexu, Niria e Yvá enquanto os mais jovens
fazer “café guarani”, uma opção para os dias em que faltava pó de café: coloca-
colher. Logo em seguida adiciona-se água fervente e por fim retira-se o pedaço
como uma forma de lidar com a escassez de recursos para obtenção do produto
essa bebida que os juruá tomam pela manhã e que eles ofereceriam e tomariam
recebeu no seu pátio. Aproveitei para pegar com ela meus cobertores e saco de
expliquei que dali em diante eu ficaria na casa dela, não mais precisando
179
Passei também pela casa do cacique a quem também informei que ficaria
hospedada na casa de Niria, sua mãe de criação, informação que ele recebeu
pedido durante a visita dos evangélicos. Avisei que precisaria visitar minha
Niria. Ele então aproveitou para me pedir que trouxesse de lá coisas como
pulseiras de linha, anéis de coco, sementes grandes para vender na cidade como
encaminhei-me de volta para aquela casa, com o fim de ali passar a residir.
Minha volta se deu com naturalidade e meus anfitriões pareciam felizes com a
minha permanência ali, contudo, quando minha estada se prolongou por mais de
ordens que justificariam (do ponto de vista deles) o pedido para que eu
A primeira vez que isso ocorreu foi porque todos iriam sair da aldeia, com
diferentes destinos, ao mesmo tempo e eu não poderia ficar ali sozinha, quando
(para eles), a ida de Yvá ao hospital numa emergência de saúde fora o indicativo
180
de que eu não deveria ficar, pois ela seria “responsável” 73 por mim ali. Niria havia
saído também e sua filha mais velha disse que eu deveria esperar notícias da
coisa.
Havia ali uma clara contenda entre Yvá e Kerexu e a segunda com o
tempo passou a deixar claro que sua antipatia pela jovem (que àquela altura eu
ainda não sabia ser sua cunhada) se estendia a mim, ou seja, ela não me
cabe ressaltar que foi aquele evento que me fez começar a perceber a
uso desse tipo de artifício foi rareando e vivemos períodos de “alegria” (-vyá)
73 Embora esse termo nunca tenha sido utilizado por meus interlocutores diversos eventos
apontam para esse esquema sociológico de recepção de uma alteridade no meio doméstico.
Aprofundarei minhas considerações acerca desse aspecto de minha relação com meus
interlocutores em aldeia na medida em que a exposição leve ao acúmulo de dados sobre o tema.
181
não era bem vista entre os demais moradores daquela aldeia e os visitantes de
quanto menos participar. Em casa, isso ocorria por ocasião de visitas, fora do
acompanharia, pois eu não tinha recursos para dar conta de todas as demandas
na primeira ida ao mercado após essa conversa, a própria Niria sugeriu que Yvá
de campo ali.
Essas compras semanais, e outras que iam sendo feitas ao longo dos
dias, não faziam com que a minha presença ali fosse indispensável ao grupo.
assim que passasse o frio eu voltasse a acampar, ali mesmo no terreno daquele
a minha presença ali nunca seria inteiramente bem quista, eu nunca deixaria de
74 Bem mais distante, para irmos até aquele mercado precisávamos pegar um ônibus. Porém
eles realizavam entregas na aldeia. Além disso, o acampamento mbyá do Lami ficava muito
próximo daquele mercado, o que trazia para aquela região um intenso fluxo de pessoas mbyá
das aldeias Cantagalo I e II, Itapuã e Lomba do Pinheiro, recebendo benefícios no caixa
eletrônico, abastecendo suas casas e visitando parentes.
183
ser uma xinhorá na casa deles, com todas as mazelas que a adoção daquela
habitual para qualquer resíduo), respondi que a casa era dela e era ela quem
deveria me dizer o que se poderia, ou não, fazer ali. Ela então me respondeu
conferia como um reflexo da educação escolar, mas essa não é uma resposta
que transparecem na relação das mulheres mbyá com o modo de ser dos juruá.
Quero dizer com isso que sempre me deparei em campo com a demonstração
ideia de dar satisfações aos outros (sobretudo aos juruá, fossem eles
O que poderia ser interpretado como uma simples falta de vontade de responder
à curiosidade do juruá.
resposta que mais ouvi foi “Ndaikuaai” (eu não sei), o que me fez entender que
correto (quanto a coisas simples como jogar resíduos no chão da sala, tomar
em relação a mim.
185
de estabilização relacional.
estava grávida de um dos filhos de Niria. Aquele rapaz que se mudara dali
trabalhar para os juruá no entorno. Soube também que a mudança do irmão, que
era encarada por sua cunhada coresidente e seus cunhados em outras aldeias
como culpa de Yvá75 o que a mesma rebatia e ao seu lado contava com o apoio
de Níria.
A segunda versão de Yvá sobre sua migração de São Paulo para o Rio
Grande do Sul não mais envolvia uma visita a irmã de sua mãe e seus familiares.
Yvá e sua cunhada, minha principal interlocutora me contou que saíra da aldeia
do Jaraguá em São Paulo para visitar uma amiga que morava ali e só se mudou
mesma. Ou seja, o fato daquela senhora ser irmã de sua mãe não havia sido o
Foi em um baile de forró que ela se envolveu com Jekupe, mas nunca
ficou claro se o parentesco entre ela e a família dele era reconhecido desde antes
75 Como que numa repetição da premissa do mito no qual Nhanderu que abandona a esposa
grávida por culpa do comportamento dela própria (Pissolato 2007, Nimuendaju 1987, Prates
2014, etc).
186
daquele momento ou se fora elicitado (Wagner, 1974) apenas para justificar sua
companheiro. Até o nascimento de sua filha, no entanto, ela sustentava que viera
de São Paulo para ficar na casa de sua tia e assim começara a namorar o primo.
existentes na relação entre ela e seus cunhados. O pai da filha que Yvá esperava
manteve o relacionamento a distância com ela nos primeiros meses após sua
mudança para outra aldeia, principalmente pelo telefone, mesmo assim eles
brigavam constantemente.
tanto Yvá quanto Níria que o aguardavam ansiosas. Além disso a rejeição de
Naquele período ele esteve também em uma aldeia em Angra dos Reis no Rio
rapaz de 25 anos tinha dois filhos com uma outra mulher moradora da aldeia do
primeira união.
187
roupa, lavar louça, ver TV, lidar com a terra nos períodos de preparação, plantio
aqueles que apenas queriam aproveitar o sinal de Wifi aberto ou socializar com
escurecer do céu o jantar era preparado por Niria ou Yvá e distribuído em pratos
feitos para todos os habitantes daquela casa (nem sempre Kerexu e seu marido
conversavam sobre outros habitantes da aldeia: quem ficou kau (bêbado), quem
que falava.
Por conta de sua frágil situação dentro do grupo familiar junto ao qual
estava vivendo, Yvá estava sempre “doente”, “com coisa ruim” mbae axy, com
sensação ruim na cabeça (akãraxy). Quem cuidava dela nesses casos era Niria,
com a fumaça (tataxi) de seu petyguá e suas rezas melódicas, no tata ypy ou na
que ali ninguém frequentava a Opy da aldeia, pois esta era muito distante do
terreno que ocupavam e o caminho até lá era muito escuro. Yvá, por exemplo,
188
dizia sentir falta dos cantos e danças noturnos que ocorrem nas Opy, mas
também dizia não sentir necessidade de frequentá-la ali. Isso porque Niria supria
mais das vezes se passavam à beira do fogo no enfumaçado tata ypy. Outras
a mbyá. Niria assim o fazia sempre que havia demanda. Esses tratamentos eram
beira do fogo de chão no tata ypy. No fogo sempre repousava uma chaleira
(pavá) e dele eram tiradas brasas com as quais acendiam o petyguá que
189
compartilhavam entre si Yvá. Tamía e Níria. Eu tinha meu próprio petyguá (no
momentos no tata ypy, ficando geralmente a assistir TV. Idade não era o fator
que determinava aquele comportamento, uma vez que Tamía, então com 12
anos, estava sempre junto conosco e depois de Níria era a pessoa que mais
pegava o petyguá.
tata ypy que tanto lembrava a atmosfera da Opy, aquele momento ocorria na
sala, com as luzes acesas e sem fogo de chão. Ainda com petyguá, chimarrão e
tata ypy eram integralmente transferidos para a sala onde todos se juntavam. As
rezas ocorriam apenas quando algum enfermo era diretamente tratado com a
enfatizo que a tônica daqueles momentos era mais sua informalidade do que sua
mulheres mbyá sobre seus panos no centro de Porto Alegre) e cascas de árvores
(a mais utilizada por Níria era a casca de uma árvore chamada ryvádja rembiu)76,
além de manter um jardim de ervas medicinais com ervas como guiné (pipi) que
todos deveriam comer e/ou tomar chimarrão juntos. Aos que se deixavam dormir
katu, rejepotavaé – (numa tradução livre: levante logo você jepotá!) gritava a irmã
nas relações de parentesco, sobretudo por causa das querelas entre Kerexu e
No mesmo período Yvá, por sua vez, me acordou um dia para conversar
conversando e rindo “o tempo todo”. Isso seria necessário, pelo bem da minha
76 Ryvaja s. Tiriva, periquito. (De yvyra ja. [yvyra: arvore, já: dono]), rembi’u: alimento de.
191
naquele contexto.
na mata. Numa manhã quando Yvá, Tamía, Priscila e Vini me convidaram para
fizesse silêncio (Ekiriri Vini: e-: imperativo, kiriri: silêncio) quando eu perguntei do
que elas estavam com medo elas responderam “pânico na floresta” (o que depois
eu fui descobrir ser o título de um dos filmes de terror que assistiam), “o caipira
domingo de verão eu e Yvá fomos tomar banho na mata (ver foto do local para
encontrarmos o ‘caipira que come gente’ por já estar escurecendo (na opinião
dela, pois ainda faltava mais de uma hora para que de fato anoitecesse). Ela
77 O que não ocorria nas caminhadas com as filhas de Vitorina, que embora tendessem a falar
mais baixo não pareciam tensas. Talvez a falta de motivação de coleta naquelas caminhadas as
tranquilizasse em relação ao olhar daqueles Outros que habitam a mata e são os donos das
coisas que ali se encontram, como a própria Ane me explicou.
192
“doença” ou “coisa ruim” em seu corpo (mba’e axy) a prescrição feita por Niria
era para que Yvá tomasse menos banhos, o que não fora seguido pela paciente.
acometida por essa “coisa ruim”, Tamía explicou que a culpa era da própria Yvá,
porque tomava banho todos os dias ignorando as restrições feitas pela xamã
Níria. Retruquei que ela não parecia resfriada (jejukua), mas minha jovem
os olhares que se colocam sobre os mbyá ali sem que eles mesmos possam
perceber ou se defender (jaexa e’y vae kuery – já- primeira pessoa do plural
inclusivo, -exa: verbo ver, Kuery: coletivizador). Essa explicação me foi dada na
Por algum tempo a forma de lidar com os mais sonolentos era tocando
das 7horas da manhã em diante. Uma forma mais sutil, mas muitas vezes
insuficiente, de tentar nos fazer levantar naquele horário. Ainda no âmbito das
deveriam ser constantes, rir junto diversas vezes de uma mesma coisa era um
fontes para esses “jargões” engraçados que repetiam diversas vezes suscitando
193
anfitriões, eles retiravam dos episódios algumas falas reduzidas que repetiam
ou menos longas) não contrastava muito com o modo como eles assistiam aos
filmes de terror (outra preferência de meus anfitriões). Mesmo nos mais violentos
ela era diretamente produzida por cada um daqueles que ali conviviam, fossem
estado ideal de vida entre parentes não era um dado (Wagner, 2010 [1981]) da
194
vida compartilhada, mas algo a ser alcançado por meio de invenções, extensões
ou duas vezes. Essa repetição ressoa aquela das socializações risonhas acima
descritas. Era comum ver um filme diversas vezes e rir das mesmas partes. Era
repetidos incessantemente assistidos com interesse tanto por adultos quanto por
crianças, até que em algum momento o filme perdia o interesse e não mais
Eu mesma entrei para o rol das brincadeiras diversas vezes. Uma delas
numa cesta básica que trazia também um garrafão de 5 litros de suco de uva 79.
Esse item foi motivo de piadas repetitivas: diziam entre momentos de risadaria
que o suco era vinho e seria para mim. Nunca entendi ou soube como responder,
alegrar toda a casa e fazia isso “dizendo coisas feias” (Ijayvu mbaemo vaikue).
Vini vaikue, vini é muito vaikue, dizia rindo Yvá sobre menino80. Vaikué significa
mal, feio, reprovável, mas curiosamente era algo positivo naquele contexto. Com
habitantes da casa dizendo coisas como: “aperere” (peidei), “nderevi” (teu anus),
79 A doação foi levada para o terreno do grupo doméstico de Niria num carrinho de mão
empurrado por Jonas acompanhado de Kerexu e das crianças.
80 De vez em quando Yvá dizia o mesmo sobre si mesma em português: eu sou muito vaikué.
196
nederevi kuaa (no teu anus), e dizia que se casaria comigo (Amanda amendata).
juntavam-se em torno dele rindo muito e assim que se acalmavam pediam para
que ele repetisse. Quando ele repetia seu repertório cômico os demais voltavam
a rir com igual ou maior intensidade. E, assim, o efeito cômico daquele repertório
se prolongou por alguns dias para os membros daquele grupo doméstico. Esse
Periferia da aldeia?
com os quais havia passado algum tempo naquela aldeia eram claras, a começar
por suas casas fora do padrão de alvenaria comum ali e a localização espacial
que em minha primeira visita ali a filha mais velha de Niria afirmara que sua mãe
era a pessoa que mais plantava naquela aldeia. Entre seus cultivos principais
estavam as variedades de milho (avaxi mita, avaxi ju, avaxy pyta, avaxi tuu, avaxi
ovy – ver foto abaixo) e a mandioca (mandió), mas ela também plantava
197
tabaco (pety)81.
se dava apenas pela suposta falta de relação com a liderança local ou pela
dos locais de maior concentração populacional da aldeia para fazer visitas ali e
visitavam por estarem ligados por laços parentesco entre si. As visitas na casa
de Niria não eram raras, pelo contrário, o parentesco era o centro da vida
de passagem ou em longas permanências ali. Penso que esse era um fator que
81 A demanda por este último cultivo e a impossibilidade de produzir o suficiente para o consumo
local foi a minha principal moeda de troca por acesso às pessoas da aldeia e mesmo aquelas
mulheres que não faziam questão de me ter por perto ao me encontrar pelos caminhos da aldeia
vinham me abordar para pedir que em minha próxima ida ao centro da cidade lhes trouxesse o
pety. Dentre os homens com os quais conversei ao longo do trabalho na aldeia apenas o cacique
me pediu itens da cidade e um xeramõi uma vez me pediu dinheiro para permanecer bebendo
num evento numa aldeia Kaingang, um caso completamente isolado.
198
fora. E as visitas de dentro não costumavam ser retribuídas nem por Niria, nem
por Yvá, as mulheres adultas daquela casa com as quais eu mais convivia.
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que não estava trabalhando no terreno do grupo doméstico e indo muitas vezes
ao centro da cidade para fazer porarõ nos finais de semana e períodos de férias
quase todos os dias ao centro da aldeia e tinha uma rede mais ampla de contatos
estudantes, mas assim que suas aulas acabavam elas voltavam para o complexo
porém não saiam de casa em busca deles com frequência e pareciam satisfeitas
crianças. Tamía, a mais velha, jogava futebol nos torneios organizados entre
aldeias, pelo time feminino da aldeia da Estiva e não peço time da aldeia onde
morava com sua mãe. O que demostra o lugar ambíguo das relações que aquele
escola de juruá. Kerexu explicou que seu filho viera da aldeia da Estiva muito
bem nos estudos e por isso acharam que seria melhor para sua educação mantê-
sua família senão para ir à escola. Contentando-se em brincar com Tamía (12
anos), Priscila (11 anos) e visitantes que porventura parassem por ali.
outros moradores dali sendo que ela mesma nunca saía de sua casa para fazer
Não raro me deparei com Niria recebendo o karaí e a kunhã karaí (o xamã
e a xamã, que não eram um casal, mas orientavam os trabalhos na Opy juntos)
sempre durante o dia. O karaí e a kunhã karaí eram bem mais velhos que Niria,
grupo doméstico dela, para fazer aquelas e outras visitas pela aldeia.
Embora a circulação dos karaí pela aldeia não fosse nada excepcional,
foi negativa. A recusa de Niria aos centros da socialidade aldeã, tanto o centro
82 Este era professor municipal indígena e trabalhava nas escolas de ambas as aldeias: Estiva e
Cantagalo.
204
o “casal” de xamãs. A certa altura ele pegou o mbaraka (violão) da casa de Niria
que ficava na sala, sem fazer perguntas, e começou a tocar enquanto os demais
convidaram a adentrar o pequeno espaço do tata ypy naquele momento. Por isso
Numa outra manhã Níria recebeu a visita da kunhã karaí sozinha. Por
ajudar na capina, me deu alguma atenção pela primeira vez desde o início do
ênfase).
eles a estariam ajudando neste sentido. Yvá dizia que embora Níria tivesse
condições de se tornar uma kunhã karaí em toda sua magnitude, com atuação
numa Opy, por exemplo, isso não ocorria porque sua tia/sogra “não se
205
recebia dos karaí atuantes na Opy daquela aldeia e fica a questão: afinal, por
que visitar alguém que deveria visita-los, mas não o fazia? Yvá, assim como a
própria Níria, justificava as visitas regulares daqueles velhos, bem velhos, que
nunca eram visitados por Niria, (nem mesmo na Opy) pela amizade resultante
Creio com base nisso, embora sem ter uma resposta fechada, que as
razões para tais visitas iam além daquelas que me foram explicitadas. De certo
a relação com a alteridade juruá, como eu e a cidade (no porarõ que Niria
específicas. O que quero dizer com isso é que em lugar de ser estigmatizada por
grau o respeito daqueles que representavam o ideal do Ore Reko (ore- nós
exclusivo, reko – costume, modo de ser : expressão nativa que se refere ao modo
sua vida religiosa na Opy aos olhares e a presença de qualquer juruá83 essa
83 Conversando com uma jovem e influente liderança mbyá na aldeia ele falou sobre a resistência
a interlocução com os brancos, sobretudo a não aceitação por parte dos mais velhos de brancos
na opy. Segundo ele os mais velhos acreditadiam que a presença de tipos de pessoa diferentes
206
Notei que Niria entoava vez ou outra uma melodia calma e sem letra
enquanto fumava seu petyguá sozinha. Essa prática se tornou cada vez mais
primeira vez em que a vi entoar aquela melodia foi durante uma tempestade.
Noutra vez ela o fazia enquanto caminhava pelo pátio, claramente perturbada
por causa de uma briga que ocorria pelo telefone, naquele momento mesmo,
entre Yvá e seu filho, pai da criança que a jovem esperava. Daí em diante eu
veria Níria se tornar cada vez mais propensa a entoar aquela melodia enquanto
pelo terreno.
enfraqueceria a própria opy, no caso de entrada de brancos ali. Isso faria com que Nhanderu
deixasse de ouvi-los.
207
escola. Níria recebia aposentadoria rural, mas sua renda era reduzida em boa
meu período de campo em sua casa. Ambas recebiam, até então, o auxílio Bolsa
Família. A primeira, por ter uma bebê de menos de um ano também estava em
vias de receber o salário maternidade da FUNAI. Yvá, por sua vez não contribuía
Yvá e Níria faziam porarõ com mais frequência do que Kerexu, mas
vez menos ao centro da cidade com essa finalidade. As idas de Níria, no entanto,
se intensificaram.
habitando conosco. Também seu último marido, pai de Tamía, havia partido para
outra aldeia não fazia muito tempo. O único homem adulto morando conosco era
bichinhos de madeira. Sua principal ocupação ali era a roça, que só o mantinha
sua filha mais nova, Tamía. Quando eu, Priscila e Ademilson participamos da
208
fato dele ser um estudante na escola dos brancos, o que o colocava, no discurso
escola da própria aldeia. Ao passo em que Tamía84 era convocada para ajudar
consumo imediato, ajudar a cuidar das crianças pequenas de suas irmãs, lavar
tata ypy, trocando suas tábuas já em apodrecimento por tábuas novas, esse
serviço também teria sido pago por Niria. Além disso Níria comentou certa vez
84 Creio que a diferença entre Tamía e Priscila no que se refere a distribuição do trabalho, embora
essa também ajudasse em muitos dos serviços ora elencados, era que a primeira já havia
menstruado e passado pelos processos que controlam as mudanças que ocorrem com a
menarca. Priscila só passou por essa experiencia em fevereiro de 2016, quando eu já não estava
mais permanecendo na aldeia, mas a vi reclusa e com o cabelo raspado em uma visita.
209
Era claro na convivência com aquele grupo que o estatuto de Yvá naquela
visão e ajudam a entender como uma crise foi deflagrada naquele contexto.
Episódio 1:
Levei para a aldeia uma caixa com cerca de 60 lápis de cor para que
usássemos todos juntos. Essa ideia de uso coletivo foi pronta e unanimemente
declinada e como resposta Yvá sugeriu que eu dividisse os lápis entre eles. Foi
Yvá quem coordenou a divisão. De acordo com seus critérios, aceitos com a
critério me pareceu curioso, uma vez que as duas outras meninas também eram
aquela proposta.
redistribuidora de recursos vindos de mim ficou evidente. Nas brigas, cada vez
mais frequentes, entre Yvá e Kerexu, a primeira sempre enfatizava o quanto ela
mãe”.
210
Episódio 2:
eram o leite, as frutas e os picolés (os dois últimos comprados em carros que
vendiam na aldeia aos domingos). Soube por Priscila que ela não tinha
permissão para beber o leite que eu comprava com Yvá semanalmente para
contribuir e “pagar” pela minha permanência ali. Segundo a menina, nem ela
nem ninguém, além de mim e de Yvá, poderia consumir aquele artigo que até
então eu acreditava estar comprando para “a casa”. Ela disse que se tomasse
do leite Yvá ficava brava (ipoxy). Expliquei então que eu comprava as coisas
para todos os moradores dali (Tamía, Níria, Ademilson, Priscila, Yvá e eu) e não
exclusivamente para Yvá. Mas ficou claro que meu posicionamento nada
alterava naquela situação. Níria estava presente durante essa conversa, mas
minha palavra parecia menos relevante do que a regra que posicionava Yvá
na cidade. Pediu o vestido diversas vezes até que eu o dei a ela. Poucos dias
depois percebi que esse vestido havia sido presenteado a Níria que o usava
início. Embora emulasse uma vergonha toda vez que desejava pedir algo, nada
incômodo demonstrado por Yvá toda vez que eu doava coisas, na maior parte
das vezes era pety, a outros mbyá quaisquer que não fossem ela, na aldeia ou
na cidade.
211
doar artigos a outras pessoas na aldeia que não fossem ela. Uma vez, quando
a filha de uma jovem ficou doente, e ela me pediu para comprar novalgina, eu
perguntei à referida mulher se alguém poderia me levar até uma farmácia. Para
tanto ela respondeu que eu deveria doar o remédio a ela e ela o deixaria
estável. Dessa vez, pelo contrário, havia um problema para minha inserção ali:
a responsável por mim era uma jovem de 19 anos, grávida e instável tanto
qual estava inserida e onde me inseri por meio dela. Esses esquemas de
Rio Grande do Sul (de Níria para duas mulheres visitantes diferentes).
me orientar sobre os ideais do convívio ali, “me dar atenção”, digamos assim,
212
era ela quem se valorizava diante dos seus com a minha presença. Claramente
eu não era a presença mais desejada ali, e sempre que possível era Yvá quem
convívio da família. Esse tipo de aviso ocorreu com cada vez maior frequência
conforme sua relação com sua cunhada foi se deteriorando. A maior parte
particulares. Mas quando voltava para a aldeia tudo nas relações dentro do
mal-estar generalizado entre eles. Esse clima perdurou até que Luiza, Jonas, a
bebê e Priscila se mudaram para o centro da aldeia, por um tempo (mas isso
dizia ela, nessas ocasiões) para julgar seus cunhados. Ela dizia que Kerexue
seu marido não ajudavam, apenas consumiam e exploravam Níria. Ela estendia
essas críticas aos demais filhos de Níria (moradores de outras aldeias) que,
segundo ela, se juntavam para hostilizá-la e questionar sua presença junto a sua
mãe.
sobrinha distante) e depois com a nova neta dela. Ela se ressentiria da relação
entre Niria e Yasmin (filha de Yvá e Jekupe) ser mais forte do que a relação da
mesma com sua filha bebê, Luara. Outra acusação dos filhos de Niria contra Yvá
era de que ela afastara Jekupe (que não registrou a filha de Yvá), irmão dos
mesmos do convívio familiar, uma vez que ele teria passado a visita-los cada vez
213
menos quando eles se separaram e Yvá continuou vivendo com a mãe dele (ver
Àquela altura Xunu (filho mais velho de Níria) visitava cada vez mais sua
permaneceu ali com seus dois filhos pequenos e recebendo visitas de seu
dessas desavenças, uma vez que através dos recursos redistribuídos a partir de
minhas doações Yvá se tornava cada vez mais assertiva em sua oposição
àqueles que faziam oposição a ela, segundo ela, “sem ajudar a Niria” numa clara
acusação de falta de reciprocidade não só de seus cunhados para com ela, como
para com a própria mãe; Com a relação entre Kerexu e Yvá cada vez mais
Cada vez mais irritadiça Níria passou a também ficar doente “mba’e axy”,
tratando-se igualmente com as infusões de ryvaja rembiu. Num certo dia houve
com que entrassem num processo tal em que a cisão era o fim previsível. Porém,
habitualmente era a pessoa mais sisuda entre os habitantes dali, era a mais
empolgada. Sua risada era a mais frequente e muito mais alta do que as demais.
vezes ao longo do dia, mas sobretudo pela manhã e à noite, eram como rituais,
85 Família coletivizada em relação ao pessoal de Niria como cunhados e tratados de acordo por
todos os moradores dali.
215
ou pelo menos, de que algumas das atitudes ali performadas tinham alguma
primeira vez vi Jonas caçar um jacutinga (jaku) com um bodoque (guyrapa pe) e
esse seu feito teve grande reconhecimento entre todos na casa, inclusive por
voltasse posteriormente. Pedidos tais que ela dizia partirem de Niria, mas que
Niria negava ter feito quando eu perguntava diretamente a ela o que eu poderia
era frequentado aos domingos pelos dois casais, para que os irmãos jogassem
86 A intermediação da minha comunicação com Niria sempre foi um papel exercido por Yvá, muito
embora, Niria entendesse meu guarani muitas vezes melhor do que Yvá que preferia comunicar-
se comigo em português. Aqueles “equívocos” que permeavam nossa comunicação se repetiram
diversas vezes, em assuntos como as compras semanais já descritas, pedidos para que eu
partisse, a cama que eu deveria ocupar por ocasião de diferentes visitas. Os ruídos produzidos
por aquela intermediária, no entanto, não pareciam desconhecidos por Niria. Percebi na
repetição daqueles posicionamentos desencontrados que muitas vezes Niria colocava Yvá como
responsável pela comunicação justamente para não precisar ela mesma se posicionar diante de
mim com firmeza, mantendo sempre seu ethos mbyá, calmo e risonho, sempre concordando
comigo. Mas também fazendo com que sus demandas fossem atendidas por intermédio de Yvá,
que era a responsável pela minha presença em sua casa.
216
ia nos finais de semana fazer porarõ com sua concunhada (a mais assídua de
todas as mulheres mbyá que eu conheci nessa prática) e não mais com sua mãe.
movimento.
normal. A visita de cunhados gerou a reação mais explícita nesse sentido, mas
algo similar ocorria por ocasião das permanências de Jaxuka, a filha do meio de
fazendo com que eu e Yvá tivéssemos que dividir uma cama de viúva. Ali eles
manifestar sua real sensação diante daquela situação era Yvá. Meio dentro meio
fora, Yvá se dizia pertencente a amboae retarã kuery – outra família (sua família
em São Paulo). Embora fosse muito ligada a Niria, por esperar sua neta, os
demais adultos coresidentes não mantinham o mesmo tipo de relação com ela,
ao passo que Tamía e Ademilson oscilavam tendendo para o lado que Níria
217
dissessem considerar Niria como mãe deles, pois esta os havia criado. Yvá
relação a ela por parte dos irmãos do pai da filha que gestava, assim ela não
entre os seus, que cantarolava mais do que nunca com petyguá caminhando
entre as casas.
Yvá dizia de si mesma: “eu sou muito vaikue”. Dessa mesma maneira
julgamento muitas vezes era feito entre risadas, de modo leve, ser feio, falar
a Kerexu seu julgamento era diferente, para Yvá sua cunhada era muito vaija
(brava), ela estaria sempre ipoxy (com raiva, com ciúmes) agindo de modo
agressivo e egoísta com os recursos que recebia por seu trabalho na escola.
Quando a filha de Yvá nasceu, nos primeiros meses a mãe considerou sua filha
também muito vaijá, por seu choro forte e constante e a força com a qual pegava
no peito. Não foi a primeira vez que vi crianças de colo serem consideradas vaija.
seja negativa, apenas algo com o que se irá lidar no processo de adequação da
condição humana88.
cobertor e alguns objetos meus que cheguei a ver com Kerexu e Jaxuka. Havia
87 DOOLEY (2004) vaikue adj. (classe xe-). Feio: ka'aguy vaikue mato cerrado, feio; ndevaikue
você é feio. adv. Mal (modificando o verbo): aa vaikue rai quase fui pelo caminho errado. (De
vai, -kue2) vaikue'i adj. Coitado
88
A bravura e a agressividade não são completamente rechaçadas na sociocosmologia mbyá.
Entretanto, a condição humana, calcada no estabelecimento de relações de parentesco fazem
com que essa agressividade deva ser obscurecida neste âmbito específico em favor dos valores
da reciprocidade, o que não resulta numa busca pela total extinção das funções da bravura e da
agressividade, apenas as circunscreve a outros territórios da experiencia vivida pelos mbyá.
89 Dinheiro que eu havia dado para que Yvá pudesse visitar uma irmã que viera de São Paulo e
se hospedava numa aldeia no litoral do Rio Grande do Sul.
219
Lembro que Kerexu já não mais falava comigo antes de se mudar e penso que
Jaxuka nos culpava pela mudança de sua irmã para outro ponto da aldeia. Dos
frequentemente sua irmã mais velha em sua nova casa, ela continuava se
morando com avó que, assim como todos os demais, chamava de mamãe.
porarõ.
maneira muito diferente. Ela era tomada por uma vergonha incontrolável ao se
proporções particulares a cada mulher mbyá, toda vez que as abordava pela
na relação com todos os grupos domésticos que mencionei até agora. Na cidade
coresidentes, sobretudo para as crianças e para Yvá. Esses agrados iam desde
Havaianas, mochilas, dvds pirateados, etc. A mãe da família que chamo aqui de
cidade muitos biscoitos, iogurtes, DVDs, em suma, itens que alegravam suas
diariamente e levava consigo sempre três ou mais de seus filhos. Embora tenha
sido dito que o marido dela trabalhava numa propriedade rural nas imediações
da aldeia onde morava, o tempo todo em que eles permaneciam na casa de seus
cunhados esse homem não produzia renda nenhuma. A visita de famílias inteiras
seguinte.
fosse uma configuração muito específica, assim como seu recorte no tempo, os
penso que em alguma medida a situação na qual homens mbyá não conseguem
Ainda assim a presença desses homens e o lugar por eles ocupado dentro
a gravidade das tensões descritas ao longo deste tópico. Uma reflexão de Yvá
frente ao seu ponto de porarõ daquele dia. Enquanto subíamos as escadas que
me fazer uma pergunta. Percebi que o assunto era sério para ela, pois Yvá
meses desde que nos conhecemos, ela se demorou para fazer a pergunta e ao
chegarmos no restaurante percebi nela uma timidez/ vergonha que ela já não
222
Respondi que sua tia Zaira (minha anfitriã na Tekoá Mbo’y ty Camboinhas-
RJ) havia se casado com um juruá, que era o pai de seu primo Yju, com quem
ela falava sempre que podia por meio do facebook. Comentei que também Hélio,
na aldeia do Jaraguá após um baile, era neto daquele casal e perguntei o porquê
“Tô cansada desses homens mbyá, são todos sem vergonha, não gostam de
juruá eram bonitos e que havia um interessado nela e ela não sabia o que pensar
governo o que fez com que ela pudesse adquirir um “novo telefone velho”, e
assim ela passou bastante tempo com crédito no telefone e acesso às redes
namorar com algum rapaz mbyá da aldeia mesmo, ou de outras aldeias. Ela me
Também no ano em que saí do campo ela passou a frequentar mais os bailes
que ocorriam em diversas aldeias, eventos nos quais sempre ocorria algum
enlace.
223
A ideia de “se misturar” (nas palavras dela) com um homem juruá parecia
o pessoal de Zaira não era exatamente mbyá, mas “misturado”, uma categoria
altamente pejorativa entre todos os mbyá com os quais dialoguei no Rio Grande
catarinense do Mbiguaçu, por abrirem sua Opy aos juruá, usarem o Santo Daime
diz respeito a alegrar (mbovyá) seus parentes, sobretudo os menores, por meio
(algumas reprováveis, como os próprios juruá que são vaikué) do monótono (nas
***
da vida em comunidade é algo que deve ser produzido por meio da troca de boas
abertura de canais de comunicação com entidades que cuidam dos mbyá e que
224
a eles também estão relacionados por laços de parentesco e por isso devem
evitar estados afetivos perigosos produzidos pela própria relação entre parentes
aqueles junto aos quais se vive na aldeia) opera como um controle das
IV
IV.I. Apresentação.
de Porto Alegre.
a outros importantes espaços de seu mundo social; refiro-me aqui a temas como
porarõ revela linhas que ligam famílias e aldeias e orientam os trânsitos das
famílias pelas aldeias. Essa forma específica que adquire a presença indígena
deveria ser uma Terra Indígena90, tanto por suas dimensões reduzidas e sua
90 Ver discussão sobre a artificialidade do modelo de Terra Indígena e suas consequências sobre
o modo mbyá guarani de se relacionar com os espaços, entre coletivos e com as alteridades que
povoam seus mundos.
228
Paulo e Porto Alegre ou de pequenas cidades como Parati, assim como nos
famílias indígenas que expõem para venda objetos como bichos de madeira,
91 Ver Assis (2006) sobre produção e circulação de artesanatos entre os mbyá no Rio Grande
do Sul e Macedo (2010) sobre a emergência dos corais entre outras formas de obtenção de
recursos por meio da relação com a alteridade não indígena em São Paulo.
229
moradores de uma mesma aldeia acontece de uma forma diferente. Isso por se
dos afetos negativos gerados nos conflitos locais na vivência aldeã, geralmente
capítulo 3 e por tantos outros exemplos oferecidos pela bibliografia guarani (ver
sentido da identificação, com os “seus mesmos” (nhade va’e meme) entre Outros
230
comunicação. Tudo isso ficará mais claro por meio da descrição etnográfica.
rembiapó ou mbyá apó92) são produzidos e postos para circular entre as pessoas
Ainda assim, em campo junto com as mulheres mbyá no centro de Porto Alegre,
constatei que a maior parte dos artefatos talhados em madeira postos à venda
tinham sido produzidos por sogros e cunhados, ao passo que os cestos, filtros
mulheres, que muitas vezes diziam ter contado com a ajuda de suas filhas
92 nhande kuery rembiapo ‘o feitio da nossa gente’, do v. t. direto -apo ‘fazer’. COM POSSUIDOR
AGENTE QUE É FLEXÃO DE PESSOA: xerembiapo ‘aquilo que faço’, do v. t. direto -apo ‘fazer’;
(Dooley 2008: 101)
231
das mulheres contrasta com a frequente presença real desses homens junto aos
algumas mulheres.
vezes ao longo da pesquisa na Tekoá Mbo’yty (no Rio de Janeiro) por valores
ano de 2014. Nessa ocasião comprei o único petyguá95 que o referido senhor
93 Frequentemente fabricados com Lágrimas de Santa Maria (kapi’ia) e Olho de Boi (kuru üãi),
entre outras encontradas nos terrenos de muitas aldeias, menos frequentes, embora não
inexistentes, eram os artesanatos fabricados com miçangas.
94 Bromelia antiacantha.: que os juruá compravam para fazer xarope contra gripe e bronquite.
IV.III. Do porarõ:
Mencionei mais de uma vez que o porarõ do centro de Porto Alegre não é a única
a presença Kaingang nas ruas da cidade é massiva), entre 2015 e 2017 observei
que fora desses períodos de exceção a presença mbyá na cidade era regular, e
porarõ regularmente96.
96 Menciono no capítulo 3 como isso ocorreu na casa que me recebeu enquanto eu fazia o
trabalho de campo na aldeia. A família visitante, após a minha saída do campo, também deixou
de permanecer na casa de minha anfitriã, mas voltou a fazer esse tipo de visitas a outros
parentes, moradores da aldeia da Lomba do Pinheiro. Ouvi em campo outros casos desses tipos
de visitas prolongadas tanto a aldeia da Lomba quanto a aldeia do Itapuã, neste caso a
237
cidade, muitas vezes tem o claro intuito de estimular a “alegria” (-vy’a) daqueles
que assim o fazem. Essa alegria consiste no passeio em si, na saída do contexto
doméstico e aldeão que costuma ser permeado por tensões que lhes são
distantes, e com os recursos que cada tipo de alteridade tem a oferecer, estão
no cerne da questão.
mantendo o fluxo que caracteriza o modo de vida mbyá. É neste quesito que os
O motor econômico da prática do porarõ possui duas faces: se por um lado, trata-
rumo ao centro, por outro lado, o dinheiro gerado é muitas vezes gasto na própria
cidade como ambiente de encontros que atuam alegrando-os por meio das
aldeias. Esses aspectos não estão totalmente dissociados, uma vez que uma
interlocutora me informava duas aldeias de origem: aquela na qual tinha sua casa e suas coisas
e aquela na qual estava sendo recebida naquele momento.
238
ali seus laços possibilitando uma visita, ou mesmo uma mudança para junto
cidade, para que possam produzir dinheiro para arcar com tais passeios. Cabe
ressaltar que para tais eventos os caciques muitas vezes alugam ônibus para
possíveis casamentos.
Certo dia deparei-me com o pano de Vitorina, minha primeira anfitriã na aldeia
onde realizei meu trabalho de campo. Há muito tempo não a via no porarõ do
centro. Ela estivera grávida e trazia consigo sua bebê, Maiara, de quase um ano
de idade. Sobre seu pano uma variedade maior do que a habitual de artesanatos,
muitos dos quais feitos pela própria (até mesmo alguns animais em madeira, os
vixo ra’anga).
Vitorina morava junto a sua família (ver descrição no capítulo 3). Tais questões
239
pátio da casa de Vitorina no meio da manhã, notei que ela parecia um pouco
contrariada ao comentar que por não ter ido ao Brique naquela manhã, precisaria
estava claramente relacionado ao fato de eu não ter acordado cedo para sair
com ela e suas filhas rumo à cidade, ou seja, por eu não ter saído com ela, pois,
sendo ela a responsável pela minha presença ali, não poderia me deixar sozinha
na aldeia. Lembrei-me que, por ocasião de minha chegada, poucos dias antes
eu havia levado, para agradá-la, compras que incluíam itens desejados por ela:
carne, fumo de rolo, farinha de trigo, arroz, feijão e café. Durante minha
permanência fui mais de uma vez ao mercado local para comprar o que ela itens
das duas casas da família, recebia uma recusa educada seguida de sugestões
família mbyá foi sempre mais do que explicita em seu posicionamento de que
não adotariam em seu lar um pesquisador juruá por maior que a recompensa
financeira por esse acolhimento pudesse ser. Diante dos meus reiterados
pedidos para ali permanecer, sugeriram apenas que eu construísse ali uma
dinheiro que poderia ser usado para obtenção de recursos para aquela família.
De todo modo, a ideia não foi bem acolhida pelo cacique e eu não poderia
A pergunta que me ocorria insistentemente era: por que uma família em situação
para não receber um “branco” em sua casa? Vim a concluir, como veremos, que
na aldeia, por um casal e suas quatro filhas, dentre as quais somente as duas
mais novas (então com 7 e 11 anos) moravam na mesma construção que eles.
(andaí) e feijão e tangerina (narãpe), entre outros cultivos deles, contíguos aos
por meio do casamento deste com a irmã de minha anfitriã. Além disso, aquele
que lhes rendia algumas refeições e pintinhos para o futuro, embora não
e anfitriã era o único agente de saúde da aldeia e para isso recebia um salário
241
indígenas e outros que ocupavam cargos com salários fixos. Ou seja, de modo
rumo a cidade?
relevância dos recursos materiais quanto dos outros aportes que a cidade
pois fazem com que ela não precise gastar com sua alimentação na cidade. Além
abertura foi conquistada entre algumas mulheres que faziam porarõ, que até
pessoas não-mbyá (brancos e Kaingangs) que venho assinalando até aqui foi
marcante também nesta etapa da pesquisa. Assim, não raras foram as vezes em
das formas adquiridas pelo silêncio na prática do porarõ ao longo deste capítulo.
mulheres, princípio que foi tornado explícito em uma das entrevistas que realizei
ali. Por mais de uma vez fui abordada por não-indígenas na cidade que vinham
Pelos motivos acima expostos fui levada a elaborar uma metodologia específica
as ruas do Centro Histórico observei que mesmo nos dias com maior número de
Observei que mesmo nas ruas que mais recebiam os panos das mulheres mbyá,
panos ao longo dos dias, sobretudo o fator de parentesco, tema que tratarei
detalhadamente adiante.
244
pelas ruas assim identificadas. Além das ruas nas quais era certa a presença
para saber a aldeia de onde vinham, seus nomes, idades, quem produzia os
observar o comportamento das mulheres com suas crianças e dos homens que
as visitavam, e muitas das constatações que fiz ao longo desta etapa do trabalho
pessoas juruá. Buscava também evitar que o papel adquirido por mim enquanto
estancasse essas trocas, fazendo de mim, mais uma vez, uma doadora por
excelência.
de recursos com os juruá ocorre sem implicar uma comunicação para além dos
limites dados pelos próprios mbyá. Lugar no qual a simples alegação de não
“doadora ideal”, a quem era possível pedir coisas específicas, como fraldas
Devo sublinhar aqui que o “pedintismo” não faz parte das relações travadas
Por outro lado, não era incomum ver crianças maiores percorrendo as ruas que
momento algum, todavia, esta ação pareceu ser estimulada pelas mulheres
Certo dia, por volta das nove da manhã, observei 3 meninas que tinham entre 4
e 7 anos de idade correndo livremente pelas ruas que tinham panos de porarõ98.
por sua condição de interlocutor privilegiado em relação aos demais Outros que
98 Tanto as três meninas que corriam, quanto as mulheres adultas em cujos panos elas paravam,
estavam ligadas ao pano de Ana Tereza, uma senhora de mais de 60 anos. Ao longo do dia os
panos dessas mulheres se juntam e se separam por ruas contíguas entre si.
247
nas ruas Voluntários da Pátria, Marechal Floriano, Borges de Medeiros, Rua dos
Castilhos.
Lista de aldeias
daquelas que diziam ter sua residência em aldeias situadas em localidade mais
Aata Centropy arõ’i vy (vou ao Centro para esperar um pouco), é assim que um
mbyá, geralmente uma mulher mbyá, fala que está indo fazer porarõ no centro
da cidade. À pergunta “mbaeretu reju tetãpy arõ’i vy” (Por que você vem ao
vy” (para nos alegrarmos). Apesar da imagem de escassez que possa sobressair
dessas pessoas para que possamos talvez vir a compreender no que consistiria
essa “alegria” que buscam entre seus Outros mais ferozes, os Brancos.
Diferentes grupos de uma mesma aldeia podem pegar o ônibus para a cidade
em horários diferentes.
ônibus rumo à cidade, e assim pude notar que apenas idosos e crianças tinham
direito à gratuidade nessas viagens, ou seja, a prática do porarõ tem como ponto
cidade e de volta para a aldeia. Entre 2015 e 2017 esse investimento mínimo era
distribuirão os panos pelas ruas do centro num dado dia de porarõ. Isso porque
é a essa altura que os panos se fixam após a chegada daquelas que costumam
ser as últimas levas dos mbyá. Esse é o horário a partir do qual os mesmos
mesmos.
Estes grupos que chegam perto da hora do almoço, costumam ser os últimos
palavras, seguindo em busca de um ponto livre para fixar seu pano isoladamente
Mapeando esse fluxo específico dos mbyá pelas ruas do centro observei grandes
refrigerantes) doados por transeuntes juruá são tão bem recebidas por minhas
outros panos. Observei esse tipo de doações diversas vezes. Certa vez foi a mãe
trabalho de campo, que saiu de seu pano na rua Voluntários da Pátria para levar
uma refeição (“vianda”) para sua filha nas Lojas Americanas da Rua dos
Andradas. Esta costumava fazer porarõ perto do pano de sua mãe, que vinha da
aldeia do Itapuã (ver mapas das aldeias e das ruas de porarõ acima). Neste dia
seu ponto perto do pano da mãe estava ocupado por um grupo mbyá não
aparentado a elas.
Após o almoço muitas vezes ocorre uma reconfiguração dos panos pelas ruas
mulheres passam a dividir panos com suas mães, irmãs, tias ou cunhadas.
alheios ao intenso movimento das calçadas. A justificativa que me foi dada para
tamanha confiança nos juruá era pontual “ni nopena’i”, o que significa “ninguém
mexe” nas coisas que estão sobre o pano. Ou seja, o roubo dos artesanatos, das
idas ao centro é a busca por esse “alegrar-se” por meio de uma caminhada
estranhos.
amazonista, que essa circulação pelo espaço do outro enriqueça essas pessoas
informações e objetos dos brancos dessa maneira. Potências que são utilizadas
(para onde são direcionados os recursos materiais assim obtidos e onde são
do primeiro capítulo).
Duas das formas que os mbyá utilizam para se referir a pequenos passeios são
me note a alguma distância. Para que eu seja vista por algum mbyá no contexto
diga algo para chamar sua atenção, caso esteja de pé. Diversas vezes evitei
253
caminhos para não passar por tal ou qual pano onde havia interlocutoras mais
“pidonas”, mas com o tempo percebi que nem mesmo aqueles mbyá em cuja
casa eu vivi na aldeia por diversos meses eram capazes de me notar a curta
invisibilizada naquele fundo citadino, apenas mais uma juruá. O oposto ocorria
quando eu andava junto com Tamía ou Yvá pelas ruas da cidade. Elas eram
pelo Outro.
Uma cena ocorrida na rua Voluntários da Pátria, local famoso pelo comércio
popular, tornou evidente para mim a diferença entre ser uma juruá na cidade e
mbyá. Ali encontrei com Amélia, com quem eu convivia desde 2015 durante o
o mesmo notou minha presença e logo me encarou como uma cliente mais
promissora do que Amélia. Só depois disso Amélia (que me via quase todos os
100 Nesses casos eram elas que evitavam as saudações que seriam aplicáveis caso não
estivessem ocupadas acompanhado a juruá amiga. A separação nas relações mbyá-juruá\mbyá-
mbyá era sempre mantida, assim como no campinho da aldeia.
254
por que ela não compraria e ela disse que não tinha dinheiro. Enquanto isso, na
comparavam o tédio das aldeias. Um dos antídotos para o tédio aldeão eram os
passeios pela mata, atividade tida como mais perigosa do que os passeios na
cidade. As alteridades habitantes das matas teriam mais poderes sobre os mbyá
Janeiro101.
da aldeia para a cidade: nem milho, nem batata doce, nem mandioca são
imediato. Boa parte do que é coletado na cidade é consumido por ali mesmo. O
101 Também sobre panos as mulheres passam as noites na casa de rezas com suas crianças
256
segundo o qual as comidas de juruá fazem mal aos mbyá, sobretudo às crianças
e às mulheres gestantes.
Durante uma entrevista com Kerexu observei uma situação nada surpreendente,
relação às praticantes do porarõ: uma mulher passou por seu pano em frente à
loja Renner e lhe entregou um copo de 500ml, com menos da metade de seu
não se faz diferença entre doações deste tipo. Pouco depois uma funcionária da
padaria do outro lado da rua veio até Kerexu com uma pequena mamadeira com
refrigerante dentro para a bebê que esta tinha no colo: oferta que Kerexu
de um saco plástico do Center Shop, assim como já tinha visto Yvá comer
passo em que Yvá não tinha qualquer receio de pegar doenças através do
comida do branco não era bom para a saúde dos mbyá, mas era melhor ganhar
Creio que a inovação proposta pelos mbyá nesse caso particular parte da
porarõ consiste num grande encontro de pessoas mbyá (que se assemelha aos
para além do cuidado das crianças e do esperar sobre seus panos consistia em
conversar, fosse para observar e consumir itens no comércio popular das ruas
cidade, pelo contrário, a presença masculina sobre os panos era bastante rara.
258
maioria das vezes eles apareciam vinculados a um pano específico junto ao qual
homens levando comidas para as mulheres e ajudando a cuidar das crianças por
família” pois logo esses homens desapareciam. Por volta das 17 horas observei,
de comunicações.
homem que, junto de sua esposa e crianças, sentava-se sobre o pano onde
junto a um pano, sem sentar-se nele, onde ficavam expostas diversas plantas,
muitos Kaingang na cidade. Esse homem, que era bastante jovem, permanecia
com o rosto pintado (coisa que deixou de fazer rapidamente), enquanto na parte
de trás da banca, sobre um pano, ficava sua jovem esposa com uma criança de
da cidade, por outro lado não se via ali nenhuma planta e nenhuma cesta para
receber doações.
artesanatos dos próprios mbyá guarani e a existência ali de uma máquina para
mesma aldeia que o casal, passou a trabalhar ali como vendedor. Nunca me
panos de porarõ.
Em dezembro de 2016 o número de homens sobre panos subiu. Foi então que
observei, pela primeira e única vez, um pano com um homem adulto, uma
criança de colo, poucos artesanatos e uma cestinha para receber doações, sem
mulheres, sobretudo entre as mais jovens. Neste mesmo mês observei algumas
com as cestinhas à espera de doações, como ocorria ao longo do ano nas feiras
voltou ao que se via nos meses anteriores, ao passo que todo o porarõ se
contraiu, por conta das viagens familiares a aldeias do interior, como ocorreu
Constatei que, entre as mulheres que eu ainda não conhecia, as idosas (com
Apenas uma vez observei uma mulher como mais de 70 anos de idade fazendo
porarõ. Em um ponto próximo ao seu pano estava sua neta com um bebê de
muito mais interesse em se comunicar comigo do que a neta, que, muito mais
tímida do que sua avó, não fez mais do que me dizer seu nome.
idosas todas eram ditas ser suas filhas, netas ou irmãs. No caso de Níria, minha
anfitriã na aldeia, pude observar ainda mais detalhadamente essas relações: Yvá
que Níria e Yvá ou Níria e Kerexu eram normalmente vistas juntas sobre o
greves para ir ao centro. Ainda assim, era clara a tendência de Yvá evitar ir ao
centro quando Kerexu ia acompanhando Níria. Kerexu, por sua vez, foi ao centro
e das diversas crianças, filhas delas, para fazer porarõ. Foi nessas mesmas
262
em panos que não mais se juntavam ao longo dos dias, compartilhando panos
com outras mulheres. A cunhada de Vitorina passou a ser vista com sua mãe e
com sua irmã, vindas das aldeias do Itapuã e Guapo’y, Vitorina acompanhada
sua cunhada passou a ser vista acompanhada por uma tia, que como ela vinha
conflitos que podem estar em curso na vida aldeã, porém o estado das relações
dificilmente se mantém contínuo entre dois parentes por afinidade. Como fica
evidente nas entrevistas, todos os dias alguns mapas mentais são produzidos
panos) pelas mulheres mbyá na cidade. Esses mapas informam onde estão as
parentas mais próximas. As localizações dos panos de tias, irmãs e mães são
Andando com Níria e Tamía pelas ruas de porarõ, por exemplo, percebe-se, que
muitos são os parentes reconhecidos nos panos, mas nem todos recebem a
Ao mesmo tempo em que panos sem crianças tendem a ser de mulheres idosas,
avô” –significando de modo geral homem idoso que pode, ou não, ser o ponto
categoria ver capítulo 2]) , que nunca vi sentar-se sobre um pano, embora
foi a “vergonha”.
brancos, conduzidos por uma mulher mais velha, circulava por entre as ruas do
desconcertado.
264
alimentos não perecíveis era uma regra: receber, sorrir, agradecer e ignorar, não
analisar os itens recebidos até que o doador estivesse afastado de modo que
campo passei pelo mesmo tipo de situação algumas vezes, tanto no Rio de
desconhecimento do português.
265
mbyá me abordaram curiosos para saber ‘por que’ as índias falavam comigo. A
que haveria uma abertura maior das pessoas mbyá no centro a interações com
televisão ou dvds com filmes dublados, o uso do português por parte dessas
mulheres, desde as mais fluentes nessa língua até aquelas que compreendem
Flavia Mello (2007), Maria Paula Prates (2014) e Cebolla (2015), mulheres que
103 Sobre tratamento para evitar -jepota de moça púbere em reclusão por ocasião da menarca,
estado chamado iñengue adoecida por investida de alteridade não-humana:
Segundo seu relato, fizeram dançar a moça dentro do opy enquanto cantavam para ÑandeRu
Ete. Então começou a fazer calor, tanto que os assistentes passaram a se sentir sufocados. Era
a moça que expelia o calor pelo efeito do espírito que a possuía. As orações e as fumigações
com as fumaças dos cachimbos dos líderes religiosos continuaram até que a iñengue caiu no
chão e do seu corpo emergiu um enorme sapo que tinha usurpado sua alma. A menção ao calor
que saía do corpo da adolescente e que teria afugentado sua alma quando o espírito do animal
se apoderou dela remete imediatamente ao conceito de ojeko aku, ou “estado quente”, no qual
se encontram as pessoas que estão passando por algum período de crise em sua vida.(...) Entre
os Mbya, os momentos mais críticos e perigosos do ciclo vital parecem ser o nascimento, a
puberdade e as situações de doença. Em todos esses casos, a alma da pessoa encontra-se em
um estado de grande sensibilidade e pode ausentar-se do corpo ou ser capturada por essas
outras almas não humanas que ocupariam seu lugar. (Cebolla Badie, 2015:16)
267
Existem, por causa das diferenças dadas pelos corpos, modos específicos de
Reko e Kunhãgué Reko. O modo feminino de estar no mundo tem relação com
mbyá na mata, fazendo-se passar por humanos propriamente ditos (lembro que
a humanidade completa se dá pelo uso das palavras que formam a alma mbyá).
também da visão, é uma das formas usadas pelos espíritos predadores mais
poderosos para capturar nhe’e de humanos. Ver, ouvir ou falar com o Outro,
uniões com juruá, chamadas -jejavy (para mais detalhes ver capítulo 1). Essas,
união sexual entre pessoas mbyá e pessoas juruá pode provocar o óbito de pelo
menos um dos envolvidos, isso por causa da diferença entre seus corpos,
104 Maria Paula Prates sublinha que num passado distante essas uniões teriam sido consideradas
de outra maneira, para tanto reporta-se a um relato de Santi-Hilaire:
“Se as mulheres guaranis se entregam aos homens com tanta facilidade, não
é realmente tanto por libertinagem, se não em conseqüência desse espírito
de servilismo que as impede de nada recusar. Aqui, a maior parte dos
milicianos tem uma índia por companheira. Estas mulheres são úteis para
eles, porque sabem lavar e costurar razoavelmente. Mas o que há de
aborrecido é que os filhos nascidos dessas uniões transitórias são
necessariamente abandonados pelo pai e maleducados, porque serão pelas
índias e assim se parecerão com os gaúchos espanhóis pouco a pouco, a
À luz do que nos conta Saint-Hilaire podemos intuir que essas mulheres desempenhavam um
papel importante nas relações com os brancos, não fugindo à regra de povos falantes do Tupi
quanto a estabelecer alianças com inimigos/cunhados tovajá.
269
Considerações Finais
cotidiana por meus interlocutores mbyá e os dados produzidos por meio desta
interlocução. Meu objetivo com esse modelo de exposição era fazer emergir dos
apontadas. Ao mesmo tempo, muitos contrastes poderiam ter sido feitos com
indivíduos e coletivos.
Contudo, a opção pela narrativa etnográfica direta permitiu que o espaço dos
105 O principal exemplo de projeto comparativo a ser empreendido num futuro próximo a partir do
material exposto ao longo desta tese consiste numa comparação entre a postura dos praticantes
do porarõ em relação aos não indígenas e a postura do grupo junto ao qual realizei trabalhos
etnográficos entre 2009 e 2013 no Rio de Janeiro. Estes últimos produziam eventos de Forró
para captação de não indígenas específicos com os quais firmavam alianças informais e mesmo
casamentos.
Naquela situação concluí que meus interlocutores mbyá se engajavam ativamente na produção
de pessoas por meio de captura de potencias externas, fazendo-se sujeitos de relações
perigosas tanto na casa de rezas, a Opy, (com a obtenção dos nomes nos processos de batismo)
quanto no Forró, com inimigos-afins potenciais (Fausto 2004:165 apud Vilaça 1992:51). Em
ambos os contextos mencionados meus interlocutores de então agiam cantando e dançando,
embora em cada situação utilizassem modalidades musicais correspondentes. Essas “armas de
atração” da alteridade, agiriam no sentido de “impor respeito” (Macedo, 2012: 398) o que significa
“impor sua perspectiva” para a produção de pessoas propriamente mbyá a partir da interação
com potências exógenas. Numa quase inversão do esquema observado na prática do porarõ
enquanto mecanismo de relação com a alteridade não indígena.
272
futuras, uma vez que muitos passos deverão vir em seguida e o trabalho não se
aos estudiosos que por ventura possam vir a lançar mão deste material em suas
equilíbrio dinâmico.
parentesco. Acredito que esses aspectos das dinâmicas relacionais mbyá sejam
273
seu parente longe e no caminho buscava fruta e outros alimentos. Ela andava
pra comer. Esse andar era a busca da vida, pra conseguir o que comer. Eu
lembro bem (...). De repente saíamos com a família pro rio, ficamos três dias
lá, pescando e comendo por lá mesmo. Fazíamos bolo de milho verde, pra
comer e levávamos pra não passar fome no caminho. A criança tava sempre
espiritualmente da mãe. Nós fazíamos festa lá, com alegria, com saúde.
(...) Era uma busca de alegria a vida pro guarani. Porque a mulher gosta
de caminhar para resolver o problema dela, pra buscar alegria. Ela vai
tem mais como esquecer o problema. Hoje, por exemplo, nós plantamos
cana, mas não cresce. Isso é uma tristeza pra nós. Então a mulher vai
buscar alimento. (...) Hoje a mulher tem que sair, tem que ir ao Centro buscar
que aprender a olhar. Antigamente o Guarani vai com a família para dentro
o dono do rio, por isso o mato dá tatu em troca” (José Cirilo Morinico em
conclusão.
274
Para os Daribi, povo das terras altas da Nova Guiné etnografado por Roy Wagner
No caso Daribi, o que o antropólogo pode interpretar como um grupo nunca será
onomástica clânica, por exemplo. Assim, apesar da aparente fixidez dada pelas
Even though one does not “start out” with groups, since these are never
deliberately organized but only elicited through the use of names, one always
“automatic society”, one that appears in concrete form wherever the right
distinctions are made. What we might want to call the “permanente” sociality
assim, não é o suficiente para produzir uma realidade estática. É nesse aspecto
como, de acordo com o ponto de vista relacional adotado, todos naquela aldeia
Ane, afirmou não poder se casar naquela aldeia por ali serem todos seus
parentes, ao mesmo tempo em que sua irmã mais nova estava em vias de se
casar com um rapaz da aldeia, o que a própria Ane também viria a fazer em
matriarca como uma cunhada cuja presença naquele grupo doméstico era
dispensável na medida em que seu companheiro havia partido para outra aldeia
que entre ela e a matriarca do coletivo em questão a relação marcada não era a
de afinidade, mas a de consanguinidade, uma vez que esta era vista como filha
de uma irmã de Níria. Situação conflituosa que em seu ápice fazia com que Yvá
amboae retarã kuery, sua família no Jaraguá (São Paulo). Discurso que se
alterou mais de uma vez conforme o fluxo das tensões se desenrolava naquele
contexto.
constituted groups than the more scattered ones that existed before
seems to cry out for the distinctions that effectively elicit it. It is a sociality
creating it), and it will come into being whenever and wherever people choose
to deal with it in that way. If this particular form seems to be adapted somewhat
to the white mans’ notion of society, it is only because the people themselves
were under a Strong coercion to make it look like that. They also have the
outsiders wanted them to dress like Westerners. This does not mean,
however, that they wear their clothes in the way that Westerners do, treat them
the way that Westerners do, or think of them in that way. (Wagner, 1974:116-
7)
277
possibilidade, tanto por causa dos limites impostos pela noção de propriedade
caminhos embarreirados. Até hoje muitos velhos mbyá estranham esse estado
de coisas e muito são aqueles, idosos ou não, que lamentam essa realidade,
Em sua análise do Naven106, ritual praticado pelos Iatmul, povo da Nova Guiné,
ritual em si, mas na vida cotidiana dos Iatmul. Não cabe, a essa altura da
esboço de uma hipótese que contemple ao menos alguns dos dados sobre os
mudança. Mais de uma vez ao longo do livro o autor divaga sobre a “vida” de
tradições, sistemas ou culturas. Vale lembrar que ele era Zoólogo de formação,
Mas de que maneira esse tipo de reflexão contribui para elucidar a lógica que
vincula os dados etnográficos trabalhados até aqui? Creio que uma boa via de
tipos de movimento pode ser formulada nos termos de uma manutenção da vida
por meio de mecanismos de busca pelo equilíbrio por meio de sua própria
indivíduos” (2008 [1958]: 223). No nível da psicologia social o autor propõe uma
não ser que as circunstancias sociais sejam tais que os indivíduos concernidos
mútua, ou status social (...)” (2008 [1958]: 228). Compõem-se, assim, sistemas
(cismogênese complementar).
fundamental, menos por seu conteúdo do que por sua ênfase emocional
contextualmente dada.
107 Guardando as devidas ressalvas quanto ao uso recorrente dos conceitos de indivíduo e de
sociedade (lembremos que a primeira versão desta obra data da década de 1930), essa proposta
analítica, quando retomada por antropólogos como Marilyn Strathern e Roy Wagner, lança os
fundamentos das reflexões de cunho relacional que orientam uma importante parte do
pensamento etnológico contemporâneo.
281
ao grupo doméstico de Níria, era hostilizada por seus cunhados (e, muitas vezes,
ameríndias.
o que tendia a resultar numa cisão seguida pelo deslocamento de uma das
partes.
contrabalanceamento”.
entre dois grupos pode ser detida por fatores que unam os dois grupos, seja
por lealdade, seja por oposição a um elemento exterior. Esse elemento pode
(rovy’á vy). A cidade era entendida por essas mesmas mulheres como o espaço
a ideia de receber em casa uma pessoa não indígena que pudesse contribuir
das relações com os mbyá dos outros panos, de acordo com critérios específicos
mbya (juruá e pongé), por um lado, e entre os próprios mbyá, por outro.
Isso não significa que o porarõ, interpretado por meio dessa chave analítica,
que não tem necessariamente relação com situações conflituosas. Assim como
uma vez que ao se instalar num pano pelas calçadas de Porto Alegre é possível
aldeias distantes.
material, que dá suporte a própria prática, atua como veículo do “alegrar-se” que
materializa na aldeia.
coresidentes.
Pelo que observei, do ponto de vista dos mbyá praticantes do porarõ, as relações
ponto de vista os juruá podem ser vistos como dominantes apenas na medida
em que tendem a ser definidos, pelos meus interlocutores mbyá, por seu
monopólio dos territórios e dos recursos naturais criados por Nhanderu para os
mbyá.
expropriação de recursos que seriam dos mbyá por direito divino, que a
triunfo de nenhum dos dois – tanto dar como receber podem ser vistos como
não à cismogênese, mas, antes, a uma união mais estreita entre A e B. (2008
[1958]: 228-9)
um homem que atuasse como “porta-voz” daquele coletivo - configuração tal que
não tem a pretensão de dar conta do fenômeno como um todo, visando apenas
***
287
MENCIONADOS NO CAPÍTULO 3.
Legenda:
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