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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Entre Outros:
um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização relacional.

Amanda Alves Migliora

2019
Entre Outros:
um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização relacional.

Amanda Alves Migliora

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em
Antropologia Social.

Orientadora: Aparecida Maria Neiva Vilaça

Rio de Janeiro
Abril de 2019
Entre Outros: um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização
relacional.
Amanda Alves Migliora

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Aprovada por:

_________________________________________________
Profa. Dra. Aparecida Maria Neiva Vilaça - Orientadora
PPGAS/ MN UFRJ

_________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
PPGAS/ MN UFRJ

_________________________________________________
Profa. Dra. Luisa Elvira Belaunde
PPGAS/ MN UFRJ

_________________________________________________
Profa. Dra. Joana Miller
UFF

_________________________________________________
Pós-Doc. Rafael Fernandes Mendes Junior
Biblioteca Nacional

_________________________________________________
Prof. Dr Eduardo Batalha Viveiros de Castro
PPGAS/ MN UFRJ (Suplente)

_________________________________________________
Prof. Dr Luiz Antônio Lino da Costa
UFRJ (Suplente)
Rio de Janeiro
Abril de 2019
Migliora, Amanda Alves.
Entre Outros: um olhar sobre algumas formas Mbyá-Guarani de estabilização
relacional./ / Amanda Alves Migliora. - Rio de Janeiro, 2019.
295 f.

Orientadora: Aparecida Maria Neiva Vilaça. Tese (doutorado) - Universidade


Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós Graduação em
Antropologia Social, 2019.

1. Etnologia indígena. 2. Contato. 3. Migração e Mobilidade. 4. Parentesco. 5.


Economia. I. Vilaça, Aparecida Maria Neiva, orient. II. Título.
AGRADECIMENTOS

A participação em uma pesquisa etnográfica enquanto interlocutor de um

antropólogo demanda abertura e interesse pelo diálogo. Veremos, ao longo dos

capítulos que compõem esta tese, que o diálogo com pessoas não indígenas

estava longe de ser do interesse da maior parte dos mbyá com os quais me

deparei ao longo do trabalho de campo. Por esse motivo optei pelo uso de nomes

fictícios para meus interlocutores. Sem eles nenhuma linha seria possível, e eu

reconheço que a abertura à esse diálogo incômodo e à amizade comigo foi uma

opção “fora da curva” feita por poucos. Por isso ofereço minha gratidão

multiplicada ao infinito àquelas pessoas que povoam as páginas que seguem,

em especial à “Níria”, “Yvá”, “Tamía”, “Vitorina”, “Ane” e “Lucrécia”. Ao pessoal

da Tekoá Ka’agui Hovy Porã, por terem, ainda nos meus tempos de graduação,

me aceitado e me introduzido à esse universo lindo da vida cotidiana dos mbyá.

Agradeço também, manifestando meu mais absoluto respeito, à todos aqueles

que não se dispuseram a interagir comigo. Agradeço pela resistência, agradeço

pela existência.

Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu

Nacional – UFRJ, à todos os professores que participaram de minha formação,

assim como aos funcionários da secretaria e da biblioteca, aos quais tantas

vezes recorri cheia de dúvidas. Aos professores Eduardo Viveiros de Castro e

Marcio Goldman pelas observações feitas sobre o projeto de tese no exame de

qualificação e por suas diversas aulas que tive o prazer de assistir. Pela

contribuição por meio das disciplinas oferecidas agradeço também aos


professores Carlos Fausto, Marília Facó, Evandro Bomfim e Luiz Fernando Dias

Duarte.

Sem o apoio e o interesse de Aparecida Vilaça, minha orientadora, essa tese

não teria sido concluída. Sua atenção ao que estava sendo produzido, na mesma

medida de sua compreensão em relação aos movimentos que a vida fez ao longo

do período de produção da tese fizeram dela mais do que uma orientadora, mais

mesmo do que uma amiga e provavelmente não existem palavras para expressar

as dimensões da gratidão que sua acolhida gerou em mim.

À CAPES, ao CNPq e à FAPERJ agradeço respectivamente pelas bolsas de

mestrado e doutorado e pelos financiamentos de auxílio à pesquisa.

Aos professores que compõem a banca examinadora: Carlos Fausto, Luísa

Elvira Belaunde, Joana Miller e Rafael Fernandes Mendes Júnior.

Aos colegas do PPGAS e do IFCS: Marília Lourenço, Cláudia Bourseau, Paula

Colares, Leonor Valentino, Miranda Zoppi, Tainah Leite, Rafael Mendes Júnior,

Everton Rangel, Felipe Magaldi, Tássia Áquila, Maria Luisa Lucas, Carol

Castelitti, Cecília Diaz, Virgínia Amaral, Bruno Guimarães, entre muitos outros.

No Rio Grande do Sul agradeço à Maria Paula Prates e Luíz Fernando Caldas

Fagundes.

Ao meu companheiro Diego, que desde 2016 acompanhou todas as etapas da

produção da tese com paciência e amor, contribuindo de diversas maneiras,

materiais e emocionais, minha enorme gratidão. Sem suas sopas, carinhos,

sugestões e questionamentos tudo teria sido bem mais difícil.

À Gesy de Almeida Martins Migliora, minha avó, Luiz Armando Martins Migliora,

meu pai, Leila Santos Guimarães Alves, minha mãe, e Aline de Senna Migliora,

minha irmã, que, embora nunca tenham entendido muito bem no que consiste o
meu trabalho, nunca questionaram minhas escolhas e suas implicações, me

dando todo suporte que estava ao seu alcance.

Por último, porém não menos importantes, aos meus amigos de infância e

adolescência Tayná Barros Alves, Maria Fernanda Motta e Paulo Henrique

Cardoso.
Para Gesy, Otto e Diego,
com muito amor e gratidão.
Existir é diferir; na verdade, a diferença é, em um certo sentido,
o lado substancial das coisas, o que elas têm ao mesmo tempo
de mais próprio e de mais comum. É preciso partir daí e evitar
explicar esse fato, ao qual tudo retorna, inclusive a identidade
da qual falsamente se parte. Pois a identidade é apenas um
mínimo, e, portanto, apenas uma espécie, e uma espécie
infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é
apenas um caso do movimento, e o círculo uma variedade
singular da elipse. Partir da identidade primordial é supor na
origem uma singularidade prodigiosamente improvável, uma
coincidência impossível de seres múltiplos, ao mesmo tempo
distintos e semelhantes, ou então o inexplicável mistério de um
único ser simples posteriormente dividido não se sabe por quê
Em um certo sentido, é imitar os antigos astrônomos que, em
suas explicações quiméricas do sistema solar, partiam do
círculo e não da elipse, sob pretexto de que a primeira figura
era mais perfeita. A diferença é o alfa e o ômega do universo;
por ela tudo começa, nos elementos cuja diversidade inata, que
se mostra provável por considerações de diversas ordens, é a
única a justificar, em minha opinião, sua mtiltiplicidade; por ela
tudo termina, nos fenômenos superiores do pensamento e da
história, nos quais, rompendo enfim os círculos estreitos em
que ela própria se encerrara, o turbilhão atômico e o turbilhão
vital, e apoiando-se sobre seu próprio obstáculo, ela se
ultrapassa e se transfigura. Todas as similitudes, todas as
repetições fenomênicas não me parecem ser senão
intermediários inevitáveis entre as diversidades elementares
mais ou menos apagadas e as diversidades transcendentes
obtidas por essa parcial imolação.

(Gabriel Tarde, 1893)


RESUMO

Esta tese consiste na exposição de dados etnográficos acerca de algumas


manifestações tangíveis dos conceitos mbyá que tematizam o problema do
contato com diversas alteridades, sobretudo a alteridade não-indígena,
articulados em práticas regulares de mediação. Da mesma forma que as
entradas na mata devem ser observadas com cuidados específicos, que dizem
respeito ao tipo de relações que não se deve estabelecer com seus habitantes,
assim também ocorre com as idas à cidade. A referida exposição consistirá em
duas etapas. Na primeira, ganhará ênfase o contexto aldeão, por meio da
descrição do cotidiano de uma família extensa residente numa aldeia situada em
na Região Metropolitana de Porto Alegre. Na segunda os deslocamentos e
permanências de homens e mulheres nas ruas do centro da capital gaúcha e as
práticas adotadas por esses Mbyá na mediação e no controle das relações com
a alteridade tornam-se o foco da exposição. Transformações, migrações e
parentesco são os temas que permeiam os dados levantados no trabalho de
campo que foi realizado entre 2014 e 2017.

Palavras-chave: 1. Etnologia indígena. 2. Contato. 3. Migração e Mobilidade.


4. Parentesco. 5. Economia.
ABSTRACT

This thesis consists in the exposition of ethnographic data about the tangible
manifestations of some Mbyá concepts on the problem of the contact with diverse
alterities, mainly non-indigenous alterity, articulated in regular practices of
mediation. Just as the entries in the forest should be observed with particular
care, which refers to the type of relations that should not be established with its
inhabitants, so does to travel to the city. Such exposure will consist of two steps.
At first the emphasis will be placed on the village context, through the description
of the daily life of an extended family residing in a village located in the
Metropolitan Region of Porto Alegre. Then the displacements and the stays of
men and women in downtown streets and the practices adopted in urban context
by these Mbyá for mediation and control of the relations with otherness become
the focus of the exhibition. Transformations, migrations and kinship are the
themes that permeate the data collected in the field work that was carried out
between 2014 and 2017.

Keywords: 1. Indigenous ethnology. 2. Contact. 3. Migration and Mobility. 4.


Relationship. 5. Economy.
SUMÁRIO

Prólogo 14
Introdução 17
Parte I – Contextualização 46
I - Sobre as camadas do mundo vivido dos Mbyá 47
contemporâneos.
I.I. Apresentação 47
I.I.II. Dados demográficos sobre os povos Guarani. 48
I.II. Identidades étnicas: sobre etnônimos e autodenominações. 49
I.III. O que é uma pessoa? 58
I.III.I. Vejamos como a questão da pessoa é abordada por etnógrafos 66
de outros grupos amazônicos
I.IV. Da produção da alegria 69
I.V. Virar outro: Ojepotá e Ojejavy 78
II - Caminhar é preciso: autonomia como fluxo e parentesco como 90
rede.
II.I. Apresentação 90
II.II. Descolamentos relacionais e formas de coletivização. 97
II.III. Autonomia caminhante e o modelo de Terra Indígena. 108
II.IV. História recente da rede mbyá no Rio Grande do Sul. 111
II.V. Alguns dados sobre a presença mbyá no Rio Grande do Sul nos 118
dias de hoje.
Parte II - Etnografias 122
III - Alguns caminhos para uma aldeia na Região Metropolitana de 123
Porto Alegre.
III.I. Apresentação 123
III.II. Reveses metodológicos particulares a pesquisa de campo entre 128
populações Mbyá na Região Metropolitana de Porto Alegre
III.III. Os movimentos do processo de entrada em campo: a primeira 133
etapa da empreitada etnográfica.
III.III.I. A segunda tentativa. 134
III.III.II. Entendendo o motivo dos insucessos: do papel dos homens 157
numa família mbyá e os limites do contato.
III.IV. Uma brecha. 160
III.IV.I. Fragmentos de uma casa. 163
III.IV.II. Os dias e as relações: parentesco, períodos de crise e 182
estratégias de estabilização relacional.
III.IV.III. Recursos e (re)configurações familiares. 205
III.IV. Sobre multilocalidade, vergonha, bailes, redes sociais (virtuais) 219
e porarõ.
IV - Sobre a presença Mbyá no centro de Porto Alegre. 226
IV.I. Apresentação 226
IV.II. Sobre o que é comercializado: o artesanato. 230
IV.III. Do porarõ 234
IV.IV. Particularidades da prática do porarõ. 236
IV.V. O panorama das necessidades: uma ilustração etnográfica. 238
IV.VI. Sobre a produção de dados etnográficos a respeito da presença 241
mbyá no Centro Histórico de Porto Alegre.
IV.VII. Mapas do porarõ 246
IV.VIII. Um dia de porarõ 248
IV.IX. Sobre os homens durante o porarõ no centro. 257
IV.X. Sobre a dispersão e a união de panos. 260
IV.XI. Do outro lado da “não-relação”: uma cena etnográfica. 263
IV.XI.I. A visão dos juruá que trabalham no centro da cidade. 264
IV.XII. Sobre palavras e sangue: gênero e guaraniologia. 265
V. Considerações Finais 269
ANEXO: QUADRO GENEALÓGICO DOS “GRUPOS 286
DOMÉSTICOS” MENCIONADOS NO CAPÍTULO 3.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 287
14

PRÓLOGO

Se na teoria etnológica a imagem de tal ou qual grupo é forjada por meio das

palavras de etnógrafos, na vida real a imagem das populações indígenas em

situação de contato constante é construída junto à população não indígena no

cotidiano, com imagens presenciais e por meio da mídia. A imagem das

mulheres mbyá que frequentam o centro da capital gaúcha é uma ínfima porção

do todo complexo que constitui suas vidas, mas repercute de diversos modos

sobre seus passos fora das aldeias produzindo reações que analisarei ao longo

desta tese. As mulheres em questão têm consciência e lidam com essas

imagens que são o resultado de equívocos associados a interesses que se

combinam e se alteram no processo das relações com os seus, com os outros e

com os espaços percorridos (seus caminhos).

Mas que interesses seriam esses? A noção de interesse no contexto mbyá

dificilmente se traduz pelo que se entenderia como “interesse” pelas ruas do

centro de Porto Alegre, onde dia após dia essa imagem é produzida pelo

encontro entre tais mulheres e seus outros, na relação entre aqueles que ali

circulam e tentam extrair daquele espaço recursos que venham a compor o

panorama de sua subsistência. Os interesses mbyá, como constatei por meio do

trabalho de campo, dizem respeito aos parentes, menos do que a si ou do que

aos brancos. Esta tese pretende demonstrar como essa “prioridade filosófica e

sociológica” orienta hábitos e comportamentos específicos das mulheres em

questão.
15

No centro de Porto Alegre imagens dos outros também são produzidas, por sua

vez, pelas mulheres mbyá. Quem são os outros? Por que visitá-los e como lidar

com eles? Essas são as perguntas que perpassam boa parte da etnografia ora

apresentada.

***

No final de uma tarde de inverno encontrei com uma de minhas principais

interlocutoras no centro da cidade. Ela já guardava suas mercadorias e seu pano

de porarõ para voltar para a aldeia. Naquele dia não havia muitos panos de

porarõ pelas calçadas do centro e ela estava sozinha em seu pano com sua filha

de poucos meses de idade. Antes de seguir para o ponto de ônibus ela precisou

ir ao banheiro. Aproveitou que eu estava ali e deixou comigo sua bebê e sua

bagagem (as coisas que não conseguiu vender e as coisas que recebeu dos

brancos ao longo daquele dia).

Enquanto eu permaneci ali na calçada sozinha segurando a bebê mbyá um

senhor que se dizia cigano e vendia de luminárias ao lado do pano de minha

amiga veio perguntar como eu fazia para que ela falasse comigo e até me

deixasse segurar seu bebê. Respondi brevemente que conhecia muitos de seus

parentes em outros estados do Brasil. Uma resposta insuficiente e breve, como

eu precisava que fosse para abreviar a interlocução com aquele homem branco.

Ao mesmo tempo duas mulheres Kaingang passaram surpresas e ficaram nos

olhando de longe com alguma desconfiança enquanto aguardávamos (eu e a

bebê) que minha amiga voltasse do banheiro que ficava um pouco distante.

Quando a mãe da bebê voltou o senhor, que havia trabalhado na calçada o dia

inteiro ao lado do pano dela, tentou explicar que não era “branco” e sim “cigano”
16

e que poderiam ser amigos, pois tinham a mesma desconfiança em relação aos

brancos. Mas ele foi ignorado de modo veemente, como qualquer outro juruá

(não indígena) insistente na cidade. Fiquei com pena e tentei explicar o que o

senhor queria falar com ela, mas já andando e deixando o simpático senhor

falando sozinho, ela riu e respondeu em mbyá algo que naquele contexto poderia

ser traduzido como “não estou nem aí” (toveri).

Alguns meses depois, durante uma entrevista no centro da cidade com outra

interlocutora mbyá sentada sobre seu pano de porarõ, ela afirmou não travar

relações com pessoas brancas além de mim, assim como também não o fazia

com os Kaingang (a quem os Mbyá chamam de Pongé). E acrescentou em

português: “ninguém tem amigo juruá, ninguém quer amigo juruá”.

Desta prévia do posicionamento que marcou todo o processo de obtenção dos

dados que serão expostos, extrai-se uma certeza: cabe a nós, enquanto

“sociedade juruá” buscar compreender, respeitar e garantir liberdade e

condições dignas de manutenção para todos os mecanismos desenvolvidos

pelas “socialidades” indígenas para relacionarem-se conosco de acordo com

suas premissas sociocosmológicas e, assim, resistindo sem se deixar subsumir

pela alteridade hegemônica que (querendo ou não) representamos enquanto

forma-Estado (Kelly, 2016).


17

INTRODUÇÃO

O objeto de análise deste trabalho é o aparente paradoxo que se apresenta ao

observador de uma determinada prática dos Guarani (Mbyá) na Região

Metropolitana de Porto Alegre. Trata-se de uma reflexão sobre como, ao propor

trocas com os brancos, por meio da venda de artesanatos na cidade, os Mbyá

conseguem manter um fechamento exemplar de sua vida comunitária. Ou seja,

agenciando relações específicas com as pessoas que fazem as cidades, eles

adquirem os meios para controlar as interferências alienígenas sobre a base de

conceitos e valores que norteiam a vida cotidiana nas aldeias. Método cuja

eficácia se comprova na prevalência do uso de seu dialeto (com grandes

parcelas da população em questão sendo quase monolíngues) em aldeias

incrustradas na capital do Rio Grande do Sul.

Algumas palavras sobre os guarani e o tema do “contato interétnico”:

Os povos Guarani estão entre os primeiros a se deparar com o assédio colonial.

Os primeiros relatos deste encontro com os europeus datam do século XVI,

neste sentido pode-se dizer que a continuidade de sua existência é o fruto de

intensa resistência, mas essa resistência (ou resiliência) assume diversas

formas. Nimuendaju (1947) foi um dos primeiros a falar sobre a adoção de nomes

estrangeiros como uma estratégia guarani para manter em segredo seus nomes

de batismo, como forma de proteção em relação aos esforços de evangelistas

que os perseguiram desde as reduções jesuíticas do século XVII, e seguem até


18

os dias de hoje. Essa experiência acumulada pode ser uma boa chave para a

compreensão de alguns aspectos do que seria o “ethos guarani”, aspectos

particularmente relevantes em se tratando dos guarani Mbyá.

Comentários sobre um certo “laconismo” (Mello, 2007), ou sobre o aspecto

evasivo, esquivo ou reservado dos Mbyá nas interlocuções com não indígenas

no Sul e Sudeste do Brasil são recorrentes nas descrições etnográficas

produzidas entre esses coletivos (Assis 2004, Bergamaschi 2005, Gobbi 2008,

Macedo 2009, Pissolato 2007, Silva 2008, Soares 2010, Schaden 1954 entre

muitos outros). Prates (2013) menciona que essa postura refratária ao contato

ainda marcava a memória de Hélène Clastres sobre os guarani até

recentemente:

Sabe-se desde a bibliografia que os Mbyá são refratários à presença de

pessoas juruá (brancos) em suas aldeias . São meses, anos para que uma

relação mais próxima e de confiança ganhe corpo. Quando conheci Hélène

Clastres, em Paris, uma das primeiras perguntas que ela fez ao saber que

minha tese versava sobre os Mbyá, foi: e eles continuam fechados ao contato

com os brancos? (Prates, 2013: 23)

Assim, constatamos que o tema do contato interétnico é de muita relevância para

os próprios Mbyá que, para lidar com os problemas decorrentes do mesmo,

estabelecem estratégias claras e disseminadas. Mas como definiríamos esse

problema de um ponto de partida teórico?


19

Uma digressão pontual sobre os tratamentos recebidos pelo tema do

contato na antropologia nacional:

Inspirados na antropologia culturalista de Franz Boas os primeiros

desenvolvimentos da reflexão antropológica nacional acerca dos fenômenos em

questão se deram a partir do paradigma da aculturação, de modo que as

relações entre povos originários e “sociedade envolvente” foram pensadas como

relações entre entidades discretas. Tais relações, marcadas pela desigualdade

de forças entre as referidas entidades, tenderiam a propiciar a aculturação dos

primeiros na medida em que a segunda lhe imporia seus traços.

Esse paradigma analítico, dominante nas décadas de 40 e 50, passou em

seguida a ser criticado por seus entusiastas iniciais como Egon Schaden (1969),

Eduardo Galvão (1953) e Darcy Ribeiro (1970). As novas reflexões guardam

continuidades com o que vinha norteando os trabalhos anteriores na medida em

que seus formuladores permanecem pensando em termos de fases ou estágios

de assimilação ou integração pelos quais passariam as sociedades indígenas,

ainda entendidas como entidades mais ou menos monolíticas, em função da

relação com a sociedade nacional.

A politização do pensamento antropológico, no entanto, desloca o foco analítico

da dimensão cultural, estudo da imposição de traços culturais na relação entre

entidades discretas, à dimensão sociológica, relações de poder envolvidas nos

processos de mudança. Tendência que se adensa ainda mais a partir dos

trabalhos influenciados pela antropologia inglesa, sobretudo com o foco nas

identidades étnicas. O que se dá a partir das contribuições de Cardoso de

Oliveira e seus alunos que desenvolverão o conceito de Fricção Interétnica.


20

À essa tendência a pensar as relações entre povos indígenas e sociedade

nacional de um ponto de vista histórico, político e a partir de um aparato

conceitual exógeno aos contextos estudados, por muito tempo preponderante na

etnologia brasileira, se opõem as reflexões que tomam os dados etnográficos, o

pensamento e o discurso dos povos em questão como base para se pensar as

relações “de contato”. Desse modo conceitos como mudança e transformação

ganharam novos contornos analíticos e a agentividade indígena passou a ser

levada em consideração nas formulações acerca de suas experiências na

relação com os não-indígenas.

Mas se, como penso, não existe esse objeto chamado ‘contato interétnico', é

porque não há outro modo de contar a história senão do ponto de vista de

uma das partes. Não existe o ponto de vista de Sirius: não há 'situação

histórica' fora da atividade situante dos agentes. (Viveiros de Castro, 1999:

119)

Sabe-se que é por meio de relações sociais que sistemas socioculturais

complexos e específicos se mantém e se transformam ao longo de suas

histórias. Sob condições desafiadoras muitos povos indígenas do Brasil (e de

todo o mundo) desenvolvem mecanismos próprios para lidar com a investida da

“sociedade Envolvente”, “do ocidente”, “da forma-Estado” sobre suas terras e,

sobretudo, sobre seus universos conceituais. Os dados etnográficos que serão

expostos nos capítulos subsequentes corroboram a seguinte conclusão de

Aparecida Vilaça:

De que modo eles concebem a distinção entre os grupos? Como eles

entendem o modo como esse contato acontece? O que essas etnografias nos

mostram é que a sociologia indígena é antes de tudo uma “fisiologia”, de


21

modo que, no lugar de “aculturação” ou “fricção”, o que se tem é

transubstanciação, metamorfose. (Vilaça, 2000: 11)

Trajetória e delimitação do escopo da pesquisa.

Em minha dissertação de mestrado analisei um evento, o forró, que ocorria

regularmente numa aldeia mbyá no Rio de Janeiro. As pessoas que

encabeçavam o coletivo junto ao qual realizei pesquisas desde a graduação

eram um casal formado por um homem não-indígena e uma mulher mbyá

provenientes de Cacique Doble no Rio Grande do Sul. Em sucessivas migrações

pontuadas por permanências mais ou menos longas em aldeias mbyá no

caminho, chegaram ao Rio de Janeiro onde, finalmente, fundaram uma aldeia

para viver com muitos de seus filhos (que nasceram nesse caminhar), com os

parentes que se juntaram ao coletivo por meio de alianças matrimoniais e com

aqueles que nasceram de tais uniões.

Na referida aldeia o encontro com a alteridade não-indígena era estimulado e

mediado para se adequar às demandas particulares do grupo em questão.

Naquelas noites de danças e bebedeiras com não-indígenas as transformações

eram previstas, necessárias e controladas.


22

Concluí a respeito daqueles eventos, que eram mediados xamanicamente e

repercutiam na esfera basilar da socialidade1 mbya, o parentesco2, que os dados

então coletados apontavam para “(...), uma tomada das rédeas da interação

com um mundo exógeno e hostil por parte dos Mbyá que impõem sobre ele

os seus signos, e não o contrário.” (Migliora, 2014, p.146). Concordando, assim,

com Marshall Sahlins (1997) quando ele afirma que

[...] devemos prestar alguma atenção aos hesitantes relatos

etnográficos sobre os povos indígenas que se recusavam tanto a

desaparecer quanto a se tornar como nós. [...] pois ao menos aqueles

povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista não

estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que

lhes foi infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma

ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo. (p. 57 –

grifo meu)

Resistência e resiliência são dois dos conceitos mais relevantes para pensarmos

situações como aquelas vivenciadas continuamente pelos povos guarani em

diversos estados do Brasil há centenas de anos. Mas qual é o significado desses

conceitos nas práticas indígenas? Mais uma vez a experiência etnográfica me

conduziu a questões concernentes às relações possíveis e desejáveis com a

alteridade não indígena, dessa vez no Rio Grande do Sul: o ponto de partida do

1 Utilizo o conceito de socialidade com base nos trabalhos de Strathern (2014[1990]) e Overing
(2000) que convergem ao apontar na noção de “pessoa”, etnograficamente depreendida, um
compósito relacional que não pode ser confundida analiticamente com o “indivíduo” tal como
concebido pelas ontologias ocidentais.

2 Muitas vezes resultando em casamento s entre pessoas mbyá e pessoas juruá.


23

casal que formara a aldeia onde até então se concentrava toda minha

experiência etnográfica.

No Rio Grande do Sul

De acordo com o Censo de 2010 estima-se que no Rio Grande do Sul haja cerca

de 22 mil pessoas indígenas vivendo em aldeias, entre as etnias autodeclaradas

há os Charrua, os Kaingang e os Guarani3. A grande maioria dos cerca de dois

mil guaranis que habitam no Rio Grande do Sul são falantes do dialeto Mbyá,

embora constate-se também a presença de indivíduos e famílias Chiripá

(Nhandeva) em algumas aldeias. Sobre essa população específica a Comissão

d e Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio

Grande do Sul organizou e publicou, também no ano de 2010, uma cartilha

chamada Coletivos Guarani No Rio Grande Do Sul: Territorialidade,

Interetnicidade, Sobreposições E Direitos Específicos. Segundo levantamento ali

exposto (2010, pp. 7-8) em Porto Alegre e imediações:

estão ocupadas as terras de Lomba do Pinheiro (Anhetenguá) – onde vivem

15 famílias, ainda não regularizada e com menos de 10 hectares; Lami (Pindó

Poty) – acampamento onde vivem 8 famílias em menos de dois hectares;

Canta Galo (Jataity) – homologada com 286 hectares e onde vivem mais de

30 famílias; Itapuã (Pindó Mirim) – não demarcada, mas que foi constituído

GT pela Funai para proceder sua identificação, englobando nesta

http://www.saude.rs.gov.br/lista/333/Sa%C3%BAde_da_Popula%C3%A7%C3%A3o_Ind%C3%
ADgena
24

demarcação as áreas da Ponta da Formiga e Morro do Coco, cerca de 15

famílias vivem nas proximidades da terra tradicional em um assentamento de

24 hectares feito pelo Estado do Rio Grande do Sul; área da Estiva (Nhundy)

– localizada nas margens da RS-040 em Águas Claras, município de Viamão,

área de 7 hectares cedida pelo município e onde vivem mais de 20 famílias;

Capivari (Porãi) – acampamento situado no município de mesmo nome onde

vivem mais de 12 famílias; Granja Vargas (Yryapu), área adquirida pelo

Estado do Rio Grande do Sul de 43 hectares e onde vivem 10 famílias.

Porarõ: o fenômeno a ser analisado.

Nas calçadas do centro da capital gaúcha a presença mbyá, sobretudo de

mulheres e crianças, é facilmente identificável: sentados sobre panos onde se

encontram, geralmente, plantas e artesanatos à venda e uma cestinha solitária

a espera de doações em dinheiro. Essa prática/presença que meus

interlocutores mbyá chamam de porarõ [po – mão; -arõ – esperar] vem há

bastante tempo se mostrando incômoda para alguns não-indígenas, sobretudo,

para órgãos governamentais como Conselho Tutelar e mesmo a Brigada Militar

Fonte: site da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul.


25

(Otero, 2006). A suspeita de exploração infantil que recai ainda hoje sobre as

mulheres mbyá na cidade suscitou, num passado não muito distante,

controversas medidas por parte dos referidos agentes governamentais.

Em resposta ao posicionamento estatal contra essa prática/presença indígena

na cidade, alguns estudos antropológicos foram realizados. Estes, por sua vez,

resultaram na formulação de um projeto da Secretaria de Direitos Humanos da

prefeitura de Porto Alegre chamado ‘Mulheres dos Panos’. É nesse contexto que

o estudo ora apresentado se inscreve. Transcrevo abaixo a matéria de

divulgação do referido projeto, constante no site da secretaria 4:

Referência nacional em políticas públicas para povos indígenas, Porto Alegre


inicia nesta quinta-feira, 22, uma nova ação em benefício da etnia Mbyá-
Guarani. Batizada de Mulheres dos Panos, a iniciativa consiste na
regulamentação de espaços e horários para comercialização de produtos e
manifestações artísticas dos guaranis no Centro Histórico. A apresentação
do projeto ocorrerá às 10h30, nas escadarias do Paço dos Açorianos, com a
presença do prefeito José Fortunati.

O nome do projeto é uma referência à peça de pano que dará identidade


visual aos grupos Mbyá-Guarani envolvidos nas atividades comerciais e
artísticas. A peça é produzida em tecido canvas-matte, de 1,80 metro X 1,10
metro, com impressão de imagens de iconografia própria da etnia e com as
logomarcas da prefeitura e da Fundação Nacional do Índio (Funai). O pano
será utilizado como cobertura do solo para exposição de artesanato,
acomodação da família expositora e para atuações artísticas.

O projeto Mulheres dos Panos atende demanda apresentada por inquérito


civil público junto ao Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul (MPF-
RS). O inquérito examinou a presença Mbyá-Guarani no Centro Histórico da

http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smgl/default.php?p_noticia=148431&PROJETO+MULHERES
+DOS+PANOS+BENEFICIA+INDIOS+GUARANIS
26

Capital e as supostas práticas de mendicância e exploração de trabalho


infantil por parte daquele povo. Na avaliação da situação, trabalho conjunto
do MPF-RS com as secretarias municipais de Coordenação Política e
Governança Local e de Direitos Humanos e Segurança Urbana, concluiu que
os índios não realizam mendicância ou exploração de trabalho infantil.

Na interpretação das mulheres Mbyá-Guarani, elas realizam o poraró –


traduzido como “estender a mão” – experiência classificada como digna por
aquele povo. As mulheres Mbyá-Guarani “recebem ajuda de não-indígenas
de bom coração e ocupam um lugar que lhes pertence”. Logo, estão
caminhando conforme o próprio sistema tradicional, uma vez que o que
mudou não foram eles, mas sim, o “lugar em que vivem”, diz o relatório do
inquérito.

Depois de chegar a tais conclusões, a força-tarefa dedicou-se à missão de


assegurar maior dignidade aos guaranis na prática do poraró, no comércio de
artesanato e nas apresentações musicais de crianças. Entre as medidas
adotadas está a implantação do Projeto de Segurança Alimentar – aquisição
de alimentos já concedidos nas comunidades Mbyá-Guarani durante o
segundo semestre de 2011 –, a aquisição, em 2012, de área para
assentamento definitivo da comunidade Mbyá-Guarani e a produção de peça
de identidade visual indígena.

Moralidade, “Contato Interétnico” e suas modulações ao longo da rede

mbyá.

A prática analisada nesta tese está inserida num complexo universo onde

comportamentos são incentivados ou repudiados situacionalmente. Embora as

aldeias mbyá no Brasil estejam espalhadas pelos estados do Rio de Janeiro,

Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pará,

os laços de parentesco que indivíduos de localidades aparentemente muito

distantes sustentam entre si formam uma rede frequentemente mobilizada pelos

mesmos. Isso que faz com que o deslocamento entre aldeias esteja sempre no
27

horizonte de possibilidades de cada um5, de acordo com suas próprias relações

de parentesco cultivadas atualmente por meio de ligações telefônicas e

principalmente via internet. E essa possibilidade de deslocamento é

frequentemente acionada, promovendo uma intensa troca de informações sobre

experiências locais.

Esse trânsito característico6 dos mbyá entre aldeias pode ser intensificado por

eventos como bailes e campeonatos de futebol, quando grupos maiores se

deslocam em ônibus alugados e após a visita voltam, muitas vezes deixando

alguns mbyá no local visitado e levando consigo outros mbyá, para as aldeias de

onde vieram. A circulação entre aldeias também faz parte das possibilidades de

cada pessoa ou grupo familiar, o que costuma ocorrer tanto na forma de visitas

quanto na forma de mudança de local de domicílio. Interessa ressaltar que

diferentes localidades, diferentes aldeias, diferentes inserções no contexto

envolvente, urbano ou não, marcam a adoção de diferentes parâmetros para

orientar a relação com a alteridade não indígena.

5Essas relações são atualmente reforçadas por meio de ligações telefônicas e redes sociais, mas
a relevância dessas linhas interestaduais de parentesco vem sendo etnograficamente
documentada desde antes da ampliação do acesso as essas tecnologias de comunicação, o que
atesta a diacronia do fenômeno e a relevância da conexão que os mbyá mantém entre si, mesmo
em aldeias distintas. Dados arqueológicos permitem aventar que essa configuração em redes
amplamente conectadas cobrindo longos espaços seja uma característica dos povos hoje
conhecidos como guarani anterior ao contato (Bartolomé 2008:50 apud Susnik 1965, Noelli
2004).

6 Veremos no capítulo 2 o papel exercido pelos laços de parentesco nessa e em outras


engrenagens adjacentes que funcionam na articulação entre as caminhadas (-guata) e a
manutenção da “alegria” (-vy’á) enquanto aspecto fundamental para a saúde das pessoas mbyá
como consequência da estabilidade relacional entre coresidentes.
28

Também vale enfatizar que cada aldeia tende a possuir laços com outras aldeias

específicas, o que nos habilitaria a encarar essa configuração como um conjunto

de redes superpostas que se comunicam em pontos específicos, embora

mantenham fluxos preferenciais orientados de acordo com as relações entre os

coletivos de habitantes locais e seus parentes habitantes em outras aldeias

específicas. Por exemplo, há no estado do Rio de Janeiro uma aldeia com

predominância de suas relações com outras aldeias em dada região de São

Paulo e no Paraná, ao passo que a aldeia mbyá mais próxima conta com uma

predominância de suas relações com aldeias em outras regiões de São Paulo e

no Rio Grande do Sul. Ou seja, o mapeamento dessas redes demandaria um

trabalho minucioso de recenseamento e uma cartografia das relações de

parentesco que operam como motor dos fluxos acima referidos.

De volta ao tema das relações com não indígenas.

No caso etnografado no Rio de Janeiro (Migliora, 2014) empreendi uma análise

sincrônica de um contexto de aceleração e aprofundamento das relações com

não indígenas, que fora configurado no tempo por uma sucessão de eventos e

formulações criativas acerca do tema do “contato”. A postura adotada por meus

interlocutores naquela ocasião os diferenciava radicalmente em relação ao

horizonte mais amplo das formulações mbyá acerca de tais relações.

Em Porto Alegre deparei-me com uma postura prevalentemente negativa diante

da possibilidade de aprofundamento de relações com juruá tanto nas aldeias

quanto na cidade, quase que numa inversão do que ocorria no Rio de Janeiro.
29

Postura essa que fora enunciada por interlocutoras que sustentavam laçõs de

parentesco próximos com a parentela que compunha o grupo junto ao qual eu

vinha pesquisando no Rio de Janeiro. Parentes esses que não poupavam as

criticas à “mistura” de seus parentes com brancos. Paralela e paradoxalmente

percebi que muitas mulheres mbyá ocupavam diariamente as calçadas do centro

da capital sobre panos estendidos com artesanatos e plantas à venda, muitas

vezes acompanhadas de crianças.

Foi somente abordando aquelas mulheres na cidade que consegui abertura

suficiente para que um grupo familiar me acolhesse numa aldeia. Essa

interlocução inicial em ambiente urbano possibilitou a realização de um trabalho

de campo de nove meses numa Terra Indígena situada na região metropolitana

de Porto Alegre.

Percursos e percalços da pesquisa:

O projeto inicial se voltava para um grupo de parentes próximos de meus

primeiros interlocutores mbyá (aqueles do Rio de Janeiro). Provenientes de

Cacique Doble no interior do estado do Rio Grande do Sul o coletivo em questão

também empreendeu suas migrações, mas se estabeleceram em uma terra nas

imediações da capital, permanecendo no Rio Grande do Sul. Interessavam-me

àquela altura especificamente as conceitualizações e estratégias particulares

adotadas por aqueles parentes próximos do grupo do Rio de Janeiro referentes

as relações possíveis com a alteridade juruá.


30

Grosso modo, a pergunta que norteava a pesquisa até então era: como a mistura

com essa alteridade, que caracterizava tanto meus primeiros interlocutores mbya

quanto aqueles junto aos quais eu desejava pesquisar então, repercutia na

relação com os demais mbyá e na formulação de conceitualizações e estratégias

relacionais? Uma das motivações para esse recorte era a suposição de que

grupos estigmatizados dentro da rede mbyá por causa da questão da mistura

apresentariam menos resistência na recepção de um pesquisador em suas

aldeias, mas este cálculo, veremos adiante, estava incorreto.

Relações controladas: uma imagem inicial dos valores atribuídos a relação

com a alteridade não indígena no Rio Grande do Sul.

Antes de me mudar para Porto Alegre, colegas guaraniólogos já haviam

mencionado em conversas informais o caráter impermeável das aldeias mbyá

na região metropolitana do Rio Grande do Sul. Apesar dos comentários acerca

da inexequibilidade do meu projeto de campo ali, inicialmente eu acreditava que

minha boa relação com o pessoal junto ao qual eu vinha pesquisando desde

2009 no Rio de Janeiro facilitaria minha entrada numa aldeia específica. Lembro

que o grupo mencionado migrara de Cacique Doble e do território indígena mais

populoso do estado, a Terra Indígena Guarita, até o Rio de Janeiro, passando

por diversas aldeias no caminho.

Em grupos delineados pelos laços de parentesco, muitos dos “parentes” de meus

primeiros interlocutores que permaneceram no Rio Grande do Sul fizeram o

mesmo movimento de saída, fundando aldeias em suas paradas. Muitos dos que
31

saíram de Cacique Doble e da Terra Indígena Guarita estabeleceram-se na

região metropolitana de Porto Alegre.

Eram coletivos sobre os quais ouvi falar diversas vezes desde o início do trabalho

etnográfico na aldeia do Rio de Janeiro, desde 2009. As visitas entre eles, tanto

de pessoas mbyá saindo do RS para o RJ, quanto o contrário, não eram

frequentes, mas também não eram excepcionais. Deste modo, a análise dos

mecanismos da multilocalidade (Pissolato, 2007) aplicada a coletivos

estigmatizados pelo tema da mistura parecia muito interessante para a

continuação das análises sobre as relações com a alteridade não indígena e

suas modulações ao longo da rede de aldeias mbyá.

As variáveis formulações dos mbyá contemporâneos para o inevitável “contato”

historicamente dado com os não indígenas me interessavam. Visando uma

futura análise comparativa, adotei como estratégia de pesquisa a ideia de

acompanhar a vida de parentes próximos daquele coletivo do Rio de Janeiro.

Em 2014, ainda no primeiro ano do doutorado, passei a visitar Porto Alegre com

o objetivo de mapear minhas possibilidades de campo ali. Em particular me

interessava a aldeia na qual meus interlocutores mbyá no Rio de Janeiro tinham

laços mais estreitos de parentesco, laços esses que repousavam justamente

sobre meu tema preferencial, a mistura com juruá por meio de união

conjugal. A Tekoá Ñuundy, também conhecida como Aldeia da Estiva seria,

nesse sentido, o caso ideal para minha pesquisa.

A aldeia foi fundada, em 1998, em Águas Claras (Viamão), às margens da BR

040, por um casal constituído por um homem Chiripá e uma mulher Mbyá e
32

contrastava com as demais aldeias do Rio Grande do Sul, sendo estigmatizada

justamente pelo histórico de casamentos com pessoas não indígenas (juruá) e

kaingang (pongé). Os moradores daquela aldeia estão relacionados por laços de

consanguinidade aos já mencionados mbyá do Rio de Janeiro.

O histórico dessas uniões é descrito em profundidade na tese de doutorado de

Maria Paula Prates (2013), onde a autora identifica que apesar desta tendência

a casar mulheres mbyá com pessoas não-guarani (sejam eles não-indígenas ou

kaingang) tenha marcado a composição interna dessa aldeia, bem como sua

imagem diante de outras aldeias da rede mbyá, uma estratégia de fechamento

endogâmico foi adotada e bem sucedida a partir de determinado momento.

Ainda nessa tese a antropóloga rememora algumas circunstâncias históricas (no

século XIX) nas quais esse tipo bem específico de união, entre mulheres mbyá

e homens outros, foi de utilidade política aos mbyá 7. O que se daria por um

“estatuto cosmológico do feminino” que propiciaria sua abertura ou

suscetibilidade à relações com a alteridade o que, por sua vez, em momentos de

fechamento e intensificação do controle sobre interações com estas alteridades

passa a implicar cuidados específicos (Prates, 2013: 220-225).

Em suma, conclui-se daí que ao longo do tempo as estratégias relacionais

adotadas pelos mbyá variam e essa variação incide diferencialmente sobre

7 “ À luz do que nos conta Saint-Hilaire podemos intuir que essas mulheres desempenhavam um
papel importante nas relações com os brancos, não fungindo à regra de povos falantes do Tupi
quanto a estabelecer alianças com inimigoscunhados/tovajá.” (Prates, 2013: 223).
33

homens e mulheres. O momento em que meu trabalho de campo teve início, ao

que tudo indica, era um momento de fechamento.

Sobre a exequibilidade do projeto inicial: um breve adendo de cunho

etnográfico.

Em minha primeira viagem ao Rio Grande do Sul em setembro de 2014

consegui, por intermédio de uma amiga, um encontro com uma liderança

feminina na Estiva, única liderança mbyá feminina8 de que tive conhecimento na

região. A reunião com essa mulher que chamarei de Arminda correu com

naturalidade em sua casa, onde já se encontrava quando cheguei,

acompanhada de sua filha mais nova (uma estudante da UFRGS), uma de suas

irmãs e uma ex-funcionária do CIMI, atualmente trabalhando com uma outra

organização indigenista local.

Arminda, uma senhora de meia idade, era justamente aquela que havia se

casado e tido filhos com um homem kaingang. E se dizia a liderança

responsável, junto a seu finado marido kaingang, pela construção da escola

modelo que existe naquela aldeia, motivo de orgulho para a comunidade.

Embora ela parecesse animada com meu interesse nas atividades escolares ali

desenvolvidas, quando falei na realização de um trabalho de campo prolongado

na aldeia ela me mandou ir na casa ao lado falar sobre meu projeto com um de

seus filhos que seria o cacique.

8 Ela fora também a principal interlocutora da amiga que me recomendara.


34

O jovem rapaz, afirmou que precisaria consultar a comunidade quanto a minha

presença na aldeia, quanto ao interesse deles no desenvolvimento de minha

pesquisa. Perguntei quando eu teria uma posição e nada me foi dito em resposta.

O silêncio que se seguiu a esse curto diálogo me fez perceber que eu deveria

voltar até minha anfitriã e informar-lhe sobre o parecer de seu filho. Diante da

minha preocupação com uma possível decisão negativa, ela reagiu como se a

resposta de seu filho fosse uma mera formalidade, o que me tranquilizou.

Ali, como mencionei acima, moravam também o irmão do homem juruá que

encabeçava junto a sua esposa Mbyá o pessoal da Tekoá Mbo’yty, no Rio de

Janeiro. Este era casado com uma das irmãs dessa liderança feminina que

supotamente viria a ser minha nova interlocutora mbyá em campo. O pessoal

que se constituiu a partir dessa união com um juruá estava, segundo me

disseram, em conflito com o pessoal de Arminda. E havia controvérsias sobre

quem de fato seria o cacique ali, um dos filhos dela com seu finado marido

kaingang ou um dos filhos de sua irmã com seu marido juruá.

Nas visitas subsequentes (dezembro de 2014 e janeiro de 2015) ela me

apresentou o resto do território da aldeia, me levou até a casa de outra de suas

filhas, também estudante da UFRGS, e me apresentou a algumas de suas irmãs.

Naquelas visitas conversamos sobre as atividades que desenvolveríamos juntas

como viagens até uma aldeia na Argentina, que ela pretendia visitar em busca

de tratamento xamânico para suas fortes e constantes dores de cabeça e

viagens a outras aldeias no Brasil e à Brasília, em função de suas atividades

enquanto liderança junto à Comissão Yvy Rupá (CTI) em luta pelos direitos

territoriais dos mbyá. Planos sugeridos por minha interlocutora e que, embora
35

não viabilizassem a obtenção do tipo de dados que me interessava, me faziam

acreditar no futuro do trabalho de campo contínuo junto a ela. Além disso ela

prometia artesanatos “tradicionais” (diferentes daqueles “todos coloridos que

outros mbyá vendiam por aí, sobretudo na cidade”), roupas costuradas por ela

mesma, contanto que eu lhe levasse os tecidos, e comidas “de mbyá mesmo”.

Naquele momento o uso recorrente de categorias como “tradicional” e

“verdadeiro” me chamou a atenção, por serem usadas para marcar um contraste

em relação à outros mbyá na Região Metropolitana de Porto Alegre. Nessas

conversas Arminda deixava claro que considerava atividades como o porarõ9 no

centro de Porto Alegre humilhantes para os mbyá. Parecia haver em seu

discurso uma distinção entre as atividades das mulheres no centro e outras

formas de venda de artesanatos, como os pontos de venda à beira da estrada

(como ocorria nas imediações da própria aldeia da Estiva) e no Brique do Parque

da Redenção não mencionados por ela. Minha interlocutora e uma de suas filhas

expressavam também intensa reprovação em relação as misturas com pessoas

não indígenas. E os coletivos da rede mbyá no Rio de Janeiro (Tekoá Mbo’y ty)

e de Santa Catarina (do Mbiguaçu) eram a expressão máxima daquela

reprovação, embora fossem parentes próximos e visitados pelos membros

daquele coletivo.

Com o tempo, ainda que nossas conversas estivessem se tornando cada vez

mais íntimas, meu lugar de pesquisadora ali permanecia indeterminado. Como

9 Posteriormente ficou claro para mim que o pensamento excepcional era justamente o que
aquela liderança expressava, uma vez que nenhuma avaliação pejorativa acerca da prática do
porarõ me fora apresentada por nenhuma de minhas interlocutoras mbyá subsequentes.
36

já havia passado por esse tipo de situação anteriormente, e sabia que a liderança

da Estiva era sobrinha da liderança feminina da aldeia no Rio de Janeiro onde

eu havia pesquisado, permaneci acreditando que minha experiência prévia,

minha relação com seus parentes e o reconhecimento deles quanto a minha

habilidade com a língua me garantiriam uma entrada tranquila naquela aldeia.

Em dezembro de 2014 Arminda sugeriu que eu alugasse um apartamento na

cidade e realizasse minha pesquisa em visitas à aldeia, como trabalhavam os

funcionários juruá da escola e do posto de saúde da aldeia. Concluí que deveria

passar por um período assim até que conquistasse o respeito e a confiança

deles. Em março de 2015 passei a residir em um apartamento próximo ao centro

de Porto Alegre. Daí em diante passei a visitar a aldeia com maior regularidade.

Foi quando tive a dimensão do quanto minha presença era indesejada ali.

Certa vez combinei pelo telefone com Arminda uma nova visita. Chegando à

aldeia percebi que sua casa estava trancada, perguntei a um filho seu que

passava por ali onde estava sua mãe e ele apenas me informou que ela tinha

ido ao centro de Viamão. Esperei por mais de uma hora na varanda e aos que

passavam por ali eu parecia ser invisível. Ouvi o sinal do intervalo da escola que

ficava no centro da aldeia e resolvi entrar na esperança de encontrar uma de

suas filhas. Encontrei-a, porém não recebi nenhuma atenção dela. Quem me

dedicou algumas palavras a mais foi o cacique, que era também um professor

ali. Ele me disse, sem rodeios, que não poderia impedir sua mãe, nem ninguém,

de receber visitas, mas que por ele eu não pesquisaria ali.

Posteriormente telefonei e remarquei a visita com Arminda e mais uma vez

quando cheguei na aldeia fui informada de que ela se encontrava na cidade. Ela
37

chegou da cidade um pouco depois e então passou a se dedicar a me

recepcionar.

Logo que constatou que não tinha ali nenhuma comida para ela almoçar e, pôs-

se a preparar para mim e para ela mesma o que ela chamou de uma “comida de

branco” (arroz, batata e mbojapé – um pão caseiro à base de farinha de trigo e

água) no tata ypy (lugar de fogo – construção onde se cozinha no fogo de chão)

de seu grupo doméstico10.

Neste interim diversos parentes, majoritariamente mulheres, se juntaram a nós

e logo trouxeram um grande banco de madeira para que permanecêssemos

todos juntos conversando e comendo. Entre eles estava o primeiro professor

indígena da região, um senhor muito respeitado pelas lideranças mbyá de Porto

Alegre e imediações. Esse senhor me fez perguntas sobre meus conhecimentos

da língua, sobre tipos de fumo misturados com outras ervas para petyguá

(cachimbo) e sobre “meus conhecimentos” entre os mbyá do Rio de Janeiro. Do

tata ypy fomos para a casa de Arminda e passamos uma tarde agradável,

enquanto algumas mulheres produziam arcos artesanais para venda enquanto

acompanhavam os sinais sonoros da escola, que ficava do outro lado do pátio

logo a frente, onde se encontravam seus filhos.

10 O uso preferencial do fogo de chão em detrimento dos fogões a gás (geralmente existentes
nas habitações mbyá) é a regra, tendo sido observado entre todas as minhas interlocutoras entre
2009 e 2017.
38

Quando se aproximou o horário do meu ônibus de volta para a cidade fui

informada de que deveria me encaminhar para a parada, o que deixava claro

que eu não seria convidada a permanecer ali aquela noite. Ainda assim as coisas

pareciam estar melhorando, e como eu já havia levado os tecidos que minha

anfitriã me havia pedido anteriormente, e tive a impressão de que agradaria o

senhor mencionado com diferentes tipos de pety (tabaco) para seu petyguá

(cachimbo), acreditei que por meio desse tipo de trocas meu processo de

inserção ali caminharia bem. No dia seguinte liguei para Arminda a fim de marcar

uma nova visita e não obtive resposta. Dali em diante nunca mais nenhuma

ligação minha para aquela senhora ou para suas filhas foi atendida.

Não me pareceu sensato forçar a entrada naquele contexto, voltando a visitar

sem conseguir nem mesmo ser atendida ao telefone.

Pouco tempo depois, num evento em comemoração ao dia do índio na T.I. do

Itapuã11, uma outra aldeia da região metropolitana de Porto Alegre, encontrei

11 Ao longo do evento todos eles fariam discursos sobre a situação dos mbyá na atualidade e a
importância da educação escolar em paralelo com a importância das práticas tradicionais como
cantos e danças na Opy. Suas falas (assim como as falas de outras lideranças locais ali
presentes) majoritariamente em português se direcionavam principalmente aos convidados não
indígenas.

O evento em questão recebia diversos juruá que se encaminharam até lá em dois ônibus fretados
pela UFRGS e em carros particulares. Na parte da manhã as atividades consistiam em
apresentações musicais e danças das quais em fila os juruá participaram um a um entrando na
construção onde teriam lugar as falas das lideranças, sobretudo professores mbyá. Ali entrando
cada um proferia uma saudação ensinada pelos anfitriões que se concluía com a expressão
“Aguyje eté” diante de alguns jovens e mulheres mbyá caracteristicamente vestidos que se
encontravam dispostos em semicírculo, alguns deles tocando mbaraka-miri (chocalhos) e um
deles com um mbaraka (violão).
39

uma das filhas de Arminda, que era professora, acompanhada do professor mais

velho acima mencionado e de seu irmão, o cacique, e fui por todos

deliberadamente ignorada.

A partir daquele evento desisti definitivamente do recorte inicial da pesquisa,

deixando-o em aberto para redefinição de acordo com as reais possibilidades de

execução do trabalho de campo. Assim, retracei o objeto de estudo mantendo

apenas meu interesse pelas aldeias que fazem parte da região hidrográfica do

Lago Guaíba, pela proximidade em relação a capital e pelas trocas e fluxos entre

elas. Para tanto passei a me concentrar em tentativas de travar relações com as

mulheres mbyá no centro de Porto Alegre, de segunda à sábado, e na feira

dominical de antiguidades e artesanatos conhecida como Brique do Parque da

Naquela etapa da festividade as lideranças afirmavam a identidade distintiva dos mbyá enquanto
o “tradicional” povo indígena do Rio Grande do Sul. Salientavam também a necessidade de
revisão das restrições a extração dos recursos provenientes da reserva ecológica do
Itapuã (que abrangia a todos, inclusive moradores da aldeia vizinha à reserva que
demandavam que uma exceção fosse aberta para eles enquanto povo tradicionalmente
relacionado àquelas matas e que delas extraiam recursos tanto para uso próprio quanto
para comercialização). Também foram tematizadas nos discursos então proferidos questões
mais amplas, como a necessidade de demarcação de uma série de Terras Indígenas para os
mbyá, na medida em que a situação fundiária no estado é marcada pela existência de diversos
acampamentos à beira de rodovias onde muitos mbyá vivem em condições perigosas e
insalubres.

Na parte da tarde ofereceram refeições que seriam vendidas aos visitantes, também
estavam à venda artesanatos produzidos pelos moradores daquela aldeia. De um modo
geral a população da aldeia parecia um tanto desligada da primeira etapa da festividade.
Tive a impressão de que se interessavam menos pelos discursos de suas lideranças e
professores, que ali falavam para os visitantes não-indígenas, do que pelas danças, pela
comida e sobretudo pela venda de seus artesanatos.
40

Redenção. Pareceu-me então que aquele seria um caminho alternativo que

poderia me levar até uma casa numa aldeia mbyá, como de fato ocorreu.

Expressões comportamentais dos significados projetados sobre as

relações possíveis com a alteridade não-indígena.

A digressão etnográfica do tópico anterior foi realizada com o intuito de tornar

claro o processo que me levou a compreender que: 1) A entrada em campo por

meio de lideranças apresentaria limitações que estavam em desacordo com o

meu projeto, 2) Pessoas desvinculadas da via política da relação com “o branco”,

“o Estado” e todos os desdobramentos institucionais dos mesmos, atuam

diretamente e em seus próprios termos nestas relações. Veremos ao longo da

tese de que maneira ao se encaminharem para a cidade muitas mulheres mbyá

se posicionam enquanto agentes de trocas com os não indígenas,

estabelecendo para essas relações seus próprios termos e limites.

Proponho uma tradução dos conceitos utilizados pelos mbyá para se posicionar

e atuar nessas relações com a alteridade não indígena, para além do tema da

“tradição” e da história, contemplando as mudanças decorrentes desta “busca

pelos recursos do juruá” que a eles aparecem como desejáveis. Alterar-se para

permanecer é a estratégia, aí está a aplicação da noção de resiliência. Neste

ponto, interessa abordar essa relação específica não apenas nos discursos

nativos sobre as investidas dos “brancos” sobre os territórios indígenas, mas

também, e sobretudo, a partir das investidas indígenas sobre territórios objetivos

e subjetivos dos “brancos”, tais como o centro de Porto Alegre.


41

Essa mudança de postura que analiso é resultante do sentido das práticas

indígenas etnografadas. A reflexão indígena sobre o tema do chamado “contato

interétnico” adquire diversas formas para além da linguagem das lideranças,

linguagem que frequentemente conversa melhor com a “sociedade nacional” do

que com o aldeão médio (para um outro fenômeno deste tipo ver artigo sobre o

surgimento de corais mbyá enquanto ferramentas de relação com os juruá ver

Macedo, 2012).

O que se observa no caso em questão é justamente o oposto do discurso

adaptado às demandas políticas, articulado por lideranças enquanto porta-vozes

de uma aldeia ou de sua etnia, discurso no qual a oposição ao sistema opressor

e voraz do branco é enfatizada. A presença mbyá no centro da capital gaúcha

possui um sentido diferente e que é compartilhado entre seus agentes: opera-se

nesse contexto uma extração de recursos específicos que sustenta uma

socialidade em rede comum a outros contextos mbyá. Todavia essas coisas não

se articulam de modo simples, pois a relação estabelecida por meio dessa

prática é ruidosa e demanda cuidados específicos.

Seria fácil e seguro atestar que a presença de mulheres mbyá pelas calçadas da

cidade não passa de mais uma das nefastas consequências do “contato

interétnico” que as levaria a uma situação indigna e degradante de mendicância.

Tal abordagem submeteria o pensamento dessas mulheres às contingências,

falando apenas da cidadania que lhes fora negada pelo Estado e de que medidas

seriam interessantes para “solucionar” esse “problema”. Mas que olhar seria

esse, o das mulheres mbyá ou o do próprio Estado? Em que extensão existiria


42

qualquer consonância entre esse discurso e as intenções indígenas em

questão?

As contrapartidas materiais à presença mbyá na cidade são inegavelmente

interessantes para as mulheres que ali permanecem vendendo seus artigos e

coletando doações. Elas ganham alimentos (ou restos de alimentos), roupas e

moedas de seus outros, os juruá. Além disso, elas ganham também

conhecimentos e capacidades a partir dos mesmos, ou seja, alteram a si

mesmas por meio dessa prática. Alteração particular que, como veremos nos

capítulos etnográficos só se mostra no contexto aldeão, na medida em que a

cidade constitui um espaço de reificação de um comportamento de evitação da

comunicação nos termos do outro ali predominante. Assim, é pertinente afirmar

que a cidade, enquanto um modelo do “mundo dos brancos” passa dessa

maneira a fazer parte do “mundo mbyá” quando estes agentes voltam para suas

aldeias, o que ocorre por meio das histórias que trocam ou nos encontros de

parentes que a ida à cidade propicía.

Além das articulações específicas de conceitos mbyá que dizem respeito às

relações com diversas alteridades, sobretudo a alteridade não indígena, há o

aspecto do parentesco e das relações entre parentes coresidentes que motivam

os deslocamentos e as trocas observados. Dinâmicas relacionais endógenas

que orientam e estruturam práticas regulares de meus interlocutores no sentido

da busca por potências exógenas. Ou seja, embora muitos cuidados sejam

necessários na relação com a cidade o que obtém fora do contexto aldeão é

interessante em diversos níveis que se complementam.


43

Assim como as caminhadas na mata devem ser observadas com cuidados

específicos relacionados aos seus habitantes particulares (“Outros” por

excelência), sobretudo em relação aos poderosos Já (donos das espécies que

são capturadas pelos mbyá em suas incursões pelas matas), da mesma forma

ocorre com as idas à cidade e seus perigos particulares.

Por outro lado, a vida doméstica é permeada por tensões que são consideradas

por meus interlocutores como perigosas a manutenção da boa convivência entre

coresidentes a ponto de por em risco a saúde daqueles que entram em conflitos.

No mundo mbyá os estados afetivos de cada um devem ser estabilizados de

modo a manter em segurança os coletivos, neste sentido as caminhadas

assumem um valor profilático. Neste sentido os “passeios” pelo mundo dos

brancos, que constituem a prática do porarõ, enquanto uma das modalidades do

“caminhar mbyá” adquirem sentidos surpreendentes de pertinência multiniveada

na configuração espaço-temporal da rede de aldeias mbyá da Região

Metropolitana de Porto Alegre.

A experiência etnográfica que embasará esta tese se dividiu em duas etapas. A

primeira se passou numaa das aldeias da referida região e a segunda consistiu

em observações e entrevistas com praticantes do porarõ de diversas aldeias no

centro de Porto Alegre.

Os capítulos

Parte I – Contextualização
44

Capítulo 1 - Sobre as camadas do mundo vivido dos Mbyá

contemporâneos.

Neste capítulo bibliográfico montarei um quadro que tem como objetivo

contextualizar os dados expostos na Parte II (etnográfica) da tese. Os conceitos

abordados foram selecionados conforme a observação de sua relevância para

meus interlocutores no sentido de compreender e agir nas situações que serão

analisadas. Esse quadro deverá funcionar como um léxico que permitirá a leitura

das etnografias de um ponto de vista mais aproximado a visão que os próprios

mbyá tem de suas experiências e relações. Para tanto, recorrerei à literatura

guaraniológica recente na qual os conceitos observados em campo encontram-

se discutidos, analisados e traduzidos em profundidade.

Capítulo 2 - Caminhar é preciso: autonomia como fluxo e parentesco como

rede.

Este, que será o segundo capítulo bibliográfico da tese, consistirá num resumo

das informações que constam em diversas teses produzidas por guaraniólogos

acerca dos processos de formação das aldeias da região. Numa forma de

história que se constitui pelo fluxo de famílias entre aldeias e com a formação de

novas aldeias por conta de expropriações/desapropriações, falta de acesso à

serviços e recursos básicos e demais violências relacionadas à questão

territorial.
45

Parte II – Etnografias

Capítulo 3 Alguns caminhos para uma aldeia na Região Metropolitana de

Porto Alegre.

Neste capítulo detalharei os mecanismos de limitação para a entrada de

pessoas juruá em um ambiente familiar mbyá. Utilizarei as etapas de minha

entrada em campo para ilustrar em que medida (e por que motivos) ofertas de

recursos básicos escassos são dispensáveis em favor da manutenção da

distância de relações contínuas com pessoas juruá, o que não implica numa

postura refratária em relação às "coisas do branco".

Não por acaso a única possibilidade para realização desta etapa do trabalho de

campo, nos moldes tradicionais de permanência prolongada, foi na casa mais

distante do centro da aldeia, e da vida aldeã de um modo geral, e menos sujeita

ao "julgamento" dos demais habitantes da aldeia aos meus anfitriões por

aceitarem em suas casas uma juruá. Os pontos específicos que desejo ressaltar

nessa etapa da exposição são: a instabilidade relacional dentro do grupo

doméstico, sobretudo entre parentes por afinidade, e as formas de obtenção e

distribuição de recursos em um grupo doméstico mbyá, tema que está

diretamente relacionado à questão da "necessidade" na prática do porarõ.

Capítulo 4 - Sobre a presença Mbyá no centro de Porto Alegre.


46

Esse capítulo consistirá num mapeamento multidimensional da atividade do

porarõ e na descrição dos comportamentos observados na cidade. A distribuição

dos pontos de porarõ, os fluxos de pessoas mbyá entre aldeia e cidade, entre

aldeias e entre os próprios pontos ao longo de um dia de porarõ serão o foco

dessa etapa da exposição. Aqui transparece o papel das idas à cidade na

estabilização das instáveis relações de afinidade que ameaçam os grupos

domésticos no contexto aldeão, o que ocorreria por meio de um deslocamento

das oposições e continuidades relacionais constatadas na primeira etapa do

campo.

Capítulo 5 - Considerações Finais

No capítulo final sintetizo o material exposto nos capítulos anteriores sob a forma

de uma hipótese que diz respeito ao contexto territorial, aos fluxos de pessoas

pela rede mbyá e sobre o desdobramento de mecanismos sociológicos de

manutenção do bem estar na composição do fenômeno do porarõ.

***
47

Parte I
Contextualizações
48

Sobre as camadas do mundo vivido dos Mbyá contemporâneos.

I.I. Apresentação

O presente capítulo consiste numa pontual revisão bibliográfica da literatura

etnológica acerca dos povos Guarani, em particular aquela que versa sobre os

grupos falantes da variação dialetal denominada Mbyá. Esta etapa da exposição

tem como objetivo oferecer um pano de fundo sobre o qual serão projetados os

dados coletados em campo, apresentados na segunda parte da tese. É por esse

motivo que neste capítulo enfocaremos os conceitos nativos mais relevantes ao

tema da argumentação central deste trabalho, a saber, aqueles relativos à

concepção nativa das relações sociais.

A seguir exploraremos como aparecem na literatura analisada as relações

possíveis e interessantes, aquelas que suscitam esforços por sua manutenção,

e as relações interditas e reprováveis, aquelas que estão submetidas aos

mecanismos de controle que serão analiticamente privilegiados ao longo de toda

a argumentação. Para tanto precisaremos esmiuçar os conceitos de “corpo” e de

“humanidade”, ou seja, a noção de pessoa com a qual operam meus

interlocutores, entre diversos outros temas que a estes se articulam nas

experiências cotidianas etnografadas.

Paralelamente ao recorte temático há o recorte bibliográfico privilegiado. Por

propormos aqui uma análise de dados sincrônicos de cunho sociocosmológico,


49

serve ao objetivo analítico uma apresentação das perspectivas atuais presentes

na produção etnográfica recente sobre os coletivos étnicos em questão. Ou seja,

o panorama apresentado na continuação deste capítulo visa apresentar

principalmente os valores e conceitos depreendidos da convivência entre

etnógrafos e coletivos mbyá nos últimos 15 anos.

I.I.II. Dados demográficos sobre os povos Guarani.

De acordo com o Censo de 2010, a população Guarani presente no território

brasileiro era de 67.523 pessoas, sendo estas 43.401 (Kaiowá), 8.026 (Mbyá) e

8.596 (Nhandeva). Em 2016 o Mapa Guarani Continental contabilizou uma

população total de 85.255 pessoas Guarani no Brasil, distribuídas pelos estados

do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro,

Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Pará e Tocantis. As variações dialetais,

Mbyá, Nhandeva12 e Kaiowá da língua Guarani, pertencente a família linguística

Tupi-Guarani, ajudam a compreender a distribuição espacial desses grandes

grupos de pessoas.

Ainda de acordo com o Mapa Guarani Continental (2016) os diversos grupos

étnicos que constituem a população Guarani, ocupam também outros países

como Argentina (54.825), Bolívia (83.019), Paraguai (61.701)13. Entre estes há

12 Há em São Paulo coletivos classificados como Nhandeva, mas que se autodenominam Tupi-
Guarani e na Região Sul do Brasil muitos daqueles que são classificados como Nhandeva
distinguem-se deste grupo autodenominando-se Chiripá (Mello, 2006).

13 Embora não tenha encontrado dados populacionais sobre a presença Guarani no Uruguai
escolho mencioná-lo por causa do relato de uma de minhas interlocutoras, a quem chamo de
50

as amplamente conhecidas parcialidades descritas por Schaden (1954 [1962]),

Kaiowá, Mbyá e Nhandeva juntamente com outras denominações que não tem

ocupações identificadas no Brasil.

Mbyá (Argentina, Brasil e Paraguai)

Avá-Guaraní (Paraguai), conhecidos também como Ñandeva, Guaraní ou

Chiripá (Brasil e Argentina)

Paĩ-Tavyterã (Paraguai), conhecidos como Kaiowá (Brasil)

Ava-Guaraní y Isoseño (Bolívia e Argentina), conhecidos como Guarani

Ocidental (Paraguai), e também como Chiriguanos ou Chahuancos

(Argentina)

Gwarayú (Bolívia); Sirionó, Mbía ou Yuki (Bolívia); Guarasug’we (Bolívia),

Tapieté ou Guaraní-Ñandeva (Bolívia, Argentina e Paraguai); Aché

(Paraguai).

(Caderno Guarani Continental, 2016)

I.II. Identidades étnicas: sobre etnônimos e autodenominações.

Por causa do princípio da endogamia étnica adotado por meus interlocutores,

segundo o qual pessoas mbyá devem casar-se com outras pessoas mbyá, faz-

se necessário abordar inicialmente como os mbyá conceituam essa identidade

diferenciando-se de outros povos indígenas. Em sua tese de doutorado Pereira

Ane (no terceiro capítulo).Ela se referia então à uma visita que seu tio, que estaria morando no
Uruguai, teria lhe feito pouco tempo antes.
51

(2014) questiona o caráter substancialista do termo Mbyá, analisando-o para

além de seu uso para autodenominação entre os Guarani no Rio de Janeiro,

junto aos quais realizou pesquisa de campo. De acordo com o autor a palavra

mbyá, dependendo dos qualificativos a ela acrescidos, tem a função relacional

de qualificar a “indianidade” de uma determinada coletividade ou sujeito:

Quando notei pela primeira vez que a palavra mbya não era somente um

distintivo étnico, Agai e um outro jovem mbya (proveniente de São Paulo, e

que estava em visita à aldeia) conversavam sobre a variedade de índios do

Brasil, e um deles se referiu aos Xavante como mbya ete. Kayapó, Xavante,

“Xingu”, etc, são, para os Mbya, epítetos de indianidade mas não em

contraste com eles, mas de forma equânime: são “outro índios” (mbya

amboae), por assim dizer. Assim, se o termo mbya ete é comumente usado

para qualificar “índios verdadeiros” em diferentes contextos, o termo mbya

ra’anga é bem menos frequente e parece ser utilizado mais em circunstâncias

flagrantes de mimese, como, por exemplo, em relação a uma certa liderança

guarani, a qual segundo os Mbya de Camboinhas, não seria mesmo “índio”

(“ele não é índio não”, ha’e ma mbya e’ÿ tu, disse Minju ao vê-lo certa vez na

televisão), tendo apenas se casado com uma mulher guarani, embora venha

se destacando em certos contextos do movimento indígena (como a

ocupação do antigo museu do índio, no Maracanã) como protagonista de

destaque. Sempre que esta figura aparecia nos telejornais que cobriam a

ocupação, em 2012, com cocar e fumando petyngua, era motivo de risos por

parte dos Mbya. (2014, p.46)

Mendes Junior (2016), por sua vez, leva adiante a argumentação acima

mencionada para apontar para o uso central dos termos Nhande Va’e e,

sobretudo, Ore Va’e como os principais meios de autodenominação utilizados

pelos Guarani. Em suas palavras:


52

Sugiro, então, que, mais do que designar um grupo étnico, mbya sem o

qualificativo ete signifique índio em sentido geral. (...) . [O termo mbyá]

Quando empregado pelos Guarani e acrescido do qualificativo ete’i

(verdadeiro), refere-se aos Guarani, exclusivamente; quando acrescido do

adjetivo amboae (outro), refere-se a outro grupo indígena. Curiosamente,

mbya ete, apesar de significar “gente de verdade”, não é uma

autodenominação. Os Guarani se autodenominam nhande va’e ou ore va’e,

ambos pronomes pessoais da primeira pessoa do plural, cujo significado é

“os nossos”. (2016, p.86)

Nesta seara é pertinente ainda mencionar o uso da expressão Tambeope como

forma de autodenominação entre aqueles que chamamos aqui de Mbyá. Esta

expressão faz referência a uma espécie de tanga feita de fibra de urtiga ou

algodão tradicionalmente usada pelos homens Guarani no passado, o Tambeo.

De acordo com as narrativas coletadas por Pierri (2013) esta tanga faz parte da

indumentária das divindades masculinas tal como surgem nas narrativas atuais.

Ou seja, na esfera cosmológica, que arregimenta o mundo vivido pelos agentes

mencionados orientando e conferindo significados às experiências cotidianas,

enquanto espaço de onde emanam os parâmetros do comportamento

propriamente humano. Nesse sentido, tal vestimenta marca, juntamente com

outros elementos abaixo mencionados, um pertencimento específico.

Na conversa acima, esse senhor contava que os Nhanderu Mirῖ “usam roupa

bela”, “que não estraga” pois Nhanderu Tupã “traz uma nova” todo ano e “leva

e renova aquela que levou”. A roupa dessas divindades masculinas é o

adorno de cabeça (akã regua); o tetymakua, adorno feito com o cabelo das
53

mulheres na menarca, trançado em cima da batata da perna como faziam os

antigos; o tambeo, uma tanga feita de algodão. (Pierri, 2013:137).

Levando em consideração a passagem acima torna-se compreensível que o

termo Tambeope tenha sido utilizado por um xamã interlocutor de Pereira (2014)

para se diferenciar em relação aos demais Mbyá, arrogando ao sujeito que assim

se identifica uma particular “pureza”. Vejamos:

Nas primeiras vezes em que ouvi o termo mbya ete’i ele designava os Guarani

Mbya “de antigamente” (ymaguare), os quais não comiam comida de jurua,

viviam no mato, não usavam roupas dos brancos, etc. Ouvi, inclusive, de

Augustinho, que mbya, para ele, seria apenas uma língua (dentre as outras

seis formas do Guarani que ele dizia falar fluentemente) e que ele não era

Mbya, mas sim Tambeope, classificação justificada devido ao fato de não ter

experimentado comida de branco até mais ou menos dezoito anos de idade,

segundo ele. Note-se que, se é a comida que está sendo usada para

diferenciar-se, o termo tambeope remete ao tipo de vestimenta dos antigos:

“a tanga (tambeope) era feita de fibra de urtiga, senão de algodão”, Dooley,

2006, p.173). Vestimenta semelhante, porém sob outra denominação, xiripa

(mais pejorativa, ao que parece), é utilizada pelos Mbya a fim de se

diferenciarem dos Guarani Nhandéva, aos quais chamam de xiripa kuéry (...).

(2014: 43-44)

Aqui nos deparamos com um fato curioso: ao mesmo tempo em que o termo que

denota a identidade étnica de maneira mais vertical e exclusivista, no sentido de

marcar mais diferenciações do que identificações horizontalmente, o termo

Tambeope possui um correlato que é amplamente utilizado para classificar a


54

alteridade mais próxima, ainda que pejorativamente. Ou seja, ao mesmo tempo

em que uma peça da indumentária “tradicional” é utilizada para definir uma

identidade étnica muito particular num amplo universo de identificações

possíveis, é igualmente uma peça do vestuário do outro que se utiliza (muito

mais frequentemente do que o primeiro) para marcar uma diferença específica.

Refiro-me aqui ao Xiripá.

Essa característica dos meios de diferenciação e identificação étnicos

articulados pelos Guarani, no entanto, não possui tanto rendimento nos

discursos observados em campo ou mesmo naqueles constantes na bibliografia

específica. A despeito dos significados específicos dos termos utilizados para

delimitar certas fronteiras, entre os critérios que são expressos nos discursos de

diferenciação dos Mbyá em relação aos Chiripá observa-se a centralidade da

linguagem.

Um último termo que ouvi os Guarani empregarem para designar os

estrangeiros é xiripa. Esse é, no entanto, um tipo de estrangeiro específico,

pois é falante de guarani, porém com variações dialetais. Essa alcunha é

devida a um tipo de vestimenta utilizada por alguns grupos guaranis. Em

2008, em Parati-Mirim, o cacique dessa aldeia me dizia que, na década de

1980, estiveram entre os xiripa, na aldeia Itariri, no litoral sul de São Paulo.

Miguel fazia essa distinção étnica porque, do ponto de vista dele e de seu

grupo, eles não sabiam falar bem o idioma guarani, motivo suficiente para

que fossem classificados como estrangeiros, como bem havia notado

Nimuendaju ([1914] 1987, p. 7): “só quem fala exatamente o mesmo dialeto

é considerado pelos Guarani como membro da tribo. A menor diferença de

sotaque em relação ao dialeto da horda é motivo de escárnio e caracteriza a

pessoa como estrangeira”. Para outros contextos guarani, ver Mello (2006, p.

16), para quem “a língua é um marcador cosmológico de identidade”, e


55

Pereira (2014); e, para a Amazônia, Kelly (2005, p. 207): “o peso que os

ameríndios atribuem ao falar a língua como marca de humanidade”. (Mendes

Júnior, 2016: 87)

Nas aldeias Guaranis do sul do Brasil há um convívio intenso entre famílias Mbyá

e famílias Chiripá (ou Nhandeva). Embora adotem discursos politicamente

unívocos para se comunicar com as instâncias estatais, internamente as

diferenciações são marcadas por ambas as partes em contextos específicos

(para mais informações sobre o tema ver Assis, 2006, Bergamaschi 2004, Gobbi

2008, Mello 2006, Prates 2014, Soares 2010).

De acordo com Mello (2006), juntamente com as variações dialetais acima

mencionadas, o reconhecimento de uma forma de ocupação dos espaços,

continuamente marcada pelo impulso ao movimento enquanto aspecto basilar

do Ore Reko (ore - nós exclusivo, rekó – costume, modo de ser) seria para os

Mbyá mais uma das formas de marcarem uma distinção entre os seus e os

Chiripá. A autora identifica uma complementariedade sociológica entre a intensa

mobilidade dos Mbyá e a tendência à evitação ao contato com a alteridade não

indígena por parte dos mesmos e o relativo sedentarismo e maior abertura ao

contato constatada entre os Chiripá (Nhandeva). Deste modo, os Chiripá seriam

responsáveis pela fundação e manutenção das aldeias, para tanto interagindo

mais com os brancos e suas formas de legislar sobre os territórios, ao passo que

os Mbyá se ocupariam da manutenção de um modo de ser insubordinado à

lógica da sociedade nacional, por meio de sua mobilidade e da negação da

interlocução com os agentes do estado. O que por sua vez resultaria, de acordo

com a autora, em acusações dos Mbyá aos Xiripa de submissão ao Branco, por
56

estes se adequarem aos limites territoriais impostos pelo modelo de Terra

Indígena proposto pelo Estado. Essa interpretação não foi observada por mim

em campo, nem foi reforçada pela produção etnográfica subsequente 14, que

aponta cada vez mais para o surgimento de jovens lideranças mbyá cujas

atividades consistem justamente em mediar as relações com a sociedade

envolvente enquanto porta-vozes dos coletivos aos quais são vinculados

(Prates, 2013, Macedo 2010, entre outros).

Silva (2007) aponta para uma diferença importante entre as formas de

mobilidade observadas entre indivíduos e coletivos Mbyá e Xiripá a partir de sua

experiência de campo acompanhando esses deslocamentos na tríplice fronteira.

Os deslocamentos descritos pelos Mbya citam áreas geográficas distantes,

nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, nos litorais do Paraná,

São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo e na província de Misiones,

distante da fronteira com o Brasil. Diferentemente, os deslocamentos

Nhandéva parecem se dar dentro de um espaço geograficamente menor, na

área onde estão localizadas as seis aldeias Nhandeva onde permanecemos.

(Silva, 2007: 41)

Embora o autor observe que as identidades étnicas orientam os deslocamentos

feitos por famílias Chiripá e Mbyá quando se trata de viajar para outras aldeias

(pessoas que se identificam como Mbyá visitam outros parentes que ostentam a

14 A única referência encontrada a esse argumento de Mello (2006) na bibliografia etnográfica


subsequente foi na tese de doutorado de Mariana Soares (2012:29). O argumento é rememorado
naquele espaço de sua tese, porém não passa a ser corroborado com os dados etnográficos
produzidos pela pesquisadora.
57

mesma identidade étnica e o mesmo se passaria entre os Chiripá), quando se

trata de um convívio aldeão e estabelecimento de laços de parentesco entre

pessoas identificadas de maneiras diferentes essa diferenciação adquire caráter

secundário, dando lugar aos comportamentos prescritos para a vida entre

parentes. 15 Assis (2006:56) assinala igualmente a observação de convivência

harmoniosa entre coletivos Mbyá e Chiripá nas diversas aldeias do Rio Grande

do Sul e Santa Catarina onde realizou pesquisa etnográfica entre os anos de

1995 e 2002, embora enfatize que o casamento entre eles não seja o preferível,

sobretudo do ponto de vista Mbyá.

Flavio Gobbi (2008), em sua dissertação de mestrado, explora o uso da

expressão Mbyá Meme entre seus interlocutores na aldeia do Cantagalo, situada

na Região Metropolitana de Porto Alegre . Segundo o autor, esta expressão seria

utilizada pelos Chiripá para referirem-se àqueles que se autodesignam como

Mbyá, uma vez que eles próprios também se considerariam “índios” ou “gente”,

ou seja, mbyá. O autor sugere ainda uma analogia entre o qualificativo meme,

15 “O caso de Simão Villalba, nascido de pai e mãe Mbya, revela bem o modo que a filiação ao
subgrupo pode ser constituída e desfeita. Ele nasceu numa aldeia Mbya do oeste catarinense,
aos 19 anos, quando foi trabalhar na colheita de algodão numa fazenda no Paraguai, conheceu
sua atual esposa Nhandéva Adriana Duarte. Após o casamento, o casal foi viver na aldeia
Nhandéva Acaray-Mi, desde então, o casal e seus filhos se deslocam entre as aldeias Nhandéva
da fronteira Brasil/Paraguai e nunca mais Simão visitou as aldeias Mbya. Perguntei a Simão se
ele se considerava Mbya ou Nhandéva e me respondeu: xe chiripareiko rami aiko”, algo como,
“eu vivo conforme a maneira de viver dos Chiripá (Nhandéva)”. Tornei-lhe a perguntar: “você é
Mbya ou Chiripá (Nhandéva)? Respondeu-me em português, “Sim. Se estou no meio dos meus
parentes Chiripá, eu sou Chiripá”. No caso de casais exogâmicos, os filhos pertencerão ao
subgrupo da mãe ou do pai, sendo que o que vai definir a filiação da família é sua inserção numa
ou noutra unidade social” (Silva, 2007: 92-93)
58

que neste caso significa duplo16, e a noção Yudjá de nana uma forma de

alteridade que “arrasta consigo a idéia de similaridade” (Lima, 2005: 92).

Paralelamente, do ponto de vista daqueles que se dizem Mbyá Ete, os Chiripá

seriam Mbyá’i, o que o autor traduz como “reduzidos” (Gobbi, 2008: 42).

Aqueles a quem venho chamando de Mbyá ao longo desta tese são os falantes

dessa variação dialetal da língua Guarani. Mas, sobretudo, são aqueles que em

interlocução comigo, enquanto pesquisadora, identificaram-se como pessoas

Mbyá, ou seja, todos os interlocutores com os quais conversei sobre esse

assunto na aldeia onde realizei trabalho de campo, mas enfatizo que não

conversei com todos os meus interlocutores sobre esse assunto. A receptividade

em relação às “coisas dos brancos” é amplamente manejada na formulação de

acusações, não somente direcionadas aos Chiripá, mas a outros grupos

considerados Mbyá distribuídos em rede, como veremos ao longo da tese.

16 “Meme: adjetivo/modificador de numerais/intensificador geral.

(EM FUNÇÃO ADJETIVA) Dois (ou mais) do mesmo tipo: toro meme junta de bois.

(EM FUNÇÃO DE MODIFICADOR DE NUMERAIS) Duas vezes: mboapy meme seis [lit., ‘três
(dedos) em cada (mão)’].

(EM FUNÇÃO DE INTENSIFICADOR VERBAL) Direto, sem parar, sem desviar-se: oo meme
oiny foi indo sem parar. (Veja também yvi.)

(EM FUNÇÃO DE INTENSIFICADOR COM TERMOS NÃO-PREDICADORES) Igualmente, cada


um(a): joegua meme nhandekuai somos igualmente irmãos; petei rami meme oikuaa
entendiam (o assunto) de modo igual; mba'eaxy gui meme omano cada um morreu de doença.”
(Dooley, 2006:113)
59

Mbyá, Mbyá Ete, Mbyá Ete’i, Ore Va’e, Nhande Va’e e Tambeope foram formas

de autodesignação com as quais me deparei algumas vezes desde quando

comecei a visitar aldeias Mbyá. Entendo que todas elas são situacionais, ou seja,

tem sempre relação com seu contexto de enunciação. No contexto aldeão

pesquisado, de maioria mbyá, me deparei com um obscurecimento das

fronteiras entre grupos Mbyá e Chiripá. E o tema só se se fazia presente entre

eles se eu o suscitasse insistentemente.

I.III. O que é uma pessoa?

Os dados que serão expostos nos capítulos 3 e 4 apontam para um complexo

entrecorte entre a necessidade da manutenção da harmonia entre aqueles que

coabitam num grupo doméstico17 e a necessidade de produção de recursos,

tanto para a subsistência quanto para práticas de reciprocidade em diversos

níveis. No contexto analisado, os comportamentos responsáveis por essa

manutenção devem sobrepujar tendências dissonantes subjacentes. Os

diferentes tipos de deslocamentos e as consequentes reconfigurações

sociomorfológicas penetram essa equação no sentido de neutralizar ameaças à

estabilidade desses grupos de pessoas enquanto humanos e, logo, parentes.

Essa configuração intricada, que será esmiuçada a partir dos dados

17 A categoria “grupo doméstico” pode assumir ao longo do texto os contornos de uma família
extensa ou de uma família nuclear, dendo antes determinado pelo conjunto daqueles que
compartilham um fogo de chão (tata ypy), ou melhor, das refeições produzidas neste fogo.
60

etnográficos, apresenta importantes continuidades com as elaborações

correntes no âmbito de uma determinada teoria etnológica.

Em 1976, durante o Congresso Internacional dos Americanistas, Joanna Overing

propõe pela primeira vez uma reflexão etnológica sobre o tempo e o espaço

sociais ameríndios em seus próprios termos, com a construção de modelos

analíticos particulares a partir dos dados etnográficos da região e o abandono

dos modelos africanistas até então predominantes nos trabalhos sobre os povos

indígenas da América do Sul. Nessa ocasião a autora abaliza a tendência ao

igualitarismo, a fluidez das normas, a definição da sociedade em favor de um

ideal de harmonia e a efemeridade de unidades políticas na forma desses

agentes significarem seus universos.

Apontando para a centralidade do Corpo enquanto categoria sociocosmológica

Seeger, daMatta e Viveiros de Castro (1979) terminaram de reformular as bases

dos estudos etnológicos na América do Sul. No paradigmático artigo “A

construção da pessoa nas sociedades indígenas” é demonstrada a relação entre

a noção de pessoa tal como formulada pelos nativos sulamericanos e a

centralidade dos temas relacionados à produção contínua da humanidade por

meio de uma corporalidade instável e processual particular ao contexto

etnográfico ameríndio. Neste ponto observa-se que os princípios da organização

social e da cosmologia estariam formulados nos termos de um idioma simbólico

da “construção da pessoa e da fabricação dos corpos” (Seeger et al, 1979, p.10).

A partir destes dois trabalhos encontra-se consistentemente delimitado um novo

plano de investigação e reflexão para a etnologia americanista. Passados alguns

anos desde o estabelecimento das bases acima discutidas e de seus


61

desdobramentos em discussões cada vez mais aprofundadas acerca dos

diversos aspectos que esses temas adquirem nos pensamentos dos múltiplos

grupos e conjuntos de grupos étnicos estudados pela etnologia sulamericana,

Viveiros de Castro (1996: 333) identifica “três estilos analíticos principais nos

estudos contemporâneos das sociedades amazônicas”: “economia política do

controle”, “economia moral da intimidade” (estilo ao qual se adequariam Joana

Overing e alguns de seus alunos) e a “economia simbólica da alteridade”.

Sob a perspectiva da “economia simbólica da alteridade”, o tema da predação

aparece como o fundamento das elaborações sobre o corpo nos sistemas de

pensamento analisados. Num mundo animista (Descola, 1993) ou perspectivista

(Viveiros de Castro, 1996), a caça, por exemplo, torna-se uma atividade

problemática; há sempre que se matar sujeitos para nutrir a si e aos seus

semelhantes. O corpo torna-se função da visada que o enfoca, ou seja, é

determinado pela posição do sujeito em relação a posição do observador. O

corpo, assim constitui-se num feixe de afecções composto pelas perspectivas de

entes não-humanos e humanos, embora essas categorias não possam nunca

ser tomadas de modo absoluto. Entre os semelhantes de Ego, aqueles que

ocupam a posição de parentes exercem, através das relações que devem ser

sempre cultivadas, um papel de destaque na fabricação do corpo que o

configurará uma pessoa. Memórias e afetos constituídos pela convivência e

comensalidade participam na estabilização destes “corpos relacionais”

caracterizados por um “potencial de diferenciação”, sua alteridade imanente.

Entre os Mbyá, uma pessoa que nasce deve ser persuadida a permanecer nesse

mundo. Esse processo de persuasão é fundamental para que uma criança


62

sobreviva, tornando-se uma pessoa mbyá através dos laços que estabelece com

seus parentes. Somente quando a criança começa a andar sobre suas pernas,

ou seja, quando seu corpo se torna ereto, e quando ela começa a desenvolver o

uso da linguagem, os cuidados em relação a instabilidade de seu corpo

começam a ser relaxados. Até então a criança precisa ser convencida a

estabelecer relações com aqueles que a cercam, sobretudo por seus

progenitores (Pissolato (2007), Rafael Mendes (2016) entre outros).

A primeira manifestação de uma alma ou espírito (nhe'ẽ), de acordo com a

sociocosmologia mbyá, diz respeito ao nome que uma pessoa traz consigo. Este

nome está vinculado a um território divino, de onde ele é proveniente. É por meio

deste componente divino que o corpo instável do bebê pode desenvolver-se

enquanto “gente de verdade”, ou seja, um parente, um ore va’e, um mbyá que

se comunica através de uma linguagem, que também é conceitualizada por meio

dessa vinculação divina.

Aqueles que enviam as almas que deverão encarnar nos corpos nascidos entre

os mbyá são os verdadeiros pais (nhande ru ete – nosso pai verdadeiro) e mães

(nhande xy ete – nossa mãe verdadeira) desses espíritos. Estas divindades se

dividem em quatro casais que ocupam suas moradas divinas (Nhanderu amba)

ao redor da terra. Embora variem as divindades específicas e a distribuição

espacial das mesmas nas narrativas dos diversos coletivos mbyá que já foram

etnografados ao longo da história, as explicações que obtive a respeito deste

tema estão em consonância com a configuração que Mendes Júnior expõe da

seguinte maneira “Nhamandu ru ete, localizadono leste; Tupã ru ete, no oeste;

Karaí ru ete, localizado ao norte; e Jakaira ru ete, ao sul.” (2016:42).


63

As implicações onomásticas desta configuração do cosmos e as minúcias do

universo da atividade xamânica a elas relacionadas não serão aprofundados

aqui. Grosso modo, pode-se dizer que essas “almas divinas” (nhe'ẽ) não

possuem nomes, mas sim que elas são os (seus) nomes. Por ocasião do batismo

(nhemongaraí) elas podem escolher entre se revelarem (deixar que os xamãs

(karaí, opita’i va’e) tenham acesso ao nome que passará então a ser verbalizado

publicamente), ou não se revelarem18.

A nominação bem-sucedida de uma criança é indício de que seu nhe'ẽ

permanecerá nesse mundo vinculando-se progressivamente ao corpo que assim

se torna cada vez mais estável, se desenvolvendo como uma pessoa

propriamente dita, por meio das relações com seus parentes19. Para que isso

ocorra os pais são instados a adotar comportamentos que alegrem (-mbovy’a)

essa alma e que mantenham esse corpo vulnerável protegido de afetos outros

que sobre eles possam vir a incidir.

O mundo no qual vivemos é compreendido pelos mbyá como uma terra

imperfeita onde a condição humana é precária e demanda sua continua

manutenção. Essa visão se expressa por meio de conceitos como yvy vai (terra

18 Sobre a configuração desses processos não há uma posição unanime entre os pesquisadores.
para discussões pormenorizadas acerca das teorias da concepção mbyá e onomástica, ver Mello
(2006), Pissolato (2007), Prates (2014), Mendes Junior (2016), entre outros.

19 De acordo com Tempass (2010: 202) uma alimentação adequada ao orerembiú (sistema
culinário tradicional dos mbyá) é capaz de alegrar a alma da criança fazendo com que deseje
permanecer nesta terra, ainda segundo o mesmo autor o apetite das crianças também é um dos
indícios desta disposição em seguir vivendo entre os seus, na medida em que a alimentação é a
condição para o desenvolvimento do corpo.
64

ruim) onde a vida é tekoaxy (sofrível, instável) Segundo Pierri (2013: 44), tekoaxy

seria um polo da existência terrena marcado pela consciência acerca da

perecibilidade. Deste modo, as almas, provenientes de territórios divinos,

encontrar-se-iam sempre propensas a estranhar e recusar este mundo. O corpo

estabilizado por relações estabelecidas horizontalmente precisa que os laços

verticais (parentesco com as divindades) se obscureçam20 . A continuidade

sobre a terra coloca a questão da multiplicidade de relações horizontais

possíveis dadas pela instabilidade da condição humana, ou seja, coloca no

centro de uma série de preocupações mbyá os temas da afinidade e da

predação. Pereira sintetiza essa visão dos mbyá da seguinte maneira:

Em um mundo visto como “ruim” – tekoaxy, ou yvy vai (“terra ruim”) – a própria

condição humana é, ela mesma, precária, de modo que aos guerreiros (ou à

função de guerreiro da sociedade mbya) cabe o fortalecimento desta mesma

condição, a partir de relações em um eixo horizontal (que conecta os Mbya

aos outros seres cuja existência é igualmente tekoaxy - espíritos dos mortos,

“donos”, brancos, etc), complementando a ação dos pajés que se atualiza a

partir de um eixo vertical, isto é, na relação com os deuses. (...). Dos tamói,

os xondáro são “ajudantes” (pytyvõa) e “mensageiros” (tembiguái), e ambos

estão empenhados na mesma luta, cotidiana e imanente, contra a vida em

sua qualidade de sofrimento, tekoaxy ou yvy vai, isto é, o mundo apreendido

como potência de predação. (Pereira, 2014: 88)

20 Quando confrontada com os deuses, uma pessoa, para produzir parentesco entre humanos,
precisa eclipsar sua parte nhe‘ẽ − índice de sua potência divina. Do mesmo modo, precisa
eclipsar sua potencialidade morto diante dos mortos, animal diante dos animais, branco diante
dos brancos e xerimbabo diante dos donos. (Mendes Junior, 2016:37)
65

As prescrições relacionadas à couvade no contexto estudado oferecem os

indícios mais contundentes da continuidade entre os corpos dos pais e da

criança. Simultaneamente, há a ideia de que o corpo do recém-nascido não é

imediatamente humano, mas deve ser produzido enquanto tal pelas ações de

seus pais sobre esse substrato de potencialidades.

São duas as esferas nas quais devem ser observadas as precauções

necessárias em momentos de instabilidade, como, por exemplo, o

desenvolvimento inicial de uma nova pessoa mbyá. A primeira diz respeito a uma

certa continuidade corporal entre os progenitores e o corpo gerado e uma

consequente instabilidade compartilhada entre eles, de modo que os tabus

alimentares, a abstenção ao consumo de carnes por cerca de dois meses,

banana passa, amendoim (restrições alimentares que variam entre aldeias, mas

que indicam que aquilo que o progenitor (pai ou mãe) ingerir pode torná-lo ou

tornar a criança ainda mais vulnerável a afetos de entes não-humanos, que

podem a vir a provocar doenças e mesmo a morte). Em segundo lugar e por

períodos mais longos as prescrições morais da vida cotidiana se intensificam

sobre os progenitores que devem evitar a raiva, os ciúmes, as discussões e,

principalmente, comportamentos adúlteros, sob o risco de perder a criança, que

assim se decepcionaria e retornaria para os seus laços de parentesco divinos21,

21 Importante mencionar que alguns de meus interlocutores formulavam suas explicações acerca
desta possibilidade de perda do bebê para sua condição anterior ao nascimento nos seguintes
termos : “Nhanderu toma de volta”. Ou seja, há que se ter cuidado para não perder a criança
nem para alteridades do polo animal, nem do polo divino. O que pode indicar uma ambiguidade
na conceitualização dessa divindade, ora agindo com benevolência, ora agindo como um Outro
perigoso.
66

abandonando o projeto de construção de sua humanidade mbyá por meio do

corpo plástico e perecível (tekoaxy) que vive sobre essa yvy vai (terra má)22.

O ideal é que a criança escolha desenvolver os laços de parentesco com seus

pais e demais parentes humanos (mbyá) e, isso ocorrendo, a alma (nhe'ẽ) se

fixa ao corpo e a linguagem se desenvolve. Sua experiência nesta terra faz com

que sua sombra se desenvolva enquanto uma segunda alma, a alma telúrica a

quem chamam os mbyá de ãgue.

Enquanto imagem projetada do corpo de uma pessoa, a sombra possui uma

existência passiva, limitando-se a imitar tudo que o seu portador faz. Após a

morte, a sombra separa-se do corpo e ganha existência independente. A

partir de então, ela passa a ser designada como ãgue, ex-sombra, alma

telúrica que durante a noite ronda as casas assustando as pessoas. O sufixo

kue comporta várias possibilidades de tradução, a que nos interessa neste

momento é o seu uso como marcador de pretérito, algo que deixou de ser

(ex-): como xera’yxy kue (minha ex-mulher). Em ambiente nasal, o “k” dá lugar

ao “g”, temos então xemengue (meu ex-marido) e, não menos, ãgue (ex-

sombra). Nos exemplos anteriores, ao ex-marido (-mengue) e à ex-esposa (-

ra’yxy kue) são acrescidos o pronome possessivo de primeira pessoa “meu”

(xe), o mesmo é válido para o espírito nhande nhe‘ẽ: nosso espírito. Do ãgue,

diferentemente, nunca se diz meu, pois ele jamais será referenciado a uma

pessoa viva. Esse termo, como afirmado no início, só ganha existência após

a morte. (Mendes Junior, 2016: 41)

22 Para uma descrição detalhada sobre as teorias da concepção e os cuidados com crianças
entre os mbyá ver a tese de doutorado Elizabeth Pissolato (2007).
67

Ou seja, entre sua potencialidade divina (marcada pela fala do mbyá ayvu – o

dialeto mbyá) e a potencialidade morto (marcada pela sombra), a humanidade

mbyá se mantém no corpo através da manutenção das relações adequadas de

parentesco, mas essa é uma condição que precisa ser sempre sustentada por

meio de comportamentos prescritos. A plasticidade proporcionada pela

capacidade de se tornar como aqueles com os quais a pessoa se relaciona

representa um perigo contra o qual os mbyá empregam estratégias positivas e

negativas de controle das relações.

I.III.I. Vejamos como a questão da pessoa é abordada por etnógrafos de

outros grupos amazônicos:

Lima (2002) afirma que a dicotomia entre corpo e alma não seria adequada ao

seu material etnográfico sobre os Yudjá (Juruna). Segundo ela, a flexibilidade se

inscreveria no próprio corpo, na medida em que ele se efetuaria nas perspectivas

projetadas sobre ele. Nessa “máquina cosmológica” a transformação seria

possibilitada pela pele, “princípio de individuação que fundamenta a

transformação interespecífica” (Lima, 2002: 13). A alma, teria o papel, na vida

onírica ou póstuma, de duplo da pessoa, assim ela seria da pele na vida

desperta, determinando a forma da pessoa.Com base nisso, Lima (2002) tece

uma crítica ao uso da dicotomia corpo/alma nos estudos das ontologias

ameríndias, uma vez que esta reintroduziria o princípio do relativismo cultural,

aparentado da dicotomia Natureza e Cultura, que seria uma tradução

antropológica particular da oposição entre o um e o múltiplo. Segundo a

antropóloga, nesses mundos, produzidos a partir de princípios que postulam a


68

inconstância da humanidade, não seria possível dissociar o pensado e o

experienciado. Uma vez que os pensamentos são capazes de manifestar

consequências materiais, a acepção de perspectiva que defende a etnóloga

pressupõe uma “produção recíproca do corpo e do mundo” (Lima, 2002:17).

Taylor (1993) aponta para os termos não proferidos por meio dos quais os

Achuar consideram uma “pessoa humana viva”, ou seja, os meios de

estabilização da “selfhood” nesta ontologia particular. A noção de corpo com a

qual operam é permeada pela intersubjetividade constitutiva da pessoa Achuar.

Visão, linguagem e comunicação são os eixos vitais da composição dessa

imagem da pessoa pelas relações de afeto e memória que se projetam sobre um

substrato corporal genérico, “ready-made”. Contudo, por definição, essa imagem

nunca se fixa, por conta das questões relacionais apontadas. É nessa brecha

que a cura xamânica, enquanto procedimento comunicativo com forças que

compõem o fundo de alteridade, atua como mecanismo de estabilização relativa

de um self inerentemente vulnerável.

Vilaça (2005), sobre os Wari’, propõe um deslocamento no que se refere à

abordagem do corpo e sua instabilidade, seja no contexto por ela etnografado,

seja de um modo mais amplo, no estudo das ontologias ameríndias. No lugar do

foco na fabricação do corpo, comum em trabalhos americanistas sobre o tema,

a autora, inspirada pelas elaborações de Strathern (1988) e Viveiros de Castro

(2002), propõe a mudança do foco para a metamorfose corporal. O corpo é então

definido como um divíduo, composto de faces humana e não humana, corpo e

alma. Assim, de acordo com a rede de relações em que a pessoa estaria

inserida, uma face ou outra se encontraria eclipsada. Assinala, assim, que a


69

instabilidade crônica dos corpos ameríndios não é fruto somente de encontros

extraordinários, ela é imanente ao tipo de relações intersubjetivas que

constituem esses corpos. Essa instabilidade refere-se ao intrínseco (ou inato)

potencial de metamorfose dada pela dinâmica entre corpo e alma.

De acordo ainda com Vilaça (2005), relação entre corpo e alma pode ser

entendida ao mesmo tempo como assimétrica e simétrica. No primeiro caso,

voltamos à oposição entre um e múltiplo, sendo o corpo o um e a alma o múltiplo.

Já na perspectiva simétrica, a alma seria a atualização de um corpo específico,

radicalmente diferente daquele que vê Ego (Vilaça, 2005: 455).

Voltando aos Mbyá, as reflexões das antropólogas supracitadas estão de acordo

com o que eles dizem. Estabelecer relações adequadas entre parentes quer

dizer viver, comer, rir junto, e alegrar-se na convivência. As comunicações

constantes entre “os seus”, aqueles que compartilham uma linguagem que tem

a mesma origem divina que suas almas, deve garantir que todos se alegrem

igualmente, mutuamente (Pissolato, 2007). Penso que se trata de um esforço no

sentido de satisfazer as necessidades relacionais da alma, que do contrário

poderão buscar comunicações que poderão alterar os corpos. Essas são as

relações que estabilizam os corpos na vida cotidiana, tornando-os fortes

(mbaraete), corpos resistentes às doenças (mba’e axy). No caso dessas

relações não estarem de acordo com os princípios de reciprocidade que

constituem a concepção mbyá de bem viver, os corpos enfraquecem, tornando

vulnerável a perspectiva humana (mbyá) em relação aos afetos de agentes

outros que possam vir a desejar fazer dos mbyá enfraquecidos seus parentes.

Veremos adiante que embora essas relações tendam a ser evitadas na maioria
70

dos contextos, há uma centralidade dos bailes e das bebedeiras que ocorrem

nesses eventos, numa faceta da socialidade Mbyá, como contextos de danças

de músicas do branco – o forró e o tecnobrega – e uma certa intensificação do

uso da língua do branco (juruá ayvu) conforme se eleva o grau de embriaguez

no qual é comum que uma agressividade e outros comportamentos

habitualmente evitados sejam tornados corriqueiros. Trato do tema no final deste

capítulo.

De um modo geral, caso relações com essas alteridades venham a se efetuar, a

pessoa mbyá corre o risco de perder sua humanidade (mbyá) passando a ser

também ela um Outro (branco, morto, monstro ou animal). Essa temida

capacidade metamórfica é chamada pelos mbyá de -jepota (no caso de relações

com não-humanos, mortos e monstros) e -jejavy (no caso de relações com

indígenas de outras etnias, como os Kaingang, ou com não indígenas, os juruá).

I.IV. Da produção da alegria:

Há, por parte dos mbyá, um investimento ativo nos comportamentos que alegram

(mbovy’a) uns aos outros. Heurich (2010) fala sobre as frequentes visitas entre

moradores de diferentes grupos domésticos, observadas na aldeia do

Cantagalo.

Esse é um uso cotidiano de se chegar para conversar na casa de alguém.

“Vim, apenas”, como não quer nada. Depois disso, conversa-se sobre o

tempo – “será que vai chover?” – e aí sim costuma-se perguntar o que de fato

era o motivo da visita. Invariavelmente, um mate aparece na conversa e, caso

a prosa se prolongue, algo de comer também surge: insiste-se para que o


71

visitante fique, para que não vá sem comer algo. A alegria (vy'a), como bem

ressaltou Pissolato (2007), é de fundamental importância aqui, ainda que seja

preciso explicitar como esta se produzia entre o pessoal do Cantagalo. Refiro-

me às piadas que se contam, tanto sobre histórias pessoais, recém ocorridas

ou não, quanto sobre as ocorridas com outros. Rir de si mesmo, das

bobagens que já se fez, mas também das gafes que outros cometem(...)

Aquele que conta a história é obrigado a rir, quase que forçando os outros a

acompanhá-lo: contentamento que se extrai dos ouvintes. Há uma arte,

inclusive, de desenvolver uma risada particular, própria de cada um, bastante

pronunciada, a ser ouvida de longe: escutando aquele gargalhar

idiossincrático, outros saberão quem está por alegrar-se. (2010: 64)

Em seguida, Heurich faz uma contraposição entre a descontração divertida das

visitas entre moradores de uma mesma aldeia e a cerimoniosa formalidade que

caracterizaria a recepção de visitantes de outras aldeias. Para tanto remete-se

à descrição etnográfica de Garlet & Soares de uma recepção deste tipo:

“Na chegada, músicos tocam o mbaraka, violão, e o ravé, violino, e o

repertório é o oka jeroký, músicas para dança de pátio. [...] No ritmo da

dança, o grupo visitante percorre por uma ou duas vezes o interior do

semicírculo, sendo que o ñanderu (karaí) é o último da fila. Durante a

passagem pelos anfitriões, os visitantes fazem um gesto de reverência,

levantando os braços e dizendo aguijevéte. [...] Na seqüência, ambos

rezadores tomam chimarrão, fumam cachimbo e inicia-se uma reza como

ladainha. A palavra é dada pelo ñanderú (karaí) anfitrião, que é seguido pelo

visitante” (Garlet & Soares, 1995: 3-4 apud Heurich, 2010:65)


72

Em campo, na aldeia entre 2015 e 2016, presenciei muitas recepções de

visitantes de outras aldeias em um grupo doméstico específico (as descrições

etnográficas encontram-se no capítulo 3 desta tese). Naquele contexto, a

chegada dos visitantes era marcada pela expressão explicita de satisfação dos

anfitriões em receber os visitantes. Depois disso apenas a preocupação pouco

formalizada em instalar confortavelmente os visitantes marcava aqueles

momentos. Nos dias que se seguiam à chegada do grupo visitante, uma

atmosfera de constantes expressões de alegria era claramente observável, com

as rodas de conversas muito risonhas, pontuadas por piadas que suscitavam

frequentes gargalhadas em todos, assim como o autor descreveu acima para as

visitas entre moradores de uma mesma aldeia.

De um modo geral, no cotidiano de um grupo doméstico é comum ver grupos de

pessoas se juntarem no pátio para rir diversas vezes das mesmas piadas ao

longo do dia tomando chimarrão, por exemplo. Em minha experiência de campo

no Rio Grande do Sul, notei que os membros do grupo doméstico que me

recebeu na aldeia assistiam diversas vezes aos mesmos filmes em DVD e

diversas vezes riam das mesmas partes desses filmes, que ficavam comentando

entre si. Este é apenas um exemplo de como esses comportamentos gregários

costumam ser estimulados continuamente no contexto de um grupo de parentes,

ao passo que os comportamentos disruptores da ordem descrita como ideal

devem ser evitados e controlados ao máximo, sob o risco de colocar grupos de

pessoas assim relacionadas em estados de vulnerabilidade, ou, como têm sido

chamado na literatura guaraniológica, “estados de crise”.


73

A observação das relações entre cunhados (tovaja) e entre sogra e genros, com

suas ambiguidades subsumidas por momentos “agradáveis” induzidos por meio

de comportamentos específicos, remete ao que Viveiros de Castro comenta

sobre o tipo de investimento relacional característico aos contextos indígenas:

A consanguinidade deve ser deliberadamente fabricada; é preciso extraí-la

do fundo virtual de afinidade, mediante uma diferenciação intencional e

construída da diferença universalmente dada. Mas então, ela só pode ser o

resultado de um processo, necessariamente interminável, de

despotencialização da afinidade: sua redução pelo (e ao) casamento.

(Viveiros de Castro, 2000:18)

Em uma contundente análise sobre a ambiguidade que permeia as relações,

especialmente as de afinidade, no seio de um coletivo de parentes mbyá, Pereira

(2014:129-131) descreve como os laços com parentes por afinidade devem ser

cuidadosamente tratados, por meio do mborayvu, que o autor entende como um

movimento continuo de reificação da reciprocidade parental. O autor apoia-se no

argumento de Viveiros de Castro ([2002] 2011) sobre o “princípio da relação” e

a centralidade da “afinidade potencial” nas ontologias ameríndias, equacionada

na figura mitológica do sogro antropófago que por configurar-se, em relação ao

genro, exclusivamente como num doador de mulheres adquire um crédito

canibal na relação de afinidade assim estabelecida23.

23 Uma vez que apenas uma pessoa vale por outra pessoa, na lógica da troca que concerne ao
parentesco ameríndio.
74

Assim se dá a necessidade deste genro colocar-se na condição de caçador, do

contrário ocupará a posição de caça dentro deste sistema de pensamento sobre

as relações. O impacto desta lógica sobre a realidade vivida pelos mbyá junto

aos quais pesquisou Pereira (2013) é sintetizado da seguinte maneira:

Entendendo que a caracterização do genro como “caçador” designa uma

série de atividades que são, até certo ponto, obrigatórias, tratadas pela

etnologia como “serviço da noiva” (bride service), o qual, embora não seja

enfatizado nas etnografias sobre os Mbya, também está presente entre os

mesmos, como me relataram diversas vezes. Dada a multilocalidade do

parentesco mbya, toda pessoa que não se case na própria aldeia terá

alguém de G+2 da família do cônjuge ao qual chamará de xeramói, figura

que encarna a ambiguidade do parentesco, do xamanismo e da pessoa

mbya, e que pode ser entendido como a forma dos Mbya equacionarem

a mesma afinidade potencial que é encarnada na figura amazônica do

sogro canibal. Aliás, o termo serve tanto como referência às figuras

masculinas em G+2, de modo geral, quanto aos xamãs, bem como às

onças, aos “donos” e aos brancos. (Pereira 2013:129 [grifo meu])

Deste modo, ficará explicito na continuidade de sua argumentação, o mborayvu,

corriqueiramente interpretado como princípio do “bem viver” entendida como

uma lógica religiosa de inspiração cristã de submissão à valores verticalmente

dados, é encarada deste ponto de vista como uma das modulações da

necessidade de prestações horizontais, que visa controlar os perigos inerentes

à configuração das relações de afinidade (para uma problematização desta

imagem do guarani “reduzido” ao pacifismo de uma cosmologia

“desjaguarificada” ver Prates, 2014:43).


75

Além disso, Pereira (2013) toca em uma questão central ao nosso estudo, a

saber, a conceitualização que se faz das diversas camadas de alteridade que

habitam o cosmos mbyá desde sua expressão mais próxima, o potencial de

tornar-se outro inerente à condição de vivente, até sua expressão mais distante,

a figura do inimigo (que pode ser o morto, o monstro, o não-humano ou qualquer

outro não-mbyá). Ao foco dessa análise bibliográfica, dado pelo teor dos dados

que serão expostos nos capítulos subsequentes, interessa ressaltar as analogias

observadas pelo autor na categoria Xeramói (meu avô) que caracteriza a

alteridade desde o âmbito das relações entre sogros e genros ou noras até os

polos mais distantes de alteridade. Cabe também ressaltar como, através dos

cuidados caracterizados como mborayvu, as diferenças dadas são obscurecidas

em favor da construção do parentesco, por meio de investimentos relacionais

entendidos nos termos do “cuidar” daquele outro de quem se quer fazer

“parente”.

Os Mbya chamam, eventualmente, os brancos de xeramói e xejaryi (“minha

avó”) e dizem que é por respeito devido ao fato de que chamar de jurua soaria

bem mais pejorativo (...). Também se fala em xeramói ka’aguy regua (“meu

avô da floresta”), termo que invoca respeito em relação à onça,

ordinariamente (para alguns, erradamente) chamada xivi (“gato”). Jurua,

onça e xamã seriam, para os Mbya relações marcadas pela

ambivalência, e chamá-los sob uma mesma designação informa sobre

as distâncias a serem estabelecidas com cada um deles. Talvez dizer de

alguém que ele é xeramói seja fundamentalmente marcar uma diferença.

Como para os Mbya não há uma regra fixa de casamento sendo o

mesmo orientado pela perspectiva da multilocalidade, de modo que há

uma variação entre uxori e virilocalidade, o “serviço da noiva” é

objetificado como um cuidado que os “genros” e “noras” devem ter em


76

relação aos “sogros”, muitas vezes tratados como xeramói e xejarýi

(“minha avó”). (...). Quando um genro ou nora não aparecia muito para

ajudar ou mesmo para conversar simplesmente, era tido por Lidia e Pedro

como alguém que não cuida os sogros, (...). (Pereira, 2014: 129-130)

A antropóloga Flavia Mello observa, entre seus interlocutores Mbyá e Chiripá no

Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, uma prevalência da figura da sogra

(xejary’i) na orientação das atividades produtivas de um grupo familiar. Diz a

autora:

A tchedjuarÿi é figura central na ordenação da divisão social do trabalho e

assim como o tcheramoi, é figura central na integração de um novo membro

à família, ou na escolha de um novo lugar para a família extensa. A sogra é

tão respeitada e temida quanto o sogro, contudo, tem um peso social maior,

que se reveste de autoridade. Devido à tendência uxorilocal e matrilocal, que

gera maior proximidade parental entre mulheres que entre homens, além de

um maior controle social detido pela esfera feminina, (feito muitas vezes

através das ayvu apyapy (fofocas), há uma ascendência da autoridade da

sogra). Assim sendo, a alteridade “genro x sogra”, principalmente no caso de

genros estrangeiros, que nasceram e cresceram em outras aldeias, é bem

mais contundente. (Mello, 2006:83)

Para análises contemporâneas que asseveram a existência de uma tendência

uxorilocal24 entre os mbyá ver Assis (2006), Badie (2015), Gobbi (2008) Mello

24 Tendência que Viveiros de Castro (1986: 96) descreve como uma tendência TG nos seguintes
termos:”
77

(2006). Elizabeth Pissolato, em sua tese de doutorado, faz uma afirmação com

a qual, com base em minhas próprias observações em campo, concordo: “A

residência após o casamento tende a ser inicialmente uxorilocal, mas, na prática,

realiza-se de modo variado, e será provavelmente virilocal em contextos em que

o homem tenha prestígio suficiente para trazer sua esposa para junto dos seus

parentes.” (2006:72).

A despeito da forma como os esquemas de parentesco são atualizados na

prática, o fundo de alteridade latente, que demanda esforços de estabilização

contínuos por meio dos valores e práticas da reciprocidade, aparece como um

dos motores das variadas formas de deslocamento que são observadas entre os

mbyá. Foi Pissolato (2006) quem associou pela primeira vez os problemas da

mobilidade e do parentesco ao fenômeno que chamou de multilocalidade (tema

que abordaremos em profundidade no próximo capítulo), hoje feito essencial em

qualquer análise etnográfica sobre grupos mbyá. Sua análise do parentesco

mbyá enfoca antes a socialidade do que os aspectos formais, como

terminologias e regimes de casamento. Essa opção analítica é justificada pelo

fato de que, do ponto de vista etnográfico, interessa menos buscar regularidades

do que acompanhar a multiplicidade de atualizações realizadas pelos mbyá em

rede multilocal pela qual os mesmos estão sempre caminhando.

(...) a "regra" residencial mais comum entre os 'TG é a uxorilocalidade "temporária" seguida de
ambi – ou neo-localidade e concebida como "serviço da noiva" (isto é mais importante que a "-
localidade") e frequentemente contornada pelos casamentos oblíquos (MB/ZD), poliginia,
endogamia aldeã, parentesco entre os cônjuges, dependendo do jogo político das parentelas e
do status dos envolvidos. Regra, se houver, é esta: os poderosos não moram uxorilocalmente,
nem seus filhos homens.
78

A atualização de relações possíveis por meio do fluxo constante de pessoas,

dentro de uma rede que liga as aldeias por meio da virtualidade do parentesco,

e o impacto desta mobilidade mbyá sobre a conformação de aldeias, serão

tematizadas no capítulo 2. Por ora interessa demonstrar que se os corpos são

modelados pelas relações, assim adquirindo uma perspectiva propriamente

humana (mbyá), há entre os mbyá a consciência da necessidade de que tais

relações sejam as mais satisfatórias possíveis, o que na prática é dificultado pela

tendência ao retorno da alteridade, ou seja, a contra-efetuação da diferença é

dada sobre a identidade construída (Wagner, 2010 [1975]).

Faz-se necessário “cuidar os sogros” sob risco de não ser por eles

cuidado. É preciso, além disso, constância no cuidar, de modo a

produzir parentesco elicitando cotidianamente nos “sogros” o desejo

de cuidar deste parente em potencial que é o cônjuge dos filhos, para

os Mbya. Se na argumentação de Viveiros de Castro o serviço da noiva é

uma contrapartida que evita o canibalismo do sogro, entre os Mbya é no

cuidado cotidiano entre “cônjuges de filhos” e “sogros”, que a

ambiguidade característica do Afim pode ir aos poucos se apagando, o

que não quer dizer que, em algum momento ela desapareça: como bem

nota o autor (Idem), a diferença, sendo do campo do inato, nunca está

ausente, e mesmo quando tende para o grau zero - como entre

consanguíneos, por exemplo - pode se intensificar de forma repentina.

Neste sentido, é possível pensar o mborayu não como um estado, uma

condição, ou um conjunto de preceitos, mas como movimento

constante em direção a uma reciprocidade, cuja ausência é sempre

latente (Idem, p.177). (Pereira, 2013:130-1 [grifo meu])


79

Os índices dessa diferença generalizada, que deve ser neutralizada por meio de

ações sociais autônomas de cada parente mbyá, são os comportamentos

egocentrados e antissociais, como ciúmes, raiva, alcoolismo, mesquinharia, que

em suas formas mais graves podem resultar em agressividade contra os próprios

parentes e até mesmo em feitiçaria. Estágio no qual muitas vezes, do ponto de

vista de meus interlocutores, já se pode entrever a emergência da alteridade

subjacente e enfraquecedora do corpo mbyá. No cotidiano aldeão esses

problemas se expressam de modo corriqueiro, podendo ou não eclodir de

maneira dramática sob a forma de doenças (mba’e axy), compreendidas como

“estados de crise”. Sobre sua experiência a respeito das rusgas comuns no

contexto das relações entre “parentes” Pissolato (2006) afirma:

(...) A expectativa e queixa pelo apoio de parentes inclui frequentemente a

mistura de uma espécie de desejo sobre alguma conquista de outrem e o

apego excessivo a algo sob o próprio domínio, ambos sentimentos

“mesquinhos” (akãte’ÿ) contrários à ética igualitária e distributiva do

parentesco. O ciúme de um adulto por seu cônjuge, a inveja de uma

mulher pela condição de casamento de uma outra, ou de um homem

pela oportunidade de trabalho que não tem, mas que seu vizinho

alcançou, tudo isto faz parte de um repertório comum de conversas e

manifestações cotidianas dos humores, geralmente expressas em falas

discretas, mas tão presentes quanto os discursos associados aos

antigos que ensinariam o “bom modo de vida” (teko porã).

Se a vida entre parentes é o lugar propriamente da busca de satisfação

pessoal, considerada desta outra perspectiva torna-se uma condição de

risco, que, nas falas “queixosas” do dia-a-dia e práticas a elas relacionadas,

demonstram que as experiências de convivência podem ser

compreendidas conforme um gradiente que, na versão da insatisfação,


80

vai desde aquele sentimento de quem se ressente do que o parente não

faz (por ele) até o medo do que o mesmo possa fazer (contra ele). Neste

extremo está a feitiçaria. (Pissolato, 2006: 163-4 [grifo meu])

I.V. Virar outro: Ojepotá e Ojejavy

Assim como atestam Heurisch (2010) Pissolato (2006), Pereira (2013) Prates

(2013), Soares (2012), entre muitos outros etnógrafos que pesquisaram junto

aos mbyá, os discursos sobre a falta da reciprocidade têm relevância igual ou

superior aos discursos sobre a reciprocidade. Além do risco de feitiçaria, uma

consequência dessas insatisfações é a mencionada vulnerabilidade, ou

enfraquecimento, que esse tipo situação instaura em cada um e no coletivo de

um modo geral. Em contextos nos quais as tendências antissociais prevalecem

sobre o teko porã (boa conduta), o risco de transformação materializa-se na

preocupação com a saúde de cada um dos envolvidos. Nesses momentos as

precauções contra as investidas de afecções de entes não-mbyá devem ser

intensificadas, isso para evitar a sedução (e consequente produção de uma nova

relação de parentesco com esse outro) ou a simples predação daqueles que se

encontram numa condição de instabilidade.

O perigo de tornar-se membro de uma espécie animal, como vimos

anteriormente, decorre sempre da possibilidade de atualização da

comunicação com um animal que se toma por gente. O que as práticas mbya

visam é justamente o uso da capacidade comunicativa de nhe’ë para a

evitação de eventos deste tipo. Deve-se escutar o que vem dos deuses para

que não se venha a escutar (ou ver) outros “entendimentos” (mba’ekuaa) que

possam fazer um Mbya abandonar a convivência dos humanos, “indo junto”


81

com a espécie animal em questão. É neste contexto que a cosmologia mbya

elabora a noção de transformação, o da passagem à animalidade. Evitar a

transformação é o tom das práticas e comentários mbya sobre os

estados da pessoa. O princípio da comunicabilidade entre os seres deve

direcionar esta capacidade exclusivamente para o domínio das relações

entre humanos e deuses, abolindo toda possibilidade outra de

comunicação, que só produziria como resultado a transformação

enquanto afastamento da condição humana, perda da humanidade.

(Pissolato, 2006: 261-262)

–jepotá é o nome que se dá ao fenômeno da transformação que conclui-se com

a perda da condição humana. Ele está relacionado à períodos liminares nos

quais as pessoas são consideradas -jekoaku (estar quente), como aqueles que

sucedem ao nascimento de uma criança, à menarca (inhengué), à mudança de

voz entre os meninos púberes (nhe'ẽ guxu). O fenômeno também se anuncia

enquanto risco no período menstrual das mulheres, e aos “estados de crise” ou

doença (relacionalmente instaurados) que aumentam a vulnerabilidade das

pessoas aos afetos provenientes do polo animal, constitutivo do exterior da

socialidade propriamente humana (mbya). Por isso a vida cotidiana é

perpassada por medidas que visam evitar a ocorrência do –jepotá. Essas

medidas são formuladas como conselhos (nhemongeta), sobretudo dos mais

velhos e dos xamãs, e neste sentido uma das posturas mais valorizadas do

sujeito mbyá é o “saber ouvir” (endu kuaa) ou o “ouvir bem” (endu porã) com

concentração e seriedade (japyxaka), prestar atenção e agir de acordo com as

orientações passadas nessas falas.


82

As formas de caça e coleta, o consumo de álcool, os estados de ânimo, as

formas de caminhar pela mata, as visitas entre parentes ou a frequência na casa

de rezas, entre outros aspectos da vida de uma pessoa mbyá, devem estar

submetidos aos conselhos prescritivos daqueles que sabem das consequências

transformacionais para os corpos dos Mbyá que percorrem caminhos perigosos.

A raiva, os ciúmes, o egoísmo, a tristeza, o ensimesmamento, entre outros

sentimentos e comportamentos, podem culminar numa propensão ao

estabelecimento de relações horizontais que vão além dos limites da

humanidade, baseadas na visão de imagens falsas e na troca de palavras

equivocadas – as palavras dos Outros.

Quanto ao homem que não respeitava as restrições durante o período da

couvade e saía à caça, Egon Schaden comentava em 1954, “o primeiro animal

que encontra afigura-se-lhe como gente, atrai-o e torna-o odjepotá, (...)”. O autor

conclui sua reflexão sobre o fenômeno citando uma explicação dada por

informante Nhandeva do Bananal “o bicho se mistura com a gente e a gente fica

vivendo com o bicho a vida toda”. (1954: 89).

Esse tipo de casamento, que redunda na morte da pessoa mbyá, que passa a

viver sob outra forma, recebe uma formulação específica, de consequências não

menos dramáticas, em se tratando de relações com pessoas não-indígenas ou

indígenas não-mbyá. Ojejavy (o – prefixo de 3 pessoa; je – partícula que indica

o reflexivo; javy – errar ou pecar) é a palavra usada pelos meus interlocutores

Mbyá no Rio Grande do Sul para designar as relações sexuais entre pessoas

mbyá e pessoas não mbyá: sejam estas últimas juruá ou pongé (Kaingang). Sigo

Mendes Junior (2016: 89) pelo uso do termo no dialeto mbyá (não traduzido)
83

daqui por diante para não contaminar seu campo semântico com uma leitura

informada por um cristianismo que faz uso de tais conceitos num sentido que

pode sustentar aproximações com o termo em questão, porém não é idêntico ao

que o conceito mbyá expressa.

A conhecida endogamia étnica empregada pelos mbyá encontra respaldo no

conceito de –jejavy, que diz respeito a mistura entre os diferentes (em potência)

sangues daqueles que se envolvem em um ato sexual. No caso de sangues

diferentes há consequências para tais relações, que vão do adoecimento até a

morte.

Este tipo de relações, além de alterar o corpo daqueles que nelas se engajam,

muda a relação da pessoa com os Nhanderu Kuery: fazendo com que não mais

sejam vistos como pessoas mbyá puras e assim não mais estando sob a

proteção daqueles que enviaram tanto a linguagem quanto os nhe'ẽ do mbyá e

que olham exclusivamente por eles. O parentesco divino com os pais e mães

divinos, que enviaram os nhe'ẽ à terra para que vivessem enquanto humanos,

com seus corpos constituídos por meio das relações horizontais com humanos

propriamente ditos (mbyá), se desfaz definitivamente no caso de relações com

esses outros (juruá e pongé), fazendo com que os “cuidados” que, como vimos

acima, caracterizam as relações de parentesco, não mais lhes sejam

dispensados.

Isso se dá por conta de uma noção de poluição do sangue o que acarreta num

enfraquecimento da pessoa. Mendes Junior (2016) observou entre seus

interlocutores no norte do Brasil uma visão semelhante sobre o tema, como

descreve no trecho abaixo transcrito:


84

Em Nova Jacundá e Xambioá, os Guarani consideram que o relacionamento

sexual com pessoas de outras etnias (indígenas ou não) torna o sangue das

pessoas envolvidas sujo, em consequência dessa mistura, huguy ky’a pa,

(huguy − sangue; ky’a − verbo sujar; pa − completamente. Sujou o sangue

completamente.). Essa mistura de sangue age em dois níveis: entre os

envolvidos, enfraquece as pessoas que, segundo alguns, podem ter seus

espíritos (nhe’ẽ) trocados por espíritos de origem terrestre, tornando-se mais

suscetíveis às doenças e até mesmo à morte. Quando dá nascimento a novas

crianças, impossibilita que estas sejam nominadas (pelo menos era assim).

O relacionamento sexual com pessoas estrangeiras é denominado pelos

setentrionais de ojejavy. (Mendes Junior 2016, 89).

No sul do país são vários os registros etnográficos que mencionam tal restrição

entre os Mbyá (Silva 2010, Heurich 2011, Prates 2014, Gobbi 2009), ao passo

em que no Sudeste aparecem alguns apontamentos divergentes concernentes

ao caso específico de Camboinhas (Migliora 2014, Pereira 2013). O caso da

aldeia de Mbiguaçu (SC) foi apontado por todos os meus interlocutores mbyá no

Rio Grande do Sul como uma situação altamente reprovável, pela posição

adotada ali em relação as uniões com pessoas juruá. Outro motivo de críticas ao

coletivo guarani do Mbiguaçu dizia respeito à adoção do uso ritual da ayahuasca

pelos seus xamãs25.

25 Para uma descrição detalhada tanto sobre o uso ritual da ayahuasca entre os Mbyá e Chiripá
do Mbiguaçu e sobre uma tentativa dos mesmos de apresentar o uso ritual da referida planta aos
parentes de uma aldeia no Rio Grande do Sul e as consequências positivas e negativas desta
experiência ver Mello (2006).
85

Em uma caminhada pela mata na aldeia do Cantagalo, acompanhada por uma

amiga mbyá então com 19 anos, surgiu uma conversa sobre esse tema. Essa

conversa se iniciou quando minha amiga repentinamente afirmou: “nós temos

muitos deuses” e prosseguiu, “tem o deus da água, o deus do sol e tem também

o deus dos passarinhos e o das árvores” mas estes últimos seriam diferentes

dos primeiros. Perguntei quem era o deus da água e ela disse que era Tupã,

perguntei então quem seria o deus da neblina e ela não soube responder,

perguntei se era Jakairá Ru Ete26, e ela aceitou isso como se fosse uma

afirmação e acreditou que talvez eu estivesse certa. Expliquei-lhe que também

não sabia e que era apenas uma pergunta.

Claramente, quando falou do segundo tipo de deuses, a jovem referia-se aos Já

(donos), mas ao ver que havia despertado uma curiosidade em mim passou a

dizer que não sabia quase nada sobre esses assuntos e que eu deveria

perguntar aos mais velhos. Uma resposta muito comum entre os mbyá quando

o assunto era sua mitologia, o que não indica um desconhecimento ou

distanciamento em relação à sua própria cosmologia, mas sim um viés diferente

de apropriação do tema. Viés esse que diz respeito mais às consequências

práticas às quais estão submetidos todos os mbyá que não observam

atentamente as prescrições comportamentais que asseguram a estabilidade de

seus corpos e almas. Quanto a esse assunto, o conhecimento, proveniente dos

xamãs, é amplamente disseminado e obtém-se facilmente repostas objetivas.

26 Um dos deuses doadores de nomes-almas (nhe'ẽ) que segundo Cadogan seria o “dono” da
fumaça sagrada que sai do petyguá e que costuma ser associada a neblina que recebe o nome
de Tataxina.
86

Logo em seguida, minha interlocutora passou a falar sobre os espíritos que

existiam na mata e ameaçavam, enganando os mbyá e levando-os para sempre

para longe do convívio com seus parentes, por meio da sedução. Perguntei por

que ela falava com tanta tristeza sobre aquele assunto. Ela respondeu que algo

assim teria ocorrido a uma amiga sua. Perguntei onde essa amiga estava e ela

respondeu apenas que ela havia partido. Diante de minha insistência por

detalhes daquela história, minha interlocutora contou que a menina se

apaixonara e partira com um juruá. Perguntei se sua amiga poderia morar na

aldeia com o marido juruá e ela respondeu que isso não seria possível.

Minha interlocutora comentou que a partida de sua amiga naquelas

circunstâncias a colocou em estado de profunda tristeza e disse que todos ali na

aldeia estavam rezando para que ela voltasse e ficasse bem. Também minha

interlocutora passara, havia pouco tempo, por uma fase de “doença “ da qual só

conseguiu se ver livre após o tratamento xamânico concluído com a troca de seu

nome. Foi sua tristeza que a levou ao “estado de crise” que os mbyá chamam de

“doença”27, um estado caracterizado pela incapacidade da pessoa em alegrar-

se da vida entre os seus e da falta de vontade de buscar essa satisfação na vida

entre parentes.

27 Embora minha interlocutora se mantivesse reticente ao falar sobre o período de “doença” que
recém havia superado, pela transformação que se operou em seu humor quando começou a
falar sobre a partida de sua amiga (até então estava bastante animada) passei a suspeitar que
o episódio que a levara a trocar de nome pudesse ter algo a ver com tal evento. Assim como
ocorre quando alguém que perde um parente tem dificuldade em superar os sentimentos do luto
e passa, assim, a estar em risco de ser abduzido pelos afetos do morto.
87

Note-se aqui que minha interlocutora relacionara diretamente esse Outro muito

particular que é o juruá, aos espíritos provenientes das matas, que seduzindo os

mbyá os levam à transformação indesejada de seus corpos conhecida como -

jepotá. A bibliografia sobre o tema conta com alguns exemplos desta relação,

porém, segundo as demais mulheres mbyá junto as quais realizei entrevistas

sobre o tema, as relações sexuais e matrimoniais entre pessoas mbyá e pessoas

juruá, embora sejam perigosas e altamente reprováveis de seu ponto de vista,

não causariam transformações do tipo ojepota, sendo caracterizadas como

ojejavy (para outros casos nos quais essa diferença é sublinhada ver Mendes

Júnior (2016)).

Interessa, todavia, comentar que algumas mulheres dizem que o sangue do juruá

é mais fraco do que o sangue dos mbyá, ao passo que outras dizem o contrário.

Há ainda aquelas que dizem que o sangue dos juruá é mais quente do que

os dos mbyá. Em qualquer forma que assuma a explicação das diferenças, do

ponto de vista de minhas interlocutoras, as consequências para a não

observação das restrições as relações entre os sangues diferentes são sempre

de mesma ordem: o corpo padece. Seja o corpo do juruá, do mbyá ou de um

filho que porventura nasça da união imprópria.

Foi mencionado acima que alguns estados que colocam a pessoa mbyá em

situação de vulnerabilidade em relação aos afetos de entes não-humanos são

entendidos nos termos da temperatura corporal elevada (-jekoaku). Essa

compreensão de que as modulações relacionais do corpo mbyá estão

relacionadas às temperaturas merece alguma atenção. Observa-se que nesses

momentos a alimentação deve ser controlada, algumas carnes deverão passar


88

por uma desubjetivação através da fumaça do petyguá dos xamãs, os cursos

d’água deverão ser evitados e mesmo a entrada nas matas deverão se dar com

cuidados reforçados. Sobre esse estado de instabilidade do corpo marcado por

uma teoria das temperaturas, Schaden já dizia em um artigo de 1963:

Para os Mbüá de Yróysã são de especial importância as precauções e as

medidas de cunho mágico nos estados de crise que marcam o ciclo vital do

indivíduo. A diátese característica de tais estados, que dão o nome de

odjekóakú, dá origem a tôda uma série de restrições. Além destas, há

também medidas de resguardo ou cautela em situações que não são

própriamente de odjekoakú.(...) Nascida a criança, quer de um ou de outro

sexo, pai e mãe se encontram em estado de odjekóakú. Antes da queda do

cordão umbelical, a mãe não se pode lavar, não trabalha na roça, nem

cozinha. Não come carne, salvo a de kagwaré (tamanduá) nem chupa cana

de açúcar. Depois de cair o cordão umbelical da criança, a mãe se lava. e

pinta com ytxy o rosto, os pulsos, os Joelhos e os tornozelos. A partir dêste

momento, está isenta de quaisquer restrições. (Schaden, 1963:85)

Além dos momentos de instabilidade ligados às fases do desenvolvimento social

e fisiológico das pessoas, períodos de passagem marcados pelo estado de

liminaridade social, há também formas de provocar esse “aquecimento” do

corpo, marcado por perigos relacionais. A embriaguez é um deles e sobre isso

Heurisch (2010), com base em sua pesquisa realizada entre os mbyá da aldeia

do Cantagalo no Rio Grande do Sul, comenta sobre o contexto dos bailes

animados por músicas não-indígenas:

Embriagar-se (-ka'u) é um estado em que se está haku (“quente”) e que

convida aos amores e às alegrias, mas também às dores. A pessoa


89

embriagada fica, por vezes, “dona-da-raiva” e, caminhando durante a noite,

preenche o silêncio com gritos e ameaças. Isso acaba por afastar muita gente

do baile, por medo dessas cenas. A raiva provém da associação com Outros

– mortos, principalmente, mas também todos esses dos quais se pode dizer

“raivosos”. (Heurisch, 2010:84).

Ainda sobre as formas de se pensar os estados de ânimo e as temperaturas

corporais, desta vez ampliando o escopo da reflexão para abarcar tanto relações

horizontais elicitadas por esse estado, quanto à perspectiva xamânica das

relações verticais no que tange à estabilização dos corpos e suas temperaturas,

Pereira (2013) nos diz com base em sua experiência entre os mbyá no Rio de

Janeiro:

Haveria assim, um gradiente de calor implicado por contextos distintos e

resultando da composição entre pessoas mbya e tipos distintos de Outros.

Se por um lado, a “quentura” causada pela aproximação de um “espírito dos

mortos” (angue), durante ambientes nos quais prevalecem a ludicidade e o

consumo de álcool, provoca agressividade na pessoa (em um processo de

esquentamento excessivo, mas que poderá se desdobrar em “doença”,

afastamento da “alma” e esfriamento excessivo subsequente do corpo), por

sua vez, a “quentura” que resulta da seriedade na participação dos rituais da

opy’i é responsável pelo fortalecimento e manutenção de um estado

saudável, nem muito frio, nem muito quente. (Pereira, 2013:167-8)

De acordo com os mbyá o consumo de álcool a partir de certa medida faz com

que espíritos, mortos, fantasmas entre outras potências agressivas se acerquem

dessas pessoas. Tal consciência não faz com que esse hábito deixe de existir e
90

de ser muito apreciado entre os mesmos. No entanto, é frequente a ocorrência

de episódios de agressividade nessas circunstâncias nas quais, por terem suas

vulnerabilidades relacionais exploradas por esses entes outros, os mbyá se

envolvem em brigas. Uma das características do estado de embriaguez

avançada é o uso da língua do outro. Quanto a esse fenômeno Heurisch afirma:

A centralidade da inimizade nessa relação, (entre vivos e mortos), mas

também pela raiva que transparece durante a embriaguez mbya aponta para

uma outra dimensão da alteridade, a saber a relação com os brancos. As

músicas dos bailes, a forma da dança e a cachaça, tudo isso nos remete aos

brancos: a embriaguez que coloca até em velhos xamãs, como vimos antes,

uma disposição em falar português. (2010:106)

Como vimos ao longo deste capítulo, a agressividade, e demais comportamentos

antissociais que caracterizam as referidas alteridades na visão dos mbyá,

manifesta-se nas relações entre pessoas mbyá, a despeito dos esforços de

controle que empreguem. São situações que se desenvolvem em contextos

diversos, que vão desde querelas que nascem na convivência cotidiana até os

bailes, nos quais o consumo do álcool intensifica as possibilidades de afetos

Outros influírem sobre os atos deles. Independentemente das relações

horizontais que se insinuem para além dos limites da socialidade mbyá, é no seio

da mesma que a busca por estabilização se dá e quando esta torna-se

impossível, faz-se necessário caminhar.

A intensa mobilidade dos mbyá se atualiza na forma de buscas por cônjuges em

outras aldeias, em visitas de grupos de tamanhos variados a parentes, assim


91

como por idas ao centro da cidade, adquirindo diversos possíveis contornos. No

capítulo seguinte serão abordados os modos que esse “caminhar” (-guata)

adquire através de uma análise bibliográfica da formação de coletivos (kuery) e

aldeias (tekoá).

***
92

II

Caminhar é preciso: autonomia como fluxo e parentesco como rede.

II.I Apresentação

Os mbyá são frequentemente caracterizados na literatura antropológica pelos

seus deslocamentos. Na guaraniologia o tema é abordado sob diversos prismas,

mas o valor central que a mobilidade tem para as pessoas mbyá é um consenso.

Neste capítulo a configuração reticular das aldeias mbyá, agenciada por meio

dos seus contínuos e variados deslocamentos, será abordada com o intuito de

apresentar um mapa do universo percorrido pelos interlocutores da etnografia

apresentada nos capítulos seguintes.

O foco desta exposição são os coletivos mbyá presentes no Rio Grande do Sul,

em particular aqueles com os quais interagi na Região Metropolitana de Porto

Alegre. Não obstante, alguns temas abordados no capítulo anterior deverão ser

recuperados, uma vez que para compreendermos a etnohistória dos

deslocamentos e das formações aldeãs das coletividades mbyá

contemporâneas no referido território não podemos deixar de esmiuçar os

processos por meio dos quais essas coletividades se configuram.

A concepção de humanidade e a noção de pessoa com as quais operam os

mbyá, vimos no capítulo anterior, baseiam-se nas relações estabelecidas por

cada um. Os idiomas da corporalidade e do parentesco se perpassam para

compor o mundo vivido por meus interlocutores de modo que é igualmente


93

nestes termos que coletividades são compostas, decompostas e recompostas

continuamente pelos agentes mbyá.

Para além da plasticidade das coletividades assim estabelecidas há também a

possibilidade de movimento dessas coletividades, o que, por sua vez, em muitos

casos diz respeito às relações estabelecidas entre coletividades coresidentes,

por exemplo, por ocasião de atritos entre “lideranças”. Ou seja, o fluxo das

relações orienta o fluxo de pessoas pela rede ora analisada. Os motores e

parâmetros destas circulações de causas variadas estão inseridos na lógica

triádica exposta no capítulo anterior, aquela cujos extremos são a animalidade e

a divindade, ao passo que a vida social se desenvolve no espaço instável da

humanidade determinada pelas dinâmicas do parentesco28, entre esses dois

polos.

É por causa da constatação desta realidade vivida pelos mbyá que trato os dados

etnográficos (de primeira mão e bibliográficos) nos termos de sua

“sociocosmologia” e da forma específica que a “socialidade” adquire entre os

mesmos. A noção de socialidade serve para pensar a “matriz relacional que

constitui a vida das pessoas” em lugar de pensar em termos de “identidades

individuais” dos componentes de uma determinada “sociedade” que seria

28 Ou seja, essas dinâmicas do parentesco que configuram e sustentam a humanidade dos mbyá
orientam as possibilidades de movimento ao longo dessa estrutura reticular de aldeias de modo
que pode-se mesmo falar dela em termos de caminhos superpostos dados a cada grupo ou
indivíduo de acordo com sua inserção num determinado compósito de relações entre parentes.
Configuração tal que orienta os referidos fluxos entre aldeias específicas, ligando alguns nós do
Rio de Janeiro a outros nós específicos no Rio Grande do Sul, por exemplo.
94

exterior a essas unidades humanas socializáveis (Strathern, 2014) 29. Essa

reflexão é particularmente pertinente ao caso em questão, pois, como vimos no

capítulo anterior, é justamente a partir das relações que se pode considerar

alguém propriamente humano (ou não) entre os mbyá.

Pensar numa sociedade exterior que vai socializar um determinado indivíduo,

para além das relações primeiras no âmbito do parentesco, dotando-o de uma

identidade constituída nesta interação com uma entidade exógena seria uma

operação completamente estranha ao repertório manejado para a significação

do mundo etnografado. Do mesmo modo, a noção de sociocosmologia tem o

intuito de comunicar uma sobredeterminação dos esquemas sociológicos nativos

pelos esquemas cosmológicos. Essa plasticidade observada na morfologia

social mbyá, comum a muitos outros povos TG, é muito provavelmente

responsável pela permanência resiliente destes povos em contextos hostis como

as grandes capitais de estados densamente povoados no sul e sudeste do Brasil.

29 Na verdade, proporcionou derivados úteis - o epíteto "social'', o conceito de "socialidade" como


a matriz relacional que constitui a vida das pessoas e até mesmo "sociedades" como um
pluralismo de uso prático, representativo de populações com organizações distintas. Não faço
objeção a nenhum desses derivados, pois todos eles se referem à importância das relações no
interior das quais as pessoas existem. Faço objeção à distorção que ocorre quando o conceito
de sociedade deixa de sinalizar esses fatos relacionais e passa, pelo contrário, a obliterá-los. Em
vez de considerar a socialidade como inerente à definição da noção de pessoa, define-se
"sociedade" em oposição a "indivíduo". E como na nossa visão cultural de mundo os indivíduos
têm uma concretude, tem sido difícil desestabilizar a suposição de que o indivíduo tem uma
existência logicamente anterior. Na verdade, a prioridade dada ao conceito de indivíduo é tal que
ele tem sido aplicado à própria sociedade: as "sociedades" assumem o caráter de unidades
holísticas discretas.” (Strathern, 2014: 236)
95

A estrutura social TG se mostra capaz de realizações superficiais muito

diversas, em termos de organização social concreta; ela resiste a situações

demográficas e ecológicas radicalmente diferentes, é capaz de "absorver"

traços morfológicos prevalecentes nas regiões em que se efetua, e de

transferir funções básicas de uma instituição para outra. Isso significa, creio

que se possa dizê-lo, uma baixa especialização da estrutura social, capaz de

se reproduzir tanto na periferia da cidade de S. Paulo (Guarani) quanto no

Oiapoque. (EVC, 1986:108)

A instabilidade e a ambiguidade da realidade vivida sobre essa “terra com males”

(teko axy) são determinantes para se pensar a condição humana entre os mbyá.

Isto porque em lugar de um indivíduo (enquanto totalidade fechada) os mbyá se

entendem no mundo enquanto “feixes de relações que variam

concomitantemente”30, estabelecendo e estabilizando sua forma (humana ou

30 Em 1945 no artigo A análise estrutural em Linguística e Antropologia, Lévi-Strauss estipula


que o Átomo do Parentesco seria composto por quatro tipos de relação e quatro tipos de atitudes
que se apresentariam em configurações diferentes sobre a invariante dos valores opostos da
relação de filiação e da relação avuncular. A concepção dessas posições não como relações
unívocas, mas como um compósito de posicionamentos perpassados por influências
difusas, nos coloca diante da importante noção de feixe de relações, que insere o movimento
no sistema, por meio dos agenciamentos concernentes à própria atualização desta estrutura que
se abre:

Em muitos sistemas, a relação entre dois indivíduos se exprime


frequentemente, não por uma única atitude, mas por várias delas que
formam, por assim dizer, um feixe (...). Existe aí uma razão
suplementar pela qual pode ser difícil distinguir a estrutura
fundamental. (1945: 69)

Embora não seja abolida a estrutura fundamental, a noção de feixe, se entendida à luz da
concepção das variações concomitantes, pode ser um primeiro passo rumo a um esfacelamento
do projeto que coloca o estudo etnológico baseado unicamente na noção de modelo.
96

não) por meio das relações que cultivam (idealmente) através dos valores

associados ao princípio da reciprocidade. Instável, a pessoa está sempre sujeita

a transformações que vão desde hábitos adquiridos num novo contexto de

residência até transformações corporais irreversíveis, no caso do

estabelecimento de relações com alteridades do polo da animalidade. Assim,

podemos submeter o caso da personitude mbyá à formulação ampla de Viveiros

de Castro sobre a questão da identidade entre os TG:

Ora, é precisamente a noção de Identidade que surge como desconstruída e

corroída, na minha interpretação da Pessoa Tupi-Guarani. Não apenas

porque ela não pode ser tomada como suporte ou resultante de identidades

sociais, ou porque ela não está intacta e inteira na individualidade {etno-

)biológica. Mas porque a anti-dialética da Pessoa TG a põe, de modo não-

trivial, como essencialmente não-idêntica a si mesma, como Outra. Esse é

um processo que batizo de "identidade ao contrário" (incorporando a acepção

quinhentista de "contrario" = inimigo) - não o jogo de imagens que subjuga a

diferença a identidade, mas um devir-Outro. (...)(1986:120)

Neste contexto a afinidade, enquanto relação ideal e ambígua, ganha especial

interesse para nossa análise, uma vez que, entre os mbyá, a endogamia étnica

coaduna-se à uma tendência exogâmica inter-aldeã. Ou seja, a busca por

cônjuges em outras aldeias é um dos principais motivos dos deslocamentos

realizados solitariamente ou em pequenos grupos pelos jovens (homens e


97

mulheres31) que se encontram em condições de se casar. Mas se a ambiguidade

é inerente a todos, e se as relações estabelecidas devem atuar no sentido de

estabilizar a humanidade daqueles que se relacionam através das continuidades

assim estabelecidas, torna-se uma necessidade primária a busca pelo ambiente

relacional ideal.

Para uma coletividade que se desloca, o ambiente relacional ideal é uma aldeia

onde é possível estabelecer boas relações com as outras coletividades de

mesma ordem, ou a aldeia na qual o grupo que chega filia-se (por meio de laços

de parentesco que, provavelmente, orientaram o próprio deslocamento) à uma

coletividade preexistente no local, estabelecendo relações satisfatórias. Num

movimento no qual a coletividade que chega funde-se a coletividade à qual se

filiou, que, enquanto fundo relacional, se vê ampliada. A coletividade recém-

chegada torna-se novamente figura sobre o fundo das relações de parentesco

caso se separe daquela e volte a acionar o mecanismo de deslocamentos. O

que insinua um esquema fractal.

Assim como uma coletividade, uma pessoa também se constitui através de suas

relações. Para ela o ambiente relacional ideal é a coletividade na qual uma vida

plena de relações estáveis e indubitavelmente humanas se desenvolve, não

deixando espaços vazios para o estabelecimento de conexões ameaçadoras à

essa humanidade. Movimento promovido pelo parentesco em dois níveis:

quando orienta deslocamentos no sentido de aldeias específicas e através do

31 Embora a tendência uxorilocal seja observada, minha principal interlocutora era uma dessas
jovens que saiu de uma aldeia em São Paulo para a aldeia em Porto Alegre em busca de um
casamento.
98

compartilhamento das palavras adequadas, de comidas e de afetos nesses

novos ambientes relacionais. Do contrário, novamente o mecanismo de

deslocamentos é acionado, retomando a busca pela atualização, em outro lugar,

deste compósito de relações ideais.

É sobre um fundo de ambiguidade, comum a todos, que o bem viver deve ser

sempre produzido (Overing, 1989, 2000), atualizado, feito, mas essa agência

tende a submergir no fundo ambíguo, ou seja, tende a se “contra-efetuar” no

mesmo (Wagner, 2010). Neste caso a alternativa é partir para evitar os perigosos

conflitos abertos e, através da distância, recuperar a possibilidade de futuras

relações entre as partes então dissonantes.

Através dessa lógica de dissolução das relações para seu futuro

reestabelecimento, por meio da paz promovida pelo distanciamento, um intenso

esquema de visitas entre colegas ou parentes se reforça. É assim que o território

reticular mbyá se amplia, novas formações aldeãs surgem, ilhas no oceano da

alteridade “branca”, pontos na rede onde se pode estabelecer alianças e de onde

se pode partir para voltar a fluir pelos caminhos criados por eles nas terras que

lhes foram expropriadas32.

32 De acordo com as narrativas mbyá (Garlet 1998, Assis 2006, Gobbi 2007, Soares 2012, Mello
2007, Tempass 2010, Prates 2013, Heurich 2010, Pierri 2013, Pradella 2009, entre outros)
Nhanderu teria criado as matas para os mbyá e os campos e a cidade para o juruá (algumas
variações nesses esquemas constam na literatura mencionada, contudo essa é uma síntese do
que há em comum entre as diversas narrativas acerca do território), porém os juruá são
gananciosos e avançam continuamente sobre as matas, de modo que o território dos mbyá se
vê a cada dia reduzido tendo que ser submetido à lógica exógena e completamente dissonante
da forma “tradicional” de ocupação territorial deste povo que são as “cercas” que delimitam as
Terras Indígenas.
99

Uma espécie de “inquietude” é comum nas narrativas mbyá sobre as motivações

de seus deslocamentos pessoais ou coletivos, segundo as quais “os guarani são

assim mesmo, tem que estar sempre andando”. Isso ouvi de algumas pessoas

e li em diversas etnografias. Acredito que o fator que contribui de modo central

para a efetuação desta inquietude em movimento seja uma dissociação

recursiva entre o estatuto de parente e o estatuto de coresidente, o que afeta

especialmente o afim coresidente.

Mas no que consiste essa forma associativa que venho chamando de

“coletividade”?

II.II. Descolamentos relacionais e formas de coletivização.

No dialeto mbyá o termo kuery funciona como um marcador de coletivo ou

pluralidade para elementos nominais pessoais. Seu uso aplica-se

exclusivamente àqueles cuja agência é reconhecida: pessoas, animais

domésticos e animais que são vistos como agentes relacionais. Assim é possível

falar em mbyá kuery (os mbyá), jaguá kuery (os cães) e xivi kuery (os gatos/as

onças), no entanto falar em ita (pedra) kuery seria um erro33.

33 Os seguintes fatores reduzem o problema que isso causaria para o ouvinte:*comumente, o


ouvinte sabe do contexto se a referência é singular ou plural, como acontece em português para
a distinção entre a 1a pessoa do plural inclusiva e exclusiva: nós. *Na referência genérica a
distinção entre singular e plural é de pouca consequência: yvyra rakã rupi guyra onhemboaity
100

Há também os sufixos –kue e -gue que funcionam “como um sufixo ou enclítico

de flexão do plural (...). Seu “hospedeiro” é sempre um elemento atributivo – um

elemento, seja nome, predicador ou adjetivo, que é associado com um atributo

de uma maneira óbvia” (Dooley, 2006:104). Alguns exemplos de aplicação

destes sufixos são: avakue (os homens), kunumigue (as crianças), porãgue

(pessoas ou coisas – bonitas), tuvixakue (pessoas ou coisas – grandes). Essa

modalidade é importante pois evidencia duas formas de se referir a alteridades

no plural: amboaekue (os outros) e amboae kuery (um grupo de outros ou um

outro coletivo).

Os pronomes pessoais na 1ª pessoa do pl., inclusiva nhande, 1ª pessoa do pl.,

exclusiva ore, ambos podendo ser acompanhados pelo sufixo kuery34, de acordo

‘os pássaros fazem seus ninhos nos galhos de árvores/o pássaro (genérico) faz seu ninho no
galho de árvore’. *Há meios de assinalar a distinção fora dos marcadores apresentados acima:

_ quantificadores: petei yvyra ‘uma árvore’, heta yvyra ‘muitas árvores’;

_ verbos cuja raiz indica singular ou plural: yvyra hi'a va'e ‘a árvore que estava de pé’, yvyra
ikuai va'e ‘as árvores que existiam’;

_ modificadores que aceitam flexão do plural: yvyra porãgue ‘árvores bonitas’, ita poyikue
‘pedras pesadas’ (Dooley, 2006:95-96).

34 “ Com pronomes pessoais que designam referentes no plural, o marcador kuery ‘coletivo ou
plural’ é obrigatório apenas na 3a pessoa (quando se refere a pessoas ou, às vezes, a animais):
ha'e kuery. Nos pronomes da 1a e 2a pessoa do plural, kuery geralmente indica um grupo de
pessoas que vai além dos interlocutores:

nhande kuery ‘eu e você e pessoas associadas conosco’ (comumente o grupo guarani quando
o ouvinte for guarani),
101

com o contexto de enunciação. Interessa aqui apenas pontuar os deslocamentos

expressos nas formas nhande e ore. Ou seja, nas formas de inserir ou excluir

um interlocutor numa coletividade específica. Utiliza-se o “nós” exclusivo (ore),

por exemplo, sempre que se deseja demarcar a fronteira Nós/Outros nos

discursos em presença de pessoas não-indígenas ou indígenas de outra etnia.

A principal aplicação do termo kuery, no que se refere ao tema desta exposição,

ocorre nas funções de coletivizador amplo e restrito, ambos dotados de valores

sociocosmológicos evidentes: Mbyá Kuery35, Juruá Kuery36, “X” Pygua Kuery (o

coletivo dos habitantes de um lugar “X” (pygua – localidade de origem,

proveniência) , “W” Roo Pygua Kuery (onde “W” é uma pessoa em relação à qual

se fala de um grupo doméstico (“W roo” siginifica casa de “W”) , podendo esta

ser o próprio falante), “Z” Retarã Kuery (onde Z é uma pessoa em relação à qual

se fala de um grupo de parentesco, podendo esta ser o próprio falante) e “Y”

ore kuery ‘eu e pessoas associadas comigo’ (comumente o grupo guarani quando o ouvinte não
for guarani),

pe_ kuery ‘você e pessoas associadas consigo’,

pende kuery ‘você e um grupo mais ou menos fixo de pessoas associadas consigo’. (Dooley,
2008: 107).

35 Ou Nhande`i va`e [Nhande – nós (inc); `i – diminutivo; va’e – nominalizador que, quem].

36 Outra denominação comum aos não-indios é Heta va`e kuery – os que são muitos [heta –
muitos; va’e – nominalizador que, quem; kuery – coletivizador.]
102

Reguá Kuery37 (onde Y é um ponto central para um coletivo de pessoas

idealmente ligadas por laços de parentesco, reguá significando nesse caso “tipo

exemplar”).

Y Reguá Kuery é a forma que levanta mais questões, na medida em que, embora

seja perpassada pelos fluxos constantes das linhas do parentesco, esta é a

maior unidade social mais ou menos formal reconhecida pelos mbya, é por meio

da mesma que os nomes de algumas lideranças familiares (muitas vezes

também lideranças religiosas em seus coletivos) tornam-se conhecidas ao longo

do conjunto reticular mbyá.

Assim, um X pyguá kuery, como o Cantagalo pygua kuery, é composto por

diversos W, Z e Y kuery. Uma liderança recorrentemente mencionada pelos

meus interlocutores no Rio Grande do Sul nesse sentido era a liderança da aldeia

de Araponga, no Rio de Janeiro, e o grupo de pessoas associadas à ele

“Augustinho reguá kuery”, ou apenas “Augustinho kuery”.

Não se trata apenas de uma gradação de tipo fractal da menor para a maior

coletividade socialmente delineada por meio dos laços de parentesco. Um roo

pygua kuery (grupo doméstico) difere essencialmente de um retarã kuery (grupo

de parentesco contextualmente reconhecido como “real”) na medida em que

nem todos os coresidentes se consideram parentes o tempo todo, essa forma de

37 Gobbi (2007: 62-65) menciona a forma “xe reguá” como meio de se designar um parente a
partir de ego. Embora a informação esteja correta, para a modelização ora proposta, manterei
apenas os termos acima descritos enfatizando que há variações linguísticas não abarcadas pelo
esquema que tem como finalidade a exposição de uma organização sociológica que pode ser
descrita de outras formas.
103

ver as relações dentro de um grupo doméstico vai depender da estabilidade das

próprias relações. De modo que, em situações de tensão, o grupo de parentesco

declarado por um afim residente no grupo doméstico de seu cônjuge pode

localizar-se em sua aldeia de proveniência, até mesmo em outro estado.

Um Reguá Kuery (coletividade móvel relativamente formal unida por meio de

relações de parentesco em torno de uma figura de destaque), por sua vez, é

mais coerente com as formas sociais mbyá do que um Pygua Kuery (coletividade

artificialmente estabilizada por meio de uma forma de ocupação territorial

exógena: o modelo estanque da Terra Indígena, ao qual apenas muito

recentemente os mbyá aderiram). Um caso exemplar dessa configuração é o de

Lídia, a mulher em torno de quem o grupo junto ao qual pesquisei na graduação

e no mestrado, se articulava. Esse grupo habitou localidades nas quais havia

outros grupos de mesma configuração e com os mesmos interagiam. No entanto,

por conflitos entre lideranças diversas vezes se mudaram e mesmo depois da

fundação de uma aldeia para o grupo em particular este era referido na rede a

partir de sua liderança e não de sua localidade, que por questões de política

territorial da sociedade envolvente mudou-se mais algumas vezes.

Assim, para se definir a menor unidade social relevante entre os mbyá devemos

nos voltar para o “grupo doméstico”, o conjunto de pessoas que formam uma

“unidade alimentar (Tempass, 2005), ou seja, aqueles que compartilham das

refeições produzidas num mesmo fogo (tata ypy). Esse é referido pelos mbyá

como oo pygua kuery – “os de casa”. Embora uma coletividade definida dessa

forma seja configurada por meio de relações que nós tenderíamos a classificar

como “relações de parentesco”, constatei etnograficamente que esse parentesco


104

nem sempre é reconhecido por todos os membros de um grupo assim definido.

Deparei-me com a situação na qual uma das coresidentes de um oo pygua kuery

se dizia pertencente à um amboae retarã kuery, fixado numa aldeia de outro

estado do país. Alguns anos antes, conversava com a liderança de uma aldeia

na qual diversos de seus filhos moravam, com seus netos, sua mãe e seu pai e

esta pessoa afirmou “não ter parentes” naquela aldeia, pois não havia ali nenhum

irmão seu.

Mello (2006) estuando os guarani de Santa Catarina afirma que a categoria

guapepó (panela) seria utilizada para designar os coresidentes a partir de uma

noção de consubstancialidade dada pelo compartilhamento de refeições na vida

cotidiana. Mas esse é um relato isolado, pois não me deparei com essa categoria

em outras etnografias e nem em interlocuções diretas.

Na bibliografia consultada o tema recebeu diversos tratamentos pelos

estudiosos. Abaixo uma formulação que demonstra como alguns dos

deslocamentos que abordamos aqui são operados pelos mbyá no uso do termo

kuery para a delimitação contextual de grupos de pessoas relacionadas por meio

do reconhecimento relativo de alguma linha parentesco:

Grupo, ao longo deste trabalho, é uma tradução que apresento para o sufixo

kuéry quando este estiver posposto aos nomes pessoais e aplicado a uma

pessoa e à sua parentela, ou aos que lhe acompanham; é o mesmo termo

que outras autoras traduziram como “pessoal” (PISSOLATO, 2007;

MIGLIORA, 2014). Por exemplo, se estou na aldeia em que mora o

Augustinho e digo Augustinho kuéry, estou me referindo a esse homem e sua

família nuclear. Diferentemente, se estou em outra aldeia e digo Augustinho

kuéry, estou me referindo aos habitantes da aldeia em que o Augustinho é o


105

cacique. Minha experiência de campo me fez notar que kuéry, enquanto

sufixo de nomes pessoais, possui certas implicações centradas no

parentesco. Para um casal “a-b”, kuéry será precedido por “a” ou por “b”

exatamente quando enunciado pelos parentes de “a” ou “b”, respectivamente.

“A” se torna um referente de kuéry quando empregado pelos parentes de “a”

no contexto do casal “a-b”. Por exemplo, se “a” é João e se “b” é Maria, os

parentes de João referir-se-ão à sua família como Joãokuéry e nunca como

Mariakuéry; por sua vez, os parentes de Maria referir-se-ão à mesma família

como Mariakuéry.(Mendes Júnior p.185)

A passagem acima dá conta de uma parte dos desdobramentos do tema em

questão. Contudo há nuances que ainda demandam tratamento analítico,

sobretudo no que se refere às coletividades “encabeçadas” por figuras de

prestígio. Mergulhemos nesta matéria.

“Y Reguá Kuery” pode ser descrito como o ambiente relacional local que abrange

mais de uma unidade doméstica, mas não necessariamente a totalidade dos

componentes de uma determinada localidade de ocupação mbyá. É uma

categoria particularmente evidente em contextos aldeãos mais populosos, onde

as relações entre grupos de maiores dimensões frequentemente se tornam

problemáticas.

As ocupações compostas de apenas um grupo de tipo “Y Reguá Kuery” (o grupo

definido na rede em função de uma determinada liderança que não pode infringir

a autonomia dos seus!) podem ser descritas como “jojoapy kuery” (Gobbi, 2007:

80-85), expressão que foi traduzida para o autor como a ocupação daqueles que

vieram “um atrás do outro” (germanos). Jojo rami significa semelhantes, ou seja,

trata-se de um tipo de formação aldeã de características mais autônomas, no


106

sentido de que as decisões são tomadas por uma parentela particular em

deliberações comunitárias, e assim mais desejáveis aos mbyá de um modo

geral.

Se levarmos em consideração os deslocamentos enquanto a tendência

predominante devemos enfatizar que é apenas através de um recorte sincrônico

que podemos lidar com essa modalidade de coletivização. Ou seja, não seria

exato tomá-la de modo absoluto, pois um mbyá jamais estará definitivamente

vinculado a coletividade alguma, uma vez que se observa que este é sempre

detentor da autonomia sobre seu próprio caminhar.

Feita esta observação, pode-se dizer que uma das formas de delineamento de

fluidas fronteiras internas é realizado no dialeto Mbyá pela autodesignação de

uma pessoa enquanto membro do “Pessoal ou Galera38 de Fulano”1 [fulano]-

kuéry, sendo “fulano” geralmente um ponto central dentro de uma família

extensa, com possíveis agregados. Deste modo é possível definir

preliminarmente essa acepção particular do termo kuery como uma família

extensa + agregados coletivizados em relação à uma figura específica.

Quando numa determinada localidade configura-se e passa a ganhar vulto uma

coletividade concorrente, podem ocorrer cisões. Processos que, geralmente,

resultam no deslocamento do grupo incipiente, culminando na fundação de uma

nova aldeia ou na dispersão de seus membros entre outras aldeias já existentes

38 Pessoal é a tradução recorrentemente encontrada em aldeias no Rio de Janeiro, ao passo que


Galera foi a tradução ouvida em campo no Rio Grande do Sul. Muito provavelmente outras
traduções devem ocorrer nos diversos outros nós que constituem a rede mbyá ao longo dos
diversos estados por onde a mesma se estende.
107

(para exemplos deste tipo de cisão no Rio Grande do Sul ver Assis 2006, Prates

2014). Como vimos, esse tipo de mecanismo é um dos responsáveis pela

manutenção da mobilidade e a multilocalidade características desta parcialidade

guarani (Garlet, 1997; Pissolato, 2006; Schaden, 1962).

No que tange à figura central cujo nome precede o termo coletivizador na

designação de um kuery desta ordem específica, interessa salientar que estas

figuras, em diferentes proporções, tendem a ser os responsáveis pela conexão

com os espaços invisíveis (dos polos divino e animal da tríade acima

mencionada). Atuando principalmente na comunicação com os Nhanderu Kuery

através do fumo e do canto. Em outras palavras, tendem a ocupar essa posição

aqueles que desempenham funções xamânicas.

Neste sentido Pissolato (2007: 215) descreve o que observou entre os mbyá de

Parati da seguinte maneira:

A liderança religiosa familiar aparece, então, como fundamento do grupo, cuja

unidade é percebida também, frequentemente, em termos econômicos,

políticos e sociais. A própria definição de localidade estaria submetida a essa

liderança, o que se percebe na afirmação de que o surgimento de mais de

um líder religioso no seio de um grupo tende a cindi-lo, favorecendo a criação

de novos locais.

Schaden, em 1954, já mencionava a fluidez das linhas que dariam forma aos

coletivos Guarani. Ressaltava nelas o papel da “solidariedade parental”.

Segundo o autor esta se sobreporia aos pertencimentos locais:

Onde quer que haja Guaraní, ouve-se falar em parentelas que se opõem a

parentelas. Os liames sociais que vinculam os habitantes de um grupo local


108

são, por outro lado, de consistência tão fraca e tão pouco permanentes que

a composição da comunidade de aldeia está sujeita a perenes modificações.

E o grupo em migração – a “trinca” de fulano ou beltrano, como dizem os

Mbüá – é sempre uma parentela guiada por um chefe. (1954: 79-80)

O autor prossegue no parágrafo assinalando a importância do aspecto religioso

nesses processos de associação:

[...] O congraçamento das diferentes famílias-grandes – ou parentelas – para

a constituição de unidades mais amplas, seja a aldeia ou parte dela (como

grupo local, geograficamente destacado), se dá bem mais acentuadamente

sobre base religiosa, pois assim como o grupo de parentesco é a unidade

elementar de produção e consumo, a aldeia constitui a unidade religiosa, pelo

menos por ocasião das grandes festas, de transcendental importância. (1954:

80)

É incrível constatar que até hoje as considerações de Schaden acerca das

formas de coletivização mbyá apresente tão consistentes correspondências com

o que venho observando tanto na bibliografia etnográfica quanto em campo

desde 2009. Essa definição é especialmente relevante quando estamos lidando

com formações aldeãs compostas por diversos coletivos desta ordem. Esse é o

caso da T.I. do Cantagalo (Tekoa Jata´ity), conforme veremos no tópico final

deste capítulo.

Embora uma cisão guarde em si a ênfase momentânea e problemática 39 na

descontinuidade, a mesma tende a se dissolver na medida em que a nova

39 Problemática, pois produzida pela continuidade negativa assim constituída pela desarmonia
que desequilibra o todo e cada parte, uma vez que estados de raiva (mboxy, poxy) vulnerabilizam
corpos tornando-os mais sujeitos a transformação (jepota).
109

unidade passa a produzir pessoas mbyá ressignificadas como “menos parentes”,

assim voltando a fazer parte do fundo virtual de afinidade (EVC, 2000).

Configuram-se, na perspectiva de quem fica, como uma alteridade positiva,

amboa`e kuery (outro pessoal). Sugiro isso a partir das recorrentes afirmações

no sentido da generalização do parentesco entre habitantes de uma mesma

localidade e nas frequentes visitas observadas entre alguns habitantes de

diferentes aldeias como estratégia de busca por cônjuges (Assis, 2006, Pissolato

2006, Gobbi 2008, Prates 2014).

Há nesta observação de um determinado “parentesco localmente estendido” um

paradoxo, isso porque observa-se em determinados contextos que é possível a

um mbyá considerar-se solitário, entre estranhos e “sem parentes” em seu

próprio grupo doméstico (oo pyguá kuery). O jogo com a categoria “parente”

parece ser continuamente mobilizado no sentido de induzir ao movimento.

As dinâmicas de mobilidade e ocupação territorial apresentam características

particulares que dizem respeito à circulação (particular ou coletiva) entre aldeias

existentes e a formação de novas aldeias. A ocupação de um novo território

depende da existência de uma liderança suficientemente poderosa e de um

grupo suficientemente coeso em torno deste propósito e de sua liderança. Esse

processo envolve a noção de autonomia e costuma ser motivado por tensões no

seio de grupos maiores.

Já a circulação de pessoas ou grupos entre aldeias pode se dar por motivos

diversos, em mudanças mais ou menos definitivas de local de residência ou em

visitas de duração mais ou menos determinada. Independentemente das

especificidades de cada um desses movimentos é seguro afirmar que os valores


110

e as necessidades da reprodução do parentesco mbyá, perpassados pela noção

de autonomia sobre os caminhos percorridos, participam de modo fundamental

em todas elas. Assim, a constante possibilidade de movimentação e ocupação

de novos lugares opera contínuas estabilizações ao desdobrar a rede em termos

de um fundo virtual de afinidade que se reproduz através da ambiguidade

inerente a noção de pessoa enquanto feixe de relações compossíveis.

II.III. Autonomia caminhante e o modelo de Terra Indígena.

Embora as coletividades das quais venho tratando até aqui contem muitas vezes

com lideranças religiosas (karaí ou nhanderu) e muitas vezes tenham também

lideranças para a interlocução com a sociedade envolvente, mburuvicha, o

exercício da autoridade sobre os demais componentes da família extensa assim

definida não é bem visto por nenhum de meus interlocutores. Existem instituições

nativas que tratam de estabelecer uma ordem acordada entre os aldeãos e na

maioria das vezes aqueles que escolhem não agir de acordo optam (ou são

levados a optar) pelo deslocamento. Deste modo, deparamo-nos com uma

aparente incoerência: grupos constituídos em torno de determinadas figuras nos

quais essas figuras centrais não exercem função de controle, essa configuração

é o que mantém a fluidez das linhas que delimitam os conjuntos de pessoas

assim agrupadas.

Neste sentido a exogamia exerce um papel fundamental, uma vez que a

tendência a se casar fora do local de residência é predominante: o afim, embora


111

seja muito bem recebido na família do cônjuge a princípio, guarda em si sua

vinculação a um grupo outro (amboae retarã kuery).

A ética e a “estética do bem viver” (Overing e Passes, 2000) baseada na lógica

da reciprocidade (mborayvu), fazem com que essa alteridade subjacente seja

deliberadamente apagada na vida cotidiana, no entanto, ela é, vez ou outra,

elicitada pelos contextos que se apresentam. Em campo percebi a intenção

voltada para a produção do bem-estar dos cunhados visitantes, com

comportamentos quase formais de recepção, ao passo em que o

desenvolvimento e a fixação dessas relações tende a evocar conflitos nos quais

essa alteridade de fundo se revela na superfície das palavras trocadas. Nesses

casos a solução costuma residir nas práticas de cuidado xamânico para

reestabilizar as relações, em caso de insucesso os deslocamentos tornam-se

inevitáveis.

O que eu chamo de “autonomia caminhante” é justamente o aspecto do Ore

Reko, o “costume mbyá”, que o modelo de Terra Indígena não comporta. Se

tekoá é o espaço onde o modo “tradicional” de vida pode se desenvolver, esse

espaço precisa, volta e meia, se desdobrar, pois o “ore reko” implica o livre

deslocamento, com processos de fragmentação que redundam na multiplicação

de espaços ocupados, e algumas vezes na extinção de espaços anteriormente

ocupados, para a manutenção da harmonia e do fluxo reticular. Neste sentido é

característico do modo de ser dos mbyá, o caminhar para evitar ou neutralizar

conflitos, assim como é da agricultura mbyá o abandono de espaços de roça

esgotados para a recuperação do solo para posterior retomada das atividades.


112

Esses abandonos são marcados pela recursividade. Aquilo que é abandonado,

o é, para que ali se possa voltar num futuro não tão próximo nem tão distante.

Se de algo se pode dizer ser “rizomático” esse algo é o uso mbyá do espaço, e

neste sentido os modelos oferecidos pelo Estado Nação não são suficientemente

flexíveis para respeitar as características tradicionais deste povo. Deparamo-nos

aqui com concepções de “tradição” radicalmente opostas.

Os acampamentos mbyá no Rio Grande do Sul são a prova dos equívocos na

comunicação entre os mbyá e o Estado. Embora os primeiros operem esforços

para se empenharem nessa comunicação inelutável, os termos colocados pelas

políticas agrárias e indigenistas impossibilitam uma oferta que se adeque ao

sistema mbyá.

Faz-se necessário que se compreenda no que consiste o ideal de socialidade e

seus reflexos no modo de ocupação do espaço para que possamos pensar em

“tradições” outras. Se o caminhar é a regra, a T.I. é uma imposição artificial que,

dadas as condições de urbanização das regiões das quais estamos falando,

exercem uma intensa pressão sobre as pessoas mbyá.

O panorama relacional e o confinamento, a falta de condições ambientais para

atividades de caça, pesca, coleta e agricultura, são fatores que contribuem para

o desenvolvimento de mecanismos de sobrevivência resiliente, como o

porarõ e a venda de artesanato à beira de diversas estradas no RS, que no final

das contas são igualmente reprimidos pelo estado e mal julgados pela população

não-indígena. Andar, passear, visitar, viajar, caminhar, olhar por aí, são as

formas mbyá de manter o equilíbrio de um determinado sistema que diz respeito

às concepções nativas de humanidade. Nos termos da sociocosmologia mbyá


113

trata-se de uma questão de saúde. Uma questão de relações saudáveis é uma

questão de fisiologia para os mbyá, logo, trata-se de uma questão de

sobrevivência.

Foi nesse panorama que se deu e se dá a retomada do Rio Grande do Sul por

parte dos mbyá que hoje desdobram sua rede em diversos pontos, entre aldeias

e acampamentos, experienciando situações de extrema vulnerabilidade material

em nome da continuidade de sua existência plena no sentido sociocosmológico.

II.IV. História recente40 da rede mbyá no Rio Grande do Sul.

De acordo com o levantamento de dados históricos apresentado por Mariana

Soares (2012: 107-108) em sua tese de doutorado, a maioria dos coletivos mbyá

atualmente fixados no Rio Grande do Sul teria passagem por ocupações mais

ou menos duradouras na região de Missiones (Argentina). Após um período de

invisibilidade dos mbyá na região, os primeiros registros da presença mbyá no

Rio Grande do Sul no século XX datam de 191041.

40 A profundidade e a riqueza da história da presença guarani no Sul do Brasil é inquestionável,


porém não será abordada. O recorte temporal adotado tem como objetivo exclusivo ilustrar os
processos de formação da rede de aldeias com as quais nos deparamos na atualidade e como
os mecanismos expostos nos tópicos anteriores participaram na configuração da referida rede.

41 “As primeiras referências dos Mbya no Rio Grande do Sul datam no ano de 1910, no Relatório
da Secretaria de Negócios e Obras Públicas, que registra a existência de duzentos Guarani, em
1909, no toldo Lagoão, município de Soledade (Relatório apud Freire, 1994: 13). No mesmo ano,
também foram encontrados coletivos Mbya e Chiripa, nos municípios de Santo Cristo e Santa
Rosa sendo que, nesse último, foi constituído um toldo, em 1919, com vinte famílias Guarani,
provenientes do Paraguai, localizado junto ao rio Uruguai, entre os rios Turvo e Buricá,
114

No entanto, intensificação da circulação dos mbyá ocorreu apenas entre as

décadas de 1960 e 1970, em decorrência do acirramento das questões políticas

nos países vizinhos, Argentina e Paraguai. A estabilização dos espaços

ocupados pelas primeiras famílias chegadas no início do século operou como

um fator de atração e consequente desdobramento da rede de aldeias em

território gaúcho.

A partir de então os espaços de ocupação mbyá se multiplicam e diversificam,

espalhando-se no sentido do litoral do estado, passando pela Campanha

Gaúcha e Lagoa dos Patos. Nesse momento um critério se evidencia na seleção

dos locais de ocupação: a evitação de conflitos com os colonos e proprietários

de terras. Desde então são observáveis os acampamentos à beira de rodovias.

O período em questão também é marcado pela recusa à interlocução com o

Estado e suas políticas de assistência, sobretudo no que se refere ao acesso à

terras para estabelecimento de aldeias. Ainda de acordo com Soares (2012,

apud Garlet, 1997:91), tal recusa estaria fundamentada num aspecto

correspondendo aos atuais municípios de Criciumal e Três Passos (Venzon, 1993c: 170). O
governo do Estado, no início do século XX, também criou e demarcou os toldos Santa
Rosa, Paiol Grande, Guarani e Santa Lúcia, além de ter identificado os toldos Lagoão, Liso
e Santo Cristo. Entretanto, a pressão dos colonos e a política de colonização do Estado
atrelada a “inconstância” dos Mbya foram responsáveis pelo processo expropriatório de
todas essas áreas, permanecendo somente um toldo Guarani, no município de São
Valentim (Simonian apud Freire, 1994: 14). Esse processo acarretou a ida dos Mbya para o toldo
Guarita, cuja presença já existia desde o final da Guerra do Paraguai, tornando a área “ponto
obrigatório de passagem aos indígenas provenientes de Misiones, à procura de seus parentes”
(Venzon, 1993c: 170).” (Soares, 2012: 107-8)
115

cosmológico de apreensão do território, segundo o qual Nhanderu teria

delimitado espaços para os brancos ocuparem e espaços para os mbyá

circularem durante o ato da criação da terra. Essa recusa também se dava pela

observação dos efeitos da interação entre os Kaingang e a sociedade

envolvente, a partir do qual adotaram o distanciamento em favor de sua

autonomia sobre seu modo de ser e pela recusa ativa ao modelo estático das

aldeias demarcadas enquanto propriedade privada.

Essa escolha pela não interação com as instituições da sociedade nacional

rapidamente atingiu seu limite com a propagação dos conflitos por diversos

locais de ocupação. Por esse motivo, a partir da década de 1980, a FUNAI dá

início aos processos de identificação e demarcação de terras para uma série de

coletividades mbyá no Rio Grande do Sul. As características das relações dos

mbyá com o território, no entanto, apresentavam uma demanda pela adoção de

critérios sui generis para comprovação da legitimidade de suas aldeias enquanto

“ocupações tradicionais”, no sentido de que nem sempre os territórios

reivindicados seriam aqueles que apresentariam indícios históricos de ocupação

recente, muitas vezes sendo necessário fundamentar a demanda em evidências

arqueológicas. Em artigo publicado na Revista de Arqueologia volume 26,

algumas considerações interessantes acerca da recorrência na seleção de

espaços para ocupações atuais e pré-colombianas na Região Hidrográfica do

Lago Guaíba são sintetizadas nas seguintes palavras:

Embora a noção de território e coletividade mbyá seja produto de uma

situação histórica dada, as condições geográficas do Lago Guaíba podem ter

contribuído significativamente para uma tendência similar no passado de

descentralização territorial das famílias extensas (kuery). Assim como hoje


116

entre os Mbyá, a família extensa (kuery) seria a base da organização social

no passado, porém configurada de maneira dispersa entre vários

aldeamentos dispostos na amplitude do território, sendo a mobilidade

espacial e a circularidade das pessoas através da via terrestre e fluvial a

principal estratégia de manutenção dos laços sociais e políticos.

Portanto, os espaços escolhidos para ocupação pré-colonial se manteriam os

mesmos em função da abundância de recursos locais, justificando os padrões

nucleados de sítios observados junto a determinados compartimentos

paisagísticos da região do Lago Guaíba. Estes seriam os lugares de

reprodução do Ñandé Rekó que ao longo de séculos foram recorrentemente

retomados pelos grupos familiares, num constante movimento de

circularidade que buscava recriar cotidianamente o mundo através do

caminhar pelas terras e pelas águas do tekohá do Guaíba. (Dias e Baptista

da Silva, 2013: 69)

As particularidades da situação territorial enfrentada pelas coletividades mbyá

no Rio Grande do Sul desde a década de 80 encontram-se bem sintetizadas nos

casos paradigmáticos das aldeias Tekoá Jatay’ty, onde foi realizado o trabalho

de campo, e da Tekoa Anhetenguá (ambas situadas na Região Metropolitana de

Porto Alegre):

Em 1986, foi demarcada a primeira terra Guarani no Estado, a TI

Jatai’ty/Cantagalo, no município de Viamão, inclusive, reconhecida como a

primeira Terra Indígena Municipal do Brasil. O então prefeito municipal Tapir

da Rocha, que afirmava ter “um pouco de genética indígena”, desapropriou a

área de 47, 2 ha de propriedade particular, em nome da Prefeitura, para fins

de utilidade pública. (...) ao longo da década de 80, a circulação dos Guarani

em Porto Alegre era uma constante, principalmente, em busca de

atendimento de saúde, cuja referência era a sede da ANAÍ, localizada na rua

Albion, no bairro Partenon, onde ele trabalhava juntamente com Ivori José
117

Garlet (in memorian). Em 1987, Ignacio e Ivori tomaram conhecimento de

uma área na Lomba do Pinheiro, onde hoje é a RI Tekoa Anhetenguá, de

propriedade da Ordem dos Franciscanos, que estava para ser vendida.

Ambos acabaram negociando a ocupação temporária da área, uma vez que

lhes permitia à produção de alimentos, como forma de manter os Guarani que

vinham à cidade. (Soares, 2012:110-111)

Desde o momento em que as lideranças guarani passaram a se envolver em

diálogos com agentes da sociedade juruá com o objetivo de garantir seus direitos

territoriais muitos debates se desenvolveram, sobretudo no que se refere aos

critérios de demarcação o que em última instância levava a tomadas de posições

divergentes acerca das compras de terras para demarcação de Terras Indígenas

para os Mbyá. Nessa seara o protagonismo do Conselho de Articulação do Povo

Guarani (CAPG) é reificado pelo apoio que essa organização vem recebendo de

órgãos como o CIMI, o COMIN, o CEPI (Conselho Estadual do Povo Indígena,

vinculado à Secretaria de desenvolvimento social, trabalho, justiça e direitos

humanos do governo do Estado), o CTI (por meio da Comissão de Terras Yvy

Rupá).

A despeito das especificidades das posições adotadas pelos agentes envolvidos

com a luta pelo acesso à terra interessa ao argumento ora exposto o

posicionamento comum à todas as partes, inclusive aos agentes que não se

envolvem diretamente com a política dos brancos, no tangente à manutenção da

circulação e dos processos de desdobramento da rede de aldeias. Abaixo

Qualquer lugar que ele escolhe, ele já sabe. Sabe que é lugar tipo assim,

como juruá sempre fala: é um lugar sagrado. Que é um lugar bom pra guarani
118

porque tudo antigamente que moraram lá ele sabe que é um lugar bem

escolhido pelo Deus mesmo. E ai foi indicado pros mais velhos, pro karaí o

lugar que vai ser pro guarani. Então isso significa pra nós que o lugar já é o

lugar do guarani. Ali tem proteção do próprio Nhanderu... que vai ter a criança

que também vai ser bom pra ela. Vai ser lugar pro guarani mesmo. Então a

gente conhece isso porque é através do nosso Deus, já foi indicado isso pra

lugar pra guarani (...). Fortalecendo a cultura... tudo tem significado... o lugar

e sempre o Guarani fala que tem um teko’a. O tekó significa cultura, tradição,

agricultura, fazendo dança, significa teko, teko’a que é o que a gente sempre

mantém é a nossa cultura (Santiago Franco- Vice-Presidente do CAPG,

Aldeia de Coxilha da Cruz/RS, março de 2010 em Pereira e Prates, 2012:

103).

Há também um grupo contrário ao CAPG que tem reivindicado o direito ao

acesso livre aos locais que ainda tem mata e aos recursos disponíveis e

necessários para a reprodução do Ore Reko, desde que essas ocupações não

venham a ferir o direito de propriedade (Souza et al., 2007). No I Fórum

Internacional da Temática Indígena, ocorrido em Porto Alegre, em 2010, em José

Cirilo, Cacique-Geral vinculado a esse grupo asseverava:

Muito devagar essa história de laudo. Tá discutindo só no galho, na folha,

mas tem que discutir na raiz. Discutir com os mais velhos que sabem, só

pegam os que estão na cidade, que sabem o português. Tem que falar com

os mais velhos, com o cachimbo, o chimarrão, falando da nossa cultura. O

problema não é só da FUNAI, mas os antropólogos também. Nós somos

índios, nós somos diplomatas, antropólogos. Tínhamos acesso livre, sem

limite. A questão da terra tem que deixar os índios se organizarem para

depois vir um confiante. A cultura entra quando tem terra. Quando fala do

índio, tá no livro, tá bonito. Só no livro, porque tá sofrido. Hoje os Guarani

tão na gaiola, tem limite. Onde tá o direito indígena? Não tá na prática. Índio
119

dono da terra, era dono da terra. A língua é um segredo, é bom para nós,

não levaram como a terra. No mato, com o cachimbo, o chimarrão

conversando com os karaí, tem a visão e consegue enxergar a

necessidade (Porto Alegre, 29 de junho de 2010). (Soares, 2012: 121)

Atualmente lideranças mais jovens, com o perfil mais voltado para a mediação

das relações com os não-indígenas, têm adotado esta posição, predominante

entre os mais velhos e as lideranças religiosas, diante do panorama de

intensificação do confinamento vivido pelos Guarani e das dificuldades

enfrentadas no sentido de reverter politicamente a situação.

Meu avô, na época dele ou, por exemplo, até a minha mãe falava que quando

ela tinha nove anos, os Guarani podiam andar livremente. Por exemplo, se

construíam uma aldeia aqui, depois tinha época de pesca, de caça que eles

iam lá no território, não sei de onde, não era área indígena e podia ficar lá

três meses lá, caçando. Podiam ficar, voltava e traziam muitas carnes na

aldeia. Então era assim, acho que pensam que tão naquele momento ainda,

(referindo-se aos mais velhos) pensam que hoje em dia podem fazer suas

caminhadas, mas na verdade não podem. É muito difícil de aceitar os mais

velhos de que não pode mesmo, porque é tudo propriedade hoje, tem muito

proprietário, nem dá mais para ir, construírem em qualquer propriedade, onde

tem mata, tem o rio que passa por lá, mas é poluído, até essas coisas dificulta.

É muito difícil pros mais velhos aceitar que é assim né, não existe mais mata.

Porque antes os Guarani pensavam que a terra, as matas eram de todo

mundo, que eles podiam ir construir uma aldeia aqui e daqui a cinco anos ir

lá, porque era livre né todo. Nunca imaginava que um dia o branco ia vir e

destruir tudo né, construir cidades enormes, jamais iam pensar né, se era tão

grande a mata, onde o rio não era poluído, como iam pensar que em pouco

tempo iam destruir tudo (Cacique Karaí Poty da aldeia Tekoa Porã, 16 de

julho de 2008). (Soares, 2012: 122)


120

As falas das lideranças coincidem tanto na defesa da ocupação de territórios propícios

ao desenvolvimento do modo de ser dos mbyá, quanto na necessidade de assegurar a

livre circulação enquanto medida de igual importância para a manutenção do teko.

Aí depois, quando eu fui lá pro Pacheca, cheguei lá... e vai fazer a casinha...

roçar um tanto de mato... aí depois de quinze dias bem certinho morando lá

em Pacheca entram lá quinze policiais armados. ‘Com licença, quem é que é

cacique aí?’. ‘Cacique não tem... eu não sou cacique. Só quero atender as

crianças, a gente daqui né?’. Aí ele falou com o sargento. ‘Quem mandou

vocês entrarem pelo mato aí? Quem mandou fazer roça aqui? Da onde vocês

vieram?’. ‘Eu vim lá da Argentina. Nasci lá pra Mangueirinha, no Paraná. Aí

depois eu atravessei lá pro Kunha Piru, San Ignácio, aonde tem ruína. Aí

depois (...) nós fomos lá pro Cerro Klano e, de lá, cheguei lá pro Cantagalo.

Aí depois nós viemos aqui pro Pacheca’. ‘Então tá bom. Vamos’. Aí me

levaram lá pra Porto Alegre e chegamos lá no prefeito. ‘Porque você está

correndo por aí? Primeiro então você tirou licença lá pro Cantagalo, aí depois

você foi lá pro Cantagalo... e depois você me vai lá pra Pacheca! O que você

anda fazendo por aí?’. ‘Nada. Eu não to correndo não. Cantagalo é meu.

Pacheca é meu também, não é de vocês. Lá pra Pacheca tem nhambu, tem

taquaruçu, tem peixe, tem tatu, tem quati, tem mel de abelha... aquilo é meu,

não é seu. É pra mim sobreviver. Pacheca é nossa, é minha língua. E

Nhambré também é minha língua, não é sua. Isso é meu. Como é que vocês

pensam isso? E aí? Antes de vocês descobrirem isso aqui, vocês

descobriram com o índio Guarani. Antigamente foi o índio que descobriu. (...)

Por isso nós viemos pra cá’. ‘Tá bom, tá bom, então tá bom’. ‘Daqui nós

vamos pra onde vocês dêem carta branca. O guarani tem carta branca’. ‘Tá

bom, é verdade mesmo isso que você falou. Pode ir trabalhando, pode ir

seguindo... pra onde vocês quiserem morar então podem ir morar. Santa

Catarina e Paraná, em qualquer ponto. Tem carta branca’. Aí depois, lá em

Pacheca eu trabalhei oito anos como cacique (Cacique Timóteo em

Gonçalves, 2011: 54).


121

II.V. Alguns dados sobre a presença mbyá no Rio Grande do Sul nos dias

de hoje.

De acordo com o levantamento realizado pela equipe do Mapa Continental

Guarani (2016), atualmente existem no estado gaúcho 51 terras indígenas de

uso exclusivo de coletividades guarani. 18 dessas aldeias localizam-se na

Região Metropolitana de Porto Alegre42, sendo que 4 dentre essas localizam-se

na cidade de Porto Alegre e nos limites dessa cidade com a cidade de Viamão,

sendo elas as mais próximas do centro da capital. Há também a presença de

grupos guarani em 6 terras indígenas de outros povos.

O referido levantamento define como terras indígenas os territórios reconhecidos

e delimitados pela Funai, os declarados, os homologados e os regularizados.

Nos mapas abaixo encontram-se apenas essas aldeias, no entanto, o número

de acampamentos (sazonais ou não) à beira de rodovias e ocupações recentes

como a da Ponta do Arado no Belém Novo (Região Metropolitana de Porto

Alegre) retomada em junho de 201843, fazem com que os números e mapas ora

42 A Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), também conhecida como Grande Porto
Alegre reúne 34 municípios do estado do Rio Grande do Sul. O termo refere-se à extensão da
capital Porto Alegre, formando uma mancha urbana contínua que inclui também o Vale dos
Sinos.

43
“Comunidade Guarani Mbya da Ponta do Arado é atacada a tiros em Porto Alegre”. Site do
CIMI. Disponível em: < https://cimi.org.br/2019/01/comunidade-guarani-mbya-da-ponta-do-
arado-e-atacada-a-tiros-em-porto-alegre-rs/ >. Acesso: janeiro de 2019.
122

expostos apresentem apenas uma fração dos contextos de ocupações mbyá no

Rio Grande do Sul.

A cisão de grupos estabelecidos enquanto solução momentânea para

faccionalismos internos ocorreu em determinado momento na aldeia do

Cantagalo, do que decorreu a formação da aldeia vizinha que meus

interlocutores ali chamavam de Maurício Kuery. Essa cisão específica ocorreu

antes de minha chegada em campo e segundo me foi dito pelos mbyá dali

também a formação da aldeia do Lami teria se dado a partir do deslocamento de

um grupo que residia no Cantagalo. A proximidade entre as três aldeias em

questão fica explicita no Mapa 3, que abrange as aldeias mais próximas do

centro da capital gaúcha.

Abaixo seguem três mapas. No primeiro pode-se observar a dispersão das

aldeias guarani por todo estado do Rio Grande do Sul. No segundo evidencia-se

uma concentração de aldeias na Região metropolitana de Porto Alegre. No

terceiro mapa constam as aldeias mais mencionadas ao longo do trabalho

etnográfico, cujos dados encontram-se expostos nos capítulos 3 e 4.

As terras indígenas de ocupação corrente são representadas pelos pontos

amarelos, os pontos numerados representam agrupamentos de aldeias

próximas, nos quais os números nos pontos indicam o número de aldeias

representadas num único ponto. Os círculos vazios representam territórios de

ocupação passada, esbulhados ou expropriados.


123

Mapa 1: Aldeias Guarani no RS.

Mapa 2: Aldeias na Região Metropolitana de Porto Alegre (dentro do círculo vermelho).


124

Mapa 3: Aldeias em relação à proximidade ao centro da cidade Porto Alegre, representado pelo
triângulo vermelho. O ponto amarelo com o número 2 representa as aldeias do Cantagalo: Jata'ity e
Ka’aguy Mirim.
125

Parte II
Etnografias
126

III

Alguns caminhos para uma aldeia na Região Metropolitana de Porto

Alegre.

III.I – Apresentação

Como vimos no capítulo anterior, as aldeias Mbyá-Guarani configuram-se

como produtos de fluxos populacionais de caráter multilocal (Pissolato, 2007).

Tais fluxos populacionais organizam-se de acordo com uma base de valores,

prescrições e interdições que mbyá denominam Ore Rekó. As consequências

práticas do referido fluxo de pessoas organizam a história vivida pelos seus

agentes incidindo de volta sobre sua base cultural e assim desenvolvendo

mecanismos específicos para lidar com as diferentes situações de contato com

os não-indígenas com as quais se deparam em seus caminhos. Os produtos dos

movimentos (próprios ou de parentes) que caracterizam a história de vida de

uma pessoa mbyá servem como materiais para conceitualizações, invenções e

transformações (no sentido das “Extensões Analógicas” de Wagner, 2010) que

possibilitam a sobrevivência resiliente de um ethos, centrado no uso da língua

mbyá e em princípios que produzem ativamente a neutralização de forças

conflituosas, em contextos históricos desafiadores de intenso (e muitas vezes

violento) “contato” com a alteridade não-indígena.

O clássico ‘As lendas da criação e destruição do mundo como

fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani’, no qual Curt Nimuendaju

relata seu encontro com grupos Nhandeva em 1905, é um exemplo da relevância


127

tanto diacrônica quanto sincrônica da profunda significação que a mobilidade

adquire enquanto princípio para esses grupos. Embora seja difícil precisar desde

quando tais movimentos migratórios perpassam o território nacional44, claro está

na ampla literatura antropológica dedicada a esses grupos que, sob a

perspectiva aberta da espacialidade, subjaz um traço fundamental do dinâmico

ethos Mbyá (Pissolato, 2007; Garlet, 1997), que se associa ao mborayu que se

costumou traduzir por ‘princípio do amor’ (Clastres, 1977).

Foi Elizabeth Pissolato (2006) quem aprofundou a reflexão sobre essa

particularidade que permeia o modo de viver dos mbyá, formulando sua reflexão

sobre o tema nos termos de um “ethos caminhante”. Para ampliar essa análise

e aplica-la aos fenômenos etnografados entre os mbyá do Rio Grande do Sul

retomo brevemente aqui a discussão sobre a noção de “ethos” a partir das

contribuições de Bateson (2008 [1958], 173) que diz a respeito do tema que “(...)

qualquer grupo de pessoas pode estabelecer entre si um ethos, que uma vez

estabelecido se transforma num fator muito real na determinação de sua

conduta. Esse ethos se expressa no tom de seu comportamento.”45

44 Dados arqueológicos permitem aventar que essa configuração em redes amplamente


conectadas cobrindo longos espaços seja uma característica dos povos hoje conhecidos como
guarani anterior ao contato (Bartolomé 2008:50 apud Susnik 1965, Noelli 2004).

45“ Essa relação íntima entre ethos e estrutura cultural é especialmente característica de
pequenos grupos segregados, onde o ethos é uniforme e a “tradição” muito viva. Na verdade,
quando afirmamos que a tradição está “viva”, o que queremos dizer é simplesmente que ela
mantém sua conexão com um ethos subsistente. Mas quando consideramos, não grupos
isolados, e sim civilizações inteiras, devemos esperar encontrar uma variedade muito maior de
ethos e mais detalhes de cultura separados dos contextos etológicos aos quais estavam
ajustados, mantidos como elementos discrepantes em uma cultura que se não fosse por eles
128

Os deslocamentos característicos do “ethos” que aqui atribuímos aos

mbyá está diretamente relacionado com a manutenção das boas relações entre

parentes por meio de uma forma de estar no mundo cuja tônica deve ser a calma

e a generosidade, o que na realidade cotidiana demanda muito esforço. Muitas

vezes essas caminhadas, de diferentes extensões, têm por finalidade neutralizar

situações de instabilidade relacional no seio de um coletivo de pessoas

coresidentes. No contexto ora analisado o fenômeno adquire uma complexidade

ainda maior, uma vez que se relaciona ao desenvolvimento de múltiplos

contextos de diferenciações cismogênicas internas e externas (Bateson, 2008

[1958]). Retomaremos essa discussão a partir dos dados que serão expostos.

***

Este capítulo tem a finalidade de iniciar a exposição dos dados

etnográficos recolhidos ao longo da primeira etapa do trabalho de campo (a

etapa de observação em aldeia). Para os mbyá junto aos quais convivi, aldeados

na região metropolitana da capital gaúcha, concepções generificadas informam

os controles desenvolvidos para a mediação das relações com a alteridade não-

indígena determinando, entre outras coisas, as possibilidades de alguém de fora

aprofundar relações com um indivíduo ou família no contexto aldeão. Isso ocorre

por meio de uma organização que faz com que a comunicação com a alteridade

não-indigena seja direcionada e mediada quase exclusivamente por porta-vozes

seria harmoniosa. Apesar disso, acredito que o conceito de ethos pode ser aplicado com proveito
mesmo a culturas amplas e complicadas como as da Europa ocidental.” (2008 [1958], 174)
129

designados, geralmente lideranças masculinas. De maneira fractal, nos grupos

domésticos também há essas figuras designadas, ou “porta-vozes”.

Esta posição não envolve uma relação de poder entre o “porta-voz” e seus

“representados”, concentrando-se em sua funcionalidade de mediação,

promovendo para grupos de pessoas ligados a esses agentes uma espécie de

amortecimento do impacto das relações com “o branco”. Nessa matéria o

domínio e o uso da língua do branco (juruá ayvu), a vergonha e o silêncio se

articulam num estado de desconforto demonstrado em diversas situações pelos

mbyá, o que torna a existência de figuras como os “amortecedores” ou “porta-

vozes” um alívio para muitos. Sublinho, porém, que esse tipo de articulação

ocorre em contextos de comunicação específicos, sobretudo no contexto aldeão.

Mencionei na introdução que meu projeto etnográfico não teve a prática

do porarõ como ponto de partida, no entanto, tal prática delineou o escopo do

estudo em questão na medida em que foi a única via de acesso às mulheres

mbyá. Por meio do escopo proporcionado pela prática do porarõ tive acesso a

uma faceta da experiência mbyá feminina diferente daquela que se depreende

dos discursos de lideranças estabelecidas.

O papel predominantemente masculino de mediação de relações com a

alteridade não-indígena no contexto aldeão é posto em xeque na cidade por

ocasião do porarõ: uma prática predominantemente feminina que implica uma

circulação autônoma de mulheres mbyá pelo mundo do juruá. Um jogo paradoxal

se insinua pelas linhas de agência observadas entre os referidos mbyá para lidar

com as relações com esse Outro citadino.


130

***

É inegável que a comunicação com os diversos tipos de pesquisadores

que se interessam pela realidade indígena é encarada pelos mbyá como uma

das formas assumidas pelo contato com a alteridade não-indígena. Enquanto

uma variação deste tema recorrente no cotidiano daqueles homens e mulheres,

ela está submetida aos mesmos critérios que qualquer outra modulação dessa

mesma ordem de relação. Reside neste fato a necessidade de delinear as

dificuldades intrínsecas ao projeto etnográfico naquele contexto.

Algumas considerações concernentes aos reveses metodológicos

particulares ao caso mbyá, salientados no ‘Estudo Quantitativo e Qualitativo dos

coletivos indígenas em Porto Alegre e regiões limítrofes’ (Baptista da Silva et al.,

2008), corroboram a existência dos mecanismos de controle que acabo de

descrever.

Em ressonância com os fenômenos experienciados em campo, o

levantamento em questão - produzido por profissionais já íntimos com as

populações Mbyá e Kaingang no RS por meio do NIT (Núcleo de Antropologia

das Sociedades Indígenas e Tradicionais)46 - reconhece a interferência dos

mecanismos indígenas de controle das relações entre os mbyá, agrupados sob

a forma de famílias extensas ou aldeias inteiras, e pessoas não-indígenas sobre

os dados obtidos e a forma de obtê-los. Descrevo o procedimento adotado pelos

46 Órgão de pesquisa e prestação de serviços ligado ao Departamento de Antropologia da


UFRGS.
131

referidos pesquisadores para contextualizar minha própria experiência de

entrada em campo que será apresentada na sequência.

III.II - Reveses metodológicos particulares a pesquisa de campo entre

populações Mbyá na Região Metropolitana de Porto Alegre:

O referido levantamento do NIT apoiou-se sobre três métodos distintos,

foi realizado um recenseamento por meio de cadastros objetivos, dos coletivos

Charrua, Mbyá-Guarani e Kaingang presentes em Porto Alegre e imediações,

com finalidade de produzir dados quantitativos. Também foram aplicados

questionários e realizadas entrevistas.

Cada etapa com sua finalidade específica teria um escopo próprio, porém,

entre os mbyá todos os métodos precisaram ser submetidos aos dados

fornecidos por pessoas que os pesquisadores convencionaram chamar de

"porta-vozes". Estes seriam os representantes designados por cada complexo

doméstico, cada tata ypy (fogo doméstico) (Baptista da Silva et al., 2008: 146).

Somente a partir dos mesmos os cadastramentos para o recenseamento da

população mbyá na região puderam ser realizados. O que quer dizer que dentre

os 278 mbyá então cadastrados apenas 53 interagiram de fato com os

pesquisadores e dentre estes 73,6% eram homens. Ou seja, apenas cerca de

13 mulheres conversaram com os pesquisadores fornecendo-lhes as

informações demandadas sobre seus familiares.

Os pesquisadores justificaram essa organização mbyá da seguinte

maneira:
132

(...) Dessa maneira percebe-se que, entre os mbyá-guarani, os homens são

a ampla maioria dos respondentes dos questionários. Segundo a cosmologia

mbyá-guarani, o mundo "fora das aldeias" está repleto de uma série de

perigos, principalmente sobrenaturais. Isso faz com que tanto homens quanto

mulheres, na medida do possível tenham que evitar longas incursões ao

"mundo dos brancos". No entanto, atualmente o contato com "os brancos" é

inevitável e intenso. E, para minimizar os perigos do "mundo dos brancos",

algumas pessoas são escolhidas pelos deuses e preparadas pelos xamãs

para realizar esses contatos. Assim, antes de sair de suas aldeias, uma série

de ritos é realizada na opy (casa de rezas) para que os indivíduos possam

escapar dos perigos do "mundo dos brancos". Além disso, as pessoas

responsáveis pelas relações com a sociedade envolvente são preparadas

pelos xamãs para ter a sabedoria necessária defender os interesses da etnia

nas "negociações" com representantes da sociedade envolvente. Alguns

indivíduos são mais preparados do que outros. Contudo, essa tarefa de

manter relações com o "mundo de fora" é uma atividade quase

exclusivamente masculina. Em outras palavras, são os homens do grupo que

devem enfrentar os perigos do "mundo dos brancos", e para isso são

preparados. Tal fato explica que a grande maioria dos respondentes entre os

Mbyá-Guarani sejam homens. Mais ainda, explica, como veremos a seguir, o

grande percentual de mulheres que não domina a língua portuguesa, que

nunca frequentou as escolas fora das aldeias e que não se sentem a vontade

quando circulam pela sociedade envolvente. Contudo, não significa que as

mulheres mbyá-guarani nunca saiam de suas aldeias, elas apenas são mais

vulneráveis aos perigos do mundo dos brancos. (Baptista da Silva et al., 2008:

145-6)

Quanto à ênfase religiosa, sublinhada pelos pesquisadores, na

precaução em relação à possíveis contaminações próprias ao dito “mundo dos

brancos” nada observei entre as mulheres que saiam de suas casas rumo ao
133

centro da cidade diversas vezes por semana. Entretanto, o fator gênero

conformou de fato a minha inserção em um núcleo doméstico a fim de realizar o

trabalho de campo, mostrando-se de fundamental relevância no contexto aldeão.

A seleção de “porta-vozes” enquanto mecanismo de amortecimento do contato

por meio da redução do número de interações diretas e prolongadas com os não-

indígenas na língua do juruá (juruá ayvu), tal como evidenciado no excerto

acima, foi também observada em todas as minhas experiências de observação

participante em aldeias mbyá, tanto no Rio de Janeiro (ver Migliora, 2014 sobre

a existência de três “caciques” na Tekoa Mbo’y Ty) quanto no Rio Grande do Sul.

Todavia, sobre o lugar das mulheres mbyá nas relações com o universo

das coisas do Outro não-indígena afirmo com base em observações realizadas

em aldeia (entre abril e dezembro de 2015) e no centro de Porto Alegre (entre

janeiro e abril de 2016 e entre outubro de 2016 e maio de 2017) que há para elas

formas preferencialmente não-comunicacionais de circular e interagir

voluntariamente. Interação específica que ocorre com uma regularidade muito

maior entre aquelas mulheres e a cidade do que entre os homens e a cidade e

seus múltiplos personagens. Interessa-me demonstrar, portanto, como a

intersecção entre comportamentos generificados e controles relacionais

específicos opera como um ordenador sociológico no cotidiano de diversas

mulheres mbyá que transitam regularmente entre suas aldeias e o centro da

capital gaúcha para a prática do porarõ.

Esse capítulo é dedicado à exposição do cotidiano e da configuração

doméstica, das formas de produzir e lidar com recursos materiais dentro de uma

unidade doméstica mbyá e como esses fatores orientam e se deixam alterar pela
134

interação com a cidade por meio da prática do porarõ. Sendo assim, os

interesses e possibilidades de análise recaem sobre a agência das mulheres

mbyá no que se refere aos temas acima elencados. Ficará claro no decorrer da

exposição que essas questões foram delimitadas pelos espaços que conquistei

dentro do único grupo doméstico47 que aceitou minha permanência prolongada

entre eles.

***

Vimos nos capítulos anteriores, dedicados a contextualização desta

etnografia por meio da vasta bibliografia guaraniológica, no que consistem e

como operam conceitos nativos como ore reko, -vyá, jejavy, jepota, entre outros.

Na vida dos mbyá esses conceitos são ativados e operacionalizados no fluxo

dos eventos, fluxo que produz identificações e diferenciações situacionalmente

elicitando linhas de pertencimento e oposição em diversos níveis. (Bateson 2008

[1958], Wagner 2010 [1981], Strathern 2006 [1988]). É por esse motivo que na

narrativa etnográfica os referidos conceitos aparecerão em seus agenciamentos

contextualizados na vida real, de modo sincrônico e cronológico e não em blocos

analíticos artificialmente recortados.

A escolha pela exposição sincrônica e de acordo com a ordem cronológica

dos eventos oferece o benefício do reconhecimento das etapas (não

necessariamente progressivas) do processo de funcionamento dos mecanismos

47 Grupo que se configurava de modo específico à época da realização do trabalho de campo.


Uma configuração que divergia da habitual tanto para aquela aldeia, quanto para as demais
aldeias que vim a conhecer ao longo dos mais de oito anos em relações com populações mbyá.
135

de controle das relações com a alteridade não-indígena, evidenciando os limites

mais ou menos elásticos com os quais me deparei em diferentes regiões da

aldeia onde trabalhei. Meu intuito com essa forma de exposição é acompanhar

a orientação metodológica de Strathern (2009 [1988]:33) da “exposição

contextualizada” que “exige que os próprios constructos analíticos sejam

situados na sociedade que os produziu”. Tarefa que só me parece exequível, no

caso em questão, na medida em que a ordem dos eventos seja demonstrada

para o leitor.

A primeira etapa de uma permanência em campo bem sucedida é a

observação do choque cultural, da resistência que a sua diferença enquanto

pesquisador produz no contexto analisado (Wagner 2010 [1981], Geertz 1978,

Evans-Pritchard 1940). Como esse momento de resistência no meu trabalho de

campo se prolongou sobremaneira e pelo fato de que essa resistência mantém

relações fundamentais com o fenômeno analisado nessa tese esse tópico

permeará boa parte dos dados etnográficos que seguem.

Detalhei na introdução as questões de cunho etnográfico que me levaram

ao Rio Grande do Sul. Falei também sobre como minhas questões iniciais se

transformaram ao longo dos primeiros meses em tentativas de trabalho

etnográfico na aldeia da Estiva (Tekoá Nhuundy). É a partir do ponto em que

desisto daquele primeiro objeto de estudo que essa etnografia se segue.


136

III.III - Os movimentos do processo de entrada em campo: a primeira etapa

da empreitada etnográfica.

A partir do momento no qual desisti do meu projeto etnográfico inicial

retracei meu objetivo para entrada em campo mantendo meu interesse pelas

aldeias que fazem parte da Região Hidrográfica do Lago Guaíba, pela

proximidade em relação a capital que configurava aquela rede de aldeias como

um objeto privilegiado para o estudo do “Contato Cultural” e seus mecanismos.

Além da Tekoá Nhuundy (Aldeia da Estiva, onde se frustraram minhas tentativas

iniciais de inserção para observação participante), há nessa região as aldeias,

sendo que as mais próximas do centro da capital gaúcha são aldeias da Lomba

do Pinheiro, do Lami, do Cantagalo (I e II) e do Itapuã (ver mapa no Capítulo II).

Desde minhas primeiras visitas ao Rio Grande do Sul me chamava a

atenção a presença massiva das mulheres mbyá no centro de Porto Alegre, de

segunda à sábado, e na feira de antiguidades e artesanatos conhecida como

Brique do Parque da Redenção que ocorre aos domingos. Pareceu-me então

que essas mulheres seriam boas interlocutoras e poderiam me levar até uma

casa numa aldeia mbyá sem que houvesse a necessidade de me submeter

novamente as oposições de uma liderança, tal como ocorrera em minha tentativa

anterior (narrada na introdução). Aquele novo horizonte me animava também

pois todas as etnografias que eu havia lido até então sobre os mbyá do Rio

Grande do Sul tinham sido realizadas quase exclusivamente por intermédio das

lideranças ou “porta-vozes” do tipo acima referido e aquela talvez fosse uma via

interessante para fazer algo diferente.


137

III.II.I – A segunda tentativa.

No Brique da Redenção passei a tentar conversar com as mulheres mbyá

que expunham artesanatos e plantas sobre panos esticados no chão

acompanhadas de outras mulheres adultas e crianças de diversas idades.

Percebi que a maioria delas não era fluente em português, nesse sentido o meu

domínio parcial do guarani ajudou a evitar a postura refratária à comunicação

que sustentavam em relação aos juruá curiosos que lhes faziam perguntas para

além dos artigos que expunham.

O uso da língua foi importante especialmente para fazer com que se

interessassem em conversar comigo, ele operava como um elemento de

surpresa divertida para as mulheres e crianças que conheci ali. Mesmo assim a

“vergonha” (-xymba) delas, tema que se repetiu ao longo de toda a pesquisa,

dificultava muito a aproximação. Percorri a feira olhando os artesanatos e

plantas de diversos panos familiares mbyá distribuídos ao longo da rua.


138

Foto 1: Um pano familiar com apresentação musical, artesanatos à venda e cesta para
recebimento de doações na feira do Parque da Redenção (Região central de Porto Alegre).

Minha abordagem consistia em fazer perguntas sobre os artesanatos

expostos e sobre a vida em aldeia. Logo me perguntavam sobre o motivo de eu

saber falar (um pouco) na língua deles, assim eu aproveitava para tentar achar

na rede de parentesco mbyá distribuída pelas regiões sul e sudeste do país

alguma pessoa de conhecimento em comum.

Minhas relações com a banda de forró Moleques da Pisadinha, formada

pelos filhos da liderança da Tekoá Mbo`y ty (atual Tekoá Ka’aguy Hovy Porã em

Maricá-RJ) onde realizei trabalhos de campo ao longo da graduação e do

mestrado, me ajudou a conquistar pelo menos um pouco mais da curiosidade de

alguns dos mbyá com os quais conversei. Ainda assim, dificilmente os assuntos

se desenvolviam de modo que eu me sentisse confortável para sugerir uma

visita.
139

Essa situação desfavorável mudou quando duas mulheres mbyá que

chamarei de Vitorina e Lucrécia, me deram algum espaço. Eram cunhadas que

vinham de uma das aldeias situadas na região mais próxima ao centro da capital

(ver último mapa do Capítulo 2) com seus filhos e viviam em grupos domésticos

vizinhos, fazendo parte de um mesmo pessoal (-kuery).

Sentei-me ao lado delas na calçada, comprei alguns artesanatos e

conversamos bastante sobre a família mbyá do Rio de Janeiro junto a qual eu

havia pesquisado anteriormente. Elas conheciam o grupo de forró deles, mas

não eram parentes seus. Os principais laços de parentesco que mantinham fora

do RS eram no Paraná, e no Rio de Janeiro possuíam parentes somente em

Angra dos Reis, na aldeia do Bracuí. Não quis assustar minhas novas

conhecidas e por isso não me convidei a visitá-las naquele primeiro contato.

Voltei no domingo seguinte e passei novamente algum tempo

conversando com elas na calçada. Enquanto isso observei que atendiam aos

transeuntes apenas informando preços aos interessados por algum dos itens

expostos: sem dar o menor espaço para as demais perguntas dos curiosos

juruá. Esquivavam-se deles alegando não falar português.

Naquele segundo encontro com as cunhadas finalmente perguntei a

Vitorina, que melhor falava português, se poderia visitá-las na aldeia. A reticência

de sua reação deixou claro o desconforto que lhe causava a ideia de me receber

em sua casa, mas não recebi uma negativa. Perguntando o que deveria levar de

comida quando fosse consegui vislumbrar uma reação um pouco menos tensa

e nisso me fiei para visita-la pela primeira vez, sabendo apenas que a casa que

ali visitaria ficava próxima ao campinho e à escola da aldeia.


140

Naquela semana me encaminhei para a aldeia com quilos de arroz, feijão,

carne, erva-mate e fumo de rolo, para as casas das duas mulheres. Fui recebida

no pátio de Vitorina, pelas duas e mais uma senhora idosa coresidente de

Lucrécia. Cheguei um pouco depois do almoço e como ali todos sabiam que a

viagem entre o centro da cidade e aquela aldeia dura cerca de duas horas (dois

ônibus e uma subida) fui questionada se já havia comido e logo me arranjaram

um prato com o que tinham almoçado: macarrão, feijão e frango frito.

Um breve quadro da aldeia em questão.

A Terra Indígena na qual realizei o trabalho de campo que exponho partir

daqui foi homologada no ano de 2007. Seu território de 283.67 hectares se

distribui entre os municípios de Viamão e Porto Alegre. Uma parte minoritária do

espaço reconhecido como parte das terras dos mbyá estava sob disputa com

alguns não-indígenas. Segundo o cacique, faltava que a FUNAI desapropriasse

anda cerca de 27 famílias não-indígenas para que a aldeia contasse com todo o

território que lhes cabia por direito.

Entre 2015 e 2016, período em que realizei meu trabalho de campo

naquela aldeia, vi diversas famílias permanecerem muitos meses seguidos ali,

ao passo que muitas famílias de moradores daquela aldeia se mudaram ou

passaram muitos meses em outras aldeias, tanto no Rio Grande do Sul quanto

nos demais estados por onde se estendem as redes do parentesco mbyá. A

“multilocalidade” ou “ethos caminhante” (Pissolato, 2007) enquanto um fato

reconhecido do que venho chamando de “Ethos Mbyá” faz com que um


141

recenseamento preciso seja uma impossibilidade real e os dados que exponho

aqui comprovarão isso. Ainda assim, estimo uma população de

aproximadamente 200 pessoas residindo ali, mesmo que por períodos variáveis.

Muitas das casas daquela aldeia foram construídas pela Arquidiocese de

Porto Alegre, no início dos anos 2000. Estas eram feitas em alvenaria contando

com dois quartos, uma sala, uma pequena varanda e telhado de zinco. Quase

todos os grupos domésticos possuíam uma casa naquele formato, bem como

um banheiro também padronizado construído pela Funasa que também

distribuiu pelo território indígena algumas caixas d’água que abasteciam a TI.

Algumas famílias possuíam galinheiros que haviam sido implementados

ali por meio de um projeto da EMATER. O espaço que entendo como sendo o

“centro da aldeia” ficava num local bastante afastado da entrada da aldeia, perto

da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental, da Casa de Rezas ou Opy,

e do “campinho de futebol”. Espaço circundado por diversas casas, dentre elas

as casas de Vitorina e Lucrécia.

No “campinho” se reuniam diversas vezes por semana uma grande

quantidade de moradores da aldeia, fosse para receber visitantes de outras

aldeias ou não-indígenas em excursões, fosse para jogar futebol, ou apenas para

conversar, ouvir música e aproveitar momentos de socialização. Ali também

ocorriam as aulas de educação física para os alunos da escola, mas o valor

daquele espaço para a socialidade dos aldeãos extrapolava aquela

funcionalidade determinada.
142

Mapa 4. Aldeia.

Voltando a descrição sincrônica:

Distribui, quando cheguei na casa de minha anfitriã, algumas doações

entre as mulheres que ali se encontravam. Entretanto, facilmente ficávamos sem

assunto, uma vez que nada que eu comentasse rendia respostas interessadas

e eu tinha a impressão de que minha presença ali lhes causava, no mínimo, certo

grau de estranheza. Não era o caso de insistir em fazer perguntas ou violar o

protocolo de reticência que as mulheres mantinham habitualmente em ralação

aos juruá em diversas circunstâncias. Ainda assim, criei espaço para perguntar

se um dia eu poderia dormir por ali. Aquela pergunta fez com que minha anfitriã

me pedisse imediatamente que eu fosse até a casa do cacique conversar sobre


143

o assunto. Em seguida se levantou e me mostrou o caminho, mas não me

acompanhou até lá.

Claramente minhas doações interessavam, mas não o suficiente para que

eu fosse de fato desejada ali. Aquele complexo doméstico, fiquei sabendo

posteriormente, ao conhecer o cotidiano da aldeia, era bastante central. Minha

anfitriã era esposa do único agente de saúde da aldeia e cunhada do cacique,

que era casado com uma de suas irmãs. As casas onde morava com marido e

filhas se localizavam junto ao campinho e à escola da aldeia e bem próxima da

Opy. Era uma área distante da entrada da aldeia, e bem mais populosa do que

o longo caminho que levava da entrada até ali.

Chegando no terreno do grupo doméstico onde residia o cacique

encontrei-o no pátio fazendo artesanatos junto com sua esposa e filhos.

Conversamos formalmente em português, eu e o cacique. Enquanto os demais

ouviam e comentavam nossa conversa entre si em mbyá, pois não tinham noção

da extensão do meu conhecimento de sua língua.

Expliquei ao cacique que era pesquisadora, com experiência e interesse

em permanecer por longos períodos em aldeias mbyá. Recorri mais uma vez às

minhas relações com pessoas que poderiam ser conhecidos em comum na rede

de parentesco mbyá e sobre a banda de forró dos meus amigos mbyá no Rio de

Janeiro. Perguntei como eu poderia ajudar enquanto estivesse visitando a aldeia

e depois perguntei se poderia ficar. Ele respondeu que as casas estavam

ocupadas, mas que eu poderia acampar, como outros juruá já haviam feito ali

anteriormente. Em mbyá falou para os seus parentes que eu deveria acampar

na mata, para ver se tinha onça (algo mais ou menos assim: kaaguipy opitata
144

xivi omãe aguã). Rimos todos e perguntei se xivi queria dizer onça e se havia

alguma pelas matas que circundavam a aldeia. Ainda risonho ele respondeu que

não, enquanto os demais encararam com surpresa o fato de eu ter entendido o

que comentavam entre si.

Aceitei acampar visando me fazer conhecer na aldeia e talvez descobrir

alguém interessado em me “adotar”. Com o objetivo de permanecer na aldeia

voltei alguns dias depois dessa primeira visita com o material de acampamento.

Nesse dia, ainda na entrada da aldeia encontrei um jovem mbyá de bicicleta e

óculos de grau chamado Karaí48. Esse rapaz me informou que havia outra aldeia

na continuação da estrada e que provavelmente eu estaria ali por engano e

desejando ir para a outra “aldeia”49, mas percebeu que eu sabia exatamente

onde estava quando eu mencionei que já havia falado com o cacique sobre

permanecer acampada ali. Assim, nos apresentamos e ele resolveu me ajudar a

carregar as coisas.

Caminhando rumo ao centro da aldeia conversamos sobre as aldeias

mbyá que eu conhecia, acenamos para pessoas que nos olhavam com

curiosidade dos pátios de suas casas ao longo do caminho e, pouco antes de

48 Soube mais tarde que aquele rapaz atuava ali como uma espécie de auxiliar do cacique e era
funcionário na escola da aldeia.

49 Algum tempo depois descobri que seguindo na estrada após a entrada da aldeia havia uma
entrada que levava ao terreno de uma comunidade daimista chamada Igreja Céu do Cruzeiro do
Sul, conhecida pelos seus vizinhos mbyá como Paim Kuery. Paim era o sobrenome do fundador
da comunidade daimista e kuery é o coletivizador utilizado para identificar grupos familiares. Essa
forma de definição da “aldeia vizinha” é um dado interessante uma vez que nenhum laço de
parentesco unia os diferentes grupos que habitavam ali.
145

chegarmos numa bifurcação que o levaria para a casa dele, ele me perguntou

(afirmando) se eu era pesquisadora. Disse que sim e perguntei o porquê da

pergunta. Ele me respondeu que ele percebia logo “quando é pesquisador”. Ele

me perguntou “de que” eu era pesquisadora e eu respondi que era “de

antropologia”. Perguntei então se ele considerava isso bom e ele respondeu que

muitos já haviam aparecido ali, mas todos sempre desapareciam. Logo em

seguida me entregou a parte do equipamento de acampamento que vinha me

ajudando a carregar até ali e seguiu com sua bicicleta pela bifurcação que levava

até sua residência.

Chegando ao pátio de Vitorina, onde eu acamparia, me ofereceram uma

cadeira para que eu pudesse recuperar o fôlego. Em seguida passei a distribuir

as doações de mantimentos que havia levado para minha anfitriã, sua cunhada

e para o cacique, seus pedidos centrais eram: carne vermelha e fumo de rolo.

Embora as doações fossem bem recebidas, os pedidos não eram

expressos como uma condição para minha permanência ali. A despeito da

escassez daqueles itens tão desejados pelos mbyá o desinteresse em ter um

juruá morando ali era educadamente tornado nítido por meio de alguns

comentários de meus interlocutores que pareciam ter pressa de que eu fosse

embora desde o momento em que eu chegava. O efeito daquelas contribuições

era mais amenizar o incômodo de ter um intruso juruá ali, do que de tornar a

minha presença de fato desejável.

Visto que Vitorina novamente recebia visitas no momento em que

cheguei, reparti as doações com uma senhora que então almoçava ali no pátio

de minha anfitriã. Tratava-se de uma tia sua, moradora de um grupo doméstico


146

localizado antes da subida que levava à parte central da aldeia. Depois disso fui

até a casa do cacique e ao entregar as doações que levei para sua família

expliquei que acamparia ali a partir de então, e tornei a pedir que me avisasse

caso houvesse alguma casa disponível ou família interessada em me receber

em sua casa. Muito bem-humorado, ele respondeu que seria muito difícil que

isso ocorresse.

Voltando até o terreno do grupo doméstico de Vitorina perguntei onde eu

poderia armar minha barraca e ela sugeriu que eu voltasse até o cacique e

pedisse a ele para ficar numa casa vazia que havia ali perto. Respondi que já

havia perguntado anteriormente sobre essa possibilidade e em resposta a esse

pedido ele mesmo sugeriu que eu acampasse. Apesar de estar claramente

insatisfeita com aquela situação, ela me ajudou a identificar o melhor ponto de

seu terreno para que eu armasse meu acampamento.

Montei minha barraca, com a ajuda de minha anfitriã e de duas de suas

filhas, entre as duas casas que pertenciam àquele grupo doméstico. Na primeira

casa Vitorina dormia e assistia televisão com seu marido e filhas menores e a

outra construção onde ficava o fogão a gás e a geladeira da era onde dormiam

suas duas filhas mais velhas.

A primeira construção, em alvenaria, obedecia a um projeto comum a

diversas outras habitações na aldeia. A segunda casa fora construída com

tábuas simples pelo marido de Vitorina, com o auxílio de parentes, segundo me

contara. O fogo de chão que utilizavam para cozinhar era feito na varanda da

primeira construção, não havendo uma construção dedicada exclusivamente a

essa finalidade, um tata ypy, ainda que a segunda construção contasse com um
147

fogão utilizado para a feitura de alguns poucos pratos ou para esquentar água

para café ou chimarrão.

A categoria tata ypy, no entanto, permanece sendo válida para delimitar

aquilo que venho chamando de grupo doméstico, uma vez que este é definido

como aquele grupo de pessoas que comem do mesmo fogo. No caso dessa

família, embora as visitas de pessoas de outros grupos domésticos locais fossem

frequentes e as refeições assim compartilhadas fossem uma regra e não uma

exceção para todos os grupos junto aos quais realizei pesquisas ali, entendo que

o grupo se restringia a uma família nuclear com quatro filhas50. Com o

desenvolvimento do meu trabalho de campo naquela aldeia, que será detalhado

adiante, ficará claro que essa configuração assume diversas formas, podendo

abarcar membros de até três gerações.

Meus anfitriões, embora me tratassem atenciosamente, deixavam claro

que me aceitar em sua casa estava fora de cogitação51. O pai deixou uma

lâmpada acesa do lado de fora da casa para que eu não ficasse completamente

no escuro e permitiu que eu transferisse minha barraca para a pequena varanda

coberta da construção de alvenaria caso chovesse, mas isso era tudo o que

50 Uma delas em vias de se casar e trazer para o grupo um genro.

51 Naquela primeira noite de acampamento na aldeia descobri que aquele tipo de permanência
não poderia durar muito, o frio que fazia naquela região de vale que ficava entre dois morros,
não me deixava dormir, mesmo com saco e isolante térmicos e cobertores. Pela manhã percebia
a barraca completamente molhada pelo sereno que caía durante a noite. Daquele modo os dias
na aldeia, embora empolgantes por conta das novas informações sobre aquele que eu esperava
que fosse se tornar meu campo, logo ficavam exaustivos e eu sentia sono enquanto o sol me
aquecia.
148

poderia fazer para tornar minha estadia ali menos desconfortável. Passei a

acampar na aldeia entre idas e vindas do apartamento alugado no centro da

capital gaúcha, situação que durou quase dois meses.

Parentesco e casamento: uma primeira aproximação do tema naquele

contexto.

A partir das 6 horas da manhã mãe e filhas começavam a organizar a

primeira refeição do dia, era feito o fogo por uma das filhas, a mãe cozinhava,

uma delas passava a varrer o pátio, a mais nova dava milho para as galinhas

que eram liberadas do galinheiro e soltas permaneciam a maior parte do dia. Nos

dias de semana, as meninas se encaminhavam para a escola que ficava logo ao

lado, então a mãe confeccionava artesanatos e frequentemente recebia visitas

de parentes em sua varanda. O pai como agente de saúde circulava pela aldeia

visitando casas específicas e frequentava o posto às quartas-feiras, quando a

equipe de saúde trabalhava ali, mas passava também bastante tempo entre os

seus.

Enquanto estive ali não era época de plantio, por isso não pude observar

como atividades voltadas para a agricultura familiar eram distribuídas entre eles,

que de fato possuíam uma pequena roça pouco distante das casas de onde de

vez em quando a mãe ordenava a alguma filha que trouxesse mandioca (mandio)

para uma refeição.

Vitorina dizia que plantava também moranga (andaí), mas alegava não se

interessar muito pelo roçado. A caça estava fora de questão pois, segundo me
149

disseram diversos interlocutores locais, os animais de caça daquelas matas já

não existiam mais. Nada me foi dito quanto à pesca, apenas certa vez Vitorina

me pediu para descer até o mercado mais próximo da aldeia e comprar peixe

para comermos, ou seja, o desejo de comer peixe existia, mas a atividade de

pesca não fora mencionada nem nunca observada por ali.

Embora o marido de Vitorina tivesse sua ocupação remunerada como

agente de saúde indígena, as idas de minha anfitriã à cidade e os recursos que

seu porarõ gerava eram fundamentais na composição da renda de subsistência

do grupo, segundo ela relatou. Aos domingos ela vendia seus artesanatos no

Brique, além disso, fazia porarõ no centro da cidade no mínimo uma vez por

semana. Suas saídas eram importantes para “comprar trigo, massa, arroz, feijão,

roupas...”52.

Nos primeiros dias de acampamento passou a existir, por parte da família,

uma preocupação em cuidar daquela visitante inusitada. A mãe me alimentava

junto com a família e a filha mais velha logo começou a me ajudar com a língua.

Nesses primeiros momentos de nossa relação todos se envolviam um pouco nas

lições que eu tomava ali no pátio mesmo. Volta e meia, da cozinha, a mãe

mandava sua filha escrever (-mbopara) algo, quando de longe me ouvia com

dificuldades em compreender algo que sua filha tentava me explicar. As filhas do

52 Dentre os homens que conheci naquela aldeia apenas o irmão do marido de Vitorina trabalhava
fora da aldeia, no supermercado Zaffari. Postura diferente daquela que os outros homens que
conheci na aldeia mantinham.
150

meio (de 12 e 16 anos) estavam sempre por perto e mais riam timidamente (-

xymba) do que interagiam diretamente comigo.

Naquele período na varanda ao anoitecer tomávamos chimarrão e

conversávamos sobre a aldeia e o fluxo de parentes entre aldeias, sobre a

relação entre o uso do petyguá e o domínio da língua mbyá53 e sobre a Opy de

onde ecoavam os sons dos cantos e danças que ouvíamos do quintal da família

que me recebia. Sobre a Opy conversamos a respeito da restrição radical à

entrada dos juruá ali, restrição com a qual meus anfitriões concordavam

plenamente. Eles enfatizavam a necessidade de que os próprios mbyá não

deixassem de frequentá-la. Curiosamente, embora suas filhas fossem assíduas

na Opy, eles mesmos frequentavam bem menos e Vitorina não via nada de

recriminável em deixar de ir para assistir à novela.

Conversamos também sobre o trabalho do pai como o agente de saúde

ali, sobre o meu trabalho como pesquisadora, sobre o tamanho das famílias

mbyá e as mudanças ao longo do tempo. Meus interlocutores, sobretudo

Vitorina, se preocupavam com os namoros das filhas, possíveis casamentos

“precoces” e as diversas gestações comuns entre as mulheres mbyá.

Em suma, naquele momento, embora fosse evidente que era impossível

que eu viesse a morar na casa deles, eu me sentia uma visitante estranha, mas

muito bem recebida.

53 Relação recorrente também no discurso da Kunhã Karaí (xamã mulher) junto a qual realizei
pesquisas no RJ.
151

A filha mais velha, Ane, então com 19 anos, além de me ajudar com a

língua me levou, junto com sua irmã caçula, Ádna de 7 anos, para fazer trilhas

pelas matas que circundavam a aldeia e a partir disso ficamos bastante

próximas. Foi numa dessas longas caminhas que descobri que ela havia

recentemente passado por um período de “tristeza” que descreveu também

como “doença” (mba’e axy – coisa ruim). Para lidar com aquele estado

problemático passou por diversos tratamentos na Opy o que culminou na sua

renominação. Procedimento no qual os xamãs (Karaí e Kunhã Karaí) que

moravam e atendiam na Opy dali ouviram do próprio espírito da enferma o nome

pelo qual ela deveria responder daquele momento em diante, medida que fez

com que recuperasse sua saúde.

Lembro que, como vimos no Capítulo I, a onomástica mbyá envolve uma

articulação entre o espírito, o corpo e as condições de permanência nessa terra

imperfeita (teko axy) enquanto ser humano e, logo, enquanto parente. O alegrar-

se (-vyá) é fundamental, por exemplo, para determinar se o espírito de uma

criança permanecerá neste mundo, revelando seu nome ao xamã no ritual de

nominação (nhemongaraí) ou se este preferirá retornar à morada divina de onde

viera (temas já explorados no primeiro capítulo).

(...), os Guarani não acumulam nome. Este, uma vez mudado – o que ocorre

somente em caso de doença, decorrente de a pessoa ter sido nominada

incorretamente –, deve ser abandonado. Desse modo, a onomástica guarani

toma parte naqueles sistemas individualizantes descritos por Viveiros de

Castro (1986, p. 375), em que o nome não tem função de classificação, mas

de individualização.” (Mendes Junior, 2014 – pp. 57-8)


152

Para prosseguirmos a conversa comentei com Ane que sua irmãzinha era

uma criança muito feliz. Ela respondeu que ali todos eram felizes, exceto ela

própria. Perguntei se ela não começaria a namorar e ela disse que os rapazes

tentavam namorar com ela, mas ela nunca queria. Perguntei então se seus pais

a impediam e ela respondeu que não, que era ela quem não tinha vontade.

Embora Ane reconhecesse o quão problemático era o tema das relações

entre pessoas juruá e mbyá a jovem sonhava em se tornar uma fotógrafa viajante

e tinha um enorme fascínio pelas bandas de rock que ouvia no seu celular. Creio

que fora justamente essa sua tendência que a levou a se relacionar comigo de

um modo completamente diferente de todos os mbyá do Rio Grande do Sul que

vim a conhecer.

Ane adotava o estilo “rockeiro” – que aos poucos se disseminava entre

outros jovens mbyá ali – e me mostrava algumas postagens que fazia em seu

facebook sobre o preconceito que sofria em relação aos seus gostos, uma vez

que os estilos musicais mais populares ali eram as variações do forró e o funk.

Por esse motivo ela pensava em caminhar por outras terras, visitar um irmão por

parte de pai que morava numa aldeia do Espírito Santo de cuja existência havia

tido conhecimento recentemente54. Ane não conseguia “alegrar-se” (-vy’a)

naquele contexto, mesmo depois de ter sido renomeada ela “não queria ficar” e

54 Ao longo do meu trabalho de campo junto a outro grupo doméstico naquela aldeia, mantivemos
nossa amizade e presenciei o momento no qual Ane passou a namorar com um jovem ali mesmo
tornando-se cada vez mais “estabilizada” dentro daquela realidade relacional.
153

andar por outras aldeias era a solução que ela vislumbrava dentro de seu

horizonte de possibilidades para estabilização.

Em uma outra conversa sobre casamento ela afirmou que não poderia se

casar naquela aldeia por ali serem todos seus parentes. Sua irmã de 16 anos,

no entanto, estava namorando um rapaz na aldeia que a visitava todos os dias

e, segundo sua mãe, em breve se mudaria para a casa que ela e Ane

compartilhavam no grupo doméstico de Vitorina. Ou seja, embora esse

parentesco generalizado possa ser utilizado para justificar a impossibilidade do

casamento ali, ele não funcionava como uma regra incontornável.

Também Vitorina quando questionada acerca de seu parentesco com

determinado pessoal (-kuery) que a visitava numa tarde me explicou que

pensava estar relacionada por laços de parentesco a todos os moradores

daquela aldeia: “por um lado ou por outro, é que nem uma corrente, é tudo

parente”55. Um argumento que funcionava enquanto generalização. Ou seja, o

reconhecimento de algum laço de parentesco com tal ou qual morador de outros

grupos domésticos era realizado de modo situacional.

Essa flexibilidade dos laços reconhecidos ficou evidente quando pedi

ajuda aos membros da família que me recebia para achar a casa de uma

determinada mulher e estes supostamente “não a conheciam”. A mulher a qual

55 De fato, em português o termo “parente” e não xeretarã, era o mais comum para designar
outros moradores da aldeia por diversos de meus interlocutores entre 2015 e 2017. As respostas
as perguntas que o uso daquele termo suscitava, ao meu interesse em determinar graus
específicos do parentesco entre meus interlocutores, eram sempre bastante vagas, mas com
algum esforço achavam ou não um motivo que justificasse o uso do termo. Na sequência da
exposição apresentarei alguns destes casos.
154

me refiro, vim a saber posteriormente, era a tia materna (e mãe de criação) do

cunhado de Vitorina, o cacique. Ou seja, era sogra de sua irmã. Narro esses

fatos a seguir.

Achar parentes ou achar vizinhos?

Paralelamente aos acampamentos intermitentes na aldeia, que não me

levariam ao tipo de dados etnográficos que me interessavam, pois não

proporcionavam um aprofundamento de relações ali, enquanto estava na cidade

continuava minha busca por mulheres mbyá que se mostrassem abertas à

interlocução que eu propunha e ao tipo de recursos que eu poderia oferecer em

troca. Em andanças pelo centro da capital gaúcha tentava conversar com as

mulheres mbyá que faziam porarõ, ou seja, sentavam-se sobre panos com suas

crianças nas calçadas e expunham artesanatos e plantas coletadas na mata,

com uma cestinha reservada para doações em dinheiro.

Estas eram sempre simpáticas, especialmente ao perceberem que eu

falava a língua delas, mesmo que não fluentemente. No entanto costumavam

permanecer num estado de reticência risonha quando eu começava a fazer

perguntas sobre suas aldeias e possibilidades de visitas.

Percebi em minhas relações com as mulheres do Cantagalo, a existência

de um jogo de compreensão e incompreensão que era posto em prática pelas

mulheres mais jovens na cidade: compreendem o português na medida em que

este veicula itens materiais. No caso da minha comunicação com essas


155

mulheres, com problemas na articulação correta das frases, conversávamos

bem em mbyá até que eu passava a perguntar sobre suas casas.

Falei com mulheres de diversas aldeias nessas perambulações pelo

centro e apenas uma delas, moradora da mesma aldeia que Vitorina e sua

família, conversou mais longamente comigo e permitiu que eu a visitasse com

doações de comida para as crianças que disse habitarem com ela. Sua

receptividade me surpreendeu bastante por se tratar de uma senhora de mais

idade, que de fato compreendia pouco o português e falava ainda menos. Seu

pano contava com pouquíssimos artesanatos expostos e nenhuma criança a

acompanhava, o que a diferenciava da maior parte das mbyá que eu via e

abordava pelas calçadas centro até então.

Voltei para a aldeia depois disso e voltei a acampar no pátio de Vitorina,

mas confiante de que o tempo de acampamento acabaria assim que eu achasse

a casa daquela senhora. Passei um final de semana na aldeia e perguntei

diversas vezes a diversas pessoas do meu convívio no grupo doméstico de

Vitorina e imediações se conheciam aquela senhora que se chamava Niria. Na

maioria das vezes respondiam apenas “não sei” (ndaikuaa`i). Outras pessoas

respondiam apenas que ela morarava “lá em cima” (yvyã re) e nada mais. Ane

achou que se tratava de uma de suas tias, cujo nome era parecido e me levou

até sua casa. Não era a mesma mulher e aquela (assim como as demais que eu

havia conhecido ali até então) não se interessava em me receber para além do

pátio, embora aproveitasse minha visita para aceitar o pety (fumo de rolo para o

petyguá) que eu tinha para oferecer para Níria.


156

Após frustrada aquela nova tentativa, um período de chuvas intensas me

manteve longe da aldeia por cerca de uma semana. Quando voltei as chuvas

tinham passado, mas o tempo ainda não estava firme. Parecia que choveria

naquela tarde. Meus anfitriões estavam na companhia de um grupo de seis

parentes, moradores de uma parte menos populosa da mesma aldeia, que os

visitavam. Ao me verem ali para acampar, foram unânimes na opinião de que

ainda choveria mais e, sendo assim, seria melhor que eu voltasse para a cidade

com o meu equipamento.

Muitos deles almoçavam, porém daquela vez nada me foi oferecido e fui

deliberadamente ignorada. Um comportamento muito diferente do que eu vinha

experienciando com Vitorina e seus familiares mais próximos. Naquela situação

de encontro entre diferentes segmentos de um mesmo pessoal (-kuery) a minha

diferença era mais marcada e alguns outros episódios de mesmo teor mostrarão

como esse comportamento era uma das manifestações dos mecanismos

relacionais que controlam a inserção da alteridade não indígena naquele

contexto.

Ignorando a reação de meus anfitriões montei e entrei na barraca para

arrumar minhas coisas. Ao sair, todavia, um dos parentes visitantes começou a

zombar de mim dizendo: “quando chover a sua barraca vai virar uma canoinha”.

Respondi que talvez assim eu chegasse na cidade sem pegar ônibus e todos

riram. Entre si comentaram enquanto eu estava dentro da barraca, “ömano-xe”,

em português: quer morrer. Nenhum abrigo me foi oferecido para caso viesse

realmente a cair um novo temporal durante a noite.


157

Ao longo daquela que foi minha última permanência acampada ali, dois

eventos se passaram que me ajudaram a analisar os insucessos de minha

estratégia de apresentação e fixação na aldeia até então.

Evento 1:

Era um sábado pela manhã quando percebi a presença de muitos

visitantes juruá circulando pela aldeia acompanhados pelo cacique, que vestia

um cocar, e por alguns jovens e crianças caracterizados como que para uma

apresentação do tipo Coral Guarani56. Fui até as imediações da escola, onde os

visitantes se concentraram após a caminhada pela aldeia. Os mbyá e os juruá

mantinham-se ali em grupos apartados. Notei que algumas mulheres e um

homem expunham no corredor da escola seus artesanatos para venda, em

carteiras escolares e panos no chão.

Permaneci sozinha observando aquele encontro inusitado quando alguns

visitantes curiosos me abordaram querendo saber o que eu fazia ali. Respondi

educada e abreviadamente, procurando mimetizar a forma como os adultos

mbyá se portavam diante das tentativas de interação dos visitantes em relação

a eles. Mesmo assim fiquei sabendo que eram membros de uma determinada

comunidade evangélica de Porto Alegre. Estariam ali, segundo eles, não para

evangelizar, mas para “comungar com os índios” e para isso ofereceriam em

56 Sobre o papel dos Corais Guarani enquanto instrumentos de afirmação da identidade cultural
Mbyá e comunicação de uma postura mais assertiva na busca por seus direitos específicos ver
Macedo (2012).
158

seguida uma grande refeição, que consistia em muitos frangos assados (com

acompanhamentos).

Depois de um tempo observando aquele evento, ainda antes que a

refeição fosse servida, a esposa do cacique veio pela primeira vez

espontaneamente falar comigo. Aquela abordagem me surpreendeu, uma vez

que naquele contexto eu tinha a impressão de que os adultos evitavam os juruá,

e por isso imaginei que eu seria submetida ao mesmo tratamento. A mulher me

abordou com a finalidade específica de pedir que eu lhe presenteasse com

miçangas e linhas para a confecção de seus artesanatos. E, juntando-se a ela,

outras vieram fazer a mesma coisa, e as conversas, embora ainda pontuais,

pareciam transcorrer com maior naturalidade do que as habituais perguntas e

respostas que caracterizavam as comunicações iniciadas por mim. Falamos

sobre onde comprar os materiais, sobre como era confuso o centro de Porto

Alegre e sobre a refeição que logo seria servida, e que empolgava mulheres e

crianças ali presentes.

Naquela configuração eu era ainda uma xinhorá (corruptela da palavra

senhora utilizada para se referir às mulheres não-indígenas), porém naquele

contexto eu me tornei diferente dos demais juruá presentes. Entendi ali que,

embora eu ainda fosse encarada como uma fonte de recursos, como os outros

juruá, a possibilidade de comunicação na língua delas (ore ayvu, mbyá ayvu) me

diferenciava dos demais.

Eu não comi da refeição oferecida pelos visitantes. Vitorina que, assim

como muitas mulheres adultas e crianças, se encontrava nas imediações da

escola, como se esperasse por algo, me levou para comer em sua casa: galinha,
159

arroz e suco em pó. Ela e seu marido almoçaram junto comigo, um pouco mais

tarde ela e suas quatro filhas participaram também da refeição junto aos

visitantes. Seu marido não foi ao encontro de sua esposa e de suas filhas que

comiam com os juruá, tendo como eu se dado por satisfeito com aquele último

prato do dia. Entre os comensais dos visitantes vi apenas dois homens adultos,

entre eles o cacique que organizava o evento e era, por sua função, o “porta-

voz” da aldeia como um todo na interlocução com os visitantes juruá.

Evento 2:

Na manhã de domingo esperava ir com Vitorina e suas filhas ao Brique da

Redenção, como havíamos combinado no dia anterior. Antes das 6 horas da

manhã eu já estava fora da barraca, deixando claro que as acompanharia. No

entanto, enquanto eu fui ao banheiro elas sumiram do pátio. Imaginei que haviam

entrado novamente em casa para terminar de se arrumar e me sentei numa

cadeira na varanda esperando que aparecessem no pátio para sairmos juntas

da aldeia. Demorou até que me desse conta de que estava tudo silencioso

demais. Elas haviam partido silenciosamente enquanto eu estava no banheiro.

Fui ao encontro delas e as alcancei no ponto de ônibus junto a muitas

outras mulheres e crianças que carregavam muitos artesanatos e plantas para

venda57. No ponto minha anfitriã e suas filhas agiram com distância, quase como

57 O ônibus rumou para a cidade naquela manhã de domingo com bem mais do que a metade
dos passageiros sendo pessoas mbya. Muito mais crianças do que adultos. Todos carregando
seus artesanatos para vender no Brique. Vi apenas um homem adulto, a grande maioria eram
mulheres. O homem era bastante jovem e dividia com uma menina (cerca de 18 anos de idade)
160

se não nos conhecêssemos. Isso que me lembrou a atitude reticente em relação

a mim poucos dias antes, quando estavam recebendo visitas de seus parentes

e pareciam não querer demonstrar intimidade ou receptividade em relação ao

visitante juruá. Uma atitude inversa àquela que havia experienciado no dia

anterior por ocasião da visita dos evangélicos.

A oscilação comportamental em relação à minha presença entre eles

certamente obedecia a uma ressignificação da minha alteridade de acordo com

o contexto. Diversas operações deste tipo, complementares e simétricas,

ocorrem entre os meus interlocutores mbyá neste trânsito entre aldeia e cidade.

E defendo a hipótese de que são justamente esses mecanismos que garantem

o equilíbrio entre parentes coresidentes, controlando faccionalismos no contexto

aldeão através dos reposicionamentos da oposição Nós x Outros que a situação

de uma aldeia em perímetro urbano oferece.

III.III.II - Entendendo o motivo dos insucessos: do papel dos homens numa

família mbyá e os limites do contato.

Pelo que observei em aldeias, tanto no período narrado até agora, quanto

no período que narro em seguida, em situação ideal uma família tem como seu

“porta-voz”, sua voz para fora, nas relações dentro da aldeia, um homem, a figura

o cuidado de um bebê de colo. Veremos no capítulo seguinte que é relativamente comum ver
homens participando indireta e pontualmente no porarõ de suas companheiras, sobretudo,
quando estas carregam consigo crianças muito novas.
161

do “pai de família”, que em sua versão magnificada torna-se o xeramoi da família

extensa. Isso não quer dizer que as mulheres dentro de uma família mbyá

estejam submetidas a esses homens, mas quer dizer que a forma como se

relacionam com o juruá idealmente passa pela figura desse agente

preferencialmente masculino.

O homem mbyá encarregado da comunicação em português com agentes

externos usa a fala firme, porém, no que se refere à captação de recursos dessa

mesma alteridade, deparamo-nos com a noção de vergonha (-xymba) do

homem. Ao mesmo tempo cabe às mulheres captar diretamente recursos junto

aos não indígenas, seja através da venda de artesanatos ou da aceitação de

doações. E para afirmar isso remeto à justificativa recorrente entre as mulheres

que entrevistei na cidade para a quase completa ausência de homens na

atividade porarõ. Elas diziam que eles não faziam por “vergonha”.

Aos homens mbyá não é interessante lidar com o fluxo direto de bens

doados diretamente pelos juruá, cabendo às suas mulheres atuar como

mediadoras no fluxo desses recursos, que adquirem diversos formatos como

veremos no próximo capítulo. Aos homens cabe, nessa relação com a alteridade,

a fala e o estabelecimento dos limites objetivos, seja na forma de lideranças, seja

na forma de “porta-vozes” de suas famílias.

Relembrando os temas discutidos no primeiro capítulo, sobre o valor que

a linguagem humana e a alma enquanto palavra possuem na cosmologia mbyá,

associando-se à personitude ou a perspectiva propriamente humana (mbyá) e a

retidão do corpo, podemos interpretar o fato de haver muito mais homens

fluentes em português do que mulheres. Isso porque os corpos femininos, por


162

sua temperatura mais elevada seriam mais suscetíveis aos processos de

transformação indesejados (jepota). Desenvolvo melhor essa hipótese no final

do Capítulo IV.

O único motivo que pode tornar interessante a recepção de um juruá em

uma casa mbyá naquele contexto é justamente o tipo de aporte material que flui

do primeiro para o segundo. Mas até que ponto esses dois pressupostos de

gênero e de relação com essa alteridade específica podem conviver na casa de

uma família mbyá? A experiência demostrou que não há muita elasticidade neste

quesito. Penso com base nos dados já expostos e naqueles que exponho na

sequência, que foi justamente o fato de eu estar lidando com uma família padrão,

ou seja, uma família com um homem ocupante do lugar de “porta-voz” que não

permitiu uma imersão relacional naquele grupo doméstico. Conclusão que o

curso dos eventos viria a comprovar, na medida em que passei a lidar com uma

família que se afastava deste padrão.

Um outro fator deve ser adicionado a essa reflexão. Receber um juruá e

tudo aquilo que ele tem a oferecer, ou seja, receber em casa um juruá justamente

por tudo aquilo que ele tem a oferecer materialmente (recursos dos quais aquele

que se dispôs a recebê-lo usufruirá somente com os seus), é uma decisão que

acarreta consequências diante dos demais. Trata-se de uma responsabilidade

que se assume.

Aquele que se dispõe a receber tal Outro dentro de uma aldeia se

responsabiliza pelo comportamento deste diante dos demais. Responsabiliza-se

também pela manutenção do bem-estar deste junto ao seu próprio lar,

responsabilidades que poucos ali gostariam de tomar para si, uma vez que
163

imbricadas essas responsabilidades mexem com o equilíbrio de uma casa,

tendendo a provocar ainda mais dissensos entre parentes.

Se os homens respondem pela família diante de seus iguais dentro da

aldeia e entre aldeias, e se seria por meio das mulheres que a entrada desse

juruá-fonte de recursos se daria, supõe-se que seria a mulher que deveria se

responsabilizar pela presença desse Outro (que está ali por algum tipo de

curiosidade e para ganhar dinheiro a partir deles) no convívio dos demais,

parentes seus ou não. Todos os fatores expostos alterariam a forma de lidar com

os recursos no seio da família nuclear, e talvez mesmo na configuração dos

fluxos das coisas dentro de uma família extensa: gerando obrigações de

generosidade, por exemplo. Logo, essa é uma escolha que dificilmente seria

realizada por aqueles meus interlocutores.

III.IV – Uma brecha.

Na cidade, enquanto procurava pelos itens que as mulheres mbyá me

haviam pedido no final de semana anterior durante o evento organizado pelos

evangélicos, recebi a atenção de uma jovem mbyá que fazia porarõ. Talvez não

fosse coincidência que a segunda mulher a me dar alguma atenção naquele

contexto morava justamente na casa de Niria (a mulher que eu vinha procurando

sem sucesso na aldeia).

Nos primeiros momentos de nossa interlocução Yvá dizia apenas ser

sobrinha daquela senhora. Ela estava com 19 anos e dizia ter chegado naquela

aldeia há cerca de um ano, vinda de uma aldeia da região metropolitana de São


164

Paulo. Ela era parente consanguínea de diversos membros do pessoal da Tekoa

Mbo’y ty , onde eu havia trabalhado antes, e por esse motivo mostrou-se ainda

mais aberta do que Niria à ideia de me receber em sua casa.

Muito solícita, prontamente guardou as pouquíssimas coisas que

pousavam sobre seu pano de porarõ e se ofereceu para me guiar pelo centro

até as lojas de materiais de artesanato. Rapidamente descobri que ela estava

tão perdida quanto eu, logo o motivo de tanto interesse em me ajudar certamente

era outro.

Assim que finalmente achamos as lojas de materiais para artesanato, Yvá

passou a escolher o que desejava. Eu, feliz em achar pela primeira vez uma

mbyá de fato interessada em conversar comigo, fui deixando que ela escolhesse

o que quisesse, ao passo em que separava os pedidos das outras mulheres da

aldeia. Yvá ficou com a maior parte das compras ali realizadas. Em seguida, me

pediu para passar no mercado mais próximo com ela e comprar itens

alimentícios básicos da dieta de sua família (e da maioria das famílias que

conheci nas aldeias da Região Metropolitana de Porto Alegre): arroz, feijão, trigo,

frango, macarrão, molho de tomate pronto e erva-mate.

Depois disso caminhamos para o ponto final de seu ônibus carregando

bastante peso: aquela compra seria uma contribuição dela para sua casa. E

mesmo depois que eu entrei para o convívio da família em questão, como ficará

claro ao longo da exposição, tudo o que vinha de mim era tido como uma

contribuição de Yvá para a casa onde morava.


165

Pedi para visitá-la na aldeia no dia seguinte e a resposta foi positiva; ela

disse que cozinharia para mim e me apresentaria à sua tia, a dona da casa. E,

sabendo que eu andava acampando na aldeia e que tinha “parentes em comum”

com ela58, convidou-me para dormir lá. Soube, chegando na casa de minhas

novas anfitriãs, que o marido de Níria, a “porta-voz”, daquele pessoal havia

partido alguns meses antes para viver em outra aldeia, ou seja, nada as impedia

de receber uma fonte de recursos ali.

Foi a partir daquela configuração propícia que minha permanência em

campo se tornou possível. Mesmo que essa entrada ainda estivesse submetida

a controles e limitações por parte de meus anfitriões meu trabalho de campo

passou a ser mais sistemático, assim pude me integrar, e observar o cotidiano

daquele grupo doméstico, Retarã Kuery (grupo de parentes encabeçado ou não

por um xeramõi59).

58 No Jaraguá ela teria assistido a um show dos Moleques da Pisadinha, banda dos mbyá junto
aos quais eu havia realizado trabalho de campo e que seriam seus primos paralelos (mantendo
contato regular com alguns deles via Facebook). A despeito do reconhecimento desse vinculo
de parentesco, um breve relacionamento se iniciou entre Yvá e um dos sobrinhos de seus primos
(a que ela se referia como Kuaray Kamba’i, apenas) por ocasião desse baile no Jaraguá. Nas
palavras dela: “namorei um menino de lá, um kamba’i (escurinho). O nome dele era Kuaray”. Em
outras conversas sobre esse ocorrido que tanto a marcara descobri que na noite deste baile os
dois ficaram juntos e ela o levou para dormir em sua casa. Porém no dia seguinte ele voltou para
sua aldeia no Rio de Janeiro. O rapaz a convidou para ir com ele, mas ela declinou o convite
dizendo que visitaria em outra ocasião. Acabou indo morar no Rio Grande do Sul, mas via em
mim sua chance de um dia se mudar para a aldeia daqueles seus parentes no Rio de Janeiro e
volta e meia tocava nesse assunto.

59 Para informações detalhadas sobre a conformação de alguns Retarã Kuery que já se fixaram
no Cantagalo ver Gobbi (2008:75).
166

III.IV.I - Fragmentos de uma casa

Cheguei à aldeia no dia seguinte por volta das 16 horas. Apenas uma

menina, então com 10 anos de idade, se encontrava na casa. Ela sabia que uma

xinhorá chegaria procurando por Yvá naquela tarde e por isso me deixou entrar

e esperar enquanto Yvá não voltava da escola60. Yvá não me esperara em casa,

pois eu me atrasara propositalmente com medo de chegar muito cedo, no horário

do almoço como havíamos combinado, e ser convidada a partir quando se

aproximasse a hora de escurecer.

Yvá era uma mulher que falava português com uma fluência acima da

média das mulheres que conheci na região metropolitana de Porto Alegre, mas

não era a única e nem era totalmente fluente, era apenas aquela, dentre as que

conheci ali, que mais se interessava em falar na língua do branco (juruá ayvu).

Coincidentemente, ou não, Yvá também foi a única mulher de outro estado com

a qual eu vim a estabelecer relações no Rio Grande do Sul. Ela vinha de uma

aldeia urbana e densamente povoada situada na cidade de São Paulo. Outro

fator relevante para se pensar essa abertura incomum ao diálogo com uma

xinhorá era o fato de que ela tinha uma inserção muito instável no grupo

60 Na verdade, Yvá não estava propriamente na escola, mas nas imediações da mesma utilizando
o sinal de internet da escola, que era aberto e abrangia toda a área do campinho, para acessar
a internet com seu celular. Embora os funcionários da escola insistissem que ela voltasse a
estudar essa ideia passava bem longe de seus planos, uma vez que ela considerava seu domínio
do português suficiente para conseguir até mesmo “um emprego fora da aldeia” como comentou
e cogitou em diversos momentos.
167

doméstico onde se encontrava. Sua idade, 19 anos61, também pode ter contado

para esta disponibilidade. Porém, outras jovens da mesma faixa etária foram

abordadas por mim em diversos contextos e a resistência à comunicação era

igual ou maior à das mulheres mais velhas.

Pouco mais tarde Yvá chegou e depois dela mais dois jovens, um menino

e uma menina, também moradores daquela casa. Por ocasião da chegada de

Niria, que voltava de um dia de porarõ no centro de Porto Alegre, as crianças

receberam uma ligação no celular da casa. Então elas desceram a colina que dá

acesso à aldeia para encontrá-la no ponto de ônibus (ver mapa da aldeia no

início deste capítulo) e ajudá-la a subir com as coisas que trazia: artesanatos e

compras.

Naquela primeira noite na casa de Niria tudo se passou como uma

apresentação formal. Fui apresentada também à sua filha mais velha, seu genro

e sua netinha menor. Depois disso sentamos em volta do fogo na construção

utilizada como cozinha, tata ypy, e tomamos chimarrão enquanto ela e Yvá

fumavam o petyguá.

Naquele espaço permanecemos por algumas horas nós três e a filha mais

velha de Niria se juntou a nós posteriormente. Ela morava na segunda casa do

grupo doméstico, junto com seu marido e a filha menor. Aquele momento simples

e prolongado ocorreu como uma espécie de reunião enfumaçada pelo fogo de

chão e pelos petyguá. O ambiente enfumaçado e o tom das falas ali remetiam

61 A mesma idade de Ane que, embora tivesse sido minha melhor interlocutora até então, nunca
me ofereceu qualquer abertura para minha permanência em sua casa.
168

vagamente ao que costumava observar nas noites na Opy da aldeia no Rio de

Janeiro, a despeito da falta da maior parte dos elementos rituais.

Mais uma vez me apresentei. Mais uma vez falei da minha vida na aldeia

mbyá do Rio de Janeiro e assim começamos a achar nossos conhecimentos em

comum na rede de parentesco mbyá estendida pelas aldeias na região sudeste

do país. Coincidentemente Niria, que nascera em Cacique Doble, assim como

meus interlocutores mais velhos na aldeia onde eu havia morado no Rio de

Janeiro, era parente de Zaira – a mulher que me adotara na Tekoá Mbo`yty

(Camboinhas – Niterói).

As três mulheres adultas que me recebiam ali, porém, classificavam

pejorativamente meus interlocutores mbya anteriores como “misturados” ou

ojejavypa, o que servia para insinuar que eles não seriam propriamente mbyá 62.

Além das Terras Indígenas da Guarita e da Estiva, também por meio da T.I. do

Jaraguá em São Paulo, de onde viera Yvá, meus novos interlocutores estavam

diretamente ligados ao pessoal de Zaira, Zaira Kuery (como falavam), por laços

de parentesco suficientemente próximos que justificariam, por exemplo, visitas

interestaduais.

Ficou claro naquela reunião de apresentação que se passava no tata ypy

do grupo doméstico encabeçado por Níria que aqueles que ali me recebiam não

levavam a sério nem o parentesco que eu sustentava orgulhosamente com

aqueles mbya do RJ que me haviam “adotado”. Menor relevância ainda tinha o

62 Assim como todos os mbyá com os quais conversei sobre o pessoal de Zaira desde minha
chegada ao estado.
169

meu nome de batismo mbyá dado por Zaira enquanto xamã ou kunhã karaí

daquele grupo, uma vez que juruá não tem nhee como os mbyá, ou pelo menos

não um nhee que revele seu nome ao karaí.

Minhas anfitriãs, Níria e Kerexu (sua filha mais velha) diziam estar

morando naquela aldeia há cerca de dez anos. Niria que também viera da Terra

Indígena da Guarita, criara seus filhos mais velhos na Terra Indígena da Estiva.

Mudou-se desta última para a Terra Indígena onde então residia junto com

alguns de seus filhos em busca de mais espaço para plantarem.

Kerexu e Yvá concordaram, como numa apresentação da situação do

grupo delas, que o cacique63 não os atendia como aos demais grupos

domésticos daquela aldeia. A reclamação iniciou-se pelas faltas ligadas ao

comportamento de parente que esperavam dele.

De acordo com Yvá, o cacique teria sido criado por sua tia, Niria, junto

com e como os filhos dela na Aldeia da Estiva. Atualmente como cacique, ele

estaria responsável pela redistribuição de recursos comuns da aldeia, como a

água64, e nisso ele falhava, segundo elas, justamente com aquele pessoal, seus

parentes que moravam mais perto da saída da aldeia do que dos demais

moradores65. Diferentemente de Vitorina, que nunca tematizou a “pobreza” de

63 Outras denúncias, mais graves, foram feitas posteriormente.

64 A rede de água da aldeia fora feita em meados do ano 2000 e era alimentada por uma caixa
d’agua instalada pela FUNASA no mesmo ano.

65 A localização distante fora utilizada para justificar de modo técnico a ausência de fornecimento
de água para aquele grupo doméstico algumas vezes.
170

sua família em nossas conversas, minhas novas anfitriãs reclamavam da falta

de apoio do cacique enquanto passavam por necessidades, o que insinuavam

ocorrer frequentemente.

Mas o principal problema do ponto de vista de Niria era a falta de visitas 66,

prestando realmente pouca atenção aos argumentos das outras duas mulheres.

Ou seja, a falta do comportamento corriqueiro esperado de um parente,

sobretudo em se tratando de um filho de criação já adulto e residente na mesma

aldeia era a real falta daquele homem para com aquela senhora, na perspectiva

dela.

A forma como essa falta se manifestava dolorosamente na fala da

matriarca inflamava ainda mais o discurso das outras duas, sua filha e Yvá 67 em

suas acusações de avareza em relação ao cacique. As preocupações de ordem

material eram enunciadas pelas duas mulheres mais jovens. As imagens de

pobreza e necessidade vieram a ser articuladas reiteradamente em variados

contextos. O que depois eu percebi não ter consequências práticas nas relações

com o cacique, que minhas interlocutoras procuravam sempre manter da forma

mais amistosa.

66 Como já deve ter ficado claro, àquela altura eu não me encontrava em condições de questionar
meus anfitriões nem muito menos de confrontar o cacique ou quem quer que fosse acerca das
alegações feitas. Yvá falava até mesmo em denunciar a situação precária e injusta da família de
Niria no facebook, o que aquela não permitia que fizessem por ser “boazinha demais”.

67 A posição ambígua e problemática desta personagem no quadro de parentesco daquele grupo


doméstico será abordada em profundidade no decorrer do capítulo.
171

Tais insatisfações culminaram em uma sequência de gozações por parte

das três mulheres em relação ao cacique, sobretudo ao seu nome: Gwyrá

(pássaro). Um nome impossível, inexistente, que não vem de nenhum Nhee Ru

Ete (a explicação sobre onomástica mbyá consta no primeiro capítulo).

Perguntavam-se ironicamente quem teria sido o karaí que viu aquele nome

inexistente para ele e riam folgadamente sempre que falavam aquele nome, a

risadaria se repetia toda vez que alguém lembrava e falava novamente o nome

dele, mesmo na manhã seguinte68.

Configuração do grupo doméstico de Níria.

O terreno ocupado pela família de Niria ficava próximo à passagem de

entrada e saída “oficial”69 da aldeia, ou seja, qualquer pessoa que chegasse na

aldeia em poucos segundos passava pelas casas onde minha anfitriã vivia com

seus parentes. Seu grupo doméstico tinha três construções. Uma casa onde

morava Niria (60 anos), sua filha mais nova Tamía (12 anos), dois de seus

“netos” Priscila e Ademilson (filhos de Kerexu com 11 e 14 anos

respectivamente)70 e Yvá (19 anos). Na outra casa morava sua filha Kerexu (28

68 Para outros exemplos da importância do humor para a manutenção das relações ideais entre
coresidentes ver Anthropology of Love and Anger, em particular o artigo de Joana Overing.

69 Havia outros caminhos de entrada e saída pela mata, mas nenhuma como essa passagem
que desembocava numa estrada (uma via principal de pouco movimento) e anunciava o início e
a condição da Terra Indígena por meio de uma placa da FUNAI. Por isso me refiro àquela
passagem como “entrada e saída oficial da aldeia”.

70 Estes, assim como suas filhas, e Yvá a chamavam de “mamãe” (em português mesmo no meio
de conversas em mbyá), por isso ao falar sobre seu parentesco em relação a sua avó essas
172

anos) com seu atual marido Jonas (28 anos) e uma filha de menos de um ano

idade. A terceira construção era onde se fazia o fogo de chão, construção

chamada tata ypy (lugar do fogo), utilizada para fazer a maior parte das refeições

a despeito da existência, na casa de Kerexu, de um fogão a gás utilizado

exclusivamente para assar bolos de caixinha e pães artesanais.

Além das filhas de Níria que moravam com ela, Tamía e Kerexu, ela tinha

outros três filhos morando em outras aldeias das cercanias da Região

Metropolitana de Porto Alegre. Eram eles: Jekupe, então com 25 anos, que até

pouco tempo estava morando com a mãe e havia se mudado para uma aldeia

em Osório (supostamente em busca de trabalho nas propriedades em torno da

aldeia), Xunu, com 30 anos de idade, que havia permanecido na aldeia da Estiva

e ali se tornara professor indígena atuando nas escolas da aldeia da Estiva e da

aldeia do Cantagalo e Jaxuka, com 21 anos de idade, que por motivo de

casamento se mudara para a aldeia de Interlagos onde, durante meu trabalho

de campo, conseguiu emprego como merendeira na escola da aldeia (mesma

ocupação que sua irmã Kerexu tinha na escola da aldeia onde habitava junto ao

grupo doméstico de Níria).

Xunu, Kerexu, Jekupe e Jaxuka foram os filhos da primeira união de Níria

e Tamía foi a única filha da segunda união da mesma. Além destes alguns outros

nasceram, porém não sobreviveram para além da primeira infância, me contou

Níria numa manhã de conversas e chimarrão no tata ypy. Embora o assunto

crianças sempre falavam, ela é mais da minha mãe, mas eu chamo ela de mãe e minha mãe de
Kerexu.
173

fosse triste, minha interlocutora demonstrava satisfação pelo fato de atualmente

não ser mais algo tão corriqueiro a mortalidade infantil entre os mbyá.

Nota-se pelas fotos abaixo que as casas do pessoal de Níria são feitas de

diversos materiais como taquara, tábuas de outras madeiras e telhados de zinco.

Nenhuma dessas construções era feita em alvenaria, como as que a maioria dos

grupos domésticos da aldeia possuíam por doação feita no ano 2000, cinco anos

antes da data em que afirmaram ter se mudado para aquela aldeia, pela

Arquidiocese de Porto Alegre.


174
175
176

Havia ali também um banheiro de alvenaria (comum aos demais grupos

de casas), que passava a maior parte do tempo inutilizado pela falta de

direcionamento da água encanada71 para aquele grupo, um pequeno chiqueiro,

um galinheiro, um cercado para os gansos, um abrigo para os patos e um

encanamento na beira da mata para lavar as roupas e a louça. Para tomarmos

banho íamos até uma pequena retenção de água no meio de um córrego estreito

que era compartilhada com outros grupos familiares, numa trilha dentro da

mata72. As margens dessa trilha possuíam pequenas entradas que nos serviam

como sanitário.

71 Penso que por ninguém reclamar a falta de uso daquele banheiro e por acharem perfeitamente
normais os recursos que tinham para tomar banho e fazer suas necessidades, possivelmente se
o abastecimento fosse normalizado aquele banheiro seria tão utilizado quanto o fogão a gás.

72 O rio que atravessa a aldeia não estava em condições apropriadas para banho.
177

Na primeira noite em que estive ali reservaram exclusivamente para mim

o cômodo com maior privacidade e conforto e os melhores cobertores, o que não

voltou a acontecer. Com minhas permanências mais longas na aldeia aquele

cômodo voltou a ser de Yvá e eu passei a ficar numa cama no mesmo cômodo

onde dormia o jovem Ademilson. Depois daquela instalação, por causa do

aumento da frequência de visitantes naquela casa, voltei para o primeiro

cômodo, onde havia uma “cama de viúva” que passei a dividir com Yvá. Quando

os visitantes eram Jaxuka e seus filhos, com ou sem seu marido, eu e Yvá

dividíamos a cama contígua à cama de Ademilson.


178

Imagens da vida entre meus novos anfitriões

Na primeira manhã que passei ali tomamos chimarrão e comemos reviro

(farofa feita de farinha de trigo, óleo, água e sal formando uma massa que ao ser

assada deve ser constantemente mexida para que ganhe sua consistência

flocada) sentadas no tata ypy, eu, Kerexu, Niria e Yvá enquanto os mais jovens

se arrumavam para ir às suas escolas. Ali ainda as mulheres me ensinaram a

fazer “café guarani”, uma opção para os dias em que faltava pó de café: coloca-

se numa caneca (de plástico, porcelana ou metal) um pouco de açúcar, sobre o

açúcar coloca-se um pequeno pedaço de lenha em brasa mexendo-o com uma

colher. Logo em seguida adiciona-se água fervente e por fim retira-se o pedaço

de madeira apagado pela água.

O sabor lembrava um café bem fraco, aquele que me foi apresentado

como uma forma de lidar com a escassez de recursos para obtenção do produto

industrializado café, mas ninguém afirmou não gostar do “café guarani”.

Pareciam, na verdade, se desculpar por serem pobres e não poderem oferecer

essa bebida que os juruá tomam pela manhã e que eles ofereceriam e tomariam

se pudessem. Todavia não falavam daquilo como um problema, pois tinham

aquela alternativa que me apresentaram com satisfação.

Depois do café fui até a casa de Vitorina, entreguei-lhe parte do material

de artesanato, erva-mate e fumo em agradecimento pelo período em que ela me

recebeu no seu pátio. Aproveitei para pegar com ela meus cobertores e saco de

dormir térmicos que levaria para a casa de Niria. Conversamos um pouco e

expliquei que dali em diante eu ficaria na casa dela, não mais precisando
179

acampar. A notícia pareceu não provocar impacto nenhum sobre minha

interlocutora, sorriu mansamente como era seu costume.

Passei também pela casa do cacique a quem também informei que ficaria

hospedada na casa de Niria, sua mãe de criação, informação que ele recebeu

com surpresa e desagrado. Entreguei-lhe as coisas que sua esposa me havia

pedido durante a visita dos evangélicos. Avisei que precisaria visitar minha

família no Rio de Janeiro, antes de me hospedar definitivamente na casa de

Niria. Ele então aproveitou para me pedir que trouxesse de lá coisas como

pulseiras de linha, anéis de coco, sementes grandes para vender na cidade como

os camelôs, os “hippies” e os pongé (kaingang) vendiam.

Quando retornei ao Rio Grande do Sul, depois de duas semanas,

encaminhei-me de volta para aquela casa, com o fim de ali passar a residir.

Minha volta se deu com naturalidade e meus anfitriões pareciam felizes com a

minha permanência ali, contudo, quando minha estada se prolongou por mais de

três dias meus novos anfitriões começaram a apresentar motivos de diversas

ordens que justificariam (do ponto de vista deles) o pedido para que eu

permanecesse algum tempo na cidade antes de voltar para lá.

A primeira vez que isso ocorreu foi porque todos iriam sair da aldeia, com

diferentes destinos, ao mesmo tempo e eu não poderia ficar ali sozinha, quando

essa justificativa se repetiu insisti em acompanha-los onde fossem, anulando o

poder daquele argumento de me deixar afastada. Numa outra oportunidade

(para eles), a ida de Yvá ao hospital numa emergência de saúde fora o indicativo
180

de que eu não deveria ficar, pois ela seria “responsável” 73 por mim ali. Niria havia

saído também e sua filha mais velha disse que eu deveria esperar notícias da

cidade e talvez, em caso de necessidade, ir até o hospital para ajudar em alguma

coisa.

Havia ali uma clara contenda entre Yvá e Kerexu e a segunda com o

tempo passou a deixar claro que sua antipatia pela jovem (que àquela altura eu

ainda não sabia ser sua cunhada) se estendia a mim, ou seja, ela não me

“cuidaria” em favor para a outra. Os pormenores das atualizações das relações

de parentesco serão demonstrados e analisados no tópico seguinte. Por ora

cabe ressaltar que foi aquele evento que me fez começar a perceber a

importância e a profundidade dessa “responsabilização” pelo hóspede juruá.

Retomarei esse tema adiante.

Com o meu recorrente retorno e o aprofundamento de nossas relações, o

uso desse tipo de artifício foi rareando e vivemos períodos de “alegria” (-vyá)

juntos. Ou seja, vivendo juntos o cotidiano daquele grupo familiar relativamente

isolado do resto da aldeia. Todavia, com a intensificação das visitas de parentes

de outras aldeias, os pedidos para que eu partisse e voltasse depois voltaram a

ocorrer, sob a alegação (muito pertinente) de falta de espaço.

No entanto, além da falta de espaço um outro motivo parecia pertinente

nessa demanda de meus anfitriões pela minha ausência: a adoção de um branco

73 Embora esse termo nunca tenha sido utilizado por meus interlocutores diversos eventos
apontam para esse esquema sociológico de recepção de uma alteridade no meio doméstico.
Aprofundarei minhas considerações acerca desse aspecto de minha relação com meus
interlocutores em aldeia na medida em que a exposição leve ao acúmulo de dados sobre o tema.
181

não era bem vista entre os demais moradores daquela aldeia e os visitantes de

outras aldeias também produziam julgamentos desfavoráveis sobre aquela

atitude de seus anfitriões. Era um motivo de comentários jocosos, por exemplo,

voltar comigo do mercado carregando sacolas colina acima em presença de

grupos exclusivamente mbyá que estivessem pelo caminho. Havia também

momentos nos quais aqueles que me acompanhavam pareciam tentar

invisibilizar suas relações comigo, negando interlocuções, enfatizando

comunicações exclusivas com o grupo mbyá.

Em outras palavras, quando eu estava com uma ou mais amigas mbyá e

chegávamos em alguma concentração de outros mbyá, a tendência era que me

abandonassem para chegar mais rapidamente ao grupo e uma vez que eu

mesma tentava me reaproximar do grupo as mulheres começavam a falar entre

si rapidamente, de modo que nem mesmo conseguia acompanhar a conversa

quanto menos participar. Em casa, isso ocorria por ocasião de visitas, fora do

âmbito doméstico esse tipo de situação se repetiu algumas vezes no campinho

em frente à escola e mesmo na cidade durante o porarõ, em situações muito

similares àquelas que descrevi no tópico anterior sobre o período em que eu

ainda acampava na aldeia.


182

Motivos para lidar com as consequências negativas de se receber um juruá

em casa: os olhares dos outros.

Ainda no início de minha permanência junto àquele grupo doméstico,

combinei a realização de compras semanais para Níria e sua família a fim de

justificar minha presença ali. Ficou acertado que a própria Níria me

acompanharia, pois eu não tinha recursos para dar conta de todas as demandas

que surgiam quando eu ia ao mercado Bom Lami74 com Yvá. Combinamos

também que essas compras semanais seriam no valor de R$100,00. No entanto,

na primeira ida ao mercado após essa conversa, a própria Niria sugeriu que Yvá

me acompanhasse e me “ajudasse” com as compras que extrapolaram bastante

o valor combinado. E dessa forma ocorreu semanalmente até o fim do trabalho

de campo ali.

Essas compras semanais, e outras que iam sendo feitas ao longo dos

dias, não faziam com que a minha presença ali fosse indispensável ao grupo.

Em determinada ocasião a própria Yvá me sugeriu, na presença de Níria, que

assim que passasse o frio eu voltasse a acampar, ali mesmo no terreno daquele

grupo doméstico. Ao que eu retruquei negativamente, porém tudo indicava que

a minha presença ali nunca seria inteiramente bem quista, eu nunca deixaria de

74 Bem mais distante, para irmos até aquele mercado precisávamos pegar um ônibus. Porém
eles realizavam entregas na aldeia. Além disso, o acampamento mbyá do Lami ficava muito
próximo daquele mercado, o que trazia para aquela região um intenso fluxo de pessoas mbyá
das aldeias Cantagalo I e II, Itapuã e Lomba do Pinheiro, recebendo benefícios no caixa
eletrônico, abastecendo suas casas e visitando parentes.
183

ser uma xinhorá na casa deles, com todas as mazelas que a adoção daquela

alteridade trazia para o equilíbrio daquele grupo familiar.

Um dos exemplos dessa sensação de estar sob o olhar de alguém de fora

ocorreu numa tarde de domingo enquanto comíamos tangerinas na sala de casa.

Tamía me perguntou se poderia jogar a casca da fruta no chão (o que era o

habitual para qualquer resíduo), respondi que a casa era dela e era ela quem

deveria me dizer o que se poderia, ou não, fazer ali. Ela então me respondeu

“papel não pode, né?”.

Interpretei aquela autoridade higiênica que a menina de 12 anos me

conferia como um reflexo da educação escolar, mas essa não é uma resposta

fechada. São diversas as facetas da vergonha e da sensação de inadequação

que transparecem na relação das mulheres mbyá com o modo de ser dos juruá.

Quero dizer com isso que sempre me deparei em campo com a demonstração

por parte de minhas interlocutoras de uma sensação de inadequação ao

comportamento que o juruá supostamente consideraria correto.

Formas específicas de não-comunicação.

Por outro lado, ou de maneira complementar, na aldeia a atmosfera de

segredo relatada por diversos guaraniólogos desde Nimuendaju (1987), bem

como as constantes concordâncias sorridentes que nada significavam serviam

aos Mbyá como que um posicionamento de resistência reticente em relação a

ideia de dar satisfações aos outros (sobretudo aos juruá, fossem eles

funcionários do Posto de Saúde ou da escola, transeuntes interessados na


184

situação das mulheres durante o porarõ na cidade ou pesquisadores curiosos).

O que poderia ser interpretado como uma simples falta de vontade de responder

à curiosidade do juruá.

Esta postura permaneceu sendo a tônica da nossa relação até os

momentos finais de minha permanência naquela casa. Eles costumavam ser

breves e vagos demonstrando irritação quando eu começava a questionar sobre

os laços de parentesco e as práticas religiosas. Em determinado momento a

resposta que mais ouvi foi “Ndaikuaai” (eu não sei), o que me fez entender que

a observação participante deveria ser o método preponderante de minha

pesquisa até o momento em que as entrevistas fossem possíveis.

Desejo ressaltar, com esse breve tópico, que o interesse demonstrado em

se adequar ao comportamento que eu como juruá supostamente consideraria

correto (quanto a coisas simples como jogar resíduos no chão da sala, tomar

refrigerante diretamente da garrafa pet de 2 litros ou comer sanduíches sem o

uso de guardanapos, entre outros) não pareciam ser necessariamente atos de

submissão ao olhar do não-indígena. Reproduzir os padrões comportamentais

do outro, aprender a tornar-se outro na presença de outros pareciam antes

formas de ampliar e diversificar um léxico comportamental. A percepção de uma

atitude insubmissa é corroborada na medida em que demandas minhas,

especialmente por informações, não eram necessariamente atendidas e não

havia cerimônia em deixar claro que meus questionamentos causavam

impaciência. O que demonstra uma atitude nada subserviente de meus anfitriões

em relação a mim.
185

III.IV.II – Os dias e as relações: parentesco, períodos de crise e estratégias

de estabilização relacional.

Descobri com a internação de minha interlocutora principal, Yvá, que ela

estava grávida de um dos filhos de Niria. Aquele rapaz que se mudara dali

recentemente para uma aldeia no município de Osório/RS, supostamente para

trabalhar para os juruá no entorno. Soube também que a mudança do irmão, que

acarretou no abandono da companheira grávida no grupo doméstico de sua mãe,

era encarada por sua cunhada coresidente e seus cunhados em outras aldeias

como culpa de Yvá75 o que a mesma rebatia e ao seu lado contava com o apoio

de Níria.

A segunda versão de Yvá sobre sua migração de São Paulo para o Rio

Grande do Sul não mais envolvia uma visita a irmã de sua mãe e seus familiares.

Depois de bastante tempo observando os constantes desentendimentos entre

Yvá e sua cunhada, minha principal interlocutora me contou que saíra da aldeia

do Jaraguá em São Paulo para visitar uma amiga que morava ali e só se mudou

para o grupo doméstico de Niria após o início do relacionamento com o filho da

mesma. Ou seja, o fato daquela senhora ser irmã de sua mãe não havia sido o

motivo de sua permanência naquela casa.

Foi em um baile de forró que ela se envolveu com Jekupe, mas nunca

ficou claro se o parentesco entre ela e a família dele era reconhecido desde antes

75 Como que numa repetição da premissa do mito no qual Nhanderu que abandona a esposa
grávida por culpa do comportamento dela própria (Pissolato 2007, Nimuendaju 1987, Prates
2014, etc).
186

daquele momento ou se fora elicitado (Wagner, 1974) apenas para justificar sua

permanência junto a Niria e seu pessoal mesmo após a partida de seu

companheiro. Até o nascimento de sua filha, no entanto, ela sustentava que viera

de São Paulo para ficar na casa de sua tia e assim começara a namorar o primo.

A segunda versão faz mais sentido na medida em que analisamos as tensões

existentes na relação entre ela e seus cunhados. O pai da filha que Yvá esperava

manteve o relacionamento a distância com ela nos primeiros meses após sua

mudança para outra aldeia, principalmente pelo telefone, mesmo assim eles

brigavam constantemente.

Jekupe raramente visitava o grupo doméstico de sua mãe, entretanto

sempre tínhamos notícias de seus frequentes deslocamentos entre outras

aldeias. Soubemos, por telefonemas e postagens no facebook, que ele visitava

regularmente aldeias muito próximas daquela onde moravam, o que desapontou

tanto Yvá quanto Níria que o aguardavam ansiosas. Além disso a rejeição de

Jekupe acentuou a hostilidade de Kerexu contra sua cunhada e coresidente Yvá.

Naquele período ele esteve também em uma aldeia em Angra dos Reis no Rio

de Janeiro e, por fim, casou e fixou-se em uma aldeia em Santa Catarina. O

rapaz de 25 anos tinha dois filhos com uma outra mulher moradora da aldeia do

Cantagalo, mas poucas informações me foram dadas a respeito dessa sua

primeira união.
187

Aspectos sobrecorporais da vida em família: afastamentos e continuidades

entre as pessoas mbyá.

De modo geral os dias na aldeia se passavam entre as atividades da casa:

alimentar os patos, os gansos, as galinhas, o porco, os cães, fazer comida, lavar

roupa, lavar louça, ver TV, lidar com a terra nos períodos de preparação, plantio

e colheita, ir ao centro da cidade (para quem fazia porarõ), ir à escola ou ao

campinho no centro da aldeia (para quem estudava ou trabalhava ali, ou para

aqueles que apenas queriam aproveitar o sinal de Wifi aberto ou socializar com

outros aldeões que ali tendiam a se concentrar em momentos específicos) e

depois dessas atividades sempre chegava a noite. Um pouco depois do

escurecer do céu o jantar era preparado por Niria ou Yvá e distribuído em pratos

feitos para todos os habitantes daquela casa (nem sempre Kerexu e seu marido

comiam conosco). Um pouco mais tarde fumávamos petyguá e tomávamos

chimarrão enquanto conversávamos sobre o dia. Entre si Niria, Tamía e Yvá

conversavam sobre outros habitantes da aldeia: quem ficou kau (bêbado), quem

chegou na aldeia, quem se foi, estavam sempre informadas. Eu ouvia mais do

que falava.

Por conta de sua frágil situação dentro do grupo familiar junto ao qual

estava vivendo, Yvá estava sempre “doente”, “com coisa ruim” mbae axy, com

sensação ruim na cabeça (akãraxy). Quem cuidava dela nesses casos era Niria,

com a fumaça (tataxi) de seu petyguá e suas rezas melódicas, no tata ypy ou na

sala de casa mesmo. Descobri observando os tratamentos oferecidos por Níria

que ali ninguém frequentava a Opy da aldeia, pois esta era muito distante do

terreno que ocupavam e o caminho até lá era muito escuro. Yvá, por exemplo,
188

dizia sentir falta dos cantos e danças noturnos que ocorrem nas Opy, mas

também dizia não sentir necessidade de frequentá-la ali. Isso porque Niria supria

“necessidades médico-espirituais” dos seus e de outros que a ela recorressem,

tal como faria um karaí ou uma kunhã karaí na Opy da aldeia.

Mesmo não frequentando a casa de rezas o petyguá era utilizado todas

as noites, junto com o chimarrão, em um “quase ritual” aparentemente informal,

cotidiano e doméstico, quando conversávamos calmamente, momentos que no

mais das vezes se passavam à beira do fogo no enfumaçado tata ypy. Outras

vezes menos frequentes, porém, esses momentos de fumar petyguá e tomar

chimarrão à noite ocorriam na sala de casa enquanto as crianças assistiam

novelas infantis do SBT.

Naqueles momentos noturnos de fumaça e chimarrão Niria tratava quem

a procurasse com queixas de saúde (fisiológica, mental ou espiritual: níveis não

necessariamente distinguíveis em diversas cosmológicas ameríndias, inclusive

a mbyá. Niria assim o fazia sempre que havia demanda. Esses tratamentos eram

realizados por meio de rezas, infusões e defumações. À diferença do que ocorria

na Opy, ali não cantávamos ou dançávamos, embora sobre a cama de Níria

existisse um mbaraka (violão) que só vi ser utilizado na casa por visitantes e de

maneira pontual e por Tamía no Brique, o que teria a finalidade de estimular

doações e vendas para a cestinha no pano de sua mãe.

Geralmente aqueles momentos noturnos se passavam da seguinte

maneira: após o jantar Niria, Yvá, Tamía e, raramente, Kerexu se sentavam à

beira do fogo de chão no tata ypy. No fogo sempre repousava uma chaleira

(pavá) e dele eram tiradas brasas com as quais acendiam o petyguá que
189

compartilhavam entre si Yvá. Tamía e Níria. Eu tinha meu próprio petyguá (no

início do campo) e aproveitava aqueles momentos para fumar junto de minhas

anfitriãs, porém ele sumiu misteriosamente e depois disso passei a acompanhar

aqueles momentos compartilhando do chimarrão que me era oferecido.

Ademilson (14 anos) e Priscila (11 anos) nunca participavam daqueles

momentos no tata ypy, ficando geralmente a assistir TV. Idade não era o fator

que determinava aquele comportamento, uma vez que Tamía, então com 12

anos, estava sempre junto conosco e depois de Níria era a pessoa que mais

pegava o petyguá.

As características daqueles momentos eram a informalidade das

conversas agradáveis e calmas, o uso do petyguá e o chimarrão. Por isso

algumas vezes, sem qualquer motivo explícito, ao invés de ficarmos no escuro

tata ypy que tanto lembrava a atmosfera da Opy, aquele momento ocorria na

sala, com as luzes acesas e sem fogo de chão. Ainda com petyguá, chimarrão e

conversas calmas (ou risadas suscitadas pelo programa que passava na TV

ligada). Quando havia muitos visitantes na casa de Niria aqueles momentos no

tata ypy eram integralmente transferidos para a sala onde todos se juntavam. As

rezas ocorriam apenas quando algum enfermo era diretamente tratado com a

fumaça do petyguá, o que assisti ocorrer diversas vezes a partir do momento em

que as relações entre os parentes de Níria se tornaram mais tensas. Mas

enfatizo que a tônica daqueles momentos era mais sua informalidade do que sua

“ritualidade”, por assim dizer.

Níria entrava regularmente na mata em busca de remédios (moã), como

as “bananinhas do mato” (que também eram comercializadas por elas e outras


190

mulheres mbyá sobre seus panos no centro de Porto Alegre) e cascas de árvores

(a mais utilizada por Níria era a casca de uma árvore chamada ryvádja rembiu)76,

além de manter um jardim de ervas medicinais com ervas como guiné (pipi) que

era utilizada junto a erva-mate (kaa) no chimarrão.

Também a parte da manhã era dedicada à relação entre parentes, quando

todos deveriam comer e/ou tomar chimarrão juntos. Aos que se deixavam dormir

um pouco mais, no caso, eu e Ademilson, exortações eram feitas como: Evy

katu, rejepotavaé – (numa tradução livre: levante logo você jepotá!) gritava a irmã

com o sonolento menino de 14 anos enquanto o chacoalhava pela manhã.

Ojepotá, como vimos nos capítulos anteriores, é o fenômeno reconhecido pelos

mbyá como a suspensão da perspectiva humana e consequentemente do

reconhecimento dos laços de parentesco que redunda na transformação

corporal de humano em monstro ou animal passando pela morte. Cabe enfatizar

que a preocupação em acordar os que dormiam além do horário da socialização

matinal, baseava-se no medo do –jepotá, num contexto de instabilidade geral

nas relações de parentesco, sobretudo por causa das querelas entre Kerexu e

sua cunhada grávida Yvá.

No mesmo período Yvá, por sua vez, me acordou um dia para conversar

sobre a importância de acordar cedo para estar junto com as pessoas

conversando e rindo “o tempo todo”. Isso seria necessário, pelo bem da minha

saúde, e todo mundo precisaria agir daquela maneira. As intervenções diretas

sobre o sono alheio foram medidas desesperadas posteriores a outras tentativas

76 Ryvaja s. Tiriva, periquito. (De yvyra ja. [yvyra: arvore, já: dono]), rembi’u: alimento de.
191

de fazer com que nos adequássemos ao parâmetros da socialidade parental

naquele contexto.

A instabilidade das relações acentuava o receio de acabar sendo visto e

seduzido por uma alteridade indesejada. Esse medo se manifestava sobretudo

na mata. Numa manhã quando Yvá, Tamía, Priscila e Vini me convidaram para

caminhar no mato para coletar plantinhas para comercialização no centro da

cidade (bromélias, orquídeas, bananas do mato) percebi que o comportamento

expansivo do garotinho, deixava de ser divertido para ser inaceitável, um risco a

todos os presentes. Todas pareciam tensas77, elas suplicavam ao menino que

fizesse silêncio (Ekiriri Vini: e-: imperativo, kiriri: silêncio) quando eu perguntei do

que elas estavam com medo elas responderam “pânico na floresta” (o que depois

eu fui descobrir ser o título de um dos filmes de terror que assistiam), “o caipira

que come gente” e “onça”.

Numa outra ocasião ao chegarmos em casa depois do Brique num

domingo de verão eu e Yvá fomos tomar banho na mata (ver foto do local para

banho acima). Yvá logo se mostrou muito apreensiva com o risco de

encontrarmos o ‘caipira que come gente’ por já estar escurecendo (na opinião

dela, pois ainda faltava mais de uma hora para que de fato anoitecesse). Ela

então tomou seu banho apressadamente, pois estava bastante apavorada, e

77 O que não ocorria nas caminhadas com as filhas de Vitorina, que embora tendessem a falar
mais baixo não pareciam tensas. Talvez a falta de motivação de coleta naquelas caminhadas as
tranquilizasse em relação ao olhar daqueles Outros que habitam a mata e são os donos das
coisas que ali se encontram, como a própria Ane me explicou.
192

logo me deixou sozinha enquanto terminava de me banhar e me arrumar. Para

ela aquele já não era um momento para estar na mata.

Além disso, como durante a gravidez Yvá manifestou muitos episódios de

“doença” ou “coisa ruim” em seu corpo (mba’e axy) a prescrição feita por Niria

era para que Yvá tomasse menos banhos, o que não fora seguido pela paciente.

Num dos momentos de profunda melancolia em que Yvá mergulhava quando

acometida por essa “coisa ruim”, Tamía explicou que a culpa era da própria Yvá,

porque tomava banho todos os dias ignorando as restrições feitas pela xamã

Níria. Retruquei que ela não parecia resfriada (jejukua), mas minha jovem

interlocutora logo se cansou de conversar comigo, presumindo que eu não

entenderia a relação entre o mal de sua cunhada e os banhos: a mata em si e

os olhares que se colocam sobre os mbyá ali sem que eles mesmos possam

perceber ou se defender (jaexa e’y vae kuery – já- primeira pessoa do plural

inclusivo, -exa: verbo ver, Kuery: coletivizador). Essa explicação me foi dada na

cidade pela própria Tamía algum tempo depois.

Por algum tempo a forma de lidar com os mais sonolentos era tocando

DVD’s com músicas (forró ou funk) ou desenhos animados em altíssimo volume

das 7horas da manhã em diante. Uma forma mais sutil, mas muitas vezes

insuficiente, de tentar nos fazer levantar naquele horário. Ainda no âmbito das

práticas ideais da convivialidade entre os mbyá também as piadas e as risadas

deveriam ser constantes, rir junto diversas vezes de uma mesma coisa era um

comportamento que fortalecia os laços e gerava estabilidade no grupo familiar.

Os filmes e desenhos animados que assistiam repetidamente em DVD eram

fontes para esses “jargões” engraçados que repetiam diversas vezes suscitando
193

risadas uns nos outros. Na televisão, os programas preferidos eram Chaves e

as novelas infantis do SBT (Carrosel e Cúmplices de um resgate), que

provocavam muitas risadas. Embora as tramas envolvessem aspectos de drama

e comédia, os segundos eram privilegiados na forma de assistir de meus

anfitriões, eles retiravam dos episódios algumas falas reduzidas que repetiam

entre si, o que os fazia rir juntos.

Aquela forma de consumo dos diversos conteúdos a que tinham acesso

tanto através da TV aberta quanto dos DVDs (trazidos da cidade ou

presenteados por parentes que permaneciam na casa de Níria em visitas mais

ou menos longas) não contrastava muito com o modo como eles assistiam aos

filmes de terror (outra preferência de meus anfitriões). Mesmo nos mais violentos

filmes de terror os momentos de tensão eram sempre entremeados por piadas e

comentários que os faziam rir e essa diversão compartilhada e enfatizada entre

parentes parecia ser a finalidade em si mesma de olharem juntos para a TV.

Deste modo, aqueles momentos de consumo da cultura do branco

adquiriam contornos que os assemelhavam aos momentos de conversa no pátio,

das refeições compartilhadas no tata ypy e das rodas de chimarrão matinais.

Enfim, essa convivialidade parental, discutida do ponto de vista da Guaraniologia

Contemporânea no Capítulo I, era a tônica da vida num complexo doméstico e

ela era diretamente produzida por cada um daqueles que ali conviviam, fossem

moradores ou visitantes. Interessa saber o motivo de tanto investimento na

produção consciente da alegria e da paz entre os mbyá. Como veremos, o

estado ideal de vida entre parentes não era um dado (Wagner, 2010 [1981]) da
194

vida compartilhada, mas algo a ser alcançado por meio de invenções, extensões

analógicas que se contraproduziam no curso da vida cotidiana.

Os temas preferenciais nas conversas do dia-a-dia eram relativos a

relacionamentos (-opena (namorar), -jeupi (trepar)78, -menda (casar)) falava-se

muito dos diversos casamentos atuais ou em vias de ocorrer entre seus

conhecidos. Meu próprio relacionamento foi o tema de diversos dos desenhos

com os quais Priscila costumava me presentear. Nesses desenhos eu aparecia

muitas vezes acompanhada, embora o rapaz com o qual namorava naquele

período ainda não os tivesse conhecido até então.

Mencionei acima que os DVDs pirateados adquiridos no centro de Porto

Alegre ou presenteados por alguma visita faziam parte do cotidiano e da

socialidade naquele grupo doméstico. Eram em sua maioria filmes de terror,

desenhos animados, compilações de funk e de forró. Alguns deles eram

obsessivamente repetidos ao passo em que outros eram assistidos apenas uma

ou duas vezes. Essa repetição ressoa aquela das socializações risonhas acima

descritas. Era comum ver um filme diversas vezes e rir das mesmas partes. Era

comum gravarem falas de desenhos animados ou filmes e ficarem repetindo uns

aos outros como uma forma de suscitar risadas nos interlocutores.

Os filmes de terror costumavam ser assistidos diversas vezes, as cenas

de sexo geravam muitos comentários divertidos e qualquer um que chegasse em

qualquer parte do filme poderia participar daquele momento de socialização.

78 Lembro da alegria causada pela algazarra barulhenta de um casal periquitos-verdes dentro de


casa cuja motivação ojeupi-xe “quer trepar” gerava gargalhadas entre todos.
195

Qualquer um poderia chegar no aparelho e colocar um filme a qualquer momento

e assim se abria um espaço para que outros chegassem e interagissem de

maneira específica através dos temas do filme. Os desenhos animados como

Madagascar, Frozen, Era do Gelo, Carros e Galinha Pintadinha também eram

repetidos incessantemente assistidos com interesse tanto por adultos quanto por

crianças, até que em algum momento o filme perdia o interesse e não mais

voltavam a tentar. Animais, espíritos, cópula, carnificinas eram os temas que

contribuíam para o sucesso de um ou outro título entre meus anfitriões.

Eu mesma entrei para o rol das brincadeiras diversas vezes. Uma delas

foi quando do posto de saúde da aldeia chegou uma doação de mantimentos,

numa cesta básica que trazia também um garrafão de 5 litros de suco de uva 79.

Esse item foi motivo de piadas repetitivas: diziam entre momentos de risadaria

que o suco era vinho e seria para mim. Nunca entendi ou soube como responder,

mas curiosamente não me foi oferecido nenhum copo daquele suco.

O filho de Jaxuka, Vini (4 anos), em visita à casa da avó, se alegrava em

alegrar toda a casa e fazia isso “dizendo coisas feias” (Ijayvu mbaemo vaikue).

Vini vaikue, vini é muito vaikue, dizia rindo Yvá sobre menino80. Vaikué significa

mal, feio, reprovável, mas curiosamente era algo positivo naquele contexto. Com

seu comportamento vaikué aquele mbyá de 4 anos de idade divertia os

habitantes da casa dizendo coisas como: “aperere” (peidei), “nderevi” (teu anus),

79 A doação foi levada para o terreno do grupo doméstico de Niria num carrinho de mão
empurrado por Jonas acompanhado de Kerexu e das crianças.

80 De vez em quando Yvá dizia o mesmo sobre si mesma em português: eu sou muito vaikué.
196

nederevi kuaa (no teu anus), e dizia que se casaria comigo (Amanda amendata).

Essa última era a piada que mais desencadeava risadas. Em consequência de

seus gracejos grotescos, na opinião de meus interlocutores mbyá, os demais

juntavam-se em torno dele rindo muito e assim que se acalmavam pediam para

que ele repetisse. Quando ele repetia seu repertório cômico os demais voltavam

a rir com igual ou maior intensidade. E, assim, o efeito cômico daquele repertório

se prolongou por alguns dias para os membros daquele grupo doméstico. Esse

tipo de socialização risonha e aparentemente padronizada era constante e se

repetia com diferentes protagonistas. Observei que aqueles momentos

funcionavam como um mecanismo com o poder de estabilizar, em certa medida,

as relações conflituosas daquela família. Um tipo de socialização do humor que

eu já havia observado antes, entre os mbyá em Niterói.

Periferia da aldeia?

Algumas especificidades daquele pessoal em relação aos demais mbyá

com os quais havia passado algum tempo naquela aldeia eram claras, a começar

por suas casas fora do padrão de alvenaria comum ali e a localização espacial

daquele grupo doméstico em relação ao resto da aldeia.

As plantações também eram muito importantes naquele grupo e lembro

que em minha primeira visita ali a filha mais velha de Niria afirmara que sua mãe

era a pessoa que mais plantava naquela aldeia. Entre seus cultivos principais

estavam as variedades de milho (avaxi mita, avaxi ju, avaxy pyta, avaxi tuu, avaxi

ovy – ver foto abaixo) e a mandioca (mandió), mas ela também plantava
197

tangerina (narã pe), batata-doce (jety), moranga (andaí), melancia (xanjau) e

tabaco (pety)81.

O caráter “periférico” daquele pessoal em relação ao centro da aldeia não

se dava apenas pela suposta falta de relação com a liderança local ou pela

distância do complexo doméstico em relação ao espaço de maior concentração

populacional da aldeia. A marginalidade caracterizava-se, sobretudo, pela

proximidade em relação a entrada/saída da Terra Indígena, pela falta de

interesse, por parte de Niria e Yvá, em sair do complexo doméstico na direção

dos locais de maior concentração populacional da aldeia para fazer visitas ali e

pela preferência em sair rumo a cidade ou a mata.

O mapa da aldeia ilustra apenas espacialmente o aspecto “periférico”

daquele complexo doméstico, mas a periferia do mesmo estava incutida nas

relações que estabeleciam com os outros coletivos que ali residiam e se

visitavam por estarem ligados por laços parentesco entre si. As visitas na casa

de Niria não eram raras, pelo contrário, o parentesco era o centro da vida

daquele grupo de pessoas, e sempre havia parentes vindos de outras aldeias,

de passagem ou em longas permanências ali. Penso que esse era um fator que

os diferenciava dos seus vizinhos. Mesmo que recebessem, como veremos,

81 A demanda por este último cultivo e a impossibilidade de produzir o suficiente para o consumo
local foi a minha principal moeda de troca por acesso às pessoas da aldeia e mesmo aquelas
mulheres que não faziam questão de me ter por perto ao me encontrar pelos caminhos da aldeia
vinham me abordar para pedir que em minha próxima ida ao centro da cidade lhes trouxesse o
pety. Dentre os homens com os quais conversei ao longo do trabalho na aldeia apenas o cacique
me pediu itens da cidade e um xeramõi uma vez me pediu dinheiro para permanecer bebendo
num evento numa aldeia Kaingang, um caso completamente isolado.
198

visitantes moradores da mesma aldeia, esses eram poucos em relação aos de

fora. E as visitas de dentro não costumavam ser retribuídas nem por Niria, nem

por Yvá, as mulheres adultas daquela casa com as quais eu mais convivia.
199
200
201
202

Quanto à Kerexu, embora ela trabalhasse na escola, também não tinha o

costume de fazer ou receber visitas locais passando a maior parte do tempo em

que não estava trabalhando no terreno do grupo doméstico e indo muitas vezes

ao centro da cidade para fazer porarõ nos finais de semana e períodos de férias

ou greve escolar. Ainda assim, por trabalhar como merendeira na escola, ia

quase todos os dias ao centro da aldeia e tinha uma rede mais ampla de contatos

regulares ali. As meninas Tamía e Priscila frequentavam a escola como

estudantes, mas assim que suas aulas acabavam elas voltavam para o complexo

doméstico, onde passavam a maior parte dos dias.

Ambas as meninas tinham amigos de mesma faixa etária na escola,

porém não saiam de casa em busca deles com frequência e pareciam satisfeitas

brincando entre si na maior parte do tempo, sem frequentar regularmente o

campinho onde os demais jovens costumavam socializar. Elas também

passavam alguns períodos como finais de semana, feriados, férias ou greves

escolares visitando parentes na aldeia da Estiva e na aldeia do Itapuã, de onde

voltavam sempre com muitas histórias de brincadeiras entre grandes grupos de

crianças. Tamía, a mais velha, jogava futebol nos torneios organizados entre

aldeias, pelo time feminino da aldeia da Estiva e não peço time da aldeia onde

morava com sua mãe. O que demostra o lugar ambíguo das relações que aquele

grupo doméstico mantinha na aldeia onde residia.

Ademilson era o único jovem daquela aldeia estudando fora, em uma

escola de juruá. Kerexu explicou que seu filho viera da aldeia da Estiva muito

bem nos estudos e por isso acharam que seria melhor para sua educação mantê-

lo fora da escola da aldeia que consideravam “fraca” em comparação com a


203

escola da Estiva, apesar dela mesma e seu irmão morador da Estiva82

trabalharem ali. O jovem de 14 anos não costumava sair do terreno domiciliar de

sua família senão para ir à escola. Contentando-se em brincar com Tamía (12

anos), Priscila (11 anos) e visitantes que porventura parassem por ali.

A diferença entre visitas de outros moradores daquela aldeia e visitas de

parentes vindos de outros lugares marcava o lugar simbólico daquele grupo

dentro da aldeia. Sobretudo, fica em aberto o motivo de Níria receber visitas de

outros moradores dali sendo que ela mesma nunca saía de sua casa para fazer

visitas na aldeia, ou seja, uma negação da reciprocidade (um problema que a

fazia reclamar de seu sobrinho cacique, como mencionei anteriormente).

Não raro me deparei com Niria recebendo o karaí e a kunhã karaí (o xamã

e a xamã, que não eram um casal, mas orientavam os trabalhos na Opy juntos)

da aldeia em seu tata ypy, onde tomavam chimarrão e fumavam o petyguá,

sempre durante o dia. O karaí e a kunhã karaí eram bem mais velhos que Niria,

e caminhavam uma considerável distância, do “centro da aldeia” até o terreno do

grupo doméstico dela, para fazer aquelas e outras visitas pela aldeia.

Embora a circulação dos karaí pela aldeia não fosse nada excepcional,

cheguei a questionar se essas visitas regulares seriam justificadas por algum

parentesco. Quando questionei minhas anfitriãs sobre isso, porém, a resposta

foi negativa. A recusa de Niria aos centros da socialidade aldeã, tanto o centro

populacional espacialmente localizado (onde moravam os referidos karaí junto a

82 Este era professor municipal indígena e trabalhava nas escolas de ambas as aldeias: Estiva e
Cantagalo.
204

Opy), quanto o comportamento central que orienta cada um a empreender visitas

ali dentro, me chamou atenção.

Numa dessas visitas específicas um senhor também idoso acompanhava

o “casal” de xamãs. A certa altura ele pegou o mbaraka (violão) da casa de Niria

que ficava na sala, sem fazer perguntas, e começou a tocar enquanto os demais

permaneciam no tata ypy fumando petyguá. Eles se mostravam interessados na

minha presença ali, mas não me dirigiam a palavra, quanto menos me

convidaram a adentrar o pequeno espaço do tata ypy naquele momento. Por isso

permaneci na sala enquanto o senhor tocava e sorria para mim. Saudamo-nos:

nhande karuju (boa tarde), mas não passou disso.

Numa outra manhã Níria recebeu a visita da kunhã karaí sozinha. Por

causa da greve da rede municipal de ensino de Porto Alegre, a escola estava

parada e as crianças estavam capinando o terreno para o plantio do milho,

movimento que se via em diversos grupos residenciais ao longo dos caminhos

da aldeia. A senhora, ao me ver conversando em mbyá e me preparando para

ajudar na capina, me deu alguma atenção pela primeira vez desde o início do

meu trabalho de campo naquela aldeia. Risonha ela me mandou ir capinar

“Ekaapyke!” disse-me ela (e-: imperativo, kaapy: capinar, -ke: marcador de

ênfase).

Cogito a possibilidade de que Níria fosse de algum modo reconhecida

pelos “karaí oficiais” da aldeia como xamã em processo de fortalecimento e que

eles a estariam ajudando neste sentido. Yvá dizia que embora Níria tivesse

condições de se tornar uma kunhã karaí em toda sua magnitude, com atuação

numa Opy, por exemplo, isso não ocorria porque sua tia/sogra “não se
205

mostrava”. O fato observado, no entanto, eram as regulares visitas que Níria

recebia dos karaí atuantes na Opy daquela aldeia e fica a questão: afinal, por

que visitar alguém que deveria visita-los, mas não o fazia? Yvá, assim como a

própria Níria, justificava as visitas regulares daqueles velhos, bem velhos, que

nunca eram visitados por Niria, (nem mesmo na Opy) pela amizade resultante

procedência comum de Cacique Doble. Mas enfatizo que aqueles momentos de

visita possuíam características muito particulares e se assemelhavam aos

períodos noturnos que passávamos no mesmo tata ypy tomando chimarrão e

fumando petyguá enquanto conversávamos de modo sereno sobre as os

eventos da vida naqueles tempos, assim como descrevi acima.

Creio com base nisso, embora sem ter uma resposta fechada, que as

razões para tais visitas iam além daquelas que me foram explicitadas. De certo

a relação com a alteridade juruá, como eu e a cidade (no porarõ que Niria

praticava frequentemente) nesta chave analítica pode adquirir conotações

específicas. O que quero dizer com isso é que em lugar de ser estigmatizada por

me receber ou por frequentar assiduamente a cidade, Níria mantinha em alto

grau o respeito daqueles que representavam o ideal do Ore Reko (ore- nós

exclusivo, reko – costume, modo de ser : expressão nativa que se refere ao modo

de ser “tradicional” dos mbyá) naquela aldeia, ou seja, seus xamãs.

Minha hipótese é de que, embora mantivessem completamente vedada

sua vida religiosa na Opy aos olhares e a presença de qualquer juruá83 essa

83 Conversando com uma jovem e influente liderança mbyá na aldeia ele falou sobre a resistência
a interlocução com os brancos, sobretudo a não aceitação por parte dos mais velhos de brancos
na opy. Segundo ele os mais velhos acreditadiam que a presença de tipos de pessoa diferentes
206

interlocução poderia ter algum poder ou valor contrário ao enfraquecimento tanto

enfatizado em se tratando desse tipo de relação. Nesse sentido Niria assumiria

com aquele posicionamento tão diferente um estilo xamânico particular, porém

reconhecido e respeitado. Hipótese que se fortalece se levarmos em

consideração a localização de seu complexo residencial, quase na passagem de

entrada e saída (comunicação com o exterior predominantemente juruá, que era

o lugar onde a aldeia estava incrustrada).

Notei que Niria entoava vez ou outra uma melodia calma e sem letra

enquanto fumava seu petyguá sozinha. Essa prática se tornou cada vez mais

frequente conforme as relações naquele grupo se tornavam mais conflituosas. A

primeira vez em que a vi entoar aquela melodia foi durante uma tempestade.

Noutra vez ela o fazia enquanto caminhava pelo pátio, claramente perturbada

por causa de uma briga que ocorria pelo telefone, naquele momento mesmo,

entre Yvá e seu filho, pai da criança que a jovem esperava. Daí em diante eu

veria Níria se tornar cada vez mais propensa a entoar aquela melodia enquanto

pitava seu petyguá, a qualquer hora do dia, caminhando sozinha e cabisbaixa

pelo terreno.

III.IV.III – Recursos e (re)configurações familiares.

Já mencionei que Kerexu, embora fosse merendeira na escola da aldeia

costumava fazer porarõ aos sábados, nas férias ou em períodos de greve da

enfraqueceria a própria opy, no caso de entrada de brancos ali. Isso faria com que Nhanderu
deixasse de ouvi-los.
207

escola. Níria recebia aposentadoria rural, mas sua renda era reduzida em boa

parte por empréstimos sobre os quais eu só viria a saber no ano seguinte ao

meu período de campo em sua casa. Ambas recebiam, até então, o auxílio Bolsa

Família. A primeira, por ter uma bebê de menos de um ano também estava em

vias de receber o salário maternidade da FUNAI. Yvá, por sua vez não contribuía

com nada. Comentava ter interesse em arranjar um emprego de carteira

assinada e para isso estaria regularizando sua documentação. Em breve, ela

também teria direito ao salário maternidade.

Yvá e Níria faziam porarõ com mais frequência do que Kerexu, mas

durante a minha permanência naquele grupo doméstico Yvá passou a ir cada

vez menos ao centro da cidade com essa finalidade. As idas de Níria, no entanto,

não se alteraram, em alguns momentos eu tive até mesmo a impressão de que

se intensificaram.

Naquele momento não havia homens adultos consanguíneos de Niria

habitando conosco. Também seu último marido, pai de Tamía, havia partido para

outra aldeia não fazia muito tempo. O único homem adulto morando conosco era

Jonas, o marido de Kerexu. Ele, no entanto, não gozava de nenhum prestígio

particular dentro daquele grupo doméstico ou em qualquer outro lugar da aldeia.

Dificilmente ele produzia os caros artesanatos masculinos (vixo ra`anga),

bichinhos de madeira. Sua principal ocupação ali era a roça, que só o mantinha

de fato ocupado por períodos determinados. O que justificava a cobrança que

Niria mantinha em relação a ele.

Niria trabalhava bastante roçando o terreno para o plantio com a ajuda de

sua filha mais nova, Tamía. Quando eu, Priscila e Ademilson participamos da
208

capina, o primeiro a desistir foi o menino, o mais velho entre as “crianças da

casa”. As críticas a ele foram curtas e bem-humoradas, ninguém pareceu muito

desapontado com a rápida desistência do jovem. Seu valor se concentrava no

fato dele ser um estudante na escola dos brancos, o que o colocava, no discurso

de todas as minhas interlocutoras ali, acima das meninas que frequentavam a

escola da própria aldeia. Ao passo em que Tamía84 era convocada para ajudar

com atividades de toda sorte: buscar milho para as galinhas no mercado do pé

da colina, colher milho, mandioca ou qualquer outro alimento necessário para

consumo imediato, ajudar a cuidar das crianças pequenas de suas irmãs, lavar

roupa e louça, capinar, etc.

Yvá, grávida, não capinava, mas varria e arrumava a casa e dividia o

trabalho de preparação da comida com Niria. Além de nós da casa, Niria

contratou dois jovens “parentes” (sem especificação) para ajudar na roça.

Disseram se tratar de um serviço remunerado, mas não falaram sobre o valor do

serviço. Eles sempre faziam breves visitas ao grupo doméstico de Níria,

assistiam televisão, comiam a refeição que estivesse sendo servida, geralmente

pela manhã e conversavam um pouco, especialmente com Ademilson. Além de

trabalharem na preparação do terreno para o plantio eles também reformaram o

tata ypy, trocando suas tábuas já em apodrecimento por tábuas novas, esse

serviço também teria sido pago por Niria. Além disso Níria comentou certa vez

84 Creio que a diferença entre Tamía e Priscila no que se refere a distribuição do trabalho, embora
essa também ajudasse em muitos dos serviços ora elencados, era que a primeira já havia
menstruado e passado pelos processos que controlam as mudanças que ocorrem com a
menarca. Priscila só passou por essa experiencia em fevereiro de 2016, quando eu já não estava
mais permanecendo na aldeia, mas a vi reclusa e com o cabelo raspado em uma visita.
209

comigo ter interesse em contratar um serviço de arado mecânico oferecido por

um juruá para facilitar o plantio, mas isso não foi feito.

Era claro na convivência com aquele grupo que o estatuto de Yvá naquela

configuração mudara com a minha chegada. Alguns eventos corroboram essa

visão e ajudam a entender como uma crise foi deflagrada naquele contexto.

Episódio 1:

Levei para a aldeia uma caixa com cerca de 60 lápis de cor para que

usássemos todos juntos. Essa ideia de uso coletivo foi pronta e unanimemente

declinada e como resposta Yvá sugeriu que eu dividisse os lápis entre eles. Foi

Yvá quem coordenou a divisão. De acordo com seus critérios, aceitos com a

concordância dos demais, Ademilson tinha prioridade por ser um “estudante”. O

critério me pareceu curioso, uma vez que as duas outras meninas também eram

estudantes e Priscila em particular passava muito tempo desenhando. Mas nem

ela mesma objetou qualquer coisa, manifestando plena concordância com

aquela proposta.

Esse foi apenas um dos casos em que o papel de Yvá enquanto

redistribuidora de recursos vindos de mim ficou evidente. Nas brigas, cada vez

mais frequentes, entre Yvá e Kerexu, a primeira sempre enfatizava o quanto ela

“ajudava” a casa através de mim, ao passo em que a outra apenas “explorava a

mãe”.
210

Episódio 2:

Outros exemplos de artigos comprados por mim e apropriados por Yvá

eram o leite, as frutas e os picolés (os dois últimos comprados em carros que

vendiam na aldeia aos domingos). Soube por Priscila que ela não tinha

permissão para beber o leite que eu comprava com Yvá semanalmente para

contribuir e “pagar” pela minha permanência ali. Segundo a menina, nem ela

nem ninguém, além de mim e de Yvá, poderia consumir aquele artigo que até

então eu acreditava estar comprando para “a casa”. Ela disse que se tomasse

do leite Yvá ficava brava (ipoxy). Expliquei então que eu comprava as coisas

para todos os moradores dali (Tamía, Níria, Ademilson, Priscila, Yvá e eu) e não

exclusivamente para Yvá. Mas ficou claro que meu posicionamento nada

alterava naquela situação. Níria estava presente durante essa conversa, mas

minha palavra parecia menos relevante do que a regra que posicionava Yvá

como intermediária de minhas contribuições ali.

Em determinada ocasião Yvá cismou com um vestido que me vira usando

na cidade. Pediu o vestido diversas vezes até que eu o dei a ela. Poucos dias

depois percebi que esse vestido havia sido presenteado a Níria que o usava

constantemente. Creio que a finalidade do pedido era presenteá-la desde o

início. Embora emulasse uma vergonha toda vez que desejava pedir algo, nada

a impedia de pedir coisas cotidianamente. O outro lado da moeda residia no

incômodo demonstrado por Yvá toda vez que eu doava coisas, na maior parte

das vezes era pety, a outros mbyá quaisquer que não fossem ela, na aldeia ou

na cidade.
211

Incômodo com o qual eu tive que lidar em experiências de campo

anteriores, o que aponta para um padrão relacional concernente à forma

personalizada de obtenção de recursos materiais dos juruá ou mecanismo de

recepção e redistribuição de coisas recebidas de fora (Migliora, 2014) e se

relaciona com “responsabilização” acima referida de um mbyá por um juruá mais

ou menos fixado numa aldeia.

Em 2013, minha anfitriã na Tekoá Mbo’yty veio reclamar comigo por eu

doar artigos a outras pessoas na aldeia que não fossem ela. Uma vez, quando

a filha de uma jovem ficou doente, e ela me pediu para comprar novalgina, eu

perguntei à referida mulher se alguém poderia me levar até uma farmácia. Para

tanto ela respondeu que eu deveria doar o remédio a ela e ela o deixaria

disponível a quem precisasse.

A responsável por mim na aldeia de Niterói era uma liderança forte e

estável. Dessa vez, pelo contrário, havia um problema para minha inserção ali:

a responsável por mim era uma jovem de 19 anos, grávida e instável tanto

emocionalmente quanto em termos de sua posição na rede de parentesco na

qual estava inserida e onde me inseri por meio dela. Esses esquemas de

acumulo-recepção-redistribuição parecem modulações da mesma coisa,

ligando-se, por exemplo às grandes doações de roupas entre as “porta-vozes”

de seus grupos domésticos e as mulheres visitantes quando a partida de um

grupo visitante se aproximava, o que observei em São Paulo, em Niterói e no

Rio Grande do Sul (de Níria para duas mulheres visitantes diferentes).

Ao mesmo tempo que Yvá era responsável por me alimentar, me alegrar,

me orientar sobre os ideais do convívio ali, “me dar atenção”, digamos assim,
212

era ela quem se valorizava diante dos seus com a minha presença. Claramente

eu não era a presença mais desejada ali, e sempre que possível era Yvá quem

me avisava que eu deveria passar uma temporada na cidade e voltar depois ao

convívio da família. Esse tipo de aviso ocorreu com cada vez maior frequência

conforme sua relação com sua cunhada foi se deteriorando. A maior parte

desses desentendimentos eu tive notícia através da própria Yvá, em conversas

particulares. Mas quando voltava para a aldeia tudo nas relações dentro do

complexo doméstico de Níria apontava para uma extrema desestabilização, um

mal-estar generalizado entre eles. Esse clima perdurou até que Luiza, Jonas, a

bebê e Priscila se mudaram para o centro da aldeia, por um tempo (mas isso

ocorreu bem mais tarde e essa separação durou pouco tempo).

Yvá aproveitava sua nova posição de contribuidora (“eu ajudo a Níria”,

dizia ela, nessas ocasiões) para julgar seus cunhados. Ela dizia que Kerexue

seu marido não ajudavam, apenas consumiam e exploravam Níria. Ela estendia

essas críticas aos demais filhos de Níria (moradores de outras aldeias) que,

segundo ela, se juntavam para hostilizá-la e questionar sua presença junto a sua

mãe.

Posteriormente outro motivo para essas desavenças seria o suposto

ciúme de Kerexu em relação a sua mãe primeiramente com a ex-nora (uma

sobrinha distante) e depois com a nova neta dela. Ela se ressentiria da relação

entre Niria e Yasmin (filha de Yvá e Jekupe) ser mais forte do que a relação da

mesma com sua filha bebê, Luara. Outra acusação dos filhos de Niria contra Yvá

era de que ela afastara Jekupe (que não registrou a filha de Yvá), irmão dos

mesmos do convívio familiar, uma vez que ele teria passado a visita-los cada vez
213

menos quando eles se separaram e Yvá continuou vivendo com a mãe dele (ver

quadro genealógico nos anexos).

Àquela altura Xunu (filho mais velho de Níria) visitava cada vez mais sua

mãe. Berenice (filha do meio de Níria moradora de uma outra aldeia)

permaneceu ali com seus dois filhos pequenos e recebendo visitas de seu

marido entre dezembro e janeiro por estar novamente grávida.

Conflitos e o ápice da desestabilização relacional no grupo de parentes.

É certo que minha presença desempenhou um papel no agravamento

dessas desavenças, uma vez que através dos recursos redistribuídos a partir de

minhas doações Yvá se tornava cada vez mais assertiva em sua oposição

àqueles que faziam oposição a ela, segundo ela, “sem ajudar a Niria” numa clara

acusação de falta de reciprocidade não só de seus cunhados para com ela, como

para com a própria mãe; Com a relação entre Kerexu e Yvá cada vez mais

desgastada, Niria ficava entre uma e outra, tendendo a apoiar Yvá.

Cada vez mais irritadiça Níria passou a também ficar doente “mba’e axy”,

tratando-se igualmente com as infusões de ryvaja rembiu. Num certo dia houve

um breve desentendimento acerca de uma conta de luz em atraso. Niria e Kerexu

dividiram o valor, mesmo assim a mãe se mostrava descontente com a divisão

de responsabilidades e tarefas entre os adultos coresidentes. Numa breve

discussão com a filha, gritou: “Jonas romongaru” (nós alimentamos o Jonas),

pois este postergava a atividade de roçar o terreno quando Niria pedia.


214

Os processos de diferenciação e a delimitação de “grupos” antagônicos

dentro daquele coletivo adquiria, a partir de episódios conflituosos recorrentes,

as características daquilo que Bateson (2008 [1958]) definiu como cismogênese

simétrica. Ou seja, a resposta de cada um dos lados se intensificava fazendo

com que entrassem num processo tal em que a cisão era o fim previsível. Porém,

no curso dos eventos alguns mecanismos de controle foram ativados de modo

que a situação perdurou por um período relativamente longo. Descrevo a seguir

como, na experiência vivida por meus interlocutores, aquele contexto conflituoso

foi controlado por alguns mecanismos acionados por agentes externos.

Controles da cismogênese dentro do grupo doméstico: ferramentas do

parentesco e seus limites.

Paradoxalmente, naquele período em que a instabilidade das relações

rumava ao ápice, as visitas com longas permanências do irmão de Jonas com

esposa e cinco filhos, Rovaja Kuery85 (rovaja – cunhados, kuery – coletivizador)

do pessoal de Niria, pareciam ter o poder de melhorar o humor geral dos

componentes daquele coletivo produzindo uma atmosfera de reciprocidade,

boas palavras e muitas risadas, ao menos temporariamente. Kerexu, que

habitualmente era a pessoa mais sisuda entre os habitantes dali, era a mais

empolgada. Sua risada era a mais frequente e muito mais alta do que as demais.

Tive a impressão de que aquelas reuniões que se produziam diversas

vezes ao longo do dia, mas sobretudo pela manhã e à noite, eram como rituais,

85 Família coletivizada em relação ao pessoal de Niria como cunhados e tratados de acordo por
todos os moradores dali.
215

ou pelo menos, de que algumas das atitudes ali performadas tinham alguma

conotação estrutural, ou seja, seria uma manifestação culturalmente prescrita de

alegria pela presença de seus cunhados. Acompanhado de seu irmão, pela

primeira vez vi Jonas caçar um jacutinga (jaku) com um bodoque (guyrapa pe) e

esse seu feito teve grande reconhecimento entre todos na casa, inclusive por

parte de Yvá. Naquela configuração Yvá se reposicionava por meio de uma

identificação maior com Kerexu e seus visitantes.

O reposicionamento de Yvá era marcado também por um certo

distanciamento em relação a mim, o que redundava, naquelas ocasiões que se

repetiram algumas vezes, em pedidos para que eu partisse para a cidade e

voltasse posteriormente. Pedidos tais que ela dizia partirem de Niria, mas que

Niria negava ter feito quando eu perguntava diretamente a ela o que eu poderia

fazer para me manter ali sem prejudica-los86.

Naqueles períodos de confraternização super intensificada, o campinho

era frequentado aos domingos pelos dois casais, para que os irmãos jogassem

futebol, as crianças brincassem e as esposas assistissem sentadas no gramado

86 A intermediação da minha comunicação com Niria sempre foi um papel exercido por Yvá, muito
embora, Niria entendesse meu guarani muitas vezes melhor do que Yvá que preferia comunicar-
se comigo em português. Aqueles “equívocos” que permeavam nossa comunicação se repetiram
diversas vezes, em assuntos como as compras semanais já descritas, pedidos para que eu
partisse, a cama que eu deveria ocupar por ocasião de diferentes visitas. Os ruídos produzidos
por aquela intermediária, no entanto, não pareciam desconhecidos por Niria. Percebi na
repetição daqueles posicionamentos desencontrados que muitas vezes Niria colocava Yvá como
responsável pela comunicação justamente para não precisar ela mesma se posicionar diante de
mim com firmeza, mantendo sempre seu ethos mbyá, calmo e risonho, sempre concordando
comigo. Mas também fazendo com que sus demandas fossem atendidas por intermédio de Yvá,
que era a responsável pela minha presença em sua casa.
216

ao redor do campo. Enquanto seus cunhados estavam na casa de Níria, Kerexu

ia nos finais de semana fazer porarõ com sua concunhada (a mais assídua de

todas as mulheres mbyá que eu conheci nessa prática) e não mais com sua mãe.

Em suma, aquelas visitas punham as relações dos moradores daquela casa em

movimento.

Esse tipo de comportamento generalizadamente positivo ocorreu, durante

minha permanência em campo, quase que exclusivamente por ocasião de visitas

de parentes, e é especialmente sonoro nos primeiros dias dessas visitas. O

ambiente nessas ocasiões muda completamente, mas aos poucos volta ao

normal. A visita de cunhados gerou a reação mais explícita nesse sentido, mas

algo similar ocorria por ocasião das permanências de Jaxuka, a filha do meio de

Níria, na casa com suas crianças e marido.

Durante essas visitas as sete pessoas da família do irmão de Jonas

permaneceram por semanas na casa de Niria (e não na casa de Kerexu),

fazendo com que eu e Yvá tivéssemos que dividir uma cama de viúva. Ali eles

eram livres para agir como quisessem, eram alimentados e mexiam na TV

conforme desejassem. Estavam de fato “em casa”.

Passado um tempo, no entanto, esse tipo de visita começava a se mostrar

claramente pesarosa aos anfitriões e a única pessoa que tinha liberdade de

manifestar sua real sensação diante daquela situação era Yvá. Meio dentro meio

fora, Yvá se dizia pertencente a amboae retarã kuery – outra família (sua família

em São Paulo). Embora fosse muito ligada a Niria, por esperar sua neta, os

demais adultos coresidentes não mantinham o mesmo tipo de relação com ela,

ao passo que Tamía e Ademilson oscilavam tendendo para o lado que Níria
217

tendesse e Priscila para o lado de Kerexu, mãe dela e de Ademilson, embora

dissessem considerar Niria como mãe deles, pois esta os havia criado. Yvá

àquela altura do trabalho de campo relatava sofrer muito com a hostilidade em

relação a ela por parte dos irmãos do pai da filha que gestava, assim ela não

tinha nenhuma obrigação em relação aos cunhados dos mesmos.

O curso da vida naquela família extensa e o agravamento dos

descontentamentos entre sogra e genro e entre a filha de Niria e sua cunhada (-

ke`i) Yvá voltaram pouco a pouco à superfície do plano relacional. E, assim,

finalmente chegaram a produzir uma cisão no grupo com a mudança do casal

(Kerexu e Jonas), acompanhados da filha de colo e de Priscila, para uma casa

no centro da aldeia. O que tornou manifesta a gravidade das tensões vivenciadas

até então, períodos de instabilidade que contrariavam o ideal de vida mbyá no

que se refere ao comportamento entre parentes.

Os eventos que configuraram aquela situação de crise, as atitudes entre

coresidentes e os motivos que levaram até ali mostraram-se profundamente

articulados com os estados de saúde e a preocupação com os perigos de ojepotá

intensificados pelo mal-estar instaurado na casa a partir de um determinado

momento. Assim como a melódica resposta xamânica de Niria à crise instaurada

entre os seus, que cantarolava mais do que nunca com petyguá caminhando

entre as casas.

Yvá dizia de si mesma: “eu sou muito vaikue”. Dessa mesma maneira

falava de mim, de Vini (filho de Jaxuka de 4 anos de idade), e de diversas


218

pessoas mbyá ou não em diversos contextos, como pessoas vaikué87. Esse

julgamento muitas vezes era feito entre risadas, de modo leve, ser feio, falar

coisas grotescamente engraçadas não era necessariamente reprovável. Quanto

a Kerexu seu julgamento era diferente, para Yvá sua cunhada era muito vaija

(brava), ela estaria sempre ipoxy (com raiva, com ciúmes) agindo de modo

agressivo e egoísta com os recursos que recebia por seu trabalho na escola.

Quando a filha de Yvá nasceu, nos primeiros meses a mãe considerou sua filha

também muito vaijá, por seu choro forte e constante e a força com a qual pegava

no peito. Não foi a primeira vez que vi crianças de colo serem consideradas vaija.

Embora eu deva enfatizar que nesses casos a constatação da agressividade não

seja negativa, apenas algo com o que se irá lidar no processo de adequação da

criança ao comportamento condizente com a condição de parente, ou seja a

condição humana88.

Em consequência de todas aquelas trocas de acusações Yvá era

constantemente furtada, lhe levaram mais de um celular, algum dinheiro 89, um

cobertor e alguns objetos meus que cheguei a ver com Kerexu e Jaxuka. Havia

87 DOOLEY (2004) vaikue adj. (classe xe-). Feio: ka'aguy vaikue mato cerrado, feio; ndevaikue
você é feio. adv. Mal (modificando o verbo): aa vaikue rai quase fui pelo caminho errado. (De
vai, -kue2) vaikue'i adj. Coitado

88
A bravura e a agressividade não são completamente rechaçadas na sociocosmologia mbyá.
Entretanto, a condição humana, calcada no estabelecimento de relações de parentesco fazem
com que essa agressividade deva ser obscurecida neste âmbito específico em favor dos valores
da reciprocidade, o que não resulta numa busca pela total extinção das funções da bravura e da
agressividade, apenas as circunscreve a outros territórios da experiencia vivida pelos mbyá.

89 Dinheiro que eu havia dado para que Yvá pudesse visitar uma irmã que viera de São Paulo e
se hospedava numa aldeia no litoral do Rio Grande do Sul.
219

ali uma represália contra Yvá e, consequentemente, também contra mim.

Lembro que Kerexu já não mais falava comigo antes de se mudar e penso que

Jaxuka nos culpava pela mudança de sua irmã para outro ponto da aldeia. Dos

filhos de Níria apenas Tamía se mantinha neutra. Embora visitasse

frequentemente sua irmã mais velha em sua nova casa, ela continuava se

relacionando normalmente com Yvá e Níria.

Ademilson, filho de Kerexu criado por Níria, também permaneceu

morando com avó que, assim como todos os demais, chamava de mamãe.

III.IV – Sobre multilocalidade, vergonha, bailes, redes sociais (virtuais) e

porarõ.

De acordo com Yvá os homens não participariam do porarõ por vergonha.

A vergonha também aparecia em seu discurso sobre si diversas vezes, mas de

maneira muito diferente. Ela era tomada por uma vergonha incontrolável ao se

comunicar com homens juruá. A mesma vergonha se manifestava, em

proporções particulares a cada mulher mbyá, toda vez que as abordava pela

primeira vez no centro de Porto Alegre, mesmo eu sendo uma mulher.

Não há vergonha para as mulheres em fazer o porarõ, ou seja, sentar com

crianças, artesanatos e plantas sobre panos nas calçadas da cidade esperando

vender ou receber coisas do juruá. A vergonha das mulheres reside na

comunicação com essa alteridade, reside no uso da língua do outro. Esse é o

tema do próximo capítulo, mas é necessário adiantar algumas questões para

concluirmos o panorama da casa aldeã proposto aqui.


220

Como vimos ao longo deste capítulo, o que um grupo doméstico produz

diretamente em termos de cultivos e criações não é o suficiente para sua

subsistência. A necessidade e o desejo por itens industrializados se fez evidente

na relação com todos os grupos domésticos que mencionei até agora. Na cidade

a imagem mais recorrente é das mulheres mbyá oferecendo a suas crianças

iogurtes, refrigerantes, “bolachinhas”, salgados e doces, ou seja, itens altamente

apreciados, porém escassos na aldeia e abundantes na cidade.

Níria quando voltava da cidade trazia de lá diversos agrados para seus

coresidentes, sobretudo para as crianças e para Yvá. Esses agrados iam desde

os itens comestíveis acima mencionados até gel de cabelo, sandálias tipo

Havaianas, mochilas, dvds pirateados, etc. A mãe da família que chamo aqui de

Rovaja Kuery, os cunhados, chegavam sempre na casa de Niria trazendo da

cidade muitos biscoitos, iogurtes, DVDs, em suma, itens que alegravam suas

crianças e consequentemente a si mesmos. Aquela mulher fazia porarõ quase

diariamente e levava consigo sempre três ou mais de seus filhos. Embora tenha

sido dito que o marido dela trabalhava numa propriedade rural nas imediações

da aldeia onde morava, o tempo todo em que eles permaneciam na casa de seus

cunhados esse homem não produzia renda nenhuma. A visita de famílias inteiras

de aldeias em outras cidades a seus familiares residentes em aldeias

relativamente próximas ao centro de Porto Alegre foi observada entre diversas

praticantes do porarõ entrevistadas na cidade, como será exposto no capítulo

seguinte.

Na família de Niria, junto a qual realizei a maior parte de meu trabalho de

campo, os recursos provenientes de homens eram mínimos. Embora aquela


221

fosse uma configuração muito específica, assim como seu recorte no tempo, os

eventos que levaram àquela configuração, devam ser levados em consideração,

penso que em alguma medida a situação na qual homens mbyá não conseguem

participar de maneira substancial no sustento do grupo doméstico é

relativamente comum. Digo isso pela escassez de posições de trabalho

remunerado dentro da aldeia onde vivi e pela quase ausência de casos de

homens trabalhando fora. Nesse contexto benefícios como o bolsa família, o

salário maternidade e sobretudo as aposentadorias rurais tornam-se centrais

para muitas famílias. O que complementa o panorama aldeão do fenômeno

porarõ que abordarei adiante.

Ainda assim a presença desses homens e o lugar por eles ocupado dentro

de seus grupos familiares é fundamental do ponto de vista dessas mulheres, vide

a gravidade das tensões descritas ao longo deste tópico. Uma reflexão de Yvá

ilustra bem a situação vivenciada pelas mulheres com as quais dialoguei ao

longo do trabalho etnográfico.

Uma conversa no centro de Porto Alegre:

Yvá me pediu para levá-la para comer em um restaurante que ficava em

frente ao seu ponto de porarõ daquele dia. Enquanto subíamos as escadas que

levavam até o tal restaurante, cheia de cerimônia, Yvá me perguntou se poderia

me fazer uma pergunta. Percebi que o assunto era sério para ela, pois Yvá

sempre me enchera de perguntas sem o menor pudor. Depois de cerca de seis

meses desde que nos conhecemos, ela se demorou para fazer a pergunta e ao

chegarmos no restaurante percebi nela uma timidez/ vergonha que ela já não
222

mais exibia em relação a mim desde as primeiras semanas de nossa

interlocução. Depois de nos servirmos, ela conseguiu fazer a tal pergunta:

“Você acha que dá certo casar com juruá?”

Respondi que sua tia Zaira (minha anfitriã na Tekoá Mbo’y ty Camboinhas-

RJ) havia se casado com um juruá, que era o pai de seu primo Yju, com quem

ela falava sempre que podia por meio do facebook. Comentei que também Hélio,

o rapaz a quem chamava de kamba’i com quem tivera um breve relacionamento

na aldeia do Jaraguá após um baile, era neto daquele casal e perguntei o porquê

daquela pergunta. Então ela disse:

“Tô cansada desses homens mbyá, são todos sem vergonha, não gostam de

trabalhar e bebem muito.”

Acrescentou na sequência da conversa que achava que alguns homens

juruá eram bonitos e que havia um interessado nela e ela não sabia o que pensar

a respeito. Depois daquele dia ela não tocou mais no assunto.

Com o nascimento de sua filha, Yvá passou a receber alguns recursos do

governo o que fez com que ela pudesse adquirir um “novo telefone velho”, e

assim ela passou bastante tempo com crédito no telefone e acesso às redes

sociais. No facebook e pelo whatsapp ela estava sempre em vias de começar a

namorar com algum rapaz mbyá da aldeia mesmo, ou de outras aldeias. Ela me

contava empolgada sobre esses casos que nunca chegavam a se concretizar.

Também no ano em que saí do campo ela passou a frequentar mais os bailes

que ocorriam em diversas aldeias, eventos nos quais sempre ocorria algum

enlace.
223

A ideia de “se misturar” (nas palavras dela) com um homem juruá parecia

um pensamento desesperado. Lembro que ela, Niria e Kerexu concordavam que

o pessoal de Zaira não era exatamente mbyá, mas “misturado”, uma categoria

altamente pejorativa entre todos os mbyá com os quais dialoguei no Rio Grande

do Sul. Estes também eram unânimes em suas críticas à Terra Indígena

catarinense do Mbiguaçu, por abrirem sua Opy aos juruá, usarem o Santo Daime

e, sobretudo, por permitirem que casais misturados permanecessem na aldeia,

compactuando com o -jejavy, o que poderia resultar em morte.

De dentro de uma casa mbyá com muitas praticantes de porarõ percebe-

se pelo acima exposto, duas finalidades ou benefícios da prática em questão.

Ambas se referem ao parentesco, ainda que em sentidos inversos. A primeira

diz respeito a alegrar (mbovyá) seus parentes, sobretudo os menores, por meio

de agrados, itens alimentícios, brinquedos, etc trazidos da cidade para a casa

aldeã. A segunda é o passeio, é o alegrar a si mesmo (rovy’a) da partida (pontual

e com volta marcada) rumo a um mundo cheio de coisas radicalmente diferentes

(algumas reprováveis, como os próprios juruá que são vaikué) do monótono (nas

palavras deles mesmos: “é chato na aldeia...”) ambiente da casa aldeã, assim

relaxando as tensões geradas no âmbito da coresidência.

***

Agradar-se da vida entre parentes e fazer com que parentes se agradem

da vida em comunidade é algo que deve ser produzido por meio da troca de boas

palavras, risadas, presentes, através de refeições compartilhadas e em

momentos de estabilização (relacional e, logo, corporal) que consistem na

abertura de canais de comunicação com entidades que cuidam dos mbyá e que
224

a eles também estão relacionados por laços de parentesco e por isso devem

igualmente agradar-se desta relação: os Nhanderu Kuery (nhande – nós, ru –

pai, kuery - coletivizador) acionados por meio da fumaça (tataxi) do petyguá.

Penso que se o polo “positivo” dessas relações deve ser produzido

através de comportamentos estipulados como “belos” é porque o plano sobre o

qual se projetam essas relações não é reconhecido como harmonioso. Ou seja,

o fundo de inimizade, é o dado sobre o qual os agentes devem projetar

comportamentos prescritos com o objetivo de produzir a harmonia neutralizando

a tendência “natural” a agressividade. (Viveiros de Castro 1996, Wagner, 2010

[1981]). Não é à toa que os mbyá escolhem, de diversas maneiras, o caminhar.

Muitas pessoas ou famílias passeiam para aliviar tensões, outras vezes as

cisões que envolvem grupos maiores e a formação de novas aldeias servem

para restabelecer as relações entre coletivos mbyá.

Vimos nos capítulos de contextualização guaraniológica que os

comportamentos agressivos, raivosos, egoístas ou ciumentos não são

estranhos, mas sim demasiado familiares ao mbyá (sobre o costume de

“amansar” meninas Prates (2013) e Heurisch (2010) sobre a agressividade

decorrente do uso do álcool, Pissolato (2007) sobre ciúmes, Migliora (2014)

sobre crianças vaijá e agressividade entre irmãs) o que coloca a necessidade de

evitar estados afetivos perigosos produzidos pela própria relação entre parentes

e intensificados por alteridades como mortos, animais e espíritos da floresta e,

suspeito, também os juruá.

As grandes caminhadas, as visitas e os passeios – de pessoas sozinhas

entre aldeias, de famílias entre aldeias, idas a cidade, formação de novas


225

aldeias, etc - colocam em jogo o paradoxo da autonomia pessoal, altamente

valorizada e respeitada entre os mbyá, e a continuidade relacional que se

estabelece entre aqueles que convivem.

Veremos no capítulo 5 como o porarõ (que consiste em sair da aldeia,

encarar a alteridade juruá e trazer da cidade recursos para compartilhar com

aqueles junto aos quais se vive na aldeia) opera como um controle das

diferenciações comuns no contexto das relações familiares (cismogênese

simétrica) por meio de uma diferenciação de caráter complementar em relação

à alteridade juruá, servindo essa externa cismogênese como controle para

aquelas que ocorrem internamente (Bateson, 2008 [1958]).


226

IV

Sobre a presença Mbyá no centro de Porto Alegre.

O sociólogo deve, entretanto, ter sempre presente no


espírito que as instituições primitivas não são apenas
capazes de conservar o que existe, ou de reter
provisoriamente os vestígios de um passado que se desfaz,
mas também de elaborar inovações audaciosas, ainda que
as estruturas tradicionais com isso se transformem
profundamente.

Claude Lévi-Strauss em Guerra e Comércio entre os


índios da América do Sul, 1942.

IV.I. Apresentação.

Vimos no capítulo anterior como se desenrolava o cotidiano das famílias mbyá

junto às quais realizei a primeira etapa do trabalho etnográfico. Ademais

tornaram-se matizadas pela realidade vivida algumas concepções de mundo e

conceitos específicos particulares ao universo social e cosmológico mbyá

mapeadas no primeiro capítulo. No que diz respeito às vivências das mulheres

que me acolheram na aldeia, procurei demonstrar a importância “supra-

econômica” da prática do porarõ, especialmente no tangente às dinâmicas

relacionais no equilíbrio de tensões domésticas.

Neste capítulo prosseguirei descrevendo e analisando a experiência das

mulheres mbya na cidade. Desta vez serão expostos os dados etnográficos

produzidos junto a essas mulheres em suas permanências no centro da cidade

de Porto Alegre.

As motivações e condições de permanência das pessoas mbyá, homens,

mulheres e crianças, no centro da cidade, são perpassadas por valores comuns


227

a outros importantes espaços de seu mundo social; refiro-me aqui a temas como

a autonomia e a independência mencionados no segundo capítulo. Valores que

se mostraram fundamentais quando esmiuçamos as dinâmicas de composição

e reconfiguração de grupos de parentesco e o fluxo de pessoas e famílias que

redundam na formação de ocupações e aldeamentos.

Um olhar atento sobre o fenômeno urbano em que se constitui a prática do

porarõ revela linhas que ligam famílias e aldeias e orientam os trânsitos das

famílias pelas aldeias. Essa forma específica que adquire a presença indígena

na cidade torna manifesta a coexistência, a justaposição e a comunicação de

duas redes específicas: as redes de mulheres e as redes de homens, com ênfase

na primeira no contexto em questão.

Embora a presença de homens mbyá na cidade seja incontestável, o

protagonismo feminino e infantil é evidente. A prática do porarõ é um dos

desdobramentos da escassez de recursos e da desestabilização do papel

masculino na composição da subsistência dos grupos familiares. Confinados em

territórios inadequados e artificiais, dados pela definição não indígena do que

deveria ser uma Terra Indígena90, tanto por suas dimensões reduzidas e sua

fixidez, quanto por suas características ecológicas, em boa parte dos

aldeamentos mbyá no Rio Grande do Sul (e de todo país) a tradicional divisão

sexual do trabalho que centrava a atividade masculina na caça é tornada

90 Ver discussão sobre a artificialidade do modelo de Terra Indígena e suas consequências sobre
o modo mbyá guarani de se relacionar com os espaços, entre coletivos e com as alteridades que
povoam seus mundos.
228

insustentável. É nesse contexto que a produção e a venda de artesanato

aparecem como estratégia para obtenção de recursos amplamente difundida91.

Entre os Mbyá, no Sul e no Sudeste do Brasil, duas tendências aparentemente

contraditórias são recorrentemente observadas por pesquisadores desde a

década de 1950 (Goldman, 1959): 1) a manutenção de uma série de

comportamentos que visam controlar o acesso de pessoas não indígenas à vida

cotidiana destes grupos, sobretudo no âmbito aldeão; 2) a crescente substituição

de atividades como caça, pesca e agricultura pela produção e comercialização

de artesanatos. Onde há aldeias Mbyá, seja em grandes capitais como São

Paulo e Porto Alegre ou de pequenas cidades como Parati, assim como nos

acostamentos de diversas estradas, observa-se a presença de pessoas ou

famílias indígenas que expõem para venda objetos como bichos de madeira,

cestos, arcos e flechas, zarabatanas, brincos, pulseiras, colares, etc.

Esse fenômeno configura-se na justaposição de diversas questões como:

divisão sexual dos trabalhos, obtenção e redistribuição de recursos financeiros

nos grupos domésticos e relações com a alteridade não indígena.

Paradoxalmente, essa população, que vivencia uma das experiências de contato

mais intensas e longas de nossa história, consegue ainda hoje manter a

centralidade de sua sociocosmologia e continuam a falar a sua língua, mesmo

quando estão na cidade.

91 Ver Assis (2006) sobre produção e circulação de artesanatos entre os mbyá no Rio Grande
do Sul e Macedo (2010) sobre a emergência dos corais entre outras formas de obtenção de
recursos por meio da relação com a alteridade não indígena em São Paulo.
229

O objetivo desse capítulo é expor e analisar os comportamentos e valores

mobilizados nessa forma específica de obtenção de recursos na cidade, seja por

meio da comercialização de artesanatos, ou do recebimento de doações.

Focalizarei as particularidades da realidade etnografada, sem a pretensão de dar

conta da crescente relevância da atividade comercial na composição do

panorama da subsistência das famílias mbyá de modo mais amplo.

O centro da capital do Rio Grande do Sul é um lugar de encontro entre parentes

de diversas aldeias, mas ao mesmo tempo é um lugar no qual a relação entre

moradores de uma mesma aldeia acontece de uma forma diferente. Isso por se

tratar de um lugar onde os mbyá compartilham e reificam uma identidade

específica por oposição a algumas alteridades humanas centrais em seu

universo social: os “brancos” (juruá) e os Kaingang (pongé). É de acordo com

essas linhas de reificação de laços, possibilitada pela atmosfera ambígua da

cidade, que os panos se unem e se dispersam pelas calçadas da cidade, quando

mulheres aparentadas de diversas formas e suas crianças se sentam juntas para

“esperar” (-arõ) pelas coisas do mundo do branco.

A hipótese aqui elaborada supõe a operação de um mecanismo de neutralização

dos afetos negativos gerados nos conflitos locais na vivência aldeã, geralmente

marcada por um faccionalismo relacionado muitas vezes à questões do

parentesco por afinidade, tal como observado no contexto familiar descrito no

capítulo 3 e por tantos outros exemplos oferecidos pela bibliografia guarani (ver

o cap. 2 sobre conflitos, cisões e formações de aldeias). Esse mecanismo

operaria por meio de caminhadas (-guata) e produção de encontros positivos, no

sentido da identificação, com os “seus mesmos” (nhade va’e meme) entre Outros
230

no espaço dos Outros, aos quais se opõem passivamente ao refutarem a

comunicação. Tudo isso ficará mais claro por meio da descrição etnográfica.

IV.II Sobre o que é comercializado: o artesanato.

A prática do porarõ não se relaciona ao tema do parentesco exclusivamente por

meio da produção de recursos para núcleos domésticos. O que se leva da aldeia

para trocar por esses recursos (comida e dinheiro), os artesanatos (mbyá

rembiapó ou mbyá apó92) são produzidos e postos para circular entre as pessoas

a partir de critérios de gênero e de relações de parentesco. Geralmente as peças

entalhadas em madeira são produzidas por homens, ao passo que os trançados

são preferencialmente produzidos pelas mulheres. Contudo, essas regras não

são rígidas e ao longo do trabalho de campo vi homens trançando cestos e

mulheres talhando e queimando bichos de madeira (vixo ra’anga).

Ainda assim, em campo junto com as mulheres mbyá no centro de Porto Alegre,

constatei que a maior parte dos artefatos talhados em madeira postos à venda

tinham sido produzidos por sogros e cunhados, ao passo que os cestos, filtros

dos sonhos, pulseiras e colares tendiam a ser produzidos pelas próprias

mulheres, que muitas vezes diziam ter contado com a ajuda de suas filhas

mulheres (kunhãgué rembiapó). A supressão da figura do marido no discurso

92 nhande kuery rembiapo ‘o feitio da nossa gente’, do v. t. direto -apo ‘fazer’. COM POSSUIDOR
AGENTE QUE É FLEXÃO DE PESSOA: xerembiapo ‘aquilo que faço’, do v. t. direto -apo ‘fazer’;
(Dooley 2008: 101)
231

das mulheres contrasta com a frequente presença real desses homens junto aos

panos em alguns momentos, volto ao tema adiante.

Na maioria dos panos observados havia bichos de madeira (vixo ra’anga),

colares de contas variadas93 (mbo’y), brincos de penas coloridas (nambixã)

pulseiras (poapy reguá), chocalhos (mbaraká), cestinhos (ajaka’í), zarabatanas

e os arcos e flechas (guyrapa), além de plantas como as bananinhas do mato

(karaguataí)94, Macela, orquídeas, bromélias e cactus. Os filtros dos sonhos

vinham sendo incorporados recentemente ao repertório de itens à venda por

algumas mulheres.

O petygua (cachimbo), importante artigo de uso ritual que vi à venda diversas

vezes ao longo da pesquisa na Tekoá Mbo’yty (no Rio de Janeiro) por valores

maiores do que quaisquer outros artesanatos, só vi à venda durante o trabalho

de campo em Porto Alegre uma vez. Isso ocorreu na feira de artesanatos

dominical do Parque da Redenção no pano de um senhor idoso ainda no final do

ano de 2014. Nessa ocasião comprei o único petyguá95 que o referido senhor

expunha pelo valor de R$ 40,00. No centro da cidade nunca vi petyguá à venda.

93 Frequentemente fabricados com Lágrimas de Santa Maria (kapi’ia) e Olho de Boi (kuru üãi),
entre outras encontradas nos terrenos de muitas aldeias, menos frequentes, embora não
inexistentes, eram os artesanatos fabricados com miçangas.

94 Bromelia antiacantha.: que os juruá compravam para fazer xarope contra gripe e bronquite.

95 Durante minha permanência na casa de Níria este petyguá sumiu misteriosamente.


232
233
234

IV.III. Do porarõ:

Mencionei mais de uma vez que o porarõ do centro de Porto Alegre não é a única

circunstância na qual se vê pessoas, mulheres, homens ou numerosas famílias

comercializando artesanato e recebendo doações de não indígenas na região

metropolitana de Porto Alegre. Há, também, na região central da cidade, aos

domingos, o Brique do Parque da Redenção. Uma feira de antiguidades e

artesanatos descrita no capítulo 3, muito frequentada pelos mbyá com o objetivo

de produção de recursos. Contexto no qual alguns grupos utilizam-se, inclusive,

de apresentações musicais para estimular as doações. Além desta feira é

possível vê-los de diversas formas no centro de pequenas cidades vizinhas,

como Viamão, e nos acostamentos de diversas estradas nas proximidades de

aldeias e acampamentos. Essas modalidades de atuação não serão abordadas,

pois não tenho dados consistentes sobre elas.


235

Figura 1Pano de Níria no Brique da Redenção.


236

IV.IV. Particularidades da prática do porarõ.

Alguns fatores fazem do porarõ no centro da capital gaúcha um fenômeno sui

generis. A regularidade da prática é um fator relevante. Embora em alguns dias

a presença de panos de mulheres mbyá fosse escassa, chegando a um ou zero

panos em alguns dias de inverno ou na semana que antecede a páscoa (quando

a presença Kaingang nas ruas da cidade é massiva), entre 2015 e 2017 observei

que fora desses períodos de exceção a presença mbyá na cidade era regular, e

nos períodos de menor intensidade na prática do porarõ o número de pontos na

cidade variava entre 3 e 16 panos. De outubro a dezembro o número de panos

aumentava claramente. Em dezembro contabilizei a presença de 22 panos, de

pessoas de diversas aldeias, no centro da cidade, que foi número máximo

observado por mim.

O aspecto de rede que promove a comunicação, seja entre mulheres vizinhas

ou moradoras de diferentes aldeias, e a circulação de parentes em visitas

prolongadas, parece estar entre as principais motivações da prática do porarõ.

Essas visitas prolongadas consistem na permanência, por semanas ou meses,

de pessoas ou famílias habitantes de aldeias mais afastadas na Região

Metropolitana de Porto Alegre, na casa de parentes nas aldeias mais próximas

ao centro (Lomba do Pinheiro, Itapuã, Lami e Cantagalo) com o intuito de fazer

porarõ regularmente96.

96 Menciono no capítulo 3 como isso ocorreu na casa que me recebeu enquanto eu fazia o
trabalho de campo na aldeia. A família visitante, após a minha saída do campo, também deixou
de permanecer na casa de minha anfitriã, mas voltou a fazer esse tipo de visitas a outros
parentes, moradores da aldeia da Lomba do Pinheiro. Ouvi em campo outros casos desses tipos
de visitas prolongadas tanto a aldeia da Lomba quanto a aldeia do Itapuã, neste caso a
237

No discurso de muitos de meus interlocutores, as saídas da aldeia em direção à

cidade, muitas vezes tem o claro intuito de estimular a “alegria” (-vy’a) daqueles

que assim o fazem. Essa alegria consiste no passeio em si, na saída do contexto

doméstico e aldeão que costuma ser permeado por tensões que lhes são

particulares. Os encontros promovidos por essa prática, com Outros próximos e

distantes, e com os recursos que cada tipo de alteridade tem a oferecer, estão

no cerne da questão.

Na cidade as mulheres atualizam umas às outras com notícias de suas aldeias,

programam viagens para a casa de parentes em outras aldeias e assim

fortalecem os seus laços a despeito dos limites espaciais de suas aldeias,

mantendo o fluxo que caracteriza o modo de vida mbyá. É neste quesito que os

valores da autonomia e o tema do ethos caminhante mbyá se entrecruzam no

centro da cidade por meio da prática do porarõ.

O motor econômico da prática do porarõ possui duas faces: se por um lado, trata-

se muitas vezes de uma real escassez de recursos que impulsiona as mulheres

rumo ao centro, por outro lado, o dinheiro gerado é muitas vezes gasto na própria

cidade com itens de consumo imediato. O segundo aspecto reforça a ideia da

cidade como ambiente de encontros que atuam alegrando-os por meio das

relações e do estímulo ao fluxo pela rede de parentesco dispersa entre diversas

aldeias. Esses aspectos não estão totalmente dissociados, uma vez que uma

família que passa por situações de penúria extrema em determinado contexto

aldeão, ao encontrar parentes de outra aldeia durante o porarõ no centro reifica

interlocutora me informava duas aldeias de origem: aquela na qual tinha sua casa e suas coisas
e aquela na qual estava sendo recebida naquele momento.
238

ali seus laços possibilitando uma visita, ou mesmo uma mudança para junto

daqueles que podem vir a fortalecê-los materialmente.

Outra constatação importante é que eventos como bailes e campeonatos de

futebol sediados em determinadas aldeias estimulam a ida de alguns mbyá à

cidade, para que possam produzir dinheiro para arcar com tais passeios. Cabe

ressaltar que para tais eventos os caciques muitas vezes alugam ônibus para

levar os moradores de suas aldeias para a aldeia anfitriã, e o valor da passagem

costuma ser cobrado dos interessados em ir ao evento. Entre as principais

motivações para tais deslocamentos estão visitas à parentes e a busca por

possíveis casamentos.

IV.V. O panorama das necessidades: uma ilustração etnográfica.

Certo dia deparei-me com o pano de Vitorina, minha primeira anfitriã na aldeia

onde realizei meu trabalho de campo. Há muito tempo não a via no porarõ do

centro. Ela estivera grávida e trazia consigo sua bebê, Maiara, de quase um ano

de idade. Sobre seu pano uma variedade maior do que a habitual de artesanatos,

muitos dos quais feitos pela própria (até mesmo alguns animais em madeira, os

vixo ra’anga).

Sua ausência prolongada do centro da cidade, o seu reaparecimento e o

aumento da regularidade de sua prática do porarõ me trouxeram algumas

questões colocadas ainda no tempo em que eu acampava no terreno onde

Vitorina morava junto a sua família (ver descrição no capítulo 3). Tais questões
239

diziam respeito a real necessidade financeira tanto da prática do porarõ no centro

de Porto Alegre quanto das idas ao Brique da Redenção aos domingos.

Certo domingo, durante o meu campo na aldeia, ao sair de minha barraca no

pátio da casa de Vitorina no meio da manhã, notei que ela parecia um pouco

contrariada ao comentar que por não ter ido ao Brique naquela manhã, precisaria

ir ao centro para fazer porarõ na cidade durante a semana. Aquele comentário

estava claramente relacionado ao fato de eu não ter acordado cedo para sair

com ela e suas filhas rumo à cidade, ou seja, por eu não ter saído com ela, pois,

sendo ela a responsável pela minha presença ali, não poderia me deixar sozinha

na aldeia. Lembrei-me que, por ocasião de minha chegada, poucos dias antes

eu havia levado, para agradá-la, compras que incluíam itens desejados por ela:

carne, fumo de rolo, farinha de trigo, arroz, feijão e café. Durante minha

permanência fui mais de uma vez ao mercado local para comprar o que ela itens

que ela me orientava de acordo com as necessidades de seu grupo doméstico,

na intenção de melhorar e estabilizar minha situação junto àquela família.

Entretanto, sempre que eu propunha explicitamente uma contribuição regular

financeira ou de alimentos, em troca de um espaço para permanecer em uma

das duas casas da família, recebia uma recusa educada seguida de sugestões

de que eu conversasse sobre alternativas habitacionais com o cacique. Aquela

família mbyá foi sempre mais do que explicita em seu posicionamento de que

não adotariam em seu lar um pesquisador juruá por maior que a recompensa

financeira por esse acolhimento pudesse ser. Diante dos meus reiterados

pedidos para ali permanecer, sugeriram apenas que eu construísse ali uma

casinha para mim. Paradoxalmente, isso redundaria em gastar na construção o


240

dinheiro que poderia ser usado para obtenção de recursos para aquela família.

De todo modo, a ideia não foi bem acolhida pelo cacique e eu não poderia

mesmo pagar pela construção.

A pergunta que me ocorria insistentemente era: por que uma família em situação

de dependência de “esmolas”, venda de pequenos artesanatos e plantas,

recusaria recursos que poderiam ser cruciais para a subsistência familiar, só

para não receber um “branco” em sua casa? Vim a concluir, como veremos, que

acima de tudo cabe justamente questionar o que configura uma situação de

fartura e uma situação de miséria e falta de recursos; em suma, cabe descobrir

o que os mbyá consideram como sendo as suas necessidades básicas.

O grupo familiar mbyá em questão era composto, à época do trabalho de campo

na aldeia, por um casal e suas quatro filhas, dentre as quais somente as duas

mais novas (então com 7 e 11 anos) moravam na mesma construção que eles.

Morando as duas filhas mais velhas, de 16 e 18 anos, na casa em frente a uma

outra, onde eram armazenados alimentos, uma geladeira e um fogão. Depois da

minha saída da aldeia o casal tivera mais uma menina.

Em volta havia a roça da família, onde plantavam mandioca (mandió), abóbora

(andaí) e feijão e tangerina (narãpe), entre outros cultivos deles, contíguos aos

de outros núcleos vizinhos da família extensa, que chegava ao próprio cacique

por meio do casamento deste com a irmã de minha anfitriã. Além disso, aquele

grupo nuclear tinha seu próprio galinheiro através de um projeto da EMATER, o

que lhes rendia algumas refeições e pintinhos para o futuro, embora não

tivessem nenhuma finalidade comercial. Por fim, o marido de minha interlocutora

e anfitriã era o único agente de saúde da aldeia e para isso recebia um salário
241

que os colocava entre a “elite financeira da aldeia”, junto aos professores

indígenas e outros que ocupavam cargos com salários fixos. Ou seja, de modo

algum a necessidade de ir à cidade ao longo da semana parecia estar

relacionada exclusivamente ao retorno financeiro (que inclusive era bastante

incerto e implicava um investimento mínimo de quase R$10,00 em passagens).

Então, afinal, o que compunha o panorama da “necessidade” de sair da aldeia

rumo a cidade?

Posteriormente, em entrevista no centro da cidade, Vitorina enfatizou tanto a

relevância dos recursos materiais quanto dos outros aportes que a cidade

oferece aos praticantes do porarõ. Segundo ela, o dinheiro arrecadado com as

doações e vendas é utilizado na compra de itens alimentícios essenciais como

óleo, arroz, feijão, erva-mate, macarrão e farinha de trigo. Ao mesmo tempo, as

doações de comida que ocorrem durante as tardes de porarõ são importantes,

pois fazem com que ela não precise gastar com sua alimentação na cidade. Além

disso, apesar dos riscos implicados na permanência na cidade e no

consumo de “comidas de branco”, há no passeio benefícios como os

aprendizados sobre o modo de ser dos juruá e, sobretudo, o encontro com

parentes de diversas aldeias.

IV.VI. Sobre a produção de dados etnográficos a respeito da presença mbyá

no Centro Histórico de Porto Alegre.

Durante o trabalho de campo na cidade acompanhei antigas e novas

interlocutoras. As dificuldades em travar novas relações entre as mulheres mbyá,


242

abordadas na introdução e no capítulo 3, se repetiram mais uma vez nesta etapa

da empreitada etnográfica. Desta vez, no entanto, contei com a ajuda de

algumas de minhas colegas moradoras da aldeia onde havia realizado a primeira

etapa do trabalho de campo, que me apresentaram a suas parentas. Por meio

da constatação da minha relação amigável com algumas das frequentadoras

mbyá do centro da cidade e do meu conhecimento da língua mbyá, uma maior

abertura foi conquistada entre algumas mulheres que faziam porarõ, que até

então não eram minhas conhecidas.

Embora os fatores mencionados contribuíssem para facilitar o acesso e o diálogo

com novas personagens daquele universo, a resistência à comunicação com

pessoas não-mbyá (brancos e Kaingangs) que venho assinalando até aqui foi

marcante também nesta etapa da pesquisa. Assim, não raras foram as vezes em

que todas as minhas tentativas de conversar com determinadas mulheres foram

rebatidas com um tímido silêncio, algumas vezes de modo cabisbaixo e quase

amedrontado e outras vezes de modo risonho e quase chistoso. Voltarei ao tema

das formas adquiridas pelo silêncio na prática do porarõ ao longo deste capítulo.

Mesmo entre aquelas que mais se dispunham a conversar comigo, essa

interlocução poderia se tornar claramente desagradável. Isso porque a

permanência prolongada de uma xinhorá97 junto a um pano parecia ter o efeito

de espantar as doações e os clientes, o que naturalmente irritava minhas

interlocutoras. Mas não exclusivamente por esse motivo prático se cansavam

minhas colegas, mas sobretudo porque o tipo de relação a se estabelecer com

97 Corruptela da palavra senhora, utilizada para se referir à mulheres não indígenas.


243

pessoas não-mbyá naquele espaço era determinado pela não comunicação e a

amizade com os mesmos estava fora de cogitação para a maioria daquelas

mulheres, princípio que foi tornado explícito em uma das entrevistas que realizei

ali. Por mais de uma vez fui abordada por não-indígenas na cidade que vinham

me perguntar o porquê daquelas mulheres conversarem comigo. O que me levou

a crer que aos personagens mais frequentes e observadores naquele contexto

a tática silenciosa das mulheres mbyá já era um fato conhecido.

Pelos motivos acima expostos fui levada a elaborar uma metodologia específica

para a observação, não ativamente participante, do porarõ. A primeira etapa

deste trabalho consistiu num mapeamento dos espaços de porarõ. Percorrendo

as ruas do Centro Histórico observei que mesmo nos dias com maior número de

panos algumas ruas nunca eram escolhidas pelas mulheres mbyá.

Observei que mesmo nas ruas que mais recebiam os panos das mulheres mbyá,

os pontos onde estas se instalavam eram relativamente fixos. Digo

“relativamente fixos” pois, embora alguns pontos, por exemplo, a calçada em

frente ao Banco Santander na rua Borges de Medeiros, tivessem panos de

mulheres mbyá quase todos os dias, as mulheres em si variavam muito, não

havendo nenhuma predominância de agentes específicos sobre espaços

específicos. Embora as frequentadoras mais assíduas tendessem a ocupar os

mesmos espaços com alguma regularidade, nenhuma regra determinava esse

aspecto da atividade. Por outro lado, apesar da prevalência da ordem de

chegada na ordenação dos panos, outros fatores orientavam o movimento dos

panos ao longo dos dias, sobretudo o fator de parentesco, tema que tratarei

detalhadamente adiante.
244

A partir da constatação da existência de um repertório limitado dos espaços

utilizados para a prática do porarõ, a segunda etapa do trabalho de campo na

cidade foi o estabelecimento de algumas rotas para periódicas rondas diárias

pelas ruas assim identificadas. Além das ruas nas quais era certa a presença

dos panos das mulheres mbyá, algumas ruas imediatamente vizinhas às

mesmas eram sempre visitadas para saber se o repertório espacial inicialmente

identificado se expandia em dias de maior ocupação mbyá nas ruas da cidade,

o que raramente se confirmou.

Nas referidas rondas diárias pelos pontos de porarõ eu abordava as mulheres

para saber a aldeia de onde vinham, seus nomes, idades, quem produzia os

artesanatos que expunham (quando expunham artesanatos), em breves

interlocuções que visavam compor um recenseamento. De longe, porém, pude

observar o comportamento das mulheres com suas crianças e dos homens que

as visitavam, e muitas das constatações que fiz ao longo desta etapa do trabalho

de campo foram fruto da observação distanciada. Além destes processos de

produção de dados, foram realizadas entrevistas com algumas mulheres

enquanto encontravam-se sobre seus panos, nas quais a conceitualização da

alteridade não-indígena se tornou mais evidente, elucidando assim aspectos dos

comportamentos observados à distância.

Minha escolha por realizar este trabalho de campo em observação distanciada

tinha a finalidade de não influenciar a obtenção de recursos, sem acelerar ou

retardar os fluxos dados especialmente na interação entre pessoas mbyá e

pessoas juruá. Buscava também evitar que o papel adquirido por mim enquanto

pesquisadora na relação direta com os mbyá praticantes de porarõ na cidade


245

estancasse essas trocas, fazendo de mim, mais uma vez, uma doadora por

excelência.

Como enfatizei no capítulo anterior, as minhas contribuições materiais na

entrada e na permanência em campo eram dispensadas quando elas implicavam

um acolhimento indesejado, e consequente responsabilização pela minha

presença, em determinado grupo familiar. Na cidade, porém, esse risco era

neutralizado por estarmos no lugar onde a relação de troca ou obtenção direta

de recursos com os juruá ocorre sem implicar uma comunicação para além dos

limites dados pelos próprios mbyá. Lugar no qual a simples alegação de não

entender o português impossibilita qualquer tentativa mais insistente de

comunicação. Assim, na cidade, com os aspectos da relativa intimidade dada na

minha relação com as mulheres mbyá, algumas vezes me vi no lugar de uma

“doadora ideal”, a quem era possível pedir coisas específicas, como fraldas

descartáveis, fumo de rolo e erva-mate.

Devo sublinhar aqui que o “pedintismo” não faz parte das relações travadas

entre pessoas mbyá e pessoas juruá no porarõ. Raríssimas foram as vezes em

que observei mulheres adultas “pedindo” doações, ou mesmo dando margem a

conversas prolongadas com pessoas juruá que tivessem comprado artesanatos

ou plantas, ou que tivessem feito doações. Na verdade, esses momentos de

interlocução tendiam a ser propositalmente abreviados pelas mulheres mbyá

que, muitas vezes, falavam e entendiam menos da língua do juruá na cidade do

que o faziam na aldeia, quando assistiam aos programas televisivos em

português, entendendo bastante coisa.


246

Por outro lado, não era incomum ver crianças maiores percorrendo as ruas que

ligavam os panos de porarõ, e visitando diversos panos ao longo do dia.

Algumas delas abordavam transeuntes e, mostrando-lhes uma cestinha, diziam

“moedinha”. Era quase como uma brincadeira, estavam sempre rindo. Em

momento algum, todavia, esta ação pareceu ser estimulada pelas mulheres

adultas, ocorrendo mais como uma distração, um passeio espontâneo para as

crianças que tendiam a ficar entediadas sobre os panos.

Certo dia, por volta das nove da manhã, observei 3 meninas que tinham entre 4

e 7 anos de idade correndo livremente pelas ruas que tinham panos de porarõ98.

Elas pegavam lanches em alguns panos e levavam para mulheres em outros

panos, também ofereciam alimentos que ganharam de transeuntes às mulheres

em seus panos na Rua Borges de Medeiros e na Rua dos Andradas.

Com esses comentários desejo enfatizar a necessidade do distanciamento na

observação participante em ambiente urbano onde a classificação “Branco”

adquire um papel muito claro dentro do próprio mecanismo relacional: o papel

de fonte de recursos. Papel este que o etnógrafo assume de forma magnificada

por sua condição de interlocutor privilegiado em relação aos demais Outros que

povoam o cenário dado.

98 Tanto as três meninas que corriam, quanto as mulheres adultas em cujos panos elas paravam,
estavam ligadas ao pano de Ana Tereza, uma senhora de mais de 60 anos. Ao longo do dia os
panos dessas mulheres se juntam e se separam por ruas contíguas entre si.
247

IV.VII. Mapas do porarõ

A localização mais frequente dos panos se concentrava habitualmente junto à

grandes lojas do comércio do centro e de três agências bancárias99.

As localidades onde os panos se distribuíam encontram-se pontuadas abaixo

nas ruas Voluntários da Pátria, Marechal Floriano, Borges de Medeiros, Rua dos

Andradas, Otávio Rocha, Sete de Setembro, Dr. Flores e Avenida Julio de

Castilhos.

Lista de aldeias

A maioria de minhas entrevistadas diziam-se provenientes das aldeias do

Cantagalo, Lomba do Pinheiro, Itapuã e Lami, ao passo em que a maioria

daquelas que diziam ter sua residência em aldeias situadas em localidade mais

distantes ainda na região metropolitana de Porto Alegre como Mato Preto,

99 Santander, Banco do Brasil, Lojas Americanas, Renner, Center Shop e Panvel.


248

Riozinho, Guapo’y, Douradilho e Flor do Campo, geralmente encontravam-se

temporariamente fixadas nas aldeias mais próximas da Região Central.

IV.VIII. Um dia de porarõ:

Aata Centropy arõ’i vy (vou ao Centro para esperar um pouco), é assim que um

mbyá, geralmente uma mulher mbyá, fala que está indo fazer porarõ no centro

da cidade. À pergunta “mbaeretu reju tetãpy arõ’i vy” (Por que você vem ao

centro para esperar (fazer porarõ)? responderam-me diversas vezes, mulheres

de diferentes aldeias, de diversas idades em circunstâncias variadas: “Rovy’a

vy” (para nos alegrarmos). Apesar da imagem de escassez que possa sobressair

dos relatos etnográficos que se seguem, é importante ter em mente a perspectiva


249

dessas pessoas para que possamos talvez vir a compreender no que consistiria

essa “alegria” que buscam entre seus Outros mais ferozes, os Brancos.

A partir das 7h da manhã é possível observar a instalação dos primeiros panos

de porarõ no centro da cidade. A chegada das pessoas que esperarão sobre os

panos se dá em “levas”, conforme os ônibus que trazem os indígenas de

diferentes partes da cidade e de cidades próximas chegam ao seu destino final.

Diferentes grupos de uma mesma aldeia podem pegar o ônibus para a cidade

em horários diferentes.

Diversas vezes, enquanto estive na aldeia, peguei junto às minhas anfitriãs o

ônibus rumo à cidade, e assim pude notar que apenas idosos e crianças tinham

direito à gratuidade nessas viagens, ou seja, a prática do porarõ tem como ponto

de partida um investimento daqueles que se deslocam da aldeia ao Centro da

cidade e de volta para a aldeia. Entre 2015 e 2017 esse investimento mínimo era

de R$8,00 por pessoa (ida e volta).

Às 11h da manhã tem-se uma visão mais ou menos definitiva de como se

distribuirão os panos pelas ruas do centro num dado dia de porarõ. Isso porque

é a essa altura que os panos se fixam após a chegada daquelas que costumam

ser as últimas levas dos mbyá. Esse é o horário a partir do qual os mesmos

começam a receber as doações características do horário de almoço no centro

da cidade, que consistem em “viandas” (ou quentinhas), lanches ou restos dos

mesmos.

Estes grupos que chegam perto da hora do almoço, costumam ser os últimos

grupos numerosos a chegar na cidade. Ao passarem pelas ruas vão identificando


250

os panos de seus parentes e amigos, saúdam-nos e trocam com eles algumas

palavras, seguindo em busca de um ponto livre para fixar seu pano isoladamente

ou próximo a algum amigo ou parente com quem será interessante interagir ao

longo do dia de porarõ.

Observei duas formas de estar em porarõ, duas configurações frequentes dos

panos: 1) apresentação de muitos artesanatos e\ou plantas com ou sem cesta

para recebimento de doações, 2) pouco ou nenhum artigo destinado à venda,

sempre com a cestinha - com ou sem pano. Ou seja, os de primeiro tipo

colocavam ênfase sobre as vendas, ao passo que os de segundo tipo colocavam

ênfase no recebimento de doações. A passagem de um tipo para outro poderia

ocorrer ao longo do dia, quando ao mudar de ponto perto do final da tarde

algumas mulheres mantinham suas mercadorias guardadas para ir embora

permanecendo os momentos finais do dia de porarõ apenas com a cestinha para

recebimento de doações, sentada tranquilamente sobre seu pano, sozinha ou

acompanhada por uma ou mais crianças.

Mapeando esse fluxo específico dos mbyá pelas ruas do centro observei grandes

e pequenas doações de roupas, sobretudo roupas de frio e roupas para crianças.

Observei doações de alimentos não perecíveis, doações de brinquedos e

também frequentes doações em dinheiro (geralmente moedas ou notas de baixo

valor). As marmitas com os restos de refeições e os restos de bebidas (sucos ou

refrigerantes) doados por transeuntes juruá são tão bem recebidas por minhas

interlocutoras mbyá quanto as refeições intocadas que também recebem.

Na falta de doações deste tipo, vi muitas vezes as próprias mulheres comprarem

lanches ou refeições para si e suas crianças ou para doarem a pessoas em


251

outros panos. Observei esse tipo de doações diversas vezes. Certa vez foi a mãe

de uma de minhas principais interlocutoras, moradora da aldeia onde realizei o

trabalho de campo, que saiu de seu pano na rua Voluntários da Pátria para levar

uma refeição (“vianda”) para sua filha nas Lojas Americanas da Rua dos

Andradas. Esta costumava fazer porarõ perto do pano de sua mãe, que vinha da

aldeia do Itapuã (ver mapas das aldeias e das ruas de porarõ acima). Neste dia

seu ponto perto do pano da mãe estava ocupado por um grupo mbyá não

aparentado a elas.

Após o almoço muitas vezes ocorre uma reconfiguração dos panos pelas ruas

da cidade. A distribuição se reconfigura seja na busca por ruas que estejam

rendendo mais, seja na busca de companhia para dividir os panos, quando as

mulheres passam a dividir panos com suas mães, irmãs, tias ou cunhadas.

O tédio também é um dos componentes da espera em que consiste o porarõ.

Durante a tarde observei inúmeras vezes os panos com os artesanatos sem

ninguém ou só com as crianças. Isto ocorre quando as mulheres vão ao banheiro

público, ao comércio popular ou em visitas a outros panos. Também observei

diversas vezes mulheres e crianças dormindo sobre os panos no meio da tarde,

alheios ao intenso movimento das calçadas. A justificativa que me foi dada para

tamanha confiança nos juruá era pontual “ni nopena’i”, o que significa “ninguém

mexe” nas coisas que estão sobre o pano. Ou seja, o roubo dos artesanatos, das

doações acumuladas ao longo do dia ou mesmo das crianças era algo

inconcebível para muitas daquelas mulheres.

Nos capítulos 1 e 2 abordamos a importância do livre caminhar (-guata) para a

manutenção do bem-estar e da saúde da pessoa mbyá, que dependem do


252

“alegrar-se” (-vy’á). Sabemos que a motivação alegada pelas mulheres para as

idas ao centro é a busca por esse “alegrar-se” por meio de uma caminhada

específica. Entendo que os passeios durante a “espera” que caracteriza o porarõ

são justamente os mecanismos ativos da alegria. Isso se daria, além do encontro

com parentes, pela exploração de ambientes diferentes, práticas e objetos

estranhos.

Talvez seja pertinente formular, nos termos de uma determinada etnologia

amazonista, que essa circulação pelo espaço do outro enriqueça essas pessoas

com as potências do inimigo, na medida em que aprendem e apreendem

informações e objetos dos brancos dessa maneira. Potências que são utilizadas

em contextos mais ou menos endógenos que vão desde o contexto doméstico

(para onde são direcionados os recursos materiais assim obtidos e onde são

contadas as histórias resultantes desses passeios) até os bailes interaldeãos

(ver exposição sobre o uso do português em situações de embriaguez no final

do primeiro capítulo).

Duas das formas que os mbyá utilizam para se referir a pequenos passeios são

-paxia (corruptela do verbo passear em português) e -maë maë (olhar olhar).

Assim, especulo que um dos componentes da alegria de se estar entre Outros

tão radicalmente distintos e com os quais não se deseja uma mistura é

justamente observar, conhecer, acumular histórias para contar entre os seus.

É interessante notar que me pareceu impossível que na cidade qualquer mbyá

me note a alguma distância. Para que eu seja vista por algum mbyá no contexto

urbano é necessário que eu pare ao seu lado e agache ou o encare de perto e

diga algo para chamar sua atenção, caso esteja de pé. Diversas vezes evitei
253

caminhos para não passar por tal ou qual pano onde havia interlocutoras mais

“pidonas”, mas com o tempo percebi que nem mesmo aqueles mbyá em cuja

casa eu vivi na aldeia por diversos meses eram capazes de me notar a curta

distância quando estávamos na cidade.

A impressão que tive ao longo do campo na cidade era de que eu era

invisibilizada naquele fundo citadino, apenas mais uma juruá. O oposto ocorria

quando eu andava junto com Tamía ou Yvá pelas ruas da cidade. Elas eram

sempre reconhecidas e abraçadas por outras moças mbyá de mesma idade100.

Ou seja, há interesse em se observar e coletar recursos, mas há também que

manter o olhar seletivo e a comunicação restrita, para não se deixar encantar

pelo Outro.

Uma cena ocorrida na rua Voluntários da Pátria, local famoso pelo comércio

popular, tornou evidente para mim a diferença entre ser uma juruá na cidade e

ser uma juruá na aldeia em se tratando da percepção de meus interlocutores

mbyá. Ali encontrei com Amélia, com quem eu convivia desde 2015 durante o

trabalho de campo na aldeia, ela conversava com um ambulante que vendia

celulares usados. Estava perguntando o preço do aparelho ao vendedor, quando

o mesmo notou minha presença e logo me encarou como uma cliente mais

promissora do que Amélia. Só depois disso Amélia (que me via quase todos os

dias ali no centro além de ter convivido comigo na aldeia) me notou e - se

assustando com a minha presença - logo se desinteressou da compra. Perguntei

100 Nesses casos eram elas que evitavam as saudações que seriam aplicáveis caso não
estivessem ocupadas acompanhado a juruá amiga. A separação nas relações mbyá-juruá\mbyá-
mbyá era sempre mantida, assim como no campinho da aldeia.
254

por que ela não compraria e ela disse que não tinha dinheiro. Enquanto isso, na

calçada do outro lado da rua, encontrava-se uma de suas cunhadas analisando

as ofertas de roupas infantis numa loja bastante movimentada.

Ao tédio que passavam sobre os panos, minhas interlocutoras sempre

comparavam o tédio das aldeias. Um dos antídotos para o tédio aldeão eram os

passeios pela mata, atividade tida como mais perigosa do que os passeios na

cidade. As alteridades habitantes das matas teriam mais poderes sobre os mbyá

(poderes de atração e transformação que redundam em morte no caso do -

jepotá) do que os brancos da cidade.

Se caminhar é uma necessidade para manter o equilíbrio social e o bem-estar

individual, a condição de segurança é guiar-se por bons caminhos (tape porã): o

que é aplicável, na mata, na cidade e nas escolhas de destinos para viagens

entre aldeias, seja de mudança ou de visita. A autonomia de cada um sobre o

seu caminhar e o seu caminho sempre foi respeitada, porém os conselhos (-

mongetá) são muitos.

A presença na cidade por si só tende a gerar espontaneamente, além do

benefício da reificação de laços de parentesco e amizades entre pessoas mbyá,

artigos de desejo para mulheres e crianças mbyá como bolachinhas,

refrigerantes, iogurtes, doces, fraldas, brinquedos e roupas, além das doações

em dinheiro que fluem em direção a eles enquanto permanecem sobre seus

panos. Na cidade as pessoas permanecem sobre panos como permaneceriam

em seus pátios, conversando entre parentes e vizinhos fazendo artesanato ou

tomando chimarrão e fumando petyguá sem receber nada. A imagem desses

panos de socialização aldeã era parte do cotidiano durante meu tempo em


255

campo na aldeia, tanto em Porto Alegre quanto em Camboinhas, no Rio de

Janeiro101.

Deste modo as permanências sobre panos, a socialização e as caminhadas que

constituem as atividades do porarõ na cidade, possuem correlatos na vivência

do cotidiano aldeão e nos passeios pelas matas. No entanto, há diferenças

profundas entre as permanências na cidade e vida na aldeia. Não se leva comida

da aldeia para a cidade: nem milho, nem batata doce, nem mandioca são

consumidos entre os brancos. Embora o centro da cidade seja um local de

encontro de pessoas mbyá, o que se compartilha entre parentes ali nunca é o

mate nem o petyguá (cachimbo), como ocorre nas aldeias.

Ao longo do campo observei diversas vezes que as mulheres compravam de

ambulantes ou nas referidas “lancherias da Praça XV” lanches para consumo

imediato. Boa parte do que é coletado na cidade é consumido por ali mesmo. O

que chega do porarõ em casa nem sempre é relevante, mas a experiência da

cidade é uma experiência de consumo. Consumo das coisas do Outro, no

ambiente do Outro, encontrando e conversando com “parentes” (os seus iguais,

Nhande va’e meme – ver definição no capítulo 1).

Na cidade o consumo que se observa é sempre de salgados, refrigerantes,

lanches comercializados localmente e todo tipo de alimento industrializado.

Observei também o raro consumo de frutas, provavelmente doadas. Essa

particularidade contrasta com o discurso de algumas de minhas interlocutoras

101 Também sobre panos as mulheres passam as noites na casa de rezas com suas crianças
256

segundo o qual as comidas de juruá fazem mal aos mbyá, sobretudo às crianças

e às mulheres gestantes.

Durante uma entrevista com Kerexu observei uma situação nada surpreendente,

porém bastante ilustrativa da visão e do comportamento dos transeuntes em

relação às praticantes do porarõ: uma mulher passou por seu pano em frente à

loja Renner e lhe entregou um copo de 500ml, com menos da metade de seu

conteúdo, dizendo para Kerexu: “tem pouquinho mas é suco natural de

maracujá”. Kerexu respondeu de modo padrão: agradeceu sorridente. De certo

não se faz diferença entre doações deste tipo. Pouco depois uma funcionária da

padaria do outro lado da rua veio até Kerexu com uma pequena mamadeira com

refrigerante dentro para a bebê que esta tinha no colo: oferta que Kerexu

agradeceu da exata mesma maneira.

Em outra ocasião observei que Vitorina comia um resto de maionese de dentro

de um saco plástico do Center Shop, assim como já tinha visto Yvá comer

strogonoff de dentro de uma sacola doada. Aquilo me apavorava sobremaneira,

pois além de não se saber exatamente a proveniência daqueles alimentos, o

modo de armazenamento não me parecia minimamente adequado. As

preocupações de minhas interlocutoras, porém, não eram da mesma ordem. Ao

passo em que Yvá não tinha qualquer receio de pegar doenças através do

compartilhamento de comida com os juruá, Vitorina dizia que compartilhar

comida do branco não era bom para a saúde dos mbyá, mas era melhor ganhar

do que gastar comprando comida na cidade.

Creio que a inovação proposta pelos mbyá nesse caso particular parte da

percepção de que o juruá entende a permanência sobre panos e a espera


257

tediosa na cidade como índice de uma coisa muito específica (miséria e

necessidade) que demanda resposta material. Essa confusão, que é apenas

parcial dada a recorrente situação de escassez de recursos nas aldeias, alimenta

o interesse em praticar a espera citadina, mas espera-se mais do que o dinheiro

decorrente de vendas e doações, espera-se que aquela espera gere encontros

positivos entre pessoas relacionadas de diversas aldeias. Nesse sentido o

porarõ consiste num grande encontro de pessoas mbyá (que se assemelha aos

eventos interaldeãos mencionados algumas vezes ao longo da tese) com o

benefício de apresentar regularidade ímpar, um investimento mais produtivo do

que uma visita particular a uma aldeia específica.

IV.IX. Sobre os homens durante o porarõ no centro:

Vimos acima que o comportamento feminino preponderante durante o porarõ

para além do cuidado das crianças e do esperar sobre seus panos consistia em

formas de circulação próprias: fosse pelos panos de suas parentas para

conversar, fosse para observar e consumir itens no comércio popular das ruas

do centro da cidade. Anteriormente mencionei que também as crianças circulam

entre os espaços de porarõ. Mas e os homens?

No Brique da Redenção, feira dominical de artesanatos e antiguidades, a

presença de homens vendendo artesanatos e tocando mbaraka (violão de 4

cordas) em apresentações de corais em panos de configuração familiar, com

homem, mulher e crianças, era relativamente frequente. No porarõ do centro da

cidade, pelo contrário, a presença masculina sobre os panos era bastante rara.
258

Quando perguntadas a respeito dessa ausência masculina as mulheres me

diziam que os homens teriam vergonha de fazer o porarõ.

No capítulo 3 mencionei dados do Estudo Quantitativo e Qualitativo dos coletivos

indígenas em Porto Alegre e regiões limítrofes (2008), produzido NIT (Núcleo de

Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais)102, que corroboravam

minhas observações acerca dos modos mbyá de amortecer o contato de

mulheres e crianças com a alteridade não-indígena, sobretudo por meio do

“monolinguismo indígena” dos mesmos, que contariam com os homens para

intermediar a comunicação na ”língua do branco” (juruá ayvu).

Embora, de um modo geral, os homens mbyá apresentem, de fato, maior

domínio do português do que as mulheres, são estas últimas que protagonizam

a prática urbana de obtenção de recursos que estamos analisando. Os homens,

no entanto, sempre estiveram presentes em minhas observações na cidade. Na

maioria das vezes eles apareciam vinculados a um pano específico junto ao qual

passavam alguns momentos do dia, geralmente de pé. Algumas vezes observei

homens levando comidas para as mulheres e ajudando a cuidar das crianças por

períodos curtos, sem que os panos se apresentassem como o “pano de uma

família” pois logo esses homens desapareciam. Por volta das 17 horas observei,

algumas vezes, homens acompanhando mulheres nas filas de ônibus de volta

para as aldeias, ajudando a carregar doações e artesanatos que não foram

vendidos. Homens mais velhos e lideranças foram vistos andando entre os

panos e parando para conversar com as mulheres em porarõ algumas vezes, o

102 Núcleo de pesquisa e prestação de serviços ligado ao Departamento de Antropologia da


UFRGS.
259

que se aproxima da circulação das mulheres entre os panos de suas parentas e

amigas, confirmando o aspecto relacional do porarõ que alimenta a rede mbyá

de comunicações.

Até dezembro de 2016 havia observado apenas um caso recorrente de um

homem que, junto de sua esposa e crianças, sentava-se sobre o pano onde

passava a maior parte da tarde expondo grande quantidade de itens à venda

(plantas, bichinhos de madeira, arcos e flechas) e um homem que permanecia

junto a um pano, sem sentar-se nele, onde ficavam expostas diversas plantas,

mas nenhuma cestinha à espera de doações. Outro caso de homem mbyá

vendendo artesanatos no centro antes de dezembro foi em uma banca, estrutura

elevada e coberta para apresentação de artigos, como a dos camelôs e de

muitos Kaingang na cidade. Esse homem, que era bastante jovem, permanecia

boa parte do tempo de pé e nos primeiros dias de trabalho ali apresentava-se

com o rosto pintado (coisa que deixou de fazer rapidamente), enquanto na parte

de trás da banca, sobre um pano, ficava sua jovem esposa com uma criança de

colo, sem participar no negócio ou receber doações. Na banca havia a maior e

mais variada quantidade de peças de artesanato à venda que observei no centro

da cidade, por outro lado não se via ali nenhuma planta e nenhuma cesta para

receber doações.

Outras duas diferenças fundamentais daquele caso em relação aos panos de

porarõ eram a apresentação de uma publicação em brochura sobre os

artesanatos dos próprios mbyá guarani e a existência ali de uma máquina para

receber pagamentos em cartão. Depois de quase um mês, o jovem casal deixou

de estar na banca, quando um homem pataxó da Bahia, que estaria morando na


260

mesma aldeia que o casal, passou a trabalhar ali como vendedor. Nunca me

responderam se trabalhavam para alguém ou alguma organização naquele

ponto que mais se assemelhava ao restante do comércio popular do que aos

panos de porarõ.

Em dezembro de 2016 o número de homens sobre panos subiu. Foi então que

observei, pela primeira e única vez, um pano com um homem adulto, uma

criança de colo, poucos artesanatos e uma cestinha para receber doações, sem

a companhia de nenhuma mulher, apresentação nada incomum para panos de

mulheres, sobretudo entre as mais jovens. Neste mesmo mês observei algumas

apresentações de corais, compostos por crianças e jovens, coordenados por

homens que tocavam o mbaraka miri. Apresentações que igualmente contavam

com as cestinhas à espera de doações, como ocorria ao longo do ano nas feiras

dominicais no Parque da Redenção. Em janeiro a presença masculina no centro

voltou ao que se via nos meses anteriores, ao passo que todo o porarõ se

contraiu, por conta das viagens familiares a aldeias do interior, como ocorreu

para diversos de meus interlocutores que sumiram das ruas da cidade.

IV.X. Sobre a dispersão e a união de panos.

Constatei que, entre as mulheres que eu ainda não conhecia, as idosas (com

mais de 60 anos) se mostravam mais dispostas a conversar. Algumas

especificidades do porarõ das mulheres idosas eram uma tendência gregária em

relação à mulheres mais jovens (distribuindo-se em pontos contíguos que se

juntavam geralmente ao final do dia), a apresentação em seus panos de menos


261

itens à venda e a menor frequência de crianças em seus panos. Nenhuma

dessas características, no entanto, tinha o valor de regra, mostrando-se apenas

como tendências. Especialmente no que se refere aos movimentos de dispersão

e união de panos, que ocorriam mesmo na ausência de mulheres idosas, apenas

eram mais evidentes quando estas estavam presentes.

Apenas uma vez observei uma mulher como mais de 70 anos de idade fazendo

porarõ. Em um ponto próximo ao seu pano estava sua neta com um bebê de

colo. Ambas as mulheres vinham da aldeia de Riozinho e a senhora demonstrou

muito mais interesse em se comunicar comigo do que a neta, que, muito mais

tímida do que sua avó, não fez mais do que me dizer seu nome.

Dentre as mulheres mais jovens que vi acompanhando minhas interlocutoras

idosas todas eram ditas ser suas filhas, netas ou irmãs. No caso de Níria, minha

anfitriã na aldeia, pude observar ainda mais detalhadamente essas relações: Yvá

(sua sobrinha e nora) e Kerexu (sua filha) dificilmente compartilhavam o mesmo

pano, pois nutriam entre si grande rivalidade no contexto doméstico. Ao passo

que Níria e Yvá ou Níria e Kerexu eram normalmente vistas juntas sobre o

mesmo pano, pelo menos algumas vezes ao longo do dia.

Kerexu, por ter uma ocupação assalariada na escola da aldeia, frequentava

menos o centro nos dias de semana, sobrando só o sábado e os recessos ou

greves para ir ao centro. Ainda assim, era clara a tendência de Yvá evitar ir ao

centro quando Kerexu ia acompanhando Níria. Kerexu, por sua vez, foi ao centro

muitas vezes ao longo de 2015 acompanhada da esposa do irmão de seu marido

e das diversas crianças, filhas delas, para fazer porarõ. Foi nessas mesmas
262

circunstâncias que conheci Vitorina e sua cunhada, sobre um mesmo pano

expondo artesanatos à venda no Brique da Redenção.

Ambas as duplas de cunhadas se desfizeram rapidamente; as mulheres

continuaram a fazer porarõ no centro da cidade e a ir à feira dominical, porém

em panos que não mais se juntavam ao longo dos dias, compartilhando panos

com outras mulheres. A cunhada de Vitorina passou a ser vista com sua mãe e

com sua irmã, vindas das aldeias do Itapuã e Guapo’y, Vitorina acompanhada

de suas filhas, crianças e adultas, Kerexu passou a acompanhar apenas Níria e

sua cunhada passou a ser vista acompanhada por uma tia, que como ela vinha

da aldeia de Mato Preto.

A cidade, conclui-se a partir disso, tem o poder de neutralizar e amenizar

conflitos que podem estar em curso na vida aldeã, porém o estado das relações

que se expressam na união de panos na cidade depende de uma harmonia

anterior ao contexto urbano para ali se manifestar. Esse estado de harmonia

dificilmente se mantém contínuo entre dois parentes por afinidade. Como fica

evidente nas entrevistas, todos os dias alguns mapas mentais são produzidos

(com o repertório limitado de pontos em ruas específicas onde são colocados os

panos) pelas mulheres mbyá na cidade. Esses mapas informam onde estão as

parentas mais próximas. As localizações dos panos de tias, irmãs e mães são

sempre aquelas que minhas interlocutoras mencionam de pronto.

Andando com Níria e Tamía pelas ruas de porarõ, por exemplo, percebe-se, que

muitos são os parentes reconhecidos nos panos, mas nem todos recebem a

mesma atenção, ou qualquer atenção.


263

Ao mesmo tempo em que panos sem crianças tendem a ser de mulheres idosas,

nunca observei homens idosos no porarõ, exceto um Xeramõi (literalmente “meu

avô” –significando de modo geral homem idoso que pode, ou não, ser o ponto

central de um grupo de parentes [para mais informações a respeito dessa

categoria ver capítulo 2]) , que nunca vi sentar-se sobre um pano, embora

circulasse por muitos panos sempre que ia a cidade. Os homens que em

dezembro eu vi permanecerem nos panos da mesma forma que faziam as

mulheres, não ultrapassavam os 40 anos de idade. Lembro que, a despeito do

papel de intérpretes que esses homens tendem a assumir na relação com os

brancos, a justificativa que me deram para a falta de panos de homens artesãos

foi a “vergonha”.

IV.XI. Do outro lado da “não-relação”: uma cena etnográfica.

Em dezembro de 2016 observei que um grupo de cerca de 20 adolescentes

brancos, conduzidos por uma mulher mais velha, circulava por entre as ruas do

centro doando brinquedos para as crianças em cada pano de porarõ. Segui-os

até que acabaram os brinquedos. Foi interessante observar a decepção deles

diante da reação dos seus “agraciados”. Muitas mulheres se recusaram a abrir

os presentes enquanto eles estavam ali, agradecendo risonha e brevemente

enquanto eles permaneciam ignorados esperando. Quando algumas mulheres

entregavam os brinquedos diretamente às crianças, elas brincavam, mas o breve

agradecimento não se repetia, o que deixava o grupo dos “benfeitores”

desconcertado.
264

Rapidamente os brinquedos estavam jogados no pano ou mesmo pelo chão,

como que sem dono. Os embrulhos se perdiam pelas calçadas, distanciando-se

dos panos de origem. Embora as crianças brincassem, rapidamente o presente

perdia o interesse e era guardado ou perdido.

A reação aparentemente apática diante de doações de brinquedos, roupas ou

alimentos não perecíveis era uma regra: receber, sorrir, agradecer e ignorar, não

analisar os itens recebidos até que o doador estivesse afastado de modo que

nenhuma tentativa de comunicação se prolongasse. Inúmeras vezes, tanto nas

aldeias quanto na cidade, observei esse comportamento que frequentemente

deixava os doadores desanimados. Enquanto etnógrafa tentando entrar em

campo passei pelo mesmo tipo de situação algumas vezes, tanto no Rio de

Janeiro quanto no Rio Grande do Sul.

IV.XI.I. A visão dos juruá que trabalham no centro da cidade:

No antigo abrigo de bondes da Praça XV, próximo ao Mercado Público, onde

hoje em dia há 26 estabelecimentos que oferecem refeições a preços populares

(chamados de “lancherias”), as mulheres mbyá são conhecidas por alguns

funcionários que as cumprimentam com alegria chamando a todas de “Índia”.

Eles as tratam com cordialidade e aqueles com os quais conversei a respeito de

minhas interlocutoras dizem compreender a reação evasiva das mesmas às

tentativas de comunicação, como um aspecto de sua “indigenidade” e pelo

desconhecimento do português.
265

Alguns trabalhadores do comércio informal, que dividiam as calçadas com as

mulheres que fazem porarõ, comentaram sobre a impossibilidade de travar

relações, pela falta de abertura por parte delas.

Um consenso entre meus entrevistados não-indígenas no centro da cidade era

o de que o foco da permanência dos indígenas de cada etnia na cidade era

essencialmente diferente. De um lado os Kaingang vendendo seus artigos

artesanais (ou não) em bancas mais ou menos padronizadas, muitas vezes

trabalhando com máquinas para recebimento de pagamentos em cartão, falando

português e estabelecendo relações com não-indígenas; de outro lado estariam

os Mbyá recebendo doações e limitando ativamente toda interação indesejada

com todos os não-Mbyá.

Algumas vezes, durante ou após entrevistas mais longas com mulheres em

porarõ, trabalhadores das imediações dos pontos em que eu interagia com as

mbyá me abordaram curiosos para saber ‘por que’ as índias falavam comigo. A

surpresa dos habitantes e trabalhadores das calçadas em ver aquelas mulheres

conversando com uma pessoa branca, por si só já é indicativo do poder do

mecanismo utilizado pelas mesmas para evitar tais relações-intercâmbios-

comunicações. Trabalhei até determinado ponto do campo com a hipótese de

que haveria uma abertura maior das pessoas mbyá no centro a interações com

pessoas mais pobres, porém essa hipótese não se confirmou, e o fechamento

relacional na cidade parecia se estender igualmente a todos os não-mbyá.


266

IV.XII. Sobre palavras e sangue: gênero e guaraniologia.

Entre as mulheres mbyá é bastante raro ver a disposição em falar o português,

sobretudo, como vimos, quando estão vendendo artesanatos e recebendo

doações dos transeuntes não indígenas no centro da capital gaúcha. Embora o

consumo de material audiovisual seja frequente, seja por meio de programas de

televisão ou dvds com filmes dublados, o uso do português por parte dessas

mulheres, desde as mais fluentes nessa língua até aquelas que compreendem

pouco, aparenta ser um incômodo.

Flavia Mello (2007), Maria Paula Prates (2014) e Cebolla (2015), mulheres que

realizaram pesquisas entre os mbyá e xiripá no Sul do país e na Argentina,

afirmam que no discurso de suas interlocutoras alude-se à uma maior propensão

feminina aos estados que propiciam transformações do tipo -jepota103

103 Sobre tratamento para evitar -jepota de moça púbere em reclusão por ocasião da menarca,
estado chamado iñengue adoecida por investida de alteridade não-humana:

Segundo seu relato, fizeram dançar a moça dentro do opy enquanto cantavam para ÑandeRu
Ete. Então começou a fazer calor, tanto que os assistentes passaram a se sentir sufocados. Era
a moça que expelia o calor pelo efeito do espírito que a possuía. As orações e as fumigações
com as fumaças dos cachimbos dos líderes religiosos continuaram até que a iñengue caiu no
chão e do seu corpo emergiu um enorme sapo que tinha usurpado sua alma. A menção ao calor
que saía do corpo da adolescente e que teria afugentado sua alma quando o espírito do animal
se apoderou dela remete imediatamente ao conceito de ojeko aku, ou “estado quente”, no qual
se encontram as pessoas que estão passando por algum período de crise em sua vida.(...) Entre
os Mbya, os momentos mais críticos e perigosos do ciclo vital parecem ser o nascimento, a
puberdade e as situações de doença. Em todos esses casos, a alma da pessoa encontra-se em
um estado de grande sensibilidade e pode ausentar-se do corpo ou ser capturada por essas
outras almas não humanas que ocupariam seu lugar. (Cebolla Badie, 2015:16)
267

acarretando numa maior incidência desses casos entre as mulheres. Isso se

daria em função de uma especificidade do corpo feminino que o tornaria mais

vulnerável: o sangue menstrual.

As mulheres, talvez por sua capacidade procriadora, devem observar maiores

restrições no consumo de alimentos que poderiam lhes ocasionar futuras

doenças relacionadas com a gravidez e o parto. Era frequente os indígenas

me explicarem que antigamente as mulheres mbya se “cuidavam” muito. A

palavra “cuidar” incluía a dieta seletiva, o uso das pinturas corporais, a

utilização de plantas medicinais, as rezas e a conduta específica que

deviam ter a respeito de horários e lugares. Os Mbya atribuem muitos dos

problemas de saúde que hoje em dia afetam as mulheres ao abandono ou à

modificação dessas práticas. (Cebolla Badie, 2015:29)

Existem, por causa das diferenças dadas pelos corpos, modos específicos de

estar no mundo para homens e mulheres, chamados respectivamente de Avakue

Reko e Kunhãgué Reko. O modo feminino de estar no mundo tem relação com

a maior suscetibilidade de seus corpos à agências exógenas. Seres não-mbyá,

sobretudo não-humanos, agem por meio da sedução para tentar enganar os

mbyá na mata, fazendo-se passar por humanos propriamente ditos (lembro que

a humanidade completa se dá pelo uso das palavras que formam a alma mbyá).

Na mata, por meio da troca de palavras com seres desconhecidos e mal-

intencionados, homens e mulheres correm o risco de adoecer, passando por um

estado de confusão da alma-palavra (nhee). Vimos no capítulo 1 que esse

processo, que pode culminar na morte e posterior transformação corporal do

mbyá num ser da espécie que o seduziu, é o -jepota.

A linguagem também pressupõe intercâmbio entre seres de mundos distintos.

A comunicação, que se dá não apenas através da fala e da audição, mas


268

também da visão, é uma das formas usadas pelos espíritos predadores mais

poderosos para capturar nhe’e de humanos. Ver, ouvir ou falar com o Outro,

dependendo do poder de predação que ele possui, pode dar início ao

processo de transformação. (Mello, 2006: 164)

Os riscos das uniões supracitadas diferem fundamentalmente dos riscos das

uniões com juruá, chamadas -jejavy (para mais detalhes ver capítulo 1). Essas,

porém, são igualmente reprováveis de acordo com minhas interlocutoras. A

união sexual entre pessoas mbyá e pessoas juruá pode provocar o óbito de pelo

menos um dos envolvidos, isso por causa da diferença entre seus corpos,

sobretudo entre a potência do sangue de cada um. Além da diferença corporal

há também uma concepção relativamente disseminada de que os juruá são

vaikué (maus, avarentos, agressivos...)104.

104 Maria Paula Prates sublinha que num passado distante essas uniões teriam sido consideradas
de outra maneira, para tanto reporta-se a um relato de Santi-Hilaire:

“Se as mulheres guaranis se entregam aos homens com tanta facilidade, não
é realmente tanto por libertinagem, se não em conseqüência desse espírito
de servilismo que as impede de nada recusar. Aqui, a maior parte dos
milicianos tem uma índia por companheira. Estas mulheres são úteis para
eles, porque sabem lavar e costurar razoavelmente. Mas o que há de
aborrecido é que os filhos nascidos dessas uniões transitórias são
necessariamente abandonados pelo pai e maleducados, porque serão pelas
índias e assim se parecerão com os gaúchos espanhóis pouco a pouco, a

raça branca degenerar-se-á na Capitania do Rio Grande do Sul.” (Prates


2014:222 apud Saint-Hilaire 1999: 277)

À luz do que nos conta Saint-Hilaire podemos intuir que essas mulheres desempenhavam um
papel importante nas relações com os brancos, não fugindo à regra de povos falantes do Tupi
quanto a estabelecer alianças com inimigos/cunhados tovajá.
269

Creio que resida nessas considerações acerca da não humanidade, ou da

incompletude da humanidade, dos não-mbyá e nas especificidades profiláticas

do comportamento feminino prescrito - de se portar de modo a evitar que

intencionalidades outras venham a agir sobre sua consciência humana e sobre

seus corpos, sobretudo evitando comunicações com desconhecidos – a chave

para compreender o silêncio seletivo das mulheres mbyá na cidade.


270

Considerações Finais

Mas no estudo dos equilíbrios – e toda antropologia cultural


e social é um estudo de equilíbrios – nunca podemos ter
certeza de que todos os fatores relevantes foram
mencionados. É demasiado arriscado apontar alguns
fatores como constituindo, por completo, a causa do efeito
que queremos explicar. No presente contexto, teria sido
perigoso apontar os fatores estruturais sobre os quais se
constrói o complexo do Naven e afirmar que os aspectos
sociológicos da questão eram irrelevantes; igualmente
perigoso seria preferir de forma intolerante a visão
sociológica e negar a importância da estrutura. Nesses
casos, é mais seguro dizer que os fatores conhecidos
contribuem para o efeito em questão, e prosseguir com a
busca de outros elementos que podem também contribuir
para o equilíbrio.

Gregory Bateson em Naven, 1958.

1.Dos métodos de exposição e argumentação adotados.

Ao longo dos capítulos desta tese busquei expor separadamente o plano

sociocosmológico sobre o qual são projetadas as experiências da realidade

cotidiana por meus interlocutores mbyá e os dados produzidos por meio desta

interlocução. Meu objetivo com esse modelo de exposição era fazer emergir dos

próprios dados múltiplas chaves de análise, sem confundi-los com modelizações

exteriores. Admito, no entanto, que entre os eventos e fenômenos observados e

outros casos etnografados (sobretudo entre outros povos ameríndios, mas

também além deste universo) muitas continuidades poderiam ter sido


271

apontadas. Ao mesmo tempo, muitos contrastes poderiam ter sido feitos com

outros casos etnográficos nos termos de oposições, variações ou

transformações na forma como outros povos ou coletivos lidam com as relações

inescapáveis com a sociedade não indígena e seus, também diversos,

indivíduos e coletivos.

Contudo, a opção pela narrativa etnográfica direta permitiu que o espaço dos

capítulos etnográficos fosse utilizado para oferecer a contextualização mais

ampla e completa possível das práticas etnografadas. Neste sentido, saliento

que os exercícios comparativos105 que não foram priorizados ao longo da

argumentação proposta nesta tese deverão ser empreendidos em publicações

105 O principal exemplo de projeto comparativo a ser empreendido num futuro próximo a partir do
material exposto ao longo desta tese consiste numa comparação entre a postura dos praticantes
do porarõ em relação aos não indígenas e a postura do grupo junto ao qual realizei trabalhos
etnográficos entre 2009 e 2013 no Rio de Janeiro. Estes últimos produziam eventos de Forró
para captação de não indígenas específicos com os quais firmavam alianças informais e mesmo
casamentos.

Naquela situação concluí que meus interlocutores mbyá se engajavam ativamente na produção
de pessoas por meio de captura de potencias externas, fazendo-se sujeitos de relações
perigosas tanto na casa de rezas, a Opy, (com a obtenção dos nomes nos processos de batismo)
quanto no Forró, com inimigos-afins potenciais (Fausto 2004:165 apud Vilaça 1992:51). Em
ambos os contextos mencionados meus interlocutores de então agiam cantando e dançando,
embora em cada situação utilizassem modalidades musicais correspondentes. Essas “armas de
atração” da alteridade, agiriam no sentido de “impor respeito” (Macedo, 2012: 398) o que significa
“impor sua perspectiva” para a produção de pessoas propriamente mbyá a partir da interação
com potências exógenas. Numa quase inversão do esquema observado na prática do porarõ
enquanto mecanismo de relação com a alteridade não indígena.
272

futuras, uma vez que muitos passos deverão vir em seguida e o trabalho não se

encerra por aqui.

Espero que a ênfase na contextualização multifocal dos dados, por meio da

exposição direta e pragmática, torne este trabalho uma contribuição interessante

aos estudiosos que por ventura possam vir a lançar mão deste material em suas

próprias pesquisas sobre os temas suscitados pelos fenômenos que foram

abordados. Ainda assim, interessa, esboçar brevemente uma hipótese, à título

de consideração final, acerca dos processos de diferenciação internos aos

coletivos mbyá, as reconfigurações dos “grupos” expressos territorialmente no

contexto aldeão por meio das unidades domésticas e da manutenção de seu

equilíbrio dinâmico.

Nos capítulos 2 e 3 foram explorados dados constantes na bibliográfica

guaraniológica e dados de primeira mão que tornavam evidentes as tensões

locais, sobretudo domésticas, que marcavam os processos de reconfiguração de

coletivos de parentes, muitas vezes envolvendo mudanças entre aldeias de

indivíduos ou partes de grupos maiores que assim se alteravam. Foi evidenciado

o papel da afinidade nesses casos de tensão, enquanto aspecto de manutenção

de um fundo de alteridade no interior de parentelas que se esforçavam

ativamente para produzir a harmonia em tais situações.

Um elemento importante neste cenário eram as caminhadas que, com maior ou

menor duração e extensão percorrida, muitas vezes eram realizadas com o

objetivo de apaziguar situações de conflito e estados afetivos nocivos ao bem

viver do grupo doméstico ou unidade supradoméstica mantida por laços de

parentesco. Acredito que esses aspectos das dinâmicas relacionais mbyá sejam
273

bons elementos para pensar o porarõ em associação com suas motivações

econômicas. Nas palavras de uma das mais importantes lideranças mbyá na

Região Metropolitana de Porto Alegre o porarõ é definido da seguinte maneira:

“O guarani continua a viver no seu sistema. Antigamente a mulher visitava

seu parente longe e no caminho buscava fruta e outros alimentos. Ela andava

pra comer. Esse andar era a busca da vida, pra conseguir o que comer. Eu

lembro bem (...). De repente saíamos com a família pro rio, ficamos três dias

lá, pescando e comendo por lá mesmo. Fazíamos bolo de milho verde, pra

comer e levávamos pra não passar fome no caminho. A criança tava sempre

com a mãe, ela não tinha fome, porque a criança se alimenta

espiritualmente da mãe. Nós fazíamos festa lá, com alegria, com saúde.

(...) Era uma busca de alegria a vida pro guarani. Porque a mulher gosta

de caminhar para resolver o problema dela, pra buscar alegria. Ela vai

ao centro e ganha. Ela é acostumada com a vida comunitária. Hoje não

tem mais como esquecer o problema. Hoje, por exemplo, nós plantamos

cana, mas não cresce. Isso é uma tristeza pra nós. Então a mulher vai

buscar alimento. (...) Hoje a mulher tem que sair, tem que ir ao Centro buscar

alimentação. Então o branco vê outra coisa, vê mendicância. O branco tem

que aprender a olhar. Antigamente o Guarani vai com a família para dentro

do mato, leva cachimbo, o Karaí batiza o espaço e agradece o dono do mato,

o dono do rio, por isso o mato dá tatu em troca” (José Cirilo Morinico em

Ouriques Ferreira e Pires Morinoco, 2008: 42-43).

Em consonância com os dados expostos essa síntese nativa da própria prática

é o ponto de partida para algumas reflexões que desenvolvo a seguir, à guisa de

conclusão.
274

2. Algumas reflexões e ferramentas analíticas pertinentes:

Para os Daribi, povo das terras altas da Nova Guiné etnografado por Roy Wagner

(1974), aquilo que a antropologia costumava entender, à luz do conceito de

“sociedade”, como unidades ou grupos sociais seriam antes processos

dinâmicos de distinção e coletivização do que realidades objetivas e estáticas.

Estes seriam concebidos por meio do delineamento de fronteiras distintivas de

acordo com critérios mais ou menos variáveis que se adequariam ao contexto e

ao propósito de se delinear de tal ou qual maneira uma continuidade entre

determinados agentes, o que implica automaticamente o estabelecimento de

distinções de mesma ordem em relação à outros agentes. Processo que resulta

na estipulação de coletivos ligados por obrigações, prescrições e interdições.

No caso Daribi, o que o antropólogo pode interpretar como um grupo nunca será

uma realidade estaticamente organizada, mas uma configuração

situacionalmente elicitada por meio da manipulação de critérios como a

onomástica clânica, por exemplo. Assim, apesar da aparente fixidez dada pelas

referidas prescrições e interdições, as fronteiras delimitadas poderão ser

contextualmente deslocadas de modo a permitir trocas e casamentos

interessantes. Processo a respeito do qual o autor afirma:

Even though one does not “start out” with groups, since these are never

deliberately organized but only elicited through the use of names, one always

ends with specific bunches of people as be’bidi and pagebidi. It is an

“automatic society”, one that appears in concrete form wherever the right

distinctions are made. What we might want to call the “permanente” sociality

exists as an associational context flowing from one such ad hoc occasion to

another. (Wagner, 1974:111)


275

As categorias de pessoas produzidas pelas referidas distinções e os coletivos

assim configurados, o autor continua, tendem a se congelar por meio das

restrições e prescrições específicas entre agentes assim associados em

ocasiões como trocas matrimoniais e nascimento de crianças. O que, ainda

assim, não é o suficiente para produzir uma realidade estática. É nesse aspecto

que o caso em questão se faz pertinente para pensar o material etnográfico

exposto no capítulo 3, por exemplo.

Na aldeia do onde realizei meu trabalho de campo, em três momentos essa

fluidez das fronteiras que delimitam o parentesco entre indivíduos ou coletivos

determinados ficou particularmente explícita. 1) Quando Vitorina refletindo sobre

como, de acordo com o ponto de vista relacional adotado, todos naquela aldeia

seriam seus parentes. E concluiu comparando aquele parentesco localmente

generalizado aos elos de uma corrente, ao passo que em outros momentos

deixava de reconhecer esses laços. 2) Quando a filha mais velha de Vitorina,

Ane, afirmou não poder se casar naquela aldeia por ali serem todos seus

parentes, ao mesmo tempo em que sua irmã mais nova estava em vias de se

casar com um rapaz da aldeia, o que a própria Ane também viria a fazer em

seguida. 3) A dupla inserção de Yvá na família de Níria. Vista pelos filhos da

matriarca como uma cunhada cuja presença naquele grupo doméstico era

dispensável na medida em que seu companheiro havia partido para outra aldeia

dissolvendo a relação, a despeito da gestação corrente. Ao mesmo tempo em

que entre ela e a matriarca do coletivo em questão a relação marcada não era a

de afinidade, mas a de consanguinidade, uma vez que esta era vista como filha

de uma irmã de Níria. Situação conflituosa que em seu ápice fazia com que Yvá

passasse temporariamente a afirmar pertencimento à outro grupo de parentes,


276

amboae retarã kuery, sua família no Jaraguá (São Paulo). Discurso que se

alterou mais de uma vez conforme o fluxo das tensões se desenrolava naquele

contexto.

Evidentemente as analogias entre os casos Daribi e Mbyá são limitadas. Porém,

as dinâmicas vinculadas à essa liberdade associativa e dissociativa possui

consequências tangíveis e muitas vezes problemáticas quando pensamos nos

critérios institucionalmente estipulados pela sociedade não indígena para o

estabelecimento de aldeias enquanto terras indígenas com seus direitos

assegurados. A necessidade de deslocamento de pessoas e coletivos suscitada

pelas particularidades constitutivas da socialidade mbyá, aparentemente

incoerentes e ambíguas, não podem ser respeitadas pelas políticas formuladas

de acordo com os paradigmas da definição ocidental de “sociedade”, o que

resulta nos problemas apontados ao final do capítulo 2.

These “acculturated” settlements are no more literally and deliberately

constituted groups than the more scattered ones that existed before

government control. They blend together as a continuous sociality which

seems to cry out for the distinctions that effectively elicit it. It is a sociality

adapted to the natives’ way of dealing with it (which is actually a way of

creating it), and it will come into being whenever and wherever people choose

to deal with it in that way. If this particular form seems to be adapted somewhat

to the white mans’ notion of society, it is only because the people themselves

were under a Strong coercion to make it look like that. They also have the

habito of wearing Western-style clothing, which originated partly because

outsiders wanted them to dress like Westerners. This does not mean,

however, that they wear their clothes in the way that Westerners do, treat them

the way that Westerners do, or think of them in that way. (Wagner, 1974:116-

7)
277

A arbitrária intrusão do nexo ocidental sobre os critérios de uso do espaço pelos

indígenas repercute negativamente sobre a socialidade mbyá e sua

“multilocalidade”. Atualmente caminhar livremente já não é mais uma

possibilidade, tanto por causa dos limites impostos pela noção de propriedade

estabelecida nos termos ocidentais, quanto pela escassez de recursos nesses

caminhos embarreirados. Até hoje muitos velhos mbyá estranham esse estado

de coisas e muito são aqueles, idosos ou não, que lamentam essa realidade,

embora as movimentações se mantenham ativas de formas adaptadas.

Na convivência cotidiana dentro de Terras Indígenas próximas à grandes centros

urbanos as contingências espaciais locais e a impossibilidade financeira de

empreender viagens se colocam como entraves para as soluções nativas que

visam o reequilíbrio de estados conflitivos comuns e recorrentes. Essa realidade

muitas vezes se traduz numa sensação de confinamento. Fator que, em alguns

casos, parece agravar situações de tensão. Mencionei no último parágrafo do

terceiro capítulo que tendo a interpretar esses conflitos à luz do conceito

Batesoniano de cismogênese. É por meio desta ferramenta analítica que,

abreviada e despretensiosamente, vislumbro uma hipótese para lidar com o

porarõ enquanto um fenômeno sociológico.


278

3. Cismogêneses: diferenciações e o equilíbrio dinâmico.

Em sua análise do Naven106, ritual praticado pelos Iatmul, povo da Nova Guiné,

Gregory Bateson (2008 [1958]) propõe uma abordagem multifocal, sincrônica e

dinâmica que parte do pressuposto de que os movimentos observados

contribuem para a manutenção de um dado equilíbrio. Os aspectos privilegiados

no desenvolvimento de sua reflexão são aqueles aos quais o autor se refere

como sociológicos (dados pela posição de indivíduos ou grupos uns em relação

aos outros determinando coletividades que se relacionam sistematicamente),

estruturais (sistema coerente de pressupostos e premissas que conformariam o

eidos enquanto expressão dos aspectos cognitivos padronizados dos indivíduos)

e etológicos (sistema padronizado de atitudes emocionais que atua como fator

real na conduta daqueles que o compartilham).

A partir dessa compreensão de base o autor descreve e analisa dados

etnográficos de diversas ordens. Compõe-se assim um quadro dos

comportamentos que participam do fenômeno enfocado não apenas durante o

ritual em si, mas na vida cotidiana dos Iatmul. Não cabe, a essa altura da

106 O primeiro trabalho sobre a aplicabilidade de considerações derivadas do conceito de


cismogênese aos fenômenos decorrentes do contato entre povos nativos e europeus foi um
artigo chamado “Culture Contact and Schismogenesis” publicado pela revista Man, no ano de
1935, no qual Gregory Bateson posiciona-se contrariamente aos tópicos estipulados no
memorando produzido pelo Comitê do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais para os
estudos dos fenômenos do espectro do “Contato Cultural”, publicado no mesmo ano também
pela revista Man. O artigo em questão foi republicado no livro Steps to an Ecology of Mind (1972).
A noção de cismogênese é apresentada de modo mais detalhado em Naven: A Survey of the
Problems suggested by a Composite Picture of the Culture of a New Guinea Tribe drawn from
Three Points of View, que foi primeiramente publicado no ano de 1936 e republicado no ano de
1958.
279

argumentação sobre o porarõ, aprofundar uma descrição da análise realizada

sobre o Naven em particular. Passo, pois, a uma síntese do conceito de

cismogênese e de suas dinâmicas no que o mesmo tem a contribuir para o

esboço de uma hipótese que contemple ao menos alguns dos dados sobre os

mbyá expostos nos capítulos anteriores.

Em linhas gerais pode-se dizer que a visão de Bateson sobre a cultura, e

consequentemente sobre a antropologia, é determinada pela noção de

mudança. Mais de uma vez ao longo do livro o autor divaga sobre a “vida” de

tradições, sistemas ou culturas. Vale lembrar que ele era Zoólogo de formação,

o que talvez explique o fato de que em algumas de suas formulações seja

possível entrever, de uma forma muito particular, um viés organicista do social

enquanto sistemas que dependem de seus próprios movimentos para a

manutenção da vida. Talvez a pertinência de seu pensamento para a reflexão

sobre alguns fenômenos observados entre os mbyá resida justamente nessa

base sui generis constituída sobre a sincronia e o dinamismo do observado.

Mas de que maneira esse tipo de reflexão contribui para elucidar a lógica que

vincula os dados etnográficos trabalhados até aqui? Creio que uma boa via de

interpretação para a tendência mbyá a empreender continuamente variados

tipos de movimento pode ser formulada nos termos de uma manutenção da vida

por meio de mecanismos de busca pelo equilíbrio por meio de sua própria

alteração, o que nos coloca diante do conceito de cismogênese.


280

Inicialmente a cismogênese107 é definida como um “processo de diferenciação

nas normas de comportamento individual, resultante da interação cumulativa dos

indivíduos” (2008 [1958]: 223). No nível da psicologia social o autor propõe uma

observação focada nas “reações de indivíduos às reações de indivíduos” e não

em “reações de indivíduos à sociedade” ou de um “comportamento social”. No

nível sociológico, afirma-se que processos cismogênicos seriam impossíveis “a

não ser que as circunstancias sociais sejam tais que os indivíduos concernidos

se vejam mantidos juntos por alguma forma de interesse comum, dependência

mútua, ou status social (...)” (2008 [1958]: 228). Compõem-se, assim, sistemas

de relacionamentos cuja tendência é a mudança progressiva, o que deverá

ocorrer num padrão competitivo entre comportamentos e reações assertivos

(cismogênese simétrica) ou em um padrão de “dominação e submissão”

(cismogênese complementar).

Bateson afirma ainda que em um processo cismogênico o aspecto etológico é

fundamental, menos por seu conteúdo do que por sua ênfase emocional

contextualmente dada.

Retomando a ênfase emocional dos estados de crise descritos nos capítulos 1 e

3 desta tese proponho pensar os conflitos domésticos que causam situações de

instabilidade relacional e fisiológica enquanto processos de “cismogênese

simétrica”. Essa ferramenta pode ser particularmente interessante para jogar

107 Guardando as devidas ressalvas quanto ao uso recorrente dos conceitos de indivíduo e de
sociedade (lembremos que a primeira versão desta obra data da década de 1930), essa proposta
analítica, quando retomada por antropólogos como Marilyn Strathern e Roy Wagner, lança os
fundamentos das reflexões de cunho relacional que orientam uma importante parte do
pensamento etnológico contemporâneo.
281

alguma luz sobre o caso de Yvá que, em situação de dependência em relação

ao grupo doméstico de Níria, era hostilizada por seus cunhados (e, muitas vezes,

também os hostilizava). O contexto que se configurava ali era tal que

frequentemente os envolvidos se viam adoecidos, o que remete à intersecção

entre as temáticas do Corpo e dos Afetos comum à diversas cosmologias

ameríndias.

De acordo com minhas observações em campo desde 2009, apesar de todos os

esforços voltados para a produção da a alegria e do contentamento (-mbovy’á)

entre parentes coresidentes, as situações nas quais os desentendimentos entre

determinados agentes ou coletivos eclodiam regularmente não eram raras.

Neste caso predominava a tendência à intensificação das oposições correntes,

o que tendia a resultar numa cisão seguida pelo deslocamento de uma das

partes.

As características deste tipo de evento corroboram a validade de sua

interpretação nos termos de uma “cismogênese simétrica”. Isso porque,

aprofundando sua reflexão acerca dos processos internos ao fenômeno, o autor

do referido conceitp aponta que a diferenciação progressiva pode levar à uma

fissão definitiva ou à adoção de “padrões de controle” ou “processos de

contrabalanceamento”.

Assim, é comum que diferentes processos simultâneos de diferenciação

regulem-se uns aos outros garantindo a manutenção do equilíbrio dinâmico dos

sistemas, aldeias ou grupos domésticos. A depender das circunstâncias nas

quais se desenvolve o processo cismogênico, uma das possibilidades é que ele

não avance inexoravelmente rumo à sua própria dissolução, configurando-se


282

muitas vezes como um processo de mudança que é controlado ou

continuamente contrabalanceado por outros processos de mesmo teor.

Há razoável certeza de que uma cismogênese complementar ou simétrica

entre dois grupos pode ser detida por fatores que unam os dois grupos, seja

por lealdade, seja por oposição a um elemento exterior. Esse elemento pode

ser um indivíduo simbólico, um povo inimigo ou uma circunstância bastante

impessoal que traga infelicidade ou satisfação para ambos os grupos

igualmente. (...). Na cultura iatmul, pode-se presumir a ocorrência do mesmo

mecanismo. É provável que a guerra de caça de cabeças contra outras

comunidades contribuísse consideravelmente para controlar as

cismogêneses entre os sexos e entre as metades iniciatórias; e é possível

que nos dias de hoje a relação complementar entre nativos e europeus

tenha assumido, em alguma medida, funções análogas. (2008 [1958]:

237 – grifo meu)

As mulheres que entrevistei na cidade, enquanto faziam porarõ, diziam sair de

suas casas aldeãs e encaminhar-se para a cidade com o intuito de se alegrar

(rovy’á vy). A cidade era entendida por essas mesmas mulheres como o espaço

do juruá por definição. Embora a contrapartida material para os investimentos de

tempo e dinheiro envolvidos na prática do porarõ atuasse como fator de

contentamento, penso que alguns fatores sociológicos (cismogênicos) também

operassem enquanto motores daquela prática.

Vimos no capítulo 3 que, embora a escassez de recursos muitas vezes

assolasse as famílias mbyá com as quais interagi ao longo do trabalho de campo,

a ideia de receber em casa uma pessoa não indígena que pudesse contribuir

regularmente com alimentos ou dinheiro estava fora de cogitação para a grande

maioria. Na cidade, o comportamento dos praticantes do porarõ era marcado


283

pela evitação da comunicação verbal com os não indígenas e pelo fortalecimento

das relações com os mbyá dos outros panos, de acordo com critérios específicos

para cada um.

Observei que, no contexto urbano, as tensões provenientes dos antagonismos

comuns no contexto aldeão tendiam a se relaxar. Isso ocorria por meio de um

deslocamento das identificações e das oposições: entre pessoas mbyá e os não-

mbya (juruá e pongé), por um lado, e entre os próprios mbyá, por outro.

Isso não significa que o porarõ, interpretado por meio dessa chave analítica,

tivesse o poder de dissipar definitivamente os processos de diferenciação

internos. Acredito, porém, que o fenômeno em questõa contribuiria para o

controle dos processos conflituosos, amenizando situações de convivência

marcadas por antagonimos crescentes em uma realidade na qual nem sempre

o (desejado) deslocamento para outra aldeia seria possível. Contexto,

historicamente configurado, no qual as diversas modalidades de caminhada se

encontram fora do repertório de medidas de controle de conflitos em

consequência do modo ocidental de organização e legislação sobre os espaços,

por meio da noção de propriedade. Configurando um quadro de relativa

imobilidade que se agrava pela escassez de recursos financeiros por uma

considerável porção das populações aldeadas, escassez essa cuja intensidade

se modula ao longo do tempo.

As visitas de pessoas ou coletivos a parentes em aldeias diferentes, atua

alterando estados de ânimo por meio da alteração dos panoramas relacionais, o

que não tem necessariamente relação com situações conflituosas. Assim como

sair de um determinado contexto rumo a uma outra aldeia, para visitar ou em


284

mudança mais ou menos definitiva de local de residência, tem efeitos

terapêuticos, receber parentes também pode amenizar situações problemáticas

de teor relacional. Além das idas à cidade, o porarõ estimula as visitas de

moradores de aldeias situadas fora do perímetro urbano àqueles parentes que

moram nas aldeias mais próximas ao centro da capital.

Evidencia-se, assim, que a prática do porarõ estimula no mínimo dois tipos de

deslocamentos diferentes. Consequentemente, as reconfigurações

possibilitadas pela mesma ao panorama relacional de cada mbyá são inúmeras,

uma vez que ao se instalar num pano pelas calçadas de Porto Alegre é possível

ver vizinhos de uma mesma aldeia ou parentes e conhecidos residentes em

aldeias vizinhas, bem como pessoas mbyá desconhecidas e mesmo parentes de

aldeias distantes.

A mudança de paisagem (topográfica e relacional) associada à contrapartida

material, que dá suporte a própria prática, atua como veículo do “alegrar-se” que

a motiva. A produção (ou extração) de recursos no centro da cidade diz respeito

à manutenção do próprio fluxo, de modo que apenas o seu excedente se

materializa na aldeia.

Volto a afirmar que o valor dos deslocamentos implicados no fenômeno porarõ

só pode ser mensurado na medida em que o projetamos sobre o pano de fundo

do convívio aldeão, muitas vezes marcado pela sensação de tédio e

confinamento. A convivência doméstica, por sua vez, em alguns momentos tem

sua harmonia ameaçada pela ambiguidade constitutiva do lugar da afinidade,

apesar dos esforços objetivos sempre empregados na obviação dos processos

decorrentes dessa realidade subjacente. A partir de tais constatações fica claro


285

o papel dos deslocamentos na contenção das diferenciações internas e,

consequentemente, na manutenção de um equilíbrio dinâmico sobretudo entre

coresidentes.

Se o equilíbrio entre dois processos cismogênicos se dá pela simultaneidade

destes, sendo cada um de uma modalidade (simétrica e complementar), onde

reside a complementaridade na relação de não comunicação com não indígenas

tal como determinada pelos mbyá no contexto do porarõ?

Pelo que observei, do ponto de vista dos mbyá praticantes do porarõ, as relações

de troca comercial e o recebimento de doações não constituem em si uma

situação de submissão em relação à uma dominação dos não indígenas. Deste

ponto de vista os juruá podem ser vistos como dominantes apenas na medida

em que tendem a ser definidos, pelos meus interlocutores mbyá, por seu

comportamento de violência, avareza e ganância, sobretudo no que se refere ao

monopólio dos territórios e dos recursos naturais criados por Nhanderu para os

mbyá.

É exclusivamente a partir da imagem do “branco” como agente histórico da

expropriação de recursos que seriam dos mbyá por direito divino, que a

permanência na cidade e a extração de recursos materiais por meio da prática

analisada poderia ser compreendida como uma das facetas de uma

cismogênese complementar entre os mbyá e os juruá. Entre o dar e o receber

diversos significados podem ser projetados e diversos sistemas de reações à

reações podem se organizar:

Se A dá a B um objeto, e B o recebe, esses atos podem ser vistos, segundo

seu contexto, como: a) triunfo de A, atitude que pode levar seja à


286

cismogênese simétrica do tipo “potlatch”, seja alguma forma de cismogênese

complementar caso a assimetria se perpetue; b) triunfo de B, atitude que pode

levar a uma cismogênese nas linhas gerais da rivalidade comercial; ou c)

triunfo de nenhum dos dois – tanto dar como receber podem ser vistos como

expressões de sua mútua benevolência, e seu prosseguimento poderia levar

não à cismogênese, mas, antes, a uma união mais estreita entre A e B. (2008

[1958]: 228-9)

Apesar dos diversos pontos de aplicabilidade do conceito de cismogênese

enquanto ferramenta de análise para o fenômeno do porarõ, nem todos os seus

aspectos podem ser fielmente submetidos às implicações analíticas decorrentes.

O foco dessa interpretação recaiu sobre as situações que observei em campo,

principalmente (embora não exclusivamente) no convívio com a família de Níria,

que vivia uma configuração muito específica, além de temporária: a ausência de

um homem que atuasse como “porta-voz” daquele coletivo - configuração tal que

me serviu como porta de entrada e condição de permanência em campo.

Provavelmente muitos outros fatores participam na prática do porarõ por

pessoas que não vivem situações conflituosas. A hipótese rascunhada acima

não tem a pretensão de dar conta do fenômeno como um todo, visando apenas

oferecer uma interpretação (que poderá ser complementada e aprofundada no

futuro) entre diversas outras possíveis.

***
287

ANEXO: QUADRO GENEALÓGICO DOS “GRUPOS DOMÉSTICOS”

MENCIONADOS NO CAPÍTULO 3.

Legenda:

1 – Níria 2 – Kerexu 3 – Jonas 4 – Luana 5 – Priscila 6 – Ademilson 7 – Tamía

8 – Yvá 9 – Ana 10 – Jekupe 11 – Jaxuká 12 – Xunu 13 – Guyrá (o cacique,

criado por Níria) 14 – Jaxuká (2) 15 – Vitorina 16 – Odair 17 – Ane 18 – Luciane

19 – Maira 20 – Joana 21 – Ádna.

Obs1: Foram coloridos apenas os habitantes da mesma aldeia.

Obs2: Em verde estão os coresidentes de Níria, em vermelho o cacique e sua

esposa e em lilás estão Vitorina e seus coresidentes.


288

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