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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

DISTINÇÕES DO DESENVOLVIMENTO SEXUAL:


Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade

Barbara Gomes Pires

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Distinções do Desenvolvimento Sexual:
Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade

Barbara Gomes Pires

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Antropologia Social.

Orientadora: María Elvira Díaz-Benítez

Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Distinções do Desenvolvimento Sexual:
Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade

Barbara Gomes Pires


Orientadora: María Elvira Díaz-Benítez

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,


Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Aprovada em
Banca Examinadora:

______________________________________________
Prof.ª Dr.ª María Elvira Díaz-Benítez (Presidente)
PPGAS/MN/UFRJ

______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/MN/UFRJ

______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Fátima Lima
UFRJ-Macaé

______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Paula Sandrine Machado
PPGAS/UFRGS

______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (Suplente)
PPGAS/MN/UFRJ

______________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara (Suplente)
IMS/UERJ
CIP - Catalogação na Publicação

Pires, Barbara
P667d Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos
científicos e atravessamentos políticos em casos de
intersexualidade / Barbara Pires. -- Rio de
Janeiro, 2015.
136 f.

Orientadora: María Elvira Díaz-Benítez.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, 2015.

1. Intersexualidade. 2. Humanidade. 3.
Biomedicalização. 4. Gerenciamento Sociomédico. 5.
Veridicção. I. Díaz-Benítez, María Elvira, orient.
II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados


fornecidos pelo(a) autor(a).
Às crianças e jovens intersexuais.
Às vidas que transbordam.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, antes de tudo, à minha mãe. A pessoa mais esforçada e mais teimosa que
conheço, só espero ter sempre um pouco da sua coragem para superação, não importando o
tamanho das adversidades. Obrigada por se dedicar tanto e por nunca duvidar da gente, espero
retribuir com a mesma potência todo esse cuidado. Do mesmo modo agradeço ao meu irmão
Vinicius. Por ser o meu oposto, o meu sol. Agradeço então, primeiramente, ao meu núcleo duro,
sofrido e amado. Com vocês dois eu supero tudo.
Também agradeço ao meu pai. Porque pessoas mudam até o ponto de não nos
reconhecermos mais, e os laços se desfazem, mas eu não seria o que sou sem você. De antíteses
nos formamos.
E mesmo sendo essa aquariana avoada que some e só se faz presente durante poucas
vezes no ano, agradeço aos Gomes por serem “minha família”. As visões e vidas tão diferentes
não impedem que nos amemos e nos apoiemos incondicionalmente. Por isso agradeço a minha
vozinha Zenith, o porto seguro de todos. Agradeço também ao meu vô Hilário. Minhas tias
queridas, Leinha, Nem e Lene. Aos tios Beto, Fernando, Gilson, Gegê, Maca, Paulinho e Van.
Meus primos e primas: Douglas, Thiago, Bruno, Carol, Weslley, Matheus e Lorena. Aos nossos
Natais, espaços de reencontros, farturas, verão, risadas soltas e, principalmente, de acolhimento
desde minha infância.
Agradeço também à Joana, minha avó paterna, que me confortou com carinhos e
alegrias desde que eu me recordo, e em meios a tantos conflitos sempre nos auxiliou com
atenções e cuidados fundamentais para que seguíssemos em frente. Saudades, vó.
E deslocando para além da família consanguínea, antes de me imaginar antropóloga, eu
só precisava sobreviver à adolescência e às angústias que se seguem quando você tem tempo
demais para se descobrir. Foram momentos de experimentações, ciladas e aprendizados, e sem
a troca e a companhia de amigos nada seria possível. Por isso agradeço aos amigos da época do
ensino médio que estão presentes até hoje, especialmente Érica Sarmet, Isabelle Weber,
Mikhaila Copello e Ricardo Wanderley. Agradeço também à Nathalia Gonçales, porque entre
os nossos acertos e tropeços juvenis, compartilhou comigo mais do que eu poderia esperar de
um “coming-of-age story”.
Durante a graduação, nas salas e escadarias do IFCS, pelos bares do Centro da cidade,
pelas choppadas, por sebos, a quilos, cadernos, livros e papeis de xerox, fui descobrindo o
mundo. Agradeço aos professores e aos amigos da UFRJ pelo convívio e pelo crescimento.
Agradeço muito mais aos meus amigos de estudos, de trabalhos e de uma vida toda, obrigada
Michel Carvalho, Tamara Lajtman e Tássia Mendonça. E mais detalhadamente porque vocês
merecem: Tássia, obrigada pelo “nosso jeitinho” tão distinto, mas tangenciável, pelo escracho,
pela genialidade e pelos reencontros. Tamara, obrigada pelos regalos, pela política latina, pelos
passeios barrenses e churrascos, por nos aproximarmos de fato quando parecia que já nos
conhecíamos antes. Michelito, obrigada por ser meu par, minha alma gêmea da terceira idade,
porque pode não se dar conta, mas é meu melhor amigo. Eu só tenho a agradecer por me
mostrarem a vida além de mim, do meu lugar comum, da minha experiência, do meu edital. Por
bons drinks, picnics e fechações, pela honestidade de contar e recontar crises existenciais, pelas
dicas e alteridades, quero vocês sempre perto.
Agradeço também à Magda Lajtman, mãe de Tamara, pois sem ela e seus contatos essa
etnografia não existiria. Muito obrigada pela memória e pela gentileza.
Em outro nível, agradeço às experiências de trabalho que me proporcionaram um
vínculo comunitário, e porque não também etnográfico, importante para começar a aprender as
dinâmicas de investigação e de pesquisa. Assim, agradeço ao ISER e às pessoas com que tive
o prazer de trabalhar por lá, Ana Paula, André, Ben, Carlos, Cuíca, Helena, Lilian, Maija, Paulo
Victor, Pedro, Raíza, Raphael, Suellen. Agradeço também ao Instituto Promundo,
especialmente ao Marco Aurélio Martins, por toda a oportunidade e força.
No Museu Nacional, agradeço aos amigos de mestrado por amenizarem o impacto dessa
nova fase do “videogame”. Sem salvar, sem novas vidas, com quilos de leituras e demandas
novas, mas com muito acolhimento e felicidade coletiva. Agradeço pela ajuda mútua e pelas
trocas não se limitarem ao entorno do chafariz do pátio. Um obrigada especial aos queridos
Aline Rabelo, Everton Rangel, Lucas Freire, Morena Freitas e Vlad Schüller. Os meninos,
principalmente, pela companhia nas viadagens e/ou pela nerdice. Por também me auxiliarem
demais com comentários, revisões e apoios. Estou com vocês em 2015 e para frente: vambora
fazendo.
Ainda no Museu Nacional, agradeço também às diversas experiências de aulas, todas
transformadoras, com as professoras Adriana Vianna, Giralda Seyferth e Renata de Castro
Menezes, e os professores Luiz Fernando Dias Duarte, Marcio Goldman e Eduardo Viveiros de
Castro. Da mesma forma, agradeço aos técnicos administrativos da secretaria do PPGAS,
especialmente à Drica e ao Bernardo, e aos funcionários da biblioteca Francisca Keller,
obrigada pelos pequenos auxílios burocráticos que, no fim do dia, fazem toda diferença.
Agradeço também à gentileza dos professores que aceitaram fazer parte da banca desta
dissertação, Luiz Fernando Dias Duarte, Fátima Lima e Paula Sandrine Machado. E aos
professores Adriana Vianna e Sérgio Carrara, por se disponibilizarem para serem suplentes.
Agradeço à María Elvira Díaz-Benítez pela orientação paciente e persistente, sempre
atenta às dinâmicas da escrita, organizações e prazos. E, principalmente, por me ajudar a
“segurar forninhos” com encontros e conversas sempre instigantes, que me proporcionaram
muitos caminhos fundamentais de análise. Agradeço também por formar o NuSEX, núcleo de
pesquisa de tantas apresentações incríveis e trocas importantes, que mobilizou meu ano de
2014, não deixando-o tão pesado com as minúcias da pesquisa e da escrita.
E sem a presença crucial de dois seres no meu dia a dia, teria terminado esta dissertação
muito mais cansada e muito menos sã. Por isso agradeço ao meu gatinho Milo, minha bola de
pelo ranzinza e carinhosa, companhia mais que essencial durante a escrita e a vida em geral. E
à Carina, porque podemos encontrar alguém que importa nos lugares mais improváveis.
Obrigada por estar comigo em meio às minhas inseguranças e loucuras. Por mostrar que
podemos amar profundamente de forma leve, sem pesos e desigualdades. Por não desistir
quando as diferenças são grandes, por ser a mais humilde, por quebrar minha casca. Por
compartilhar comigo a vida, as descobertas, as brincadeiras idiotas, os dramas familiares, a
nossa cama.
Mesmo sem nomear, não poderia deixar de agradecer às três instituições hospitalares
onde realizei a etnografia, bem como seus profissionais de saúde. Sem a abertura e disposição
desses médicos e especialistas para que pudesse acompanhar seus cotidianos de trabalho, outra
análise muito menos pungente teria que ser descrita nessas próximas páginas. De modo que
agradeço à receptividade, à compreensão com o meu tema e aos atendimentos – pois mesmo
que cheio de controvérsias e críticas, no que tange ao tema da intersexualidade, não há
questionamento em relação ao peso que esses profissionais investem em suas práticas médicas.
Acreditam nesses atendimentos, nessas verdades, de tal forma que dão tudo de si. Por isso
agradeço por se mostrarem tão inteiros.
No fim, nenhum agradecimento é suficientemente forte para expressar minha gratidão
com as crianças e jovens intersexuais, e suas famílias, atendidas nos hospitais que acompanhei.
Agradeço por narrarem suas vidas para mim, de maneira direta ou indiretamente, e
compartilharem seus dramas sociais e biomédicos de não conformidades, incertezas e angústias
corporais. Tentei da melhor forma que pude relatar suas histórias. Histórias das verdades que
atravessam a necessidade de ter um corpo sexuado, as mobilizações para ser alguém, os
caminhos reconhecidos como possíveis para se humanizar. Obrigada por iluminarem com suas
experiências algumas dessas controversas negociações.
Por último, agradeço à CAPES por financiar minha bolsa de mestrado, que permitiu
minha dedicação integral aos estudos e à esta pesquisa.
RESUMO

PIRES, Barbara
2015. Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e
atravessamentos políticos em casos de intersexualidade. Dissertação de
Mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Esta dissertação consiste em análises de gerenciamentos sociomédicos de alguns casos de


intersexualidade, ou nos controversos termos biomédicos atuais, de pessoas com “distúrbios do
desenvolvimento sexual”. Os dados descritos são frutos de um trabalho de campo realizado em
três hospitais da cidade do Rio de Janeiro. Entre geneticistas, pediatras, endocrinologistas
pediátricos, cirurgiões urologistas, psicólogas e assistentes sociais, circulando por três
ambulatórios e enfermarias distintas, acompanhei atendimentos de recém nascidos, crianças e
jovens intersexuais. As regulações desses corpos tidos como ambíguos serão analisadas tanto
genealogicamente quanto criticamente em suas atuações clínicas contemporâneas. Busco
também relacionar tais práticas normalizadoras com a constituição de saberes sobre o sexo, o
gênero e a sexualidade. Como os guidelines científicos cada vez mais moleculares e descritivos
atualizam as práticas médicas? E como as incorporações desses protocolos são vivenciadas
cotidianamente pelos profissionais de saúde, pelos movimentos políticos intersexuais, pelas
famílias e pelas crianças e jovens intersexuais? De modo complementar, um fio condutor
atravessa esses gerenciamentos em que discursos biomédicos a favor de um “bem estar físico e
psicossocial” dos pacientes terminam por encobrir as negociações dos sofrimentos, dos
desconfortos e das incertezas que tais corpos e vidas atípicas trazem à tona. Justificativas em
prol de supostas coerências que dificilmente se cumprem. No fundo desses saberes, práticas,
assimilações e resistências, há movimentos contínuos de veridicção sobre o corpo sexuado.
Uma necessidade particular de reiteração de regimes de verdade segundo corpos humanos
inteligíveis, funcionais e possíveis de serem socializados, sensibilizados e vividos.

Palavras-chave:
Intersexualidade; Distúrbios do Desenvolvimento Sexual; Humanidade; Biomedicalização;
Gerenciamento Sociomédico; Veridicção.
ABSTRACT

PIRES, Barbara
2015. Distinctions of Sexual Development: scientific paths and political crossings
in cases of intersexuality. Master Thesis in Social Anthropology. Rio de
Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This dissertation consists in analysis of social and medical management of some intersexuality
cases, or in the controversial biomedical terms used at present days, of people with “disorders
of sex development”. The data described here results of a fieldwork in three hospitals located
in Rio de Janeiro city. Among geneticists, pediatricians, pediatrics endocrinologists, urologist
surgeons, psychologists and social workers, passing around three different clinics and wards, I
follow the care and appointments of intersexual newborns, children and youngsters. The social
and medical adjustments made in these bodies considered as ambiguous are analyzed both in
the genealogical method as well as in the contemporaneous clinical treatments. I also try to
connect these normalizing practices with the formation of knowledge of sex, gender and
sexuality. How the scientific guidelines increasingly genetic and descriptive updated the
medical practices? Moreover, how the incorporations of these protocols are lived daily by the
health professionals, by the intersexual political movements, by the families, and by the
intersexual children and youngsters? As a complement, a conducting wire go through these
managements where biomedical discourses in favor of a “psychosocial and psychic well-being”
of the patients end up occulting the negotiations of sufferings, discomforts, and uncertainties
that these atypical bodies and lives bring to light. Justifications towards presumed coherences
that hardly fulfils. At the bottom of these knowledges, practices, assimilations, and resistances,
exists continuous movements of veridiction of the sexual body. A particular need for reiteration
of regimes of truth according intelligible and functional human bodies, capable of being
socialized, sensitized and dwelled.

Keywords:
Intersexuality; Disorders of Sex Development; Humanity; Biomedicalization; Social and
Medical Management; Veridiction.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CIRPED1 – Cirurgião Pediátrico 1


CIRPED2 – Cirurgião Pediátrico 2
DDS – Distúrbios do Desenvolvimento Sexual
DNV – Declaração de Nascido Vivo
ENDOPED1 – Endocrinologista Pediatra 1
ENDOPED2 – Endocrinologista Pediatra 2
GEN1 – Geneticista 1
HAC – Hiperplasia Adrenal Congênita
HZN1 – Hospital Zona Norte 1
HZN2 – Hospital Zona Norte 2
HZS – Hospital Zona Sul
ISNA – Intersex Society of North America
OII – Organisation Internationale des Intersexués/Organisation Intersex International
R1 – Residente 1
R2 – Residente 2
SISREG – Sistema Nacional de Regulação
SIPA – Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos
SK – Síndrome de Klinefelter
SUS – Sistema Único de Saúde
TFD – Programa de Tratamento Fora do Domicílio
SUMÁRIO

Introdução – Das sensibilidades de uma vida ambígua _______________________ 1

1. O “sexo” e a “sexualidade” precisando, modelando e corroendo


__________________________________________________________________ 10

1.1 Algumas localizações do intersexo: da Antiguidade à Modernidade 10


1.2 Sobre as tecnologias de poder: a medicalização dos corpos e a normalização
das ambiguidades 15
1.3 Ordens classificatórias e economias corretivas: o “sexo” como verdade 18
1.4 A impossibilidade do hermafroditismo e a emergência dos estados intersexuais:
generificando corpos, orientando sexualidades 22

2. O engolfamento terminológico e a resistência minoritária __________________ 31

2.1 A “ciência” de constituir verdades: do gênero ao dimorfismo sexual 31


2.2 Nova revisão classificatória? Os consensos sobre as desordens, os distúrbios e
as anomalias 40
2.3 Controvérsias: sobre os protocolos, as classificações e a política 46

3. Vidas verificadas, sofrimentos vividos __________________________________ 58

3.1 Uma etnografia da biomedicina: a ciência em ação hospitalar 58


3.2 Percursos do campo biomédico: as circulações etnográficas em três hospitais do
Rio de Janeiro 61
3.3 O que fazer quando surge um caso de intersexualidade? O manejo da urgência,
da necessidade e da intervenção 66
3.4 Para além das molecularidades e mediações científicas: a gênese diagnóstica na
marca “sexo-gênero-desejo” 78
3.5 Algumas notas sobre desconfortos e normalizações em duas experiências 47,
XXY 101

Considerações Finais – As Constituições Humanas: travessias antropológicas e


políticas nas experiências intersexuais ____________________________________ 114
Glossário ____________________________________________________________ 123

Referências Bibliográficas ______________________________________________ 128


1

Introdução
Das sensibilidades de uma vida ambígua

Durante minha graduação, em meio a leituras sobre gênero, me deparei com a


introdução de Michel Foucault para às memórias de Adélaïde Herculine Barbin, na época em
que pesquisava material para seus escritos sobre a história ocidental da sexualidade. Alexina,
como era conhecida pelos familiares, cresceu como uma menina na França do século XIX. Após
a morte de seu pai, a mãe de Alexina, em situação de pobreza, conseguiu por meio de indicações
que sua filha ficasse em um hospital-orfanato da região. Tinha 7 anos. Logo depois, através da
influência de uma irmã da casa de cuidados, conquista uma vaga em um convento prestigiado,
o qual servia como colégio e internato católico para garotas nobres e burguesas. Lá progride
nos estudos e cultiva seus primeiros desejos homossexuais. Essas novas sensações tumultuavam
os princípios de devoção e confissão que pautavam sua vida, construída dentro de espaços e
referências bastante religiosas. Entre seus estudos no convento e a preparação para ser
professora, Alexina mora por um tempo, durante a adolescência, com sua mãe em uma casa de
nobres. Tinha uma saúde frágil, estava sempre com cólicas, febril e doente – outra aflição
descrita em suas memórias era o fato de nunca ter entrado em puberdade. Essa constante
preocupação – em seus termos, “Eu tinha sido devorada pela terrível doença do desconhecido”
(2010: 34, grifo no original) – logo irá se materializar para além de sua consciência.

Seguindo os eventos narrados, Herculine (ou Camille, como aparece sua persona nas
memórias) ganha o certificado de professora, passando no exame na primeira colocação, e com
isso uma chance de dar aulas em um colégio interno. Na época tinha 19 anos, de modo que
precisava trabalhar como professora assistente até os 21 anos de idade, para assim ser efetivada
como professora titular. Nesta escola, ela se apaixona por Sara, uma professora e uma das filhas
da proprietária do lugar. As duas eram responsáveis pelos ensinos das alunas – Herculine com
as alunas mais velhas, Sara com as mais jovens. Com a relação se aprofundando, já dividindo
a mesma cama, rumores sobre o comportamento muito carinhoso e suspeito das duas
começaram a se proliferar.

Em nossas deliciosas conversas íntimas, ela se apegava ao prazer de usar


pronomes e adjetivos masculinos para me qualificar, qualificações que
posteriormente se adequariam ao meu status oficial. “Meu querido Camille, Eu
2

te amo tanto! ! ! Por que eu te encontrei se este amor se tornaria a mágoa de


minha vida? ! !” (Ibid.: 58)1
Com as férias do colégio, Alexina volta para casa e resolve confessar suas experiências
para um missionário que passava na cidade. Junto da prática médica, a confissão irá moldar e
reorganizar as subjetividades modernas, e ilustra bem como as regulações institucionais sobre
o sexo e a sexualidade se pautavam na época. O missionário aconselha Alexina a juntar-se a
um convento como freira, e esquecer seus anseios de casar-se com Sara. Por sua vez, Herculine
volta ao internato e aos braços de Sara, ignorando os conselhos do religioso. Mas o mal estar
avançava na medida que as dores que sofria aumentavam cada vez mais. Um médico foi
chamado ao colégio, e insistiu em examinar Alexina. Durante o exame físico, ele se surpreende
– “Meu Deus! Seria possível?” (Ibid.: 68). Sai às pressas e confronta a mãe de Sara, Madame
P., sobre o passado de Barbin e sua pessoa. Aconselha, então, que liberem Herculine de suas
obrigações o mais rápido possível, sem dar maiores detalhes. Ao voltar para casa em outras
férias escolares, ela se confessa com o Bispo da região. Ele ouve atentamente suas histórias, e
então pede permissão para revelar seus segredos confessionais ao seu médico particular.

No dia seguinte, Herculine retorna para a consulta médica. Depois de um exame físico
bastante minucioso, o médico finalmente afirma para a mãe de Alexina, “é verdade que você
perdeu sua filha, mas encontrou um filho, um que não estava esperando” (Ibid.: 78). As terríveis
dores que sentia eram seus testículos não descidos na região pélvica. Herculine então se desfaz
de seu cargo como professora assistente, e termina seu romance com Sara, não só para evitar
um escândalo maior quando tudo fosse modificado, em seu registro civil, mas principalmente
pelas pressões sociais e institucionais impostas. Monseigneur de B., Monsieur de V., Monsieur
D., Doctor H., Doctor G., Doctor C., todos indicando os caminhos para Herculine restituir-se à
masculinidade verdadeira. Seu primeiro nome foi alterado, de Adélaïde para Abel. O
julgamento e seus dados foram posteriormente registrados no Annales de Médecine Légale.

Então, estava tudo acabado. De acordo com meu status civil, eu pertenceria, de
agora em diante, àquela outra metade da humanidade que é chamada do sexo
mais forte. Eu, que tinha sido criada até os vinte e um anos de idade em casas
religiosas, entre tímidas companheiras femininas, teria que abandonar esse
passado tão encantador e agora tão distante de mim, e como Aquiles, entrar nas

1
No original: “In our deliciously intimate conversations, she took pleasure in using masculine qualifiers for me,
qualifiers which would later suit my official status. ‘Mon cher Camille, I love you so much! ! ! Why did I meet
you if this love was to become the sorrow of my whole life? ! !’”.
3

listas, apenas armada com minha fraqueza e minha profunda inexperiência das
coisas e dos homens. (Ibid.: 89)2
As notícias se espalharam, não só pela população da cidadezinha onde vivia, com suas
conversas informais, surpresas, estigmas e acusações, mas também em publicações. Jornais de
Paris chegaram a noticiar a história de Herculine. Já como Abel, vai até a capital tentar um
emprego no sistema ferroviário. Ele – e desde que faz a transição passa a se referir no masculino
– em certa medida se responsabiliza por este fim (mesmo condenando a sociedade e a ciência
pela espetacularização do seu caso), acusa a si mesmo pela falta de tato e gerência com a
situação, principalmente em relação a Sara. “Que estranha cegueira foi esta que me fez seguir
neste papel absurdo até o fim?” (Ibid.: 114-115). A partir deste ponto até sua morte, os relatos
tornam-se fragmentados, amargos e viscerais.

Com o suicídio de Herculine, há uma reestruturação do paradigma médico em torno dos


reconhecimentos e cuidados dos intersexuais. As memórias de Barbin impactaram os saberes
médicos da época, como bem demonstra Foucault ao anexar na organização do livro de
memórias os laudos médicos e um conto ficcional escrito por um psiquiatra inspirado na vida
de Adélaïde/Abel. O discurso científico começa a argumentar que tal sofrimento, levando ao
suicídio, poderia ser evitado. Mais propriamente, alega-se que a angústia de ter que viver com
um sexo “errado” poderia acabar se as intervenções médicas ocorressem em tempo de descobrir
o sexo verdadeiro dessas pessoas. Essa nova interpretação modifica os manejos de indivíduos
com ambiguidade sexual. A partir de então, segue-se uma contínua produção de discursividades
medicalizantes através de guidelines, protocolos e intervenções cada vez mais urgentes e
precoces.

Atualmente, durante o dia 8 de novembro, data em que nasceu Herculine Barbin,


comemora-se o Intersex Day of Remembrance, dia de reflexão e conscientização internacional
das vicissitudes que os intersexuais ainda vivenciam e enfrentam cotidianamente.

Por conseguinte, com tal referência sensibilizando e atravessando minhas escolhas


etnográficas, esta dissertação engloba investigações sobre o gerenciamento sociomédico
(Machado, 2008a) de casos atuais de intersexualidade, realizadas em três hospitais de alta
complexidade na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, esse gerenciamento, ao longo das análises,

2
No original: “So, it was all over. According to my civil status, I was henceforth to belong to that half of the
human race which is called the stronger sex. I, who had been raised until the age of twenty-one in religious houses,
among shy female companions, was going to leave that whole delightful past far behind me, like Achilles, and
enter the lists, armed with my weakness alone and my deep inexperience of men and things”.
4

torna-se um processo que pretendo chamar (inspirada pelas formulações foucaultianas) de


veridicção da intersexualidade, onde não só o caráter administrativo do atendimento médico,
mas também o caráter gestativo da ciência médica, se atualizam em suas técnicas e abordagens
a fim de assegurar a produção de verdades acerca do corpo sexuado e intersexual. Posto isto,
acompanhei, por meio da observação participante e da pesquisa documental de prontuários,
grupos de médicos de várias especialidades em suas rotinas profissionais de atendimento e
encaminhamento de pacientes com distúrbios do desenvolvimento sexual. O termo refere-se a
nova definição classificatória da intersexualidade, e seus contextos construtivos e implicações
também serão expostas ao longo do trabalho. Tal termo é usado científico e clinicamente,
portanto, de forma a abranger inúmeros níveis de determinação e diferenciação ambíguas do
que se espera de um sexo funcional e normal, exemplificando-se no atendimento de casos como
agenesia peniana, síndrome de klinefelter, síndrome de insensibilidade aos andrógenos e
hiperplasia adrenal congênita.

Neste sentido, o título da dissertação se constrói criticamente à adoção da nova


terminologia. Em vez de “distúrbios”, ou “desordens” ou “anomalias”, outras possíveis
traduções, me espelho em Pierre Bourdieu (2007) e utilizo a palavra distinções para evidenciar
o caráter simbólico da apropriação desses termos científicos, os quais representam, por sua vez,
as relações de poder constituintes das racionalidades e sensibilidades médicas. Como veremos
no capítulo 2, o uso de “distúrbios” indica que existe um padrão de desenvolvimento sexual,
onde as variações desta norma são tidas como atípicas e desviantes. A escolha dos termos e dos
sentidos que tais classificações explicitam garantem o privilégio de explicação, de
reconhecimento, de gerenciamento sociomédico e de veridicção das pessoas intersexuais.

Situando melhor: o que chamo dos processos, regimes ou modos de veridicção da


intersexualidade estão enraizadas nas análises de Foucault (2008) sobre a biopolítica. Na
medida em que uma conjuntura histórica, com muitas facetas e que iremos rastrear ao longo da
dissertação, modifica a maneira com que a verdade é contada, formas específicas de
inteligibilidade e de subjetividades serão postas em jogo de acordo com essas discursividades3.
E a problematização desta análise foucaultiana com meus materiais etnográficos será para tentar

3
A questão da veridicção em Foucault atravessa suas análises sobre poder e conhecimento, além dos escritos sobre
a sexualidade, e culmina na problemática da “parrhésia”, isto é, sobre a relação franca de sujeitos e subjetividades
com a verdade. Neste sentido, os regimes de verdade, e as relações específicas entre sujeitos dentro desses
processos (como a relação médico-paciente), “funcionam como uma prática de auto formação do sujeito”, em que
pauta-se uma obrigação com a verdade de si (Wellausen, 1996: 114). Esses jogos são conflituosos, com
controvérsias e resistências, como iremos desenvolver ao longo dos capítulos.
5

esclarecer como o gerenciamento sociomédico, empregando cotidianamente seus regimes de


verdade, se relaciona com as próprias verdades de si (muitas vezes incertas e não coerentes)
que as pessoas e as experiências intersexuais trazem à tona.

Em vista disso, devido à preocupação social e científica em corrigir corpos sexuados


não hegemônicos, a biomedicina leva ao limite estratégias de controle e de regulação do
biopoder foucaultiano. Legitima-se cada vez mais diagnósticos urgentes e intervenções clínicas
e cirúrgicas precoces em corpos de sujeitos intersexuais. A justificativa do sofrimento, que vai
se repetir desde o século XIX com o paradigma do caso de Herculine Barbin, invisibilizará as
sistematizações generificadas e políticas (travestidas com discursividades supostamente
neutras, pois científicas) feitas nesses corpos que faltam ou excedem a normalidade.

Logo, o gerenciamento e a veridicção da intersexualidade ocorrem na medida em que o


discurso científico visualiza os corpos intersexuais como não inteligíveis, isto é, quando o
desenvolvimento sexual desses sujeitos é entendido como atípico para o padrão médico-
científico do que seria correto para um desenvolvimento cromossômico, gonadal e anatômico
do sexo. Essa não conformidade corporal do que seria um processo lógico e natural da
diferenciação e determinação do sexo se apresenta, portanto, como um problema. Neste ponto,
na prática médica, surge a necessidade do diagnóstico e da intervenção nos corpos intersexuais.
E é papel do profissional de saúde ajustar tal ausência, excesso ou ambiguidade para modelos
corporais que possam ser assimilados clínica e socialmente.

Mas essas normalizações não serão homogêneas e uniformes nem suas aplicações na
prática médica estão ausentes de críticas e diálogos para definição de condutas “centradas no
paciente”. As dinâmicas entre esses manejos cotidianos e os guidelines serão mobilizadores
para a reconfiguração de processos decisórios médicos mais inclusivos e o adiamento das
intervenções cirúrgicas em favor de outros cuidados terapêuticos menos mutiladores, duas das
demandas do movimento intersexual contemporâneo.

Portanto, o estudo da intersexualidade se insere aqui não como um puro registro do


gerenciamento sociomédico de casos e seus “distúrbios”, mas como uma tentativa genealógica,
ética e política de entender as possibilidades de produção de verdades – sobre o sexo, o gênero,
6

o corpo, a sexualidade, a humanidade e outras travessias – a partir de corporalidades que não


se conformam fisiologicamente com os aspectos hegemônicos do que seriam homens e
mulheres definidos culturalmente.

Ainda hoje, resquícios da antiga produção discursiva médico-científica nos corpos de


hermafroditas refletem nos saberes e práticas contemporâneas de manejo dos distúrbios do
desenvolvimento sexual. As classificações se transformam e se especificam com o tempo,
enquanto os limites e fronteiras sobre as conceituações distintas de masculinidades e
feminilidades tentam se manter erguidas em meio às fissuras que corporalidades e performances
dissidentes tendem a provocar. A reiteração da coerência entre o sexo, o gênero, a sexualidade,
a anatomia e as práticas sociais é, neste sentido, uma tecnologia de poder vital para a
compreensão das subjetividades e socializações.

Podemos nos perguntar como, hoje em dia, ocorre as estratégias, em alguns momentos
conscientes e outros não, de manter essa congruência nos atendimentos dos casos de
intersexualidade? Assim, além de mapear alguns casos de intersexuais atendidos por
profissionais de saúde de várias especialidades, pretendo discorrer sobre como tal
gerenciamento sociomédico afeta a formação de corpos generificados e de práticas sexuais
hegemônicas e não hegemônicas. No limite, demonstrar como a concepção de sexo vigente
provoca a humanização de corpos impossíveis em corpos possíveis, necessários e coerentes.

Destarte, no primeiro capítulo, retrato alguns caminhos ocidentais da identificação e


regulação dos corpos ambíguos. Desde os mitos sobre a monstruosidade e divindade dos
sujeitos limítrofes, às concepções modernas do hermafroditismo, até as formulações dos
primeiros consensos e guidelines sobre as classificações e os tratamentos de pessoas
intersexuais. O capítulo serve para mapear genealogicamente as abordagens sobre o corpo e o
sexo/gênero – categorias mais do que analíticas, foram preocupações que conduziram
organizações e divisões sociais, gêneses religiosas, normas jurídicas, modelos epistemológicos,
transformações tecnocientíficas, cuidados e atenções salutares através de todos os períodos da
história ocidental. De modo que falar sobre “sexo” é também discutir sobre os saberes e poderes
que regulam a vida social, e falar sobre intersexualidade é apontar mais minuciosamente onde
se gesta tais regulações.

No segundo capítulo faço, por um lado, uma análise bibliográfica contemporânea sobre
como o dispositivo da intersexualidade aprofunda suas localizações sobre a “verdade” do sexo
em instâncias cada vez mais moleculares, classificatórias e específicas. De modo
7

complementar, relaciono como a produção médico-científica volta-se para o estudo dos casos
de distúrbios do desenvolvimento sexual e, ao produzir consensos e guidelines sobre o tema,
influencia, afeta e direciona o manejo diário desses casos de intersexualidade. Por outro lado,
problematizo as controvérsias médicas e políticas de tais consensos, principalmente o consenso
classificatório de 2006, que atualiza os manejos clínicos e modifica a terminologia científica,
gerando rupturas, reorganizações, assimilações e resistências tanto no interior do campo
médico-científico como também dos movimentos civis intersexuais.

No terceiro capítulo, finalmente desenvolvo os dados e as articulações do trabalho de


campo realizado em três ambulatórios/enfermarias de especialidades médicas diferentes, dentro
de três instituições distintas, todas localizadas na cidade do Rio de Janeiro. Em paralelo à
apresentação das escolhas teórico-metodológicas e de situar os percursos institucionais e as
relações dos interlocutores da etnografia, inicio a descrição de seis casos clínicos de pacientes
intersexuais. Acompanhei mais casos ao longo desses meses de campo, mas muitos foram ou
repetições diagnósticas ou encaminhados para outros ambulatórios. Em vista disso, decidi
fechar a análise com apenas seis casos mais comparáveis e desenvolvidos.

Logo, uma das ideias do capítulo é seguir o caminho proposto por Machado (2008a) de
perceber as práticas e os processos decisórios envolvidos no gerenciamento sociomédico da
intersexualidade. Tal manejo é problematizado segundo os apontamentos médico-científicos
dos artigos e consensos detalhados no segundo capítulo, entendidos como referências
mobilizadoras de condutas. Relacionar como a produção de conhecimento especializado sobre
o tema influi no tratamento diário dos pacientes intersexuais e, de outro modo, como as
controvérsias e os posicionamentos críticos do saber posto em prática requalificam as
experiências de cada caso e cada atendimento. Uma vez expostas as minúcias dos casos, tento
indicar em que medida essa trajetória médica, que vai da internação, passando pela construção
diagnóstica, circulando por cada especialidade, até a produção de intervenção para cada
paciente, pauta-se por guidelines cada vez mais moleculares, técnicos e descritivos (Machado,
2008b). Ao mesmo tempo, esclareço também como as atuações médicas mobilizam-se por
saberes “localizados” e não tão “consensuais”, pois atravessam concepções normalizantes,
olhares generificados, proliferação de valores, mediações de silêncio, dentre outros registros
sociais que atravessam o processo do saber-poder científico e de veridicção da intersexualidade.

Nas considerações finais, tento esboçar os limites das constituições de humanidades


através de corpos sexuados. Por um lado, descrevo como o dimorfismo sexual como valor
dentro do modelo corrente de direitos humanos e sexuais aposta em uma humanidade binária.
8

Assim, analiso que corpos humanos precisam, dentro dessa ética e política contemporânea,
passar por transformações biomédicas para serem incorporados ao universo da “natureza
humana”. Contudo, as transformações se limitam às concepções de integridade corporal de cada
sujeito, isto é, as normalizações biomédicas podem ser feitas desde que autodeterminadas pelos
próprios intersexuais. As justificativas para as intervenções estariam em lugares mais
profundos, não somente biomédicos, mas embasadas pela própria noção de humanidade que os
direitos humanos e sexuais acionam para combater os excessos médicos; como dar conta dessa
contradição? Por outro lado, aponto também como, em uma escala mais macro, as experiências
da intersexualidade são gestadas a partir de processos farmacopolíticos (Preciado, 2008). No
final da dissertação busco refletir um pouco sobre como a medicalização da vida e as noções de
humano vigentes produzem “estados de exceções” (Cabral, 2006) que as pessoas intersexuais
precisam se adequar para terem vidas inteligíveis e possíveis.
9

Worshiping, then, the nurturing god Venus,


whether she is male or female,
just as the Night-shiner [Moon] is a nurturing
goddess.4

Do we truly need a true sex? With a persistence that borders on stubbornness, modern Western societies
have answered in the affirmative. They have obstinately brought into play this question of a “true sex” in
an order of things where one might have imagined that all that counted was the reality of the body and
the intensity of its pleasures.5

4
Macrobius; Kaster, Robert A. Saturnalia. Volume 2. Harvard University Press, 2011, p. 58.
5
Foucault, Michel. Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-century French
Hermaphrodite, 2010, vii.
10

1
O “sexo” e a “sexualidade” precisando, modelando e
corroendo

Algumas localizações do intersexo: da Antiguidade à Modernidade

Ao tangenciarmos o mito e a história do hermafroditismo, seguindo os rastros que


desembocam no estudo contemporâneo sobre os intersexuais – e em sua vertente médico-
patologizante dos “distúrbios de desenvolvimento sexual” – um caminho é traçado onde essas
entidades metamorfoseiam-se em monstros e impossibilidades ambíguas em uma tentativa de
transformarem-se em humanos. Assim, nesta primeira interseção, do conflito da divindade e da
monstruosidade com a humanidade, que a conceituação desta dissertação se inicia.

O que conhecemos como intersexualidade hoje foi representada historicamente através


da figura do hermafrodita, congregando a dualidade no uno. Na mitologia grega, havia uma
divindade vinda da ilha de Chipre chamada Afrodito, que era representada como uma versão
masculina da deusa da beleza, sexualidade e fertilidade, Afrodite. Possuía um corpo feminino,
mas com falus e, ocasionalmente, barba. Filósofos da Antiguidade relatam que rituais feitos em
seu nome eram agraciados com o aumento da fertilidade e da influência na criação de animais
e vegetais, justificando essa potência pela combinação dos sexos, e também pelo fato da
divindade estar associada à Lua (Bonnefoy, 1992: 171).

Durante o período clássico, discussões sobre a origem da natureza humana e suas


vicissitudes aparecem em diversos diálogos filosóficos. Em O Banquete, de Platão, o
comediógrafo Aristófanes se propõe a explicar para o médico Erixímaco o surgimento da
humanidade, com base em uma interpretação sobre a totalidade do ser, ao dizer:

Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora,
o masculino e o feminino, mas também havia mais um terceiro, comum a estes
dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então
um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao
11

masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em


desonra. (Platão, 2000: 20)

Segundo o mito, os seres humanos já foram um dia seres duplos e integrados, enormes
e redondos, com quatro braços e pernas, duas cabeças e sexos. Os inteiramente masculinos,
eram os descendentes do Sol; os inteiramente femininos, eram os descendentes da Terra; e os
andróginos, tanto masculinos quanto femininos, eram descendentes da Lua. Ao tentarem escalar
o Olimpo para destronar os Deuses, Zeus os enfraquece cortando-os ao meio. Divididos, passam
a vagar em busca de sua metade para tornarem-se completos outra vez. O mito de origem da
humanidade, descrito por Platão, relata também a formação do amor – como falta – e da
concepção.

Neste período histórico, segundo Laqueur, “ser homem ou mulher fazia parte de um
todo envolvendo posição social, grau de liberdade, desejos, roupas, comportamentos e
espiritualidade, sendo a diferenciação genital apenas mais um, mas não o principal, dos
elementos que caracterizavam esta distinção, pois o corpo era visto como um só para os dois,
variando apenas seu grau de desenvolvimento” (Leite Jr, 2008: 19). Neste sentido, o sexo era
entendido como único – homens e mulheres, generificados em sociedade, possuíam uma única
carne (Laqueur, 2001: 19-20). A semelhança era o motor do pensamento e da representação.
Não havia uma retórica de dimorfismo sexual ontológica, a diferença era entendida como
relacional e se dava no nível das coisas, das palavras, da posição e do gênero.

Posteriormente, através de contos neoplatonistas entre os séculos I e IX d.C., a origem


de Afrodito é recontada. Torna-se o filho de Hermes e Afrodite, com o nome de Hermafrodito
(Brisson, 2002: 54).

Alguns falam que ele é um deus, manifesto de tempos em tempos entre os


humanos, e que nasceu com um corpo marcado por uma dupla natureza,
masculina e feminina, no sentido de que seu corpo tem o charme e a delicadeza
tal como beneficia as mulheres, e a virilidade e a energia dos homens. Outros
dizem que aqueles que revelam naturezas desse tipo são monstros os quais
raramente fazem uma aparição, e precedem anúncios às vezes de infortúnios e
às vezes de boas novas. (Siculus, Library IV 6, 5 apud. Brisson, ibid.: 55)6
Nesta versão, era um ser belo que unia qualidades masculinas e femininas de ambas as
divindades parentais. Porém, somente se transforma em um ser literalmente andrógino após sua

6
No original: “Some say that he is a god, that he manifests himself from time to time among human beings, and
that he was born with a body marked by a double nature, both masculine and feminine, in the sense that his body
has the charm and delicacy that befit a woman, and the virility and energy of a man. Others say that those who
display natures of this kind are monsters that rarely make an appearance and that herald sometimes misfortunes,
sometimes good things”.
12

união – violenta – com a ninfa Salmácis. No mito descrito por Ovídio, em Metamorfoses,
Hermafrodito, ainda um jovem, perde a possibilidade de deter uma posição masculina e ativa
na sociedade, pois transforma-se em um “meio homem” ao conectar-se e então adquirir o sexo
e as características femininas de Salmácis, tornando-se estéril e efeminado (Brisson, ibid.: 57-
60).

Tal (re)concepção, podemos apontar, desloca uma noção de divindade com motivações
ritualísticas positivas, geradoras de fecundidade, para atestar através do mito o drama social de
um erro, expresso pela ambiguidade forçada. Erro este que era materializado nas crianças
andróginas. Não só no período helenístico, mas mesmo na Grécia Antiga, crianças com
ambiguidade genital eram sacrificadas como forma de aliviar algum presságio ou mal advindo
dos Deuses (Leite Jr, ibid.: 25).

Logo, a androginia pulsava entre um ideal divino e metafísico – como no mito dos
andróginos e na divindade Afrodito/Hermafrodito – para entendimentos materiais avessos à
ambiguidade, motivados pelo espanto, medo e receio da ira divina frente ao corpo humano
unificado. Nesta interpretação, se as mulheres já tinham uma posição subordinada, por não
possuírem calor e perfeição suficientes para tornarem-se homens, o lugar social dos seres
ambíguos fora da mitologia era marginal e arriscado.

Enquanto a tradição hipocrática entendia os seres ambíguos como um meio termo entre
extremos masculinos e femininos, Aristóteles e seus seguidores pensavam o hermafrodita como
alguém que transbordava, ou seja, alguém cuja geração teve tanto calor material por parte da
mãe, que excedeu os caracteres sexuais de um sexo só, tornando-se assim um ser ambíguo
(Dreger, 1998: 32).

De modo que, com o início de uma transição epistemológica, aos poucos é introduzida
uma nova composição das corporalidades. O corpo, ainda visto como contendo uma única
carne/sexo adaptável e muitos graus de desenvolvimento/gêneros, ganha cada vez mais
contornos biológicos e anatômicos. Tanto Aristóteles quanto Galeno (médico e anatomista do
século I), e também Soranus (físico do século II), discorreram sobre o modelo de sexo único,
na qual ligavam os órgãos reprodutivos masculinos e femininos, distintos em sua capacidade
de gerar, ao sistema alimentar e uma economia dos fluidos, comum a toda carne (Laqueur, ibid.:
48-49, 57).

As fronteiras entre os papéis de homens e mulheres na geração, desde a concepção pelo


ato sexual até a geração de vida fundando uma diferenciação sexual, são menos explicadas por
13

uma essencialização de condições distintas entre machos e fêmeas – fato que depois iria
protagonizar o modelo de dois sexos – do que por uma necessidade de lidar com poder, status,
legitimidade e paternidade. Desta maneira, para o modelo do sexo único – no qual os órgãos
genitais eram pensados segundo uma semelhança, onde, por exemplo, a vagina era nomeada e
compreendida como uma versão invertida do pênis, mas com suas diferenças anatômicas cada
vez mais detalhadas a fim de comprovarem os funcionamentos da ordem social – o que
importava de fato era atestar a superioridade da potência do homem (Laqueur, ibid.: 70-72). A
anatomia trabalhava aqui para reforçar uma verdade ideológica, onde os limites entre as
mulheres e os homens ainda eram, em regra, sociológicos, e não ontológicos.

Mais à frente, com o deslocamento de uma cosmologia greco-romana para o pensamento


medieval, a androginia passa a representar o mal encarnado. A partir de reapropriações judaico-
cristãs do simbolismo e da figura do andrógino, o hermafrodita é concebido como um
descendente ou parceiro de Satã. Neste período, seres com ambiguidade passam a ser mortos
“não apenas para eliminar um Mal que eles inevitavelmente encarnam para os olhos de tal
cultura, mas principalmente em nome de um Bem maior: evitar que o demônio e seus frutos
desorganizem o frágil e constantemente ameaçado reino de Deus sobre a terra” (Leite Jr, ibid.:
28).

Também nesta época, no âmbito do cristianismo, o uso da confissão começa a atribuir


ao sexo e à sexualidade a classificação de algo que precisava ser examinado, confessado,
vigiado e transformado em discurso. Assim, conferindo ao domínio do sexo o atestado de uma
perda de pureza original, que necessitava de controle e salvação, a prática da confissão iria
impulsionar uma regulamentação dos corpos e práticas sexuais, o que, posteriormente,
fomentaria a disciplinarização dos corpos através de uma “ciência sexual”. Essas regulações,
portanto, não aconteciam só por meio de procedimentos negativos, como proibições e censuras,
mas também por uma incitação ao discurso do sexo, que embasaria uma produção de saber
sobre a sexualidade (Foucault, 2011).

Dentro deste mundo, os hermafroditas eram considerados monstros, seres fantásticos


causadores de encantos e repulsas, pois eram entendidos como um misto anatômico tanto
masculino quanto feminino, o que contrariava o modelo de sexo único que gerenciava os
valores e status sociais. Durante este período medieval, até o século XVI, a norma pedia que
fossem “executados, queimados, suas cinzas jogadas ao vento” (Foucault, 2001: 83).
14

Com a modificação da jurisprudência no âmbito renascentista, já durante o século XVII,


o hermafrodita passa a não ser mais condenado por sua ambiguidade como tal. Pedia-se que
escolhesse um gênero, o que achava dominante, e vivesse em função deste sexo escolhido.
Somente se transgredisse essa lei e “usasse o sexo anexo que, nesse momento, incorria nas leis
penais e merecia ser condenado por sodomia” (Foucault, ibid.: 84). Neste ponto, Laqueur
discorda de Foucault ao afirmar que seria utópico pensar que a escolha do gênero era de critério
pessoal (Laqueur, ibid.: 161), e continua a discorrer sobre a distinção dos sexos na Renascença.

Assim, para os hermafroditas a questão não era ‘a que sexo eles pertenciam
realmente’, mas a que gênero a arquitetura de seus corpos mais se ajustava. Os
magistrados eram menos preocupados com a realidade corpórea – que o que
hoje nós chamaríamos de sexo – que com a manutenção de claras fronteiras
sociais, a manutenção de categorias de gênero. (Laqueur, ibid.: 171)
Neste contexto, a diferenciação e regulação desses seres não ocorria mais em níveis
espirituais e filosóficos. O sexo dominante deveria ser reforçado com vestimentas, atitudes,
ocupações e orientações. Com a crescente preocupação em indicar o sexo “válido” socialmente
em casos de difícil determinação sexual, o especialista era chamado ao tribunal. A observação
e o exame físico ganham importância, os comentadores da época insistiam que “mesmo quando
não há órgãos genitais visíveis, há sinais que indicam qual é o sexo mais potente e qual é menos
potente ou importante” (Ibid.: 176). Aos poucos, a relevância no comportamento –
evidenciando posições e status – se deslocava para a condição da pessoa – em termos puramente
biológicos e essenciais.

Em algum momento durante o século XVIII, mulheres e homens começam a ser


explicados segundo um dimorfismo anatômico e sexual, na qual era reiterada a
incomensurabilidade da “natureza” entre os dois. O modelo de uma única carne é destronado
por um modelo de dois sexos biológico e ontologicamente distintos. Essa ruptura ocorreu com
a ressignificação do corpo feminino. Suspendeu-se a ideologia que reiterava a mulher como
uma variante menos quente e perfeita do homem, o discurso e a prática médica trabalham agora
para classificar e explicar os domínios exclusivos de cada sexo. O clitóris e os ovários foram
nomeados, não eram mais uma versão inversa do pênis e dos testículos masculinos. A vagina
também foi classificada e objetivada. As diferenças entre os sexos eram reafirmadas sobretudo
de acordo com as diferenças dos órgãos reprodutivos e do prazer sexual.

O calor não era mais a marca distintiva entre os sexos. Finalmente o discurso médico
assume “não só um repúdio explícito do velho isomorfismo como também, e mais importante,
uma rejeição da ideia de que as diferenças sutis entre os órgãos, fluidos e processos fisiológicos
15

refletiam uma ordem transcendental de perfeição” (Ibid.: 189). Não apenas em termos do
orgasmo, dos prazeres e da concepção que homens e mulheres tornam-se incomensuráveis, mas
também em estruturas que eram consideradas comuns aos sexos – os ossos e o sistema nervoso
são, da mesma forma, diferenciados de modo a corresponderem aos seus modelos culturais
vigentes.

Com as rupturas e mudanças epistemológicas e políticas, a natureza passa a ser o único


plano de comparação entre os corpos e os cosmos. No mundo da explicação racional
reducionista e cética, “o que importava era o fundamento simples, horizontal e imóvel do fato
físico: o sexo” (Ibid.: 191). A relação entre os sexos, e consequentemente entre homens e
mulheres generificados em sociedade, eram, nesta concepção, uma relação de diferença. A
semelhança da episteme antiga – com suas graduações de desenvolvimento indicando relações
de igualdade e desigualdade – cedeu lugar à diferença – uma estrutura interpretativa que
legitima, a partir da categoria “sexo”, a distinção completa entre o social e o natural.

Neste novo modelo de dimorfismo sexual, a noção do hermafroditismo como


monstruosidade, exemplificado pela mistura “antinatural” entre dois sexos/gêneros de acepções
distintas em uma única carne, perde espaço para uma explicação preocupada em descobrir a
“verdadeira” localização do único sexo possível desse corpo ambíguo. O hermafrodita não é
mais cerne de uma monstruosidade da “natureza”, mas é provável representante de uma
monstruosidade jurídico-moral – é preciso, portanto, corrigi-lo (Foucault, ibid.: 92).

Sobre as tecnologias de poder: a medicalização dos corpos e a normalização das


ambiguidades

As transformações econômicas, políticas, ideológicas e sociais que adquiriram força no


século XVIII – podemos citar, a mudança na estruturação social-estatal com a formação das
cidades e a urbanização, o aprofundamento de práticas mercantilistas e seus fluxos de mercado
impulsionando a industrialização e o surgimento do operariado – fizeram também com que a
prática e o saber médico se reestruturassem. Neste sentido, na época, a medicina social se
consolida basicamente como uma tecnologia de controle populacional.
16

Com raízes na medicina estatal alemã e na medicina urbana francesa, é na Inglaterra que
ela aperfeiçoará suas técnicas de vigilância e hospitalização em três ramos: assistencial,
administrativa e privada. Preocupada em controlar epidemias e doenças, mas também em
normalizar as atividades e o ensino médico, a grande mudança ocorre na medida em que se
institui uma medicalização dos corpos e uma disciplinarização dos espaços públicos. Há uma
atenção em controlar a saúde e o corpo das classes mais pobres para “torna-las mais aptas ao
trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (Foucault, 1977: 56), isto é, aperfeiçoando
gradual e continuamente suas capacidades ao mesmo tempo em que neutraliza-se as
possibilidades de resistência, tornando-os mais úteis como força de trabalho e dóceis
politicamente.

Segundo Foucault (Ibid.: 60-64), as técnicas disciplinares são antigas, mas existiam
isoladamente até o século XVIII, fortalecendo-se na medida em que o poder disciplinar foi
aperfeiçoado como uma tecnologia de gestão das populações – no exército, nas escolas, nas
fábricas. Contudo, não foi somente com a introdução dessas técnicas nos espaços hospitalares
que a medicalização foi possível, mas também pela transformação sofrida na prática e no saber
médico que marcou a transição epistemológica do período, com o advento da modernidade e
do poder médico-científico como um de seus pilares.

A regulação do olhar e do registro, atendendo e documentando os pacientes, produz um


acúmulo do saber, que indica simultaneamente os objetos alvos do saber e de intervenção
médica: o indivíduo e a população. O indivíduo está situado dentro do contexto populacional,
como parte integrante de um corpo social em que é preciso definir, por exemplo, cuidados
coletivos, pautas econômicas e estratégias de governança.

Nesta interpretação foucaultiana, a medicalização indica os processos que seriam


designados como próprios do domínio da medicina, como o controle do espaço hospitalar para
ajudar na formação de Estados-nações ou na manutenção de interesses das classes burguesas.
De modo que esses processos engendram técnicas e procedimentos que agem sobre o
comportamento dos indivíduos, modificando, influenciando ou formando modos de se portar e
viver. Nos termos de Luiz Fernando Dias Duarte (1999), parafraseando Foucault, processos que
fomentam a produção de um “dispositivo de sensibilidade” (Ibid.: 24). Portanto, esta nova
percepção do mundo com sua faceta medicalizante está indissociável de sua aplicação ao
âmbito da sexualidade.
17

A constituição de saberes e práticas sobre o sexo, ou melhor, deste “dispositivo da


sexualidade” caracterizado por Foucault, nos séculos XVIII e XIX, indica que falar sobre sexo
é uma tecnologia de poder. A sexualidade ocupa um lugar privilegiado na gestão da vida não
somente com a biopolítica, ou seja, nas formas de organizações políticas e regulações das
populações. Mas também na administração disciplinar dos corpos, seja pela medicalização da
família através da vigilância e controle da sexualidade infantil, ou pela gênese religiosa do
dispositivo da sexualidade com base na confissão-desvelamento, ou, por fim, pela composição
dos saberes psiquiátricos.

Ainda em Duarte (Ibid.), o dispositivo da sexualidade coloca em jogo três aspectos


fundamentais para se pensar a construção ideológica e institucional deste momento histórico.
A perfectibilidade (o aperfeiçoamento progressivo de si e da humanidade), a experiência
(representando um modelo empirista de relação com o mundo) e o fisicalismo (investindo em
uma distinção radical e cosmológica do corpo e do espírito) são aspectos que transformarão a
forma com que se conhece o corpo sexuado e humano. A exploração da corporalidade em seus
limites – intensificando o uso do corpo para o trabalho disciplinar, para os prazeres, para a
gestão da vida – explicaria a própria humanidade. Posto isto, os saberes e as práticas de
regulação, gerenciamento e veridicção do corpo sexuado instauram regimes de verdade sobre
o que somos e como devemos/podemos viver.

Nas palavras de Foucault, “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da


população. Portanto, ela depende da disciplina, mas também depende da regulamentação”
(2002: 300). Nesta interpretação, o indivíduo também é produto do poder, da biopolítica, das
tecnologias da sexualidade. Sendo assim, podemos concluir que a incitação e interpretação do
discurso da sexualidade produz não só subjetividades, mas também instâncias de verdade. De
modo que outra interseção move esta dissertação: a da constituição do dispositivo da
(inter)sexualidade que busca produzir verdades segundo tecnologias de poder-saber médico-
científicas, ou como também utilizarei ao longo da dissertação, biomédicas.

Neste sentido, uma forma de medicalização dos corpos que agiu como tecnologia de
poder e de normalização foi a regulação dos corpos com ambiguidades sexuais. Não era mais
permitido voltar e tornar-se um outro sexo, como no Renascimento; a tarefa científica em
meados do século XVIII era de desfazer as máscaras ambíguas impostas pela natureza e
determinar, através de um exame minucioso pelo corpo, o sexo “verdadeiro”. A biologia era o
fim possível e necessário.
18

Dentro dessa nova maneira de pensar e classificar o mundo, com as ciências médicas e
psiquiátricas conceituando monstros morais, invertidos e perversos, o hermafrodita da idade
clássica e medieval transforma-se novamente e torna-se o pseudo hermafrodita (Leite Jr, ibid.:
52). Nesta lógica, não há mais espaço para o meio termo. É imprescindível a descoberta do sexo
“real”, uma vez que torna-se impossível a existência de seres humanos fora da concepção
anatômico-social dos dois sexos vigentes. A prática médico-científica detém, neste contexto, a
responsabilidade de investigar a “verdade” por trás da aparente ambiguidade genital desses
desviantes. Como relata Foucault sobre o período,

De um ponto de vista médico, isto significa que quando defrontado com um


hermafrodita, o doutor não estava mais preocupado em reconhecer a presença
dos dois sexos, justapostos ou entrelaçados, ou em saber qual dos dois sexos
prevalece sob o outro, mas estava interessado preferencialmente em decifrar o
verdadeiro sexo escondido embaixo da aparência ambígua. (Foucault, 2010:
viii)7
Logo, a possibilidade de escolha entre um dos sexos possíveis é negada, não é mais
papel do indivíduo decidir qual o sexo dominante que ele poderá viver, judicial e socialmente.
É papel do especialista decidir a “verdadeira” natureza do sexo e indicar para a sociedade como
o pseudo hermafrodita poderá ser reconhecido.

Ordens classificatórias e economias corretivas: o “sexo” como verdade

Como apresentei nos tópicos anteriores, a normalização de corpos entendidos como fora
do padrão de feminilidade e masculinidade torna-se central dentro de uma economia de
regulação e correção dos corpos e das sexualidades. As fronteiras e limites do que é masculino
e do que é feminino precisam ser, nesta nova realidade biopolítica, esmiuçados e reafirmados
continuamente. Os corpos com ambiguidades sexuais tornam-se marcadores fundamentais para
o processo classificatório e político de governança das populações e das subjetividades.

7
No original: “From the medical point of view, this meant that when confronted with a hermaphrodite, the doctor
was no longer concerned with recognizing the presence of the two sexes, juxtaposed or intermingled, or with
knowing which of the two prevailed over the other, but rather with deciphering the true sex that was hidden beneath
ambiguous appearances”.
19

Neste sentido, no final do século XVIII e começo do século XIX, o discurso médico-
científico surge como a nova autoridade para declarar quais corpos eram corretos e anormais,
masculinos e femininos. Com a percepção moderna de que a natureza era o parâmetro de
referência, sendo um todo completo, os estudos sobre as anormalidades começam a ganhar
relevância, pois era a partir das nomeações e explicações do que era desviante, que ditavam as
regras do que era considerado o desenvolvimento normal. Assim, ao mesmo tempo em que o
antigo hermafrodita sai do espaço da não-natureza monstruosa, agora ele passa a ser tratado
como uma patologia que necessita de correção.

A concepção antiga do hermafroditismo torna-se impossível. O discurso médico insistia


que, embora casos de hermafroditismo verdadeiro existissem em outros domínios da natureza,
era extremamente raro a existência de algum humano com a capacidade funcional reprodutiva
e sexual dos dois sexos (Reis, 2009: 42). Houveram debates sobre como identificar os
“verdadeiros” e “falsos” hermafroditas, se realmente existiam humanos não só com órgãos
genitais ambíguos, mas também com testículos e ovários em um só corpo. Em afirmativa,
somente estes que seriam designados “verdadeiros”.

Destarte, o discurso médico da época confirma, somente indivíduos com ambos tecidos,
testiculares e ovarianos, seriam considerados hermafroditas verdadeiros. Com esta menção,
surgirá o termo falso hermafrodita para identificar os corpos ambíguos – por exemplo, uma
pessoa com tecido testicular, mas com a genitália feminina – que teriam alguma incongruência
entre suas gônadas e seus órgãos genitais, mas que, no fim, possuíam uma base “verdadeira”
masculina ou feminina (Ibid.: 59). Neste exemplo dado, o sujeito seria designado masculino
devido às suas gônadas testiculares.

Logo, a marca privilegiada e “verdadeira” da diferenciação entre os sexos encontrava-


se nas gônadas. Os traços de determinação sexual de homens e mulheres eram baseados,
primeiramente, na presença de tecido testicular ou de tecido ovariano. Antes do
desenvolvimento tecnológico capaz de analisar os tecidos gonadais, os médicos focavam em
marcadores visuais, principalmente os órgãos genitais, mas também caracteres secundários,
como a menstruação, para determinar o sexo da pessoa. Nos momentos em que esses
marcadores biológicos eram inconclusivos, os doutores debruçavam-se sobre indicadores
sociais, ao avaliarem os jeitos, vestimentas e gostos pessoais do sujeito (Ibid.: 54). Esses
marcadores não foram esquecidos nas avaliações, ainda compunham as variáveis necessárias
para atestar o sexo de alguém, mas o atributo fundamental para definir alguém como
essencialmente homem ou mulher era o fator gonadal.
20

Concomitantemente aos processos classificatórios descritos, alia-se uma evolução das


tecnologias médicas, como os usos dos microscópios e do começo das intervenções cirúrgicas
para biópsias. Com um maior detalhamento dos instrumentos para a determinação do sexo
gonadal, e as novas categorizações estabelecendo parâmetros mais rígidos para a definição das
ambiguidades sexuais, os hermafroditas, principalmente os tidos como verdadeiros, aos poucos
vão se invisibilizando (Dreger, ibid.: 139). Esta medicalização e consequente invisibilidade das
ambiguidades reflete nas disputas sociais que se iniciavam no período. Na medida em que eram
travadas batalhas por equidade social entre os sexos, no final do século XIX e início do século
XX, o discurso e prática médico-científica desenvolviam critérios mais estritos e exclusivos
para a definição e regulação dos casos de hermafroditismo. Anne Fausto-Sterling discute essa
conjuntura, ao dizer:

Teorias acerca da intersexualidade no século XIX – os sistemas de classificação


de Saint-Hilaire, Simpson, Klebs, Blackler e Lawrence – se dispõem em um
grupo maior de ideias biológicas sobre a diferença. Cientistas e médicos
insistem que corpos de homens e mulheres, de brancos e pessoas de cor, de
judeus e não judeus, de classe média e classe popular diferem profundamente.
Em uma era em que se argumenta politicamente pelos direitos individuais com
base na igualdade humana, cientistas definem alguns corpos como melhores e
mais merecedores de direitos do que outros. (Fausto-Sterling, 2000: 39)8
Deste modo, os sistemas classificatórios propostos por Isidore Geoffroy Saint-Hilaire9
e Sir James Young Simpson10, seja nas excessivas descrições da teratologia ou nas taxonomias
britânicas, que guiaram o modo como hermafroditas eram identificados até quase o final do
século XIX, gradativamente são substituídos por novos modelos classificatórios. A Era das
Gônadas, como Alice Dreger intitulou o período após a morte de Herculine Barbin, de 1870 à
1915, foi o período onde a “verdade” sobre o sexo era marcada na anatomia “natural” dos
tecidos gonadais: ovariano ou testicular.

8
No original: “Nineteenth-century theories of intersexuality—the classification systems of Saint-Hilaire, Simpson,
Klebs, Blackler, and Lawrence—fit into a much broader group of biological ideas about difference. Scientists and
medical men insisted that the bodies of males and females, of whites and people of color, Jews and Gentiles, and
middleclass and laboring men differed deeply. In an era that argued politically for individual rights on the basis of
human equality, scientists defined some bodies as better and more deserving of rights than others”.
9
Saint-Hilaire foi um zoólogo francês do século XIX, especialista de um tipo de investigação chamada
“teratologia”, termo cunhado por si mesmo, em que estuda espécies desviantes do que considerava ser uma
estrutura “normal” de desenvolvimento biológico, dentre eles casos de hermafroditismo.
10
Simpson foi um médico obstetra escocês do século XIX, muito reconhecido na Inglaterra por introduzir o
clorofórmio como instrumento anestésico, e também por ser a principal referência britânica sobre os estudos do
hermafroditismo em sua época.
21

Durante este intervalo, o fator gonadal para diferenciação dos sexos se estabelece como
um consenso médico. Incorporando esta nova dimensão sobre a “verdade” do sexo, o
patologista Theodor Klebs propôs, em 1876, um novo sistema classificatório para os casos de
ambiguidade sexual (Dreger, ibid.: 145). Nesta interpretação, a literatura médica da época
classificava os corpos ambíguos da seguinte forma: pseudo hermafrodita masculino, para os
casos de ambiguidade em que o tecido gonadal era testicular; pseudo hermafrodita feminino,
para os casos de ambiguidade em que o tecido gonadal era ovariano; e hermafrodita verdadeiro,
para os casos de ovotestis, isto é, nos quais encontravam-se ambos os tecidos, testicular e
ovariano11.

A necessidade de regular corpos ambíguos e de impor classificações sobre o sexo cada


vez mais rígidas e específicas refletiam na maneira com que o discurso médico-científico
concebia as distinções das capacidades reprodutivas entre homens e mulheres como o marcador
fundamental de diferença “natural” entre os sexos. Com o decorrer do século XX, o atestado
do sexo como gonadal, definindo as particularidades das funções masculinas e femininas no
papel reprodutivo, torna-se imprescindível para a rápida correção dos casos de ambiguidade
que poderiam borrar essas fronteiras. Não diagnosticar e não corrigir os casos de
hermafroditismo possivelmente levariam, discorriam os médicos da época, a “miseráveis
consequências, infelicidades, pedidos de divórcio, e até mesmo suicídios”, ou pior, aos
casamentos acidentais entre pessoas do mesmo sexo – tudo isto indicaria a magnitude da
responsabilidade de identificação e correção precoce desses casos de ambiguidade sexual (Ibid.:
80).

Assim, para traçar a história da medicalização de corpos ambíguos, foi preciso entender
como a história do gênero e do sexo, como modelos socioculturais, variaram através das épocas
na Europa. As tradições médicas europeias viajaram para novos territórios. Na América do
Norte colonial, até o final do século XVIII, o hermafroditismo também foi compreendido como
uma anormalidade. Sua monstruosidade não residia simplesmente na dupla “natureza” em que
dois sexos compunham um único corpo, mas era reprimido principalmente nos casos de
mulheres com clitóris avantajados designadas erroneamente como homens. O perigo englobava
os possíveis atos sexuais ditos pecaminosos e errados que essas mulheres consumavam, ao
utilizar suas genitálias “anormais”, com outras mulheres (Reis, ibid.: 14-15). Posteriormente,

11
No período, os tecidos encontrados nos hermafroditas verdadeiros não precisavam ser funcionais, somente
atestar a presença anatômica das gônadas, seja na forma dos testículos ou na forma dos ovários (Dreger, ibid.: 36).
22

como os europeus, na medida em que a definição sobre o sexo se modifica, também se altera a
regulação dos casos de ambiguidade sexual. O que permanece inalterado através das épocas e
lugares é o temor de que esses corpos ambíguos incitem a prática de sexualidades desviantes.

Como proposto por Judith Butler em Problemas de Gênero (2008), a reiteração de uma
matriz de heterossexualidade compulsória, produtora de subjetividades e gêneros, pode ser
observada nesta preocupação médica, científica e política em tratar das sexualidades desses
corpos ambíguos. Ao sair de explicações baseadas na monstruosidade para a impossibilidade
médico-científica, tanto na América do Norte quanto no Velho Mundo, é instaurada uma
ansiedade geral de regular e corrigir ambiguidades corporais que possam levar a condutas
sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

Neste registro, a desconfiança e a urgência advindas da posse de um corpo ambíguo


(que levaria, dentro desta interpretação, a uma falta de clareza sobre a sexualidade da pessoa)
já validariam uma intervenção médica. A preocupação incessante com uma “verdadeira”
localização do sexo em meio ao corpo imperfeito e ambíguo não só retroalimenta a busca por
uma verdade sobre o corpo, a humanidade e a realidade, mas também anda lado a lado com a
necessidade primária de manter o regime heterossexual de reprodução social e biológica
inalterado.

A impossibilidade do hermafroditismo e a emergência dos estados intersexuais:


generificando corpos, orientando sexualidades

Devido às urgências sociais para a correção dos casos de ambiguidade sexual, as quais
equiparavam o desenvolvimento “anormal” dos pseudo hermafroditas com a prática mais geral
do que entendiam como “perversão sexual”, inscreve-se como crucial a intervenção precoce
nesses corpos. Os médicos insistiam que para evitar imoralidades como os casos de
homossexualidade – acreditavam que estes tinham deformações no cérebro que os levavam a
praticar tais atos depravados, da mesma maneira que hermafroditas tinham alterações em suas
genitálias em relação ao padrão gonadal “correto” e também estariam mais propensos a esses
comportamentos desviantes – fossem corrigidas as inversões congênitas antes que estas se
tornassem mais problemáticas.
23

As ligações médicas do hermafroditismo com a homossexualidade é um terreno


prolífico no século XIX. Nessas percepções, a formulação de que as “inversões sexuais
psíquicas” são formas extremas de um hermafroditismo biológico baseará toda uma ciência
sexual do século XX (Leite Jr, 2008: 56). Neste contexto, Richard von Krafft-Ebing foi um
psiquiatra germânico importantíssimo para a construção de um saber científico sobre as
“perversidades sexuais”, em seus níveis corporais e psíquicos. Os limites patológicos das
inclinações e desejos sexuais pressupunham instintos essenciais hierarquizados, que, por sua
vez, poderiam aparecer de forma invertida em homens e mulheres, os chamados hermafroditas
psíquicos. Com tal vinculação da intersexualidade com a homossexualidade, nasce uma ciência
psiquiátrica que pensa, dentre outros temas, como ordenar os sexos/gêneros (aos poucos cada
vez mais divididos) e os desejos sexuais. Mais além, essa ciência começará a estudar, regular e
tratar o que se entende hoje como as experiências transexuais.

Nesta direção, o hermafroditismo converte-se em um termo que podia ser usado tanto
para descrever uma condição física, com ou sem homossexualidade, mas também uma condição
psicológica que envolvia o desejo por pessoas do mesmo sexo (Reis, ibid.: 66). A lógica de
apagamento, impossibilitando a existência dos casos de hermafroditismo verdadeiro,
transpunha-se para essa classificação e regulação das práticas sexuais entendidas como
desviantes. A ambiguidade, seja corporal ou psíquica, precisava ser combatida. Desse modo, as
cirurgias de “des-sexualização” ou castração dos corpos ambíguos, para evitar performances
desviantes, ganham mais importância. Adequando as genitálias do pseudo hermafrodita para
os padrões vigentes, as operações eram consideradas um sucesso quando esses pacientes
mostravam-se aptos ao sexo heterossexual e, possivelmente, ao papel social do casamento e da
constituição familiar (Ibid.: 71). As cirurgias eram, nos casos de pacientes consideradas
mulheres (com tecido ovariano), de remoção de algum excesso clitoriano12 ou de
aprofundamento da abertura vaginal, e para os casos de pacientes considerados homens (com
tecido testicular), corrigiam-se formas atípicas das genitálias como as hipospádias13 para que a

12
Anna Fausto-Sterling ilustra esse excesso clitoriano, considerado como inaceitável para os padrões médicos de
genitália feminina, na figura 3.4 do terceiro capítulo de seu livro Sexing the Body (2000). Medidas acima de um
centímetro, para uma criança feminina, ao nascer, já seriam passíveis de correção cirúrgica.
13
Hipospádia é uma condição congênita em que a saída da uretra não se encontra na ponta do pênis. Mas,
ocasionalmente, em sua base ou, por vezes, na própria bolsa escrotal. Em alguns casos, essa alteração leva a uma
ereção do pênis com curvatura em direção à bolsa escrotal, em outros casos mais graves, há má formação do pênis,
apresentando uma forma parecida com uma lábia.
24

uretra ficasse na ponta do pênis – permitindo tanto a função sexual quanto, por exemplo, o ato
tipicamente “masculino” de urinar em pé14.

Após a Primeira Guerra Mundial, com a ruptura das estritas definições da Era das
Gônadas, novas tecnologias médicas e avanços científicos continuaram modificando as
categorizações do verdadeiro hermafroditismo e das localizações do sexo. Tecidos gonadais,
caracteres secundários, comportamentos, níveis hormonais e, por fim, as determinações
cromossômicas, foram fatores que fizeram possíveis a reavaliação das fronteiras do sexo e suas
regulações. Como já apontado, a única consistência através dessas evoluções técnico-científicas
foi o comprometimento médico com a manutenção das práticas heterossexuais a fim de garantir
a união de dois sexos opostos “perfeitamente” masculinos e femininos (Reis, ibid.: 85).

Gradativamente, durante a primeira metade do século XX, o conceito de um


“verdadeiro sexo” encontrável em algum órgão do corpo ou função fisiológica
vai sendo substituído pela ideia de um “sexo prevalecente” que, assim, torna-se
então o “verdadeiro”. A regra então para descobrir este sexo em alguém já
adulto ou pelo menos não mais bebê passa a ser a composição do “todo” de uma
pessoa e o que mais a equilibra para o lado feminino ou masculino, envolvendo
gônadas, caracteres e funções sexuais e, cada vez mais, a influência psíquica.
(Leite Jr, 2008: 80)
Neste sentido, criar uma coerência entre o corpo anatômico, o sexo psicológico e a
apresentação generificada deste sexo, fortaleceu-se como uma justificativa mais potente para a
cirurgia de redesignação sexual do que a argumentação anterior de congruência necessária entre
as gônadas e as genitálias. Como Reis aponta sobre o período, as pessoas estavam
corriqueiramente (a não ser as informadas) ignorantes de seus cromossomos e status hormonais.
Logo, o que se tornou mais relevante para otimizar a integração da personalidade individual era
manter uma congruência entre genitália externa e sexo de criação, e consequentemente o senso
de bem estar psicossocial do paciente em pertencer ao sexo masculino ou feminino (Reis, ibid.:
116).

A ênfase na psicologia em detrimento às gônadas marca a metade do século XX.


Conjuntamente, com a importância dos cromossomos e hormônios sexuais, a morfologia genital
aparece como um critério fundamental no tratamento de pessoas com ambiguidade sexuais.

14
É importante notar que nas literaturas médicas da primeira metade do século XX, justifica-se muitas das
intervenções cirúrgicas a pedido dos próprios pacientes, que queriam ser normalizados para assumirem as funções
“corretas” e “coerentes” de seus sexos sociais, por exemplo, conseguir manter uma relação sexual heterossexual
com penetração. (Reis, ibid.: 87). Será discutido nos próximos capítulos como essas necessidades de normalização
são fundamentais para a autodeterminação do próprio gênero e sexualidade dos pacientes, mas que não deixam de
estar inseridas em processos e dinâmicas médicas, científicas, políticas e culturais sobre os limites e papéis de
homens e mulheres.
25

Acreditava-se que a morfologia genital poderia ser transformada para se adequar ao gênero
socializado. O sexo social designado deveria ser, portanto, o parâmetro para a genitália externa,
e quando necessário, operá-la para conformar mais “corretamente” ao modelo sexual escolhido.
Em paralelo, se interviria também em nível hormonal para afinar essas coerências.

Dessa maneira, a ideia de “criação” aliada às intervenções cirúrgicas e hormonais


tornam-se o modelo preferível para guiar a determinação sexual em casos de ambiguidade
sexuais – que, aos poucos, seriam identificados como “estados intersexuais”, assentando o fim
das taxonomias dos hermafroditismos. Retratando esse modelo a partir de um caso clínico do
começo da década de 1940, Reis cita um trecho do artigo científico que resultou desse
atendimento, em que:

Era óbvio para eles que outros fatores [psicológicos] desempenhavam um papel
mais significativo do que a anatomia. “O que esses outros fatores são atualmente
não estão claros,” eles divulgam em uma admissão incomum de incerteza. Eles
tinham problemas em entender porquê ou como uma pessoa com todas as
indicações de masculinidades [isto é, possuir tecido testicular funcional]
poderia modelar mente e emoções femininas, mas seus pacientes provavam
claramente as possibilidades. “Este estudo vai indicar,” eles concluem, “que em
termos gerais o ambiente e fatores situacionais (criação como menina,
identificação com a mãe, relacionamento com o pai, etc.) dessa paciente
desempenham um papel predominante em seu desenvolvimento emocional e
psicossexual.” (Finesinger, Meigs, Sulkowitch, 1942 apud Reis, 2009, inserção
minha)15
Como se nota, a conceituação de uma noção de identidade de gênero começa a se
delinear neste período. Seguindo inspiração nas teorias psiquiátricas do começo do século XX,
acreditava-se que as dinâmicas sociais, o ambiente, além das incorporações inconscientes, eram
fatores relevantes para designação sexual. Propunham moldar o sexo morfológico de alguém a
partir da identificação psicológica e social com um determinado gênero possível, masculino ou
feminino. Essa determinação acontecia a partir de testes psicológicos específicos, como
demonstrado no trecho anterior, em que a identidade de gênero era assumida segundo noções
de papéis sociais generificados hegemonicamente – a identificação com a mãe, a relação
submissa com o pai, o desejo heterossexual, dentre outros fatores.

15
No original: “It was obvious to them that other factors played a more significant role than anatomy. “What these
other factors are is at present not clear,” they disclosed in an unusual admission of uncertainty. They had trouble
understanding why or how a person with every physical indication of maleness could model the mind and emotions
of a woman, but their patient clearly proved the possibility. “This study would indicate,” they concluded, “that
broadly speaking the environmental and situational factors (reared as a girl, identification with mother, relationship
to father, etc.) in this patient played the predominating role in her psychosexual and emotional development”.
26

Na segunda metade do século XX, argumentando a favor de uma preocupação em


atenuar o sofrimento que essas pessoas passavam ao terem que redesignarem seus corpos e
gêneros durante a fase adulta e também em assegurar a coerência entre corpo, sexo e gênero o
mais rápido possível, a precocidade da intervenção foi acionada como a melhor saída médica
para os casos de ambiguidade sexual. O psicólogo e pediatra John Money publicou, durante a
década de 1950, um artigo afirmando que era melhor intervir no intersexual antes que o padrão
de comportamento sexual fosse cristalizado. Acreditava que a identidade de gênero de alguém
era neutra e maleável até os dezoito meses de vida (Leite Jr, ibid.: 143).

Neste registro, a situação se inverte. Não mais a morfologia sexual é transformada para
se adequar a um sexo social consolidado: com a tese de Money, a genitália deveria ser ajustada
o quanto antes para garantir o desenvolvimento “adequado” e “saudável” do gênero futuro.
Assim, uma vez que houvesse um caso de ambiguidade genital, impossibilitando a identificação
imediata do sexo, esse bebê seria moldado cirurgicamente para ter uma genitália com a
aparência mais “normal” possível – usualmente, genitálias femininas – e então comprometer
aos pais a criação e o cuidado necessários para assegurar essa designação.

Mesmo que médicos tenham discordado por séculos sobre quais fatores eram
os mais importantes na determinação sexual, praticamente todos concordavam
que alguns precisavam ser considerados. As gônadas, por muito tempo o
modelo de ouro, enfraqueceram em sua potência, mas outros critérios,
particularmente os hormônios e os cromossomos, e, para pacientes mais velhos,
a psicologia, eram avaliações necessárias. Money não abandonou
completamente esses outros critérios, mas em suas publicações ele enfatizava
cada vez mais a habilidade de criar genitálias mais fidedignas aos meninos e
meninas, as quais garantiriam uma inabalável e contínua criação em seus
gêneros particulares a fim de, consequentemente, gerar pacientes mais
saudáveis psicologicamente. (Reis, ibid.: 137)16
Essa percepção de Money, e de Joan Hampson, psiquiatra e colega de Money no hospital
Johns Hopkins, foi baseada na pesquisa dos dois com intersexuais. Diziam que os pacientes
adultos com ambiguidade sexual atendidos e entrevistados se sentiam bem com os gêneros com
que foram criados (Ibid.: 138). Desse modo, entendiam que intervir cirurgicamente na infância

16
No original: “Though physicians had disagreed for over a century about which factors were the most important
in determining sex, nearly everyone agreed that several needed to be considered. The gonads, long considered the
gold standard, had waned in significance, but other criteria, particularly hormones and chromosomes, and, for
older patients, psychology, all needed assessment. Money did not completely abandon those other criteria, but in
each publication he emphasized that the ability to craft genitals that most closely approximated those appropriate
for boys or girls would best ensure steadfast rearing in that particular gender and, hence, psychologically healthier
patients”.
27

ajudaria ainda mais na garantia da identificação e do papel de gênero desses sujeitos, pois não
teriam que passar por fases de constrangimento ou insegurança com seus corpos.

A busca por eliminar ambiguidades, dúvidas e mal entendimentos em relação ao corpo


intersexual, tanto da própria pessoa quanto do grupo social em que esta se insere, guia as
políticas médicas-científicas a partir da metade do século XX. Uma preocupação que sobrevoou
toda a genealogia histórica que acompanhamos, mas que vai se impor como um protocolo
médico a ser seguido nos hospitais com todo bebê nascido de genitália ambígua. Portanto,
mesmo que a justificativa para as intervenções seja a salvaguarda do “bem estar” relacionado à
saúde física e psicossocial do paciente – discurso que, como iremos ver, se mantém nos
gerenciamentos atuais –, a necessidade de preservar uma inteligibilidade de gênero e uma lógica
heteronormativa, nos moldes escritos por Butler (2008), perpassa os guidelines parentais de
cuidado e criação, as “correções” das genitálias ambíguas e as administrações de hormônios
para garantir uma morfologia corporal correspondente ao sexo designado.

***

Até o momento, utilizei o termo hermafroditismo para definir os casos de ambiguidade


sexual tratados ao longo da história. Com suas variações classificatórias, em falso e verdadeiro
hermafrodita, e, posteriormente, em pseudo hermafrodita, foi somente 1917, que o termo
“intersexo” e “intersexualidade” é finalmente usado para se referir as variedades de
ambiguidades sexuais identificadas. Ainda assim, o termo forjado pelo geneticista Richard
Goldschmidt não terá um uso recorrente na literatura médica até a segunda metade do século
XX (Leite Jr, ibid.: 63). A mudança de terminologia acontece porque, assim como as outras
transições analisadas, o discurso médico preocupa-se em consolidar uma taxonomia mais
rigorosa e específica a fim de desconstruir a ideia de uma ambiguidade sexual completa, de um
sujeito contendo os dois sexos em si, como a etimologia do hermafrodita permitia, e substituir
por um termo em que o sujeito está em um dos dois sexos possíveis – somente requerendo
auxílio para a descoberta do sexo “verdadeiro”. Assim, aos poucos, o uso dos termos e da ideia
de um “estado intersexual”, esperando sua designação sexual “correta”, vai se firmando.

Posteriormente, em momentos mais contemporâneos, o termo intersexual passa a ser


usado tanto na prática médica e na produção científica, como também se consolida como uma
28

categoria identitária e de reinvindicação social e política. Neste sentido, intersexual é um termo


para designar variedades de condições congênitas em que a anatomia, em suas múltiplas
camadas – genitais, gonadais, hormonais, cromossômicas e moleculares – não se conformam
em uma definição padrão de masculinidade e feminilidade entendidos como típicos para
homens e mulheres. É, portanto, uma categoria social que reflete variações biológicas e
anatômicas das determinações sexuais hegemônicas.

As modificações terminológicas contemporâneas, como o novo consenso classificatório


feito em 2006, e as disputas políticas entre os movimentos intersexuais, assumindo ou não as
categorias médico-científicas, serão explicadas melhor ao longo do segundo capítulo. Como
último ponto, é crucial expor que a escolha e utilização do termo na dissertação se insere em
afinidade às compreensões e demandas éticas, políticas e culturais feitas pelos movimentos
intersexuais internacionais17. De modo que, achando menos patologizante e mais político o
termo “intersexual” em vez de “hermafrodita” ou “distúrbios do desenvolvimento sexual”, irei
utilizar o primeiro sem aspas para me referir ao longo do texto aos casos e à análise da
intersexualidade enquanto tema acadêmico e aposta política. Quando necessário utilizar as
outras categorias para ilustrar ênfases e posicionamentos distintos, médico-científicos ou outros
em relação aos meus escritos, estarão com aspas ou em itálico para demarcar tal diferença.

Como vimos, a determinação, a identificação e o manejo dos casos de intersexualidade


ao longo dos anos foi modificada continuamente, seja com transições epistemológicas,
evoluções técnicas e científicas, ou novos sistemas classificatórios, o entendimento e a
abordagem do corpo e do sexo/gênero foram uma preocupação condutora por todos os períodos
que percorremos. Do papel social generificado que evidenciava dois tipos anatômicos distintos,
ao comportamento e orientação sexual, à uma determinação gonadal, para outra mais uma vez
generificada, até uma validez cromossômica e molecular que se consolidará nas próximas
décadas. Neste sentido, o gerenciamento da intersexualidade nos diz bastante sobre o sexo como
tecnologia de poder, como veridicção da verdade sobre o corpo sexuado, sobre os limites das

17
Ainda não temos hoje, no Brasil, nenhum grupo social e político autodenominado intersexual (ou em qualquer
outra variante classificatória apresentada na introdução), militando ou fazendo lobby politicamente de forma estrita
para pessoas com ambiguidade sexuais.
29

masculinidades e feminilidades continuamente reavaliadas e reiteradas, sobre corpos


impossíveis e corpos humanizados – as práticas e saberes se atualizam, com silêncios e
incitamentos, que iluminam narrativas normais e dissidentes, e também nossas próprias
histórias. Continuemos nos rastros.
30

Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação
não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida
possíveis. Se essas normas forem inferiores — quanto à estabilidade, à
fecundidade e à variabilidade da vida — às normas específicas anteriores,
serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes —
no mesmo meio — ou superiores — em outro meio —, serão chamadas
normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a
ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente
repelida pela vida. (...) Se é verdade que o corpo humano é, em certo sentido,
produto da atividade social, não é absurdo supor que a constância de certos
traços, revelados por uma média, dependa da fidelidade consciente ou
inconsciente a certas normas da vida. Por conseguinte, na espécie humana, a
frequência estatística não traduz apenas uma normatividade vital, mas
também uma normatividade social. Um traço humano não seria normal por
ser frequente; mas seria frequente por ser normal, isto é, normativo em um
determinado gênero de vida.18

18
Canguilhem, Georges. O normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009.
31

2
O engolfamento terminológico e a resistência
minoritária

A “ciência” de constituir verdades: do gênero ao dimorfismo sexual

Como acompanhamos no capítulo anterior, o uso histórico do termo hermafroditismo,


com suas variações classificatórias cada vez mais científicas, até a chegada dos “estados
intersexuais”, marca a identificação da intersexualidade na metade final do século XX. Os
corpos “ambíguos” são, nesta época, questionados com protocolos médicos tidos como
necessários e urgentes, de modo que as intervenções clínicas e cirúrgicas são realizadas mais
precocemente. O ápice desta irredutibilidade encontra-se em um caso acompanhado pelo
psiquiatra John Money e sua equipe durante a década de 60 e 70 nos Estados Unidos.

Recapitulando a abordagem de Money e seguidores, nesta interpretação do


gerenciamento sociomédico da intersexualidade (Machado, 2008a), a escolha para designar o
sexo de alguém ocorria principalmente segundo o tamanho, estético mais do que funcional, da
genitália do paciente. A identidade de gênero, dizia, podia ser moldada até os dezoito meses de
vida da criança (Reis, 2009: 135). Portanto, alterações anatômicas podiam ser feitas desde que
o sexo designado fosse reafirmado continuamente através da criação psicossocial.

Assim, em casos de 46, XY, isto é, a retratação cromossômica do sexo masculino, a


designação ocorria a partir do tamanho “aceitável” para funcionalidade – ereção, ejaculação e
posicionamento do meato urinário – se manter com base em uma estética na qual o falus deveria
ter, pelo menos, acima de 2,5 centímetros. Deste modo, quando o tamanho do pênis era abaixo
dessa medida, entendia-se que não haveria possibilidade de uma vivência plena da
masculinidade, a partir das categorias acionadas anteriormente, então se recorria à cirurgia de
correção genital e à designação sexual feminina – com as consequentes reiterações psicossociais
do sexo designado. Em casos de bebês em que o cromossomo sexual indicava 46, XX, isto é, a
retratação cromossômica do sexo feminino, a correção ocorria geralmente para adequar a
32

genitália “ambígua” ao sexo cromossômico. Se a genitália fosse maior do que 1 centímetro,


esta já seria passível de intervenção cirúrgica (Fausto-Sterling, 2000: 59-60; Dreger, 1998:
183). Dessa maneira, os casos de bebês com cromossomos femininos eram, em sua maioria,
designados de acordo com seu cromossomo sexual, indicando a necessidade de manter a
fertilidade gonadal, enquanto que nos casos de bebês com cromossomos masculinos, suas
designações dependiam do tamanho, da estética e da funcionalidade de suas genitálias.

A história que desestabilizou esse protocolo de atendimento foi o de David Reimer, ou,
como ficou conhecido na literatura médica, o “caso John/Joan”. David, nascido e registrado
como Bruce, era um bebê 46, XY e não-intersexual, ou seja, não tinha nem uma diferenciação
no desenvolvimento sexual (cromossômico, gonadal ou anatômico) nem uma genitália
ambígua. Quando tinha seis meses de idade, foi diagnosticado com fimose e encaminhado para
uma circuncisão dois meses depois. Em 1966, o urologista que realizou a cirurgia, com uma
técnica de cauterização, queimou quase que a totalidade do pênis de Bruce. Brian, seu irmão
gêmeo e que também tinha a fimose, não realizou a cirurgia. Com o pênis severamente
danificado, a família, após descobrir sobre John Money e sua teoria da “plasticidade de gênero”,
leva o bebê até a Clínica de Identidade de Gênero, na Universidade Johns Hopkins (Butler,
2004: 59-60).

Em Baltimore, Money e sua equipe decidem redesignar o sexo do bebê e cria-lo como
uma menina, pois acreditava-se que a ausência de um pênis funcional e esteticamente adequado
impossibilitaria a estabilidade psicossocial da criança e o desenvolvimento “normal” da
masculinidade. O caso era visto como paradigmático para atestar sua teoria de socialização do
gênero, na medida em que um dos irmãos, Brian, seria criado no sexo social masculino, de
acordo com seu sexo cromossômico e gonadal, e o outro, Bruce, no sexo social feminino,
ajustando hormonal e cirurgicamente o que fosse necessário para adequar a anatomia ao sexo
designado. Caso a socialização dos gêmeos ocorresse sem resistências e de modo normalizador,
garantindo a fixação do gênero designado para as duas crianças, seria a comprovação ímpar de
sua tese.

Desse modo, o bebê chamado Bruce torna-se Brenda durante a infância. Os


encaminhamentos, além da alteração do registro civil, foi uma cirurgia para a retirada das
gônadas testiculares, uma cirurgia preliminar para a criação de uma vagina, contínuas
intervenções hormonais e a indicação para os pais criarem a criança de modo mais feminino
possível – com muita roupa rosa, penteados, etiquetas, delicadezas e o que mais estivesse
associado à corporificação da feminilidade (Fausto-Sterling, 2000: 67). Como o bebê tinha
33

apenas dezessete meses de vida na época (o limite para sua tese da “plasticidade de gênero” era
até os dezoito meses), Money acreditava fortemente na possibilidade de reajustamento do sexo
social (Reis, ibid.: 149).

O protocolo de Money, Hampson e equipe, contradizia-se entre práticas de ocultamento


e transparência. Por um lado, eles insistiam na conversa e no acolhimento parental, advogando
para a instrução completa dos pais sobre a “condição” da criança (Ibid.: 145). Esse
esclarecimento ajudaria os pais tanto na verbalização das informações que poderiam ser
passadas ou não para a criança como também na reafirmação social do sexo designado da
criança. Por outro lado, tentava-se esconder o máximo possível da criança – com o receio de
que qualquer dúvida em relação ao seu sexo biológico desmantelaria a reiteração do sexo social
designado. Neste sentido, entendiam que evitar e desfazer confusões através de ocultamentos
era a única maneira de assegurar a estabilidade da identidade e do papel de gênero da criança.

As orientações iniciais chegavam ao ponto de instruir os pais para o afastamento de


alguns vínculos de amizade e a mudança de cidade a fim de evitarem suspeitas (Ibid.: 146).
Money e sua equipe eram constantemente bombardeados contra seus protocolos de manejo da
intersexualidade: alguns profissionais de saúde, como o sexologista Milton Diamond e o
psiquiatra Bernard Zuger, já publicavam contra as atuações de Money desde o começo da
década de 1970 (Ibid.: 150). Mesmo com as revisões feitas posteriormente, em relação à
mudança de cidade pós-cirurgia de redesignação sexual e ao ocultamento completo dos pais e
médicos com as crianças intersexuais, muitos médicos e profissionais de saúde continuaram a
utilizar seu protocolo original. Como Reis aponta a seguir, Money tentou reavaliar suas
estratégias sobre o segredo, mas sem sucesso. A aparente eficácia da sua teoria de socialização
do gênero tornou-se consenso tanto na esfera médica quanto no meio midiático, sendo noticiada
como a “mais progressiva, a mais liberal, o ponto de vista mais atualizado até o momento”
(Fausto-Sterling, 2000: 67).

Na verdade, Money e seus colegas estavam cientes acerca da natureza intuitiva


das crianças e sugeriram que elas descobririam as coisas se os pais tentassem
ocultar a condição médica das mesmas. Eles incitaram os médicos a contarem
a verdade para as crianças afetadas. “Logo, longe de sobrecarregá-las com
preocupações desnecessárias, é de fato um alívio, para tirar o encargo/peso de
preocupações e dúvidas secretas, que o doutor fale francamente com as crianças.
A verdade é raramente tão angustiante quanto o mistério do desconhecido” eles
aconselham. Usando metáforas das “genitálias incompletas,” Money e seu time
pensavam ser melhor para uma criança aprender desde cedo sobre suas
limitações corporais, como a esterilidade, do que ser confrontado com tal
34

informação mais tarde na vida, quando o choque e o desapontamento podem ser


maiores. (Reis, ibid.: 147)19
Portanto, foi “mais tarde na vida”, que David aprendeu sua verdadeira história. Durante
a adolescência, após várias fases de resistência, depressão e agressividade20, os pais21 são
aconselhados por outros psiquiatras e médicos a revelarem tudo o que aconteceu em sua vida.
Aos quatorze anos, mais aliviado em saber que não era “anormal” do que abalado com as
constantes mutilações e experimentações feitas em seu corpo, Brenda assume, enfim, o nome
de David e a identidade de gênero masculina (Butler, 2004: 60).

Depois de sucessivas imposições clínicas22, David finalmente escolhe seus


encaminhamentos. Recebeu doses de hormônios masculinos, realizou uma mastectomia para a
retirada dos seios crescidos pela hormonoterapia anterior e, entre os quinze e dezesseis anos,
fez uma faloplastia. Ainda assim, David urinava por uma fístula na base do pênis e tinha pouca
sensibilidade na genitália, devido as muitas cicatrizes no local, porém, parecia conseguir
ejacular através do sexo penetrativo (Diamond, Sigmundson, 1997: 8).

Ao longo do desenvolvimento de David como Brenda, Money publicava bastante


artigos científicos atestando a eficácia de sua teoria da “plasticidade de gênero”, crescendo e
fortalecendo ainda mais a aderência e consenso médico-social em seu protocolo. Com a
publicação, em 1997, de um artigo revisando o diagnóstico e a abordagem do caso, por Milton
Diamond e H. Keith Sigmundson, o psiquiatra supervisor de David durante a adolescência, todo
o protocolo da socialização de gênero moneyziano começa a ser fortemente questionado. No

19
No original: “In fact, Money and his colleagues were cognizant of children’s intuitive nature and suggested that
they would figure things out even if parents tried to conceal the child’s medical condition. They urged doctors to
tell the truth to affected children. “Thus, far from burdening them with unnecessary worries, it is actually a lifting
of the burdens of secret worries and doubts for the doctor to talk frankly with children. Truth is seldom as
distressing as the mystery of the unknown,” they counseled. Using the metaphor of “unfinished genitals,” Money
and his team thought it best for a child to learn about his or her body’s limitations, such as sterility, than to be
confronted with such knowledge later in life when the shock and disappointment might be greater”.
20
Para conhecer mais detalhadamente a história de David Reimer, ver Diamond, Sigmundson (1997) e Colapinto
(2000).
21
A família de David se desestabilizou com o gerenciamento pelo segredo, a mãe também entra em depressão e o
pai torna-se alcoólatra (Guimarães Jr, 2014: 51).
22
Butler (2004), a partir de várias documentações, também narra as situações e imposições que David/Brenda
passou durante a infância e um pedaço da adolescência, cito algumas: consumo de estrogênio, bullying escolar,
repetidas entrevistas médicas, argumentações por parte de Money para que aceitasse construir uma vagina – através
de métodos como fazê-lo olhar para várias fotos de vaginas, de mulheres em trabalho de parto, ser forçado a
conversar com mulheres transexuais sobre os benefícios da reconstrução da genitália, dentre outros casos mais
gráficos (Ibid.: 60).
35

documento, os dois desconstroem o mito da “eficácia” e do “sucesso”, pregado por Money, de


adequação e estabilização da identidade e do papel de gênero de David enquanto Brenda.

Joan sabia que já tinha pensamentos suicidas provocados por esse tipo de
dissonância cognitiva e não queria estresse adicional. Joan lutava tanto com os
meninos como as meninas, que sempre a importunavam sobre sua aparência
masculina e roupas femininas. Ela não tinha amigos; ninguém brincava com ela.
"Todos os dias eles vinham mexer comigo, todos os dias eu era provocado,
todos os dias eu era ameaçado. Então eu disse que era suficiente…" A mãe relata
que Joan era bonita como garota. Mas "quando ele começava a andar ou falar,
isso o entregava, e o estranhamento e as incongruências tornavam-se aparentes."
(…) Mesmo com a ausência de um pênis, Joan tentava regularmente urinar de
pé. Apesar das advertências contra seu comportamento e tal desordem, Joan
persistiu a tal ponto que, na escola, ela foi pega urinando em pé no sanitário
feminino tantas vezes que as outras meninas recusavam-se a aceitar sua
presença no banheiro. A mãe relata que outras garotas ameaçaram “matá-la” se
ela persistisse. Joan também ia ao banheiro dos meninos para urinar. (...) John
relembra pensar, durante a pré escola até o ensino fundamental, que médicos
estavam mais preocupados com a aparência de sua genitália do que si mesmo.
As genitálias de Joan eram inspecionadas a cada visita no Hospital Johns
Hopkins. John relembra: "Deixe-me em paz e eu ficarei bem … Era bizarro.
Minha genitália não me incomoda, e não vejo motivo para que incomode vocês
tanto assim". (Diamond, Sigmundson, ibid.: 4-7)23
Entretanto, a crítica feita não foi somente em relação à precocidade e violência das
intervenções clínicas e cirúrgicas, ou em relação ao estigma, isolamento e vergonha causados
por um protocolo que se reafirmava por meio de ocultamentos e segredos, mas foi feita –
especialmente – para combater a visão de que a identidade de gênero pudesse ser maleável
socialmente. Contrários às teses de Money sobre as possibilidades de adequação de um sexo
social não congruente com o sexo biológico através da criação e do meio ambiente, Diamond e
Sigmundson ecoavam noções sobre um “núcleo de gênero essencial, que é ligado
irreversivelmente a uma anatomia e a uma determinação biológica do ser” (Butler, ibid.: 62). E

23
No original: “Joan knew she already had thoughts of suicide brought on by this sort of cognitive dissonance and
didn't want additional stress. Joan fought both the boys as well as the girls who were always "razzing" her about
her boy looks and her girl clothes. She had no friends; no one would play with her. "Every day I was picked on,
every day I was teased, every day I was threatened. I said enough is enough…" Mother relates that Joan was good
looking as a girl. But it was "When he started moving or talking, that gave him away and the awkwardness and
incongruities became apparent." (…) Despite the absence of a penis, Joan often tried to stand to urinate. Despite
admonitions against the behavior and the untidiness, Joan persisted to such an extent that, at school, she was caught
standing to urinate in the girls' bathroom sufficiently often that the other girls refused to allow her entrance. Mother
recalls the other girls threatening to "kill" her if she persisted. Joan would also go to the boy's lavatory to urinate.
(...) John recalls thinking, from preschool through elementary school, physicians were more concerned with the
appearance of Joan's genitals than was Joan. Her genitals were inspected at each visit to The Johns Hopkins
Hospital. John recalls thinking: "Leave me be and then I'll be fine … It’s bizarre. My genitals are not bothering
me, I don't know why its bothering you guys so much"”.
36

continua sobre a comparação dos dois modelos de inteligibilidade24 de sexo/gênero e do manejo


da intersexualidade ao dizer que,

Logo, em um caso, como a anatomia se apresenta, como aparece para os outros,


e para mim mesma, conforme percebo os outros olhando para mim – esse seria
o centro da identidade social enquanto mulher ou homem. No outro caso, como
a presença genética do “Y” trabalhando de maneiras ocultas para estruturar a
sensibilidade e a auto identificação como uma pessoa sexuada seria o
fundamento. Money então argumenta para a facilidade com que corpos
femininos podem ser cirurgicamente construídos, como se a feminilidade fosse
sempre uma forma de construção cirúrgica, uma eliminação, um cortar fora.
Diamond argumenta para o invisível e a necessidade de persistência da
masculinidade, a qual não precisa “aparecer” a fim de operar como uma
característica fundamental na formação da própria identidade de gênero. (Ibid.:
64)25
Neste registro, enquanto Money e sua equipe aplicavam protocolos de intersexualidade
à Brenda, a fim de normalizarem sua anatomia e seu sexo/gênero para a garantia de uma noção
normativa de estabilidade psíquica e social, em outro momento, Diamond e seguidores
indicavam a verdadeira predisposição e orientação de David (homem 46, XY e heterossexual –
ou, como descrevem, “a gynecophilic sexually active male”), que, desta forma, precisava ser
restituído à sua naturalidade biológica através de protocolos de transexualidade, como
hormonoterapia e faloplastia.

Fazendo um parêntese: as diferenças entre os dispositivos de intersexualidade e de


transexualidade são evidentes, mas suas complementaridades também são numerosas, e podem
se assemelhar principalmente em relação a instrumentalização clínica e cirúrgica usada pelos
médicos e profissionais de saúde. Para exemplificar, a hormonoterapia é administrada tanto em
bebês e crianças intersexuais quanto em adolescentes ou adultos transexuais; o que difere os
primeiros dos últimos seria, à primeira vista, a autodeterminação de suas identidades de gênero
e a autorização via consentimento mais esclarecido a realização desses procedimentos médicos
em seus corpos. No fim, tanto a intersexualidade quanto a transexualidade “levantam questões

24
Entendo o conceito de “inteligibilidade” a partir da obra de Butler e o penso em diálogo com a noção de
“dispositivo” foucaultiano (Foucault, 2011). Neste sentido, a inteligibilidade é produto de ligações entre
instituições, categorias, linguagens, moralidades, dentre outras marcas de cognição e reconhecimento baseados na
matriz heterossexual compulsória que a autora apresenta e problematiza desde Problemas de Gênero (2008).
25
No original: “Thus, in the one case, how anatomy looks, how it appears to others, and to myself, as I see others
looking at me—this is the basis of a social identity as woman or man. In the other case, how the genetic presence
of the “Y” works in tacit ways to structure feeling and self-understanding as a sexed person is the basis. Money
thus argues for the ease with which a female body can be surgically constructed, as if femininity was always little
more or less than a surgical construction, an elimination, a cutting away. Diamond argues for the invisible and
necessary persistence of maleness, one that does not need to “appear” in order to operate as the key feature of
gender identity itself”.
37

sobre que tipo de corpo alguém necessita ter a fim de reclamar pertencimento em algum gênero
ou se a sensação de pertencimento em um gênero é colorida pela experiência de viver em um
corpo que foi tocado pela tecnologia médica”26 (Morland, 2014: 114).

Mariza Corrêa (2008) indica outra proximidade dos dois protocolos em suas tentativas
de normalizarem/naturalizarem aparências e essências, ao comparar a história de David com a
de Agnes, jovem mulher transexual. Ela, ao tomar de forma independente durante a
adolescência hormônio feminino, através de receitas dadas por sua mãe, feminiza seus
caracteres secundários e mascara seu “verdadeiro” sexo biológico masculino. A partir de então,
busca atendimento médico e argumenta que, na verdade, era intersexual. Com essa estratégica
de passing, convence vários médicos a realizaram uma cirurgia de redesignação sexual para
ajustar de forma coerente sua anatomia ao seu self feminino – um desses médicos era o
psiquiatra e psicanalista Robert Stoller, especialista da época em transexualidade e, assim como
seu contemporâneo John Money, também pioneiro no uso científico do conceito de “identidade
de gênero”27.

De modo que esses tratamentos são influenciados não só por concepções históricas
sobre o sexo, o gênero e a sexualidade, mas também por contextos científicos e intelectuais.
Money combinava uma noção de determinismo psicanalítico e de psicologia do ego para
justificar a “prática terapêutica” das cirurgias precoces em crianças. Imaginava que para que a
diferenciação psicossexual ocorresse de forma “adequada” era preciso que as genitálias
estivessem “corretas”, “normalizadas” e visíveis; o tratamento clínico e psicológico posterior
ajudaria a guiar a modelização do gênero de acordo com o sexo designado e a assentar os
conflitos interiores entre a anatomia corporal e a construção do self do indivíduo intersexual
(Morland, 2009a: 195). Iain Morland, intersexual, pesquisador do tema e professor de literatura
inglesa na Universidade de Cardiff, comenta sobre a conjuntura médica e científica do período:

A cirurgia de designação de gênero parecia, portanto, exemplificar uma


natureza humana, precisamente porque ensinou a lição de que humanos não tem
uma natureza em particular. Segundo esses jeitos (e sem dúvida em muitos
outros), o modelo de tratamento tradicional atravessa os múltiplos
entendimentos da construção da pessoa na cultura Ocidental – uma mistura

26
No original: “(…) both intersex and transsexuality raise the question of what kind of body one needs to have in
order to claim membership in a gender and whether a person’s sense of belonging to a gender is colored by the
experience of living in a body that has been touched by medical technology”.
27
Para conhecer melhor a história de Agnes, ver Garfinkel (2006).
38

potente que permite o modelo funcionar como um “polvo ideológico”, que


atraiu por muitos anos tanto os tradicionalistas quanto os progressistas.28 (Ibid.)
Voltemos a David Reimer. Ele se suicida em 2004, após um pedido de divórcio de sua
esposa. Dois anos antes, seu irmão gêmeo, Brian, também tinha se suicidado (Butler, 2004: 75).
Com a exposição de sua história, agravada pelo seu desfecho, assim como Herculine Barbin,
há uma revisão da abordagem e do gerenciamento sociomédico da intersexualidade. Em 1998,
a psicóloga Suzanne Kessler publica Lessons from the Intersexed, uma publicação marcante
para o tema na qual argumenta que a maneira com que médicos e profissionais de saúde
manejavam a intersexualidade era guiada mais pela cultura e seus conflitos valorativos sobre
gênero, sexo e anatomia do que sobre as necessidades exclusivas da criança. Aos poucos se
evidenciam os ruídos do processo contemporâneo de veridicção da intersexualidade. De modo
que essa nova onda crítica aos protocolos de intersexualidade resulta em modificações de
manejo. Em 1999, uma conferência médica realizada em Dallas, Texas, nos Estados Unidos,
reforça duas estratégias que seguirão como metas a serem atingidas até hoje: mais pesquisas a
longo prazo e esclarecimento sobre todas as informações do caso para o paciente assim que for
possível (Diamond, 2004: 9).

A normativa para uma maior produção de avaliações longitudinais existe, mas ainda são
escassas. Enquanto a técnica de “ocultamento” perde valor e referência nas atualizações do
discurso médico contemporâneo, ainda hoje são reiteradas a precocidade das intervenções
cirúrgicas como forma de atenuar o mais breve possível a angústia e o sofrimento das pessoas
intersexuais e seus familiares. Mas os resultados dessa precocidade cirúrgica continuam a não
ser avaliados uniforme e metodologicamente pelo mesmo saber científico que defende tal
intervenção. Conforme dois urologistas pediátricos descrevem em um texto sobre os
tratamentos e resultados da reconstrução cirúrgica em pacientes com hiperplasia adrenal
congênita:

Resultados acerca das cirurgias feminizantes, como a genitoplastia, são únicos


no sentido de que seus efeitos são desconhecidos por cerca de 15 a 20 anos. Isso
faz com que quase todos os estudos sejam desatualizados, fazendo com que
muitos cirurgiões questionem a validade de seus procedimentos. A triste
realidade é que os resultados atuais das vaginoplastias e clitoroplastias reportam
pouca eficácia, com estenose vaginal identificada em 30-90% dos casos e
resultados cosméticos ruins em até 50% dos casos. Além do mais, as revisões

28
No original: “The surgical assignment of gender therefore seemed to exemplify human nature, precisely because
it taught the lesson that humans have no nature in particular. In these ways (and doubtless several others), the
traditional treatment model straddles multiple understandings of selfhood in Western culture — a potent mix
enabling the model to work as an “ideological octopus,” which has appealed for many years to traditionalists and
progressives alike”.
39

que os cirurgiões fazem de seus resultados focam no tamanho do canal vaginal,


em sua aparência cosmética, e sua contingência, enquanto que os pacientes se
preocupam mais com a sensação e satisfação sexual, como o orgasmo, a
lubrificação e um sexo penetrativo sem dor. A aparência cosmética e os
resultados funcionais iniciais quase sempre são favoráveis. São os resultados a
longo prazo que nosso conhecimento precisa traduzir para melhorar os
resultados finais. Assim, a revisão de literatura é frustrante porque o tipo de
procedimento usado, a origem e o nível de virilização, a localização da
confluência vaginal, e a qualidade do controle endocrinológico são, por muitas
vezes, desconhecidos. (Rink, Whittam, 2014: 282-283)29
No Brasil, a conduta padrão para os casos de hiperplasia adrenal congênita também é,
como iremos ver, a genitoplastia feminilizante. Esse manejo é justificado, como já observamos,
pela “crença de clínicos na melhora do estado psicológico da criança e da família”. No entanto,
as pesquisas realizadas por médicos nacionais e internacionais sugerem mais
comprometimentos cirúrgicos do que benefícios, principalmente em relação ao desempenho
sexual. Este se compromete seriamente com a realização da cirurgia clitoriana nesses casos de
intersexualidade, e mais além, tais procedimentos não são explicados em suas totalidades (dos
riscos cirúrgicos aos limites dos resultados estéticos e funcionais) para familiares de crianças e
jovens intersexuais. A problematização desta falta de consentimento esclarecido será detalhada
nas descrições dos casos posteriores. Mas nos termos de médicos e pesquisadores brasileiros,

Bebês e crianças jovens são incapazes de se opor a qualquer procedimento.


Então, a cirurgia genital para eles não é só uma questão médica, mas também
moral. O debate ético com as partes interessadas deve, portanto ser encorajado.
Isso pode corroborar a opinião dos grupos de apoio de intersexo que acreditam
que a decisão de se fazer uma cirurgia precoce é tomada mais para satisfazer
aos pais e clínicos do que às crianças. Porém mais estudos precisam ser feitos,
com uma amostra mais significativa e que comparem indivíduos portadores de
genitália ambígua que foram submetidos à cirurgia corretiva com aqueles sem
cirurgia, a fim de se eliminar o fator de confusão gerado pela patologia de base
(Mello et al., 2010: 38).
Tal debate clínico e ético é despertado com o detalhamento da história de Reimer.
Mobilizam-se e estabelecem-se novos fundamentos para se pensar o dimorfismo sexual, em
níveis cada vez mais genéticos e hormonais, sobretudo com o reconhecimento científico das

29
No original: “Outcome data for feminizing genitoplasty is unique in that results are not known for 15–20 years.
This makes nearly all studies outdated, causing many surgeons to question their validity. The unfortunate reality
is that current reported outcomes of vaginoplasty and clitoroplasty are poor, with vaginal stenosis being noted in
30–98% and poor cosmetic results in up to 50%. Furthermore, the surgeons reviewing their results have focused
on vaginal size, cosmetics, and continence, whereas the patients are more concerned with sexual sensation and
satisfaction, orgasm, lubrication, and pain-free intercourse. Cosmetic and early functional results have nearly
always been favorable. It is the long-term outcomes where our increased knowledge must translate to improved
results. Review of the literature is frustrating because the type of procedure used, the original degree of virilization,
the location of the vaginal confluence, and the quality of endocrinologic control is often unknown”.
40

influências pré-natais no subsequente comportamento sexual e generificado dos indivíduos.


Neste sentido, o sexo de criação passará a ser decidido, na maior parte das vezes, segundo o
sexo cromossômico e suas consequentes representações/variações hormonais. Considera-se não
só os efeitos estéticos e anatômicos das reconstruções cirúrgicas, mas também a centralidade
dos manejos clínicos para preservar ou estimular certas funcionalidades fisiológicas,
hormonais, sexuais e reprodutivas. Em meio às muitas controvérsias que se acumulam, reuniões
e conferências médicas continuarão a ser feitas com o objetivo de compartilhar novos materiais
clínicos sobre os tratamentos e resultados do gerenciamento médico da intersexualidade.

Nova revisão classificatória? Os consensos sobre as desordens, os distúrbios e as


anomalias30

A partir da década de 1990, a intersexualidade passa a ser entendida por outros registros.
A preponderância médico-científica na identificação dos casos de intersexualidade ainda se
mantém, porém, outros discursos e práticas, como narrativas e autobiografias de intersexuais
expandem o domínio político de como esses sujeitos serão reconhecidos e tratados. O grau de
atenção que o caso de David Reimer trouxe para o protocolo de intersexualidade foi imenso,
com ele também se evidenciou o impacto deletério e violento, principalmente em níveis
psicossociais, da insistência em classificações e representações patologizantes de diferenças e
ambiguidades – variações não inteligíveis do que se esperam de corpos, sexos, gêneros e
sexualidades. Irei abordar na próxima seção as consequências e controvérsias que tais
classificações exercem em movimentos sociais e políticos intersexuais. Por ora, vou me
aprofundar nas duas últimas décadas, entre 2000 e 2010, ambas marcadas pela consolidação de
novos manuais diagnósticos e de gerenciamento da intersexualidade, cada vez mais específicos,
codificados e “neutros”.

Nesta direção, afinado com os debates e as disposições internacionais sobre o tema, o


Conselho Federal de Medicina, na resolução de nº 1.664, de 2003, indica a seriedade de tratar
da intersexualidade, ou melhor, dos pacientes portadores de “anomalias da diferenciação

30
Algumas ideias desenvolvidas e discutidas aqui foram primeiramente elaboradas na versão “Agenesia Humana:
alguns percursos médico-científicos em casos de intersexualidade” (2014).
41

sexual”31, por ser uma “urgência biológica e social”. Tanto biológica, já que, no entendimento
médico, “muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco
de vida”, como também social, “porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do
atraso do prognóstico, também do paciente, gera graves transtornos”. O “transtorno”, como já
vimos repetidas vezes, é duplo, da anomalia e do drama.

A atenuação do sofrimento psicossocial dos intersexuais e seus familiares por estarem


em situação de limiaridade – como, por exemplo, a criança estar sem registro civil atestando
sua existência social – é uma estratégia discursiva repetida inúmeras vezes para validar o
diagnóstico e a continuidade das intervenções clínico-cirúrgicas. De modo que, mesmo com as
revisões pós-David Reimer e a politização dos grupos intersexuais, o protocolo e manejo dos
casos de intersexualidade continuariam sendo vistos como urgentes, pois desestabilizam lógicas
e coerências hegemônicas de como registrar, como viver, como socializar. Nesta tendência,
então, dois endocrinologistas pediátricos referenciados nacionalmente expõem em uma de suas
avaliações sobre o tema que “todo paciente com anomalia da diferenciação sexual constitui uma
emergência, tanto no sentido de risco de vida (em situações de perda de sal, por exemplo, nas
hiperplasias adrenais congênitas) quanto no sentido da integridade psicossocial” (Damiani,
Guerra-Júnior, 2007: 1016).

A busca por validar o manejo dos casos de intersexualidade, bem como garantir a
legitimidade das intervenções clínico-cirúrgicas após as críticas e dúvidas levantadas com a
história de Reimer, ajusta-se na medida em que o discurso médico se mobiliza para sanar essas
indisposições e desaprovações por meio de produções científicas mais intensas, especializadas
e que produzem consenso na área. Assim, em 2005, uma conferência proposta pela Lawson
Wilkins Pediatric Endocrine Society (PES) e pela European Society for Paediatric
Endocrinology (ESPE), reuniu cerca de cinquenta médicos de várias especialidades32 – e, apesar
de pioneira neste sentido, apenas duas participantes intersexuais, as ativistas Cheryl Chase e
Barbara Thomas33 – para discutirem e pensarem sobre os protocolos, manejos e gerenciamentos

31
No artigo primeiro da resolução, especificam que consideram “anomalias de diferenciação sexual as situações
clínicas conhecidas no meio médico como genitália ambígua, ambiguidade genital, intersexo, hermafroditismo
verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal, sexo reverso, entre outras”
(Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.664/2003).
32
A única participante brasileira do Consenso, a endocrinologista Berenice B. de Mendonça, também foi a única
médica latino-americana convidada para a reunião.
33
Cheryl Chase (pseudônimo de Bo Laurent) é uma ativista intersexual norte-americana que fundou, em 1993, o
grupo de suporte Intersex Society of North America. Barbara Thomas é uma ativista intersexual alemã que participa
do grupo de suporte XY-Frauen e Androgen Insensitivity Syndrome Support Group UK (AISSG UK).
42

sociais, médicos e científicos que envolvem casos de intersexualidade. Desta reunião, resultou
a produção do texto Consensus Statement on Management of Intersex Disorders (2006), no
qual chegam a alguns acordos comuns: necessidade de reformulação da nomenclatura vigente;
maior e melhor comunicação entre médicos, pacientes e familiares; e uma abordagem mais
cautelosa em relação a cirurgia – principalmente devido à falta de estudos longitudinais para
atestar os resultados e a eficácia cirúrgica, porém, continuariam indicando a intervenção
precoce em muitos casos.

Logo, os médicos e participantes do Consenso entenderam que devido à pequena


evidência sobre os benefícios e resultados positivos das cirurgias de correção genital em
crianças, não podiam advogar – como alguns médicos e cientistas faziam antigamente – que as
intervenções cirúrgicas “melhoravam o vínculo entre a criança e os pais, diminuíam a aflição
parental com as genitálias atípicas, asseguravam o desenvolvimento da identidade de gênero
em acordo com o gênero designado, ou eliminavam de vez a condição intersexual” (Reis, ibid.:
156). Contudo, apesar do documento deixar de conectar a “eficácia” da designação sexual com
a realização de uma intervenção cirúrgica, afirmando que cirurgias só deverão ser consideradas
em casos de virilização severa (Prader III-V)34, e feitas em conjunto com a reparação do trato
urinário (Lee et al., 2006: e491), alguns pontos em relação aos procedimentos cirúrgicos ainda
são bastante incisivos. Por exemplo, a indicação é de remoção precoce dos testículos em
pacientes com Síndrome de Insensibilidade (Parcial ou Completa) aos Andrógenos35 criadas no
sexo social feminino devido a possibilidade de malignidade do tecido gonadal – enquanto que
reportam, logo em seguida, que o relato mais breve de diagnóstico de malignidade do tecido
testicular foi aos 14 anos, isto é, após a puberdade (Ibid.: e492). Barbara Thomas, ativista
intersexual que participou da reunião que ficou conhecida como “Consenso de Chicago”, reflete
no seu relatório sobre a conferência ao dizer que esta posição é “extremamente decepcionante”

34
A escala Prader é uma classificação de virilização elaborada em 1954 para lidar com os níveis de ambiguidade
genital, sendo elas: Prader I – aumento isolado do clitóris, indicando que a virilização tenha ocorrido após 20
semanas de vida intrauterina (VIU); Prader II – aumento do clitóris associado a um introito vaginal em forma de
funil, podendo visualizar-se aberturas uretral e vaginal distintas, indicando virilização iniciada com 19 semanas de
VIU; Prader III – aumento de clitóris associado a um introito profundo, em forma de funil, com a uretra esvaziando-
se na vagina, como um pseudo seio urogenital, há vários graus de fusão lábio escrotal indicando uma virilização
ocorrida com 14-15 semanas de VIU; Prader IV – clitóris fálico com abertura urogenital em forma de fenda na
base do falo, indicando virilização ocorrida com 12-13 semanas de VIU; Prader V – fusão lábio escrotal completa
e uretra peniana, indicando virilização ocorrida com 11 semanas de VIU (Damiani et al., 2001: 43).
35
A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA – e AIS, em inglês) é uma condição ligada ao cromossomo
X que afeta indivíduos com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou parcial do processo de virilização
intrauterina devido à alteração funcional do receptor de andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et
al., 2005: 88).
43

(2006a: 4, 2006b: 3). Nesses casos, a remoção quase que automática dos testículos é indicada
para que não seja assumido um risco maior, com possibilidade futura de mutação e formação
cancerígena do tecido, onde a ausência gonadal seria substituída por mais intervenções clínicas,
como a terapia de reposição hormonal. Como se nota, o consentimento e a autodeterminação
dos sujeitos intersexuais, crianças ou adolescentes, com seus próprios corpos, não foi uma
variável importante para se repensar ou ao menos atrasar as indicações para essas
“esterilizações”.

Por outro lado, no tópico em que discutem os resultados cirúrgicos, mesmo citando
alguns artigos científicos que demonstram resultados satisfatórios com as cirurgias precoces em
crianças intersexuais, prezam pelo tom crítico ao demonstrarem os riscos e alguns dos efeitos
deletérios nas cirurgias, como a clitoroplastia – que pode resultar em diminuição da
sensibilidade sexual e perda de tecido clitoriano – ou a vaginoplastia – que carrega o perigo de
formar cicatrizes e, assim, de repetição dos procedimentos até que a função sexual seja
alcançada. Por fim, indicam que “não há triagem de controle clínico para atestar a eficácia das
cirurgias precoces (até os 12 meses de idade) versus as cirurgias posteriores (feitas na
adolescência e em adultos)” ou até mesmo da “eficácia dos diferentes tipos de técnicas” para a
realização dos procedimentos cirúrgicos (Lee et al., ibid.: e496).

De toda maneira, o objetivo principal dessa produção foi, além de atualizar os manuais
de diagnósticos e manuseios dos casos de intersexualidade, o de eliminar os “termos que
pudessem causar dúvidas e/ou dar a conotação de o indivíduo ser ou estar sendo criado em um
sexo incompatível com o seu diagnóstico” (Damiani, Guerra-Júnior, 2007: 1014). Em outras
palavras, o Consenso teve a função de determinar novas (e mais neutras) categorias
classificatórias com o intuito de: 1) diminuir o caráter patologizante do termo “hermafrodita”,
que vimos genealogicamente no primeiro capítulo, 2) também de evitar a confusão e adesão
política do termo “intersexual” (termo que muitos pais de crianças intersexuais evitam por
passar uma impressão de um “terceiro sexo”) e, 3) principalmente, de afinar a terminologia
diagnóstica para melhorar o cuidado médico de “homens” e “mulheres” designados, ao mesmo
tempo em que afasta as possibilidades de fissuras trazidas pela materialidade ambígua dos
corpos a priori intersexuais. Como o próprio texto do Consenso revela,

Termos como “intersexual”, “pseudo hermafroditismo”, “hermafroditismo”,


“sexo reverso”, e classificações diagnósticas baseadas no gênero são
particularmente controversas. Esses termos são percebidos como
potencialmente pejorativos pelos pacientes e podem ser confusos para os
médicos e os pais também. Nós propomos o termo “distúrbios do
desenvolvimento sexual” (DDS), conforme definido pelas condições congênitas
44

em que os cromossomos, as gônadas, ou o sexo anatômico se desenvolve de


forma atípica. (…) Um léxico moderno é necessário para integrar o progresso
molecular e genético dos aspectos do desenvolvimento sexual. Porque os
resultados médicos referentes aos procedimentos dos indivíduos com DDS são
limitados é essencial usar precisão no momento de aplicar definições e
classificações diagnósticas.36 (Lee et al.: e488, grifo meu)
Destarte, para atingir esse efeito de “naturalidade” e “neutralidade” científica na nova
classificação da intersexualidade, produz-se um documento definindo uma nomenclatura
“calcada em termos cada vez mais ‘técnicos’ e com códigos muito complexos e específicos”
(Machado, 2008b: 112). A indicação para descrever com maior precisão, com mais detalhes e
em termos da etiologia genética dos tipos de “Distúrbios do Desenvolvimento Sexual”37 (DDS)
desloca para um novo lugar a “verdade” sobre a localização do sexo (Ibid.).

Para exemplificar, o diagnóstico médico que antes era feito, dentro dos antigos “estados
intersexuais”, a partir da classificação de pseudo hermafroditismo masculino, agora torna-se
um “DDS 46, XY”38. Ou, caso seja possível, preza-se na utilização do termo descritivo do
“distúrbio específico”, como a Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos. De modo que a
crescente centralidade da genética e da biologia molecular na produção de conhecimento sobre
o tema é notável. A genética detém atualmente o grau de maior legitimidade para a explicação
sobre a diferenciação, a determinação e o desenvolvimento sexual. Como vemos na introdução
de um livro chamado Genetic Steroid Disorders39 (2014), a presença da linguagem biogenética

36
No original: “Terms such as “intersex,” “pseudohermaphroditism,” “hermaphroditism,” “sex reversal,” and
gender-based diagnostic labels are particularly controversial. These terms are perceived as potentially pejorative
by patients and can be confusing to practitioners and parents alike. We propose the term “disorders of sex
development” (DSD), as defined by congenital conditions in which development of chromosomal, gonadal, or
anatomic sex is atypical. (…) A modern lexicon is needed to integrate progress in molecular genetic aspects of sex
development. Because outcome data in individuals with DSD are limited, it is essential to use precision when
applying definitions and diagnostic labels”.
37
Tradução de “Disorders of Sex Development” (DSD), a nova classificação dos “estados intersexuais”, de acordo
com o Consenso de Chicago. Particularmente, preferi traduzir o termo “disorders” para “distúrbios” primeiro por
ser uma tradução que evidencia bastante o caráter patológico do termo, mesmo que a tradução mais próxima da
inscrição inglesa seja “desordens” (e apesar de muitos artigos médicos nacionais traduzirem como “anomalias”),
e também porque meus interlocutores de campo chamam os casos de intersexualidade que atendem de “DDS”,
portanto, “Distúrbios/Desordens do Desenvolvimento Sexual”, e não “ADS” ou “Anomalias do Desenvolvimento
Sexual”.
38
As outras mudanças foram: pseudo hermafroditismo feminino para “DDS 46, XX”, hermafroditismo verdadeiro
para “DDS ovotesticular”, homem XX para “DDS testicular 46, XX”, sexo reverso XY para “disgenesia gonadal
completa 46, XY” e síndrome de Turner/Klinefelter para “DDS ligado ao cromossomo sexual”.
39
Este livro foi organizado e editado, em conjunto com médicos de outras especialidades, pela endocrinologista
Dra. Maria New, tida como referência nos estudos dos “distúrbios do desenvolvimento sexual”, especialmente nos
casos de hiperplasia adrenal congênita. Dentre os médicos e pesquisadores que contribuíram para a organização
do livro, encontram-se onze brasileiros.
45

é indispensável para se pensar hoje o que entendem como os “distúrbios do desenvolvimento


sexual”:

A história dos distúrbios esteróides é muito antiga. A primeira publicação


reportando um cadáver com genitália ambígua, cujo sexo tinha sido trocado de
mulher para homem, foi-me descrita por um dos meus mentores, Alfred
Bongiovanni. O cadáver era de um homem que se descobriu, durante a autópsia,
ter ovários, útero, trompas de Falópio, e as adrenais extremamente inchadas.
Esses achados foram considerados pelo anatomista, de Crecchio, uma
descoberta maravilhosa e misteriosa. A publicação feita por de Crecchio é
considerada por muitos o primeiro caso reportado de uma mulher com
hiperplasia adrenal congênita criada como homem40. (…) Estudos iniciais dos
distúrbios esteróides investigaram o metabolismo esteróide na urina, e mais
tarde usaram os níveis hormonais do soro sanguíneo para identificar os
distúrbios. Depois disso, os distúrbios esteróides se beneficiaram sobremaneira
com o advento da biologia molecular. Realmente, este livro serve para
demonstrar que cada distúrbio esteróide causando uma anormalidade tanto
clínica quanto bioquímica nos pacientes agora tem uma base genética.41 (New
et al., 2014: 1, grifo meu)
A antropóloga Paula Sandrine Machado, em um texto na qual analisa a nomenclatura
pós-Consenso de Chicago e suas implicações regulatórias, diz que a “etiologia genética
constitui-se, assim, como uma versão naturalizada do sexo, que balizaria a diferenciação entre
homens e mulheres em um nível profundo, posição outrora ocupada principalmente pelas
gônadas” (2008b: 113). Nesta mesma publicação, introduz o prolífico conceito de “sexo-
código” para demonstrar como os novos conhecimentos da biogenética geram deslocamentos
nas formas de pensar e lidar com o corpo e o sexo/gênero.

As novas terminologias emergem, portanto, entrelaçando posições cada vez mais


técnicas e descritivas com demandas, por sua vez, cada vez mais ético-políticas. As
classificações dos “distúrbios/desordens/anomalias” são atravessadas por códigos, seja dos
cromossomos sexuais ou dos genes em mutação42. Contudo, o aprofundamento das

40
Publicação datada do ano de 1865.
41
No original: “The history of steroid disorders is very old. The first published report of a cadaver with ambiguous
genitalia whose sex was changed from female to male was given to me by one of my mentors, Alfred Bongiovanni.
The cadaver was a male who was found at autopsy to have ovaries, uterus, and Fallopian tubes, and the adrenals
were extremely large. These findings were considered by the dissector, de Crecchio, to be wondrous and
mysterious. This publication by de Crecchio is considered by many to be the first report of a female with congenital
adrenal hyperplasia raised as a male. (…) Early studies of steroid disorders investigated steroid metabolites in the
urine, and later used serum hormone levels to identify the disorder. Thereafter, steroid disorders benefited greatly
from the advent of molecular biology. Indeed, this book demonstrates that each steroid disorder causing both
clinical and biochemical abnormalities in patients now has a genetic basis”.
42
Com os avanços dos estudos da biologia molecular, começamos a conhecer alguns dos genes que estão
envolvidos no desenvolvimento sexual e, consequentemente, nos casos de “DDS”. É o caso do “DDS testicular
46, XX”, nova terminologia do que era conhecido como homem XX, em que há uma translocação do gene SRY (e
46

classificações moleculares se contrasta com um gerenciamento sociomédico ainda baseado na


coerência do fenótipo. A localização do sexo pode estar na etiologia genética, porém, sua
reiteração ocorre na materialidade do sexo/gênero designado em cada corpo intersexual.

Desta forma, a fabricação do consenso dos protocolos em casos de intersexualidade não


se faz apenas em níveis da produção de conhecimento médico-científico, mas também na
prática e no manejo diário desses casos. Mesmo com a importância da genética na localização
do sexo pela definição do cariótipo ou da mutação genética do tipo de “DDS”, a endocrinologia
é a especialidade em evidência, pois administra diferentes áreas e profissionais de saúde no
atendimento de pacientes intersexuais. No próximo capítulo, descreverei mais sobre essa
organização hospitalar e esse gerenciamento sociomédico, que atravessam dinâmicas e
controvérsias do novo consenso científico sobre intersexualidade.

Controvérsias: sobre os protocolos, as classificações e a política

Conforme apontei anteriormente, no final do século XX inicia-se um processo de


revisão dos discursos “autorizados”, o saber e a prática médico-científica, para outros agentes
capazes de verbalizar, representar e mobilizar politicamente demandas dos sujeitos
intersexuais. Essa multiplicação de movimentos sociais e grupos de suporte durante a década
de 1990, principalmente depois dos questionamentos levantados pela história de David Reimer,
pode ser entendida dentro de um recorte maior, na qual uma vasta literatura acadêmica nomeia
criticamente como um momento de “pós modernidade”43.

Podemos descrever o conceito como uma tentativa crítica de descolonizar discursos e


práticas para outras formas de representações e narrativas, marcado por um momento histórico
que se constituiu em repensar e superar alguns preceitos e vícios modernos. Todavia, tais

possivelmente outros genes), usualmente um gene presente no cromossomo Y, mas que aqui surge no cromossomo
sexual X – de modo que se desencadeia na vida intrauterina uma diferenciação sexual masculina, mesmo com o
cariótipo 46, XX. Há casos mais raros desse tipo de “DDS”, em que o indivíduo de fenótipo masculino e cariótipo
46, XX não apresenta translocação do gene SRY, indicando que haveriam muitos outros genes, autossômicos e/ou
ligados ao X, responsáveis pela determinação gonadal (Damiani et al., 2005: 80).
43
Especificamente aqui, para entender o termo dentro do recorte antropológico que pensa racionalidade, regimes
de verdade e produção de discursos, artificialidade, biopoder, escrita etnográfica, dentre outros temas dialógicos
da conjuntura reflexiva apelidada de “pós moderna”, ver Rabinow (2002).
47

deslocamentos se davam ainda dentro de tradições de pensamento e de conhecimento


iluministas e românticas, constituintes da dita “modernidade” na cultura ocidental (Duarte,
2012). Como Facchini e Ferreira descrevem da efervescência do período,

Esse período está relacionado a um conjunto de eventos históricos e


movimentos sociais nos quais despontaram sensibilidades gestadas a partir de
novas formas de entender o poder e a política. A luta contra o colonialismo e o
nascimento, em várias partes do mundo, do movimento pelos direitos civis, dos
movimentos ecológicos e pacifistas e, em especial, a emergência da
contracultura e das reivindicações políticas e epistemológicas dos movimentos
feministas e homossexuais possibilitaram o engendramento de novas práticas,
ferramentas conceituais, sistemas de conhecimento, saberes científicos e
linguagens jurídicas que modificaram as maneiras de viver, conceber e entender
as relações antes restritas ao mundo privado e da intimidade. (Facchini, Ferreira,
2013: 165)
Podemos citar então, como exemplo, as críticas feitas pelos movimentos feministas
contra a noção de um essencialismo metafísico do ser – e que, no limite, levou a um
questionamento sobre a amplitude política da categoria “mulheres”, se invisibilizava ou não os
contextos e as diferenças de cada vivência feminina. De modo que essa experiência crítica
levou, durante as décadas de 1970 e 1980, a proliferação de outras mobilizações políticas, com
pautas raciais e lgbt’s.

De maneira similar, outra crítica de cunho pós moderno que se fortificou com as
mobilizações lgbt’s – sobretudo com a conjuntura da epidemia de HIV/aids (Gould, 2001) – foi
o questionamento das patologizações. Seguindo o rastro do pensamento foucaultiano de que a
ideia de normalização dos corpos e das diferenças funda e mantém o biopoder na modernidade,
e também de que as próprias construções hegemônicas sobre o tempo e o espaço são
generificadas e sexualizadas (Halberstam, 2005), a movimentação política contra com as
classificações patologizantes indica uma oportunidade para se repensar as relações de poder e
as práticas de produção de verdade sobre o corpo e sobre as identidades. Não haveria mais uma
única verdade sobre o sexo, como também não haveria mais o privilégio médico sobre o registro
da experiência da intersexualidade.

Neste sentido, os primeiros grupos de suporte intersexuais surgem durante a década de


1980. Pessoas com síndrome de Turner, Klinefelter e AIS começam a se reunir, no decorrer da
década, para formar os primeiros coletivos intersexuais – nos Estados Unidos, Canadá e Reino
48

Unido (Diamond, 2004: 4)44. Posteriormente, em 1993, Cheryl Chase (que participou do
Consenso de Chicago descrito no tópico anterior), funda a Intersex Society of North America
(ISNA)45, buscando acabar o com estigma perpetuado pelas classificações médicas negativas
como também prover suporte para indivíduos com condições congênitas que se encaixem nas
descrições de intersexualidade. Durante esta época, o uso do termo “intersexual” ganhou força
política e legitimidade enquanto identidade para representação do movimento social – mais
além, outros intersexuais aprofundavam a crítica contra a patologização ao vestirem camisetas
com os dizeres “Hermafroditas com Atitude” e irem protestar em congressos médicos contra a
estigmatização e as cirurgias genitais precoces em crianças (Reis, ibid.: 155).

Assim, inicialmente, o ativismo intersexual organiza-se politicamente a fim de contestar


as classificações patologizantes e as cirurgias de “correção” genital comumente feitas pelos
médicos em pacientes que nascessem com genitália atípica para o padrão hegemônico. Aos
poucos, de um registro patológico dos sujeitos, dos corpos e de suas condições, forma-se uma
rede que busca não apenas o suporte entre os intersexuais que vivenciam essas intervenções em
seus corpos, mas também começam a construir uma marca identitária que se opunha ao saber
médico-científico autorizado e supostamente neutro, materializando suas experiências em torno
de outros registros: suas experiências, narrativas e políticas46.

Outros grupos e movimentos sociais intersexuais começam a ganhar relevância, como


a rede global e descentrada Organisation Internationale des Intersexués (OII)47. No site da
organização indicam que a “OII tem afiliados em vinte países, em seis continentes, falando dez
línguas, incluindo mandarim e árabe”48. Com uma postura mais voltada para a atuação dos
direitos humanos, tanto em níveis locais (através de suporte informativo, educativo e médico-
salutar) como em níveis estatais (promovendo e influenciando processos decisórios e políticas

44
Sites dos grupos de suporte: Turner Syndrome Society of the United States – http://www.turnersyndrome.org/;
Klinefelter's Syndrome Association (KSA) – http://www.ksa-uk.net/; Androgen Insensitivity Syndrome Support
Group (AISSG) – http://www.aissg.org/.
45
Site da Intersex Society of North America (ISNA) – http://www.isna.org/.
46
Para uma discussão aprofundada sobre a abordagem jurídica da intersexualidade, ver a dissertação de Anacely
Costa, “Fé cega, faca amolada: reflexões acerca da assistência médico-cirúrgica à intersexualidade na cidade do
Rio de Janeiro” (2014), e a tese de Anibal Guimarães, “Identidade cirúrgica: o melhor interesse da criança intersexo
portadora de genitália ambígua. Uma perspectiva bioética” (2014).
47
Site da Organisation Internationale des Intersexués (OII) – http://oiiinternational.com/.
48
A capilaridade da rede é enorme, com apoio a organizações em áreas como Palestina (http://www.alqaws.org/)
e Uganda (http://sipd.webs.com/). De modo que é surpreendente notar a falta de grupos de suporte e movimentos
sociais intersexuais no Brasil.
49

públicas), a rede incentiva também à autonomia corporal e autodeterminação das pessoas


intersexuais. Dentro deste registro, a filial australiana da OII parece aprofundar essa postura
crítica, comunitária e minoritária49 em relação a abordagem política da rede ao expor em seu
site que,

Reconhecemos os proprietários tradicionais do país por toda a Austrália, sua


diversidade, histórias e conhecimento e suas conexões contínuas com à terra e
à comunidade. Nós respeitamos e homenageamos todos os povos indígenas
australianos e suas culturas, e os anciãos do passado, da geração presente e das
futuras gerações. (OII Australia/About/Acknowledgements)50
Nos termos propriamente deleuzianos, este “devir-minoritário” indicaria uma
orientação, um “jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça
ou de verdade” (Deleuze, Parnet, 1998: 10). Tal processo representaria “não só polos de
resistência, mas potencialidades de processos de transformação, suscetíveis, numa etapa ou
outra, de serem retomados por setores inteiros das massas” (Guattari, Rolnik, 1996: 75). Assim,
uma orientação minoritária, conforme propõe a OII-Australia, percorre uma política em que
outras subjetividades buscam escapar dos poderes e impotências de um estado/uma situação a
fim de tornarem-se independentes na medida em que também são reconhecidos, garantem
direitos e sobrevivem.

Por conseguinte, com a revisão do Consenso de Chicago para uma nova nomenclatura
diagnóstica da intersexualidade, apoiando-se em termos mais descritivos e genéticos, mas ainda
assim mantendo uma base patológica ao categorizar esses sujeitos como pessoas com
“distúrbios do desenvolvimento sexual”, viu-se abrir uma controvérsia entre os grupos de
suporte e movimentos sociais e políticos intersexuais.

Alguns pais de crianças intersexuais já se sentiam desconfortáveis com o termo


“intersexual”, pela categoria passar a impressão de um terceiro gênero ou de alguma coisa entre
o feminino e o masculino. Tanto que o termo nunca ganhou aderência de fato no discurso

49
Uso o termo pensando em Gilles Deleuze, quando ele diz em uma entrevista que ficou conhecida como o
“Abecedário”, que a distinção entre maiorias e minorias não se trata de uma questão quantitativa, mas de desafios
de afrontamentos e capturas. Enquanto o primeiro termo indicaria um modelo “vazio”, por exemplo, o do “homem,
adulto, macho e cidadão”, o segundo termo seria “todo mundo” não compostos nesse modelo. Nesta concepção, a
minoria seria a subtração de uma multiplicidade, um devir-minoritário em que esse “minoritário” compreende
percepções “mulher”, “índio”, “criança” etc, singularidades que inventam novas forças ou novas armas contra as
formas instituídas.
50
No original: “We acknowledge the traditional owners of country throughout Australia, their diversity, histories
and knowledge and their continuing connections to land and community. We pay our respects to all Australian
Indigenous peoples and their cultures, and to elders of past, present and future generations”.
50

médico contemporâneo – estacionou nos “estados intersexuais” no começo do século XX e


nunca chegou a ser usado consensualmente como um termo diagnóstico. Com a nova
terminologia, há fissuras na mobilização intersexual, onde uma parte expressiva de acadêmicos,
pais, ativistas intersexuais e pacientes juntam-se ao consenso classificatório, enquanto outra
parte resiste à uma provável assimilação do termo “intersexual” – já politizado e fortificado por
anos de mobilização como uma categoria identitária – ao termo clínico, descritivo, apolítico e
supostamente neutro dos “DDS”.

Neste sentido, após a publicação do texto do Consenso, uma das primeiras organizações
de ativismo intersexual, a Intersex Society of North America (ISNA) publica em conjunto com
pais de crianças intersexuais, alguns médicos e ativistas intersexuais, dois livros que servem
como guidelines para o gerenciamento sociomédico dos “DDS”. Ambas as publicações são
derivadas do Consortium on Disorders of Sex Development, realizado pela ISNA51, também em
2006, em que reafirmam o compromisso estabelecido em Chicago para a utilização da nova
nomenclatura.

Cada documento, o Clinical Guidelines for the Management of Disorders of Sex


Development in Childhood (2006a) e o Handbook for Parents (2006b), tem o propósito de
“assistir os profissionais de saúde no fornecimento do diagnóstico, tratamento, educação e
suporte para crianças nascidas com distúrbios do desenvolvimento sexual (DDS) e para suas
famílias” (ISNA/Accord Alliance, 2006a: 1). O objetivo é retirar o caráter ambíguo,
estigmatizante e não-descritivo do termo “intersexual” para focar especificamente na condição
médica. Importa, nesta perspectiva, assinalar o diagnóstico clínico e centrar a abordagem no
cuidado médico ao paciente (Ibid.: 9). Este não deve ser o nó representativo da classificação,
mas deve ser o foco do atendimento médico e hospitalar. Assim, o paciente possuiria apenas
uma condição congênita em que precisa de cuidados. Ainda que continue sendo entendido como
um distúrbio da orientação “normal” do desenvolvimento sexual, esse ativismo enxerga mais
ganhos (principalmente voltados para as melhorias de atendimento médico) do que perdas (a
manutenção de uma classificação médica patologizante).

51
É interessante notar que a historiadora e filósofa da ciência Alice Dreger, que citei bastante no decorrer do
primeiro capítulo com seu livro Hermaphrodites and the Medical Invention of Sex (1998) co-dirigiu a ISNA por
sete anos (em diversos cargos) e, antes do seu término, organizou, coordenou e editou o DSD Consortium’s e seus
guidelines.
51

Logo após a publicação desses guidelines, a ISNA se dissolve e, em seu lugar, surge
uma nova organização chamada Accord Alliance52, criada em 2008 (Machado, 2014). Nota-se
que não leva mais o termo “intersex” no nome. Em seu site, no FAQ com a pergunta “Qual a
utilidade da terminologia DDS? Quando esta não é útil?”, eles indicam que um dos problemas
das terminologias antigas (como pseudo hermafrodita ou intersexual) é que elas especificam
um tipo de identidade, quando, na verdade, a condição não é um aspecto crítico da identidade
do paciente. E continuam ao dizerem que, em contraste aos termos antigos, a categoria “DDS”
refere-se a condição que a pessoa tem, não ao que a pessoa é – e finalizam: “[o termo novo]
procura colocar a pessoa em primeiro lugar” (Accord Alliance, 2014).

Pesquisadores do tema também já começaram a se posicionar e, em alguns casos, a


assumirem as classificações do Consenso. A filósofa Ellen Feder e a antropóloga Katrina
Karkazis, ambas estadunidenses, publicaram um artigo em conjunto sobre as controvérsias da
nova nomenclatura. Para elas, a nova classificação busca superar a densa história dos
“hermafroditas” e “intersexuais” – cheias de conflitos éticos que marcaram as atuações médicas
dos casos nos últimos séculos. Argumentam, em concordância com o que foi descrito
anteriormente no site da Accord Alliance, que esses termos antigos identificam grupos de
pessoas, e não indivíduos com condições congênitas que tem profundas consequências
médicas53. Segundo as duas, a mudança na nomenclatura possibilitou que as pessoas com
“condições intersexuais” pudessem ser transformadas de pessoas com “distúrbios únicos” (no
original: “disorders like no other”) para pessoas com “distúrbios comuns” (no original:
“disorders like many others”) e, assim, tratadas ética e clinicamente como qualquer outra
condição médica (2008: 35).

Talvez ironicamente, o que faz as condições intersexuais serem únicas, como


nenhuma outra, é porque elas foram tratadas tanto pelos médicos visando
“corrigi-las” quanto pelos ativistas resistindo as mesmas práticas como uma
questão de identidade. Se uma mudança na nomenclatura pode promover o
importante desenvolvimento de atenção para as questões médicas genuínas
associadas com tais condições intersexuais e deslocar das preocupações com a
identidade de gênero, então a intersexualidade pode ser contada entre os muitos
distúrbios em que os termos “normal” e “anormal” são tomados para marcar
diferenças – algumas consequentes, outras nem tanto – do funcionamento dos
corpos humanos. (…) Logo, a introdução dos DDS marca outro momento na
história da medicalização dos corpos que desafiam as normas do chamado

52
Site da Accord Alliance – http://www.accordalliance.org/.
53
Essa distinção é importante, pois esclarece muito sobre as dinâmicas conflituosas dos saberes e práticas
biomédicas “individualizadas” em contraste com as dimensões mais “holistas” das pessoas intersexuais nos
movimentos sociais. Uma válvula de escape desse conflito seria, como já citei na introdução, instigar um cuidado
mais “centrado no paciente” (isto é, mais “totalizante” em relação à experiência da saúde/doença).
52

desenvolvimento natural do sexo. (…) Seria ingênuo pensar que uma mudança
na nomenclatura poderia tirar o estigma de gêneros atípicos. É o último salto –
isto é, um enfoque nos distúrbios específicos em questão – que considera a
promessa imediata de desmedicalizar aspectos da condição que foram
impropriamente patologizados. (…) Nós devemos admitir que enquanto não há
terminologia que possa erradicar o estigma de anatomias atípicas, uma
nomenclatura que situe as condições no modelo “usual” da medicina – como
uma questão de saúde em vez de identidade – pode certamente ajudar a corrigir
os muitos erros feitos no passado. (Ibid.)54
Independente das atuações e dos ganhos políticos das duas pesquisadoras – ambas são
“aliadas” de movimentos sociais intersexuais –, percebo a proposta das duas neste artigo como
bastante paradoxal. Primeiro porque tentam justificar uma terminologia medicalizante (mas que
foi “impropriamente patologizante”), através dos termos cada vez mais descritivos e
codificados dos sexos cromossômicos, das condições clínicas e dos tipos de síndromes, para a
partir das mesmas tentar reavaliar os excessos cometidos em nome do discurso e da prática
biomédica. Enquanto este mesmo discurso não possibilitaria, no fim, a criação de uma
nomenclatura que possa erradicar completamente o estigma das pessoas que nascem com
anatomias fora dos padrões hegemônicos – exatamente porque esses padrões são culturais, e
não classificações criadas no vácuo da linguagem médica-científica.

Segundo porque indicam que alguns “aspectos” da intersexualidade foram


impropriamente patologizados pela biomedicina, não todos. Isto é, a lógica hegemônica
científica da diferenciação, determinação e desenvolvimento sexual continua intocada. Assim,
por último, ao indicarem que o único caminho possível para um sistema classificatório não seria
pela mobilização política identitária (atravessadas e repensadas continuamente pelas noções de
gênero e pelas relações de poder), mas sim pelo mesmo discurso médico (que se reatualiza com
muito menos celeridade) em que tantos excessos foram cometidos – e alguns ainda são –, de
certo modo continuam a legitimar a hierarquia e o privilégio do saber médico em definir padrões

54
No original: “Perhaps ironically, what makes intersex conditions like no other is that they have been treated,
both by physicians aiming to “correct” them and by activists resisting these same practices, as an issue of identity.
If the change in nomenclature can promote the important development of attention to the genuine medical issues
associated with intersex conditions and so displace the concerns with gender identity, then intersex can be counted
among the many disorders for which the terms “normal” and “abnormal” are taken to mark differences— some
consequential, others less so—in the functioning of human bodies (…) Thus, the introduction of DSD marks
another moment in the history of medicalizing bodies that defy the norms of so-called natural sex development.
(…) It would be naive to think that the change in nomenclature can destigmatize gender atypicality. It is the latter
shift—that is, a focus on the specific disorders in question— that holds immediate promise for demedicalizing
aspects of the condition that have been improperly pathologized. (…) We must grant that while there is no
terminology that can eradicate the stigma of atypical anatomies, nomenclature that situates conditions in the
“usual” way of medicine—as matters of health rather than identity—can certainly help to correct many of the gross
wrongs of the past”.
53

de normalidade e de conduta. Para essas pesquisadoras tal justificativa seria aceitável já que,
pelo menos assim, os sujeitos intersexuais teriam assegurado uma atenção e cuidado médico no
modelo usual da Medicina.

Mais além, as autoras parecem estar empenhadas em problematizar a politização da


categoria intersexual como uma parcela específica da experiência da intersexualidade, ou
melhor, das pessoas que vivenciam esses “distúrbios do desenvolvimento sexual”. Conforme
Anacely Costa (2014) analisa sobre um texto posterior de Ellen Feder:

Em outro artigo que discorre mais detalhadamente acerca do seu


posicionamento em favor da nova terminologia, Feder (2009) lembra um ponto
importante. A autora observa que as classificações anteriores – intersex e
hermafrodita – não descrevem condições médicas, mas conformariam um
“tipo” de pessoa. A linha de argumentação dela sugere que os defensores da
antiga classificação parecem aceitar com pouca reflexão a produção histórica
do tipo patológico intersex e hermafrodita. Nesse caso, a autora diz que parece
haver uma aceitação destes tipos como naturais porque se focaria em uma leitura
da medicalização apenas como um instrumento político de repressão. (Ibid.: 30)
Ainda que tal crítica seja válida, pois a categoria “intersexual”, assim como o novo
sistema classificatório, também surgiu dentro das discursividades médicas, a autora não
contempla as possibilidades de transformação conceitual e de autodeterminação dos sujeitos. A
ênfase em um diagnóstico mais objetivo e uma assistência médica mais eficiente não invalida
as demandas de reconhecimento feitas pelos intersexuais. Protocolos de cuidado médico e
hospitalar devem andar juntos com as escolhas e os posicionamentos identitários individuais e
coletivos. No limite, tal posição não questiona a problemática hierarquia médica em relação às
explicações e definições do sexo e da sexualidade.

Entretanto, há alguns contrapontos ao grande consenso atual em que médicos, ativistas,


acadêmicos, pais e intersexuais adultos assumem e apoiam o uso do termo “DDS”. Essa outra
visão encarna, principalmente, as performances e vozes de ativistas intersexuais e aliados, e que
podemos ilustrar com a atuação feita através das redes da OII. Hida Viloria, diretora da OII-
USA, escreveu uma matéria para a revista The Advocate no começo de 201455, no qual ela
comenta sua posição sobre o uso da nova terminologia.

Não era um insulto intencional às pessoas intersexuais: estavam apenas usando


a classificação médica vigente – e provavelmente pegaram de defensores. Sim,
alguns defensores dentro dos Estados Unidos usam o termo DDS,
particularmente aqueles que trabalham com pais de crianças intersexuais. A
razão que me foi justificada é que alguns pais e pessoas intersexuais preferem
falar que têm um distúrbio ou uma condição médica do que a atribuir suas

55
Link da matéria: http://www.advocate.com/commentary/2014/05/14/op-ed-whats-name-intersex-and-identity
54

diferenças como uma “identidade”. (…) E mesmo que alguns digam que DDS
é uma classificação melhor para aqueles que não são andróginos ou LBGT, já
que a intersexualidade é associada com os dois, algumas dessas orgulhosas
pessoas “intersexuais” são na verdade héteros e normativas em relação à
expressão de seus gêneros. Eles perceberam que mesmo que não fossem LBGT,
ainda sofreriam discriminação porque nós desafiamos o sexo e as normas de
gênero. (…) Eu respeito o direito de todos se identificarem como eles
preferirem, mas pessoalmente, falar que sou intersexual soa muito melhor do
que dizer que eu tenho alguma coisa – com uma doença.56
É neste sentido que ativistas intersexuais contrários à classificação dos “DDS”
vocalizam uma parceria, pelo menos em nível retórico e político, com o movimento das pessoas
com deficiência, ao argumentarem que estes nos ensinaram que uma condição atípica não
significa necessariamente um distúrbio – e mais, que a diferença não precisa ser vista como
inerentemente menor e insuficiente. Se a palavra indica uma necessidade de reparação, então a
nova nomenclatura estaria contradizendo a centralidade do ativismo intersexual, que anatomias
atípicas não precisam de adequação através de “correções” cirúrgicas e hormonais (Reis, ibid.:
156). A insistência na palavra “distúrbios/desordens” marca uma orientação supostamente
lógica e natural do desenvolvimento sexual, na qual corpos que não se encaixam nos modelos
binários ainda precisam ser alvos de reconstruções, cuidados médicos e justificativas.

Fundamental esclarecer também a contínua vinculação – vista como negativa, ou ao


menos suspeita, pelo discurso médico e parceiros – da categoria identitária “intersexual” com
os movimentos agora lgbti’s57. Como se todas as pessoas que fossem abrigadas dentro do termo
intersexual estivessem em ameaça suspensa de possuírem algum nível de “disforia” de gênero
ou de homossexualidade. A lógica heteronormativa das designações sexuais não abandonou a
nova terminologia. Por mais que a literatura médica pós-Consenso aponte que uma futura
orientação sexual homoafetiva do indivíduo com “DDS” não indique uma falha ou dúvida na
designação sexual – como registra o texto do guideline clínico da Accord Alliance de 2006:

56
No original: “It wasn’t intentionally insulting intersex people: It was just using our current medical label — and
probably got it directly from advocates. Yes, some advocates in the United States use the term DSD, particularly
those who work with parents of intersex children. The reason I’ve been given is that some parents and intersex
people themselves prefer to say they have a disorder or a medical condition to labeling their difference an
“identity.” (…) And while some say DSD is better for those who aren’t androgynous or LGBT, since intersex is
associated with both, some of these proudly “intersex” folks are indeed straight and gender-normative. They realize
that even if we’re not LGBT, we’re still discriminated against because we challenge sex and gender norms. (…) I
respect everyone’s right to identify as whatever they want to, but personally, saying that intersex is what I am feels
much better than saying it’s something I have — like a disease”.
57
Se, por um lado, não há uma organização estritamente intersexual no Brasil, a incorporação de intersexuais na
cena política nacional é fundamental. Com a crescente visibilidade da experiência transexual, também há uma
maior inclusão do debate e do reconhecimento das demandas e das experiências intersexuais, mesmo que tais
sujeitos ainda sejam, de certa maneira, fragmentados frente à política mainstream gay e lésbica.
55

“Hoje os especialistas tratando os DDS geralmente concordam que a orientação sexual do


paciente não pode ser a medida de sucesso clínico. Ser gay, lésbica ou bissexual é menos
comum, mas, ainda assim, um resultado saudável.” (Accord Alliance, 2006a: 40) – esse
gerenciamento sociomédico acontecerá com alguns ruídos, como descreverei no próximo
capítulo.

Em relação à controvérsia, o próprio Milton Diamond, central em outro conflito, no


embate feito com Money e na revisão do caso Reimer, comenta de forma crítica sobre a nova
nomenclatura.

O consenso sugeriu que o termo “distúrbios do desenvolvimento sexual”


deveria ser o substituto para “intersexual” ou para “condições intersexuais”;
entretanto, outras partes sugeriram que essa terminologia não é menos
estigmatizante que muitos outros termos anteriores, como os “defeitos de
diferenciação do sistema genital” ou “erros sexuais”. O maior grupo de suporte
intersexual no mundo – Organisation Intersex International – considera esse
novo termo negativo, e apoia o uso de expressões não estigmatizantes como
“variações do desenvolvimento sexual”, e provavelmente apoiariam o termo
“diferenças do desenvolvimento sexual”, que agora nós preferimos. Estes
termos reconhecem as variações inerentes às condições intersexuais, mas
também respeitam a noção que indivíduos estão sendo retratados em vez de
simplesmente distúrbios médicos. (Diamond, Beh, 2008: 3)58
Neste registro, não só Diamond, mas também a historiadora Elizabeth Reis, já
comentada e referenciada nesta dissertação, apoia o uso da nova nomenclatura dos “DDS”
desde que trocando a palavra “distúrbios/desordens” por outro termo menos patologizante e
estigmatizante. No caso de Diamond, ele indica a troca para “diferenças”. No caso de Reis, ela
se posiciona a favor do uso de “divergências”. As palavras importam. No mesmo sentido da
referência do sexólogo, ela diz que assumir o uso de “divergências” como categoria diagnóstica
e classificatória é um passo mínimo, mas sensível, para deixar de marcar os intersexuais como
estados físicos destoantes do “normal” que necessitam de reparação (Reis, ibid.: 160).

Logo, se a nova nomenclatura entende que as anatomias atípicas são sintomas de


condições congênitas, e que estas são meras variações dos caminhos possíveis de
desenvolvimento sexual, então não haveria problema na mudança do termo “distúrbios” para

58
No original: “The consortium suggested that the term “disorder of sex development” should be substituted for
“intersex” and for “intersex conditions”; however, other parties have suggested that this terminology is no less
stigmatizing than many other terms that have been offered, such as “defective differentiation of the genital system”
or “sex errors”. The largest intersex support group in the world—Organisation Intersex International—considers
such terms negative, supports the use of nonstigmatizing expressions such as “variety of sex development”, and
would probably support the term “differences of sex development”, which we now prefer. These terms
acknowledge the variations inherent in intersex conditions, but also respect the notion that individuals are being
portrayed rather than just medical disorders”.
56

“divergências” ou “diferenças”. Mas é exatamente pelo risco dessa modificação indicar que o
peso maior do tratamento dos intersexuais é de caráter cultural, isto é, revelando os problemas
de gênero – e as necessidades hegemônicas de “correção” e normalização dos corpos – e não
exclusivamente no atendimento e cuidado médico-hospitalar como o ponto nevrálgico do
gerenciamento, que tal mudança não foi e não é realizada. A integridade corporal atravessa a
linguagem. Enquanto os termos do debate sobre intersexualidade focarem de maneira seletiva
no consenso científico e no tratamento clínico, e não abrigar as críticas e possibilidades da
discussão sobre gênero, sexualidade, política e poder, excessos e estigmas continuarão a serem
produzidos e proliferados através de discursos e práticas, sejam elas acadêmicas ou médicas.
57

La promesa de mi médico a mi familia fue la de


transformarme en una mujer verdadera; una franja
de insensibilidad entre el ombligo y el pubis,
cruzada por cicatrices, es la marca de la promesa.
(Mauro Cabral)

Un anochecer de noviembre de 1958, mi madre había entrado al baño donde yo estaba jugando
en la bañera. Había ido al doctor unos pocos días antes y los hombres habían mirado entre mis
piernas. Ella me dijo que debía ir al hospital al día siguiente para una operación. Recuerdo algo
huyendo de mí en ese momento, como viento a través de una puerta que se cierra–– todo mi
poder escapándose. No se me dio ninguna explicación de la cirugía, y cuando el cirujano cortó
la mayor parte de mi clítoris de media pulgada, fue como si hubiera cortado mi lengua. No pude
llorar a los gritos para salvarme, y ese grito ahogado apretaba mi garganta, bloqueando mi voz.
Miedos sin fin acerca de quién y qué era yo tomaron el lugar de las palabras, y se instalaron
como un velo sobre mí. (Martha Coventry)

A los 16, cuatro años después de la última de nueve cirugías, empecé a pensar
seriamente qué carajos podía haber sido peor que esta amasijo de carne con
costuras, insensible al tacto y repugnante a la vista. ¿Mear sentado de por
vida hubiera sido peor? ¿Cómo pudo alguien convertir mi cuerpo en esto?
(Ariel Rojman)59

59
Cabral, Mauro. En estado de excepción: intersexualidad e intervenciones sociomédicas. In: Cáceres, C. F.;
Careaga, G.; Frasca, T.; Pecheny, M. (eds.). Sexualidad, Estigma y Derechos Humanos. Desafíos para el acceso a
la salud en América Latina. Lima: FASPA/UPCH, 2006.
58

3
Vidas verificadas, sofrimentos vividos

Uma etnografia da biomedicina: a ciência em ação hospitalar

Escrever sobre os manejos clínicos de profissionais de saúde, percursos que também


estão atravessados por implicações sociais e políticas, não é uma tarefa fácil. A biomedicina é
um “objeto”, como explicou Octavio Bonet, que afeta a todos em sociedade. Ela sempre exige
de nós uma tomada de posição (2004: 15). Este posicionamento, em nível metodológico, não
foi isento de isolamentos e estranhamentos. De modo que espero situar um pouco das
referências que me ajudaram a refletir sobre esse “estar lá” e os processos de escrita, antes de
narrar propriamente os dados e as experiências de campo.

Assim, de antemão, percebo que o recorte da dissertação se insere dentro de uma linha
mais geral antropológica-etnográfica dos “studying up” (Nader, 1972). Tais estudos podem ser
descritos como diferenciais à tradição metodológica pela escolha do pesquisador em estudar
grupos, dentro de sua própria sociedade, com dinâmicas de poder distintas (mas não
necessariamente inversas) aos registrados nas interações com os “nativos” ou os “colonizados”
– sujeitos mais clássicos da inquietação e do estudo antropológico. Dessa maneira, em vez de
tecermos uma relação desigual, a priori, “de cima para baixo”, examinando eventos e pessoas
segundo recortes em que a mobilidade e estrutura de poder seriam mais “precárias” ou menos
evidentes, escolhe-se pesquisar situações ou grupos que participam ativamente
(conscientemente ou não) dessas malhas de produção de discurso e poder. Assim, o
estranhamento e o distanciamento causados pela pesquisa não seriam uma propriedade única
dos “estudados”, mas seriam compartilhados também pelo pesquisador, a partir das assimetrias
de poder impostas pela reconfiguração dos reconhecimentos e papéis sociais dos sujeitos em
jogo no campo.

Neste mesmo registro, a “ciência em ação” presente nas etnografias de laboratórios


(Latour, 2000 e Latour, Woolgar, 1997) também faz eco aqui. O estudo, a partir das descrições
59

densas dos espaços e das práticas cotidianas nos laboratórios, busca relatar como se produz uma
diferença de conhecimento específica das sociedades ocidentais – a junção de um fato científico
com um artefato técnico através de inscrições, experimentos, manipulações e deslocamentos
que moldam a reflexão e o fazer científico. O que interessa nessa visão de ciência é percebê-la
também como uma construção social, “marcada pelas contingências situacionais e pelos
interesses específicos dos contextos nos quais tais construções são realizadas” (Bonet, ibid.:
23). Este fazer etnográfico se desenvolve ao tentar elucidar “como” se mediam e desenrolam
os caminhos para que um enunciado científico seja incorporado como consensual, ou melhor,
como ciência regulada e formalizada.

Inserida nesta abordagem do “como”, em meu trabalho de campo, tentei perceber se as


atuações micropolíticas estavam em consonância ou atrito com os fatores institucionais e os
modelos consensuais científicos, e de que modo essas dinâmicas afetaram a forma com que o
saber foi transmitido e a prática médica se transladou em atendimentos. Justamente, procuro
entender como as transformações tecnológicas e científicas na esfera do saber-poder médico
modificam as condições em que se pratica o atendimento e, consequentemente, influem na
construção de subjetividades e nas socializações seguintes. Ao mesmo tempo, também situo os
posicionamentos críticos aos modelos, transformando as dinâmicas hospitalares em mais do
que a reprodução da racionalidade científica e proposições clínicas. Portanto, sigo um
movimento que pretende pensar as relações entre ciência, tecnologia e sociedade em espaços
hospitalares. Espaços que são atravessados por fluxos (bio)éticos, sociais e políticos.

Neste sentido, nos termos de Haraway (1995), os saberes são localizados. Se todo
conhecimento é parcial, pois social e historicamente situado, a importância de Haraway para
este trabalho é o de dizer que precisamos ir além dos rastros das mediações transcendentais
científicas – por exemplo, dos corpos tornando-se cada vez mais códigos biomoleculares,
segundo suas explicações genéticas. Precisamos, ela diz, procurar “uma rede de conexões para
a Terra, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito
diferentes – e diferenciadas em termos de poder” (Ibid.: 16). Médicos, pacientes, pesquisadora,
todos atualizando os efeitos de poder, biomédicos e generificados, postos em relação nos
espaços hospitalares. O que surge daí? De modo que,

[Os] saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto


como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e,
finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas
na sua agência e em sua autoridade de conhecimento "objetivo". A observação
é paradigmaticamente clara nas abordagens críticas das ciências sociais e
humanas, nas quais a própria agência das pessoas estudadas transforma todo o
60

projeto de produção de teoria social. De fato, levar em conta a agência dos


"objetos" estudados é a única maneira de evitar erros grosseiros e
conhecimentos equivocados de vários tipos nessas ciências. (...) Explicações de
um mundo "real", assim, não dependem da lógica da "descoberta", mas de uma
relação social de "conversa" carregada de poder. (...) Os vários corpos
biológicos em competição emergem na interseção da pesquisa e dos textos
biológicos, das práticas médicas e outras práticas de negócios, e da tecnologia.
(Ibid.: 36-41)
Tento seguir esta indicação aqui. E mais, para a autora, o ofício de narrar, explicar e
intervir no mundo necessita de accountability. Tal responsabilidade de observação e produção
de conhecimento, em comunicar saberes e práticas particulares, pressupõe uma “localização
limitada” e um “conhecimento localizado”. Assim, mesmo com o reajuste dos reconhecimentos
e poderes trazidos por uma etnografia feita “de baixo para cima”, também se faz necessário uma
reavaliação crítica e interpretativa das relações sociais por uma perspectiva situacional e
feminista, portanto, periférica e interseccional. No limite, mesmo com as relações de poder
produzindo particularidades em campo, tanto a partir das observações quanto das atuações e
mediações científicas, a responsabilidade do efeito que a escrita atualiza aqui é inteiramente
minha.

A tarefa de compreender e narrar os saberes e as técnicas médicas em espaços


hospitalares tem, enfim, a finalidade de iluminar as conexões feitas em nome de consensos e
através de instrumentalizações científicas nas corporificações do dia a dia – como quando a
imagem de um ultrassom traduz as dúvidas e ansiedades de médicos, pais e da própria pessoa
intersexual materializando (in)certezas anatômicas com imagens científicas. Mas o movimento
é de não privilegiar essa redução (“ansiedade-ultrassom-diagnóstico-verdade”) como a melhor
explicação do atendimento de algum caso de intersexualidade, e sim o de tentar descrever as
conexões entre esses pontos, que são feitas na medida em que se necessita de normalizações de
gênero.

Dito isto, nos dois capítulos anteriores já rastreamos algumas justificativas para as
contínuas normalizações, de modo que o capítulo atual se estrutura na descrição das escolhas e
das práticas clínicas que são tomadas atualmente para garantir aquilo que é posto como “fim
comum”: uma noção específica de integridade e bem estar físico e psicossocial dos pacientes
intersexuais. Ao mesmo tempo em que tais escolhas e práticas são particulares e localizadas.
Portanto, será que noções e posições específicas de gênero, sexualidade, classe, cor,
procedência, capital cultural, marcam as maneiras possíveis de leitura de um exame, as
configurações de um diagnóstico, os encaminhamentos de um tratamento? De modo que tento
interpretar alguns desses significados para além das “objetividades transcendentais”. Narrar as
61

heterogeneidades que se encontram nas anamneses, nos artefatos tecnocientíficos, nos


diagnósticos clínicos, nas rotinas hospitalares, nas intervenções cirúrgicas e outros manejos.

Percursos do campo biomédico: as circulações etnográficas em três hospitais do Rio de


Janeiro

A inserção no trabalho de campo ocorreu circularmente. A primeira parada foi em março


de 2014, após apresentação virtual, feita por uma amiga em comum, à uma médica geneticista
de um hospital público de alta complexidade na Zona Sul do Rio de Janeiro. Com nossas trocas
de emails subsequentes, ela conseguiu uma autorização informal com o chefe de seu
departamento para que eu conversasse com alguns médicos sobre casos de intersexualidade.
Uma de suas doutoras, responsável pelo ambulatório da especialidade, e nomeada aqui como
GEN160, foi fundamental para que este trabalho de campo se desenvolvesse, como também me
auxiliou de sobremaneira ao sanar meus questionamentos e dúvidas iniciais sobre os
gerenciamentos dos casos de intersexualidade – ou, como chamavam por lá, de genitália
ambígua. Com ela foi realizada a única entrevista semiestruturada da dissertação. Neste local,
portanto, que se inicia a trajetória etnográfica e onde acompanhei alguns atendimentos
ambulatoriais de uma equipe do departamento de genética.

O Hospital Zona Sul (HZS) é especializado no cuidado e tratamento maternal e infantil,


sendo bastante reconhecido institucionalmente por sua qualidade e atuação em saúde na área
da genética. Em vista disso, recebia muitos encaminhamentos de outros hospitais públicos do
Estado, como também atendia casos vindos de outras regiões do país. A área da genética e da
cirurgia pediátrica andam lado a lado nas orientações dos casos de intersexualidade, afinando
as intervenções terapêuticas e cirúrgicas nas crianças intersexuais nascidas no hospital – posto
que realiza uma cobertura integral das assistências obstétricas e ginecológicas. Entretanto, no
hospital não havia um departamento específico de endocrinologia, pediátrica ou geral. Com a
necessidade de acompanhamento hormonal mais técnico (os exames clínicos e dosagens

60
Seguindo a mesma metodologia de nomeação de Machado (2008a) e Costa (2014), utilizo a sigla da
especialidade (ou da posição, no caso dos residentes) do interlocutor em conjunto com um número, que se refere
a ordem cronológica de encontro e interação na trajetória do trabalho de campo. Esta estratégica detém importância
também na medida em que pretendo preservar o anonimato dos médicos e a confidencialidade institucional.
62

hormonais básicas eram feitas no próprio hospital) encaminhavam os pacientes para tratamento
em outra instituição, em um hospital parceiro no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

Nos dois meses que acompanhei as rotinas de atendimento dos profissionais de genética
do HZS, não consegui observar o atendimento de nenhum caso de intersexualidade, apenas
manter conversas informais sobre casos e prontuários antigos. Os casos de intersexualidade
“estavam em falta”, como me diziam, então minha movimentação inicial foi a de reconhecer o
mais prontamente possível as lógicas de atendimento e de diagnóstico desses profissionais, já
que não estava ciente de como se organizava as rotinas biomédicas. Os atendimentos dos
profissionais da área da genética ocorriam em um ambulatório pediátrico, mas voltado para esta
especialidade, de modo que eram atendidos diversos casos, principalmente casos de trissomia
do cromossomo 21 – mais conhecido como Síndrome de Down.

Os residentes eram responsáveis pela organização e atendimento dos casos, estruturação


que se repetiu nos outros dois ambulatórios que observei. Todos os três espaços eram hospitais-
escola, mas apenas o último etnografado era ligado diretamente a uma faculdade. De modo que
eles atendiam os pacientes com seus respectivos familiares segundo consultas previamente
agendadas, e de acordo com a ordem de chegada no dia do ambulatório. Enquanto os
professores e médicos contratados acompanhavam a ronda dos atendimentos – se fosse
necessário auxiliar em algum caso mais complicado ou se existisse alguma dúvida dos
residentes, atendiam em conjunto dos mesmos.

Neste registro, entendo a residência como uma marca de “tensão estruturante” na


formação médica. Nos termos de Bonet, será durante a residência que o saber científico será
experimentado e consolidado enquanto prática médica. Por um lado, enfatiza-se o saber
científico e protocolar da clínica, e por outro, o aprendizado do vivido, da experiência individual
e sensível (2004: 72). Esse “estar lá” no hospital elucidaria na prática os termos e sintomas das
conceituações diagnósticas aprendidas durante a faculdade, posto que o “diagnóstico” é o
propósito central da prática médica – é o elemento que mobiliza a totalidade do processo clínico.

Por conseguinte, para que essa construção seja possível, é necessário adquirir uma
expertise médica, e tal competência passa por uma reconfiguração do olhar desses profissionais
de saúde. Assim como Bonet, Machado (2008a) também fala sobre a formação desse habitus
médico, o qual nomeia como “treinamento do olhar”. Em suas palavras:

Mediante um exaustivo processo de aprender a ver, estudantes e residentes vão


recebendo dicas sobre aquilo que é preciso olhar e o que, daquilo que se olha, é
“normal” ou “patológico” (GOOD, 1994). Conforme aponta Michel Foucault
63

(1988 [1976]), é dessa forma que a medicina conserva e reforça sua legitimidade
social de falar sobre os corpos, produzindo um discurso de verdade sobre os
mesmos, exatamente como o faz sobre o sexo. (...) Transmite-se, assim, a ideia
de que só é possível falar sobre aquilo que se vê, no entanto só é possível ver
“corretamente” depois de ter sido iniciado. (Machado, 2008a: 142-143)
Em vista disso, fui inicialmente para o HZS porque descobri nos contatos introdutórios
pré campo, através de trocas de emails com a geneticista do hospital que me introduziu no
campo, a existência de um possível caso de “genitália ambígua” marcado para atendimento. No
dia da consulta, entretanto, a residente de genética responsável pela assistência anuncia que o
caso não era de intersexualidade. Esclarece que em seu exame físico não verificou qualquer
traço de ambiguidade na genitália da criança, sustentava que a genitália era de uma “menina
normal”. A paciente tinha sido encaminhada de outro hospital, pela pediatria, os quais
suspeitavam da ambiguidade anatômica. R1 estava no terceiro e último ano de residência, e
afirmava que não havia nenhuma confusão diagnóstica, fato assegurado por ela ao chamar a
mãe da criança para olhar e comprovar que a genitália de sua filha era claramente feminina.
Não realizou nem mesmo o exame de cariótipo61 para definição do sexo cromossômico, sem
demora, liberou a criança da consulta com a finalização do exame físico.

Esse exemplo é curioso, pois a responsabilidade da genética é fundamentalmente na


definição do sexo cromossômico, como foi confirmado depois. Mas o olhar especializado da
R1 mediou o diagnóstico, ou a não necessidade dele, neste caso de confusão entre
especialidades. A incorporação do habitus médico não é uniforme, há disputas valorativas e
técnicas entre as especialidades, garantindo um certo monopólio na explicação e no
atendimento de condições específicas. Desta maneira, o treinamento do olhar atua sobretudo na
utilização (e consequente reiteração) de escalas, medidas e formas generificadas de genitálias
tidas como normalizadas e atípicas. As genitálias normais precisam ser assimiladas
intensamente em seus traços e composições para a determinação e “correção” das anômalas.
De tal maneira que o processo ocorre segundo mediações técnicas e através de inscrições
supostamente objetivas, mas na verdade generificadas, para justificar a (re)construção do sexo
“como se fosse natural” (Machado, 2005).

Semanas depois desse caso, em um dos dias de ambulatório, que eram realizados
segundas, quartas e sextas na parte da manhã, um dos residentes me esclareceu mais sobre como

61
É um exame para determinação do sexo cromossômico ou de alguma condição congênita. Realiza-se ao extrair
sangue para cultivo citogenético, com o objetivo de analisar células no estágio de metáfase da divisão celular, isto
é, uma fase em que o DNA está em grau máximo de condensação e é possível a observação dos cromossomos
através de um microscópio.
64

chegavam e quais eram os encaminhamentos dos pacientes intersexuais no hospital. Como os


casos de intersexualidade estavam em falta, sem previsão de consulta agendada, ia uma vez por
semana ao ambulatório de genética pediátrica acompanhar a rotina dos profissionais de saúde
e conversar com a GEN1, quando estava disponível, já que era sempre solícita comigo ao narrar
histórias e casos antigos. Neste dia, estava a sua espera, mas acabei me ocupando com a
observação dos atendimentos dos residentes do primeiro ano. Um deles, R2, relatou-me que
normalmente casos do tipo chegavam através de encaminhamentos de outros hospitais, ou pelo
Sistema Nacional de Regulação (SISREG), sistema online gerenciador do complexo regulatório
do Sistema Único de Saúde (SUS), que vai desde agendamentos ambulatoriais às internações
hospitalares. Quando chega ao hospital, a responsabilidade da genética é principalmente para
realização do cariótipo, ou seja, para definição do sexo cromossômico – e em casos mais difíceis
e raros, para processamento do sequenciamento genético. Então, a partir do cariótipo, e outros
exames de imagem e hormonais, busca-se associações e causas para elaboração do diagnóstico
do paciente. Esta etapa diagnóstica envolve regularmente o manejo multidisciplinar, com várias
especialidades atendendo em conjunto. Da mesma maneira, GEN1 reitera na entrevista que
fizemos em julho de 201462:

A gente examina, né. Até pra se ter uma hipótese. Hiperplasia tem que ser
afastada logo porque pode levar ao óbito, é grave. A gente examina, vê se parece
mais um ou outro, de acordo com... [o padrão]. (...) Sempre se colhe o cariótipo
pra poder, mesmo que isso não faça diferença no que você vai fazer depois, mas
pelo menos pra determinar, precisa. [Faz parte do diagnóstico?] É, na verdade
vem pra genética pra isso principalmente, pra ver qual o sexo cromossômico.
(...) Às vezes, como é a suspeita de hiperplasia, já vem até dosado a 17-alfa-
hidroxilase. Às vezes não, aí fazemos essa também. Aí os exames de imagem e
tal é de acordo se já foi feito ou não, depende de como a criança chegou. Às
vezes ela vem do berçário, aí lá a gente pede tudo.
GEN1 também era contratada de outro hospital público de alta complexidade. Depois
de dois meses de acompanhamento no departamento de genética do HZS sem nenhum
atendimento agendado ou caso de intersexualidade encaminhado, ela me aborda para noticiar
que estava participando de uma equipe multidisciplinar com o objetivo de atender um possível
caso de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) em outro hospital, na Zona Norte do Rio de
Janeiro, e que eu poderia acompanhar o desenvolvimento desse caso, se estivesse interessada.
Prontamente aceitei. De tal forma que acontece minha primeira circulação entre hospitais.

62
As observações em colchetes e itálico serão usadas na transcrição da entrevista para indicar meu diálogo com a
GEN1, representando tanto perguntas quanto complementações que fiz à sua fala no momento mesmo da
realização da entrevista.
65

Os detalhes aprofundados desse caso serão expostos no próximo tópico. No momento


indico algumas rotações de campo. No Hospital Zona Norte 1 (HZN1), depois de participar de
uma reunião multidisciplinar para discussão do caso, tive a oportunidade de conhecer o
endocrinologista que ficou responsável pelo atendimento do bebê com hiperplasia. Este médico,
chamado aqui de ENDOPED1, pois é especializado em endocrinologia pediátrica, foi o outro
interlocutor-chave para esta dissertação. Não só pela centralidade que lhe foi dada no
atendimento desse paciente, mas também por ser responsável pela próxima circulação espacial
da etnografia.

Este movimento aconteceu depois da reunião multidisciplinar. Enquanto saía do


hospital, ENDOPED1 pergunta qual era o tema da minha dissertação. Explico meu interesse
em conhecer melhor as dinâmicas do “gerenciamento sociomédico” da intersexualidade, e ele
se mostra admirado e curioso. Logo depois me conta que durante sua especialização stricto
sensu também escreveu sobre intersexualidade. Convida-me, então, para acompanha-lo no
outro hospital em que trabalha, já que lá também estava atendendo um caso de intersexualidade.
Neste momento, me mostra em seu celular algumas fotos da “genitália ambígua” de seu
paciente. Tento não demonstrar surpresa frente às imagens. Eu estava inserida, ou sendo
testada? Com as imagens passando em seu celular, discorre detalhes clínicos sobre o caso.

Anacely Costa (2014) desenvolve articulações interessantes sobre o “regime escópico


da medicina”, cujas necessidades imagéticas, através de fotos, ultrassons, radiografias, escalas
e medidas de especificidades anatômicas, atuam como mediações importantíssimas para a
construção diagnóstica e dos tipos de intervenção. Esse apego imagético atua também como
uma mediação técnica, já descrita, a fim de garantir a reprodução do “treinamento do olhar”
médico. Por fim, ENDOPED1 diz que iria autorizar minha ida para este outro hospital, também
na Zona Norte do Rio de Janeiro, com o chefe de seu ambulatório e me enviaria um email
confirmando a anuência.

Na ocasião, portanto, fecha-se a última circulação do campo em outro hospital, o


Hospital Zona Norte 2 (HZN2). Neste hospital foi realizada a maior parte da etnografia descrita
no capítulo, feita de maio até novembro de 2014. A etnografia ocorreu tanto pela observação
das rotinas do ambulatório de endocrinologia pediátrica como pela consulta aos prontuários
médicos dos casos atendidos nesta época e que tive a oportunidade de acompanhar, direta ou
indiretamente.
66

Ao transitar entre três instituições hospitalares diferentes e atravessar vários


ambulatórios e enfermarias, alguns médicos se fizeram mais presentes que outros, dependendo
do caso que me permitiam acompanhar. Nessas idas e vindas de observação dos espaços
hospitalares e das práticas médicas cotidianas em casos de intersexualidade, pude notar a
endocrinologia assumindo responsabilidade pelo manejo dos pacientes intersexuais e de seus
familiares, enquanto as outras especialidades eram acionadas de acordo com a organização
específica de cada caso. Tal estruturação das especialidades também foi descrita anteriormente
na tese de Machado (2008a). Então, mesmo com a perspectiva da especialidade acompanhada
em campo representando cada hospital – HZS: genética, HZN1: pediatria e HZN2:
endocrinologia pediátrica – indico que tive mais tempo de observação e de acesso aos dados a
partir do trabalho de campo realizado com a equipe de endocrinologia pediátrica. Tanto a
genética quanto a urologia pediátrica, além da psicologia, serão especialidades acionadas
constantemente nessas rotinas, mas é a endocrinologia enquanto especialidade médica que tem
o papel de gerenciar, encaminhar e manter o tratamento presente e futuro dos casos de
intersexualidade.

O que fazer quando surge um caso de intersexualidade? O manejo da urgência, da


necessidade e da intervenção63

O Hospital Zona Norte 1 (HZN1) localiza-se nas proximidades de uma das maiores vias
expressas do Rio de Janeiro, em vista disto, recebe pacientes de várias localizações da cidade e
do estado. Diferente dos outros dois hospitais onde realizei o trabalho de campo, este é o único
com atendimento emergencial, além de disponibilizar atendimento ambulatorial, cirúrgico e
internação. O paciente que a GEN1 tinha mencionado se chamava Marcos 64. Ele estava
registrado com sexo e prenome masculino e foi internado no hospital com apenas 1 mês de
idade sofrendo de vômitos, mal-estar e desidratação acentuada. Desde o primeiro momento de
internação, foi tratado para o quadro de desidratação e monitorado.

63
Algumas ideias desenvolvidas e discutidas aqui foram primeiramente elaboradas na versão “Agenesia Humana:
alguns percursos médico-científicos em casos de intersexualidade” (2014).
64
Todos os nomes apresentados ao longo do capítulo serão nomes fictícios.
67

No espaço da enfermaria pediátrica, os médicos pediatras começaram o delineamento


das causas responsáveis pela desidratação de Marcos. Quando se realizou a anamnese e o exame
físico para esta construção diagnóstica, constatou-se que em sua bolsa escrotal não havia tecido
testicular, isto é, os testículos não estavam palpáveis. Nos relatos clínicos descritos no
prontuário do bebê, há desde o início a possível indicação de “hiperplasia adrenal congênita”,
seguida sempre de algumas interrogações. Assim, além de reajustar as faltas e excessos de
minerais que causaram a desidratação, a primeira conduta médica foi a solicitação da coleta de
raspado da mucosa oral para definição da cromatina sexual do bebê, e de outros exames
clínicos, como dosagens hormonais e ultrassom pélvica.

Quando cheguei ao hospital Marcos já estava internado há 20 dias. GEN1 me apresentou


para os residentes locais, um deles acompanhava mais de perto o caso e detalhou algumas
variáveis importantes. A observação que mais me impactou foi em relação ao esforço médico
para precisar a “ambiguidade” da genitália do bebê. De início, segundo os relatos médicos, a
aparência da genitália dele não era ambígua, ao contrário, o pênis estava no tamanho padrão
com o meato urinário na ponta e fusão lábio escrotal completa. A bolsa escrotal era pigmentada
e pregueada. Mas a genitália não podia ser inteiramente masculina porque ele não tinha
testículos. A bolsa escrotal estava vazia. Desse modo, a diferenciação sexual volta-se,
novamente, às faltas e excessos. E, mais além, à definição gonadal como parâmetro. É o
primeiro passo da análise, antes de qualquer detalhamento molecular.

Mas tal diferenciação não parecia tão brusca assim, na verdade, tinha certa continuidade
entre as anatomias sexuais. Pela escala médica, apontaram que Marcos estava com o grau de
virilização Prader V. Ela determina os graus de virilização da genitália, e neste nível indicava
que a genitália parecia ser mais visivelmente masculina possível. Na superfície era tudo igual,
na anatomia era bastante similar, exceto a falta de gônadas. De tal forma que somente com a
minúcia do exame físico foi possível detectar a ausência testicular. Logo, associaram a
descoberta com o quadro de desidratação, e determinaram que o pré diagnóstico de Marcos era
de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC). Contudo, para confirmação e intervenção clínica
ainda precisavam da definição do sexo cromossômico.

Relembrando as notas explicativas da introdução, a HAC65 é considerada uma doença


que resulta na deficiência da enzima 21-hidroxilase produzida no córtex adrenal. “A ausência

65
A partir deste momento, me refiro ao longo do texto à “Hiperplasia Adrenal Congênita” pelo uso de sua sigla
“HAC”.
68

ou inatividade funcional dessa enzima impede a produção normal de cortisol e de aldosterona


(em até 75% dos pacientes), desviando os produtos intermediários acumulados para a síntese
excessiva de andrógenos”, isto é, de hormônios androgênicos, como a testosterona. A literatura
médica indica que a combinação dessas variações congênitas, genéticas e hormonais, que se
manifestam desde o período intrauterino, são “responsáveis pelo surgimento, ao nascimento, de
um quadro clínico clássico na criança: genitália externa ambígua com vários graus de
virilização (nas meninas) e macrogenitossomia66 (nos meninos)” (Telles-Silveira et al., 2009a:
1113, grifo meu).

Deste modo, em sua forma clássica, a HAC é “perdedora de sal”. Sua incidência não é
consensual, mas varia entre 1:10.000 e 1:20.000 nascimentos, sendo mais “prevalente em
alguns grupos étnicos, particularmente em regiões geográficas remotas (por exemplo, os Yupiks
do Alasca)” (Speiser et al., 2010: 7). No Brasil, a incidência é maior, de 1:7.533 nascimentos
(Silveira, 2008: 4).

Nesse caso, com o exame da cromatina sexual realizado, indicava-se um resultado


prévio do sexo cromossômico. As células contadas tinham corado, sugerindo que os
corpúsculos de BARR (a tal da “cromatina sexual”) estavam presentes e inativos. Esse
procedimento só ocorre em pessoas com pelo menos um cromossomo X no par de cromossomos
sexuais, por exemplo, 46, XX ou 47, XXY, exatamente porque o cromossomo X não ativo, que
sobra, espiraliza-se ao inativar – e torna-se o corpúsculo de BARR visualizado no exame.

Nas hipóteses de cariótipo 46, XY, o único cromossomo X fica ativo, por isso não
apresenta a cromatina. O resultado do teste corado evidenciando a cromatina sexual e,
consequentemente, pelo menos um X inativo, demonstrava que o sexo cromossômico de
Marcos já não incluía o masculino usual. Entretanto, o patologista que realizou o exame não
quis “se comprometer” – informação da GEN1 que acompanhava o caso – com a definição do
sexo feminino em um paciente que estava registrado com o sexo e prenome masculino. A saída
então era retirarem sangue para a análise citológica e uma definição mais fidedigna do cariótipo.
Na visão dos médicos, a angústia da “emergência social” não podia apressar a definição mais
objetiva possível do sexo cromossômico, pois ali constava a verdade molecular do sexo.

Logo que saiu o cariótipo do bebê, afirmando o sexo cromossômico de 46, XX,
confirmou-se o diagnóstico de hiperplasia adrenal congênita. Mesmo com o sexo

66
Entende-se clinicamente como um desenvolvimento excessivo e prematuro dos órgãos genitais e caracteres
sexuais secundários masculinos.
69

cromossômico definido, associaram o resultado aos outros exames clínicos pedidos, que
também assinalavam taxas de hormônios androgênicos elevadas – comprovando a lógica da
produção excessiva pela suprarrenal. Desta forma, providos de vários tipos de exames e com
um diagnóstico fechado, os médicos atuantes no caso, das áreas de pediatria, genética,
endocrinologia e psicologia, decidiram realizar uma reunião multidisciplinar a fim de
produzirem um consenso sobre o manejo do paciente e sua família67.

Algumas explicações já haviam sido dadas para a família, especialmente para a mãe,
que era a familiar que sempre estava presente durante a internação de Marcos. Enquanto a mãe
era do lar, o pai trabalhava em um restaurante, mas faltava ao trabalho ocasionalmente durante
o tempo de internação para acompanhar as explicações e os gerenciamentos médicos. Como
minha relação de campo, neste momento institucional e hospitalar, não permitia o
acompanhamento dos profissionais de saúde em contato com a família, soube dos
desenvolvimentos dessas abordagens e conversas pelos próprios médicos com quem mantinha
interlocução. Posto isto, o que me foi descrito era que eles “esclareceram dúvidas preliminares”
para a família ao afirmarem que o sexo masculino designado ao nascer não estava definido,
além do fato de que o “diagnóstico não estava fechado”, ainda precisavam de mais tempo para
a determinação sexual.

Pediram um acompanhamento psicossocial para a mãe, que ficou bastante angustiada –


no prontuário de Marcos, a psicóloga que atendeu a mãe relata que ela ficou mais angustiada
com o fato de terem dado essa notícia no meio da enfermaria pediátrica (por uma
endocrinologista chefe do ambulatório, que depois foi deslocada da responsabilidade do caso),
onde todas as outras crianças e familiares ficam internados, gerando um mal estar associado ao
estigma desta falta de designação sexual tornar-se pública. Telles-Silveira et al. (2009a), um
grupo de médicos de várias especialidades, avaliaram qualitativamente as dificuldades de
comunicação entre os atores envolvidos em casos de HAC. Entrevistaram médicos, familiares
e pacientes em um hospital de São Paulo, e enquanto os primeiros reclamavam da “passividade”
dos últimos nas consultas, os autores observaram que é preciso cautela com essa declaração.
Argumentam que as dinâmicas de ambulatórios de hospitais-escolas aprofundam a falta de
cuidado centrado no paciente, não permitindo conversas mais abertas com os familiares, os

67
De acordo com o Consenso de Chicago, a composição ideal para uma reunião multidisciplinar de casos de
intersexualidade teria a participação de pediatras com especialistas nas áreas de endocrinologia, cirurgia e/ou
urologia, psicologia/psiquiatria, ginecologia, genética, neonatologia e, se possível, alguém da assistência social,
da enfermaria e da bioética (Lee et al., 2006: e490).
70

quais, por sua vez, também não sabem se explicar para seus filhos/filhas em atendimento, que
terminam por internalizar ainda mais sofrimentos e angústias. No caso em questão, os médicos
também indicaram para a mãe que na próxima conversa iriam explicar os encaminhamentos
necessários com base na reunião multidisciplinar agendada.

Nesse ponto de vista, o ambiente hospitalar, especialmente por ser um hospital-escola,


multiplica as possibilidades de estigmatizações. Resgato pontualmente algumas contribuições
de Goffman, mas de maneira diferente ao narrado no capítulo anterior, quando falamos sobre
estratégias políticas e controvérsias classificatórias, que de modos distintos tentam reajustar o
estigma para condições mais salutares ou humanas, nesta situação vemos a tentativa e a
consequente falha de manipulação do estigma in loco. O drama da “emergência social” irrompe
mais pelo limbo causado pela falta de definição sexual do que pelo risco agudo de desidratação
do bebê – representadas relacionalmente pela impossibilidade de explicação materna do que
acontecia com a criança para familiares e desconhecidos da enfermaria e acentuadas com os
vagos “esclarecimentos preliminares” por parte dos médicos.

Uma abordagem pertinente relaciona-se à compreensão da vulnerabilidade como uma


condição compartilhada (Butler, 2004). Neste sentido, perceber o corpo sexuado como
localização (e verbalização) da vulnerabilidade que estrutura a humanidade, levaria a um
gerenciamento sociomédico desses casos com maior reconhecimento na complementariedade
do sofrimento e da exposição do outro. Igualmente, se dar conta de tamanha vulnerabilidade,
manifestada aqui pela falta de um marcador fundamental para garantia de sociabilidade, o
gênero, torna mais compreensível a atitude materna em se calar diante do limbo de
inteligibilidade – a não definição sexual de seu bebê – do que consentir com a exposição, e
possivelmente com a espetacularização, dessa mesma vulnerabilidade.

Assim, no dia da reunião multidisciplinar, Marcos completava 29 dias de internação. A


questão clínica mais arriscada, disse um dos médicos endocrinologistas, estava resolvida – a
desidratação havia sido tratada. Para evitar que outras crises ocorressem, era preciso dar ao
paciente doses de um hormônio esteroide do tipo “glicocorticoide” para regular a insuficiência
adrenal e suprimir a produção excessiva de hormônios androgênicos. Desta forma, a virilização
iria parar e a perda de sal gerando reflexos de desidratação também. A hormonoterapia nos
pacientes com HAC na forma clássica é praticada ao longo de toda a vida. À vista disto, o
necessário mesmo, dizia o ENDOPED1, era buscar um consenso médico sobre a designação
sexual.
71

A escolha da designação sexual era o ponto nevrálgico do debate. Enquanto uns


apontavam para o fato de que a cirurgia não era simples, como a GEN1, que optou por manter
a designação no sexo masculino até a criança formar sua identidade de gênero e poder opinar
nas formas de tratamento e intervenção. Outros, principalmente os dois endocrinologistas
presentes e responsáveis pelo gerenciamento do paciente, insistiram no modelo de abordagem
médica para os casos de pacientes 46, XX com HAC: a designação do sexo feminino. Dentre
os participantes da reunião, oito eram mulheres – das áreas de pediatria, psicologia, genética e
endocrinologia pediátrica – e dois eram homens – o ENDOPED1 e um residente do primeiro
ano de pediatria. O interessante, nesse ponto da narrativa, é perceber a retórica da
funcionalidade acionada pelos endocrinologistas para justificar e legitimar essa designação em
atrito com as dúvidas e opiniões críticas das médicas de outras especialidades. Na entrevista
semi estruturada que fiz com a GEN1, ela comenta sobre a reunião multidisciplinar.

É, são raros os casos complicados. Normalmente a criança já chega com uma...


Assim, é mais fácil. Não é tão virilizado. Ele é muito virilizado, ele era um caso
raro. Não é muito comum a gente vê não. Então quando é assim, acho que é
bom, né. É a segunda vez que a gente faz lá. É a segunda vez que a gente faz
num caso parecido, que eram crianças muito virilizadas. O primeiro foi um
menino que ficou como menino, porque foi descoberto muito tarde, ele [era
HAC, mas] não era perdedor de sal. O Diego, de 4 anos. Então a gente fez a
reunião porque a grande dúvida é o que que faz... Se tira os ovários, não tira.
(...) E aí assim, o que eu andei lendo, pelo menos, era que tinha que intervir o
mínimo possível. (...) É, o que a gente estava questionando nesse menino, no
Marcos, era justamente isso. O ex Marcos, né. Era que tudo bem que a
conformidade com o gênero feminino é maior, mas a cirurgia é muito difícil. É
uma cirurgia complicada, que nem sempre dá um resultado final bom. Pode
sentir dor na relação sexual. Que vira uma vagina, né. [Seria difícil
reconstruir?] Quando é muito virilizado parece que é mais difícil, porque eles
pegam o clitóris e invertem, pra não tirar, né, senão a pessoa não vai ter
sensibilidade nenhuma. Consigo imaginar, se é muito grande, como você vai
conseguir inverter aquilo? Não dá. O problema é que tem que manter a ponta,
né, é a ponta que é sensível. Mas não sei o que eles fazem. Pode ter muita
estenose, fica apertado demais, tem dor. [Aí a cirurgia desaconselhou isso?]
Pois é, a cirurgia, que era até o CIRPED1, ele era contra. Ele era a favor de
deixar como menino.
Enquanto que na reunião, a outra endocrinologista pediátrica presente se manifestava ao
dizer que “não existe uma solução ótima nem mesmo uma solução boa, apenas uma solução
possível”. Neste sentido, em meio às complicações sobre as possibilidades de tratamento e
intervenção, um tipo de argumento se sobrepõe às controvérsias. A preocupação com o bem
estar psicossocial do paciente e da família surge como norte em qualquer fala, seja qual for a
especialidade médica. Mas essa conceituação do bem estar é também técnica e singular, pois se
72

associa a um entendimento funcional do corpo. Tal funcionalidade aparece em dois níveis:


reprodutivo e sexual. Como Machado já revelou,

De forma geral, a função reprodutiva remete à capacidade de fertilidade, e a


função sexual, à resposta ao estímulo hormonal: aumento do pênis e
possibilidade de ereção, para os homens; não-masculinização (não crescimento
de pelos e não engrossamento da voz, desenvolvimento de mamas e
menstruação), para as mulheres. (2008a: 129-130)
Assim, o que importava manter nesses casos não era a possível coerência anatômica da
genitália completamente masculina com um sexo social já inscrito, mas adequar a designação
do sexo social ao sexo cromossômico e às gônadas femininas. Mesmo com o grau máximo de
virilização, Prader V, isto é, com a genitália masculina visualmente mais tipo ideal, a
terminologia usada ainda era de “genitália ambígua” em relação às gônadas e ao sexo
cromossômico notado clínica e cientificamente como feminino. “A fertilidade é
imprescindível”, apontou a endocrinologista durante a reunião.

A retórica de manutenção das gônadas femininas, garantindo fertilidade futura ao bebê,


foi a síntese para afinar o discurso médico e legitimar a mudança de designação do sexo para
os pais. O único pedido feito pela família foi da certeza de fertilidade, logo, os médicos pediram
outro exame: a genitografia. Esta radiografia com contraste da região pélvica atestaria a
existência das gônadas femininas que possibilitariam, no futuro, a menstruação e a consequente
reprodução heterossexual. Entretanto, mesmo com essa salvaguarda imediata, não há garantia
posterior da menstruação nem mesmo da orientação sexual heteronormativa como indicador de
fertilidade e reprodução futura, mas foi o que bastou naquele contexto para dar coerência ao
caso e atestar a transição do sexo designado.

Das indicações médicas para a família, uma é fundamental para o entendimento das
práticas científicas como (um dos) eixos na produção de subjetividades: pediram para os pais
levarem o bebê com roupa rosa na próxima consulta. Antes, nos dias de internação na
enfermaria pediátrica, a mãe só vestia o bebê com roupas azuis. Sugeriram também que a
família desse outro nome ao bebê – o prenome no registro civil só pode ser alterado por meio
de decisão judicial, e é necessário um laudo médico explicando a condição de intersexualidade
para justificar a modificação do registro civil no âmbito jurídico, mas a equipe médica já indica
para a família chamar o “antigo” Marcos por um nome e gramáticas femininas. Nesses casos,
um dos médicos me confessou, não adiantava de nada a decisão médica de designar para o sexo
feminino se a família não reforçasse este sexo social cotidianamente.
73

A mediação ocorre em duplo sentido: das técnicas científicas e das incorporações


linguísticas/materiais de gênero. Com a intervenção precoce assegurada, a entrevista com
GEN1 meses após a reunião multidisciplinar demonstra como a internalização desses conflitos
generificados surgem em níveis gramaticais e sociais. Ao evidenciar suas próprias expectativas
de aderência ao sexo social designado, esclarece um pouco sobre as preocupações médicas com
os resultados decorrentes do tipo de intervenção escolhida. Por outro lado, também cita algumas
das dificuldades futuras da paciente.

Lá eu tava na pediatria. A gente vê tudo, e aí se por acaso tem algo mais


específico da genética eu vou lá ver. E ele tava internado, né... Ela, agora é ela.
(...) É, agora ela é Martha. Tá ótima, segundo as meninas da endocrinologia. Eu
vi, ela tá linda. [Mas já saiu da internação?] Já, tá no ambulatório, só
acompanhando. E assim, a mãe jogou tudo do azul fora, deu as roupinhas,
comprou vestidos e ela anda menina. Furou orelha. [Lembro que tinha essa
dificuldade...] É, mas não, ela tá... A criança tá ótima. Ela se encontrou como
menina. Não sei como isso é possível... uma criança tão pequena (risos). [Mas
ela tá tomando algo?] É, ela tem que tomar o corticoide. Independente do que
vai se decidir da vida dela. Mas isso ela tem que tomar mesmo. Ela precisa
tomar o corticoide pra bloquear e parar de virilizar também. Pra isso, mas pra
ela também, é pra não morrer, né. [Exato, porque é perdedora de sal...] Ela é.
Aí bloqueia e não cresce mais. Para mais ou menos onde tá, por ali. [E ela foi
encaminhada para cirurgia?] Não sei, eu sei que ela tá acompanhando na
endócrino, agora a cirurgia eu não sei o que ela tá fazendo. [Teria que falar com
o ENDOPED1, né...] É, ele é o médico dela. Ficou com ele. A mãe confiou
mais nele. Se identificou mais com ele. Ele trabalhou com mais jeitinho, então
a mãe acho que confiou mais nele. O resto tinha sido uma coisa mais
atravancada, assim, aí não deu muito certo.
A família era composta pela mãe, pelo pai e um irmão de 9 anos de idade. Pelo registro
da GEN1 e do que pude notar das observações da enfermaria pediátrica, de uma consulta que
acompanhei, dos relatos médicos informais e documentados nos prontuários, o ambiente
familiar era majoritariamente e simbolicamente masculino. A mãe reforçava sua confiança em
um ambiente masculino, e evidenciava esse conforto por certas internalizações da autoridade
médica. Inicialmente, a responsabilidade de administração do caso era conjunta do ENDOPED1
com outra endocrinologista pediátrica, mas como citei anteriormente, esta médica se excedeu
ao explicar a condição de Marcos/Martha para a mãe, em meio a enfermaria pediátrica, gerando
um maior desconforto familiar e também uma quebra de confiança da família nesta profissional.
O caso é assumido integralmente por ENDOPED1, e a mãe se mostra muito menos angustiada
com o atendimento médico. Tanto que as rondas de exames, as quais eram feitas por vários
residentes, também se firmaram com um residente homem do primeiro ano. O acolhimento
hospitalar e a construção de confiança médica são processos delicados, que depende de cada
paciente e caso específico, e esta família em questão – mais fortemente a mãe que acompanhava
74

a internação de Marcos/Martha – se apresentou mais suscetível com a escuta e a explicação


vindas de médicos homens. GEN1 não examinava o bebê fisicamente, mas participava do grupo
multidisciplinar que atendia o caso, por isso sabia desses detalhes do atendimento.

Outro relato da psicóloga no prontuário e reiterado na reunião multidisciplinar, era de


que o irmão de Marcos/Martha se inquietava em casa perguntando do “irmãozinho”,
aprofundando a angústia materna. Ela fez alguns pedidos de acompanhamento psicossocial para
levar o outro filho até à enfermaria para visita. Mas com a garantia de fertilidade dada pelos
médicos, os pais parecem abraçar a possibilidade de ter uma menina e findar as angústias
causadas pelos trâmites da determinação sexual. Podemos questionar a eficácia de tal confiança,
se é uma aceitação total da explicação e intervenção médica ou se apenas é um aceno
momentâneo contra a incerteza para finalizar o sofrimento presente. Aposto na segunda opção,
precisamente porque essa incerteza nunca irá embora. Como citei antes, um dos médicos afirma
a necessidade de reforçar o sexo social cotidianamente, evidenciando que essas determinações
têm caráter cultural – e, por conseguinte, que a ciência e suas práticas estão inseridas nesses
mesmos processos simbólicos. Portanto, tal negociação parental/médica com a incerteza
demonstra que a confiança nessa coerência científica do sexo e nas intervenções clínicas e
cirúrgicas são parciais e, muitas vezes, porosas.

Assim, após a definição da abordagem pela reunião multidisciplinar, Marcos, agora


Martha, teve alta da enfermaria pediátrica pelo quadro de desidratação, retornando somente
para consultas com a equipe multidisciplinar a fim de intervirem na designação sexual
escolhida. A genitografia ainda não tinha sido realizada por falta de equipamento hospitalar.
Mas, independentemente da estabilidade que o exame daria, a criança foi encaminhada com a
família para a área de urologia e cirurgia pediátrica. Minha última informação sobre o caso foi
em setembro de 2014 através do ENDOPED1, já o acompanhando em outra instituição, no
HZN2, ao me dizer que a família havia mudado o prenome da criança e aceitado a intervenção
cirúrgica. “A genitoplastia68”, ele contou, “tem que ser realizada antes dela completar 1 ano de
idade”.

Nesta interpretação, a precocidade da intervenção cirúrgica é justificada pelo bem estar


e pela satisfação psicossocial do paciente e seus familiares. É uma releitura do discurso de
sofrimento travestido por significados específicos do que seria esse “bem estar”. Enquanto não

68
É uma cirurgia feminizante que engloba reconstruções clitorianas e vaginais, como a clitoroplastia e a
vaginoplastia.
75

existir uma congruência entre o corpo sexuado, representado aqui pela “genitália ambígua”, e
o sexo cromossômico e gonadal do paciente, haveria uma sensação de angústia que não
permitiria esse bebê ser aceito e socializado plenamente. Mas para que essa inserção necessária
ocorra, para que a entrada no regime de inteligibilidade do binarismo sexo-gênero seja eficaz,
como homens ou mulheres cisgêneros69, é norma a mediação médico-científica, independente
das implicações cirúrgicas serem deletérias e mais questionáveis do que positivas.
Possivelmente Martha terá que passar por outra cirurgia de reparação durante a puberdade, para
aperfeiçoar o resultado cosmético e funcional da genitália, e mesmo assim não há garantia de
que um desempenho funcional e sexual satisfatório se concretize.

Logo, os corpos intersexuais tornam-se inteligíveis – e consequentemente funcionais,


reprodutivos e humanos – quando passam pelas reposições hormonais e intervenções cirúrgicas.
De tal forma que essas práticas devem ser reconhecidas dentro do arsenal discursivo de
produção de corpos e subjetividades, e não simplesmente como encaminhamentos necessários,
neutros e naturais para a designação correta e coerente do sexo de um sujeito.

São muitas as dificuldades e complicações deste tipo de intervenção, mesmo em


pacientes adolescentes ou adultos que não apresentam desconfortos posteriores com o sexo
designado na infância. Não precisamos nem mesmo discutir a “correção cirúrgica” como prática
invasiva e irreversível70, a própria reposição hormonal é tida como um “desafio” já que é
“imperfeita e não mimetiza a secreção fisiológica” dos hormônios (Gilban, 2013: 5), podendo
levar a outra “desordem endócrina” como nos casos de Síndrome de Cushing ou
hipercortisolismo71.

69
O termo “cisgênero” tem uma utilização arriscada dentro do tema da intersexualidade. Ele indica um contraponto
ao termo “transgênero”, isto é, alguém não se sente confortável com o sexo designado ao nascer, e é utilizado pelos
transexuais como forma de questionar os marcadores e as relações de poder do sexo e da sexualidade, que
privilegiam as narrativas e os sujeitos cujas identidade dê gênero são coerentes com o sexo assignado. Nomear a
experiência intersexual dentro de uma categoria trans* tem seus limites, mas utilizo o termo aqui exatamente para
evidenciar essas mesmas estruturas de poder. A lógica médica busca reconstruir os corpos sexuados desses sujeitos
dentro de estratégias e protocolos científicos similares, em que perseguem uma ficção de coerência sobre
identidade de gênero e sexualidade da mesma forma que detém o registro da “verdade” sobre o desenvolvimento
sexual e as “localizações” do sexo.
70
Para ver uma discussão sobre as práticas de intervenção tecnológico-cirúrgica aplicadas sobre os corpos
intersexuais com objetivos de “correção”, e uma comparação desta prática com outras de “mutilação genital”, ver
Knauth, Machado (2013).
71
O principal glicocorticoide usado no tratamento de pacientes com HAC é o “cortisol”, que em sua forma sintética
é chamado de “hidrocortisona”. A reposição excessiva desse hormônio ou de outros tipos de glicocorticoides pode
desencadear uma supressão no crescimento que levaria a “prejuízos ao crescimento linear e maturação fisiológica
do paciente” (Gilban, 2013: 5).
76

Ainda que existam agentes argumentando em favor de condutas contrárias, ou ao menos


críticas, aos protocolos de consenso médico, como a GEN1 articulando-se repetidamente contra
a intervenção cirúrgica precoce do bebê com HAC, é a norma médico-científica que serve de
referência para as decisões feitas nos casos de intersexualidade72. Na medida em que se monta
o quebra cabeça diagnóstico, se aciona discursividades biomédicas calcadas em concepções
generificadas para tentar dar conta da necessidade de assunção de um gênero binário. Como
demonstra Machado (2008a) em sua própria etnografia sobre um caso de bebê com HAC.

A discussão prosseguiu e inúmeros pareceres iam sendo fornecidos acerca das


“condições biológicas” da criança e também sobre os “aspectos psicológicos”
da mãe, até que uma das médicas inadvertidamente lançou ao grupo a seguinte
questão: mas por que operar? A pergunta não foi recebida sem um certo espanto
e até mesmo impaciência. Risos e murmúrios completavam a cena. Afinal, a
preocupação da equipe era a de como “melhor intervir”, o que explicava a busca
pela definição inequívoca do sexo do bebê. A pergunta da médica naquele
contexto soava, finalmente, pouco sensata, pois: Como a criança iria viver num
mundo sem a definição do sexo? Era isso que se tratava de resolver. (Ibid.: 151-
152)
Na reunião multidisciplinar, houve uma votação para a definição do encaminhamento,
mas com caráter simbólico. O voto para a não intervenção e manutenção da designação
masculina de Marcos/Martha ganhou, com votos das áreas da pediatria, psicologia e genética.
Achavam melhor esperar para realizar qualquer intervenção cirúrgica irreversível no bebê. Mas
o tratamento de HAC é considerado um “caso fácil” para a medicina, pois se alinham as
localizações do sexo tanto em níveis genéticos quanto gonadais – abrindo espaço para a
funcionalidade e reprodução futura –, necessitando apenas de reparo da anatomia ambígua
(Ibid.: 153). Então, mesmo com a maioria dos profissionais de saúde a favor da não intervenção
precoce, a abordagem intervencionista prevaleceu.

Quando questionado na reunião sobre a existência das exceções às facilidades do caso,


um dos endocrinologistas argumentou: “não podemos nos deixar influenciar por um viés de
amostra”. Alguns pacientes 46, XX com HAC, que são designados no sexo feminino durante a
infância apresentam, posteriormente, disforia de gênero73. Após todas as intervenções clínico-
cirúrgicas as quais são submetidos, na adolescência ou na fase adulta, entram em processo de
transexualização. De modo que até mesmo dentro do saber científico, produtor dos guidelines,
há um forte questionamento médico atual sobre se o estímulo excessivo de hormônios

72
Essa referência é reiterada a todo momento, como quando um endocrinologista pediátrico do HZN2 me corrige
quando digo “intersexuais” ou “intersexualidade” para “DDS”, ou seja, esses “distúrbios do desenvolvimento
sexual” surgem nesses espaços passíveis de serem normalizados.
73
Termo biomédico atual para definir a condição das experiências transexuais.
77

androgênicos durante o período intrauterino, como nos casos de HAC, levariam a uma
virilização do cérebro e um consequente imprint cerebral do sexo-gênero reforçado neste
período (Jorge et al., 2008; Meyer-Bahlburg et al., 2008; Frisén et al., 2009; Nucci, 2010). Essa
regulação a priori à vida social entre genótipo, fenótipo e identidade de gênero é contestável
do ponto de vista dos discursos antiessencializantes, pois retira o caráter plástico do corpo
sexuado (ainda que fora dos registros hiperconstrutivistas moneyzianos), mas de todo modo é
interessante perceber a heterogeneidade de discursos e saberes produzidos biomedicamente
acerca das possibilidades de determinação sexual em casos de intersexualidade. Conforme
discorre a GEN1 sobre um caso que já acompanhou:

Eu vi um rapaz, ele era não perdedor de sal, e fez o diagnóstico na época


teoricamente precoce, fez o que se fazia na época, que todo mundo virava
menina mesmo e quando ele entrou na adolescência ele quis ser homem, então
ele parou de tomar o corticoide, virilizou, ele tinha muita barba. Ele não era
perdedor de sal, então ele podia ficar sem o remédio. Era meio arriscadinho,
mas podia. E aí assim, todo baixinho, porque eles ficam pequenos, mas todo
parrudão, barbudo, com uma namorada, mas... Sem nada embaixo. Talvez se
não tivessem operado. (...) [Mas o consenso pra esses casos de hiperplasia é
exatamente o sexo cromossômico.] Exatamente, o consenso pra hiperplasia é
esse. Só que assim, hoje em dia a gente ainda pensa se for muito virilizado, faz
uma reunião, vamos conversar, nessa época não, ainda prevalecia que se você
fizesse isso até os 5 anos, estava tudo bem. Então você podia operar, dar uma
boneca e pronto, você é uma menina.
Nesse cenário descrito, o voto ganho foi dos endocrinologistas em conjunto com a regra,
com o peso do modelo “consensual”, que ditaram as escolhas e gerenciamentos do caso. Se por
um lado parece fundamental notar que houve um avanço no cuidado e atenção médica, já que
décadas atrás, como na história citada acima, a norma era intervir precocemente sem discussão
crítica entre as especialidades e manter o ocultamento de informações para pais e paciente. Por
outro, modelos de intervenção cirúrgica ainda estão sendo seguidos precocemente, fechando
possibilidades futuras ao determinar marcas de gênero e integridades corporais específicas para
as crianças intersexuais. A controvérsia perde relevância em favor do protocolo. “Na verdade,
eu acho que a maioria das vezes as pessoas não pesam muito, fazem. Porque o consenso é esse
e pronto” (GEN1). Continuam a não conservar tempo para autonomia e autodeterminação das
pessoas intersexuais, mas apostar em supostas coerências funcionais e normalizadoras.
78

Para além das molecularidades e mediações científicas: a gênese diagnóstica na marca


“sexo-gênero-desejo”

Retornando um pouco às dinâmicas metodológicas do começo do capítulo, pretendo


abordar nesta seção as observações mais medulares da última circulação do trabalho de campo.
Colocar em pauta as descrições, as análises, os compromissos e os ruídos que atravessaram
esses seis meses de etnografia. Essas reflexões estão encadeadas com a comparação de três
casos atendidos no Hospital Zona Norte 2 (HZN2). Todos foram atendidos segundo
investigações etiológicas e clínicas similares. O primeiro caso tem o diagnóstico definido como
Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos (SIPA)74. Conforme já explicitei
anteriormente, a Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos é uma condição ligada ao
cromossomo X que afeta pessoas com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou parcial
do processo de virilização intrauterina devido à alteração funcional do receptor de andrógenos,
isto é, dos hormônios masculinos (Melo et al., 2005: 88). A recepção, neste caso, será parcial.
Os outros dois casos, até o final da etnografia, não tinham etiologias fechadas por serem casos
de pacientes vindas de outros estados, durante a adolescência, onde já tinham passado por
atendimentos e procedimentos anteriores. Dito isto, a aproximação que realizo ocorre a partir
das mesmas abordagens biomédicas, da similitude nos resultados clínicos e de uma mesma
possibilidade diagnóstica que é debatida entre os casos.

Na minha primeira ida ao HZN2, percorri muitos prédios e salas do hospital a procura
do ambulatório de endocrinologia. O espaço fica em um hospital de alta complexidade, com
muitos departamentos ambulatoriais, mas sem o atendimento de emergência. A endocrinologia
pediátrica funciona em dois turnos semanais, é uma grande sala dividida em várias repartições
– pequenas salas que servem de consultórios, outra área que se ajusta em arquivo para os
prontuários, um laboratório maior, e um espaço coletivo onde os médicos acessam
computadores, descansam entre suas consultas e, quando termina o horário de atendimento, os
residentes repassam alguns casos atendidos durante o dia com os professores. Neste primeiro
encontro, fui para acompanhar o atendimento do caso de intersexualidade que o ENDOPED1
havia me contado no HZN1.

74
A partir deste momento, me refiro ao longo do texto à “Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos”
pelo uso de sua sigla “SIPA”.
79

A mãe esperava na porta do departamento com uma prima dela, enquanto esta segurava
Ana Luisa, de 2 meses de idade no colo. Estavam aguardando a segunda consulta. Elas vieram
de Acari75 até o hospital pelo metrô, cotidiano que se repetiria ao longo desses meses, sempre
retornando em horário de pico da linha 2 – horário de vagões lotados com trabalhadores
regressando para suas casas após o fim do expediente –, já que o ambulatório terminava
usualmente entre 16 e 17 horas nas terças-feiras. A criança estava sem registro civil, no
prontuário do ambulatório era apenas identificada como “RN de Michelle”. A falta de registro
ocorria porque a mãe não tinha recebido a “declaração de nascido vivo” (DNV) do médico
responsável pelo parto, documento que identifica o recém-nascido provisoriamente. A
vinculação do número da DNV é obrigatória para que qualquer criança seja registrada
civilmente em cartório. Sua emissão é de responsabilidade do profissional de saúde que
acompanhou a gestação ou o parto do recém-nascido, de modo que se a variável “sexo” não for
preenchida, como na hipótese de um caso de “genitália ambígua”, impossibilita-se a produção
do registro civil. E foi o que ocorreu.

Michelle, durante o acompanhamento de sua gestação, não teve definição do sexo de


seu bebê. Nos ultrassons obstétricos que fazia, os especialistas discordavam entre a definição
de uma menina e de um menino. A última que realizou antes do parto, falaram que ela esperava
uma menina. Entretanto, quando a criança nasceu os pediatras anunciaram para a mãe que não
podiam designar um sexo para a criança, e prontamente encaminharam ela e o bebê para realizar
o cariótipo no HZN2. A família levou Ana Luisa, como a chamavam inicialmente, para o
hospital com 3 semanas de vida. Perdidas pelo hospital na procura do ambulatório de genética,
uma endocrinologista, nomeada como ENDOPED2, notou que o pedido encaminhado tinha
como finalidade a “descoberta” da definição sexual do bebê – terminou por assumir o caso e
conduziu a família para o ambulatório de endocrinologia pediátrica. Neste primeiro contato,
além do exame de cariótipo já solicitado, pediram uma bateria de exames hormonais e um
ultrassom pélvico.

No começo do capítulo comentei sobre a necessidade de mediação técnica da


biomedicina com o objetivo principal de evidenciar os sintomas da doença, mas também, e
consequentemente, como forma de relacionar e legitimar as incongruências anatômicas de uma
genitália cujos padrões normativos são fomentados pelo saber científico. Esse mapeamento

75
Os bairros, capitais e estados citados ao longo do capítulo foram trocados a fim de preservar a identidade e a
confidencialidade dos pacientes e de seus familiares.
80

ocorre através de imagens fotográficas, como quando ENDOPED1 fotografa a “genitália


ambígua” do bebê e me mostra, reproduzindo versões médicas sobre o corpo sexuado, e
imagens de tecnologias diagnósticas, como o ultrassom obstétrico. Em relação à essa tecnologia
específica, ela pode ser entendida como um marco na assistência terapêutica feita ao longo da
gravidez. A difusão e estabilização desse tipo de ultrassom pode ser explicada pelo efeito
material que tais imagens produzem, introduzindo precocemente os fetos no mundo da
linguagem – e do gênero, pois. A tecnologia antecipa “a existência social futura do bebê”
(Chazan, 2012: 178) dentro de modelos generificados já que, conforme Butler escreveu, “o bebê
se humaniza no momento em que a pergunta ‘menino ou menina?’ é respondida” (2008, 162).
Mas quando essa qualificação não acontece é preciso compreender as causas que
impossibilitaram a certeza imagética do sexo de se consolidar.

Por isso é interessante notar o fato de a investigação ser feita através das mesmas
mediações técnicas. O ultrassom obstétrico é incerto para a definição sexual do bebê de
Michelle, mas o ultrassom pélvico não. Ele irá verificar mais profundamente a “verdade” do
sexo ao traduzir a existência das gônadas, as quais auxiliarão na construção diagnóstica e
designação sexual da criança. Dentro desta racionalidade científica, as marcas corporais
precisam cada vez mais serem examinadas em suas minúcias imagéticas e moleculares. A ficção
do corpo desvelado intrinsecamente. Não obstante, como apontamos na história de
Marcos/Martha, essas mediações não são objetivas nem neutras. É vital que um especialista
decifre e interprete os significados inscritos na imagem, contudo, novamente, essas
decodificações também não são revelações, mas formas específicas de visualizar o corpo
sexuado – o “treinamento do olhar” biomédico.

Dois meses depois, quando conheci a família pela primeira vez, mãe e prima retornam
com Ana Luisa para receber a definição do sexo cromossômico. As duas são novas, a mãe tem
24 anos e a prima tem 19 anos. Elas moram na mesma rua, de modo que a prima sempre está
por perto e se prontifica para cuidar do bebê. Ao longo desses meses de consultas, cada vez
mais a prima assumia para si a responsabilidade do cuidado da criança.

Na primeira consulta no setor da endocrinologia pediátrica, o residente responsável pelo


caso realiza uma anamnese detalhada, onde pergunta e preenche dados do paciente, da família
e indica preliminarmente a “impressão diagnóstica” a ser desenvolvida. Constava no prontuário
do bebê: “Genitália Ambígua – DDS 46, XY – Insensibilidade Androgênica Parcial?”. Ou seja,
de um encaminhamento de “genitália ambígua”, resulta-se na confirmação do sexo
81

cromossômico como 46, XY (tipicamente masculino) e, portanto, no questionamento do tipo


de “distúrbio do desenvolvimento sexual” a ser investigado.

No exame físico de cada consulta, a genitália do bebê também é examinada. No primeiro


exame físico, media 2,1 centímetros, abaixo da média definida pelo Consenso, onde a medida
infantil para um norte americano do sexo masculino seria de 3,4 centímetros com desvio padrão
de 0,3 centímetros, ou seja, abrangendo um intervalo de normalidade entre 3,1 a 3,7 centímetros
(Lee et al., 2006: e490)76. No segundo exame físico, a genitália diminuiu ainda mais, a medida
foi de 1,5 centímetros. As gônadas estavam palpáveis bilateralmente, com cerca de 1 milímetro,
mas as saliências labioescrotais apareciam como pouco pragueadas e pigmentadas. Na escala
médica, considera-se tal genitália com um Prader III. No prontuário, entre as opções “pênis”,
“clitóris” ou “falus”, assinalaram a última opção na definição da genitália. Nas discussões
clínicas do caso, referiam-se como um DDS 46, XY com falus indeterminado/ambíguo. Logo,
para os médicos, se tratava de um menino pouquíssimo virilizado. Na sala de estudos, as
hipóteses formuladas eram de que o bebê não produzia hormônios androgênicos suficientes ou
que esses hormônios não agiam corretamente devido a problemas nos receptores.

Quando constataram por meio de exames hormonais que os níveis de testosterona e


dihidrotestosterona estavam nos padrões normais, perceberam que a falha estaria na recepção
hormonal. O bebê tinha pouca sensibilidade para a absorção de hormônios androgênicos, por
isso a baixa virilização. O próximo pulo científico seria identificar a causa do problema de
recepção, para isto precisariam realizar um sequenciamento genético, descobrindo a mutação
que alterou a capacidade do receptor de se sensibilizar aos andrógenos. Tentaram pedir esse
exame através de um pediatra do Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e
Diferenciação do Sexo (GIEDDS), no Hospital de Clínicas/UNICAMP, mas não conseguiram.
O procedimento não é simples, e possivelmente oneroso.

Logo, a mediação da dúvida sexual para a certeza diagnóstica teria que ser feita com
outro método. Agendaram uma reunião multidisciplinar para discussão do caso em conjunto
com especialistas da urologia cirúrgica e psicologia. No dia da reunião multidisciplinar,
ENDOPED1, ENDOPED2, a residente de endocrinologia pediátrica responsável pelo manejo
do caso, as duas psicólogas que acompanham o ambulatório durante às terças-feiras e eu, fomos
até o departamento de urologia para nos reunir com o chefe do ambulatório dessa especialidade.

76
No texto do Consenso, descrevem outras médias internacionais, variando desde 2, 9 ± 0,4 cm no Japão à 3,6 ±
0,4 cm na Índia.
82

Este profissional, o qual chamarei de CIRPED2, é bastante conceituado no meio médico pela
qualidade de suas técnicas cirúrgicas – mas também, como percebi ao longo da reunião, por
advogar pela não intervenção precoce em crianças intersexuais. Junto dele estava outro
profissional da urologia cirúrgica (o CIRPED1, do caso de Marcos/Martha no HZN1, que
também se colocou contra a cirurgia feminizante precoce naquela criança com HAC) e um
orientando de iniciação científica do chefe da urologia, ainda na graduação.

Após a exposição dos dados clínicos do caso, as psicólogas narraram as dificuldades da


família do bebê. Diferentemente do gerenciamento sociomédico da criança intersexual do
HZN1, em que ambos ENDOPED1 e CIRPED1 atendiam o caso, aqui a maior controvérsia não
pousava na falta de definição sexual do bebê. Em seus discursos, o que instigava e preocupava
os médicos era a constituição familiar precária. Como já identifiquei, a mãe era muito jovem,
com 24 anos – porém, já tinha 6 crianças, contando uma que faleceu com 1 ano de idade e o
bebê em questão. Aliada a essa visão de uma procriação prematura e em abundância, estavam
associados registros de escolaridade, de classe e, talvez, de cor77. Evidencio tais recortes porque
é fundamental situar essas famílias e crianças intersexuais dentro das dinâmicas de atendimento,
usualmente de caráter popular, do Sistema Único de Saúde.

Neste sentido, a família, negra, pobre, moradora de uma comunidade de Acari, também
se compõe por uma extensa parentela. Das 5 crianças vivas, 3 moram com Michelle, as outras
2 foram adotadas por outros parentes. No entanto, mesmo com muitas primas, tios e tias
participando dos cuidados, a situação econômica de Michelle é precária. Mãe e a prima sempre
apontavam para o fato de que tinham muita dificuldade de pagar as passagens de metrô para
irem às consultas, pois no início do atendimento eram praticamente semanais. A mãe também

77
É muito delicado falar sobre racismo no meio médico, mas descrevo uma cena institucional na tentativa de
ilustrar um pouco dessa polêmica dentro do âmbito nacional. A recente campanha, lançada dia 25 de novembro de
2014, pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para coibir o
racismo no atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), em que pedem sob o slogan “Não fique em silêncio.
Racismo faz mal à saúde. Denuncie, ligue 136!”, gerou um backlash do Conselho Federal de Medicina (CFM), o
qual classificou a própria campanha publicitária do governo como racista. O CFM afirmou em nota que na verdade
são problemas estruturais as causas do mau atendimento: “Financiamento limitado, fechamento de leitos, falta de
insumos e medicamentos, e ausência de uma política de recursos humanos. Na verdade, são essas as causas do
mau atendimento para a população no SUS, não importando questões de gênero, classe social ou etnia”. Por sua
vez, o Ministério apresentou a campanha com dados de pessoas atendidas no SUS e apontam que “60% da
mortalidade materna ocorre entre mulheres negras, contra 34% da mortalidade entre mães brancas; 56% das
gestantes negras e 55% das pardas afirmaram que realizaram menos consultas pré-natal do que as brancas; e a
orientação sobre amamentação só chegou a 62% das negras atendidas pelo SUS, enquanto que 78% das brancas
tiveram acesso a esse mesmo serviço.”
83

era usuária de drogas, informação obtida pela prima78, o que parecia comprometer em algum
nível sua atenção, pois tinha muitos bloqueios para se expressar e entender o que os médicos
comentavam ou perguntavam79, fato que aumentava a indisposição dos médicos frente ao que
percebiam como uma porosa estruturação familiar para o “bom crescimento psicossocial da
criança”.

Como citei anteriormente, a prima, Frankie, acompanhava a mãe nas consultas e exercia
o papel principal de cuidadora. Ela não deixava Michelle dar leite materno para Ana Luisa, com
medo da influência das drogas, então dava leite Ninho e suco de laranja para a criança. Os
médicos receitaram Nestogeno, um leite em pó mais enriquecido do que o Ninho, mas elas
argumentaram que não podiam pagar a diferença. Em meio às dúvidas lançadas em direção à
Michelle, Frankie continuava a tentar. Era percebida, aos olhos de todos, como uma espécie de
porto seguro para a criança e para a prima. Em algumas conversas que mantive com ela,
comentava sua procura por trabalhos e bicos a fim de conseguir pagar as idas para o hospital e
comprar roupas para o bebê. Em uma das consultas, conversava comigo sobre uma chupeta
(bem gasta) que tinha comprado para a criança, e como já tinha que repor por uma nova.

O limite da construção de uma discursividade encapsulada na “vulnerabilidade social”


da família, e que também polarizava concepções específicas sobre “bem estar” e “sofrimento”,
foi quando a mãe apareceu com uma barriga saliente em uma das consultas, aparentemente
grávida. Os comentários iniciais eram muitos, e chegavam ao desânimo sociomédico sobre a
possibilidade de ligação das trompas femininas somente com 25 anos de idade. Michelle estava
com 24 anos, nesta interpretação, ligar as trompas seria um meio de ajudá-la a não engravidar
descuidosamente e aumentar ainda mais as condições de “vulnerabilidade” em que se
encontravam. Por fim, quando Michelle abortou involuntariamente – parece que sim, não daria
para saber se as drogas, a falta de Pré Natal ou algum outro elemento contribuiu para essa perda
– a sensação na sala de estudos do HZN2 era de atenuação do drama familiar.

78
Frankie relatou essa informação para os médicos após uma das consultas de Ana Luisa. A prima disse que a mãe
usava cocaína e às vezes também maconha.
79
Em uma anamnese realizada pela psicóloga presente no ambulatório de endocrinologia pediátrica, a mãe citava
que durante a gravidez, quando brigava com o parceiro dela e pai do bebê, ameaçava tomar remédios e abortar a
criança. Ressalta o fato de que queria deixar seu parceiro “desesperado” para interromper a briga. Não se sabe até
que ponto a fala é factual, pois ela lembrava da situação muito confusa e aos risos, nem se existiria algum nível de
abuso psicológico ou físico desse parceiro com Michelle para justificar tais ameaças. Relata manter essas
advertências durante toda a gestação, mas que o aborto não era uma opção real – a prima escuta a história e diz
que teria “batido nela” se concretizasse o aborto. Enquanto isso, em meio às conversas da sala de consulta, segurava
e embalava a criança no colo.
84

Bem, agora um momento reflexivo para explicar meu posicionamento no campo: é


complicado descrever essas minúcias do caso e do atendimento, exatamente porque estava (e
talvez ainda esteja, aos olhos de pacientes) alinhada com a prática médica. Acompanhava
alguns atendimentos e ficava nas salas de estudos. Ouvia as discussões pós consultas,
conversava com os médicos sobre assuntos clínicos e casualidades, e participava das dinâmicas
locais internas à instituição hospitalar – circulava nos espaços dos médicos e com eles. Por mais
que meu compromisso ético se firmasse com as crianças e os movimentos políticos intersexuais,
durante a etnografia eu estava, de certo modo, compactuando com as abordagens
medicalizantes. Sem elas, não teria o que narrar. Minha relação com os familiares e as crianças
intersexuais era interpretada pelas conversas informais com os médicos e pelos prontuários,
foram poucas as situações que consegui acompanhar consultas em sua integralidade. Às vezes,
participava da anamnese. A exceção foi este caso. Acredito que devido às variáveis expostas,
indicando um recorte de acentuada vulnerabilidade e desigualdade social da família, tanto os
profissionais de saúde quanto a mãe e a prima permitiram meu acompanhamento mais imediato
nas dinâmicas de atendimento clínico. Os médicos não erguiam barreiras e a família parecia se
sentir mais acolhida com alguém que tentava equilibrar tais disparidades – segurava a bolsa do
bebê, lavava a chupeta, fazia cafuné na criança, conversava com a mãe e a prima, tentava agir
de um modo mais sensível para diminuir minha angústia em relação aos excessos e
apagamentos vividos pela família e pelo bebê. Se funcionou? Para a família, não sei, acredito
que eu não tenha sido um nó significante dentro do fluxo biomédico que seguiam, mas espero
ter amenizado os ruídos hospitalares, tão inquietantes. Para os médicos, não notei ser um
obstáculo crítico ou incômodo durante a etnografia, eles também não se importaram com meu
comportamento mais participativo neste caso; entretanto, não sei como minhas descrições e
análises (exposta aqui de maneira bastante incisiva) serão recebidas por eles.

Voltando ao relato do caso. Durante a reunião multidisciplinar foram decididas duas


direções de conduta. A primeira era relativa à definição sexual – precisavam se valer de qual
procedimento para atestar o sexo mais verídico? E, segundo, em vista de todo o drama familiar
exposto, tinham que decidir sobre quais seriam os gerenciamentos propriamente sociais do caso.
Os cirurgiões estavam receosos em operar sem um diagnóstico fechado, por isso assinalaram
que o primeiro passo seria comprovar a tese da Síndrome de Insensibilidade Parcial aos
Andrógenos. Com tal etiologia comprovada, poderiam garantir a viabilidade cirúrgica para
manutenção da funcionalidade da genitália masculina. Logo, os especialistas decidiram na
aplicação de um teste: injetariam uma ampola de 2 ml de testosterona durante três meses na
85

criança. Se houvesse estímulo fálico, isto é, se a genitália virilizasse, a tese da SIPA seria
comprovada e poderiam continuar com os procedimentos padrões para este diagnóstico. Por
último, em relação à estrutura familiar, todos concordaram que era necessário encaminhar a
família para o departamento do Serviço Social do hospital. Deveriam retornar na próxima
semana, tanto para a aplicação da primeira dose de testosterona quanto para a consulta com a
assistente social.

O CIRPED2 disponibilizou a caixinha de Deposteron através da farmácia do serviço de


atenção especializada para pacientes transexuais do hospital, contendo três ampolas de 2 ml
com 200 mg de cipionato de testosterona80 cada, exatamente para os três meses do teste de
virilização. A aplicação foi custosa para a médica responsável – o ENDOPED1 não estava neste
dia de ambulatório. O líquido da testosterona era oleoso, de tal forma que essa viscosidade
dificultou a aplicação imediata. O bebê chorava muito. Parecia doer bastante. Lembrei das
vacinas de benzetacil (um antibiótico da família das penicilinas), também de líquido oleoso e
aplicadas intramuscular, que magoavam a área dias depois da aplicação, mesmo em um adulto.
Em suma, não saberia precisar a prorrogação dessa dor, mas a coxa da criança certamente ficaria
dolorida por algumas horas. Foi Frankie, a prima, quem levou o bebê para a primeira aplicação.
Não tinham dinheiro para arcar com quatro passagens, contabilizando a ida e a volta, dela e da
Michelle, de modo que ela assumiu o compromisso. Juntava dinheiro para essa locomoção dos
serviços que arranjava e se sentia mais capaz para lidar com os manejos clínicos e com os
cuidados da criança.

As aplicações se repetiram durante os dois meses seguintes. Logo, se a injeção foi


penosa, quais seriam os desenvolvimentos da interação da testosterona (suas composições e
reações) com o corpo de um bebê de 3 meses de idade? Na bula do remédio, aponta-se os efeitos
colaterais: possibilidade de ginecomastia81; alterações cutâneas, como alopecia, seborreia e
acne; aumento da retenção de água, sódio, potássio, cálcio e fosfatos inorgânicos; náusea, dor
de cabeça, ansiedade e depressão; inflamação e dor no local da administração intramuscular.
Por fim, um aviso que alerta para o contrassenso desse manejo médico frente ao guideline
científico, cuja prioridade aparente é a preservação da funcionalidade gonadal – o tratamento

80
É um derivado sintético da testosterona, enquadra-se na classe dos hormônios esteróides com propriedades
androgênicas e anabólicas.
81
Condição que considera um crescimento atípico e, portanto, patológico, das glândulas mamárias e das mamas
masculinas.
86

com altas doses de testosterona (e qual é a dose correta para um recém-nascido?) pode reduzir
ou interromper a espermatogênese, como também pode agir na redução dos testículos.

Tal qual o paciente com HAC, não há garantia do pleno desenvolvimento funcional,
tanto em nível reprodutivo como sexual. Os estudos longitudinais são precários e pouco
conclusivos. Conforme informa um pediatra britânico justamente sobre o gerenciamento dos
casos de insensibilidade androgênica:

Suplementos androgênicos podem ser úteis na puberdade em pacientes com


resistência aos andrógenos, mas não são sempre necessários. Realiza-se
cirurgias entre o segundo e terceiro ano de vida para reparar hipospádias e trazer
testículos não descidos para as bolsas escrotais. Ginecomastia ocorre
ocasionalmente em adolescentes, e pode ser preciso mamoplastias redutoras.
(…) Entretanto, estudos com resultados desses procedimentos são poucos e
recortam um número pequeno de amostras. São necessários estudos com mais
pacientes envolvidos que usem modelos padronizados e válidos para a
mensuração da função sexual. (Hughes et al., 2012: 1425-1426)82
Por outro lado, o encaminhamento social dos médicos direcionou a família para o
Serviço Social. A conversa foi feita com Frankie, quem levou a criança outra vez para a
consulta. Ela segurava o bebê no colo enquanto a assistente social perguntava sobre a estrutura
familiar da casa de Michelle, sobre a parentela e qual a relação que tinham de suporte entre si,
sobre o papel do pai da criança no cuidado da mesma (e no convívio com Michelle e seus outros
filhos), enfim, perguntas que possibilitavam mapear certas condições de cuidado. Frankie
sempre segurava Ana Luisa no colo, limpando a baba ou ajeitando a roupinha dela, e respondia
aos questionamentos da assistente social. Em um determinado momento, ela devolve o
questionamento “vocês não vão tirar a criança da gente não, né?”. Ela faz a pergunta com
sofrimento. Parecia algo sufocado em seu peito, talvez desde as primeiras consultas e
atendimentos. Frankie dizia ter esse receio há um tempo, mas somente com a assistente social
efetivamente perguntando (mesmo com a intenção de mapear a trajetória de vulnerabilidade
daquela família) suas percepções sobre o atendimento clínico, ela foi capaz de vocalizar suas
noções sobre as explicações médicas, suas vontades e seus medos. Quando a assistente social
devolve que ela não poderia retirar Ana Luisa da família (uma resposta parcial, pois se a

82
No original: “Androgen supplementation might be needed at puberty in patients with androgen resistance, but
is not always necessary. Surgery is done during the second to third year of life to repair hypospadias and bring
undescended testes into the scrotum. Gynaecomastia often occurs in adolescence, and requires reduction
mammoplasty. (…) However, outcome studies are few and comprise small numbers. Studies with large sample
sizes that use standardised and validated measures of sexual function are needed”.
87

assistente social concluísse que tal situação familiar fosse prejudicial à criança, seria obrigada
profissionalmente a denunciar ao Juizado de Menores), Frankie fica visivelmente mais aliviada.

É relevante também notar suas observações sobre o manejo clínico e dos profissionais
de saúde. Quando questionada acerca do que entendia ser o problema da criança, Frankie disse
não saber muito bem. Entendia a dificuldade de estabelecer um sexo definitivo para a criança,
mas não entendia os motivos para a confusão. Disse não saber exatamente qual a condição
carregada pelo bebê, somente que os médicos falavam “umas coisas aí” de difícil memorização,
e que aceitariam a intervenção dada pelos profissionais, pois só queriam o melhor para Ana
Luisa.

Embora a prática do ocultamento de informações seja combatida na literatura médica


atual, como forma de redefinir a prática médica viciada pós John Money, ainda é arriscado
afirmar que a revelação sobre a condição da criança intersexual, os cuidados possíveis e a
participação parental no processo decisório sejam completas. Como bem disse Frankie ao
lembrar dos médicos discorrendo “umas coisas aí” sobre a dificuldade de determinação sexual
do bebê. O Consenso de Chicago estabeleceu desde 2006 que os manejos dos casos de
intersexualidade sejam feitos com uma terminologia supostamente não estigmatizante, como
DDS 46, XY, e cada vez mais descritiva, como Síndrome de Insensibilidade Parcial aos
Andrógenos. Entretanto, essas classificações não têm um significado particular (ainda mais
científico), cuja suposta neutralidade descritiva impulsionou a mudança no guideline, para
pessoas sem conhecimento biomédico83. Principalmente para familiares com recortes
específicos de vulnerabilidade social. Frankie estava mais interessada em conseguir um
trabalho para comprar roupas novas para o bebê do que entender as dinâmicas congênitas e
hormonais que levavam uma criança a se virilizar pouco e com isso ter seu sexo questionado,
debatido e escrutinado até a determinação sociomédica legítima.

Neste registro, no âmbito dos direitos sexuais, de acordo com María Elvira Díaz-
Benítez, o consentimento aparece como uma chave fundamental para se pensar as práticas

83
E conhecimento biomédico aprofundado, pois casos de intersexualidade são difíceis de serem diagnosticados e
gerenciados, como se pode notar pelas descrições dessas histórias. Os próprios residentes ficavam chateados ao
pegarem um caso de “DDS” para atendimento ambulatorial. Quando tinham que explicar o caso no grupo de
estudos após a ronda de atendimentos, faziam-no com muitas dúvidas e desgaste. ENDOPED1 sempre brincava
ao dizer que essas dúvidas seriam “questões de prova”, para a intensificação dessa espécie de cansaço entre os
residentes com os casos de intersexualidade.
88

sexuais contemporâneas, e porque não também as práticas biomédicas, já que inserida em uma
mesma racionalidade ocidental e moderna. Em seus termos:

Como dito anteriormente, o consentimento é o elemento central na definição da


licitude de uma relação sexual (Vigarello, 1998) e está diretamente relacionado
à categoria de sujeito contemporâneo, isto é, indivíduos com direitos
inalienáveis em uma concepção individualista da sociedade (Vianna e Lacerda,
2004). No debate jurídico contemporâneo, a noção de consentimento vincula-
se à definição dos direitos de crianças e adolescentes a respeito do exercício de
sua sexualidade. As crianças são vistas como sujeitos de direitos, e a violação
de seus direitos é percebida como um crime contra a humanidade (Faleiros e
Campos, 2000; Lowekron, 2012). Às crianças e adolescentes adjudica-se uma
condição de vulnerabilidade, isto é, a ideia de que à diferença das pessoas
adultas, eles não possuem maturidade nem psicológica nem física, questão que
se aplica para a sua sexualidade. Tendo como principal marco a aprovação da
Convenção sobre os Diretos da Criança pela Organização das Nações Unidas
(ONU), em 1989, as crianças passaram a ser entendidas como sujeitos de
direitos especiais, sujeitos que devem ser tutelados e protegidos pela sociedade,
a família e o Estado. (Ibid., 2012: 257-258)
Assim, as crianças intersexuais são tuteladas pelo Estado justamente porque gozam da
categoria de sujeitos de direitos, mas sujeitos de direitos especiais, visto que não podem
consentir. De todo modo, o grande problema não seria o paciente intersexual ou seus familiares
consentirem com o encaminhamento protocolar biomédico, mesmo ao inserirem e legitimarem
esses sujeitos no que chamo de processo de veridicção da intersexualidade. Pois como seria não
consentir? É necessário inserir o sujeito dentro dos regimes de “verdade”, e tais discursividades
banham-se em orientações normalizadoras do gênero. Portanto, o problema mais evidente seria
o privilégio do discurso biomédico sobre essas condições/vidas, uma vez que não tenciona suas
capacidades particulares de produção de tais verdades corporais.

As normas internacionais atuais se posicionam neste sentido, como aponta Paula


Sandrine Machado sobre os “Princípios de Yogyakarta”, documento produzido em 2007 com
objetivo de definir parâmetros sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos
em relação à orientação sexual e identidade de gênero.

Nesse documento, elaborado por um grupo de especialistas em direitos


humanos de 25 países, há um artigo que pode ser aplicado às cirurgias precoces
voltadas às crianças intersex. O item b, do princípio 18, “Proteção contra abusos
médicos”, estabelece que os Estados deverão: “Tomar todas as medidas
legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que
nenhuma criança tenha seu corpo alterado de forma irreversível por
procedimentos médicos, numa tentativa de impor uma identidade de gênero,
sem o pleno e livre consentimento da criança que esteja baseado em
informações confiáveis, de acordo com a idade e maturidade da criança e guiado
pelo princípio de que em todas as ações relacionadas a crianças, tem primazia o
melhor interesse da criança.” (Princípios de Yogyakarta, 2007: 25 apud
Machado, 2008a: 37).
89

Ainda em relação ao tema do consentimento, a antropóloga e bioeticista Katrina


Karkazis, que citei no capítulo anterior a respeito da controvérsia da nova terminologia do
Consenso de Chicago (e que a apoia, entendendo tal classificação como mais neutra e mais
suscetível à reivindicação de uma atenção médica standard), advoga com outras pesquisadoras
e especialistas do tema sobre a relutância médico-científica em praticar de fato um
“consentimento esclarecido”. Nos seus termos, o conceito se sustenta na noção de que os
pacientes (e seus substitutos legais, como pais e parentes) tem o direito à autodeterminação,
cuja validade se assenta no (re)conhecimento dos possíveis tratamentos e suas escolhas. Para
ela,

Médicos têm um dever correspondente de repassar aos pacientes informações


adequadas para garantir que eles possam realizar uma decisão informada sobre
suas opções de tratamento, incluindo a decisão de não se submeter a tratamento
nenhum. Uma confusão comum dentro e fora da medicina seria que
consentimento esclarecido consiste meramente em assinar um formulário de
consentimento (normalmente no dia marcado para a realização do
procedimento) depois de uma discussão apressada sobre os riscos e
encaminhamentos do tratamento (Jones, McCullough & Richman, 2005).
Contudo, consentimento verdadeiro e significativo é um processo de
comunicação contínua entre médicos e pacientes (Karkazis, Tamar-Mattis, &
Kon, 2010). Consentimento esclarecido requer que os médicos adotem medidas
para garantir que seus pacientes tenham entendido as implicações imediatas e a
longo prazo das intervenções médicas, como também apontar alternativas,
dando tempo para que esses pacientes pesem as informações e sejam capazes
de tomar decisões com o suporte dos profissionais de saúde sem coerção.
(Tamar-Mattis et al., 2013: 2)84
Um contraponto interessante à essa visão é do também citado Iain Morland (2008), ele
próprio intersexual, em que aponta uma crítica à posição acadêmica/ativista de consentimento
e atendimento “centrado no paciente”, pois tal percepção ainda apoiaria uma suposta noção
valorativa de interior/exterior. Onde a prática médica “corretiva” e “normalizadora” se propõe
a resolver os problemas do exterior, à genitália e anatomia ambíguas, enquanto os movimentos
sociais se prezam por uma interioridade pautada na experiência vivida e no embodiement. Na
verdade, para Morland essa distinção seria mais problemática, pois os dois lados não seriam

84
No original: “Physicians have a corresponding duty to give their patients adequate information to ensure they
can make an informed decision regarding their treatment choices, including the choice of no treatment. A common
misunderstanding within and outside medicine is that informed consent consists merely of signing a consent form
(often on the day of the scheduled treatment) after a cursory discussion of the procedure and its risks (Jones,
McCullough,&Richman, 2005). True and meaningful informed consent, however, is a process of communication
between the physician and the patient (Karkazis, Tamar-Mattis, & Kon, 2010). Informed consent thus requires
physicians to take steps to ensure that patients understand the immediate and long-term implications of medical
interventions and alternatives, have time to weigh these considerations, and are able to make decisions with the
support of health care providers and free from coercion”.
90

fixos e, em algum momento, estariam no outro polo do binômio. E além, em sua interpretação,
tal distinção ainda fomentaria um regime hierárquico do bom e do mau manejo dos intersexuais,
onde o principal seria simplesmente poder ou não decidir sobre atendimentos e intervenções
(uma concepção centrada no sujeito de direitos), e não questionando o próprio discurso da
necessidade biomédica e social de tratamento das pessoas intersexuais.

Mas de volta ao trecho citado, tal comprometimento ético e clínico em esclarecer todos
os passos da condição, das intervenções e das alternativas sociomédicas possíveis não me
pareceu ser contemplada neste caso, acredito que por toda a construção e mediação da família
como “vulnerável socialmente”. Os profissionais de saúde pareciam completamente iluminados
pelo modelo tradicional de autoridade médica e, à vista disto, detinham um aval aparentemente
incontestável de gerir o diagnóstico e indicar os encaminhamentos possíveis. Talvez só tenha
visto esse tipo de interação mais horizontal no próximo caso que irei narrar, de uma jovem
adolescente com SIPA, cuja identidade de gênero feminina e orientação sexual heterossexual
formadas ensinam muito sobre quais roteiros de sofrimento são reconhecidos pelo saber-poder
biomédico.

Dito isto, para além da constituição de um quadro de vulnerabilidade incorporada às


vivências intersexuais, especialmente neste caso, também há, nestas dinâmicas de
gerenciamento e veridicção da intersexualidade, a construção de uma “carreira moral” de
sofrimento travestida em um discurso de “bem estar” biomédico. Parece haver uma dificuldade,
de fundo sociocultural, em aceitar certos roteiros de sofrimento – e justificar esses apagamentos
com intervenções clínicas e cirúrgicas. A própria concepção de “saúde” e de “bem estar”
estariam ligadas a uma ideia de “qualidade de vida” que não é verbalizada em nenhum
momento, mas que serve de modelo para as condutas biomédicas.

Para o médico e bioético Kenneth Rochel de Camargo Jr, categorias como sofrimento,
vida, doença e saúde não são conceituadas ou definidas pelo saber biomédico, elas existem
somente no “terreno da metafísica”. Materializam-se na prática como categorias relacionais a
fim de conformarem e consolidarem a racionalidade biomédica – e o seu fim prático: a clínica.
Mais além, ele indica que a medicina parte do sofrimento, tanto historicamente quanto em cada
consulta, para a busca da doença. Mas que tal processo é atravessado por outros aspectos não
clínicos, mas de cunho subjetivo e cultural, que de certo modo contradizem o esperado
distanciamento e objetivação biomédica necessárias para a análise das doenças. Em seus
termos:
91

Uma contradição fundamental se destaca para o propósito desta argumentação:


para o paciente, a experiência da doença (sofrimento) é um fato concreto,
incapacitante de uma forma que transcende sua capacidade de autocuidado,
tornando necessária a intervenção do especialista. Para o médico, o sofrimento
é irrelevante, e o paciente, fonte de distorções. Sua relação se dá com a doença,
e o paciente é um mero canal de acesso a ela. Um canal muito ruim, por sinal,
já que introduz "ruídos" em níveis insuportáveis. (...) Assim, para o médico, a
única realidade concreta é a da doença, expressão da lesão. O esquema
referencial das doenças é, no entanto, mera classificação, artifício criado para
enquadrar os fenômenos do processo saúde-doença. Ao esquecer isso, o médico
passa a sobrevalorizar o artifício em detrimento do paciente, apagando seu
sofrimento. É interessante notar que o médico, apesar de procurar sempre se
colocar no polo objetivo desse confronto, não está imune, ele mesmo, às
contradições da subjetividade, uma vez que seu raciocínio está sujeito ao crivo
de sua experiência, instância de ressituação do conhecimento "objetivo" na sua
práxis. (1992: 206, grifo no original)
Neste sentido, as dinâmicas hospitalares do caso (e de muitos outros casos de
intersexualidade) imprimem um atrito entre a experiência da práxis médica – do conhecimento
“objetivo”, restrito e controverso, porém, atravessado por orientações particulares das
subjetividades de cada profissional de saúde – e a experiência do par “sofrimento/bem estar”
que o paciente e seus familiares vivenciam nesses contextos de cuidado e de intervenção
sociomédica. No fim, entre os produtos de tal atrito, podemos identificar o problema dos
direitos (sexuais e humanos) ao consentimento de fato esclarecido e, um passo antes, das
próprias necessidades dessas justificativas e procedimentos.

Retornando ao caso em questão, enfim, com o teste de testosterona produzindo efeito, a


criança virilizou. De vestidos, saias, roupas rosas e roxas, no dia da segunda aplicação, a prima
levou a criança de vestido amarelo e contou que não a chamava mais de “Ana”, agora era
somente “bebê”. No dia da terceira e última aplicação, tamanha era a virilização da genitália e
dos traços da criança que a família se convenceu de que era um menino e modificou o nome
para Wagner Luís. Com o mesmo nome do pai – cuja ausência se explica pelo fato de que não
acompanhava as consultas, compareceu apenas na última, a que confirmariam a definição
sexual da criança – a criança poderia, finalmente, receber alta.

Sendo assim, o bebê já com 6 meses de idade, virilizado, ajustado ao código de roupas,
cor e gramáticas masculinas, estava pronto para ser registrado. Depois da definição clínica no
sexo masculino, realizaram o registro civil no nome de sua mãe, Michelle, e de seu pai, Wagner
– a prima, Frankie, também estava presente nesta última consulta na endocrinologia pediátrica.
Por fim, encaminharam-no à urologia cirúrgica, o objetivo lá será de “corrigir” cosmeticamente
a genitália da criança a fim de adequá-la aos padrões masculinos hegemônicos. Resta saber,
92

conforme afirmou uma das psicólogas do ambulatório, em comunicação pessoal, se Wagner


Luís irá se apropriar da identidade sexual que lhe foi atribuída.

O segundo e terceiro caso serão breves, pois acompanhei pouco do atendimento dessas
duas jovens. Suas histórias servem mais para ilustrar outras trajetórias de resultados clínicos e
investigações diagnósticas similares; e, quem sabe, como forma de comparar práticas, falas e
ajustes que foram feitos de modo distinto ao caso do bebê Ana Luisa/Wagner Luís.

De um lado, temos a história de Carla. Com 18 anos de idade, ela apareceu no


ambulatório de endocrinologia pediátrica do HZN2 com a tia, as duas foram encaminhadas para
o departamento pela urologia cirúrgica. Nascida no interior do Maranhão, Carla tinha um
namorado de anos, por quem era muito apaixonada. Conta que ele tentava aprofundar a relação
e ela não cedia, por medo. O namorado não entendia o motivo de tanto bloqueio. Ele pensou
que selar seu compromisso e seriedade com a relação fosse assegurar o comprometimento
sexual dela, então a pediu em casamento. Ela, com 16 anos na época, se desesperou. Termina
com o namorado, cuja insistência se mantinha mesmo com o término e afastamento de Carla.
Sem saída, considerou se suicidar em vários momentos. Não sabia resolver o conflito, suas
angústias não eram verbalizadas em casa. A mãe sempre em silêncio, como se escondesse um
segredo. Um dia acumulou coragem e contou para a tia, moradora do Bairro de Fátima no Rio
de Janeiro, sua história. Até o momento não tinha menstruado, e mais, não possuía uma vagina
– fato que a incomodava e angustiava muito. Não sabia os motivos nem como resolver sua
condição.

Antes de continuar a descrição da história de Carla, uma observação. O segredo e o


silêncio são dimensões importantes nesses casos. Como vimos nos capítulos anteriores dos
gerenciamentos médicos da intersexualidade, o profissional de saúde estava inserido em uma
norma em que devia ocultar informações para os familiares ou jovens intersexuais,
posteriormente assume uma posição de encorajar o encobrimento por parte dos familiares de
certos aspectos do diagnóstico e da condição da criança/jovem intersexual. O consentimento
esclarecido e o revelamento integral das questões clínicas e sociais envolvendo a
intersexualidade ainda não são posicionamentos padrões nos atendimentos, mesmo com os
93

novos guidelines apoiando mudanças de manejo neste sentido. Em vista disto, a dificuldade de
incorporar tais mudanças nos atendimentos se deve ao fato de que outros marcadores sociais
da diferença, como a construção da vulnerabilidade social no caso de Ana Luisa/Wagner Luís
através de fatores como escolaridade, classe e raça/cor, são acionados na construção e
administração dos casos. De modo que os pais dessas crianças e jovens intersexuais também
partilham de códigos similares de conduta social, ou talvez incorporem essas posições
biomédicas na medida em que são atendidos nesses espaços hospitalares, pois também tendem
a gerenciar os segredos, as vergonhas e os estigmas (Sedgwick, 2007) que as experiências
intersexuais de seus filhos e filhas mobilizam socialmente. O lugar do segredo dessas
experiências imprime um mecanismo de constrangimento mais dramático do que a
homossexualidade “no armário” analisada por Sedgwick. As regulações dos privilégios de
visibilidade e das hegemonias de valores não é apenas para guardar um desejo, mas a
invisibilidade total de um corpo sexuado – pelo menos até que ele seja normalizado.

Retornando à história. A tia traz Carla do Maranhão até o Rio de Janeiro para morar
com ela e juntas começam a investigar as possíveis explicações para o que acontecia com o
corpo da sobrinha. Assim, Carla inicia seu atendimento médico em um hospital no Centro da
cidade. Lá realizam o exame citogenético para definição do cariótipo, que confirma o sexo
cromossômico de 46, XY. No prontuário, descrevem a impressão diagnóstica, “DDS 46, XY”,
a mesma identificação do caso Ana Luisa/Wagner Luís. Não fica absolutamente claro o
diagnóstico feito pela equipe médica anterior à chegada no Rio e no HZN2, e por tudo o que
discorri sobre as particularidades do gerenciamento sociomédico de casos de intersexualidade
é compreensível Carla não lembrar da etiologia específica. Contudo, pelo histórico dos exames
realizados, pelos relatos dela e da tia, e pela definição do sexo cromossômico, a condição
também parece ser a mesma: Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos85. Caso fosse
completa, sua genitália não seria ambígua. Logo, no resultado da ressonância magnética
pélvica, com contraste, os especialistas notaram duas formações ovaladas medindo cerca de 3,5
centímetros e localizadas nos canais inguinais, isto é, eram testículos não descidos. Observaram

85
Tanto Carla quanto Fabiane (a próxima história a ser narrada), não possuem definições exatas de suas etiologias.
Os profissionais de saúde do HZN2 não tiveram acesso aos relatos e dados médicos de seus locais de origem.
Dessa forma, aproximo as etiologias dos três casos narrados não como diagnósticos “originais” ou “oficiais”, pois
não há como validar nos prontuários antigos, mas como uma investigação diagnóstica que foi realizada atualmente
segundo os mesmos critérios e resultados indicativos da SIPA: de genitália ambígua, definição do sexo
cromossômico (46, XY), imagens de ultrassom e níveis hormonais. As variações moleculares para localização
exata da condição de cada um só poderiam ser achadas com exames mais detalhados, como a tentativa da equipe
de realizar um sequenciamento genético de Ana Luisa/Wagner Luís que não foi para frente.
94

também estrutura peniana de dimensões reduzidas, e não perceberam evidências de útero e de


ovários.

Neste hospital, Carla realiza duas cirurgias, a primeira, em 2012, para a retirada das
gônadas masculinas, e a segunda, em 2013, para a “feminização” de sua genitália e construção
de uma “neovagina”. Na anamnese feita durante a consulta na endocrinologia pediátrica do
HZN2, ela relata com abatimento e certa animosidade a maneira com que foi tratada nesse outro
hospital. A lógica era de espetacularização do corpo ambíguo, com cenas de observação e
discussão das especificidades do caso na frente da paciente – no estilo mais dramático das séries
médicas estadunidenses. A tia complementa o relato da sobrinha: “foi tão impactante [esse tipo
de comportamento médico], acho que ficamos prontas para qualquer coisa”. Tal crítica faz eco
sobre o que já discorremos acerca do “treinamento do olhar” e da reprodução deste habitus a
partir da experiência da prática médica e das mediações científicas. Contudo, a reprodução do
saber biomédico ainda esbarra, regularmente ou ocasionalmente, dependendo dos contextos de
análise, nesses limites de consentimento não esclarecido e de violações psicossociais e
integridades corporais.

Deste modo, Carla chega ao HZN2 já operada, mas com resultados cosméticos e
funcionais insuficientes. Usava constantemente um dilatador vaginal para manter a pouca
profundidade construída em sua vagina. Tal objeto é um cilindro plástico, ou de outro material,
cujo objetivo é dilatar e estender o canal vaginal. Serve como recomendação médica posterior
à realização de cirurgias de vaginoplastia a fim de não diminuir e fechar o canal vaginal
operado. Seu uso é bastante incômodo, pois dependendo do comprimento e diâmetro do
dilatador, se assemelharia ao uso de um dildo/vibrador ou de um pênis. Logo, o esforço do seu
uso contínuo torna-se uma marca material efetiva na ilustração da “carreira corporal”86 que tal
caso expressa.

Outro encaminhamento posterior às operações foi o uso do anticoncepcional Diane 35,


que Carla tomava de maneira irregular. Por conseguinte, com a retirada das gônadas masculinas
e o uso do medicamento com estrogênio e progesterona sintética, seu corpo feminizou ainda
mais. No prontuário, os médicos indicaram M3 para o estágio do desenvolvimento dos seus
seios, logo, consideraram um aumento da mama e da aréola, mas sem separação de seus

86
Agradeço à María Elvira pela expressão, inspirada tanto em Goffman quanto em Foucault, que abarcando
práticas como as descritas acima, de dilatação e (re)construção de vaginas, caracteriza tais práticas como uma
forma de suplício atualizado na construção cotidiana do self e do gênero.
95

contornos87. Em relação à genitália, tratavam no laudo médico como “falus


indeterminado/ambíguo”, com 2,5 centímetros de comprimento e fusão parcial das saliências
labioescrotais. Mesmo com a cirurgia feita no hospital do Centro, os médicos concluíram que
tais traços e medidas representavam um Prader III – sendo possivelmente um Prader IV pré
cirúrgico. Em suas observações pós consultas, os resultados não eram satisfatórios técnica e
esteticamente para uma paciente cuja identidade de gênero era tão reiteradamente feminina.

A narrativa de sofrimento da história com o namorado, onde não era possível a


consumação sexual de seu amor, pois faltava a anatomia coerente à sua identificação de gênero,
aliada ao vigoroso empenho em efetivar sua normalização corporal, representada pelo esforço
do uso contínuo do dilatador vaginal – o qual só retirava para tomar banho e ir ao banheiro, e
tão rápido acabasse com sua higiene, já recolocava novamente – moldava a certeza do
encaminhamento clínico e cirúrgico possível tão necessário aos profissionais de saúde. A
trajetória biográfica de Carla materializava as ficções e os tipos ideais normalizados da
feminilidade. Ao enumerar para a psicóloga que quer 1) não ter clitóris grande, 2) não usar mais
o “molde” (dilatador) e 3) a construção de uma vagina esteticamente perfeita, Carla assumia,
mesmo sem saber, os efeitos e as regulações dos gêneros inteligíveis biomedicamente. Como
apontou Bento (2006) em relação às experiências transexuais, a narração da história de vida é
uma interpretação que está relacionalmente ligada ao ambiente em que é evocada, portanto, ao
contexto hospitalar (Ibid.: 168). Logo, caracterizar a vagina que gostaria de ter, tomando para
si esse modelo hegemônico de feminilidade, sem excessos ou ambiguidades, consolidava Carla
nos roteiros de vida generificados normativamente, tal como sustentam também os saberes e as
práticas biomédicas.

A conclusão da história de Carla, até o fim de minha etnografia, foi o aval da psicologia
para encaminhamento cirúrgico. A vaginoplastia para aprofundamento do canal vaginal seria
realizada com a garantia de uma “trajetória de normalização” (Machado, 2008a) congruente às
áreas cinzentas dos guidelines, em que se atende com o compromisso da funcionalidade
heterossexual. Não havia imprecisões. A endocrinologia pediátrica receitou a manutenção do
uso de Diane 35 continuamente para refinar a feminização dos caracteres secundários. Em

87
O termo “M3” se insere dentro de um método, proposto por um médico inglês chamado J. M. Tanner, para
identificar os estágios de maturação sexual. As mamas seriam avaliadas quanto ao seu tamanho, forma e
características e definidas em uma tabela que vai do “M1”, estágio infantil e pré púbere, até o “M5”, estágio adulto
e pós púbere. Esta identificação de maturação sexual é realizada em conjunto à análise dos pelos pubianos, cuja
tabela de desenvolvimento sexual também é similar ao das mamas, indo de “P1” à “P5”. O diagnóstico, portanto,
é conjunto. No caso de Carla, o prontuário médico indica “M3P4”.
96

suma, ela era o exemplo da plasticidade de gênero levado ao limite moneyziano, pois mesmo
com todos os “obstáculos” de seu sexo cromossômico, o sexo de criação feminino prevaleceu.
O trabalho dos profissionais de saúde era efetivamente inseri-la, através das cirurgias
“corretivas”, dentro da anatomia feminina coerente à sua identidade de gênero e, com isso,
cessar o sofrimento (e o estigma) da incerteza sexual que Carla carregava.

De outro lado, temos a história de Fabiane. Assim como Carla, ela também vem de outro
estado para atendimento. Natural de Rondônia, ou como gostava de apontar, de sua capital,
Porto Velho. Ela chega ao ambulatório de endocrinologia pediátrica do HZN2 com o pai,
através de um encaminhamento do Programa de Tratamento Fora do Domicílio (TFD), e
anuncia em sua primeira consulta: “eu queria ter uma vagina normal”.

Fabiane nasceu com “genitália ambígua”, foi registrada com sexo social feminino,
porém, desde os 3 meses de idade, cita que sua mãe notava um aumento de sua genitália.
Contudo, discorre que somente aos 13 anos foi levada ao médico88, quando iniciou
acompanhamento hospitalar para investigar sua condição. Nesta época realizaram o exame de
cariótipo e identificaram que o sexo cromossômico de Fabiane era 46, XY. Imagens de
ultrassom também constataram a inexistência de útero e ovários. Mas nada foi feito então.
Posteriormente, durante a adolescência, Fabiane foi encaminhada para o Rio de Janeiro. Em
2013, foi submetida à uma biópsia gonadal no Hospital Zona Sul (HZS), quando os especialistas
que a operaram encontraram testículos não desenvolvidos, por se tratar de uma jovem de 16
anos, logicamente decidiram pela remoção das gônadas. Em paralelo, iniciaram uma
hormonoterapia para feminização de seu corpo com doses progressivas de hormônios, a qual
foi concluída por atingir a marca “M5P5” de maturação sexual, isto é, de desenvolvimento total
mamário e de pelos pubianos. Também neste outro hospital, foi submetida a uma clitoroplastia
para diminuição de seu falus e confecção de pequenos lábios. Somente no segundo semestre de
2014, Fabiane é transferida para o HZN2.

88
Algumas hipóteses explicativas para esse fato: pelas informações da anamnese e dos prontuários disponíveis,
não se sabe nada além sobre as dinâmicas familiares que antecederam essa primeira ida (tardia do ponto de vista
biomédico, pois já se encontrava, assim como Carla, na adolescência) ao hospital. Por que Fabiane e Carla não
foram quando recém nascidas ou crianças ao hospital? Parece haver uma maior gestão do silêncio e do segredo
por parte dessas famílias. Talvez por ambas se encontrarem em recortes regionais onde se é mais difícil falar sobre
e buscar atendimento para casos de intersexualidade. Ou talvez pela falta de estrutura biomédica dessas localidades
em perceber e gerenciar tais condições, o que submete ainda mais essas famílias às situações de encobrimento de
estigmas.
97

Encaminharam-na para a realização de uma vaginoplastia, ou seja, assim como Carla,


para a construção de um canal vaginal aprofundado. Mas diferentemente desta, os relatos de
Fabiane durante a anamnese apresentaram ruídos para a equipe de especialistas. Sua história
impossibilitava a construção direta de certezas e coerências clínicas a fim de assegurarem os
procedimentos cirúrgicos. Somente sua autodeterminação ao dizer “eu queria ter uma vagina
normal”, não era suficiente para a expertise médica.

Identifico, a partir dos relatos médicos informais e das anotações nos prontuários, que
tal mudança de conduta é localizada na falta de reiteração, por parte de Fabiane, de
características e qualidades inseridas nos roteiros tipos ideias femininos, e que transbordavam
nos relatos de Carla. Primeiro, Fabiane identificava-se como homossexual. Sua orientação
sexual já inviabilizava, na percepção médica, um procedimento cirúrgico realizado para o
desenvolvimento funcional, tanto reprodutivo como sexual, de uma lógica heteronormativa.
Quando contou do seu desejo de aprofundar seu canal vaginal, ENDOPED1 narra depois, na
sala de estudos do ambulatório, que precisou explicar para ela que um canal vaginal maior era
necessário ao sexo heterossexual, com penetração de pênis, e não ao sexo homossexual. Nesse
momento fiquei um pouco assustada pensando em como será que entendem o sexo lésbico. Ou
além, mesmo sem argumentar em favor de um ou outro tipo de prática sexual, que a
encorajassem – assim como admiraram no discurso de Carla – a desenvolver sua própria
autonomia sexual.

Essas mudanças no manejo clínico de um mesmo diagnóstico enfatizam nuances


biomédicas, nada sutis, das construções de humanidades e de corpos sexuados segundo regimes
de verdade específicas. A eficiência clínica e terapêutica, como dizia Georges Canguilhem, são
inseparáveis. Em seus termos, “a clínica é inseparável da terapêutica e a terapêutica é uma
técnica de instauração ou de restauração do normal, cujo fim escapou à jurisdição do saber
objetivo, pois é a satisfação subjetiva de saber que uma norma está instaurada” (Ibid., 2009:
185). Neste sentido, a homossexualidade produziria menos eficácia no processo de construção
diagnóstica, pois seria uma orientação sexual – assim como toda a concepção de
intersexualidade pelo saber biomédico – não usual, ilógica e, no limiar, anormal.

Então por mais que Fabiane verbalize uma biografia de si onde identifique-se como
mulher, na percepção do discurso médico hegemônico algumas fissuras se formam na narrativa
em relação à utilidade daquele procedimento cirúrgico visto sua orientação sexual e, no limite,
com questionamentos à validade de sua identidade de gênero posto que suas performances eram
mais masculinas. Quando Fabiane conta para os especialistas sua história de vida, as psicólogas
98

apontam conflitos com sua mãe que escapam à narração – parece que a mãe podava a expressão
de gênero, mais masculina, de Fabiane, tentando adequá-la a padrões de uma normalidade
feminina.

Na visão das profissionais de saúde, mesmo afirmando sua identidade de gênero


feminina, Fabiane lembra sobre uma época muito feliz em que morou com o pai e a madrasta,
e podia vestir o que quisesse – uns “bermudões e chinelos de homem”. E quando voltou a morar
com a mãe, durante a adolescência, comenta das brigas com ela, que tentava acabar com seu
jeito aparentemente mais masculino. Nas palavras da jovem, a mãe não permitia que Fabiane
usasse nada que a fizesse parecer uma “sapata”. Também não aceitava a orientação sexual da
filha. Mas no decorrer da narração, vislumbra-se uma mudança na atitude materna. Quando
Fabiane veio ao Rio de Janeiro para a investigação médica, conta que a mãe deu de presente
um “chinelo de homem”, e ela mal acreditou. A mãe parecia incorporar, com conflitos e
vagarosamente, as escolhas feitas por Fabiane. Mas essa construção de sua trajetória de vida
não era suficiente para os profissionais de saúde, pois essas reflexões de si ficcionalizam uma
“verdade” do sexo nos olhos dos especialistas e caso apresente qualquer ruído em relação à
norma, ao tipo ideal esperado, a legitimidade da certeza diagnóstica e de intervenção não se
produz.

As psicólogas que a atenderam tinham como objetivo a produção de um laudo médico


atestando a veracidade da produção de verdade de Fabiane, isto é, com este laudo as psicólogas
autenticariam a história e a possibilidade de intervenção cirúrgica. Sem o aval da psicologia,
Fabiane não faria o procedimento. Neste caso se estabelece uma inversão das especialidades
com responsabilidade de gerenciamento e veridicção da intersexualidade, mas não só a
psicologia tinha o poder de verificar a conformidade sexual da paciente. Fabiane estava em uma
consulta, enquanto observava as rondas residenciais na sala de estudos, quando ENDOPED2
comenta que ela era “muito masculina”. Fabiane usava as mesmas roupas que eu sempre usava
para ir ao hospital: jeans, camiseta e tênis all star – e também Carla, por sinal, quando participei
de sua primeira anamnese no ambulatório. Mas, desta vez, a aparência básica só evidenciava o
ruído dos lugares desviantes de sua história, presumida como uma falta de cuidado não
feminina. Quando ENDOPED1, na ocasião em que retorna da consulta, comenta achar Fabiane
feminina, ENDOPED2 rebate: “é porque ele não bate muito bem”. Gostar de chinelos
masculinos, bermudões, não ser vaidosa e ter orientação sexual homossexual eram indícios,
para aqueles médicos, de que algo estava errado com o seu diagnóstico.
99

No momento em que Fabiane confessa, em meio às explicações hegemônicas de


ENDOPED1, não descartar a possibilidade de namorar homens também, uma faísca de
esperança e desespero ilumina o ambulatório de endocrinologia pediátrica. Esperança porquê
de tal forma se assegura a coerência diagnóstica, com a manutenção da funcionalidade
reprodutiva e sexual heteronormativas – exemplificada na cena de ENDOPED2 afirmando ser
“muito importante abrir essa possibilidade” futura de sexo heterossexual. Neste registro, o
procedimento cirúrgico seria aceito prontamente, como foi com Carla. Contudo, também há
desespero, porque se existe um conflito com a identidade de gênero de Fabiane, como as
psicólogas suspeitam, ela nunca conseguirá ser um homem funcional – pois teve seus testículos
retirados e cirurgias feminizantes realizadas.

A saída pensada pela equipe médica foi, por enquanto, não autorizar o procedimento
cirúrgico. Fabiane teria que ir, a contragosto, de volta para Rondônia e lá se submeter a um
acompanhamento psiquiátrico para validar seu pertencimento na identidade de gênero feminina.
De modo distinto às decisões médicas no caso de Ana Luisa/Wagner Luís e Carla, onde o
primeiro, uma criança recém nascida, não tinha autonomia de decisão/negociação sobre seus
encaminhamentos biomédicos, e a segunda, convergia seus relatos de vida com os roteiros
ficcionais de gênero e de sofrimento legitimados pelos profissionais de saúde, Fabiane era um
ponto fora da curva. Sua autodeterminação não tinha legitimidade, pois sua trajetória de vida
produzia mais fissuras do que era esperado e desejável para um caso de intersexualidade.
Tornando-se praticamente uma paciente do processo transexualizador, ela só poderia ganhar o
direito de modificar seu corpo com o laudo médico depois de dois anos de atendimento – e
durante esse tempo de prolongamento do sofrimento, pois não há consentimento de sua escolha
inicial, não podemos prever como os conflitos de certeza e incerteza irão se destrinchar.

Depois de tudo, fica patente que o direito sexual de integridade corporal e de uso do
próprio corpo – segundo garantias de autonomia e de autodeterminação dentro de concepções
dos Direitos Humanos – são negadas quando aspectos particulares do sexo/gênero e da
sexualidade desviam da norma. Quais os limites do consentimento nesses casos?
Aparentemente não tão distantes. Na clínica, a experiência subjetiva do profissional, mais até
do que a expertise clínica, que contará como modulador de diagnóstico e intervenção dos casos.
Logo, se a discursividade biomédica percebe um determinado paciente dentro de marcas
produtoras de vulnerabilidade social ou se a trajetória de vida de outro paciente reverbere ruídos
que fragmentem a coerência diagnóstica, o consentimento e, consequentemente, a intervenção
100

clínica serão assumidas pela equipe de profissionais de saúde para garantir a restituição de
saúde/normalidade de tal pessoa.

Portanto, para além das molecularidades e das classificações cada vez mais descritivas
do saber científico, é na marca “sexo-gênero-desejo” anunciada por Butler (2008) que
regulações, incitações e silenciamentos de corpos acontecem. Essas marcas atravessam
concepções normalizadas, então culturalmente instituídas, das realidades do que podem ser
homens e mulheres. Nessas interpretações da biomedicina, pedir uma vagina mais profunda não
se resume a uma escolha íntima de alguém, mas se relaciona a processos em que a própria
intimidade é governada e (des)construída. A tentativa biomédica de veridicção do corpo
humano sexuado estão nessas narrativas, nas quais pessoas estranhas aos registros necessários
e possíveis terminam com duas opções essencialistas: aceitarem os encaminhamentos
biomédicos normalizantes ou continuarem com os suplícios da “incoerência” intersexual.
Contudo, como notamos pelos relatos, a experiência da intersexualidade não se resume às duas
opções, assim como tal processo de gerenciamento e veridicção não está isento de fugas,
manipulações ou reorganizações por parte das pessoas intersexuais.

Em consequência do que foi descrito anteriormente e dessas três histórias, podemos


dizer que produzir uma verdade sobre o sexo segundo repetições de ficções reguladoras é uma
estratégica antiga do biopoder. Como vimos nas memórias de Herculine Barbin, a estabilização
de suas ambiguidades passava pela incorporação de modos de ser generificados segundo sua
época, e a aparência e a confissão eram dois artifícios fundamentais desta veridicção do sexo
socialmente. Atualizadas contemporaneamente, como bem discutiu Bento (2006) acerca das
manipulações ficcionais do corpo/experiência transexual, a estética é uma variável significativa
de negociação com a equipe médica, pois atua como um indicador de níveis de masculinidade
e de feminilidade (Ibid.: 163). Mais além, essas apresentações do gênero precisam ser reiteradas
com roteiros coerentes de histórias de vida. A consulta psicológica/psiquiátrica se recicla como
uma nova forma de confissão, onde as jovens intersexuais têm que saber jogar, ou seja,
necessitam expor suas histórias apontando a “longevidade dos conflitos” de suas identidades de
gênero com suas anatomias – e as roupas, os jeitos, as relações, as memórias e as falas, todas
contam para essa produção biomédica de certezas e coerências sobre o sexo.
101

Algumas notas sobre desconfortos e normalizações em duas experiências 47, XXY

Ao longo do capítulo vimos como os protocolos de intersexualidade justificam, em


nome da manutenção das funcionalidades reprodutivas e sexuais, as intervenções clínicas e
cirúrgicas precocemente em crianças intersexuais. Também notamos que tais justificativas
estão, em grande parte dos casos atendidos, claramente distantes das normas da “urgência
biológica”, mas recaem no colo da “emergência social”. Como desenvolvi anteriormente,
assumir problemas sociais como uma responsabilidade biomédica foi, e continua sendo, uma
das estratégias do saber-poder científico. Não se restringiram apenas aos casos com risco de
vida, mas todo e qualquer caso em que a expectativa hormonal, anatômica e psicossocial
estivesse em conflito com os padrões vigentes. De modo que repetir, através de um modelo
biomédico “consensual”, o drama da “emergência social”, sinalizando que condições
intersexuais são necessárias de cuidado e atenção hospitalar precocemente, reflete de várias
formas nas concepções de saúde e de doença internalizadas pela população.

Visto que as estratégias biomédicas se inserem em regimes de verdade produzidos


ideológica e institucionalmente no meio cultural (com conflitos e assimetrias na relação macro
e suas incorporações individuais), esclareceu-se também que os profissionais de saúde clinicam
na medida em que validam memórias, falas, vestimentas, expressões de gênero, entre outros
aspectos, como registros verdadeiros ou falsos para a produção da coerência diagnóstica. Essas
interpretações da ordem social pautam-se em um modelo específico de racionalidade, onde a
“doença” é o locus analítico dentro das representações médico-científicas e a “saúde” seu
mobilizador, seu fim comum, mas dificilmente enunciado (Camargo Jr, Ibid.).

A clínica é um processo complexo onde se relaciona saberes biomédicos supostamente


objetivados, dentro de um escopo maior de saber acadêmico e científico, e as práticas,
expertises e experiências dos profissionais de saúde em seus cotidianos de atendimentos. Nos
termos de Luiz Fernando Dias Duarte,

O desenvolvimento do “método clínico” é o resultado de um engenhoso


compromisso entre a segmentação dos domínios científicos e o olhar
interpretativo sobre o corpo, seus sinais e sintomas (o que Foucault chamou de
“conhecimento singular do indivíduo doente”) (Foucault, 1963). A
segmentação dos domínios de saber é um dos estímulos originais ao que se veio
a chamar de “especialização” médica, reproduzindo no nível das técnicas e da
organização da prática médica o mencionado efeito de dissolução da totalidade
da experiência da saúde/doença. Parte das críticas crescentes a esse efeito se
fundamenta justamente na linguagem de defesa da “pessoa” ou da
102

“personalização” – ou seja, de uma atenção à totalidade ou singularidade do


doente e de sua vivência. (Ibid., 2003: 178)
As dinâmicas dos ambulatórios, as anamneses, os exames físicos, a interpretação das
imagens, a produção documental nos prontuários, a construção dos diagnósticos, as
intervenções clínicas e cirúrgicas, os debates em seminários, jornadas e congressos, a escrita de
artigos científicos, a consolidação de certas formas de entender e conduzir determinadas
situações e pessoas – todos esses passos biomédicos se entrelaçam com a totalidade social. “Da
mesma forma que seus pacientes, um médico vê o mundo através do filtro de suas
representações; só que o imaginário médico está sempre protegido pelo escudo da racionalidade
cientifica” (Camargo Jr, Ibid.: 218). Mas até quando parece que a experiência da saúde/doença
irá se dissolver ou fragmentar, nesses casos de intersexualidade, as narrativas provam o oposto.
As experiências intersexuais não se encerram com as coerências diagnósticas, com as
intervenções clínicas ou com as “possíveis” normalizações.

Neste sentido, entendendo a discursividade médica como uma malha cultural cujos
saberes e práticas atravessam e são atravessados pelos discursos sociais. Concepções sobre o
corpo, a normalidade e os modelos de cuidado vigentes serão reproduzidos socialmente nas
relações entre a biomedicina e a população. Os sinais individuais das doenças, os quadros
comuns de mal estar, as eficácias terapêuticas, a apregoada “qualidade de vida”, esses aspectos
e outros serão compartilhados pelos saberes médicos com o contexto social mais geral. Mesmo
que as etiologias, terminologias e condições não sejam entendidas em suas minúcias, como
retratadas nos novos modelos classificatórios e de manejo, essas pessoas, especialmente pais e
familiares, irão encaminhar seus filhos e filhas para os espaços hospitalares – encarregando e
legitimando a ciência médica do controle e da resolução dos desconfortos de causas biossociais.

Logo, a concepção de “trajetórias de normatização” proposta por Machado (2008a)


atravessa a formulação desta seção e ajuda a esclarecer as duas dinâmicas descritas a seguir.
Em sua análise, propõe que os processos biomédicos relacionados ao diagnóstico e à
intervenção clínica cruzam-se com demandas políticas, éticas/morais e sociais, que impactam
e moldam as vidas de crianças e jovens intersexuais, como também de suas famílias. Tais
processos existem “na tentativa de normatizar corpos que não podem ser normatizáveis dentro
das normas de sexo e gênero hegemônicas” (Ibid.: 225). O esforço biomédico em produzir
coerências, certezas e “correções”, como já vimos nos casos anteriores, pauta-se mais em uma
tentativa de adequação desses sujeitos às percepções culturais de uma humanidade sexuada e
binária, do que – em si mesmo – com engajamentos éticos e científicos supostamente neutros
103

e naturais. Neste registro, muitas das expectativas também são incorporadas às concepções
familiares e sociais do que se espera de meninos e meninas. Outras vezes, tais expectativas se
perdem frente às distintas possibilidades de veridicção do sexo/gênero e da sexualidade. A
“verdade” do sexo de alguém estará em tantos outros caminhos, e não só dentro das trajetórias
biomédicas normativas tidas como “possíveis” e “visíveis”.

Nesta seção, portanto, procuro comparar o gerenciamento sociomédico de dois casos de


crianças 47, XXY atendidas no ambulatório de endocrinologia pediátrica do Hospital Zona
Norte 2 (HZN2). De um lado, pretendo narrar como angústias familiares e sociais geram
demandas por normalizações biomédicas em corpos de crianças intersexuais. Por outro lado,
contrastando os dois casos, aponto como esses mesmos desconfortos aparecem nos espaços
hospitalares através dos profissionais de saúde, que em vista de uma recusa familiar na
continuidade do atendimento de uma criança intersexual, justificam-se sobre os limites de seus
atendimentos e das normalizações.

Gustavo, de 7 anos de idade, chegou no Hospital Zona Norte 2 (HZN2) com seus pais.
A família mora em uma cidadezinha no interior do Espírito Santo, e desde 2012 se deslocam
até o Rio de Janeiro para o acompanhamento do filho. Quando foram pela primeira vez ao
HZN2, Gustavo já havia feito duas cirurgias urológicas em outro hospital. A primeira, em 2010
(quando tinha 3 anos), para resolver uma fimose, condição em que o prepúcio dificulta ou
impossibilita a exposição total da glande do pênis. A segunda, em 2012 (quando tinha 5 anos),
para tratar uma hipospádia, condição congênita caracterizada por um posicionamento atípico
do meato urinário – por exemplo, o orifício por onde sai a urina pode se localizar na parte de
baixo do pênis ou mais raramente na bolsa escrotal.

Em vista disso, Gustavo chega ao HZN2 para continuar seu atendimento médico.
Inicialmente na pediatria, a mãe de Gustavo relata na anamnese que seu filho teria uma
“genitália pequena”, além de um problema de obesidade. De modo que a interna de medicina
responsável pela consulta encaminhou o paciente para o ambulatório de endocrinologia
pediátrica para mais investigações. No bilhete de encaminhamento, ela escreve “QP: ‘genitália
pequena’”, indicando que a questão principal no atendimento era o relato da mãe em relação à
genitália atípica do filho, associando desconfortos referentes ao hipogonadismo89 e obesidade
da criança.

89
É uma condição em que as glândulas sexuais produzem pouco ou nenhum hormônio.
104

Assim que começa o atendimento, de acordo com os prontuários e os relatos médicos,


Gustavo realiza um exame de cariótipo para confirmar90 a definição do sexo cromossômico, o
qual revela ser 47, XXY. Esses casos são conhecidos etiologicamente como Síndrome de
Klinefelter e usualmente não são associados com genitália ambígua, mas com alguma disfunção
na produção hormonal – e, na maioria dos casos, acompanhada de esterilidade. A condição é
uma das mais comuns referentes às combinações dos cromossomos sexuais, chegando a ocorrer
“em cerca de um entre quinhentos a seiscentos recém nascidos do sexo masculino e em
diferentes etnias” (Marques-de-Faria, 2002: 291)91.

Na consulta com a endocrinologia pediátrica, consta em seu prontuário os resultados da


anamnese e exame físico realizados, em que notificam uma genitália de 3 centímetros com
desvio padrão de - 2,5 centímetros para sua faixa etária. Dos resultados de imagem, a bolsa
escrotal encontrava-se contraída, com os testículos localizados no canal inguinal
(imediatamente acima da bolsa testicular). Neste caso, não havia muito debate na sala de
estudos quanto ao encaminhamento de Gustavo. O protocolo clínico padrão para casos de 47,
XXY também se pauta no guideline: repõe-se testosterona. A fertilidade não se recupera, mas
“corrige-se” a deficiência androgênica.

Portanto, foi decidido que iriam aplicar, assim como no caso de Ana Luisa/Wagner Luís,
uma dose de testosterona por mês, em um período de três meses, para promover estímulo fálico,
virilização e desenvolvimento de caracteres secundários tipicamente masculinos. Essa terapia
hormonal ocorre geralmente durante o início da puberdade masculina, por volta dos 11 ou 12
anos, mas como a mãe estava desconfortável com a genitália pequena do filho e o tratamento
com hormônio masculino poderia a ajudar na distribuição de gordura e uma possível redução
da obesidade de Gustavo, os médicos anteciparam a aplicação. Por último, encaminharam a

90
Estou inferindo, pois não sei de muitos detalhes dos atendimentos anteriores ao HZN2, mas a mãe indicar
“hipogonadismo” na primeira consulta denuncia, de certo modo, que já sabia do sexo cromossômico do filho.
Casos de 47, XXY são algumas das causas possíveis para o hipogonadismo ocorrer, então para a família saber
desta condição, provavelmente teriam investigado anteriormente o sexo cromossômico de Gustavo.
91
O livro médico que retiro tal epidemiologia é uma publicação brasileira tida como referência para o tratamento
clínico de casos de intersexualidade. A capa de sua segunda edição é uma foto dos pezinhos de um recém-nascido
com um sapatinho do lado direito na cor azul e do lado esquerdo na cor rosa. No mesmo tópico desse trecho,
colocam um quadro (chamado “frequência da SK em diferentes amostras populacionais”) comparando a variação
congênita da Síndrome de Klinefelter (SK) com outros “distúrbios” de cunhos morais e psicológicos, como
“homens com déficit intelectual – 1:100”, “homens em instituições psiquiátricas – 1:169” e “homens estéreis –
1:77 a 1:24”. Posteriormente, em um tópico somente para essa comparação, descrevem que indivíduos com
Klinefelter estariam “cerca de cinco vezes mais” em “instituições penais ou para problemas mentais”, pois teriam
um maior “déficit de aprendizado e comportamento impulsivo, o que justificaria um aumento nas prisões e na
institucionalização desses indivíduos” (Ibid.: 293-294).
105

criança para acompanhamento na Nutrição – prevendo retorno ao ambulatório de


endocrinologia pediátrica somente em um ano, ou seja, nos últimos meses de 2015.

O gerenciamento médico deste caso, um caso que pode ser considerado típico dentre os
tipos de “DDS” atendidos, não levanta maiores questionamentos sobre as normalizações, de
cunho sociocultural, que os profissionais de saúde incorporam às suas práticas diárias de
conduta. As narrativas anteriores já esmiuçaram bastante dos atravessamentos morais, políticos
e sociais do saber científico ao incitar, silenciar e regular uma “verdade” particular sobre o
sexo/gênero e a sexualidade. Como também esclareceu de que maneira esse saber mais
descritivo e codificado sobre os corpos se atualiza nas práticas médicas cotidianas em espaços
hospitalares, evidenciando que a expertise é experiência e que esta, no fim, encontra-se dentro
de um modelo maior de racionalidade e sensibilidade onde pessoas com anatomias e condições
não hegemônicas necessitam de adequação aos modos de vida vigentes. Assim, o que mais
difere e mobiliza nesta história seria a família, agente social e não biomédico, como
representante da “trajetória de normatização”. Isto é, de que os pedidos para terapêuticas
medicamentosas e cirúrgicas para “normalização” anatômica e genital se iniciaram a partir de
desconfortos e anseios familiares. A necessidade de “coerência” do sexo/gênero a partir de
modelos hegemônicos também pode começar no âmbito familiar.

Neste caso, a interpretação do ciclo é bastante clara, as medidas biomédicas de tamanhos


específicos de genitálias para meninos e meninas se alimenta de concepções tipicamente
generificadas, do mesmo modo que as noções sociais mais gerais sobre saúde/bem estar e
corpos saudáveis, desejáveis e humanos também atravessam as propostas repetidas pelo saber
médico. Entretanto, é fundamental pontuar como a equipe de profissionais de saúde se
preocupou mais, neste caso típico de Klinefelter, em tratar com mais atenção a obesidade da
criança do que inseri-la imediatamente nos trâmites de “correção” corporal via uma
hormonoterapia desgastante – pois assim que iniciada, terá que ser mantida ao longo da vida da
pessoa. O peso da intervenção recai, aqui, no colo da família.

De maneira que outro dado relevante descrito nos prontuários foi da mãe de Gustavo
relatando que sua gravidez não foi aceita prontamente pela família. Com essa informação,
podemos inferir a existência de um provável desconforto no ambiente familiar por outros
motivos que não a condição sexual da criança. Talvez as ansiedades que tais vivências
mobilizam aos olhos biomédicos e sociais tenham se multiplicado com “não conformações”
familiares anteriores. E dificilmente tal angústia irá embora, pois mesmo com as dinâmicas das
intervenções sociomédicas em intersexuais passando pelas justificativas de ajuste de coerências
106

e prevenção de fecundidade, homens 47, XXY serão inférteis. Essa inserção biomédica é,
portanto, de base estritamente sociocultural. Sua fimose e hipospádia não continham risco de
vida, assim como a expectativa de normalização sexual da genitália de Gustavo refletia mais
desconfortos maternos e familiares do que um distúrbio em si. Não sabemos se esses
desconfortos e tentativas de medicalizações aprofundaram as próprias ansiedades (e os
problemas alimentares associados à obesidade) de Gustavo, só podemos supor pelos relatos
narrados e descritos. Mas como vimos com Carla e Fabiane, essas veridicções prejudicaram
suas vidas, em várias medidas. Até quando decidiram conscientemente passarem pelo crivo
biomédico, como forma de se conformarem para terem vidas possíveis, suas trajetórias de vida
foram avaliadas e questionadas.

Sendo assim, quando um paciente escapa dessas “trajetórias de normatização”, como o


caso de outra criança 47, XXY atendida no HZN2, explicações são mobilizadas para tentar
recuperar esse atendimento. No momento em que as estratégias de incorporação falham,
justificam as faltas de medicalizações. Em instantes assim o discurso biomédico assume
conscientemente o corpo como uma construção além do biológico, e vislumbra que o
sexo/gênero e a sexualidade de alguém podem ser multicausais. Por conseguinte, a segunda
narrativa desta seção se desvela no meio do trabalho de campo no HZN2, quando ENDOPED1
me passa dados de alguns casos de “DDS” que atendiam e eu ainda não acompanhava. Conta,
especialmente, de um caso difícil que tentavam atender. Era Stephanie, uma criança de uns 2
anos de idade. Ela tinha o sexo cromossômico 47, XXY, mas também possuía uma genitália
ambígua, algo não usual para a condição92. A singularidade clínica da Síndrome de Klinefelter
já era motivo de “entusiasmos” na sala de estudos, tida como um caso excepcional. Associada
à isso, durante a primeira anamnese que fez, existia o fato de que Larissa, a mãe, também teve
outro filho (de pais diferentes) com a mesma composição cromossômica. A criança, que já teria
uns 10 anos de idade, foi criada como menino pela avó paterna, com quem a mãe de Stephanie
não tinha contato atualmente – e relata, como descrevem nos prontuários, que por esse motivo
percebia seu filho mais como um irmão.

A composição familiar aumentava, já que durante as consultas descritas a mãe de


Stephanie dizia morar com outro parceiro na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Pelos

92
A variação cromossômica 47, XXY (ou com mais cromatinas sexuais, tipo 48, XXXY e assim por diante)
desenvolve usualmente fenótipos masculinos, com a presença das gônadas testiculares, porém sem o pleno
desenvolvimento de suas funções. Os indivíduos são estéreis e algumas de suas características secundárias
masculinas não se acentuam – por exemplo, apresentam poucos pelos em geral, testículos reduzidos, ginecomastia
(crescimento das mamas), entre outros aspectos.
107

relatos dos médicos, ele sempre acompanhava Larissa e a enteada nas consultas. Stephanie
chega, então, ao ambulatório de endocrinologia pediátrica com 9 meses de idade. No prontuário,
há relatos de Larissa de que a filha foi internada com 15 dias de vida por causa de uma
bronquiolite – termo clínico para a bronquite em bebês –, quando os médicos identificaram uma
“alteração” na genitália. A partir de então, fazem uma bateria de exames, dentre eles o exame
citogenético para definição do sexo cromossômico: 47, XXY. No começo de 2013, as duas são
encaminhadas para a primeira consulta na endocrinologia pediátrica. À primeira vista, os
registros médicos nos prontuários são confusos. Nas inscrições iniciais relatam imagens de um
útero (no tamanho de 29 x 15 mm) feitos por ultrassom pélvico, mas também notam um
testículo direito na região inguinal. Cinco meses depois, em outra consulta, a residente
responsável relata não palpar gônadas masculinas e escreve “aspecto feminino” ao se referir à
genitália, apesar de descrever também que o falus de Stephanie estaria acima da média, com
1,5 cm ou 15 mm de comprimento – a medida definida pelo Consenso de Chicago para recém
nascidas no sexo feminino, nos Estados Unidos, seria de 4,0 mm com desvio padrão de 1,24
(Lee et al., 2006: e490). Neste retorno, a interpretação do outro ultrassom pedido era de que a
criança não tinha útero, mas gônadas de “aspecto testicular”.

Vinculado ao quadro de genitália ambígua, os endocrinologistas pediátricos


investigavam também, junto com geneticistas do HZN2, possíveis “dismorfias faciais” não
conectadas ao “DDS”, como uma condição chamada blefarofimose – em que uma alteração
congênita tida como rara estreita a anatomia das pálpebras. Na época das primeiras consultas
de Stephanie, é anotado nos prontuários que Larissa estava grávida outra vez. Ao longo dos
atendimentos, também há um acompanhamento desse novo bebê. Nasceu uma menina que
parecia, nas descrições dos prontuários, ter alguma variação nas estruturas faciais, do mesmo
modo que a irmã. Com Stephanie já com 1 ano e meio de idade, os médicos documentavam em
todas as entradas de atendimentos do caso a necessidade de analisar clinicamente os prontuários
antigos do irmão mais velho com o mesmo sexo cromossômico (seus dados estavam arquivados
no HZS, onde ele foi atendido durante a infância) e da irmã mais nova com a mesma variação
facial. Queriam fazer um grande heredograma93 para determinar as causas das diferenças
congênitas da família.

93
É um tipo de gráfico muito usado pela Genética para representar a herança genética dos indivíduos em questão
e identificar certas características herdadas pelos cruzamentos familiares.
108

No começo de 2014 a irmã mais nova faleceu, com menos de 1 ano de idade, sofrendo
de um quadro pulmonar. Quando comecei o trabalho de campo no HZN2 a família de Stephanie
já havia abandonado o tratamento e acompanhamento hospitalar. Talvez a morte da irmã tenha
sido um fator de distanciamento – a mãe morava com o padrasto de Stephanie, pai da irmã mais
nova que faleceu, o pai biológico de Stephanie não é descrito nos prontuários – talvez por morar
tão longe do hospital e a locomoção ser custosa e difícil – esse caso foi o único que acompanhei
onde a renda familiar estava anotada no prontuário (constava na categoria “salário da família”:
1.200 reais) – ou talvez pelo cansaço desses trâmites intermináveis de gerenciamento e
veridicção da intersexualidade nos ambientes hospitalares.

A mãe (pelas informações dos prontuários) e os profissionais de saúde comentavam que


Stephanie era uma menina muito agitada – levantando dúvidas na mesma linha de raciocínio
presente no caso de Fabiane, em que questionamentos socioculturais são feitos acerca das
coerências do sexo/gênero designado. Neste caso, Stephanie foi registrada de acordo com o
sexo de criação, não houve uma designação clínica baseada em um diagnóstico – ela era a
exceção da Síndrome de Klinefelter, por ter uma genitália ambígua e outras condições
associadas ao “DDS”. Para a formulação de um diagnóstico “coerente”, a criança teria que
continuar os processos de verificação do sexo em níveis biomédicos, mas a família abandonou
os procedimentos antes de qualquer produção de certeza.

Ao longo do meu campo, sempre conversava com a psicóloga sobre o caso para tentar
descobrir mais informações além dos dados nos prontuários. Ela tentou contatar algumas vezes
Larissa, a mãe de Stephanie. Em uma das vezes, a sogra (mãe do parceiro dela e padrasto da
criança) que morava na mesma casa, disse que Larissa tinha ido embora. Não tivemos muitas
explicações dos motivos desse afastamento do lar. Em outra ligação, a psicóloga conseguiu
falar com Larissa, já tendo retornado para a casa do parceiro, e marcou uma consulta para a
semana seguinte. Eram os momentos finais do meu campo, em outubro de 2014. A família
retorna com muitas histórias de como essas incertezas sobre o sexo/gênero são vividas em
ambientes não hospitalares.

Uma das situações narradas relaciona-se às socializações como outro marcador de


diferença, isto é, como moduladores/reguladores de sexo/gênero. Larissa conta viverem em um
quintal compartilhado com várias casas e que, neste ambiente, sua filha sofria constantemente
109

bullying94 dos outros vizinhos, especialmente quando tentava brincar pelo quintal. Os vizinhos
instigam a menina e a família chamando Stephanie de menino, que teria um pênis, e ofensas
afins. Talvez por ser agitada, como a mãe e os profissionais de saúde constataram antes, ou pela
própria ambiguidade genital da criança. De maneira que Stephanie também começou a
internalizar alguns desses comportamentos “tomboy”95, pois queria sempre tomar banho junto
do padrasto e dizia para os outros – de forma provocativa – que teria um “lulu”. A mãe ficava
aflita tentando contar para ela que na verdade ela tinha uma “pepeca”, mas não surtia muito
efeito. Larissa se angustiava mais frente às hostilidades dos vizinhos do que Stephanie.
Enquanto a primeira sofria pelo fato da filha ter comportamentos mais masculinos e uma
anatomia confusa, aprofundada pelas implicâncias de estranhos, a segunda estava mais curiosa
com o próprio corpo e as possibilidades de usos dessa mesma anatomia ambígua – pelo relato
não parecia que Stephanie internalizava negativamente essas hostilidades, possivelmente pela
idade, com quase 3 anos, ainda não parecia compreender de forma plena as violências que as
expectativas sociais também carregam em relação aos modos de viver um sexo/gênero
designado.

Nesta última consulta, em meio às histórias e justificativas familiares, os médicos


decidiram encaminhar Stephanie para a urologia pediátrica avaliar a genitália da criança. Ela já
estava registrada, mas era preciso “corrigir” esteticamente a genitália ambígua, de modo que,
na interpretação biomédica, se evitem tais bullyings, desconfortos e sofrimentos sociais
desnecessários. Mas a família desapareceu mais uma vez. Depois de faltar a nova consulta
agendada, Larissa retorna um dia ao ambulatório para avisar que não poderia continuar com o
tratamento da filha. Sua casa na Baixada Fluminense havia desabado e sido interditada pela
Defesa Civil, por esse motivo estava com muitas dificuldades financeiras para levar Stephanie
quase semanalmente ao hospital.

Confrontados com essas explicações, os profissionais de saúde tiveram que aceitar o


distanciamento de Stephanie e sua família. Assim, por mais que a dinâmica familiar fosse tão

94
Expressão inglesa que define ações intencionais e repetitivas de violência física ou psicológica praticadas por
indivíduos, dentro de uma relação de poder desigual, causando dor e angústia a alguém, percebido como incapaz
de se defender.
95
Expressão inglesa usada para classificar meninas pré púberes que se comportam de maneira tipicamente
masculinas, por exemplo, gostar de jogar bola, usar bermuda, tentar urinar em pé, dentre outras características que
seriam vistas como vontades/situações/relações de meninos.
110

confusa e conflituosa96, segundo uma suposta vulnerabilidade social, tal qual a mobilizada no
caso de Ana Luisa/Wagner Luís, os especialistas não fizeram menção de contatar o Serviço
Social ou qualquer outro órgão responsável para salvaguardar um atendimento biomédico
necessário e um cuidado familiar idealmente mais capaz – em níveis financeiros, salutares,
humanos, enfim, dos mesmos aspectos que surgiram em negociação anteriormente. Neste caso,
não foi incitado (pelo menos não até o fim do meu campo) uma modelação dessa criança e de
sua família como vulnerável, ou dentro de um roteiro de sofrimento aceitável ou questionável,
Stephanie e seus familiares pareciam ser aceitos simplesmente como exceções da norma – em
suas reproduções, em suas composições cromossômicas, em suas anatomias, em suas relações
e vivências. Do que não se espera e não se pode controlar.

Conforme aponta Machado em sua tese:

Frente à exigência de restituir uma determinada ordem social no que diz respeito
ao sexo, os médicos tomam as decisões baseados no esforço de “tornar
invisível” tudo o que possa parecer “ambíguo” em relação aos corpos intersex
e, também, no que se refere às condutas ligadas a eles. (...) No cruzamento
dessas diferentes temporalidades, percebe-se um esforço constante em adequar
os corpos intersex a determinadas expectativas sociais – relacionadas à
fertilidade, à potencialidade para o sexo penetrativo e heterossexual, ao
tamanho do pênis e do clitóris, entre outros aspectos. Desse modo, os
dispositivos de normalização e regulação colocados em ação pela medicina
(olhar e medir), ao mesmo tempo em que buscam “encontrar um sexo”
(feminino ou masculino) no corpo das crianças intersex, pressupõem
determinados marcadores de “bem-estar”, de “desejo” e de “saúde” – física e/ou
psicossocial – em nome dos quais são justificadas as intervenções médicas,
como a cirurgia. (Ibid.: 224-226)
Portanto, quando esses determinados marcadores implícitos se ausentam (por variados
motivos de fundos socioculturais, como vimos alguns), o processo de veridicção da
intersexualidade atravessa a esfera biomédica para ser compreendido em outras possibilidades
produtoras de uma “verdade de si”. Resta a equipe de profissionais do HZN2 aceitar a noção
submersa em cada prática biomédica em intersexuais, da “inarticulabilidade original” que tais
corpos transbordam (Cabral, 2006). Até mesmo quando se tenta dissolver ou fragmentar a

96
Larissa contou outra situação delicada, quando estava no mercado com a filha, e Stephanie fazia muita bagunça,
sem ouvir os pedidos da mãe para se acalmar, até que derruba várias latas das prateleiras. Larissa conta que bateu
na filha, mas parece bater tanto, pois foi abordada por alguém (e no relato não indicam se foi alguém conhecida)
para que parasse com a “correção” violenta na criança. O evento culmina em uma ameaça da pessoa, dizendo que
iria denunciar Larissa para o Conselho Tutelar. Ela não acreditou na história, mas conta que um tempo depois uma
assistente social tocou em sua casa para averiguar a denúncia. O resultado da conversa foi uma assertiva dura de
Larissa, alegando que se a assistente social soubesse cuidar melhor da criança, que levasse Stephanie, ela não iria
se opor. Depois dessa afirmação categórica, a mãe narra que a profissional saiu da residência e findaram-se os
questionamentos externos com a educação e o cuidado de sua filha.
111

experiência intersexual em meio a uma vaga experiência de saúde/doença – com as


classificações descritivas supostamente mais neutras, com o consentimento do tratamento sem
a efetiva comunicação e esclarecimento, com a persistência da “emergência biológica e social”
se traduzindo em intervenções cirúrgicas precoces, com os “roteiros de sofrimento” e as
“carreiras morais/sexuais” sendo testadas continuamente a fim de garantir alguma coerência
para os procedimentos –, até quando todos esses aspectos se proliferam, não se encerra a
incerteza original. Logo, como outro modo qualquer de existência possível, a experiência da
intersexualidade se pauta definitivamente por muitos caminhos, de modo que não deveria ser
necessária a inserção dessas pessoas em dinâmicas de emergências biomédicas e sociais
produtoras de humanidades e subjetividades sexuadas específicas.

***

Vimos nessas histórias que os dispositivos médico-científicos produzem subjetividades


a partir de acionamentos discursivos e intervenções específicas, fazendo com que a experiência
do corpo sexuado intersexual desvele que nem todas correspondem aos esquemas conceituais
estáveis dados coletivamente que tornam possíveis conhecer e relacionar-se com o mundo. Mas
mesmo com a reinvenção desses esquemas a partir de outras fugas e repetições generificadas,
a conformidade com os modelos cognoscíveis de sexo-gênero ainda é uma marca linguística e
identitária geradora de sujeitos.

O ativista Mauro Cabral, ao relatar o que considera experiência intersex, alerta


para a necessidade de não homogeneizar a subjetividade intersex, já que cada
caso é único e cada sujeito reivindica o que considera melhor para a sua
existência. Algumas pessoas podem se opor às cirurgias de normalização,
outras, entretanto, podem reivindicar essas mesmas cirurgias para terem vidas
habitáveis. No entanto, se as subjetividades são diversificadas, parte da
experiência intersex se desenvolve em comum, já que se trata de pessoas que
passaram por procedimentos médicos similares. (Pino, 2007: 168)
Neste sentido, tentei identificar redes de saberes, práticas e posições médicas ao
gerenciarem casos de intersexualidade, que, por sua vez, também não seriam estritamente
representativas de um discurso científico e biomédico supostamente homogêneo. Há
assimetrias, disputas e falta de consensos, do mesmo modo que Nádia Perez Pino aponta as
distinções entre as subjetividades intersexuais como sujeitos – com suas existências
autodeterminadas a favor ou não da normalização cirúrgica – e suas experiências médicas afins.
112

Tais procedimentos são referenciados e manuseados a partir de guidelines internacionais, na


qual a intersexualidade surge como mais um corpo de saber “necessário” de cuidados,
tratamentos, intervenções, justificações e normalizações.

Em vista disso, por mais que exista uma necessidade de assistência médica integral,
inclusiva e “centrada no paciente” – características difíceis de se manter nas dinâmicas de
hospitais-escolas – para os casos de intersexualidade, acredito que o ganho principal deste
trabalho foi a tentativa de esclarecer as técnicas e abordagens atualizadas do saber-poder
biomédico quando esbarra essas situações de limiaridades sociais. Onde a falta de
consentimento esclarecido, a intervenção cirúrgica precoce e a repetição de integridades
corporais específicas são algumas das variáveis que desvelam como a hegemonia e privilégio
do discurso médico ainda marca excessos e faltas na produção de subjetividades e verdades.

O processo de veridicção da intersexualidade atravessa os guidelines e protocolos de


manejo, que influenciam sim os processos decisórios dos profissionais de saúde em casos de
“genitália ambígua”, normalizando e humanizando esses corpos para que sejam entendidos,
reconhecidos e socializados. Mas essas demandas também surgem de familiares, de conhecidos,
de estranhos, da norma e de outros profissionais de saúde – não sempre os endocrinologistas ou
cirurgiões pediátricos são os agentes da intervenção precoce, mesmo que essas duas
especialidades apareçam regularmente como os departamentos administradores desses casos.

Neste registro, percebemos um entrelaçamento nas histórias narradas entre


preocupações tipicamente sociais, ou melhor, posicionadas como inquietações complementares
às biomédicas, como os códigos de roupas, cor97 e gramáticas de gênero, a vulnerabilidade
social, a identidade de gênero ou a relação sexual, em associação com outras angústias
propriamente biomédicas, relativas às dinâmicas particulares da falta de certeza e coerência
científicas no desenvolvimento e determinação sexual. Vimos, portanto, que essas duas linhas
de raciocínio e gerenciamento se cruzam e se retroalimentam continuamente.

O fio condutor mobilizador dos dois caminhos centra-se na lógica do “sofrimento/bem


estar”. Enquanto a expertise médica aciona o discurso do bem estar para legitimar intervenções
clínicas e cirúrgicas precocemente, mascara a experiência de sofrimento dessas crianças e
jovens intersexuais, como também de seus familiares. A possibilidade de sofrimento nunca é

97
Azul para “meninos” e rosa para “meninas”.
113

apagada, pois não há como fugir da incerteza biológica e social que essas condições carregam
em nossas realidades.

No futuro, pessoas intersexuais poderão assumir uma orientação sexual não-


heterossexual ou entrar em processo de transgeneridade contra o diagnóstico inicial. Elas
também irão carregar as marcas dessas intervenções ao longo do tempo, tendo que manter um
acompanhamento clínico contínuo, seja pelas hormonoterapia ou pelos reparos cirúrgicos. Não
é garantido que os resultados funcionais e cosméticos serão totalmente positivos, pois não há
avaliações longitudinais suficientes, e mesmo com a evolução das técnicas ainda existe muita
controvérsia em relação ao desempenho sexual dessas pessoas. Também não há como saber dos
impactos sociais a longo prazo, mas suponho que estas famílias tenham que reiterar
cotidianamente – como nas observações feitas pelo ENDOPED1 – as características e
qualidades do sexo designado na criança intersexual. Essas repetições provocam ruídos e
fissuras nas relações, pois a expectativa parental já é incerta, fazendo com que esses jovens
intersexuais absorvam cada vez mais angústias.

Logo, o discurso biomédico do bem estar termina por aprofundar o ciclo de sofrimento
desses sujeitos. Inspirada pela noção de “carreira moral” de Erving Goffman (1996), em que a
série de mudanças vividas por essas pessoas dentro das instituições hospitalares alteram
efetivamente suas percepções de si e dos outros, concluo que tais práticas clínicas e cirúrgicas
feitas precocemente só intensificam os processos de incertezas. A garantia de coerência sexual
se constrói inversamente ao apagamento ou à “mortificação do eu” intersexual. Contudo,
mesmo com esses guidelines cada vez mais urgentes e codificados, a experiência intersexual
não se esvazia completamente e continuará sendo vivida em meio a proliferação de
discursividades sobre suas condições.

Os efeitos das explicações dessas condições, dessas verdades, dessas estabilidades,


constituem os processos de veridicção da intersexualidade. Mas como as descrições dos casos
etnografados evidenciam, as controvérsias, os ruídos e as incertezas não se desmaterializam
com as aplicações hormonais e os cortes de bisturi. Na verdade, espero que esses casos
desvelem os jogos de pensar/poder intrínsecos aos regimes de inteligibilidade ocidental e
moderna, tais como moldam nossas realidades. Talvez assim possamos iluminar criticamente
algumas das representações e intervenções médico-científicas ao tentarem conformar corpos
“ambíguos”, ao serem “des-feitos” (Pino, 2007), em corpos inteligíveis, em corpos funcionais,
em corpos humanos. Onde, muitas vezes, a tradução dessas certezas e coerências suscitam-se
através de silenciamentos, apagamentos e violações.
114

Considerações Finais
As Constituições Humanas: travessias antropológicas e
políticas nas experiências intersexuais

As narrações das histórias de experiências de intersexualidade, ainda que terceirizadas


através dos meus olhares, da minha interpretação e da minha escrita98, tentam articular os
limites das constituições de humanidades através dos corpos sexuados. As negociações dos
sofrimentos e estigmas, as falhas de consentimento e direitos, as estratégias de neutralizações
terminológicas, as cirurgias ainda tão precoces sem resultados a longo prazo, as medicalizações
incorporadas cada vez mais cedo em todas as esferas da vida social, o dimorfismo sexual como
valor de uma humanidade construída (e validada) através de bisturis e fármacos. Uma
constelação de atravessamentos. À vista disso, dentre outras muitas inquietações que podemos
desenvolver a partir da análise dos gerenciamentos e veridicções da intersexualidade, pretendo
apontar dois caminhos principais de reflexão nessas páginas de considerações finais.

Por um lado, a primeira reflexão se insere em uma abordagem dos direitos humanos e
sexuais; até que ponto os sujeitos de direitos (tutelados ou não) podem ser aplicados nesses
casos e nessas experiências de intersexualidade? Como já indiquei no capítulo anterior, o
paradigma maior não seria a possibilidade de consentimento esclarecido ou de uma
comunicação efetiva entre os profissionais de saúde e seus pacientes sobre os tratamentos
possíveis, mas a validade em si mesma desses próprios atendimentos e procedimentos. Então,
de que tipo de direitos humanos falamos quando se visa como questão mais fundamental
assegurar uma boa prática médica, onde a estratégia ética e política necessária para tal recai no
colo de um humanismo que também se constitui como sexuado e binário? Um humanismo que
justifica “formas inumanas de humanização” (Cabral, 2006), desde que autodeterminadas, com
o intuito de que as pessoas intersexuais possam ganhar vidas humanas, vidas possíveis, isto é,
vidas normalizadas e inteligíveis dentro deste marco de saber, poder e direitos da modernidade
ocidental.

98
A autobiografia e o testemunho são estratégias éticas e políticas importantes para uma longa lista de autores, por
exemplo, ver Bourdieu, 1996; Cabral, 2006; Agamben, 2008.
115

Em sua tese, Paula Sandrine Machado (2008a) já havia alertado para os perigos que uma
vinculação não crítica da saúde (nos moldes dos direitos reprodutivos) enquanto direito sexual
e humano significa para a experiência da intersexualidade. As práticas de “normalização”
aparecem, segundo os registros biomédicos, como garantias de direito para as pessoas
intersexuais. Os profissionais de saúde que acompanhei se comprometem com esta
interpretação, investem diariamente na materialização desse “direito à saúde” enquanto “direito
humano”. Eles acreditam nesses atendimentos. De modo que as formulações sobre a “verdade”
do sexo/gênero de alguém e dos direitos e acessos à saúde pautam-se em interseccionalidades
que não se fazem visíveis nos guidelines, mas sim nos gerenciamentos cotidianos. Neste
sentido, o processo de veridicção ocorre além das moléculas, gônadas e hormônios, atravessam
concepções generificadas, valores socioculturais, vulnerabilidades e desigualdades, que
modificam os sujeitos de direitos de uma “humanidade sexuada”.

Contudo, pautar-se em um direito humano e sexual de autonomia corporal também não


irá desestruturar, como apontei acima, a necessidade constituinte de sujeição das pessoas
intersexuais às práticas “corretivas” de “normalização”. Como a própria “humanidade” se
fundamenta segundo dois sexos/gêneros particulares, como dar conta dessa abstração nas
relações existentes que as extrapolam? Como conter (ou ao menos questionar a legitimidade)
dessas práticas “humanizadoras”? Como fazer valer as concepções universais de autonomia e
autodeterminação da pessoa em contextos de vulnerabilidade e desigualdade? São questões que
se proliferam e mobilizam trabalhos futuros.

Não obstante, como descreve Iain Morland (2012), ao mostrar imagens de cirurgias
realizadas em pessoas intersexuais para seus companheiros de casa, as pessoas estremecem ao
se darem conta dos procedimentos realizados. São imagens desconfortáveis de ver,
principalmente para alguém não “iniciado” na racionalidade e realidade biomédica. Para ele,
compartilhar o desconforto e o repúdio de viver em um mundo onde tais procedimentos são
feitos e justificados vai além das políticas identitárias que se apoiam em direitos que também
seriam, no fundo, normalizantes99. Tem a ver, conforme apontei no capítulo anterior, com a
compreensão da vulnerabilidade como condição compartilhada. Neste registro, perceber a

99
Na verdade, Morland (2012) vai além da análise do conforto/desconforto enquanto sentimentos envolvidos no
gerenciamento e veridicção da intersexualidade para se pensar nesta como uma condição compartilhável. Ele
discute as próprias construções de sensibilidade (ou a perda dela) como condições particulares da experiência
intersexual, que através das práticas biomédicas expandem-se além da experiência corporal individual e ganham
contornos fenomenológicos. Ou seja, ele analisa como o manejo biomédico da “senciência” dispõe uma forma
muito específica das pessoas intersexuais se relacionarem com o mundo.
116

vulnerabilidade como experiência comum aos humanos seria uma tentativa de reequilibrar as
desigualdades através de um maior reconhecimento na complementariedade do sofrimento e da
exposição do outro produzidas por esses modelos de humanidade sexuada, de direitos e de
saúde.

Por outro lado, a segunda reflexão dessa conclusão se centra no fato de que concepções
de humanidade se reajustam constantemente com experiências como as dos intersexuais. Em
um recorte maior, noções do humano se multiplicam principalmente no que concerne as
negociações políticas, éticas e morais, e os desenvolvimentos de novas tecnologias. As políticas
“da vida em si”, como sintetiza Nikolas Rose (2007), atravessam campos sociais dos mais
diversos, reorganizando as vidas das pessoas em tramas cada vez mais biossociais, as quais, por
sua vez, expandem as relações globais de saúde, política e direitos. Desse modo, proponho
pensar que manter as experiências intersexuais dentro de um modelo de humanidade sexuada
(ligada a tratados de direitos humanos e sexuais centrados no binarismo de gênero), busca
encerrar tais experiências em protocolos biomédicos. Estes justificariam uma suposta coerência
molecular do sexo. Quando, na verdade, o que mais parecem fazer são verificações e repetições
de cunho sociocultural, como vimos anteriormente. Pretendo, então, formular uma hipótese
dentro das discussões da “saúde global”, isto é, de como esses gerenciamentos e veridicções,
essas governanças de corpos, reconstroem possibilidades variantes da norma – as vidas
intersexuais – em segmentos de mercados terapêuticos específicos. Uma vida que importa
biomedicalizada. Assim, esboço alguns dos movimentos de conversão dessas experiências que
não se conformam em doenças crônicas. No capítulo 3, vimos histórias ilustrando as
controversas negociações das “verdades” sociais e biomédicas com as realidades individuais,
agora veremos como trâmites globais de farmacopolitizações interessam e financiam a
manutenção da intersexualidade dentro de registros universais e essencialistas do que seria uma
humanidade sexuada.

De tal forma, faço um exercício de contextualizar. Similar à conjuntura de HIV/aids


acompanhada e descrita por João Biehl (2008; 2011) nacionalmente e globalmente, nos EUA,
quando se trata dos “distúrbios do desenvolvimento sexual”, parece existir um processo
parecido de articulação entre diferentes atores gerindo o atendimento e tratamento da condição.
Um processo de vinculação de algumas organizações não governamentais e movimentos
políticos intersexuais com instituições privadas (de pesquisa e/ou biomédicas) e agências
estatais de saúde, na tentativa de padronizarem seus discursos a fim de garantirem parcerias no
117

atendimento e intervenção clínico-cirúrgica das pessoas intersexuais. Discursos, como atentei


acima, afinados com argumentações centradas nos direitos humanos e sexuais.

As realidades nos países da América Latina são mais distintas. No Brasil, não há
movimento intersexual constituído, e os movimentos lgbt’s atuais não pautam como uma de
suas reivindicações primárias qualquer demanda atrelada à experiência intersexual. No máximo
poderíamos aproximar com demandas das experiências trans*, por exemplo, pela
despatologização da transexualidade (um “risco” de acontecer aos intersexuais operados
precocemente, quando na adolescência/fase adulta se percebem com outra identidade de gênero
diferente à designada) e pela ampliação e acesso universal aos procedimentos de “redesignação
sexual” (procedimentos similares em suas técnicas com os realizados nas crianças intersexuais,
como também podem ser aplicados em casos de adolescentes intersexuais que não vivenciaram
as intervenções precoces, como Carla ou Fabiane).

Nos outros países da América Latina, tomo como referência o livro editado pelo filósofo
argentino Mauro Cabral, Interdicciones: escrituras de la intersexualidad (2009), no qual
compila artigos científicos, entrevistas, poemas, artes, dentre outros escritos, de pesquisadoras
do tema e de pessoas intersexuais, todos em castellano. Além de entrevistas e relatos de
intersexuais de várias localidades latino-americanas, há dois artigos que analisam a “regulação
biomédica” da intersexualidade fora do eixo EUA-Europa (os outros artigos existentes são de
duas pesquisadoras brasileiras, Paula Sandrine Machado e Isadora Lins França, e de uma
pesquisadora espanhola, Nuria Grégori Flor). O primeiro artigo, de Eva Alcántara Zavala,
relaciona a experiência da condição intersexual por famílias em situação de pobreza na busca
por assistência médica na cidade do México. O segundo artigo, de Luciana Lavigne, analisa
representações socioculturais sobre sexo/gênero que informam muitas das decisões biomédicas
feitas por profissionais de saúde da cidade de Buenos Aires. Os dois artigos dialogam com
questões muito parecidas com as que descrevi anteriormente, sobre as estruturas hospitalares e
de saúde pública; os atendimentos clínicos e gerenciamentos sociomédicos diários; as
intervenções cirúrgicas precoces; as desigualdades sociais e as construções de
vulnerabilidades/carreiras corporais e morais através de roteiros de sofrimento específicos,
todos generificados, enfim, são representações e práticas que se repetem dentro de uma mesma
matriz biomédica globalizada. Onde guidelines internacionais pautam saberes compartilhados
pelo mundo que são atualizados em seus contextos regionais, linguísticos e de mais ou menos
desigualdade, de mais ou menos acesso à saúde pública, de mais ou menos movimentos
intersexuais organizados.
118

Assim, também é preciso notar que os autores do livro se posicionam, em introdução


escrita por Cabral, contra a nova terminologia proposta pelo Consenso de Chicago. Apesar de
reconhecerem as razões para se questionar a noção de “intersexualidade” a favor de “DDS”,
por exemplo, pela constante redução (tanto social quanto biomédica) do “intersexual” a uma
categoria identitária e de minoria sexual, eles mantêm o posicionamento político e ético do
termo. Mais além, tentam formular suas críticas em outro tom, com visões de humanidades
ampliadas, pós-humanas até. Inspiram-se em Donna Haraway e Paul B. Preciado, autores que
também sustentam minhas formulações.

Essas formulações partem do princípio de que o sexo, do mesmo modo que foi
convertido em “objeto” de governança política, com suas ramificações da gestão do corpo pela
biomedicina, também importa do ponto de vista econômico. Deste processo nasce a relação
com os produtos farmacoquímicos, que torna-se uma das fundações para a episteme moderna e
o modo de produção capitalista persistirem. Preciado (2008) chama esse movimento pós
industrial, midiático e global de “regime farmacopornográfico”100. As intensificações dos
processos biológicos e moleculares e as formulações semióticas e técnicas da subjetividade
sexual marcam novas formas de pensar e vivenciar o humano. Logo, a constituição de um
“império dos hormônios”, como traduziu Fabíola Rohden (2008), fortalece a indústria
farmacêutica que aposta cada vez mais na fabricação tecnológica de corpos sexuados. Como
sabemos, as apostas não cessam na regulação e comercialização do corpo e da sexualidade, mas
se expandem para diversas áreas da vida social, bem como as relacionadas com a “saúde
mental”.

A eficácia desse regime/mercado seria o de reduzir o humano ao medicamento.


Conforme Preciado desenvolve: “o êxito da tecnociência contemporânea é transformar nossa
depressão em Prozac, nossa masculinidade em testosterona, nossa ereção em Viagra, nossa
fertilidade/esterilidade em pílula, nossa aids em triterapia” (Ibid.: 33). Não se sabe mais quem
veio primeiro, onde termina um e começa o outro. E é exatamente pelo fato de que a “verdade”
não precisa ser mais descoberta, mas sim produzida de acordo com certos modelos culturais,
políticos e técnicos, que o corpo adquire “estatuto natural”. Nesta concepção de realidade, tanto

100
Para cunhar esse termo, Preciado se inspira na categoria proposta por Deleuze e Guattari em Mil Platôs:
“sociedade de controle”. Esta formulação seria um terceiro regime dos processos de subjetivação, nos mesmos
moldes foucaultianos (2008: 66).
119

o desejo sexual quanto a enfermidade não existem sem suporte técnico, farmacêutico, midiático
e político.

Dito isto, detenho-me agora nos processos globais de farmacopolitização no que tange
às experiências intersexuais. O guideline classificatório e de manejo atual é um nó importante,
onde podemos voltar e repensar outras negociações em torno de sua formulação e aplicação. O
documento selou uma nova maneira de fazer política – e de cuidado médico – sobre a
intersexualidade, representado pelas participações de pessoas intersexuais no Consenso de
Chicago (poucas, mas existentes) e pelas articulações do seu conteúdo (e de suas práticas) com
familiares, acadêmicos e movimentos sociais intersexuais em momentos seguintes. Contudo,
considero fundamental iluminar outra relação existente. No final do artigo publicado em 2006,
o Consenso reconhece e agradece o “suporte educacional irrestrito” concedido pela Pfizer
Endocrine Care, Novo Nordisk, Ferring, e Organon (Lee et al., ibid.: e497). Todas as quatro
são grandes companhias farmacêuticas multinacionais. A Pfizer tem sede nos EUA. A Organon
era holandesa, mas foi vendida e incorporada à Merck & Co. em 2009, que por sua vez também
tem sua matriz nos EUA. A Novo Nordisk se encontra na Dinamarca, e a Ferring na Suíça. Em
vista desse amparo, como perceber os valores que estão em jogo com as agendas internacionais
de “saúde global”? Nos termos de João Biehl:

Como obrigar doadores a prestar contas a longo prazo, especialmente nesta


época financeiramente volátil? Como as tendências de saúde global afetam o
papel dos governos e suas obrigações com os direitos humanos? Além disso,
como estão sendo tratadas as outras doenças mortais da pobreza que têm menos
apoio político? Que projeções e sistemas de valor subscrevem as decisões
políticas e a triagem médica? Problemas e questões que não eram
necessariamente previstos e que agora têm de ser tratados como imperativos
para salvar vidas foram transformados em novo capital geopolítico e
farmacêutico. (2011: 265)
Trocando “doenças mortais da pobreza” pela intersexualidade, que transforma-se em
uma condição crônica com o modelo de cuidado biomédico gestado atualmente, e que é
atravessada por desigualdades e vulnerabilidades sociais (principalmente nos casos atendidos
em instituições de saúde pública), podemos também pensar, assim como fez Biehl, sobre as
projeções e os sistemas de valor que tangenciam as negociações políticas desses “corpos
ambíguos” enquanto biocapitais.

Além das controvérsias entrelaçadas nas micropolíticas discutidas no segundo capítulo,


entre os atores a favor ou não da nova nomenclatura proposta pelo Consenso. E além da
aplicação dos guidelines na prática médica, reforçando medicalizações e cirurgias precoces,
feitas sem suporte dos resultados e impactos desses procedimentos pela precariedade dos
120

estudos a longo prazo. O que proponho como pensamento futuro seria a compreensão dos tipos
de responsabilidade advindas da introdução de corpos intersexuais em modelos de gestão
biomédicos e farmacopolíticos. Esses suportes técnicos e institucionais são capazes de dar conta
das experiências em suas relações e negociações cotidianas? Ou simplesmente terminam em
apreensões discursivas segundo “puras” capitalizações de um corpo incluído no
regime/mercado “tecnobiopolítico”?

Nos sites das quatro empresas que financiaram o Consenso, aparece em destaque a
responsabilidade como tema/tópico101. Seja associada com uma responsabilidade corporativa
ou com uma meta de sustentabilidade, o termo está sempre relacionado (de maneira similar à
qualidade de vida/bem estar como horizonte clínico) com o investimento e a proteção de uma
“saúde global”. Um devir-mundo, supostamente comunitário, que se cumpre como função
retórica. Por isso é preciso detalhar as negociações e regulações globais desse modelo de
“responsabilidade”; contudo, podemos dizer que as características dessa concepção de “saúde
global” vendida e financiada têm cor, endereço, sexo/gênero e sexualidade marcada.

Logo, também podemos pensar, ainda dentro do texto do Consenso, se essas grandes
farmacêuticas financiariam pesquisas e congressos para o tratamento de condições não
patologizadas. Talvez o termo “distúrbios do desenvolvimento sexual” tenha sido escolhido não
só pela bagagem sociocultural que atravessa os saberes biomédicos sobre norma e
anormalidade, mas pelas pressões políticas e econômicas de farmacêuticas multinacionais. Elas
precisam tratar doenças, então financiar o cuidado de “intersexuais”, como categoria identitária,
não tenha tanta força quanto investir no tratamento de patologias com etiologias específicas e
descrições cada vez mais complexas. Como vimos, nem toda condição intersexual constitui
risco de vida, ao contrário, a grande parte dos casos atendidos integram diagnósticos de cunho
sociocultural, especialmente no que se refere aos modelos e tamanhos anatômicos do corpo e
aos papéis do sexo/gênero. Por conseguinte, manter certas classificações patologizadas
interessam a alguém.

Essas desigualdades persistentes na produção da intersexualidade enquanto condição


“anormal”, pois não seria um processo lógico do desenvolvimento sexual, permite sua
vinculação às negociações globais das biopolíticas. A intersexualidade torna-se não só uma

101
Segue os links dos sites de cada empresa onde tratam da “responsabilidade”:
http://www.pfizer.com/responsibility; http://www.novonordisk.com/sustainability/;
https://www.ferring.com/en/responsibility/; http://www.merckresponsibility.com/.
121

questão da “localização científica do sexo”, ou de seus gerenciamentos diários segundo


abordagens socioculturais e/ou clínico-cirúrgicas, mas de processos amplos sobre quais corpos
são registrados como passíveis de serem medicados, normalizados e capitalizados.

Allen Frances, psiquiatra estadunidense que durante anos dirigiu a formulação do


Manual Diagnóstico e Estatístico (especificamente o DSM-IV)102, recentemente lançou um
livro no qual critica a crescente medicalização da normalidade e da vida cotidiana. Saving
Normal (2014) se propõe a ser um chamado, conforme informa sua descrição de venda na
Amazon US, “para que todos recuperemos a totalidade de nossa humanidade”. Entretanto,
podemos nos perguntar sobre essa demanda: e a humanidade que nos importa nesta análise, a
humanidade escrutinada dos intersexuais, será recuperada? Será que pleitear melhores acessos
e cuidados na “medicalização da vida” dessas pessoas constituirá as mesmas em seres humanos
inteligíveis? Quando a própria noção atual de humano, nos moldes dos direitos humanos e
sexuais, se pauta em ideais valorativos de dimorfismos sexuais, e quando a medicalização da
vida é moeda corrente.

Não espero formular respostas para tais questões, mas apontar para o fato de que a
cidadania dessas pessoas se restringe sobremaneira quando a política, em suas múltiplas
camadas, se reduz às “emergências biológicas e sociais”. Todas as histórias, experiências e
negociações expostas ao longo dessas páginas estão em constante suspeitas frente às urgências
biomédicas e necessidades socioculturais de “normalização”. Assim, a nova forma de “cuidar”
da intersexualidade, cada vez mais (principalmente em modelos norte americanos e europeus)
integrada e articulada por diversos atores sociais, à primeira vista pode garantir uma melhoria
nas condições de atendimento hospitalar, mas os aspectos que englobam a necessidade
“emergencial” de suas veridicções e gerenciamentos não estão sendo colocados em crítica.

E por que considero importante pensar criticamente sobre essas questões? Porque por
mais que a inscrição de uma pessoa como sujeito de direitos se construa através de relações de
sujeição dentro de um regime/mercado tecnológico, biológico e político, em que a pessoa se
torna inteligível e capitalizável dentro desses fluxos, ela terá uma vida e um valor para si
independente dos trâmites de incorporação e “normalização” social. Atentar para a

102
Manual diagnóstico e estatístico dos “transtornos mentais” feito pela Associação Americana de Psiquiatria.
Serve de base para diversos organismos (como a OMS) e profissionais de saúde pautarem seus parâmetros de
condutas e atendimentos. O DSM-IV foi lançado em 1994. Atualmente se encontra na quinta edição, atualizada
em 2013.
122

relacionalidade e interseccionalidade das montagens103 possíveis de existir me parece uma


tarefa de reconhecer (científica e politicamente) as percepções e as capacidades humanas que
surgem da experiência de “abjeção”104. Ainda que os direitos humanos e sexuais sejam pautados
por um humanismo sexuado, a experiência da humanidade e sua aplicação na vida ordinária
não o são em todos os casos. Logo, abrir as possibilidades do que é o “humano” é respeitar o
fato de que “contra todas as probabilidades, as pessoas continuam buscando reconhecimento
social e maneiras de resistir, às vezes retrabalhando e sublimando aflições e constrangimentos”
(Biehl, 2011: 274). No rastro de Butler (2008), sobre os efeitos subversivos que repetições
generificadas de modo distinto da norma podem carregar, talvez ao atentar para essas
experiências possamos garantir não só melhores condições de atendimentos (clínicos e
institucionais), mas modificar jurisprudências com o cotidiano, com as contradições das
vivências, e então expandirmos nosso tradicional humanismo e seus direitos para acomodar
novos corpos e vidas.

103
“Para Deleuze e Guattari (1986, p. 86), montagens são inter-relações contingentes e mutáveis entre ‘segmentos’
– instituições, poderes, práticas, desejos – que constantemente constroem, entrincheiram e desagregam
simultaneamente seus próprios constrangimentos e opressões”. O termo enfatiza o desejo, e as maneiras modestas,
marginais e menores, que ele irrompe em campos sociais aparentemente rígidos (Biehl, 2011: 275).
104
Butler apresenta o conceito em Problemas de Gênero (2008) e o reitera posteriormente em outros trabalhos e
entrevistas, de modo que a experiência da “abjeção” seria um processo discursivo no qual determinados corpos
não têm “vidas consideradas 'vidas' [isto é, vidas habitáveis de forma inteligível] e cuja materialidade é entendida
como ''não importante'” (Prins, Meijer, 2002, inserção minha).
123

Glossário

Cariótipo

É o conjunto cromossômico dentro do núcleo de uma célula, que representaria a composição


cromossômica de uma espécie. O último par dos 23 pares de cromossomos em humanos são os
cromossomos sexuais, neles que se inscrevem a grande maioria das chaves para a diferenciação
sexual acontecer – mas não somente, pois também há ação dos cromossomos autossômicos,
como cada vez mais estudos científicos apontam. O exame de cariótipo é, portanto, um exame
para determinação do sexo cromossômico ou de alguma condição congênita. Realiza-se ao
extrair sangue para cultivo citogenético, com o objetivo de analisar células no estágio de
metáfase da divisão celular, isto é, uma fase em que o DNA está em grau máximo de
condensação e é possível a observação dos cromossomos através de um microscópio.

Clitoroplastia

Cirurgia feita para a correção estética do clitóris, a fim de reduzir seu volume e/ou aumentar
sua área de exposição.

Consenso de Chicago

Foi uma conferência proposta em 2005 pela Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society (PES)
e pela European Society for Paediatric Endocrinology (ESPE), que reuniu cerca de cinquenta
médicos de várias especialidades (e, apesar de pioneira neste sentido, apenas duas participantes
intersexuais, as ativistas Cheryl Chase e Barbara Thomas) para discutirem e pensarem sobre os
protocolos, manejos e gerenciamentos sociais, médicos e científicos que envolvem casos de
intersexualidade. Como resultado da conferência foi publicado em 2006 o texto “Consensus
Statement on Management of Intersex Disorders”, que serve de guideline atual, em níveis
internacionais, para tais protocolos, manejos e gerenciamentos das condições intersexuais.
124

Cromatina Sexual ou Corpúsculo de BARR

A cromatina sexual ou o corpúsculo de BARR acontece quando o cromossomo X está inativo


e espiralizado. Isso ocorre em composições cromossômicas em que há mais de um X presente,
por exemplo 46, XX ou 47, XXY. Em casos de somente um X presente (tipo 46, XY), o único
X fica ativo no par dos cromossomos sexuais.

Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DDS)

Proposta em 2006 pelo “Consenso de Chicago”, configura uma nova terminologia científica e
biomédica para tratar as condições intersexuais, afastando-se de termos anteriores como
intersexual e hermafrodita.

Escala Prader (I-V)

A escala Prader é uma classificação de virilização elaborada em 1954 para lidar com os níveis
de ambiguidade genital, sendo elas: Prader I – aumento isolado do clitóris, indicando que a
virilização tenha ocorrido após 20 semanas de vida intrauterina (VIU); Prader II – aumento do
clitóris associado a um introito vaginal em forma de funil, podendo visualizar-se aberturas
uretral e vaginal distintas, indicando virilização iniciada com 19 semanas de VIU; Prader III –
aumento de clitóris associado a um introito profundo, em forma de funil, com a uretra
esvaziando-se na vagina, como um pseudo seio urogenital, há vários graus de fusão lábio
escrotal indicando uma virilização ocorrida com 14-15 semanas de VIU; Prader IV – clitóris
fálico com abertura urogenital em forma de fenda na base do falo, indicando virilização ocorrida
com 12-13 semanas de VIU; Prader V – fusão lábio escrotal completa e uretra peniana,
indicando virilização ocorrida com 11 semanas de VIU (Damiani et al., 2001: 43).

Faloplastia

Cirurgia de construção ou reconstrução peniana feita com técnicas de transferência tecidual a


fim de reestabelecer a capacidade funcional ou estética do pênis.
125

Genitoplastia

Cirurgia feminizante que engloba reconstruções clitorianas e vaginais, como a clitoroplastia e


a vaginoplastia.

Guidelines

São publicações ou parâmetros científicos, e neste caso biomédicos, de “consensos”


protocolares, de manejo e formas de conduta referentes às condições e aos casos de
intersexualidade.

Hermafrodita, Pseudo Hermafrodita e Hermafroditismo

Classificação antiga, rastreada desde à Antiguidade, para identificar pessoas que continham os
dois sexos ou assumiam os dois papéis sociais generificados, de posições e atitudes masculinas
e femininas. Essas definições se modificam ao longo da História com o uso do mesmo termo e
seus acréscimos: pseudo, falso, verdadeiro. Como possui uma conotação histórica cheia de
significados e registros, sua utilização na atualidade não é bem vista por muitos acadêmicos,
médicos, familiares e pessoas intersexuais. Contudo, alguns ativistas intersexuais ainda a
utilizam como forma de denúncia e protesto frente às normalizações que ainda vivenciam.

Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC)

Condição que resulta na deficiência da enzima 21-hidroxilase produzida no córtex adrenal. “A


ausência ou inatividade funcional dessa enzima impede a produção normal de cortisol e de
aldosterona (em até 75% dos pacientes), desviando os produtos intermediários acumulados para
a síntese excessiva de andrógenos”, isto é, de hormônios androgênicos, como a testosterona. A
literatura médica indica que a combinação dessas variações congênitas, genéticas e hormonais,
que se manifestam desde o período intrauterino, são “responsáveis pelo surgimento, ao
nascimento, de um quadro clínico clássico na criança: genitália externa ambígua com vários
graus de virilização (nas meninas) e macrogenitossomia (nos meninos)” (Telles-Silveira et al.,
2009: 1113). Em sua forma clássica a condição também é perdedora de sal, sendo assim o único
caso de intersexualidade que, à primeira vista, pode conter risco de vida.
126

Hormonoterapia

Administração ou supressão de hormônios para vários fins, como terapia de masculinização,


feminização, tratamento de câncer, reposição hormonal após a menopausa, entre outros.

Intersexo e Intersexualidade

Inicialmente um termo biomédico para classificar as variedades de ambiguidades sexuais


identificadas, foi aos poucos sendo abandonada pela literatura científica e médica, ao mesmo
tempo em que se consolida como uma categoria identitária e de reinvindicação social e política.
Neste sentido, intersexual designa variedades de condições congênitas em que a anatomia, em
suas múltiplas camadas – genitais, gonadais, hormonais, cromossômicas e moleculares – não
se conformam em uma definição padrão de masculinidade e feminilidade entendidos como
típicos para homens e mulheres. Principalmente em contraposição à nova terminologia proposta
pelo “Consenso de Chicago”, intersexo se fortalece como uma categoria social que reflete
variações biológicas e anatômicas das determinações sexuais hegemônicas.

Escala de Maturação Sexual (MXPX)

Método de diagnóstico dos estágios do desenvolvimento sexual de um indivíduo, proposto por


um médico inglês chamado J. M. Tanner. As mamas seriam avaliadas quanto ao seu tamanho,
forma e características e definidas em uma tabela que vai do “M1”, estágio infantil e pré púbere,
até o “M5”, estágio adulto e pós púbere. Esta identificação de maturação sexual é realizada em
conjunto à análise dos pelos pubianos, cuja tabela de desenvolvimento sexual também é similar
ao das mamas, indo de “P1” à “P5”.

Síndrome de Insensibilidade Parcial ou Completa aos Andrógenos (SIPA/SICA)

A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA – e AIS, em inglês) é uma condição ligada
ao cromossomo X que afeta indivíduos com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou
parcial do processo de virilização intrauterina devido à alteração funcional do receptor de
andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et al., 2005: 88). Essa virilização
127

intrauterina diminuída significa que em casos totais o fenótipo será tipicamente feminino (com
o desenvolvimento de genitália feminina, apesar das gônadas testiculares não desenvolvidas),
já em casos parciais o fenótipo será ambíguo, o que levará às veridicções e gerenciamentos
sociomédicos de pacientes com tal condição.

Síndrome de Klinefelter (SK)

Uma das condições mais comuns referentes às combinações dos cromossomos sexuais,
chegando a ocorrer “em cerca de um entre quinhentos a seiscentos recém nascidos do sexo
masculino e em diferentes etnias” (Marques-de-Faria, 2002: 291). É diagnosticada quando uma
pessoa apresenta uma cromatina sexual a mais em seu par de cromossomos sexuais, por
exemplo, na composição cromossômica 47, XXY. Seus sintomas usuais são hipogonadismo,
isto é, diminuição da função das gônadas testiculares, e infertilidade.

Vaginoplastia

Cirurgia que serve para dois propósitos: reconstituir a anatomia vulvo-vaginal, por exemplo,
com reconstruções estéticas dos lábios vaginais, ou também criar e aprofundar um canal
vaginal, procedimento que requer o uso pós-cirúrgico de dilatadores vaginais.
128

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