Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Distinções do Desenvolvimento Sexual:
Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Distinções do Desenvolvimento Sexual:
Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade
Aprovada em
Banca Examinadora:
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª María Elvira Díaz-Benítez (Presidente)
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Fátima Lima
UFRJ-Macaé
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Paula Sandrine Machado
PPGAS/UFRGS
______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (Suplente)
PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara (Suplente)
IMS/UERJ
CIP - Catalogação na Publicação
Pires, Barbara
P667d Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos
científicos e atravessamentos políticos em casos de
intersexualidade / Barbara Pires. -- Rio de
Janeiro, 2015.
136 f.
1. Intersexualidade. 2. Humanidade. 3.
Biomedicalização. 4. Gerenciamento Sociomédico. 5.
Veridicção. I. Díaz-Benítez, María Elvira, orient.
II. Título.
Agradeço, antes de tudo, à minha mãe. A pessoa mais esforçada e mais teimosa que
conheço, só espero ter sempre um pouco da sua coragem para superação, não importando o
tamanho das adversidades. Obrigada por se dedicar tanto e por nunca duvidar da gente, espero
retribuir com a mesma potência todo esse cuidado. Do mesmo modo agradeço ao meu irmão
Vinicius. Por ser o meu oposto, o meu sol. Agradeço então, primeiramente, ao meu núcleo duro,
sofrido e amado. Com vocês dois eu supero tudo.
Também agradeço ao meu pai. Porque pessoas mudam até o ponto de não nos
reconhecermos mais, e os laços se desfazem, mas eu não seria o que sou sem você. De antíteses
nos formamos.
E mesmo sendo essa aquariana avoada que some e só se faz presente durante poucas
vezes no ano, agradeço aos Gomes por serem “minha família”. As visões e vidas tão diferentes
não impedem que nos amemos e nos apoiemos incondicionalmente. Por isso agradeço a minha
vozinha Zenith, o porto seguro de todos. Agradeço também ao meu vô Hilário. Minhas tias
queridas, Leinha, Nem e Lene. Aos tios Beto, Fernando, Gilson, Gegê, Maca, Paulinho e Van.
Meus primos e primas: Douglas, Thiago, Bruno, Carol, Weslley, Matheus e Lorena. Aos nossos
Natais, espaços de reencontros, farturas, verão, risadas soltas e, principalmente, de acolhimento
desde minha infância.
Agradeço também à Joana, minha avó paterna, que me confortou com carinhos e
alegrias desde que eu me recordo, e em meios a tantos conflitos sempre nos auxiliou com
atenções e cuidados fundamentais para que seguíssemos em frente. Saudades, vó.
E deslocando para além da família consanguínea, antes de me imaginar antropóloga, eu
só precisava sobreviver à adolescência e às angústias que se seguem quando você tem tempo
demais para se descobrir. Foram momentos de experimentações, ciladas e aprendizados, e sem
a troca e a companhia de amigos nada seria possível. Por isso agradeço aos amigos da época do
ensino médio que estão presentes até hoje, especialmente Érica Sarmet, Isabelle Weber,
Mikhaila Copello e Ricardo Wanderley. Agradeço também à Nathalia Gonçales, porque entre
os nossos acertos e tropeços juvenis, compartilhou comigo mais do que eu poderia esperar de
um “coming-of-age story”.
Durante a graduação, nas salas e escadarias do IFCS, pelos bares do Centro da cidade,
pelas choppadas, por sebos, a quilos, cadernos, livros e papeis de xerox, fui descobrindo o
mundo. Agradeço aos professores e aos amigos da UFRJ pelo convívio e pelo crescimento.
Agradeço muito mais aos meus amigos de estudos, de trabalhos e de uma vida toda, obrigada
Michel Carvalho, Tamara Lajtman e Tássia Mendonça. E mais detalhadamente porque vocês
merecem: Tássia, obrigada pelo “nosso jeitinho” tão distinto, mas tangenciável, pelo escracho,
pela genialidade e pelos reencontros. Tamara, obrigada pelos regalos, pela política latina, pelos
passeios barrenses e churrascos, por nos aproximarmos de fato quando parecia que já nos
conhecíamos antes. Michelito, obrigada por ser meu par, minha alma gêmea da terceira idade,
porque pode não se dar conta, mas é meu melhor amigo. Eu só tenho a agradecer por me
mostrarem a vida além de mim, do meu lugar comum, da minha experiência, do meu edital. Por
bons drinks, picnics e fechações, pela honestidade de contar e recontar crises existenciais, pelas
dicas e alteridades, quero vocês sempre perto.
Agradeço também à Magda Lajtman, mãe de Tamara, pois sem ela e seus contatos essa
etnografia não existiria. Muito obrigada pela memória e pela gentileza.
Em outro nível, agradeço às experiências de trabalho que me proporcionaram um
vínculo comunitário, e porque não também etnográfico, importante para começar a aprender as
dinâmicas de investigação e de pesquisa. Assim, agradeço ao ISER e às pessoas com que tive
o prazer de trabalhar por lá, Ana Paula, André, Ben, Carlos, Cuíca, Helena, Lilian, Maija, Paulo
Victor, Pedro, Raíza, Raphael, Suellen. Agradeço também ao Instituto Promundo,
especialmente ao Marco Aurélio Martins, por toda a oportunidade e força.
No Museu Nacional, agradeço aos amigos de mestrado por amenizarem o impacto dessa
nova fase do “videogame”. Sem salvar, sem novas vidas, com quilos de leituras e demandas
novas, mas com muito acolhimento e felicidade coletiva. Agradeço pela ajuda mútua e pelas
trocas não se limitarem ao entorno do chafariz do pátio. Um obrigada especial aos queridos
Aline Rabelo, Everton Rangel, Lucas Freire, Morena Freitas e Vlad Schüller. Os meninos,
principalmente, pela companhia nas viadagens e/ou pela nerdice. Por também me auxiliarem
demais com comentários, revisões e apoios. Estou com vocês em 2015 e para frente: vambora
fazendo.
Ainda no Museu Nacional, agradeço também às diversas experiências de aulas, todas
transformadoras, com as professoras Adriana Vianna, Giralda Seyferth e Renata de Castro
Menezes, e os professores Luiz Fernando Dias Duarte, Marcio Goldman e Eduardo Viveiros de
Castro. Da mesma forma, agradeço aos técnicos administrativos da secretaria do PPGAS,
especialmente à Drica e ao Bernardo, e aos funcionários da biblioteca Francisca Keller,
obrigada pelos pequenos auxílios burocráticos que, no fim do dia, fazem toda diferença.
Agradeço também à gentileza dos professores que aceitaram fazer parte da banca desta
dissertação, Luiz Fernando Dias Duarte, Fátima Lima e Paula Sandrine Machado. E aos
professores Adriana Vianna e Sérgio Carrara, por se disponibilizarem para serem suplentes.
Agradeço à María Elvira Díaz-Benítez pela orientação paciente e persistente, sempre
atenta às dinâmicas da escrita, organizações e prazos. E, principalmente, por me ajudar a
“segurar forninhos” com encontros e conversas sempre instigantes, que me proporcionaram
muitos caminhos fundamentais de análise. Agradeço também por formar o NuSEX, núcleo de
pesquisa de tantas apresentações incríveis e trocas importantes, que mobilizou meu ano de
2014, não deixando-o tão pesado com as minúcias da pesquisa e da escrita.
E sem a presença crucial de dois seres no meu dia a dia, teria terminado esta dissertação
muito mais cansada e muito menos sã. Por isso agradeço ao meu gatinho Milo, minha bola de
pelo ranzinza e carinhosa, companhia mais que essencial durante a escrita e a vida em geral. E
à Carina, porque podemos encontrar alguém que importa nos lugares mais improváveis.
Obrigada por estar comigo em meio às minhas inseguranças e loucuras. Por mostrar que
podemos amar profundamente de forma leve, sem pesos e desigualdades. Por não desistir
quando as diferenças são grandes, por ser a mais humilde, por quebrar minha casca. Por
compartilhar comigo a vida, as descobertas, as brincadeiras idiotas, os dramas familiares, a
nossa cama.
Mesmo sem nomear, não poderia deixar de agradecer às três instituições hospitalares
onde realizei a etnografia, bem como seus profissionais de saúde. Sem a abertura e disposição
desses médicos e especialistas para que pudesse acompanhar seus cotidianos de trabalho, outra
análise muito menos pungente teria que ser descrita nessas próximas páginas. De modo que
agradeço à receptividade, à compreensão com o meu tema e aos atendimentos – pois mesmo
que cheio de controvérsias e críticas, no que tange ao tema da intersexualidade, não há
questionamento em relação ao peso que esses profissionais investem em suas práticas médicas.
Acreditam nesses atendimentos, nessas verdades, de tal forma que dão tudo de si. Por isso
agradeço por se mostrarem tão inteiros.
No fim, nenhum agradecimento é suficientemente forte para expressar minha gratidão
com as crianças e jovens intersexuais, e suas famílias, atendidas nos hospitais que acompanhei.
Agradeço por narrarem suas vidas para mim, de maneira direta ou indiretamente, e
compartilharem seus dramas sociais e biomédicos de não conformidades, incertezas e angústias
corporais. Tentei da melhor forma que pude relatar suas histórias. Histórias das verdades que
atravessam a necessidade de ter um corpo sexuado, as mobilizações para ser alguém, os
caminhos reconhecidos como possíveis para se humanizar. Obrigada por iluminarem com suas
experiências algumas dessas controversas negociações.
Por último, agradeço à CAPES por financiar minha bolsa de mestrado, que permitiu
minha dedicação integral aos estudos e à esta pesquisa.
RESUMO
PIRES, Barbara
2015. Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e
atravessamentos políticos em casos de intersexualidade. Dissertação de
Mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Palavras-chave:
Intersexualidade; Distúrbios do Desenvolvimento Sexual; Humanidade; Biomedicalização;
Gerenciamento Sociomédico; Veridicção.
ABSTRACT
PIRES, Barbara
2015. Distinctions of Sexual Development: scientific paths and political crossings
in cases of intersexuality. Master Thesis in Social Anthropology. Rio de
Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
This dissertation consists in analysis of social and medical management of some intersexuality
cases, or in the controversial biomedical terms used at present days, of people with “disorders
of sex development”. The data described here results of a fieldwork in three hospitals located
in Rio de Janeiro city. Among geneticists, pediatricians, pediatrics endocrinologists, urologist
surgeons, psychologists and social workers, passing around three different clinics and wards, I
follow the care and appointments of intersexual newborns, children and youngsters. The social
and medical adjustments made in these bodies considered as ambiguous are analyzed both in
the genealogical method as well as in the contemporaneous clinical treatments. I also try to
connect these normalizing practices with the formation of knowledge of sex, gender and
sexuality. How the scientific guidelines increasingly genetic and descriptive updated the
medical practices? Moreover, how the incorporations of these protocols are lived daily by the
health professionals, by the intersexual political movements, by the families, and by the
intersexual children and youngsters? As a complement, a conducting wire go through these
managements where biomedical discourses in favor of a “psychosocial and psychic well-being”
of the patients end up occulting the negotiations of sufferings, discomforts, and uncertainties
that these atypical bodies and lives bring to light. Justifications towards presumed coherences
that hardly fulfils. At the bottom of these knowledges, practices, assimilations, and resistances,
exists continuous movements of veridiction of the sexual body. A particular need for reiteration
of regimes of truth according intelligible and functional human bodies, capable of being
socialized, sensitized and dwelled.
Keywords:
Intersexuality; Disorders of Sex Development; Humanity; Biomedicalization; Social and
Medical Management; Veridiction.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Introdução
Das sensibilidades de uma vida ambígua
Seguindo os eventos narrados, Herculine (ou Camille, como aparece sua persona nas
memórias) ganha o certificado de professora, passando no exame na primeira colocação, e com
isso uma chance de dar aulas em um colégio interno. Na época tinha 19 anos, de modo que
precisava trabalhar como professora assistente até os 21 anos de idade, para assim ser efetivada
como professora titular. Nesta escola, ela se apaixona por Sara, uma professora e uma das filhas
da proprietária do lugar. As duas eram responsáveis pelos ensinos das alunas – Herculine com
as alunas mais velhas, Sara com as mais jovens. Com a relação se aprofundando, já dividindo
a mesma cama, rumores sobre o comportamento muito carinhoso e suspeito das duas
começaram a se proliferar.
No dia seguinte, Herculine retorna para a consulta médica. Depois de um exame físico
bastante minucioso, o médico finalmente afirma para a mãe de Alexina, “é verdade que você
perdeu sua filha, mas encontrou um filho, um que não estava esperando” (Ibid.: 78). As terríveis
dores que sentia eram seus testículos não descidos na região pélvica. Herculine então se desfaz
de seu cargo como professora assistente, e termina seu romance com Sara, não só para evitar
um escândalo maior quando tudo fosse modificado, em seu registro civil, mas principalmente
pelas pressões sociais e institucionais impostas. Monseigneur de B., Monsieur de V., Monsieur
D., Doctor H., Doctor G., Doctor C., todos indicando os caminhos para Herculine restituir-se à
masculinidade verdadeira. Seu primeiro nome foi alterado, de Adélaïde para Abel. O
julgamento e seus dados foram posteriormente registrados no Annales de Médecine Légale.
Então, estava tudo acabado. De acordo com meu status civil, eu pertenceria, de
agora em diante, àquela outra metade da humanidade que é chamada do sexo
mais forte. Eu, que tinha sido criada até os vinte e um anos de idade em casas
religiosas, entre tímidas companheiras femininas, teria que abandonar esse
passado tão encantador e agora tão distante de mim, e como Aquiles, entrar nas
1
No original: “In our deliciously intimate conversations, she took pleasure in using masculine qualifiers for me,
qualifiers which would later suit my official status. ‘Mon cher Camille, I love you so much! ! ! Why did I meet
you if this love was to become the sorrow of my whole life? ! !’”.
3
listas, apenas armada com minha fraqueza e minha profunda inexperiência das
coisas e dos homens. (Ibid.: 89)2
As notícias se espalharam, não só pela população da cidadezinha onde vivia, com suas
conversas informais, surpresas, estigmas e acusações, mas também em publicações. Jornais de
Paris chegaram a noticiar a história de Herculine. Já como Abel, vai até a capital tentar um
emprego no sistema ferroviário. Ele – e desde que faz a transição passa a se referir no masculino
– em certa medida se responsabiliza por este fim (mesmo condenando a sociedade e a ciência
pela espetacularização do seu caso), acusa a si mesmo pela falta de tato e gerência com a
situação, principalmente em relação a Sara. “Que estranha cegueira foi esta que me fez seguir
neste papel absurdo até o fim?” (Ibid.: 114-115). A partir deste ponto até sua morte, os relatos
tornam-se fragmentados, amargos e viscerais.
2
No original: “So, it was all over. According to my civil status, I was henceforth to belong to that half of the
human race which is called the stronger sex. I, who had been raised until the age of twenty-one in religious houses,
among shy female companions, was going to leave that whole delightful past far behind me, like Achilles, and
enter the lists, armed with my weakness alone and my deep inexperience of men and things”.
4
3
A questão da veridicção em Foucault atravessa suas análises sobre poder e conhecimento, além dos escritos sobre
a sexualidade, e culmina na problemática da “parrhésia”, isto é, sobre a relação franca de sujeitos e subjetividades
com a verdade. Neste sentido, os regimes de verdade, e as relações específicas entre sujeitos dentro desses
processos (como a relação médico-paciente), “funcionam como uma prática de auto formação do sujeito”, em que
pauta-se uma obrigação com a verdade de si (Wellausen, 1996: 114). Esses jogos são conflituosos, com
controvérsias e resistências, como iremos desenvolver ao longo dos capítulos.
5
Mas essas normalizações não serão homogêneas e uniformes nem suas aplicações na
prática médica estão ausentes de críticas e diálogos para definição de condutas “centradas no
paciente”. As dinâmicas entre esses manejos cotidianos e os guidelines serão mobilizadores
para a reconfiguração de processos decisórios médicos mais inclusivos e o adiamento das
intervenções cirúrgicas em favor de outros cuidados terapêuticos menos mutiladores, duas das
demandas do movimento intersexual contemporâneo.
Podemos nos perguntar como, hoje em dia, ocorre as estratégias, em alguns momentos
conscientes e outros não, de manter essa congruência nos atendimentos dos casos de
intersexualidade? Assim, além de mapear alguns casos de intersexuais atendidos por
profissionais de saúde de várias especialidades, pretendo discorrer sobre como tal
gerenciamento sociomédico afeta a formação de corpos generificados e de práticas sexuais
hegemônicas e não hegemônicas. No limite, demonstrar como a concepção de sexo vigente
provoca a humanização de corpos impossíveis em corpos possíveis, necessários e coerentes.
No segundo capítulo faço, por um lado, uma análise bibliográfica contemporânea sobre
como o dispositivo da intersexualidade aprofunda suas localizações sobre a “verdade” do sexo
em instâncias cada vez mais moleculares, classificatórias e específicas. De modo
7
complementar, relaciono como a produção médico-científica volta-se para o estudo dos casos
de distúrbios do desenvolvimento sexual e, ao produzir consensos e guidelines sobre o tema,
influencia, afeta e direciona o manejo diário desses casos de intersexualidade. Por outro lado,
problematizo as controvérsias médicas e políticas de tais consensos, principalmente o consenso
classificatório de 2006, que atualiza os manejos clínicos e modifica a terminologia científica,
gerando rupturas, reorganizações, assimilações e resistências tanto no interior do campo
médico-científico como também dos movimentos civis intersexuais.
Logo, uma das ideias do capítulo é seguir o caminho proposto por Machado (2008a) de
perceber as práticas e os processos decisórios envolvidos no gerenciamento sociomédico da
intersexualidade. Tal manejo é problematizado segundo os apontamentos médico-científicos
dos artigos e consensos detalhados no segundo capítulo, entendidos como referências
mobilizadoras de condutas. Relacionar como a produção de conhecimento especializado sobre
o tema influi no tratamento diário dos pacientes intersexuais e, de outro modo, como as
controvérsias e os posicionamentos críticos do saber posto em prática requalificam as
experiências de cada caso e cada atendimento. Uma vez expostas as minúcias dos casos, tento
indicar em que medida essa trajetória médica, que vai da internação, passando pela construção
diagnóstica, circulando por cada especialidade, até a produção de intervenção para cada
paciente, pauta-se por guidelines cada vez mais moleculares, técnicos e descritivos (Machado,
2008b). Ao mesmo tempo, esclareço também como as atuações médicas mobilizam-se por
saberes “localizados” e não tão “consensuais”, pois atravessam concepções normalizantes,
olhares generificados, proliferação de valores, mediações de silêncio, dentre outros registros
sociais que atravessam o processo do saber-poder científico e de veridicção da intersexualidade.
Assim, analiso que corpos humanos precisam, dentro dessa ética e política contemporânea,
passar por transformações biomédicas para serem incorporados ao universo da “natureza
humana”. Contudo, as transformações se limitam às concepções de integridade corporal de cada
sujeito, isto é, as normalizações biomédicas podem ser feitas desde que autodeterminadas pelos
próprios intersexuais. As justificativas para as intervenções estariam em lugares mais
profundos, não somente biomédicos, mas embasadas pela própria noção de humanidade que os
direitos humanos e sexuais acionam para combater os excessos médicos; como dar conta dessa
contradição? Por outro lado, aponto também como, em uma escala mais macro, as experiências
da intersexualidade são gestadas a partir de processos farmacopolíticos (Preciado, 2008). No
final da dissertação busco refletir um pouco sobre como a medicalização da vida e as noções de
humano vigentes produzem “estados de exceções” (Cabral, 2006) que as pessoas intersexuais
precisam se adequar para terem vidas inteligíveis e possíveis.
9
Do we truly need a true sex? With a persistence that borders on stubbornness, modern Western societies
have answered in the affirmative. They have obstinately brought into play this question of a “true sex” in
an order of things where one might have imagined that all that counted was the reality of the body and
the intensity of its pleasures.5
4
Macrobius; Kaster, Robert A. Saturnalia. Volume 2. Harvard University Press, 2011, p. 58.
5
Foucault, Michel. Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-century French
Hermaphrodite, 2010, vii.
10
1
O “sexo” e a “sexualidade” precisando, modelando e
corroendo
Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora,
o masculino e o feminino, mas também havia mais um terceiro, comum a estes
dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então
um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao
11
Segundo o mito, os seres humanos já foram um dia seres duplos e integrados, enormes
e redondos, com quatro braços e pernas, duas cabeças e sexos. Os inteiramente masculinos,
eram os descendentes do Sol; os inteiramente femininos, eram os descendentes da Terra; e os
andróginos, tanto masculinos quanto femininos, eram descendentes da Lua. Ao tentarem escalar
o Olimpo para destronar os Deuses, Zeus os enfraquece cortando-os ao meio. Divididos, passam
a vagar em busca de sua metade para tornarem-se completos outra vez. O mito de origem da
humanidade, descrito por Platão, relata também a formação do amor – como falta – e da
concepção.
Neste período histórico, segundo Laqueur, “ser homem ou mulher fazia parte de um
todo envolvendo posição social, grau de liberdade, desejos, roupas, comportamentos e
espiritualidade, sendo a diferenciação genital apenas mais um, mas não o principal, dos
elementos que caracterizavam esta distinção, pois o corpo era visto como um só para os dois,
variando apenas seu grau de desenvolvimento” (Leite Jr, 2008: 19). Neste sentido, o sexo era
entendido como único – homens e mulheres, generificados em sociedade, possuíam uma única
carne (Laqueur, 2001: 19-20). A semelhança era o motor do pensamento e da representação.
Não havia uma retórica de dimorfismo sexual ontológica, a diferença era entendida como
relacional e se dava no nível das coisas, das palavras, da posição e do gênero.
6
No original: “Some say that he is a god, that he manifests himself from time to time among human beings, and
that he was born with a body marked by a double nature, both masculine and feminine, in the sense that his body
has the charm and delicacy that befit a woman, and the virility and energy of a man. Others say that those who
display natures of this kind are monsters that rarely make an appearance and that herald sometimes misfortunes,
sometimes good things”.
12
união – violenta – com a ninfa Salmácis. No mito descrito por Ovídio, em Metamorfoses,
Hermafrodito, ainda um jovem, perde a possibilidade de deter uma posição masculina e ativa
na sociedade, pois transforma-se em um “meio homem” ao conectar-se e então adquirir o sexo
e as características femininas de Salmácis, tornando-se estéril e efeminado (Brisson, ibid.: 57-
60).
Tal (re)concepção, podemos apontar, desloca uma noção de divindade com motivações
ritualísticas positivas, geradoras de fecundidade, para atestar através do mito o drama social de
um erro, expresso pela ambiguidade forçada. Erro este que era materializado nas crianças
andróginas. Não só no período helenístico, mas mesmo na Grécia Antiga, crianças com
ambiguidade genital eram sacrificadas como forma de aliviar algum presságio ou mal advindo
dos Deuses (Leite Jr, ibid.: 25).
Logo, a androginia pulsava entre um ideal divino e metafísico – como no mito dos
andróginos e na divindade Afrodito/Hermafrodito – para entendimentos materiais avessos à
ambiguidade, motivados pelo espanto, medo e receio da ira divina frente ao corpo humano
unificado. Nesta interpretação, se as mulheres já tinham uma posição subordinada, por não
possuírem calor e perfeição suficientes para tornarem-se homens, o lugar social dos seres
ambíguos fora da mitologia era marginal e arriscado.
Enquanto a tradição hipocrática entendia os seres ambíguos como um meio termo entre
extremos masculinos e femininos, Aristóteles e seus seguidores pensavam o hermafrodita como
alguém que transbordava, ou seja, alguém cuja geração teve tanto calor material por parte da
mãe, que excedeu os caracteres sexuais de um sexo só, tornando-se assim um ser ambíguo
(Dreger, 1998: 32).
De modo que, com o início de uma transição epistemológica, aos poucos é introduzida
uma nova composição das corporalidades. O corpo, ainda visto como contendo uma única
carne/sexo adaptável e muitos graus de desenvolvimento/gêneros, ganha cada vez mais
contornos biológicos e anatômicos. Tanto Aristóteles quanto Galeno (médico e anatomista do
século I), e também Soranus (físico do século II), discorreram sobre o modelo de sexo único,
na qual ligavam os órgãos reprodutivos masculinos e femininos, distintos em sua capacidade
de gerar, ao sistema alimentar e uma economia dos fluidos, comum a toda carne (Laqueur, ibid.:
48-49, 57).
uma essencialização de condições distintas entre machos e fêmeas – fato que depois iria
protagonizar o modelo de dois sexos – do que por uma necessidade de lidar com poder, status,
legitimidade e paternidade. Desta maneira, para o modelo do sexo único – no qual os órgãos
genitais eram pensados segundo uma semelhança, onde, por exemplo, a vagina era nomeada e
compreendida como uma versão invertida do pênis, mas com suas diferenças anatômicas cada
vez mais detalhadas a fim de comprovarem os funcionamentos da ordem social – o que
importava de fato era atestar a superioridade da potência do homem (Laqueur, ibid.: 70-72). A
anatomia trabalhava aqui para reforçar uma verdade ideológica, onde os limites entre as
mulheres e os homens ainda eram, em regra, sociológicos, e não ontológicos.
Assim, para os hermafroditas a questão não era ‘a que sexo eles pertenciam
realmente’, mas a que gênero a arquitetura de seus corpos mais se ajustava. Os
magistrados eram menos preocupados com a realidade corpórea – que o que
hoje nós chamaríamos de sexo – que com a manutenção de claras fronteiras
sociais, a manutenção de categorias de gênero. (Laqueur, ibid.: 171)
Neste contexto, a diferenciação e regulação desses seres não ocorria mais em níveis
espirituais e filosóficos. O sexo dominante deveria ser reforçado com vestimentas, atitudes,
ocupações e orientações. Com a crescente preocupação em indicar o sexo “válido” socialmente
em casos de difícil determinação sexual, o especialista era chamado ao tribunal. A observação
e o exame físico ganham importância, os comentadores da época insistiam que “mesmo quando
não há órgãos genitais visíveis, há sinais que indicam qual é o sexo mais potente e qual é menos
potente ou importante” (Ibid.: 176). Aos poucos, a relevância no comportamento –
evidenciando posições e status – se deslocava para a condição da pessoa – em termos puramente
biológicos e essenciais.
O calor não era mais a marca distintiva entre os sexos. Finalmente o discurso médico
assume “não só um repúdio explícito do velho isomorfismo como também, e mais importante,
uma rejeição da ideia de que as diferenças sutis entre os órgãos, fluidos e processos fisiológicos
15
refletiam uma ordem transcendental de perfeição” (Ibid.: 189). Não apenas em termos do
orgasmo, dos prazeres e da concepção que homens e mulheres tornam-se incomensuráveis, mas
também em estruturas que eram consideradas comuns aos sexos – os ossos e o sistema nervoso
são, da mesma forma, diferenciados de modo a corresponderem aos seus modelos culturais
vigentes.
Com raízes na medicina estatal alemã e na medicina urbana francesa, é na Inglaterra que
ela aperfeiçoará suas técnicas de vigilância e hospitalização em três ramos: assistencial,
administrativa e privada. Preocupada em controlar epidemias e doenças, mas também em
normalizar as atividades e o ensino médico, a grande mudança ocorre na medida em que se
institui uma medicalização dos corpos e uma disciplinarização dos espaços públicos. Há uma
atenção em controlar a saúde e o corpo das classes mais pobres para “torna-las mais aptas ao
trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (Foucault, 1977: 56), isto é, aperfeiçoando
gradual e continuamente suas capacidades ao mesmo tempo em que neutraliza-se as
possibilidades de resistência, tornando-os mais úteis como força de trabalho e dóceis
politicamente.
Segundo Foucault (Ibid.: 60-64), as técnicas disciplinares são antigas, mas existiam
isoladamente até o século XVIII, fortalecendo-se na medida em que o poder disciplinar foi
aperfeiçoado como uma tecnologia de gestão das populações – no exército, nas escolas, nas
fábricas. Contudo, não foi somente com a introdução dessas técnicas nos espaços hospitalares
que a medicalização foi possível, mas também pela transformação sofrida na prática e no saber
médico que marcou a transição epistemológica do período, com o advento da modernidade e
do poder médico-científico como um de seus pilares.
Neste sentido, uma forma de medicalização dos corpos que agiu como tecnologia de
poder e de normalização foi a regulação dos corpos com ambiguidades sexuais. Não era mais
permitido voltar e tornar-se um outro sexo, como no Renascimento; a tarefa científica em
meados do século XVIII era de desfazer as máscaras ambíguas impostas pela natureza e
determinar, através de um exame minucioso pelo corpo, o sexo “verdadeiro”. A biologia era o
fim possível e necessário.
18
Dentro dessa nova maneira de pensar e classificar o mundo, com as ciências médicas e
psiquiátricas conceituando monstros morais, invertidos e perversos, o hermafrodita da idade
clássica e medieval transforma-se novamente e torna-se o pseudo hermafrodita (Leite Jr, ibid.:
52). Nesta lógica, não há mais espaço para o meio termo. É imprescindível a descoberta do sexo
“real”, uma vez que torna-se impossível a existência de seres humanos fora da concepção
anatômico-social dos dois sexos vigentes. A prática médico-científica detém, neste contexto, a
responsabilidade de investigar a “verdade” por trás da aparente ambiguidade genital desses
desviantes. Como relata Foucault sobre o período,
Como apresentei nos tópicos anteriores, a normalização de corpos entendidos como fora
do padrão de feminilidade e masculinidade torna-se central dentro de uma economia de
regulação e correção dos corpos e das sexualidades. As fronteiras e limites do que é masculino
e do que é feminino precisam ser, nesta nova realidade biopolítica, esmiuçados e reafirmados
continuamente. Os corpos com ambiguidades sexuais tornam-se marcadores fundamentais para
o processo classificatório e político de governança das populações e das subjetividades.
7
No original: “From the medical point of view, this meant that when confronted with a hermaphrodite, the doctor
was no longer concerned with recognizing the presence of the two sexes, juxtaposed or intermingled, or with
knowing which of the two prevailed over the other, but rather with deciphering the true sex that was hidden beneath
ambiguous appearances”.
19
Neste sentido, no final do século XVIII e começo do século XIX, o discurso médico-
científico surge como a nova autoridade para declarar quais corpos eram corretos e anormais,
masculinos e femininos. Com a percepção moderna de que a natureza era o parâmetro de
referência, sendo um todo completo, os estudos sobre as anormalidades começam a ganhar
relevância, pois era a partir das nomeações e explicações do que era desviante, que ditavam as
regras do que era considerado o desenvolvimento normal. Assim, ao mesmo tempo em que o
antigo hermafrodita sai do espaço da não-natureza monstruosa, agora ele passa a ser tratado
como uma patologia que necessita de correção.
Destarte, o discurso médico da época confirma, somente indivíduos com ambos tecidos,
testiculares e ovarianos, seriam considerados hermafroditas verdadeiros. Com esta menção,
surgirá o termo falso hermafrodita para identificar os corpos ambíguos – por exemplo, uma
pessoa com tecido testicular, mas com a genitália feminina – que teriam alguma incongruência
entre suas gônadas e seus órgãos genitais, mas que, no fim, possuíam uma base “verdadeira”
masculina ou feminina (Ibid.: 59). Neste exemplo dado, o sujeito seria designado masculino
devido às suas gônadas testiculares.
8
No original: “Nineteenth-century theories of intersexuality—the classification systems of Saint-Hilaire, Simpson,
Klebs, Blackler, and Lawrence—fit into a much broader group of biological ideas about difference. Scientists and
medical men insisted that the bodies of males and females, of whites and people of color, Jews and Gentiles, and
middleclass and laboring men differed deeply. In an era that argued politically for individual rights on the basis of
human equality, scientists defined some bodies as better and more deserving of rights than others”.
9
Saint-Hilaire foi um zoólogo francês do século XIX, especialista de um tipo de investigação chamada
“teratologia”, termo cunhado por si mesmo, em que estuda espécies desviantes do que considerava ser uma
estrutura “normal” de desenvolvimento biológico, dentre eles casos de hermafroditismo.
10
Simpson foi um médico obstetra escocês do século XIX, muito reconhecido na Inglaterra por introduzir o
clorofórmio como instrumento anestésico, e também por ser a principal referência britânica sobre os estudos do
hermafroditismo em sua época.
21
Durante este intervalo, o fator gonadal para diferenciação dos sexos se estabelece como
um consenso médico. Incorporando esta nova dimensão sobre a “verdade” do sexo, o
patologista Theodor Klebs propôs, em 1876, um novo sistema classificatório para os casos de
ambiguidade sexual (Dreger, ibid.: 145). Nesta interpretação, a literatura médica da época
classificava os corpos ambíguos da seguinte forma: pseudo hermafrodita masculino, para os
casos de ambiguidade em que o tecido gonadal era testicular; pseudo hermafrodita feminino,
para os casos de ambiguidade em que o tecido gonadal era ovariano; e hermafrodita verdadeiro,
para os casos de ovotestis, isto é, nos quais encontravam-se ambos os tecidos, testicular e
ovariano11.
Assim, para traçar a história da medicalização de corpos ambíguos, foi preciso entender
como a história do gênero e do sexo, como modelos socioculturais, variaram através das épocas
na Europa. As tradições médicas europeias viajaram para novos territórios. Na América do
Norte colonial, até o final do século XVIII, o hermafroditismo também foi compreendido como
uma anormalidade. Sua monstruosidade não residia simplesmente na dupla “natureza” em que
dois sexos compunham um único corpo, mas era reprimido principalmente nos casos de
mulheres com clitóris avantajados designadas erroneamente como homens. O perigo englobava
os possíveis atos sexuais ditos pecaminosos e errados que essas mulheres consumavam, ao
utilizar suas genitálias “anormais”, com outras mulheres (Reis, ibid.: 14-15). Posteriormente,
11
No período, os tecidos encontrados nos hermafroditas verdadeiros não precisavam ser funcionais, somente
atestar a presença anatômica das gônadas, seja na forma dos testículos ou na forma dos ovários (Dreger, ibid.: 36).
22
como os europeus, na medida em que a definição sobre o sexo se modifica, também se altera a
regulação dos casos de ambiguidade sexual. O que permanece inalterado através das épocas e
lugares é o temor de que esses corpos ambíguos incitem a prática de sexualidades desviantes.
Como proposto por Judith Butler em Problemas de Gênero (2008), a reiteração de uma
matriz de heterossexualidade compulsória, produtora de subjetividades e gêneros, pode ser
observada nesta preocupação médica, científica e política em tratar das sexualidades desses
corpos ambíguos. Ao sair de explicações baseadas na monstruosidade para a impossibilidade
médico-científica, tanto na América do Norte quanto no Velho Mundo, é instaurada uma
ansiedade geral de regular e corrigir ambiguidades corporais que possam levar a condutas
sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
Devido às urgências sociais para a correção dos casos de ambiguidade sexual, as quais
equiparavam o desenvolvimento “anormal” dos pseudo hermafroditas com a prática mais geral
do que entendiam como “perversão sexual”, inscreve-se como crucial a intervenção precoce
nesses corpos. Os médicos insistiam que para evitar imoralidades como os casos de
homossexualidade – acreditavam que estes tinham deformações no cérebro que os levavam a
praticar tais atos depravados, da mesma maneira que hermafroditas tinham alterações em suas
genitálias em relação ao padrão gonadal “correto” e também estariam mais propensos a esses
comportamentos desviantes – fossem corrigidas as inversões congênitas antes que estas se
tornassem mais problemáticas.
23
Nesta direção, o hermafroditismo converte-se em um termo que podia ser usado tanto
para descrever uma condição física, com ou sem homossexualidade, mas também uma condição
psicológica que envolvia o desejo por pessoas do mesmo sexo (Reis, ibid.: 66). A lógica de
apagamento, impossibilitando a existência dos casos de hermafroditismo verdadeiro,
transpunha-se para essa classificação e regulação das práticas sexuais entendidas como
desviantes. A ambiguidade, seja corporal ou psíquica, precisava ser combatida. Desse modo, as
cirurgias de “des-sexualização” ou castração dos corpos ambíguos, para evitar performances
desviantes, ganham mais importância. Adequando as genitálias do pseudo hermafrodita para
os padrões vigentes, as operações eram consideradas um sucesso quando esses pacientes
mostravam-se aptos ao sexo heterossexual e, possivelmente, ao papel social do casamento e da
constituição familiar (Ibid.: 71). As cirurgias eram, nos casos de pacientes consideradas
mulheres (com tecido ovariano), de remoção de algum excesso clitoriano12 ou de
aprofundamento da abertura vaginal, e para os casos de pacientes considerados homens (com
tecido testicular), corrigiam-se formas atípicas das genitálias como as hipospádias13 para que a
12
Anna Fausto-Sterling ilustra esse excesso clitoriano, considerado como inaceitável para os padrões médicos de
genitália feminina, na figura 3.4 do terceiro capítulo de seu livro Sexing the Body (2000). Medidas acima de um
centímetro, para uma criança feminina, ao nascer, já seriam passíveis de correção cirúrgica.
13
Hipospádia é uma condição congênita em que a saída da uretra não se encontra na ponta do pênis. Mas,
ocasionalmente, em sua base ou, por vezes, na própria bolsa escrotal. Em alguns casos, essa alteração leva a uma
ereção do pênis com curvatura em direção à bolsa escrotal, em outros casos mais graves, há má formação do pênis,
apresentando uma forma parecida com uma lábia.
24
uretra ficasse na ponta do pênis – permitindo tanto a função sexual quanto, por exemplo, o ato
tipicamente “masculino” de urinar em pé14.
Após a Primeira Guerra Mundial, com a ruptura das estritas definições da Era das
Gônadas, novas tecnologias médicas e avanços científicos continuaram modificando as
categorizações do verdadeiro hermafroditismo e das localizações do sexo. Tecidos gonadais,
caracteres secundários, comportamentos, níveis hormonais e, por fim, as determinações
cromossômicas, foram fatores que fizeram possíveis a reavaliação das fronteiras do sexo e suas
regulações. Como já apontado, a única consistência através dessas evoluções técnico-científicas
foi o comprometimento médico com a manutenção das práticas heterossexuais a fim de garantir
a união de dois sexos opostos “perfeitamente” masculinos e femininos (Reis, ibid.: 85).
14
É importante notar que nas literaturas médicas da primeira metade do século XX, justifica-se muitas das
intervenções cirúrgicas a pedido dos próprios pacientes, que queriam ser normalizados para assumirem as funções
“corretas” e “coerentes” de seus sexos sociais, por exemplo, conseguir manter uma relação sexual heterossexual
com penetração. (Reis, ibid.: 87). Será discutido nos próximos capítulos como essas necessidades de normalização
são fundamentais para a autodeterminação do próprio gênero e sexualidade dos pacientes, mas que não deixam de
estar inseridas em processos e dinâmicas médicas, científicas, políticas e culturais sobre os limites e papéis de
homens e mulheres.
25
Acreditava-se que a morfologia genital poderia ser transformada para se adequar ao gênero
socializado. O sexo social designado deveria ser, portanto, o parâmetro para a genitália externa,
e quando necessário, operá-la para conformar mais “corretamente” ao modelo sexual escolhido.
Em paralelo, se interviria também em nível hormonal para afinar essas coerências.
Era óbvio para eles que outros fatores [psicológicos] desempenhavam um papel
mais significativo do que a anatomia. “O que esses outros fatores são atualmente
não estão claros,” eles divulgam em uma admissão incomum de incerteza. Eles
tinham problemas em entender porquê ou como uma pessoa com todas as
indicações de masculinidades [isto é, possuir tecido testicular funcional]
poderia modelar mente e emoções femininas, mas seus pacientes provavam
claramente as possibilidades. “Este estudo vai indicar,” eles concluem, “que em
termos gerais o ambiente e fatores situacionais (criação como menina,
identificação com a mãe, relacionamento com o pai, etc.) dessa paciente
desempenham um papel predominante em seu desenvolvimento emocional e
psicossexual.” (Finesinger, Meigs, Sulkowitch, 1942 apud Reis, 2009, inserção
minha)15
Como se nota, a conceituação de uma noção de identidade de gênero começa a se
delinear neste período. Seguindo inspiração nas teorias psiquiátricas do começo do século XX,
acreditava-se que as dinâmicas sociais, o ambiente, além das incorporações inconscientes, eram
fatores relevantes para designação sexual. Propunham moldar o sexo morfológico de alguém a
partir da identificação psicológica e social com um determinado gênero possível, masculino ou
feminino. Essa determinação acontecia a partir de testes psicológicos específicos, como
demonstrado no trecho anterior, em que a identidade de gênero era assumida segundo noções
de papéis sociais generificados hegemonicamente – a identificação com a mãe, a relação
submissa com o pai, o desejo heterossexual, dentre outros fatores.
15
No original: “It was obvious to them that other factors played a more significant role than anatomy. “What these
other factors are is at present not clear,” they disclosed in an unusual admission of uncertainty. They had trouble
understanding why or how a person with every physical indication of maleness could model the mind and emotions
of a woman, but their patient clearly proved the possibility. “This study would indicate,” they concluded, “that
broadly speaking the environmental and situational factors (reared as a girl, identification with mother, relationship
to father, etc.) in this patient played the predominating role in her psychosexual and emotional development”.
26
Neste registro, a situação se inverte. Não mais a morfologia sexual é transformada para
se adequar a um sexo social consolidado: com a tese de Money, a genitália deveria ser ajustada
o quanto antes para garantir o desenvolvimento “adequado” e “saudável” do gênero futuro.
Assim, uma vez que houvesse um caso de ambiguidade genital, impossibilitando a identificação
imediata do sexo, esse bebê seria moldado cirurgicamente para ter uma genitália com a
aparência mais “normal” possível – usualmente, genitálias femininas – e então comprometer
aos pais a criação e o cuidado necessários para assegurar essa designação.
Mesmo que médicos tenham discordado por séculos sobre quais fatores eram
os mais importantes na determinação sexual, praticamente todos concordavam
que alguns precisavam ser considerados. As gônadas, por muito tempo o
modelo de ouro, enfraqueceram em sua potência, mas outros critérios,
particularmente os hormônios e os cromossomos, e, para pacientes mais velhos,
a psicologia, eram avaliações necessárias. Money não abandonou
completamente esses outros critérios, mas em suas publicações ele enfatizava
cada vez mais a habilidade de criar genitálias mais fidedignas aos meninos e
meninas, as quais garantiriam uma inabalável e contínua criação em seus
gêneros particulares a fim de, consequentemente, gerar pacientes mais
saudáveis psicologicamente. (Reis, ibid.: 137)16
Essa percepção de Money, e de Joan Hampson, psiquiatra e colega de Money no hospital
Johns Hopkins, foi baseada na pesquisa dos dois com intersexuais. Diziam que os pacientes
adultos com ambiguidade sexual atendidos e entrevistados se sentiam bem com os gêneros com
que foram criados (Ibid.: 138). Desse modo, entendiam que intervir cirurgicamente na infância
16
No original: “Though physicians had disagreed for over a century about which factors were the most important
in determining sex, nearly everyone agreed that several needed to be considered. The gonads, long considered the
gold standard, had waned in significance, but other criteria, particularly hormones and chromosomes, and, for
older patients, psychology, all needed assessment. Money did not completely abandon those other criteria, but in
each publication he emphasized that the ability to craft genitals that most closely approximated those appropriate
for boys or girls would best ensure steadfast rearing in that particular gender and, hence, psychologically healthier
patients”.
27
ajudaria ainda mais na garantia da identificação e do papel de gênero desses sujeitos, pois não
teriam que passar por fases de constrangimento ou insegurança com seus corpos.
***
17
Ainda não temos hoje, no Brasil, nenhum grupo social e político autodenominado intersexual (ou em qualquer
outra variante classificatória apresentada na introdução), militando ou fazendo lobby politicamente de forma estrita
para pessoas com ambiguidade sexuais.
29
Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação
não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida
possíveis. Se essas normas forem inferiores — quanto à estabilidade, à
fecundidade e à variabilidade da vida — às normas específicas anteriores,
serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes —
no mesmo meio — ou superiores — em outro meio —, serão chamadas
normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a
ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente
repelida pela vida. (...) Se é verdade que o corpo humano é, em certo sentido,
produto da atividade social, não é absurdo supor que a constância de certos
traços, revelados por uma média, dependa da fidelidade consciente ou
inconsciente a certas normas da vida. Por conseguinte, na espécie humana, a
frequência estatística não traduz apenas uma normatividade vital, mas
também uma normatividade social. Um traço humano não seria normal por
ser frequente; mas seria frequente por ser normal, isto é, normativo em um
determinado gênero de vida.18
18
Canguilhem, Georges. O normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009.
31
2
O engolfamento terminológico e a resistência
minoritária
A história que desestabilizou esse protocolo de atendimento foi o de David Reimer, ou,
como ficou conhecido na literatura médica, o “caso John/Joan”. David, nascido e registrado
como Bruce, era um bebê 46, XY e não-intersexual, ou seja, não tinha nem uma diferenciação
no desenvolvimento sexual (cromossômico, gonadal ou anatômico) nem uma genitália
ambígua. Quando tinha seis meses de idade, foi diagnosticado com fimose e encaminhado para
uma circuncisão dois meses depois. Em 1966, o urologista que realizou a cirurgia, com uma
técnica de cauterização, queimou quase que a totalidade do pênis de Bruce. Brian, seu irmão
gêmeo e que também tinha a fimose, não realizou a cirurgia. Com o pênis severamente
danificado, a família, após descobrir sobre John Money e sua teoria da “plasticidade de gênero”,
leva o bebê até a Clínica de Identidade de Gênero, na Universidade Johns Hopkins (Butler,
2004: 59-60).
Em Baltimore, Money e sua equipe decidem redesignar o sexo do bebê e cria-lo como
uma menina, pois acreditava-se que a ausência de um pênis funcional e esteticamente adequado
impossibilitaria a estabilidade psicossocial da criança e o desenvolvimento “normal” da
masculinidade. O caso era visto como paradigmático para atestar sua teoria de socialização do
gênero, na medida em que um dos irmãos, Brian, seria criado no sexo social masculino, de
acordo com seu sexo cromossômico e gonadal, e o outro, Bruce, no sexo social feminino,
ajustando hormonal e cirurgicamente o que fosse necessário para adequar a anatomia ao sexo
designado. Caso a socialização dos gêmeos ocorresse sem resistências e de modo normalizador,
garantindo a fixação do gênero designado para as duas crianças, seria a comprovação ímpar de
sua tese.
apenas dezessete meses de vida na época (o limite para sua tese da “plasticidade de gênero” era
até os dezoito meses), Money acreditava fortemente na possibilidade de reajustamento do sexo
social (Reis, ibid.: 149).
19
No original: “In fact, Money and his colleagues were cognizant of children’s intuitive nature and suggested that
they would figure things out even if parents tried to conceal the child’s medical condition. They urged doctors to
tell the truth to affected children. “Thus, far from burdening them with unnecessary worries, it is actually a lifting
of the burdens of secret worries and doubts for the doctor to talk frankly with children. Truth is seldom as
distressing as the mystery of the unknown,” they counseled. Using the metaphor of “unfinished genitals,” Money
and his team thought it best for a child to learn about his or her body’s limitations, such as sterility, than to be
confronted with such knowledge later in life when the shock and disappointment might be greater”.
20
Para conhecer mais detalhadamente a história de David Reimer, ver Diamond, Sigmundson (1997) e Colapinto
(2000).
21
A família de David se desestabilizou com o gerenciamento pelo segredo, a mãe também entra em depressão e o
pai torna-se alcoólatra (Guimarães Jr, 2014: 51).
22
Butler (2004), a partir de várias documentações, também narra as situações e imposições que David/Brenda
passou durante a infância e um pedaço da adolescência, cito algumas: consumo de estrogênio, bullying escolar,
repetidas entrevistas médicas, argumentações por parte de Money para que aceitasse construir uma vagina – através
de métodos como fazê-lo olhar para várias fotos de vaginas, de mulheres em trabalho de parto, ser forçado a
conversar com mulheres transexuais sobre os benefícios da reconstrução da genitália, dentre outros casos mais
gráficos (Ibid.: 60).
35
Joan sabia que já tinha pensamentos suicidas provocados por esse tipo de
dissonância cognitiva e não queria estresse adicional. Joan lutava tanto com os
meninos como as meninas, que sempre a importunavam sobre sua aparência
masculina e roupas femininas. Ela não tinha amigos; ninguém brincava com ela.
"Todos os dias eles vinham mexer comigo, todos os dias eu era provocado,
todos os dias eu era ameaçado. Então eu disse que era suficiente…" A mãe relata
que Joan era bonita como garota. Mas "quando ele começava a andar ou falar,
isso o entregava, e o estranhamento e as incongruências tornavam-se aparentes."
(…) Mesmo com a ausência de um pênis, Joan tentava regularmente urinar de
pé. Apesar das advertências contra seu comportamento e tal desordem, Joan
persistiu a tal ponto que, na escola, ela foi pega urinando em pé no sanitário
feminino tantas vezes que as outras meninas recusavam-se a aceitar sua
presença no banheiro. A mãe relata que outras garotas ameaçaram “matá-la” se
ela persistisse. Joan também ia ao banheiro dos meninos para urinar. (...) John
relembra pensar, durante a pré escola até o ensino fundamental, que médicos
estavam mais preocupados com a aparência de sua genitália do que si mesmo.
As genitálias de Joan eram inspecionadas a cada visita no Hospital Johns
Hopkins. John relembra: "Deixe-me em paz e eu ficarei bem … Era bizarro.
Minha genitália não me incomoda, e não vejo motivo para que incomode vocês
tanto assim". (Diamond, Sigmundson, ibid.: 4-7)23
Entretanto, a crítica feita não foi somente em relação à precocidade e violência das
intervenções clínicas e cirúrgicas, ou em relação ao estigma, isolamento e vergonha causados
por um protocolo que se reafirmava por meio de ocultamentos e segredos, mas foi feita –
especialmente – para combater a visão de que a identidade de gênero pudesse ser maleável
socialmente. Contrários às teses de Money sobre as possibilidades de adequação de um sexo
social não congruente com o sexo biológico através da criação e do meio ambiente, Diamond e
Sigmundson ecoavam noções sobre um “núcleo de gênero essencial, que é ligado
irreversivelmente a uma anatomia e a uma determinação biológica do ser” (Butler, ibid.: 62). E
23
No original: “Joan knew she already had thoughts of suicide brought on by this sort of cognitive dissonance and
didn't want additional stress. Joan fought both the boys as well as the girls who were always "razzing" her about
her boy looks and her girl clothes. She had no friends; no one would play with her. "Every day I was picked on,
every day I was teased, every day I was threatened. I said enough is enough…" Mother relates that Joan was good
looking as a girl. But it was "When he started moving or talking, that gave him away and the awkwardness and
incongruities became apparent." (…) Despite the absence of a penis, Joan often tried to stand to urinate. Despite
admonitions against the behavior and the untidiness, Joan persisted to such an extent that, at school, she was caught
standing to urinate in the girls' bathroom sufficiently often that the other girls refused to allow her entrance. Mother
recalls the other girls threatening to "kill" her if she persisted. Joan would also go to the boy's lavatory to urinate.
(...) John recalls thinking, from preschool through elementary school, physicians were more concerned with the
appearance of Joan's genitals than was Joan. Her genitals were inspected at each visit to The Johns Hopkins
Hospital. John recalls thinking: "Leave me be and then I'll be fine … It’s bizarre. My genitals are not bothering
me, I don't know why its bothering you guys so much"”.
36
24
Entendo o conceito de “inteligibilidade” a partir da obra de Butler e o penso em diálogo com a noção de
“dispositivo” foucaultiano (Foucault, 2011). Neste sentido, a inteligibilidade é produto de ligações entre
instituições, categorias, linguagens, moralidades, dentre outras marcas de cognição e reconhecimento baseados na
matriz heterossexual compulsória que a autora apresenta e problematiza desde Problemas de Gênero (2008).
25
No original: “Thus, in the one case, how anatomy looks, how it appears to others, and to myself, as I see others
looking at me—this is the basis of a social identity as woman or man. In the other case, how the genetic presence
of the “Y” works in tacit ways to structure feeling and self-understanding as a sexed person is the basis. Money
thus argues for the ease with which a female body can be surgically constructed, as if femininity was always little
more or less than a surgical construction, an elimination, a cutting away. Diamond argues for the invisible and
necessary persistence of maleness, one that does not need to “appear” in order to operate as the key feature of
gender identity itself”.
37
sobre que tipo de corpo alguém necessita ter a fim de reclamar pertencimento em algum gênero
ou se a sensação de pertencimento em um gênero é colorida pela experiência de viver em um
corpo que foi tocado pela tecnologia médica”26 (Morland, 2014: 114).
Mariza Corrêa (2008) indica outra proximidade dos dois protocolos em suas tentativas
de normalizarem/naturalizarem aparências e essências, ao comparar a história de David com a
de Agnes, jovem mulher transexual. Ela, ao tomar de forma independente durante a
adolescência hormônio feminino, através de receitas dadas por sua mãe, feminiza seus
caracteres secundários e mascara seu “verdadeiro” sexo biológico masculino. A partir de então,
busca atendimento médico e argumenta que, na verdade, era intersexual. Com essa estratégica
de passing, convence vários médicos a realizaram uma cirurgia de redesignação sexual para
ajustar de forma coerente sua anatomia ao seu self feminino – um desses médicos era o
psiquiatra e psicanalista Robert Stoller, especialista da época em transexualidade e, assim como
seu contemporâneo John Money, também pioneiro no uso científico do conceito de “identidade
de gênero”27.
De modo que esses tratamentos são influenciados não só por concepções históricas
sobre o sexo, o gênero e a sexualidade, mas também por contextos científicos e intelectuais.
Money combinava uma noção de determinismo psicanalítico e de psicologia do ego para
justificar a “prática terapêutica” das cirurgias precoces em crianças. Imaginava que para que a
diferenciação psicossexual ocorresse de forma “adequada” era preciso que as genitálias
estivessem “corretas”, “normalizadas” e visíveis; o tratamento clínico e psicológico posterior
ajudaria a guiar a modelização do gênero de acordo com o sexo designado e a assentar os
conflitos interiores entre a anatomia corporal e a construção do self do indivíduo intersexual
(Morland, 2009a: 195). Iain Morland, intersexual, pesquisador do tema e professor de literatura
inglesa na Universidade de Cardiff, comenta sobre a conjuntura médica e científica do período:
26
No original: “(…) both intersex and transsexuality raise the question of what kind of body one needs to have in
order to claim membership in a gender and whether a person’s sense of belonging to a gender is colored by the
experience of living in a body that has been touched by medical technology”.
27
Para conhecer melhor a história de Agnes, ver Garfinkel (2006).
38
A normativa para uma maior produção de avaliações longitudinais existe, mas ainda são
escassas. Enquanto a técnica de “ocultamento” perde valor e referência nas atualizações do
discurso médico contemporâneo, ainda hoje são reiteradas a precocidade das intervenções
cirúrgicas como forma de atenuar o mais breve possível a angústia e o sofrimento das pessoas
intersexuais e seus familiares. Mas os resultados dessa precocidade cirúrgica continuam a não
ser avaliados uniforme e metodologicamente pelo mesmo saber científico que defende tal
intervenção. Conforme dois urologistas pediátricos descrevem em um texto sobre os
tratamentos e resultados da reconstrução cirúrgica em pacientes com hiperplasia adrenal
congênita:
28
No original: “The surgical assignment of gender therefore seemed to exemplify human nature, precisely because
it taught the lesson that humans have no nature in particular. In these ways (and doubtless several others), the
traditional treatment model straddles multiple understandings of selfhood in Western culture — a potent mix
enabling the model to work as an “ideological octopus,” which has appealed for many years to traditionalists and
progressives alike”.
39
29
No original: “Outcome data for feminizing genitoplasty is unique in that results are not known for 15–20 years.
This makes nearly all studies outdated, causing many surgeons to question their validity. The unfortunate reality
is that current reported outcomes of vaginoplasty and clitoroplasty are poor, with vaginal stenosis being noted in
30–98% and poor cosmetic results in up to 50%. Furthermore, the surgeons reviewing their results have focused
on vaginal size, cosmetics, and continence, whereas the patients are more concerned with sexual sensation and
satisfaction, orgasm, lubrication, and pain-free intercourse. Cosmetic and early functional results have nearly
always been favorable. It is the long-term outcomes where our increased knowledge must translate to improved
results. Review of the literature is frustrating because the type of procedure used, the original degree of virilization,
the location of the vaginal confluence, and the quality of endocrinologic control is often unknown”.
40
A partir da década de 1990, a intersexualidade passa a ser entendida por outros registros.
A preponderância médico-científica na identificação dos casos de intersexualidade ainda se
mantém, porém, outros discursos e práticas, como narrativas e autobiografias de intersexuais
expandem o domínio político de como esses sujeitos serão reconhecidos e tratados. O grau de
atenção que o caso de David Reimer trouxe para o protocolo de intersexualidade foi imenso,
com ele também se evidenciou o impacto deletério e violento, principalmente em níveis
psicossociais, da insistência em classificações e representações patologizantes de diferenças e
ambiguidades – variações não inteligíveis do que se esperam de corpos, sexos, gêneros e
sexualidades. Irei abordar na próxima seção as consequências e controvérsias que tais
classificações exercem em movimentos sociais e políticos intersexuais. Por ora, vou me
aprofundar nas duas últimas décadas, entre 2000 e 2010, ambas marcadas pela consolidação de
novos manuais diagnósticos e de gerenciamento da intersexualidade, cada vez mais específicos,
codificados e “neutros”.
30
Algumas ideias desenvolvidas e discutidas aqui foram primeiramente elaboradas na versão “Agenesia Humana:
alguns percursos médico-científicos em casos de intersexualidade” (2014).
41
sexual”31, por ser uma “urgência biológica e social”. Tanto biológica, já que, no entendimento
médico, “muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco
de vida”, como também social, “porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do
atraso do prognóstico, também do paciente, gera graves transtornos”. O “transtorno”, como já
vimos repetidas vezes, é duplo, da anomalia e do drama.
A busca por validar o manejo dos casos de intersexualidade, bem como garantir a
legitimidade das intervenções clínico-cirúrgicas após as críticas e dúvidas levantadas com a
história de Reimer, ajusta-se na medida em que o discurso médico se mobiliza para sanar essas
indisposições e desaprovações por meio de produções científicas mais intensas, especializadas
e que produzem consenso na área. Assim, em 2005, uma conferência proposta pela Lawson
Wilkins Pediatric Endocrine Society (PES) e pela European Society for Paediatric
Endocrinology (ESPE), reuniu cerca de cinquenta médicos de várias especialidades32 – e, apesar
de pioneira neste sentido, apenas duas participantes intersexuais, as ativistas Cheryl Chase e
Barbara Thomas33 – para discutirem e pensarem sobre os protocolos, manejos e gerenciamentos
31
No artigo primeiro da resolução, especificam que consideram “anomalias de diferenciação sexual as situações
clínicas conhecidas no meio médico como genitália ambígua, ambiguidade genital, intersexo, hermafroditismo
verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal, sexo reverso, entre outras”
(Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.664/2003).
32
A única participante brasileira do Consenso, a endocrinologista Berenice B. de Mendonça, também foi a única
médica latino-americana convidada para a reunião.
33
Cheryl Chase (pseudônimo de Bo Laurent) é uma ativista intersexual norte-americana que fundou, em 1993, o
grupo de suporte Intersex Society of North America. Barbara Thomas é uma ativista intersexual alemã que participa
do grupo de suporte XY-Frauen e Androgen Insensitivity Syndrome Support Group UK (AISSG UK).
42
sociais, médicos e científicos que envolvem casos de intersexualidade. Desta reunião, resultou
a produção do texto Consensus Statement on Management of Intersex Disorders (2006), no
qual chegam a alguns acordos comuns: necessidade de reformulação da nomenclatura vigente;
maior e melhor comunicação entre médicos, pacientes e familiares; e uma abordagem mais
cautelosa em relação a cirurgia – principalmente devido à falta de estudos longitudinais para
atestar os resultados e a eficácia cirúrgica, porém, continuariam indicando a intervenção
precoce em muitos casos.
34
A escala Prader é uma classificação de virilização elaborada em 1954 para lidar com os níveis de ambiguidade
genital, sendo elas: Prader I – aumento isolado do clitóris, indicando que a virilização tenha ocorrido após 20
semanas de vida intrauterina (VIU); Prader II – aumento do clitóris associado a um introito vaginal em forma de
funil, podendo visualizar-se aberturas uretral e vaginal distintas, indicando virilização iniciada com 19 semanas de
VIU; Prader III – aumento de clitóris associado a um introito profundo, em forma de funil, com a uretra esvaziando-
se na vagina, como um pseudo seio urogenital, há vários graus de fusão lábio escrotal indicando uma virilização
ocorrida com 14-15 semanas de VIU; Prader IV – clitóris fálico com abertura urogenital em forma de fenda na
base do falo, indicando virilização ocorrida com 12-13 semanas de VIU; Prader V – fusão lábio escrotal completa
e uretra peniana, indicando virilização ocorrida com 11 semanas de VIU (Damiani et al., 2001: 43).
35
A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA – e AIS, em inglês) é uma condição ligada ao cromossomo
X que afeta indivíduos com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou parcial do processo de virilização
intrauterina devido à alteração funcional do receptor de andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et
al., 2005: 88).
43
(2006a: 4, 2006b: 3). Nesses casos, a remoção quase que automática dos testículos é indicada
para que não seja assumido um risco maior, com possibilidade futura de mutação e formação
cancerígena do tecido, onde a ausência gonadal seria substituída por mais intervenções clínicas,
como a terapia de reposição hormonal. Como se nota, o consentimento e a autodeterminação
dos sujeitos intersexuais, crianças ou adolescentes, com seus próprios corpos, não foi uma
variável importante para se repensar ou ao menos atrasar as indicações para essas
“esterilizações”.
Por outro lado, no tópico em que discutem os resultados cirúrgicos, mesmo citando
alguns artigos científicos que demonstram resultados satisfatórios com as cirurgias precoces em
crianças intersexuais, prezam pelo tom crítico ao demonstrarem os riscos e alguns dos efeitos
deletérios nas cirurgias, como a clitoroplastia – que pode resultar em diminuição da
sensibilidade sexual e perda de tecido clitoriano – ou a vaginoplastia – que carrega o perigo de
formar cicatrizes e, assim, de repetição dos procedimentos até que a função sexual seja
alcançada. Por fim, indicam que “não há triagem de controle clínico para atestar a eficácia das
cirurgias precoces (até os 12 meses de idade) versus as cirurgias posteriores (feitas na
adolescência e em adultos)” ou até mesmo da “eficácia dos diferentes tipos de técnicas” para a
realização dos procedimentos cirúrgicos (Lee et al., ibid.: e496).
De toda maneira, o objetivo principal dessa produção foi, além de atualizar os manuais
de diagnósticos e manuseios dos casos de intersexualidade, o de eliminar os “termos que
pudessem causar dúvidas e/ou dar a conotação de o indivíduo ser ou estar sendo criado em um
sexo incompatível com o seu diagnóstico” (Damiani, Guerra-Júnior, 2007: 1014). Em outras
palavras, o Consenso teve a função de determinar novas (e mais neutras) categorias
classificatórias com o intuito de: 1) diminuir o caráter patologizante do termo “hermafrodita”,
que vimos genealogicamente no primeiro capítulo, 2) também de evitar a confusão e adesão
política do termo “intersexual” (termo que muitos pais de crianças intersexuais evitam por
passar uma impressão de um “terceiro sexo”) e, 3) principalmente, de afinar a terminologia
diagnóstica para melhorar o cuidado médico de “homens” e “mulheres” designados, ao mesmo
tempo em que afasta as possibilidades de fissuras trazidas pela materialidade ambígua dos
corpos a priori intersexuais. Como o próprio texto do Consenso revela,
Para exemplificar, o diagnóstico médico que antes era feito, dentro dos antigos “estados
intersexuais”, a partir da classificação de pseudo hermafroditismo masculino, agora torna-se
um “DDS 46, XY”38. Ou, caso seja possível, preza-se na utilização do termo descritivo do
“distúrbio específico”, como a Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos. De modo que a
crescente centralidade da genética e da biologia molecular na produção de conhecimento sobre
o tema é notável. A genética detém atualmente o grau de maior legitimidade para a explicação
sobre a diferenciação, a determinação e o desenvolvimento sexual. Como vemos na introdução
de um livro chamado Genetic Steroid Disorders39 (2014), a presença da linguagem biogenética
36
No original: “Terms such as “intersex,” “pseudohermaphroditism,” “hermaphroditism,” “sex reversal,” and
gender-based diagnostic labels are particularly controversial. These terms are perceived as potentially pejorative
by patients and can be confusing to practitioners and parents alike. We propose the term “disorders of sex
development” (DSD), as defined by congenital conditions in which development of chromosomal, gonadal, or
anatomic sex is atypical. (…) A modern lexicon is needed to integrate progress in molecular genetic aspects of sex
development. Because outcome data in individuals with DSD are limited, it is essential to use precision when
applying definitions and diagnostic labels”.
37
Tradução de “Disorders of Sex Development” (DSD), a nova classificação dos “estados intersexuais”, de acordo
com o Consenso de Chicago. Particularmente, preferi traduzir o termo “disorders” para “distúrbios” primeiro por
ser uma tradução que evidencia bastante o caráter patológico do termo, mesmo que a tradução mais próxima da
inscrição inglesa seja “desordens” (e apesar de muitos artigos médicos nacionais traduzirem como “anomalias”),
e também porque meus interlocutores de campo chamam os casos de intersexualidade que atendem de “DDS”,
portanto, “Distúrbios/Desordens do Desenvolvimento Sexual”, e não “ADS” ou “Anomalias do Desenvolvimento
Sexual”.
38
As outras mudanças foram: pseudo hermafroditismo feminino para “DDS 46, XX”, hermafroditismo verdadeiro
para “DDS ovotesticular”, homem XX para “DDS testicular 46, XX”, sexo reverso XY para “disgenesia gonadal
completa 46, XY” e síndrome de Turner/Klinefelter para “DDS ligado ao cromossomo sexual”.
39
Este livro foi organizado e editado, em conjunto com médicos de outras especialidades, pela endocrinologista
Dra. Maria New, tida como referência nos estudos dos “distúrbios do desenvolvimento sexual”, especialmente nos
casos de hiperplasia adrenal congênita. Dentre os médicos e pesquisadores que contribuíram para a organização
do livro, encontram-se onze brasileiros.
45
40
Publicação datada do ano de 1865.
41
No original: “The history of steroid disorders is very old. The first published report of a cadaver with ambiguous
genitalia whose sex was changed from female to male was given to me by one of my mentors, Alfred Bongiovanni.
The cadaver was a male who was found at autopsy to have ovaries, uterus, and Fallopian tubes, and the adrenals
were extremely large. These findings were considered by the dissector, de Crecchio, to be wondrous and
mysterious. This publication by de Crecchio is considered by many to be the first report of a female with congenital
adrenal hyperplasia raised as a male. (…) Early studies of steroid disorders investigated steroid metabolites in the
urine, and later used serum hormone levels to identify the disorder. Thereafter, steroid disorders benefited greatly
from the advent of molecular biology. Indeed, this book demonstrates that each steroid disorder causing both
clinical and biochemical abnormalities in patients now has a genetic basis”.
42
Com os avanços dos estudos da biologia molecular, começamos a conhecer alguns dos genes que estão
envolvidos no desenvolvimento sexual e, consequentemente, nos casos de “DDS”. É o caso do “DDS testicular
46, XX”, nova terminologia do que era conhecido como homem XX, em que há uma translocação do gene SRY (e
46
possivelmente outros genes), usualmente um gene presente no cromossomo Y, mas que aqui surge no cromossomo
sexual X – de modo que se desencadeia na vida intrauterina uma diferenciação sexual masculina, mesmo com o
cariótipo 46, XX. Há casos mais raros desse tipo de “DDS”, em que o indivíduo de fenótipo masculino e cariótipo
46, XX não apresenta translocação do gene SRY, indicando que haveriam muitos outros genes, autossômicos e/ou
ligados ao X, responsáveis pela determinação gonadal (Damiani et al., 2005: 80).
43
Especificamente aqui, para entender o termo dentro do recorte antropológico que pensa racionalidade, regimes
de verdade e produção de discursos, artificialidade, biopoder, escrita etnográfica, dentre outros temas dialógicos
da conjuntura reflexiva apelidada de “pós moderna”, ver Rabinow (2002).
47
De maneira similar, outra crítica de cunho pós moderno que se fortificou com as
mobilizações lgbt’s – sobretudo com a conjuntura da epidemia de HIV/aids (Gould, 2001) – foi
o questionamento das patologizações. Seguindo o rastro do pensamento foucaultiano de que a
ideia de normalização dos corpos e das diferenças funda e mantém o biopoder na modernidade,
e também de que as próprias construções hegemônicas sobre o tempo e o espaço são
generificadas e sexualizadas (Halberstam, 2005), a movimentação política contra com as
classificações patologizantes indica uma oportunidade para se repensar as relações de poder e
as práticas de produção de verdade sobre o corpo e sobre as identidades. Não haveria mais uma
única verdade sobre o sexo, como também não haveria mais o privilégio médico sobre o registro
da experiência da intersexualidade.
Unido (Diamond, 2004: 4)44. Posteriormente, em 1993, Cheryl Chase (que participou do
Consenso de Chicago descrito no tópico anterior), funda a Intersex Society of North America
(ISNA)45, buscando acabar o com estigma perpetuado pelas classificações médicas negativas
como também prover suporte para indivíduos com condições congênitas que se encaixem nas
descrições de intersexualidade. Durante esta época, o uso do termo “intersexual” ganhou força
política e legitimidade enquanto identidade para representação do movimento social – mais
além, outros intersexuais aprofundavam a crítica contra a patologização ao vestirem camisetas
com os dizeres “Hermafroditas com Atitude” e irem protestar em congressos médicos contra a
estigmatização e as cirurgias genitais precoces em crianças (Reis, ibid.: 155).
44
Sites dos grupos de suporte: Turner Syndrome Society of the United States – http://www.turnersyndrome.org/;
Klinefelter's Syndrome Association (KSA) – http://www.ksa-uk.net/; Androgen Insensitivity Syndrome Support
Group (AISSG) – http://www.aissg.org/.
45
Site da Intersex Society of North America (ISNA) – http://www.isna.org/.
46
Para uma discussão aprofundada sobre a abordagem jurídica da intersexualidade, ver a dissertação de Anacely
Costa, “Fé cega, faca amolada: reflexões acerca da assistência médico-cirúrgica à intersexualidade na cidade do
Rio de Janeiro” (2014), e a tese de Anibal Guimarães, “Identidade cirúrgica: o melhor interesse da criança intersexo
portadora de genitália ambígua. Uma perspectiva bioética” (2014).
47
Site da Organisation Internationale des Intersexués (OII) – http://oiiinternational.com/.
48
A capilaridade da rede é enorme, com apoio a organizações em áreas como Palestina (http://www.alqaws.org/)
e Uganda (http://sipd.webs.com/). De modo que é surpreendente notar a falta de grupos de suporte e movimentos
sociais intersexuais no Brasil.
49
Por conseguinte, com a revisão do Consenso de Chicago para uma nova nomenclatura
diagnóstica da intersexualidade, apoiando-se em termos mais descritivos e genéticos, mas ainda
assim mantendo uma base patológica ao categorizar esses sujeitos como pessoas com
“distúrbios do desenvolvimento sexual”, viu-se abrir uma controvérsia entre os grupos de
suporte e movimentos sociais e políticos intersexuais.
49
Uso o termo pensando em Gilles Deleuze, quando ele diz em uma entrevista que ficou conhecida como o
“Abecedário”, que a distinção entre maiorias e minorias não se trata de uma questão quantitativa, mas de desafios
de afrontamentos e capturas. Enquanto o primeiro termo indicaria um modelo “vazio”, por exemplo, o do “homem,
adulto, macho e cidadão”, o segundo termo seria “todo mundo” não compostos nesse modelo. Nesta concepção, a
minoria seria a subtração de uma multiplicidade, um devir-minoritário em que esse “minoritário” compreende
percepções “mulher”, “índio”, “criança” etc, singularidades que inventam novas forças ou novas armas contra as
formas instituídas.
50
No original: “We acknowledge the traditional owners of country throughout Australia, their diversity, histories
and knowledge and their continuing connections to land and community. We pay our respects to all Australian
Indigenous peoples and their cultures, and to elders of past, present and future generations”.
50
Neste sentido, após a publicação do texto do Consenso, uma das primeiras organizações
de ativismo intersexual, a Intersex Society of North America (ISNA) publica em conjunto com
pais de crianças intersexuais, alguns médicos e ativistas intersexuais, dois livros que servem
como guidelines para o gerenciamento sociomédico dos “DDS”. Ambas as publicações são
derivadas do Consortium on Disorders of Sex Development, realizado pela ISNA51, também em
2006, em que reafirmam o compromisso estabelecido em Chicago para a utilização da nova
nomenclatura.
51
É interessante notar que a historiadora e filósofa da ciência Alice Dreger, que citei bastante no decorrer do
primeiro capítulo com seu livro Hermaphrodites and the Medical Invention of Sex (1998) co-dirigiu a ISNA por
sete anos (em diversos cargos) e, antes do seu término, organizou, coordenou e editou o DSD Consortium’s e seus
guidelines.
51
Logo após a publicação desses guidelines, a ISNA se dissolve e, em seu lugar, surge
uma nova organização chamada Accord Alliance52, criada em 2008 (Machado, 2014). Nota-se
que não leva mais o termo “intersex” no nome. Em seu site, no FAQ com a pergunta “Qual a
utilidade da terminologia DDS? Quando esta não é útil?”, eles indicam que um dos problemas
das terminologias antigas (como pseudo hermafrodita ou intersexual) é que elas especificam
um tipo de identidade, quando, na verdade, a condição não é um aspecto crítico da identidade
do paciente. E continuam ao dizerem que, em contraste aos termos antigos, a categoria “DDS”
refere-se a condição que a pessoa tem, não ao que a pessoa é – e finalizam: “[o termo novo]
procura colocar a pessoa em primeiro lugar” (Accord Alliance, 2014).
52
Site da Accord Alliance – http://www.accordalliance.org/.
53
Essa distinção é importante, pois esclarece muito sobre as dinâmicas conflituosas dos saberes e práticas
biomédicas “individualizadas” em contraste com as dimensões mais “holistas” das pessoas intersexuais nos
movimentos sociais. Uma válvula de escape desse conflito seria, como já citei na introdução, instigar um cuidado
mais “centrado no paciente” (isto é, mais “totalizante” em relação à experiência da saúde/doença).
52
desenvolvimento natural do sexo. (…) Seria ingênuo pensar que uma mudança
na nomenclatura poderia tirar o estigma de gêneros atípicos. É o último salto –
isto é, um enfoque nos distúrbios específicos em questão – que considera a
promessa imediata de desmedicalizar aspectos da condição que foram
impropriamente patologizados. (…) Nós devemos admitir que enquanto não há
terminologia que possa erradicar o estigma de anatomias atípicas, uma
nomenclatura que situe as condições no modelo “usual” da medicina – como
uma questão de saúde em vez de identidade – pode certamente ajudar a corrigir
os muitos erros feitos no passado. (Ibid.)54
Independente das atuações e dos ganhos políticos das duas pesquisadoras – ambas são
“aliadas” de movimentos sociais intersexuais –, percebo a proposta das duas neste artigo como
bastante paradoxal. Primeiro porque tentam justificar uma terminologia medicalizante (mas que
foi “impropriamente patologizante”), através dos termos cada vez mais descritivos e
codificados dos sexos cromossômicos, das condições clínicas e dos tipos de síndromes, para a
partir das mesmas tentar reavaliar os excessos cometidos em nome do discurso e da prática
biomédica. Enquanto este mesmo discurso não possibilitaria, no fim, a criação de uma
nomenclatura que possa erradicar completamente o estigma das pessoas que nascem com
anatomias fora dos padrões hegemônicos – exatamente porque esses padrões são culturais, e
não classificações criadas no vácuo da linguagem médica-científica.
54
No original: “Perhaps ironically, what makes intersex conditions like no other is that they have been treated,
both by physicians aiming to “correct” them and by activists resisting these same practices, as an issue of identity.
If the change in nomenclature can promote the important development of attention to the genuine medical issues
associated with intersex conditions and so displace the concerns with gender identity, then intersex can be counted
among the many disorders for which the terms “normal” and “abnormal” are taken to mark differences— some
consequential, others less so—in the functioning of human bodies (…) Thus, the introduction of DSD marks
another moment in the history of medicalizing bodies that defy the norms of so-called natural sex development.
(…) It would be naive to think that the change in nomenclature can destigmatize gender atypicality. It is the latter
shift—that is, a focus on the specific disorders in question— that holds immediate promise for demedicalizing
aspects of the condition that have been improperly pathologized. (…) We must grant that while there is no
terminology that can eradicate the stigma of atypical anatomies, nomenclature that situates conditions in the
“usual” way of medicine—as matters of health rather than identity—can certainly help to correct many of the gross
wrongs of the past”.
53
de normalidade e de conduta. Para essas pesquisadoras tal justificativa seria aceitável já que,
pelo menos assim, os sujeitos intersexuais teriam assegurado uma atenção e cuidado médico no
modelo usual da Medicina.
55
Link da matéria: http://www.advocate.com/commentary/2014/05/14/op-ed-whats-name-intersex-and-identity
54
diferenças como uma “identidade”. (…) E mesmo que alguns digam que DDS
é uma classificação melhor para aqueles que não são andróginos ou LBGT, já
que a intersexualidade é associada com os dois, algumas dessas orgulhosas
pessoas “intersexuais” são na verdade héteros e normativas em relação à
expressão de seus gêneros. Eles perceberam que mesmo que não fossem LBGT,
ainda sofreriam discriminação porque nós desafiamos o sexo e as normas de
gênero. (…) Eu respeito o direito de todos se identificarem como eles
preferirem, mas pessoalmente, falar que sou intersexual soa muito melhor do
que dizer que eu tenho alguma coisa – com uma doença.56
É neste sentido que ativistas intersexuais contrários à classificação dos “DDS”
vocalizam uma parceria, pelo menos em nível retórico e político, com o movimento das pessoas
com deficiência, ao argumentarem que estes nos ensinaram que uma condição atípica não
significa necessariamente um distúrbio – e mais, que a diferença não precisa ser vista como
inerentemente menor e insuficiente. Se a palavra indica uma necessidade de reparação, então a
nova nomenclatura estaria contradizendo a centralidade do ativismo intersexual, que anatomias
atípicas não precisam de adequação através de “correções” cirúrgicas e hormonais (Reis, ibid.:
156). A insistência na palavra “distúrbios/desordens” marca uma orientação supostamente
lógica e natural do desenvolvimento sexual, na qual corpos que não se encaixam nos modelos
binários ainda precisam ser alvos de reconstruções, cuidados médicos e justificativas.
56
No original: “It wasn’t intentionally insulting intersex people: It was just using our current medical label — and
probably got it directly from advocates. Yes, some advocates in the United States use the term DSD, particularly
those who work with parents of intersex children. The reason I’ve been given is that some parents and intersex
people themselves prefer to say they have a disorder or a medical condition to labeling their difference an
“identity.” (…) And while some say DSD is better for those who aren’t androgynous or LGBT, since intersex is
associated with both, some of these proudly “intersex” folks are indeed straight and gender-normative. They realize
that even if we’re not LGBT, we’re still discriminated against because we challenge sex and gender norms. (…) I
respect everyone’s right to identify as whatever they want to, but personally, saying that intersex is what I am feels
much better than saying it’s something I have — like a disease”.
57
Se, por um lado, não há uma organização estritamente intersexual no Brasil, a incorporação de intersexuais na
cena política nacional é fundamental. Com a crescente visibilidade da experiência transexual, também há uma
maior inclusão do debate e do reconhecimento das demandas e das experiências intersexuais, mesmo que tais
sujeitos ainda sejam, de certa maneira, fragmentados frente à política mainstream gay e lésbica.
55
58
No original: “The consortium suggested that the term “disorder of sex development” should be substituted for
“intersex” and for “intersex conditions”; however, other parties have suggested that this terminology is no less
stigmatizing than many other terms that have been offered, such as “defective differentiation of the genital system”
or “sex errors”. The largest intersex support group in the world—Organisation Intersex International—considers
such terms negative, supports the use of nonstigmatizing expressions such as “variety of sex development”, and
would probably support the term “differences of sex development”, which we now prefer. These terms
acknowledge the variations inherent in intersex conditions, but also respect the notion that individuals are being
portrayed rather than just medical disorders”.
56
“divergências” ou “diferenças”. Mas é exatamente pelo risco dessa modificação indicar que o
peso maior do tratamento dos intersexuais é de caráter cultural, isto é, revelando os problemas
de gênero – e as necessidades hegemônicas de “correção” e normalização dos corpos – e não
exclusivamente no atendimento e cuidado médico-hospitalar como o ponto nevrálgico do
gerenciamento, que tal mudança não foi e não é realizada. A integridade corporal atravessa a
linguagem. Enquanto os termos do debate sobre intersexualidade focarem de maneira seletiva
no consenso científico e no tratamento clínico, e não abrigar as críticas e possibilidades da
discussão sobre gênero, sexualidade, política e poder, excessos e estigmas continuarão a serem
produzidos e proliferados através de discursos e práticas, sejam elas acadêmicas ou médicas.
57
Un anochecer de noviembre de 1958, mi madre había entrado al baño donde yo estaba jugando
en la bañera. Había ido al doctor unos pocos días antes y los hombres habían mirado entre mis
piernas. Ella me dijo que debía ir al hospital al día siguiente para una operación. Recuerdo algo
huyendo de mí en ese momento, como viento a través de una puerta que se cierra–– todo mi
poder escapándose. No se me dio ninguna explicación de la cirugía, y cuando el cirujano cortó
la mayor parte de mi clítoris de media pulgada, fue como si hubiera cortado mi lengua. No pude
llorar a los gritos para salvarme, y ese grito ahogado apretaba mi garganta, bloqueando mi voz.
Miedos sin fin acerca de quién y qué era yo tomaron el lugar de las palabras, y se instalaron
como un velo sobre mí. (Martha Coventry)
A los 16, cuatro años después de la última de nueve cirugías, empecé a pensar
seriamente qué carajos podía haber sido peor que esta amasijo de carne con
costuras, insensible al tacto y repugnante a la vista. ¿Mear sentado de por
vida hubiera sido peor? ¿Cómo pudo alguien convertir mi cuerpo en esto?
(Ariel Rojman)59
59
Cabral, Mauro. En estado de excepción: intersexualidad e intervenciones sociomédicas. In: Cáceres, C. F.;
Careaga, G.; Frasca, T.; Pecheny, M. (eds.). Sexualidad, Estigma y Derechos Humanos. Desafíos para el acceso a
la salud en América Latina. Lima: FASPA/UPCH, 2006.
58
3
Vidas verificadas, sofrimentos vividos
Assim, de antemão, percebo que o recorte da dissertação se insere dentro de uma linha
mais geral antropológica-etnográfica dos “studying up” (Nader, 1972). Tais estudos podem ser
descritos como diferenciais à tradição metodológica pela escolha do pesquisador em estudar
grupos, dentro de sua própria sociedade, com dinâmicas de poder distintas (mas não
necessariamente inversas) aos registrados nas interações com os “nativos” ou os “colonizados”
– sujeitos mais clássicos da inquietação e do estudo antropológico. Dessa maneira, em vez de
tecermos uma relação desigual, a priori, “de cima para baixo”, examinando eventos e pessoas
segundo recortes em que a mobilidade e estrutura de poder seriam mais “precárias” ou menos
evidentes, escolhe-se pesquisar situações ou grupos que participam ativamente
(conscientemente ou não) dessas malhas de produção de discurso e poder. Assim, o
estranhamento e o distanciamento causados pela pesquisa não seriam uma propriedade única
dos “estudados”, mas seriam compartilhados também pelo pesquisador, a partir das assimetrias
de poder impostas pela reconfiguração dos reconhecimentos e papéis sociais dos sujeitos em
jogo no campo.
densas dos espaços e das práticas cotidianas nos laboratórios, busca relatar como se produz uma
diferença de conhecimento específica das sociedades ocidentais – a junção de um fato científico
com um artefato técnico através de inscrições, experimentos, manipulações e deslocamentos
que moldam a reflexão e o fazer científico. O que interessa nessa visão de ciência é percebê-la
também como uma construção social, “marcada pelas contingências situacionais e pelos
interesses específicos dos contextos nos quais tais construções são realizadas” (Bonet, ibid.:
23). Este fazer etnográfico se desenvolve ao tentar elucidar “como” se mediam e desenrolam
os caminhos para que um enunciado científico seja incorporado como consensual, ou melhor,
como ciência regulada e formalizada.
Neste sentido, nos termos de Haraway (1995), os saberes são localizados. Se todo
conhecimento é parcial, pois social e historicamente situado, a importância de Haraway para
este trabalho é o de dizer que precisamos ir além dos rastros das mediações transcendentais
científicas – por exemplo, dos corpos tornando-se cada vez mais códigos biomoleculares,
segundo suas explicações genéticas. Precisamos, ela diz, procurar “uma rede de conexões para
a Terra, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito
diferentes – e diferenciadas em termos de poder” (Ibid.: 16). Médicos, pacientes, pesquisadora,
todos atualizando os efeitos de poder, biomédicos e generificados, postos em relação nos
espaços hospitalares. O que surge daí? De modo que,
Dito isto, nos dois capítulos anteriores já rastreamos algumas justificativas para as
contínuas normalizações, de modo que o capítulo atual se estrutura na descrição das escolhas e
das práticas clínicas que são tomadas atualmente para garantir aquilo que é posto como “fim
comum”: uma noção específica de integridade e bem estar físico e psicossocial dos pacientes
intersexuais. Ao mesmo tempo em que tais escolhas e práticas são particulares e localizadas.
Portanto, será que noções e posições específicas de gênero, sexualidade, classe, cor,
procedência, capital cultural, marcam as maneiras possíveis de leitura de um exame, as
configurações de um diagnóstico, os encaminhamentos de um tratamento? De modo que tento
interpretar alguns desses significados para além das “objetividades transcendentais”. Narrar as
61
60
Seguindo a mesma metodologia de nomeação de Machado (2008a) e Costa (2014), utilizo a sigla da
especialidade (ou da posição, no caso dos residentes) do interlocutor em conjunto com um número, que se refere
a ordem cronológica de encontro e interação na trajetória do trabalho de campo. Esta estratégica detém importância
também na medida em que pretendo preservar o anonimato dos médicos e a confidencialidade institucional.
62
hormonais básicas eram feitas no próprio hospital) encaminhavam os pacientes para tratamento
em outra instituição, em um hospital parceiro no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
Nos dois meses que acompanhei as rotinas de atendimento dos profissionais de genética
do HZS, não consegui observar o atendimento de nenhum caso de intersexualidade, apenas
manter conversas informais sobre casos e prontuários antigos. Os casos de intersexualidade
“estavam em falta”, como me diziam, então minha movimentação inicial foi a de reconhecer o
mais prontamente possível as lógicas de atendimento e de diagnóstico desses profissionais, já
que não estava ciente de como se organizava as rotinas biomédicas. Os atendimentos dos
profissionais da área da genética ocorriam em um ambulatório pediátrico, mas voltado para esta
especialidade, de modo que eram atendidos diversos casos, principalmente casos de trissomia
do cromossomo 21 – mais conhecido como Síndrome de Down.
Por conseguinte, para que essa construção seja possível, é necessário adquirir uma
expertise médica, e tal competência passa por uma reconfiguração do olhar desses profissionais
de saúde. Assim como Bonet, Machado (2008a) também fala sobre a formação desse habitus
médico, o qual nomeia como “treinamento do olhar”. Em suas palavras:
(1988 [1976]), é dessa forma que a medicina conserva e reforça sua legitimidade
social de falar sobre os corpos, produzindo um discurso de verdade sobre os
mesmos, exatamente como o faz sobre o sexo. (...) Transmite-se, assim, a ideia
de que só é possível falar sobre aquilo que se vê, no entanto só é possível ver
“corretamente” depois de ter sido iniciado. (Machado, 2008a: 142-143)
Em vista disso, fui inicialmente para o HZS porque descobri nos contatos introdutórios
pré campo, através de trocas de emails com a geneticista do hospital que me introduziu no
campo, a existência de um possível caso de “genitália ambígua” marcado para atendimento. No
dia da consulta, entretanto, a residente de genética responsável pela assistência anuncia que o
caso não era de intersexualidade. Esclarece que em seu exame físico não verificou qualquer
traço de ambiguidade na genitália da criança, sustentava que a genitália era de uma “menina
normal”. A paciente tinha sido encaminhada de outro hospital, pela pediatria, os quais
suspeitavam da ambiguidade anatômica. R1 estava no terceiro e último ano de residência, e
afirmava que não havia nenhuma confusão diagnóstica, fato assegurado por ela ao chamar a
mãe da criança para olhar e comprovar que a genitália de sua filha era claramente feminina.
Não realizou nem mesmo o exame de cariótipo61 para definição do sexo cromossômico, sem
demora, liberou a criança da consulta com a finalização do exame físico.
Semanas depois desse caso, em um dos dias de ambulatório, que eram realizados
segundas, quartas e sextas na parte da manhã, um dos residentes me esclareceu mais sobre como
61
É um exame para determinação do sexo cromossômico ou de alguma condição congênita. Realiza-se ao extrair
sangue para cultivo citogenético, com o objetivo de analisar células no estágio de metáfase da divisão celular, isto
é, uma fase em que o DNA está em grau máximo de condensação e é possível a observação dos cromossomos
através de um microscópio.
64
A gente examina, né. Até pra se ter uma hipótese. Hiperplasia tem que ser
afastada logo porque pode levar ao óbito, é grave. A gente examina, vê se parece
mais um ou outro, de acordo com... [o padrão]. (...) Sempre se colhe o cariótipo
pra poder, mesmo que isso não faça diferença no que você vai fazer depois, mas
pelo menos pra determinar, precisa. [Faz parte do diagnóstico?] É, na verdade
vem pra genética pra isso principalmente, pra ver qual o sexo cromossômico.
(...) Às vezes, como é a suspeita de hiperplasia, já vem até dosado a 17-alfa-
hidroxilase. Às vezes não, aí fazemos essa também. Aí os exames de imagem e
tal é de acordo se já foi feito ou não, depende de como a criança chegou. Às
vezes ela vem do berçário, aí lá a gente pede tudo.
GEN1 também era contratada de outro hospital público de alta complexidade. Depois
de dois meses de acompanhamento no departamento de genética do HZS sem nenhum
atendimento agendado ou caso de intersexualidade encaminhado, ela me aborda para noticiar
que estava participando de uma equipe multidisciplinar com o objetivo de atender um possível
caso de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) em outro hospital, na Zona Norte do Rio de
Janeiro, e que eu poderia acompanhar o desenvolvimento desse caso, se estivesse interessada.
Prontamente aceitei. De tal forma que acontece minha primeira circulação entre hospitais.
62
As observações em colchetes e itálico serão usadas na transcrição da entrevista para indicar meu diálogo com a
GEN1, representando tanto perguntas quanto complementações que fiz à sua fala no momento mesmo da
realização da entrevista.
65
O Hospital Zona Norte 1 (HZN1) localiza-se nas proximidades de uma das maiores vias
expressas do Rio de Janeiro, em vista disto, recebe pacientes de várias localizações da cidade e
do estado. Diferente dos outros dois hospitais onde realizei o trabalho de campo, este é o único
com atendimento emergencial, além de disponibilizar atendimento ambulatorial, cirúrgico e
internação. O paciente que a GEN1 tinha mencionado se chamava Marcos 64. Ele estava
registrado com sexo e prenome masculino e foi internado no hospital com apenas 1 mês de
idade sofrendo de vômitos, mal-estar e desidratação acentuada. Desde o primeiro momento de
internação, foi tratado para o quadro de desidratação e monitorado.
63
Algumas ideias desenvolvidas e discutidas aqui foram primeiramente elaboradas na versão “Agenesia Humana:
alguns percursos médico-científicos em casos de intersexualidade” (2014).
64
Todos os nomes apresentados ao longo do capítulo serão nomes fictícios.
67
Mas tal diferenciação não parecia tão brusca assim, na verdade, tinha certa continuidade
entre as anatomias sexuais. Pela escala médica, apontaram que Marcos estava com o grau de
virilização Prader V. Ela determina os graus de virilização da genitália, e neste nível indicava
que a genitália parecia ser mais visivelmente masculina possível. Na superfície era tudo igual,
na anatomia era bastante similar, exceto a falta de gônadas. De tal forma que somente com a
minúcia do exame físico foi possível detectar a ausência testicular. Logo, associaram a
descoberta com o quadro de desidratação, e determinaram que o pré diagnóstico de Marcos era
de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC). Contudo, para confirmação e intervenção clínica
ainda precisavam da definição do sexo cromossômico.
65
A partir deste momento, me refiro ao longo do texto à “Hiperplasia Adrenal Congênita” pelo uso de sua sigla
“HAC”.
68
Deste modo, em sua forma clássica, a HAC é “perdedora de sal”. Sua incidência não é
consensual, mas varia entre 1:10.000 e 1:20.000 nascimentos, sendo mais “prevalente em
alguns grupos étnicos, particularmente em regiões geográficas remotas (por exemplo, os Yupiks
do Alasca)” (Speiser et al., 2010: 7). No Brasil, a incidência é maior, de 1:7.533 nascimentos
(Silveira, 2008: 4).
Nas hipóteses de cariótipo 46, XY, o único cromossomo X fica ativo, por isso não
apresenta a cromatina. O resultado do teste corado evidenciando a cromatina sexual e,
consequentemente, pelo menos um X inativo, demonstrava que o sexo cromossômico de
Marcos já não incluía o masculino usual. Entretanto, o patologista que realizou o exame não
quis “se comprometer” – informação da GEN1 que acompanhava o caso – com a definição do
sexo feminino em um paciente que estava registrado com o sexo e prenome masculino. A saída
então era retirarem sangue para a análise citológica e uma definição mais fidedigna do cariótipo.
Na visão dos médicos, a angústia da “emergência social” não podia apressar a definição mais
objetiva possível do sexo cromossômico, pois ali constava a verdade molecular do sexo.
Logo que saiu o cariótipo do bebê, afirmando o sexo cromossômico de 46, XX,
confirmou-se o diagnóstico de hiperplasia adrenal congênita. Mesmo com o sexo
66
Entende-se clinicamente como um desenvolvimento excessivo e prematuro dos órgãos genitais e caracteres
sexuais secundários masculinos.
69
cromossômico definido, associaram o resultado aos outros exames clínicos pedidos, que
também assinalavam taxas de hormônios androgênicos elevadas – comprovando a lógica da
produção excessiva pela suprarrenal. Desta forma, providos de vários tipos de exames e com
um diagnóstico fechado, os médicos atuantes no caso, das áreas de pediatria, genética,
endocrinologia e psicologia, decidiram realizar uma reunião multidisciplinar a fim de
produzirem um consenso sobre o manejo do paciente e sua família67.
Algumas explicações já haviam sido dadas para a família, especialmente para a mãe,
que era a familiar que sempre estava presente durante a internação de Marcos. Enquanto a mãe
era do lar, o pai trabalhava em um restaurante, mas faltava ao trabalho ocasionalmente durante
o tempo de internação para acompanhar as explicações e os gerenciamentos médicos. Como
minha relação de campo, neste momento institucional e hospitalar, não permitia o
acompanhamento dos profissionais de saúde em contato com a família, soube dos
desenvolvimentos dessas abordagens e conversas pelos próprios médicos com quem mantinha
interlocução. Posto isto, o que me foi descrito era que eles “esclareceram dúvidas preliminares”
para a família ao afirmarem que o sexo masculino designado ao nascer não estava definido,
além do fato de que o “diagnóstico não estava fechado”, ainda precisavam de mais tempo para
a determinação sexual.
67
De acordo com o Consenso de Chicago, a composição ideal para uma reunião multidisciplinar de casos de
intersexualidade teria a participação de pediatras com especialistas nas áreas de endocrinologia, cirurgia e/ou
urologia, psicologia/psiquiatria, ginecologia, genética, neonatologia e, se possível, alguém da assistência social,
da enfermaria e da bioética (Lee et al., 2006: e490).
70
quais, por sua vez, também não sabem se explicar para seus filhos/filhas em atendimento, que
terminam por internalizar ainda mais sofrimentos e angústias. No caso em questão, os médicos
também indicaram para a mãe que na próxima conversa iriam explicar os encaminhamentos
necessários com base na reunião multidisciplinar agendada.
Das indicações médicas para a família, uma é fundamental para o entendimento das
práticas científicas como (um dos) eixos na produção de subjetividades: pediram para os pais
levarem o bebê com roupa rosa na próxima consulta. Antes, nos dias de internação na
enfermaria pediátrica, a mãe só vestia o bebê com roupas azuis. Sugeriram também que a
família desse outro nome ao bebê – o prenome no registro civil só pode ser alterado por meio
de decisão judicial, e é necessário um laudo médico explicando a condição de intersexualidade
para justificar a modificação do registro civil no âmbito jurídico, mas a equipe médica já indica
para a família chamar o “antigo” Marcos por um nome e gramáticas femininas. Nesses casos,
um dos médicos me confessou, não adiantava de nada a decisão médica de designar para o sexo
feminino se a família não reforçasse este sexo social cotidianamente.
73
68
É uma cirurgia feminizante que engloba reconstruções clitorianas e vaginais, como a clitoroplastia e a
vaginoplastia.
75
existir uma congruência entre o corpo sexuado, representado aqui pela “genitália ambígua”, e
o sexo cromossômico e gonadal do paciente, haveria uma sensação de angústia que não
permitiria esse bebê ser aceito e socializado plenamente. Mas para que essa inserção necessária
ocorra, para que a entrada no regime de inteligibilidade do binarismo sexo-gênero seja eficaz,
como homens ou mulheres cisgêneros69, é norma a mediação médico-científica, independente
das implicações cirúrgicas serem deletérias e mais questionáveis do que positivas.
Possivelmente Martha terá que passar por outra cirurgia de reparação durante a puberdade, para
aperfeiçoar o resultado cosmético e funcional da genitália, e mesmo assim não há garantia de
que um desempenho funcional e sexual satisfatório se concretize.
69
O termo “cisgênero” tem uma utilização arriscada dentro do tema da intersexualidade. Ele indica um contraponto
ao termo “transgênero”, isto é, alguém não se sente confortável com o sexo designado ao nascer, e é utilizado pelos
transexuais como forma de questionar os marcadores e as relações de poder do sexo e da sexualidade, que
privilegiam as narrativas e os sujeitos cujas identidade dê gênero são coerentes com o sexo assignado. Nomear a
experiência intersexual dentro de uma categoria trans* tem seus limites, mas utilizo o termo aqui exatamente para
evidenciar essas mesmas estruturas de poder. A lógica médica busca reconstruir os corpos sexuados desses sujeitos
dentro de estratégias e protocolos científicos similares, em que perseguem uma ficção de coerência sobre
identidade de gênero e sexualidade da mesma forma que detém o registro da “verdade” sobre o desenvolvimento
sexual e as “localizações” do sexo.
70
Para ver uma discussão sobre as práticas de intervenção tecnológico-cirúrgica aplicadas sobre os corpos
intersexuais com objetivos de “correção”, e uma comparação desta prática com outras de “mutilação genital”, ver
Knauth, Machado (2013).
71
O principal glicocorticoide usado no tratamento de pacientes com HAC é o “cortisol”, que em sua forma sintética
é chamado de “hidrocortisona”. A reposição excessiva desse hormônio ou de outros tipos de glicocorticoides pode
desencadear uma supressão no crescimento que levaria a “prejuízos ao crescimento linear e maturação fisiológica
do paciente” (Gilban, 2013: 5).
76
72
Essa referência é reiterada a todo momento, como quando um endocrinologista pediátrico do HZN2 me corrige
quando digo “intersexuais” ou “intersexualidade” para “DDS”, ou seja, esses “distúrbios do desenvolvimento
sexual” surgem nesses espaços passíveis de serem normalizados.
73
Termo biomédico atual para definir a condição das experiências transexuais.
77
androgênicos durante o período intrauterino, como nos casos de HAC, levariam a uma
virilização do cérebro e um consequente imprint cerebral do sexo-gênero reforçado neste
período (Jorge et al., 2008; Meyer-Bahlburg et al., 2008; Frisén et al., 2009; Nucci, 2010). Essa
regulação a priori à vida social entre genótipo, fenótipo e identidade de gênero é contestável
do ponto de vista dos discursos antiessencializantes, pois retira o caráter plástico do corpo
sexuado (ainda que fora dos registros hiperconstrutivistas moneyzianos), mas de todo modo é
interessante perceber a heterogeneidade de discursos e saberes produzidos biomedicamente
acerca das possibilidades de determinação sexual em casos de intersexualidade. Conforme
discorre a GEN1 sobre um caso que já acompanhou:
Na minha primeira ida ao HZN2, percorri muitos prédios e salas do hospital a procura
do ambulatório de endocrinologia. O espaço fica em um hospital de alta complexidade, com
muitos departamentos ambulatoriais, mas sem o atendimento de emergência. A endocrinologia
pediátrica funciona em dois turnos semanais, é uma grande sala dividida em várias repartições
– pequenas salas que servem de consultórios, outra área que se ajusta em arquivo para os
prontuários, um laboratório maior, e um espaço coletivo onde os médicos acessam
computadores, descansam entre suas consultas e, quando termina o horário de atendimento, os
residentes repassam alguns casos atendidos durante o dia com os professores. Neste primeiro
encontro, fui para acompanhar o atendimento do caso de intersexualidade que o ENDOPED1
havia me contado no HZN1.
74
A partir deste momento, me refiro ao longo do texto à “Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos”
pelo uso de sua sigla “SIPA”.
79
A mãe esperava na porta do departamento com uma prima dela, enquanto esta segurava
Ana Luisa, de 2 meses de idade no colo. Estavam aguardando a segunda consulta. Elas vieram
de Acari75 até o hospital pelo metrô, cotidiano que se repetiria ao longo desses meses, sempre
retornando em horário de pico da linha 2 – horário de vagões lotados com trabalhadores
regressando para suas casas após o fim do expediente –, já que o ambulatório terminava
usualmente entre 16 e 17 horas nas terças-feiras. A criança estava sem registro civil, no
prontuário do ambulatório era apenas identificada como “RN de Michelle”. A falta de registro
ocorria porque a mãe não tinha recebido a “declaração de nascido vivo” (DNV) do médico
responsável pelo parto, documento que identifica o recém-nascido provisoriamente. A
vinculação do número da DNV é obrigatória para que qualquer criança seja registrada
civilmente em cartório. Sua emissão é de responsabilidade do profissional de saúde que
acompanhou a gestação ou o parto do recém-nascido, de modo que se a variável “sexo” não for
preenchida, como na hipótese de um caso de “genitália ambígua”, impossibilita-se a produção
do registro civil. E foi o que ocorreu.
75
Os bairros, capitais e estados citados ao longo do capítulo foram trocados a fim de preservar a identidade e a
confidencialidade dos pacientes e de seus familiares.
80
Por isso é interessante notar o fato de a investigação ser feita através das mesmas
mediações técnicas. O ultrassom obstétrico é incerto para a definição sexual do bebê de
Michelle, mas o ultrassom pélvico não. Ele irá verificar mais profundamente a “verdade” do
sexo ao traduzir a existência das gônadas, as quais auxiliarão na construção diagnóstica e
designação sexual da criança. Dentro desta racionalidade científica, as marcas corporais
precisam cada vez mais serem examinadas em suas minúcias imagéticas e moleculares. A ficção
do corpo desvelado intrinsecamente. Não obstante, como apontamos na história de
Marcos/Martha, essas mediações não são objetivas nem neutras. É vital que um especialista
decifre e interprete os significados inscritos na imagem, contudo, novamente, essas
decodificações também não são revelações, mas formas específicas de visualizar o corpo
sexuado – o “treinamento do olhar” biomédico.
Dois meses depois, quando conheci a família pela primeira vez, mãe e prima retornam
com Ana Luisa para receber a definição do sexo cromossômico. As duas são novas, a mãe tem
24 anos e a prima tem 19 anos. Elas moram na mesma rua, de modo que a prima sempre está
por perto e se prontifica para cuidar do bebê. Ao longo desses meses de consultas, cada vez
mais a prima assumia para si a responsabilidade do cuidado da criança.
Logo, a mediação da dúvida sexual para a certeza diagnóstica teria que ser feita com
outro método. Agendaram uma reunião multidisciplinar para discussão do caso em conjunto
com especialistas da urologia cirúrgica e psicologia. No dia da reunião multidisciplinar,
ENDOPED1, ENDOPED2, a residente de endocrinologia pediátrica responsável pelo manejo
do caso, as duas psicólogas que acompanham o ambulatório durante às terças-feiras e eu, fomos
até o departamento de urologia para nos reunir com o chefe do ambulatório dessa especialidade.
76
No texto do Consenso, descrevem outras médias internacionais, variando desde 2, 9 ± 0,4 cm no Japão à 3,6 ±
0,4 cm na Índia.
82
Este profissional, o qual chamarei de CIRPED2, é bastante conceituado no meio médico pela
qualidade de suas técnicas cirúrgicas – mas também, como percebi ao longo da reunião, por
advogar pela não intervenção precoce em crianças intersexuais. Junto dele estava outro
profissional da urologia cirúrgica (o CIRPED1, do caso de Marcos/Martha no HZN1, que
também se colocou contra a cirurgia feminizante precoce naquela criança com HAC) e um
orientando de iniciação científica do chefe da urologia, ainda na graduação.
Neste sentido, a família, negra, pobre, moradora de uma comunidade de Acari, também
se compõe por uma extensa parentela. Das 5 crianças vivas, 3 moram com Michelle, as outras
2 foram adotadas por outros parentes. No entanto, mesmo com muitas primas, tios e tias
participando dos cuidados, a situação econômica de Michelle é precária. Mãe e a prima sempre
apontavam para o fato de que tinham muita dificuldade de pagar as passagens de metrô para
irem às consultas, pois no início do atendimento eram praticamente semanais. A mãe também
77
É muito delicado falar sobre racismo no meio médico, mas descrevo uma cena institucional na tentativa de
ilustrar um pouco dessa polêmica dentro do âmbito nacional. A recente campanha, lançada dia 25 de novembro de
2014, pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para coibir o
racismo no atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), em que pedem sob o slogan “Não fique em silêncio.
Racismo faz mal à saúde. Denuncie, ligue 136!”, gerou um backlash do Conselho Federal de Medicina (CFM), o
qual classificou a própria campanha publicitária do governo como racista. O CFM afirmou em nota que na verdade
são problemas estruturais as causas do mau atendimento: “Financiamento limitado, fechamento de leitos, falta de
insumos e medicamentos, e ausência de uma política de recursos humanos. Na verdade, são essas as causas do
mau atendimento para a população no SUS, não importando questões de gênero, classe social ou etnia”. Por sua
vez, o Ministério apresentou a campanha com dados de pessoas atendidas no SUS e apontam que “60% da
mortalidade materna ocorre entre mulheres negras, contra 34% da mortalidade entre mães brancas; 56% das
gestantes negras e 55% das pardas afirmaram que realizaram menos consultas pré-natal do que as brancas; e a
orientação sobre amamentação só chegou a 62% das negras atendidas pelo SUS, enquanto que 78% das brancas
tiveram acesso a esse mesmo serviço.”
83
era usuária de drogas, informação obtida pela prima78, o que parecia comprometer em algum
nível sua atenção, pois tinha muitos bloqueios para se expressar e entender o que os médicos
comentavam ou perguntavam79, fato que aumentava a indisposição dos médicos frente ao que
percebiam como uma porosa estruturação familiar para o “bom crescimento psicossocial da
criança”.
Como citei anteriormente, a prima, Frankie, acompanhava a mãe nas consultas e exercia
o papel principal de cuidadora. Ela não deixava Michelle dar leite materno para Ana Luisa, com
medo da influência das drogas, então dava leite Ninho e suco de laranja para a criança. Os
médicos receitaram Nestogeno, um leite em pó mais enriquecido do que o Ninho, mas elas
argumentaram que não podiam pagar a diferença. Em meio às dúvidas lançadas em direção à
Michelle, Frankie continuava a tentar. Era percebida, aos olhos de todos, como uma espécie de
porto seguro para a criança e para a prima. Em algumas conversas que mantive com ela,
comentava sua procura por trabalhos e bicos a fim de conseguir pagar as idas para o hospital e
comprar roupas para o bebê. Em uma das consultas, conversava comigo sobre uma chupeta
(bem gasta) que tinha comprado para a criança, e como já tinha que repor por uma nova.
78
Frankie relatou essa informação para os médicos após uma das consultas de Ana Luisa. A prima disse que a mãe
usava cocaína e às vezes também maconha.
79
Em uma anamnese realizada pela psicóloga presente no ambulatório de endocrinologia pediátrica, a mãe citava
que durante a gravidez, quando brigava com o parceiro dela e pai do bebê, ameaçava tomar remédios e abortar a
criança. Ressalta o fato de que queria deixar seu parceiro “desesperado” para interromper a briga. Não se sabe até
que ponto a fala é factual, pois ela lembrava da situação muito confusa e aos risos, nem se existiria algum nível de
abuso psicológico ou físico desse parceiro com Michelle para justificar tais ameaças. Relata manter essas
advertências durante toda a gestação, mas que o aborto não era uma opção real – a prima escuta a história e diz
que teria “batido nela” se concretizasse o aborto. Enquanto isso, em meio às conversas da sala de consulta, segurava
e embalava a criança no colo.
84
criança. Se houvesse estímulo fálico, isto é, se a genitália virilizasse, a tese da SIPA seria
comprovada e poderiam continuar com os procedimentos padrões para este diagnóstico. Por
último, em relação à estrutura familiar, todos concordaram que era necessário encaminhar a
família para o departamento do Serviço Social do hospital. Deveriam retornar na próxima
semana, tanto para a aplicação da primeira dose de testosterona quanto para a consulta com a
assistente social.
80
É um derivado sintético da testosterona, enquadra-se na classe dos hormônios esteróides com propriedades
androgênicas e anabólicas.
81
Condição que considera um crescimento atípico e, portanto, patológico, das glândulas mamárias e das mamas
masculinas.
86
com altas doses de testosterona (e qual é a dose correta para um recém-nascido?) pode reduzir
ou interromper a espermatogênese, como também pode agir na redução dos testículos.
Tal qual o paciente com HAC, não há garantia do pleno desenvolvimento funcional,
tanto em nível reprodutivo como sexual. Os estudos longitudinais são precários e pouco
conclusivos. Conforme informa um pediatra britânico justamente sobre o gerenciamento dos
casos de insensibilidade androgênica:
82
No original: “Androgen supplementation might be needed at puberty in patients with androgen resistance, but
is not always necessary. Surgery is done during the second to third year of life to repair hypospadias and bring
undescended testes into the scrotum. Gynaecomastia often occurs in adolescence, and requires reduction
mammoplasty. (…) However, outcome studies are few and comprise small numbers. Studies with large sample
sizes that use standardised and validated measures of sexual function are needed”.
87
assistente social concluísse que tal situação familiar fosse prejudicial à criança, seria obrigada
profissionalmente a denunciar ao Juizado de Menores), Frankie fica visivelmente mais aliviada.
É relevante também notar suas observações sobre o manejo clínico e dos profissionais
de saúde. Quando questionada acerca do que entendia ser o problema da criança, Frankie disse
não saber muito bem. Entendia a dificuldade de estabelecer um sexo definitivo para a criança,
mas não entendia os motivos para a confusão. Disse não saber exatamente qual a condição
carregada pelo bebê, somente que os médicos falavam “umas coisas aí” de difícil memorização,
e que aceitariam a intervenção dada pelos profissionais, pois só queriam o melhor para Ana
Luisa.
Neste registro, no âmbito dos direitos sexuais, de acordo com María Elvira Díaz-
Benítez, o consentimento aparece como uma chave fundamental para se pensar as práticas
83
E conhecimento biomédico aprofundado, pois casos de intersexualidade são difíceis de serem diagnosticados e
gerenciados, como se pode notar pelas descrições dessas histórias. Os próprios residentes ficavam chateados ao
pegarem um caso de “DDS” para atendimento ambulatorial. Quando tinham que explicar o caso no grupo de
estudos após a ronda de atendimentos, faziam-no com muitas dúvidas e desgaste. ENDOPED1 sempre brincava
ao dizer que essas dúvidas seriam “questões de prova”, para a intensificação dessa espécie de cansaço entre os
residentes com os casos de intersexualidade.
88
sexuais contemporâneas, e porque não também as práticas biomédicas, já que inserida em uma
mesma racionalidade ocidental e moderna. Em seus termos:
84
No original: “Physicians have a corresponding duty to give their patients adequate information to ensure they
can make an informed decision regarding their treatment choices, including the choice of no treatment. A common
misunderstanding within and outside medicine is that informed consent consists merely of signing a consent form
(often on the day of the scheduled treatment) after a cursory discussion of the procedure and its risks (Jones,
McCullough,&Richman, 2005). True and meaningful informed consent, however, is a process of communication
between the physician and the patient (Karkazis, Tamar-Mattis, & Kon, 2010). Informed consent thus requires
physicians to take steps to ensure that patients understand the immediate and long-term implications of medical
interventions and alternatives, have time to weigh these considerations, and are able to make decisions with the
support of health care providers and free from coercion”.
90
fixos e, em algum momento, estariam no outro polo do binômio. E além, em sua interpretação,
tal distinção ainda fomentaria um regime hierárquico do bom e do mau manejo dos intersexuais,
onde o principal seria simplesmente poder ou não decidir sobre atendimentos e intervenções
(uma concepção centrada no sujeito de direitos), e não questionando o próprio discurso da
necessidade biomédica e social de tratamento das pessoas intersexuais.
Mas de volta ao trecho citado, tal comprometimento ético e clínico em esclarecer todos
os passos da condição, das intervenções e das alternativas sociomédicas possíveis não me
pareceu ser contemplada neste caso, acredito que por toda a construção e mediação da família
como “vulnerável socialmente”. Os profissionais de saúde pareciam completamente iluminados
pelo modelo tradicional de autoridade médica e, à vista disto, detinham um aval aparentemente
incontestável de gerir o diagnóstico e indicar os encaminhamentos possíveis. Talvez só tenha
visto esse tipo de interação mais horizontal no próximo caso que irei narrar, de uma jovem
adolescente com SIPA, cuja identidade de gênero feminina e orientação sexual heterossexual
formadas ensinam muito sobre quais roteiros de sofrimento são reconhecidos pelo saber-poder
biomédico.
Para o médico e bioético Kenneth Rochel de Camargo Jr, categorias como sofrimento,
vida, doença e saúde não são conceituadas ou definidas pelo saber biomédico, elas existem
somente no “terreno da metafísica”. Materializam-se na prática como categorias relacionais a
fim de conformarem e consolidarem a racionalidade biomédica – e o seu fim prático: a clínica.
Mais além, ele indica que a medicina parte do sofrimento, tanto historicamente quanto em cada
consulta, para a busca da doença. Mas que tal processo é atravessado por outros aspectos não
clínicos, mas de cunho subjetivo e cultural, que de certo modo contradizem o esperado
distanciamento e objetivação biomédica necessárias para a análise das doenças. Em seus
termos:
91
Sendo assim, o bebê já com 6 meses de idade, virilizado, ajustado ao código de roupas,
cor e gramáticas masculinas, estava pronto para ser registrado. Depois da definição clínica no
sexo masculino, realizaram o registro civil no nome de sua mãe, Michelle, e de seu pai, Wagner
– a prima, Frankie, também estava presente nesta última consulta na endocrinologia pediátrica.
Por fim, encaminharam-no à urologia cirúrgica, o objetivo lá será de “corrigir” cosmeticamente
a genitália da criança a fim de adequá-la aos padrões masculinos hegemônicos. Resta saber,
92
O segundo e terceiro caso serão breves, pois acompanhei pouco do atendimento dessas
duas jovens. Suas histórias servem mais para ilustrar outras trajetórias de resultados clínicos e
investigações diagnósticas similares; e, quem sabe, como forma de comparar práticas, falas e
ajustes que foram feitos de modo distinto ao caso do bebê Ana Luisa/Wagner Luís.
novos guidelines apoiando mudanças de manejo neste sentido. Em vista disto, a dificuldade de
incorporar tais mudanças nos atendimentos se deve ao fato de que outros marcadores sociais
da diferença, como a construção da vulnerabilidade social no caso de Ana Luisa/Wagner Luís
através de fatores como escolaridade, classe e raça/cor, são acionados na construção e
administração dos casos. De modo que os pais dessas crianças e jovens intersexuais também
partilham de códigos similares de conduta social, ou talvez incorporem essas posições
biomédicas na medida em que são atendidos nesses espaços hospitalares, pois também tendem
a gerenciar os segredos, as vergonhas e os estigmas (Sedgwick, 2007) que as experiências
intersexuais de seus filhos e filhas mobilizam socialmente. O lugar do segredo dessas
experiências imprime um mecanismo de constrangimento mais dramático do que a
homossexualidade “no armário” analisada por Sedgwick. As regulações dos privilégios de
visibilidade e das hegemonias de valores não é apenas para guardar um desejo, mas a
invisibilidade total de um corpo sexuado – pelo menos até que ele seja normalizado.
Retornando à história. A tia traz Carla do Maranhão até o Rio de Janeiro para morar
com ela e juntas começam a investigar as possíveis explicações para o que acontecia com o
corpo da sobrinha. Assim, Carla inicia seu atendimento médico em um hospital no Centro da
cidade. Lá realizam o exame citogenético para definição do cariótipo, que confirma o sexo
cromossômico de 46, XY. No prontuário, descrevem a impressão diagnóstica, “DDS 46, XY”,
a mesma identificação do caso Ana Luisa/Wagner Luís. Não fica absolutamente claro o
diagnóstico feito pela equipe médica anterior à chegada no Rio e no HZN2, e por tudo o que
discorri sobre as particularidades do gerenciamento sociomédico de casos de intersexualidade
é compreensível Carla não lembrar da etiologia específica. Contudo, pelo histórico dos exames
realizados, pelos relatos dela e da tia, e pela definição do sexo cromossômico, a condição
também parece ser a mesma: Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos85. Caso fosse
completa, sua genitália não seria ambígua. Logo, no resultado da ressonância magnética
pélvica, com contraste, os especialistas notaram duas formações ovaladas medindo cerca de 3,5
centímetros e localizadas nos canais inguinais, isto é, eram testículos não descidos. Observaram
85
Tanto Carla quanto Fabiane (a próxima história a ser narrada), não possuem definições exatas de suas etiologias.
Os profissionais de saúde do HZN2 não tiveram acesso aos relatos e dados médicos de seus locais de origem.
Dessa forma, aproximo as etiologias dos três casos narrados não como diagnósticos “originais” ou “oficiais”, pois
não há como validar nos prontuários antigos, mas como uma investigação diagnóstica que foi realizada atualmente
segundo os mesmos critérios e resultados indicativos da SIPA: de genitália ambígua, definição do sexo
cromossômico (46, XY), imagens de ultrassom e níveis hormonais. As variações moleculares para localização
exata da condição de cada um só poderiam ser achadas com exames mais detalhados, como a tentativa da equipe
de realizar um sequenciamento genético de Ana Luisa/Wagner Luís que não foi para frente.
94
Neste hospital, Carla realiza duas cirurgias, a primeira, em 2012, para a retirada das
gônadas masculinas, e a segunda, em 2013, para a “feminização” de sua genitália e construção
de uma “neovagina”. Na anamnese feita durante a consulta na endocrinologia pediátrica do
HZN2, ela relata com abatimento e certa animosidade a maneira com que foi tratada nesse outro
hospital. A lógica era de espetacularização do corpo ambíguo, com cenas de observação e
discussão das especificidades do caso na frente da paciente – no estilo mais dramático das séries
médicas estadunidenses. A tia complementa o relato da sobrinha: “foi tão impactante [esse tipo
de comportamento médico], acho que ficamos prontas para qualquer coisa”. Tal crítica faz eco
sobre o que já discorremos acerca do “treinamento do olhar” e da reprodução deste habitus a
partir da experiência da prática médica e das mediações científicas. Contudo, a reprodução do
saber biomédico ainda esbarra, regularmente ou ocasionalmente, dependendo dos contextos de
análise, nesses limites de consentimento não esclarecido e de violações psicossociais e
integridades corporais.
Deste modo, Carla chega ao HZN2 já operada, mas com resultados cosméticos e
funcionais insuficientes. Usava constantemente um dilatador vaginal para manter a pouca
profundidade construída em sua vagina. Tal objeto é um cilindro plástico, ou de outro material,
cujo objetivo é dilatar e estender o canal vaginal. Serve como recomendação médica posterior
à realização de cirurgias de vaginoplastia a fim de não diminuir e fechar o canal vaginal
operado. Seu uso é bastante incômodo, pois dependendo do comprimento e diâmetro do
dilatador, se assemelharia ao uso de um dildo/vibrador ou de um pênis. Logo, o esforço do seu
uso contínuo torna-se uma marca material efetiva na ilustração da “carreira corporal”86 que tal
caso expressa.
86
Agradeço à María Elvira pela expressão, inspirada tanto em Goffman quanto em Foucault, que abarcando
práticas como as descritas acima, de dilatação e (re)construção de vaginas, caracteriza tais práticas como uma
forma de suplício atualizado na construção cotidiana do self e do gênero.
95
A conclusão da história de Carla, até o fim de minha etnografia, foi o aval da psicologia
para encaminhamento cirúrgico. A vaginoplastia para aprofundamento do canal vaginal seria
realizada com a garantia de uma “trajetória de normalização” (Machado, 2008a) congruente às
áreas cinzentas dos guidelines, em que se atende com o compromisso da funcionalidade
heterossexual. Não havia imprecisões. A endocrinologia pediátrica receitou a manutenção do
uso de Diane 35 continuamente para refinar a feminização dos caracteres secundários. Em
87
O termo “M3” se insere dentro de um método, proposto por um médico inglês chamado J. M. Tanner, para
identificar os estágios de maturação sexual. As mamas seriam avaliadas quanto ao seu tamanho, forma e
características e definidas em uma tabela que vai do “M1”, estágio infantil e pré púbere, até o “M5”, estágio adulto
e pós púbere. Esta identificação de maturação sexual é realizada em conjunto à análise dos pelos pubianos, cuja
tabela de desenvolvimento sexual também é similar ao das mamas, indo de “P1” à “P5”. O diagnóstico, portanto,
é conjunto. No caso de Carla, o prontuário médico indica “M3P4”.
96
suma, ela era o exemplo da plasticidade de gênero levado ao limite moneyziano, pois mesmo
com todos os “obstáculos” de seu sexo cromossômico, o sexo de criação feminino prevaleceu.
O trabalho dos profissionais de saúde era efetivamente inseri-la, através das cirurgias
“corretivas”, dentro da anatomia feminina coerente à sua identidade de gênero e, com isso,
cessar o sofrimento (e o estigma) da incerteza sexual que Carla carregava.
De outro lado, temos a história de Fabiane. Assim como Carla, ela também vem de outro
estado para atendimento. Natural de Rondônia, ou como gostava de apontar, de sua capital,
Porto Velho. Ela chega ao ambulatório de endocrinologia pediátrica do HZN2 com o pai,
através de um encaminhamento do Programa de Tratamento Fora do Domicílio (TFD), e
anuncia em sua primeira consulta: “eu queria ter uma vagina normal”.
Fabiane nasceu com “genitália ambígua”, foi registrada com sexo social feminino,
porém, desde os 3 meses de idade, cita que sua mãe notava um aumento de sua genitália.
Contudo, discorre que somente aos 13 anos foi levada ao médico88, quando iniciou
acompanhamento hospitalar para investigar sua condição. Nesta época realizaram o exame de
cariótipo e identificaram que o sexo cromossômico de Fabiane era 46, XY. Imagens de
ultrassom também constataram a inexistência de útero e ovários. Mas nada foi feito então.
Posteriormente, durante a adolescência, Fabiane foi encaminhada para o Rio de Janeiro. Em
2013, foi submetida à uma biópsia gonadal no Hospital Zona Sul (HZS), quando os especialistas
que a operaram encontraram testículos não desenvolvidos, por se tratar de uma jovem de 16
anos, logicamente decidiram pela remoção das gônadas. Em paralelo, iniciaram uma
hormonoterapia para feminização de seu corpo com doses progressivas de hormônios, a qual
foi concluída por atingir a marca “M5P5” de maturação sexual, isto é, de desenvolvimento total
mamário e de pelos pubianos. Também neste outro hospital, foi submetida a uma clitoroplastia
para diminuição de seu falus e confecção de pequenos lábios. Somente no segundo semestre de
2014, Fabiane é transferida para o HZN2.
88
Algumas hipóteses explicativas para esse fato: pelas informações da anamnese e dos prontuários disponíveis,
não se sabe nada além sobre as dinâmicas familiares que antecederam essa primeira ida (tardia do ponto de vista
biomédico, pois já se encontrava, assim como Carla, na adolescência) ao hospital. Por que Fabiane e Carla não
foram quando recém nascidas ou crianças ao hospital? Parece haver uma maior gestão do silêncio e do segredo
por parte dessas famílias. Talvez por ambas se encontrarem em recortes regionais onde se é mais difícil falar sobre
e buscar atendimento para casos de intersexualidade. Ou talvez pela falta de estrutura biomédica dessas localidades
em perceber e gerenciar tais condições, o que submete ainda mais essas famílias às situações de encobrimento de
estigmas.
97
Identifico, a partir dos relatos médicos informais e das anotações nos prontuários, que
tal mudança de conduta é localizada na falta de reiteração, por parte de Fabiane, de
características e qualidades inseridas nos roteiros tipos ideias femininos, e que transbordavam
nos relatos de Carla. Primeiro, Fabiane identificava-se como homossexual. Sua orientação
sexual já inviabilizava, na percepção médica, um procedimento cirúrgico realizado para o
desenvolvimento funcional, tanto reprodutivo como sexual, de uma lógica heteronormativa.
Quando contou do seu desejo de aprofundar seu canal vaginal, ENDOPED1 narra depois, na
sala de estudos do ambulatório, que precisou explicar para ela que um canal vaginal maior era
necessário ao sexo heterossexual, com penetração de pênis, e não ao sexo homossexual. Nesse
momento fiquei um pouco assustada pensando em como será que entendem o sexo lésbico. Ou
além, mesmo sem argumentar em favor de um ou outro tipo de prática sexual, que a
encorajassem – assim como admiraram no discurso de Carla – a desenvolver sua própria
autonomia sexual.
Então por mais que Fabiane verbalize uma biografia de si onde identifique-se como
mulher, na percepção do discurso médico hegemônico algumas fissuras se formam na narrativa
em relação à utilidade daquele procedimento cirúrgico visto sua orientação sexual e, no limite,
com questionamentos à validade de sua identidade de gênero posto que suas performances eram
mais masculinas. Quando Fabiane conta para os especialistas sua história de vida, as psicólogas
98
apontam conflitos com sua mãe que escapam à narração – parece que a mãe podava a expressão
de gênero, mais masculina, de Fabiane, tentando adequá-la a padrões de uma normalidade
feminina.
A saída pensada pela equipe médica foi, por enquanto, não autorizar o procedimento
cirúrgico. Fabiane teria que ir, a contragosto, de volta para Rondônia e lá se submeter a um
acompanhamento psiquiátrico para validar seu pertencimento na identidade de gênero feminina.
De modo distinto às decisões médicas no caso de Ana Luisa/Wagner Luís e Carla, onde o
primeiro, uma criança recém nascida, não tinha autonomia de decisão/negociação sobre seus
encaminhamentos biomédicos, e a segunda, convergia seus relatos de vida com os roteiros
ficcionais de gênero e de sofrimento legitimados pelos profissionais de saúde, Fabiane era um
ponto fora da curva. Sua autodeterminação não tinha legitimidade, pois sua trajetória de vida
produzia mais fissuras do que era esperado e desejável para um caso de intersexualidade.
Tornando-se praticamente uma paciente do processo transexualizador, ela só poderia ganhar o
direito de modificar seu corpo com o laudo médico depois de dois anos de atendimento – e
durante esse tempo de prolongamento do sofrimento, pois não há consentimento de sua escolha
inicial, não podemos prever como os conflitos de certeza e incerteza irão se destrinchar.
Depois de tudo, fica patente que o direito sexual de integridade corporal e de uso do
próprio corpo – segundo garantias de autonomia e de autodeterminação dentro de concepções
dos Direitos Humanos – são negadas quando aspectos particulares do sexo/gênero e da
sexualidade desviam da norma. Quais os limites do consentimento nesses casos?
Aparentemente não tão distantes. Na clínica, a experiência subjetiva do profissional, mais até
do que a expertise clínica, que contará como modulador de diagnóstico e intervenção dos casos.
Logo, se a discursividade biomédica percebe um determinado paciente dentro de marcas
produtoras de vulnerabilidade social ou se a trajetória de vida de outro paciente reverbere ruídos
que fragmentem a coerência diagnóstica, o consentimento e, consequentemente, a intervenção
100
clínica serão assumidas pela equipe de profissionais de saúde para garantir a restituição de
saúde/normalidade de tal pessoa.
Portanto, para além das molecularidades e das classificações cada vez mais descritivas
do saber científico, é na marca “sexo-gênero-desejo” anunciada por Butler (2008) que
regulações, incitações e silenciamentos de corpos acontecem. Essas marcas atravessam
concepções normalizadas, então culturalmente instituídas, das realidades do que podem ser
homens e mulheres. Nessas interpretações da biomedicina, pedir uma vagina mais profunda não
se resume a uma escolha íntima de alguém, mas se relaciona a processos em que a própria
intimidade é governada e (des)construída. A tentativa biomédica de veridicção do corpo
humano sexuado estão nessas narrativas, nas quais pessoas estranhas aos registros necessários
e possíveis terminam com duas opções essencialistas: aceitarem os encaminhamentos
biomédicos normalizantes ou continuarem com os suplícios da “incoerência” intersexual.
Contudo, como notamos pelos relatos, a experiência da intersexualidade não se resume às duas
opções, assim como tal processo de gerenciamento e veridicção não está isento de fugas,
manipulações ou reorganizações por parte das pessoas intersexuais.
Neste sentido, entendendo a discursividade médica como uma malha cultural cujos
saberes e práticas atravessam e são atravessados pelos discursos sociais. Concepções sobre o
corpo, a normalidade e os modelos de cuidado vigentes serão reproduzidos socialmente nas
relações entre a biomedicina e a população. Os sinais individuais das doenças, os quadros
comuns de mal estar, as eficácias terapêuticas, a apregoada “qualidade de vida”, esses aspectos
e outros serão compartilhados pelos saberes médicos com o contexto social mais geral. Mesmo
que as etiologias, terminologias e condições não sejam entendidas em suas minúcias, como
retratadas nos novos modelos classificatórios e de manejo, essas pessoas, especialmente pais e
familiares, irão encaminhar seus filhos e filhas para os espaços hospitalares – encarregando e
legitimando a ciência médica do controle e da resolução dos desconfortos de causas biossociais.
e naturais. Neste registro, muitas das expectativas também são incorporadas às concepções
familiares e sociais do que se espera de meninos e meninas. Outras vezes, tais expectativas se
perdem frente às distintas possibilidades de veridicção do sexo/gênero e da sexualidade. A
“verdade” do sexo de alguém estará em tantos outros caminhos, e não só dentro das trajetórias
biomédicas normativas tidas como “possíveis” e “visíveis”.
Gustavo, de 7 anos de idade, chegou no Hospital Zona Norte 2 (HZN2) com seus pais.
A família mora em uma cidadezinha no interior do Espírito Santo, e desde 2012 se deslocam
até o Rio de Janeiro para o acompanhamento do filho. Quando foram pela primeira vez ao
HZN2, Gustavo já havia feito duas cirurgias urológicas em outro hospital. A primeira, em 2010
(quando tinha 3 anos), para resolver uma fimose, condição em que o prepúcio dificulta ou
impossibilita a exposição total da glande do pênis. A segunda, em 2012 (quando tinha 5 anos),
para tratar uma hipospádia, condição congênita caracterizada por um posicionamento atípico
do meato urinário – por exemplo, o orifício por onde sai a urina pode se localizar na parte de
baixo do pênis ou mais raramente na bolsa escrotal.
Em vista disso, Gustavo chega ao HZN2 para continuar seu atendimento médico.
Inicialmente na pediatria, a mãe de Gustavo relata na anamnese que seu filho teria uma
“genitália pequena”, além de um problema de obesidade. De modo que a interna de medicina
responsável pela consulta encaminhou o paciente para o ambulatório de endocrinologia
pediátrica para mais investigações. No bilhete de encaminhamento, ela escreve “QP: ‘genitália
pequena’”, indicando que a questão principal no atendimento era o relato da mãe em relação à
genitália atípica do filho, associando desconfortos referentes ao hipogonadismo89 e obesidade
da criança.
89
É uma condição em que as glândulas sexuais produzem pouco ou nenhum hormônio.
104
Portanto, foi decidido que iriam aplicar, assim como no caso de Ana Luisa/Wagner Luís,
uma dose de testosterona por mês, em um período de três meses, para promover estímulo fálico,
virilização e desenvolvimento de caracteres secundários tipicamente masculinos. Essa terapia
hormonal ocorre geralmente durante o início da puberdade masculina, por volta dos 11 ou 12
anos, mas como a mãe estava desconfortável com a genitália pequena do filho e o tratamento
com hormônio masculino poderia a ajudar na distribuição de gordura e uma possível redução
da obesidade de Gustavo, os médicos anteciparam a aplicação. Por último, encaminharam a
90
Estou inferindo, pois não sei de muitos detalhes dos atendimentos anteriores ao HZN2, mas a mãe indicar
“hipogonadismo” na primeira consulta denuncia, de certo modo, que já sabia do sexo cromossômico do filho.
Casos de 47, XXY são algumas das causas possíveis para o hipogonadismo ocorrer, então para a família saber
desta condição, provavelmente teriam investigado anteriormente o sexo cromossômico de Gustavo.
91
O livro médico que retiro tal epidemiologia é uma publicação brasileira tida como referência para o tratamento
clínico de casos de intersexualidade. A capa de sua segunda edição é uma foto dos pezinhos de um recém-nascido
com um sapatinho do lado direito na cor azul e do lado esquerdo na cor rosa. No mesmo tópico desse trecho,
colocam um quadro (chamado “frequência da SK em diferentes amostras populacionais”) comparando a variação
congênita da Síndrome de Klinefelter (SK) com outros “distúrbios” de cunhos morais e psicológicos, como
“homens com déficit intelectual – 1:100”, “homens em instituições psiquiátricas – 1:169” e “homens estéreis –
1:77 a 1:24”. Posteriormente, em um tópico somente para essa comparação, descrevem que indivíduos com
Klinefelter estariam “cerca de cinco vezes mais” em “instituições penais ou para problemas mentais”, pois teriam
um maior “déficit de aprendizado e comportamento impulsivo, o que justificaria um aumento nas prisões e na
institucionalização desses indivíduos” (Ibid.: 293-294).
105
O gerenciamento médico deste caso, um caso que pode ser considerado típico dentre os
tipos de “DDS” atendidos, não levanta maiores questionamentos sobre as normalizações, de
cunho sociocultural, que os profissionais de saúde incorporam às suas práticas diárias de
conduta. As narrativas anteriores já esmiuçaram bastante dos atravessamentos morais, políticos
e sociais do saber científico ao incitar, silenciar e regular uma “verdade” particular sobre o
sexo/gênero e a sexualidade. Como também esclareceu de que maneira esse saber mais
descritivo e codificado sobre os corpos se atualiza nas práticas médicas cotidianas em espaços
hospitalares, evidenciando que a expertise é experiência e que esta, no fim, encontra-se dentro
de um modelo maior de racionalidade e sensibilidade onde pessoas com anatomias e condições
não hegemônicas necessitam de adequação aos modos de vida vigentes. Assim, o que mais
difere e mobiliza nesta história seria a família, agente social e não biomédico, como
representante da “trajetória de normatização”. Isto é, de que os pedidos para terapêuticas
medicamentosas e cirúrgicas para “normalização” anatômica e genital se iniciaram a partir de
desconfortos e anseios familiares. A necessidade de “coerência” do sexo/gênero a partir de
modelos hegemônicos também pode começar no âmbito familiar.
De maneira que outro dado relevante descrito nos prontuários foi da mãe de Gustavo
relatando que sua gravidez não foi aceita prontamente pela família. Com essa informação,
podemos inferir a existência de um provável desconforto no ambiente familiar por outros
motivos que não a condição sexual da criança. Talvez as ansiedades que tais vivências
mobilizam aos olhos biomédicos e sociais tenham se multiplicado com “não conformações”
familiares anteriores. E dificilmente tal angústia irá embora, pois mesmo com as dinâmicas das
intervenções sociomédicas em intersexuais passando pelas justificativas de ajuste de coerências
106
e prevenção de fecundidade, homens 47, XXY serão inférteis. Essa inserção biomédica é,
portanto, de base estritamente sociocultural. Sua fimose e hipospádia não continham risco de
vida, assim como a expectativa de normalização sexual da genitália de Gustavo refletia mais
desconfortos maternos e familiares do que um distúrbio em si. Não sabemos se esses
desconfortos e tentativas de medicalizações aprofundaram as próprias ansiedades (e os
problemas alimentares associados à obesidade) de Gustavo, só podemos supor pelos relatos
narrados e descritos. Mas como vimos com Carla e Fabiane, essas veridicções prejudicaram
suas vidas, em várias medidas. Até quando decidiram conscientemente passarem pelo crivo
biomédico, como forma de se conformarem para terem vidas possíveis, suas trajetórias de vida
foram avaliadas e questionadas.
92
A variação cromossômica 47, XXY (ou com mais cromatinas sexuais, tipo 48, XXXY e assim por diante)
desenvolve usualmente fenótipos masculinos, com a presença das gônadas testiculares, porém sem o pleno
desenvolvimento de suas funções. Os indivíduos são estéreis e algumas de suas características secundárias
masculinas não se acentuam – por exemplo, apresentam poucos pelos em geral, testículos reduzidos, ginecomastia
(crescimento das mamas), entre outros aspectos.
107
relatos dos médicos, ele sempre acompanhava Larissa e a enteada nas consultas. Stephanie
chega, então, ao ambulatório de endocrinologia pediátrica com 9 meses de idade. No prontuário,
há relatos de Larissa de que a filha foi internada com 15 dias de vida por causa de uma
bronquiolite – termo clínico para a bronquite em bebês –, quando os médicos identificaram uma
“alteração” na genitália. A partir de então, fazem uma bateria de exames, dentre eles o exame
citogenético para definição do sexo cromossômico: 47, XXY. No começo de 2013, as duas são
encaminhadas para a primeira consulta na endocrinologia pediátrica. À primeira vista, os
registros médicos nos prontuários são confusos. Nas inscrições iniciais relatam imagens de um
útero (no tamanho de 29 x 15 mm) feitos por ultrassom pélvico, mas também notam um
testículo direito na região inguinal. Cinco meses depois, em outra consulta, a residente
responsável relata não palpar gônadas masculinas e escreve “aspecto feminino” ao se referir à
genitália, apesar de descrever também que o falus de Stephanie estaria acima da média, com
1,5 cm ou 15 mm de comprimento – a medida definida pelo Consenso de Chicago para recém
nascidas no sexo feminino, nos Estados Unidos, seria de 4,0 mm com desvio padrão de 1,24
(Lee et al., 2006: e490). Neste retorno, a interpretação do outro ultrassom pedido era de que a
criança não tinha útero, mas gônadas de “aspecto testicular”.
93
É um tipo de gráfico muito usado pela Genética para representar a herança genética dos indivíduos em questão
e identificar certas características herdadas pelos cruzamentos familiares.
108
No começo de 2014 a irmã mais nova faleceu, com menos de 1 ano de idade, sofrendo
de um quadro pulmonar. Quando comecei o trabalho de campo no HZN2 a família de Stephanie
já havia abandonado o tratamento e acompanhamento hospitalar. Talvez a morte da irmã tenha
sido um fator de distanciamento – a mãe morava com o padrasto de Stephanie, pai da irmã mais
nova que faleceu, o pai biológico de Stephanie não é descrito nos prontuários – talvez por morar
tão longe do hospital e a locomoção ser custosa e difícil – esse caso foi o único que acompanhei
onde a renda familiar estava anotada no prontuário (constava na categoria “salário da família”:
1.200 reais) – ou talvez pelo cansaço desses trâmites intermináveis de gerenciamento e
veridicção da intersexualidade nos ambientes hospitalares.
Ao longo do meu campo, sempre conversava com a psicóloga sobre o caso para tentar
descobrir mais informações além dos dados nos prontuários. Ela tentou contatar algumas vezes
Larissa, a mãe de Stephanie. Em uma das vezes, a sogra (mãe do parceiro dela e padrasto da
criança) que morava na mesma casa, disse que Larissa tinha ido embora. Não tivemos muitas
explicações dos motivos desse afastamento do lar. Em outra ligação, a psicóloga conseguiu
falar com Larissa, já tendo retornado para a casa do parceiro, e marcou uma consulta para a
semana seguinte. Eram os momentos finais do meu campo, em outubro de 2014. A família
retorna com muitas histórias de como essas incertezas sobre o sexo/gênero são vividas em
ambientes não hospitalares.
bullying94 dos outros vizinhos, especialmente quando tentava brincar pelo quintal. Os vizinhos
instigam a menina e a família chamando Stephanie de menino, que teria um pênis, e ofensas
afins. Talvez por ser agitada, como a mãe e os profissionais de saúde constataram antes, ou pela
própria ambiguidade genital da criança. De maneira que Stephanie também começou a
internalizar alguns desses comportamentos “tomboy”95, pois queria sempre tomar banho junto
do padrasto e dizia para os outros – de forma provocativa – que teria um “lulu”. A mãe ficava
aflita tentando contar para ela que na verdade ela tinha uma “pepeca”, mas não surtia muito
efeito. Larissa se angustiava mais frente às hostilidades dos vizinhos do que Stephanie.
Enquanto a primeira sofria pelo fato da filha ter comportamentos mais masculinos e uma
anatomia confusa, aprofundada pelas implicâncias de estranhos, a segunda estava mais curiosa
com o próprio corpo e as possibilidades de usos dessa mesma anatomia ambígua – pelo relato
não parecia que Stephanie internalizava negativamente essas hostilidades, possivelmente pela
idade, com quase 3 anos, ainda não parecia compreender de forma plena as violências que as
expectativas sociais também carregam em relação aos modos de viver um sexo/gênero
designado.
94
Expressão inglesa que define ações intencionais e repetitivas de violência física ou psicológica praticadas por
indivíduos, dentro de uma relação de poder desigual, causando dor e angústia a alguém, percebido como incapaz
de se defender.
95
Expressão inglesa usada para classificar meninas pré púberes que se comportam de maneira tipicamente
masculinas, por exemplo, gostar de jogar bola, usar bermuda, tentar urinar em pé, dentre outras características que
seriam vistas como vontades/situações/relações de meninos.
110
confusa e conflituosa96, segundo uma suposta vulnerabilidade social, tal qual a mobilizada no
caso de Ana Luisa/Wagner Luís, os especialistas não fizeram menção de contatar o Serviço
Social ou qualquer outro órgão responsável para salvaguardar um atendimento biomédico
necessário e um cuidado familiar idealmente mais capaz – em níveis financeiros, salutares,
humanos, enfim, dos mesmos aspectos que surgiram em negociação anteriormente. Neste caso,
não foi incitado (pelo menos não até o fim do meu campo) uma modelação dessa criança e de
sua família como vulnerável, ou dentro de um roteiro de sofrimento aceitável ou questionável,
Stephanie e seus familiares pareciam ser aceitos simplesmente como exceções da norma – em
suas reproduções, em suas composições cromossômicas, em suas anatomias, em suas relações
e vivências. Do que não se espera e não se pode controlar.
Frente à exigência de restituir uma determinada ordem social no que diz respeito
ao sexo, os médicos tomam as decisões baseados no esforço de “tornar
invisível” tudo o que possa parecer “ambíguo” em relação aos corpos intersex
e, também, no que se refere às condutas ligadas a eles. (...) No cruzamento
dessas diferentes temporalidades, percebe-se um esforço constante em adequar
os corpos intersex a determinadas expectativas sociais – relacionadas à
fertilidade, à potencialidade para o sexo penetrativo e heterossexual, ao
tamanho do pênis e do clitóris, entre outros aspectos. Desse modo, os
dispositivos de normalização e regulação colocados em ação pela medicina
(olhar e medir), ao mesmo tempo em que buscam “encontrar um sexo”
(feminino ou masculino) no corpo das crianças intersex, pressupõem
determinados marcadores de “bem-estar”, de “desejo” e de “saúde” – física e/ou
psicossocial – em nome dos quais são justificadas as intervenções médicas,
como a cirurgia. (Ibid.: 224-226)
Portanto, quando esses determinados marcadores implícitos se ausentam (por variados
motivos de fundos socioculturais, como vimos alguns), o processo de veridicção da
intersexualidade atravessa a esfera biomédica para ser compreendido em outras possibilidades
produtoras de uma “verdade de si”. Resta a equipe de profissionais do HZN2 aceitar a noção
submersa em cada prática biomédica em intersexuais, da “inarticulabilidade original” que tais
corpos transbordam (Cabral, 2006). Até mesmo quando se tenta dissolver ou fragmentar a
96
Larissa contou outra situação delicada, quando estava no mercado com a filha, e Stephanie fazia muita bagunça,
sem ouvir os pedidos da mãe para se acalmar, até que derruba várias latas das prateleiras. Larissa conta que bateu
na filha, mas parece bater tanto, pois foi abordada por alguém (e no relato não indicam se foi alguém conhecida)
para que parasse com a “correção” violenta na criança. O evento culmina em uma ameaça da pessoa, dizendo que
iria denunciar Larissa para o Conselho Tutelar. Ela não acreditou na história, mas conta que um tempo depois uma
assistente social tocou em sua casa para averiguar a denúncia. O resultado da conversa foi uma assertiva dura de
Larissa, alegando que se a assistente social soubesse cuidar melhor da criança, que levasse Stephanie, ela não iria
se opor. Depois dessa afirmação categórica, a mãe narra que a profissional saiu da residência e findaram-se os
questionamentos externos com a educação e o cuidado de sua filha.
111
***
Em vista disso, por mais que exista uma necessidade de assistência médica integral,
inclusiva e “centrada no paciente” – características difíceis de se manter nas dinâmicas de
hospitais-escolas – para os casos de intersexualidade, acredito que o ganho principal deste
trabalho foi a tentativa de esclarecer as técnicas e abordagens atualizadas do saber-poder
biomédico quando esbarra essas situações de limiaridades sociais. Onde a falta de
consentimento esclarecido, a intervenção cirúrgica precoce e a repetição de integridades
corporais específicas são algumas das variáveis que desvelam como a hegemonia e privilégio
do discurso médico ainda marca excessos e faltas na produção de subjetividades e verdades.
97
Azul para “meninos” e rosa para “meninas”.
113
apagada, pois não há como fugir da incerteza biológica e social que essas condições carregam
em nossas realidades.
Logo, o discurso biomédico do bem estar termina por aprofundar o ciclo de sofrimento
desses sujeitos. Inspirada pela noção de “carreira moral” de Erving Goffman (1996), em que a
série de mudanças vividas por essas pessoas dentro das instituições hospitalares alteram
efetivamente suas percepções de si e dos outros, concluo que tais práticas clínicas e cirúrgicas
feitas precocemente só intensificam os processos de incertezas. A garantia de coerência sexual
se constrói inversamente ao apagamento ou à “mortificação do eu” intersexual. Contudo,
mesmo com esses guidelines cada vez mais urgentes e codificados, a experiência intersexual
não se esvazia completamente e continuará sendo vivida em meio a proliferação de
discursividades sobre suas condições.
Considerações Finais
As Constituições Humanas: travessias antropológicas e
políticas nas experiências intersexuais
Por um lado, a primeira reflexão se insere em uma abordagem dos direitos humanos e
sexuais; até que ponto os sujeitos de direitos (tutelados ou não) podem ser aplicados nesses
casos e nessas experiências de intersexualidade? Como já indiquei no capítulo anterior, o
paradigma maior não seria a possibilidade de consentimento esclarecido ou de uma
comunicação efetiva entre os profissionais de saúde e seus pacientes sobre os tratamentos
possíveis, mas a validade em si mesma desses próprios atendimentos e procedimentos. Então,
de que tipo de direitos humanos falamos quando se visa como questão mais fundamental
assegurar uma boa prática médica, onde a estratégia ética e política necessária para tal recai no
colo de um humanismo que também se constitui como sexuado e binário? Um humanismo que
justifica “formas inumanas de humanização” (Cabral, 2006), desde que autodeterminadas, com
o intuito de que as pessoas intersexuais possam ganhar vidas humanas, vidas possíveis, isto é,
vidas normalizadas e inteligíveis dentro deste marco de saber, poder e direitos da modernidade
ocidental.
98
A autobiografia e o testemunho são estratégias éticas e políticas importantes para uma longa lista de autores, por
exemplo, ver Bourdieu, 1996; Cabral, 2006; Agamben, 2008.
115
Em sua tese, Paula Sandrine Machado (2008a) já havia alertado para os perigos que uma
vinculação não crítica da saúde (nos moldes dos direitos reprodutivos) enquanto direito sexual
e humano significa para a experiência da intersexualidade. As práticas de “normalização”
aparecem, segundo os registros biomédicos, como garantias de direito para as pessoas
intersexuais. Os profissionais de saúde que acompanhei se comprometem com esta
interpretação, investem diariamente na materialização desse “direito à saúde” enquanto “direito
humano”. Eles acreditam nesses atendimentos. De modo que as formulações sobre a “verdade”
do sexo/gênero de alguém e dos direitos e acessos à saúde pautam-se em interseccionalidades
que não se fazem visíveis nos guidelines, mas sim nos gerenciamentos cotidianos. Neste
sentido, o processo de veridicção ocorre além das moléculas, gônadas e hormônios, atravessam
concepções generificadas, valores socioculturais, vulnerabilidades e desigualdades, que
modificam os sujeitos de direitos de uma “humanidade sexuada”.
Não obstante, como descreve Iain Morland (2012), ao mostrar imagens de cirurgias
realizadas em pessoas intersexuais para seus companheiros de casa, as pessoas estremecem ao
se darem conta dos procedimentos realizados. São imagens desconfortáveis de ver,
principalmente para alguém não “iniciado” na racionalidade e realidade biomédica. Para ele,
compartilhar o desconforto e o repúdio de viver em um mundo onde tais procedimentos são
feitos e justificados vai além das políticas identitárias que se apoiam em direitos que também
seriam, no fundo, normalizantes99. Tem a ver, conforme apontei no capítulo anterior, com a
compreensão da vulnerabilidade como condição compartilhada. Neste registro, perceber a
99
Na verdade, Morland (2012) vai além da análise do conforto/desconforto enquanto sentimentos envolvidos no
gerenciamento e veridicção da intersexualidade para se pensar nesta como uma condição compartilhável. Ele
discute as próprias construções de sensibilidade (ou a perda dela) como condições particulares da experiência
intersexual, que através das práticas biomédicas expandem-se além da experiência corporal individual e ganham
contornos fenomenológicos. Ou seja, ele analisa como o manejo biomédico da “senciência” dispõe uma forma
muito específica das pessoas intersexuais se relacionarem com o mundo.
116
vulnerabilidade como experiência comum aos humanos seria uma tentativa de reequilibrar as
desigualdades através de um maior reconhecimento na complementariedade do sofrimento e da
exposição do outro produzidas por esses modelos de humanidade sexuada, de direitos e de
saúde.
Por outro lado, a segunda reflexão dessa conclusão se centra no fato de que concepções
de humanidade se reajustam constantemente com experiências como as dos intersexuais. Em
um recorte maior, noções do humano se multiplicam principalmente no que concerne as
negociações políticas, éticas e morais, e os desenvolvimentos de novas tecnologias. As políticas
“da vida em si”, como sintetiza Nikolas Rose (2007), atravessam campos sociais dos mais
diversos, reorganizando as vidas das pessoas em tramas cada vez mais biossociais, as quais, por
sua vez, expandem as relações globais de saúde, política e direitos. Desse modo, proponho
pensar que manter as experiências intersexuais dentro de um modelo de humanidade sexuada
(ligada a tratados de direitos humanos e sexuais centrados no binarismo de gênero), busca
encerrar tais experiências em protocolos biomédicos. Estes justificariam uma suposta coerência
molecular do sexo. Quando, na verdade, o que mais parecem fazer são verificações e repetições
de cunho sociocultural, como vimos anteriormente. Pretendo, então, formular uma hipótese
dentro das discussões da “saúde global”, isto é, de como esses gerenciamentos e veridicções,
essas governanças de corpos, reconstroem possibilidades variantes da norma – as vidas
intersexuais – em segmentos de mercados terapêuticos específicos. Uma vida que importa
biomedicalizada. Assim, esboço alguns dos movimentos de conversão dessas experiências que
não se conformam em doenças crônicas. No capítulo 3, vimos histórias ilustrando as
controversas negociações das “verdades” sociais e biomédicas com as realidades individuais,
agora veremos como trâmites globais de farmacopolitizações interessam e financiam a
manutenção da intersexualidade dentro de registros universais e essencialistas do que seria uma
humanidade sexuada.
As realidades nos países da América Latina são mais distintas. No Brasil, não há
movimento intersexual constituído, e os movimentos lgbt’s atuais não pautam como uma de
suas reivindicações primárias qualquer demanda atrelada à experiência intersexual. No máximo
poderíamos aproximar com demandas das experiências trans*, por exemplo, pela
despatologização da transexualidade (um “risco” de acontecer aos intersexuais operados
precocemente, quando na adolescência/fase adulta se percebem com outra identidade de gênero
diferente à designada) e pela ampliação e acesso universal aos procedimentos de “redesignação
sexual” (procedimentos similares em suas técnicas com os realizados nas crianças intersexuais,
como também podem ser aplicados em casos de adolescentes intersexuais que não vivenciaram
as intervenções precoces, como Carla ou Fabiane).
Nos outros países da América Latina, tomo como referência o livro editado pelo filósofo
argentino Mauro Cabral, Interdicciones: escrituras de la intersexualidad (2009), no qual
compila artigos científicos, entrevistas, poemas, artes, dentre outros escritos, de pesquisadoras
do tema e de pessoas intersexuais, todos em castellano. Além de entrevistas e relatos de
intersexuais de várias localidades latino-americanas, há dois artigos que analisam a “regulação
biomédica” da intersexualidade fora do eixo EUA-Europa (os outros artigos existentes são de
duas pesquisadoras brasileiras, Paula Sandrine Machado e Isadora Lins França, e de uma
pesquisadora espanhola, Nuria Grégori Flor). O primeiro artigo, de Eva Alcántara Zavala,
relaciona a experiência da condição intersexual por famílias em situação de pobreza na busca
por assistência médica na cidade do México. O segundo artigo, de Luciana Lavigne, analisa
representações socioculturais sobre sexo/gênero que informam muitas das decisões biomédicas
feitas por profissionais de saúde da cidade de Buenos Aires. Os dois artigos dialogam com
questões muito parecidas com as que descrevi anteriormente, sobre as estruturas hospitalares e
de saúde pública; os atendimentos clínicos e gerenciamentos sociomédicos diários; as
intervenções cirúrgicas precoces; as desigualdades sociais e as construções de
vulnerabilidades/carreiras corporais e morais através de roteiros de sofrimento específicos,
todos generificados, enfim, são representações e práticas que se repetem dentro de uma mesma
matriz biomédica globalizada. Onde guidelines internacionais pautam saberes compartilhados
pelo mundo que são atualizados em seus contextos regionais, linguísticos e de mais ou menos
desigualdade, de mais ou menos acesso à saúde pública, de mais ou menos movimentos
intersexuais organizados.
118
Essas formulações partem do princípio de que o sexo, do mesmo modo que foi
convertido em “objeto” de governança política, com suas ramificações da gestão do corpo pela
biomedicina, também importa do ponto de vista econômico. Deste processo nasce a relação
com os produtos farmacoquímicos, que torna-se uma das fundações para a episteme moderna e
o modo de produção capitalista persistirem. Preciado (2008) chama esse movimento pós
industrial, midiático e global de “regime farmacopornográfico”100. As intensificações dos
processos biológicos e moleculares e as formulações semióticas e técnicas da subjetividade
sexual marcam novas formas de pensar e vivenciar o humano. Logo, a constituição de um
“império dos hormônios”, como traduziu Fabíola Rohden (2008), fortalece a indústria
farmacêutica que aposta cada vez mais na fabricação tecnológica de corpos sexuados. Como
sabemos, as apostas não cessam na regulação e comercialização do corpo e da sexualidade, mas
se expandem para diversas áreas da vida social, bem como as relacionadas com a “saúde
mental”.
100
Para cunhar esse termo, Preciado se inspira na categoria proposta por Deleuze e Guattari em Mil Platôs:
“sociedade de controle”. Esta formulação seria um terceiro regime dos processos de subjetivação, nos mesmos
moldes foucaultianos (2008: 66).
119
o desejo sexual quanto a enfermidade não existem sem suporte técnico, farmacêutico, midiático
e político.
Dito isto, detenho-me agora nos processos globais de farmacopolitização no que tange
às experiências intersexuais. O guideline classificatório e de manejo atual é um nó importante,
onde podemos voltar e repensar outras negociações em torno de sua formulação e aplicação. O
documento selou uma nova maneira de fazer política – e de cuidado médico – sobre a
intersexualidade, representado pelas participações de pessoas intersexuais no Consenso de
Chicago (poucas, mas existentes) e pelas articulações do seu conteúdo (e de suas práticas) com
familiares, acadêmicos e movimentos sociais intersexuais em momentos seguintes. Contudo,
considero fundamental iluminar outra relação existente. No final do artigo publicado em 2006,
o Consenso reconhece e agradece o “suporte educacional irrestrito” concedido pela Pfizer
Endocrine Care, Novo Nordisk, Ferring, e Organon (Lee et al., ibid.: e497). Todas as quatro
são grandes companhias farmacêuticas multinacionais. A Pfizer tem sede nos EUA. A Organon
era holandesa, mas foi vendida e incorporada à Merck & Co. em 2009, que por sua vez também
tem sua matriz nos EUA. A Novo Nordisk se encontra na Dinamarca, e a Ferring na Suíça. Em
vista desse amparo, como perceber os valores que estão em jogo com as agendas internacionais
de “saúde global”? Nos termos de João Biehl:
estudos a longo prazo. O que proponho como pensamento futuro seria a compreensão dos tipos
de responsabilidade advindas da introdução de corpos intersexuais em modelos de gestão
biomédicos e farmacopolíticos. Esses suportes técnicos e institucionais são capazes de dar conta
das experiências em suas relações e negociações cotidianas? Ou simplesmente terminam em
apreensões discursivas segundo “puras” capitalizações de um corpo incluído no
regime/mercado “tecnobiopolítico”?
Nos sites das quatro empresas que financiaram o Consenso, aparece em destaque a
responsabilidade como tema/tópico101. Seja associada com uma responsabilidade corporativa
ou com uma meta de sustentabilidade, o termo está sempre relacionado (de maneira similar à
qualidade de vida/bem estar como horizonte clínico) com o investimento e a proteção de uma
“saúde global”. Um devir-mundo, supostamente comunitário, que se cumpre como função
retórica. Por isso é preciso detalhar as negociações e regulações globais desse modelo de
“responsabilidade”; contudo, podemos dizer que as características dessa concepção de “saúde
global” vendida e financiada têm cor, endereço, sexo/gênero e sexualidade marcada.
Logo, também podemos pensar, ainda dentro do texto do Consenso, se essas grandes
farmacêuticas financiariam pesquisas e congressos para o tratamento de condições não
patologizadas. Talvez o termo “distúrbios do desenvolvimento sexual” tenha sido escolhido não
só pela bagagem sociocultural que atravessa os saberes biomédicos sobre norma e
anormalidade, mas pelas pressões políticas e econômicas de farmacêuticas multinacionais. Elas
precisam tratar doenças, então financiar o cuidado de “intersexuais”, como categoria identitária,
não tenha tanta força quanto investir no tratamento de patologias com etiologias específicas e
descrições cada vez mais complexas. Como vimos, nem toda condição intersexual constitui
risco de vida, ao contrário, a grande parte dos casos atendidos integram diagnósticos de cunho
sociocultural, especialmente no que se refere aos modelos e tamanhos anatômicos do corpo e
aos papéis do sexo/gênero. Por conseguinte, manter certas classificações patologizadas
interessam a alguém.
101
Segue os links dos sites de cada empresa onde tratam da “responsabilidade”:
http://www.pfizer.com/responsibility; http://www.novonordisk.com/sustainability/;
https://www.ferring.com/en/responsibility/; http://www.merckresponsibility.com/.
121
Não espero formular respostas para tais questões, mas apontar para o fato de que a
cidadania dessas pessoas se restringe sobremaneira quando a política, em suas múltiplas
camadas, se reduz às “emergências biológicas e sociais”. Todas as histórias, experiências e
negociações expostas ao longo dessas páginas estão em constante suspeitas frente às urgências
biomédicas e necessidades socioculturais de “normalização”. Assim, a nova forma de “cuidar”
da intersexualidade, cada vez mais (principalmente em modelos norte americanos e europeus)
integrada e articulada por diversos atores sociais, à primeira vista pode garantir uma melhoria
nas condições de atendimento hospitalar, mas os aspectos que englobam a necessidade
“emergencial” de suas veridicções e gerenciamentos não estão sendo colocados em crítica.
E por que considero importante pensar criticamente sobre essas questões? Porque por
mais que a inscrição de uma pessoa como sujeito de direitos se construa através de relações de
sujeição dentro de um regime/mercado tecnológico, biológico e político, em que a pessoa se
torna inteligível e capitalizável dentro desses fluxos, ela terá uma vida e um valor para si
independente dos trâmites de incorporação e “normalização” social. Atentar para a
102
Manual diagnóstico e estatístico dos “transtornos mentais” feito pela Associação Americana de Psiquiatria.
Serve de base para diversos organismos (como a OMS) e profissionais de saúde pautarem seus parâmetros de
condutas e atendimentos. O DSM-IV foi lançado em 1994. Atualmente se encontra na quinta edição, atualizada
em 2013.
122
103
“Para Deleuze e Guattari (1986, p. 86), montagens são inter-relações contingentes e mutáveis entre ‘segmentos’
– instituições, poderes, práticas, desejos – que constantemente constroem, entrincheiram e desagregam
simultaneamente seus próprios constrangimentos e opressões”. O termo enfatiza o desejo, e as maneiras modestas,
marginais e menores, que ele irrompe em campos sociais aparentemente rígidos (Biehl, 2011: 275).
104
Butler apresenta o conceito em Problemas de Gênero (2008) e o reitera posteriormente em outros trabalhos e
entrevistas, de modo que a experiência da “abjeção” seria um processo discursivo no qual determinados corpos
não têm “vidas consideradas 'vidas' [isto é, vidas habitáveis de forma inteligível] e cuja materialidade é entendida
como ''não importante'” (Prins, Meijer, 2002, inserção minha).
123
Glossário
Cariótipo
Clitoroplastia
Cirurgia feita para a correção estética do clitóris, a fim de reduzir seu volume e/ou aumentar
sua área de exposição.
Consenso de Chicago
Foi uma conferência proposta em 2005 pela Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society (PES)
e pela European Society for Paediatric Endocrinology (ESPE), que reuniu cerca de cinquenta
médicos de várias especialidades (e, apesar de pioneira neste sentido, apenas duas participantes
intersexuais, as ativistas Cheryl Chase e Barbara Thomas) para discutirem e pensarem sobre os
protocolos, manejos e gerenciamentos sociais, médicos e científicos que envolvem casos de
intersexualidade. Como resultado da conferência foi publicado em 2006 o texto “Consensus
Statement on Management of Intersex Disorders”, que serve de guideline atual, em níveis
internacionais, para tais protocolos, manejos e gerenciamentos das condições intersexuais.
124
Proposta em 2006 pelo “Consenso de Chicago”, configura uma nova terminologia científica e
biomédica para tratar as condições intersexuais, afastando-se de termos anteriores como
intersexual e hermafrodita.
A escala Prader é uma classificação de virilização elaborada em 1954 para lidar com os níveis
de ambiguidade genital, sendo elas: Prader I – aumento isolado do clitóris, indicando que a
virilização tenha ocorrido após 20 semanas de vida intrauterina (VIU); Prader II – aumento do
clitóris associado a um introito vaginal em forma de funil, podendo visualizar-se aberturas
uretral e vaginal distintas, indicando virilização iniciada com 19 semanas de VIU; Prader III –
aumento de clitóris associado a um introito profundo, em forma de funil, com a uretra
esvaziando-se na vagina, como um pseudo seio urogenital, há vários graus de fusão lábio
escrotal indicando uma virilização ocorrida com 14-15 semanas de VIU; Prader IV – clitóris
fálico com abertura urogenital em forma de fenda na base do falo, indicando virilização ocorrida
com 12-13 semanas de VIU; Prader V – fusão lábio escrotal completa e uretra peniana,
indicando virilização ocorrida com 11 semanas de VIU (Damiani et al., 2001: 43).
Faloplastia
Genitoplastia
Guidelines
Classificação antiga, rastreada desde à Antiguidade, para identificar pessoas que continham os
dois sexos ou assumiam os dois papéis sociais generificados, de posições e atitudes masculinas
e femininas. Essas definições se modificam ao longo da História com o uso do mesmo termo e
seus acréscimos: pseudo, falso, verdadeiro. Como possui uma conotação histórica cheia de
significados e registros, sua utilização na atualidade não é bem vista por muitos acadêmicos,
médicos, familiares e pessoas intersexuais. Contudo, alguns ativistas intersexuais ainda a
utilizam como forma de denúncia e protesto frente às normalizações que ainda vivenciam.
Hormonoterapia
Intersexo e Intersexualidade
A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA – e AIS, em inglês) é uma condição ligada
ao cromossomo X que afeta indivíduos com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou
parcial do processo de virilização intrauterina devido à alteração funcional do receptor de
andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et al., 2005: 88). Essa virilização
127
intrauterina diminuída significa que em casos totais o fenótipo será tipicamente feminino (com
o desenvolvimento de genitália feminina, apesar das gônadas testiculares não desenvolvidas),
já em casos parciais o fenótipo será ambíguo, o que levará às veridicções e gerenciamentos
sociomédicos de pacientes com tal condição.
Uma das condições mais comuns referentes às combinações dos cromossomos sexuais,
chegando a ocorrer “em cerca de um entre quinhentos a seiscentos recém nascidos do sexo
masculino e em diferentes etnias” (Marques-de-Faria, 2002: 291). É diagnosticada quando uma
pessoa apresenta uma cromatina sexual a mais em seu par de cromossomos sexuais, por
exemplo, na composição cromossômica 47, XXY. Seus sintomas usuais são hipogonadismo,
isto é, diminuição da função das gônadas testiculares, e infertilidade.
Vaginoplastia
Cirurgia que serve para dois propósitos: reconstituir a anatomia vulvo-vaginal, por exemplo,
com reconstruções estéticas dos lábios vaginais, ou também criar e aprofundar um canal
vaginal, procedimento que requer o uso pós-cirúrgico de dilatadores vaginais.
128
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
BIEHL, João. Drugs for all: the future of global AIDS treatment. Medical Anthropology, v.
27, n. 2, p. 1-7, 2008.
BONNEFOY, Yves (ed.). Greek and Egyptian Mythologies. Chicago: University of Chicago
Press, 1992, p. 164-173.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, M. M. & Amado, J. (coord.). Usos &
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.
________. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk,
2007.
CHAZAN, Lilian K. “Para quem era cego, era tudo”, ou o “divisor de águas”: a chegada do
ultrassom no Brasil pela voz de três pioneiros. In: Fonseca, C; Rohden, F; Machado, P. Ciências
na Vida: Antropologia da Ciência em Perspectiva. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.
COLAPINTO, John. As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl. New York:
Harper Perennial, 2000.
CORRÊA, Mariza. Não se nasce homem. In: Joaquim, T. (org.) Encontros Arrábida.
Masculino/Feminino. Lisboa: Afrontamento, 2008.
DAMIANI, Durval et al. Genitália Ambígua: Diagnóstico Diferencial e Conduta. Arq Bras
Endocrinol Metab, v. 45, nº 1, Fev., 2001.
DAMIANI, Durval et al. Homem XX: relato de três casos na faixa etária pediátrica. Arq Bras
Endocrinol Metab, v. 49, nº 1, Fev., 2005.
DIAMOND, Milton; BEH, Hazel G. Changes in the Management of Children with Intersex
Conditions. Nature Clinical Practice, Endocrinology & Metabolism, v. 4, nº 1, Jan., 2008.
DIAMOND, Milton. Sex, Gender, and Identity over the Years. A changing perspective. Child
and Adolescent Psychiatric Clinics of North America, 13, p. 591-607, 2004.
DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. Sexo com animais como prática extrema no pornô bizarro.
Cadernos Pagu, v. 38, p. 241-279, Jan-Jun., 2012.
DREGER, Alice. Hermaphrodites and the Medical Invention of Sex. Cambridge: Harvard
University Press, 1998.
FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the Body: Gender Politics and the Construction of
Sexuality. New York: Basic Books, 2000.
FEDER, Ellen; KARKAZIS, Katrina. What’s in a Name? The Controversy over “Disorders of
Sex Development”. Hastings Center Report, 38, nº 5, p. 33-36, 2008.
FRISÉN, Louise et al. Gender Role Behavior, Sexuality, and Psychosocial Adaptation in
Women with Congenital Adrenal Hyperplasia due to CYP21A2 Deficiency. J Clin Endocrinol
Metab, v. 94(9), p. 3432-3439, Set., 2009.
GARFINKEL, Harold. Passing and the managed achievement of sex status in an “intersexed”
person. In: Stryker, S. & Whittle, S. org. The Transgender Studies Reader. London:
Routledge, 2006.
GOULD, Deborah. Rock the Boat, Don't Rock the Boat, Baby: ambivalence and the emergence
of militant AIDS activism. In: Goodwin, J.; Jasper, J.; Polletta, F. (eds.). Passionate Politics:
Emotions and Social Movements, p. 135-57. Chicago: University of Chicago Press, 2001.
HALBERSTAM, Jack. In a Queer Time and Place: Transgender Bodies, Subcultural Lives.
New York: New York University Press, 2005.
HUGHES, Ievan A. et al. Androgen Insensitivity Syndrome. Lancet, v. 380, p. 1419-1428, Out.,
2012.
Intersex Society of North America/Accord Alliance. Clinical Guidelines for the Management
of Disorders of Sex Development in Childhood. EUA: 2006a.
JORGE, Juan Carlos et al. Male Gender Identity in an XX Individual with Congenital Adrenal
Hyperplasia. J Sex Med, v. 5, p. 122-131, 2008.
KESSLER, Suzanne. Lessons from the Intersexed. New Brunswick: Rutgers University
Press, 1998.
KNAUTH, Daniela Riva; MACHADO, Paula Sandrine. Corrigir, prevenir, fazer corpo: a
circuncisão masculina como estratégia de prevenção do HIV/AIDS e as intervenções cirúrgicas
em crianças intersex. Sexualidad, Salud y Sociedad, v. 14, p. 229-241, 2013.
LAQUEUR, Thomas. Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: UNESP, 2000.
LEITE JR, Jorge. “Nossos corpos também mudam”: sexo, gênero e a invenção das categorias
“travesti” e “transexual” no discurso científico. Tese de Doutorado em Ciências Sociais,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2008.
MACHADO, Paula Sandrine. O Sexo dos Anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do
sexo (como se fosse) natural. Cadernos Pagu, nº 24, p. 249-281, Jan-Jun., 2005.
________. (Des)fazer corpo, (re)fazer teoria. Cadernos Pagu, 42, p. 141-158, Jan-Jun., 2014.
MELO, Karla F.S. et al. Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos: análise clínica, hormonal
e molecular de 33 casos. Arq Bras Endocrinol Metab, v. 49, nº 1, Fev., 2005.
MORLAND, Iain. Intimate Violations: Intersex and the Ethics of Bodily Integrity. Feminism
& Psychology, v. 18(3), p. 425-430, 2008.
________. Introduction: lessons from the octopus. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay
Studies, v. 15, nº 2, p. 191-197, 2009a.
________. The Injured World: Intersex and the Phenomenology of Feeling. differences: A
Journal of Feminist Cultural Studies, v. 23(2), 2012.
NADER, Laura. Up the Anthropologist: Perspectives Gained from Studying Up. In: Hymes, D.
(ed.). Reinventing Anthropology. New York: Pantheon Books, 1972.
NEW, Maria et al (eds.). Genetic Steroid Disorders. London, Waltham, San Diego: Elsevier
Academic Press, 2014.
NUCCI, Marina Fisher. Hormônios pré-natais e a ideia de sexo cerebral: uma análise das
pesquisas biomédicas sobre gênero e sexualidade. Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva,
134
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro,
2010.
PINO, Nádia Perez. A Teoria Queer e os Intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos.
Cadernos Pagu, v. 28, p. 149-174, Jan-Jun., 2007.
PRINS, Baukje; MEIJER, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com
Judith Butler. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 10, n. 1, Jan., 2002.
REIS, Elizabeth. Bodies in Doubt: An American History of Intersex. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 2009.
RINK, Richard C.; WHITTAM, Benjamin. Treatment and Outcome of Congenital Adrenal
Hyperplasia: Current Reconstructive Surgery. In: New, M. et al (eds.). Genetic Steroid
Disorders. London, Waltham, San Diego: Elsevier Academic Press, 2014.
ROSE, Nikolas. The Politics of Life Itself: biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-
first century. New Jersey: Princeton University Press, 2007.
TAMAR-MATTIS, Anne et al. Emotionally and cognitively informed consent for clinical care
for differences of sex development. Psychology & Sexuality, v. 5(1), 2013.
________. From Gene to Gender, Lübeck, 31.8.06 - 2.9.06. The Chicago Consensus, a patient
perspective. 2006b. Disponível em <http://www.aissg.org/PDFs/Barbara-Lubeck2-
Abstract.pdf>. Acessado em: 20 Out. 2014.
WELLAUSEN, Saly. Michel Foucault: parrhésia e cinismo. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
São Paulo, v. 8(1), p. 113-125, Mai., 1996.