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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

LORENA MOCHEL

A FLUIDEZ DA UNÇÃO:
raça, gênero e erotismos evangélicos nas materialidades de um Ministério digital

RIO DE JANEIRO
2023
Lorena Mochel

A FLUIDEZ DA UNÇÃO:
raça, gênero e erotismos evangélicos nas materialidades de um Ministério digital

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de doutora em Antropologia Social.
Orientadora: Profª Drª María Elvíra Díaz-Benítez
Co-orientadora: Profª Drª Sandra Maria Nascimento
Sousa (in memoriam)

Rio de Janeiro
2023
CIP - Catalogação na Publicação

Mochel, Lorena
M688f A fluidez da unção: raça, gênero e erotismos
evangélicos nas materialidades de um Ministério
digital / Lorena Mochel. -- Rio de Janeiro, 2023.
375 f.

Orientadora: María Elvíra Díaz Benítez.


Coorientadora: Sandra Maria Nascimento Sousa.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, 2023.

1. Mulheres evangélicas. 2. Sexualidade. 3.


Gênero. 4. Mídias digitais. 5. WhatsApp. I. Díaz
Benítez, María Elvíra, orient. II. Sousa, Sandra Maria
Nascimento, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos


pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
Lorena Mochel

A FLUIDEZ DA UNÇÃO:
raça, gênero e erotismos evangélicos nas materialidades de um Ministério digital

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de doutora em Antropologia Social.

Aprovado(a) em 28/02/2023

Banca examinadora:

Profª Drª María Elvíra Díaz-Benítez (Presidente, PPGAS/ MN/ UFRJ)

Profª Drª Renata de Castro Menezes (PPGAS/ MN/ UFRJ)

Profª Drª Heloisa Buarque de Almeida (PPGAS/ USP)

Profª Drª Carly Barboza Machado (PPGCS/ UFRRJ)

Profª Drª Jacqueline Moraes Teixeira (PPGSOC/ UNB)

Prof. Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS/MN/ UFRJ) – Suplente interno

Prof. Dr. Raphael Bispo dos Santos (PPGCSO/ UFJF) – Suplente externo
AGRADECIMENTOS

Escrevo estes agradecimentos em dois períodos de reconstrução para erguer novas


possibilidades de vida diante de devastações sem precedentes. Nos últimos anos, vivemos a
pandemia (torcendo para que fique no passado!) e assistimos a casa em que morei por muitos
anos com colegas, professores(as) e funcionários(as) ruir, o Museu Nacional. Conseguimos e
permanecemos nos reerguendo, agora com mais força, longe do negacionismo que aprofundou
essas dores durante a gestão de extrema-direita no executivo brasileiro.

A comunicação via WhatsApp nesses tempos difíceis me aproximou de quem eu não pude estar
por perto fisicamente. Uma das pessoas com quem mais dividi momentos bons e ruins durante
este período foi minha principal interlocutora da pesquisa: a pastora que, nas páginas desta tese,
chamo de Cristiane. Para além das muitas afinidades que criamos ao longo do trabalho de
campo, entendemos que tempos difíceis pedem apoio, acolhimento, colo, preocupações mútuas.
Meu primeiro agradecimento não poderia ser para outra pessoa. Muito obrigada, pastora!
Estamos e estaremos sempre juntas, hoje e para além do dia em que a assistirei “se fazer grande
no meio dos grandes”, como a senhora sempre profetiza.

Para a “Mulheres Virtuosas”, como as chamo aqui, “filhas na fé” da pastora, agradeço o afeto
e confiança. Obrigada pela abertura para falar sobre temas difíceis, por superarem minhas
expectativas e tornarem dificuldades que enfrentei no trabalho de campo muito menores perto
do prazer que nossa convivência me proporcionou! Agradeço também ao pastor, marido da
pastora, pela prestatividade e confiança em mim e no meu trabalho desde o início.

Na Universidade e na Antropologia encontrei uma equipe generosa que inspira tudo o que me
proponho a fazer. Minha orientadora, Maria Elvira Diáz-Benítez, foi a líder dessa equipe.
Melvi, obrigada por segurar os “andaimes” da tese comigo, pela mistura entre ternura e rigor
teórico, e pela grandeza de quem sempre foi amiga e parceira nessa caminhada!

Agradeço à minha co-orientadora, Sandra, que nos deixou no fim de 2021. Como foi difícil
saber que você não estaria na defesa! Eu e as pesquisadoras do GENI, grupo de estudos que
você fundou na UFMA, sentimos saudades imensas e tentaremos honrar teu legado para a
continuidade dos estudos feministas no Maranhão.
Agradeço à minha mãe, Silvia, a vice-líder da torcida pra essa tese sair pro mundo. Obrigada
pela escuta amorosa, por ser minha maior incentivadora, por estar sempre aberta a apoiar o que
é justo e mudar pelo que vale a pena. À minha tia Marcia, meu profundo agradecimento por me
dar ainda mais coragem na vida, por fazer crescer meu orgulho de ser maranhense, pelas rezas,
colos e por fazer o necessário pra que essa tese pudesse sair, principalmente nos momentos
finais! À minha irmã caçula Luciana, minha metade do avesso, agradeço por cuidar da gente e
me escrever as declarações mais lindas do mundo. Agradeço também ao meu pai José Roberto,
que não mede esforços pra me ver bem, por ser fortaleza e me incentivar a continuar enfrentando
qualquer batalha.

Às professoras que aceitaram participar da banca avaliadora da tese e aos professores que fazem
parte da suplência:

Para Carly Machado, meu enorme agradecimento por me provocar a jogar as categorias pro
“fogo” e pelo chamado a dar maior atenção analítica pros grupos de “zap” nos caminhos de
volta de Seropédica pro Rio. Sou uma antropóloga/psicóloga mais firme e segura depois de
você ensinar que dá pra “aprender antropologia de trás pra frente”!

Agradeço à Renata Menezes por inspirar reflexões maravilhosas em sala de aula,


principalmente no percurso de religião e materialidades que pude participar como aluna em
uma de suas disciplinas. Obrigada por proporcionar debates generosos e por me animar a
investir no caminho dos óleos e outras “coisas” eróticas!

Para Jacqueline Moraes Teixeira, a Jacque, meu agradecimento por ser inspiração absoluta de
ética e generosidade na docência, por fazer eu e tanta gente aprender Foucault com suas aulas
gravadas no curso de extensão da USP. Obrigada por ser tão maravilhosa como amiga também,
ajudando tanto a mim como a Ju nos perrengues de ser antropóloga autônoma em SP.

Agradeço à Heloisa Buarque de Almeida por animar debates interessantíssimos sobre gênero,
sexualidade e mídia na Antropologia e ser uma enorme referência ao caminho interdisciplinar
que trilhei entre Psicologia, Comunicação e Antropologia. Obrigada por dar a mim e Maria
Elvira a alegria e satisfação de prontamente aceitar ser uma das avaliadoras deste trabalho!
Ao Luiz Fernando Dias Duarte, agradeço não somente por ter aceitado a tarefa de ser suplente
na banca examinadora, mas pelas trocas sempre afetuosas em sala de aula e pela prontidão com
que me atendeu nos e-mails em que tive dúvidas a respeito de questões burocráticas da pesquisa.

Agradeço ao Raphael Bispo por me ensinar tanto sobre gênero e sexualidade há pelo menos 10
anos, quando foi meu professor no melhor curso que o CLAM/IMS já ofereceu, o EGES! Muito
obrigada, Rapha, por todas as trocas que já rolaram e sei que ainda estão por vir sobre nossos
temas de pesquisa.

Agradeço também à Isadora Lins França, pela leitura cuidadosa da qualificação da tese e por
tantas sugestões inspiradoras sobre gênero, sexualidade e materialidades em versões anteriores
deste trabalho.

Para as amigas antropólogas maravilhosas que formam o Laboratório Feminismos na Diferença


junto comigo: Barbara Pires, Camila Fernandes e Nathalia Gonçales. Obrigada, Barbs por sua
sagacidade atenta e generosa e pela amizade sempre prestativa! Cami, te agradeço pelo
didatismo de dizer sempre o necessário, pelas praias e papos que me deram força pra seguir
diante do caos! Nath, obrigada por estar sempre aberta a ensinar e aprender e por ser a melhor
organizadora de festas do RJ! Nossa amizade me emociona na mesma medida em que admiro
vocês, suas militâncias e trabalhos profundamente comprometidos com nossos feminismos.

Sou muito privilegiada de poder ter juntado a leitura do Lab com as revisões feitas por Caio
Maia durante o processo final da tese, amigo que tem sempre as melhores ideias sobre
antropologia digital e me deu os abraços que mais precisei em momentos difíceis do doutorado.
Elas e ele me apresentaram sugestões geniais que busquei incorporar à versão que apresento
desta tese para a banca examinadora. Além de agradecimentos feitos em notas de rodapé para
cada um(a) ao longo do texto, deixo aqui registrado meu agradecimento mais profundo pela
participação na minha construção como pesquisadora e antropóloga. Vocês são parte do melhor
que busco oferecer de mim nesse processo tão difícil quanto enriquecedor que é construir
Antropologia através do MN.

Agradeço aos amigos e amigas do NUSEX, nosso núcleo de pesquisa coordenado por Maria
Elvira, Adriana Vianna e Luiz Fernando. Adriana, obrigada por me dar sempre mais motivos
pra defender as cancerianas! Aos meus parceiros nesse caminho, agradeço ao Felipe Magaldi,
querido amigo que os encontros “antropsi” trouxeram, aos amados com quem dividi muitas
risadas e bons conselhos: Lucas Freire, Everton Rangel, Victor Hugo Barreto, Oswaldo
Zampirolli, Michel Carvalho e Nathanael Araújo. Agradeço a eles também por leituras
generosas de versões desta tese em nossos grupos de orientação, assim como à Julia Chaise,
Natalia Maia, Annelise Gonçalves, Brena O’Dwyer, Hannah de Vasconcellos, Zwanga Nyack,
Carolina Castellitti, André Sousa, Caroline Mendonça, Bruno Domingues, Vinicius Maurício
Lima, Carlos Sanchez, Samara Freire e Patrick Monteiro.

Às amigas nordestinas e nortistas que o PPGAS também me trouxe, Antônia Gabriela, Telma
Bemerguy, Igor Rolemberg e Juliana Oliveira Silva e amigas(os) maranhenses que desde
sempre me acompanham, Luciana Coelho, Mayara Fontenelle, Luiza Coelho, Cristiane Silva,
Cintia Pinheiro, Phillipe Aragão, Jânia Lindoso, Samuel Filho, Eduardo Gomes, Clarissa
Cardoso, Camila Chaves, Vanessa Travincas, Fernanda Gurgel e Renata Buzar. Aos amigos
das migrações entre cidades que já fiz, Rodrigo Cotrim, Gustavo Córdoba, Bruno de Oliveira e
Marília Lima.

Para as queridezas do “É muita mistura”, grupo de estudos coordenado por Carly Machado na
UFRRJ, meu imenso agradecimento pela acolhida e aprendizado sobre pentecostalismo e
etnografia, especialmente à Laryssa Owsiany, Frederico de Assis, Leonado Cruz, Nildamara
Torres, Sthefanye Paz, Mauro Cordeiro e Cleiton Maia.

Aprendi e aprendo muito sobre pentecostalismo também com pesquisadoras(es) que se


tornaram amiga(os) e referências. Obrigada, Raquel Sant’Ana, Livia Reis, Beatriz Brandão e
Cleonardo Mauricio Junior.

Para Horacio Sívori, meu agradecimento pela confiança da parceria concretizada com uma
bolsa de pesquisa em 2022 para desenvolvermos um projeto com a FIRN (Feminist Internet
Research) sobre mobilizações feministas na internet, além de uma disciplina sobre violência
digital no IMS/UERJ. Obrigada por me animar a continuar investindo em leituras nesse campo
de estudos e por ser tão presente durante todo o processo!

Agradeço aos queridos e queridas professoras e professores que dialogaram comigo em


diferentes versões apresentadas deste trabalho e que tanto me inspiram: Bruno Reinhardt,
Carolina Parreiras, Roberta Bivar Campos, Eduardo Dullo, Juliano Spyer, Rodrigo Toniol, João
Rickli, Gleicy Mailly e Roberto Efrem Filho. Agradeço também aos(às) professores(as) que me
formaram e incentivaram minha passagem para a Antropologia e entrada no MN, José Carlos
Rodrigues e Marcelo Ramos.

Agradeço também ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,


que me concedeu auxílios durante a pandemia para inscrição em congressos e para a finalização
desta tese. Ao John Comeford, pela coordenação afetuosa durante este período. Anderson
Arnaud, agradeço pela gentileza e pelo acolhimento que sempre prestou desde quando ainda
frequentava o PPGAS como ouvinte e à Marta Mello, pela prestatividade com que sempre tratou
os muitos pedidos burocráticos que fiz. Agradeço também às queridas funcionárias da
biblioteca Dulce Carvalho e Adriana Ornellas, e ao Miguel Camilo e José Roberto da Silva por
serem as melhores presenças no “Flor da Amizade” do nosso Museu.

À FAPEMA, Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico


do Maranhão, sobretudo ao setor de Bolsas, agradeço por ter investido neste trabalho com uma
bolsa de Doutorado recebida até o início da pandemia.

À família Mochel e nossos agregados, tios(as): Tias Maria Alice e Lucia Alice, Tios Luiz,
Paulo, Cazuza, Rogério e André e primas(os) Marina, Ivan, Luisa Villamizar, Giordano,
Andrea, Eleonora, Luiz Augusto, Klauss, Nina, Renata, Flora, Pablo, Marcelo, Uirá e à minha
madrinha Gabi!

Aos colegas, professores(as) e ex-alunos(as) do curso de Psicologia do UNIFAA, agradeço por


terem me acompanhado nos caminhos de ida e volta para Valença enquanto lecionei na
instituição. Muito obrigada, Aureliano Lopes, Andrea DiPietro, Lídia Reis, Allan dos Santos e
Vanderson de Souza. Às turmas que se formaram em 2021, 2022 e que se formarão em 2023,
que tanto me ensinaram a ensinar, agradeço em nome de minhas/meus co-orientandas(os)
Fabiane Sabino, Cassia Santos, Simone Fernandes, Deborah Ramires, Gustavo Paulino e Ana
Beatriz Vianna.

Às minhas referências de um profundo trabalho de cuidado que se deu com acolhimento


espiritual, por Ildenir Freitas, e com muita escuta e paciência, por Carla Gomes. Agradeço por
serem porto seguro quando tudo parecia mais difícil, por estarem por perto quando mais
precisei.
Agradeço, finalmente, à Juliana Farias, por me proporcionar leveza nos dias mais difíceis e ser
colo no quintal de casa. Obrigada por cuidar tão bem do Sid e da Gaia enquanto estive mais
ocupada e por desorientar minhas manias capricornianas na tese e na vida! Tem muito de você
escrito nessas páginas e me formando como a antropóloga que busco ser.
Eu pari treze filhos e vi a maioria deles sendo vendida para a escravidão
E quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu!
E não sou uma mulher?

Sojourner Truth
RESUMO

MOCHEL, Lorena. A fluidez da unção: raça, gênero e erotismos evangélicos nas materialidades
de um Ministério digital. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023.

Esta tese investigou como arranjos femininos pentecostais têm se construído no espaço público
contemporâneo através de fluxos transnacionais e usos de mídias digitais, sobretudo do
WhatsApp. Por meio de uma etnografia que incluiu observações participantes em grupos de
oração neste aplicativo, em eventos voltados para mulheres em igrejas e lares pentecostais, além
de suas transmissões online, analisei como mulheres evangélicas têm formado coletividades
através de circulações urbanas e agenciamentos nas relações com as materialidades. O enfoque
analítico relacional para explorar estas coletividades foi desenvolvido a partir de um Ministério
de mulheres sem vinculações institucionais, cujo recorte resultou no desdobramento de
metodologias qualitativas através de artefatos eróticos que mulheres evangélicas trocavam em
suas dinâmicas de consumo e socialidade religiosa. A pesquisa explorou, assim, a circulação de
um casal de pastores pentecostais e suas “filhas na fé”, mulheres que congregam em diferentes
igrejas ou em nenhuma denominação e são, por sua vez, residentes de áreas periféricas urbanas
no Rio de Janeiro e Minas Gerais e imigrantes brasileiras na Itália. O desenvolvimento das
questões centrais decorrentes desta etnografia apontou para modos como fluxos eróticos e
religiosos vêm transformando carreiras pastorais e reconfigurando coletividades de mulheres
evangélicas. Em cotidianos religiosos vividos nos eventos e mídias digitais através de
performances da intimidade, suas disputas espirituais pelo casamento e cuidado com os(as)
filhos(as) demonstraram variadas negociações para alcançar a unção que movimenta essas
autoridades religiosas. Raça, gênero e erotismos estiveram materializados na gestualidade de
corpos e nas estéticas de indumentárias, imagens, textos e sons de orações, testemunhos,
pregações e outras experiências que relacionam coletivamente pessoas, coisas e mídias. Das
mobilidades transnacionais proporcionadas pela circulação pentecostal feminina, a tese
explorou processos político-religiosos ambíguos e ambivalentes através dos quais mulheres
evangélicas têm se reconfigurado enquanto coletividade através dos usos do WhatsApp e
transformado rituais para o exercício da fé em suas convivências digitalizadas.

Palavras-chave: religião; sexualidade; gênero; raça; pentecostalismo; mulheres evangélicas;


materialidades; Ministério; WhatsApp; mídias digitais.
ABSTRACT

MOCHEL, Lorena. The fluidity of the anointment: race, gender and Evangelical eroticisms in
the materialities of a digital Ministry. PhD thesis in Social Anthropology. Rio de Janeiro: Museu
Nacional, Federal University of Rio de Janeiro, 2023.

This thesis has investigated how feminine Pentecostal arrangements have been created in the
contemporary public space through transnational flows and uses of digital media, especially
WhatsApp. Through an ethnography that included participant observations in prayer groups in
this application, in events aimed at women in Pentecostal churches and homes, in addition to
their online transmissions, I analyzed how feminine evangelical collectivities have been
constituted through urban circulations and agencies in relations with materialities. The
relational analytical approach used to explore these collectivities was developed following a
Ministry of women without institutional links, which resulted in unfolding qualitative
methodologies through erotic artifacts that evangelical women exchanged in their consumption
dynamics and religious sociality. The research explored, thus, the circulation of a couple of
Pentecostal pastors and their “daughters in faith”, women who congregate in different churches
or in no denomination and who live in urban peripheral areas in Rio de Janeiro and Minas
Gerais, as well as Brazilian immigrants in Italy. The development of the central issues arising
from this ethnography pointed to ways in which erotic and religious flows have transformed
pastoral careers and given new meanings to evangelical female collectivities. In religious
routines lived in events and digital media through performances of intimacy, their spiritual
disputes within marriage and care for children have demonstrated complex negotiations to
achieve the anointing that moves these religious authorities. Race, gender and eroticisms were
materialized in the gestuality of bodies and in aesthetics of clothing, images, texts, and sounds
of prayers, testimonies, preaching, and other experiences that collectively relate people, things,
and media. From the transnational mobilities provided by the female pentecostal circulation,
the thesis explored ambiguous and ambivalent political-religious processes through which
evangelical women have reconfigured themselves as a collectivity through their uses of
WhatsApp and transformed rituals for the exercise of faith in their digitized interactions.

Keywords: Religion; sexuality; gender; race; Pentecostalism; Evangelical women;


materialities; Ministry; WhatsApp; digital media.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mapa de deslocamentos do Ministério .................................................................... 50


Imagem 1: Campanha publicitária veiculada por loja física de artigos eróticos ..................... 68
Imagem 2: Linha de “cosméticos sensuais” lançada por marca de artigos eróticos ............... 68
Imagem 3: Mesa do Chá das Virtuosas 1 .............................................................................. 142
Imagem 4: Mesa do Chá das Virtuosas 2 .............................................................................. 142
Imagem 5: Potes para armazenamento de comida e outros objetos embrulhados em papel
transparente , para apresentação feita antes do sorteio ao público ......................................... 159
Imagem 6: Cosméticos, máscaras e lingeries, exibidos somente durante o sorteio .............. 159
Imagem 7: Interior de loja que integrou o circuito de compras para o sorteio, localizada no
centro do Rio de Janeiro, RJ ................................................................................................... 164
Imagem 8: Interior de outra loja que integrou o circuito de compras para o sorteio, localizada
no centro do Rio de Janeiro, RJ .............................................................................................. 164
Imagem 9: Porta de entrada em loja de atacado e varejo que compôs o circuito no centro do
Rio, demarcando separação de outros produtos para artigos de “sex shop” .......................... 165
Imagem 10: Visão dos produtos encontrados no espaço de “sex shop” da mesma loja ....... 165
Imagem 11: Loja destinada a produtos para fantasias de carnaval que compôs o circuito de
compras destinadas ao sorteio ................................................................................................ 165
Imagem 12: Manto de oração e talit posicionados no altar antes do início de um culto ....... 172
Imagem 13: Manuseio do óleo de unção por uma pastora e um pastor durante um culto .... 182
Imagem 14: Uso do azeite em ritual de expulsão de demônios ............................................ 183
Imagem 15: Mesa organizada por vendedores comercializando óleos, essências e bijuterias na
porta de um evento para mulheres, Zona Norte do Rio de Janeiro, RJ .................................. 187
Imagem 16: Gravação de áudios das pregações durante um evento por uma fiel ................. 205
Imagem 17: Evento realizado pela igreja Missões em ginásio na Zona Norte do Rio de Janeiro,
RJ ............................................................................................................................................ 214
Imagem 18: Chá das Virtuosas em filial da igreja Missões no Rio de Janeiro, RJ ............... 232
Imagem 19: Exemplo de referência utilizada para a elaboração dos flyers dos Chás das
Virtuosas ................................................................................................................................. 232
Imagem 20: Outro exemplo de referência utilizada para a elaboração dos flyers dos Chás das
Virtuosas ................................................................................................................................. 232
Imagem 21: Exemplo de referência enviada pela pastora, utilizada para a elaboração de flyers
dos Chás após a primeira viagem internacional ..................................................................... 232
Imagem 22: Logotipo que ilustrou materiais do Ministério/Projeto/grupo Mulheres Virtuosas
................................................................................................................................................ 233
Imagem 23: Registro de um “Chá entre amigas” .................................................................. 239
Imagem 24: Disposição corporal durante uma pregação ...................................................... 250
Imagem 25: Ilustração do perfil dos grupos de oração “Mulheres Virtuosas” no WhatsApp
................................................................................................................................................ 258
Imagem 26: Interface do aplicativo WhatsApp no sistema iOS (WhatsApp versão 2.22.24.81)
................................................................................................................................................ 276
Imagem 27: Interface do WhatsApp no sistema Android (WhatsApp versão 2.22.24.78) ... 276
Imagem 28: Interface do WhatsApp no sistema Android, mostrando o menu superior direito
................................................................................................................................................ 276
Imagem 29: Interface de um grupo no sistema iOS (WhatsApp versão 2.22.24.81) ............ 277
Imagem 30: Interface de um grupo no sistema Android (WhatsApp versão 2.22.24.78) ..... 277
Imagem 31: Ilustração incentivando a participação, compartilhada em um dos grupos de oração
no WhatsApp .......................................................................................................................... 283
Imagem 32: Registro de participação na campanha “três elementos” em 2018.................... 291
Imagem 33: Ilustração compartilhada por integrante do grupo............................................. 291
Imagem 34: Ilustração compartilhada por integrante do grupo, convidando para a oração
conjunta .................................................................................................................................. 291
Imagem 35: Ilustração de divulgação da campanha de oração “carta de afronta” ................ 292
Imagem 36: Registro fotográfico da campanha de oração “carta de afronta” ....................... 292
Imagem 37: Ilustração da campanha da família, realizada em outubro de 2017 (1) ............. 293
Imagem 38: Ilustração da campanha da família, realizada em outubro de 2017 (2) ............. 293
Imagem 39: Ilustração da campanha da família, realizada em outubro de 2017 (2) ............. 293
Imagem 40: Ilustração de campanha de jejum e/ou oração (1) ............................................. 293
Imagem 41: Ilustração de campanha de jejum e/ou oração (2) ............................................. 293
Imagem 42: Ilustração de campanha de jejum e/ou oração (3) ............................................. 293
Imagem 43: Figurinha de WhatsApp (1) ............................................................................... 294
Imagem 44: Figurinha de WhatsApp (2) ............................................................................... 294
Imagem 45: Figurinha de WhatsApp (3) ............................................................................... 294
Imagem 46: Figurinha de WhatsApp (2) ............................................................................... 294
Imagem 47: Registro fotográfico de um quarto de oração .................................................... 297
Imagem 48: Meme com a cantora gospel Fernanda Brum .................................................... 321
Imagem 49: Mensagem de boas-vindas compartilhada pela pastora Cristiane ..................... 321
Imagem 50: Alerta conspiratório enviado nos grupos de oração, alertando para riscos em
“brincadeirinha” no Facebook ................................................................................................ 323
Imagem 51: Fotografia de brinquedo de pelúcia compartilhada como alerta conspiratório . 323
Imagem 52: Ilustração de conteúdo classificado como político (1) ...................................... 325
Imagem 53: Ilustração de conteúdo classificado como político (2) ...................................... 325
Imagem 54: Ilustração contrária à mistura entre religião e política ...................................... 325
Imagem 55: Primeira convocação ao “#jejumnacional” ....................................................... 330
Imagem 56: Ilustração compartilhada durante uma campanha do “Yom Kippur” ............... 331
LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Hierarquia religiosa na Igreja Missões, em ordem decrescente de autoridade .... 121
Quadro 2: Registro de campo para uma semana em campanha de oração ........................... 290
Quadro 3: Registro de campo para um dia em campanha de oração .................................... 292
Quadro 4: Registro de campo para uma quinzena em campanha de oração ......................... 293
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21
1 ENTRE SEX SHOP E IGREJA ......................................................................................... 56
1.1 Discursos secularistas sobre o sexo: reposicionando o problema da “virada
conservadora” ......................................................................................................................... 63
1.2 Classificações, riscos e transtornos do erotismo gospel ................................................. 72
1.3 Revendedoras e coaches no empreendedorismo pentecostal ........................................ 82
1.4 Circulações evangélicas pela cidade: humilhação e agenciamentos negros ................ 90
1.5 Pelos roteiros conjugais e seus desvios ............................................................................ 95
2 BATALHAR CONTRA E PELA FAMÍLIA .................................................................. 101
2.1 Trajetos de um Ministério em casal: éticas do testemunho e rupturas da conversão
................................................................................................................................................ 106
2.2 “Eu não nasci pra ser pastora de igreja”: mídias e institucionalização religiosa ..... 114
2.3 Informalidade e renúncia em carreiras pastorais autônomas .................................... 119
2.4 Mãe e filhas na fé: dívidas e dádivas dos parentescos espirituais .............................. 125
2.5 Alianças e fronteiras do dom de Revelação .................................................................. 133
2.6 Chá das Virtuosas: agências femininas e encenação de limites no pentecostalismo 139
3 POLÍTICAS SEXUAIS DAS COISAS ............................................................................ 153
3.1 Seguir as coisas como método e metodologia ............................................................... 158
3.1.1 Regulações sobre o sexo em um sorteio erótico ............................................................ 158
3.1.2 Masculinidades evangélicas em perspectiva material .................................................. 168
3.1.3 “Brinquedinhos”, fetiches e as materialidades da memória ........................................ 173
3.2 Sagrados e demônios líquidos ........................................................................................ 179
3.2.1 Ambiguidades eróticas no óleo de unção ...................................................................... 179
3.2.2 Ambivalências religiosas nos fluidos corporais ............................................................ 188
3.3 Jezabéis, Pombagiras e feitiçarias: disputas espirituais pelo casamento .................. 194
4 ESTÉTICAS E PERFORMANCES ATRAVÉS DOS EVENTOS ................................ 204
4.1 “Existe bispa preta?”...................................................................................................... 207
4.1.1 Pelos circuitos político-midiáticos da fama gospel ....................................................... 210
4.1.2 Estéticas da unção: estilos, cabelos e indumentárias ................................................... 222
4.2 Performances da intimidade: os eventos entre templos e lares ................................... 226
4.3 Fluxos transnacionais para a Europa ........................................................................... 241
4.4 Vestida de pastora: mediações das corporalidades graciosas .................................... 247
5 UM MINISTÉRIO NO WHATSAPP ............................................................................... 255
5.1 Espaço, tempo e dinâmicas de controle nos usos do celular entre mulheres evangélicas
................................................................................................................................................ 262
5.2 Uma etnografia no/do/sobre o WhatsApp .................................................................... 273
5.2.1 Interfaces das desigualdades digitais: entre privacidades e empreendedorismos........ 275
5.2.2 “Não fique só observando, participe”: reflexões ético-metodológicas através dos grupos
de “zap” ................................................................................................................................. 282
5.3 Batalhas sensoriais em imagens, sons e textos da oração ............................................ 288
5.4 Hashtags e testemunhos: contranarrativas da violência nas intimidades digitais.... 304
5.5 “Não somos um grupo político” .................................................................................... 316
5.5.1 Conspirações religiosas nas guerras femininas através do digital ............................... 320
5.5.2 O #jejumnacional e outras transformações rituais no pentecostalismo ....................... 327
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 335
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 343
21

INTRODUÇÃO

O som do alerta de mais um dia de campanha irrompe na tela do celular. Em poucos


minutos, o horário do almoço é preenchido por dezenas de notificações agrupadas em uma única
aba da tela de bloqueio, que mostra somente a mensagem mais recente. As rápidas alterações
no envio ativam a curiosidade para acessar o conteúdo do grupo. Das centenas de mulheres que
participam dos grupos homônimos “Mulheres Virtuosas”1, imagens, mensagens de voz e de
texto são simultaneamente visualizadas por quem está online. Escolho ouvir o primeiro dos
áudios, em que uma voz feminina firme e segura faz uma saudação: “Paz do Senhor, Mulheres
Virtuosas”.
A fala, feita por uma das administradoras do grupo, é acompanhada por breves
interrupções para atender ao pedido de uma criança que chora ao fundo. Sua voz anuncia que
aquele era o segundo dia da “campanha pela vida sentimental”, convocando as participantes a
orar e jejuar junto. Quase sussurrando, outra voz do áudio seguinte irrompe automaticamente,
pedindo para que o Espírito Santo visite seu cunhado no hospital. A participante justifica que
sua oração teria sido feita em tom de voz baixo porque, naquele momento, estaria no banheiro
de seu ambiente de trabalho. Quanto mais mensagens de voz chegam, aumentam também as
reações instantâneas com respostas em formato de mensagens de texto breves. São brados de
“Aleluia”, “Glória a Deus”2, acompanhados de imagens estáticas ou gifs3, além de desenhos de
mãos juntas em oração e separadas em louvor em emojis4 cujas cores transitam entre
diferentes tons de pele, prevalecendo os mais escuros.
Se cores, brilhos e movimentos das imagens fornecem experiências visuais que remetem
à ludicidade, o conteúdo das mensagens dita o ritmo particular da temporalidade dos áudios.
Tanto as mais longas como as mais curtas apresentam detalhes que convidam quem ouve a
fechar os olhos e não somente imaginar quem ora, mas visualizar locais e pessoas às quais a
oração é destinada. Uma das participantes envia uma foto de um recipiente com óleo de unção

1
Os nomes de pessoas, grupos e instituições utilizados nesta tese são fictícios.
2
Termos e expressões êmicas ouvidas no trabalho de campo serão utilizados entre aspas e remetidas aos seus
contextos de fala em nota de rodapé quando houver necessidade desta explicitação. Os destaques em itálico, por
sua vez, trazem palavras estrangeiras ou buscam enfatizar argumentos desenvolvidos. Para categorias e/ou
expressões que se repetem com muita frequência, aspas foram aplicadas somente na primeira vez em que aparecem
no texto.
3
Abreviação correspondente a “Graphics Interchange Format”, caracterizado por um agrupamento de imagens em
baixa resolução. Quando acionadas via toque na tela do celular, assemelham-se a um clipe de vídeo.
4
Emojis ou emoticons são pequenos desenhos que expressam emoções através de fisionomias faciais e do corpo,
podendo ilustrar também animais, objetos, lugares, comidas etc. Compondo uma ampla gama de possibilidades
para as interações digitais, emojis são frequentemente atualizados pelos(as) desenvolvedores(as) de mídias sociais.
22

que também chama de azeite, pedindo proteção divina enquanto conta por mensagem de voz
sobre estar derramando o conteúdo em peças de roupa e fotos do filho que, naquele momento,
frequentaria a “boca de fumo”5.
Percorro também os corredores do hospital que tem seu nome e bairro anunciados e
chego até o corpo acamado de uma paciente cujo nome, assim como o do filho da participante
anterior, é anunciado por completo e acompanhado de uma solicitação por pedidos de oração.
As detalhadas descrições da mão divina encenam toques em cada órgão da paciente, assim
como o azeite unge cada membro do corpo do filho usuário de drogas. Através de sonoridades
formadas por diferentes e quase sempre firmes tons de voz, é possível transitar por casas, bocas
de fumo, cemitérios e esquinas onde foram deixados objetos resultantes de “bruxarias” e
“feitiçarias”6, espaços habitados por males que devem ser desfeitos para garantir cura e proteção
aos filhos, maridos, familiares, bem como às próprias mulheres que oram juntas no grupo, tanto
de forma síncrona quanto assíncrona.
Embora analisar o cotidiano online das mulheres evangélicas não estivesse inicialmente
nos horizontes da pesquisa, as interações digitais nos grupos de WhatsApp7 Mulheres Virtuosas
passaram a receber cada vez mais centralidade no tempo e espaço dedicados ao trabalho de
campo. Junto à observação participante em dois destes grupos, um com cerca de cem
participantes e outro com trinta, a etnografia nos “grupos de oração”, como mais
frequentemente os chamavam as interlocutoras 8, ou nos “grupos de zap”, em referência a um
dos nomes pelos quais o aplicativo é popularmente conhecido em nosso país, integrou parte
significativa da convivência com as “virtuosas”9.
A intensidade com que compartilhavam seus cotidianos nos grupos ficou ainda maior
durante a pandemia do novo coronavírus, após os decretos públicos de isolamento social
ocorridos no país em 2020. No entanto, a relevância analítica destes grupos para esta etnografia

5
Termo pelo qual são popularmente conhecidos locais em que ocorrem vendas de drogas ilícitas no Rio de Janeiro.
6
Nomeações dadas por determinados grupos evangélicos pentecostais aos objetos associados às religiões de matriz
africana, geralmente a umbanda e o candomblé.
7
O WhatsApp é um aplicativo gratuito voltado para a troca instantânea de mensagens de texto e voz, imagens,
documentos, localização e chamadas de voz e vídeo. Foi criado em 2009 e comprado pela empresa Facebook, hoje
Meta, em 2014 (WHATSAPP, 2022).
8
Grupo de oração é um termo amplamente utilizado para designar reuniões entre membros que podem ser tanto
da mesma religiosidade quanto mais restritos à determinadas denominações religiosas. Ao longo desta pesquisa,
observei a ocorrência desta nomeação em diferentes mídias sociais, cuja referência mais direta era feita às
coletividades formadas por grupos cristãos católicos carismáticos e de vertentes vinculadas ao Islã. Entre as
interlocutoras, seus usos davam continuidade a práticas tradicionais no contexto evangélico, como os “círculos de
oração”, cujas práticas estão mais voltadas à leitura e estudo dirigido da bíblia em grupos.
9
Dou preferência a este termo ao longo da tese por ter sido o mais utilizado pelas interlocutoras quando se
chamavam entre si. Seus usos se aproximavam do que é mais conhecido em contextos cristãos como “irmãs”.
23

se constituiu antes de plataformas digitais despontarem como ferramenta que condicionou a


realização de muitas de nossas pesquisas antropológicas. A importância de me deter sobre os
usos do WhatsApp desde minha entrada no trabalho de campo, em meados de 2017, pode ser
justificada pela qualidade etnográfica em que “o próprio campo condiciona o que observar e a
quem” (SILVA, V., 2015, p. 39) e reverberou em dois sentidos. De um lado, esteve nos efeitos
provocados no tempo, em que ouvir longos áudios, compartilhados principalmente nos horários
da madrugada, passou a ocupar a maior parte da rotina da pesquisa. Longe de ser uma
característica específica às interações nos grupos observados, variadas pesquisas (FONSECA,
A.; DIAS, 2021) e debates no espaço público, ocorridos principalmente no contexto eleitoral,
têm mostrado como evangélicos(as) tem feito uso expressivo do WhatsApp no Brasil em
comunicações que ocorrem principalmente através do recurso de agrupar contatos
disponibilizado pelo aplicativo.
Por outro lado, considerar o WhatsApp como parte integrante do trabalho de campo
despertou para a análise dos usos de mídias digitais10 como um dos braços de sustentação do
“Ministério” Mulheres Virtuosas. Entre os sentidos mais comuns atribuídos a esta categoria no
contexto pentecostal, destaco aqui alguns apontados por Carly Machado (2020b): ministério
pode se referir às divisões entre grupos responsáveis por um trabalho religioso no espaço da
igreja (mulheres, jovens, música, dança etc.), à relação entre sede e filial ou, por último, para
identificar um “projeto” ou missão pessoal ao qual alguém se dedica, geralmente envolvendo o
nome de uma liderança religiosa ou de sua ação missionária.
Ao mesmo tempo, a modalidade de atuação do Ministério nesse contexto apresenta
continuidades com a circulação de projetos paraeclesiásticos provenientes do campo
evangélico. Segundo Magali Cunha (2007), as organizações paraeclesiais tem inspiração
evangelística em modelos estadunidenses e se estabelecem em nosso país a partir dos anos 1950
e 1960, influenciando significativamente a abertura de novas relações com a música gospel
através de movimentos originados entre a juventude. Explorar os usos de novas mídias, nesse
sentido, foi central para a disseminação destas novas formas de ser evangélico no espaço
público e forjou elementos que compõem sua diversidade.
Se existir como Ministério evangélico fora de uma igreja ou quaisquer outro espaço fixo
não era exclusividade de minhas interlocutoras, as variações no próprio nome pelo qual as
“mulheres virtuosas” se reconheciam apontavam para processos singulares de classificação. Os

10
Ao longo da tese, intercalo usos deste termo com “mídias sociais” seguindo a proposta de danah Boyd (2014)
por incluir aqui aplicativos móveis, plataformas e ferramentas de comunicação surgidas após os anos 2000.
24

títulos pelos quais se apresentavam, tais como “Projeto”11, “grupo das virtuosas”, ou
simplesmente “grupo”, não nomeavam somente os grupos de WhatsApp, mas também seus
eventos presenciais, sempre voltados para mulheres e ocorridos em igrejas e lares pentecostais.
No Ministério/ Projeto/ grupo liderado por um casal de pastores pentecostais, a quem me refiro
ao longo da tese pelos nomes Cristiane e Bruno, era a presença da pastora que se fazia mais
significativa para tomar a frente na organização dos eventos presenciais e nas campanhas de
oração, pregações, testemunhos, formas de interação habituais nos grupos de WhatsApp
Mulheres Virtuosas.
O casal não estava formalmente vinculado a uma denominação e se apresentava como
“pastores voluntários” de uma grande igreja pentecostal localizada em um bairro do subúrbio
na zona norte carioca, onde desempenhavam suportes pontuais à membresia nos cultos. A
circulação de Cristiane e Bruno como pregadores itinerantes protagonizou os deslocamentos
que fiz na etnografia em companhia de algumas das virtuosas, o que não impediu que também
dividisse em paralelo momentos em que estive apartada do casal, ocorridos principalmente nas
igrejas de interlocutoras com quem desenvolvi maior proximidade.
Acompanhei de modo mais intenso a agenda de compromissos de Cristiane, composta
principalmente por convites de pregações em diferentes igrejas pentecostais, eventos voltados
para mulheres em igrejas e lares, visitas nos lares e evangelizações nas ruas e hospitais. Os
eventos, nomeados como Chás, Conferências e Congressos de Mulheres Virtuosas, compunham
parte significativa desta agenda, desenvolvendo engajamentos junto aos grupos de WhatsApp
que sofreram modificações em sua frequência e intensidade ao longo do período em que realizei
a pesquisa, entre 2017 e 2022.
Na medida em que boa parte dos eventos eram realizados nas igrejas e lares das próprias
virtuosas, o cotidiano nos grupos de zap facilitava estes engajamentos e aperfeiçoava o que o
casal denominava como seu “chamado com as mulheres”. As pregações voltadas ao amor, ao
casamento e à sexualidade compõem o que se costuma chamar de “vida sentimental” nesse
contexto. Além de se apresentar como conteúdo popular entre lideranças femininas que conheci
ao longo do trabalho de campo, esta modalidade de pregação é recorrente entre as lideranças
femininas e tem expandido a circulação do pentecostalismo brasileiro em circuitos
transnacionais no Sul global (VAN DE KAMP, 2012).

11
O destaque em letra maiúscula enfatiza a legitimidade buscada pelas interlocutoras ao adotarem estas
nomeações.
25

Conheci a pastora Cristiane seguindo a temática de investigação que compôs o projeto


submetido para iniciar o doutorado. Na ocasião, meu principal interesse era compreender
sentidos que mulheres evangélicas associavam à sexualidade no âmbito de seus casamentos,
tendo como objeto da pesquisa os usos de artigos eróticos. O redirecionamento destas questões
iniciais para novos trajetos passou a incluir caminhos que expandiram as relações entre pessoas
e “coisas”12, já analisadas a partir das narrativas sobre artigos eróticos, também para os usos
evangélicos de mídias digitais, tanto em suas dimensões materiais como no âmbito das relações
sociotécnicas.
Além dos fluxos digitais formados pelo cotidiano que constitui os grupos de oração no
WhatsApp e os fluxos urbanos entre igrejas pentecostais e mercados eróticos, a abordagem
multimodal entre dimensões da vida online e offline (HINE, 2020) buscou abranger a circulação
do que chamei de coletividades de mulheres evangélicas na construção de um Ministério digital.
As questões interseccionais relacionadas aos engajamentos e mobilidades no Ministério
delimitaram, assim, o problema de pesquisa desta tese.
Em diálogo com a abordagem relacional realizada por Marilyn Strathern (2014),
percorri um caminho que se propôs a analisar desmontagens do dualismo presente na
imaginação modernista de conceitos totalizantes e sua formação por partes e todos, na qual
indivíduos seriam partes de um todo maior, a sociedade. Nos termos da autora, trata-se de
explorar as próprias construções nativas em vez de recorrer às ideias estabilizadas de campo
que se tornaram uma das principais “ficções persuasivas” na Antropologia (STRATHERN,
2014). Nos trajetos que percorri durante a etnografia, olhar para as relações como teoria e
método que constitui rupturas com a rigidez dos binarismos permitiu analisar as diferentes
disputas que formam o que é ser pentecostal e como mulheres evangélicas estabelecem
fronteiras para a formação de um Ministério.
O Ministério em questão não tinha sede em um espaço físico, tampouco constituía um
grupo homogêneo de mulheres evangélicas que interagiam entre si e com o casal de pastores.
Enquanto “arquitetura neoliberal das mídias digitais” gerenciado pela “internet plataformizada”
(CESARINO, 2021), este grupo se definia em movimento, a partir dos fluxos entre

12
Emprego a noção de “coisas” em referência à materiais sólidos ou fluidos utilizados no cotidiano de interação
com as pessoas. Trata-se de uma categoria analítica localizada no contexto mais amplo de teorias relacionadas à
“virada material” no campo antropológico, acompanhando diferentes abordagens nos âmbitos da cultura material,
materialidades e objetos. De diferentes maneiras, esta virada conceitual compreende as materialidades através de
sua posição organizadora e constitutiva da vida social, afastando-se de análises sobre o significado e de funções
representacionais para propor críticas ao lugar subalterno que as teorias sobre o social ofereceram às coisas em
relação às pessoas. Para uma sistematização antropológica desta discussão na antropologia, ver Miller (1994) e
Tilley et. al. (2006).
26

mídias/coisas e pessoas, propiciados por trânsitos feitos pelas interlocutoras desta pesquisa
através do que Birman et al. (2015) chamaram de dispositivos urbanos. A articulação destes
dispositivos no pentecostalismo produz relações de poder e saber contidas em projetos de
ordenamento das cidades, provocando desigualdades e “formas específicas de precarização da
vida” (BIRMAN, 2015, p. 15).
Compreender as coletividades que formam o Projeto e suas outras nomeações implicou
em analisar como esta multiplicidade reflete a fluidez de um fenômeno religioso vivido
interseccionalmente. Os desafios de organizar esta heterogeneidade e sua polissemia de
significados na escrita da tese me levou a investigar tais processos a partir de conceitos-chave,
sendo um dos mais importantes o de coletividades de mulheres evangélicas. Ao contrário de
recorrer a regularidades e padrões comportamentais entre as interlocutoras, empreguei este
conceito para analisar as relações estabelecidas pelas mulheres do Ministério através dos
encontros proporcionados entre políticas religiosas, pedagogias eróticas e dinâmicas raciais, de
gênero e sexualidade que percorrem as camadas populares brasileiras e seus trânsitos
evangélicos em contextos de imigração.
A noção de coletividades foi recentemente explorada no contexto evangélico por Raquel
Sant’ana (2017) para explicar como estes grupos têm formado “coletividades imaginadas” no
espaço público brasileiro contemporâneo. Inspirada pela proposta de Silvia Aguião (2016) de
compreender disputas que conformam processos sociais e políticos da atuação de sujeitos
LGBT por reconhecimentos no “Estado”, aqui tomado em sua dimensão encarnada (AGUIÃO,
2016), Sant’ana também explorou criticamente o termo “comunidades” apresentado por
Benedict Anderson (2008) e expandiu a ideia de imaginação mobilizada por este autor
integrando-a ao conceito de “multipertencimentos” (APPADURAI, 1996). Através destas
articulações, a autora argumenta sobre como as disputas em torno da categoria evangélicos são
forjadas por agentes sociais que se reivindicam publicamente enquanto representantes destes
grupos, forjando repertórios que visam legitimar seus pertencimentos tanto através das mídias
como de eventos realizados em espaços públicos.
As coletividades de mulheres evangélicas em questão centralizam na categoria
“femininas” variadas negociações de gênero e sexualidade no exercício da conduta virtuosa.
Esta, que tem sido uma categoria central para dinâmicas políticas movimentadas por mulheres
evangélicas no debate público, ganha maior repercussão através do cenário eleitoral. Embora
muitos dos complexos arranjos associados a ser “feminina” também se reflitam nas
coletividades que observei no trabalho de campo, optei por analisar outras categorias êmicas
igualmente relevantes para pensar sobre as relações entre gênero, política religiosa e
27

domesticidade. Ressalto, no entanto, para a importância de localizar o lugar da categoria


“feminina” em oposição a “ser feminista” para além do que disputas no interior do cenário
eleitoral evocam.
Em seu trabalho sobre a atuação política de Promotoras Legais Populares (PLPs)
orientadas a “lutar pela valorização da mulher”, Alinne Bonetti (2004, p. 141) indicou como
“ser feminina” se tornou categoria acionada em oposição a “ser feminista” por estas mulheres.
Em um dos estudos pioneiros sobre políticas de gênero e sexualidade em classes populares,
Claudia Fonseca (1995) já chamava a atenção para as moralidades que cruzavam o “pacto
conjugal” refletido nas ações de “mulheres valentes”. Nesse contexto, elas se recusam à
passividade e constantemente revertem situações limite, convocando seus maridos de volta para
suas casas, reestabelecendo, assim, a ordem familiar. Para o contexto evangélico em questão,
indiquei modos estes imaginários vêm sendo coletivizados através da categoria “mulher” e seus
variados reflexos para a construção de suas feminilidades.
O campo de estudos brasileiro do pentecostalismo apresentou diferentes explicações
sobre como ser “feminina” esteve atravessado por disputas religiosas. O distanciamento das
mulheres evangélicas de projetos feministas libertários é tópico historicamente discutido por
trabalhos que buscaram compreender indicativos ao forte apelo religioso destinado às mulheres
(ROSADO-NUNES, 2005) e aos desafios relacionados à liderança pentecostal feminina
(SANTOS, M. 2002; TARGINO, 2010). Em relação ao pastorado, vale ressaltar que as decisões
em relação à ordenação pastoral de mulheres no histórico dos movimentos pentecostais não são
unânimes, apresentando distinções tanto entre suas denominações quanto dentro de filiais de
uma mesma denominação. Este é o caso da Assembleia de Deus que, segundo Pinto (2014, p.
38), manteve uma decisão emitida em 2011 pela Convenção das Assembleias de Deus do
Distrito Federal pela consagração de mulheres ao pastorado. No entanto, esta não é uma decisão
reconhecida pela Convenção Geral das Assembleias de Deus.
O debate inaugurado por Cecilia Mariz e Maria das Dores Machado (1996) apontou para
um caminho crítico à alienação, afirmando que as mulheres pentecostais estariam
experimentando processos de “autonomização”. O distanciamento destas mulheres de projetos
feministas libertários é assim explicado pelas autoras: “dentro da concepção pentecostal, não
faz sentido a ideia de interesses femininos em oposição aos masculinos que é defendida pela
visão feminista” (MARIZ; MACHADO, 1996, p. 144). Haveria, no entanto, mudanças
significativas nas relações de gênero que, nesse contexto, ocorreriam em forma de ajudas
cotidianas e pragmáticas e ficariam mais evidentes conforme a adesão religiosa masculina
também acontecesse no casamento (MACHADO, M., 1996).
28

Entre o reforço da autoestima e o deslocamento dos homens para a esfera doméstica,


estas experiências pentecostais femininas trariam efeitos modernizantes que, segundo Mariz e
Machado (1996), as aproximariam das lutas feministas. No entanto, o holismo de seus aspectos
considerados tradicionais afastaria estas mulheres do ideal libertário de sujeito proposto pela
imaginação moderna dos individualismos do chamado “feminismo liberal” (MARIZ;
MACHADO, 1996). A despeito da homogeneização feminista produzida nestas análises 13,
também há perspectivas que apontaram para o lugar central de mulheres evangélicas na atuação
como mediadoras no campo da violência urbana (BIRMAN, 1996), ou para mulheres que, por
outro lado, optam pelo divórcio através do investimento de uma autoestima baseada na fé,
através da qual se enxergam “escolhidas” aos olhos de Deus (MAFRA, 2001).
O diálogo proposto com autoras feministas situadas nos debates sobre movimentos
religiosos tradicionalistas (ABU-LUGHOD, 2012; MAHMOOD, 2005) apontou para outros
desdobramentos críticos, desta vez com contribuições sobre o embate com feminismos
salvacionistas pautados na noção de agência da democracia liberal, evocando autonomia em
detrimento da opressão causada por estes movimentos religiosos. O enfrentamento destas
questões em contextos transnacionais e combinados com outras práticas para além das
muçulmanas convoca a refletir sobre como o paradigma da agência piedosa apontado por
Mahmood (2005) pode apresentar outras possibilidades analíticas, como nos apresenta Manoela
Carpenedo (2022) com sua pesquisa sobre as mulheres ex-evangélicas pentecostais que se
converteram ao judaísmo no Brasil. Nestes casos, conforme explica a autora, a conversão não
compartilha de uma socialização no passado nas mesmas tradições em que vivem no presente,
gerando uma “agência piedosa policultural” resultante de processos religiosos em constante
tensionamento.
Ao explorar fluxos eróticos, religiosos, urbanos e digitais que fazem gênero, raça, classe
e sexualidade nestas relações, busquei compreender como as disputas por coletividades de
mulheres evangélicas constituem éticas pentecostais que não sejam analisadas através de
sensibilidades secularizadas (LAIDLAW, 2013; ASAD, 2021) e também aponte para formas
de agência enquanto aprendizagem crítica encorporada (MAHMOOD, 2005; HIRSCHKIND,
2017), levando em conta os tensionamentos gerados por conversões religiosas e seus processos
de mudança. Conforme sugere uma série de estudos formulados pela “virada ética” na

13
Nos desdobramentos contemporâneos das reflexões sobre gênero, sexualidade e cristianismos, pesquisas e
ativismos brasileiros têm se ocupado em identificar multiplicidades dos feminismos católicos e evangélicos. Ver:
Rohden (2011), Serra (2019) e Anjos (2020).
29

Antropologia e sua centralidade no conceito de cotidiano, as etnografias sobre a ética do


ordinário consistem em refazer caminhos de teorias clássicas mecanicistas, destacando acordos
e práticas em vez de conhecimentos e crenças (LAMBEK, 2013), além de apontar para
possibilidades de refazimento da vida criadas através de renarrações de sofrimentos em atos de
enunciação (DAS, 2020).
Explorando as múltiplas éticas sustentadas na análise etnográfica, busquei compreender
o agenciamento de categorias morais entre minhas interlocutoras. Nesse sentido, a escolha do
termo “virtuosas” para ficcionalizar a intitulação do grupo ao longo da tese enfatiza diálogos
promovidos por estas mulheres evangélicas com políticas de gênero e sexualidade que as
afastam de vinculações contrárias aos princípios bíblicos. Estes, por sua vez, não são princípios
estáveis, mas formados através de constantes negociações históricas e contextuais nos
processos sobre como sujeitos se tornam evangélicos. Virtuosas, preciosas, valorosas, pérolas,
varoas, irmãs, entre muitos outros termos que constantemente ouvi em referência ao grupo de
mulheres que acompanhei durante o trabalho de campo, delimitam suas diferenças a partir da
realização de práticas baseadas em princípios sagrados14 que expressam os sentidos a partir dos
quais comunicavam ser parte de um grupo “escolhido” por Deus, em oposição aos grupos
“inimigos”.
Ao optar pela categoria “virtuosas” para intitular processos de formação, circulação e
disputas nas coletividades de mulheres evangélicas que compuseram esta pesquisa, tive como
objetivo apresentar uma proposta analítica engajada com a investigação sobre a conduta
virtuosa e suas retribuições relacionadas à gratuidade. Os vínculos entre os conceitos de virtude
e graça indicam diferenças significativas entre as próprias características envolvidas, de um
lado, nos sistemas interessados de trocas, e, do outro, nos arranjos e circuitos que envolvem
compartilhamentos baseados na reciprocidade (BENVENISTE, 1969; WIDLOK, 2012). De
acordo com Widlok (2012, p. 189, tradução minha), as práticas de compartilhamento visam a
uma ética do prazer em doar e receber, enquanto a troca visa a “obrigações com o futuro e
compensações do passado”15. Utilizando a analogia da ação de “compartilhar” conteúdos,
prática corrente entre usuários de redes sociais, o autor desenvolve uma análise sobre a virtude
em que a lógica de fluidez dos conteúdos compartilhados visaria facilitar as comunicações

14
A presença literal de muitos destes termos em livros bíblicos eram frequentemente citados em exemplos como
Provérbios 31,10 (“Mulher virtuosa quem a achará? O seu valor muito excede ao de rubis”) e Lucas 1,28 (“E,
entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres”).
15 No original, em inglês: “Sharing, I suggest, is done for the sake of shared enjoyment of whatever it is that is
being shared – it is ethically and logically an act for its own sake – while exchange aims at something else, an
obligation into the future or a compensation from the past”.
30

internas, em vez de uma reflexão focada em atribuições hierárquicas apresentadas por normas
e regras que regem sistemas de trocas:

Se o compartilhamento funciona numa rede social como o líquido fluindo


através de tubos comunicantes, então não são as situações externas de escassez
ou afluência que mantêm o sistema em funcionamento, e sim a manutenção
das ligações a partir do interior, mantendo o fluxo livre de obstáculos. O
sucesso ou não destes movimentos depende do domínio hábil da relação de
parentesco, da conversação e da copresença, que são individualmente
treinadas e socialmente enquadradas. Sugiro que estas competências são
melhor conceitualizadas enquanto virtudes, e que a nossa análise da ética
estará incompleta se nos limitarmos a normas e regras morais explícitas e
institucionalizadas, tais como as que regem muitos sistemas de intercâmbio
(WIDLOK, 2012, p. 190, tradução minha).16

Nesta dimensão ética e moral envolvida no exame da virtude, o autor considera as


institucionalidades como inseparáveis das práticas de agenciamento humano. Enquanto dádivas
que envolvem sacrifícios a serem retribuídos (MAUSS, 2003a), o compartilhamento de virtudes
vêm formando Ministérios cujas dimensões transnacionais se encontram ampliadas através dos
usos do WhatsApp. Ao compartilharem narrativas sobre dívidas de gratidão entre si e com a
pastora, as virtuosas, por sua vez, solidificam a graça enquanto princípio que rege os contratos
estabelecidos para a unidade do Ministério.
Segundo Pitt-Rivers (1992), a graça é um conceito que legitima e governa modos de
conduta tidos como opostos. Sagrado e profano, razão e emoção, entre outros dualismos que
regem o ordenamento social ocidental, nesse sentido, encontram na graça e em seus vínculos
com a noção de honra contratos e contraprincípios que garantem o exercício do poder. Quando
consideramos seus sentidos religiosos, a graça ganha na visão paulina o vínculo com o perdão
obtido através de Cristo, enquanto a versão agostiniana considera-a sinônimo de vontade e
disposição para cooperar com o desejo divino. De modos ora complementares, ora distintos e
ambivalentes nas experiências cristãs pentecostais, tais elaborações visibilizam o lugar central
ocupado pela gratuidade da relação com Deus, cujo retorno em modo verbal ou material se
coloca na ordem tanto da expectativa como do extraordinário (PITT-RIVERS, 1992).

16 No original, em inglês: “If sharing works in a social network like liquid flowing through communicating tubes,
then it is not the external situations of scarcity or affluence that keep the system working but the maintenance of
connections from within, by keeping the flow free of obstacles. Whether these moves are successful or not depends
on the skillful mastery of kin relatedness, of conversation and co-presence that are individually trained and socially
framed. I suggest that these skills are best conceptualized as virtues and that our analysis of ethics would be
incomplete if we limited ourselves to explicit and institutionalized moral norms and rules, such as those that govern
many exchange systems”.
31

Explorar a construção do Ministério a partir destas categorias, suas multiplicidades de


nomeações e seus constantes gerenciamentos também implicou em pensar sobre outro clássico
conceito do campo de estudos socioantropológicos sobre religião, o de autoridade religiosa. Ao
conhecer modos como as virtuosas buscavam atingir a “unção” 17 divina através de
performances éticas (HIRSCHKIND, 2021) que envolvem materialidades de sons, imagens
digitalizadas e outros elementos sensoriais, optei por uma abordagem sobre as “formações
estéticas” (MEYER, 2019a), cujas movimentações para além de espaços físicos e/ou
denominacionais estão em constantes negociações com noções de igreja que reverberam
imaginários associados à institucionalidade das “placas”. Ser uma “igreja sem placa”, nesse
sentido, demarcou constantes buscas das interlocutoras pela dimensão comunitária advinda de
modelos religiosos congregacionais.
Contudo, na medida em que as interlocutoras não frequentavam uma mesma
congregação, mas diferentes denominações pentecostais – além daquelas que se apresentavam
como “desviadas” e “desigrejadas” 18 –, a análise de suas trajetórias e narrativas pôde ser
deslocada da ideia de grupos religiosos circunscrita às comunidades morais durkheimianas 19
(DURKHEIM, 1989) para dialogar com o questionamento fundamental feito por Pierre Sanchis
(2006) a respeito de nosso “campo religioso” não ser mais o “campo das religiões”. Busquei
explorar os sentidos atribuídos às ações pentecostais femininas no espaço público reiterando as
insuficiências de análises enclausuradas pelas noções de campo, identidade, cultura (GUPTA;
FERGUSON, 1997), entre outras categorias centrais para disputas travadas nos campos dos
estudos pós-coloniais, decoloniais e dos feminismos interseccionais.
Para esta contrapartida, a tese também recorre a conceitos elaborados pelas críticas
feministas e estudos sobre o urbano, tais como fluxos, fronteiras e circuitos (ABU-LUGHOD,
2018; MAGNANI, 2009; FELTRAN, 2011, entre outras e outros), além de agendas de pesquisa

17
Em seu significado dicionarizado, unção é uma prática relativa à aplicação de óleo em cerimônias de consagração
religiosa, podendo estar atrelado a sentimentos como piedade e ternura (UNÇÃO, 2022). Conforme busquei
demonstrar ao longo desta tese, os usos relacionais deste termo pelas interlocutoras da pesquisa permitiram
compreender processos de construção de suas autoridades religiosas através do que chamavam de “poder da
unção”. Ter a unção, nesse sentido, corresponde a adquirir “performances éticas” (HIRSCHKIND, 2021) através
do cultivo de aprendizados sobre como ser virtuosa.
18
Enquanto “desviada” é um termo êmico que se refere àquelas que se afastaram da opção confessional pelas
igrejas evangélicas, “desigrejada” é uma categoria com circulação religiosa mais ampla que costuma designar fiéis
que podem circular entre várias igrejas, mas sem se vincular a nenhuma delas. A presença destas pessoas pode ser
observada junto às(aos) visitantes, frequentando ocasionalmente cultos e festividades.
19
Em balanço bibliográfico sobre as pesquisas brasileiras socioantropológicas da religião mais recentes, Ronaldo
de Almeida (2010) aponta para um crescimento nestas análises que se movem do enfoque institucional para as
experiências cotidianas. Assim, exames sobre a desinstitucionalização das práticas (SANCHIS, 2001) e,
posteriormente, o que o autor chamou de “trânsito religioso” (ALMEIDA, R.; MONTERO, 2001) passaram a
ocupar lugares anteriormente destinados à ênfase no conceito de sincretismo.
32

engajadas em perspectivas sobre a religião vivida através das relações com as materialidades
(TILLEY et al., 2006; MENEZES; TONIOL, 2021) e das mediações com as mídias (STOLOW,
2005; MORGAN, 2008; MACHADO, C., 2013; JUNGBLUT, 2012). No que se refere às
relações mediadas pelas tecnologias em perspectiva feminista, análises como a de Donna
Haraway (2016) foram pioneiras em sugerir alternativas às políticas totalizantes com que o
enfoque nas relações busca romper. Por meio da figura cibernética e articulatória do ciborgue,
a autora critica a aderência dos feminismos ao ideal do sujeito feminista monolítico, apontando
para como as relações entre humanos e máquinas podem fazer repensar sentidos atribuídos
àquilo que é natural e ao fabricado, interpretando estas como relações de coalizão, afinidade e
acoplamento em vez de identidade, totalidade e coesão.
Dialogo com esta perspectiva em busca de driblar certas armadilhas analíticas, de
maneira que online e offline não impliquem em dicotomias que aludem às noções de real e
virtual (MILLER & SLATER, 2004), e sim desenvolver uma antropologia do digital (MILLER;
HORST, 2012). Nesse sentido, segui conexões e engajamentos estabelecidos em múltiplas
mediações pelas mulheres evangélicas que vem formando coletividades em Ministérios.
Inspirada pela “sensibilidade metodológica específica” provocada pelas experiências sensoriais
de percepção do mundo (HIRSCHKIND, 2021) e pelo que Christine Hine (2020, p. 6) chamou
de “abordagem multimodal”, a ubiquidade de uma internet “incorporada, corporificada e
cotidiana” na vida evangélica tornou o WhatsApp um de meus principais campos de pesquisa.
Fazer observação participante nos grupos de oração, nesse sentido, implicou em investigar
através dos grupos de WhatsApp, explorando as dimensões sociotécnicas do aplicativo como
“campo”, “ferramenta” e “contexto” da pesquisa (LINS; PARREIRAS; FREITAS, 2020, p. 5).
Durante o período de escrita desta tese, a multiplicação de análises sobre eleições e
grupos de WhatsApp – e mais recentemente do Telegram20 – formados por evangélicos(as)
produziu diagnósticos sobre estes contextos como “novas igrejas”. Como afirmo em outros
textos (MOCHEL, 2022), considero estas interpretações redutoras diante de possibilidades
complexas e originais que fazer grupos neste aplicativo proporcionam à análise antropológica.
Além de não corresponder ao que ouvi das interlocutoras durante a pesquisa, que
constantemente buscavam diferenciar os grupos de WhatsApp em que compartilhavam
cotidianos de oração de denominações religiosas que frequentavam ou não, as relações que

20
Aplicativo gratuito de troca de mensagens instantâneas que permite a realização de chamadas e
compartilhamento de conteúdo em áudio, vídeo, audiovisual ou arquivos, além de canais com até 200.000
membros (TELEGRAM, 2023).
33

estas mulheres estabelecem com as tecnologias digitais podem, inclusive, propor rupturas com
o que se considera opressor e alvo de “contaminações” que atingem ou passaram a atingir as
igrejas com mais força nos últimos anos.
Se há, nesse sentido, noções de igreja sendo expandidas e conflitadas em relação à
centralidade deste modelo analítico no exercício da fé cristã, considerar estes espaços apenas
como continuidades do que se produz nos templos e/ou vinculados à sua dependência subestima
a capacidade de seus/suas agentes tanto de produzirem novos formatos para fortalecer a fé
coletivamente como de ser evangélica(o) hoje. Com este argumento, não busco questionar
formas de nomeação em que grupos de WhatsApp evangélicos se tornam automaticamente
“grupos da igreja”, embora considere se tratar de uma simplificação que não corresponde às
formas como muitos costumam nomeá-los, sendo mais frequente que empreguem o termo
“grupos de oração”.
Em lugar disso, busco abrir caminhos facilitados por perspectivas antropológicas sobre
espaços religiosos e digitais para levar em conta outras nomeações e experiências que emergem
nesse encontro. Na medida em que igrejas foram desde sempre lugares de disputa, vincular
práticas religiosas aos templos parte não somente de noções institucionalizadas destes espaços,
mas também repercute seu enclausuramento às infraestruturas materializadas em arquiteturas e
liturgias específicas a seus contextos de origem. Quando analisa as “igrejas ao ar livre”
experimentadas por quem prega e quem assiste aos cultos de pregadores itinerantes na Praça da
Sé, em São Paulo, Delcides Marques (2015) traz um exemplo de como fenômenos religiosos
podem ser vividos em movimento, através de múltiplos espaços que constituem andanças pela
cidade.
Ao mesmo tempo, centralizar este modelo de igreja como matriz para a realização de
práticas religiosas reproduz noções em que as dinâmicas online seriam separadas e/ou
secundárias, subordinadas, portanto, ao offline. Em vez de investir em hipóteses sobre
atualizações ou replicações destes formatos de igreja, as reflexões desta pesquisa apontaram
para outras materialidades implicadas em repercutir a fé pentecostal que tanto podem ser físicas,
apresentadas principalmente através do uso dos celulares de modelo smartphone, como adotar
o formato de imagens, paisagens sonoras (HIRSCHKIND, 2021; OOSTERBAAN, 2017),
artefatos litúrgicos e outros objetos que compõem interações religiosas.
Os equívocos nestas análises às quais me refiro não são individualizados. Elas se
tornaram mais comuns a partir das eleições de 2018, quando muitos grupos de WhatsApp se
tornaram foco de monitoramento por jornalistas, grupos de pesquisa e veículos midiáticos
interessados em compreender a participação de evangélicos e grupos de extrema direita (ambos
34

muitas vezes tratados como sinônimos) em práticas de disseminação de notícias falsas,


sobretudo relacionadas ao cenário eleitoral. Grupos evangélicos ou “grupos da igreja” no
WhatsApp, nesse sentido, se tornaram alvo de análises que vinculavam a disseminação de fake
news21 a seus modos de organização através desse aplicativo 22. As reflexões despertadas pela
convivência com as interlocutoras, no entanto, indicaram que a grande quantidade deste tipo de
notícia replicada em diferentes grupos brasileiros – não só aqueles formados por evangélicos –
é tão preocupante quanto o tom acusatório que estas análises carregam a respeito de pastores e
pastoras que manipulariam fiéis 23.
Na medida em que não tive como objetivo analisar somente conteúdos compartilhados a
partir das chamadas fake news nos grupos de oração e não concebi grupos de WhatsApp como
extensões das igrejas evangélicas, busquei lidar com outras possibilidades que estes espaços
oferecem para a análise antropológica. Imagens, textos e sonoridades expandiram as
mobilidades dos fluxos que estabeleci ao longo da etnografia, possibilitando articular suas
narrativas com cenas e conteúdos verbais dos discursos proferidos em narrativas evangélicas
que acompanhei nos eventos voltados para mulheres. Das saudações de bom dia/tarde/noite,
em sua composição com flores, corações, brilhos, palavras motivacionais e conteúdos bíblicos,
conteúdo que no Brasil levou à criação de um estereótipo chamado de “tias e tios do zap”,
busquei construir caminhos de análise alternativos aos reflexos deste imaginário atravessado
por concepções de gênero, raça, classe e geração, alargando compreensões interseccionais
críticas sobre os usos deste aplicativo.
As perspectivas articulatórias sobre as diferenças (BRAH, 2006)24 também permitiram
compreender maneiras em que o digital tanto se apropria e é apropriado nas dinâmicas

21
Seguindo a classificação adotada por Tandoc Jr et. al. (2018), Cesarino (2020a) indica que, além das notícias
falsas, avisos alarmistas e teorias da conspiração, outros conteúdos relativos à desinformação podem ser associados
a esta categoria, tais como “material ofensivo contra certas pessoas ou grupos” e “enunciados distorcidos ou tirados
de contexto”. Trata-se, para a autora, de materiais que circulam em paralelo ao “controle social e jurídico” adotados
em espaços como fóruns e mídias tradicionais (CESARINO, 2020a, p. 96).
22
Na contramão do caráter muitas vezes controverso destas associações imediatas entre evangélicos e fake news,
destaco a importância de análises como as de Leticia Cesarino (2020a; 2021), que vem chamando a atenção para
as complexidades sociotécnicas e econômicas que devem estar envolvidas neste tipo de análise. Haveria, para a
autora, uma arquitetura neoliberal do digital que propiciou a proliferação de elementos estruturantes do “populismo
digital”.
23
São relevantes para esta discussão os dados apresentados por Reis e Teixeira (2022) sobre o voto evangélico.
Com base em levantamentos realizados por pesquisa qualitativa, publicada pelo Instituto de Estudos da Religião
(ISER), as autoras indicaram que mulheres evangélicas costumam escutar a orientação de pastores, mas têm suas
decisões motivadas por estudos e “orientações divinas”.
24
Ao longo da tese, opto por utilizar este termo de modo intercambiável ao que Adriana Piscitelli (2008) chamou
de “interseccionalidades” ou “categorias de articulação”. Para um histórico sobre diferenças e aproximações no
campo antropológico brasileiro, delimitadas através do termo “categorias em relação”, ver Almeida, Simões,
Moutinho e Schwarcz (2018).
35

pentecostais quanto, por consequência, vem possibilitando a multiplicação de personagens


anônimos nestes contextos. As categorias articulatórias que atravessam o campo da
antropologia feminista têm permitido pensar para além das dicotomias reveladoras que
enfatizam opressão ou agência, prazeres e perigos (VANCE, 1984), e exerceram contribuições
significativas às análises que fiz sobre os diferentes modos como pedagogias corporais entre
mulheres evangélicas vêm sendo aperfeiçoadas.
Ao trazer o WhatsApp como um dos principais focos do debate, destaquei tanto as
desigualdades digitais que incidem nos usos deste aplicativo (CRUZ, E.; HARINDRANATH,
2020) como diferenças visibilizadas em experiências de trabalhos no tempo (DAS, 2020) feitos
pelas interlocutoras. Os agenciamentos que mulheres evangélicas realizam na vida ordinária,
nesse sentido, tornam seus smartphones “campos de batalha” para expulsar demônios e se
aproximar de Deus em guerras espirituais vivenciadas de seus “quartinhos” e “cantinhos” de
oração, do transporte público, do banheiro do trabalho e tantos outros espaços nos quais estes
usos de dispositivos móveis assim o permitem.
Ao começar esta introdução abordando mais centralmente os usos do WhatsApp, propus
um caminho inverso ao que segui na organização dos capítulos da tese. Também apresentei as
ritualísticas25 de um dia comum no cotidiano do Ministério, buscando explorar em que medida
o “zap” tem operado enquanto uma das “linhas de força” (MAFRA, 2013) que atravessa a
formação de coletividades evangélicas contemporâneas. Nos capítulos que compõem a tese,
busquei indicar para a fluidez destas linhas e suas formações mútuas entre artefatos e
dispositivos tecnológicos, conferindo a inteligibilidade buscada para Projetos coletivos de
intervenção pentecostal nos dispositivos urbanos e digitais.

Evangélicos(as) nas zonas de fronteira

“Eu nunca conseguiria pesquisar esse tema!”, “cuidado, você vai acabar se
convertendo!”. Desabafos e alertas em tom de escárnio, como estes que escutei durante a
pesquisa, fazem parte de críticas comuns de parte dos setores progressistas ao convívio entre
evangélicos pentecostais. Trata-se, como apontou Simon Coleman (2018), de um imaginário

25
Para o conceito de ritual que emprego na tese, dialoguei tanto com perspectivas decorrentes da abordagem de
liminaridade de Victor Turner (2005) que inspirou as noções de performance adotadas por Richard Schechner
(2006) e foram retrabalhadas por Diana Taylor (2012; 2013), como com a proposta de Stanley Tambiah (1985)
sobre rituais performativos. Embora tenha evitado contrapor rituais online e offline, foram as leituras críticas de
Talal Asad (1993) sobre a universalidade do conceito de ritual e os treinamentos disciplinares para o “auto-cultivo
ético” (HIRSCHKIND, 2017) que mobilizaram minhas análises sobre as interações digitais.
36

que acusa estes grupos de compartilhar um tipo de moral que não merece seriedade e/ou devida
atenção. “Por que você está estudando esse lixo?”, a pergunta que lhe foi feita por um colega
antropólogo (COLEMAN, 2018, p. 277), ou, ainda, o questionamento fiscalizador feito a Susan
Harding (1991, p. 375, tradução minha), “você é ou já foi uma cristã renovada?”26, são reações
complementares a um tipo de conservadorismo moral vinculado aos grupos evangélicos que
despertam dificuldades políticas de interação, acirradas com a ascensão de Jair Bolsonaro à
presidência do Brasil.
Esta não foi uma etnografia com “outros repugnantes”, embora variados desafios
políticos que tenham ocorrido no compartilhamento de diferentes posicionamentos morais
tenham me afastado de muitas interlocutoras, enquanto também abriam possibilidades
dialógicas com outras. Para além disso, os desafios relacionados à produção de conhecimento
etnográfico buscaram se contrapor às concepções sobre o caráter tomado como perigoso no
convívio com “religiosos inadequados” (HARDING, 1991, p. 316). Conforme demonstrou
Carly Machado (2020a), este contágio está amplamente presente no debate público
contemporâneo a respeito da relação entre evangélicos e política, contando com análises
semelhantes às que foram realizadas nos projetos evolucionistas sobre a aderência acrítica das
massas às seitas e seus “rebanhos”.
Atravessando as questões que envolvem o cenário de acusações políticas aos
evangélicos, ainda mais intensificado ao longo do tempo em que estive no trabalho de campo e
durante a escrita desta tese, optei por explorar como estas disputas incidem na relação entre
antropologia e o projeto etnográfico. Tomei como desafio compreender maneiras como a
etnografia possibilita repensar o fazer antropológico a partir de dois caminhos mutuamente
constitutivos na pesquisa: de um lado, nos confrontos agenciados pelas interlocutoras em suas
disputas pentecostais pelas “mulheres evangélicas” e, do outro, nas relações que estabeleci com
mulheres pentecostais ao longo do trabalho de campo. Se, como afirmei anteriormente, não se
tratou de lidar com “outros repugnantes”, minhas observações participantes nos eventos e
grupos de oração estiveram atravessadas por afinidades e conflitos habituais a quaisquer
relações de convivência prolongada.
Ao mesmo tempo, nossas interações estavam marcadas por modos como eu era vista em
uma circulação que se deu, principalmente, na companhia do casal de pastores que liderava o
Ministério Mulheres Virtuosas. A combinação entre meus marcadores regionais e fenotípicos

26
No original em inglês: “Are you now or have you ever been a born-again Christian?”. A pergunta está voltada
para o cristianismo renovado, termo que compõe diversas denominações no protestantismo brasileiro.
37

me tornaram vista racialmente como “morena” e “parda”27 pelas interlocutoras com quem
conversei a este respeito. Assim como eu, havia outras mulheres nordestinas nos grupos e este
vínculo imprimia diferenças que, cruzadas aos fenótipos e sotaques de cada uma, determinava
como éramos racializadas. Minha circulação universitária, por sua vez, me vinculava a um
pertencimento à classe média. Nenhuma destas duas marcações eram enunciadas com muita
frequência por minhas interlocutoras, sendo as diferenças estabelecidas pelo estado civil com
que me apresentei e pelo fato de não ser evangélica aquelas que geraram maiores desafios para
minha circulação.
Se não ser “cristã”, como o pertencimento evangélico era mais conhecido nesse
contexto, causava distanciamentos que busquei contornar realizando trabalhos que
fortalecessem a divulgação do Ministério nas mídias digitais, ser uma mulher classificada como
“solteira” me situou em limitações consideráveis no acesso aos discursos dos homens. Por não
ter um marido ao lado, ser vista ao lado de um homem evangélico casado ou solteiro poderia
trazer problemas para o desenvolvimento da pesquisa, o que me fez decidir por analisar somente
conteúdos que foram possíveis de ser observados dentro destes limites. Para além de uma
escolha deliberada no recorte de pesquisa, as rígidas fronteiras relacionadas às interações entre
homens e mulheres solteiras(os) no pentecostalismo tornaram esta uma pesquisa sobre as
reconfigurações evangélicas protagonizadas por mulheres.
No que diz respeito à minha posicionalidade nas interações digitais, vale ressaltar que
as entradas nos grupos como pesquisadora era conhecida pelas participantes e reforçada por
mim para as participantes novas sempre que necessário. Diferente de grande parte dos trabalhos
de pesquisa feitos em grupos de WhatsApp, não atuei como anônima nos grupos e participei
das interações cotidianas online e offline junto ao Ministério. Para os casos de pesquisas que
envolvem riscos à integridade física dos(as) pesquisadores(as), vale ressaltar que as
preocupações sobre a posicionalidade da pesquisa no âmbito dos estudos sobre a internet têm
motivado diferentes abordagens ético-metodológicas em busca de preservá-los(as) de
potenciais ataques 28.

27
Emprego aqui as categorias utilizadas pelas interlocutoras. Embora “parda” também seja aplicada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para se referir ao grupo de pessoas definidas como “negras”, não
houve atribuição a este grupo por nenhuma interlocutora para se referir a mim e, para muitas delas, nem para si
mesmas. Como busquei indicar em diferentes capítulos da tese, a autodeclaração racial está constituída por
conflitos importantes entre as mulheres evangélicas, o que busquei compreender através de releituras
contemporâneas sobre a falta de pertencimento pentecostal a uma “identidade de grupo” (BURDICK, 2001).
28
Rachael-Heath Ferguson (2017), por exemplo, adotou a categoria “online lurker” durante suas investigações
sobre crimes e transações ilícitas na “darknet”.
38

Chamar a atenção para as relações proporcionadas pela posicionalidade na pesquisa


complexifica lugares que as “ficções persuasivas” (STRATHERN, 2014) produzidas por
análises dentro e fora das Universidades brasileiras tem alocado grupos evangélicos e, mais
recentemente, o chamado “voto evangélico”29. A este respeito, Simon Coleman (2018) realiza
um importante exercício de auto-objetivação para apostar na saída por diferentes posições éticas
que, em vez de se oporem, sejam mutuamente produtivas. Desse modo, tratar como opostos o
engajamento político e o “projeto etnográfico de autodesconstrução em nome do Outro”
(COLEMAN, 2018, p. 275), como sugere o incômodo de quem me alerta contra o perigo da
conversão, tanto reitera os colonialismos da modernidade-secular30 como oblitera o caráter
lúdico contido nas experiências evangélicas:

Estou pedindo por um pouco mais de ironia em relação ao nosso próprio


posicionamento. Como antropólogos, não devemos deixar que a seriedade e a
severidade de nossas posições éticas nos impeçam de reconhecer as qualidades
particulares da ironia e do lúdico nas práticas da Prosperidade31. Zonas
fronteiriças podem ser lugares difíceis, ainda que produtivos, para se habitar
e para nos constituirmos (COLEMAN, 2018, p. 307).

Além das zonas fronteiriças implicadas em formas como as próprias mulheres


evangélicas nomeiam e vivem suas práticas, fazer uma etnografia sobre a fluidez entre Sagrados
e Demônios com que convivem também explorou os limites de um campo acadêmico repleto
de disputas e “saberes localizados” (HARAWAY, 2009). Como nos lembra Saba Mahmood
(2005), ao contrário das diferenças de gênero, sexualidade, raciais, de classe e nacionalidade,
as diferenças religiosas não sofreram historicamente o mesmo investimento nos projetos
feministas ocidentais. Se o sentimento anti-islâmico que contagiou feministas do Norte global
após os ataques de 11 de setembro de 2001 localizou as mulheres muçulmanas como “agentes
de uma irracionalidade perigosa” (MAHMOOD, 2005, p. 1, tradução minha)32, no Brasil o

29
Para uma crítica sobre os efeitos negativos gerados por aproximações repentinas com evangélicos para
compreender o comportamento eleitoral e pelo “mito do voto evangélico”, ver Pacheco (2022) e Panotto (2022).
30
A partir das leituras de Asad (2021) e Hirschkind (2017), compreendo “secular” como aquilo que não é oposto
ao “religioso”, mas um conceito que se ancora na dimensão do que conhecemos como modernidade. O secular,
diferente do secularismo, doutrina política constituída por narrativas de progresso em detrimento do “erro
religioso”, é uma categoria que “marca, mais do que uma identidade, uma dinâmica relacional” (HIRSCHKIND,
2017, p. 183). Aquilo que é secular não está definido, mas em constante desenvolvimento através de processos de
auto-diferenciação com o religioso.
31
A referência à Prosperidade diz respeito à doutrina cristã da Teologia da Prosperidade. Formulada como forte
motor para práticas de consumo, cujo principal incentivo seriam a abundância material e o alcance de bênçãos
espirituais na terra, sua emergência trouxe variadas reflexões sobre o uso religioso das mídias, as novas dinâmicas
na construção de templos e a atuação transnacional de igrejas pentecostais. Ver: Gomes (2011), Mariano (2014).
32
No original, em inglês: “their now almost taken-for-granted association with terrorism has served to further
reaffirm their status as agents of a dangerous irrationality”.
39

aumento da visibilidade evangélica no espaço público acusou e provocou acusações de


diferentes tipos e escalas.
Entremeada aos embates de um cenário eleitoral cada vez mais acirrado e da ascensão
de uma extrema direita racista, misógina, LGBTfóbica e profundamente implicada com as
precarizações e desmontes das políticas públicas brasileiras, os anos em que realizei esta
pesquisa instauraram fronteiras ainda mais rígidas nesta relação historicamente espinhosa entre
religiosidades distintamente atribuídas como perigosas e os feminismos. Quando iniciei a
pesquisa, um dos desafios mais comuns ao participar de debates acadêmicos feministas esteve
relacionado ao exotismo despertado por questões sobre sexualidade de mulheres evangélicas,
refletindo antigas ideias de “subordinação” e “opressão” atribuídas às suas experiências. O tom
salvacionista destes questionamentos explodiu no debate público após a visibilidade alcançada
por grupos de extrema-direita no Brasil, o que também realçou movimentações no campo
evangélico progressista para as questões relacionadas aos feminismos 33.
Considero estas transformações reveladoras de um tempo histórico singular a quem
realiza pesquisas com grupos evangélicos, à medida que os interesses que movimentam
perguntas no campo feminista mais contemporâneo têm sido orientados por buscar caminhos
para compreender os chamados “conservadorismos”. Tais análises têm se ocupado em explicar
mobilizações de representantes evangélicos que ocupam grandes denominações e passaram a
ocupar esferas institucionais, multiplicadas com a vitória bolsonarista e pela ampla adesão do
eleitorado evangélico. Busquei nesta pesquisa partir de perguntas em que “conservadorismo”
não seja a categoria mais relevante. Neste caminho, construí análises invariavelmente tanto
opostas a enclausurar mulheres evangélicas a tal nomeação quanto em busca de indicar para
negociações éticas vividas por quem se define “conservadora”. Ao remeter a este quadro aponto
para os distanciamentos ético-políticos do salto gerado pelo comprometimento repentino da
agenda feminista com a emergência do que tem sido chamado de “conservadorismo evangélico”
no Brasil34.

33
A atuação de movimentos sociais formados por mulheres e pessoas LGBTQIA+ católicas e evangélicas vêm
propondo transformações em debates sobre gênero, sexualidade, raça e racismo no campo cristão. Além da
movimentação mais conhecida do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, vale destacar ativismos cristãos que se
organizam a partir do campo evangélico e adquiriram maior visibilidade nos últimos anos, entre eles: Evangélicas
pela Igualdade de Gênero, Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, Rede de Mulheres Negras Evangélicas
e Novas Narrativas Evangélicas.
34
Além dos movimentos sociais citados e de importantes pesquisas realizadas no âmbito acadêmico sobre a “onda
conservadora” e suas relações político-religiosas com conservadorismos, fascismos e fundamentalismos
(ALMEIDA, R., 2017; BURITY, 2018), vale ressaltar que exceções ao que me refiro podem ser encontradas em
diálogos estabelecidos com a religião a partir dos estudos feministas (CORRÊA, 2018) e de seus encontros com a
teologia (GEBARA, 1987; BARROS, O., 2020).
40

Para explorar distinções específicas às discussões sobre vertentes e denominações,


apresento brevemente os caminhos que sigo a este respeito ao longo da tese. Os termos
“pentecostais” e “evangélicos” aparecem de modo alternado, pois demarcavam diferentes
disputas feitas entre as próprias interlocutoras em suas circulações. Se no interior de igrejas e
outros espaços de sociabilidade evangélicos denominar-se “cristã(o)” e “pentecostal” ganhava
maior força, para se comunicarem com o “mundo” atribuído ao que compreendiam parte do
domínio “secular”, era o termo “evangélicos” que predominava.
O termo “evangélico” surge como inspiração de uma corrente teológica norte-
americana, no final do século XIX. Segundo Clara Mafra (2001), o grupo inclui denominações
protestantes históricas, pentecostais e neopentecostais. Situando as disputas contemporâneas
em torno desta categoria, tomei como sua referência protestantes renovados e pentecostais,
dissidências do protestantismo que creditam aos movimentos de avivamento, pentecostes ou
pentecostalização o poder de manifestação de dons do Espírito Santo como falar em línguas
(glossolalia), profetizar, curar, exorcizar demônios, entre outros.
Ainda de acordo com Mafra (2001), uma das principais diferenças entre estes e os
grupos formados pelos primeiros protestantes estaria no fato de que os últimos teriam realizado
rupturas litúrgicas com o cristianismo católico, enquanto o enfoque do campo pentecostal
estaria na recuperação dos ritos, tais como o batismo, jejum, consagração, vigília etc. O marco
que opera como referência histórica neste movimento a que faço menção é o Avivamento da
Rua Azusa, ocorrido no início do século XX nos Estados Unidos 35. Assim, o que chamo aqui
de “pentecostais” e “pentecostalismo” abrange também as denominações geralmente
conhecidas como “neopentecostais”, associadas ao crescimento ocorrido a partir dos anos 1970
no Brasil e vinculadas à Teologia da Prosperidade e à Teologia do Domínio. Optei por não
traçar uma distinção rígida entre ambas devido ao próprio formato fluido como esta nomeação
predominava entre as interlocutoras.
Para além das referências ao domínio institucional, pude identificar formas pelas quais
intitular-se evangélica nem sempre se relaciona ao pertencimento denominacional, mas situa

35
Também é amplamente conhecida a análise de Paul Freston (1993) que classifica o movimento protestante a
partir de divisões em ondas, segundo as quais o pentecostalismo estaria na segunda onda. Já o neopentecostalismo,
descrito por Mariano (2014) como mais apartado do caráter rígido e ascético dos costumes pentecostais, seria
correspondente à terceira onda e composto por instituições religiosas com grande mobilização de poder midiático-
político, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Ressalto, ainda, para a emergência de debates provenientes
da teologia negra que confrontam o estabelecimento destas e outras classificações protagonizadas pelo
missionarismo branco europeu e norte-americano no Brasil. Nesse sentido, o protagonismo de um alfaiate negro,
Agostinho José Pereira, fundador da primeira igreja protestante brasileira, a igreja do Divino Mestre em 1841 no
Recife é lembrado por Pacheco (2019) como parte negligenciada de um projeto da historiografia oficial do
protestantismo.
41

disputas narrativas em torno de uma capacidade singular de circulação nos domínios seculares
e religiosos. Tal capacidade, conforme afirma Ronaldo de Almeida (2010), configura a própria
expansão pentecostal vivida através de movimentos que o autor indica como sendo formados
por circulação e flexibilidade. Ao “extrapolar fronteiras institucionais” e “incorporar
mecanismos de funcionamento de [outras] religiões” (ALMEIDA, R., 2011 p. 111), as
articulações no pentecostalismo contemporâneo criam classificações que refletem a presença
de carismáticos católicos, protestantes de denominações renovadas, além do combate aos
elementos de religiões de matriz africana 36, entre outras formas de associação que caracteriza o
que Ronaldo de Almeida (2011) chamou de “pentecostalismo de serviços”.
Reflito sobre estes movimentos na tese a partir da noção de repertórios, compreendidos
por Sant’ana (2017, p. 26-27) nesse contexto enquanto “conjuntos de formas, saberes, fazeres
e sentidos, através da mídia, das experiências em eventos públicos e nas igrejas”. Segundo a
autora, os repertórios pentecostais constituídos por eventos e mídias tem formado uma
“imaginação evangélica” que desloca fronteiras denominacionais e busca instituir narrativas de
coesão nacional. A busca pela coesão que eventos e mídias davam para os sentidos de
Ministério adotados pelas interlocutoras desta pesquisa dialogam com a descrição fornecida por
Sant’ana (2017), na medida em que pertencer ao Ministério remetia à combinação de se
frequentar os eventos liderados pelo casal de pastores e integrar um de seus grupos de oração.
Busquei compreender, nesse sentido, como a organização de coletividades de mulheres têm
possibilitado compreender continuidades e rupturas nos repertórios evangélicos.
Analisar o campo religioso como resultante de articulações entre eventos e mídias
integra um projeto teórico-metodológico mais amplo, também estimulado por abordagens sobre
a mediação nas práticas religiosas. Enquanto Birgit Meyer e Annelies Moors (2006)
argumentaram sobre a importância de refletir sobre formas em que mensagens e autoridades
religiosas se transformam através das mediações, outros autores exploraram a categoria para
além do enfoque no campo religioso, caso de Gilberto Velho (2001). Buscar aquilo que se
transforma através de processos de mediação fez parte de reflexões de sua antropologia urbana
e também influenciou a maneira como busquei analisar os fluxos das interlocutoras entre
diferentes domínios através do conceito de mobilidades. Segundo o autor, indivíduos que
transitam entre distintos domínios sociais, os mediadores, podem ser agentes de transformação

36
As associações aos demônios enquanto parte das práticas associadas a estas religiosidades têm suas origens
remetidas ao contexto estadunidense, e parte dos trabalhos nesta temática aponta para seu vínculo no Brasil com a
importância da publicação em 1997 do livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios”, pelo líder da IURD,
Edir Macedo. Ver: R. Almeida (2009), Mariano (2004), Oro (1997), V. Silva (2011).
42

em processos de mobilidade social por realizarem “traduções” entre estilos de vida e


experiências no mundo.
Tendo em vista que o Ministério não está vinculado a uma denominação e suas
coletividades se mobilizam para além da institucionalidade dos templos, a tese aborda estas
mobilidades tanto através de transformações no exercício da fé através do digital como a partir
de experiências em carreiras pastorais ordinárias que não correspondem ao imaginário mais
difundido da vida luxuosa atribuída ao pentecostalismo. Refleti, assim, sobre como as
transformações cristãs contemporâneas e sua constante “reconstrução e reinvenção dos
vínculos” que advêm do “formato da congregação”, como observou Luiz Fernando Dias Duarte
(2011, p. 157), vêm buscando driblar precariedades que habitam coletividades de mulheres
evangélicas que também são extensamente negras37.
Para além da consistência quantitativa demonstrada através de dados numéricos sobre o
contingente do pentecostalismo que se autodeclara negro no Brasil38, compreendi como raça se
produz nesse contexto através de dinâmicas de classe e território em diálogo, por um lado, com
trabalhos que identificam o pentecostalismo como dimensão constituinte do espaço público das
favelas e subúrbios fluminenses (MAFRA, 2011; MACHADO, 2013; VITAL DA CUNHA,
2015); do outro, com pesquisas que apontam para o escurecimento de territórios sobre os quais
incide a violência policial no Rio de Janeiro (BARROS, R., 2016; CRUZ, M., 2020; FARIAS,
2020; BARROS, R.; FARIAS, 2017).
Nas palavras de Maria Elvira Díaz-Benítez (2021, p. 10), a raça é o “fio que une estas
experiências” de subalternização, organizando violências e atos de humilhação que se
expressam em hierarquias no sistema judiciário, exclusões do mercado de trabalho, tombando
corpos e devastando dimensões físicas, psíquicas e morais das vidas negras. Ouvir mulheres
evangélicas, muitas delas também chamadas no grupo de “mães do tráfico” 39, recontarem suas
súplicas pela superação do sofrimento em testemunhos, orações e louvores materializou

37
As classificações sobre raça/cor da pele que constam em apresentações das interlocutoras no decorrer da tese
seguiram definições utilizadas por elas, a que pude ter acesso durante as entrevistas e outras interações ocorridas
durante o trabalho de campo. Vale o mesmo para questões relacionadas à identidade de gênero, orientação sexual,
estado civil e escolaridade. Para aquelas em que este dado não se apresenta, não houve menção a respeito.
38
Os vetores de gênero e raça demonstram que mulheres negras representam o maior quantitativo entre evangélicos
pentecostais. Segundo o último Censo Demográfico (IBGE, 2012), além das mulheres representarem 55% de
evangélicos(as) pentecostais, entre aqueles(as) que se declaram pretos(as) e pardos(as) no Brasil, 15% declararam
pertencimento às denominações pentecostais. Este também é o mais empobrecido dos grupos religiosos, com 63%
recebendo até um salário-mínimo. Dados mais recentes divulgados pelo Instituto Datafolha (BALOUSSIER, 2020)
indicaram que as mulheres negras e pobres foram apontadas como a maioria (58%) entre os evangélicos brasileiros.
39
A referência mais direta é às mães de filhos jovens negros que investem em ações criminalizadas pelo Estado,
como o varejo de drogas.
43

variados modos como raça e gênero são vividos. Ao mesmo tempo, também possibilitou a
abertura de caminhos para exercer o que Saidiya Hartman (2021, p. 120) chamou de
“capacidades do subjuntivo”: nas palavras da autora, “um modo gramatical que expressa
dúvidas, desejos e possibilidades” para fabular contra-Histórias de quem não está representado
nos arquivos oficiais da “História escrita com e contra o arquivo” (HARTMAN, 2021, p. 121).
Ao longo da tese, busquei visibilizar prazeres e esgotamentos que estes processos
provocam em seus cotidianos, indicando imaginações para a construção de “futuros
alternativos” (HARTMAN, 2021) trilhados através das batalhas pentecostais. Em caminhos de
aproximação com Deus coletivamente construídos, a vida que pulsa em performances corporais
de estéticas nos cabelos, indumentárias, gestos, posturas e pedagogias eróticas comunica a
“unção” que reveste autoridades religiosas e constrói a dimensão irônica de desejos estruturados
por distintas circunstâncias históricas e concepções de justiça (ABU-LUGHOD, 2012).

Pontos de partida

Com o objetivo de dar continuidade às questões levantadas em minha dissertação de


mestrado (MOCHEL, 2014), as relações estreitadas com minha principal interlocutora desde a
ocasião permitiram prosseguir com reflexões iniciadas a partir de uma etnografia que realizei
entre 2013 e 2014 em um sex shop localizado em uma das favelas do Complexo do Alemão,
zona norte do Rio de Janeiro. Nomeada como “boutique sensual” pelo casal de proprietários, a
loja manifestava elementos que se comunicavam com um recente nicho do mercado de artigos
eróticos brasileiro que vem transformando o obsceno da pornografia em autoestima feminina,
além de investimentos em estratégias voltadas para casais. Os cuidados para “não chocar”
vizinhos e comerciantes locais estavam somados à inspiração do casal em um emergente
protagonismo destes espaços por mulheres cisgênero, heterossexuais, casadas, na faixa superior
aos 30 anos (GREGORI, 2016).
Decorrente de um processo que visa atingir classes sociais mais altas, estas mudanças
foram analisadas por Maria Filomena Gregori (2016) em seu estudo pioneiro sobre estes
segmentos na cidade de São Paulo, em que a influência de setores norte-americanos foi
fundamental para definir o que a autora chamou de “erotismo politicamente correto”.
Afastando-se de interpretações mais imediatistas sobre mudanças sociais nos padrões de gênero
e sexualidade, Gregori reflete sobre maneiras como o erotismo neste mercado é resultado de
processos de “direções variadas”: de um lado, há o afastamento de conotações de transgressão
44

e clandestinidade e, de outro, novas etiquetas sexuais têm surgido, reguladas por “convenções
de gênero e sexualidade” (GREGORI, 2016, p. 121).
Minha pesquisa anterior se insere neste cenário de transformações nos significados
relacionados aos usos de artigos eróticos feitos pelo público feminino através do mercado mais
amplo e convencional, nomeado pela autora como “mainstream”. No Complexo do Alemão, a
religião surgiu enquanto fenômeno que demandou maior atenção para analisar distintas
posições de poder mobilizadas pelos erotismos no espaço da loja, o que dialogava tanto com
mudanças no âmbito do mercado erótico como com particularidades do território em questão.
O fato de serem mulheres evangélicas o maior contingente consumidor na “boutique sensual”
trazia afinidades locais que se cruzavam com as trajetórias de quem comandava e consumia
com este impulsionamento mais recente entre mulheres e casais evangélicos 40.
Nesse sentido, chama a atenção a trajetória católica carismática do casal que, ao buscar
se afastar da “vulgaridade”, trazia como bandeira “tirar o preconceito do cristão com sex shops”.
A ênfase na chamada “cosmética sensual” 41 em vez dos “brinquedos”, nome dados aos
acessórios e voltados para a penetração e/ou estimulação genital, também dialogava com um
novo mercado42 que visava ao público gospel e, por sua vez, ganhava destaque nas mídias
sociais 43 com a participação de celebridades da “baixa classe artística” que recentemente
haviam se convertido ao pentecostalismo (BISPO, 2016).
O contexto formado por notícias veiculadas em jornais, revistas e vídeos compartilhados
sobre a temática em diferentes redes sociais formou um campo informativo a respeito dos
personagens e conteúdos disseminados sobre o nicho gospel no mercado erótico. Com a
multiplicação de reportagens, diversos posicionamentos antagônicos e concordantes em relação
ao que ficou conhecido como sex shop gospel44 passaram a circular, sobretudo através de

40
Em sua etnografia em “loja de lingeries” na periferia paulistana, Maísa Ramos (2017) analisou cruzamentos
similares gerados pela presença de religiosidades pentecostais nesse contexto. As prescrições voltadas à
conjugalidade evangélica foram trabalhadas pela autora como reflexos da feminização dos segmentos do mercado
erótico indicados por Gregori (2016), ressignificados através de negociações entre prazer e pecado no cotidiano
de consumidores(as) evangélicos(as).
41
Termo pelo qual são conhecidos entre agentes do mercado de artigos eróticos os materiais fluidos como óleos
que esquentam, esfriam, sprays para o sexo oral, lubrificantes e cremes de massagem.
42
O nascente mercado de produtos eróticos destinado ao público evangélico faz parte de um nicho que, no Brasil,
começou a ganhar espaço nas divulgações realizadas em feiras eróticas em meados da década de 2010. A linha
que se tornou mais conhecida pertence à marca nacional INTT, que desde 2014 conta com produtos voltados para
evangélicos na linha nomeada como “In heaven”. Dentre as principais iniciativas deste nicho, destaco também a
produção do Guia gospel para sex shops e consultores de casais (AGUIAR, P. et al., 2014), publicado no mesmo
ano em parceria com a Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico (ABEME).
43
Uma das que se tornaram mais populares na ocasião, circulando em formato de meme, foi a entrevista feita com
a Miss Bumbum evangélica sobre uma linha voltada para esse público (“ERÓTICA FÉ…”, 2021).
44
Ver Otoni de Paula (2013).
45

figuras públicas evangélicas como pastores e políticos que expressaram esta identidade
religiosa45.
Com trajetórias no pentecostalismo, grande parte destes personagens conquistaram
prestígio dentro e fora do campo evangélico. Seus trânsitos por esferas “seculares” apontam
para maneiras como a própria categoria gospel se formula enquanto agregadora de diversos
grupos evangélicos, extrapolando, inclusive, denominações religiosas. Para além do campo da
música no qual se forjam seus primeiros usos a partir de comunidades protestantes negras norte-
americanas, o termo abrange setores de consumo diversos tais como moda, editoras de livros,
produtoras de filmes etc. (CUNHA, 2007; GIUMBELLI, 2007; BELLOTTI, 2009). No estudo
de Magali Cunha (2007), a emergente formação de uma “cultura gospel” no Brasil é descrita
como uma busca por atingir aos evangélicos de modo geral, promovendo o que a autora chamou
de “hibridismos” entre tradições religiosas e valores modernos.
Nesse sentido, as possibilidades de encontros e delimitação de fronteiras entre domínios
interpretados como separados tornaram este um espaço favorável para os caminhos que percorri
entre sex shop e igreja ao longo da etnografia46. Além do contexto relacionado ao mercado
erótico gospel, os caminhos da pesquisa também foram definidos pela estratégia metodológica
de “seguir” coisas eróticas. Inspirada pela sugestão de Appadurai (2008) de seguir coisas
através de suas “rotas e desvios”, esta abordagem resultou em deslocamentos do campo mais
formal do consumo de artigos eróticos para acessar outros modos como estas coisas circulam.
Inicialmente no âmbito do próprio mercado, passei a conhecer tanto aquelas que
exclusivamente ou consumiam ou comercializavam coisas eróticas como quem conciliava estas
duas atividades.
Mais conhecidas nesse contexto como consultoras, elas são trabalhadoras de um
mercado brasileiro de revendas diretas que inclui também cosméticos, roupas, lingeries e outros
artigos comercializados através de catálogos. Conforme apontou Ludmila Abílio (2014) em seu
estudo sobre o mercado brasileiro de revendedoras de cosméticos, consumir os produtos que
comercializam é uma característica central entre as revendedoras. Foi através das consultoras
evangélicas que estabeleci os primeiros elos no início do trabalho de campo. Além das
observações participantes em palestras voltadas ao público evangélico em feiras eróticas

45
Vale ressaltar a importância de figuras públicas que já se posicionavam anteriormente sobre questões
relacionadas à sexualidade no âmbito do casamento, como o Pastor Claudio Duarte, cuja ampla circulação se deve
ao seu papel no “aconselhamento de casais”. Ver: “Pastor Claudio…” (2016).
46
Destaco, ainda, o afastamento do paradigma weberiano da secularização e o diálogo com o olhar crítico à
produção secular da categoria religião (ASAD, 2021) nesta análise sobre os trajetos entre sex shop e igreja.
46

realizadas nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo, entrevistei consultoras e suas clientes
sobre os usos que faziam de “brinquedinhos”, termo de sua preferência para nomear acessórios
eróticos, e itens da “cosmética sensual” em seus espaços de trabalho e lazer. Apesar de
frequentemente mencionadas enquanto parte de um espaço de sociabilidade pelo qual as coisas
eróticas também circulavam, não cheguei a ter acesso na ocasião às igrejas (todas de
denominação pentecostal) que estas mulheres frequentavam e, na ocasião, nossas conversas
ficaram restritas a ocasiões pontuais.
A incursão nas convivências propriamente ditas da etnografia que compuseram as
questões que organizo nesta tese ocorreu logo depois, ainda em meados de 2017. A entrada nos
eventos para mulheres, a princípio acompanhados em igrejas pentecostais, e nos grupos de
oração no WhatsApp apresentou viradas que conduziram ao trabalho de campo com o grupo
Mulheres Virtuosas e ao casal de pastores que se tornaram os principais interlocutores da tese.
Com intermédio do novo casal, passei a fazer vínculos mais sólidos com as mulheres deste
grupo e, embora não tenha sido possível retomar o contato com as consultoras que conheci nas
primeiras incursões, optei por incluir suas narrativas na tese como parte do caminho que fiz
através dos fluxos pelas coisas eróticas na cidade. Suas trajetórias em igrejas pentecostais como
fiéis e missionárias contemplavam histórias que complementavam aquelas que ouvi
posteriormente, coletivizando questões que definem agenciamentos femininos para “salvar”,
“apimentar” e fazer “sair da rotina” casamentos através do uso de artigos eróticos.
Da análise retrospectiva destes primeiros caminhos etnográficos, refleti sobre os fluxos
que me levaram aos circuitos entre mulheres evangélicas e coisas eróticas como parte de um
conjunto amplo de roteiros pela conjugalidade deste universo. A inspiração na noção de roteiros
sexuais de Simon e Gagnon (1984) se revelou condizente com a proposta dos autores por
chamar atenção para os aprendizados feitos sobre sexualidade na vida social. Em reação à
proposta biológica que este fenômeno majoritariamente sofria nas explicações sobre educação
sexual e aos anseios psicológicos e sociológicos das teorias da motivação, os autores empregam
a ideia de roteiros para indicar a criação de condutas, limites, novas estratégias e flexibilidades
nos arranjos sexuais:

A relação desses roteiros com o comportamento concreto é bastante complexa


e indireta; eles não são reflexos diretos de nenhuma situação concreta,
tampouco estão isentos de surpresa em sua capacidade de controlar qualquer
situação concreta. Muitas vezes, são relativamente incompletos, ou seja, não
explicitam cada ato e a ordem em que ele deve ocorrer; aliás, como observarei
mais adiante, a incompletude da explicitação é necessária, uma vez que, em
qualquer situação concreta, muitos subcomponentes do roteiro devem ser
47

praticados sem que o ator repare que os está executando (GAGNON, 2006, p.
114).

O caráter imprevisível, manipulável e limitado dos roteiros conjugais de mulheres


evangélicas incluiu uma variedade de regras e processos de reorganização simbólica que, como
descreve John Gagnon (2006), combinam projetos estabelecidos em diferentes contextos e
ciclos de vida. O trabalho etnográfico pôde explorar, assim, pedagogias e improvisos nestes
roteiros na circulação entre os espaços de socialidade pelo qual ser identificada como uma
mulher evangélica que fala publicamente sobre sexo pode irromper tanto em riscos quanto em
possibilidades de engajamento.

Linhas de chegada

Após o encerramento das atividades de sua loja no Complexo do Alemão, Cíntia, minha
antiga interlocutora, passou a investir no trabalho autônomo como revendedora de artigos
eróticos e cosméticos. Acompanhando seus novos empreendimentos no campo dos erotismos,
fui convidada a conhecer um evento voltado para mulheres evangélicas que, noutra ocasião,
havia servido como espaço para que ela ministrasse uma palestra sobre sexualidade feminina.
Por meio de um panfleto que me enviou da nova edição do evento, Cíntia me informou sobre
um dado que julgou importante para meus interesses acadêmicos: a recorrência de um sorteio
de “kits eróticos”.
O evento seria o “Chá das Mulheres Virtuosas”, primeiro contato que tive com algumas
mulheres do Ministério e com o casal de pastores Cristiane e Bruno, apresentando viradas que
extrapolaram o campo do mercado erótico para adentrar nos fluxos eróticos e religiosos mais
amplos do uso das “coisas” neste universo. A circulação para além do mercado no espaço das
igrejas passou a conduzir maneiras com que observei outras materialidades afins aos cremes e
géis lubrificantes, como os “azeites”, termo que frequentemente se refere aos óleos de unção
utilizados em rituais pentecostais. Ao mesmo tempo, busquei dar atenção a outras
materialidades e mídias que também fazem gênero nos contextos dos eventos, como elementos
decorativos itinerantes ou aqueles que compõem arquiteturas e cenas mais fixas em muitas
igrejas pentecostais.
Embora o Chá tenha ocorrido em um templo de grande porte, o que parece desfavorável
para estabelecer aproximações menos formais, as relações de confiança propiciadas por minha
ex-interlocutora, aliadas à experiência sinestésica do culto e à baixa quantidade de mulheres e
48

casais presentes naquela e noutras ocasiões, consolidaram vínculos definidores para que a
etnografia se desdobrasse em outros locais. Naquele mesmo dia, pedi autorização à pastora
Cristiane para que eu continuasse frequentando outras edições do Chá como pesquisadora. Sua
resposta afirmativa ao meu pedido também foi seguida de um convite que tinha como objetivo
me auxiliar a saber sobre as novas datas do evento, realizado mensalmente naquele período:
“quer entrar no grupo de zap para acompanhar a divulgação?”.
O Chá também foi minha primeira vez em uma igreja pentecostal. Este não é um dado
menor e ressalta para dados que considerei mais desafiadores a respeito de minha
posicionalidade etnográfica enquanto mulher, solteira e não evangélica. Conforme mencionei
anteriormente nesta introdução, estas diferenças exerceram efeitos significativos nas relações
que estabeleci ao longo do trabalho. Entre as estratégias que busquei desenvolver para
consolidar vínculos de confiança com as interlocutoras, optei por circular mais frequentemente
com outras mulheres do que com os homens, respeitando uma espécie de ditado recorrente para
divisão de gênero que se refere à relação entre pastores(as) e fiéis: “mulher cuida de mulher,
homem cuida de homem”.
Ao mesmo tempo, busquei desenvolver meios de me tornar alguém que estaria ali com
objetivos diferentes da conversão. Após negociações feitas com o casal e outros dirigentes das
diferentes igrejas pelas quais circulavam em eventos itinerantes, passei a utilizar uma câmera
fotográfica para produzir conteúdos como fotos e vídeos, dedicando-me à divulgação de seus
trabalhos nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Minha colaboração na produção midiática
do grupo foi classificada pelas interlocutoras como uma ajuda ocupacional, um engajamento
religioso que me permitia circular como alguém que “trabalhava pra Jesus”. Isto, no entanto,
não significa que eu circulasse livremente. Na medida em que grande parte das mulheres do
grupo eram casadas, meu acesso esteve limitado às dinâmicas voltadas exclusivamente para
elas, não abrangendo outros eventos que elas também frequentavam, como encontros de casais,
e espaços referentes aos bastidores de cultos corriqueiros e festividades, que constantemente
contavam com confraternizações entre membros e lideranças das igrejas.
“Trabalhar pra Jesus” representava a ambiguidade de transitar entre fronteiras de
espaços definidos nesse contexto como seculares e religiosos, encruzilhadas em que pude
sustentar muitos dos laços estabelecidos na pesquisa. Nestas “bifurcações”, termo
frequentemente utilizado pela pastora Cristiane para se referir aos modos como buscava
estabelecer relações fazendo “viradinhas para a esquina”, busquei compreender como a pastora
construía um Ministério que, embora voltado para as evangélicas, apresentava-se enquanto
espaço de acolhimento para “qualquer tipo de pessoa que queira Jesus”, como me disse uma
49

interlocutora. Registrar imagens dos cultos47, parte do domínio comum da produção relacional
de memórias sobre os eventos, tornou minha participação viável entre as múltiplas
possibilidades de se habitar um grupo evangélico que não menciona critérios para restringir a
entrada de interessadas em participar de seu cotidiano.
Não menos importante, há o dinamismo inerente à própria caraterística fluida e instável
dos Ministérios evangélicos (MACHADO, C. B., 2020b). Ora se referindo aos espaços físicos
das igrejas, ora aos trabalhos desenvolvidos coletivamente nos distintos grupos que as
compõem, fazer parte de um Ministério implicou em trabalhar coletivamente para a divulgação
de atividades promovidas pelo grupo. Assim, passei também a produzir individualmente
materiais de divulgação como cartazes, jornais, listas para compras de itens, ofícios para
solicitar patrocínios, além da gestão de mídias sociais vinculadas à pastora Cristiane como
YouTube48, Facebook49 e TikTok50. Diferente das outras iniciativas que compartilhávamos nas
redes sociais, a criação de um perfil nesta rede foi a única iniciada logo após o início da
pandemia do novo coronavírus, período em que o aplicativo também ganhou maior
popularidade no Brasil. O gerenciamento de materiais nesta e em suas outras redes sociais era
feito coletivamente, tanto por mim como por Cristiane, e não incluía minha participação como
administradora de nenhum dos grupos de oração no WhatsApp. Em paralelo, junto às mulheres
do Ministério, realizei diversas outras mobilizações que cercavam a divulgação dos Chás das
Virtuosas.
Nem todas as mulheres que iam aos Chás estavam nos grupos de WhatsApp, assim como
muitas que estavam nos grupos nunca haviam estado em um Chá. De modo geral, elas haviam
chegado ao convívio digital como eu, convidadas diretamente por Cristiane e seu marido, após
um culto em que ambos ou um deles havia acabado de pregar de modo itinerante em uma igreja,
sala de estar de uma residência, ou em garagens e lajes adaptadas para o evento. As virtuosas

47
Nos cultos mais corriqueiros evitei portar estes e outros recursos como gravadores e celular por notar que era no
momento das “festividades” que eles não pareciam causar maiores incômodos.
48
Plataforma destinada ao compartilhamento de vídeos, com sede nos Estados Unidos e gerenciada pelo Google
desde 2006 (CARPANEZ, 2006). Entre suas principais funcionalidades, estão a transmissão de vídeos que podem
ser exibidos ao vivo ou enviados por usuários(as) que se vinculam ao serviço através da abertura de uma conta,
chamada de “canal”.
49
Mídia social originada em 2004 (“FACEBOOK...”, 2014) e pertencente ao conglomerado norteamericano Meta,
cuja nomeação alude à “realidade virtual” do Metaverso (“META...”, 2021). A plataforma está voltada ao
compartilhamento de vídeos, fotos e textos que tanto de modo público como em mensagens privadas, através do
aplicativo Facebook Messenger.
50
Aplicativo criado em 2016 por desenvolvedores chineses (ROSSI, 2021), voltado ao compartilhamento de
vídeos curtos criados pelos próprios usuários. No Brasil, sua maior popularidade esteve vinculada à realização de
dublagens e às coreografias de danças, persistindo com mais força esta última. A maior incidência de seus usos
entre crianças e adolescentes de 9 a 17 anos foi confirmada pelo levantamento realizado pelo Centro Regional de
Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação - CETIQ (TIC KIDS ONLINE BRASIL, 2021).
50

também chegavam indicadas pelas “irmãs” que já ali estavam ou vindas de redes sociais em
que o link dos grupos havia sido compartilhado pela pastora. Acompanhar o sorteio, recorrente
a cada nova edição do Chá, serviu como ponte, similar à noção de Gluckman (2010), para
visibilizar o Chá como “situação social”. Na medida em que situações sociais permitem
visualizar relações, normas, constrangimentos, expectativas sociais e conflitos, apresentando
“políticas de cordialidade e cooperação” (GLUCKMAN, 2010), estar no Chá apontou para
diferentes níveis de agrupamento em torno de mulheres evangélicas e a conformação de
Ministérios.

O trabalho de campo

Figura 1: Mapa de deslocamentos do Ministério

Fonte: elaboração da autora, 2022.

Ao longo do período em trabalho de campo, passei a acompanhar tanto os Chás como a


circulação do casal entre outros eventos e cultos nos quais eram convidados a pregar, realizados
em diferentes igrejas pentecostais localizadas em favelas e subúrbios fluminenses. Percorremos
bairros cariocas como São Cristóvão, Engenho de Dentro, Cascadura e favelas como
Mangueira, São Carlos e Mineira, além de cidades próximas, como Araruama. Junto comigo,
algumas das virtuosas também faziam o trajeto pelos Chás e estes outros eventos. Assim, para
além das entrevistas51 realizadas ao longo da pesquisa, muitas delas se tornaram importantes

51
Devo destacar que os locais escolhidos para as entrevistas e suas mediações foram diferenciais para conduzir a
análise. Ao deixar a critério das interlocutoras, muitas delas escolheram ser entrevistadas em locais como
cafeterias, praças de alimentação, corredores de hospitais, lares e igrejas. Entrevistas online também foram
51

interlocutoras nestes trajetos aos eventos e outros locais que frequentamos, inclusive fora das
igrejas, como aniversários e outras confraternizações.
Após a emergência das medidas sanitárias adotadas para conter o novo coronavírus,
passei a acompanhar também engajamentos que ocorriam noutras mídias sociais além do
WhatsApp. Eram, em sua maioria, transmissões domésticas via smartphone de diversos tipos e
cultos também realizados em lares e divulgados de modo síncrono via Facebook. Logo, a tese
traz dados baseados em diferentes momentos nos quais as observações participantes ocorreram;
há aqueles resultantes das festividades e de minha presença como pesquisadora em dois dos
muitos grupos de WhatsApp Mulheres Virtuosas, chamados de “grupo do Brasil” e “grupo da
Itália”, como também há tentativas de compreender novos usos de mídias já utilizadas
anteriormente, como o próprio WhatsApp e o Facebook, além de incursões adotadas a partir do
período pandêmico, como o TikTok.
Se os grupos de WhatsApp do Ministério foram um dos principais campos em que a
pesquisa foi realizada, o aplicativo também serviu como ferramenta fundamental para que eu
pudesse estabelecer vínculos no “privado” 52 antes e durante a pandemia. Se inicialmente
acompanhar os Chás e o casal de pastores envolveu minha presença física junto às
interlocutoras, nos anos seguintes o WhatsApp se tornou a única alternativa para acompanhar
movimentações importantes proporcionadas através de duas viagens que a pastora Cristiane
realizou para diversos países da Europa.
Financiada por integrantes do grupo, migrantes evangélicas brasileiras que residem na
Itália, Espanha e Suíça, a pastora realizou duas viagens, uma no ano de 2018 e outra em 2019.
Não a acompanhei presencialmente nestas viagens, mas pude construir relações a distância com
algumas delas através da mediação de Cristiane, além de ter sido adicionada por ela ao grupo
de WhatsApp “da Itália” em 2019, composto por mulheres brasileiras que residem em diferentes
países da Europa. O aspecto transnacional que o Ministério adquiriu ao longo destes anos
agregou ao caráter operativo e tensional de suas dimensões interseccionais a nacionalidade.
Junto a outros processos de racialização destas mulheres que acompanhei, todas na faixa etária
entre 30 e 60 anos e heterossexuais, ser “brasileira” e sua combinação com “ser pentecostal”,

realizadas de forma síncrona e assíncrona. Enquanto as respostas das primeiras vieram de chamadas de vídeo, as
segundas foram coletadas por mensagens de voz no aplicativo WhatsApp. Convivi em menor frequência com
alguns homens evangélicos, optando por entrevistar aqueles que estavam mais próximos do grupo no decorrer da
pesquisa. A seleção de pessoas entrevistadas foi feita tanto por mim, quando convidei aos poucos algumas com
quem mais convivia para uma entrevista, quanto pela pastora, que me enviou outros contatos de participantes do
grupo.
52
Termo como costumam ser chamadas as trocas de mensagem feita diretamente entre duas pessoas no aplicativo
WhatsApp.
52

se apresentou como mais um complexificador das dinâmicas de circulação que coletividades de


mulheres evangélicas tem tomado em seus atravessamentos interseccionais.
Simultaneamente, as posições de classe social das mulheres desta pesquisa se mostraram
relativamente homogêneas. Com exceção de duas interlocutoras que entrevistei pontualmente,
uma pedagoga e outra empresária no ramo comercial, aquelas com quem mais convivi não
haviam concluído o ensino médio e atuavam em profissões como revendedoras de cosméticos,
faxineiras, donas de casa e profissionais autônomas do ramo da estética feminina. Estes cargos
eram exercidos de forma combinada ou não a diferentes atuações em cargos ministeriais nas
igrejas. Para além de propor que houve um perfil relacionado à classe social nesta pesquisa,
mobilizo diálogos que buscam identificar como estas diferenças eram agenciadas nas
circulações evangélicas.
Apresento nas próximas páginas caminhos possíveis para compreender como o
pentecostalismo vem disputando projetos de expansão transnacionais protagonizados por
mulheres evangélicas. Os debates que busquei enfrentar na tese visaram propor caminhos de
investimento em análises que não oponham sex shops às igrejas, ou mobilizações de
evangélicos(as) no WhatsApp às ações democráticas. Desmantelar estes projetos de
interpretação da vida religiosa foi um exercício que trouxe respostas inconclusivas que
demandam cada vez mais aprofundamentos, bem como indicaram desafios para pensar sobre
as transformações neste campo a partir de experiências e disputas feitas por mulheres
evangélicas.

Apresentação dos capítulos

O primeiro capítulo da tese percorre dinâmicas de consumo evangélico que envolvem


artigos eróticos. Através das narrativas compartilhadas por mulheres que congregam em
diferentes denominações ou que acabaram se afastando de suas igrejas e passaram a ser
consideradas “desviadas”, investiguei como moralidades que transitam entre mercados eróticos
e igrejas produzem circulações diferenciadas entre as interlocutoras e delimitam fronteiras entre
erótico e religioso. Ao explorar analiticamente o trajeto etnográfico entre sex shop e igreja,
chamo a atenção para o distanciamento das narrativas das interlocutoras em relação aos
imaginários que separam vida religiosa e erotismo a partir do âmbito do casamento. Também
destaco como a configuração de discursos do mercado dialoga com o domínio da figura do
casal, criando diferenças e desigualdades entre quem escolhe falar sobre sexualidade sendo
casada ou solteira.
53

Assim como contavam suas próprias experiências de consumo de artigos eróticos,


busquei extrapolar os trajetos pelos templos para indicar maneiras como o intervalo entre sex
shop e igreja se reproduz nos circuitos urbanos das interlocutoras. Refletir sobre fronteiras
nestes espaços de consumo, por sua vez, indicou caminhos que apontaram inicialmente para
possibilidades críticas ao secularismo disseminado em teorias sobre o sexo, decorrendo ao final
do capítulo em uma análise sobre as precarizações vivenciadas por mulheres negras evangélicas
que enxergam nas práticas de coaching e da revenda direta possibilidades de ascensão social.
Ao não se concretizarem, tais possibilidades atualizam posições de humilhação e servidão
geradas nestes dispositivos urbanos, contribuindo para a manutenção de lógicas racistas
perpetradas pelo neoliberalismo.
No capítulo dois, apresento a trajetória do casal de pastores Cristiane e Bruno. Suas
negociações éticas e narrativas de conversão orientaram uma análise em que enfatizei suas
batalhas contra e pela família. As dimensões da informalidade que constitui suas carreiras
pastorais autônomas decorrem na adoção de diferentes estratégias de “viração” para garantir
sobrevivências atreladas a estes trabalhos. Se as fronteiras que separam o que é Ministério,
Projeto e grupo são constantemente fortalecidas pelo casal, são as alianças com as “filhas na
fé”, as mulheres “virtuosas”, que ajudam a sedimentar sua legitimidade como pastores. Ao
mesmo tempo, estas alianças são alvo de frequentes escrutínios no grupo, indicando como a
força da manifestação de dons espirituais pode provocar rupturas nesse contexto. Os reforços
para evitar esgarçamentos das alianças entre as interlocutoras ganham no Chá das Virtuosas um
de seus maiores investimentos para o aprendizado de virtudes.
Na medida em que minha primeira inserção no Chá se deu na igreja em que o casal
congregava como pastores voluntários, analiso como elementos rituais compartilhados pelas
mulheres encenavam pedagogias da domesticidade de um lado, e pedagogias eróticas, do outro.
Longe de haver uma separação entre estas práticas e suas ritualizações, as interlocutoras
propunham relações com materialidades eróticas e religiosas que apontavam para as
porosidades destes lados. Analisar estas ambivalências e ambiguidades entre aquilo que
definem como religioso e erótico foi meu principal objetivo no terceiro capítulo da tese. Nele,
exploro como coisas fluidas e fálicas moldam regulações de gênero, sexualidade e erotismo,
além de forjarem coletividades de mulheres no contexto pentecostal.
A atenção etnográfica para as sensorialidades presentes no som de músicas que “curam
feridas”, fluidez do óleo de unção e materialidade de líquidos que penetram ou são expelidos
dos corpos das mulheres conformam estes rituais enquanto modos de comunicação privilegiada
nos aprendizados sobre ser virtuosa. Por meio das relações das mulheres com o riso e memórias
54

provocadas através de seus usos de materialidades eróticas, explorei disputas pentecostais


travadas entre tradicional e moderno, igreja e mundo, carne e espírito. Em paralelo, seguir as
coisas despertou outras possibilidades metodológicas para compreender cenas em que as
mulheres interagiam com elas no âmbito de seus casamentos. Ao contrário do enfoque
psicologizante e/ou centrado nas representações e significados, a abordagem material das
políticas de gênero e sexualidade instigou questões que dizem respeito aos limites e
fragmentações do corpo nos processos pentecostais para atingir a santificação.
No quarto capítulo, apresento circuitos político-midiáticos que formam eventos
pentecostais para mulheres. Acompanhei junto às interlocutoras desta pesquisa suas incursões
em Chás e Conferências realizadas em ginásios, igrejas de denominações maiores e menores,
além de seus lares. As mudanças provocadas após a ida da pastora Cristiane para a Europa
indicaram novos pertencimentos para sua trajetória institucional, possibilitando seu alcance da
“honra” almejada enquanto liderança religiosa. Em negociações com sentidos associados à
fama que mobiliza figuras públicas do gospel, as mulheres virtuosas traçam variados
agenciamentos que analisei através de seus investimentos nas “estéticas da unção”. Por meio
de seus cabelos, indumentárias, gestos e disposições corporais, a busca pela autoridade religiosa
era sempre instável e empenhada em consolidar uma completude que só pode ser transmitida
através do alcance da graça.
O caminho seguido no quinto e último capítulo da tese esteve mobilizado por
compreender como esta transmissão ocorre através de imagens, textos e sons compartilhados
nos grupos de oração no WhatsApp. Enquanto a outra metade do pertencimento ao Ministério,
cuja completude se dá com a rotina nos grupos de “zap” e na presença nos Chás das Virtuosas,
o acesso ao cotidiano digital das interlocutoras proporcionou novas entradas para compreender
modos como se tornam virtuosas em aprendizados sensoriais. O som dos áudios de
testemunhos, pregações e orações, a manifestação de dons em mensagens de texto e as estéticas
caseiras de imagens compartilhadas em campanhas de jejum e oração apontaram batalhas
espirituais vividas na portabilidade do espaço e tempo. Encerro o capítulo final com
considerações sobre como os usos do WhatsApp entre mulheres evangélicas têm incidido em
conflitos atribuídos ao âmbito da política e, ao mesmo tempo, transformado rituais no
pentecostalismo.
55
56

1 ENTRE SEX SHOP E IGREJA

Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias!


A tua estatura é semelhante à palmeira; e os teus seios são semelhantes aos
cachos de uvas.
Dizia eu: Subirei à palmeira, pegarei em seus ramos; e então os teus seios
serão como os cachos na vide, e o cheiro da tua respiração como o das maçãs.
E a tua boca como o bom vinho para o meu amado, que se bebe suavemente,
e faz com que falem os lábios dos que dormem.
Eu sou do meu amado, e ele me tem afeição (Cantares de Salomão 7, 6-10).

No trecho bíblico que apresenta o livro de Cantares de Salomão, também conhecido


como “Cântico dos Cânticos”, o casal apaixonado formado pelo Rei Salomão e Sulamita
compartilha da efusão de sensações eróticas que lembram sabores de vinhos e aromas
campestres. A descrição minuciosa do corpo de Sulamita é acompanhada de um convite para
que o Rei descanse a cabeça sobre seus seios e a acaricie. As respostas apaixonadas de Sulamita
confirmam o desejo mutuamente correspondido, fornecendo detalhes a respeito do corpo de seu
amado: “A sua boca é muitíssimo suave; sim, ele é totalmente desejável. Tal é o meu amado, e
tal o meu amigo, ó filhas de Jerusalém” (Cantares de Salomão 5, 16). O diálogo entre ambos,
acompanhado por coros das filhas de Jerusalém, está presente no Velho Testamento e expressa
a intensidade de uma troca em que dois corpos, masculino e feminino, são provocados a sentir
prazeres memorizados no sabor e textura de frutas, líquidos e paisagens. Ver, cheirar, degustar
e ouvir são alguns dos sentidos ativados pela interação dos corpos com vinhos, especiarias,
essências e unguentos.
Citações de diferentes trechos do livro de Cantares apareceram em diversos espaços
entre os quais circulei durante o trabalho de campo. “Você vai levar um susto quando ler esse
livro!”, comentou a pastora Cristiane durante uma de nossas entrevistas após um culto em que
havia acabado de pregar, seguindo pela explicação de que ali seriam descritas “todas as partes
do corpo de uma mulher, de uma forma muito discreta”. A história de Sulamita, ou Mulher
Sulamita53, como era chamada a personagem bíblica que conduzia e era conduzida nas trocas

53
Considerei relevante destacar o termo Mulher que precede o nome de Sulamita, de uso comum em campanhas
realizadas por diferentes igrejas pentecostais, para indicar como a apropriação desta personagem nas pedagogias
eróticas femininas está vinculada às negociações feitas em torno da sensualidade, que deve ser bíblica e servir ao
casamento. Nesse sentido, ser Sulamita era o que as interlocutoras chamavam de “ser uma mulher de Cantares”.
Sobre as disputas em torno do protagonismo erótico desta personagem na teologia feminista negra, ver Caldeira
(2013).
57

eróticas entre o casal, inspirava pregações em muitas campanhas54 que ocorriam em sua igreja
e reverberava nas experiências pessoais sobre seu casamento.
As narrativas que a pastora costumava compartilhar com as fiéis se assemelhavam ao
que Márcia, missionária de um ministério da Assembleia de Deus, também me contou a partir
de uma experiência que viveu em um culto. As reflexões proporcionadas pelo livro de Cantares
estavam nos bancos e nos púlpitos da igreja que frequentava, sucedendo a pregação que ouviu
do pastor:

E até a própria Bíblia mesmo vai contar uma passagem sobre Salomão, onde
vai falar que Salomão vai jogar o vinho nos seios de Sulamita e o vinho vai
descer, e o pastor até fez uma brincadeira: “você queria que a Bíblia dissesse
aonde o vinho ia parar?”. Foi até onde dava pra expor, tem coisas que a Bíblia
não vai expor, mas você vai entender (Entrevista realizada presencialmente,
maio de 2017).

A dialética entre exposição e discrição no tom irônico empregado pela interlocutora se


alternava com a convicção de que era possível conciliar o prazer a uma vida longe do pecado:
“Tá lá na Bíblia! O sexo é bênção”. Desde que as sensações sejam compartilhadas dentro do
casamento, monogâmico e heterossexual, para Márcia e Cristiane incitar o erotismo entre o
casal não seria condenável, mas bíblico. Pode evitar divórcios, aumentar a autoestima feminina
e consolidar testemunhos a serem contados após uma fase difícil pela qual todo casal estaria
suscetível a passar, sobretudo após alguns anos juntos e atravessados pela repetição da rotina.
Por meio das tramas que configuravam estes argumentos, pude encontrar nessas
narrativas eróticas e religiosas fios em comum para analisar o que estas histórias contadas entre
mulheres evangélicas informavam sobre formas como faziam gênero e viviam a sexualidade.
Estes fios eram unidos por mulheres que se apresentaram como heterossexuais, também em sua
maioria casadas e com filhos(as). Habitando idades entre 30 e 60 anos, elas residiam e
circulavam cotidianamente nas periferias urbanas das capitais de Minas Gerais, São Paulo e Rio
de Janeiro.

54
Para evangélicos pentecostais as campanhas são ocasiões em que participantes se reúnem para cumprir um
objetivo, geralmente relacionado a um tema proposto pela liderança religiosa, tais como vida sentimental,
financeira, cura para doenças, entre outros. Entre as interlocutoras desta pesquisa, o termo também apareceu com
usos alternativos aos termos “propósito” e “ato profético”, envolvendo práticas em que se profetiza por ações
divinas no mundo e intercessões para casos considerados difíceis. Em geral, é realizado de modo coletivo e, em
alguns contextos, também é comum que se agregue à dinâmica da batalha espiritual a execução de atividades
específicas para se comunicar com Deus, com a utilização de objetos, “pontos de contato” como peças de roupa,
fotografias, óleo de unção, entre outros. As atividades e objetos frequentemente recriam passagens bíblicas e
remetem aos usos feitos por apóstolos para operar milagres através da fé.
58

Assim, além das questões de gênero e sexualidade, a circulação por estes territórios as
tornava diferenciadamente sujeitas a leituras racializadas sobre seus corpos. Analisei como as
articulações de suas religiosidades com estes marcadores sociais da diferença, que também
evidenciavam o vetor geracional em muitos aspectos, apontaram para a centralidade das
experiências conjugais. Ouvir histórias sobre seus casamentos fez parte sobretudo de relações
estabelecidas em socialidades femininas que percorri junto com elas por mercados eróticos,
igrejas e outros espaços nos quais falavam sobre sexualidade através de interações com coisas
eróticas.
Na medida em que estas coisas estão nos cotidianos das mulheres evangélicas de
variadas maneiras, iniciei o caminho analítico optando por acessar seus engajamentos através
da combinação entre usos e vendas. As narrativas sobre a interação com as coisas nesse contexto
evocavam desafios que as interlocutoras anunciavam em tom de superação, buscando
reencantar matrimônios desencantados, indicando que o acesso a novas práticas possibilitaria
outras maneiras de perceber seus corpos na relação a dois. Vinhos e unguentos, nesse sentido,
ganhavam versões atualizadas em cremes para massagem, géis e lubrificantes, artigos da
“cosmética sensual” comprados e vendidos pelas interlocutoras em espaços de confiança.
Em vez de reforçar fronteiras que definiriam apressadamente estas mulheres evangélicas
como “sexualmente reprimidas”, “conservadoras”, entre outros estereótipos que percorrem
representações sobre suas moralidades sexuais 55, busquei identificar como elas disputam,
agenciam e criam seus próprios limites entre erótico e religioso. As narrativas das “mulheres
de Cantares”, termo que ouvi de algumas delas, não eram uniformes. Enquanto algumas
celebravam estratégias para reencantar o casamento, outras apontavam tanto para o fracasso do
diálogo sobre assuntos relacionados à sexualidade com lideranças da igreja como para a
consequente posição de ameaça aos princípios cristãos em que eram posicionadas ao ousarem
falar publicamente sobre sexo.
Este foi um dos motivos pelos quais Rosa, que frequentou uma igreja Batista Renovada,
começou a construir críticas sobre a distância entre o que ouvia nos cultos e o os
comportamentos das lideranças religiosas quando estavam longe dos púlpitos. Sua experiência
ministrando cursos voltados para casais culminou com acusações destas mesmas lideranças,
contadas durante nossa entrevista, realizada em novembro de 2017: “primeiro que eu apareci

55
Alguns dos trabalhos que enfatizaram criticamente estes estereótipos e apontaram para transformações estéticas
e comportamentais entre evangélicos(as) pentecostais, ocorridas sobretudo a partir dos anos 1980, foram: Birman
(1996), Mariz e Machado (1996), Mariano (2014) e Mafra (1998).
59

muito. Eles não gostam que você apareça muito. Mulher solteira... já tem esse preconceito, uma
mulher solteira falando de sexo”.
Nas histórias de Cristiane, Márcia e Rosa, falar de sexo “com fundamentação bíblica”
gerou diferentes efeitos. O acesso aos complexos desdobramentos feitos por estas mulheres fez
de seus usos do “livro de Cantares” como pastoras, missionárias, “consultoras” e “irmãs que
vendem sex shop” foi meu principal ponto de partida para iniciar o trabalho de campo no
doutorado. Se ao longo do caminho o problema central da tese acabou extrapolando para
possibilidades analíticas que abordam trajetos na cidade, nas igrejas e nas mídias digitais, foram
os fluxos eróticos e religiosos através das coisas que permitiram compreender questões
fundamentais a este trabalho. Como as relações entre pessoas e coisas formam gênero e
sexualidade no pentecostalismo? O que disputam e transformam em seus percursos enquanto
mulheres negras e residentes das periferias urbanas?
Neste capítulo, percorro estes fluxos por meio dos roteiros conjugais 56 das mulheres
evangélicas. Na medida em que erotismo e religião são experiências indissociáveis para as
“mulheres de Cantares”, pude explorar os circuitos em que este par se materializa nas coisas
eróticas através das dinâmicas relacionais entre diferentes espaços. Ao longo das próximas
seções, os trajetos urbanos das mulheres ganham protagonismos que atravessam seus cotidianos
no espaço público, em imaginários compartilhados no mercado gospel e pelas formas de vida
dinamizadas nos empreendedorismos evangélicos.
Iniciei o primeiro ponto destes circuitos em meados de 2017, quando retomei os
desdobramentos de minha pesquisa de mestrado realizada em um sex shop no Complexo do
Alemão. Ao acompanhar naquele período os esforços de Cíntia, minha principal interlocutora
na ocasião, junto com seu marido para o que costumava colocar como “tirar o preconceito do
cristão com o sex shop”, analisei a ampliação de seu diálogo com empresárias(os) que
estruturavam um nicho de mercado gospel, voltado para casais heterossexuais evangélicos. Sua
trajetória como mulher católica vinculada à Renovação Carismática 57 e suas redes de confiança,
compostas majoritariamente por familiares e/ou clientes evangélicas pentecostais que residem
nas favelas e subúrbios cariocas, traçaram circuitos religiosos em que Cíntia negociava sua

56
Como explicito na introdução da tese, a noção de roteiros aqui empregada tem inspiração na proposta dos roteiros
sexuais de Simon e Gagnon (1984). Diferente da ideia de comportamentos, os roteiros apresentam um caráter de
incompletude que não se relaciona com situações concretas, o que os torna comumente articulados àquilo que pode
ser chamado de fantasia.
57
A Renovação Carismática Católica é um movimento de reavivamento transnacional, inicialmente conhecido
como Pentecostalismo Católico, e vinculado às mudanças promovidas através do Concílio Vaticano II (1962-
1965). Propaga a manifestação de dons carismáticos como orar em línguas, realizar curas e profecias e tem como
centro de referência de seu início a cidade de Michigan, nos Estados Unidos (RCC, 2022).
60

credibilidade através de negociações com o nascente mercado erótico gospel e do uso da


autointitulação “empresária cristã”.
A aproximação com os evangélicos era narrada, por sua vez, através de oposições com
as moralidades sexuais no catolicismo. Embora fosse este seu pertencimento, Cíntia se queixava
de não ter a mesma liberdade para “levar o sex shop para a igreja” através de sua rede
carismática; os evangélicos pentecostais, em suas palavras, não seriam “tão fechados como os
católicos” neste ponto. Sua constante insatisfação decorrente da rigidez moral entre lideranças
e fiéis católicos derivava de um esforço para desassociar sexo e reprodução, o que não ocorria
em sua rede de amigos(as) e pastores(as) evangélicos.
Na pesquisa pioneira “Novo nascimento: os Evangélicos em Casa, na Igreja e na
Política”, Rubem Cesar Fernandes et al. (1998) afirmaram a tendência de maior uso de
contraceptivos entre fiéis evangélicos, com maior avanço entre os pentecostais 58. Os autores
indicaram uma “tendência liberalizante” que dialoga com o dado de que evangélicos descrevem
o sexo como “fonte de alegria”, transformações apontadas posteriormente por Luiz Fernando
Dias Duarte et al. (2006) como parte de uma disposição hedonista que se distancia da tradicional
ênfase cristã na dor e sofrimento. Segundo os autores, a “mundanidade” e o “prazer a ser obtido
no mundo terreno” (DUARTE et al., 2006, p. 20) que prevalecem neste contexto são
características que compõem o universo confessional, abrangendo tanto as regulações sobre a
sexualidade moderna quanto normativas centrais ao ethos religioso.
Uma das mais importantes referências a estes elementos no contexto católico pode ser
notada nos chamados “encontros de casais”. Fenômeno originado na década de 1970 com o
nome de Encontro de Casais com Cristo (ECC), essas reuniões tinham por objetivo ampliar a
frente da igreja católica no trabalho de evangelização de famílias (CNBB, 2022). No entanto, a
insistência nos vínculos entre sexualidade e reprodução para as posições doutrinárias católicas,
conforme aponta Maria das Dores Machado (1996), tornou esta desassociação lenta e difícil ao
longo das décadas nesse contexto, ao passo que a orientação mais flexível entre denominações
evangélicas pentecostais trouxe outros desdobramentos para os debates sobre sexualidade.
Ao mesmo tempo, cabe ressaltar que mudanças internas mais recentes no catolicismo
em torno da expansão do “estilo evangelizador” (CARRANZA, 2011) presente em personagens
midiáticos pioneiros neste aspecto como o Padre Marcelo Rossi também produziram reflexos
para a ascensão de uma “nova face da Renovação Carismática”, conforme definiu Brena

58
Vale lembrar que neste mesmo período em que a pesquisa citada foi divulgada, o líder da IURD, Bispo Edir
Macedo, se posicionava a favor do aborto e em defesa de políticas de planejamento familiar (TEIXEIRA, J., 2016).
61

Carranza (2011, p. 69). A relação de proximidade que resultou em diálogos diretos entre o Rossi
e o público católico-carismático foi destacada pela autora para indicar a produção de novas
formas de participação religiosa decorrentes destes vínculos. Nesse sentido, torna-se relevante
considerar que o apaziguamento de divergências entre diferentes vertentes cristãs vivido por
minha antiga interlocutora pôde contar tanto com estas transformações em seu contexto
religioso, com a emergência de um novo estilo de dialogar com problemas cotidianos dos(as)
fiéis, quanto com estratégias que já vinham sendo amplificadas pelas “pedagogias da
prosperidade” (TEIXEIRA, J., 2016) no campo pentecostal.
A partir dessas negociações proporcionadas pelo pertencimento a uma denominação
carismática e suas movimentações pelo gospel, a liderança de Cíntia possibilitou que casais
evangélicos se tornassem público cativo em seu sex shop e a aproximou das interlocutoras que
conheci posteriormente. Nesse sentido, considerar pontos de vista em que mercados,
sexualidade e religião organizam coletividades levaram esta etnografia a não se fixar em
espaços físicos, mas percorrer circuitos em que estas dimensões em conjunto vêm formando o
que chamei noutros trabalhos de erotismo gospel (MOCHEL, 2014). Caminhar por estes fluxos
e circuitos em que se buscou “levar o sex shop para a igreja” teve por objetivo conhecer as
fronteiras organizadas pelas interlocutoras sobre o que definem como secular e religioso,
permitindo analisar criticamente armadilhas contidas em imaginários forjados pelo secularismo
(ASAD, 1993) sobre as moralidades sexuais entre sujeitos evangélicos.
Ao contrário de apontar para como as negociações elaboradas nestes circuitos permitem
formar uma espécie de modus operandi em que o mercado busca homogeneizar as sexualidades
evangélicas, identifico como a circulação de categorias êmicas empregadas nesse contexto (tais
como mercado gospel, empresária cristã, a noção de trabalho como missão, entre outros)
promove disputas sobre quem representa nichos de consumo de artigos eróticos e onde pode se
falar sobre sexo de acordo com princípios bíblicos. Busquei, nesse sentido, analisar as
dinâmicas inerentes a estes erotismos nas possibilidades de agenciamento proporcionadas pelas
religiosidades e mercados eróticos em que estes imaginários circulam. Tal como propuseram
Mary Douglas e Baron Isherwood (2009), trata-se de apontar para caminhos de reflexão sobre
os bens como fixadores de significados públicos, fugindo às abordagens de caráter
individualista que concebem mercadorias enquanto escolhas fundadas por mecanismos de
irracionalidade do consumidor.
No dinamismo contido no espaço intersticial que a etnografia percorreu entre sex shop
e igreja, as experiências narradas pelas interlocutoras sobre os usos com as coisas eróticas
borram noções que associam o erotismo aos espaços tomados a priori como seculares e a
62

presença do religioso como elemento considerado inusitado neste processo. Semelhante ao


lugar posicionado da halfie ou mestiça ao qual se refere Lila Abu-Lughod (2018), o que se
produz no meio do caminho, que aqui abordei a partir do trajeto entre sex shop e igreja, não é
o mesmo do que se faz em cada um destes espaços separadamente. Alternativamente ao que
uma interpretação mais apressada do título deste capítulo possa oferecer, não se tratou de um
caminho linear e de destino único, mas atravessado por imprevisibilidades de variadas
experiências, refletindo desigualdades de gênero e raça nestes espaços em disputa.
A partir de um comércio que buscava sobreviver em meio às dificuldades financeiras e
desafios morais enfrentados em uma das mais populosas favelas cariocas, o trajeto entre sex
shop e igreja nesta etnografia se iniciou a partir do que deu “errado” no trabalho de campo. Isso
porque, com o fechamento da loja no Complexo do Alemão em meados de 2015, passei a buscar
novas alternativas para dar continuidade ao trabalho de campo no doutorado. Diferente da
análise feita no mestrado, na qual o mercado erótico ocupou espaço de maior protagonismo nos
processos relacionais entre mulheres e coisas eróticas no âmbito do casamento, as igrejas e
outros espaços de sociabilidade femininas nesse contexto também são analisados neste capítulo
na medida em que compõem os fluxos feitos por mulheres que vendem artigos eróticos.
Esses fluxos que me levaram inicialmente às feiras eróticas 59 determinaram minha
circulação etnográfica por eventos variados: palestras sobre sexualidade para casais
evangélicos, eventos religiosos voltados ao público feminino, chás de lingerie, entre outros.
Nestes, nem sempre a sexualidade estava presente como tópico principal. Cheguei a frequentar
alguns eventos de recrutamento de consultores(as) de revenda por catálogo, o que demarcava
que havia no mercado de produtos eróticos tipos de públicos específicos que vendem e
consomem estes artigos por meio desta modalidade de trabalho. Todos estes fatores
acompanharam os deslocamentos espaciais que fiz com interlocutoras pelos subúrbios e favelas
fluminenses, o que possibilitou construir análises sobre a religião que se deram “através do
espaço, no espaço ou do espaço” (MENEZES, 2012, p. 30).
O que inicialmente interpretei como uma falha no método da pesquisa que dificultava o
estabelecimento de relações mais profundas com as pessoas no trabalho de campo acabou se
tornando um meio de questionar o lugar privilegiado fornecido aos templos para compreender
moralidades religiosas. Além de perspectivas sobre a circulação religiosa no espaço público e

59
A feira que compõe os dados desta fase da pesquisa é a Sexy Fair, realizada na cidade do Rio de Janeiro. O
evento é responsável por divulgar importantes marcas do mercado erótico e costuma se apresentar com o “conceito
de ser erótica” em oposição à pornografia, ou seja, “sem variantes do sexo explícito” (Ver: MOCHEL, 2014).
63

dos fluxos com e através das coisas, a noção de desinstitucionalização religiosa é caudatária de
críticas que apontaram para ênfases na diversidade, fluidez e disputas inerentes às
transformações religiosas. “Qual é o lugar do religioso?”, pergunta feita por Pierre Sanchis
(2006) nesse contexto, aproximou as reflexões sobre a crescente desinstitucionalização das
experiências religiosas contemporâneas em diálogo com o que autor já afirmara anteriormente
sobre o declínio da hegemonia católica e o crescimento evangélico no Brasil (SANCHIS, 1994).
Assim como igrejas são espaços insuficientes para apreender as complexas dimensões
articuladas pelas moralidades religiosas, sex shops também compartilham deste limite quando
se trata de moralidades sexuais. Nos múltiplos trajetos desta circulação, as fronteiras
estabelecidas para as noções de religioso e erótico estão sendo tensionadas nos cotidianos de
mulheres evangélicas. Para compreender as relações ocorridas entre estes espaços através dos
usos das coisas eróticas, apresento a seguir diferentes narrativas que apontam para as múltiplas
e complexas possibilidades despertadas neste encontro. Os erotismos que aqui menciono
puderam ser compreendidos através de roteiros conjugais, na medida em que os casamentos,
experimentados pelas interlocutoras como valor a ser alcançado e experimentado como
necessariamente heterossexual e monogâmico, constituiu-se elemento fundamental para a
coletivização de mulheres evangélicas.

1.1 Discursos secularistas sobre o sexo: reposicionando o problema da “virada


conservadora”

Ao longo desta pesquisa, ouvi um conjunto de perguntas de modo recorrente em


seminários e congressos de que participei apresentando trabalhos sobre usos de artigos eróticos
entre mulheres evangélicas. Eram questões que, em sua maioria, buscavam compreender como
e/ou quando haveria ocorrido a “virada” que levou estas mulheres ao consumo de artigos
eróticos e que, por sua vez, dialogavam com escalas mais amplas de uma “virada conservadora”
que abrange noções de gênero, sexualidade e religiosidades evangélicas e ocorrida mais
recentemente, após a ascensão de movimentos políticos de extrema direita na América Latina,
Estados Unidos e parte da Europa. Além disso, as questões exploravam um nexo que associa
espaços e artigos eróticos às práticas sexuais desviantes, revelando estereótipos tanto sobre
sexualidade como sobre mulheres evangélicas, que cristalizam e apartam moralidades sexuais
e religiosas. Em muitas ocasiões, presenciei formas como esta combinação sobre a virada
conservadora também estava articulada a um ímpeto de entender aquilo que se apresentava
64

como inusitado, o que produzia comentários jocosos sobre as práticas sexuais de mulheres
evangélicas.
Considero oportuno trazer aqui alguns elementos que apontam para os efeitos gerados
por essas interpretações, na medida em que tais efeitos incidem na constituição de imaginários
sobre o encontro entre sexualidade e religiosidades evangélicas que estão bastante presentes
nos contextos acadêmicos pelos quais versões anteriores deste trabalho mais circularam. Para
além disso, são imaginários que fazem parte de uma construção mais ampla do ideal
democrático que baseia a igualdade de gênero no secularismo, em oposição à fundamentação
patriarcal60 de expressões religiosas, que na agenda feminista ocidental apontou para críticas
mais direcionadas às práticas islâmicas. O formato de separação entre religião e Estado que
emerge com o modelo político do Estado-Nação e, por sua vez, estaria ao lado da promoção de
liberdade, justiça racial e de gênero em detrimento da religião assumindo o lado opressor é um
dos principais argumentos de Joan Scott (2018). Assim como outros autores que produziram
críticas ao discurso secularista (ASAD, 2021; MAHMOOD, 2005), Scott (2018, p. 3, tradução
minha) identifica que nos processos historicamente situados da secularização “a desigualdade
de gênero foi fundamental para a articulação da separação entre igreja e Estado que inaugurou
a modernidade ocidental”61.
Ao diminuir a escala desta análise para movimentações cotidianas de mulheres
evangélicas, somo a estas perspectivas junto às análises sobre sexualidade entre religiosidades
evangélicas para refletir em dois caminhos que buscam se complementar. De um lado,
apresento desafios já identificados pelos estudos feministas e pós-estruturalistas sobre
sexualidade nos quais, embora as moralidades religiosas não estivessem analisadas como
questão central, as tensões entre normas e desvios exibidas nas expressões do desejo apontavam
para reflexões sobre deslocamentos e trânsitos em vez de subordinação e conservadorismo; do
outro, busquei situar maneiras como epistemologias secularizantes que constituem a retórica da
“virada conservadora” e a ideia de que o religioso ocupa presença inusitada e incômoda no
espaço público ressoam o paradigma weberiano da secularização, ao mesmo tempo que limitam
a compreensão de nossas agendas feministas interseccionais para conflitos que envolvem
agentes religiosos. Não proponho, nesse sentido, uma equiparação entre problemas debatidos a
respeito do Islã para os contextos europeus e norte-americanos e do cristianismo evangélico

60
Para uma crítica à noção de patriarcado nos feminismos interseccionais, ver Piscitelli (2009).
61
No original, em inglês: “In fact, gender inequality was fundamental to the articulation of the separation of church
and state that inaugurated Western modernity”.
65

para a América Latina. Em seu lugar, sugiro refletir a partir dos efeitos gerados pela constituição
de políticas que se propuseram nacionais em nosso país cuja referência é a Igreja Católica
(MONTERO, 2009), além de pensar sobre o que está em jogo quando reproduzimos não
somente discursos secularistas, mas também a avaliação normativa contida na crítica pautada
no ideal de liberdade de expressão (BUTLER, 2009).
No que se refere aos estudos sobre sexualidade, as principais expressões que emergiram
a partir da década de 1980 apresentaram enfoques sobre convenções do erotismo cuja
centralidade esteve nas práticas sexuais dissidentes 62. A comercialização de acessórios eróticos,
como indicou Gayle Rubin (2017b), ocupou espaço popular entre o que a autora chamou de
“comunidades eróticas”. Nelas estavam presentes produtores e consumidores de artigos eróticos
sadomasoquistas, que sofreram intensa perseguição policial nos Estados Unidos entre as
décadas de 1940 e 1960 no âmbito da criminalização de minorias sexuais e da prostituição.
Em diálogo com perspectivas sobre os processos modernizadores dos dispositivos da
sexualidade (FOUCAULT, 2011), análises como a de Rubin foram mobilizadas por críticas aos
feminismos antipornografia. As guerras sexuais (sex wars), como ficaram conhecidas no
contexto norte-americano, apresentaram dois lados de uma aposta polarizada do pensamento
feminista sobre o sexo. Nesse sentido, a proposta pelos prazeres em detrimento dos perigos
(VANCE, 1984) incidiu em maneiras como esta polarização esteve historicamente presente em
diferentes abordagens sobre sexualidade, incluindo aquelas sobre mercados e espaços
destinados ao erotismo.
Ainda na abordagem centralizada nas dissidências, esta foi uma oposição contestada por
parte da literatura antropológica brasileira que abordou a relação entre mercados, sexualidades
e espaço público. Da influência do que Perlongher (1987) chamou de “tensores libidinais”,
variadas dinâmicas de produção do desejo foram analisadas se afastando do reforço à alienação
dos sujeitos ou da opressão feminina unilateral, apontando para limites, devires e agências
possíveis nas transformações da sexualidade e dos espaços urbanos. Assim, a constituição de
negócios e lazeres que se entrelaçavam às materialidades eróticas esteve refletida em estudos

62
Um exemplo que apresenta movimentações desta agenda de pesquisa no contexto nacional esteve na coletânea
Prazeres dissidentes, publicada em 2009 e organizada por María Elvira Díaz-Benítez e Carlos Eduardo Fígari.
Posteriormente, já na introdução da coletânea (Des)Prazer da norma, Díaz-Benitez, Rangel e Fernandes (2018)
destacaram outros caminhos traçados mais recentemente pelas abordagens sobre sexualidade pós-influência dos
estudos queer e foucaultianos, destacando desta vez a importância do pensamento de Saba Mahmood (2005) sobre
agenciar as normas para estas novas inserções intelectuais.
66

sobre dissidências sexuais que se articularam aos circuitos de prostituição, sadomasoquismo e


da indústria pornográfica63, para citar alguns exemplos.
O trabalho de Maria Filomena Gregori (2016) foi pioneiro em apontar para
transformações que atravessaram o âmbito dos mercados de acessórios eróticos nas últimas
décadas. Pude acompanhar o reflexo de muitas mudanças do que a autora cita como a
emergência de um “erotismo politicamente correto” em meu trabalho de campo do mestrado,
através de diversas tentativas de afastamento da imagem de sex shops como lojas escondidas
no fundo de galerias comerciais e dominadas pelo público masculino, passando a ser cada vez
mais chamadas de “boutiques eróticas” e contando com a presença marcante de mulheres em
seus comandos e frequências. Junto aos decréscimos no sentido clandestino anteriormente
associado a estes espaços, segundo a autora, ocorre a regulação de novas etiquetas eróticas entre
seus/suas participantes.
Além destes importantes fatores relacionados às reconfigurações de um cenário de
produção, comercialização e consumo (GREGORI, 2016), chamei a atenção para a emergência
de negociações religiosas em torno de sentidos e projetos associados aos sex shops (MOCHEL,
2014). Nestas disputas travadas majoritariamente por sujeitos católicos e evangélicos do campo
carismático, circulava uma narrativa sobre o mito de origem do mercado erótico que se
empenhava no distanciamento de práticas interpretadas como “pornográficas”, do campo da
prostituição, sadomasoquismos e das minorias sexuais. Ao contrário da vinculação com estes
universos, nas histórias que ouvi de empresárias cristãs e consumidoras evangélicas o primeiro
sex shop teria sido fundado no início da década de 1950 por uma mulher alemã, Beate Uhse-
Rotermund (1919-2001), preocupada em salvar casamentos 64.
A partir da venda de métodos contraceptivos, cremes e livros voltados para orientação
sexual, a pioneira abriu uma “loja de especialidade para a higiene marital”65. Nesta narrativa,
os filmes pornográficos, cabines de peep-show, vibradores/próteses 66 estiveram do outro lado,

63
Ver: Díaz-Benítez (2010), Braz (2010), Barreto (2017), França (2010) e Gregori (2016).
64
A mesma narrativa da pioneira alemã pode ser encontrada em sites de notícias e entretenimento que não se
apresentam como religiosos em busca de explicar sobre a origem dos sex shops, questionando se esta “pioneira da
emancipação feminina” teria sido uma feminista ou só desejava expandir seus negócios (WOJCIK, 2019).
65
Trecho retirado do Guia Gospel para sex shops (AGUIAR et al., 2014). Em formato de guia de negócios, o livro
é resultante de reuniões presenciais entre empresárias(os) do mercado de bens eróticos, pastores e fiéis, realizadas
nas capitais do Rio de Janeiro e de São Paulo e conduzidas pela Associação Brasileira de Empresas do Mercado
Erótico e Sensual (ABEME). Sua elaboração se desenvolve a partir de estratégias pedagógicas amplamente
utilizadas neste mercado: uma associação entre saberes da sexualidade sob a mediação de intérpretes da Palavra
bíblica, todos evangélicos e empresárias(os) cristã(o)s atuantes no mercado de bens eróticos.
66
Os termos são utilizados de maneira intercambiável no guia citado, embora “prótese” tenha sido mais utilizado
entre as evangélicas no trabalho de campo. Ambos referem-se ao objeto em formato de pênis feito de diferentes
materiais e comercializado em grande parte dos sex shops também com o nome dildo.
67

acompanhando uma onda liberatória estadunidense composta por minorias sociais


marginalizadas. A proposta destas narrativas não era simplesmente se afastar, mas oferecer um
resgate do que teria composto os ideais da pioneira e de outros atores que se vinculam às
ciências médicas. A este respeito, a combinação entre saúde, psicologia e sexualidade (RUSSO,
2013), por exemplo, teria fornecido as bases para o uso de vibradores em busca de cura da
histeria nas mulheres.
Em paralelo aos complexos sentidos e deslizes atribuídos ao erótico e religioso presentes
nessas narrativas que encontrei nos discursos de agentes do mercado de artigos eróticos sobre
as experiências evangélicas, as intencionalidades secularizantes conferidas às interpretações
sobre a sexualidade que atravessam imaginários acadêmicos das perguntas sobre minha
pesquisa e discursos nos meios de comunicação de massa não veem composições possíveis para
a sexualidade evangélica. Elas são ou deveriam ser seculares ou religiosas, saudáveis ou
pecaminosas, normativas ou desviantes. De modo distinto das simplificações geradas por estas
dicotomias, escutar e acompanhar mulheres evangélicas nos circuitos de compra e venda de
artigos eróticos ofereceu caminhos em que alianças e contrastes entre essas categorias são
propostos. Além de caminharem próximos à tese da repressão sexual contestada por Foucault
(1988), os estereótipos sobre moralidades sexuais indicados na tese da virada conservadora que
sustenta a guinada evangélica aos sex shops cristalizam mulheres nas margens do acesso aos
prazeres, limitando-as aos perigos do sexo culpável que protagonizou as guerras sexuais dos
feminismos da década de 1980, aqui anteriormente mencionados.
Refletir sobre usos de artigos eróticos entre as mulheres evangélicas abriu espaços para
contestar estas associações mais imediatas e recorrentes à falta de agência que se distanciam
significativamente de suas trajetórias. Nos eventos frequentados exclusivamente por
evangélicas em igrejas pentecostais, atentei para maneiras como falar sobre o casamento
engajava mulheres em torno de seus corpos e estados civis. Nestes trajetos que, a princípio,
envolveram favelas e subúrbios cariocas, mulheres tanto solteiras como casadas consolidavam
modelos de conjugalidade em dinâmicas que atravessam mercados e formação de coletividades
para trocar experiências em que o casamento deveria ser preservado não apenas em prol da
família, mas da afirmação do prazer feminino durante as relações sexuais em casal.
Das redes formadas por revendedoras e lojas e artigos eróticos no contexto dos bairros e
favelas cariocas, fui apresentada a um conjunto de materiais que circulavam como referência
nos aprendizados sobre o mercado erótico. Essas referências compuseram parte significativa
com a qual o público evangélico se identificava nas redes de compra e venda que, na ocasião,
estavam formadas majoritariamente por mulheres e casais heterossexuais. Trago abaixo o
68

exemplo da campanha publicitária de uma boutique erótica de classe alta (Imagem 1), na qual
o matrimônio é mobilizado através de estímulos sensoriais que sugerem esquentar, apimentar e
sair da rotina. Em seguida, a propaganda de uma nova linha de “cosméticos sensuais” voltados
para evangélicos indica outros sentidos da valorização do relacionamento conjugal (Imagem 2).

Imagem 1: Campanha publicitária veiculada por loja física de artigos eróticos

Fonte: Loja A2 Ella (2013).

Imagem 2: Linha de “cosméticos sensuais” lançada por marca de artigos eróticos

Fonte: Loja INTT (2015).


69

O impulsionamento destes valores também se deu em espaços e mídias hegemônicas,


desta vez através do investimento em filmes, traduções de literatura erótica e diversos outros
elementos do contexto norte-americano que se comunicavam com a emergência de debates
sobre o “empoderamento” entre o público feminino67. A associação desta categoria com o
casamento ganhava continuidade nos sentidos sobre como as coisas eróticas eram utilizadas
entre as evangélicas casadas. Segundo estas interlocutoras, a abertura para o uso no casamento
fortalecia a prática do “sexo saudável”. Gregori (2016) nos lembra que a vinculação da
categoria “sexo saudável” no âmbito do mercado erótico brasileiro, em que o erotismo é cada
vez mais vinculado ao cuidado do corpo e fortalecimento do self, enseja uma espécie de
neutralização ou domesticação dos traços e conteúdos violentos, como aqueles envolvidos em
práticas sadomasoquistas68. Chamo a atenção para alguns limites que compõem o sexo saudável
a partir das conjugalidades no que se refere às noções compartilhadas sobre consentimento,
explicitadas a partir da fala de Raquel, 30 anos, casada e frequentadora da Assembleia de Deus:

Entre quatro paredes ele é meu marido69. Então com o meu marido eu posso
agir da forma que eu quiser até a minha limitação. Se for alguma coisa que vai
me machucar, que vai doer, ou que vai machucar ele, ou que ele não goste, ou
que eu me sinta desconfortável, não. Mas se for uma coisa que a gente goste,
que esteja ali dentro da nossa limitação, que de repente não vá machucar nem
nada, a gente faz... normal! (Entrevista realizada presencialmente em maio de
2017. Ênfase da interlocutora.)

Na pesquisa de Facchini e Rossetti (2013), o chamado “sexo saudável” estabelece


hierarquias, pedagogias e limites de práticas sexuais pela via da consensualidade em busca da
desestigmatização de identidades no contexto BDSM70. Os limites que demarcam
consensualidades na narrativa de Raquel, por sua vez, também configuram práticas sexuais em
que a saúde está aliada à desestigmatização, na medida em que o uso de artigos eróticos pode
apontar para perigos que expõem mulheres que assumem sentir prazer no contexto evangélico.
Para tanto, é importante negociar limites em que o sexo deve estar circunscrito dentro de uma
noção de posse proporcionada pela monogamia, o que ela reforça na ênfase para a pronúncia

67
Entre alguns exemplos mais recentes que exerceram impactos no mercado de artigos eróticos, destaco os filmes
brasileiros da série “De pernas pro ar” (Globo Filmes, 2010, 2012 e 2018), a trilogia norte-americana de livros “50
tons de cinza” e os filmes inspirados na série de TV Sex and the city. Ver: Mochel (2020).
68
Vale lembrar que os atravessamentos com o universo literário e audiovisual ofereceram grande repercussão no
mercado de artigos eróticos contemporâneo, sobretudo após as trilogias citadas na nota acima.
69
Nesta tese, o uso do negrito destaca ênfase minha ou da interlocutora na pronúncia destas palavras, como
alteração no tom de voz e introdução de pausas.
70
Sigla para bondage, dominação, submissão e sadomasoquismo.
70

das palavras escolhidas. Nestes “empoderamentos” evangélicos, o espraiamento desta categoria


favorece aberturas a novas experiências através de cuidados que incluem tanto o
estabelecimento do consentimento entre o casal, como demonstrou Raquel, quanto, por outro
lado, controles para a circulação de informações no interior das congregações, cujas
negociações apresento no decorrer deste capítulo.
No exercício de definição do que seria o “sexo saudável” e seus limites, também há um
esforço em contrastá-lo ao sexo reprodutivo. A recorrência de exemplos em que mulheres com
muitos filhos viviam um “relacionamento fechado”, menção de Raquel à ausência ou
insuficiência do diálogo entre o casal, indicava que sexo saudável compõe parte central de uma
política de planejamento familiar nesse contexto. “Diálogo com o parceiro” e “discrição” eram
noções reforçadas pelo contraste entre vida pública, vivida “na igreja”, e vida privada,
representada pelo relacionamento a dois. “A gente pode tudo, mas nem tudo é permitido”
constituía uma frase bíblica71 recorrente e bastante representativa sobre o jogo proporcionado
pela sexualidade na interação entre domínios considerados públicos e domésticos.
Nas negociações sobre o que seria ou não permitido, a profusão de saberes se sustenta
no encontro com o território mais amplo de serviços voltados para a conjugalidade e o cuidado
de si (FOUCAULT, 2007). Nesse sentido, o compartilhamento de uma noção de saúde que
implica em consentimento e planejamento familiar reflete significativas afinidades com os
materiais de campanhas do mercado erótico secular em campanhas religiosas. A prática dos
aconselhamentos, orientações pastorais e encontros de casais formam um conjunto de
dispositivos disciplinares que, segundo Jacqueline Moraes Teixeira (2016), estão voltados para
a participação da mulher no seio familiar e são representativos de um escopo chamado pela
autora de “pedagogias da prosperidade”. Extrapolando o âmbito da Igreja Universal do Reino
de Deus (IURD) em que a autora realizou sua pesquisa, seus sentidos apontam para a penetração
da doutrina da prosperidade na intimidade das relações de gênero e sexualidade.
A presença de estruturas religiosas que promovem cursos e palestras voltadas para a
evangelização de casais atravessa diferentes denominações e vertentes cristãs. Manuais sobre
sexualidade, workshops, aconselhamentos maritais construíram parte do que Amy DeRogatis
(2015, p. 15) observou como um movimento construído por evangélicos nos Estados Unidos,
indicando que “evangélicos não se afastaram dos movimentos de liberação sexual nos anos

71
“‘Tudo me é permitido’, mas nem tudo convém. ‘Tudo é permitido’, mas eu não deixarei que nada domine”
(Coríntios 6, 12).
71

1960, eles simplesmente construíram seus próprios movimentos”72. Em paralelo, no contexto


brasileiro, Nina Rosas (2018) também demonstra como as ofertas de orientações por meio de
cursos, vigílias, cultos temáticos, encontros de casais etc. constituíram-se parte de discussões
circunscritas ao campo da heterossexualidade monogâmica no domínio evangélico
institucional.
Conhecer as diferentes camadas destas relações, apontando para os conflitos que
formam as pedagogias sexuais entre sujeitos religiosos, mostra que não há espaço vazio a ser
preenchido. Em seu lugar, há aquilo que Foucault (2008c; 2011) chamou de regimes de verdade
e que formam a sexualidade como dispositivo que atravessa as experiências de mulheres e
casais evangélicos. Conforme busquei demonstrar até aqui, na medida em que sujeitos
religiosos vêm produzindo saberes sobre a sexualidade em agenciamentos cotidianos que
buscam se distanciar do que chamam de domínio secular, estas circulações têm possibilitado
fluxos entre sex shop e igreja. Para além de apontar para continuidades e rupturas nesses
processos que foram brevemente explicitados, busquei analisar o que coletividades de mulheres
evangélicas têm produzido em disputas que ocorrem através de termos e espaços em que usos
de artigos eróticos são estabelecidos.
Considero os debates críticos sobre secularismo e secularização um bom ponto de
partida para apontar equívocos analíticos gerados por intencionalidades que fundamentam a
sugestão de uma guinada evangélica ao sex shop. Para além de considerar que estes equívocos
reverberam somente questões sobre o espaço público, pautadas na obliteração de assimetrias
religiosas históricas nas quais o catolicismo se conformou como “identidade nacional”
(SANCHIS, 1994), também identifico modos como a formulação de questões sobre o campo
da intimidade evangélica tem sido apartada dos próprios debates críticos à secularização,
gerando separações igualmente secularizantes que opõem esferas pública e privada.
Aponto para esta lacuna em busca de somar esforços neste diálogo para que sexo e
sexualidade possam assumir outras camadas analíticas no debate público contemporâneo sobre
evangélicos. Ao contrário do emprego desta palavra no contexto das perguntas jocosas
direcionadas à minha pesquisa em seminários e congressos que apresentei no início desta seção,
chamo a atenção ao contraste gerado por categorias que surgem a partir de perguntas menos
colocadas em nossos debates públicos. Em vez de partir de problemáticas relativas ao

72
No original, em inglês: “Contrary to popular stereotypes that characterize conservative Christians as sexually
repressed, evangelicals did not turn away from the sexual liberation movement begun in the 1960s, they simply
made it their own, publishing sex manuals, running sex workshops, and holding counseling sessions to instruct
husbands and wives on the best techniques for a sexually satisfied marriage”.
72

“conservadorismo”, as perguntas advindas de uma etnografia do cotidiano das experiências


ordinárias destes sujeitos indicaram modos como normativas sobre casamento, prazer e
autoestima estão sendo ampliadas a partir do consumo de artigos eróticos. Questões que pautam
a “virada conservadora”, frequentemente encontradas análises sobre gênero, sexualidade e
outros marcadores sociais da diferença nas movimentações eleitorais do campo da política
partidária, não dialogam com agenciamentos indicados em coletivizações que mulheres
evangélicas vem movimentando e mercados eróticos e igrejas pentecostais.
Há muito ainda a ser compreendido sobre o que os sujeitos fizeram e fazem do empenho
das tradições cristãs em regular a sexualidade do casal heterossexual, figura que também esteve
presente em formulações das ciências médicas e psicológicas 73 e segue como articuladora
significativa de estratégias encontradas nas redes do erotismo evangélico que mapeei para esta
pesquisa. As narrativas que reuni aqui demonstram que os caminhos de produção das
pedagogias sexuais cotidianas permitem emergir outras categorias, classificações e
experiências, além de visibilizar múltiplos espaços entre os quais mulheres evangélicas têm
formado coletividades e fortalecido intimidades conjugais.

1.2 Classificações, riscos e transtornos do erotismo gospel

Uma vez que há diferentes categorias e regimes de verdade em disputa neste cenário,
conforme indiquei a respeito dos contrastes provocados sobre a origem dos sex shops, observei
múltiplos agenciamentos feitos em narrativas evangélicas que circulam no mercado erótico. A
categoria “empresária cristã” 74 aglutinou sociabilidades femininas em um enfoque fortemente
direcionado ao consumo entre casais heterossexuais, produzindo classificações que opunham
feminismos, minorias e pornografia do lado contrário ao das práticas cristãs voltadas ao
casamento. Entre diferentes personagens cristãos localizados no âmbito do mercado, dentre eles
carismáticos, protestantes históricos renovados e pentecostais, o uso da categoria se assemelha
às circulações do termo gospel, que também se mostrou rentável para a formação destes
engajamentos em torno das coisas eróticas.

73
A este respeito, a análise de Jane Russo (2013) aponta para a influência de diferentes estratégias elaboradas
pelos saberes psi que tiveram seu marco nos discursos do casal norte-americano William Masters e Virginia
Johnson.
74
Ronaldo de Almeida (2017) lembra que a identificação genérica de “cristão” tem sido privilegiada por muitos
protestantes históricos e pentecostais para se afastarem dos estigmas associados ao termo “evangélico” nos últimos
anos. Embora eu não tenha pretendido estender a investigação sobre o uso da categoria entre os carismáticos, trago
alguns elementos que permitem esta aproximação através do mercado gospel de artigos eróticos.
73

A confluência destas alianças com o compromisso evangelizador pelo bem-estar do


casal presente no sex shop atravessou diálogos que analisei entre revendedoras evangélicas,
lideranças pentecostais e outros personagens importantes para a conformação do que ficou
conhecido por mercado gospel no âmbito do comércio de artigos eróticos (MOCHEL, 2017).
Na ocasião de uma destas incursões que marcaram a passagem entre os campos do mestrado ao
doutorado, conheci Rosa, 35 anos e “desviada” de uma igreja pentecostal, que atuava como
consultora neste mercado. Junto a outras consultoras de artigos eróticos, percorri com ela os
trajetos que permitiram identificar como as negociações em torno de fortalecer o casamento se
davam nos âmbitos das trocas de acessórios e cosméticos voltados para o erotismo.
Rosa tirava seu sustento da circulação por um conjunto de sociabilidades femininas que
reunia diferentes espaços como igrejas, lares das mulheres evangélicas e interações em mídias
digitais. Assim como outras consultoras, ela também me contou seu testemunho sobre as
transformações causadas pelos usos de artigos eróticos: “Este produto também vai mudar sua
vida, porque mudou a minha”. Ao longo do trabalho de campo, ouvi esta frase de interlocutoras
que também vendiam produtos eróticos A Sós75, quase sempre junto a outros catálogos como
os de cosméticos Hinode, Natura e Avon76.
Além da busca por linguagens que se adaptassem a cada contexto sem abrir mão de
palavras bíblicas que expressassem sentidos cristãos sobre a valorização do casamento, as
consultoras e empresárias cristãs buscavam complementaridades entre suas apresentações
pessoais e profissionais. Ser casada seria um diferencial para fazer testemunhos circularem e
adquirirem mais vendas. No que diz respeito às continuidades entre vender e ser consumidora
dos produtos que vendem, destaco as similaridades com o universo das revendedoras de
cosméticos apresentado na pesquisa de Ludmila Costhek Abílio (2014), cuja análise identificou
como os discursos veiculados neste mercado orienta que estas mulheres vivenciem, a um só
tempo, a experiência de serem vendedoras e consumidoras daquilo que vendem.
A terminologia da “missão” associada a esta modalidade de trabalho articulava sentidos
religiosos a outras categorias êmicas que as consultoras utilizavam para expandir suas redes.
Mais do que vendedoras destes produtos, as empresárias cristãs eram “consultoras de casais”
que enxergavam no mercado gospel possibilidades de ascensão social através de constantes

75
A Sós é uma distribuidora nacional com sede em Minas Gerais, que comercializa produtos voltados ao prazer
sexual. Entre estes, cosméticos, lingeries, acessórios, vibradores, estimuladores, próteses, objetos voltados para as
práticas de fetiche e sadomasoquismo, entre outros (A SÓS, 2021).
76
Hinode, Natura e Avon são grupos brasileiros com sede no estado de São Paulo. O trabalho com consultores e
franquias reúne o comércio de “perfumaria, bem-estar, higiene pessoal, maquiagem e cosméticos” (GRUPO
HINODE, 2021).
74

delimitações de fronteiras em seus trajetos. Rosa estabelecia a categoria “missão” como central
para continuar investindo nesta modalidade de vendas, mesmo com todos os problemas que
enfrentou em sua igreja neste processo. O caráter missionário é definido por ela como o
contrário da “ambição pelo lucro”, alcançando motivos que a vinculam subjetivamente com
outras mulheres:

Eu vou pro lado mais humano, sabe? Eu não consigo... eu penso na mulher,
eu penso no bem-estar... eu não tô vendendo algo pra ter sucesso, eu tô
querendo mudar a vida daquela pessoa, eu tô querendo mostrar um caminho
diferente, uma descoberta (Entrevista realizada presencialmente em novembro
de 2017).

De modo semelhante à escolha de outras agentes articuladoras de vendas destinadas ao


erotismo pelo termo gospel, a fala de Rosa chama a atenção para como o uso destas e outras
categorias citadas até aqui atua como mobilizador de alianças entre diferentes denominações,
coincidindo com movimentações próprias à delimitação de um mercado evangélico. Conforme
descreveu Emerson Giumbelli (2007), estes são mercados em que as cadeias de relações de
confiança são baseadas na “identidade” e na “cultura evangélica”, o que contribui para elaborar
estratégias de aproximação e permite que este mercado possa avançar entre diferentes públicos.
O autor afirma que a localização de lojas evangélicas em galerias e shoppings, ambientes não
associados a espaços religiosos como igrejas, por exemplo, é um fator diferencial para criar e
difundir o pretendido estilo gospel que compõe espaços comerciais que se autointitulam
evangélicos.
Outras convergências que envolvem a categoria gospel também foram notadas no
mercado de música gospel brasileiro, possibilitando a emergência de modelos de consumo
voltados ao público cristão mais amplo. Bandeira e Netto (2017, p. 270) apontam que o gospel
tanto dialoga com racionalidades e transformações no mercado de música como também se
diferencia e “cria seus próprios circuitos”. Questionando afirmações simplistas a respeito do
aumento do consumo de música gospel ser equivalente ao aumento do número de evangélicos
no país, os autores sublinham a capacidade de hifenização que o gênero gospel produziu na
indústria musical. Assim, uma vasta gama de produtos musicais populares como sertanejo-
gospel, samba-gospel, funk-gospel, entre outros, foram agregados a um circuito político-
midiático de gravadoras ligadas a ministérios de música de grandes igrejas e conglomerados de
rádio e TV.
Tal estratégia, nomeada como “convergência entre mídias”, garantiu não somente a
distribuição da música gospel a custos menores como alocou o gênero em espaços de grande
75

circulação midiática, oferecendo uma tendência em que o público seja “exposto nas mais
diversas mídias aos mesmos produtos” (BANDEIRA; NETTO, 2017, p. 279). Desse modo,
falamos de uma frente de comercialização em que um tipo de consumo leva a outro, o que
possibilita a criação de pertencimentos em que se rejeita o chamado “mundano” ao mesmo
tempo que são aperfeiçoadas negociações e novas sensibilidades para disputar com e através do
“mundo”.
Além da noção de batalha espiritual que percorre os usos da categoria “missão” no
contexto do mercado erótico, em que notei na centralidade na figura do casal usos que buscavam
combater diferentes males relativos a gênero e sexualidade que estariam presentes na
sociedade77, exemplos como este apontam para concepções sobre conquistas e expansões
territoriais do Evangelho em diferentes frentes da sociedade. Nesse sentido, muito se tem
ressaltado sobre a influência de tendências doutrinárias transnacionais, como a Teologia do
Domínio. Sua ação através das mídias, em mercados e políticas públicas tem sido investigada
por diferentes autores do campo de estudos das ciências sociais da religião, sobretudo aqueles
que se dedicam ao chamado neopentecostalismo. Segundo David Smilde (2012, p. 20), a
atuação desta teologia na América Latina tem sido fundamentada na “ideia de que Deus
retornará para estabelecer seu reino aqui na Terra, sendo a tarefa dos cristãos preparar o
caminho se afirmando em posições de poder”.
A inserção que acompanhei do erotismo gospel dialoga com este espaço de construção
de saberes e cuidados hifenizados propostos na batalha entre Deus e o Diabo e a busca pela
restauração da família. Na medida em que a qualidade do sexo no casamento opera como
principal vetor que atravessa diferentes mercados e amplifica formatos de venda de modelos de
sexualidade ao público cristão, a categoria “missão” se mostra particularmente importante para
refletir sobre a articulação de afetos e coletividades de gênero neste âmbito comercial. A ideia
de “ter como missão ajudar e servir” foi amplamente compartilhada por muitas interlocutoras
que ouvi ao longo do trabalho de campo para designar suas ocupações profissionais. Além de
carregar sentidos religiosos que articulam modos de governo pastoral, conforme indica Carly
Machado (2013), o uso desta categoria pelas consultoras evangélicas caracteriza mercados
informais em que os sentidos de gênero demonstram afinidades com a administração estatal

77
Em trabalhos anteriores, chamei a atenção para usos do casamento e das moralidades de “empresários cristãos”
no âmbito deste mercado e sua preferencial contraposição às práticas homoeróticas (MOCHEL, 2017, 2018).
Outros exemplos que percorrem discursos proferidos em congregações evangélicas e vinculam sentidos associados
à cura podem ser vistos em Natividade (2006). Destaco também a mobilização de pânicos morais que, nesse
contexto, buscam integrações com a chamada “ideologia de gênero”, tendo sido trabalhados por autores como
Corrêa (2018), Junqueira (2018), M. D. Machado (2018) e Miskolci e Campana (2017).
76

destas mulheres nas margens do Estado (DAS; POOLE, 2004). Voltarei posteriormente a este
aspecto nos trajetos das consultoras pela cidade ao longo das próximas seções.
Ao explorar trajetos em torno destas categorias nos mercados e vislumbrar suas
formações políticas, aponto para como moralidades sexuais não devem ser associadas a um
senso comum generalista que reduza a complexidade de ser empresária cristã à mera busca por
higienizar circuitos de consumo erótico entre evangélicas. Análises mais apressadas sobre o
tom pacificador de limpeza neste universo desconsideram riscos que as mulheres correm frente
às diversas negociações em torno das conjugalidades femininas. Outras características presentes
na trajetória de Rosa demonstram como os esforços de limpar a sexualidade, utilizando como
recurso os artigos eróticos a partir de sua experiência situada no estado civil de mulher solteira
e mãe de um filho pequeno, trouxeram importantes dilemas para o âmbito congregacional de
sua vida religiosa.
Quando a conheci, estávamos no mesmo evento que se denominava como parte do
mercado gospel, voltado para desenvolver estratégias de venda para o público cristão, realizado
no Complexo do Alemão. Rosa havia viajado de São Paulo, sua cidade natal, para se juntar a
outras(os) empresárias(os) cristã(o)s que trabalhavam ou desejavam trabalhar com a venda de
artigos eróticos em sex shops ou de modo autônomo nas igrejas e seus outros circuitos de
sociabilidade. Entre casais de pastores e lojistas, ela fazia parte do grupo autônomo de
consultoras de artigos eróticos e notei que sua eloquência se destacou em meio aos demais.
Após quase quatro anos dessa ocasião, entrei em contato para marcar uma entrevista e ela
prontamente respondeu que me receberia, apesar de naquele momento estar “afastada desse
meio”, referindo-se tanto ao mercado erótico como às sociabilidades evangélicas.
Logo em nossa conversa inicial por mensagens de texto no WhatsApp, Rosa contou que
havia sido acusada de seduzir um pastor por “tentar trabalhar com os casais na igreja”. Ela havia
frequentado uma igreja Batista Renovada, mas não se denominava mais evangélica. O
afastamento seria decorrente de um acúmulo do que chamou de “preconceitos” por parte de
lideranças na igreja, que começaram quando ela se dispôs a fazer um “curso de educação
sexual”, uma pós-graduação que a permitiria realizar consultorias sobre sexualidade. Antes
dessa incursão, Rosa havia trabalhado por muitos anos com o que chamou de “reuniões de
produto erótico” na casa de clientes. Comparando às reuniões da marca norte-americana
77

Tupperware78, ela conta que levava os produtos que tinha, apresentava cada um e explicava
para que servia.
Ao se converter como evangélica, ela afirma ter enxergado a possibilidade de “ajudar
casais a compreender a sexualidade”, o que logo se tornou um problema para as relações
estabelecidas com as lideranças. Rosa conta que enfrentou problemas relacionados, de um lado,
à exposição que se colocava por “aparecer muito dentro da igreja”; de outro, por transitar no
lugar incômodo de mulher solteira – em suas palavras, “uma mulher solteira falando de sexo”.
Acusada pela esposa do pastor de seduzir seu marido, ela foi proibida de conversar com
ele e outros pastores da igreja “a respeito de assunto de sexualidade ou de qualquer outra coisa”,
pois deveria “saber seu lugar de mulher solteira”. Mesmo tendo se sentido humilhada com a
falsa acusação, ainda permaneceu por um período nesta igreja, mas foi “boicotada” por outro
pastor que, em suas palavras, havia contado mentiras sobre a procedência dos produtos eróticos
que utilizava para montar kits para casais em encontros promovidos pela igreja. Dessa vez, teria
sido alvo de uma competição que a impedia de lucrar com os produtos vendidos. Após essas
frustrações, Rosa conta que foi ficando “desgostosa” e desistindo não só de fazer trabalhos
dentro da igreja, mas também de frequentar cultos e eventos evangélicos.
Rosa traz uma experiência que aponta para os empreendimentos de risco que podem
atravessar os caminhos entre sex shop e igreja para as mulheres evangélicas solteiras. Dentre os
inúmeros elementos que podem ser destacados em sua trajetória, a condição de ter um filho e
não ser vista acompanhada por um homem é destacada como aquela que se constitui alvo de
acusações que partem de outros homens e de suas esposas. Assim, as exigências veladas de
viver uma relação conjugal nesse contexto provocaram efeitos de exclusão em diferentes níveis
relacionais. Rosa agenciou sua relação com o corpo pastoral não somente abandonando aquela
igreja, mas renunciando por completo ao pertencimento evangélico após essa situação. No
entanto, ela afirma ter continuado a manter relações de amizade e chegou a administrar um
grupo de WhatsApp com parte do discipulado 79 de um dos pastores da igreja, oferecendo
aconselhamentos conjugais e indicações de artigos eróticos para mulheres evangélicas.
Embora os constrangimentos aos quais foi submetida nesta dinâmica tivessem frustrado
suas expectativas, parte de seu trabalho de missão continuou a ser cumprida, a partir de então

78
Nos anos 1950, Brownie Wise, então vice-presidente da marca, sugeriu a “demonstração familiar” como método
que popularizou a proposta de venda em domicílio. O foco nas mulheres como principais difusoras das reuniões
entre familiares e vizinhos está presente nas narrativas em textos e imagens de divulgação da marca
(TUPPERWARE, 2021a, 2021b).
79
Termo pelo qual são chamados grupos que realizam reuniões para a leitura e aprendizado da Palavra bíblica,
organizados através da liderança de um “discípulo” da congregação.
78

fora do escopo institucional. Como afirmou em nossa entrevista, “a rejeição não é de quem tá
na igreja, ela é de quem comanda a igreja”. Sua experiência enquanto mulher evangélica solteira
condiz com um modo de funcionamento do pentecostalismo que vem sendo apontado por
pesquisas dedicadas a compreender as mudanças nos modelos de família após a conversão.
Segundo Maria das Dores Machado (1996), a “afiliação conjunta”, ou seja, quando há adesão
do outro membro do casal ao mesmo grupo religioso, se tornou característica fundamental da
conversão pentecostal. Ao contrário da adesão solitária, a conversão do casal acarretaria
mudanças nas relações de gênero, tornando-as “mais igualitárias”.
Se o casamento opera como vetor interdenominacional para as disputas travadas através
da categoria “cristão” no mercado de artigos eróticos, ele também impõe limitações
significativas para as experiências vividas entre sexualidade, gênero e religião. No entanto, a
reinvenção constante das moralidades sexuais evangélicas escapa à imaginação secularista que
opõe erótico e sagrado, agenciando modos de viver a sexualidade que buscam combinar desejos
às normas e princípios bíblicos. Conforme argumentei, estes prazeres transitam pelo
alargamento de seus trabalhos de missão e, ao articularem interseccionalidades de gênero, raça,
sexualidade e geração dentro e fora de espaços religiosos institucionais, intentam formar
alianças com algumas mulheres e constranger outras.
É a articulação entre estes diferentes marcadores que não nos permite generalizar ou
afirmar de modo determinista que os constrangimentos envolvidos nas trocas comerciais de
artigos eróticos no espaço das igrejas evangélicas, neste caso pentecostais, são necessariamente
vivenciados de modo mais rígido por mulheres solteiras. Quando conheci Marina, 30 anos,
também mãe e casada, ela me contou timidamente que era conhecida na igreja como a “irmã
que vende sex shop”. Nesse momento, uma fiel que estava ao nosso lado sorriu e disse: “ela é
a moça da bolinha!”80. A objetividade com que respondia às minhas perguntas sobre suas
dinâmicas de venda no espaço da igreja dava a entender que não havia constrangimentos nem
da parte de quem comprava nem de sua parte. Ela trazia os objetos misturados a outros itens
como roupas, acessórios e cosméticos que comprava na função de “sacoleira”, modo como
popularmente são chamados(as) comerciantes que viajam para outras cidades e/ou estados com

80
A referência aqui é à “bolinha explosiva”, cujo nome sugere que o conteúdo interno, geralmente composto por
gel lubrificante, seja liberado no momento de sua “explosão” na fricção dos órgãos genitais. Geralmente o produto
é vendido no formato de cápsulas em formato oval, de tamanho similar ao de uma bolinha de gude. Também
apresenta consistência gelatinosa e pode ser transparente ou em cor sólida, a depender da marca de fabricação e
do material em seu interior.
79

o objetivo de comprar produtos que possam obter algum lucro com a revenda: “não tem nada
de especial, eu puxo e mostro”, colocou categoricamente.
Além de bastante tímida, Marina quase sempre carregava um semblante sério e sisudo.
A estes elementos de sua história pessoal, combinava-se tanto o fato de ser casada com um
membro da igreja como o de residir há muitos anos no mesmo bairro em que a igreja estava
localizada, em uma favela da Zona Norte carioca. Ao contrário de Rosa, que frequenta uma
igreja de grande porte localizada em um bairro diferente de sua casa, na periferia paulistana,
Marina cresceu na mesma vizinhança de sua igreja. O cuidado na escolha pelos objetos a serem
vendidos também busca conferir a respeitabilidade almejada por ela, que me diz que não vendia
“próteses”, como são chamados nesse contexto objetos em formato fálico, mas somente óleos,
calcinhas, velas e bolinhas explosivas.
Na separação por ministérios temáticos (mulheres, jovens, infantil, entre outros) e
ocupação de cargos na igreja, as diferenças relacionadas ao estado civil eram determinantes,
como me contou Fernanda, 37 anos, em uma de nossas entrevistas: “Tipo, eu sou solteira, vou
ficar andando com mulher casada? Não dá, né? Porque são pensamentos diferentes, objetivos
diferentes!”81. Fernanda conta que ocupava há dois anos o cargo de secretária em sua igreja,
uma Assembleia de Deus na Zona Norte carioca. Durante este período, explica que “acabou
caindo”, “desviando” dos planos de Deus quando conheceu seu atual companheiro. O “desvio”
se deu por ter se envolvido afetivamente com o namorado que, na época, estava “afastado” da
igreja. O episódio que envolveu uma gravidez sem que antes o casal tivesse oficializado o
matrimônio na igreja fez com que Fernanda deixasse o cargo de secretária, aceitando ser
afastada após um pedido da pastora responsável por orientá-la na função. Hoje amasiada com
o mesmo namorado que, por sua vez, frequenta ocasionalmente a igreja com ela, Fernanda
voltou a ser membra, sem mais se vincular a nenhum cargo.
Se o exemplo de Marina demonstra que o fato de ser casada não a eximia de buscar
modos de se proteger de constrangimentos aos quais também estava submetida em outras
medidas, o convite recebido por Fernanda para abandonar o cargo após ter “desviado” dos
caminhos divinos e tido uma gravidez não planejada visibiliza regulações institucionais rígidas
para mulheres que se propõem a ocupar cargos institucionais. Por outro lado, a experiência de
Rosa também indica que disputas pelas hierarquias compartilhadas nos espaços dos templos
potencializavam os constrangimentos para mulheres chamadas de “sozinhas”, o que podia
incluir não somente as solteiras mas também mulheres divorciadas e viúvas.

81
Entrevista realizada em 14/09/2022.
80

Como ouvi em diversas ocasiões durante cultos pentecostais, esta situação é


frequentemente nomeada como sinônimo de abandono e humilhação, que podem estar somados
também a enredamentos de ordem sobrenatural. Dentre eles, uma orientação se colocava de
modo recorrente: estar sem a companhia de um homem é fruto de “maldição hereditária” que
faz vítimas, causando uma vida sentimental destruída por demônios que perseguem e
perseguirão aquela família há gerações.
O caso de Joice, mulher negra como Marina e Fernanda, indica algumas pistas para
compreender como se impõem as regulações sociais sobre a sexualidade de uma mulher
evangélica solteira para além da institucionalidade. Assim como muitas que conheci ao longo
do trabalho de campo, definia-se como “evangélica não praticante”, o que para ela significava
alguém que frequenta a igreja como “visitante”, mas não foi “batizada”. Antes de nossa
entrevista, convivemos juntas em espaços de lazer, e em diversas conversas informais ouvi
comentários elogiosos de pessoas próximas, que se referiam a ela como uma “guerreira” por
“estar se preservando até hoje para o casamento”.
Suas reações ao que era emitido como elogio não eram facilmente compreensíveis, o
que fez com que eu pedisse para marcarmos uma entrevista em que eu pudesse ouvi-la sobre
sua trajetória religiosa e suas escolhas a respeito da sexualidade. Joice tinha 34 anos na ocasião,
quando me contou que era “virgem por opção”, pois gostaria de “se entregar” para uma pessoa
com quem viesse a se casar. Ao contrário dos comentários elogiosos que recebe entre suas
amigas evangélicas, todas casadas, afirma que é muito comum que as pessoas não a respeitem
quando se abre sobre ainda não ter achado “o momento e a pessoa certa”. Por este motivo, ela
conta que não costuma abrir o assunto com muita gente, porque, na idade em que está, “virgem
é algo assim, muito raro”.
Joice não só não recebeu a valorização que imaginava obter dos homens como relata
com muito pesar que costuma ouvir “piadinhas” de seus pretendentes com frequência: “você
vai ficar pra titia”, “não gosto de freiras”, “se não perder logo, a terra vai comer”. Para eles, sua
virgindade soava como algo “assustador”. Além do vetor geracional, noto como as inseguranças
em sua fala também contam sobre a intersecção racial que expande preterimentos afetivos entre
mulheres negras. Elas retornam e se expressam de diversas formas: Joice conta se sentir
“retraída para conhecer pessoas novas”, quando imagina ter que contar ser virgem, e não “tão
valorizada quanto as mulheres que já estão na ativa”. A virgindade que deveria ser
experimentada como sinônimo de virtude tornou-se um fardo. Assim, Joice avalia ter
consciência de suas responsabilidades e do peso da criação evangélica na escolha por
81

permanecer virgem, mas afirma estar “mais amadurecida” para saber quando deverá “se
entregar”:

A gente tem que se sentir é preparada! Independente se vai ser antes do


casamento, se vai ser depois. O importante é a gente encontrar uma pessoa que
venha a respeitar o seu momento pra você se entregar a ela. Então,
independente assim, se eu vou perder antes de me casar ou não, só Deus sabe,
mas eu peço muito a Deus que ele coloque na minha vida um esposo
maravilhoso e que ele venha a respeitar o meu momento para que eu venha a
me entregar pra ele (Entrevista realizada por mensagem de voz no WhatsApp
em setembro de 2020).

Ao encerrar apontando para a conciliação de seus desejos com os desígnios de Deus, a


narrativa de Joice decepciona tanto quem espera por um relato de superação e vitória, tão
frequentes nos testemunhos evangélicos, quanto quem anseia por um despertar em que ela é
“salva” e finalmente se liberta dos caminhos patriarcais que a oprimem 82. Além de não alcançar
o modelo de família ideal e parecer cada vez mais longe disso, ela aponta para outros elementos
através dos quais parece encontrar uma vida de satisfação que, embora não tenha a plenitude
que só pode ser desenvolvida no matrimônio, enuncia seus esforços para aplainar suas angústias
e buscar por respeito para continuar esperando.
Diferente de Rosa, para quem ser uma mulher solteira é um empreendimento de risco
contrabalanceado pela missão de ajudar outras mulheres, as motivações de Joice envolvem
expectativas de ordem espiritual em que a felicidade amorosa está no “tempo da espera”. Na
disputa pelo tempo, Joice escolhe aquele que pertence a Deus, que não a machuca como o tempo
e as palavras proferidas pelas pressões “do mundo”. A pesquisa de Luíza Hortelan (2018, p.
251) indicou que discursos similares sobre “a recompensa para quem ‘escolhe’ e suporta a
‘espera’” mobilizam narrativas sobre o amor sustentadas no “Eu Escolhi Esperar”, movimento
evangélico interdenominacional em defesa da abstinência sexual antes do casamento.
Para a autora, ainda que o que se busque seja a reprodução heteronormativa dos papéis
de gênero e conjugalidade, ao dialogar com noções de campos não religiosos como a literatura
de autoajuda secular, as “pedagogias afetivas” produzidas por estes movimentos são
experimentadas através de intensos conflitos entre aqueles(as) que negociam com o “padrão
cristão” (HORTELAN, 2018). O caso de Joice mostra que há conflitos nestas disputas pelas
imaginações religiosas em torno da figura do casal. Neste campo de escolhas, esperas e
(im)possibilidades, o desejo destas mulheres evangélicas solteiras, sobretudo as mulheres

82
Ver: Abu-Lughod (2012).
82

negras, é alvo de escrutínio por habitarem sexualidades que devem ser reguladas por ora serem
interpretadas como excesso, ora como ausência. Em vias paralelas, elas buscam caminhos que
confrontam imaginações secularizantes ao rejeitarem a posição em que são constantemente
colocadas por todos os lados. Elas escolhem por continuar falando de sexo e construir roteiros
conjugais que se somam às disputas feitas por dentro das coletividades e imaginações cristãs.

1.3 Revendedoras e coaches no empreendedorismo pentecostal

Por que que a gente casa? Porque a gente sabe que o sexo fora do casamento
não é uma coisa legal. Então a pessoa casa pra manter aquele sexo tranquilo,
com a mente fresca... O sexo anterior, o do pecado, não pode ser melhor que
o de agora. Agora sim que tem que ser melhor! Agora sim que tem que valer
tudo, até porque, lá fora, o que eu não faço o meu marido pode achar em outra.
E na presença de Deus, não! Eu tenho que completar ele em todas as suas
necessidades. Tudo que ele procura, eu tenho que ter, entendeu? E teve coisas
que, na verdade, assim, eu nem gostava tanto. Eu tinha medo, igual à bolinha,
eu tinha pavor! (Missionária Márcia, entrevista realizada presencialmente em
maio de 2017. Ênfase dela.)

No circuito percorrido através das conjugalidades e erotismos evangélicos, também


conheci Márcia. Para a missionária, estar casada representa a vinculação a um “sexo tranquilo”
em que as concessões para manter o casamento incluem negociações entre sagrado e profano
contidas nos usos de artigos eróticos. Em seu discurso, o contraste entre sexo “na presença de
Deus” e “sexo do pecado” opera como divisão que estabelece o acesso para que falar de sexo
enquanto evangélica não seja alvo de constrangimentos.
Desde que aconteça exclusivamente entre mulheres, falar de sexo, assim como utilizar
alguns artigos eróticos no âmbito conjugal, “não agride a santidade e a comunhão, faz bem”. O
arranjo relacional no qual Márcia me situava como pesquisadora foi semelhante a muitos outros
nos quais estive implicada. Além do fato de ser mulher, ao longo do trabalho de campo me
apresentar como pesquisadora ou através da dupla formação de antropóloga e psicóloga
constituiu identidades que possibilitaram que as interlocutoras evangélicas mencionassem estas
titulações como propícias para uma conversa em que suas narrativas seriam levadas a sério.
Elas, em sua maioria, não fizeram objeções para falar sobre sexualidade comigo, embora eu
tenha feito adaptações após notar algumas dificuldades iniciais; uma delas foi explicitar antes
das entrevistas que a conversa seria a partir de suas experiências no âmbito do casamento.
O caso de Márcia, entrevistada em grupo com duas outras amigas evangélicas que
conheci no mesmo dia, chamou a atenção para outros elementos que se associavam a estas
experiências religiosas que transitavam entre sex shop e igreja. Cheguei até Márcia e suas
83

amigas através de uma consultora “A Sós”, após assistir a uma palestra da marca sobre
estratégias de venda voltadas aos evangélicos em uma feira erótica realizada no Rio de Janeiro.
Naquela ocasião, diversas revendedoras estavam presentes. Após o término da palestra,
ministrada por um casal de evangélicos, me dirigi até uma senhora que assistia atentamente à
comunicação. Quando me apresentei como pesquisadora à procura de vendedoras e clientes
evangélicas, ela me disse não ser evangélica, mas ofereceu o contato de uma vizinha que
costumava comprar seus produtos e congregava em uma igreja do mesmo bairro em que
moravam.
A vizinha era Raquel, amiga de Márcia que conheci e entrevistei conjuntamente no
mesmo dia. Nosso encontro foi marcado em um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro e, na
ocasião, elas escolheram marcar a entrevista em uma “unidade”. Imaginando tratar-se de uma
igreja, fui surpreendida ao adentrar o local e descobrir que este termo não faria qualquer
referência religiosa, e sim se tratava de uma sala comercial alugada para um treinamento de
consultoras de uma importante marca de cosméticos associada à revenda direta. A “unidade”
referia-se às reuniões periódicas marcadas por representantes da marca para oferecer palestras
e treinamentos às consultoras da região atendida. A empresa seguia modelo similar ao de outras
marcas que operam com revendas diretas, como a Natura, descrita pela socióloga Ludmila
Costhek Abílio (2014, p. 22) em sua pesquisa sobre o trabalho das revendedoras de cosméticos:
“para cada setor, há uma promotora de vendas responsável, e é ela quem faz o elo entre a
empresa e as consultoras”.
Ao caminhar com as consultoras até a sala, fomos recebidas por uma representante da
marca que é sobrinha de Raquel, cuidadosamente maquiada e uniformizada com trajes
executivos. O público que já aguardava estava composto em sua maior parte por mulheres, com
a presença de um homem que carregava um bebê de colo, acompanhado de sua companheira.
Durante a palestra conduzida pela representante, assistimos a uma projeção visual que
preencheu a parede à nossa frente com tabelas em cor-de-rosa. Os slides apresentavam
dinâmicas para a progressão de cargos da empresa, associadas a diversos benefícios como
viagens, carros e joias para aquelas que alcançassem o maior número de consultoras “iniciadas
ativas”. A garantia de rápido retorno financeiro era reforçada para aquelas cujo esforço pudesse
ser reconhecido pela marca. Os exemplos de pessoas próximas que obtiveram sucesso nesta
carreira eram lembrados também pela plateia, citando vizinhas e familiares que haviam se
tornado diretoras entre dois e três anos, então considerado um curto espaço de tempo.
Os elementos estéticos compartilhados entre as consultoras estavam presentes em outras
mulheres que circulavam pelo prédio em que estávamos. Uniformizadas, sua apresentação
84

pessoal cuidadosa lembrava o traje de aeromoças. Em um dos antebraços, elas carregavam a


mesma bolsa com a logomarca da empresa, o que compunha um elemento central no conjunto
de referências que formavam o pertencimento àquele grupo. As características realçadas por
traços que performatizavam feminilidades reverberavam o conteúdo da palestra nos diálogos
fora da sala, trazendo exemplos de como suas vidas teriam sido impactadas após o investimento
pessoal e financeiro na marca.
Tanto Raquel como suas amigas eram consultoras de beleza, um tipo de comércio que
habita os circuitos religiosos das coisas eróticas de maneira significativa. De porta em porta ou
através da venda via WhatsApp, as revendedoras buscavam clientes através de catálogos
variados, em geral voltados para cuidados femininos com a beleza e bem-estar. O trabalho de
revenda de itens como cosméticos, bijuterias, roupas, artigos eróticos, entre outros, inclui
circuitos de sociabilidade em que amigas, vizinhas, colegas de trabalho e irmãs das igrejas em
que congregavam fazem parte.
No estudo de Abílio, também são explorados aspectos econômicos que atravessam esta
modalidade de venda no Brasil. A “naturalização do espírito empreendedor” é combinado tanto
ao “apelo ao consumo” como à “ausência de formas-trabalho” (ABÍLIO, 2014, p. 23), aspectos
que explicam como este tipo de venda não se concretiza numa equação de soma às relações
pessoais, mas só se tornam possíveis através delas. Assim como outras pesquisas sobre o campo
evangélico têm mostrado, considero que uma compreensão mais aprofundada dos discursos
sobre o empreendedorismo é fundamental para identificar como gênero, raça e classe, em suas
dimensões religiosas nos territórios, fazem as trajetórias que atravessam as experiências aqui
reunidas como evangélicas nas periferias urbanas.
As interlocuções possibilitadas na etnografia permitem contribuir para pensar em dois
planos, os quais apresento divididos entre esta e a próxima seção. De um lado, através das
continuidades de discursos sobre o “empreendedorismo” com a escolha de técnicas que
aprimoram objetivos missionários para fortalecer os casamentos, espaço em que o coaching
ganhou centralidade; do outro, nas maneiras como o empreendedorismo se articula aos
marcadores de gênero e raça, determinando circulações pela cidade e agenciamentos situados
na precarização do trabalho dentro e fora das igrejas.
Se é nas regiões mais pobres das cidades que estas mulheres e as igrejas nas quais
congregam estão localizadas, os cruzamentos entre religiosidades e a revenda de cosméticos
com as sociabilidades femininas indicam que, assim como nas igrejas, o mercado de vendas
85

diretas também conta com um público majoritariamente feminino 83. O termo “cosmético”,
amplamente utilizado no mercado de artigos eróticos para designar géis, cremes e outros
produtos de conteúdo fluido e gelatinoso, frequentemente designa nesse contexto a “cosmética
sensual”. Ao mesmo tempo, a feminização dos espaços conhecidos como boutiques eróticas é
um dado que Gregori (2016) relacionou com as movimentações destes mercados em torno da
positivação da sexualidade feminina, o que contou tanto com o aumento deste público
consumidor quanto com mulheres ocupando a maior parte dos lugares de chefia neste mercado.
Quanto ao cenário evangélico nas grandes metrópoles brasileiras, a vasta presença
feminina nas igrejas continua sendo alvo de explicações sociológicas que vinculam a mulher
ao espaço da casa e da igreja como esferas domésticas complementares. A este respeito, Clara
Mafra (1998, p. 233) argumenta que “a mensagem evangélica não estaria voltada para um
público específico em termos de gênero”; esta difusão, por sua vez, estaria na “dominante
valorização social da família”. A afirmação da autora já carregava uma crítica importante às
interpretações socioantropológicas que persistem em reduzir a presença feminina nas igrejas a
justificativas de que este seria um ambiente que reproduz a esfera privada e estaria dotado de
emoções femininas que amplificam a esfera do cuidado. A vinculação da presença feminina nas
igrejas e, por consequência, das próprias mulheres ao privado e à natureza não só é alvo de uma
crítica à essencialização já amplamente conhecida nos estudos feministas como também não
ajuda a compreender dinâmicas que mulheres evangélicas estabelecem dentro e fora das igrejas.
Ao deslocar o problema para a manutenção da família, a interpretação da autora
possibilita olhar para diferentes articulações possibilitadas no espaço público. No entanto,
enquanto eu percorria junto com elas os interstícios do trajeto entre sex shop e igreja, as
interlocutoras mostraram trânsitos em empreendedorismos que extrapolam o objetivo de
garantir a coesão do modelo nuclear de família. Muito embora esta seja uma característica
central nas experiências das revendedoras evangélicas, suas motivações pessoais incluíam
conquistas no campo ocupacional e engajamentos com outras mulheres em busca de promover
novos acessos às suas sexualidades.

83
De acordo com os dados do último Censo Demográfico (IBGE, 2012), as igrejas evangélicas contam com um
público de 44,6% de mulheres no país. Dados mais recentes fornecidos pelo Instituto Datafolha (BALLOUSSIER,
2020) apontam que elas tem ocupado quase 60% do contingente evangélico. As pessoas negras (autodeclaradas
pretas e pardas), por sua vez, formariam atualmente 59% do público evangélico brasileiro segundo o Datafolha.
Os evangélicos de denominação pentecostal são, ainda segundo o IBGE, a segunda religião mais negra do Brasil
(57,2%), atrás somente do candomblé. Ao mesmo tempo, de acordo com a ABEVD (Associação Brasileira de
Empresas de Vendas Diretas), em 2020 as mulheres ocuparam 57,8% do setor de revendas. Este mercado também
é composto por 49,6% de trabalhadores com grau de escolaridade concluído até o segundo grau. A associação não
disponibilizou dados relativos à identidade racial e locais de moradia.
86

Enquanto universos de sociabilidade feminina, mercados e igrejas que atravessam estes


erotismos encontram no âmbito das vendas diretas uma ponte para fortalecer seus
engajamentos. Este dado sobre o campo ocupacional entre mulheres evangélicas se aproxima
de análises já apontadas entre frequentadoras da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) por
Jacqueline Moraes Teixeira (2016), que indicou haver um alto índice de frequentadoras da
denominação atuando profissionalmente em áreas relacionadas à estética, o que a autora sugere
como uma “correlação estabelecida entre prosperidade e cuidado de si” (TEIXEIRA, J., 2016,
p. 136).
A valorização institucional destas profissionais confere àquele contexto significados que
vinculam a dimensão do rito ao corpo feminino, sendo os cuidados estéticos parte fundamental
do sacrifício, elemento central nestas práticas. A partir da relação entre corpo e sacrifício, a
autora explica que mulheres evangélicas frequentadoras da IURD elaboram ações
empreendedoras que conferem dimensão moral à prosperidade. Com este argumento, Teixeira
expande a compreensão do que chama de “pedagogias da prosperidade” afirmando que “o
dinheiro não é o único mediador-ritual da prosperidade”, podendo a noção de vida em
abundância ser reformulada “em todas as instâncias da vida, sendo a família a principal delas”
(TEIXEIRA, J., 2016, p. 34).
O empreendedorismo feminino encontrado no universo das consultoras de beleza pode
incluir uma ampla gama de ofertas voltadas ao bem-estar, abrangendo itens como produtos para
emagrecer, shakes, óleos essenciais, entre outros. Ao mesmo tempo, artigos eróticos da
“cosmética sensual” podem ser encontrados em diversos catálogos de marcas que não se
anunciam como destinadas ao consumo erótico. Ana, mulher branca de 40 anos que conheci
revendendo produtos de uma marca atuante nos segmentos da perfumaria e cosméticos,
informou que a categoria de géis lubrificantes voltados à relação sexual eram os mais vendidos
de seu catálogo junto com os “nutracêuticos”, compostos químicos que atuam como
suplementos nutricionais. A vinculação feita pela interlocutora identificava que os elos entre
saúde e beleza se conjugavam aos sentidos da autoestima e bem-estar associados à sexualidade.
Nos percursos que fiz com Ana às reuniões em que me convidava para o recrutamento
de consultores de marcas de cosméticos, atentei para a recorrência de palestras lideradas por
pastores que também se apresentavam como coaches84. Numa destas ocasiões, outro
pertencimento do palestrante também foi destacado: a carreira militar. Aos participantes, era

84
O termo se refere à palavra em inglês “treinador”, designando um trabalho de orientação para alcance de
objetivos previamente estipulados.
87

solicitado que repetissem frases em tom de voz alto, informando-nos sobre o poder dos “gritos
de guerra” para alcançarem o sucesso financeiro. “Repitam comigo: eu vou ficar rico”, ordenou
à plateia de possíveis consultores, sendo prontamente atendido com gritos de volta.
Ana também se apresentava como coach e destacava este pertencimento a uma “técnica”
e “ferramenta” que a ajudaria no trabalho com a espiritualidade. Ela havia procurado a formação
em coaching para melhorar sua atuação em uma igreja pentecostal enquanto “esposa de pastor”.
Em suas palavras, a técnica promoveria um trabalho pontual e profundo que buscaria a causa
da dor e a retiraria durante apenas uma conversa, “similar ao trabalho das igrejas”, espaço este
que recebe pessoas “em busca de respostas”. Durante nossas conversas e na ocasião da
entrevista, Ana frequentemente comparava a rapidez e eficácia da técnica do coach às terapias
oferecidas por profissionais formados em cursos de Psicologia. Apesar de sua vontade de se
formar como psicóloga clínica, ela me contou em nossa entrevista que considera a intervenção
psicológica inferior devido à demora em trabalhar as questões emocionais e dificilmente
conseguir tratá-las da maneira que ela julga adequada.
Tanto as falas de Ana como as palestras que acompanhei nos treinamentos de
revendedoras trazem elementos importantes para compreender as estratégias com que estes
sujeitos lidam no cotidiano para alcançar um público comum. O coaching opera aqui como
motor que acelera o alcance da vida em abundância, possibilitando referências com a ética da
prosperidade que trazem continuidades com o argumento de Jaqueline Moraes Teixeira (2016)
sobre o disciplinamento moral incorporado nestas pedagogias. Ao mesmo tempo, valer-se da
eficácia contida na rapidez também corresponde a um aprendizado sobre a gestão do tempo e,
por consequência, do dinheiro que poderia acabar investido em possibilidades terapêuticas que
não resolveriam o problema a curto prazo e de modo eficiente. A relação entre urgência e
investimento financeiro encontraria, assim, retóricas nas práticas que recorrem à teologia da
prosperidade.
As relações desta corrente teológica com o empreendedorismo já têm sido amplamente
analisadas por trabalhos que se dedicaram à compreensão do alcance social da IURD, como o
citado anteriormente. No entanto, ressalto um cuidado que Cecilia Mariz e Roberta Campos
(2014, p. 203) tiveram ao chamar a atenção para como “esse tipo de análise feita da Universal
tem sido transposta para o neopentecostalismo e pentecostalismo em geral”. A presença de
lideranças de outras denominações evangélicas que se apresentam como coaches aponta para a
força deste argumento das autoras no sentido de evitarmos encapsulamentos de fenômenos mais
amplos a denominações de grande visibilidade pública, como é o caso da IURD, ao mesmo
tempo que também evoca a necessidade de atentarmos para como o alcance social desta
88

instituição religiosa tem produzido generalizações sobre o pentecostalismo em pesquisas


socioantropológicas. As analogias que trago são, nesse sentido, muito mais próximas às
afinidades interseccionais demonstradas por Jacqueline Teixeira (2016) com a ética da
prosperidade (COLEMAN, 2018) do que com práticas institucionais acionadas dentro e fora
da IURD.
Este distanciamento de quaisquer tentativas de dar coesão às experiências das
interlocutoras por meio de suas vinculações institucionais foi necessário nas análises que aqui
empreendo na medida em que múltiplas disputas se faziam presentes. Como mostra uma
narrativa divergente da pastora Cristiane, nem a própria proeminência do coaching era vista
como prática consensual no contexto evangélico. Durante uma conversa sobre as mudanças que
um evento voltado para mulheres que ela organizava periodicamente havia sofrido nos últimos
anos, ela confessou em tom nostálgico que sentia falta “dos bons tempos da igreja”. Agora,
segundo ela, a igreja havia sido dominada por uma “leva de coaches”, referindo-se aos “pastores
que não são pastores, mas palestrantes”.
Comparando-os com o que seriam “verdadeiros pregadores”, explicou que os
coaches/palestrantes transformam o “versículo da Palavra em uma palestra motivacional”,
provocando uma animação efêmera nos fiéis e sufocando o trabalho de quem “ora, jejua, sobe
o monte e busca o reteté”85. Cristiane, que congrega em uma igreja neopentecostal, distingue o
caráter motivacional dos coaches do que seria o modelo espiritual ideal, mencionando o valor
atribuído a uma força pentecostal contida nas exibições públicas de milagres, curas e expulsão
de demônios e que vem se perdendo ao ser sufocada pelo que chama de “modinha”. Ao mesmo
tempo, notei haver uma relação ambivalente com este fenômeno, já que a categoria com a qual
a pastora se apresenta em uma de suas principais redes sociais é a de “palestrante motivacional”.
A oposição entre o que seria “moda”/moderno e o religioso/“reteté”, o qual carrega a verdade
sobre fenômenos sobrenaturais, aqui se atualiza e aponta para dissidências que também
implicam em capturas inescapáveis para conferir legitimidade aos cargos pastorais.
Em nossa conversa, a pastora fez uma associação dos coaches com transformações mais
amplas sobre o “mover” da igreja que, segundo ela, já não era mais o mesmo. Ela contou que,
na igreja em que congrega, o passar dos anos trouxe significativa diminuição da intercessão
pastoral em momentos de milagres que envolvem curas e expulsão de demônios entre os(as)

85
“Reteté” é um termo utilizado por denominações evangélicas pentecostais para designar manifestações do
Espírito Santo no corpo do(a) fiel. Rodopiar, pular, falar em línguas são manifestações características associadas
ao uso do termo, que conta com outras descrições semelhantes, tais como “entrar no manto”, “sapatinho de fogo”
etc.
89

fiéis. A associação do coach com um movimento nostálgico de perda das “raízes” também
remete à perda que teria uma experiência pentecostal que toca o corpo através da manifestação
de dons do Espírito Santo. Nas palavras de Cristiane, “pode até ocorrer a cura na alma, mas a
cura no corpo está cada vez mais difícil”.
A denúncia da pastora em relação à supressão de elementos que ela classifica como
sobrenaturais indica que estes intercâmbios produzem o que é o coaching em disputas que
também são sobre o que é “ser pentecostal”. Ao contrário de um campo de significados
associado a “ser evangélico” que aparece para as interlocutoras mais próximas do mercado de
artigos eróticos com quem conversei, há elementos que podem ora complementar, ora se
distanciar do pentecostalismo, sobretudo quando envolvem a interação com atributos
relacionados às manifestações de dons.
Concordando com Coleman (2018), compreendo estratégias como o coaching enquanto
decorrência da dimensão ideológica da “fé eficaz” que, no evangelho da prosperidade, aplica-
se aos mercados e seus modelos de consumo, e se configuram como parte da elaboração de
métodos adotados pelo pentecostalismo para sua extensão no mundo. Por outro lado, as
experiências das interlocutoras indicam que se trata de um tipo de estratégia que pressupõe
tensionamentos na associação com o pentecostalismo, sobretudo quando consideramos as
ressignificações que suas linguagens vêm sofrendo nas experiências contadas pelas
interlocutoras sobre ter uma “fé estratégica” ou ser “ousada na fé”.
Diferente da “fé eficaz”, mais próxima ao que setores neopentecostais como a IURD
têm chamado de “fé racional”86, ter “ousadia na fé” implica em se comunicar com o divino de
modos inusitados, experimentados como “loucos” e “corajosos”. Nesse sentido, utiliza-se
instrumentos oferecidos por Deus para alcançar objetivos referentes à felicidade terrena,
sobretudo aqueles que envolvem intervenções no âmbito da família. Um exemplo do contexto
de uso destes termos durante o trabalho de campo esteve nos modos como a unção de lingeries
com azeite era utilizada para fortalecer o matrimônio. Para os fins desta análise, chamo a
atenção para como as práticas do empreendedorismo aqui descritas, a depender das
sociabilidades em jogo, articula essas subjetividades evangélicas às éticas e trajetos
interseccionais de gênero e raça nas periferias urbanas.

86
A “fé racional” nesse contexto está remetida ao modo como evangélicos pentecostais conseguem desassociar
suas práticas de fé do campo das emoções, vislumbrando uma expansão para o domínio das decisões materiais e
intelectuais.
90

1.4 Circulações evangélicas pela cidade: humilhação e agenciamentos negros

Conhecer sujeitos a partir do espaço pelo qual circulam no contexto urbano construiu
parte de uma tradição de estudos socioantropológicos em que a cidade se tornou campo
privilegiado para entender processos de mudança social. A virada teórica que demarca a entrada
nestes estudos desloca a pergunta de “como a sociedade se mantém” para “como a sociedade
se transforma” (FELDMAN-BIANCO, 2010, p. 20)87, constituindo novas categorias de análise
que realocaram noções fixas e estabilizadas de lugar, cultura, comunidade e identidade. As
metodologias desenvolvidas para explorar a cidade são inspiradas em projetos, trajetórias e
campos de possibilidade (VELHO, G., 1997), com debates promovidos por novas formas de
fazer antropologia através das relações de proximidade.
Ao mesmo tempo que estes cenários permitiram questionar a ideia de “campo” como
ficção antropológica distante da “casa” (GUPTA; FERGUSON, 1997), também provocaram
mudanças em como os processos religiosos passaram a ser analisados. Em perspectivas
adotadas sobre o crescimento evangélico no espaço urbano, por exemplo, as reflexões sobre sua
presença em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo foram analisadas como parte
intrínseca de um movimento que envolveu dinâmicas de dupla mudança. À medida que as
práticas religiosas eram alteradas, estes dispositivos urbanos também eram alterados por elas.
Nestes fluxos entre circuitos religiosos distintos e com trajetos simultâneos (MAGNANI,
2009), a chave do sincretismo historicamente adotada no campo da religião brasileiro se
modifica para pensar diversidades e conflitos através do conceito de pluralismo (ALMEIDA,
R., 2010) e de trânsito religioso (ALMEIDA, R.; MONTERO, 2001).
Assim, o crescimento pentecostal foi analisado através de transformações em relação à
cultura nacional católica (SANCHIS, 1994), seus mecanismos de compatibilização (BIRMAN,
1996) e seus efeitos de ruptura nos vínculos de inter- e intraclasse nos territórios periféricos
(MAFRA, 2009), além de um amplo poder de mobilização que cria frentes de atuação
midiáticas a partir de projetos e missões (MACHADO, 2013). Estas novas mediações religiosas
e suas práticas de evangelização acabaram por criar um pentecostalismo que se expressa nas

87
Segundo Feldman-Bianco (2010), as mudanças no enfoque funcional-estruturalista promovem modelos
reformistas de diversos autores da Escola de Chicago sobre imigrações e crescimento da pobreza urbana nos
Estados Unidos. A despeito das críticas relacionadas ao darwinismo social que inspirou autores desta perspectiva,
a escola organizou paradigmas fundamentais que sustentam teorias posteriores para pensar moralidades que
definem determinados espaços sociais.
91

periferias cariocas como “modo de expressão e organização local” (VITAL DA CUNHA, 2021,
p. 87).
Ao apontar as diferentes dinâmicas em que estas categorias religiosas são utilizadas
entre percursos ocupacionais e narrativas sobre a sexualidade, as mulheres evangélicas se
alinham nesse contexto a elementos presentes nas dinâmicas periféricas, dialogando e
modificando ideias pré-concebidas sobre a presença religiosa no espaço público. Tais
experiências religiosas marcadas nos cinturões pentecostais (MAFRA, 2011) do Rio de
Janeiro88 atravessam sustentos, sociabilidades e casamentos de mulheres que moram nas zonas
periféricas fluminenses, constituindo o espaço público como fluxo através do qual se inscrevem
as experiências vividas entre sex shop e igreja.
De modo adicional às perspectivas que orientam esse campo de pesquisas em que a
cidade constitui e é constituída pela presença pentecostal, as circulações permitiram
acompanhar movimentos através de fronteiras urbanas em que sex shop e igreja se encontram.
Que conflitos ocorrem nas fronteiras deste interstício? Quais são as negociações possíveis e
quais são as subjetividades atingidas? Enquanto espaços abertos de negociação, as fronteiras
permitem a captura de universos múltiplos, parciais e simultâneos, como nos ensina Barth
(2000). Ao indicar que há “uma multiplicidade de padrões parciais, que interferem uns sobre
os outros” (BARTH, 2000, p. 120), o autor identifica o espaço da fronteira como aquele em que
compreendemos como as pessoas se relacionam. As perguntas que faço também estão
inspiradas por pesquisas desenvolvidas no campo dos estudos urbanos, para as quais a análise
de fronteiras ganhou status de compreensão de conflitos e disputas. Conforme indicou Gabriel
Feltran (2011), a categoria pode ser mobilizada tanto para preservar o sentido de divisão e
demarcação como para regular canais de contato existentes entre grupos sociais que
obrigatoriamente se relacionam através da separação pelos limites.
Dos pontos que conectaram bairros e favelas da Zona Oeste e Norte do Rio de Janeiro,
locais pelos quais prioritariamente circulei com as mulheres evangélicas entre suas igrejas e
residências ao longo do trabalho de campo 89, falar sobre limites significou sobretudo
compreender como estas mulheres constituem modos de sustento compartilhados com outros

88
De acordo com os últimos dados divulgados pelo Censo Demográfico de 2010 relativos ao contingente urbano
por religião (IBGE, 2022), 30% da população deste estado é evangélica. A expansão evangélica por outros estados
brasileiros é apresentada da seguinte forma: “as Regiões Norte e Centro-Oeste a diversificação dos grupos
religiosos é marcada pela presença expressiva de evangélicos, sobretudo dos pentecostais, os quais têm também
importante presença nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, da Região Sudeste, além de áreas metropolitanas
da Região Nordeste” (IBGE, 2012, sem paginação).
89
Aqui faço referência mais direta aos bairros de Campo Grande, Cascadura, São Cristóvão, Morro de São Carlos
e Mineira e à cidade de Araruama, no interior do estado do Rio de Janeiro.
92

membros da família. Seus empreendedorismos, nesse sentido, estão profundamente atrelados


às precarizações da vida, provocadas em variados processos de violência presentes na gestão
das populações de territórios racializados e criminalizados pelas ações do Estado. Como
formulou Juliana Farias (2020), trata-se de um “governo de mortes” que exerce poder de
controle em corpos tanto vivos como mortos, visibilizados pelas lutas de familiares de vítimas
do Estado. Os encontros de vetores de raça e gênero marcam a inseparabilidade constituinte da
violência que atinge corpos favelados, tanto de homens jovens negros mortos pelas armas dos
braços militarizados do Estado como de mulheres intimidadas por uma rotina de assédios e
outros diversos tipos de violência cotidianas, urgindo por ações que nos levem a não
hierarquizar estas distintas violações de direitos (MARTINS et. al., 2020).
Se as questões desenvolvidas através da circulação na cidade auxiliam na compreensão
de trânsitos evangélicos em contextos urbanos periféricos, há alianças e conflitos também
estabelecidos nas sociabilidades que envolvem consumo, gênero e sexualidade nos interstícios
nos quais as interlocutoras circulam. Como sugere ainda Isadora Lins França (2010), ao seguir
itinerários que envolvem espaços de consumo, há continuidades entre o consumo de objetos e
o “consumo de lugares”. Através desta abordagem interseccional do empreendedorismo
constituído por fluxos na cidade, chamo a atenção para dificuldades de diferentes ordens que
percorrem modelos econômicos baseados na troca de favores como os da revenda de artigos
eróticos, acarretando frequentemente em prejuízos para muitas das consultoras que conheci.
Uma destas interlocutoras me mostrou uma sala em que acumulava produtos adquiridos que
não conseguia revender, ressentida pela longa espera por clientes que nunca chegam ou retiram
produtos que não pagam. Exemplos como esse mostram como estes dispositivos econômicos
neoliberais precarizam, assujeitam e limitam significativamente suas vidas.
Na experiência missionária que envolve os intercâmbios com a sexualidade para estas
mulheres evangélicas, tanto o coaching como o mercado de vendas diretas são caminhos
utilizados como incentivos para pavimentar seus sustentos. As narrativas que aqui se encontram
fundamentam uma importante dimensão econômica e política da geometria moral que percorre
territórios periféricos, apontando para circulações que refletem dinâmicas urbanas do trabalho
informal que atravessa ações e modos de governo do Estado. Além disso, cabe lembrar a
contribuição de Doreen Massey (1994) que considera como as gramáticas de gênero devem ser
analisadas para além de acusações ao patriarcalismo nas formas de trabalho, mas fundadas na
compreensão sobre como novas configurações de gênero atuam no trabalho.
Os fluxos do empreendedorismo evangélico das revendedoras de artigos eróticos
apontaram para dinâmicas de diferenças e desigualdades sustentadas pela lógica neoliberal,
93

além de transformações que estão ocorrendo na cidade a partir da criação de mercados que
objetivem salvar casamentos. Estas dinâmicas, por sua vez, não operam como ações isoladas,
mas compreendem mais um modo de atuação do pentecostalismo nas margens do Estado 90. Se
no plano da violência esta gestão pentecostal disputa com o mundo do crime (FELTRAN, 2011,
no plano econômico ela faz emergir neoliberalismos periféricos (CÔRTES, 2021). Não se
trataria, portanto, de uma ressignificação do neoliberalismo de cima para baixo ou da ocupação
de espaços vazios mas, como mostra Côrtes (2021), de retroalimentações que sustentam
dimensões do poder que atua através das margens para conduzir o que a autora chama de
“dispositivo da humilhação”.
Em seu trabalho, a autora cita diversos exemplos que ressoam o que também ouvi em
diversas pregações e orações pentecostais sobre deixar de ser “humilhado” e “escravo” para ser
“patrão” e “governador”. São dados que situam vínculos formais de trabalho em posições
subalternas para demarcar apostas no empreendedorismo popular que recebem significativo
incentivo nos circuitos pentecostais. Nesse contexto, esta ruptura significa adotar uma posição
de “livrar-se da submissão contida na posição de empregado subalterno à autoridade arbitrária
do patrão” (CÔRTES, 2021, p. 14). Trago uma cena vivida no trabalho de campo que indica
modos pelos quais se produz eficácia nos incentivos ao abandono da posição de humilhação:

Terça-feira, dia de culto vazio. Um homem negro que aparentava ter por volta
de 40 anos, vestindo bermuda e blusa regata, chega desacompanhado. Seu
semblante era tímido e aparentava sofrimento. A pastora Cristiane liderava o
culto naquele dia e passou boa parte dele olhando em direção ao homem como
se o chamasse a participar mais ativamente. Pedindo que os fiéis possam “abrir
a boca para falar com Deus”, quase no fim do culto ela desce do púlpito e
caminha em direção ao homem. Ao dirigir-lhe palavras de conforto e
profetizar por bênção em sua vida, ele reage com semblante ainda sério e
firme. “Você sai hoje daqui hoje como patrão do seu próprio negócio. Repita
em voz alta!” Neste momento, ela leva o microfone em direção à boca do fiel,
que repete as palavras em primeira pessoa. Na medida em que a interação
continua, a pastora narra sua própria história como “ex-cabeleireira que virou
pastora e já viajou o mundo”. O homem segue calado, ouvindo atentamente
àquele testemunho de vitória. “Se eu consegui, você também consegue, creia!
Amanhã você é o patrão, amanhã você volta aqui para contar o seu
testemunho, filho”. “Eu creio! Eu recebo”, ele responde em voz alta e suas

90
Como já demonstraram diversos trabalhos sobre o campo pentecostal, há importantes distanciamentos em
relação ao pentecostalismo e à ética protestante abordada por Weber (2001). No sentido contrário a apontar para
alianças entre vocabulários econômicos, políticos e religiosos semelhantes a esta abordagem, tais trabalhos vêm
desenhando um jogo de afinidades entre o discurso liberal do empreendedorismo e a Teologia da Prosperidade
que, segundo Ronaldo de Almeida (2017), ajusta-se tanto à precariedade das formas de trabalho como ao aumento
do consumo entre sujeitos pentecostais.
94

palavras são recebidas calorosamente pelo público (Diário de campo,


novembro de 2018).

O que pode parecer um discurso que atinge hierarquicamente de cima para baixo, como
um rebanho que segue seu pastor, mostra um acolhimento que supõe rupturas provocadas pelo
pentecostalismo. No entanto, ao mesmo tempo que a noção de dispositivo da humilhação é
rentável para compreender efeitos e estratégias produzidas por narrativas em que a classe social
desponta como marcador central, acaba por limitar compreensões sobre como a humilhação é
racializada no pentecostalismo (ROCHA, C. J., 2021). De modo distinto e complementar à
classe, a raça compõe desdobramentos específicos para as circulações evangélicas na cidade,
gerando conflitos que incidem dentro e fora do âmbito das igrejas que compõem os trajetos do
empreendedorismo evangélico.
Ao longo do trabalho de campo, uma fiel compartilhou comigo sobre uma política de
evitação que havia em sua igreja, que tem sedes em várias cidades brasileiras, de enviar
lideranças negras para o Sul do Brasil. O motivo desta atitude teria sido um pastor negro que
havia sido humilhado ao mudar seu local de atuação para uma filial localizada em uma das
cidades desta região e que, segundo a fiel, não havia aguentado permanecer ali. Segundo minha
interlocutora, as pessoas iam embora dos cultos ministrados pelo pastor, situação que foi
piorada quando subiu ao altar em um dia comum para pregar e se deparou com a presença de
cascas de bananas nos bancos quase sempre vazios da igreja.
Alternativamente à ideia de dispositivo que compreende os testemunhos, orações e
diversas outras ritualizações encenadas no cotidiano pentecostal, reflito em diálogo com María
Elvira Díaz-Benítez (2015, 2019, 2021) sobre o que a humilhação produz enquanto experiência
de “sub-humanização” e “afastamento social”. A fiel que compartilhou a conversa comigo
contou que o pastor foi direcionado para a cidade de São Paulo, onde continuou a liderar outros
cultos na igreja. Nesta “alteração de seu status social” (DÍAZ-BENÍTEZ, 2021, p. 195), a
humilhação sofrida pelo pastor marcou uma atitude de comiseração generalizada entre os
membros da igreja, destacada pela interlocutora através da notícia de que ele havia “pedido à
sua liderança para ir embora do Sul em lágrimas”.
Considero este mais um exemplo de como sujeitos pentecostais vem agenciando
experiências de desumanização causadas pelo racismo nas dinâmicas de incentivo
meritocrático. Assim como nos roteiros conjugais trilhados pelas interlocutoras, aqui também
as diferenças invariavelmente são agenciadas através de geometrias desiguais de distribuição
do poder. Os vínculos entre espaços e moralidades na cidade nas experiências de mulheres
95

evangélicas vêm apontando para a criação de formas de consumo sustentadas em engajamentos


por meio de redes uberizadas e tipicamente femininas (ABÍLIO, 2020) e, conforme explico na
próxima seção, produzem circulações em que a informalidade empreendedora também pode
estar resultando em diferentes efeitos, a depender das dinâmicas conjugais em jogo.

1.5 Pelos roteiros conjugais e seus desvios

Venho argumentando ao longo deste capítulo sobre modos como o estado civil constitui
fronteiras importantes para a circulação de mulheres evangélicas que compram e vendem
artigos eróticos. Reflito nesta última seção de que maneiras as rotas conjugais apontaram para
aberturas e dificuldades em relação às atividades empreendedoras que acompanhei, tanto
aprofundando nas experiências compartilhadas por interlocutoras casadas como, por outro lado,
apresentando de que modo a narrativa de uma mulher divorciada apontava para outros limites
nos quais as interlocutoras negociam seus agenciamentos.
Além da revenda de artigos eróticos junto aos cosméticos, bijuterias e roupas como
alternativa viável, conheci muitas mulheres que se dedicavam concomitantemente aos trabalhos
desenvolvidos como parte do corpo eclesiástico da igreja. Este é o caso de Marina, já
anteriormente apresentada. Intercessora 91 em uma igreja pentecostal e com o marido atuando
como obreiro92 na mesma igreja, o principal sustento da família advém das circulações de seu
companheiro como vendedor ambulante, o que acaba não permitindo que ele se dedique ao
trabalho religioso com a frequência desejada. Marina e muitas outras interlocutoras com quem
tive contato durante a pesquisa identificavam o início de sua “caminhada com Deus” na IURD.
Ao comparar suas funções entre diferentes instituições, o trabalho exercido nesta igreja era
considerado mais leve. Em suas palavras, “lá você faz o trabalho e vai embora, aqui você fica

91
Conforme Marina me explicou, sua principal incumbência nesta função seria interceder na congregação através
de diversos favores. Eram ela e suas colegas intercessoras, todas mulheres, que faziam trabalhos rotineiros como
abrir a igreja, preparar o lanche dos pastores após o culto, interceder na segurança para que fiéis não se
machucassem nos momentos de louvor e adoração. Em outras denominações, esta função pode se assemelhar ao
que algumas denominações chamam de “evangelista”, sendo uma das posições mais baixas da hierarquia
eclesiástica.
92
Na denominação em questão, o cargo de obreiro(a) era imediatamente superior à função de intercessor(a).
Desempenhando atividades similares às(aos) intercessoras(es), obreiros e obreiras costumam nutrir relações mais
próximas com outros cargos, como diáconos/diaconisas e pastores. No capítulo 2 da tese, indico um quadro
elaborado a partir da etnografia para estas progressões na hierarquia de uma grande denominação pentecostal que
frequentei com maior assiduidade.
96

mais tempo”. Na atual denominação de Marina, a Assembleia de Deus, o auxílio nos trabalhos
da igreja se dá quase todos os dias e, enquanto o cônjuge “trabalha fora”, ela se dedica a
trabalhos que podem se adequar tanto aos serviços na igreja como ao cotidiano de cuidado dos
filhos. Esta divisão também pesa sobre os homens na medida em que, por parte de muitas
interlocutoras, ouvi frequentes críticas aos homens que optam por se tornar “100%”, expressão
utilizada para designar quem recebe salário da igreja e se dedica exclusivamente a cargos na
igreja.
A narrativa de Marina indicou que os impedimentos para os homens desempenharem
trabalhos exclusivamente eclesiásticos são maiores, já que deveriam ser os responsáveis
prioritários por prover subsistência à família, o que muitas vezes não ocorre somente com os
salários baixos providos pela obra93, mas com a devida complementação da renda. Ao mesmo
tempo, há diferentes trajetórias compartilhadas entre aqueles casais em que ambos são
evangélicos e aqueles em que o marido ou a esposa não o são. Conforme afirmou Maria das
Dores Machado (1996), a adesão do casal opera como ideal normativo que também influencia
diretamente nos modos de atuação em cargos das igrejas pentecostais.
Esta inquietação a respeito da importância do suporte conjugal e familiar na dedicação
à obra foi constante ao longo do trabalho de campo e apareceu durante uma conversa que tive
com uma amiga de Marina ao final de um culto que acompanhamos juntas. Ao perguntar se
também atuava como intercessora, ouvi que ela desejava, mas não podia ocupar esta posição
pois implicaria em “uma responsabilidade muito grande” que ela não seria capaz de abraçar
naquele momento. No decorrer da conversa, indica que esta responsabilidade seria maior
porque não era dividida com outras pessoas que habitavam a mesma casa que ela. Com o marido
ateu e duas filhas adolescentes que são “tementes a Deus”, mas que “não são crentes”, ela conta
que lhe falta o “suporte familiar”. O suporte ao qual se refere não é somente afetivo, mas uma
incumbência pela conciliação entre compromissos na igreja e aqueles exercidos no âmbito
doméstico.
As relações conjugais e familiares, nesse sentido, são centrais para compreender como
as dinâmicas ocupacionais se conjugam às ocupações no espaço das igrejas entre mulheres que
realizam trabalhos que contam com baixa ou nenhuma remuneração, sejam informais ou
domésticos. A divisão sexual do trabalho se expressa de diferentes maneiras, com maior peso
para mulheres evangélicas que não contam com o “suporte familiar” da adesão religiosa, bem
como para homens e mulheres que ocupam carreiras religiosas de menor responsabilidade nos

93
Termo pelo qual o trabalho religioso costuma ser mais frequentemente conhecido nesse contexto.
97

cargos de obreiras(os), intercessoras(es), diáconos e diaconisas 94, entre outros. Compreender


mais a fundo de que modos as mulheres mantêm as igrejas pentecostais de pé implica em
identificar como as distinções que operam no espaço público refletem suas ocupações
institucionais e, por sua vez, incidem em circulações na cidade para realizar trabalhos de
revenda e outras atividades, cuja informalidade atravessa sociabilidades femininas nos sex
shops e igrejas.
Além das narrativas de mulheres evangélicas que apresento ao longo deste capítulo,
circular por circuitos de compra e venda de coisas eróticas (que confluiu com trajetos por lojas,
feiras eróticas e o mercado de revenda direta mais amplo) mostrou que o uso ocupacional que
as mulheres fazem das igrejas pentecostais não reduz estes espaços à noção de esfera privada,
mas cria modos de circulação periféricas em que as igrejas operam como um dos pontos de
confluência para o comercialização e consumo erótico. Ao mesmo tempo, tais experiências nos
templos refletem divisões do trabalho em que a conjugalidade determina como gênero, raça e
idade circulam na produção de desigualdades já consolidadas em territórios criminalizados nos
quais o pentecostalismo se faz presente.
Ao contrário de uma interpretação que considere as domesticidades exercidas na igreja
exclusivamente como espaço de opressão e constrangimentos, as possibilidades de
agenciamento lembradas por bell hooks (1990) consideram outras perspectivas. A autora
identifica como os lares negros podem ser apresentados pelas mães como espaços de liberdade,
lugares seguros para que seus(suas) filhos(as) estejam livres da violência urbana que os(as)
afeta em maior número e grau de intensidade. Além disso, no contexto evangélico, as narrativas
das interlocutoras apontaram que a domesticidade não necessariamente é exercida através do
reforço para o casamento heterossexual e monogâmico. Esta condição pode tanto ser vetor de
alianças no campo econômico quanto impor desafios significativos a estas mulheres, como
indiquei anteriormente através dos casos de mulheres que são chamadas de “sozinhas”.
O caso de Ruth, 47 anos e divorciada, evoca desdobramentos comuns na vida de outras
mulheres negras como ela que ocupam a posição de chefes de família em territórios
marginalizados pela pobreza. Enquanto o incentivo a livrar-se do patrão era vivenciado pelas
mulheres casadas que apresentei até aqui através de itinerâncias que fortalecem circulações na

94
Como indico em nota anterior, este cargo era imediatamente superior ao de obreiro(a). Diáconos e diaconisas
são mais próximos de lideranças e podem cuidar de questões financeiras da igreja, como a tesouraria. Embora a
denominação em questão, uma Assembleia de Deus, não aceitasse mulheres no pastorado, atentei em minhas
inserções nos eventos que frequentei com Marina para o fato de que elas estavam distribuídas em maior quantidade
nos cargos citados e em número significativamente superior aos homens.
98

cidade e seus engajamentos com outras mulheres nas igrejas, não ser casada era uma condição
positiva que Ruth associava a uma curva de ascensão para uma vida em que deixou de ser
“invisível” para ser enxergada. Seu cabelo black power tingido de loiro e seus acessórios
dourados expressavam um autocuidado que se combinava ao discurso sobre o poder de
transformação de Deus que ouvi através de incontáveis testemunhos que ela havia proferido
nos diferentes cultos para os quais fomos juntas.
As histórias de sofrimento ritualizadas e renarradas (DAS, 2020) em múltiplas
narrativas que compunham seus testemunhos indicavam desde a falta de suporte do marido, que
a abandonou com dois filhos pequenos à própria sorte, até as batalhas percorridas para terminar
o ensino médio para, assim, poder “dar orgulho” para os filhos. Através de um discurso
empreendedor que marca a conversão de um trabalho como doméstica no qual passava seus
dias limpando canis para se tornar “professora docente” do ramo de serviços estéticos, Ruth
contou com mais detalhes em nossa entrevista sobre o encontro entre o término de seu
casamento e a elaboração de caminhos percorridos paralelamente aos aprendizados em sua
denominação na época, a IURD:

Quando casei com ele, eu tinha 20 anos. Fiquei casada 15 anos, aquela coisa
de Universal, luta que vai melhorar, luta que vai melhorar, e a pessoa só
melhora se ela quiser! Independente da nossa oração, ninguém vai melhorar
se não quiser. Aí eu vi que não adiantaria eu ficar orando, eu insistindo num
sofrimento, porque chegou um ponto que eu já não tinha mais como olhar pra
eles. O olhar deles me cobrava atitude. E isso é muito ruim, quando teu filho
te cobra uma atitude sem ter uma palavra. O olhar me cobrava, como quem
diz “reage, mãe! Vai deixar? Não vai fazer nada?” (Entrevista realizada
presencialmente em maio de 2019. Ênfase minha).

Para se livrar de estigmas que a assombravam como mulher evangélica que deveria lutar
pelo casamento, Ruth apoiou suas batalhas por uma vida melhor em constituir uma família em
que chefiasse com dignidade financeira e, assim, pudesse orgulhar os filhos. Constituir-se
exemplo forte aos filhos e filhas constitui uma dimensão das maternidades negras indicada por
Angela Davis (2016) para combater a experiência da escravidão e o dia a dia nos “guetos”. O
modo combativo com que Ruth construiu seu empreendedorismo aponta para as dinâmicas de
domesticidade através das quais a experiência de mulheres evangélicas permite refletir quando
falamos de empreendedorismos evangélicos.
O exemplo de Ruth, por sua vez, indica outras dimensões que ancoram a ideia de
“empoderamento” para além da sexualidade que segue princípios bíblicos, anteriormente
mencionada neste capítulo. Quando formadas paralelamente aos roteiros conjugais, estes
99

roteiros mobilizam circulações que deslocam a centralidade do casal para o exercício da


maternidade, operando com distintas entradas do arcabouço da família 95. Circular entre trajetos
nos quais mulheres evangélicas falam sobre empreendedorismo, compram e vendem artigos
eróticos no espaço urbano apontou para marcos regulatórios que caminharam em paralelo aos
debates que têm se estabelecido através de pesquisas contemporâneas sobre as dinâmicas
evangélicas na esfera pública.
Refiro-me aqui não somente às análises de enquadramento secularizante que emergiram
após ascensão de “novas” e extremas direitas no Brasil e através das quais, como argumentei
no início deste capítulo, encontrei refletidas em apontamentos sobre as dinâmicas do erotismo
gospel como inusitadas ou, no mínimo, curiosas. Além da crítica ao paradigma secularista
nestas abordagens, as dificuldades em levar em conta dinâmicas interseccionais nos esforços
de compreensão do fenômeno do empreendedorismo explicita limites significativos em
diferentes frentes, entre elas nos “localismos implicados em conceitos como o de campo
religioso” (STEIL; TONIOL, 2013, p. 151).
Isso porque, ao refletir a partir das transformações concomitantes entre o
pentecostalismo e a cidade, também apontei para a insuficiência da categoria religião nas
dinâmicas sociais contemporâneas em que o religioso se apresenta como problema96. Os
circuitos raciais e de gênero gerados pelos empreendedorismos na cidade, através do âmbito
doméstico e institucional, nesse sentido, mostraram-se entremeados de questões que tanto
refletem sobre como a aderência pentecostal nas margens cria circulações interseccionais
singulares como também trazem à tona o problema da definição da religião, permitindo pensar
sobre o “lugar do religioso” para além de sua acepção mais comum de pertencimento ao
domínio privado e da noção de secular como parte do domínio público e, portanto, alvo legítimo
de intervenções do Estado.
O trajeto através das conjugalidades e seus desvios entre empreendedoras evangélicas
buscou identificar os modos como as mulheres fazem religião nas zonas fronteiriças que,
conforme explica Lila Abu-Lughod (2020), buscando evitar armadilhas que constituem a
definição de religião como campo de ações que se separa do domínio liberal-secular do Estado.

95
Estes usos do termo “empoderamento” se assemelham ao que Debert e Gregori (2008) indicaram ao chamar a
atenção para a ideia de família como objeto de intervenção no campo jurídico-estatal das regulações de gênero e
violência entre os anos 1990 e 2000. Com a ampliação da noção de família e o concomitante afastamento da noção
de gênero capitaneada pelos movimentos feministas, emergem novas formas de governo, alimentadas por uma
noção de empoderamento baseada em trajetórias individuais e na liberdade de escolha dos manuais de autoajuda.
Segundo as autoras, trata-se de uma lógica em que seus agentes não reconhecem a existência de desigualdades, e
os constrangimentos e abusos passam a ser resolvidos com o fortalecimento da autoestima e diálogo entre o casal.
96
Sobre isto, ver a distinção proposta por Ronaldo de Almeida (2010) entre religião, religioso e religiosidades.
100

Busquei um exercício analítico que tentou não se situar através de dicotomias que fundam o
pensamento colonial moderno, tais como mente e corpo, carne e espírito, puta e virgem, mas
compreender como práticas religiosas e moralidades sexuais se articulam nas afinidades com
territórios urbanos periféricos e por meio de improvisos cotidianos.
Ao explorar estes saberes produzidos por e entre mulheres evangélicas que consomem
e vendem artigos eróticos nas periferias das cidades brasileiras, retomo a proposta de Asad
(1993) de que precisamos de uma antropologia do secularismo como parte de um projeto pós-
colonial comum. Segundo o autor, secularismos não estão simplesmente em todo lugar, mas na
capacidade das(os) agentes de se misturar e criar novas linguagens e significados, bem como
“explorar os perigos e oportunidades contidas nas situações ambíguas”97 (ASAD, 1993, p. 17,
tradução minha). Até aqui, vale questionar: que caminhos podemos percorrer a partir de
possibilidades que não separem espaços públicos e privados nos contextos urbanos? Como
compreender formas de habitar desigualdades e agenciar diferenças nos dispositivos do
empreendedorismo pentecostal? Dos trajetos entre sex shop e igreja, para além e através dos
templos, os encontros com diferentes materialidades fluidas e fálicas dos artigos eróticos são
analisados em capítulos posteriores, na medida em que também construíram passagens pelas
fronteiras entre erótico e religioso das narrativas evangélicas.

97
No original, em inglês: “[the] ability [of power] to select (or construct) the differences that serve its purposes
has depended on its exploiting the dangers and opportunities contained in ambiguous situations”.
101

2 BATALHAR CONTRA E PELA FAMÍLIA

O Projeto Mulheres Virtuosas começou muito despretensioso. Eu não


imaginei que ia crescer. Era numa igreja na Lapa, né, aqui no Rio de Janeiro.
Na época o bispo responsável por lá pediu que eu ajudasse a cuidar, a atender
àquelas mulheres, que às vezes eram pedidos que havia lá. Eram pedidos, por
exemplo, “pastora, eu estou com um problema numa área íntima”. Então ele,
como homem, não se sentia confortável de atender, até por ser uma coisa
espiritual e tem que ter a parte de respeito. E aí meu esposo via que o número
de mulheres começou a aumentar e eu ficava até 2h, 3h da manhã atendendo
às mulheres. Ele falou: “por favor, faz um grupo no WhatsApp, porque eu não
aguento mais!”, e ali nasceu o grupo das mulheres virtuosas no WhatsApp. Já
temos mais de 200 mulheres, e todos os dias à meia-noite nós nos unimos para
orar, e todos os seus problemas ali são colocados, nós oramos juntas
(Entrevista com a pastora Cristiane, realizada presencialmente em 10 de junho
de 2017).

A ocasião desta entrevista se deu no primeiro contato que tive com a pastora Cristiane,
após a realização do evento que ela havia acabado de liderar, o Chá das Mulheres Virtuosas. A
rápida explicação de seu Projeto como um conjunto de ações voltadas para resolver problemas
da “área íntima” feminina já trazia aquela que seria a proposta que eu buscaria explorar
analiticamente ao longo da etnografia. Dos trajetos iniciados na pesquisa através de mercados
e consumos de artigos eróticos entre mulheres evangélicas, as intimidades femininas
compartilhadas no âmbito da sexualidade em sua esfera conjugal indicaram para distintos
desdobramentos a respeito dos sentidos de família.
Ao partir dos roteiros conjugais de mulheres evangélicas que utilizavam artigos eróticos,
este capítulo apresenta os principais caminhos percorridos na pesquisa para a definição do
problema da tese em torno da construção de um Ministério. Se no capítulo anterior indiquei
como os pontos de partida da etnografia me levaram a compreender os fluxos do Ministério
enquanto formação mais ampla de coletividades de mulheres evangélicas estabelecidas em
relações com mercados eróticos e com a cidade, desta vez percorro as relações das mulheres
entre si e com suas lideranças. Nesse contexto, aprofundei a compreensão destas relações
através daqueles que se tornaram meus principais interlocutores ao longo da pesquisa, o casal
de pastores Cristiane e Bruno e as seguidoras de seu Ministério/ Projeto/ grupo, as Mulheres
Virtuosas.
A resolução pragmática oferecida pelo pastor de criar grupos de WhatsApp para atender
às mulheres que procuravam Cristiane após os cultos foi o primeiro passo dado pelo casal para
liderar o grupo, assim formado exclusivamente por mulheres. Este dado analítico possibilitou
que o aporte metodológico através das materialidades se somasse às dinâmicas rituais dos dois
102

dispositivos que Raquel Sant’Ana (2017) indicou como formadores de disputas por
coletividades evangélicas: os eventos e as mídias. Para os fins que compuseram a organização
da escrita da tese, optei por abordar neste capítulo as dinâmicas para a elaboração do principal
evento do Ministério, o Chá das Mulheres Virtuosas.
Inicialmente formado por fiéis que frequentavam a igreja em que o casal congregava
como pastores voluntários, espécie de colaboradores que auxiliavam nos cultos mas não
realizavam pregações, o número de mulheres no grupo passou a aumentar a cada novo
atendimento. Os pedidos de amigas e familiares das fiéis integrantes se somaram às ações de
evangelização que Cristiane e Bruno realizavam em ruas e hospitais 98, além de frequentes
visitas nos lares de pessoas que pediam por orações e expulsões de demônios na família.
Segundo me informou o casal, a primeira reunião presencial das “mulheres virtuosas”
aconteceu ainda no ano da abertura do grupo no WhatsApp, em meados de 2015. Na ocasião,
cerca de vinte mulheres se reuniram em volta da pastora Cristiane na casa da familiar de uma
das integrantes, sentadas em cadeiras de plástico no pequeno espaço de uma garagem. Conheci
algumas delas somente em registros fotográficos deste momento, memórias que Cristiane
reunia digitalmente junto às de outros Chás, que passaram a ocorrer mensalmente, em diversas
pastas organizadas por evento em um perfil do Facebook que ela também gerenciava com o
título Mulheres Virtuosas.
Exploro, nas seções que integram as próximas páginas, como o crescimento do Projeto
acompanhou múltiplos investimentos feitos pelo casal, incluindo suas próprias carreiras
pastorais. A atuação de Cristiane e Bruno enquanto pastores voluntários na igreja em que
conheceram as primeiras integrantes do grupo tornou fiéis daquela denominação as primeiras
“filhas” do casal, chamadas também de “virtuosas” por ambos e entre si. Ao construírem uma
rede de relações institucionais paralela a este pertencimento denominacional, o casal circulava
com o título de afiliação a uma grande denominação pentecostal sem, no entanto, que lhes
fossem atribuídas responsabilidades institucionais mais fixas. Suas filhas, por conseguinte,
dividiam-se entre aquelas que circulavam entre diferentes denominações e outras que não
indicavam pertencimentos fixos a uma igreja, elaborando distintos fluxos contemporâneos
pelos quais mulheres têm se declarado parte de coletividades evangélicas.
O exercício em casal da liderança de um Ministério sem vinculações institucionais
apresentou desafios que busquei analisar tanto através das dinâmicas envolvidas nas relações

98
Como indicou a pesquisa de Eva Scheliga (2010), estes e outros locais, tais como abrigos e prisões, mobilizam
diferentes “eventos sociais” entre redes de atores evangélicos e dispositivos institucionais.
103

de parentesco espiritual quanto através dos circuitos formados por espaços e tempos do trabalho
autônomo e não remunerado que consolidou o desejo de escoamento de carreiras construídas
em grandes igrejas pentecostais brasileiras. Assim, a referência a um “chamado” que corria em
paralelo ao domínio institucional esteve em muitas conversas que estabeleci principalmente
com Cristiane através do WhatsApp99, apresentando modos como seu protagonismo no casal
movimentava rumos alternativos de um pastorado que buscava legitimar sua autoridade através
dos títulos de Ministério, Projeto e grupo 100.
Enquanto a categoria Projeto conferia legitimidade à sua ação religiosa e era empregada
em apresentações mais formais, o termo “grupo” e seus derivados (grupo de zap, grupo de
oração, grupo das virtuosas, entre outros) eram os mais utilizados no cotidiano religioso,
fazendo menção às mulheres que lideravam no WhatsApp em combinação com os encontros
nos Chás. Ministério, por sua vez, não era um termo utilizado sem desconfortos quando se
referia ao grupo. Embora Cristiane buscasse evitar utilizá-lo publicamente por, segundo ela
mesma, tratar-se de um termo geralmente associado ao espaço físico de uma igreja, a pastora
costumava utilizar o tímido argumento de que haveria no grupo a presença de outros elementos
que o transformavam em Ministério: “Temos tudo que um ministério tem, só não temos a sede.
Temos testemunho, a gente tem Palavra, temos milagre, a gente tem transformação!” (ênfase
dela).
Ao analisar as disputas em torno destas nomeações e seus efeitos nas práticas cotidianas
elaboradas pelo casal, apresento neste capítulo como o exercício do que Cristiane indicava
como seu “chamado com mulheres” configurava suas principais motivações e interesses para
desenvolver um trabalho religioso e construía engajamentos neste Ministério. Reflito sobre

99
Conforme demonstro no decorrer da tese, minha relação com a pastora Cristiane foi se consolidando através dos
usos deste aplicativo e mesmo antes do período da pandemia, refletindo as próprias formas como ela o mobilizava
em seu cotidiano religioso. Além de suas interações nos grupos que liderava, as trocas que tivemos no “privado”,
como costumam ser popularmente chamadas conversas que ocorrem direta e exclusivamente entre duas pessoas
no WhatsApp, foram fundamentais para que eu conhecesse mais sobre sua trajetória durante a pesquisa. Com o
objetivo de construir trocas pautadas por princípios éticos sobre o uso de informações na pesquisa antropológica,
solicitava diretamente a autorização de Cristiane para utilizar trechos de suas falas na tese ao longo de nossas
interações digitais por texto e mensagens de voz. Com as outras interlocutoras, as interações que geraram dados
para esta pesquisa decorreram de entrevistas ocorridas em meios digitais ou não, além de contatos durante eventos
para os quais fomos juntas. Para as negociações éticas sobre informações compartilhadas pelas interlocutoras nos
grupos de WhatsApp, ver capítulo 5.
100
Assim como a de outros homens que frequentavam o evento e orbitavam o Ministério, a presença do pastor
Bruno nos Chás era discreta e geralmente se resumia a uma rápida oração de encerramento e auxílios pontuais na
expulsão de demônios que se manifestavam no público no momento dos cultos. O lugar subalternizado em que os
homens estavam alocados nesse contexto é um dado analisado em diferentes momentos da tese para contrastar
com performances femininas no exercício da autoridade religiosa, embora não tenha recebido o mesmo
investimento em razão do próprio afastamento apresentado em minha circulação enquanto mulher solteira no
trabalho de campo.
104

estas dinâmicas através de dois caminhos que incluíram, de um lado, a trajetória do casal e as
relações estabelecidas pelas virtuosas entre si e com suas lideranças, exploradas na primeira
metade do capítulo; e, do outro, sobre a solidificação destas relações por meio do aprendizado
de saberes que legitimam mulheres a batalhar contra males que atingem seus lares e
conjugalidades.
Assim, analiso como batalhas contra a família e pela família101 são travadas a partir de
cenas, materialidades e discursos que circulavam nos Chás e outros espaços de socialidade
evangélica e fazem circular pedagogias raciais, de gênero, classe e geração acionadas através
do aprendizado da domesticidade. Vividos nas “batalhas espirituais” (MARIZ, 1999) de
“performances guerreiras” que constituem a pentecostalidade de regiões urbanas periféricas
brasileiras (PEREIRA, R.; MESQUITA, 2022), exploro estes trajetos enquanto parte de
“realinhamentos” (ENGELKE, 2010) na conversão que atingem sentidos de família
dimensionados em uma tríade de si compartilhada entre mulheres evangélicas, a saber, mães,
esposas e empresárias.
O trabalho de Anne McClintock (2010) sobre a exibição ritual de materiais voltados
para o trabalho doméstico no cenário sadomasoquista de um emblemático casal vitoriano do
século XIX forneceu pistas para compreender como elementos presentes no Chá aludem ao
culto da domesticidade, possibilitando que aquele espaço opere enquanto o que ela chama de
“recusa estratégica” em contextos de profundas desigualdades de gênero, raça e classe. Busquei
compreender, sobretudo, como as mulheres evangélicas exercem agenciamentos de suas
diferenças em cenários desiguais de gênero e raça, encenando limites sociais nas construções
coletivas de projetos de reconhecimento social do trabalho doméstico. As políticas sexuais
compartilhadas no Chá, por sua vez, serão aprofundadas no capítulo seguinte.
As interseccionalidades que atravessam discursos e interações com materialidades
religiosas são exploradas neste capítulo através de minha entrada por diferentes edições do Chá
e no cotidiano das mulheres evangélicas, acompanhando o que Tambiah (1985) formulou sobre
as passagens e continuidades entre domínios rituais e não rituais. O autor sugeriu uma
abordagem antropológica em que estes âmbitos não se separem, propondo que não há um
domínio limitado de ritual, mas elementos contrastivos que o caracterizam. Considero os
diferentes momentos que compõem o Chá, como a pregação da Palavra, a adoração, a
manifestação de demônios e o sorteio como dispositivos que integram de modo mais amplo

101
Agradeço à Camila Fernandes por chamar a atenção para a centralidade do exercício da dinâmica contra e pela
família em sua leitura deste capítulo da tese.
105

parte do que o autor chamou de um “ritual performativo”, através do qual atuam regras formais
e flexíveis. Por meio deste duplo aspecto, a dimensão formalizada das regras é formada por um
núcleo básico que ordena um senso coletivo institucionalizado de um lado, enquanto do outro
há componentes variáveis e mais flexíveis, que independem das regras e também regulam as
ações rituais.
Tal perspectiva analítica sobre rituais e performances que compõem o Ministério
possibilitou, ainda, identificar como a sedimentação de saberes que circulam entre mulheres
evangélicas é encenada em movimentos de complementariedade com as histórias
compartilhadas em pregações, testemunhos e orações. Assim, as seções deste capítulo apontam
para modos em que este conjunto de práticas se estabelece através de vínculos cotidianos
construídos por constantes negociações com as institucionalidades, em parentescos espirituais
vividos entre a pastora/“mãe na fé” e suas seguidoras/“filhas” ou, ainda, nos diálogos com o
mundo do trabalho promovidos através de um vocabulário que realçava os desejos do casal de
pastores em gerenciar o Projeto Mulheres Virtuosas enquanto empresa, conduzida por uma
“equipe de fé” em que eu também fazia parte como pesquisadora, “filha” e “virtuosa”.
Neste Ministério e “negócio” formado por meio de famílias espirituais, cuidar de
mulheres significa viver a exemplaridade enquanto esposa, mãe e empresária, não
necessariamente nesta ordem. A dimensão formativa desta dinâmica ganha sentidos de
continuidade repetidos em slogans facilmente encontrados nos circuitos mais amplos de
eventos voltados ao público evangélico feminino: “transformadas para transformar”, “cuidadas
para cuidar”, “curadas para curar”, entre outros.
Se, de um lado, investigo como a formação destas coletividades é baseada em éticas
pentecostais atravessadas por estratégias de legitimação e autoridade, também busco chamar a
atenção para desgastes e profundos sinais de esgotamento vivenciados pelas mulheres e pelo
casal de pastores nestes trajetos. Para além de um enquadramento acrítico às formas de sujeição
e aos custos subjetivos da conduta virtuosa (DÍAZ-BENÍTEZ; RANGEL; FERNANDES, 2018;
DÍAZ-BENÍTEZ; RANGEL, 2019), busquei compreender as ambivalências que conformam
estas éticas pentecostais. Suas movimentações destacaram modos como as diferenças criadas
no contexto capitalista neoliberal modulam processos desiguais de reconhecimento para
coletividades formadas nas periferias urbanas brasileiras, ao mesmo tempo que provocam
desestabilizações no âmbito das institucionalidades e ampliam horizontes para outras formas
de viver em Ministério.
106

2.1 Trajetos de um Ministério em casal: éticas do testemunho e rupturas da conversão

Quando conheci Cristiane, ela tinha 42 anos e duas filhas. Natural do interior de Minas
Gerais, a irmã caçula de uma família com muitos irmãos morava na capital carioca há 20 anos.
Acompanhá-la em eventos por diferentes igrejas, conversas no “privado” e grupos de
WhatsApp fez com que eu ouvisse diversas vezes sua “história com Jesus”, como costumava
chamar sua trajetória religiosa contada em conversas informais ou em formato de testemunhos.
A depender da temática a ser abordada na pregação que realizava, sua escolha poderia enfatizar
diferentes aspectos de três batalhas centrais travadas ao longo da conversão 102 ao
pentecostalismo: contra a “macumba” que atingira seus pais, contra os maus tratos causados
pelo ex-marido e, por fim, para driblar dificuldades em seu Ministério como pastora.
Sua primeira batalha familiar envolve o núcleo original em que nasceu e foi criada,
tendo sido implicada pelo pertencimento de seus pais à umbanda, religião de matriz africana
mais conhecida nesse contexto como “espiritismo”. Enquanto seu pai atuou como homem de
confiança de pais-de-santo em centros de umbanda, sua mãe era cambona 103. Ainda criança,
Cristiane presenciou inúmeras tentativas de seu pai em não sucumbir ao alcoolismo. A
“decepção com a macumba” fez então com que ele começasse a buscar outros auxílios,
começando a frequentar o Alcoólicos Anônimos. Na ocasião, conheceu um pastor que realizava
trabalhos de evangelização no local, que também passou a realizar visitas no lar da família para
expulsar demônios que seus pais “chamavam” para dentro de casa.
Ter nascido em um “lar espírita” e permanecido ali até o início da vida adulta conferia
elementos importantes para visibilizar a intensidade de uma batalha que, segundo Cristiane,
ocorreu em família. Com a exceção de sua mãe, que foi embora sem deixar notícias, todos os
integrantes de seu primeiro núcleo familiar haviam “aceitado Jesus” juntos, após a realização
de uma campanha de oração em sua casa liderada pelo mesmo pastor, que atuava na Igreja

102
Sobre a crítica direcionada à ênfase na conversão e sua chave do proselitismo pentecostal, cuja abordagem se
distancia da perspectiva da antropologia da ética, ver Coleman (2018).
103
Cambone, cambona ou cambono é o termo utilizado para se referir às pessoas que auxiliam o trabalho das
entidades da umbanda no decorrer das cerimônias religiosas. Ao tratar dos termos da Umbanda transportados de
Angola para o Brasil, Bastide (1971) registra o termo chamando atenção para o fato de Arthur Ramos não ter
encontrado a etimologia africana de "cambone". Simas e Rufino (2018) afirmam que “cambono é uma espécie de
auxiliar de pai de santo e das próprias entidades que, ao mesmo tempo, atua como um ‘faz tudo’ no terreiro: ele
varre o salão, acende o cachimbo da vovó, sustenta o verso nos corridos, organiza a assistência, auxilia os
consulentes, despacha a entrada, opera como tradutor nas consultas, registra o receituário, toma bronca e é
orientado” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 37).
107

Quadrangular104. A saída da mãe fornece lugar de mediação feminina (BIRMAN, 1996) neste
processo para uma das irmãs mais velhas, que também já frequentava a mesma igreja e
intercedeu no batismo do pai, assim como dos filhos e filhas.
O momento de virada para a segunda batalha de sua conversão envolveu seu casamento,
ocorrido com o ingresso na vida adulta. Em meados dos anos 1990, Cristiane viaja para o Rio
de Janeiro e conhece seu primeiro marido, que não era evangélico como ela e com quem
também teve sua primeira filha. Este período foi marcado pelo afastamento da vida evangélica,
quando o casal começa a trabalhar no setor de eventos e ingressa no campo das escolas de
samba cariocas. “Trabalhar no carnaval”, ao mesmo tempo em que propicia uma vida
financeiramente confortável, faz com que Cristiane “retorne para o mundão”.
O processo que envolveu, por outro lado, a retomada de uma “vida com Deus” encontra
em sua narrativa o aprofundamento das dificuldades e, por conseguinte, a necessidade de
renunciar aos prazeres na vida levada anteriormente. Sobre essa vida com um marido que não
a respeitava na ocasião, Cristiane conta sobre incertezas e inconsistências que a levam a
enfrentar disputas éticas sobre ter uma vida financeiramente confortável ou pedir o divórcio.
No entanto, o fato inesperado causado pelo falecimento precoce do cônjuge desloca esta decisão
para o domínio dos desígnios de Deus.
O sofrimento causado pelo comportamento expresso em frequentes traições, ciúmes e
desatenção ao prazer sexual da esposa é contado como um período de amadurecimento
espiritual. Antes do falecimento do marido, Cristiane se afasta sem pedir formalmente a
separação e ingressa em um contexto de profundas dificuldades financeiras com uma filha
pequena para sustentar. Os aprendizados decorrentes deste período são descritos como
motivadores dos principais motivos que a fizeram “começar a pregar sobre casamentos”. Em
seu primeiro trabalho como cabeleireira, ela conhece o que chama de “submundo” de frequentes
interações com prostitutas, travestis, homossexuais e mulheres de traficantes, pessoas com
quem conviveu no salão de beleza para o qual passou a trabalhar, local onde conta ter aprendido
a lidar com quem “vive na margem” e recebe o “desprezo da sociedade”.

104
A Igreja do Evangelho Quadrangular é uma das denominações mais antigas do pentecostalismo, sendo
geralmente classificada deuteropentecostal, ou seja, pertencente à segunda geração do pentecostalismo. Trata-se
de uma denominação autônoma e dissidente do Pentecostalismo clássico. Com sede nos Estados Unidos, foi criada
na década de 1920 e responsável por promover grandes mudanças nos costumes mais austeros associados aos
crentes a partir da década de 1950, aprofundados a partir do surgimento do neopentecostalismo. Sobre isso, ver
Mariano (2014). Segundo Pinto (2014), entre as denominações pentecostais esta foi uma igreja que ocupou espaço
de vanguarda no que se refere ao pastorado feminino.
108

Estas características em sua trajetória, por sua vez, são combinadas ao desenvolvimento
de sensibilidades que também compartilha em sua própria pele e corpo que enfrentou a fome e
a pobreza; em suas palavras, “só quem conhece a dor do preconceito consegue entender o
preconceito do outro”. A depender do local em que pregava ao longo de sua circulação por
diferentes igrejas e lares, Cristiane negociava quais critérios de autodefinição desejava
empregar. Palavras como “racismo”, “machismo” e similares 105 não integravam seu repertório
em nenhum destes espaços. Ao mesmo tempo que suas descrições não geravam identificações
identitárias com pautas associadas às demandas por políticas públicas voltadas para minorias
sociais, conhecer e fazer parte das margens era acionado com o objetivo de gerar integrações
fundamentais ao processo que fortalecia sua autoridade pastoral. As identidades, nesse sentido,
consolidavam-se enquanto dispositivos vividos em aliança com modos de construir a autoridade
religiosa.
A terceira e última virada em sua narrativa de conversão, desta vez para a batalha que
conta vivenciar até os dias de hoje, apresenta a formação do que indica como seu Ministério
enquanto pastora, iniciado quando conhece Bruno, seu atual marido. Seis anos mais novo que
a esposa, Bruno é natural da Região Serrana fluminense e trabalha no setor industrial,
fabricando peças para grandes embarcações. Assim como a família nuclear original de
Cristiane, ele também tinha uma vida pregressa no “espiritismo” que tinha sido rompida após
uma “experiência com Jesus” ocorrida pontualmente na catedral da IURD localizada no bairro
carioca de Del Castilho. Bruno e Cristiane se conheceram quando ambos estavam “no mundo”
e frequentavam esporadicamente os cultos de uma mesma igreja pentecostal localizada no
bairro da Lapa. Enquanto ela começava a crescer institucionalmente atuando na função de
liderança de grupos de jovens, função que, segundo ela, se assemelhava à de diaconisa em
diversas igrejas, Bruno aos poucos também adentrava na obra. O enfrentamento de dificuldades
relacionais descritas como “decepções” e “perseguições” nesta igreja fez, no entanto, com que
o casal buscasse outro espaço para congregar. Juntos, encontraram a igreja Missões 106, local em
que continuaram congregando ao longo de todo o período em que os acompanhei.
As superações de males associados às religiões de matriz africana, dificuldades no
casamento e decepções em igrejas anteriores fazem parte de variados testemunhos pentecostais,

105
Por outro lado, “negra” e “preta” surgem como autodefinição em muitas de nossas conversas informais e
preenchimento de documentos públicos em que a auxiliei. Durante suas pregações, “morena” e “moreninha” eram
também categorias que apareciam para designar pertencimentos a lugares representados em menor escala nas
produções audiovisuais e midiáticas de massa.
106
Nome fictício. Aprofundo sobre as dinâmicas desta igreja na próxima seção e no capítulo 4 da tese.
109

oportunamente analisados enquanto gênero narrativo secular e religioso (DULLO, 2016) e


modelo analítico para explicações sobre os efeitos do individualismo cristão na cultura
ocidental moderna (DUARTE et. al., 2006). Na medida em que os conflitos narrados por
Cristiane apresentam elementos significativos para a compreensão de como sua autoridade
religiosa é construída e legitimada, optei por explorar as dimensões relacionais de um trabalho
ético que envolve, de um lado, maturação no tempo (REINHARDT, 2021) e, do outro, expansão
no espaço (COLEMAN, 2018) para o desenvolvimento de seu chamado com mulheres.
Investigar estes testemunhos em relação a outras narrativas contadas e vividas por meio
de “práticas éticas”, como nomeia Daswani (2013), também se assemelha ao que Raphael Bispo
(2019, p. 121) chamou de “ir além do sofrimento sensacional”. Em diálogo com o trabalho de
Veena Das (2010), o autor aponta que as “temporalidades testemunhais” envolvem um trabalho
de profundidade nas condições e no tempo, envolvendo engajamentos em dinâmicas de gênero
constituintes de variadas experiências evangélicas femininas. No caso de Cristiane, este
trabalho foi construído enfrentando dilemas familiares que envolvem seus pais, seu primeiro
marido e seu ministério através de escolhas que não estiveram baseadas nos sentidos de uma
batalha ética por autonomia (MAHMOOD, 2005), mas por intervenções em que Deus fornece
limites para as situações difíceis.
Ter crescido em um “lar espírita” e depois se envolvido com um homem que a
desrespeitava tomou caminhos em sua trajetória moldados por desígnios dos tempos de ordem
divina. Os tempos de Deus forneceram aprendizados decorrentes destas situações, ao mesmo
tempo que também demandaram distintos amadurecimentos; se na primeira vez sua família
precisou batalhar conjuntamente para livrar-se do envolvimento dos pais na “macumba” e não
contou com sua intervenção direta na narrativa, na segunda batalha Cristiane cria uma relação
de proximidade com os males, conhecendo o “submundo” formado por moralidades sexuais
consideradas desviantes.
O exercício dialético entre conhecer Deus e acessar os males terrenos como modos de
aprendizado manifestam aquilo que Engelke (2010, p. 184) indicou sobre a ruptura pentecostal
também ser sempre “realinhamento” ou, ainda, um constante “exercício de desenho de limites”.
Em sentido semelhante, outras críticas feitas no campo da antropologia do cristianismo também
apontaram para os problemas em enxergar rupturas pentecostais como continuidades de
processos de modernização com o argumento de que esta perspectiva esvaziaria os sentidos de
110

transformação que sujeitos pentecostais atribuem às suas experiências (ROBBINS, 2003, 2010;
CANNELL, 2006 apud MARIZ, 2016)107.
Esta perspectiva permite analisar os aspectos éticos que envolvem temporalidades das
batalhas narradas por Cristiane através de elementos que nos permitem ir além de interpretações
em que continuidades e rupturas estão inseridas na chave dicotômica tradição e modernidade.
Em sua análise sobre a conversão pentecostal em igrejas africanas de Gana, Bruno Reinhardt
(2021) apontou para uma “relacionalidade da ruptura” que envolveria tanto o evento do
renascimento cristão em si quanto o processo, cujo objetivo é amadurecer a relação com o
divino. Enquanto orientação ética, o processo se divide em “eixos de amadurecimento” que
acompanham a caminhada cristã dos sujeitos pentecostais; entre eles, estão exercícios
espirituais que envolvem “encorporação da autoridade”, e a filiação às “comunidades de
prática”, cuja participação pode se dar através de redes institucionais ou não (REINHARDT,
2021, p. 56-68).
Tendo sobrevivido a um casamento em que foi maltratada e, por conseguinte, vivendo
a experiência de um pastorado em casal que a legitima a retornar ao passado para moldar a
“infraestrutura pedagógica”108 que constitui suas orientações pastorais para as mulheres,
Cristiane narra um processo de amadurecimento em que aprendeu a “pregar sobre casamentos”.
Além disso, o desenvolvimento de um de seus dons espirituais, a revelação 109, ocorreu com o
amadurecimento advindo destas mesmas situações de humilhação no casamento, como conta
em um destes testemunhos durante uma pregação: “Foi tanta paulada que eu tive que
amadurecer. E aí desenvolveu um dos dons meus que é o de revelação”. Estas e outras
“temporalidades testemunhais” (BISPO, 2021) forneceram à pastora autoridade não somente
para realizar intervenções pontuais, mas também inaugurar sua própria “comunidade de prática”
(ENGELKE, 2010; REINHARDT, 2021).
Os movimentos ambíguos de ruptura com modelos de família que se consideram
amaldiçoados e realinhamentos com elementos seculares ou “do mundo” constituíram batalhas
que, por sua vez, personificaram os desafios contados em testemunhos sobre as diversas
negociações que Cristiane enfrentava. Para além do tempo de Deus, o domínio do espaço
também se expandiu nos movimentos ambivalentes da batalha. No exemplo que exploro abaixo,

107
Para uma análise sobre tendências que as pesquisas brasileiras sobre o cristianismo assumiram através das
ênfases em continuidades e rupturas com a “cultura local”, ver Mariz e Campos (2014).
108
Ibid., p. 60.
109
A revelação é um dos dons do Espírito Santo, experimentada no contexto pentecostal como um recado enviado
por Deus através de pessoas, músicas, sonhos e outras formas de manifestação.
111

a pastora simula um diálogo entre duas vozes discordantes, a dela contra aquelas que chama de
“crentes linguarudas”, incitando tanto expansão como delimitação de fronteiras para defender
mudanças provocadas por novas gerações na igreja:

[Crente]: Ah, é grupo jovem, grupo de adolescente, eles são chatos!


[Pastora]: Chato nada, ajuda eles, que é melhor eles dentro da igreja!110
[C]: Ah, mas eles ficam dançando hip hop!
[P]: Problema! Melhor dançar dentro da igreja do que fora da igreja!
[C]: Ah, tão colocando o mundo dentro da igreja!
[P]: Problema! Tá trazendo alguém pra dentro da igreja? Então amém!
Quando eles crescerem, eles não vão mais dançar hip hop, filha, porque a
coluna não vai deixar, porque nada vai acontecer. Olha, amados, eu preciso
abrir esse adendo aqui, eu não aguento esse tipo de gente! Me perdoe se você
é assim. Já tô pedindo perdão.
[C]: Ah, tão pegando o mundo e botando dentro da igreja!
[P]: Tem coisa que realmente não dá, né? Tem coisa que só o sangue de Jesus
pra ter poder!
[C]: Ah, mas esses jovens com cabelo azul, cabelo cor-de-rosa!
[P]: Ah, então tá bom! E você, quando era novinha, usava black power, que
voltou agora na moda, mas nos anos 70, era só pra gente estranha! Seu marido,
que tá todo atrevido, com o cabelo cortadinho curto, usava aquele cabelo
longão, lá no meio das costas, era todo cabeludo! Ou você já esqueceu disso
também? Usa saia lá no pé, mas já usou minissaia, igual a Vanderleia, com
uma bota no meio da canela! Esqueceu isso também? Um dia você foi jovem!
[C]: Ah, mas eu era do mundo, eu não tava na igreja!
[P]: E daí? Mas não tinha crente naquela época!
[C]: Ah, mas isso que tem agora, Pastora, tá estranho!
[P]: Mas não tá dentro da casa do Senhor? Então dá glória! Porque quem
convence é o Espírito Santo, não é você não, linguaruda! Vai apoiar, vai
amar!
[C]: Ah, mas eu não vou apoiar esse tipo de coisa!
[P]: Não apoia o tipo de coisa, apoia o evento! Apoia o culto jovem! Apoia o
acampamento jovem! Apoia! Porque hoje eles estão com a cabeça azul, hoje
eles estão com essa roupa estranha, hoje eles estão dançando hip hop, eles
estão, né, desse jeito aí estranho, mas amanhã pode estar em cima do altar,
pregando pra você, sendo usadíssimo, nessa geração e na geração que vão vir!
(Mensagem de voz compartilhada no grupo de WhatsApp Mulheres
Virtuosas, setembro de 2017. Ênfases dela.)

Ao citar os eventos como situação que encerra a conversa para motivar uma mudança
da interlocutora imaginada, Cristiane indica que os cultos jovens, acampamentos e outras
festividades que fogem à programação corriqueira das igrejas atuam como espaços de fronteira
em que as moralidades pentecostais ganham outro status para serem negociadas. Eventos atuam
nos limites entre igreja e mundo, reproduzindo-se enquanto “mundo dentro da igreja”.

110
Todas as falas são de Cristiane, o uso de duas personagens/vozes visou separar a simulação de sua conversa
com alguém que reclama das ações dos jovens. O uso de negrito denota momentos de ênfase em sua fala que, neste
caso, se deram com o aumento do tom de voz.
112

Realizados em muitas ocasiões fora das igrejas, estes que são um dos principais braços de
expansão das ações religiosas no espaço fornecem elementos importantes daquilo que Simon
Coleman (2018, p. 301) comentou através do conceito de transbordamento, aprofundando
métodos que não ensejam permanecer na igreja, mas “estenderem-se para além de si mesmos”.
A vasta experiência de negociação entre fronteiras éticas do cristianismo pentecostal da
pastora opera como um indicador destas extensões promovidas no espaço através dos eventos.
Estas extensões estão ilustradas não somente nas narrativas de sua trajetória, contada através
dos testemunhos, mas na própria concepção do que chama de Projeto Mulheres Virtuosas. Nas
dinâmicas de circulação do casal de pastores, a escolha pelo termo Ministério já demonstrava
muitas das negociações que precisavam fazer para liderar um grupo que não estava vinculado
a uma institucionalidade.
As ambiguidades provocadas pelo desconforto de não ter “uma sede”, “uma placa”, “um
registro”, como Cristiane costumava reforçar, apresentavam tanto tensões entre presença e
ausência da igreja enquanto espaço de culto como os efeitos de autoridade gerados por símbolos
institucionais. Assim como demonstra o papel timbrado trabalhado por Das e Poole (2004)
como materialização das regulamentações e burocracias no âmbito do Estado, ser uma “igreja
sem placa” não sedimentaria os modos de representar o cotidiano institucional negociado a
partir da circulação de objetos e suas escrituras. Estes conflitos éticos aumentavam à medida
que suas seguidoras/virtuosas congregavam em diferentes igrejas, o que implicava em restringir
a autodenominação do grupo/Projeto como Ministério para não provocar deslizes com a
autoridade religiosa de outros(as) pastores(as) e congregações.
Conforme indicou Carly Machado (2020b), expandir suas ações para além dos templos
é característica central de ministérios pentecostais presentes nas periferias urbanas do Rio de
Janeiro. As dinâmicas “expansivas e multiplicadoras” (MACHADO, C., 2020b, p. 40) deste
modelo de ação religiosa ganharam atenção da autora para explicar como suas redes e práticas
formam o que chamou de “estética da política pentecostal”. Nesta reflexão sobre a construção
de um Ministério e suas coletividades de mulheres evangélicas, dialogo com a proposta da
autora de levar a sério possibilidades de abordagem com esta categoria analítica que também
explorem suas características como projetos de vida e de carreira em casal no pentecostalismo:

Eles [os ministérios] não cabem apenas em suas comunidades religiosas e nas
suas rotinas: apresentam como característica principal projetos voltados para
a vida no mundo, na cidade, nas casas, nas famílias, nas ruas, e por isso nos
ajudam a pensar a relação entre o religioso, o ordinário e o espaço público.
Além disso, são projetos: movidos por planos de futuro, não apenas pelo que
acontece no presente. Nesta dinâmica expansiva e multiplicadora, ministérios
113

são instituições dinâmicas, mutáveis, instáveis, e mobilizadoras de uma ampla


ação midiática e de comunicação (MACHADO, C., 2020b, p. 40).

Ao atentar para o dinamismo e fluidez que associam ministérios a pessoas, grupos,


espaços e mídias digitais nas circulações do casal, pude encontrar cruzamentos político-
religiosos para refletir sobre raça, gênero, sexualidade e geração, visibilizadas em diferentes
formas de negociar zonas de fronteira que analiso na tese. Ao analisar o que as pessoas fazem
e como usam termos que convencionamos estarem lexicamente estabelecidos, pude refletir
sobre ministérios para além de seu significado dicionarizado, cuja proposta realça a oposição
entre domínios do sagrado e da gestão pública (MINISTÉRIO, 2022), ou meramente adjetivo
em que opera enquanto sinônimo de domínios institucionais e considerados, portanto, oficiais.
As dinâmicas em torno do que se entende e como se vive enquanto Ministério, no
entanto, operam de diferentes maneiras a depender de quem são seus/suas agentes e do que se
espera deles/as. Conforme sugeriu Foucault (2008b) a respeito da própria categoria
“ministério”, desmontar seus discursos oficiais é necessário para refletir sobre sua fluidez
político-institucional. A argumentação do autor a respeito das lutas sobre quem conta histórias
da oficialidade apontam para os efeitos de poder intrínsecos entre os saberes que batalham pela
versão detentora da verdade, pavimentando caminhos para explorar o termo como categoria
analítica e analisar seus cruzamentos político-religiosos. Que fronteiras são tensionadas na
circulação destas mulheres e suas lideranças em um Ministério sem vínculos institucionais?
Como se dão as relações com as variadas institucionalidades que compõem suas integrantes?
Quais são os limites entre pertencimentos a um Ministério vinculado a uma igreja e outras
modalidades de fazer ministérios? Afinal de contas, o que é uma igreja?
Com esta última pergunta, busquei compreender como sentidos compartilhados sobre
as categorias Projeto, Ministério e grupo refletem noções de igreja experimentadas pelas
interlocutoras. Não se tratou, no entanto, de situar uma definição para o que estas mulheres
chamam de igreja, nem identificar o que estas categorias são ou representam. Ao percorrer
fluxos e trajetos associados a estas distintas categorias, não investiguei assim o que é um
Ministério, mas de que formas os movimentos feitos por seus(suas) agentes contribuem para
refletir sobre seu estado de constante transformação.
Explorar o caráter flutuante de uma categoria que permite mobilizar mulheres em torno
de eventos e mídias, ao mesmo tempo que as desmobiliza através do mesmo caráter fluido e
fragmentado deste fenômeno, despertou para uma análise que precisou considerar distintas
disputas enunciativas com a institucionalidade em torno da experiência religiosa. Em vez de
114

centralizar estas disputas nos templos e no espaço público mais amplo, indico formas com que
minhas interlocutoras expandem suas negociações institucionais através de alianças e
esgarçamentos dos laços de comunidade para sentidos de coletividades de mulheres evangélicas
através de múltiplos espaços congregacionais.

2.2 “Eu não nasci pra ser pastora de igreja”: mídias e institucionalização religiosa

Você pode ter a teoria, você pode ter o diploma, mas se você não tiver unção,
se você não tiver o chamado, se você não tiver o ide do Senhor, a unção do
Senhor, você não vai conseguir fazer nada, você só vai ter o diploma na
parede (Pregação da pastora Cristiane compartilhada por mensagem de voz no
grupo de WhatsApp, julho de 2019. Ênfases dela).

Entre as batalhas contadas por Cristiane em seus testemunhos, derrotar espíritos de


malignidade que a impediam que seguisse seu chamado como pastora recebia intensidades
provocadas por memórias mais recentes do que aquelas que contei anteriormente, envolvendo
sua família nuclear de origem e posterior. Embora não tivesse dúvidas de que havia se tornado
pastora pela “unção” e “ide ao Senhor”, contava que seu “chamado” não era para ser pastora
“de igreja”. Longe de ser descrito como um desejo vivenciado de forma solitária, a pastora
descreve o chamado como um compromisso espiritual estabelecido após uma incumbência
enviada por Deus, surgido após ter sido “perturbada” e “incomodada” em sonhos, revelações
através de louvores, pessoas próximas e desconhecidas 111.
As revelações, orações de cura e profecias por milagres eram feitas tanto em momentos
mais íntimos quanto em ocasiões públicas, durante os cultos e por mensagens de voz no
WhatsApp. Quando estes momentos ocorriam nas igrejas e lares pentecostais, a pastora
Cristiane tinha como hábito descer do altar ou simplesmente caminhar em direção a quem a
mensagem divina se destinava. Para as revelações, um dedo apontado em riste na altura dos
olhos acompanhava palavras proferidas com imposição e firmeza. Gradualmente, a pastora
passava a adotar um tom mais brando que sempre seguia com um abraço, frequentemente

111
A ênfase no “chamado” foi associada em diversos estudos sobre o pentecostalismo no Brasil à personalidade
carismática do pastor e explorada como um dos marcos da chamada “segunda onda pentecostal”. Segundo Clara
Mafra (2011), esta fase ocorre a partir dos anos 1950 e inaugura um novo estilo pentecostal, apostando na “soma
exuberante de signos de modernidade, desde o vestuário do pastor à sua informalidade e sensualidade, os corinhos
alegres e contagiantes” (MAFRA, 2011, p. 35). Enquanto as denominações que surgem durante esse período são
marcadas pela presença de instituições que não conseguem se perpetuar sem a presença de seus líderes fundadores,
a “terceira onda” desta que é uma religiosidade que se expressa pela “Palavra”, conforme também define a autora,
é marcada pela emergência de grandes denominações, das quais a IURD se torna o principal exemplo em que o
carisma antes alocado na figura pastoral é alocado para a instituição (MAFRA, 2011).
115

arrancando lágrimas de quem o recebia. A cena que se repetia em muitos momentos de


manifestação de dons que vi ao longo do trabalho de campo indicava para uma percepção
definida por muitos evangélicos pentecostais como “ser batizado no fogo”.
Diferente do batismo nas águas, momento que marca o “ingresso formal em uma igreja”
(RABELO, 2005, p. 23), o batismo no fogo corresponde ao preenchimento do corpo pelo
Espírito Santo com a manifestação de dons espirituais. Rodopiar ao redor de si mesmo, falar
em línguas, proferir revelações, profecias, entre outros, são dons frequentemente manifestados
em coletivo e durante o momento dos cultos. Os elementos distintos que marcam a diferença
entre os rituais de batismo pentecostais encontram no fogo descrições das próprias
ambivalências vivenciadas nestes processos. Se, em metáforas feitas por Cristiane, o fogo
aponta para o paroxismo de se estar próximo de Deus no altar (“o altar tem fogo, o fogo queima
mas pode aquecer também”, como costumava dizer nos cultos), as feridas curativas provocadas
pelo fogo também se apresentavam no simbolismo de uma “faca”. Ouvi este termo de Regina,
quando descreveu como as mensagens proferidas por Cristiane entravam em seus ouvidos de
maneira semelhante à própria palavra de Deus: “é como uma faca de dois gumes que entra
cortando e sarando ao mesmo tempo” 112.
Cristiane me contou logo em nossas primeiras conversas sobre seu “chamado ao altar”,
categoria frequentemente utilizada no contexto pentecostal mais amplo para indicar a iniciação
no ministério pastoral. No caso da pastora, este chamado havia surgido em um momento
cotidiano, enquanto assistia pela televisão uma pregação do bispo da Igreja Missões. O culto
estava sendo transmitido do bairro do Brás, região da capital paulista que abriga a presença de
diversos templos de denominação evangélica, inclusive o Templo de Salomão, da IURD. Como
muitas igrejas brasileiras de grande porte e com atuação nacional, a Missões contava com 54
filiais113 distribuídas pelo país, com cerca de 80% delas nos centros urbanos dos estados de São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Embora sua sede e locais escolhidos para seus principais
eventos estejam concentrados em zonas centrais dessas cidades, suas filiais ocupavam regiões
de grande circulação dos subúrbios e periferias brasileiras. Entre as ações evangelizadoras,
estavam programas de rádio e TV abertos, uma editora, projetos sociais para atendimento de

112
Entrevista feita em janeiro de 2021.
113
Número correspondente ao mês de novembro de 2022, registrado no site oficial da igreja. Os termos utilizados
entre aspas em notas e parágrafos que se referem à instituição foram retirados do site oficial da igreja, cujo endereço
não é citado com o objetivo de preservar a identidade das interlocutoras.
116

“moradores de rua” e “dependentes químicos” e dois eventos anuais, um deles um congresso


para mulheres 114.
Enquanto não chegavam filiais daquela igreja ao Rio de Janeiro, Cristiane assistia aos
cultos e realizava campanhas a distância, demonstrando-se “impactada com o mover de pessoas
sendo curadas e libertas”. Ao longo do trabalho de campo, ouvi de Diana, 30 anos e diaconisa
em uma das filiais cariocas da Missões, uma experiência parecida, quando ela também contou
ter conhecido esta igreja pela televisão. “Foi amor à primeira vista, eu tive certeza que ali era o
meu lugar!”, disse em nossa entrevista. Na Missões, Diana encontrou o “algo a mais [de] que
precisava”, pois “não estava feliz espiritualmente” e tinha “pouca liberdade para expressar sua
adoração” em outros ministérios, o que ela atribui à necessidade de se afastar de igrejas
“tradicionais” à medida que ia “descobrindo ser pentecostal”.
Embora tenha se reconhecido pentecostal desde a adolescência, quando se batizou na
Igreja Quadrangular, Cristiane atribui o “destravamento” de seu trabalho como pastora ao
“mover” proporcionado pela Missões quando ainda a acompanhava pela TV. Tanto em sua
narrativa como na de Diana, experiências semelhantes ao batismo no fogo são descritas e
indicam maneiras nas quais as interações com as mídias se apresentam enquanto elemento
distintivo na experiência pentecostal. Esta capacidade mediadora da religião com as mídias
pode ser compreendida, assim, através de “mídias anteriores que há mais tempo caracterizam
uma prática religiosa” (MEYER, 2019a, p. 43). Concordando com Birgit Meyer (2019a, p. 42),
religião e mídia trazem dimensões de emaranhamento tecnológico e espiritual que não se
comportam como “esferas ontologicamente distintas que se embatem”.
De um cenário que apostou em mobilizações analógicas e digitais que resultaram em
experiências citadas no início desta seção, como a de Diana, a experiência de Cristiane na
Missões chama a atenção para a importância do desenvolvimento de novas narrativas que
emergem na TV no aprendizado cotidiano de virtudes pentecostais. Quando ouvi Lídia, outra
interlocutora que, aos 34 anos e convertida desde a infância, descrever como seu processo de
“aproximação de Deus” se consolidou não através da convivência na igreja, mas após ter

114
De modo distinto ao que pode ser encontrado em sites de grandes igrejas brasileiras, na descrição de sua história
a Missões faz referência à “terceira onda neopentecostal” (FRESTON, 1993) para explicar sobre seu afastamento
do protestantismo clássico e suas principais doutrinas, como a manifestação de dons do Espírito Santo e a operação
dos milagres de cura e libertação. Embora não tenha acessado as lideranças chamadas de “oficiais” da igreja para
compreender melhor sobre os usos do termo “neopentecostal”, considero este um dado relevante na medida em
que era uma categoria também ocasionalmente utilizada pelas interlocutoras da Missões com quem tive contato.
Por este motivo, optei por utilizar em muitas passagens da tese o prefixo “neo” entre parênteses e de modo
alternado ao uso do termo pentecostal, embora este tenha sido privilegiado por extrapolar domínios
denominacionais.
117

assistido à novela “Os Dez Mandamentos” 115, alguns dos pontos de articulação que organizam
a existência de ministérios-mídia como aperfeiçoamento da ética virtuosa ficaram mais
evidentes:

Fiquei mais impressionada quando eu comecei a ver a novela, a ver as


maravilhas que Deus fazia na vida do povo hebreu. Então eu comecei a me
interessar, comecei a ler a Bíblia, lá no comecinho da Bíblia em Gênesis,
quando fala de quando Deus fez o mundo [...] Eu comecei a sentir mais
vontade de tá mais próximo de Deus. Aí eu comecei a ver na Netflix do
começo até o fim pra entender as coisas que Deus fazia. Através dessa novela,
eu comecei a ver o que eu deveria fazer e o que eu não poderia fazer, o que eu
não tinha que fazer, sabe? (Entrevista realizada por mensagem de voz no
WhatsApp, 03 de agosto de 2019).

A experiência de Lídia reflete como o engajamento com as mídias nesse contexto


apresenta as múltiplas possibilidades que o digital assume através de continuidades com ações
desenvolvidas desde as tecnologias analógicas no pentecostalismo. Das novelas exibidas
diariamente à “maratona” na Netflix, termo decorrente do uso intensivo e recente deste tipo de
tecnologia, a eficácia do uso do rádio e TV enquanto prática de evangelização transformou a
relação entre mídias e pentecostais em alvo preferencial nas buscas por explicações sobre o
crescimento desta denominação cristã a partir dos anos 1990. Das inúmeras e competentes
interpretações socioantropológicas a respeito destas relações para compreender o crescimento
pentecostal resultante da migração de outras religiosidades, a abordagem inaugurada por
Sanchis (1994) sobre disputas travadas entre catolicismo e pentecostalismo informa sobre como
a atuação voltada para o contato direto com um mundo espiritual sem mediações, cujo contato
se dá diretamente entre lideranças e fiéis, era interpretada como ameaçadora ao projeto de
identidade nacional católica.
O que o autor indicou como “problema dos ministérios pentecostais” se apresentou no
contexto em que suas palavras foram publicadas enquanto realidade dificilmente contornável,
na medida em que “não se reduz a um aspecto organizacional”, mas representa um “problema
estrutural” para a Igreja Católica (SANCHIS, 1994, p. 151). Resgato aqui brevemente estas
disputas para situar modos como a ameaçadora capacidade fluida dos ministérios pentecostais
ganhou sentidos que culminaram em reflexões sobre as distinções entre o “campo religioso” e
o “campo das religiões”. Esta noção de práticas religiosas cada vez menos institucionalizadas

115
A novela foi exibida entre os anos de 2015 e 2016, pela Rede Record, e já foi adaptada para uma série dividida
em duas temporadas e exibida pelo serviço de transmissão via streaming Netflix. A série foi retirada deste catálogo
em 2019 e, atualmente, a plataforma disponibiliza somente a adaptação para o filme homônimo.
118

e circunscritas às igrejas fez com que posteriormente Sanchis (2006) tratasse de modo mais
direto a questão do lugar das mídias, apontando para a criação de “brechas institucionais” que
legitimam traços privativos da experiência religiosa e, por sua vez, fortalecem estes espaços.
Na leitura do autor, os usos das mídias causariam mudanças em torno da relação do fiel com a
institucionalidade na medida em que expandem espaços e tempos para a atuação religiosa, o
que também permitiria abordar um ponto significativo ao debate sobre o caráter multiplicador
e não substitutivo dos ministérios em relação aos templos, mídias e seus outros espaços de
atuação.
Sendo sujeitos pentecostais produtores e efeitos da “religião como mídia” (STOLOW,
2005), o debate que articula mídias aos desafios em torno da institucionalização religiosa aponta
para como ministérios se expandem através das mídias em múltiplas frentes. Por meio de
expansões de “ministérios pessoais” (MACHADO, C., 2020b), aqui visibilizadas através do
Projeto do casal e da pastora em “cuidar de mulheres”, Cristiane, Diana e outras interlocutoras
da Missões vivem seus chamados enquanto formas mediadas de fazer vínculo com o divino do
pentecostalismo. Indicar que a etnografia baseada na convivência em múltiplos meios com as
interlocutoras levou para um trabalho de campo desenvolvido para além dos templos não
somente aponta, assim, para uma expansão espacial e temporal através do método de um
trabalho em fluxo, como também se reflete nos próprios movimentos elaborados em frases ditas
pelas mulheres evangélicas, a exemplo da que foi enunciada pela pastora Cristiane e abre a
presente seção.
Nestes caminhos reflexivos sobre o chamado, a manifestação de dons espirituais e
outros fenômenos presentes em análises sobre a religião, esta experiência constituída por
“modos de conhecimento” e “regimes de enunciação” (VELHO, O., 2010) se contrasta com a
ideia de crença já amplamente criticada por diferentes teorias críticas ao secularismo. A atuação
das mídias possibilita compreender modos como comportamentos de fiéis que são
simplificadamente interpretados como o “fim da religião”, tais como o esvaziamento de igrejas
e novas formas de atuação que contam com o uso de mídias digitais, podem oferecer alternativas
para pensar, em seu lugar, sobre o que Otávio Velho (2010) apontou como a persistência do
cristianismo, em continuidade à proposta de Latour (1996) sobre as relações entre linguagens
religiosas e modernas e suas dimensões simultaneamente reais e construídas, elaboradas através
de seu conceito de “fatiche”:

Afinal, assim como as igrejas que Latour descreve em Jubilier, os estádios de


futebol também podem eventualmente se esvaziar, ainda que isso não
119

signifique que estejamos testemunhando o fim do futebol, apenas uma


mudança nos modos pelos quais os fãs do esporte se expressam. E isso sem
mencionar o Islã, que – novamente em tempo dobrado – tornou-se mais uma
vez parte da Europa, não sendo mais passível de ser tratado como uma
externalidade (VELHO, 2010, p. 13, grifos do autor).

2.3 Informalidade e renúncia em carreiras pastorais autônomas

Com a chegada da primeira filial da Missões em 2015 no Rio de Janeiro, Cristiane e


Bruno se candidataram ao primeiro cargo da hierarquia da igreja, o de colaboradores, passando
a ficar responsáveis pelo trabalho de libertação de demônios, além de atividades rotineiras como
limpeza e preparo de alimentos. Pouco tempo depois, no mesmo dia e naquela mesma igreja,
foram “separados”116 como pastores, recebendo do bispo atuante naquela filial a unção que os
autorizaria a evangelizar como pastores. Esta foi a primeira oportunidade do casal como
pastores na Missões, que se deu em uma nascente filial em São Gonçalo onde começariam
liderando os cultos nos dias em que a igreja estaria aberta ao público: às quartas e domingos.
Na ocasião, foi ofertada ao casal a proposta de receberem salário pelo trabalho na obra,
sendo convidados a morarem na igreja com isenção de aluguel e despesas básicas. O valor, no
entanto, seria recebido mediante dedicação exclusiva. Com uma filha recém-nascida, além da
adolescente gerada no antigo casamento de Cristiane, o casal considerou o salário muito baixo
para garantir o sustento da família e optou por manter o emprego de Bruno, então único
provedor da família. Meses depois, Bruno ficou desempregado e encontrou como alternativa
uma proposta que passou a seguir com Cristiane em diferentes filiais da Missões: o exercício
do cargo de pastores voluntários 117.
Assim, o casal passou a auxiliar cultos de pastores chamados de “oficiais” em uma filial
recém-inaugurada no galpão de uma loja na Região Serrana fluminense. A falta de
infraestrutura do local foi detalhada em múltiplos testemunhos sobre os martírios que
compuseram esta fase. Desafios relacionados ao longo tempo de viagem, a ausência de piso no
chão e as paredes “embolsadas” 118 do local, que ampliavam a manifestação de insetos
peçonhentos, as sensações térmicas do ambiente, entre outros detalhes, eram sempre contados

116
A “separação” é uma categoria utilizada pelos interlocutores que designa a primeira fase da carreira pastoral
naquela igreja. Em seguida, haveria o “levantamento” de pastores, fase em que recebem a unção pastoral e estariam
autorizados a realizar pregações com o título de pastores nesse contexto.
117
A designação de voluntários pode encontrar sentidos semelhantes no que outras denominações chamam por
termos como “pastores assistentes”.
118
Termo que corresponde à etapa intermediária do processo de acabamento das paredes de uma estrutura, formado
pela argamassa aparente anterior ao reboco.
120

com expectativas por transformações subjetivas e materiais advindas da “ética da prosperidade”


(COLEMAN, 2018).
A multiplicação de filiais da Missões no Rio de Janeiro fez com que o casal recebesse a
oportunidade de atuar como pastores voluntários mais próximos de casa. Na primeira filial
carioca da igreja Missões, a mesma em que haviam começado, passaram a auxiliar cultos de
pastores “oficiais” e realizar eventos nos sábados, dia destinado às festividades. Por não
fazerem parte do grupo de oficiais e considerados “100%”, como são conhecidos pastores(as)
que “vivem da obra” nesta unidade e recebem salário da igreja, Bruno dobrou turnos de seu
trabalho, enquanto Cristiane buscava conciliar o acolhimento de mulheres que denominava
como “em situação de sofrimento” com a rotina doméstica e cuidados com as filhas.
Como apresento na introdução deste capítulo, seus primeiros vínculos com fiéis para a
criação do grupo das virtuosas se deram nesta filial da Missões, enquanto a pastora realizava
atendimentos individuais àquelas que solicitavam orações no final dos cultos. De doações
enviadas após graças concedidas pelas fiéis através de intercessões no primeiro dos grupos de
WhatsApp Mulheres Virtuosas criados na ocasião, o crescimento do Ministério pastoral de
Cristiane fora da igreja também passou a contribuir financeiramente para o sustento da família.
Assim, embora sobrecarregados em diferentes trabalhos externos e internos à Missões,
não receber salário da obra e sustentar vínculos institucionais mais frouxos era narrado como a
única possibilidade de administrar seu próprio Ministério e viver uma carreira pastoral que
fornecesse autonomia para que transitassem em diferentes instituições. Na medida em que esta
mesma flexibilidade não era autorizada aos(às) pastores e pastoras oficiais da Missões, ser
convidado(a) a pregar em diferentes igrejas assemelhava os trajetos de Cristiane e Bruno ao que
costuma ser associado ao renome adquirido por palestrantes em eventos. Com base nas
informações fornecidas pelas(os) interlocutoras(es), a tabela abaixo mostra que o incentivo às
carreiras autônomas na igreja também se colocava para outros cargos.
121

Quadro 1: Hierarquia religiosa na Igreja Missões, em ordem decrescente de autoridade

Dedicação à obra
Hierarquia Posição
“100%” Voluntária
Episcopal Bispo e Bispa da
Não se aplica
sede principal
Bispos de outras
Episcopal sedes (não há Não se aplica
bispas)

Pastoral Pastores e Pastoras

Presbíteros

Diáconos e
Outras Diaconisas
vinculações
Obreiros e Obreiras

Evangelistas

Colaboradores e Não se
Não se aplica
Colaboradoras aplica
Legenda:
Podem ocupar cargos na igreja
Não podem ocupar cargos na igreja
Localização do casal de pastores Cristiane e Bruno
Fonte: Elaboração da autora.

Embora a igreja buscasse formalizar a progressão hierárquica de cargos, havia, além do


casal, outros pastores, pastoras e bispos que não seguiam a linearidade que uma interpretação
mais apressada da tabela pode levar a supor. Os critérios para escolha de quem receberia estes
títulos seguiam dinâmicas de ascensão que foram justificadas por membros com quem tive
contato durante a pesquisa de variadas maneiras. Enquanto alguns atribuíam o crescimento ao
carisma individual de pastores “bons de obra”, outros apontavam para dinâmicas paralelas em
que o título era fornecido a “empresários” que se tornam pastores por serem provedores e
dizimistas da igreja. A “unção dos endinheirados”, como foi descrita por uma das fiéis,
122

implicava nesse sentido em dinâmicas de progressão instantâneas através das quais o título
pastoral era fornecido como retribuição de favores, em suas palavras, “para inflar o ego”.
As dinâmicas em relação ao tempo dedicado a cada cargo também variavam
significativamente, a depender da disponibilidade do(a) membro(a) e das relações de poder
envolvidas em seu entorno. Assim como as demarcações sobre a formalidade no acesso
institucional ocorridas no batismo, as progressões também contam com diferentes rituais
públicos de unção realizados na igreja. Nesta igreja, o bispo da filial ou da sede, maior liderança
na hierarquia, joga um talit119 por cima do corpo curvado em posição de oração e derrama óleo
sobre a cabeça do(a) candidato(a) ao pastorado.
Conforme me explicou o pastor Bruno, a progressão do casal ao pastorado foi composta
primeiro pela “separação”, que corresponde à unção divina e é realizada pelo bispo da filial,
liderança que não ocupa o topo da hierarquia, e, posteriormente, pelo “levantamento”, quando
os pastores recebem a unção que confirma oficialmente o pastorado na igreja, realizada somente
pelo bispo da sede, que ocupa o cargo de maior hierarquia, diretamente na sede do Brás ou
através de uma visita dele às filiais. Ao serem “separados” por outro bispo que atuava na ocasião
na filial, Bruno indica que ele e Cristiane haviam se tornado pastores, mas “sem a unção do
homem”. A descrição do pastor aponta para outras hierarquias que atuam nestes “chamados”,
desta vez entre humano e divino.
Além da exigência de passar por todas as etapas, também não notei indicações de tempos
mínimo ou máximo para cada uma delas. A diaconisa Diana, por exemplo, me informou ter
progredido rapidamente em seu cargo, sendo sua dedicação e tempo despedido nos trabalhos
da igreja os fatores preponderantes à decisão que contou sobre a progressão. Também foi Diana
que me lembrou dos controles exercidos pela instituição no que diz respeito à circulação de
pessoas com cargos oficiais e voluntários em informações consideradas de maior sigilo. Para
funções como tesoureiros(as) e secretários(as), a ocupação era exclusivamente destinada a
pessoas com cargos oficiais. Dessa forma, além das distinções atribuídas pela própria hierarquia
dos cargos, atuar como voluntário ou “100%” demarcava afastamentos em relação às
informações de bastidores da igreja e aos cargos de maior influência.

119
O talit é um acessório vinculado à tradição judaica, também conhecido como “xale de oração”. Em diferentes
variações, é utilizado em modelos na cor branca, com franjas brancas e listras verticais azuis ou pretas, sendo
utilizado no contexto pentecostal para demarcar o vínculo sagrado de representação com profetas bíblicos. Na
inauguração do Templo de Salomão, Edir Macedo utilizava, além do talit, o kipá judaico (“DEPOIMENTO DO
BISPO…”, 2016).
123

Estes dados apontam para maneiras de não somente situar o casal de pastores nesta
dinâmica como também identificar formas pelas quais sobretudo a pastora Cristiane pôde
“furar” espaços pré-estabelecidos para as hierarquias e construir um Ministério paralelo na
carreira de pastora voluntária. Do engajamento que se deu através dos usos das mídias e de sua
circulação em diferentes igrejas e espaços da cidade, o casal conseguiu criar seus próprios
canais de comunicação diretamente com as fiéis da Missões, além daquelas que conheciam
noutros espaços nos quais era convidados a pregar. Na medida em que o contato direto com o
mundo espiritual é um fator diferencial no contexto cristão, o casal conduzia seus caminhos
através destes e outros dispositivos da “estrutura cindida de autoridade” que orienta as rupturas
forjadas nas éticas pentecostais (REINHARDT, 2021).
Embora eu já tenha conhecido o casal vivenciando uma fase financeiramente mais
confortável que a anteriormente descrita no testemunho de Cristiane, as dedicações aos cultos
na Missões e eventos não contavam com nenhum tipo de ressarcimento financeiro. Ao longo
do tempo em que os acompanhei, houve somente uma ocasião em que receberam um auxílio da
igreja, que consistia no pagamento de uma cesta básica, ocorrido durante seis meses. Junto aos
convites para pregar em outras igrejas com a legitimidade do título de “pastores da Missões”,
como sempre iniciavam suas pregações, havia dificuldades estruturais que presenciei quando
pude acompanhá-los em trajetos mais curtos ou em viagens para outras cidades e estados.
Para os Chás, havia arrecadação prévia de dinheiro das integrantes que participariam do
evento para que custeassem o meio de transporte e alimentação. As ocasiões contavam
geralmente com vans e kombis de modelo antigo, pagos através de uma divisão que contava
com uma média de cinco participantes, além do casal. Assim, as trocas de favores e outras
formas de doação pontuais que mantinham estes deslocamentos também localizavam o casal
em posições marginalizadas em relação a outras modalidades de pastores, a exemplo daqueles
que recebem o título de “oficiais” na igreja mencionada.
A falta de vínculos institucionais em um contexto em que são as instituições que
valorizam e dão legitimidade às carreiras pastorais oferecia ao casal aquilo que Mariana Côrtes
(2017, 2021) chamou de uma posição “bastarda”. Tomo esta expressão emprestada da autora,
que em suas pesquisas utilizou-a para se referir ao modo como os sujeitos pentecostais circulam
socialmente, com o objetivo de diminuir a escala de análise em torno do casal e do contexto das
institucionalidades formada no circuito de grandes igrejas pentecostais, aqui apresentado por
meio das hierarquias na igreja Missões. Ao analisar carreiras de pregadores itinerantes, Mariana
Côrtes (2017, 2021) sugere que estes sujeitos que circulam nos grandes centros urbanos
vendendo testemunhos sobre o passado no crime, nas drogas, na homossexualidade, nas
124

religiões de matriz africana, formam um “ex-tudo” que compõe o precarizado mercado de


pregações do mundo das virações120 que contorna o pentecostalismo. Como demonstra a
trajetória do casal de pastores Cristiane e Bruno, neste mercado religioso informal há tanto
espaço para pregadores mendicantes como para pastores voluntários e demais modalidades de
ser assistente em grandes denominações, as quais adotam as pregações itinerantes para a
formação de Ministérios como estratégia de subsistência de carreiras pastorais precarizadas por
elites econômicas formadas por lideranças pentecostais e conglomerados político-midiáticos.
As homogeneizações produzidas por enquadramentos do campo evangélico costumam
colocar em primeiro plano “denúncias” sobre a suntuosidade de templos e a ostentação de
lideranças, sobretudo às custas de dízimos de fiéis. Por tabela, este cenário acaba por incluir
uma amplitude de lideranças pentecostais periféricas, obliterando as questões que atravessam
as virações que incidem na articulação da religião a marcadores sociais da diferença para além
da classe social, tais como gênero e raça. A construção de uma carreira pentecostal ordinária,
ao contrário do que este panorama denunciatório homogeneamente leva a crer, está entremeada
por limites significativos aos(às) aspirantes ao pastorado e, longe do que estes argumentos
colocam, nem sempre traz riqueza e ostentação às lideranças.
Em seu lugar, há uma vida repleta de “renúncias”, como Cristiane costumava chamar,
que diferenciam “verdadeiros pastores e pregoeiros do evangelho” dos “profissionais da fé”,
termo que ela utilizava para indicar quem ascendia no mundo evangélico para “se dar bem”.
Diferente dos sujeitos descritos por Mariana Côrtes (2017, 2021), que não mais ou nunca
haviam se vinculado a nenhum tipo de institucionalidade religiosa, o casal de pastores apresenta
como benefício poder “fazer seu nome” como pastores de uma grande denominação nestas
itinerâncias. Ao mesmo tempo em que este caráter flexibilizador de um frágil pertencimento à
igreja gerava ganhos em relação aos fluxos por diferentes templos, também notei diversos
efeitos negativos relacionados ao trabalho autônomo que o casal desempenhava na instituição.
Além de sequer serem reconhecidos como pastores por parte da membresia da Missões, como
demonstro a partir de uma viagem feita em caravana com fiéis da igreja (ver seção 4.1 da tese),
Cristiane e Bruno só passaram pelo ritual que os reconheceria formalmente pelas lideranças
mais altas na hierarquia da Missões após uma viagem de Cristiane como pastora para a Europa,
financiada por mulheres do Ministério Mulheres Virtuosas.
Ao apontar para esta situação de excepcionalidade envolvida na progressão de cargo do
casal, não objetivo analisar relações diretas entre os eventos, mas indicar este como mais um

120
Para contribuições no campo antropológico dos debates sobre viração, ver Gregori (2000).
125

dado relativo às adversidades agenciadas pelo casal em sua progressão pastoral. Conforme
busco descrever ao longo deste e de outros capítulos, apontar para a relação estabelecida com
as coisas e suas dinâmicas de raça e classe compôs um investimento analítico em que a
precarização desta modalidade de carreira pastoral121 não se detém em uma abordagem sobre a
falta. Trata-se, assim, de uma perspectiva crítica tanto à dualidade ocidental entre essência e
superficialidade, chamada por Daniel Miller (2013, p. 28) de “ontologia de profundidade”,
quanto à sociedade de consumo como “perda de profundidade no mundo” (MILLER, 2013, p.
35) que frequentemente pauta estudos sobre o pentecostalismo.
Nos dilemas que movimentam as relações entre pentecostalismo e neoliberalismo, optei
por explorar como agenciamentos nos circuitos formais de uma igreja possibilitam a formação
de espaços não-institucionais que dialogam com movimentos de suas lideranças em um quadro
de abertura e limitações vivenciadas em carreiras pastorais autônomas. Como indico na seção
a seguir, nas dinâmicas ocorridas no interior do Ministério, as virtuosas também frequentemente
negociam limites entre diferentes institucionalidades.
Para além disso, acompanhar os deslocamentos do casal de pastores apontou para
agenciamentos que combinam essas negociações com as institucionalidades ao acionamento de
um chamado pastoral exercido em casal e informalmente vinculado a uma grande denominação.
Junto às narrativas em testemunhos e pregações que apresentei em seções anteriores,
compreendi o cotidiano do Ministério por meio das dinâmicas de parentesco espiritual que
Cristiane construía enquanto “mãe na fé” com suas “filhas”/ “virtuosas”, tornando o ato de fazer
família enquanto mais um modo de legitimar autoridade religiosa entre lideranças e virtuosas.

2.4 Mãe e filhas na fé: dívidas e dádivas dos parentescos espirituais

Ao longo dos anos em que realizei esta etnografia, ouvir mensagens de voz da pastora
Cristiane ocupou tempo significativo em meu cotidiano de pesquisa. Seus longos áudios traziam
uma voz que fala pausadamente e com muita tranquilidade, misturando assuntos sérios ao tom
descontraído com o didatismo de quem aprecia compartilhar histórias. Além de acompanhar
seus investimentos no grupo, criamos uma relação em que nos falávamos constantemente “no
privado”, na conversa apenas entre nós duas. Nestes movimentos em que me tornei uma espécie

121
Na igreja Missões havia outros pastores que atuavam como voluntários, mas meu vínculo com o casal de
interlocutores desfavoreceu o acesso a outros pastores desta igreja. Nesse sentido, a busca por estratégias
metodológicas que favorecessem minha permanência no campo equilibrou constrangimentos e dificuldades que
geraram limitações para uma compreensão de dinâmicas mais aprofundadas sobre a igreja em questão.
126

de assistente para o grupo, era esperado que passasse a ser considerada uma “virtuosa”, o que
implicou também em ser nomeada como “filha” pelo casal de pastores.
Ao mesmo tempo que passei a resolver pequenos problemas, em boa parte relacionados
às burocracias com documentos e ao manuseio de tecnologias digitais para ampliar sua
circulação como pastora nas redes sociais, participava do planejamento de diversas ações para
os eventos liderados pela pastora junto a outras virtuosas. Aquilo que Cristiane me permitiu
acessar de sua trajetória como pastora voluntária de uma igreja e, paralelamente, pastora de um
grupo que preferia chamar de seu “projeto pessoal” para diferenciar estas funções, fez com que
eu participasse de muitas destas negociações com as institucionalidades pentecostais em busca
de ampliar e legitimar seu Projeto enquanto Ministério.
Desde o início da pesquisa, me propus a auxiliar em diferentes esforços de engajamento
com as mídias, que incluíram, além da produção de materiais de divulgação para o Chá, como
cartazes e registros em fotos e vídeos durante os eventos, documentos para solicitar apoio
financeiro, a produção de um logotipo, um jornal para o grupo122 e a criação e manutenção de
perfis para a pastora Cristiane em plataformas de redes sociais como o Facebook, YouTube e
TikTok. Esses elementos tanto construíram minha participação interventiva como parte da
produção da linguagem audiovisual que circulava no grupo, como também fizeram com que
demandas que anteriormente pareciam inegociáveis, como a necessidade de conversão ao
pentecostalismo, fosse perdendo a relevância nesse contexto.
Diferente de nossas interações iniciais, em que minhas idas aos cultos sempre contavam
com mensagens em revelações e profecias de que eu não teria chegado até lá para fazer uma
pesquisa, mas para buscar Jesus, passar a trabalhar para a ampliação do Ministério me
distanciou do lugar ocupado pela expectativa da conversão para ser legitimada como alguém
que “trabalhava pra Jesus”. Esta categoria de designação nativa foi oferecida por uma das
virtuosas quando me viu realizando registros fotográficos do culto. Combinada a outros modos
como eu era conhecida – “a menina que tira fotos”, “jornalista”, “psicóloga”, “pesquisadora”
etc. – “trabalhar pra Jesus” operou margens de manobra entre um espaço em que, mesmo não
sendo evangélica, pude obter boa circulação no campo e ser posicionada em uma relação de
respeito com a religião, aproximando esta nomeação do que Vagner Gonçalves da Silva (2015,
p. 61) chamou de “uma categoria liminar, entre o religioso e o leigo”, um “quase religioso”.

122
As informações a respeito destes materiais se encontram mais detalhadas no capítulo 4 da tese, cujo foco nos
circuitos dos eventos encaminhou a análise para as negociações envolvidas na gestão da imagem pública do
Ministério.
127

Categorias como esta que me foi atribuída apontam caminhos para compreender a
permanência de pesquisadores que não manifestam a mesma adesão religiosa do grupo que
pesquisa, apontando para as múltiplas possibilidades e contingências históricas nos
desdobramentos da expectativa relacionada à conversão para o campo evangélico. De modo
distinto da categoria “filha”, que não necessariamente estabelecia vínculos entre as virtuosas,
“trabalhar pra Jesus” driblava adversidades geradas pelo fato de não ser evangélica ou não ter
me convertido durante o trabalho de campo. Estas desconfianças geradas por diferentes
pertencimentos religiosos no contexto evangélico se assemelham àquilo que Regina Novaes
(1979) indicou sobre uma dinâmica inversa para as relações de pesquisa etnográfica. Nos casos
em que a conversão não ocorre, indica a autora: quanto mais tempo, menor a confiança123. Além
desses fatores, considero que minha própria posição em assumir um pertencimento católico
quando me foi diretamente perguntado apontou para menores possibilidades de gerar
confrontos mais radicais em relação ao pertencimento religioso.
Pesquisas clássicas como a de Rubem Cesar Fernandes et al. (1999) chamaram a atenção
para o catolicismo como o pertencimento religioso com maior aceitação entre evangélicos de
diferentes denominações. A partir de minha convivência com as interlocutoras evangélicas,
considero importante ressaltar para o peso negativo causado nestas convivências do imaginário
de sincretismo presente no pertencimento católico com as religiões de matriz africana. “A
pessoa fala que é católica, mas a maioria delas tem um pé no espiritismo”, como me disse uma
interlocutora em entrevista. Este dado, por sua vez, implicava em movimentos de desconfiança
em direção à convivência com católicos que não se convertem ao longo do tempo. Nesse
sentido, complemento o argumento de Novaes (1979) para indicar que ser católica(o) é um fator
que se alinha ao tempo para que faça maior ou menor diferença no contexto evangélico 124.
Minha convivência mais intensa com o casal de pastores se estendeu de modo gradual
às virtuosas. Além dos Chás das Mulheres Virtuosas, também nos encontrávamos em
festividades de suas igrejas e noutras ocasiões celebrativas, ocorridas com e sem a presença do

123
Adiciono a isso também os efeitos gerados por um contexto político partidário que recebeu significativas
transformações desde minha entrada no trabalho de campo, em 2017, quando o apoio de segmentos evangélicos
ao ex-presidente Jair Bolsonaro passa a se fortalecer. Desde então, meus posicionamentos públicos em redes
sociais como feminista e contrários ao candidato geraram, de um lado, debates diretos com pessoas de quem eu
mais me aproximei, e afastamentos por parte daquelas com quem tinha menos proximidade no campo, o que
ocorreu sobretudo no período eleitoral de 2018. Vale lembrar que a ocasião esteve marcada pela primeira disputa
eleitoral contra o Partido dos Trabalhadores (PT) após o impeachment sofrido por Dilma Rousseff, que havia se
reeleito como presidenta pelo mesmo partido.
124
Também é relevante apontar para transformações mais recentes que se referem às políticas de aproximação
entre católicos e evangélicos no campo da política institucional, trabalhados na pesquisa de Maria das Dores
Machado (2015, p. 48) como forma de “preservar o caráter cristão da moralidade pública brasileira”.
128

casal, quando também passei a conviver de modo mais próximo com a “tropa de elite das
virtuosas”, como eram chamadas as principais envolvidas na organização do Chá e de outros
projetos de expansão do Ministério. As membras da “tropa”, como eram mais frequentemente
nomeadas em alusão aos grupos policiais destinados às operações especiais (no Rio de Janeiro,
o BOPE), contavam com eventos e grupos de WhatsApp separados e menores em relação aos
grupos de oração, dos quais também fiz parte de alguns. Como definiu Glória, uma de suas
integrantes, a diferença entre este e outros grupos estaria relacionada à profundidade da entrega
às orações:

A gente intercede em prol da pessoa, mas fica restrito à gente ali, um grupo
fechado. A gente cai no pau o capeta, entendeu? Tô falando com você e tô
sentido Deus. A gente briga ali, intercede, bota oração, propósito, monte 125, e
assim, uma coisa bem mais acirrada, assim de guerra mesmo (Entrevista com
Glória, realizada presencialmente em outubro de 2019).

As divisões entre o que se compartilha ou não em grupos de oração e a dimensão dos


problemas pessoais que “só as mulheres da tropa sabem” contam com ações viabilizadas através
de performances guerreiras cuja linguagem beligerante (PEREIRA, R.; MESQUITA, 2022)
remete a modelos militarizados de ocupação do espaço público, além de intercessões mais
restritas a objetivos espirituais específicos. Assim como nos deslocamentos do casal, nas
dinâmicas de circulação neste núcleo do Ministério são negociadas variadas fronteiras que
permeiam os diferentes pertencimentos denominacionais das interlocutoras. As coletivizações
feitas através da “tropa” expressam o duplo compromisso exercido através do que Cristiane
denominava como seu “chamado com mulheres”; o emprego da preposição “com” no exercício
desta função espiritual, além do compromisso relacionado às mulheres, implica em um trabalho
no qual cuidar delas é tarefa a ser desempenhada coletivamente, junto a outras mulheres.
As dinâmicas exclusivas a esta incumbência coletiva também eram vividas através de
constantes alertas, mensagens divinas sempre experimentadas através da manifestação de dons
espirituais. Recebidas pela pastora ora através de seus próprios dons, ora por meio de dons de
outras pessoas, as orientações divinas envolvidas neste trabalho de cuidado feminino
desempenhado exclusivamente por e entre mulheres seguiam ciclos de dádivas compostos por
mecanismos de retribuição e sacrifício (MAUSS, 2003a) que ganhavam especificidades nestas

125
A oração em regiões montanhosas é experimentada como prática sagrada entre diversas denominações
evangélicas e remete à busca pela intimidade com Deus. As interpretações de referências bíblias indicam parábolas
em que profetas foram inspirados pela proximidade destes locais com o céu. O cotidiano de orações no monte foi
alvo de reflexões sobre os efeitos da desinstitucionalização religiosa no estudo realizado por Ana Cândida Pinto
(2014).
129

interações pentecostais. Enquanto dádivas que implicam em trocas estabelecidas entre imanente
e transcendente, “não se possui dívida ou obrigação em retribuir a outro ser humano, mas apenas
a Deus” (MARIZ, 2016, p. 22).
Busquei compreender, nesse sentido, como a construção deste “ciclo da dádiva com
Deus”, que no contexto pentecostal costuma incluir dons espirituais, dízimos, ofertas e doações
(MARIZ, 2016), produzia retribuições à pastora em forma de alianças, inclusive entre quem as
manifestações de seus dons sequer haviam sido diretamente destinadas. Se, para as mulheres
da tropa, o primeiro vínculo com a pastora havia sido estabelecido por meio de dons de
revelação e profecia experimentados de modo personalizado e exclusivo a elas, tais mensagens
divinas repercutiam na convivência do grupo das virtuosas como um todo, coletivizando as
relações formadas através de dons.
Assim, ser “usada por Deus” para distribuir dons permitia que outras mulheres se
vinculassem tanto por meio de uma mensagem especialmente destinada a alguém como através
de uma mesma mensagem publicamente compartilhada. Os testemunhos destas mulheres,
frequentemente solicitados pela pastora para divulgação nos grupos de WhatsApp, eram o
caminho mais comum de tornar coletivo um propósito concedido através de sacrifícios pessoais
em campanhas de oração ou agradecer à pastora por um dom oferecido. Ao mesmo tempo, esse
ciclo feminino da dádiva com Deus 126 também era fortalecido com estratégias adotadas pela
própria pastora, a exemplo de quando oferecia testemunhos alheios sobre as graças que havia
auxiliado a alcançar 127.
Analisei esse ciclo de dádivas através de entrevistas que realizei com algumas das
mulheres da tropa após nosso período de convivência em cultos e outros momentos de
socialidade. Na ocasião, perguntas que antes estiveram mais voltadas para a trajetória religiosa
no pentecostalismo e ao campo da sexualidade no casamento foram direcionadas para as
relações estabelecidas com a pastora. Recebi, no entanto, reações semelhantes entre estas
interlocutoras e as virtuosas que entrevistei nos momentos iniciais da pesquisa que, mesmo sem
perguntas direcionadas, apontavam para um caminho de adesão entre seu pertencimento ao
Ministério enquanto dádiva retribuída a um favor realizado pela pastora.

126
Diversos estudos sobre mulheres e pentecostalismo destacaram o que ficou conhecido como uma “mística
feminina” do exercício de dons espirituais entre mulheres. Janine Targino (2010) destacou que, entre as pastoras
que lideram suas próprias igrejas na Baixada Fluminense, as revelações e orações de cura operavam o que a autora
chamou de dois grandes “produtos religiosos” oferecidos pelo pastorado feminino nesses espaços urbanos
periféricos. Além disso, os trabalhos de libertação de demônios, por exemplo, são desempenhados em muitas
igrejas exclusivamente por mulheres. Sobre isso, ver Mafra (1998) e Marcos Vinício Pereira (2015).
127
A partir de uma análise sobre a mediação tecnológica de testemunhos em dispositivos digitais, retomo a este
ponto no capítulo 5.
130

Este foi o caso de Marina, quem indicou logo de início: “Não posso falar das virtuosas
sem falar da pastora”. Marina me contou sobre a presença constante da pastora Cristiane em
sua casa, oferecendo orações e operando milagres a seus familiares sempre que havia a
necessidade. Em caminho semelhante, a pastora Bianca, que auxilia e prega nos cultos de uma
igreja pentecostal em Araruama, indicou que seus laços de confiança e fidelidade com a pastora
Cristiane foram construídos na base de “uma dívida impagável de gratidão”. Bianca descreve
diferentes transformações pessoais ocorridas após a presença do Ministério Mulheres Virtuosas
em sua carreira pastoral, de maneira que sua referência à gratidão se vinculou a expressões de
reciprocidade que incluíram respeito e honra para ocupar esta função: “a unção que você
respeita é a unção que você acaba atraindo pra você”.
De Virgínia, ouvi expressão similar, “gratidão eterna”, ser aplicada para descrever
momentos em que a pastora “abriu jejum” em prol de sua vida ou esteve disponível “24h para
dar assistência”, socorrendo-a espiritualmente em oração para alcançar propósitos que
envolviam grandes dificuldades: “Mãe é mãe, sabe como é que é! E filho é assim, a gente não
dá aviso, não!”. As referências à gratidão também surgiram na trajetória da missionária Janete,
ao relatar intercessões da pastora para auxiliar sua filha Leila a “arranjar um marido”. Suas
retribuições à Cristiane foram descritas enquanto parte de um forte trabalho de libertação na
vida sentimental de Leila, quem também se tornou parte do Ministério após a graça concedida
através das orações de sua mãe. Citando um versículo do livro bíblico de Mateus 128, Janete
aponta um caminho de fartura ocorrido após este evento, indicando o bom casamento feito por
Leila como uma graça alcançada por toda a família pois “o Senhor paga muito bem!”.
A análise da gratidão como dádiva é alvo de investimentos antropológicos em que a
gratuidade é vínculo que se produz através do princípio da graça (PITT-RIVERS, 1992). Ao
falarem sobre relações de “dívida de gratidão”, minhas interlocutoras apresentam como a graça
circula nestas relações de reciprocidade enquanto forma fundamental de fazer alianças entre si
e com a pastora, construindo, assim, o Ministério Mulheres Virtuosas. Os sentidos relacionados
ao “favor”, “amor irresponsável”, “estima, “vontade arbitrária” e análogos mencionados por
Pitt-Rivers (1992, p. 224) são parte de processos de coletivização em que integrar o Ministério,
compartilhar testemunhos e dever obrigações a quem oferece dons gera “dívidas impagáveis”.
Como também indicou o autor, vincular a fonte da graça concedida a Deus não significa que
humanos não possam gerá-la.

128
Mateus 6, 33. “Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão
acrescentadas”.
131

As expressões de gratidão das virtuosas com a pastora também se estendem em ciclos


de dádivas paralelas. Na medida em que a coletivização via Ministério cria cotidianos nos quais
“oram juntas” ou “oram uma pela outra”, as irmãs/virtuosas fortalecem parentescos espirituais
entre si. Chamo a atenção, a seguir, para modos como a circulação do dinheiro nestes ciclos
femininos da dádiva institui questões que sedimentam vínculos entre graça e hierarquias
causadas por desigualdades de gênero e raça.
Os dons oferecidos por Cristiane não advinham somente de pedidos de ajuda para a vida
sentimental, cura para doenças ou relativos às carreiras pastorais. Eram, em sua maioria,
pedidos de auxílios materiais nos quais em boa parte a pastora buscou interceder tanto através
de orações como por doações financeiras solicitadas em sua rede pessoal. As doações eram
frequentemente direcionadas a mães que sofriam com a fome da família, ou familiares enlutadas
que precisavam enterrar aqueles(as) que faleceram repentinamente, vítimas dos altos índices de
violências diversas cometidas pelo Estado através de agentes policiais e da morosidade dos
sistemas de saúde e assistência.
Quando combinada a este somatório de violações a direitos humanos básicos que
solicitam resoluções rápidas no cotidiano de mulheres pentecostais, as dádivas que rondam
estes ciclos femininos se tornam parte de “dívidas impagáveis” que enegrecem estas redes de
ajuda mútua das coletividades evangélicas. Ao partir do contexto histórico da escravidão para
indicar como o capital destas dívidas impagáveis são “modos de governança”, além de
“território colonial e o corpo político”, Denise Ferreira da Silva (2019, p. 177) oferece uma
análise em que a violência racial se torna inseparável do regime da branquitude e, assim, oferece
maneiras de enxergar as dívidas como processos de sujeição que enredam a pretitude.
Embora a gratidão tenha sido analisada enquanto parte de vínculos que envolvem
“relações de servidão” (SIMMEL, 2004), evocando assimetrias de uma “dádiva unilateral”
(COELHO, 2006), considero relevante aos processos destes “ciclos de dádivas com Deus”
(MARIZ, 2016) racializar a graça como categoria que deve implicar em reflexões sobre ciclos
infindáveis de batalhas evangélicas contra e pela família. Ao apontarem para a pastora Cristiane
como figura humana da gratidão transcendente, as mulheres do Ministério direcionam a ela
retribuições impagáveis que Cristiane busca responder em cestas básicas, dons espirituais e
reflexões sobre como “só oração não encher barriga”, como costuma afirmar.
132

Nesses ciclos femininos enegrecidos pelas dívidas, os parentescos espirituais entre mães
e filhas na fé permitem forjar “imaginações”129 de outros mundos e intimidades possíveis com
o Deus transcendente, conduzindo estas mulheres à formação de vínculos de solidariedade
frente a dinâmicas de gênero e raça expulsivas. Na medida em que não estão baseados em
modelos de individuação e autonomia, como explica Ypuan Garcia (2019), os familismos
cristãos de vínculo carismático expressam um caráter de aliança que não corresponde às
reduções de metáforas e duplicações da família humana. Ao reconhecer Deus como “pai”,
segundo o autor, estes(as) agentes modificam as relações de parentesco e conformam dinâmicas
em que não se trata de paternidades construídas que “assumem” e “cuidam”; trata-se, em seu
lugar, de um “Pai descoberto, revelado, que sempre esteve lá, cuidando de seus(uas) filhos(as)”
(GARCIA, 2019, p. 93).
Assim, maternidades e paternidades engajadas por “visões”, “revelações” e outros dons
espirituais compõem parte de um projeto que repensa como as próprias teorias antropológicas
do parentesco foram construídas com bases secularistas. Segundo Fenella Cannell (2013), as
reflexões sobre fazer família em contextos cristãos extrapolam oposições que constituíram as
perspectivas teóricas fundantes sobre o parentesco, sustentadas nos domínios que repetem o
dualismo natureza e cultura, tais como biologia e lei, material e imaterial, enxergando as
relações de parentesco religiosos como metáforas instauradas pelo “sangue” ou pela “lei”.
O argumento da autora de que as teorias ocidentais do parentesco seriam secularizadas
se sustenta mesmo após o reconhecimento das reproduções destes dualismos, feitos por seus
sucessores e aqueles que o precederam. Assim, Cannell indica que categorias que compartilham
sentidos sobre o domínio do sagrado seguem tratadas em variados estudos antropológicos
contemporâneos sobre parentesco como “termos meramente metafóricos” (CANNELL, 2013,
p. 231, tradução minha), com a religião sendo formulada “como um fator que condiciona a
formação de opinião entre os cidadãos, em vez de um determinante fundamental das categorias
de parentesco americanas”130.
Se nas distintas vinculações estabelecidas através dos parentescos espirituais meu lugar
como “filha” ocupou uma brecha relacionada à expansão que o Ministério buscava através das
mídias, os casos de virtuosas que estavam vinculadas a diferentes denominações pentecostais

129
A escolha deste termo pela autora expõe sua proposta de não indicar a dívida como conceito, mas como
dimensão ética de um “Mundo Implicado”, composta por modalidades de poder que não incluem sujeitos que
devem e sujeitos que pagam, na medida em que não se trata de um “sujeito jurídico-econômico da liberdade”
(FERREIRA DA SILVA, 2019, p. 110).
130
No original, em inglês: “However, even these ethnographies ultimately treat religion as a factor that conditions
opinion formation among citizens, rather than as a fundamental determinant of American kinship categories”.
133

apontam, por sua vez, para outras brechas comuns na institucionalidade pentecostal, como a
circulação por diferentes grupos e igrejas. Nesse sentido, as virtuosas não substituíam, mas
somavam a relação com a pastora às de outros vínculos estabelecidos com “pais” e “mães” na
fé em seus outros ministérios, formando parentescos com diferentes níveis de proximidade.
Como afirmou Reinhardt (2021), há nesse contexto dinâmicas de parentesco espiritual se dando
através de mediadores que não são excludentes, mas acumulativos.
Somado a isso, a prática de muitas denominações pentecostais de trocar pastores(as)
com frequência, estimulando a rotatividade, dificulta o estabelecimento de vínculos fortalecidos
no tempo. Clara Mafra (2013) chamou a atenção para o estímulo pela circulação pentecostal
em várias igrejas enquanto efeito de uma configuração institucional iurdiana, cujo objetivo é
não contar com a fidelização de seus frequentadores. A autora lembra, por sua vez, que parte
do que o último Censo Demográfico, de 2010, indica como “evangélicos não determinados”
podem ser resultantes desta “membresia flutuante” (MAFRA, 2013, p. 19).
Esse, por exemplo, era o caso de Virgínia e outras virtuosas do grupo que, embora
fossem definidas como “desviadas” em suas redes religiosas mais tradicionais por não estarem
vinculadas a nenhuma denominação, indicavam ter “voltado pra Jesus” através das relações
com a pastora Cristiane. Ao conviver entre o núcleo do Ministério formado pela “tropa” e outras
virtuosas residentes em países pelos quais Cristiane expandiu o Projeto, atentei para como seus
trajetos, assim como nos trajetos do casal de pastores, as negociações com as institucionalidades
configuram disputas importantes entre estas mulheres.
Os elos que formam parentescos no Ministério não são compostos por mães e filhas que
compartilham deveres e obrigações análogas às posições sociais de parentescos forjadas pela
biologia ou em aparatos dos sujeitos jurídicos. Como argumentei, as dívidas raciais que os
atravessam constroem agenciamentos em redes de apoio cuja coletivização possibilita que
aquelas que já são mães na fé em outros contextos, caso de pastoras e missionárias que estão
no grupo e têm suas próprias filhas na fé, sejam filhas na fé de Cristiane quando adentram o
Ministério, acumulando múltiplas maternidades comuns a este contexto. Em paralelo ao vínculo
pelas dívidas, indico a seguir como a análise da ação dos dons espirituais nestes parentescos
apontou para ambivalências entre fortalecimentos e fragilidades das alianças no Ministério.

2.5 Alianças e fronteiras do dom de Revelação

As cerca de oito virtuosas mais fixas da tropa estavam com maior frequência nos cultos
pelos quais o casal transitava em diferentes igrejas e sempre auxiliavam na organização dos
134

Chás. A organização deste grupo mudou ao longo do período em que estive no trabalho de
campo. Fernanda, a principal de suas articuladoras e quem acompanhou o casal desde a
formação do primeiro Chá e dos grupos de oração no WhatsApp, se afastou em meados de
2018, saindo do principal grupo de WhatsApp junto a outras duas amigas. Sua saída revelou
uma fissura importante no grupo, sobretudo no que se refere à circulação dos dons espirituais.
Em uma ocasião que envolvia uma prática já frequente no grupo, a de proferir
revelações, Fernanda e suas amigas acusaram a pastora de “chamar por demônios” enquanto
Cristiane vivenciava o mesmo fato como intervenção divina. A situação em questão envolvia
conflitos de interesses em relação a pessoas que estariam “prejudicando a obra”, em referência
ao Projeto Mulheres Virtuosas. Em situações anteriores, Fernanda já havia compartilhado
comigo experiências negativas relacionadas ao recebimento deste dom por outros(as)
irmãos(ãs) e o considerava uma prática negativa, o que acabava por definir sua preferência por
continuar frequentando a IURD: “na Universal não tem esse negócio de revelação como lá [na
Missões]”, conta. Este é um dos diversos exemplos que apontam para como a dinâmica da
revelação pode operar desavenças e conflitos no contexto pentecostal, que também envolvem
negociações denominacionais.
Além de Fernanda, outras interlocutoras indicaram que o acionamento das revelações é
um fator que distingue suas escolhas por determinados pastores(as) e igrejas. Em muitas
ocasiões ouvi reações a estes usos que ganhavam o formato de deboche, demarcado através de
maneiras depreciativas com que este dom era enxergado em circuitos cristãos mais amplos. Isso
não significava, no entanto, que não se utilizassem deste dom em seus cotidianos. Para Glória,
missionária e frequentadora de uma filial da Assembleia de Deus na zona norte carioca, a
revelação ocupa um lugar diferenciado em meio às ofertas de outras igrejas. Ao mencionar este
dom e seus agentes, a quem apelida como “guru gospel”, ela desabafa em nossa entrevista,
realizada em sua igreja, que “muita gente hoje tá indo em igreja atrás de revelação”.
Seu incômodo se coloca em torno de que estas mesmas pessoas “não querem mais
buscar a Deus, não querem mais orar, não querem mais jejuar”, mas buscam somente “aquilo
que vai de encontro ao ego”. Assim, mesmo indicando não fazer revelações como um hábito
corriqueiro de suas pregações na igreja, Glória se apresenta como uma das missionárias mais
acionadas para esta função: “A gente prega, mas quem ministra é o nosso coração e o Espírito
Santo, Deus sabe o que cada um precisa ouvir”. O incômodo causado por esta prática é colocado
a partir das escolhas que a missionária precisa fazer para não romper com estas relações e,
assim, manter uma posição ética diante de situações espirituais difíceis que envolvem as
escolhas alheias:
135

As vezes não tá nem no meu esboço, mas Deus me dá alguém que ele quer
falar. Eu não sei quem é, dependendo do que for, eu falo. Se for uma coisa
muito cabeluda eu fico, não exponho, mas depois eu sento com a pessoa e
converso dentro da Palavra, porque eu sei que um dia Deus vai cobrar isso de
nós, dele mostrar o erro, onde tá o erro, quem é, e a gente passar por cima.
Porque senão a gente tá sendo conivente com pecado! E hoje as pessoas não
querem muito, “ah, eu não quero me indispor com a irmã”, mas se o irmão vai
pro inferno e eu sei do pecado, eu tô indo também! (Entrevista com Glória,
realizada presencialmente em outubro de 2019)

Como indica esta fala de Glória, a revelação é um ato relacional que reflete tensões
éticas e institucionais. Os cuidados tomados pela missionária indicam perigos de uma prática
coletivizada que pode acarretar má reputação a quem a utiliza. A maneira como se negocia
contar ou não aponta, assim, para uma relação em que ela mesma é alvo de cobrança divina.
Além dos cuidados tomados por Glória e da opção pelo distanciamento indicado por Fernanda,
ouvi de outras interlocutoras associações deste dom à relação com demônios, na medida em
que “quem revela amaldiçoa”.
Frequentemente condenadas por vertentes protestantes clássicas, as revelações, assim
como outros dons do Espírito Santo, são alvo de disputas e constantes escrutínios também entre
os pentecostais e ocasionam controvérsias e distinções sobre o que é ser pentecostal ou ser
“cristão”, termos mais amplamente utilizados e que geralmente denotam a busca pela
valorização de sua fé. As revelações indicaram-se enquanto dom mais emblemático nesse
contexto, por serem tanto confirmadas como respostas de Deus quanto anunciadas como armas
que “o inimigo usa para enganar e manipular”, como ouvi de diferentes interlocutoras.
Repercutir o dom de revelação pode produzir rupturas no âmbito mais íntimo ou
denominacional, fazendo com que se busque igrejas com este perfil ou se afaste de outras
justamente por este motivo. Nos estudos sobre a chegada de projetos de missão protestantes ao
Brasil, o lugar histórico desta prática como ruptura em experiências vivenciadas nas
denominações brasileiras foi indicado por Clara Mafra (2001). Vivida pela primeira vez pelo
maranhense Miguel Vieira de Ferreira, a experiência da revelação foi o motivo pelo qual o fiel
foi expulso da denominação presbiteriana para fundar a primeira igreja cismática, a Igreja
Evangélica Brasileira.
Se o impacto deixado pela saída de Fernanda destacou o aspecto de ruptura em que o
dom de revelação operou afastamentos entre as interlocutoras, também ouvi relatos que
apontaram para alianças produzidas através da circulação de revelações no Ministério. Uma
delas partiu de Virgínia, 40 anos e empresária do ramo comercial, brasileira imigrante na Itália
136

que passou a integrar um dos grupos de WhatsApp através de uma amiga brasileira também
imigrante no mesmo país. Em nossa entrevista realizada por chamada de vídeo no WhatsApp,
ela me contou que sua relação com a pastora Cristiane começou espiritualmente – antes, assim,
de serem formalmente apresentadas: “nunca tinha falado com ela de pessoa, mas tava nas
orações”.
Da relação cotidiana no grupo de WhatsApp participando de campanhas, Virgínia
passou a ouvir vozes invadindo sua cabeça e pedindo para que fizesse uma ligação telefônica
para a pastora. Em uma ligação de madrugada, ela contou que havia recebido uma mensagem
sobre a vida pessoal de Cristiane, mas não sabia diferenciar se a voz era de Deus ou do Diabo.
A pastora recebeu a mensagem em lágrimas e compartilhou uma resposta positiva à revelação
proferida por Virgínia: “Você é uma mulher realmente de Deus. Isso eu só tinha pensado, eu
não tinha falado para ninguém, nem meu marido sabia!”.
Ao descrever sua relação com a pastora, Virgínia apontou para a importância desse
evento na transformação para uma nova fase em que passou a convocar a pastora para suas
“guerras de altar”, referência feita ao alcance de causas difíceis. Embora esse tipo de
intervenção conjunta envolva o que definiu como “fatores econômicos muito altos”, ela afirma
nunca ter recebido cobranças financeiras por parte de Cristiane. No entanto, a ênfase no
conteúdo de uma revelação que continha “detalhes” como hora, data, modelos e placas de carro
de pessoas envolvidas ajudou a estreitar os laços entre ambas e posteriormente levou a duas
idas da pastora para a Europa, ocorridas com seu auxílio financeiro junto ao de outras brasileiras
imigrantes que integravam o Ministério.
Aliada a outros aspectos fortalecidos ao longo do convívio digital entre ambas, a
revelação pavimentou trocas nestes ciclos femininos “da dádiva com Deus” (MARIZ, 2016)
em que os “detalhes” informados concederam espaço para que desta vez uma aliança
transnacional fosse estabelecida, apontando para os diferentes caminhos tomados pelos dons
nas redes pentecostais. Ao contrário de Virgínia, com quem a relação com a pastora foi iniciada
através de uma revelação vinda da fiel, a relação com outra virtuosa residente na Itália, Luíza,
foi desencadeada a partir de uma revelação vinda da pastora. Com 35 anos, amasiada, mãe de
um filho e vivendo de trabalhos de cuidado e limpeza informais na Itália, ela conta que conheceu
a pastora em um dos momentos difíceis de sua vida, quando vivia um relacionamento em que
seu namorado a agredia tanto fisicamente quanto com “xingamentos e insultos”.
Na ocasião, Luíza também vivia uma relação conflituosa com sua mãe, com quem
morava quando sofreu agressões do então namorado. Sentindo-se sozinha e sem ter com quem
compartilhar suas dificuldades, ela pedia para que Deus “mostrasse” em orações, sonhos e
137

visões uma mãe que a fizesse companhia e curasse sua “alma machucada”. A chegada da
pastora em sua casa marcou este momento delicado e foi intermediada por Virgínia, que pediu
hospedagem para Cristiane durante a estadia na Itália. Em nossa entrevista, Luíza narra
emocionada o momento em que a viu pela primeira vez, quando também sentiu que havia
encontrado uma maneira de saber que seu pedido para Deus havia se concretizado.
A pastora passou a ocupar um espaço de aconselhamento tanto para as dificuldades
relacionadas à vida conjugal como para a difícil relação entre Luíza e sua mãe. As confirmações
de que se tratava de Deus e não do Diabo “usando” ou “falando pela boca” de quem revela
foram identificadas por Luíza através dos “detalhes” evocados em diferentes revelações feitas
por Cristiane sobre seu passado e o futuro que a aguardava. O passado revelado pela pastora
trouxe o que Luíza descreveu como memórias da infância que persistem, “coisas velhas” que
não são “faladas”, mas “guardadas”, transformadas em “silêncios”:

[Luíza] Ela me disse tudo que estava acontecendo comigo! Tudo! E ela me
disse que ia acontecer algo muito, muito grave comigo, e que era pra mim
tomar cuidado porque não era isso que Deus queria pra mim. E aí eu pensei,
ninguém sabe o que eu estou passando, ninguém nunca soube. Isso é uma
coisa entre eu e Deus. E aí ela falou, ele me respondeu através dela: “Você era
pequena, você viu esta cena, você quer esta coisa, de uma determinada forma.
Isso é um desejo do seu coração”. E tá relacionado com a minha vida amorosa,
com o casamento, entendeu? É uma veste que eu queria de uma determinada
forma. E eu vi, ali na televisão, eu era menina, e dentro da minha cabeça eu
pensei “eu quero daquele jeito ali, aquele detalhe”. É um detalhe, um detalhe
que tinha na roupa! Aquele detalhe vai ter no meu! E ele falou comigo.
Quando falou assim, ninguém sabe, Lorena, olha, pelo meu filho, nunca falei
com amiga, nunca falei pra ninguém! Era uma coisa minha, mesmo porque
dentro da minha cabeça, eu pensava comigo assim “se eu falar pra alguém, vai
copiar!” Entende? Então eu guardei dentro de mim.

[Lorena] Então a pastora descreveu esse vestido que você tinha visto e queria
usar...

[Luíza] Não era o vestido, era um detalhe que estava no vestido. E que era
impossível! Quem ia saber de uma coisa que eu pensei quando eu era criança?
Eu pensei, entende? Não foi uma coisa nem falada, foi dentro de mim. E esse
detalhe eu venho guardando até hoje. Era uma coisa velha, mas que eu venho
guardando dentro de mim, entende? No silêncio. (Entrevista com Luíza,
realizada por chamada de vídeo no WhatsApp em 09/01/2021. Ênfase dela.)

Luíza contou que, pouco tempo depois desta revelação, seu ex-namorado tentou matá-
la e a pastora “sentiu”, pois havia tido uma visão sobre a cena com antecedência e a avisado
sobre o que aconteceria. A confirmação sobre a confiabilidade do(a) mediador(a) envolvida(o)
neste ciclo de dádivas foi vivenciada por Luíza após seu pedido de respostas de que realmente
138

era Deus, e não o Diabo, que estaria falando com ela através da pastora. Ao mesmo tempo que
sua circulação pode evocar uma série de desconfianças, dribladas com o frequente suporte de
fotografias, vídeos e outros materiais que comprovem palavras ditas e milagres ocorridos, o
exercício dos dons nem sempre envolvem mediadores(as) da Palavra.
A própria fluidez neste caminho de mediações com o transcendente faz com que dons
como a revelação ganhem forma através de letras de louvores, fornecendo maior confiabilidade
à fonte da mensagem divina. Dentre suas diferentes experiências recebendo e doando
revelações, os limites que conferem legitimidade são constantemente testados, conforme me
contou a pastora Cristiane a respeito do momento em que Deus “falou com ela” através de um
louvor que ouvia em sua casa:

Eu não queria vir pautada numa revelação! Eu queria vir pautada numa
certeza! Eu não queria que alguém... claro que é muito bom alguém em oração
falar “Assim te diz o Senhor”, ou coisa do tipo, mas eu precisava tanto, tanto
de Deus gritar nos meus ouvidos e falar de uma forma como se eu não tivesse
dúvida! (Mensagem de voz enviada pelo WhatsApp, outubro de 2021)

Ao exortar ou repelir a revelação enquanto mensagem enviada pelo Espírito Santo, tais
experiências possibilitam compreender este dom enquanto “detalhe”, utilizando o termo citado
pelas interlocutoras desta pesquisa, repleto de ambivalências que visibilizam a presença de suas
forças antagônicas. Ao ser revelado, aquilo que era sigiloso desponta enquanto elemento que
pode fortalecer ou esgarçar vínculos no Ministério. O sigilo, citado por Taussig (1997, p. 355)
como componente constitutivo da presença do sagrado, está “entrelaçado ao tabu e,
consequentemente, à transgressão”. Suas dinâmicas rituais são exploradas pelo autor enquanto
parte de movimentos de ocultação e revelação, produzindo o que chama de “poder do negativo”.
Em suas palavras, “a revelação leva a mais ocultação. Mostrar o segredo leva a outro segredo,
talvez até mais profundo” (TAUSSIG, 1997, p. 355)131.
As possibilidades paradoxais de ser interpretada como mensagem divina ou demoníaca
levam a revelação a ocupar um espaço de tensões próprio ao exercício do tabu. Explorar estes
elos pentecostais demonstra maneiras como mulheres vêm fazendo alianças e promovendo
rupturas a partir destas e outras transgressões que constituem o domínio do sagrado. Dos
múltiplos caminhos que estes movimentos produzem, fazer Ministério nesse contexto é uma

131
No original, em inglês, grifos do original: “What is important is to realize how secrecy is intertwined with taboo
(and hence transgression) to create a powerful yet invisible presence (indeed, the presence of presence itself) […]
In this sense revelation leads to further concealment. Showing the secret leads to another if not deeper secret”.
139

ação repleta de refazimentos nas fragilidades que constituem as autoridades religiosas no


pentecostalismo, gerando constantes confrontos entre hierarquias e negociações das fronteiras
para eleger quem está mais apta(o) ao discernimento da voz de Deus.

2.6 Chá das Virtuosas: agências femininas e encenação de limites no pentecostalismo

No fim da tarde de um sábado em uma movimentada avenida da Zona Norte carioca, a


igreja estava vazia. Não ocorria nenhum culto naquele horário e os poucos membros presentes
limpavam o chão, arrumavam o púlpito e tiravam o pó das centenas de cadeiras longarinas que
ocupavam a maior parte do espaço com capacidade para cerca de mil pessoas. Era o início do
trabalho de campo nos eventos do Ministério, ocasião em que eu ainda desconhecia
vocabulários específicos ao contexto pentecostal. Assim, meu cumprimento de “Boa tarde” foi
devolvido com um aperto de mãos por membros e fiéis, tanto homens como mulheres: “A Paz
do Senhor”, “Paz, irmã”.
À medida que mais convidadas(os) e frequentadoras(es) iam chegando junto comigo, o
som também era ajustado em volume cada vez mais alto para nos recepcionar. No teto alto da
igreja estava aparente um emaranhado de fios que concentrava diversos equipamentos e caixas
de som pendurados. No centro, o acesso ao altar era permitido através de três degraus que
conduziam até uma plataforma mais alta, sobre a qual estavam dispostos poucos objetos: um
púlpito de madeira maciça nas cores preta e dourada, com base em formato de candelabro que
remete ao símbolo judaico Menorá, uma mesa com várias garrafas de óleos para unção, livros
escritos por lideranças da igreja, uma réplica da arca da aliança132 e, ao fundo, um telão digital.
O endereço, dia e horário do encontro me levaram até a Igreja Missões. A extensão do
interior do local e dos elementos da fachada contrastavam com a apresentação modesta do
convite que recebi no WhatsApp através de minha antiga interlocutora, no qual não havia
menção ao nome da igreja, mas somente a numeração e avenida em que estava situada. O
letreiro em letras garrafais pretas e amarelas estampava um pôster feito em lona, posicionado
no alto da estrutura do prédio. Uma cruz e uma pomba branca acompanhavam o título com a
foto de um casal abraçado, formado por um homem branco de barba bem-feita e cabelos
penteados com gel e uma mulher também branca, de cabelos lisos longos e louros.

132
Tanto a Menorá, nome dado ao candelabro de sete pontas, como a arca da aliança, objeto que se assemelha a
um baú, são mencionados na Bíblia (Êxodo 25: 10-21; 31-32) como símbolos da proteção divina ao povo de Israel.
Estes e outros elementos são utilizados em diversos contextos pentecostais com o objetivo de materializar a
autenticidade do sagrado e da presença da Terra Santa (Cf. GOMES, 2011).
140

Enquanto aguardava o início do evento, observei mulheres chegando sozinhas e


acompanhadas, com filhos, outras mulheres e homens. De olhos fechados, em pé ou sentadas,
muitas acompanhavam com as mãos e de frente para o altar o louvor em volume baixo, oravam
de costas, ajoelhadas e com os braços apoiados nos assentos das cadeiras. Uma delas chorava
silenciosamente, cobrindo o rosto com uma das mãos. Seu semblante exalava sofrimento e
fragilidade emocional, enquanto o corpo rígido e estático a distanciava do mundo externo. A
ausência de homens desacompanhados e a maioria absoluta de mulheres que aparentavam estar
na faixa etária entre 30 e 60 anos, predominantemente negras, espelhava-se em informações já
anunciadas no cartaz de divulgação do evento, o mesmo que recebi como convite. As fotos de
duas mulheres negras e uma mulher branca ilustravam o convite com o título em letras cor-de-
rosa que destacava o nome “Chá das Virtuosas”. Sob fundo floral, as fotos estavam
acompanhadas de legendas com os respectivos nomes e funções a serem desempenhadas na
ocasião: dirigente, levita e pregadora 133. Em letras menores, outra mensagem se fazia discreta
no canto esquerdo do cartaz: “Traga uma amiga que sofre”.
Conversei brevemente com uma das convidadas que estava acompanhada de um
homem, apresentado a mim como seu companheiro. Ela contou que, assim como eu, também
nunca havia estado antes naquela igreja. Outro homem que passava rapidamente disse em nossa
direção: “os louvores de antigamente eram bem melhores, né?”. Enquanto a convidada
respondia confirmando com a cabeça, assenti com um sorriso e notei ser uma das poucas ali
presentes que não acompanhavam a letra do louvor. Ao nosso redor o tempo transcorria com
relativa correria entre as proximidades do altar e uma sala nos fundos. Já haviam passado quase
duas horas do horário divulgado para o início do evento, e algumas pessoas saíam e voltavam
da igreja.
De calça jeans e camiseta, uma das mulheres negras cuja foto estampava o cartaz com
outra mulher negra e uma mulher branca no convite que recebi circulava apressadamente
cumprimentando a todas(os), dirigindo-se com mais cuidado a quem não conhecia. Era a
pastora Cristiane, anfitriã do evento. Desloquei-me em sua direção para me apresentar como
pesquisadora e, de forma receptiva, ela respondeu que já havia sido avisada por sua amiga,
minha antiga interlocutora do mestrado, de que eu estaria lá “pra ver o sorteio”. Naquele breve

133
Enquanto a dirigente neste caso é um termo que faz referência à anfitriã do evento e pregadora à pastora
convidada para realizar a pregação sobre um tema previamente proposto ou de sua escolha, a levita seria
responsável por cantar louvores quando solicitada pela anfitriã. O termo é encontrado em diversas passagens
bíblicas do antigo testamento, remetendo a membros da tribo de Levi que realizavam serviços inferiores aos
sacerdotes, considerados “de segunda ordem” (LEVITA, 2023).
141

primeiro contato que tivemos, a pastora me indicou que eu estaria em um espaço em que ela
“falaria sobre tudo”, pois tinha um jeito considerado “meio doido” e “desbocado”. Sua
referência mais imediata era aos assuntos relacionados à sexualidade, feita logo após minha
lembrança sobre o motivo de minha presença estar relacionada à continuidade da pesquisa sobre
usos de artigos eróticos por mulheres evangélicas.
As auto adjetivações empregadas por Cristiane também diziam respeito às pessoas
presentes naquele evento em específico, o Chá das Virtuosas. Como pude observar
posteriormente durante o trabalho de campo, este era um comentário utilizado com frequência
para fazer menção ao modo como o evento se situava em meio a outros realizados nas igrejas
pentecostais, indicando que aquela seria uma festividade, momento considerado fundamental
para a entrada de novos fiéis. Ao longo de uma das muitas conversas que tivemos após aquele
dia, Cristiane apontou que as festividades seriam uma boa oportunidade para que visitantes,
sobretudo os maridos e filhos que de outra forma não frequentavam a igreja, estivessem junto
às suas mães e esposas para que “o Senhor possa tocar o coração deles”.
Mais do que em outras ocasiões, as festividades aguardavam um conjunto mais amplo
de visitantes que poderiam se tornar “ex”; ex-bandidos, ex-prostitutas, ex-bruxos, ex-
espíritas 134, entre outros termos que visibilizam como o dispositivo pentecostal lida com o
sofrimento nas periferias urbanas (MACHADO, C., 2014). A recepção para estes(as)
convidados(as) era cuidadosamente montada pelas mulheres que organizavam o evento,
forjando alianças e contrastes morais através das materialidades. Naquele dia e noutros em que
frequentei o Chá das Virtuosas, atentei para a circulação de coisas que compunham o cenário
mais fixo das igrejas em que se realizava o evento, além das materialidades envolvidas em seus
preparativos. Extrapolando a dimensão dos artigos eróticos que me levaram até ali, passei a
analisar como arquiteturas e itens presentes nos púlpitos se combinavam, na ocasião do Chá,
com itens alimentícios e decorativos levados pelas irmãs/ virtuosas.
Bolos, salgados, refrigerantes levados pelas próprias convidadas compunham a
comensalidade que dividia quem participava esporadicamente ou pela primeira vez e aquelas
que organizavam os bastidores do evento. Assim como noutras festas, uma mesa fazia parte da
decoração e servia como principal cenário para as fotos. No Chá das Virtuosas, ela estava
repleta de xícaras, bules, talheres, flores, doces e frutas artificiais, compondo referências
semelhantes às de um chá da tarde. Das relações estabelecidas com estas coisas, busquei

134
Tanto “bruxos” como “espíritas” são termos geralmente utilizados no contexto pentecostal para se referir a
seguidores de religiões de matriz africana, principalmente o candomblé e a umbanda.
142

analisar como a ritualização da domesticidade se mostrava complementar aos aprendizados


sobre o que é ser mulher virtuosa através da experiência afetiva e sensorial de estar no Chá.

Imagem 3: Mesa do Chá das Virtuosas 1 Imagem 4: Mesa do Chá das Virtuosas 2

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017. Fonte: Acervo da pesquisa, 2018.

Além deste domínio mais específico aos Chás das Virtuosas, geralmente constantes
noutros eventos pentecostais voltados para mulheres que frequentei ao longo do trabalho de
campo, cabe apresentar também a cena material mais fixa presente naquele evento. A Missões,
igreja em que ocorreu boa parte dos Chás que acompanhei, compartilhava elementos
reconhecidos de modo mais amplo como parte da expansão litúrgica e material que rompe com
o protestantismo histórico. Sua arquitetura imponente, convergindo em um espaço que
comporta centenas de fiéis, tem como espaço de trânsito uma avenida de grande circulação na
Zona Norte carioca. Como já apontaram as pesquisas de Mariano (2004), R. Almeida (2009) e
Oro, Steil e Rickli (2012), estes são locais de preferência das grandes denominações conhecidas
como neopentecostais nos contextos urbanos brasileiros.
O púlpito em formato de Menorá, a réplica da arca da aliança e os vidros com óleo de
unção atravessam referências bíblicas à Terra Santa e compõem o que Edlaine Gomes (2011)
apontou como a busca pela autenticidade a partir da recriação de um “Israel mítico”. A pesquisa
da autora, feita na IURD, aponta para o que chamou de um “circuito da conquista” que reúne a
monumentalidade de templos, organização de peregrinação por caravanas até Israel, além de
muitos outros elementos que atuam como “pontos de contato” nos rituais, eventos e arquiteturas
desta igreja. Tal repetição de uma concepção iurdiana que materializa o encontro com Deus e
fornece “a certeza de vitória em detrimento das perseguições” (GOMES, 2011, p. 169), por sua
143

vez, informa mais sobre a eficácia de sua propaganda do que sobre uma suposta
homogeneização ocorrendo nas denominações pentecostais.
Os livros escritos por lideranças da igreja, também presentes no púlpito da Missões,
lembram outra retórica da IURD igualmente significativa no caso da expansão literária e
audiovisual voltada para a vida sentimental, que conta com materiais em sua maioria liderados
pelo próprio Edir Macedo e membros de sua família. Entre os livros mais vendidos da editora
da IURD estão títulos escritos por Cristiane Cardoso, filha de Macedo, todos voltados ao
público feminino. Jacqueline Teixeira (2016) indica que o formato de leitura devocional nestes
livros combina ensinamentos sobre cuidados com o corpo, a beleza e o casamento, ao mesmo
tempo que alia estes valores ao distanciamento entre casamento e exercício da maternidade.
Embora este seja um dado mais específico às políticas reprodutivas disseminadas pela IURD,
é importante notar para como as materialidades presentes na igreja em questão trazem a
conjugalidade, e não a maternidade, como eixo temático institucionalmente disseminado.
Diferente da gestão unificada de pedagogias voltadas ao casamento neste e outros
campos institucionais em que o pentecostalismo circula, as experiências relacionadas à
maternidade recebiam atenção durante os Chás e no âmbito de outras ações cotidianas do
Ministério. Em paralelo à penetração de uma linguagem iurdiana que percorreu principalmente
temas como adoção, apoio ao aborto e vasectomia de pastores (TEIXEIRA, J. M., 2016;
2018)135, as temáticas que envolviam a maternidade se faziam presentes em discursos e
materialidades que apostavam no aprendizado da domesticidade.
Assim que comecei a frequentar com maior assiduidade os Chás das Virtuosas, atentei
para a repetição de itens decorativos que dialogavam com esta mensagem nas mesas
cuidadosamente montadas pelas irmãs, em que o repertório formado por xícaras e doces
artificiais aludia a um encontro realizado no âmbito da intimidade do lar. Ao fazer parte do
conjunto de festividades vividas entre mulheres, também são proporcionadas continuidades
com outros eventos voltados para a domesticidade, como os chás de bebê, chás de panela e chás
de noivas. Nas palavras da pastora Cristiane, o Chá das Virtuosas corresponderia a um “papo
entre amigas”, o que confirma a estas semelhanças materiais uma descrição que posiciona as
dinâmicas de gênero na centralidade do evento.

135
A menção à IURD se justifica não somente pelo seu caráter central na disseminação de pedagogias de gênero
e sexualidade, mas pelas próprias especificidades envolvidas no trabalho de campo. Como venho afirmando, além
de boa parte das interlocutoras se apresentarem como fiéis e ex-fiéis da IURD, a denominação vinculada ao
pertencimento do casal de pastores, a igreja Missões, foi fundada por um ex-membro da Universal.
144

A reiterada encenação desse momento de intimidade entre mulheres ocorria tanto no


Chá das Virtuosas realizado na Missões, igreja que mais frequentei ao longo do trabalho de
campo, como em eventos voltados para mulheres noutros espaços em que circulei
posteriormente com as interlocutoras. O caráter performativo encenado por estes elementos
expressa formas de comunicação através das coisas, manifestando um comportamento ritual
que, segundo Tambiah (1985), diferencia-se das comunicações comuns nas quais as relações
institucionalizadas não estão expressas e, portanto, não provocam simulações das intenções.
Estas simulações são qualificadas pelo autor como performances que criam ações no
sentido adotado por Austin (1962) e indexam valores, conforme formulado por Peirce (1986).
Enquanto sistema culturalmente construído de comunicação simbólica, Tambiah identifica
como o ritual propõe convenções e redundâncias através de sequências padronizadas de
palavras e atos. Tais características não definem por si só o que é o ritual, na medida em que
ele não é explicado somente por um corpo de concepções cosmológicas que classificam
fenômenos. Para o autor, rituais são explicados pelas formas de comunicação adotadas em cada
contexto.
Este é um argumento importante para indicar como interpreto a presença das coisas e as
sensações que provocam ao comunicar convenções. De diferentes maneiras, tanto aquelas que
recriam o “Israel mítico” como as que compõem as mesas nos Chás operam a partir de
atividades simbólicas que envolvem uma articulação disciplinada e repleta de ambivalências e
ambiguidades, formalizada através dos rituais. Em oposição a uma ideia de que as coisas
projetam vontades e emoções internalizadas psiquicamente, a perspectiva de Tambiah ajuda a
refletir sobre o que elas fazem136. Como se articulam às práticas pentecostais e de que modos
se relacionam com estes sujeitos? De que maneiras seus efeitos provocam engajamentos?
Em busca de explorar estas questões, identifiquei a partir dos discursos e cenas
compartilhadas durante o evento maneiras como a pastora Cristiane e as virtuosas constroem
afinidades entre religiosidades e experiências voltadas ao espaço doméstico. A circulação de
coisas nos Chás expande aprendizados sobre ser uma mulher virtuosa que, conforme explicito
neste e noutros capítulos, cruzam dimensões pedagógicas consolidadas na interação com afetos,
sons e outras matérias que circulavam naquele contexto. Volto, assim, ao dia que inicia esta
seção, minha chegada no primeiro Chá das Virtuosas na Igreja Missões, com o objetivo de

136
A análise de Tambiah (1985) faz referência mais direta às emoções presentes nos rituais, de modo crítico ao
sentido psíquico e aristotélico associado à noção de catarse. O afastamento do autor em relação à ideia de
cosmologia como crença permite diálogos com outras abordagens que trago ao longo da tese sobre a religião
vivida, igualmente rentável para pensar sobre as relações entre pessoas e coisas.
145

apresentar uma cena que traz maior profundidade sobre a experiência visual e sonora de estar
no Chá. Indicando maneiras como as coisas se articulam aos aprendizados sobre ser mulher
virtuosa, exploro as narrativas das interlocutoras a partir de discursos e elementos que apontam
para a formação da virtude de ser “escolhida” por Deus e conferem sentidos táteis, auditivos e
olfativos ao que as interlocutoras definiam como uma “unção palpável”.

***

Após a longa espera ao som de louvores e membros circulando com preparativos, as


luzes do local diminuídas e o som instrumental e em volume mais baixo anunciam o início do
evento. A pastora Cristiane ressurge agora com um vestido longo com estampa colorida.
Portando no ombro direito seu longo manto de oração vermelho com listras douradas e franjas
nas bordas137, ela desce do altar e caminha enquanto fala ao microfone na mesma altura do
público, convocando as(os) participantes a chegarem mais perto. Aos poucos, algumas saem de
seus lugares com as mãos entrelaçadas à parte da frente do corpo, outras posicionando-as junto
ao peito. Portando o manto da mesma cor, membras da igreja unem-se em volta das(os) fiéis
em um cordão vigilante, observando tanto a pregação da pastora quanto as movimentações do
público. Por vezes, a agitação corporal mais brusca de fiéis em contato com o Espírito Santo
faz com que as ajudantes se desloquem para ampará-las, buscando impedir que se machuquem
ao cair. De olhos fechados, todas abaixam as cabeças e balbuciam palavras que parecem
acompanhar as solicitações da pastora para “falar com Deus”.
“Abre teu coração! Abre a tua boca! Chora!”. O tom de voz da pastora, tanto acolhedor
quanto imperativo, anuncia momentos em que uma atmosfera de amparo ao sofrimento toma
conta do lugar. “Deus tá me mostrando uma pessoa que hoje vai ter um recomeço com Deus. O
Senhor veio pra todos vocês, mas em especial pra essa pessoa”, convoca a pastora em tom de
voz baixo, amplificado pelo microfone, enquanto caminha em meio ao público. Ela logo abraça
a mulher que observei chorando com as mãos no rosto antes do início do culto, ao mesmo tempo
que continua falando ao microfone, convidando as mulheres para uma reflexão sobre não ser

137
O manto de oração ganha cores e termos distintos em diferentes igrejas neopentecostais. Sua referência mais
direta é ao talit, acessório citado em passagens bíblicas e que busca conectar cristãos com a fé praticada pelo povo
de Israel (Cf. nota de rodapé nº 120, na página 120 desta tese). Na Igreja Missões, o uso do manto não se restringe
às ocasiões festivas, e ele é utilizado tanto pelas lideranças como por membros de diversos cargos e fiéis, de modos
distintos para homens e mulheres. Vale ressaltar que há um mercado evangélico em torno destes elementos que
converge com a narrativa da autenticidade e recriação do “Israel mítico” (GOMES, 2011). Exploro no capítulo 4
da tese como a materialidade do manto de oração atua na construção do gênero e da autoridade religiosa nesse
contexto.
146

valorizada no espaço doméstico. “Você pode ter todos os valores, você pode ser a melhor
pessoa, mas eles não te enxergam porque você tá ali todos os dias. Quem vai enxergar você?”
Utilizando como exemplo sua própria trajetória, a pastora combina esta narrativa em
formato testemunhal com a oferta de revelações ao público. Dirigindo-se às mães e esposas, ela
caminha devagar entre as fiéis, relacionando a desvalorização do trabalho doméstico feminino
com conflitos conjugais e familiares. Ao mesmo tempo, também busca se comunicar com
aquelas que chama de “sozinhas”, que sonhariam em se casar mas ainda não encontraram um
companheiro. Nas poucas vezes em que são acionadas, as “sozinhas” contrapõem a
interpretação mais central sobre a desvalorização feminina no âmbito doméstico para visibilizar
a vida em família como desejo inescapável a todas as mulheres.
Enquanto as ajudantes fazem movimentos rápidos com as palmas das mãos viradas em
direção às fiéis em sinal de adoração, o louvor ao fundo aumenta pouco a pouco, atingindo seu
ápice nos momentos em que a pastora silencia para abraçar demoradamente fiéis que, cada vez
em maior quantidade, emocionam-se e choram. Alternadamente, volta a falar já em tom de voz
cada vez mais alto: “Se pra eles você não tem valor, pra Jesus você tem!”, “Nós estamos fazendo
a campanha do reconhecimento e hoje você será reconhecida!”. A baixa luminosidade não
permite identificar os rostos de cada vez mais mulheres que bradam em concordância com suas
palavras: “Eu recebo!”, “Oh, Glória!”, “Aleluia!”, “Fala, Deus!”. As inúmeras reações
acompanham respostas de sua porta-voz, anunciando o espírito acolhedor do evento: “O Chá é
o dia em que você é escolhida e enxergada” (ênfase dela).
A transição para outro ritmo sonoro, agora menos acelerado, marca a passagem para um
momento de adoração. O som instrumental é substituído por uma música gospel, agora cantada
pelo membro que controlava o som e a iluminação durante o culto:

Eu me rasgo por inteiro


Faço tudo, mas vem novamente
Eu mergulho na mirra ardente
Mas peço que Tua presença aumente

E se eu passar pelo fogo, não temerei


Na Tua fumaça de glória, eu entrarei
Longe do Santo dos Santos não sei mais viver

Quem já pisou no Santo dos Santos


Em outro lugar não sabe viver
147

E onde estiver, clamar pela glória


A glória de Deus138

A pastora acompanha a letra da música ao microfone enquanto as fiéis exprimem


emoções que, com frequência, se manifestam com lágrimas, atos de falar em línguas e
movimentos gradativamente mais intensos em que seus corpos pulam, sapateiam e rodam ao
redor de si mesmos. Tanto a pastora como membras da igreja se aproximam para orar
individualmente com a palma da mão na testa de cada fiel, momento em que a pastora nos unge
com óleo ou envolve nossas cabeças em seu “manto de oração”, quando algumas caem
desmaiadas e têm seus corpos cobertos pelos mesmos tecidos pretos que cobriam até o pescoço
aquelas que haviam manifestado demônios, agora estiradas no altar. As mulheres se levantam
aos poucos, sempre escoradas em alguém que, em alguns casos, as desperta. As múltiplas e
imprecisas sensações causadas pelas mudanças na iluminação, som de músicas altas e crianças
correndo de modo incessante no pátio da igreja enquanto suas mães são amparadas me fazem
vivenciar o Chá das Virtuosas como um evento endereçado a “cuidar de feridas” 139 que
encontram sua cura ao serem expostas ao público através de lágrimas, movimentos vigorosos
do corpo ou na enunciação de testemunhos.
Fernanda, 30 anos e na ocasião casada e participante assídua do evento, contou que se
sentia “cuidada” desde que conheceu o Chá e começou a organizar os preparativos junto com a
pastora. Em suas palavras, o Chá permitiu que ela começasse a “gostar de sua imagem”, sentido
que ela também expande para descrever seu trabalho de evangelização com as demais
participantes:

São mulheres feridas, de repente com um câncer, foi machucada de repente


na denominação que congrega... então a gente tem esse trabalho direcionado
por Deus pra administrar e cuidar, dizer pra levantar a autoestima dela e dizer
que ela pode sim ser uma mulher vir-tu-osa, né? Bonita, cheirosa,
transformada pra transformar tudo que ela acredita, característica de uma
mulher de Deus, né? E é por isso que a gente faz isso tudo, né? Pra fazer com
quem elas se sintam amadas. Porque como que ela vai falar, “eu amo meu

138
A música é “O que tua glória fez comigo”, de Fernanda Brum. Para reforçar a compreensão de um mercado
evangélico mais amplo no qual se inserem as materialidades compartilhadas entre fiéis na Igreja Missões, vale
lembrar que muitas cantoras gospel como Fernanda Brum dirigem eventos voltados para mulheres evangélicas.
Sobre isto, ver Jamille Bezerra (2018).
139
Parte dos estudos socioantropológicos da religião construiu interpretações a respeito do pentecostalismo como
religiosidade que aciona alívios ao sofrimento e fornece respostas às aflições cotidianas nas classes populares
(FRY; HOWE, 1975). A literatura mais contemporânea como a de Carly Machado (2014) e Mariana Côrtes (2017)
tem apontado para a emergência de um “dispositivo do sofrimento” nos contextos pentecostais urbanos. Nesse
sentido, o objetivo não seria eliminar o sofrimento, mas revivê-lo em formato de testemunho e gerenciá-lo
politicamente a partir da produção de projetos econômicos estatais.
148

filho, eu amo meu marido, eu amo fulano”, se não ama a si própria? (Entrevista
realizada presencialmente, julho de 2017)

O aprendizado através da valorização da autoestima realçava formas como este trabalho


ocorria como fortalecimento do âmbito familiar. Como em continuidade ao discurso da pastora
ao longo da pregação, Fernanda identificava que as mudanças promovidas através do Chá se
davam no casamento e na relação com os filhos. Todos esses elementos ganhavam
aproximações afetivas entre mulheres que nunca haviam estado juntas antes através da captura
de sensações e materialidades que presentificavam 140 o Espírito Santo e o espaço doméstico.
Gestos, expressões corporais e objetos domésticos e religiosos eram sincronicamente
combinados às sensorialidades dispostas nos sons, cores e cheiro do azeite que foi jogado em
diferentes partes do corpo das participantes.
Se tomarmos uma aproximação com a abordagem fenomenológica, eu, Fernanda e
outras(os) participantes experimentamos de diferentes maneiras nos Chás o que Birgit Meyer
(2019a) chamou de estéticas da persuasão. Afastando-se do conceito kantiano de estética
enquanto limitada ao belo que vigora no campo das artes, a autora considera a estética
prioritariamente como experiência corporal e afetiva. Assim, “formações estéticas” seriam
meios de estabelecer relações e engajamentos viscerais com o mundo por meio dos sentidos. A
partir do contexto pentecostal africano em Gana, Meyer (2019a, p. 285) identificou que “os
pentecostais moldavam e afinavam seus sentidos com o objetivo de sentir a presença do Espírito
Santo”.
Os engajamentos sensoriais através de mediações com a mídia, aqui apresentada nas
sonoridades da música e nos usos de objetos devocionais e imagens, configuram aquilo que a
autora denominou como “comunidades estéticas”. Considero esse conceito rentável para
identificar a dimensão material do papel dessas mídias na formação de comunidades no
pentecostalismo, em que o “estilo estético compartilhado” informa sobre uma capacidade de
indução, geração de vínculos e laços comunitários 141. As coisas como mídias enfatizam
sensações ao lugar de “ser escolhida”, ao mesmo tempo em que remetem às referências bíblicas
sobre o “povo escolhido de Deus” que herdará o reino prometido 142. Assim, se a centralidade
em “tornar-se única” e “sentir-se enxergada” advém do encontro e da relação desenvolvida com

140
Cf. Engelke (2012).
141
A concordância com a ideia formulada por Meyer não exclui, no entanto, o modo como percebi a criação de
imaginações baseadas em sentimentos nacionais de unidade cristã noutros âmbitos da vida pentecostal, estes mais
próximos à ideia de comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008), que é alvo de críticas da autora.
142
As referências mais imediatas a este evento foram mencionadas pelas interlocutoras através das seguintes
passagens: 1 Pedro 2, 9, Deuteronômio 7, Mateus 22, 14.
149

Deus, compartilhar rituais como o Chá é necessário para que esta relação seja aperfeiçoada no
processo pentecostal de tornar-se virtuosa.
Das cores dos objetos decorativos ao acolhimento generificado promovido pelo
conteúdo das pregações, convenções de gênero e sexualidade eram produzidas no Chá enquanto
ritual performativo. De modo análogo à análise desenvolvida por Anne McClintock (2010)
sobre o uso de acessórios que encenavam o trabalho doméstico nos rituais sadomasoquistas
vividos por Hannah Cullwick e Arthur Mumby na sociedade vitoriana do século XIX, o “culto
à domesticidade” experimentado pelas mulheres virtuosas pode apontar para como distintos
“projetos de reconhecimento social do trabalho doméstico feminino” (MCCLINTOCK, 2010,
p. 211) estão sendo forjados entre mulheres evangélicas.
Se, para McClintock, o fetichismo da “parafernália teatral da domesticidade” presente no
cotidiano sexual de Cullwick e Mumby permite articular gênero, classe e raça como partes
fundamentais do processo de desigualdade social extrema em que Cullwick negociou poderes,
o fetichismo dos itens domésticos e religiosos que aqui apresentei possibilitam encenar limites
sociais que apontam para marcas sociais deixadas pela escravidão negra. Ao relacionar coisas
exibidas nos Chás aos cotidianos precarizados pela invisibilidade de seus trabalhos de cuidado
com os lares e filhos, as mulheres evangélicas constroem batalhas pela família que se dão
através da elaboração de autoestima e do mútuo reconhecimento de seus esforços laborais. Elas
encenam limitações sociais diante de circunstâncias limitadas para exercício do valor de seu
trabalho doméstico historicamente negado por meio de “recusas estratégicas”, termo utilizado
por McClintock (2010, p. 222): “De qualquer forma, o reconhecimento do trabalho doméstico
como valioso era socialmente tabu e tinha de ser medido e controlado por roteiros
cuidadosamente arranjados.
Os esforços de Cullwick para transformar “a servidão num sinal secreto de
autoafirmação” (2010, p. 226) são apontados por McClintock em pequenos gestos, a exemplo
do momento em que escolhe não retirar a pulseira de escrava e é demitida de seu trabalho.
Como afirma a autora, o poder social encenado de forma roteirizada permite a negociação de
sentidos através de paródias que revelam agenciamentos feitos nas situações de desigualdade.
No caso das mulheres que frequentam o Chá, também há riscos envolvidos na negociação das
fronteiras sociais. Atentar-se para como a relação com as coisas é mais do que parte de um
cenário estático composto por significados, nesse sentido, indica alguns caminhos na
compreensão dos efeitos que estar no Chá provoca nas participantes.
A itinerância dos itens decorativos, carregados com as organizadoras de evento em
evento, aponta para a fragilidade da ocasião junto às institucionalidades. Por muitas vezes a
150

pastora Cristiane comentou publicamente durante a festividade que pagava “um preço enorme”
para conseguir realizar o Chá das Virtuosas. Numa conversa que tivemos, ela me explica que a
ocultação do nome da igreja dos cartazes de divulgação era necessária, pois aquele não seria
um evento da igreja, mas “particular” e, portanto, desinstitucionalizado. Com o passar do
tempo, as dificuldades decorrentes desta fragilidade aumentaram, fazendo com que o Chá
voltasse a ocorrer somente em espaços alugados especialmente para a celebração, como os lares
e salões de festa de prédios em que as participantes mais assíduas residiam, semelhante ao
percurso de seu início, em 2015.
Cito esta questão que atravessa a realização do evento para chamar a atenção a um
aspecto também citado por McClintock em sua análise sobre o fetichismo doméstico e racial
que estruturou a sociedade vitoriana. O reforço de convenções de gênero e sexualidade nos
preparativos para a mesa do Chá instaurava fronteiras que tinham como objetivo afastar perigos
da contaminação. A ritualização performática da relação com as coisas domésticas, atravessada
por discursos sobre a desvalorização do trabalho de cuidado com os filhos e com a casa, se
aproxima do que a autora indica sobre como o controle deste tabu é feito através de roteiros
cuidadosamente arranjados.
O que pode ser repetidamente interpretado como obediência servil às estruturas de poder
revela, por sua vez, como a circularidade deste mesmo poder permite negociações,
consolidando aberturas para permanentes transformações vividas em situações de grandes
limitações sociais. Tanto a ficção liberal que separa o público do privado como a negação
feminista à “recusa estratégica” são aspectos sublinhados por McClintock que encontram ecos
importantes nas relações ocorridas no âmbito das festividades compartilhadas entre mulheres
evangélicas. A análise de cenas, discursos e materialidades presentes no Chá das Virtuosas
demonstra como estas mulheres pentecostais majoritariamente negras e moradoras de territórios
empobrecidos da cidade têm desafiado tais concepções e se engajado em torno de projetos de
reconhecimento público.
Combinado ao compartilhamento de sentidos mais amplos associados aos elementos
representativos sobre “ser pentecostal”, a fala do homem que reclama sua identificação com os
louvores de tempos passados, mencionada no início desta seção, agrega disputas singulares à
localização do Chá das Virtuosas nesse contexto. As narrativas femininas se encontram aqui
com múltiplas e variadas experiências que debatem sobre a influência do “mundo”, o universo
secular que deve estar afastado das experiências religiosas. Reclamar sobre a invasão
secularizante na música e outros costumes que abrangem os comportamentos evangélicos
151

compõe parte importante destas disputas em que se situam as mulheres na composição do


evento.
As ações pentecostais em torno da secularização mais ampla da sociedade contam com
um componente de gênero importante, o qual também comparece em outras mobilizações
religiosas. Em seu trabalho sobre a construção de um projeto ético entre muçulmanas após o
revivalismo islâmico no Egito, Saba Mahmood (2005, 2006) propõe que o movimento feminino
das mesquitas surge como modo de combater a tendência de “ocidentalização” ou
“secularização” da sociedade egípcia. A autora argumenta sobre como o conhecimento religioso
percebido enquanto marginalizado passa, então, a ser incorporado por meio da educação
virtuosa das muçulmanas, produzindo transformações em formas de falar, se vestir e consumir
entretenimento, alterando o debate público no Egito.
A centralidade do gênero nestes processos é destacada por Mahmood para analisar
disputas feitas por estas mulheres fora do dualismo sobre combater ou reforçar a dominação
masculina. Sua crítica às formulações de Butler (2003) sobre a agência como performatividade
expande a noção de agência para além do alcance das políticas progressistas. Reconhecendo a
importância destas formulações para o projeto feminista liberatório, a autora identifica que
Butler argumenta a partir de um contexto em que as normas estão sujeitas à ressignificação,
sendo nesse contexto ou consolidadas ou subvertidas. Em lugar disso, afirma que as mulheres
muçulmanas indicaram outros desafios conceituais para se pensar a agência como uma ação
que vai além do fazer e desfazer das normas e permite compreender como “as normas são
também performadas, habitadas, experenciadas de várias maneiras” (MAHMOOD, 2006, p.
136).
A análise de gênero que proponho para o contexto pentecostal neste capítulo em muito
se aproxima das fundamentais contribuições da autora para identificar diferentes modalidades
de agência, deslocando seus sentidos da oposição arraigada em proeminentes teorias feministas
com a resistência. Para além do suposto potencial liberatório que identifica como as mulheres
evangélicas combateriam ou reforçariam a dominação masculina, busquei analisar como as
normas se encontram em constante negociação em experiências domésticas que conjugam o
âmbito conjugal ao exercício da maternidade. Ser mulher virtuosa abrange, assim, modos como
as normas são performadas através do corpo em relação com as coisas que são expostas no Chá.
Conforme passo a argumentar no próximo capítulo, nesse contexto as normas são “ações
incorporadas” (MAHMOOD, 2006) cuja análise permite visibilizar batalhas contra e pela
família que residem em argumentos como os de que as narrativas que estão “no mundo” não
pertencem a ele, mas a Deus. Por terem sido “roubadas” pelo Diabo, estas narrativas podem ser
152

reapropriadas pelas mulheres evangélicas a partir de “estratégias” e “visões” que salvam e


solidificam o matrimônio monogâmico, expandindo reivindicações e possibilidades de prazer
erótico.
Ao contrário de uma interpretação racionalizante sobre o pentecostalismo que sugira
traduções e apropriações estratégicas do mundo secular, reflito sobre como a ética pentecostal
constrói relações com o mundo através de regimes disciplinares (Foucault, 2007),
“sincronizando” emoções e comportamentos por meio do que Mahmood identificou como uma
tradição que se afasta da ideia de treinamento e se aproxima do autocultivo moral143. Este
exercício analítico não sugere uma definição do pentecostalismo como modelo homogêneo que
moldaria formas “religiosas” de ser virtuosa. Em seu lugar, a aproximação da ética pentecostal
de mulheres evangélicas com a formação das práticas muçulmanas do movimento pietista, já
também empreendida pela própria Mahmood com estudiosas do cristianismo evangélico nos
Estados Unidos, buscou apontar para uma das múltiplas apostas possíveis em análises
interseccionais sobre as religiosidades.
Reconheço que as limitações decorrentes do gênero como marcador central neste
diálogo com a autora acabam obliterando especificidades relativas a classe e raça, além de
outros fatores concernentes àquilo para o que Carpenedo (2022) chamou a atenção em sua
releitura do trabalho de Mahmood para os efeitos de passados de socialização distintos nos
casos que envolvem a conversão religiosa. A aposta pelo reconhecimento da agência feminina
em contextos de profundas desigualdades sociais ganhou outros contornos que não se encerram
com este debate e que, neste capítulo, foram percorridos através da centralidade com que as
formas de precarização da vida consolidam a racialidade (SILVA, D., 2019) como motor
fundamental deste funcionamento.

143
Este aspecto também apresenta similaridades com o que apresento no capítulo 1 a respeito da rejeição à prática
do coaching nas igrejas pentecostais. A tradição aristotélica de cultivo moral resgatada por Mahmood se afasta de
uma noção de treinamento para adquirir competências, sustentada na separação entre corpo e espírito. A autora
indica que esta noção advém de uma formulação sobre o corpo não se separar, mas operar como unidade
inseparável e “materialização da alma” (MAHMOOD, 2005, p. 142), o que também é similar ao que minhas
interlocutoras evangélicas indicam.
153

3 POLÍTICAS SEXUAIS DAS COISAS

“Poderíamos dizer que um dildo não é um ‘pinto de plástico’, e sim, em que pesem as
aparências, um pinto é um dildo de carne” (PRECIADO, 2014, p. 19). Esta provocação,
apresentada em referência a um anexo nomeado como Dildo no “Manifesto Contrassexual”,
aponta para diferentes usos deste objeto registrados em documentos históricos. Do prazer
apresentado em performances corporais, de gênero e de sexualidade, os múltiplos sentidos que
já circularam sobre as práticas sexuais em que este instrumento aparece são tão duráveis quanto
alguns materiais que podem ser utilizados para simular sua existência.
Em madeira, borracha, cera, couro ou recheado com a carne que compõe braço, perna,
peitos e pênis, Paul Preciado propõe que o caráter prostético do gênero faz do dildo e de sua
dildotectônica instrumentos que desorganizam o lugar ocupado pela natureza como ordem
estabelecida para os corpos. Ao rejeitar o dildo como matéria inerte, parodiar o corpo e colocar
o pênis como uma dentre múltiplas possibilidades de ser dildo, o autor traz um deslocamento
que questiona limites entre categorias fundantes do que chamamos de sexo. Em vez de carne e
plástico, sugere que pensemos na plasticidade carnal; corpo e objeto, pênis e dildo não seriam
opostos, já que ambos são produtos de tecnologias que orientam máquinas orgânicas e
inorgânicas.
Para Preciado, o dildo é a paródia que não se contenta em imitar, aliado de um prazer
plástico que denuncia a arbitrariedade contida em noções consolidadas nas teorias modernas
dualistas sobre poder, sexualidade, corpo, religião e outras experiências que envolvem a
interação com materialidades. Ao afirmar que tanto máquinas como corpos produzem e são
produzidos pela biopolítica de sexo/gênero, Preciado aposta em pensar sobre a capacidade do
dildo de deslocar limites sobre a suposição do orgânico como única matéria que constitui a
sexualidade.
Ao longo da pesquisa que resulta nesta tese, o dildo também trouxe desafios para
dialogar com a ideia de que gênero e sexualidade são feitos pelo que o autor chamou de
“tecnologias sofisticadas que fabricam corpos sexuais” (PRECIADO, 2014, p. 29). Entre as
mulheres evangélicas com quem convivi, sua matéria impronunciável transitava a partir de um
jogo de presença ausente. O esforço organizador para afastar a sujeira, nos termos de Mary
Douglas (2014), parecia higienizar um erotismo que não deve ser “pornográfico”. Em vez de
dildo, consolo ou “prótese”, termo de preferência no contexto prévio em que estive do mercado
erótico, chamá-lo de “pênis de borracha” situava seu lugar fabricado, subalterno em relação
àquilo que somente o corpo biológico de quem foi designado homem ao nascer possuiria.
154

Ao ser marginalizado em meio a outras tecnologias eróticas privilegiadas entre estas


mulheres, tais como os óleos da “cosmética sensual”, o dildo se situa em um campo de práticas
abjetas para os sentidos atribuídos ao sexo no contexto evangélico. Identificá-lo como matéria
impronunciável tem por objetivo apresentar como as interlocutoras formam convenções e
constroem suas políticas sexuais a partir destas e outras coisas que são classificadas como
falsas, sejam permitidas ou proibidas, nos espaços evangélicos de sociabilidade feminina que
frequentei ao longo do trabalho de campo.
Diferente dos capítulos anteriores, em que analisei como práticas de consumo e revenda
contidas nos usos de artigos eróticos estabelecem relações entre diferentes mercados e espaços
nos quais as mulheres circulam na cidade e em suas igrejas, desta vez exploro como as mulheres
forjam coletividades e criam regulações nas quais interseccionalidades de gênero, raça, classe,
sexualidade e geração podem ser visibilizadas a partir destes usos. Ao seguir coisas eróticas,
explorei seus roteiros tanto a partir de entrevistas em que as interlocutoras desta pesquisa
contaram sobre suas experiências como vendedoras e usuárias de coisas eróticas nas igrejas em
que congregavam, como através de cenas, objetos e discursos decorrentes de observação
participante feitas nos eventos voltados para mulheres evangélicas que frequentei ao longo do
trabalho de campo.
Comecei a frequentar as igrejas enquanto parte destes roteiros ao ser convidada por
minha antiga interlocutora do mestrado para um sorteio de “kits eróticos” que ocorreria em um
evento voltado para mulheres. Este evento era o Chá das Mulheres Virtuosas, de que, noutra
ocasião, ela havia participado ministrando uma palestra como consultora sobre uso de artigos
eróticos no casamento. O sorteio erótico era um momento menos comum a outros eventos
pentecostais voltados para mulheres que frequentei e ocorria sempre no encerramento da
ocasião.
Além das coisas que incluíam artigos destinados ao uso na relação sexual, este momento
também incluía outros objetos que se vinculavam à autoestima e às conjugalidades, como
bijuterias, maquiagens, perfumes, e aquelas utilizadas no âmbito doméstico, a exemplo dos
potes para armazenamento de comida. Rodeadas por mesas decoradas com jogos de xícaras e
bolos que buscavam reproduzir um chá da tarde, suas referências se cruzavam com aquelas
encontradas em reuniões de mulheres para marcas populares de cosméticos e de produtos
voltados ao cuidado doméstico, a exemplo dos potes de comida da marca Tupperware, como
indiquei no primeiro capítulo desta tese.
A relação com coisas eróticas e religiosas durante o sorteio forneceu múltiplos aspectos
que caracterizam os Chás como espaços de aperfeiçoamento para a realização de estratégias em
155

torno da sexualidade. Junto à recusa aos dildos, estas mulheres se relacionam com matérias
fluidas como cremes, géis, azeites e óleos de unção que auxiliam na manutenção cotidiana da
fé e dos casamentos. Tais matérias atuam através de regulações nas fronteiras para controlar
aquilo que é lido como excesso, barrando as “ameaças aos homens” e deixando entrar a
maleabilidade de “brinquedinhos” e fluidos, sempre acompanhadas das citações do livro de
Cantares de Salomão como sustentáculo bíblico para praticar uma vida em santidade aliada ao
exercício dos prazeres.
Se ter o corpo “cheio do Espírito Santo” implica em incorporar virtudes, livrar-se de
males também envolve matérias úmidas que devem ser eliminadas. As coisas fluidas que saem
do corpo em rituais de exorcismo, mais conhecidos como “manifestação” de demônios,
compartilham sentidos associados ao bem e ao mal e indicam como o corpo performa durante
estes rituais ocorridos entre mulheres na interação com sons, óleos para unção e outras matérias
eróticas e religiosas. Assim, o sangue menstrual, vômitos e suor também são analisados neste
contexto em que o corpo pentecostal desenvolve a capacidade de expelir matérias que
atravessam gênero e sexualidade.
Seguir as coisas através da exibição de artigos domésticos, dádivas trocadas entre
mulheres durante sorteios de artigos eróticos e das cenas de expulsão de demônios de seus
corpos, levou a compreender políticas sexuais que as coisas eróticas se transformam nas
disputas evangélicas. A partir de como se fazem coisas religiosas, nas palavras de Engelke
(2012), procuro pensar como se fariam, então, coisas que são, ao mesmo tempo, eróticas e
religiosas. O que traz potência erótica a um material religioso, ou potência religiosa a um
material erótico? Além disso, como essa articulação lida com suas possíveis contradições e
como evidencia as tensões e disputas destes universos morais?
Como venho argumentando, a rota pelas relações entre coisas e pessoas permitiu
desenvolver estas questões a partir do cruzamento com o espaço da igreja, tanto a partir dos
eventos voltados para mulheres como noutros espaços pelos quais as mulheres transitaram em
busca de se tornarem virtuosas144. Nesse sentido, as igrejas são um dos muitos espaços que
compõem essas sociabilidades femininas que formam trajetos interseccionais percorridos pelas
mulheres evangélicas que formam coletividades ao falar de sexo, casamento, prazeres e riscos.
Na medida em que a circulação das coisas eróticas vem adquirindo maior espaço e ampliando
mercados, o compartilhamento de dicas sobre como “apimentar” casamentos evangélicos

144
No capítulo 4 da tese aprofundo como a dinâmica dos eventos constitui parte fundamental da formação de
coletividades não só nesse contexto, mas nas dinâmicas pentecostais mais amplas.
156

esteve presente em muitos destes eventos religiosos para mulheres, alinhando-se às mudanças
mais amplas nas convenções de gênero e sexualidade contemporâneas (GREGORI, 2016).
As relações estabelecidas nos Chás das Virtuosas, evento que trago com maior
profundidade, atravessavam, por sua vez, dinâmicas próprias ao pentecostalismo e dialogavam
com pedagogias de gênero e sexualidade presentes neste contexto. No estudo de Nina Rosas et
al. (2021), a literatura cristã voltada para a sexualidade evangélica foi mapeada para identificar
como a visão positivada do sexo está relacionada a uma ideia de “conjugalidade legítima”.
Alguns dos valores que estariam associados ao modelo ideal nesta literatura seriam a fidelidade,
o casamento, a monogamia, a reciprocidade e o prazer alcançado através da “ordem natural
heterossexual”. Parte destas interdições em torno da sexualidade também foram encontradas
nos discursos sobre a rigidez para a manutenção do ideal familiar registrados por Mariz e
Machado (1996), em pedagogias eróticas observadas na pesquisa de Jacqueline Teixeira (2016)
e nas pregações de lideranças religiosas em ação nos púlpitos de igrejas pentecostais, conforme
descreveu Rosas (2018).
Como estes e outros trabalhos indicam, os roteiros erótico-conjugais não se limitam às
práticas encontradas no interior de denominações pentecostais, e buscam destacar a figura do
casal heterossexual na composição familiar em diferentes âmbitos da vida religiosa. No
contexto da pesquisa que resultou nesta tese, o modelo tipológico de representação a partir dos
casais foi alvo de frequentes alegorias com personagens bíblicos, sendo os mais frequentes
personagens como Rainha Ester e Rei Assuero145, Rei Salomão e Mulher Sulamita. Embora
minha circulação etnográfica não tenha enfocado nas trajetórias institucionais das interlocutoras
em funções que ocupavam em suas igrejas, as rígidas divisões de gênero e sexualidade
encontradas nestes espaços repercutiram diretamente noutras práticas do cotidiano evangélico.
As distinções definiam espaços de acesso em que gabinetes, como geralmente são
chamadas as salas destinadas à orientação pastoral, são ocupados para que “homens resolvam
assuntos de homens” e vice-versa. Assim, aquelas que atuavam como lideranças pastoreavam
as fiéis, enquanto seus maridos também pastores prestariam orientações aos homens que
frequentam a igreja, evitando aproximações entre membros(as) cujo estado civil também
determinava diferenciações, como apresentei no primeiro capítulo da tese. Ao mesmo tempo,
as divisões intragênero que separavam mulheres virtuosas, amantes e prostitutas determinavam

145
O Livro de Ester compõe o conjunto de livros bíblicos do Velho Testamento. A personagem é bastante citada
no contexto de campanhas para a vida sentimental, com destaque para a virada em que se torna rainha ao se casar
com o Rei Assuero, que deixa sua esposa Vasti para se casar com Ester.
157

outros limites para falar de sexo nestes espaços. Analisei como as “feitiçarias” produzidas por
figuras desviantes nesse contexto são alvo de constantes negociações em que as relações entre
erótico e pornográfico visibilizam articulações entre raça, sexo e nação enquanto elementos
constituintes destas dinâmicas pentecostais contemporâneas.
Ao retornar ao enfoque nos usos de artigos eróticos, busco explorar outras dimensões
das políticas sexuais adotadas por mulheres evangélicas através das coisas exibidas e trocadas
nos Chás. Desta vez, priorizei análises sobre a fisicalidade e plasticidade de coisas que penetram
ou são expelidas de seus corpos durante os cultos, visibilizando fronteiras nas relações que as
mulheres travam com Deus e com múltiplos demônios. A formulação de “erotismo sagrado”
proposta por Bataille (2017) foi inspiradora para identificar como estas fronteiras emergem a
partir de tensões que revelaram ambivalências e ambiguidades, caraterísticas às continuidades
entre domínio erótico e religioso exploradas ao longo da etnografia. Para o autor, tanto o erótico
como o sagrado desenvolvem-se através de uma inclinação que transcende o mundo imediato,
deslizando entre ações paradoxais que permitiram a esta análise compreender as diferentes
concepções que o erotismo sagrado pode alcançar.
Conforme Giumbelli (2008) chamou a atenção, tanto para esta como para outras
reelaborações posteriores às teorias clássicas sobre o sagrado, sua relação com o profano é
desinvestida de dualismos e sai de um lugar elevado para se tornar força do cotidiano (LEIRIS,
2017). Os usos de coisas eróticas possibilitaram refletir sobre a rentabilidade deste par clássico
formado por sagrado e profano para as formulações antropológicas, além de indicarem como
as articulações interseccionais que emergem destes usos criam outras disputas morais no âmbito
do casamento.
Buscando ir além da dimensão jurídica historicamente destacada em nossos repertórios
nos estudos feministas sobre a criação de categorias morais atreladas ao matrimônio, as
interações evangélicas permitiram refletir sobre as disputas espirituais 146 construídas nestas
políticas sexuais. Por meio do que chamam de “visões espirituais” , “profecias”, “revelações” e
da elaboração de estratégias que incorrem em ter “ousadia na fé”, analisei como mulheres
evangélicas vêm visibilizando estas disputas através da criação de limites em que a sexualidade
é um risco iminente que deve ser constantemente explorado e contido.

146
Agradeço à Nathalia Gonçales pela sugestão da categoria em sua leitura deste capítulo da tese.
158

3.1 Seguir as coisas como método e metodologia

3.1.1 Regulações sobre o sexo em um sorteio erótico

Nas ocasiões em que o Chá das Virtuosas ocorreu ao longo do trabalho de campo, ser
realizado no mês de junho abria espaço para enfeites decorativos que traziam corações e fotos
de casais apaixonados em recortes de revistas, distribuídos em porta-retratos que enfeitavam a
mesa do evento para celebrar o Dia dos Namorados. No ano de 2017, cachorros-quentes, bolos,
salgadinhos e refrigerantes eram servidos enquanto o clima celebratório ocorrido após uma
pregação bem-humorada da pastora Cristiane, especialmente destinada aos casais, era reforçado
pela voz de uma das membras da igreja ao microfone. Ela pedia para que as mulheres
permanecessem no local para “uma brincadeira” que ocorreria em breve, como também era
chamado sorteio dos “kits eróticos”.
A transição visual e sonora que identificava o final do culto para o início do momento
do sorteio trazia a diminuição do som e o acender de todas as luzes da igreja. Muitos(as) fiéis,
em sua maioria casais, já começavam a se deslocar em direção à saída. Parte das mulheres,
acompanhadas de crianças que corriam entre as cadeiras longarinas, escolhiam atender ao
animado pedido feito ao microfone. Em poucos minutos, a pastora se posicionou ao lado de
uma mesa que estava no andar inferior ao altar e chamou por uma ajudante, que logo trouxe um
copo de papel de plástico preenchido por pequenos papéis dobrados. Meu nome já havia sido
perguntado por uma das membras e anotado em um papel, o que me levou a concluir que
provavelmente estaria nos recortes do copo junto ao de outras participantes.
Antes de anunciar o primeiro nome sorteado, a pastora solicitou que os homens, em
número ainda mais escasso naquele horário, fossem afastados para uma sala nos fundos da
igreja e ali permanecessem até o fim do sorteio. Já passava de 10 horas da noite e membras da
igreja já não transitavam mais com bandejas de comida, o que também ajudou a esvaziar ainda
mais o local. Finalmente, a pastora anunciou o nome da primeira sorteada e a convidou para se
dirigir até a mesa e pegar seu “brinde”. Embora fosse escolhido aleatoriamente, havia um
critério central para definir em qual conjunto aleatório cada uma levaria um objeto para casa.
Na mesa já arrumada desde o início do culto para aquela situação, havia alguns pacotes
pequenos e médios em papel celofane transparente, outros cobertos por outro papel fosco que
não permitiam enxergar seu conteúdo. Potes para armazenamento de comida em diversos
tamanhos também estavam expostos. A aproximação da sorteada era acompanhada de uma
mesma pergunta, feita para todas: “solteira ou casada?”. A reação mais efusiva para a segunda
159

opção acompanhava a entrega daquilo que poderia ser utilizado na intimidade do casal,
apresentada enquanto “parte do sex shop”.

Imagem 5: Potes para armazenamento de


comida e outros objetos embrulhados em
papel transparente , para apresentação feita
antes do sorteio ao público Imagem 6: Cosméticos, máscaras e
lingeries, exibidos somente durante o sorteio

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Com o passar das edições em que estive no Chá notei que, por mais que o conteúdo dos
brindes que compunham os “kits eróticos” pudesse variar, havia uma constância daqueles que
mais se repetiam entre as casadas e solteiras: para as primeiras, eram oferecidas calcinhas em
tecido e comestíveis, camisolas, bolinhas explosivas, géis, dados que remetem a posições
sexuais, chicotes e máscaras147. Já as segundas costumavam ganhar cosméticos como batons,
perfumes e maquiagens, além das bijuterias, em sua maior parte brincos dourados e com pedras
brilhantes.
Longe dos olhares masculinos, a “brincadeira” fazia com que as virtuosas
permanecessem ali por um longo tempo e com os portões de acesso à igreja já fechados no
local. Das diferentes ocasiões em que acompanhei, a dedicação destinada ao mês de junho se
expressava também na maior variedade e quantidade destes objetos. Foi também naquele mês

147
Os géis podem estar inclusos em diferentes categorias, tendo a função de esquentar, esfriar ou causar sensações
análogas à vibração quando em contato com o corpo. Chicotes e máscaras, por outro lado, remetem às fantasias
feitas com materiais como couro e látex. Além dos dildos, não havia nenhum tipo de vibrador nos kits, ausência
que pode apontar para o valor mais alto cobrado neste tipo de material.
160

que ganhei um item diferente do que costumava receber ao ser sorteada. Era incomum que uma
mulher solteira ganhasse um item do conjunto associado à “parte do sex shop”, mas acabei
ganhando uma calcinha com a recomendação de que seria “o primeiro item do enxoval”. Para
as solteiras, era mais comum que os presentes fossem bijuterias, cosméticos e potes, conjunto
similar aos das mulheres divorciadas e viúvas.
Tanto estas prescrições que condicionavam a distribuição dos objetos ao estado civil
como as passagens de luz, som e oferecimento da comida expressavam modos pelos quais o
sorteio designava uma passagem a outro momento no “ritual performativo” (TAMBIAH, 1985)
do Chá das Virtuosas. De modo distinto das materialidades envolvidas nos objetos de devoção
da igreja e na decoração do espaço para o Chá, analisadas no capítulo anterior, desta vez
explorei como as materialidades eróticas expressavam ambivalências e ambiguidades de gênero
e sexualidade através de dois aspectos observados no momento do sorteio: de um lado, as
prescrições relacionadas aos corpos, objetos e ao espaço da igreja e, do outro, os controles
exercidos para a circulação de registros fotográficos e audiovisuais dos rostos das participantes.
A análise busca identificar diferentes modos de conhecer as participantes do sorteio, além de
quais formatos são autorizados ou vetados para falar de sexo nesse contexto.
Junto à classificação pelo estado civil, as mulheres casadas passavam por uma pergunta
adicional assim que eram sorteadas a respeito do tempo de duração do casamento. Quanto maior
fosse o tempo, mais cuidadosa era a escolha da pastora ou de sua ajudante pelo objeto que
levariam para casa. Todos os grupos, por outro lado, tinham seus presentes previamente ungidos
por Cristiane e recebiam uma oração em favor de sua vida conjugal no momento da entrega do
objeto. A cena era causadora de certa sensação de continuidade para quem já havia ouvido a
pregação da pastora durante o culto, mas também acessava outras linguagens que diferenciavam
aquele momento dos anteriores.
A continuidade do riso, linguagem que mobilizava as participantes de diferentes
maneiras em torno da distribuição dos brindes, era fator que transitava entre os dois momentos
com maior fluidez. Envergonhado ou extrovertido, o riso construía relações que poderiam tanto
facilitar como perturbar o cruzamento de limites morais. No caso do sorteio, a jocosidade se
alinhava aos outros elementos prescritivos e atuava como facilitadora das interações, tornando
aquele um espaço seguro para falar de sexo entre mulheres evangélicas. Assim, a cada nova
sorteada, uma piada sobre seu estado civil ou recente mudança na aparência arrancava risos de
nervoso, surpresa, euforia; emoções expressas de modo combinado ou não, e nem sempre
acompanhadas no mesmo tom pelas outras participantes.
161

Comentários entusiasmados feitos em voz alta tanto por quem estava na plateia (“a noite
hoje vai ser boa, hein?”, “vai com tudo, irmã!”) como ao microfone por quem liderava o sorteio
eram os maiores desencadeadores de riso. Em uma das entrevistas que fiz com Fernanda, uma
das virtuosas que costumava ser a responsável pela liderança do sorteio junto com a pastora
Cristiane, ela me contou sobre como seu comportamento extrovertido costuma facilitar estas
interações: “É a minha forma de brincar. Se fosse aquela pessoa séria, pra fazer sorteio, ia
conseguir fazer o sorteio de produtos eróticos para evangélicos?”148.
A própria pastora também costumava narrar situações cômicas vivenciadas com o
marido em suas preparações para a relação sexual, despertando risadas da plateia enquanto seu
corpo se movimentava animadamente simulando interações ocorridas na cena. Muitas
participantes saíam de seus lugares anteriores para se sentar cada vez mais próximas e buscar
ouvir melhor a pastora que, naqueles momentos, optava por não falar ao microfone para que
não fosse ouvida pelos homens que esperavam suas esposas em uma sala nos fundos da igreja
e com as portas fechadas. Além da voz em tom mais baixo, ela também se despia de seu manto
de oração: “vou até tirar esse manto porque agora é outro manto!”.
O uso deste e outros trocadilhos com termos do vocabulário religioso, como a
positivação da palavra “pecado” quando se refere à sexualidade feminina149, eram frequentes e
indicam como falar de sexo, desde que no contexto do casamento e entre mulheres, não se
apresenta como um problema para as socialidades pentecostais. Os estímulos a “ousar mais” e
não ser “crente demais”, como as “assembleianas”, por exemplo, eram exemplos
constantemente lembrados para fazer referência às mulheres evangélicas que acabavam
“perdendo seus maridos para amantes”. O rompimento necessário com este ideal feminino
“ultrapassado” ganhava caráter ainda mais pragmático com as sugestões e dicas que a pastora
compartilhava, orientando-as a serem criativas, utilizarem “truques” e adaptações para saírem
da rotina e se divertirem com seus parceiros: “pega aquela calda de cereja na geladeira, coloca
a fantasia de enfermeira e entra no personagem, usa estes artifícios!”, encorajava Cristiane,
apontando para a mesa com cosméticos e outros artigos eróticos.
Os momentos de jocosidade também forneciam maior liberdade para que a pastora
falasse em primeira pessoa, produzindo diálogos com uma plateia que, segundo costumava
contar, também estava sempre repleta de “mulheres gordinhas como ela”. Habitar o corpo de

148
Entrevista realizada em junho de 2017.
149
Ressalto também para a frequência desta utilização de duplos sentidos para se referir aos homens, a exemplo
de outros termos utilizados nesse contexto, tais como “boy abençoado”, “varão ungido”, entre outros.
162

uma mulher “gordinha”, “acima do peso” ou “plus”, como espontaneamente costumava


destacar, era um aspecto sempre lembrado nestes momentos. Ao serem acionados, o uso destas
categorias fornecia um senso de reconhecimento mútuo que buscava, através dos usos de coisas
eróticas, tornar corpos considerados majoritários naquele espaço também desejáveis.
A escolha destes termos demonstra que estas ressignificações presentes nos discursos
da pastora dialogam, para além do espaço do Chá, com setores sociais mais amplos que se
articulam aos mercados. Conforme indicou Marcella Betti (2014), “gordinha” e “acima do
peso” são categorias de autodefinição frequentemente utilizadas no mercado de moda plus-size,
geralmente utilizadas no sentido de evitar o uso de termos de caráter pejorativo ou indelicado.
Já a segunda se trata de uma categoria clínica e, como explica a autora, pressupõe normas
baseadas em recomendações médicas a respeito do “peso ideal”.
Embora não tenha notado entre as interlocutoras em meu trabalho de campo usos bem-
humorados da palavra “gorda” ou críticas sobre o eufemismo de termos como “gordinha”, como
Betti (2014) indica serem formas presentes de reivindicações de caráter político-identitário,
percebo que espaços em que se fala sobre sexualidade como o Chá têm proporcionado a
elaboração de agenciamentos nas prescrições relacionadas ao tamanho dos corpos femininos.
Aqui a presença do riso também se configura elemento importante, na medida em que trivializa
as situações que fazem parte do cotidiano de muitas mulheres evangélicas que se identificam
com estes discursos e não encontram este tipo de acolhimento.
Em sua análise sobre os diferentes formatos em que o humor aparece em um grupo
urbano de camada popular, Claudia Fonseca (2004) pergunta o que o deboche e outras
modalidades que provocam riso sobre o comportamento sexual revelam a respeito das relações
de gênero. Expandindo a proposta pioneira de Bakhtin (1993, p. 116) de compreender o que
chama de “cultura cômica popular” contida no caráter ambíguo do riso, a autora aponta para a
necessidade de repensar estereótipos sobre a liberdade sexual feminina quando descreve casos
de interlocutoras que brincam sobre traições de mulheres no casamento ou redirecionam piadas
que cerceiam sua liberdade de escolha contra os próprios homens.
Embora o teor das piadas contadas na situação do sorteio esteja circunscrito às ações
que solidifiquem o espaço sagrado do matrimônio e não visem oferecer um lugar de
superioridade às mulheres, caso das interlocutoras de Fonseca, sua contribuição ajuda a pensar
sobre a politização do riso e seus agenciamentos para redirecionar moralidades. Nestes
discursos femininos evangélicos, o sorteio de kits eróticos oferece espaço para falar sobre sexo,
diferenças e questionar desigualdades através do riso provocado na interação com as coisas. O
lugar ocupado pelos homens, nesse sentido, estava frequentemente repleto de ironias sobre
163

terem que “se cuidar” para “dar conta” de esposas que estariam cada vez mais buscando obter
prazer nas relações sexuais.
O repertório do humor e da distribuição de presentes eróticos do sorteio trazia afinidades
com outras ocasiões festivas entre mulheres evangélicas que eu já havia conhecido no trabalho
de campo do mestrado, acompanhando minha ex-interlocutora em chás de lingerie realizados
na casa de clientes evangélicas. Após conhecer melhor os trabalhos realizados pela pastora
Cristiane fora da igreja, os chás de lingerie voltaram a aparecer, desta vez em uma ocasião em
que ela havia sido convidada a conduzir como celebrante. Logo numa de nossas conversas por
mensagens de voz no WhatsApp, a pastora me contou sobre as continuidades no vocabulário
empregado para a troca de brindes, também chamada de “brincadeira”, e na divisão de
momentos distintos que demarcavam sua participação nestes eventos: o primeiro, em que
pregava uma Palavra direcionada ao “casamento com Deus”, e um segundo momento, a partir
do qual direcionava conselhos voltados “para a parte do sexo”. Neste caso, ela afirma ter
tomado mais precauções na escolha das palavras por se tratar de uma noiva evangélica que
havia permanecido virgem para se casar.
Se nos chás de lingerie os presentes eróticos são levados pelas convidadas, não
distribuídos pela anfitriã, nos Chás das virtuosas tanto a comida quanto parte dos objetos que
seriam sorteados, como cremes hidratantes, maquiagens e bijuterias, chegavam pelas mãos de
participantes do evento. Elas geralmente somavam entre dez e vinte mulheres em públicos que
variaram de trinta pessoas no início, em junho de 2017, para cerca de oitenta já no fim do
trabalho de campo presencial, em 2019.
Durante a divulgação, que ocorria através de redes sociais e grupos de WhatsApp
administrados pelo casal de pastores Cristiane e Bruno, as mulheres eram convocadas a levar
doces, refrigerantes e salgados para o lanche, enquanto para o sorteio eram bem-vindas doações
de cosméticos que haviam sido comprados e deixados de lado por falta de uso, ou bijuterias que
haviam recebido de presente, mas não as agradaram. A “parte do sex shop”, por sua vez, era
levada pela própria pastora, que muitas vezes comprava estes itens acompanhada de virtuosas
mais próximas que ajudavam na organização do evento.
Numa destas ocasiões, a acompanhei nas compras que fazia no Saara, local que cruza
importantes ruas do comércio popular no centro do Rio de Janeiro. Caminhamos juntas durante
uma tarde inteira em busca de objetos que comporiam os presentes do sorteio, cada um
comprado em uma diferente loja de atacado e/ou varejo que pudesse atender ao orçamento
estabelecido para o evento. Segundo a pastora, tudo saía de seu próprio bolso e o dinheiro das
ofertas recolhidas dos fiéis presentes no Chá ficava exclusivamente para a igreja. O destino de
164

muitas lojas já era conhecido por ela após sua experiência anterior pesquisando por preços mais
acessíveis. Em diferentes sex shops e lojas de roupa íntima, compramos lingeries, bolinhas
explosivas e cremes para massagem. Nosso tempo foi maior dentro das lojas do que fora delas,
já que em muitas Cristiane conversava longamente com as vendedoras sobre o evento e as
características físicas de suas “filhas” que estariam lá e que não deveriam usar “calçolas”,
referindo-se à sua preferência por levar calcinhas menores e mais justas ao corpo para o sorteio.
O diálogo bem-humorado sobre a busca por proporcionar uma visão “menos crente”
entre as mulheres na igreja quase sempre rendia um convite para conhecer o Chá, com uma
troca de telefones para que a pastora enviasse o cartaz do evento à vendedora. Minhas diferentes
idas ao evento indicaram que esta interação reflete um dado representativo sobre o perfil mais
geral de mulheres que o frequentam uma única vez, esporadicamente ou acabam se tornando
parte do núcleo mais fixo do grupo, a “tropa”, como comentei no capítulo anterior. Trata-se,
assim, de mulheres e casais que tiveram interações em múltiplos espaços diretamente com
Cristiane ou cruzam sua rede de contatos e as de outras mulheres que frequentam o grupo.

Imagem 8: Interior de outra loja que


integrou o circuito de compras para o
Imagem 7: Interior de loja que integrou o sorteio, localizada no centro do Rio de
circuito de compras para o sorteio, localizada no Janeiro, RJ
centro do Rio de Janeiro, RJ

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.


165

Imagem 9: Porta de entrada em loja de Imagem 10: Visão dos produtos


atacado e varejo que compôs o circuito no encontrados no espaço de “sex shop” da
centro do Rio, demarcando separação de mesma loja
outros produtos para artigos de “sex shop”

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Imagem 11: Loja destinada a produtos para fantasias de carnaval que compôs o circuito de
compras destinadas ao sorteio

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Seguir as coisas eróticas e percorrer seus trajetos junto à pastora me levou a


compreender de outras maneiras quem são as mulheres que frequentam o Chá, conhecendo-as
para além das narrativas que contaram sobre seus usos com estas coisas. Olhar para as múltiplas
relações estabelecidas com as coisas e suas sensações olfativas e táteis, o que aprofundo a partir
166

dos usos de óleos mais à frente neste capítulo, ajudou a contornar desafios analíticos que o
próprio contexto de pesquisa apresenta, já que a transitoriedade de estar em um evento
dificilmente permite um contato de maior permanência com seus(suas) frequentadores(as).
Este trajeto etnográfico, inspirado em trabalhos como o de Renata Menezes (2020, p.
62) sobre as formas classificatórias que as coisas adquirem de forma “circunstancial” e feita
entre seus “personagens, ações e materialidades”, permitiu estabelecer contatos com
metodologias e olhares privilegiados sobre diferentes dinâmicas relacionadas às coisas eróticas
nos fluxos pentecostais. Ao pesquisar processos envolvidos na festa de São Cosme e São
Damião a partir dos subúrbios cariocas, Menezes seguiu montagens e desmontagens dos
saquinhos de doces no trabalho de campo para compreender como sua distribuição evoca
elementos cotidianos dos fluxos nos quais fazer religião extrapola templos e regulações
doutrinárias.
Seguir este que é o principal brinde da festa católica em questão apresentou espécies de
circuitos e “linhas de produção” que envolvem participantes de uma mesma família ou
vizinhança, além de técnicas no manuseio e formas de controle neste processo coletivamente
realizado. A ideia de movimento envolvida nos trânsitos percorridos com e pelo saquinho de
doces é ilustrada por descrições em que Menezes analisa como “formas” de dar doce seguem
“razões” que envolvem diferentes modalidades de participação na festa, tais como tradição,
promessa e vontade.
Ao circular por outros espaços que contornam o Chá das virtuosas, seus circuitos de
organização e regulações para a manutenção de uma ordem modulada por divisões de gênero e
estado civil no espaço-tempo do sorteio evidenciaram modos como se pode falar de sexo através
de cenas das interações com as coisas e os circuitos que fazem entre lojas e lares das
interlocutoras até as igrejas. Desde a utilização da paródia nas relações que envolvem corpo e
gênero até a escolha de objetos a serem comprados e mostrados, variadas tentativas de manejar
os riscos que decorreriam de discursos sobre o sexo puderam ser visibilizadas.
Se acompanhar os processos de compra e distribuição das coisas eróticas na companhia
da pastora acenou para diversas classificações em torno do evento, explorar as interdições sobre
o sexo a partir das imagens que eu registrava com minha câmera fotográfica durante o sorteio
apontou, por sua vez, para outros modos de controle. Ao compartilhar as fotos posteriormente
nos grupos de WhatsApp em que interagia com as virtuosas, recebi uma orientação da pastora
Cristiane para evitar o compartilhamento de algumas destas fotos. Ela se referia mais
especificamente às imagens dos objetos e dos rostos das mulheres em situações nas quais
167

brincavam com máscaras, chicotes e outros itens, incentivadas publicamente pela pastora
quando recebiam o brinde.
Em busca de respeitar estes códigos compartilhados coletivamente, perguntei sobre
outras interdições no registro de fotografias e Cristiane também me orientou a não compartilhar
rostos de pessoas “endemoniadas” 150. A referência ao exorcismo que cerca a manifestação de
demônios entre fiéis no culto como proibição que acompanhava o momento do sorteio de coisas
eróticas informa sobre um esforço de separação tanto do erótico como do sobrenatural
associado aos demônios nesse contexto. Para proporcionar uma “experiência de unidade” à qual
se refere Mary Douglas (2014), o sorteio se alinha aos rituais de purificação nos quais elementos
que possam ser interpretados como perigosos devem ser controlados.
A orientação da pastora e sua normativa de não publicar nas redes sociais quaisquer
fotos que contivessem registros faciais do momento do sorteio alinhava esta interdição a outras
que já circundavam como regra de socialidade básica entre fiéis, caso da exposição dos rostos
de pessoas que manifestam demônios. Tais controvérsias em torno da autorização sobre estas
fotografias relacionam tabus presentes no corpo (RODRIGUES, 2006) aos domínios da
sexualidade e do maligno. Na medida em que não operam como meras representações e se
consolidam como o que Birgit Meyer (2019b) chamou de “coisas animadas” e capazes de causar
sensações, os tabus nestas imagens materializam perigos. Assemelham-se, assim, à capacidade
intrínseca das imagens de tornar as forças presentes (MEYER, 2019b).
As imagens, nesse sentido, apontavam para excessos que devem ser controlados através
da restrição de sua circulação no espaço público aqui apresentado pela internet. As práticas de
controle daquilo que vaza aos limites permitidos foram também indicadas em conversas que
tive com as virtuosas fora do espaço do Chá. No caso de Glória, 43 anos e casada, motivada a
estar no evento por “gostar de experiências mais próximas” em detrimento de outras
festividades realizadas na igreja em que congrega, as quais nomeou como “maiores”, os Chás
das Virtuosas foram descritos como momentos afetuosos e bem-humorados.
Tendo retornado há pouco tempo de uma “conferência”151 realizada por uma importante
liderança pentecostal que contou com a presença de psicólogas e educadoras sexuais, ela

150
Estar “endemoniado” ou “manifestado” corresponde ao momento em que o crente manifesta o espírito maligno
através de movimentos corporais, gestos e falas. De modo geral, estas mudanças abrangem tons de voz mais graves,
mãos para trás com punhos cerrados e cabeça baixa, corporalidade que apresenta semelhanças com o chamado
“transe” ou “incorporação” de uma entidade em cultos de religiões de matriz africana.
151
Outro termo utilizado pelas interlocutoras para se referir aos eventos entre mulheres evangélicas. Ao contrário
dos Encontros e Chás de Mulheres, que costumam definir festividades normalmente realizadas nas igrejas e lares,
contando com menor número de mulheres, utilizar o termo “conferência” designa um evento realizado em igrejas
maiores ou estádios, ginásios e outros espaços que comportam públicos maiores.
168

reclamou que o encontro havia “passado do ponto”, pois havia transcorrido com “duas ou três
horas pra falar de sexo”. Os excessos relacionados ao tempo se combinavam com o tom
escolhido para desenvolver o conteúdo que, segundo Glória, soaram como “palestras sobre
saúde da mulher e da parte sexual”. A sensação de ora estar em um “posto de saúde”, ora “numa
aula de sexologia”, causou descontentamento a quem, como ela, aguardava por uma experiência
mais próxima ao que costuma encontrar naquele universo: “a gente esperava uma unção, mas
elas não estavam nem aí pra dor da mulher”.
Segundo Glória, o distanciamento da pregadora e das profissionais de saúde em questão
apontavam não só para a falta de conexões emocionais em situações de sofrimento que
acometiam às mulheres, mas para um desconhecimento do público presente: “Nem todo mundo
que estava ali tem marido, a maioria não tem nem namorado”. Ao comparar sua experiência no
Chá com outros eventos do contexto evangélico que não atenderam às suas expectativas, a
interlocutora chamou a atenção para como falar de sexo, mesmo de modo circunscrito ao
casamento heterossexual e monogâmico, comunica sobre limites morais neste universo.
A necessária presença da unção e do acolhimento ao sofrimento diferenciam da assepsia
com que se fala de sexualidade nos ambientes citados por Glória. Estes são aspectos do
dispositivo da sexualidade que, no sentido foucaultiano, indicam como as agentes envolvidas
no Chá elaboram regulações sobre quem e como se fala de sexo nos domínios da
institucionalidade. Na contramão da busca por uma origem explicativa, Foucault (2011) se opõe
à hipótese repressiva da sexualidade para pensar, em seu lugar, sobre como o sexo se construiu
como um problema contemporâneo, percorrendo redes de relações formadas por poderes
produtivos e regimes de verdade.
As narrativas que apresentei sobre o sorteio ao longo desta seção fazem parte de um
exercício em que busquei compreender como a incitação aos discursos sobre sexualidade ocorre
nestes momentos de socialidade feminina. Ao mesmo tempo em que as interações com
materialidades eróticas (e) religiosas autorizam mulheres heterossexuais e casadas a falarem de
sexo, também as implicam na administração de vocabulários, imagens, espaços e tempos que
disputam formas de viver a sexualidade dentro dos princípios bíblicos.

3.1.2 Masculinidades evangélicas em perspectiva material

Diante do acesso limitado que tive aos discursos dos homens nos circuitos evangélicos
de coisas eróticas, prestar atenção às classificações presentes nos sorteios e outros momentos
de nossas interações providenciou outras maneiras de compreender formas com que seus
169

desejos e masculinidades apareciam nesse contexto. Em paralelo às abordagens que privilegiam


a linguagem verbal, seguir as coisas como um dos métodos empregados no trabalho de campo
trouxe perspectivas analíticas em que não bastou ouvir o que mulheres evangélicas contavam
sobre os homens. Pude conhecê-los por meio de classificações e valores atribuídos às
materialidades eróticas (e) religiosas destinadas a eles, bem como através dos afastamentos que
falar sobre sexo gerava.
A crítica de Janet Hoskins (1998) às narrativas etnográficas centradas no modelo
confessional sustentado na sociedade “psicologizada” complementam esta ideia e despertam
para outras formas de contar histórias através dos usos das coisas. Em sua pesquisa na ilha de
Kodi, na Indonésia Oriental, a autora sugere que os objetos de uso doméstico davam acesso às
biografias de si e informavam sobre o compartilhamento de políticas sexuais em um contexto
em que pouco se falava sobre sexo:

A política sexual raramente é discutida em Kodi, e os sentimentos sexuais,


quase nunca. Mas a linguagem cuidadosa das dualidades de gênero tornou
possível que muitas pessoas comungassem sobre essas coisas através de
metáforas focadas em objetos (HOSKINS, 1998, p. 3, tradução minha).152

Diferente de afirmar categoricamente que homens evangélicos não falam de sexo com
mulheres em público, considero o caminho feito por Hoskins inspirador para compreender
desejos contados através de classificações de gênero. Tomei o caminho das disputas
classificatórias sobre as coisas eróticas para driblar um dilema que impede muitas(os)
pesquisadoras(es) que se identificam com o gênero oposto ao de seus(suas) interlocutores(as)
de refletirem sobre sexo, sexualidade e desejos eróticos no trabalho de campo.
Em respeito aos compromissos éticos estabelecidos com as interlocutoras desta
pesquisa, brevemente apresentados na introdução deste capítulo sobre as rígidas separações de
gênero no campo pentecostal que percorri, realizei somente duas entrevistas com homens que
participavam pontualmente de eventos do Ministério. Ambos atuavam como pastores e em
nenhuma das conversas fiz quaisquer perguntas relativas à sexualidade, embora tenha incluído
perguntas sobre as relações entre conversão e vida conjugal que não indicaram elementos para
uma análise mais aprofundada. Assim, o acesso que tive às interdições, consentimentos e limites

152
No original, em inglês: “Sexual politics are rarely discussed in Kodi, and sexual feelings almost never. But the
nuanced language of gender dualities made it possible for many people to communicate about these things through
metaphors focused on objects”.
170

das negociações de coisas eróticas no âmbito do casamento forneceram os dados de que me


utilizo para identificar brevemente como os homens interagiam no evento.
No mês de junho e noutros momentos considerados especiais, como aniversários de
casamento de outras lideranças da igreja em que o Chá ocorria, a pastora Cristiane costumava
sortear ou presentear diretamente um casal com duas cestas que traziam nomes de personagens
bíblicos, Rainha Ester e Rei Assuero153. Os personagens demarcam o que deve ser destinado a
cada membro do casal, apresentando com maior detalhamento as prescrições de gênero que
abrangem os homens:

Na cesta do Rei Assuero que a gente sorteia vai um roupão, vai uma cueca
samba-canção, aí a gente coloca nessas cestas algumas coisas de produtos
eróticos. Às vezes eles olham com um cara assim meio com uma cara feia,
mas depois acaba curtindo. A gente coloca produtos de barba, kits de higiene,
higiene bucal e tal... e um dos problemas que as mulheres têm na área sexual
é que muitos maridos não sabiam fazer a sua higiene ali, naquela hora, né? E
aí vinha namorar de qualquer jeito, e aí elas se retinham. (Entrevista com a
pastora Cristiane, realizada presencialmente em 10/06/2017.)

A inclusão de presentes para os homens neste contexto estava alinhada a outros cuidados
tomados pelas mulheres. Durante os sorteios, era comum que a pastora mencionasse estar
sempre recebendo maridos agradecendo a melhora do desempenho sexual das esposas após
terem sido sorteadas no Chá. Esses exemplos indicam como os engajamentos coletivos em torno
do casamento visam retirar os homens de lugares em que poderiam se sentir ameaçados pelo
que chamam aqui de “empoderamento” das mulheres. Conforme indiquei no primeiro capítulo
da tese, os limites traçados nos usos desta categoria pelas mulheres evangélicas envolveram
uma preocupação central com o bem-estar da família.
Os cuidados com os homens feitos através de suas esposas no âmbito do casamento e a
concomitante transformação das masculinidades nesse contexto indicam para aspectos
amplamente destacados por pesquisas do campo de estudos antropológicos da religião que, em
grande parte, foram motivadas por explicar transformações em relação à grande presença de
mulheres nas igrejas pentecostais brasileiras154. Um dos principais argumentos mobilizados por
estes estudos indicou que a construção da autoridade evangélica feminina nas igrejas
pentecostais ocorre de modo análogo aos “papéis” já desempenhados pelas mulheres no âmbito
doméstico, fornecendo uma espécie de continuidade entre casa e igreja. Patricia Birman (1996)

153
Cf. nota de rodapé 146, na página 154 desta tese.
154
Ver: Machado (1996), Mariz e Machado (1996), Mafra (1998), M. Santos (2002).
171

foi uma das importantes autoras deste campo que demonstrou como a conversão do marido e
de outros familiares é uma força determinada pela condição feminina nesse contexto.
A constância da emblemática expressão “mulher é radar de Deus” que ouvi ao longo da
pesquisa indica os imbricamentos já destacados neste campo de estudos, lembrados quando
Birman (1996, p. 218) aponta que a religião é “um campo marcado em termos de gênero” e que
as mulheres ocupam a importante função de mediadoras nesses contextos. Como a fala de
Cristiane sobre os objetos destinados aos homens demonstra, a responsabilidade feminina e,
por conseguinte, do casal evangélico com a autoestima e a relação sexual abrange cuidados que
também devem se estender aos homens, como indica a presença de acessórios voltados à
higiene masculina.
Outra materialidade que informava como o pentecostalismo faz gênero a partir de rituais
performáticos estava presente nas apresentações públicas de pastores e bispos. Na igreja
Missões, em que realizei grande parte da etnografia, lideranças e parte da membresia utilizavam
talits de materiais, formatos e composições diversas, manuseados de diferentes formas em
trabalhos que envolviam cura e libertação de demônios. O talit para os homens e o manto de
oração para mulheres recebiam destaques nas performances de poder na igreja e diferenciavam
hierarquias entre os membros, além de produzir autoridades religiosas sustentadas em
diferenças de gênero. O uso do manto de oração feminino, feito em linho ou lã na cor vermelha,
não era recomendado aos homens naquela igreja. Embora esta não fosse uma regra explícita,
ao longo do trabalho de campo nunca presenciei um pastor, diácono, obreiro ou fiel utilizando
o acessório nesta cor. De modo geral, eles utilizavam o acessório religioso em cor branca, de
material e corte semelhantes ao manto utilizado pelas mulheres.
As divisões de gênero materializadas neste acessório repetem as orientações judaicas,
em que seus usos tradicionais são proibidos às mulheres. Em algumas igrejas pentecostais,
como era o caso da Missões, o acessório feminino é comercializado somente na cor vermelha.
Entre as mulheres, observei misturas na composição entre o talit e o manto nesta e outras igrejas
pelas quais o casal de pastores circulava, o que não ocorria entre os homens. As lideranças
manipulavam o manto de diferentes maneiras junto às fiéis, que recebiam orações individuais
ou em grupo com seus corpos debaixo do acessório.
172

Imagem 12: Manto de oração e talit posicionados no altar antes do início de um culto

Fonte: Acervo da pesquisa, junho de 2018.

Aponto para estes elementos não com o objetivo de forjar comparações entre
comportamentos e valores atribuídos à autoridade pastoral distintamente exercida por homens
e mulheres no pentecostalismo, mas para criar contrapontos sobre as modalidades materiais que
circulam nesse contexto. Conforme indico noutros capítulos da tese a partir das relações de
classe e consumo, as coisas destinadas aos homens encontram limitações superiores àquelas
que podem ser adquiridas pelas mulheres, o que não se restringe ao âmbito institucional das
igrejas (ver seção 4.1). Diante da ampla gama de oferta de produtos religiosos voltados ao
público feminino nestes espaços, a exemplo do próprio mercado de eventos voltados para
mulheres evangélicas através do qual me detive, apresento esta breve discussão sobre os
engajamentos coletivos de homens com coisas eróticas e religiosas como forma de abrir
diálogos sobre estas lacunas.
O exame crítico da norma em análises que não empreguem noções de dominação
monolíticas sobre as masculinidades evangélicas pode apontar para o que Mara Viveros Vigoya
(2018, p. 23) indicou sobre os mecanismos de ação do poder em que ninguém é
“exclusivamente dominado, como as mulheres, ou exclusivamente dominante, como os
homens”. Visibilizar paroxismos dos agenciamentos masculinos também permite apontar,
nesse sentido, para modos de compreender interseccionalmente os próprios mecanismos pelos
quais a dominação atinge e é atingida por múltiplas e diferenciadas formas de habitar gênero,
raça, classe e nacionalidade (VIGOYA, 2018).
173

3.1.3 “Brinquedinhos”, fetiches e as materialidades da memória

Se os fluxos das coisas eróticas na igreja apresentaram outras linguagens para lidar com
classificações de gênero e sexualidade e visibilizaram seus engajamentos na formação de
coletividades evangélicas, ao ouvir as mulheres contarem suas histórias com os artigos eróticos
outras interseções puderam ser observadas. Seguindo uma pista indicada por Bruno Latour
(2002) ao descrever os modos coloniais como os portugueses se referiram aos amuletos e santos
fabricados pelos negros na Nova Guiné, analiso como o percurso através das coisas opera
enquanto estratégia metodológica para a propriedade dos objetos, definida pelo autor como
“fazer falar”.
Neste trabalho, Latour conta como adjetivos ligados à ideia de “feitiço” foi empregada
pelos portugueses para designar sua aversão ao que chamaram de “idolatria”, classificação que
mais tarde passaria a ser mais conhecida através do termo “fetichismo”. O autor chama a
atenção para a etimologia de ambos os termos, que trazem o verbo fazer (o substantivo “feitiço”
é originado de “feito”) alinhado a outros significados da palavra, como “artificial, fabricado,
factício, e por fim, fascinado, encantado” (LATOUR, 2002, p. 16). “Fetichismo”, da raiz latina
fatum, advém da palavra “fada”, que origina a expressão “objeto encantado”. Por meio desta
explicação, Latour aponta para a ambiguidade presente nas duas raízes da palavra:

Qualquer que seja a raiz preferida, a escolha cominatória permanece; escolha


evocada pelos portugueses e recusada pelos negros: “Quem fala no oráculo é
o humano que articula ou o objeto-encantado? A divindade é real ou
artificial?” – “Os dois”, respondem os acusados, sem hesitar, incapazes que
são de compreender a oposição. – “É preciso que vocês escolham”, afirmam
os conquistadores, sem a menor hesitação. As duas raízes da palavra indicam
bem a ambiguidade do objeto que fala, que é fabricado ou, para reunir em uma
só expressão os dois sentidos, que faz falar. Sim, o fetiche é um fazer-falar
(LATOUR, 2002, p. 17).

Das fragilidades de uma ponte que une o fetiche ao fato, Latour reflete sobre como as
divindades construídas e manipuladas pelos “ídolos” visibilizam os problemas na noção de
crença construída pelos “modernos”. Propõe, assim, que possamos recuperar outras
compreensões que escutem o que está além da suposta ingenuidade que separa divindades
enquanto fenômenos reais ou artificiais. À vista desses efeitos ambíguos explorados na raiz da
palavra fetiche, também chamado noutras traduções do autor pelo neologismo fatiche, dialogo
com estas contribuições para refletir sobre como objetos eróticos também deslizam entre
174

classificações contextuais, absorvendo sentidos em que podem ser tanto permitidos como
proibidos.
As coisas tanto possibilitam aberturas para que estas mulheres falem sobre desejos
eróticos entre si e com seus parceiros como evocam memórias afetivo-sexuais de outros eventos
em que foram anteriormente utilizados. Ora atentando para leituras modernas antifetichistas, no
sentido empregado por Latour, em que acusam a artificialidade de dildos em oposição ao
“verdadeiro” que corresponderia ao pênis, ora vendo como eram acionados poderes divinos de
óleos para penetrar nos corpos e nos objetos e, assim, reencantar casamentos, busquei analisar
como minhas interlocutoras “constroem seus próprios fetiches” (LATOUR, 2002, p. 25).
Em nossa entrevista, Márcia, 36 anos, mulher negra e missionária em uma Assembleia
de Deus na Zona Oeste carioca, me conta como os “brinquedinhos” que utiliza são meios de
acesso à exploração dos sentidos e sexualidades. Sua fala indica que a relação entre pessoas e
coisas eróticas conforma um processo em que o compartilhamento de sensações e
“necessidades” com o parceiro é fundamental para a construção de novas possibilidades de se
relacionar dentro do casamento. Márcia conta que a vontade de falar sobre estas “necessidades”
com seu marido surgiu assim que começou a utilizar os brinquedinhos: “Antes só ele se
satisfazia e eu não!”. As necessidades, nesse sentido, não estão relacionadas somente ao seu
prazer, mas a um movimento crítico ao modo como antes ela enxergava “o que gostava” e o
que “a levaria ao orgasmo”.
Ao desejarem potencializar seus próprios prazeres, as mulheres evangélicas alargam
fronteiras estabelecidas em suas histórias de vida. Quando as coisas entram em cena, estes
alargamentos se aproximam de experiências anteriores à conversão religiosa, já que muitas
delas não nasceram em “berço evangélico” 155. É Márcia que também explica que o primeiro
contato com os brinquedinhos ocorreu quando estava “fora da igreja”. Aqui ela se refere ao
passado anterior à conversão, também vivido em relacionamentos com práticas sexuais “mais
abertas” e com parceiros que não eram evangélicos. Agora vivendo uma relação com um marido
evangélico, o início matrimonial é narrado por ela como um momento aprisionador em que os
brinquedinhos aparecem vinculados à memória de um passado agradável com o produto,
experimentado antes da conversão:

Quando eu casei com ele, ele tinha algumas restrições, como homem tinha os
desejos, tinha as vontades, mas ele a-pren-deu que era errado, ele aprendeu

155
Esta expressão comum no universo pentecostal costuma designar pessoas que se converteram por “vontade
própria”, como colocam. São sujeitos que fazem parte de uma família que não é religiosa ou adere a outra
religiosidade que não às denominações evangélicas.
175

que muitas coisas eram pecado [...] a religião dele, da igreja que ele
comungava, ensinou ele dessa forma [...] Não podia nada, não podia trazer
nada pra apimentar a relação, até calcinha muito... não podia. Era coisa
pecaminosa e tal. E aquilo de uma forma ou de outra acabava me afligindo
porque eu já tava acostumada, entendeu? Eu vim de uma relação onde eu era
aberta, onde eu podia fazer tudo e quanto mais eu fazia, melhor era!
(Entrevista realizada presencialmente em maio de 2017)

A memória evocada por esta experiência pregressa, sustentada no “sexo do pecado” em


oposição ao “sexo tranquilo” ou “saudável” do casamento evangélico, estava dentro de um
conjunto mais amplo de práticas sensoriais que intensificavam os prazeres, como toques,
carícias e posições sexuais. Diante do forte apelo pentecostal em abandonar práticas do passado
após a conversão, ao servirem como veículo para retomar memórias sensoriais sobre
experiências pré-conversão, as coisas eróticas também possibilitam que o exercício da vida em
santidade seja combinado a comportamentos vivenciados no passado.
Nesse sentido, falar sobre os usos de coisas eróticas propulsiona memórias que não
devem ser esquecidas, mas incorporadas às novas relações. Assim como na renarração do
passado em testemunhos pentecostais, neste jogo entre experiências sexuais passadas com os
objetos e experiências presentes com estes mesmos artefatos, as memórias que vêm à tona são
lembradas e valorizadas num movimento de ressignificação do pecado. Conforme indica Cesar
Teixeira (2016, p. 108), testemunhos são ferramentas de agência que atualizam pedagogias
pentecostais na medida em que envolvem o “reconhecimento de uma certa ‘autoridade moral’
adquirida no processo de recuperação”. Nos casos em questão, estes são testemunhos sobre a
recuperação do casamento através dos usos de artigos eróticos.
O resgate destas experiências afetivas da relação com as coisas anuncia o que Tracy
Ireland e Jane Lyndon (2016) descreveram como uma capacidade ativa do mundo material de
moldar experiências corporificadas e sensoriais de memória e reconhecimento. Sua qualidade
permeável desafia limites temporais para a resistir à transformação de relações e à duração no
tempo (STALLYBRASS, 2008), proporcionando que outras narrativas possam submergir para
contar histórias enterradas pelo exercício da vida em santidade.
Falar de coisas eróticas provoca entre as interlocutoras evangélicas um movimento de
reapropriação do que se foi no passado “mundano” para auxiliar a vida conjugal evangélica
após a conversão. Durante nossa entrevista, a pastora Cristiane indicou alguns elementos que
refletem sobre os benefícios de estabelecer não uma quebra entre estes dois mundos e tempos
da conversão, mas uma continuidade que conduza as mulheres crentes a não se fixarem em um
modelo de santidade que, de acordo com ela, não teria “nada a ver com o que a Bíblia fala”.
176

A continuidade feita através do retorno às coisas eróticas permite resgatar o que já se


foi e que, de acordo com ela, seria “aquela mulher atuante, que incendeia seu marido”. Segundo
a pastora, utilizar artifícios e brinquedinhos faz parte das “estratégias que Deus dá” e ajuda a se
afastar da imagem de “crente bitolada” que as mulheres evangélicas acabam se tornando,
motivo que as levaria a acabar “perdendo” seus maridos. As noções de tempo aqui mobilizadas
apontam, por sua vez, para uma dialética que amplia noções de comunicação atravessadas pela
memória das coisas e cria moldagens biográficas (KOPYTOFF, 2008) nas articulações de
gênero evangélicas.
Se a análise destas narrativas fornece sentidos que fogem à lógica do significado, lógica
esta privilegiada pelos enfoques na linguagem e nas relações sociais estabelecidas estritamente
entre as pessoas156, conforme indica Christopher Tilley (2006), observar também as interdições
morais que incidiam sobre os usos das coisas indicou-se caminho importante para a perspectiva
analítica material. Partindo do diálogo que busquei estabelecer noutros capítulos da tese com
as estratégias de inserção no cenário do mercado gospel, trago brevemente uma das estratégias
de posicionamento do sex shop no Complexo do Alemão observadas durante o período do
mestrado, nas quais interdições referentes aos objetos trazem afinidades com as questões
apresentadas por interlocutoras evangélicas.
Na classificação daquele espaço e seus objetos, era necessário distanciar fregueses da
“agressividade” dos dildos, trazendo para a frente materiais mais fluidos da “cosmética
sensual”: óleos que esquentam, esfriam e vibram (com estas funções juntas ou não), sprays e
pastilhas para o sexo oral, lubrificantes, cremes de massagem, bolinhas explosivas etc. No
caminho entre os fluidos e os dildos, estavam lingeries e “brinquedinhos”. Em geral, recebiam
este nome máscaras que remetem a fantasias carnavalescas, chicotes ou pequenos vibradores
para estimulação clitoridiana cujas cores e formatos trazem apelo lúdico.
No entanto, quando investiguei já no doutorado sobre como as coisas eróticas engajam
mulheres entre si para salvar seus casamentos, notei que nem todos estes objetos tinham livre
acesso nas socialidades que atravessavam igrejas pentecostais. Rosa, consultora que vendia
artigos eróticos em uma igreja Batista Renovada que frequentava, contou em nossa entrevista
algumas de suas negociações com o corpo eclesiástico. Na ocasião em que nos conhecemos,
ela me contou que não “trabalhou brinquedos” e responde aos meus questionamentos de modo

156
José Reginaldo Gonçalves (2007) descreve como a abordagem da cultura material passou a ocupar um lugar
menor na antropologia pós-funcionalista, com progressivo afastamento dos antropólogos do trabalho em museus
para uma afiliação etnográfica nas universidades. Vale ressaltar que a inspiração da crítica à análise do significado
reflete uma virada crítica ao estruturalismo direcionado às materialidades.
177

objetivo, em grande parte devido ao fato de sua experiência como evangélica antecipar o
conhecimento prévio de suas clientes.

[Rosa] Eu não trabalhei brinquedos. Porque, assim... você não tem como
oferecer pra elas um bullet... você não tem como oferecer pra elas um
vibrador.
[Lorena] Por quê?
[Rosa] Porque elas já vêm de uma ideia de que a masturbação é pecado. Que
não está de acordo com a Palavra.
[Lorena] Mesmo se você dissesse que era pra ser usado entre casais?
[Rosa] Primeiro, o vibrador é algo que ele não pode ter nenhum formato fálico.
Você tem que trabalhar ele as sensações do corpo, mais pra massagens do que
para você utilizar ali para uma masturbação a dois, por exemplo. Tudo você
tem que ter muito cuidado, nenhum objeto fálico pode entrar no meio do casal,
a não ser que eles estejam abertos a isso... mas no geral, você mostrar um
brinquedo pra uma igreja como tava acontecendo comigo né, de ter um acesso
dentro da igreja, eu não poderia demonstrar. (Entrevista realizada
presencialmente em novembro de 2017)

A partir das informações que oferece, baseadas neste conhecimento e em sua interação
como consultora na igreja em que congregava, discursos públicos sobre a masturbação solitária
estariam no que Rubin (2017b, p. 86) define como “limite externo na hierarquia do sexo” entre
as interlocutoras evangélicas. Situada naquilo que extrapola o “círculo mágico” que contém “a
sexualidade boa, normal, natural, sagrada” no qual está localizada a masturbação do casal com
ou sem objetos no casamento, a prática solitária da masturbação ocupa o lugar daquilo que é
consolidado silenciosamente como pecado. No entanto, entre as mulheres solteiras e que já se
encontram no que se convenciona como “idade para casar”, ela estabelece interseções em que
a linha divisória do sexo não se torna tão rígida como para outros casos. Nas palavras de Rosa,
“A igreja não é lugar pra gente solteira. Pode até se masturbar, mas você não pode permanecer
solteira”157.
Por outro lado, o uso de dildos não é passível de quaisquer tipos de negociação. Quando
Rosa se refere a “demonstrar”, a analogia é feita com a manipulação do “objeto fálico” quando
ela deve ensinar sobre sua utilização no momento da relação sexual. Tais objetos fugiriam da
proposta de ser uma “brincadeira”, ao contrário de outras matérias que reforçariam a “intenção
sutil” a ser alcançada. Estas diferentes formas de exposição e ocultamento apontam para um

157
No capítulo 5, analiso outras classificações que se fizeram presentes em relação às moralidades sexuais, mas
não implicaram na relação com materialidades eróticas, tais como discursos sobre prevenção de infecções
sexualmente transmissíveis e sobre a homossexualidade. Esta, tanto masculina como feminina, era experimentada
como desviante no âmbito das conjugalidades evangélicas pentecostais que fizeram parte da pesquisa (Ver:
ROSAS, 2018).
178

importante conflito que é não é causado pela entrada de quaisquer objetos eróticos naquela
igreja, mas pela entrada da “prótese”.
A matéria impronunciável neste contexto se constitui em um jogo de presença ausente.
É necessário escondê-lo para que apareça ou, nas palavras de Rosa, mostrar mas não
demonstrar. A “prótese” é objeto impuro; a sujeira e os perigos contidos em sua matéria
precisam fornecer o suporte necessário a uma vulgaridade controlada, um erotismo que “não é
pornográfico” atravessado por uma “prótese” que fornece suporte àquilo que o “natural” não
possuiria, ora completando o corpo feminino que deve permanecer faltoso, ora duplicando o
órgão masculino juntando um órgão “falso” ao jogo erótico 158.
Este aspecto ganhava grande relevância quando ouvi de Lídia, mulher negra de 30 anos,
casada e sem filhos, sobre suas idas aos sex shops com o objetivo de adquirir coisas “bem
lights”. Enquanto mencionava sua compra de calcinhas comestíveis, bolinhas, chicotes e
algemas, também lembrou imediatamente que “acha um absurdo alguém comprar aquele
pênis”. Apesar de utilizar o mesmo nome correspondente ao órgão genital, a ideia de
substituição comparece como afronta e opera como modo de acusação para questionar a
“necessidade” de adquirir o objeto, sobretudo para quem “tem marido em casa”. “Aquele pênis”
seria, nesse sentido, o “sexo mau” que Rubin (2017b, p. 86) descreveu através de adjetivos que
complementam a noção abordada pela interlocutora: “antinatural, nocivo, pecaminoso e
extravagante”; ao mesmo tempo, como descreve Latour (2002, p. 26), também um fetiche, pois
não possuiria nesse contexto a capacidade de “dissimular totalmente sua própria fabricação”.
As coisas eróticas constroem vínculos entre mulheres, orientando um vasto conjunto de
classificações que permitem ou interditam impurezas, organizando esforços de ordenamento.
Seguindo esta análise inspirada em Mary Douglas (2014), as ambivalências que surgem destas
classificações podem ser notadas quando Rosa entende que, ainda que haja dificuldades na
exibição do “objeto fálico”, há casais abertos a esta experiência. Assim, ela utiliza sua expertise
relacional em conhecer tanto os artigos eróticos como o ambiente da igreja e quem o frequenta,
transformando ambivalências em oportunidades para vender coisas eróticas e introduzir
possibilidades de uso entre seu público.
Além de ampliar condições teórico-metodológicas para percorrer classificações da
intensa produção de fronteiras nestas sexualidades evangélicas, seguir coisas eróticas despertou
para outra problemática que envolve seus usos em diferentes públicos. De modo geral, análises
sobre objetos utilizados em práticas sexuais costumam projetar um discurso recorrente de que,

158
Cf. Gregori (2016).
179

na relação com as pessoas, haveria um uso metonímico de determinados objetos, no qual estes
seriam interpretados como partes do corpo ou experimentados como outra pessoa na cena
erótica, muitas vezes recebendo nomes próprios. Tal personificação atinge sobretudo os dildos.
Ao optar por resumir as coisas a uma única unidade de análise, a de “ser pessoa”, estas
interpretações acabam restringindo outros sentidos possíveis que revelariam deslizes que a
imposição de fronteiras colocadas por este caminho analítico não permite enxergar. Severin
Fowles (2016) identifica que esta rígida oposição entre coisas e pessoas opera ativamente entre
trabalhos que se propõem a pensar sobre a “agência dos objetos”. A prioridade pelo que o autor
chama de “subjetificação dos objetos” nessa virada metodológica construiu uma relação
objetificadora que fez com que os objetos se tornassem, por este motivo, “sujeitos/assuntos
perfeitos”159 para a antropologia. Para romper com este “novo fetichismo metodológico”, sigo
a sugestão do autor no sentido de parar de humanizar as coisas em nossas análises, na medida
em que este processo reduz tanto pessoas quanto objetos.

3.2 Sagrados e demônios líquidos

3.2.1 Ambiguidades eróticas no óleo de unção

Para analisar os percursos dos materiais eróticos nas narrativas das interlocutoras
evangélicas, tomei como prioritário considerar a matéria em sua fisicalidade e plasticidade. Esta
abordagem foi sustentada na tentativa de superar limitações nas análises que vinha construindo
anteriormente sob vieses que não atentavam para o formato fluido, líquido e diluído dos sprays,
óleos e outros materiais úmidos e viscosos que constituem as dinâmicas visibilizadas no trajeto
entre sex shop e igreja. Tal deslocamento proporcionou compreender alguns dos motivos pelos
quais os fluidos se tornaram o material erótico mais popular entre as interlocutoras.
Dentro de um universo de afinidades mais amplo, outro tipo de óleo, o de unção, é um
importante mediador da santidade e veículo de alcance espiritual 160. Posicionados do lado

159
Trecho no original: “Objects emerged, in other words, as anthropology’s perfect subjects because, as subjects,
they can so easily be objectfied” (p. 25).
160
Preciado lembra que um tipo de óleo, o azeite de oliva, também era um elemento associado ao uso dos dildos
desde suas primeiras fabricações na Grécia antiga: “Confeccionado em madeira ou em couro recheado, deveria ser
generosamente untado com azeite de oliva antes de sua utilização” (PRECIADO, 2014, p. 197). Ressalto, nesse
sentido, como o imaginário que combina práticas sexuais aos óleos compõe outras vertentes do mercado erótico.
A categoria “óleos” e/ou “corpos com óleo” e outras variações são facilmente encontradas em websites que
disponibilizam vídeos com conteúdo pornográfico explícito. Além disso, os usos eróticos de materiais oleaginosos
também podem ser encontrados em práticas e materialidades afroindígenas brasileiras como “feitiços”, “mirongas”
e “patuás atrativos”, que compõem o que Bruno Domingues (2019) chamou de “cosmoerotismo amazônico”.
180

oposto aos “brinquedos” nas classificações que permeavam estas moralidades sexuais
evangélicas, os fluidos da “cosmética sensual” (géis, cremes, sprays, bolinhas explosivas)
compunham narrativas públicas sobre como salvar o casamento a partir do compartilhamento
de estratégias entre mulheres. Considero o uso dos óleos como o exemplo mais emblemático
para se pensar nos trânsitos seculares e religiosos destes erotismos através da relação entre
coisas e pessoas. Sua propriedade religiosa de ungir para deixar “a marca de Cristo”, como me
conta a pastora Cristiane, confere à sua propriedade maleável diferentes usos presentes em
intercâmbios eróticos e religiosos.
Seja para unção de roupas, fotografias e corpo das fiéis ou como elemento privilegiado
para reencantar os casamentos, os óleos e azeites transitam entre diferentes situações. Como
ainda aponta a pastora, seu uso “vai muito além do que só uma unção”, pois detém o poder de
“expulsar o maligno” e “quebrar pactos que provêm de feitiçarias”. O mal que habita os
casamentos é constantemente manifestado através do ato sexual e causa o que estas mulheres
chamam de “frieza sexual”. Este efeito, por sua vez, advém de modo geral das amantes, que
trazem contendas para o casamento e agem através de aprendizagens que as mulheres
evangélicas contam terem sido obtidas através de religiões de matriz africana. Ao tornarem
esposas alheias desinteressantes, as amantes utilizam perfumes, “espermatozoides” e outros
artifícios para impedir a felicidade familiar.
Ao articularem as propriedades religiosas de ungir coisas à “cosmética” sensual, termo
que faz referência popularmente à indústria relacionada à beleza e higiene pessoal, estas
mulheres experimentam o cuidado de si como campo de ações das políticas sexuais e de gênero
pentecostais. As falas da pastora Cristiane indicam como a utilização destes óleos deve conduzir
a mulher evangélica a um caminho de “fé estratégica” e “ousadia” para reencantar seus
casamentos:

A mulher é atraída pelo que ouve, mas o homem é o que vê. Então a gente
começou a estimular essa mulher, a gente começou a pedir pra que elas
trouxessem as lingeries pra serem ungidas, nós entendemos que tem pessoas
que fazem bruxarias contra essas mulheres pra afastar o casal, entendemos que
a gente pode orar, a gente pode abençoar e atrair o olhar do marido pra quando
ele olhar e olhar aquela mulher com aquela lingerie e ver nela ali a mulher da
vida dele. (Entrevista realizada em junho de 2017)

A gente pede pra mulher trazer fronha do marido, roupa, meia. Aquelas meias
são tudo ungidas, pra alguns é heresia! A gente começou a observar que
aqueles maridos que usavam aquela meia passaram a ficar mais tempo em casa
do que na rua. Teve homens que torceram o pé, outros que apanharam da
amante... (Pregação no Chá das virtuosas, novembro de 2019)
181

Para provocar estes efeitos sensoriais, os óleos compõem políticas de gênero nas
conjugalidades que dividem os sentidos da audição e visão entre homens e mulheres, “atraindo
o olhar” dos homens para suas esposas. Nesta e outras pregações, as justificativas bíblicas eram
sempre enfatizadas para separar a prática da unção de lingeries e outras peças de roupa do
campo das heresias. Trata-se de uma acusação comum que estas e outras atividades pentecostais
que envolvem o uso de objetos, geralmente definidas como “atos proféticos”, costumam
receber.
Assim, além de referências sagradas à cura e unção de reis, rainhas e sacerdotes, as
interpretações da Palavra identificam o recurso às estratégias e suas “visões”. A citação do livro
bíblico de Ezequiel, por exemplo, era interpretada como a passagem por um momento difícil
pelo “vale de ossos secos”. Uma “visão” do sacerdote nesta situação foi comparada à tomada
de responsabilidade para que as mulheres utilizassem a unção com azeite como parte das
“estratégias que Deus dá”. Ter “visão” é classificado como um dom atribuído aos profetas. Ao
exercerem sua “fé estratégica”, nesse sentido, estas mulheres se colocam em posições atribuídas
às qualidades masculinas, já que “homens se atraem pelo que veem, mulheres pelo que ouvem”.
Para as interlocutoras, ser visionária e ter “ousadia na fé” compõem mobilizações coletivas e
feitas para alcançar objetivos relativos ao casamento, cuja manutenção é valor central para seus
conceitos sobre família.
As afinidades entre o “azeite” de unção e os óleos da “cosmética sensual” também são
observadas no modo similar com que ambos são manuseados entre estas mulheres. Nas vendas
no sex shop e através das consultoras, o manuseio dos óleos é prática comum, estabelecendo
um contato prévio deste produto ao(à) cliente para estimular que seja adquirido. O despertar
para sensações relacionadas ao aroma e aos gostos era seguido por uma breve explicação sobre
sabores, composições e funções, através de algumas gotas que costumavam ser cuidadosamente
pingadas no dorso da mão do(a) freguês ou freguesa, sugerindo a degustação. Enquanto era
estimulada(o) a compartilhar suas sensações durante o contato com o produto, a(o) cliente
recebia recomendações sobre como utilizá-lo durante a relação sexual.
Se nos repertórios litúrgicos pentecostais o azeite exerce papel significativo de mediação
por ser utilizado como um dos “pontos de contato” (GOMES, 2011) com o divino, seu manuseio
no contexto pentecostal aponta para questões que extrapolam o domínio representacional que
deriva de interpretações do livro sagrado. Nas igrejas que frequentei, o manuseio ocorria com
a mediação de uma liderança ou de quem ocupava cargos na membresia eclesiástica; eram
sempre estes agentes quem passavam o azeite na testa ou nas mãos dos fiéis. Os usos de óleos
no contexto da “cosmética sensual”, assim, encontram afinidades com práticas religiosas
182

quando consideramos os manuseios do óleo de unção por personagens que detêm saberes
religiosos no contexto pentecostal.

Imagem 13: Manuseio do óleo de unção por uma pastora e um pastor durante um culto

Fonte: Acervo da pesquisa, 2018.

Assim, a mediação do azeite como “ponto de contato” delimita hierarquias eclesiásticas


e seus “ritos de passagem” (VAN GENNEP, 2011), como as ocasiões de consagração de
pastores, bispos, obreiros e demais cargos. As diversas cenas que acompanhei no trabalho de
campo apontam para a presença do óleo enquanto elemento mediador que extrapola sentidos
de funcionalidade e representação. As moralidades associadas ao óleo, nesse sentido, recebem
diferentes nomes ao serem associadas aos rituais pentecostais.
A imagem 14 (abaixo), que ilustra sua utilização em um momento de exorcismo de
demônios durante um Chá das Virtuosas, mostra uma mesa que foi besuntada com azeite
enquanto a pastora Cristiane pedia que fiéis que acompanhavam o evento se aproximassem para
pedir pela intercessão divina. Enquanto uma membra da igreja que ajudava no culto posicionava
a mesa em frente ao púlpito, que já estava repleto de fiéis “manifestadas”, a pastora tomou uma
destas fiéis pelo braço e se posicionou junto com ela de um dos lados da mesa. Aos poucos, o
público se aproximou para formar uma fila, recebendo orientações da pastora sobre como
deviam pedir para que aquele demônio saísse da sua vida financeira e sentimental: “Tem que
ser com fé! Grita na cara do Diabo!”. Do lado oposto da mesa, a pastora passava seu microfone
aos fiéis para que fizessem seus pedidos raivosos em voz alta.
Um a um, eles se dirigiam à fiel manifestada à sua frente, que estava de cabeça baixa e
olhos fechados, com semblante sisudo e raivoso. Chegavam inicialmente em tom baixo para
183

falar no microfone e sem olhar para o rosto da fiel, com as palmas das mãos já abertas e em
contato com o óleo. A pastora, no entanto, pedia: “fala mais alto!”, “olha para a cara do
demônio!”, “perde o medo dele!”. Os pedidos emocionados para “devolver” a saúde de filhos,
netos, “ir embora” da vida sentimental, “sair” de suas casas, eram encerrados com o arremesso
curto de notas de dinheiro em um saco de pano vermelho escuro que uma ajudante segurava do
outro lado da mesa. Ao fundo, luzes se acendiam e apagavam acompanhando uma trilha sonora
de suspense. A música e expressões tensas, com a plateia atenta e calada com as palmas das
mãos em direção ao altar, foi paulatinamente substituída por uma música gospel, cantada por
uma membra da igreja. Naquele e outros dias que presenciei, este era um momento que tomava
conta de tempo significativo do evento.

Imagem 14: Uso do azeite em ritual de expulsão de demônios

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Junto com o óleo de unção, nesta cena o dinheiro, a música e a iluminação também
operam como importantes mediadores performativos para a expulsão do mal. Enquanto o
volume do som que aumenta ou diminui e as letras de louvores materializam sonoridades que
demarcam passagens no tempo e na intensidade dos momentos compartilhados sob a liderança
da pastora, a intensidade da iluminação alterna sensações de tensão e conforto. Em sua pesquisa
sobre os engajamentos de crentes da IURD na cidade de Maputo, Livia Reis Santos (2018)
apresentou uma abordagem material sobre o dinheiro na composição de práticas eclesiásticas
nesta igreja.
Tendo como caso central o ritual da Fogueira Santa, a autora afirma que tais dinâmicas
que envolvem “sacrifício de si” são constituídas por objetos, alegorias ao Velho Testamento e
performances a partir das quais o dinheiro forma emaranhados e jogos de poder nestas relações.
184

Deslocando o dinheiro para o lugar analítico de objeto, Santos demonstra de que formas seus
interlocutores pluralizam este elemento ritual para além do valor monetário, associando-o
“como solidariedade e como sacrifício de si” (SANTOS, L., 2018, p. 223).
Não menos importantes são as menções ao azeite nos repertórios pentecostais. Desde a
amplamente usada expressão bíblica “ser vaso nas mãos do oleiro”, ao exemplo das músicas
cristãs evangélicas, sua popularização extrapola usos no contexto ritual e compõe o vocabulário
cotidiano de muitos crentes.

Eu sou canela de fogo


Reteté de Jeová
Estou nadando no azeite
Eu não consigo parar
Tô envolvido na glória
Tô envolvido no manto
Estou andando em brasas eu não estou suportando
O rolo está descendo enchendo este lugar
Tem labaredas de fogo, em todo, em todo lugar (Flordelis – Eu sou canela de
fogo)

Contempla esse varão, que vai até você


Com vaso de azeite na mão, pois o azeite vai descer
Não adianta você se esconder, aleluia
Pois o azeite vai descer
O azeite vai descer
O azeite vai descer
Não adianta você se esconder
O azeite vai descer
O azeite vai descer
O azeite vai, oh glória (Pastor Melvim – O azeite vai descer)

Entre as classificações compartilhadas pelas interlocutoras, o óleo de unção era sempre


indicado como “representação do Espírito Santo”. “Representar”, no sentido adotado por
Engelke (2012, p. 214) para o cristianismo e fundamentado numa abordagem que considera a
religião vivida e experimentada enquanto prática, ganha a dimensão de tornar presente, já que
os “problemas de presença são problemas de representação”. O Espírito Santo presentificado
nos fluidos oleaginosos, nesse sentido, consolida o espaço ambíguo e emblemático de trânsito
entre erótico e religioso que está nas coisas eróticas e é sentido a partir delas.
A circulação do óleo, desde suas apropriações como elemento ritual na igreja até sua
imersão erótica na vida íntima do casal heterossexual, pôde ser tomada nesse contexto a partir
de uma opção por não o reduzir a uma materialidade líquida que o assemelharia ao “estado de
objeto”, como nos informa Tim Ingold (2012). Nesse sentido, a condição para sua eficácia é
estar em ação e movimento contínuos, assumindo formas inesperadas, improvisações em que
185

os pontos de fluxo não se conectam, mas se tornam indiscerníveis. É nesta perspectiva que
indico as possibilidades de trânsito que as coisas assumem nesse contexto. Seus fluxos destacam
os movimentos proporcionados pela capacidade de “ação da matéria” e sua potência
transformadora, que dá lugar a outros sentidos possíveis para compreender os percursos dos
materiais entre coisas e pessoas na vida erótica e religiosa.
As múltiplas propriedades conferidas ao azeite também são citadas por Anne Meneley
(2008) para enfatizar suas qualidades como “signo” ou, como prefere chamar, seus
“qualissignos”. Algumas delas, como a luminosidade e a falta de miscibilidade na água,
oferecem ao líquido efeitos visuais e capacidade de isolamento de outras substâncias, ofertando
qualissignos adotados em diversas práticas devocionais: pureza, força, vitalidade e conexão
com o sobrenatural. Assim, as propriedades curativas do azeite em rituais religiosos extrapolam
os cristianismos e o tornam um valorizado bem de consumo. Elas adentram descobertas
científicas que enfatizam curas psíquicas, especialidades na indústria do bem-estar dos óleos
essenciais, usos culinários na dieta mediterrânea, entre outros benefícios que se transformam
contextualmente.
Este histórico e amplitude de seus usos, por sua vez, não sugere afirmar que haveria um
significado universal e imutável nos óleos, nome que a autora afirma ter sido dado
genericamente para se referir a líquidos emolientes que não se misturam à água. Ao rejeitar esta
qualificação como símbolo dotado de significados, análise vastamente presentes em olhares
sobre a religião como crença, Meneley (2008, p. 317, tradução minha) identifica como os
atributos materiais do azeite oferecem potenciais sinestésicos que “fazem coisas e exercem
funções”, em vez de simplesmente transmitirem conceitos 161. Em diferentes contextos
religiosos, estas feituras não se completam sem qualidades relacionadas ao cheiro, ao gosto e
ao tátil.
O engajamento visceral com os sentidos, além de não constituir uma noção de essência
corporal, aponta para formas de regulação do poder que circula por interseccionalidades de
raça, gênero e sexualidade. Isso porque, além dos elementos sinestésicos serem fundamentais
para o estabelecimento de conexões espirituais, eles distanciam as práticas pentecostais do que
Foucault (1999) chamou de uma disposição binária dos signos inaugurada na modernidade
ocidental, aquela que separa as palavras das coisas.

161
No original, em inglês: “The qualities of olive oil do not merely convey concepts, they do things, they carry out
functions”.
186

A primazia do ocular é providencial nesta separação entre o que se vê de outros sentidos,


criando experiências discursivas através do corpo. Nesse sentido, não busco afirmar que o
pentecostalismo recupera experiências anteriores à transição moderna, mas situar o lugar da
modernidade que engessa as experiências em análises binárias e, assim, propor outros modos
para conhecer as relações entre pessoas e coisas no contexto evangélico-pentecostal. Ir além de
uma análise representacional baseada no significado e que, invariavelmente, oponha pessoas e
coisas implica em pensar sobre o que produzem as formas de engajamento sensoriais do
pentecostalismo, o que Birgit Meyer (2019b) chamou de “disposições corporificadas”.
Nas narrativas das interlocutoras, os usos de diversas metáforas misturavam
sensorialidades distintas na composição com referências bíblicas em orações, pregações e
conversas cotidianas. A captura dos pedidos feitos a Deus, por exemplo, não ocorre somente
pelos ouvidos do Senhor, mas por seu olfato, como ressalta a oração em voz alta que ouvi de
Marina, ao pedir que as palavras proferidas cheguem “como incenso que penetra nas narinas
do Senhor”. A presença de materialidades que acompanham a realização de rituais na oração
indica que estes exercícios de disciplinamento não são simplesmente alegóricos, mas
vivenciados como performances éticas e sinestésicas da devoção (HIRSCHKIND, 2021). Além
disso, a relação do óleo de unção com as essências aromáticas é parte de uma tradição cristã162
e, não à toa, compõe um universo que se ocupa em produzir sentidos para as mulheres
evangélicas. Durante os eventos voltados a este público que frequentei, o modo como óleos
eram dispostos por comerciantes locais se misturava a outros objetos que são alvo do consumo
feminino, como as bijuterias.

162
Segundo John (1993 apud Meneley, 2008, p. 317, tradução minha), “o óleo de unção é infundido com
especiarias e perfumes aromáticos preciosos”. No original, em inglês: “Anointing oil is infused with precious
fragrant spices and perfumes”.
187

Imagem 15: Mesa organizada por vendedores comercializando óleos, essências e bijuterias
na porta de um evento para mulheres, Zona Norte do Rio de Janeiro, RJ

Fonte: Acervo da pesquisa, 2018.

No cotidiano religioso fora das igrejas, as orações em voz alta 163 ganhavam novos
sentidos ao serem acompanhadas pela materialidade do azeite, pão, suco de uva, fotografias,
peças de roupa, entre outros. Junto à manipulação destas coisas, a busca pela eficácia produz
tons específicos para a expurgação dos males, conferindo poder para chegar até quem e onde
se precisa. A depender da “campanha”, a finalidade do óleo era anunciada: para o dinheiro,
“unção de Jeová Jiré”; para a vida sentimental, havia a “unção do amor”. As classificações
ocupavam parte significativa do modus operandi nas orações, na medida em que tanto o
maligno como o divino recebiam descrições com grande riqueza de detalhes; para “feitiçarias”
e “macumbas”, espaços e nomes de entidades eram frequentemente citados: “Exu Tiriri”, “Exu
Caveira”, “Exu Veludo”, “Maria Mulambo”; bruxarias deixadas na “mata virgem”,
“cemitérios”, “cruzeiro das almas” etc.
A riqueza no detalhamento destes dados visibiliza memórias do passado compartilhado
por muitos desses(as) evangélicos(as) no “espiritismo”, como como nomeavam religiões de
matriz africana. Assim, coisas eróticas e/ou religiosas estavam quase sempre a postos e são
igualmente parte das coletividades evangélicas, nas quais aprender a orar e a diferenciar Deus
dos inúmeros espíritos demoníacos equivale a também a aprender quais objetos podem
estabelecer contatos apropriados com o sobrenatural.
Em sua descrição sobre a oração, Mauss (2001) lembra que este é um fenômeno em que
ação e pensamento, rito e mito convergem. Para o autor, este é um movimento que caracteriza
a prece como prática que deve ser analisada para além de “uma série mecânica de movimentos

163
Além da presença nos cultos, minha convivência online com as interlocutoras, analisada no último capítulo da
tese, permitiu que eu pudesse ouvir orações que compartilhavam coletivamente, realizadas de modo recorrente
através de mensagens de áudios postados nos grupos de oração no WhatsApp que participamos.
188

tradicionais” (MAUSS, 2001, p. 776-777), tratando-se de um fenômeno “espiritual” que ocupa


a consciência. A oração, nesse sentido, é um espaço em que se expressa a conjunção de
elementos coletivos e individuais para exercer a liberdade de falar com Deus, e sua análise
permite que observemos as próprias transformações religiosas institucionais.
A contribuição de Mauss permite compreender como a singularidade da riqueza
temática e da descrição de cenas pelas interlocutoras converge com um repertório pentecostal
coletivo. Partindo da ideia de que a experiência religiosa também é vivida fundamentalmente
no corpo e através de engajamentos materiais que se dão na apreensão sensorial do mundo, o
que Birgit Meyer (2019a) chamou de “formas sensoriais”, a escuta da oração se transforma em
um importante meio de acesso às relações estabelecidas entre pessoas e coisas. Este conceito
possibilita refletir sobre estas relações como emaranhados que visibilizam poderes afetivos
gerados por sons, imagens e textos, visibilizando conexões entre os sujeitos pela experiência
estética de engajamento visceral do corpo com o mundo por meio dos sentidos. Ao mesmo
tempo, também permite localizar estes engajamentos corporais e afetivos de “formações
estéticas” a partir do que visualizo como arranjos políticos de gênero e sexualidade
estabelecidos no pentecostalismo.
O lugar fronteiriço destes agenciamentos na vida cotidiana através das coisas eróticas-
religiosas possibilita deslizes que, semelhante ao sentido empregado por Meyer (2019a) sobre
a circulação de imagens religiosas no contexto pentecostal ganense, podem provocar
sentimentos ambíguos que transitam entre emoções díspares, como adoração e rejeição.
Busquei compreender estes trânsitos de maneira articulada com formas de consumo e
autogoverno nas periferias da cidade, dialogando com o que a autora também indicou a respeito
da relação intrínseca das transformações religiosas com os meios de comunicação de massa.

3.2.2 Ambivalências religiosas nos fluidos corporais

Nas cenas e narrativas eróticas e religiosas abordadas no trabalho de campo, óleos que
compõem cosméticos e essências não são os únicos fluidos que disputam políticas de gênero e
sexualidade. Se suas propriedades conferem qualidades sagradas, estéticas e curativas, há
outros líquidos de material fluido que determinam dinâmicas fundamentais para a expulsão de
demônios do corpo. Por meio de excreções corporais como o sangue menstrual, vômitos e
diarreias, espíritos malignos podem ser eliminados através da intercessão de lideranças
pentecostais.
189

Presenciei estas ocasiões tanto nos cultos, em momentos de expulsão e manifestação de


demônios, como através de pregações online enviadas pela pastora às suas seguidoras nos
grupos de WhatsApp. No púlpito ou na plateia, com fiéis acompanhando o som de louvores e
manifestações de fiéis falando em línguas, pulando, rodopiando ao redor de si e amparados por
membros que cuidavam para que ninguém se machucasse, os vômitos eram frequentes, embora
nem todo mal fosse eliminado através de líquidos. Alguns eram acompanhados de berros,
sussurros, expressões faciais que se modificavam repentinamente para identificar a conclusão
do ritual de enfrentamento. Para serem eliminados, os espíritos malignos ganhavam diversos
nomes. Eram “espíritos de encantamento”, da “baixa autoestima”, da “vergonha”, da
“insegurança”, da “inveja”, da “fofoca”, entre outros.
Em sua pesquisa sobre práticas sexuais coletivas entre homens, Victor Hugo Barreto
(2019) conta que as interações resultantes dos encontros entre os homens resultam em diversas
fragmentações. São “partes, pedaços, restos dos outros” (BARRETO, 2019, p. 732), dentre eles
fluidos masculinos que operam como “elementos de ligação” para as trocas que decorrem desta
“economia libidinal”. Ao abordar os fluidos como elementos de ligação, estes fluidos expelidos
nos apresentam a ideia de uma composição corporal fragmentada, que guarda a capacidade de
expurgar pedaços de si e produzir estas masculinidades. A expulsão de fluidos corporais entre
estes agentes reúne características trabalhadas pelo autor através de intercâmbios entre risco,
nojo, repulsa, desejo e excitação.
Considerar fluidos corporais como elementos que podem tanto conectar, produzindo
sentidos coletivos comuns, como separar, dividindo pedaços demoníacos de si, é um caminho
que auxilia a compreensão da dimensão corporal destes vestígios. Diferente do conteúdo dos
óleos, estes outros fluidos produzidos pelo corpo trazem consigo uma dimensão de significados
socialmente compartilhados pelo que desperta aquilo que é expelido. Vômitos e diarreias, nesse
sentido, para além de reações involuntárias causadas pela náusea ou pelas dores físicas,
mobilizam um conjunto comum de emoções que constitui hierarquias entre bem e mal no corpo
dos fiéis.
Em sua análise fenomenológica de sentimentos como nojo, ódio e soberba, Aurel Kolnai
(2004) identifica como o asco envolve sempre matéria orgânica viscosa e semifluida, um
excedente que “adere ao sujeito” e caracteriza matérias classificadas como repugnantes, ou seja,
mais predispostas a causar nojo. Este é o caso dos excrementos corporais, dado que o autor
localiza junto às matérias putrescentes residuais, como o descarte do lixo. São “objetos físicos
que causam nojo”, matérias de incorrem em reações de caráter “repugnante por sua própria
190

natureza” (KOLNAI, 2004, p. 87, tradução minha)164, diferente de outros objetos que se tornam
alvo de asco por circunstâncias específicas, o que o autor denomina como objetos “moralmente
nojentos”. Diferente da putrescência causada pelos alimentos, os excrementos apresentam um
caso específico de putrefação que envolve a vida e a morte ou, nas palavras do autor, a
transformação da matéria viva em decomposta. A manifestação de demônios por meio de
vômitos e diarreias corresponde, assim, às formas como estas interlocutoras pentecostais matam
espíritos malignos que habitam seus corpos, inserindo-os em seus ciclos vitais.
Segundo Kolnai, o nojo destes tipos de fluidos corporais, socialmente classificados
como asquerosos, está estreitamente relacionado aos fatores sensoriais como olfato, tato e visão,
sendo o primeiro sentido aquele que revela em maior grau uma conexão intrínseca com as
excreções e a putrescência do corpo e de outros elementos orgânicos, como os alimentos. Ao
contrário do medo e do ódio, a primazia do olfato, seguida pelo tato, indicam conexões mais
“naturalmente definidas” que se manifestam no nojo. Por “naturalmente definidas”, aqui o autor
não se refere aos aspectos estritamente fisiológicos, mas aos modos através dos quais cheirar e
tocar gera outros contatos com o mundo, diferentes das impressões visuais: “ver algo implica
em conhecê-lo em um sentido totalmente diferente de cheirar ou tocá-lo” (KOLNAI, 2004, p.
51, tradução minha)165.
Ao expelir o mal através destes excrementos fluidos, a vinculação imediata de demônios
com aquilo que deve ser desprezado do corpo é encenada no pentecostalismo. Nesse sentido, o
ponto fisiológico impõe limites morais aos desagrados capazes ou não de provocar nojo,
constituindo o que Díaz-Benítez, Gadelha e Rangel (2021, p. 14) descreveram como uma
“reação que tem no corpo quase uma dimensão performativa”. Ao apontar para o corpo como
o lócus em que as estruturas do nojo e do desejo coexistem de modo análogo, os autores fazem
referência ao que Kolnai propôs sobre como uma ideia de “sexualidade desordenada” pode
provocar nojo, na medida em que “a ideia de contato íntimo com substâncias vivas estranhas é
um elemento central na sexualidade” (KOLNAI, 2004, p. 51, tradução minha)166.
O recurso a esta interpretação não tem por objetivo conduzir a análises literais,
enunciando que as interlocutoras pentecostais enxergam componentes eróticos nos excrementos

164
No original, em inglês: “The disgust-sensation directed against such objects is something natural, something in
the stricted sense adequate or appropriate to its object ”.
165
No original, em inglês “On the one hand it can give an incomparably more many sided, encompassing, and
adequate image of the object -'seeing' something implies 'knowing' it in an entirely different sense from 'smelling'
or 'touching' it”.
166
No original, em inglês: “The idea of intimate contact with extraneous living substance is a central element in
sexuality: compare the discussion of besmirching below”.
191

corporais. Ela possibilita, em seu lugar, compreender o nojo enquanto sentimento ambivalente
que, segundo Kolnai, transita entre desprezo e atração e tem como um de seus objetos a matéria
úmida que perturba. Diferente dos óleos, que adotam caminhos de entrada para consagrar e
produzem outros modos de engajamento que penetram e se dissolvem no corpo, os excrementos
corporais adotam caminhos de saída para apagar vestígios do mal sedutor, sujo e vulgar.
A despeito de suas semelhanças no componente fluido, a aproximação que faço entre
estes dois materiais orgânicos não aponta para semelhanças, mas indica como ambos compõem
políticas regulatórias de gênero e sexualidade entre mulheres pentecostais. Assim, fluidos
corporais e oleaginosos podem ser eróticos ou religiosos ou, ao mesmo tempo, eróticos e
religiosos. São também, sobretudo, parte de uma dinâmica que engaja sujeitos específicos nas
tramas pentecostais. Embora as limitações da pesquisa não permitam que seja possível afirmar
que há exclusividade para sua presença entre as mulheres, considero que as regulações sofridas
neste âmbito apontem para como gênero e sexualidade se apresentam nestas camadas
empobrecidas e, por conseguinte, racializadas das periferias fluminenses.
Há ainda nestas manifestações de excrementos mais um composto que demarca estas
políticas no corpo das mulheres. O sangue menstrual, também citado como matéria capaz de
expulsar demônios, produz outros efeitos que se somam às características do nojo dos fluidos
corporais. Para além de representar o sangue que perturba como quaisquer outros sangues que
habitam o interior do corpo, o sangue menstrual é “uma substância marcada por gênero”,
conforme definem Manica, Gondelberg e Asensi (2018, p. 98). Ao realizarem pesquisa
etnográfica em um laboratório que analisava as CeSaM, sigla adotada para as células do sangue
menstrual, as autoras identificaram como circulam diversos estigmas desta marcação, dentre
elas a de que se trata de um sangue que “não serve pra nada”, o que atrapalha sensivelmente o
desenvolvimento de pesquisas sobre as células-tronco em que este material está envolvido.
Emilia Sanabria (2016), por sua vez, também identificou como questões relacionadas à
intervenção tecnológica nas políticas de reprodução feminina constroem e reforçam tabus sobre
o sangue menstrual. Indo além das ciências médicas, a autora nota como estes tabus também
atravessam diferentes religiosidades, para as quais menstruar ou não pode incorrer em maior
liberdade para a condução e participação em rituais167. Embora não haja especificidades no
contexto pentecostal que incorram em reflexões mais aprofundadas a este respeito, ao ser

167
No trabalho de Belaunde (2006), as regulações do sangue menstrual na cosmologia amazônica são marcadas
por práticas de resguardo, dieta e reclusão. Para a autora, o sangue faz gênero em relações com o corpo,
conhecimento e saúde nesse contexto.
192

enunciado como excremento o sangue menstrual no contexto pentecostal apresenta conexões


com nojos específicos aos corpos femininos 168.
Os espíritos malignos expulsos através desta e outras vias que tomam estes fluidos
corporais compõem políticas sexuais por exibirem uma capacidade singular de produção de
múltiplas classificações. Os fluidos expulsivos de mulheres casadas e “sozinhas” carregam
dentro de si diferentes espíritos que levam a comportamentos e sensações igualmente distintos.
Enquanto atuam através das primeiras os descuidos com a aparência física, brigas com o
marido, dores e nojo do ato sexual, nas segundas operam “traumas do passado” com pais que
as abandonaram, violências sexuais geralmente ocorridas no âmbito familiar e maldições
hereditárias causadas por espíritos sedutores que não são de amantes como no caso das casadas,
levando-as às vidas “solitárias” ou ao “lesbianismo”.
O exemplo abaixo indica como tais narrativas circulavam em formatos de orientação
pastoral, com particular centralidade para as categorias de cunho psicologizante e que se
aproximam da família e do âmbito doméstico como objeto principal de intervenção (DEBERT;
GREGORI, 2008). Nesse sentido, as justificativas para o insucesso matrimonial são
aprofundadas entre membros da família nuclear e no parentesco de suas famílias anteriores:

“Mulheres, vocês precisam ser cuidadas, cuidadas para poder transformar!”.


Esta frase, proferida diversas vezes ao longo do culto, não é dirigida somente
às mulheres. A pastora também se dirige aos homens em tom de
aconselhamento. Primeiro, cita um exemplo em que associa o amor entre pai
e filha ao amor conjugal, sugerindo haver um espelho relacional
proporcionado desde a experiência paterna que fatalmente se repetiria durante
o matrimônio. Assim, às moças que não haviam sido amadas por seu pai
durante a infância, restaria a solidão e a dificuldade para sair de
relacionamentos em que sofriam “humilhações” de seus maridos. (Pregação
da pastora Cristiane durante um culto. Diário de campo, fevereiro de 2018)

Somando-se a outras classificações, este trecho apresenta como as políticas de gênero e


sexualidade nesse contexto realizam movimentos que remetem ao campo familiar doméstico e,
por conseguinte, daquilo que também compete ao “império da escolha” (DEBERT; GREGORI,
2008). No entanto, neste campo religioso atravessado por linguagens psicoterapêuticas
(DUARTE; CARVALHO, 2005), o discurso das pregações pastorais não deve ser analisado

168
O sangue também apresenta um exemplo do diálogo com a abordagem material dos fluidos corporais. Ao
contrário da atribuição de nojo e repulsa que associa este fluido às políticas de gênero presentes no contexto
pentecostal, há elementos bíblicos que justificam a santificação deste elemento a depender do contexto em que é
citado e/ou experimentado. Em Lucas 22, 44, o sofrimento de Jesus no Jardim do Getsêmani é materializado em
seu corpo através de lágrimas de sangue.
193

isoladamente. Ao abordar o manejo de fluidos corporais nos processos pentecostais de


santificação, busquei enfatizar agenciamentos forjados coletivamente pelas mulheres
pentecostais em torno dos poderes atribuídos às coisas que, por sua vez, não encontram espaço
nos enredos discursivos de longas pregações realizadas no interior das igrejas.
Ao contrário das ambivalências presentes nos fluidos corporais citados até aqui,
ambiguidades, como aquelas presentes no óleo de unção, também podem ser encontradas em
outros exemplos igualmente emblemáticos. A presença do suor e das lágrimas em um culto
pentecostal situam que nem sempre os fluidos corporais expelidos são dotados de componentes
malignos. Neste caso, sua aparição enquanto efeito de movimentos vigorosos do corpo ou
manifestação da intensidade de emoções materializa o caminho de santificação. Se há uma
noção de santificação mais generalizada nos cristianismos que implica em separação, as
experiências relacionais entre mulheres evangélicas e seus fluidos corporais e óleos de unção
apontam para a necessidade de extrapolar uma análise das materialidades pautadas em
significados e representações para olhar suas políticas contextuais.
Finalmente, destaco os atributos que reúnem qualidades físicas e sentidos de gênero e
sexualidade, desta vez presentes nos fluidos apresentados em uma análise instigante realizada
por Susan Sontag (1988) sobre as materialidades líquidas presentes nas óperas de Wagner.
Diferenciando fluidos como água e sangue, a autora explica como o simbolismo sagrado da
água169 está vinculado à cura e redenção, enquanto o sangue atua como única matéria líquida
que, diferente dos outros fluidos, não carrega consigo a capacidade de penetrar, mas somente
de deixar o corpo.
Esta qualidade reverbera no componente erótico generificado do sangue, analisado a
partir dos ferimentos alocados nos corpos masculinos nas óperas de Wagner. Enquanto as
mulheres morrem sem derramar sangue, os homens sangram até a morte por meio de ferimentos
causados por objetos pontiagudos compartilhados na batalha. Assim, enquanto o erotismo
facultado aos homens está diretamente vinculado à capacidade de saída, metaforizada no sangue
de soldados que fornecem proteção à família e à nação, às mulheres são atribuídos papéis
ambíguos que também são estendidos aos fluidos que carregam.
Sontag indica que estas agem através da representação de salvadoras e sedutoras,
portando fluidos que servem, ao mesmo tempo, como bálsamo e veneno capazes de curar

169
Em “História da loucura na idade clássica”, Foucault (2005) identifica na água um elemento para a busca pela
razão, pureza e limpeza. Os loucos eram levados em “naus” através das águas para continentes longevos e, neste
trajeto, as águas desempenhavam o papel de cura e purificação dos males psíquicos pelos quais estariam
acometidos.
194

feridas que elas mesmas teriam causado aos homens. O valor emblemático dos fluidos estaria
em sua capacidade intrínseca de transformação dos sentimentos – o veneno da poção do amor
que faz apaixonar (a fórmula dos contos de fadas) é o mesmo que faz perecer. Ao explorar os
líquidos nas tragédias de amor que constroem a cultura ocidental, Sontag conclui que eles
carregam em si mesmos fantasias que se fazem por meio da entrada e saída de fluidos dos
corpos masculinos e femininos.

3.3 Jezabéis, Pombagiras e feitiçarias: disputas espirituais pelo casamento

Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se
diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam
dos sacrifícios da idolatria (Apocalipse 2,20).

“Cuidado com quem supostamente fala que vai te ajudar”. Em julho de 2017, a pastora
Cristiane inicia mais um Chá das Virtuosas contando uma história que, segundo ela, havia se
tornado muito conhecida no meio evangélico em anos anteriores. Na narrativa, uma jovem de
17 anos teria se levantado para contar seu testemunho: “Eu queria confessar o meu pecado para
a igreja. Eu sou a amante do pastor”. O pastor, acusando a jovem de louca, virou-se para a
esposa negando o que acabara de ouvir enquanto a mesma caía, desmaiada no altar. Enquanto
isso, a moça continuava sua denúncia e apresentava provas, detalhes íntimos a respeito do corpo
do pastor acusado para a esposa, que então acredita na jovem e se separa de seu marido.
A situação, descrita com riqueza de detalhes pela pastora, ganha contornos dramáticos
com uma reviravolta a favor do pastor que havia sido expulso da obra como adúltero. Após 30
anos, a jovem se tornara uma senhora enferma que “apodrecia com câncer”, vivendo em um
quarto que “fedia àquela doença”, e procura a liderança daquela mesma igreja, representada por
outro pastor, para confessar seu pecado: “Na loucura da minha adolescência eu me apaixonei
por um pastor e inventei uma história. Eu menti”. Os detalhes íntimos sobre o corpo do acusado
haviam sido coletados sem o consentimento deste pois, segundo o relato, a jovem havia
trabalhado como faxineira no hospital em que o pastor havia sido internado. O ex-pastor,
segundo a narrativa, sofrera por toda a vida de depressão, havendo se enclausurado em um sítio
após o ocorrido há três décadas. A ênfase na conduta ilibada do homem era reforçada na mesma
medida da perversidade da jovem, que havia dado lugar para “ter a mente usada por Satanás”.
Embora a “moral da história” nesta narrativa pareça colocar no centro o casal de pastores
que, tendo a verdade revelada, retornam à vida conjugal, é para a personagem que engana que
a pastora direciona suas palavras finais: “Eu estou falando isso porque eu quero te ajudar, quero
195

te ajudar pra que você venha a se consertar”. A ambiguidade na figura da amante, construída
como “inimigo que deve se manter por perto”, é compatível com o repertório bastante explorado
do pentecostalismo de não opor Deus e o Diabo, mas conciliar a convivência inevitável deste
enredamento. O Diabo, como “anjo caído”, filho de Deus que se rebelou contra o próprio pai,
é também fruto daquele espaço e deve ser expulso para que a alma da fiel possa ser resgatada.
Este “deslize” entre Deus e o Diabo, conforme nos indica Birgit Meyer (2019b),
constitui ambiguidades e ambivalências centrais às dinâmicas pentecostais. Em sua
investigação a partir da circulação de imagens de Cristo no sul de Gana, a autora busca
identificar como estas imagens são visualmente experimentadas como contradições, podendo
ser vistas ao mesmo tempo como bênção por alguns e como maldição por outros. Assim, as
relações entre adoração e rejeição causadas pelas imagens em seus usos religiosos deslocariam
o lugar de oposição entre Deus e o Diabo para conformar relações instáveis que, segundo Joel
Robbins (2011), são centrais aos “projetos de descontinuidade” dos cristianismos pentecostais.
Os circuitos pentecostais femininos que percorri nos deslocamentos do grupo das
virtuosas despertaram formas de analisar os “deslizes” através de movimentos dinâmicos de
alianças e contrastes. O enfoque conferido à figuras como a amante na fala da pastora Cristiane
durante o culto remete ao que Natânia Lopes (2017) afirmou a respeito desta categoria de
acusação. Em seu trabalho sobre a prostituta como objeto de conversão no pentecostalismo, a
autora indica que o limbo do “sexo fora do casamento” ocupado pela amante compartilha
sentidos com os imaginários sobre prostituição. Assim, o capital simbólico destinado às
prostitutas como potenciais convertidas também desliza para as amantes, o que justifica a
valorização dada pela pastora para esta e outras figuras desviantes durante a pregação, como “o
homossexual”170, macumbeiras(os), bruxos(as), feiticeiras(os), entre outros.
Para os fins desta análise, destaco como os usos das coisas eróticas mobilizadas nestas
dinâmicas que, em sua maioria, centralizavam “mulheres que roubam maridos”, incorriam em
acusações de feitiçarias em que as mesmas coisas podem ser santificadas pelas crentes e
amaldiçoadas pelas amantes. Ao contrário de uma relação de oposição, o lugar da amante como
objeto de conversão a torna uma espécie de espectro que habita tanto o “mundo” como o
convívio cotidiano na igreja e outros espaços de socialidade evangélica. “Espíritos de Jezabel”,

170
A rigidez no emprego do artigo masculino não era a mesma para o uso do artigo feminino no caso de
“homossexual”. A menção à “lésbica” ou correlatos raramente aparecia entre as interlocutoras, sendo a prostituição
a acusação mais recorrente às filhas mulheres. Casos de pessoas trans também eram englobados no termo
“travestis”.
196

ou “Pombagiras 171 do saião”, como eram frequentemente chamadas amantes (e) prostitutas que
agiam “dentro e fora das igrejas”, provam-se tanto temidas quanto vigiadas para que, assim,
tenham suas estratégias de sedução devidamente copiadas.
Nos estudos de Patricia Hill Collins (2019) sobre os estereótipos associados às mulheres
negras norte-americanas, a figura desviante da Jezabel (ou Jezebel) reflete o apetite sexual
racializado e generificado da mulher negra, hiperssexualizando estas mulheres como modelos
de feminilidade desviante. Em oposição às virtudes da domesticidade e pureza atreladas às
mulheres brancas e de classe alta e média, as “imagens de controle” vinculadas às mulheres
negras apontavam para como o pensamento binário articula opressões interseccionais de
gênero, raça, classe e sexualidade. Para a autora, o surgimento datado no período da escravidão
destas imagens visou ao “interesse da elite masculina branca em definir a sexualidade e a
fecundidade das mulheres negras” (HILL COLLINS, 2019, p. 159).
As jezebéis, nesse sentido, são figuras fundamentais para compreensão das políticas de
Estado-Nação que permeiam concepções de família e sexualidade (HILL COLLINS, 2019).
Olhar também para as experiências de gênero e raça que percorrem caminhos “amefricanos”
fora do contexto estadunidense, como apresentou Lélia Gonzalez (2020), pode ampliar o
conhecimento sobre as variadas dimensões da presença negra e seu “pretuguês”, outros efeitos
relacionais no corpo e na fala. De acordo com Gonzalez (2020), nossa identidade nacional foi
forjada com base no “racismo por denegação” que, fundamentado no mito da superioridade
branca e da democracia racial, combina-se à centralidade da “ideologia da mestiçagem”.
Complementando estas reflexões, Mara Viveros Vigoya (2018, 2020) indica que o
multiculturalismo e as narrativas da mestiçagem construíram na “Améfrica ladina” modelos de
“mistura racial” antagônicas ao racismo, estigmatizando tanto debates sérios sobre mestiçagem
quanto a própria pessoa mestiça. Ao serem separados de definições do racismo, tais modelos
ajudam a construir outros modos de ser racista, desta vez através da cordialidade.
Convoco estas perspectivas ao debate não somente para compreender como as mulheres
brasileiras enquadradas nas “imagens de controle” são acometidas por especificidades e
distintos processos de subalternização. Elas também podem nos ajudar a entender como as

171
Sendo uma das entidades da Umbanda mais popularizadas no Rio de Janeiro, a pombagira pode ser
compreendida como “resultado do encontro entre a força vital do poder das ruas que se cruzam e a trajetória de
encantadas ou espíritos de mulheres que viveram a rua de diversas maneiras” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 92).
Tal leitura nos informa, ainda, sobre a pombagira ser “senhora dos próprios desejos” e “desafiadora do padrão
normativo”, protagonista de ações que “problematizam e reposicionam as dimensões do gênero e da raça em uma
sociedade que tem o sexismo (incluindo nesse o machismo) e o racismo como fundamentos” (SIMAS; RUFINO,
2018, p. 90).
197

“feitiçarias” e outros males espirituais agem nos contextos coloniais latino-americanos


provocando transformações na maneira como as coisas são utilizadas. Atentei para como as
articulações no pentecostalismo, nesse sentido, possibilitam enxergar outras dimensões destes
processos coloniais em que raça e gênero se misturam aos usos e performances das coisas.
Embora seja central para a compreensão das dimensões de poder das práticas
pentecostais, as reflexões socioantropológicas sobre o debate racial estiveram historicamente
mais afastadas das pesquisas sobre o pentecostalismo. Como apontam Livia Reis e Jacqueline
Moraes Teixeira (2021), o protagonismo das religiões afro-brasileiras neste debate dividiu
espaço com os estudos sobre catolicismo como principal referência do campo de pesquisas
sobre identidade e nação no Brasil. As mudanças causadas pelas disputas pentecostais pelo
imaginário de “nação evangélica” (SANT’ANA, 2017) forneceram novos contornos que,
influenciados por estudos pioneiros com enfoque no protestantismo como o de Regina Novaes
e Maria da Graça Floriano intitulado “O Negro Evangélico” (1985), compartilharam como
preocupação central explicar os desafios de ser negro(a) no espaço das igrejas vivendo o
antagonismo entre a identidade cristã universalizante, de um lado, e o pertencimento a uma
identidade de grupo, do outro (BURDICK, 2001).
Este foi um desafio trabalhado por John Burdick (2001) no reconhecimento de “espaços
de possibilidade” para a “identidade negra” existir e criar estratégias de pertencimento no
espaço das igrejas. Sem tomar estes dois lados como oposição, o autor apresentou a conversão
ao pentecostalismo como possibilidade de acesso à identidade negra que se dá através de
distintos movimentos de autovalorização espiritual que buscam superar estigmas associados à
negritude. No caso das mulheres negras, o autor sugeriu que haveria um mercado dos afetos
mais favorável a elas nas igrejas evangélicas do que fora delas, oferecendo inclusive maior
número de casamentos inter-raciais. Um dos pontos mais centralmente destacados pelo autor
se dá no reconhecimento de que a identidade negra pentecostal vem formulando políticas
étnicas através da música, de maneira que a ênfase se dá mais na brasilidade e na cidadania e
menos na religiosidade afro, como nos movimentos negros pela reivindicação da
ancestralidade.
Seguindo um caminho crítico ao autor, mas sem negar as possibilidades de negociação
entre a identidade cristã pentecostal e a identidade negra, Morgane Reina (2017) analisa como
esta identidade, quando forjada no seio das igrejas pentecostais, segue estereótipos relacionados
ao “negro exótico”. A autora apresenta exemplos de como experiências contrárias a essa cartilha
seguem demonizadas e relegadas ao status de não-ser característico de sujeitos desumanizados.
A partir do diálogo com Abdias do Nascimento (1978), Reina apresenta as marcas da
198

assimilação que fazem o genocídio negro e seu “racismo mascarado” (REINA, 2017, p. 262),
ao qual similarmente se referiu Gonzalez (2020) a partir do termo “racismo por denegação”.
Explorando timidamente um caminho que foge ao debate sobre identidades e uma aposta no
que Livio Sansone (2004) chamou de “negritude sem etnicidade”, Reina aponta para aberturas
individuais e iniciativas de organizações evangélicas em franco crescimento, com a valorização
da herança africana.
Os movimentos que observei a partir de trajetórias e circulações de mulheres
evangélicas em suas igrejas e fora delas são diversos a este respeito. Para os efeitos da análise
desta seção, considero importante pontuar como estas análises que mobilizei brevemente sobre
um campo vasto e em franco crescimento trazem leituras críticas dos sujeitos pentecostais sobre
seus processos de racialização. Elas se afastam, portanto, de noções em que o único acesso à
mudança se dá através da elaboração autônoma de uma consciência de si e do grupo ao qual se
pertence, para indicar maneiras como estes sujeitos vêm elaborando estratégias, indo além do
mote do embranquecimento e da alienação.
As relações de mulheres evangélicas com coisas eróticas possibilitaram compreender
maneiras como raça e gênero formulam um campo de disputas sobre o que é ser pentecostal.
Nesse contexto, as articulações entre estes marcadores sociais da diferença não se expressam
nos domínios identitários. No entanto, nas ações sobre as “feitiçarias” jogadas por mulheres
para outras mulheres, são compartilhadas dimensões coloniais em que raça, gênero e nação
constituem hierarquias que subalternizam “mulheres más” (PASSADOR, 2010).
Como informa o trecho bíblico que abre esta seção, interessa refletir sobre como a
convivência com Jezabéis e Pombagiras ganha, nos usos de coisas eróticas que integram
relações entre mulheres, um amplo repertório de mediações para manipular “feitiçarias”172 da
sensualidade pecaminosa. Com esta análise, não considero que estas convenções do erotismo
que visam “salvar casamentos” evangélicos incorram em flexibilizações morais para o convívio
com as dissidências. Em vez de apostar em uma análise sobre reforço ou redução dos efeitos
maléficos causados aos sujeitos que desviam das normas em questão – o que considero uma
das principais armadilhas que pautam confrontos políticos em torno da identidade –, aponto
para como os manuseios femininos de coisas eróticas negociam através de linhas tênues e

172
Uma apropriação do trabalho clássico de Evans-Pritchard (2005) sobre acusações de feitiçaria para o contexto
das relações de gênero e acusações feitas às mulheres é feita por Camila Fernandes (2017). A autora investiga
como a causalidade atribuída às “mulheres que fazem filhos demais”, presente em valores compartilhados nos
discursos de camadas populares e do Estado, organiza fatos e eventos cotidianos nos territórios marginalizados.
199

instáveis que frequentemente fazem com que mulheres evangélicas sejam acusadas daquilo que
combatem.
Baseadas na ideia de que tudo que nos cerca são “armas” e “estratégias” que foram
dadas por Deus, as interlocutoras tornam sagrados muitos objetos que haviam sido alvo de
“feitiçarias”, estas causadas principalmente por amantes. Recorro abaixo a uma cena vivenciada
no trabalho de campo para exemplificar como os paroxismos destas flexibilizações através das
coisas costumam ocorrer entre as interlocutoras evangélicas.
Na ocasião de um Chá realizado na casa de uma virtuosa e transmitido ao vivo no perfil
do grupo do Facebook, acompanhei uma “brincadeira” em que a pastora Cristiane entregou uma
caixinha, similar a um porta-joias, para que as mulheres dispostas em uma roda a circulassem
entre si. Antes de cada repasse, a pastora fazia uma pausa e pedia para que a participante
observasse o interior da caixa em silêncio, pois ali haveria “o bem mais precioso da vida de
cada uma”. Lentamente, elas abrem e nada comentam entre si. Enquanto algumas levam um
susto, outras se entreolham e riem em sinal de cumplicidade.
Ao final da atividade, Cristiane revela para a câmera do celular que realiza a transmissão
o que as integrantes do Chá já haviam visto: um pequeno espelho, posicionado de modo a
refletir imediatamente o rosto de quem abria a caixa. Com orientações sobre o autocuidado e
autoestima, a pastora vincula o objeto às ações voltadas para a vida matrimonial, indicando que
as mulheres evangélicas possam tomar para si aquilo que seus maridos podem conhecer através
de “feitiçarias realizadas por amantes”. O espelho, vinculado “à entidade das águas” e utilizado
pelas amantes para que as esposas tenham sua visão distorcida e se sintam feias, aqui opera
como suporte de acusações de feitiçaria que vinculam religiosidades afro-brasileiras aos
imaginários de ordenação de territórios marginalizados (BIRMAN, 2009).
Em registros similares, a ressignificação de coisas mundanas relacionadas à sexualidade
como usar brinquedos eróticos e ungir peças de roupa íntima passam a fazem parte de uma
“visão”, uma “ousadia na fé” que, segundo Cristiane, é frequentemente “confundida com
heresia” em muitos contextos evangélicos. A unção de peças de roupas dos maridos interpela
as convidadas, que citam alguns rápidos testemunhos contando sobre mudanças e
acontecimentos ocorridos com os maridos, significados como benéficos ao casamento. Agir
com “propósito” e tomar para si, nesse sentido, refletem concepções de self e corpo em que a
autoestima está vinculada ao fortalecimento do casamento através da combinação entre carne e
espírito:
200

A gente que prega tanto hoje em dia, falando do empoderamento né, nós temos
isso no nosso meio evangélico! E o kit erótico ajuda nisso. A mulher quando
coloca uma lingerie, ela se sente poderosa, quando ela faz o cabelo, a gente
fala com uma mulher que tá ali toda, né, triste, a gente coloca uma maquiagem,
pega ali, tem uma lingerie bem bonita, aquela mulher já se sente bonita.
(Pastora Cristiane, entrevista realizada presencialmente, junho de 2017)

Não seja santa demais, vai e pega teu marido de volta! Use as armas da mulher
de Cantares de Salomão! Por mais mulheres de Cantares de Salomão! Esse
amor que está sufocado em meio à sua carnalidade, ele vai explodir em você!
(Pastora Cristiane, pregação durante um Chá nos lares, junho de 2019)

Na medida em que a “carnalidade” e o “empoderamento” após o uso dos “kits eróticos”,


como indicam estas falas da pastora, devem ser explorados para que a santificação também
possa emergir no âmbito do casamento, estes são elementos que também fazem emergir perigos.
Aqui, eles são denunciados através de falsas acusações de heresia lembradas por Cristiane,
informando sobre limites que a sexualidade feminina evangélica estaria ultrapassando. Para as
interlocutoras, no entanto, estas práticas servem para protegê-las de outros perigos relacionados
a traições e invejas que não estão somente no mundo, mas dentro das congregações, como um
contraefeito das ações pentecostais que convivem ora com a eterna vigilância para não desviar,
ora com o acolhimento necessário de figuras desviantes para que a libertação ocorra.
Além do sentido foucaultiano de incitação aos discursos trabalhado na ideia de
contraefeito (FOUCAULT, 2011), dialogo com o que Luiz Henrique Passador (2010) apontou
sobre as “mulheres más” do sul de Moçambique. A convivência com mulheres que provocam
feitiços intencionais para destruir casamentos e prejudicar a saúde de pessoas próximas foi
demonstrada pelo autor como um componente significativo da associação entre mulheres e
forças espirituais relacionadas à impureza. Passador (2010, p. 185) afirma que, naquele
contexto, isso as submetia a “um regime de constante desconfiança e violência, concebida
nestes termos como uma forma de contraviolência”. Nos usos de coisas eróticas entre mulheres
evangélicas, os espelhamentos entre Deus e o Diabo ocorrem através de coisas que vestem
pessoas, penetram carnalidades em casal, e são desenfeitiçadas para servir aos propósitos de
Deus.
Considero os usos sinônimos das categorias Jezabéis 173 e Pombagiras para se referir às
figuras desviantes mais um elemento ilustrativo destas práticas e de seus contraefeitos através

173
Para complementar o diálogo com a produção de gênero e raça no pentecostalismo como identidade nacional,
ressalto também para o lugar das mídias nestas disputas. A narrativa bíblica de Jezabel foi transformada em novela
pela Rede Record em 2019. Com o título de “‘Jezabel’, a capeta de saia da Record”, a revista Veja publicou em
sua seção de cultura o que chamou de “veiculação de uma mensagem antifeminista” a partir da representação desta
que seria a “maior vilã da Bíblia”: para a emissora de Edir Macedo, “mulher que não se comporta, acaba no
201

das relações com as coisas. Neste contexto em que personagens bíblicas constituem referências
para modelos de conduta que devem ser alcançados por meio de alianças com suas virtudes e,
por sua vez, contrastes com classificações ameaçadoras à família e à nação, as interlocutoras
mobilizam estratégias em que ser “ousada na fé” articula figuras que exploram imaginários
raciais, de gênero e sexualidade que oferecem metonímias entre religiosidades de matriz
africana e referências bíblicas.
Compreendo, assim, estas “figuras” do erotismo feminino para além de uma análise
interpretativa, dotada de representações vinculadas aos seus significados, mas enquanto atos de
fala (FOUCAULT, 2008a) pentecostais que se constroem através de relações com as coisas
eróticas. Tendo em vista a centralidade da relação entre transcendente e mundano nos
cristianismos reforçada por Joel Robbins (2011), minhas reflexões sobre os usos de coisas
eróticas buscaram destacar até aqui como estas coisas fazem gênero, raça e sexualidade em suas
circulações por discursos femininos sobre a conjugalidade pentecostal.
Como vemos em outros exemplos sobre usos pentecostais de objetos em territórios que
foram colonizados, a demonização da “macumba” demonstra efeitos que provocam
transformações significativas nestes territórios. Linda Van de Kamp (2012) explica como as
demonstrações de poder de pastores brasileiros em Moçambique fazem uso de comentários
pejorativos ao momento do transe, além de levarem artefatos pertencentes a curandeiros(as) e
“macumbeiros(as)” aos cultos para mostrarem que não são afetados pelo que consideram se
tratar de poderes negativos. Estas práticas, como conta a autora, mesmo consideradas perigosas
no contexto moçambicano, vêm sendo gradualmente inseridas no cotidiano de combate aos
demônios da “macumba”, palavra estrangeira ao vocabulário local que também foi levada pelo
pentecostalismo brasileiro transnacional.
No pentecostalismo brasileiro contemporâneo, análises como a de Ronaldo de Almeida
(2011, p. 116) destacaram como a “magia de matriz cristã” vem aliando o “pentecostalismo de
serviços” a maneiras de fortalecer circuitos de ajuda mútua e estabelecimento de laços de
confiança174. Nessa perspectiva, a eficácia da expansão pentecostal se coloca através do

inferno”. Construída como uma rainha movida a “sexo, vaidade e política”, a reportagem indica que os pecados
relacionados à propagação do paganismo de Jezabel no Velho Testamento ganham novos formatos na TV: vaidade,
exibida com farto uso de bijuterias, traição ao marido, mesmo sendo polígamo, e “meter-se em política”. A novela,
nesse sentido, contribuiria como mais uma força secular-religiosa na reprodução de um dos principais jargões
presentes em denominações evangélicas brasileiras, o “espírito de Jezabel” (CARNEIRO, 2019).
174
Segundo o autor, um forte público de atração para este pentecostalismo mais dinâmico e menos institucional
são os “sem religião”. Trata-se de pessoas atraídas pelo modelo do “pentecostalismo de serviços” e que, em vez
de não professarem nenhum tipo de fé, transitam entre múltiplas institucionalidades e vivem suas religiosidades
de maneira mais alargada.
202

mecanismo de negação e assimilação – ou seja, incluir negativamente os elementos de outras


religiões e assimilá-los hierarquicamente (ALMEIDA, R., 2011, p. 115). De modo
complementar, Vagner Gonçalves da Silva (2011 p. 208) indica que as “mediações mágicas e
a experiência do avivamento” fazem parte de tentativas de monopolização pentecostal de
experiências transcendentais, o que torna estas mediações o “principal bem no mercado
religioso”.
Como venho argumentando em outros capítulos a respeito das sujeições negras vividas
e provocadas pelo pentecostalismo, há lacunas importantes nas articulações entre religião e
racismos em perspectivas sobre o “mercado religioso”. Na medida em que boa parte delas opta
por explicações que centralizam a categoria classe para alertar sobre as decorrências do
neoliberalismo para o aumento da pobreza, há consequências epistemológicas que ocluem a
racialidade do ordenamento das relações de exploração capitalistas (SILVA, D., 2019).
As articulações interseccionais com as coisas podem oferecer pistas que possibilitam
compreender, ainda, como estas políticas coloniais no campo evangélico são formadas por
sexualidades e erotismos. Em uma das análises feministas mais conhecidas sobre a ilustração
do século XVI atribuída a Jan Van der Straet e intitulada “uma alegoria da América”, Anne
McClintock (2010) apresenta uma descrição sobre instrumentos de fetiche carregados por
Américo Vespúcio na cena, apontando para como a construção da nação foi forjada através de
fantasias de poder do discurso imperial masculino. Para a autora, impotência e emasculação
estavam simbolicamente representadas por astrolábio, bandeira e espada, compondo a cena
erótica de uma conquista do território recém-descoberto em que uma mulher indígena nua
estende a mão para o colonizador, insinuando sexo e submissão.
Na medida em que a erotização das coisas não foge a esse contexto de subalternizações
que constitui projetos de nação, seus manuseios, materialidades e discursos em circulação
demonstram como outros poderes e erotismos podem ser concedidos e transformados, a
depender de quem sejam seus agentes e contextos de uso. Ao optarem por enfrentar perigos e
explorar desafios para serem “ousadas na fé”, desfazendo “feitiços” que tornam sagradas coisas
amaldiçoadas e erotizando elementos do cotidiano, as interlocutoras narram sobre os riscos
destas práticas para a reputação de quem as realiza enquanto evangélicas. Nestas interpelações,
elas agenciam enfrentamentos aos conservadorismos que as acusam de cometerem heresias
constituindo jogos eróticos entre quem afeta e quem é afetada.
Coisas eróticas fazem com que mulheres evangélicas se apropriem, ao mesmo tempo
em que os combatem, repertórios de “feitiços” que carregam emaranhados entre desejo e nação
(DOMINGUES, 2019). Apresentar como estas transformações se dão, exercício a que me
203

propus neste diálogo inconclusivo do pentecostalismo com teorias sobre gênero, raça e nação,
podem oferecer bases para nossos posicionamentos políticos como antropólogas(os)
engajadas(os) no combate ao racismo religioso que não se contente em eleger evangélicos como
bodes expiatórios, mas aposte em análises sobre seus investimentos paradoxais nestas
dinâmicas de poder em que os erotismos estão em disputa.
204

4 ESTÉTICAS E PERFORMANCES ATRAVÉS DOS EVENTOS

O Chá de Mulheres Virtuosas não é pra você simplesmente ouvir uma palavra,
ouvir uma palestra, ouvir testemunhos, sair daqui com um presentinho. Não,
não é só pra isso. O Chá é pra você sair daqui mulheres curadas, mulheres
restauradas pra poder uma ajudar a outra. Porque eu vou voltar pro Brasil! Eu
posso te atender pelo zap? Eu posso. Mas vai ter coisas que vai ser uma de
vocês ajudando a outra. Graças a Deus aqui vocês não têm esse tipo de
necessidade, mas lá no Brasil às vezes vem uma falar assim pra mim “pastora,
ora por mim, eu tô passando por uma luta terrível, eu não tenho nada pra
comer”. “Onde que você mora, filha?” “Eu moro lá na Baixada Fluminense,
lá em Caxias.” Eu vejo a virtuosa que está mais próxima e pergunto pra ela,
sem esporro lá no grupo, é tudo no privado! O grupo é pra gente orar, se você
tá com algum problema rápido, joga lá no grupo que a gente vai tentar
resolver, mas nesses níveis de muito particular, não precisa colocar lá.
(Pregação no Chá de Mulheres Virtuosas na Espanha, setembro de 2019)

Durante sua estadia na cidade de Calafell, na Espanha, Cristiane compartilhou diversas


transmissões ao vivo realizando orações e eventos em seu perfil no Facebook. A pastora havia
acabado de retornar à Europa pelo segundo ano seguido, após uma visita de quinze dias
realizada no ano anterior por cidades espanholas e italianas. Diversos comentários postados na
live175, cuja gravação estava sendo gerenciada por uma das participantes, comemoravam sua
vitória por mais um trabalho de missão internacional. Em variados momentos, a lente da câmera
do celular recebeu sua atenção e permitiu que ela se dirigisse diretamente às mulheres que a
assistiam do Brasil, para quem agradeceu pelas orações e profetizou por bênçãos e milagres em
suas vidas. As saudações carinhosas, pedidos de oração, brados de glória e aleluias dividiam a
tela com emojis, gifs e corações vermelhos enviados pelas cerca de trinta participantes que
assistiam junto comigo.
Boa parte daquelas que acompanhavam através da tela já haviam estado nos Chás que
Cristiane organizava. Não era a primeira vez que compartilhava minha presença digital no
evento, já que diversas formas de transmitir para quem não estava no local eram frequentes no
grupo. O deslocamento da pastora para realizar o Chá em outros países expandiu ainda mais a
gama de possibilidades digitais a serem exploradas. Se antes podia-se estar no Chá também
através de mensagens de voz, textos, vídeos gravados, registros fotográficos compartilhados
nos grupos de WhatsApp e redes sociais por ela e pelas participantes, a proposta de interação
síncrona das lives despertava a sensação de compartilhar coletivamente sensações visuais e
sonoras causadas nestas experiências.

175
Termo popularmente utilizado no Brasil para se referir às transmissões ao vivo, decorrente da abreviação do
inglês live streaming.
205

No trecho que abre este capítulo, a pastora sugere um encontro adicional. Ao convocar
quem a escuta para uma reflexão sobre a experiência feminina transformadora de estar no Chá
das Mulheres Virtuosas, ela promove engajamentos em redes de ajuda e solidariedade paralelas
e simultâneas ao evento. Através de sentidos de irmandade que baseiam a universalidade dos
modelos congregacionais cristãos, estar no Chá proporcionaria encontros entre diferentes
tecnologias, locais e necessidades, capazes de resolver “problemas rápidos” aos de “nível
particular”, como disse durante a pregação. Do topo da hierarquia do cuidado, a pastora delega
às suas “filhas”, mulheres curadas e restauradas para curar e restaurar outras “irmãs”, posições
de autoridade para ajudar a quem precisa.
Ao mobilizar multimeios para incentivar elos entre as participantes, Cristiane apresenta
uma das formas como os eventos agem enquanto dispositivo nestas coletividades de mulheres.
Como parte de um conjunto de ações que se constroem enquanto evangélicos através dos
eventos e mídias (SANT’ANA, 2017; MACHADO, C., 2020b), seus grupos de oração no
WhatsApp e os Chás compõem aquilo que forma a unidade do Ministério/Projeto/grupo
Mulheres Virtuosas. O presente capítulo se detém sobre os circuitos de eventos como Chás,
Conferências e Congressos de mulheres, espaços em que estive durante a maior parte do tempo
da modalidade presencial do trabalho de campo, para explorar como estes circuitos fazem
coletividades evangélicas e constroem espaços de socialidade entre mulheres.

Imagem 16: Gravação de áudios das pregações durante um evento por uma fiel

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Entre os variados espaços em que estas categorias são disputadas, os eventos apresentam
situações sociais (GLUCKMAN, 2010) que permitem visualizar outros ângulos do diagrama
206

relacional que forma o ministério como unidade analítica da tese. Se nos capítulos anteriores
apresentei o Chá das Virtuosas enquanto uma destas situações que permitiam visibilizar
conflitos em torno do Ministério, desta vez exploro os preparativos do Chá, suas principais
dinâmicas de organização e nossas circulações em outros eventos voltados para mulheres com
os quais ele se relacionava.
Os circuitos dos eventos realizados em lares das mulheres, em diferentes igrejas, arenas
e ginásios permitiram explorar cenas, trajetórias e narrativas que indicaram modos como as
interlocutoras constroem políticas da diferença nas disputas pela autoridade pentecostal.
Começando por um grande evento voltado para mulheres ocorrido em um ginásio da capital
paulista e promovido pela denominação do casal de pastores, a Igreja Missões, investigo nesse
capítulo o conjunto de “formações estéticas” (MEYER, 2019a) que constitui as disputas pela
“unção”, termo frequentemente utilizado no contexto pentecostal para fazer menção ao poder
que reveste a autoridade religiosa.
As diferenças entre distribuir, receber e ter a unção fornece autoridades que posicionam
hierarquias nesse contexto. A dinâmica dos eventos possibilitou conhecer, por sua vez, como
atributos de raça e gênero são agenciados em novas hierarquias, como entre a bispa (maior
liderança feminina da Igreja Missões) e a pastora Cristiane, entre a bispa e as membras desta
igreja, e entre a pastora e as membras da Missões, tanto aquelas que faziam como as que não
faziam parte do grupo das virtuosas. A análise destas relações demonstrou movimentos
dinâmicos e performativos para as distintas posições ocupadas pelas interlocutoras nos circuitos
dos eventos, posições que também se alteravam para Cristiane e seu marido Bruno como
pastores voluntários na Missões, a depender da situação.
Exploro neste capítulo como as interlocutoras interagem, criam fronteiras e promovem
condutas da virtude feminina evangélica a partir de duas direções complementares: de um lado,
em negociações institucionais realizadas pelo casal de pastores para a realização do Chá na
igreja Missões e as transformações ocorridas no evento ao longo do período em que estive no
trabalho de campo; do outro, analisando como performances para atingir o poder que reveste a
unção no interior do Ministério se relacionam com aquelas encontradas em outros eventos
voltados para mulheres frequentados pelas interlocutoras, nesta fase da pesquisa todas
integrantes do grupo.
Destaquei, nesse sentido, os agenciamentos em torno da corporeidade pentecostal
feminina por meio das disposições atingidas em vestimentas, cabelos, gestualidades, entonação
de vozes em testemunhos, pregações e louvores. O exercício da virtude pentecostal encontrada
nestes elementos articula modelos de feminilidade que atuam como figuras, referências
207

coletivamente compartilhadas em discursos pentecostais e performatizadas na vida ordinária


como boas ou más, “virtuosas” ou “feiticeiras”, parte da igreja ou “do mundo”. Na medida em
que estas disposições parecem refletir binarismos que posicionam tradição bíblica de um lado
e modernidade secular de outro, atentar para as performances revelou ambivalências que
frequentemente articulam instâncias da vida tomadas como opostas.
Como indica Diana Taylor (2012), na medida em que se apresentam como
simultaneamente “reais” e “construídas”, performances nos permitem observar relações entre
discursos que foram historicamente separados e postos como independentes. Ao situar sua
noção de performance como atos incorporados com “espaço e tempo determinado”, Diana
Taylor (2012, p. 38) segue a proposta analítica de Richard Schechner (2012) em considerar
estes atos enquanto comportamentos ritualizados. Postas em ação, as performances ganham
capacidades de transmissão de conhecimentos através do corpo, encenando realidades paralelas
às que os sujeitos vivem em seus cotidianos.
Com o objetivo de compreender performances enquanto aquilo que “desliza” (MEYER,
2019b) entre as tensões dos supostos reais e construídos, trago elementos que compõem cenas
e entornos do cotidiano da religião vivida através das materialidades. Objetos, roupas,
acessórios, locais escolhidos para realização de rituais materializam formas de se comunicar
que muitas vezes não são verbalizadas e coletivizam ações entre mulheres pentecostais. A partir
das gestualidades, expressões faciais e posturas de quem se põe em oração, pregação e
adoração, busquei analisar como se fazem os corpos que habitam a circulação por eventos
partilhados em coletividades de mulheres evangélicas que se constituem em circuitos de fama
e outros formatos de Ministérios.

4.1 “Existe bispa preta?”

Em agosto de 2017, acompanhei o mais importante evento voltado para mulheres da igreja
Missões. Naquele ano, ele estava em sua quinta edição e seria realizado em um ginásio
localizado na região central da Zona Oeste paulistana. No espaço daquele mesmo ginásio,
eventos de outras igrejas, sobretudo as de grande porte, costumavam ocorrer com frequência.
O itinerário até o local do evento ocorreria através de ônibus fretados que sairiam de diversas
sedes da igreja distribuídas pelo Brasil. Ao chegar a uma das sedes cariocas da Missões no
horário marcado, atentei para o fato de que, além da passagem, a maior parte das fiéis também
havia adquirido uma camiseta em cor lilás, de tecido semelhante aos abadás utilizados em
grandes eventos musicais. Nela, letras grandes estampavam o nome e ano do evento.
208

As divisões sobre como o ônibus seria ocupado começaram ainda na igreja. Naquela
madrugada, além de membras e fiéis que participariam do evento, estavam presentes diversos
pastores e pastoras, entre eles o líder do Ministério das virtuosas e marido da pastora Cristiane,
o pastor Bruno. Ao me avistar, ele convidou duas adolescentes que também viajariam para
“cuidarem de mim” no trajeto. Para minha surpresa, nem ele nem a pastora Cristiane iriam para
o evento, o que só descobri pouco antes de embarcar. Nas últimas semanas, havíamos
conversado diversas vezes sobre nossas expectativas para o evento, alimentadas por
propagandas do Congresso em imagens e vídeos que circulavam vigorosamente nos grupos de
WhatsApp das virtuosas e redes sociais do casal de pastores. Em sua justificativa, enviada via
mensagem de texto, Cristiane me contou que não teria condições financeiras para arcar com os
custos da viagem176.
Ao longo do trajeto que fiz ao lado das adolescentes e suas mães, conversamos
majoritariamente sobre assuntos relacionados à membresia da Missões. As primeiras atuavam
na igreja como obreiras, e suas mães, como intercessoras. Das duas edições dos Chás que eu
havia frequentado antes dessa data, lembrava ter já visto as adolescentes entre o público. Ao
me apresentar e informá-las de que eu estava acompanhando aquele evento como pesquisadora,
comentei sobre estas ocasiões, mas elas tiveram dificuldades para lembrar a qual evento eu
estaria me referindo. Assim, associei o Chá ao nome da pastora, ao que, imediatamente, uma
das adolescentes perguntou para a outra: “Quem é pastora Cristiane?”. A resposta indecisa de
sua colega fez com que eu continuasse fornecendo mais referências sobre Cristiane: “ela é
pastora da igreja Missões e lidera um grupo de mulheres, as virtuosas”. Imediatamente, uma
delas me interrompeu e disse que lembrou quem era, seguida da afirmação de que Cristiane
“não seria bem pastora de lá”. Sua mãe, por sua vez, confirmou as impressões da filha e afirmou
conhecer a pastora apenas “de vista”.
Era o início do trabalho de campo e, naquela ocasião, resolvi não adentrar nesta questão
para não atrapalhar minha proximidade com a pastora, evitando investir publicamente numa
possível controvérsia sobre sua ocupação do cargo pastoral na igreja. No decorrer da etnografia,
compreendi que a não oficialidade do cargo que Cristiane e outras pastoras que, assim como
ela, naquela ocasião também atuavam como “voluntárias”, tanto gerava desvantagens em
relação às outras pastoras como permitia uma circulação fora da igreja com menos controles

176
Embora não tenha havido cobrança de ingressos, paguei o valor de cento e cinquenta reais para o ônibus, que
cobria trechos de ida e volta. Muitas mulheres que foram na caravana adquiriram, além da camiseta, que tinha o
custo de cinquenta reais, ingressos para uma área VIP localizada próxima ao palco.
209

institucionais. Um de seus efeitos, nesse sentido, seria sua própria negativa em participar do
evento. Além das dificuldades financeiras que relatou, o conhecimento que obtive
posteriormente sobre suas relações com a igreja me leva a crer que ali também havia a força de
escolhas institucionais, privilegiando o financiamento de pastores e pastoras “oficiais” em
grandes eventos 177.
Durante o trajeto para São Paulo, eram as pastoras oficiais que ocupavam a função de
animadoras do grupo. Elas gravavam vídeos frequentes ao celular, pedindo para que as
participantes no ônibus repetissem em uníssono a frase tema daquela edição do evento: “Somos
mulheres transformadas para transformar”. Em meio às brincadeiras sobre suas insistências pela
participação das fiéis na gravação de um vídeo da caravana do Rio de Janeiro, a ser exibido nas
redes sociais da bispa e maior liderança feminina da Missões, uma movimentação ao fundo
entre as mães das adolescentes que eu acompanhava chamou minha atenção.
A efusividade do grupo, presente em falas animadas e camisetas do evento decoradas
com paetês, brilhos, cortes que se adaptavam ao formato do corpo, farto uso de maquiagens e
acessórios, foi interrompida após um elogio de uma fiel para outra e respondido por uma terceira
fiel:

[A] Você está chique, parecendo a bispa!


[B] Bispa preta? Existe bispa preta? (risos)
[C] Não existe bispa preta, gente! (mais risos)

O tom retórico da resposta em formato de questão, colocada de modo sarcástico e


descontraído, provocou risadas que instantaneamente também instauraram um cenário de
rápido desconforto marcado pelo silêncio do grupo. O gelo, no entanto, logo pôde ser quebrado
com a mesma espontaneidade que acompanhou as interações entre as fiéis, evocando outros
comentários sobre o assunto. Desta vez, eram reclamações que empregavam o acento
semelhante de deboche para descrever suas maquiagens, cuja diferença no tom não se adequava
às cores de pele preta ali presentes e, em sua maioria, deixava as mulheres com rostos
embranquecidos por cores de bases e pós compactos mais claros.
Tais comentários, nesse sentido, pareciam complementar o flagrante tom denunciatório
da pergunta retórica anterior, indicando o riso como principal mediador racial e de gênero na
cena. Eles indicavam para possíveis agenciamentos realizados pelas fiéis em relação à

177
Sobre as divisões de cargos nesta igreja, incluindo diferenças relativas às funções e pastores “oficiais” e
“voluntários”, ver o capítulo 2 desta tese.
210

concretude de dados que saltavam aos olhos desde o início do trabalho de campo, quando notei
que tanto a bispa como as pastoras que nos acompanhavam na caravana, ao contrário da grande
maioria das mulheres no ônibus, eram brancas. Se noutros capítulos da tese o riso foi analisado
como elemento aglutinador para mulheres evangélicas continuarem falando de sexo na
interação com artigos eróticos, a evidente racialização na resposta sobre a autocomparação feita
por uma fiel com sua maior liderança feminina evidenciava abismos que o majoritário silêncio
que enfrentei a respeito ao longo da etnografia aqui se demonstrava de outras formas.
Em nenhum dos casos as diferenças que pesam sobre gênero, raça e classe passavam
despercebidas entre minhas interlocutoras. Retomarei mais tarde a este ponto para descrever
tentativas de diálogo mais direto sobre o assunto, as quais se somaram às análises que busquei
explorar de tais articulações através de formas como adquirem visibilidade e para além da
linguagem verbal, nos repertórios visuais, sonoros e táteis presentes no evento. Muitos deles,
por sua vez, podem ser encontrados mais amplamente em circuitos pentecostais
contemporâneos de grandes igrejas, dos quais a Missões fazia parte.
Meu objetivo em investigar estes circuitos que reverberam em colocações eticamente
implicadas sobre “não existir bispa preta” teve como objetivo apontar para a administração que
as interlocutoras fazem destas interações, o que não incorreu simplesmente em destacar
continuidades e distanciamentos. Tratou-se, nesse sentido, de refletir sobre estas e outras
implicações éticas que incidem em suas escolhas por se manterem nestas igrejas, trocarem ou,
como informa a trajetória do casal de pastores que acompanhei ao longo da tese, adotarem
modelos alternativos de exercício do pastorado.

4.1.1 Pelos circuitos político-midiáticos da fama gospel

Ao chegarmos ao ginásio que comportou o evento, fomos recepcionadas por filas de


membras da igreja Missões que, trajando a mesma camiseta lilás que avistei na caravana,
colocaram pulseiras da mesma cor em nossos punhos. Adentramos no espaço ainda de manhã
cedo, embora a aguardada apresentação da bispa estivesse marcada para iniciar no meio da
tarde. Suportes suspensos traziam câmeras que se movimentavam acima do público,
transmitindo instantaneamente ângulos aéreos do evento para um canal de TV e do YouTube
da igreja. Gradualmente, os lugares na arquibancada começaram a ser preenchidos por mulheres
que seguravam faixas com dizeres que as vinculavam a diferentes cidades do Brasil: “Minas
Gerais com a Bispa”, “Mulheres da Missões Sorocaba presentes”. Fixadas às grades de proteção
no andar superior, também havia faixas em materiais e fontes padronizadas com propagandas
211

de campanhas para dizimistas, além de uma loja de roupas femininas vinculada à igreja Missões
e liderada pela bispa Flávia.
Pouco antes da atração principal do evento, a capacidade máxima de cinco mil pessoas
já estava quase atingida e interagia animadamente com atrações musicais e pregações de
pastoras da igreja que a precederam. Entre as apresentações, houve também a de um membro
da igreja Missões que atuava como vereador no município do Rio de Janeiro. A justificativa
que o teria levado ao palco naquele dia foi dita ao longo de seu breve discurso e recepcionada
pelo público com efusividade: “Vamos colocar o dia da igreja Missões no calendário do nosso
município!”.
As articulações com a política institucional partidária acompanhavam, por sua vez,
propostas de expansão que espelhavam a própria projeção da igreja Missões no cenário
nacional. Se naquela edição do evento atrações bastante conhecidas, como a cantora Elaine
Martins e o deputado federal Marco Feliciano, estavam programadas para encerrar a noite,
noutras haviam passado nomes da música gospel como Fernandinho, Bruna Karla, Cassiane,
representantes da política institucional como o ex-senador Magno Malta, e outros que já
conjugaram sua atuação nos dois espaços, como a ex-deputada federal Flordelis. Nestes grandes
eventos promovidos pela igreja e ocorridos em anos anteriores e seguintes à edição em que
estive, houve também a presença de pastores reconhecidos no cenário pentecostal transnacional,
como Benny Hinn178 e Cindy Trim179.
Para além de analisar os efeitos da presença em si destas personalidades políticas e
midiáticas, investi em considerar modos como eventos como este produzem mediações que
borram as fronteiras entre domínios frequentemente estabelecidos enquanto parte do religioso,
secular e político. Aqui, dialogo mais diretamente com o que Carly Machado (2020b) propôs a
respeito das estéticas e performances de poder presentes na formação de redes e práticas
políticas em ministérios pentecostais. De formas distintas, tanto a igreja Missões como o grupo
das virtuosas que analiso nesta tese se articulam em modalidades de Ministério, formando
aquilo que a autora chamou da “estética da política pentecostal”.

178
Televangelista nascido em Israel que construiu sua carreira como uma das mais influentes lideranças
contemporâneas no pentecostalismo. A posição central ocupada por este líder religioso se encontra amplamente
debatida por seu papel na produção massificada de uma linguagem pública nesse contexto, cuja retórica vincula a
história pessoal enquanto ferramenta de conversão (ALVES; COSTA, 2018).
179
Ex-senadora de Bermudas, a pregadora é uma mulher negra que lidera seu próprio ministério, o Cindy Trimm
Ministries International. Diferente de Benny Hinn, esta personagem ganhou notoriedade mais recente e por meio
da disseminação no cenário gospel de seus vínculos com o termo “empoderamento”. Sua presença chama a atenção
para como a ascensão de lideranças femininas negras nestas grandes denominações brasileiras pode estar
ocorrendo através de fluxos transnacionais do pentecostalismo.
212

Na medida em que a análise de Machado articula uma compreensão dos ministérios


como projetos políticos periféricos e cuja visibilidade é construída de modo inseparável da
dimensão sonora das mídias, investiguei como as materialidades de roupas, acessórios e
corporalidades na apresentação de si da liderança e das fiéis reverberava experiências com a
música gospel nesse contexto. Refletir sobre os efeitos sensoriais provocados no Congresso de
mulheres pôde indicar como estes elementos estiveram profundamente articulados às
dimensões interseccionais do público. A longa duração do evento 180, sua periodicidade anual e
realização em um sábado, dia típico para realização de festividades nas igrejas pentecostais,
amplificava ali, através da presença da música, parte de sensações e movimentos corporais que
compõem a centralidade das dinâmicas cotidianas no espaço dos templos.
Sua plateia, quase exclusivamente formada por mulheres majoritariamente negras,
contava com o auxílio de pastoras de diversas filiais da Missões que circulavam constantemente
para evitar acidentes entre aquelas que “entravam no manto” 181, inebriadas ora pelas melodias
dos “corinhos de fogo”182, ora por músicas cristãs contemporâneas em estilo worship183. Esta
amplificação de sensações em corpos que dançavam, choravam e falavam em línguas se tornou
ainda maior durante a aguardada entrada da bispa, que contou com piscar de luzes em grandes
holofotes posicionados no palco e o aumento do volume do som de uma música especialmente
composta para o evento, agora cantada por ela. Combinados a isso, efeitos pirotécnicos
despejavam faíscas em pastoras que acompanhavam imediatamente em frente ao palco,
sentadas em cadeiras de plástico e separadas do público por um gradil de isolamento:

Trajando um vestido longo cintilante em cores do mesmo tom da camiseta


usada por mulheres da caravana e da plateia, a bispa combinava em sua
imagem corporal uma maquiagem que evidenciava tons vívidos de sua sombra
e batom aos cabelos lisos, longos e louros. Sua voz firme e entonação
imperativa chamavam mulheres da plateia para subirem ao palco e receberem
curas e milagres, incitando palavras de ordem contra o Diabo. Além das
interações com a plateia, ela também conversava constantemente com quem

180
As portas do ginásio se abriram por volta de 9 da manhã, mesmo horário que chegamos em caravana junto a
outras mulheres de diversos estados do Brasil. A última atração foi finalizada por volta de 10 da noite.
181
A expressão êmica também funcionava como sinônimo de “reteté” (ver nota 86, página 86, no capítulo 1 da
tese).
182
Estilo musical caracterizado pela presença de traços semelhantes ao forró, os corinhos passaram a ganhar maior
popularidade em denominações brasileiras resultantes de modelos que se multiplicam em filiais presentes nas
periferias brasileiras e vinculadas ao avivamento pentecostal, a exemplo da Assembleia de Deus.
183
Derivado do termo em inglês “adoração”, worship é um movimento que ganhou proeminência a partir da
propagação em grandes denominações norte-americanas. Suas mediações estéticas com o sagrado têm oferecido
uma tendência musical que traz melodias com poucas notas e ritmo lento, além do apelo aos ambientes escuros
que contrastam com a iluminação de telões que podem ser notadas em diferentes denominações pentecostais que
se baseiam na proposta deste movimento. Estas ações de dimensão globalizada, por sua vez, têm sido interpretadas
enquanto parte de experiências geracionais voltadas para a juventude (AGUIAR, T., 2020).
213

acompanha ao vivo de casa, pela TV e internet. Letras das músicas eram


recitadas para as lentes das câmeras que a acompanhavam no palco. Em
determinados momentos, faz o movimento de aproximar sua palma da mão
para a câmera, dizendo: “toca na minha mão pela fé”. Logo atrás da bispa, há
duas filas repletas de mulheres e alguns homens que a acompanham nas
músicas e vestem uma túnica semelhante às utilizadas pelos integrantes de
corais, também na cor roxa. (Trecho do diário de campo, agosto de 2017)

Além de combinações geradas pelos tons de cores das roupas da bispa e das fiéis, que
buscavam produzir a unidade ao conjunto de mulheres do evento, boa parte do público também
portava um manto de oração, assim como o vestido pela bispa logo no início de sua
apresentação. Transpassado ao ombro direito e por cima do vestido, o tecido em tom vermelho
escuro e de textura grossa cobria boa parte de seu corpo, até a altura dos joelhos. Da plateia,
grande parte das mulheres também vestiam o manto da mesma forma, enquanto outras o
trajavam com as duas pontas voltadas para a frente ou cobrindo a cabeça nos momentos em que
a abaixavam para orar. O manto, assim como outros produtos vendidos pela loja de roupas
femininas da bispa, também poderia ser comprado no local.
Tais contiguidades materiais e temporais com shows, espetáculos artísticos e eventos
políticos apontam para conexões e abismos que ora unificavam, ora diferenciavam as mulheres
presentes no evento. A sensação de estar dividindo um espaço com celebridades do universo
evangélico remete ao que Maria Claudia Coelho (1999, p. 30) descreveu em sua etnografia
sobre a experiência da fama na modernidade como “uma versão esmaecida da glória”. A bispa
Flavia era a segunda liderança de uma grande igreja, estando abaixo somente de seu marido, o
Bispo Jonas. Ex-pastor da IURD, Jonas fundou a igreja Missões em 2006 e ganhou notoriedade
através de programas de rádio e TV, assentando a principal sede da igreja no bairro do Brás.
Enquanto fenômeno da comunicação de massa, as materialidades, midiatizações e
divisões dos espaços ocupados pela bispa e pelas pastoras neste e outros eventos 184 que
acompanhei através dos circuitos evangélicos femininos demonstram maneiras como dinâmicas
de renome e sucesso dialogam com a “possibilidade de singularização” oferecida pelos
“pressupostos de uma sociedade igualitária” (COELHO, 1999, p. 31, 32). A partir da leitura
feita por Roberto DaMatta (1979 apud COELHO, 1999) sobre a categoria norte-americana very

184
Além de dois eventos anuais voltados para mulheres, o calendário de eventos da igreja Missões também contava
com outros congressos e comemoração do aniversário da igreja e de sua principal liderança, o bispo. Pude
acompanhar remotamente também a maior parte da programação diária, que estava formada por campanhas de
jejum, oração e Santa Ceia realizadas com ampla divulgação nas redes sociais, emissoras de rádio e TV.
214

importante persons (VIPs), Coelho indica maneiras como estes pressupostos se sustentam nas
noções de predestinação e ascensão social para construir suas diferenciações:

Desse modo, o sucesso (outra variante para o renome) aparece como algo que
não depende tanto de um empenho ou talento especial, mas do acaso que elege
alguns. [...] Assim, a sociedade igualitária recusa o estabelecimento de
hierarquias fixas, ao mesmo tempo em que se permite estabelecer
diferenciações entre seus membros em função de qualidades singulares a eles
atribuídas (COELHO, 1999, p. 31, 32).

Ao mesmo tempo que estas características remetem a argumentos que não são novos a
respeito da mobilidade provocada pela ascensão social no cristianismo evangélico que adere à
teologia da prosperidade, também vale ressaltar tensões provocadas tanto por agenciamentos
feitos pelas fiéis como pelas próprias características relacionais da fama. Lembrando da clássica
formulação weberiana de carisma, ainda é Coelho (1999) que contribui para pensar como o
“estado fusional” produzido pelo carisma pode tanto ser interpretado como amor, inerente à
força mágica e transcendente do mana, quanto distante da experiência amorosa, na medida em
que o amor é positivamente valorizado e “o fascínio pelo líder carismático é geralmente
execrado e considerado patológico” (COELHO, 1999, p. 76).

Imagem 17: Evento realizado pela igreja Missões em ginásio na Zona Norte do Rio de
Janeiro, RJ

Fonte: Acervo da pesquisa, 2018.


215

Ainda na ocasião do evento da caravana, notei outros distanciamentos aliados aos


abismos raciais manifestados pela fala de uma integrante da caravana que trouxe anteriormente.
As adolescentes que me acompanhavam no ônibus da caravana, que me contaram ser sua
primeira vez no evento, não permaneceram conosco em nenhum momento. Assisti a todo o
Congresso ao lado de suas mães e, nos momentos que saíamos para usar o banheiro ou se
alimentar, encontrávamos ambas sentadas em bancos de lanchonetes do ginásio.
Nossos comentários destinados a elas sobre a programação do evento eram
recepcionados com feições de cansaço e afirmativas de que gostariam de não ter que aguardar
o ônibus da caravana para irem embora. Evitei pedir maiores explicações por entender que
poderia gerar a exposição de questões sensíveis sobre relações com a igreja que não seriam
adequadas ao momento e ao meu vínculo inicial com elas. Ressalto estas cenas com o objetivo
de indicar como este dado relaciona o público deste evento a outros projetos de engajamentos
pentecostais forjados nas institucionalidades.
Eventos e palestras em que as mulheres são público-alvo, nesse sentido, envolvem
grupos etários e práticas de cuidado de si presentes em variados contextos evangélicos. Em sua
análise sobre o desafio Godlywood, vinculado à IURD, Jacqueline Teixeira (2016, p. 243)
indicou como as distinções etárias também oferecem temáticas abordadas em três grupos: às
fases jovens cabia a preparação “para o casamento e para as chamadas responsabilidades da
vida adulta”, enquanto sobre as fases adultas recaía o “investimento no cuidado com o corpo,
bem como nas atribuições consideradas femininas”.
Além das diferenças deixadas pela distância geracional evidenciadas através da fala das
adolescentes que acompanhei na caravana, as distintas experiências de gênero que envolvem
interações entre lideranças e fiéis também indicaram desafios constantemente agenciados pelas
interlocutoras. Diana, 35 anos e diaconisa na Missões com quem convivi por também fazer
parte do Ministério das Virtuosas, chamou a atenção em nossa entrevista para a forma como
era tratada por suas lideranças durante os momentos em que prestava auxílios enquanto membra
da igreja. Ela me contou que, ao contrário dos cultos liderados por pastoras, de modo geral com
os pastores há mais “correria” e “exigências” feitas aos membros da igreja. A diaconisa narrou
se sentir “mais cansada” nos cultos liderados por homens, momentos em que sua atenção estaria
inteiramente voltada a incessantes pedidos dos pastores por objetos destinados aos atos
proféticos, envelopes para guardar o dinheiro dos dízimos e ofertas, e “maquininhas” para
cartões de crédito.
Por outro lado, Diana argumentou que “aprende mais” ao auxiliar cultos liderados por
pastoras. Sua tranquilidade e maior abertura à escuta da Palavra por não “estar na correria”
216

durante estas ocasiões também diz respeito de outros aspectos ressaltados por ela: ao contrário
dos homens, as pastoras seriam consideradas “mais populares” e “pregam de uma forma mais
fácil e humilde”. No entanto, um trecho de sua fala chama a atenção para alguns elementos que
estariam freando o avanço da popularidade das pastoras. Além das divisões temáticas que
incidem sobre suas pregações, em sua maioria sobre a “vida sentimental”, que esvaziavam a
presença masculina dos bancos das igrejas durante seus cultos, as pastoras só poderiam pregar
na sede e nas filiais da igreja às terças-feiras:

Geralmente, eles falam que é culto das mulheres, mas é um culto pra todo
mundo! Eles têm muito isso, se é uma pastora que faz o culto, aí os homem
meio que recua. Eles falam assim “ah, é um culto pra vida sentimental”. Não!
Eu, por exemplo, quando tava desempregada, Deus abriu a porta num culto de
terça! Uma palavra que foi lançada sobre o altar, eu tomei posse, no dia
seguinte o telefone tocou. Então assim, não é um culto, as pessoas “ah, é um
culto voltado pra vida sentimental”, não, é todas as áreas! [...] Os nossos cultos
com os pastores ou bispo é uma correria! Às vezes você não consegue nem
saber o que tá pregando. E o culto de terça é um culto que você consegue, tipo,
sentar, ouvir, buscar... então assim, você acaba aprendendo muito mais do que
num culto, tipo assim, dos homens, dos pastores, que é um culto bem corrido.
(Entrevista com Diana, realizada por chamada de vídeo no WhatsApp em
27/01/2021)

Mais do que homogeneizar distinções entre as exigências feitas por homens e mulheres
que lideram os cultos, as queixas de Diana complementam importantes diferenciações
institucionais em relação ao gênero que notei através dos materiais institucionais produzidos
pela Missões. Além de uma orientação destinada a todas as filiais e à sede que limita suas
participações a somente um dia da semana, a instituição não conta com investimentos oficiais
para a formação feminina em cargos eclesiásticos. O exemplo mais significativo nesse sentido
se relacionava ao status ocupado pela bispa, cuja posição era sempre lembrada como inferior à
de seu marido na hierarquia da igreja. Dos eventos que compõem o calendário oficial da igreja
consta, por exemplo, uma celebração anual do aniversário do bispo Cláudio, o único membro
do casal a ter esta ocasião publicamente celebrada enquanto parte das festividades.
A partir de elementos que a igreja divulga para além dos eventos, pude observar que há livros
da editora da Missões voltados aos pastores e às “esposas de pastor”, mas não às pastoras.
Mesmo para autoras de diversos livros, todos com temáticas voltadas ao universo feminino
evangélico, a carreira pastoral entre as mulheres não recebia incentivos institucionais nesse
contexto. Além disso, ser “esposa de pastor” era categoria considerada inferior em relação às
217

pastoras, sendo acionada de modo mais frequente para demarcar a importância da aliança do
casamento no exercício das relações pastorais do que como liderança feminina185.
A atuação de mulheres pentecostais nos púlpitos indica dados importantes para traçar
diferenças entre as categorias que a posição pastoral assume nesse contexto. Além de Cristiane,
outra pastora que entrevistei em sua própria igreja, uma Assembleia de Deus localizada na Zona
Norte carioca, me contou que ser pastora tem um peso maior do que ser “esposa de pastor”.
Segundo a pastora Janete, mulher negra e casada de 47 anos, a esposa de pastor “não tem nome,
perde sua identidade” ou acaba virando “missionária”186. Esta perda referida por Janete se
assemelha ao que Roberta Campos (2011) afirmou sobre a liderança exercida em casal no
pentecostalismo operar como metonímia, e não metáfora do carisma. Considera-se que o
carisma, nesse sentido, deva partir do líder e pastor, enquanto a esposa e os filhos “comem do
carisma do líder” (CAMPOS, 2011, p. 1023).
O frágil protagonismo exercido pelas mulheres no prestigioso âmbito das grandes
denominações pentecostais era ainda mais difícil para as mulheres negras. Até onde pude ter
acesso através de redes oficiais da Missões e em minhas circulações etnográficas, não encontrei
nenhuma pastora negra em sua configuração oficial. Se no caso dos pastores havia homens
negros ocupando estes espaços, somente as ocupações voluntárias contavam com pastoras
negras, a exemplo de Cristiane. A desproporcionalidade representativa entre pastores e fiéis que
observei durante a pesquisa não reflete, no entanto, uma recepção acrítica por parte da
membresia e das lideranças com quem tive contato. Em uma ocasião que acompanhei o casal
durante uma de suas pregações, a falta de representatividade midiática “morena”, como
costumava se apresentar publicamente, é questionada por Cristiane: “na Disney não tem
nenhuma princesa da minha cor, assim, morena, né?”, comentou em tom de brincadeira,
provocando risos tímidos da plateia. Além disso, era a ela que a maioria dos convites para
participação em eventos que acompanhei estavam destinados, e não ao casal ou ao pastor Bruno
individualmente.
Nas ocasiões em que conversamos mais diretamente sobre os atravessamentos da
identidade racial em sua carreira pastoral, Cristiane não atribuiu à sua cor negra possíveis
insucessos em sua progressão no cargo. Em muitas situações narradas por ela, a ênfase na cor

185
No espaço de outra igreja pentecostal em que acompanhei uma pregação da pastora Cristiane ao longo do
trabalho de campo, pude identificar mais uma ocasião em que o gênero condiciona diferenças hierárquicas a estas
experiências religiosas. Na placa de entrada da igreja, havia a seguinte inscrição: “Pastor Fulano (Presidente) &
Pastora Fulana”.
186
Entrevista realizada presencialmente em 16/05/2018.
218

da pele não era um atributo que hierarquizava seu lugar na igreja ou noutros espaços por onde
circulava. Em lugar disso, seu destaque se dava em torno da falta de “coragem” e “autoestima”
que acabariam atrelando pessoas negras aos lugares de inferioridade social. Exercer o pastorado
sendo mulher, por sua vez, era reconhecido como obstáculo que ela havia superado ao adentrar
a Missões. Cristiane agradecia ao bispo pela concessão para que as mulheres exercessem maior
liberdade e conseguissem ter “empoderamento”.
Ao relacionar uma aposta metodológica pela análise interseccional com as narrativas de
questionamento sobre ser “bispa preta”, os trajetos percorridos por Diana, Cristiane e Janete e
as observações participantes nos eventos para mulheres em que os circuitos da fama se
desvelam, pude compreender outros modos pelos quais processos generificados e de
racialização se constituem nos percursos evangélicos. Não se tratou, nesse sentido, de
interpretar como contradições variadas práticas que não são lidas como tal por quem as realiza
(LAMBEK, 2016), ou de trazer dados que indiquem como as interlocutoras reagem ou
“resistem” às opressões, abordagem que constitui o alvo da crítica central das reflexões de Saba
Mahmood (2005, 2006). Como venho argumentando ao longo da tese, tratou-se de identificar
maneiras como os agenciamentos destas mulheres as tornam evangélicas, no sentido do que
fazem seus atos de fala (AUSTIN, 1962) em constantes movimentos de tensões e limites a
serem fincados.
Destaco, assim, como essas tensões se faziam presentes nas relações estabelecidas com
ambientes e pessoas prestigiosas, aqui apresentadas no Congresso de mulheres e na figura da
bispa Flávia. O engrandecimento investido no trabalho com as luzes e efeitos pirotécnicos,
também encontrados na decoração do palco e no cintilante vestido longo e colado ao seu corpo,
apresentam elementos que dialogam com a forma como a bispa buscava dialogar com suas
seguidoras através da apresentação de sua imagem pública. As roupas e acessórios utilizados
por ela em diferentes aparições públicas, desde cultos a momentos de lazer em que posta selfies
em suas redes sociais, pertencem à sua própria grife, uma marca de roupas e acessórios voltada
somente para mulheres.
Na apresentação do site da grife, vinculado ao site oficial da igreja, a marca se apresenta
como “moderna” e dedicada a “levar o amor de Cristo” através de seus produtos. Além de
roupas e acessórios femininos, diversos itens utilizados por lideranças e membros durante os
cultos são vendidos, como talits, livros, bíblias e essências. É importante ressaltar, nesse
sentido, que o fato de não haver uma iniciativa similar com enfoque no público masculino
liderada pelo bispo informa sobre como este é um investimento que importa a nichos de
consumo consolidados enquanto parte de um “mercado evangélico” (GIUMBELLI, 2007).
219

Na medida do que foi possível acompanhar sobre a interação em cultos realizados pelas
lideranças187, as estéticas compartilhadas pela bispa e seus efeitos de ascensão social são parte
significativa das dinâmicas de gênero, raça e classe estabelecidas com as fiéis. Nas roupas de
membras que acompanhei na caravana, a mimetização daquilo que nela era considerado
“chique” e a comparação com a bispa reverberava, para além daquela situação, em elogios que
escutei de uma interlocutora sobre as formas de se vestir da bispa se mostrarem desejadas:

Ela é uma mulher bonita, né? Bonita, bem-vestida, bem arrumada... então todo
mundo quer! Nossa, quem não quer ser a bispa? Ícone de beleza, a mulher é
bonita, bem maquiada, bem arrumada. Eu então, que adoro uma peruíce,
misericórdia, você vê tanta pedra na roupa dela! [...] Se você ver as outras
bispas, tudo no terninho, tudo no tailleur! (risos) Tudo assim, chique no
último, meu amor! Ela, não, é aquela árvore de Natal! (risos) E a mulherada
pira porque, no fundo no fundo, todas querem ir nesse nível! (Mensagem de
voz enviada no WhatsApp, dezembro de 2019)

Em notícias veiculadas na imprensa, sites de entretenimento gospel e comentários de


suas postagens em redes sociais, a bispa e seu marido não recebiam este mesmo tratamento. O
casal era frequentemente associado a termos como “hereges”, “charlatões”, “mercadores da fé”
e lembrado por acusações de “idolatria” e polêmicas financeiras que ganhavam ampla
repercussão nacional. Embora não considere que as membras encarassem este tipo de assunto
como um tabu188, códigos morais tácitos que envolviam vigilâncias e evitações eram defendidos
para se preservar de polêmicas nesse sentido. Um deles, por exemplo, era a recomendação que
ouvi de muitas fiéis de que os(as) pastores(as), de modo geral, não deveriam expor riquezas
materiais publicamente e sobretudo nas redes sociais, para buscar conter acusações de serem
“ladrões” que atingem a muitas lideranças evangélicas.

187
Além de dois eventos liderados pela bispa que estive presencialmente, um em São Paulo e outro no Rio de
Janeiro, acompanhei alguns cultos cotidianos da igreja em transmissões veiculadas ao vivo pelo canal da igreja
Missões no YouTube, as quais ficavam gravadas. Das redes sociais, acompanhei a bispa, seu marido e o canal
institucional da igreja em suas contas públicas no Instagram. Reforço, no entanto, que esta breve análise não se
deteve a compreender discursos da igreja Missões ou práticas e reverberações institucionais entre seus membros,
mas introduzir ao contexto mais amplo em que a pastora Cristiane e parte das mulheres virtuosas estava localizado,
seja como membras fixas ou flutuantes da igreja, seja como visitantes nos Chás, na medida em que foi nesta igreja
que a maior parte dos Chás que acompanhei foram realizados.
188
A circulação do dinheiro em contextos evangélicos pentecostais já recebeu diversos investimentos teóricos nas
ciências sociais da religião (Cf. MARIZ, 1995; SCHELIGA, 2010; SANTOS, L., 2018, entre outras). No campo
de pesquisas relacionadas à IURD, destaco as contribuições de Edlaine Gomes (2011) que indicou este elemento,
junto à política e ao maligno, enquanto parte da tríade do sistema cosmológico iurdiano, além de importante
mediador-ritual. Esta contribuição inspirou diversas perspectivas críticas que extrapolam análises sobre a IURD
em relação aos constrangimentos e juízos de valor com que análises sociais comumente tratam sentidos atribuídos
ao dinheiro na teologia da prosperidade.
220

Para além das regulações relacionadas aos dízimos, ofertas e doações, voltar a atenção para os
vínculos interseccionais com as dinâmicas relacionadas ao dinheiro dialoga com performances
de poder vivenciadas em territórios periféricos brasileiros. Em sua pesquisa sobre o funk
ostentação, Alexandre Pereira (2014) indicou como este estilo musical constitui imaginações
compartilhadas por práticas juvenis que criam universos de luxo para se exibirem como
protagonistas de suas vidas. O autor reflete sobre os modos como sentimentos contraditórios
emergem da relação ambígua estabelecida pelos funkeiros ostentação com a periferia, em que
“há a valorização da origem pobre, mas também a exaltação de práticas de consumo de produtos
de alto valor” (PEREIRA, 2014, p. 12). Pereira explica que estas características ressoam em
avaliações morais que pesam sobre este estilo musical, frequentemente interpretado por setores
intelectualizados e parte dos movimentos sociais como movimento apolítico.
As dificuldades em destacar o caráter transformador da ética da prosperidade encontra
similaridades com os efeitos que pesam sobre a juventude negra destacados pelo autor. O olhar
interseccional sobre o contexto evangélico indica formas de demarcar o merecimento ao acesso
irrestrito aos bens de consumo enquanto parte de agenciamentos que não se resumem a atitudes
estereotipadas. Nas “versões feminizadas da teologia da prosperidade” (GADDINI, 2021, p. 8,
tradução minha)189, mimeses estéticas da ostentação vestida por lideranças buscam construir a
unção da autoridade pentecostal em materialidades complementares aos movimentos do corpo
que ora, louva, adora, “entra no manto”. Assim, estas materialidades que constituem alguém
que parece com a bispa como “chique” falam sobre mobilidades e posições sociais,
interseccionalidades de gênero, classe e território, racializando as estéticas da unção.
Com este argumento, sugiro que nossas análises sobre dinâmicas raciais e de gênero no
pentecostalismo despertem para outras perguntas que não se restrinjam a apontar
embranquecimentos como uma espécie de destino inevitável às identidades raciais entre
mulheres negras evangélicas. Como afirmou Coleman (2018, p. 275), há múltiplas posições
éticas possíveis, e suas articulações mostram como podem ser “mutuamente produtivas”. Nesse
contexto, as éticas da autoridade religiosa que buscam ostentar mantos de oração, vestidos e
acessórios cintilantes se relacionam ao ato de compartilhar ressentimentos sobre não
encontrarem produtos acessíveis para seus tons de pele escuros, assim como promovem ironias
que afirmam retoricamente que naquele espaço “não existe bispa preta, gente!”.
Durante o período em que frequentei os espaços de uma das filiais cariocas da igreja
Missões e seus eventos, notei que a presença esmaecida das pastoras voluntárias negras em

189
No original, em inglês: “feminized version[s] of prosperity theology”.
221

momentos prestigiosos era ocasionalmente nomeada como “braço direito” das mulheres
brancas e mais influentes nesse contexto. Através de demonstrações públicas em que
ostentavam estéticas da unção, as interlocutoras que frequentavam estes circuitos da fama
gospel estavam constantemente demarcando políticas da diferença com a bispa e outras
lideranças brancas e abastadas.
Remeter ao universo da fama e do funk ostentação nesta análise da busca pelo
protagonismo através da exaltação da prosperidade se inspira tanto nas articulações
interseccionais similares entre estes agentes com o campo pentecostal como em trajetórias que
encontrei no próprio trabalho de campo. Conheci um dos poucos casos em que a literalidade da
ostentação também causava impactos positivos nestes processos de reconhecimento quando
acompanhei outro Congresso, ocorrido em um ano posterior. Na ocasião, uma pastora
voluntária190 que se autodeclarava preta me contou ter ido ao Congresso de mulheres usando
uma bolsa de marca de luxo que havia ganhado de presente e, com isso, havia chamado a
atenção “até da bispa”. Naquele dia, a pretendida uniformização institucional foi rompida pelo
que ela chamou de “um detalhe que fez a diferença”. Segundo esta pastora, a bispa havia,
inclusive, citado a bolsa durante sua pregação, indicando que ter uma bolsa cara e da marca em
questão não tornaria “nenhum crente mais apto ao reino dos céus”.
A sensação de fama que ganhou ao ser notada e citada, ainda que de maneira negativa,
durante a pregação da figura mais importante naquele espaço ao ostentar um objeto de luxo não
só fez com que esta pastora recebesse o protagonismo que ansiava. Em sua narrativa, esta era a
única maneira de ser notada por esta e outras lideranças que a “invejavam”. Ser protagonista
desse momento, nesse sentido, fez-se estratégia para que ela alcançasse mais um degrau da
unção que constitui estas autoridades religiosas.
A expressão de inveja nesse contexto é significativa para compreender este sentimento
enquanto reivindicação de hierarquias em situações de poder desiguais. Na análise feita por
Pitt-Rivers (1992) a partir da leitura de George Foster (1972) sobre os princípios da inveja, o
autor apresenta como os vínculos entre a inveja e a gratuidade despertam para expressões de
ressentimento reveladoras da não reciprocidade a um favor concedido. A bolsa “de marca”

190
Para evitar constrangimentos institucionais que podem se apresentar a esta interlocutora, optei por não
apresentar nenhuma identificação a seu respeito. Ressalto que segui este mesmo caminho noutros momentos da
tese, nos quais variados motivos indicaram que esta demarcação não gerava efeitos analíticos diretos à
argumentação pretendida. Preservar o anonimato para estes casos pontuais não me eximiu, no entanto, de assumir
compromissos ético-políticos básicos ao trabalho de campo, como o de me apresentar como pesquisadora e buscar
indicar usos que faria destas informações a todas as mulheres que se encontram ficcionalmente nomeadas ou não
na tese.
222

interpretada pela maior liderança como afronta de alguém que estaria subordinada a ela
determina modos como os jogos de poder envolvidos nos rituais dos eventos estão em constante
movimentação.

4.1.2 Estéticas da unção: estilos, cabelos e indumentárias

Meu desconhecimento do bairro em que ocorreria o culto naquele dia gerou


atrasos que fizeram com que eu chegasse ofegante na igreja. O evento já havia
começado e era também minha primeira vez em um ministério da Assembleia
de Deus. Embora eu passasse bastante tempo antes de ir aos cultos escolhendo
roupas que dialogassem com códigos básicos do que era aceito para estar ali,
naquele dia minhas unhas pintadas de vermelho chamaram a atenção durante
o culto. O destaque veio da pastora Cristiane que, durante sua pregação, olhou
em minha direção e afirmou: “no meu ministério tem virtuosa de todo tipo,
não tem só evangélica. A gente tem algumas regrinhas, você pode se arrumar,
se adornar para o seu marido, colocar um esmalte... não é pra usar aquela unha
vermelhona, né, um decote, vestido curto da pomba-gira... O resto tá
liberado!”. (Diário de campo, dezembro de 2018)

A cena acima, ocorrida durante um dos cultos em que acompanhei os pastores Cristiane
e Bruno, apresenta um dos muitos exemplos de como meu pertencimento “secular” era
invocado ao longo do trabalho de campo. Apesar dos muitos cuidados estéticos que tomei, não
me atentei para o fato de que unhas vermelhas funcionariam como um elemento acusatório.
Este era um elemento poluidor (DOUGLAS, 2014) que indicava como múltiplas formas de não
pertencer àquele espaço apareciam articuladas às questões de gênero e sexualidade.
Combinadas às materialidades que comecei a analisar a partir do evento para mulheres
da igreja Missões, modulações em cores e formas de usar as unhas e cabelos, cortes e costuras
de vestidos longos e justos ao corpo compõem um conjunto de significados que se relacionam
às moralidades agenciadas entre territórios e religiosidades. Assim, se na seção anterior a
produção destas diferenças pôde ser visibilizada em detalhes contidos nas personalizações com
paetês e lantejoulas que rompiam a padronização nos trajes do evento, além de outros “detalhes
que faziam a diferença” como os usos de acessórios “de marca”, nesta seção analiso o que
outras manipulações 191 nos cuidados com uma apresentação de si informam sobre fronteiras
estéticas da autoridade pentecostal.

191
Tomo aqui emprestado o sentido adotado por Renata Menezes (2017, p. 2) em sua análise sobre os usos de
símbolos religiosos em disputas políticas na esfera pública. Nas palavras da autora, “a ideia de manipulação assume
aqui seu sentido menos maquiavélico, isto é, ‘manipular’ é entendido como sinônimo de ‘mexer com as mãos’,
‘manusear’, numa aproximação à noção de técnica manual, afastando-se de outros sentidos dicionarizados, como
os de ‘um condicionamento em proveito próprio’, ou de ‘uma adulteração’”.
223

‘O intenso intercâmbio de classificações e vigilâncias sobre as roupas das mulheres entre


as camadas populares urbanas, compartilhado entre quem veste e quem observa, também foi
indicado na pesquisa de Camila Fernandes (2017) sobre as relações constituídas por figuras
femininas desviantes entre discursos do Estado e das camadas populares no cotidiano de duas
favelas cariocas 192. Conforme explica a autora, os escrutínios sobre as “novinhas” interpelam
prazeres obtidos por movimentos do corpo que, associados à indumentária, produzem
frequentes acusações sobre a conduta destas mulheres que “fazem filhos demais”. Os
imbricamentos entre sexo, desejo, poder e violência são articulados em torno da “sexualidade
errada” e da “maternidade ruim” encarnadas nestas figuras ameaçadoras, mulheres moradoras
de territórios moralmente poluídos.
Assim como as novinhas descritas por Fernandes (2017), as “crentes” e seus usos de
saias e coques ocupam um imaginário que se materializa junto a outras “figuras” que habitam
as classes populares, passando por recorrentes escrutínios públicos que se refletem na
preocupação com partes do corpo que devem ou não ser exibidas. As adaptações para que o
tecido ficasse justo ao corpo que vi no evento promovido pela igreja Missões, por exemplo,
dialogam com um deslocamento que observei entre muitas mulheres evangélicas com quem
convivi que buscavam se afastar da imagem de “crente que não pode nada”.
Por outro lado, estes agenciamentos que mobilizam distintos modos de ser evangélica
em territórios periféricos também apontam para seus pertencimentos denominacionais. As
maneiras como as mulheres transitam entre diferentes denominações associam seus usos de
cabelos e indumentárias a uma intensa busca por personalizar as estéticas pentecostais diante
do amplo repertório ao qual têm acesso. Assim, o afastamento dos estereótipos de gênero e
sexualidade associados às mulheres “assembleianas”, termo utilizado para designar
frequentadoras de ramificações da Assembleia de Deus, era um dos mais citados. Entre seus
argumentos, havia uma deliberada aproximação da santidade a uma maneira de se vestir mais
adaptada a critérios personalizados e coletivizados nos territórios pentecostais:

As assembleianas parece que tem um negócio de se arrumar, nem todo mundo


se vê de salto. Eu uso salto alto mesmo, eu gosto de me arrumar! Então elas
têm uma visão de mim, quem vai me conhecendo aos poucos começa a se
acostumar e vê que não tem nada a ver o que acha, mas tem muita gente que
bate de frente, que acha que tem que ter saião, que tem que usar coque, não
sei o quê... e Deus não tá nem na saia, nem na roupa, não é a roupa que vai

192
Sobre outras produções imagéticas coletivamente elaboradas em favelas no Rio de Janeiro, destaco também a
pesquisa de Mylene Mizhari (2019) sobre o que chamou de “figurino funk”.
224

levar pro céu. Então a minha maneira de Deus me usar e de agir aqui dentro
incomoda muita gente. (Entrevista com Glória, realizada presencialmente em
outubro de 2019. Grifo meu)

O uso do salto e outros acessórios que “incomodam” reflete modos como estas mulheres
desejam buscar o que Glória define como um Deus que “não tá nem na saia, nem na roupa”.
Distante de não estabelecer regras, sua crítica se coloca ao uso de indumentárias tradicionais e
que, por sua vez, não incomodariam. De modo semelhante, a pastora Cristiane também
lamentava as dificuldades em conciliar a liturgia da maior parte das igrejas evangélicas com a
aceitação para que possa “se arrumar e se enfeitar” e, ao mesmo tempo, “manter a autoridade”.
Ampliando a descrição elaborada por Glória, a pastora aponta para uma busca pentecostal que
deve se dar “além da beleza física, também [para] a beleza do Espírito Santo”. Nesse sentido,
o que Glória compreende como aquilo que não causa incômodos e próximo aos sentidos mais
tradicionais de uma vestimenta adequada às mulheres evangélicas é interpretado por Cristiane
como parte de distintas formas de exercer performances da autoridade religiosa que, para ela,
não deveriam estar separadas.
A combinação entre a autenticidade pentecostal de “quem é do manto e do reteté” com
a beleza santa apontaria para um modelo ideal, uma espécie de via alternativa que ela também
havia encontrado em sua congregação enquanto o que costumava definir como uma igreja que
misturava três diferentes exemplares das alegorias tradicionais e modernas: Assembleia de
Deus, IURD e Batista. A composição informada pela pastora apresenta prós e contras de cada
uma destas denominações evangélicas no que se refere tanto aos espaços de liderança ocupados
pelas mulheres como aos recursos da autenticidade pentecostal: “Na Universal, por exemplo,
as pessoas andam peruas mas tem a libertação. Na Assembleia tem todo aquele mover, de falar
em línguas, o pentecostal!”193.
Se trabalhar na “área de libertação” permite às mulheres que “andem peruas”, na mesma
igreja em que isto ocorre, a IURD, não é permitido que elas alcancem cargos pastorais. O ponto
mais alto da atuação destas mulheres é como esposas de pastores, assim como nas Batistas. Nas
Assembleias, por sua vez, acompanhei lideranças femininas que ora se apresentam como
missionárias, ora como pastoras, mesmo que não fossem institucionalmente reconhecidas
através da segunda opção. Ser “uma batista”, por sua vez, foi mobilizado como categoria de
diferenciação que apareceu entre diferentes interlocutoras nesta pesquisa para demarcar

193
Pastora Cristiane, mensagem de voz enviada pelo WhatsApp, dezembro de 2020.
225

evangélicos que apresentam comportamentos definido como mais “frios” e distantes da


proposta do avivamento.
A única característica positiva da Batista seria o que Cristiane definiu como se
“enfeitar”. A demarcação de classe com as “peruas” que congregam na IURD indica, nesse
sentido, um equilíbrio atingido pela busca da beleza santa. Esta beleza, no entanto, também
deve ser constantemente administrada para que não gere infortúnios nem acabe se
transformando no que a pastora nomeou como uma “sensualidade maligna”. Arrumar os
cabelos e se maquiar representam atos de autocuidado que não deveriam estar voltados a
“chamar a atenção de outros homens”, nem ter o “intuito de destruir vidas e casamentos”, mas
inspirar outras mulheres a serem “usadas para libertar, orar e continuar bonitas”, além de
“mostrar que também podem ficar lindas para seus maridos”. Os jogos de ocultamento e
visibilidade que compunham o que chamo aqui de estéticas da unção trazem como proposta
fixar oposições: admiração para a “beleza santa”, desejo sexual para a “sensualidade maligna”,
indicando limites em que algumas partes do corpo ativariam olhares masculinos:

Eu era uma pessoa, gente, que eu não andava com uma saia, eu andava com
um cinto! [...] Pra mim isso era ruim porque eu não tinha noção do quanto eu
prejudicava as pessoas ali dentro daquela igreja, o quanto eu, com aquela
sensualidade maligna, poderia prejudicar um irmão que tava do meu lado, né?
E era inocente, gente, não era aquela coisa premeditada não, não é igual a meia
dúzia de periguete que vai pra igreja com disposição pra causar! (Pastora
Cristiane durante pregação em um Chá transmitida online, setembro de 2020)

Se as indumentárias que fazem autoridades religiosas e fixam lugares de pertencimento


entre estas mulheres são negociadas em disputas que enredam gênero e sexualidade, a raça
também é marcador intensamente negociado. Nos estilos e formas de usar os cabelos, as
prescrições variavam conforme suas denominações religiosas e ocupações institucionais. O uso
de cabelos longos através dos chamados “apliques”, “implantes” e “mega hair” ou
simplesmente “mega”, como era mais conhecido, era comum entre as interlocutoras que tinham
maior poder aquisitivo e ocupavam funções de prestígio.
Os fios longos, usados majoritariamente em textura lisa, dificilmente estavam presos em
coques, distanciando-se do estereótipo da mulher “crente demais” do qual essas mulheres
buscavam se afastar. Em menor medida, havia apliques com tranças e black power com
diferentes penteados, estilos anda mais raros entre aquelas que ocupavam cargos de maior
visibilidade. Para quem optava pela “transição capilar”, como é popularmente conhecido o
momento em que se decide pelo abandono do cabelo que passou por processos químicos
226

decorrentes de alisamentos e pelo crescimento dos fios crespos, movimentos de maior


visibilização para valorizar a autoestima traziam afinidades com a formação de outras
identidades políticas raciais.
Em muitos destes momentos, também me senti engajada nos processos de descoberta
de muitas destas interlocutoras, que frequentemente comentavam sobre meu cabelo cacheado.
As curiosidades a respeito de texturas consideradas “naturais” indicavam manifestações de
desejo para quem também “um dia” gostaria que seus cabelos “voltassem ao natural”. Ao
mesmo tempo, o tamanho mais curto que eu adotava também despertava comentários para que
eu “experimentasse deixar crescer”, o que encontrava semelhanças com muitas delas que, em
diversas faixas etárias, escolhiam cultivar longos fios e vivenciavam a transição capilar como
um momento de martírio.
Ao analisar estas negociações estéticas que observei entre as mulheres evangélicas ao
longo da etnografia, não busco propor hipóteses a respeito da circulação de uma espécie de
“estética pentecostal” que habita territórios urbanos periféricos. No lugar disso, a estética da
unção opera como categoria analítica não generalizável, mas fruto de arranjos constantemente
produzidos em zonas de fronteira, nos limites das arriscadas exposições feitas por quem está no
que sujeitos pentecostais chamam de “mundão”. Através de fluxos transacionais com mercados,
consumos, mídias e materialidades, chamo a atenção para como essas mulheres vêm
promovendo negociações que incluem exemplaridades, contrastes e modelos possíveis para
personalizar a autenticidade pentecostal. As composições denominacionais elaboradas pelas
interlocutoras informam não se tratar de continuidades ou rupturas com estéticas “inscritas” em
territórios periféricos, mas da produção de “novas versões de poder”, como formulou Asad
(1993).

4.2 Performances da intimidade: os eventos entre templos e lares

Ao longo do período em que permaneci no trabalho de campo, fui somente em mais um


evento para mulheres liderado pela bispa Flavia, desta vez na companhia da pastora Cristiane.
Optei por encerrar os fluxos mais constantes nas festividades da igreja Missões à medida que a
convivência etnográfica me levou paulatinamente a restringir relações estabelecidas em sua
ausência com outras lideranças desta igreja. Tomei este cuidado por compreender que as
hierarquias e disputas que ali se estabeleciam condicionavam a própria (in)viabilidade de minha
circulação. Tais contingências fizeram com que os caminhos na pesquisa migrassem cada vez
mais dos espaços de grande concentração de pessoas, como ginásios e grandes galpões, para os
227

espaços de diferentes igrejas em que o Chá de Mulheres Virtuosas era realizado. Neste trajeto,
os espaços domésticos, similares aos formatos de quando o Chá havia começado antes de minha
entrada no campo, se tornaram cada vez mais frequentes.
Era nas lajes, quintais das casas e varandas de apartamentos das mulheres, de suas
familiares e amigas, que Cristiane me contou que o evento costumava ocorrer desde meados de
2015. Quando conheci o casal de pastores, dois anos depois, o Chá havia passado também para
locais maiores, como salões de festas alugados e em condomínios, além das igrejas pentecostais.
A Missões foi a primeira igreja a acolher o pedido da pastora, feito aos líderes que comandavam
a filial em que congregava na Zona Norte, liberando seu espaço para que o evento ocorresse em
um sábado do mês a ser escolhido. Na ocasião de minha primeira vez no Chá, ele já ocorria
mensalmente na Missões há alguns meses.
As mudanças mais significativas na periodicidade e formato do Chá ocorreram após
duas idas de Cristiane para a Europa, financiada por suas “filhas”/virtuosas com quem convivia
diariamente em grupos de oração internacionais no WhatsApp. Após estes eventos, seu status
pastoral na igreja junto ao marido se modificou 194 e, com ele, também o modo como lideravam
os Chás. Junto ao impulsionamento do prestígio internacional, o Ministério Mulheres Virtuosas
também ganha maior visibilidade, materializando as tensões que engendravam a condução de
um grupo de mulheres que ocorria paralelamente e sem a participação direta da maior liderança
feminina daquela igreja, a bispa. Exploro nesta seção alguns elementos destes conflitos,
centralizando transformações no espaço e tempo que conferem ao evento sua análise enquanto
performance.
Minha proposta de diálogo nesse sentido se deu primordialmente com a investigação
dos eventos como “performances liminares”, conforme indicado Schechner (2012). Inspirado
pelas formulações sobre processos liminares elaboradas por Victor Turner (2005), o autor
explora como o ritual mobiliza jogos e transformações que abrem caminhos para que sujeitos
elaborem, assim, “novos poderes” (SCHECHNER, 2012, p. 63). Esta leitura possibilitou
apontar, nesse sentido, para diversas negociações ocorridas ao longo do tempo, que
influenciaram no formato, periodicidade e nos “perfis” das mulheres que passaram a frequentar
o Chá enquanto “ritual performático” (TAMBIAH, 1985).
Analiso estes elementos através de dois aspectos: de um lado, na gestão das imagens e
textos que circulavam sobre o Chá, e, do outro, nos argumentos mobilizados para a escolha dos
locais e de suas convidadas, tanto pelo casal como por outras interlocutoras envolvidas nos

194
Sobre as transições ocorridas nas carreiras pastorais do casal no âmbito institucional, ver capítulo 2.
228

preparativos do evento. Ao acompanhar os eventos como performance em sua dimensão de


processo, prática e epistemologia (TAYLOR, 2012), busquei abordar como se constroem
modos pentecostais de intervir no mundo através de coletivizações femininas e a partir de um
Ministério/ Projeto/grupo religioso não-institucionalizado.
Enquanto uma das responsáveis pelos preparativos dos materiais de divulgação dos
Chás durante o trabalho de campo, tive acesso a alguns cuidados que deveriam ser tomados
para evitar conflitos que dizem respeito ao duplo pertencimento do casal de pastores Cristiane
e Bruno. Nas igrejas pelas quais o Chá circulou, as fiéis convidadas responderiam a duas
hierarquias paralelas: à do casal e à das lideranças do espaço em que o Chá estava sendo
realizado. Atenta a estas disputas, Cristiane me recomendava que fizesse os flyers ou banners,
como geralmente eram chamados os cartazes digitais que circulariam em grupos de WhatsApp
e nas redes sociais. Além do título que, a depender do local realizado poderia ser Conferência
ou Chá das Mulheres Virtuosas, data e horário de realização, os flyers contavam com o tema
do evento. Alguns exemplos foram “Mulheres fortes em tempos difíceis”, “Uma estratégia de
vitória” e um versículo bíblico, ambos escolhidos por Cristiane. Também havia inscrições na
parte inferior dos cartazes que notei antes de começar a produzi-los, optando por manter, tais
como “traga uma amiga que sofre”, “presença de levitas e coreografias”. Cristiane também
indicava que os flyers não viessem com o nome da igreja envolvida para evitar conflitos entre
o seu Ministério/ Projeto/ grupo Mulheres Virtuosas com outros grupos de mulheres que
poderiam já estarem instaurados na igreja que acolheria o Chá.
Para a produção de materiais de divulgação adicionais ao flyer, eram as lideranças das
igrejas onde o Chá ocorreria que ficariam responsáveis. Recebi essa recomendação da pastora
após a sugestão de produzir um vídeo para divulgação de um dos Chás, que seria realizado em
uma igreja no interior fluminense. Em sua resposta, Cristiane me indicou que os responsáveis
pela produção de materiais audiovisuais da instituição ficariam com esta tarefa, para que ela e
o pastor Bruno não “aparecessem mais” do que os próprios líderes da congregação responsável
por acolher o evento. Nos manejos que fiz das ilustrações, os pedidos de aumento e diminuição
dos tamanhos das fotos de pessoas estampadas nos cartazes eram o elemento mais imediato a
expressar estas preocupações. Tanto Cristiane como seu marido costumavam sugerir que eu
buscasse assemelhar suas dimensões com as de outras pessoas com cargos de maior hierarquia
nas igrejas em questão.
Para além deste material de divulgação principal, também elaborei um jornal e auxiliei
na edição de vídeos, fotos e textos utilizados nas redes sociais da pastora e do grupo. As
negociações que fazíamos a este respeito ocorriam com bastante tranquilidade, sem muitos
229

pedidos de alteração por parte da pastora, que interpretava os interpretava como um favor.
Relação similar a esta tecida na elaboração de materiais audiovisuais, mais um fator que me
incluía no lugar de “filha” e parte da “equipe de fé” do Ministério, era estabelecida em outros
parentescos da pastora com seu genro, quem também esporadicamente dividia esta função
comigo.
A única produção que ficou inteiramente sob minha incumbência foi o jornal,
comercializado pelo valor de dois reais nos cultos pelos quais o casal circulava em suas
itinerâncias como pregadores convidados. Após um processo de negociação com o casal sobre
os temas que o jornal deveria abordar, dividi o conteúdo em colunas sobre os seguintes assuntos:
1) história do Ministério Mulheres Virtuosas; 2) agenda de pregações mensal do casal de
pastores; 3) história de uma personagem bíblica; 4) a relação da mulher cristã com a moda; 5)
testemunhos de prosperidade na vida financeira; e 6) palavra da especialista. Com exceção das
três primeiras colunas, nas quais mesclei minha autoria com textos encaminhados pelo casal e
por uma pastora convidada por Cristiane, os conteúdos de todas as outras foram enviados por
integrantes do Ministério.
Ao longo do processo, troquei mensagens pelo WhatsApp com mulheres que me
enviaram áudios que, para a quinta coluna, ganharam a nomeação de “testemunhos das
empresárias” e foram transformados em formato de texto. Para as seções 4 e 6, o auxílio foi
dado por aquelas que também eram especialistas na área da moda cristã e do campo da nutrição.
O material, no entanto, não vendeu conforme o esperado durante os cultos e optamos por
descontinuar sua produção, orientando investimentos para as redes sociais. Durante nossas
negociações a este respeito, Cristiane explicou como gostaria que a imagem do Ministério
nestes espaços pudesse equilibrar misturas entre diferentes classes sociais e, assim, “misturar a
mulher da Lagoa com a mulher do Complexo”195.
Os elementos integradores estariam reunidos na “visão empreendedora” que o Chá
captaria. Diferente da “visão espiritual”, que atingiria quem já é evangélico(a), o
empreendedorismo assume uma espécie de meio do caminho, uma “bifurcação”, uma
“viradinha para a esquina” entre igreja e mundo que promoveria aprendizagens necessárias para
a vida espiritual e o gerenciamento da autoestima através do corpo. Em uma de suas descrições,
a pastora indica o desejo pela busca de uma imagem “neutra” em alusão a um espaço que
engajasse mulheres no formato de prestação voluntária de serviços: “ Claro, o nome de Jesus

195
A frase se refere tanto ao bairro de classe alta no Rio de Janeiro, próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas, como à
favela do Complexo do Alemão.
230

vai ser glorificado, porém, sem placa de igreja. Assim, um espaço pra cuidar da mulher! Não
só no espiritual, mas no corpo, né? Levantando a autoestima dessa mulher”196.
Os conflitos decorrentes de estilos e gestão da imagem que o Ministério deveria passar
ao público compareceram em diferentes eventos que ajudei a organizar. Ao mesmo tempo que
nos flyers a minimização de diferenças nos tamanhos das imagens do casal principal em relação
a outras(os) pregadoras(es) buscava diminuir possíveis tensões com as lideranças das igrejas
em que o Chá se realizava, a preocupação com formas de se comunicar com o público-alvo
envolveu escolhas conjuntas que se encaixassem nas “bifurcações” do estilo “neutro”: o que ela
indicava como “nem anêmicas, nem muito discretas” orientava um caminho por cores e fontes
específicas. Para ter o trabalho aprovado, privilegiei tons em vermelho, fontes em itálico com
silhuetas de rostos femininos ou temas florais ao fundo para corresponder ao que considerei
estar mais próximo das expectativas propiciadas em nossas interlocuções e por meio de minhas
observações da estética de cartazes de outros eventos que circulavam no grupo. Os termos que
utilizei em buscadores para compor um banco de referências apresentadas para a pastora a cada
nova solicitação para produzir este material de divulgação eram combinações entre termos
chave na pesquisa, como “mulheres”, “evangélica” e outros que surgiam a partir de nossas
conversas sobre seus interesses, tais como “floral” e “vermelho”.
Vale ressaltar que, nos resultados destas buscas por imagens, muitas vinculações eram
geradas com categorias como “salão de beleza”, “cartões de visita”, “convites para casamentos”
e “feminino”. No caso do logotipo escolhido por ela, eram recorrentes associações com
categorias como “moda evangélica”, “moda íntima feminina”, igrejas, associações
humanitárias e espaços de saúde voltados para mulheres. No âmbito das negociações realizadas
sobre este elemento com a pastora, houve uma ocasião em que ela apontou para o fato de que
nossa escolha do logotipo que representava seu Ministério apresentava semelhanças com o
brasão associado à monarquia francesa utilizado pela ex-deputada e cantora gospel Flordelis.
Esta ocasião coincidiu com o escândalo relacionado ao assassinato do então marido da cantora,
o pastor Anderson Gomes em 2019, que incorreu na acusação de Flordelis como mandante.
Perguntei se a pastora gostaria de modificar a logomarca, mas sua resposta foi pela
manutenção197.

196
Mensagem de voz enviada no WhatsApp, outubro de 2017.
197
Este foi um caso que gerou grande repercussão entre as participantes dos grupos de oração no WhatsApp
acompanhados durante a pesquisa. Houve diversos compartilhamentos de notícias de veículos de fofoca como
“Buxixo Gospel” e outros websites jornalísticos, além de conteúdos humorísticos e vídeos de pessoas anônimas
que culpavam Flordelis por ter “zombado” de profetizas que teriam revelado o que lhe aconteceria.
231

Com o passar do tempo, as temáticas e títulos do evento foram se modificando no


sentido de legitimar a trajetória internacional da pastora. Passei a preparar cartazes com
informações traduzidas ao italiano e espanhol para os Chás fora do Brasil, enquanto aqueles
ocorridos no país destacavam dizeres que valorizassem sua estadia internacional como “de volta
da Missão na Europa” ou “primeira Conferência Internacional”. Quando realizados em igrejas
tanto no Rio de Janeiro como em Minas Gerais, estado natal da pastora e para onde ela
ocasionalmente viajava, o termo Chá passou a se referir somente aos eventos realizados nos
lares, então chamados de “Chá entre amigas na casa de fulana”, sendo fulana a anfitriã do
evento. Aqueles em locais alugados e igrejas passaram a se chamar somente “Conferência
Internacional das Mulheres Virtuosas”.
Em vez de flores e silhuetas de ilustrações de rostos femininos apresentados por mim
como referências para a elaboração dos flyers, a pastora passou a sugerir ilustrações de
bandeiras do Brasil combinadas às de outros países europeus para os cartazes. A solicitação
para anexar fotos de pessoas que auxiliaram financeiramente para a realização do evento, as
chamadas “colunas da obra”, também era um pedido frequente. Após o retorno da viagem para
a Europa, dar visibilidade a estas personagens passou a se configurar como uma das principais
formas de divulgação do Ministério, o que fez com que cada vez mais rostos fossem anexados
aos cartazes. Além disso, a circulação do logotipo que elaborei para o Ministério passou a
ilustrar brindes distribuídos às participantes após os eventos, em adesivos colados nas
embalagens de perfumes, potes de bolos e papeis de docinhos, camisetas vestidas pela “equipe
de fé” que auxiliava na elaboração dos Chás, documentos voltados para solicitação de
patrocínios de empresários(as) do ramo comercial pela alimentação e produção dos presentes,
e nas redes sociais da pastora e do grupo. A utilização destes materiais passou a ser chamada
de “oficial”, fornecendo formatos mais unificados da atuação do Ministério nestas diferentes
frentes.
232

Imagem 18: Chá das Virtuosas em filial da igreja Missões no Rio de Janeiro, RJ

Fonte: Acervo da pesquisa, 2017.

Imagem 19: Exemplo de referência Imagem 20: Outro exemplo de referência


utilizada para a elaboração dos flyers dos utilizada para a elaboração dos flyers dos Chás
Chás das Virtuosas das Virtuosas

Fonte: Hd wallpapers. Data da coleta:


25/06/2018. Fonte: Freepik. Data da coleta: 28/09/2018.

Imagem 21: Exemplo de referência enviada pela pastora, utilizada para a elaboração de flyers
dos Chás após a primeira viagem internacional

Fonte: Alexis84/iStock. Data da coleta: 27/04/2020.


233

Imagem 22: Logotipo que ilustrou materiais do Ministério/Projeto/grupo Mulheres


Virtuosas

Fonte: Ícone adaptado do aplicativo Logopit, Data da coleta: 04/05/2018.

A presença de uma imagem em maior tamanho da bispa, que antes sequer ilustrava os
cartazes, passou a ser uma demanda da igreja Missões após a viagem internacional da pastora.
A partir desta ocasião, Cristiane passou a me solicitar somente os cartazes para Chás que seriam
realizados fora desta igreja e a nova incumbência passou a ser realizada entre responsáveis pelo
marketing da instituição, os quais não cheguei a conhecer. Estas mudanças também interferiram
na periodicidade do evento, que, de mensalmente, passou a ocorrer semestralmente na Missões.
Após esse encolhimento, ocorrido em período coincidente com a chegada da pandemia do novo
coronavírus, os eventos liderados pelo casal foram ainda mais impactados por vigilâncias
institucionais exercidas pela igreja sobre a atividade do casal de pastores.
O retorno das atividades nos templos religiosos com o arrefecimento da pandemia deu
lugar ao último evento que organizaram. Desta vez, o banner produzido pela Missões não trazia
referências ao Ministério Mulheres Virtuosas nem no título nem na presença de “colunas da
obra”, advindas das redes construídas pela pastora fora da igreja. Um novo título para o evento
também foi proposto com a mediação de pastoras que atuavam como “braços direitos” da bispa,
que também passaram a conviver de modo mais próximo com Cristiane. Nos flyers
reformulados, os tamanhos das fotos das envolvidas seguiam em ordem decrescente da bispa,
da pastora que liderava a filial carioca onde ocorreria o evento e, por último, da pastora
Cristiane, com leves mudanças em relação ao tamanho ocupado pelas pastoras convidadas pela
bispa que atuariam como seus olhos no evento.
Após um ano de realização mensal em 2017 e semestral nos anos seguintes, este evento
em meados de 2020 foi o último organizado pelo casal na Missões do qual tive notícias. Sob
efeitos destas disputas institucionais, Cristiane me apresentou essa situação em tom tanto
nostálgico quanto otimista. Mesmo com todas as intervenções que não valorizavam pessoas que
efetivamente atuavam com ela para a realização do evento, ela descreveu que aquela teria sido
a primeira ocasião que havia se sentido “chamada pelo nome” pela bispa, membresia e fiéis da
Missões. Sentindo-se agora “honrada e reconhecida”, após sete anos de pastorado nesta
234

congregação, Cristiane me contou emocionada que finalmente havia alcançado uma


visibilidade que a permitia ser chamada para além da alcunha pela qual era mais conhecida,
conferida pelo próprio bispo após seu retorno da Europa, a de “pastora das muié”.
Ao pontuar sua expressão de honra e reconhecimento, estas e outras situações de
dificuldade vivenciadas na carreira pastoral de Cristiane ganhavam desdobramentos em que a
pastora buscava inverter uma noção comum no conceito religioso da graça, em que esta
categoria estaria inferiorizada em relação à honra. Este é um dos argumentos mobilizados por
Pitt-Rivers (1992) quando apresenta diferentes exemplos para indicar, a partir de seu trabalho
de campo com curandeiras e outras figuras religiosas importantes na cidade espanhola de
Grazalema, a construção da honra feminina como virtude que contrariava o princípio ideal
cristão de que a honra deveria ser renunciada para dar lugar à graça.
Esses agenciamentos orientaram cada vez mais um caminho em que Cristiane optou por
retirar completamente os vínculos do Ministério Mulheres Virtuosas da igreja Missões através
dos eventos. Após esta última incursão, Cristiane e Bruno voltaram a investir principalmente
em parcerias com mulheres que cediam suas casas e espaços coletivos mais intimistas. Embora
os Chás nunca tenham deixado de ocorrer nesta modalidade, o casal considerava as igrejas
como espaços que permitiam uma realização mais completa de seus trabalhos. Como me contou
Cristiane em uma de nossas conversas, havia a necessidade de realização em locais através dos
quais pudessem fazer trabalhos de “libertação” de demônios, o que era dificultado quando o
evento ocorria nos lares pois os(as) moradores “geralmente têm medo”. Além disso, para a
realização nos lares haveria impedimentos relacionados à amplitude da divulgação, pois o mais
recomendável nestas ocasiões é que a dona da casa convide quem gostaria de levar.
O aprofundamento da pandemia intensificou estes movimentos do Ministério em
direção aos lares, motivando a pastora a retornar com a família para seu estado natal. Em Minas
Gerais, o casal continuou atuando como voluntários da Missões a partir de uma das filiais
mineiras da igreja. Nesta nova fase, os movimentos para fora da igreja se intensificaram ainda
mais e também ganharam outras titulações. Em vez das “Conferências internacionais”
realizadas em igrejas, os “Chás entre amigas”, realizados majoritariamente nos quintais,
varandas e salas de estar residenciais, passaram a receber mais espaço. Esses eram eventos em
que não cheguei a frequentar ao longo do trabalho de campo por só ter chegado a conhecer
algumas das anfitriãs posteriormente à realização dos Chás em suas casas e tais ocasiões
estavam restritas a quem elas convidavam. Ao acompanhar imagens e suas transmissões online
através do Facebook, observei que um mesmo modelo costumava ser seguido nestas ocasiões,
com as participantes sentadas em cadeiras e sofás ao redor da pastora. Esta dinâmica lembrava
235

o início da caminhada do Projeto que, a partir daí, passou a constituir suas redes em outro
estado, Minas Gerais.
Por força da distância regional agora imposta e combinada ao período pandêmico, passei
a acompanhar este novo ciclo somente através de lives instantaneamente compartilhadas através
do perfil da pastora ou do Ministério no Facebook. Associando a análise de algumas cenas
registradas em tempo real destes momentos às narrativas ouvidas ao longo deste processo do
casal e das integrantes do grupo, passo a analisar como performances dos eventos são
distintamente constituídas nos lares. Nesse contexto, as relações com os templos são negociadas
para construírem fluxos religiosos transnacionais.

***

Na cena que abre um “Chá entre amigas”, título do evento realizado na laje de uma casa
em um pequeno município do interior de Minas Gerais, a câmera do celular de uma fiel percorre
toda a extensão do local. Há poucas cadeiras, todas de plástico, ocupadas, e o público com cerca
de cinquenta pessoas está de pé, formado por uma maioria absoluta de mulheres que cantarolam
um louvor entoado de uma grande caixa de som localizada em espaço separado, de frente para
quem assiste. Embora não haja degrau mais alto, a referência a um palco é remetida com a
presença de um púlpito de madeira com inscrições de letras que formam a palavra “Jesus”,
cortadas em cartolina e coladas ao suporte. Há uma pequena banda ao lado deste espaço,
formada por dois garotos jovens, um que canta e toca guitarra, outro tocando bateria. Como
uma orquestra e sua regente, a pastora cantarola junto ao público em acompanhamento, quando
logo o louvor é substituído por música instrumental em volume baixo.
Naquele dia, em suas palavras, o culto começaria de forma diferente, desta vez com uma
“oração forte”: “Senhor, alguns estão com medo, outros estão dispostos a guerrear”. Seu tom
de voz aumenta e algumas palavras já se tornam indistinguíveis pela velocidade em que são
pronunciadas, já misturadas às orações do público, incentivado a “abrir a boca” e orar em voz
alta. A música, ainda instrumental, busca acompanhar as mudanças conduzidas pela pastora,
tornando-se mais intensa à medida que seu tom de voz se enrijece. Coragem, visão e estratégia
para “repreender todo o mal” são virtudes pedidas para que todos estejam prontos a entrar “em
posição de batalha”.
Momentos introdutórios similares àquele, cujo vídeo mostrava ter durado em torno de
dez minutos, já tinham sido vivenciados por mim durante diferentes cultos presenciais nas
igrejas em que a havia acompanhado. No entanto, experimentei-o presencialmente com a
236

impressão de ter levado tempo bastante superior, devido à sensação de entorpecimento do corpo
que vivenciei nesses momentos ritualizados.
Na ocasião, o número de pessoas assistia à live era bastante inferior em relação à
transmissão ocorrida na Espanha que abre este capítulo, ocorrida antes do período pandêmico.
Além de mim, cerca de cinco pessoas comentam com emojis de mãos juntas em oração (🙏) e
textos curtos com brados de “Glória a Deus”, “Aleluia”. Também de modo distinto à outra live,
não houve interação direta com as/os espectadoras/es, e observei maior quantidade de pessoas
entrando e saindo com frequência. Tais características demonstram um período de saturação
que estávamos vivendo no ano seguinte ao surgimento da pandemia, com o número avançado
deste tipo de transmissão nas redes sociais.
Quando conversei com Regina, mulher negra de 53 anos e dona da casa que abrigou o
Chá, ela me contou como ocorreram os preparativos para o evento. Sua relação com Cristiane
era de longa data, já que ambas cresceram na mesma cidade e frequentaram uma filial da Igreja
Quadrangular na região. Regina me contou que os vínculos com a pastora foram estreitados
recentemente, sobretudo após suas trocas de mensagens nas “noites de oração”, também
chamadas de “madrugada com Deus”. A referência era às mensagens de áudio enviadas por
Cristiane nos grupos de oração do Ministério no WhatsApp e encaminhadas “no particular” 198
para aquelas que não estavam no grupo. “Eu via que era Deus falando comigo mesmo, porque
eram coisas assim, que eu não via ela há muitos anos, então ela não tinha a menor possibilidade
de saber”, me contou sobre o conteúdo das mensagens que, segundo Regina, chegavam como
“uma bola de fogo” que Deus enviava através da pastora em sua vida.
Esta experiência não só as reaproximou como abriu portas para que Regina chamasse
membros da igreja em que congrega para o evento, o que também envolveu intensas
negociações com o pastor dirigente. No entanto, além destas lideranças, poucas pessoas de sua
igreja compareceram e a maior parte dos público foi composto por suas amigas e vizinhas. As
justificativas para estas faltas foram apontadas por Regina como indicativos de tensões
contemporâneas que dizem respeito à instituição mais ampla nomeada como igreja e os sentidos
comunitários de seus membros. Para ela, as desconfianças generalizadas em relação aos
pastores não permitiriam que as pessoas pudessem “conhecer” ou “voltar pra Jesus”. Ao
resgatar estes sentimentos comunitários, nas palavras de Regina os eventos realizados em

198
Expressão utilizada pelas interlocutoras, que também operava como sinônimo de “no privado”.
237

residências traziam uma proposta “mais leve e diferenciada”, afastando-se, assim, de polêmicas
envolvendo lideranças pentecostais:

Eu creio que o Chá é de extrema importância porque quebra o paradigma, as


pessoas tão com uma visão muito conturbada de igreja, até por conta das
coisas que tão acontecendo no mundo, né? Então assim, tá muito difícil as
pessoas se converterem por causa disso, tem pé muito atrás, né? Eu que já
estou há mais tempo, é igual eu te falei, mesmo conhecendo a Cristiane, a
família e tudo mais. Eu, mesmo assim, eu custei a baixar a guarda. O Chá é
importantíssimo porque é uma oportunidade de uma forma bem mais leve pras
pessoas. Você apresenta Jesus de uma forma diferenciada pras pessoas.
(Entrevista com Regina, janeiro de 2021)

Durante nossa conversa, Regina mencionou que os motivos de suas desconfianças


envolviam “questões políticas” vividas em diferentes denominações que havia frequentado. Os
sentidos comunitários que sentia anteriormente, experimentados ao enxergar diferentes
gerações de uma mesma família na primeira igreja em que se converteu, não eram mais
coletivamente compartilhados após a entrada da principal liderança para a política institucional.
Além do que chamou de “politização da igreja”, Regina contou que as disputas envolveram
diretamente sua família nuclear. Seu pai também se tornou reiteradamente candidato a um cargo
no poder legislativo ao longo do tempo, o que fez com que sua família migrasse junta de uma
denominação menor para uma maior. No entanto, tanto nestas quando noutras diferentes igrejas
pelas quais transitaram neste período, a presença de seu pai como membro acabava dividindo
votos com a liderança e causando transtornos.
As disputas familiares, aqui aprofundadas por relações que envolviam o voto, fizeram
parte de muitas justificativas que ouvi de mulheres sobre o próprio afastamento ou de seus
filhos de denominações evangélicas. Eram tanto casos que envolviam distintas famílias, como
o de Regina, quanto conflitos ocorridos dentro da mesma família, quando pais congregavam no
mesmo espaço que filhos e irmãos. À medida que a presença do casal nos lares não ganhava
somente o formato de Chá, mas também ações de evangelização geralmente conhecidas no
contexto cristão mais amplo como “visita nos lares”, o Ministério ganhava integrantes também
a partir desta circulação das lideranças.
Assim como Regina, entrevistei outras mulheres que eram amigas e familiares de
integrantes mais assíduas do Ministério e contavam sobre um cotidiano de convivência com a
pastora Cristiane através de mensagens trocadas “no privado” pelo WhatsApp. Nestes casos, as
trocas de mensagens com orações em momentos de maior dificuldade e participação em
campanhas haviam sido iniciadas após uma ocasião ocorrida no espaço doméstico. Verônica,
238

43 anos e também mulher negra, me contou que “retornou pra Jesus” durante uma visita da
pastora na casa de sua irmã para fazer orações pela mãe, que, na ocasião, estava doente.
Verônica narra ter tido seus “dons renovados” e ganhado novos dons, “quebrando os grilhões”
postos em sua vida até então.
Na ocasião, Verônica estava “desviada” da igreja evangélica e contou que sua relação com
Cristiane foi aprofundada após sua intercessão com orações em um momento de dificuldades
que passava com seu filho João, na ocasião com 25 anos. Apresentado por ela como
homossexual e adepto do “espiritismo”, em referência às denominações de matriz africana,
Verônica se mostrava ressentida pelo afastamento do filho da igreja, cuja justificativa foi
definida como uma “Palavra lançada contra ele” na congregação que frequentava, como
explicado no trecho a seguir:

Se uma pessoa que já está alicerçada dentro do meio evangélico, se ela não
tiver estrutura pra receber alguma Palavra, ela pode sair da presença de Deus.
Imagina uma pessoa que tá começando a caminhar pra presença, receber uma
Palavra? Então sabemos que a Palavra tem o poder de dar vida, mas também
tem o poder de tirar a vida. Então ela tem o poder de matar, né? Foi o que
aconteceu na vida dele. (Entrevista realizada por ligação no WhatsApp,
outubro de 2021)

O afastamento de João da igreja em decorrência de conflitos indicados pela mãe expõe


feridas relacionadas às moralidades político-religiosas que articulam noções do que é a igreja e
seus sentidos de família. Para a mãe, João não se distanciou, mas foi distanciado ao ser alvo de
ações coletivas que não eram esperadas para um espaço de acolhimento. Diferente do
sentimento de nostalgia de Regina, que traçou comparações qualitativas ao evento em relação
ao projeto comunitário de igreja, Verônica não hierarquiza estes encontros quando fala sobre a
ocasião da visita no lar de sua irmã, embora também critique o “poder de matar” da Palavra
proferida contra seu filho: “Ela [a Palavra] entrou, feriu, entristeceu e ele se afastou da
presença”, como me contou.
A centralidade das emoções relacionadas à tristeza nestas narrativas sobre a decepção
com a igreja se fez fundamental para compreender formas de constituir vínculos nos
dispositivos da intimidade dos eventos. Nas relações formadas através dos lares e mensagens
no celular, novas modalidades de parentesco entre mães e filhas na fé podiam ser construídas
para driblar os sentidos de contaminação decorrentes de más práticas de membros das igrejas.
Tais problemas, por sua vez, não atingiam a relação com Cristiane, pois sua figura era
239

aproximada do estabelecimento de uma intimidade exclusiva a uma ou mais mulheres da


família e que não se estendia aos outros membros.
No caso de Verônica, que me confessou não lidar muito bem com o “processo” vivido
pelo filho, havia também uma parceria mútua construída em prol da libertação de João. As
orações compartilhadas pela pastora incluíam a batalha pelo filho, assim como a de outros
familiares que estavam presentes em suas orações a pedido das mulheres. O Ministério que se
formava com integrantes dos eventos estava, assim, constituído por relações próximas, mas não
menos públicas, na medida em que os registros das integrantes e lideranças em imagens e lives
ampliam sua circulação para resgatar coletivamente sentidos refletidos na noção comunitária
de igreja.

Imagem 23: Registro de um “Chá entre amigas”

Fonte: Envio da anfitriã da casa e interlocutora da pesquisa.

O caráter mais intimista proporcionado pelo tamanho do espaço, proximidade física que
o casal exercia com os presentes e disposição das participantes, na maior parte das vezes
reunidas ao redor da pastora, tornava o ambiente dos lares mais propício para o estabelecimento
de relações exclusivas. Por exclusivas, não me refiro simplesmente a um modelo de
individuação baseado no modelo de competição entre serviços, que se desenvolve em relação
aos mercados e/ou ações religiosas. Nessas performances da intimidade que operam nos Chás
e visitas nos lares enquanto eventos do Ministério, as conexões são estabelecidas em redes
pentecostais que não estão apoiadas em instituições, mas se formam em torno de pessoas, parte
central aos processos de transnacionalização religiosa (ORO; STEIL; RICKLI, 2012).
240

Os exclusivismos que sustentam estas redes podem ser considerados exemplos do que
Daniel Alves (2009, p. 196) chamou de “sistema de reputação personalista”. Segundo o autor,
uma importante característica de tais modelos de comunicação é que o nome do pastor (ou do
casal, como indica o caso em questão) é sempre mais lembrado do que o da igreja à qual
pertence. Explorando as inspirações carismáticas sobre modelos de culto que ocorrem através
das casas, Alves lembra que antes das experiências que se tornaram mais conhecidas como
“células” há influência de um modelo anterior a este, o do “discipulado”, surgido nos anos 1970
e responsável por transferir o espaço privilegiado de cultos dos templos para os lares.
Nesta perspectiva, as redes de pessoa a pessoa são formadas através de uma flexibilidade
que o autor lembrou ser constituída por “congregações de pequena e média escala” (ALVES,
2009, p. 185) e que não são formadas apenas por pastores, mas também por músicos, artistas e
evangelistas pentecostais. Considero esta uma característica central para compreender a
circulação do Ministério Mulheres Virtuosas pelos lares evangélicos. O fato de suas lideranças
advirem de formatos institucionais mais flexíveis para o exercício de atividades pastorais
paralelas não ocorreu sem tensões e aponta para um movimento de expansão espacial dos
templos que ocorre com os Ministérios, como indicou Carly Machado (2020b).
No caso do casal de pastores e das integrantes do Ministério em questão, este era um
caminho que não reivindicava a substituição ou reivindicação de desimportância da
congregação no espaço das igrejas, mas provocava críticas que ampliavam o exercício da fé
pentecostal para outros contextos. Estes, por sua vez, poderiam atuar de forma paralela aos
templos, como é o caso das visitas e dos Chás nos lares, ou conduzir os fluxos transnacionais
para outras maneiras de exercer a fé pentecostal sem vínculos denominacionais, como apresento
na próxima seção com os casos de virtuosas brasileiras que residem na Itália.
Se Ministérios trazem propostas que nos provocam a ir além da centralidade analítica
conferida aos templos, o que se coloca de maneira central em perspectivas sobre
transnacionalização religiosa, circulações femininas negras nos lares evangélicos podem
apresentar outras compreensões sobre fluxos religiosos transnacionais, além de indicar
caminhos menos explorados nesta bibliografia socioantropológica, como as dimensões
interseccionais destes fluxos. Que tipo de mudanças estes fluxos personalistas estariam
provocando nas carreiras pastorais femininas e/ou em seu exercício em casal? Como circulam
imaginários de nação nesse contexto? Aponto a seguir algumas pistas que indicam caminhos
para estas questões através dos eventos realizados pelo Ministério durante duas viagens
internacionais de Cristiane, propondo modos como as dimensões raciais, de gênero e de
sexualidade constituem as circulações entre fronteiras (PISCITELLI, 2011).
241

4.3 Fluxos transnacionais para a Europa

Na situação que abriu este capítulo, percorri através da lente do celular de uma
integrante do grupo uma decoração em tons de cor-de-rosa que mostrava uma mesa repleta de
doces, salgados e um bolo no centro. Ao fundo havia uma televisão que exibia faixas de antigos
louvores do gospel nacional, cujo volume aumentava ou diminuía de acordo com o momento;
durante a pregação, a voz da pastora prevalecia, durante as orações mais fortes, louvava-se
acompanhando a letra da música com o som em volume mais alto. A transmissão, que durou
cerca de uma hora e meia, exibiu cerca de vinte mulheres, todas brasileiras residentes no
exterior, que ora se abraçavam, adorando e clamando em voz alta seus pedidos para Deus, ora
acompanhavam atentamente a voz da pastora, integrando uma conversa em tom descontraído
que se estendeu até o fim da transmissão da live.
Este foi um dos muitos Chás ocorridos nos lares de brasileiras que moram na Europa,
cujas transmissões ocorreram tanto nestes espaços como em uma igreja na cidade de Turim, na
Itália. As estadias da pastora em países europeus aconteceram por dois anos seguidos, sendo
três meses em 2018 e quatro em 2019. Embora tenha passado também pela Suíça e Alemanha,
os países priorizados para a realização dos Chás e nos quais Cristiane mais pôde fortalecer suas
redes de apoio foram Itália e Espanha. Acompanhei junto às outras integrantes do grupo de
WhatsApp “do Brasil”, como era chamado pelo casal, o intenso compartilhamento de notícias
quase diárias sobre os países visitados. Eram mensagens de voz que incluíam orientações sobre
as vantagens financeiras de morar na Europa, lives realizadas em montes e praias e cuidados
diversos que tratavam sua ascensão social como um trabalho de missão vivido enquanto parte
do Ministério.
Suas profecias de que cada uma viveria a experiência de conhecer outro país se
expandiam através de mobilizações por campanhas de oração feitas durante a viagem. Na
ocasião, Bruno passou a participar mais ativamente do grupo, lembrando de modo frequente
que a pastora não estaria viajando a turismo, mas para “fazer a obra”. Além de conferir prestígio
à ida da esposa, o destaque dado pelo pastor produzia modos de visibilidade à atividade definida
como “trabalho de missão”, “ação missionária” ou simplesmente “missão”, que buscavam se
diferenciar tanto do turismo de lazer como do turismo religioso. Enquanto o último era descrito
pelo casal nestas ocasiões como aquele que se destina a “mostrar o cenário da bíblia”, o trabalho
de missão implicava em sentidos de coragem e desbravamento movidos pela evangelização, o
242

que analiso a partir de acessos e dificuldades distintamente experimentadas pelo


pentecostalismo nos países visitados por Cristiane.
A insistência em repetir sobre o trabalho na obra também buscava driblar críticas sobre
o que Cristiane estaria fazendo na Europa. Isto porque, na Missões, a circulação de insinuações
negativas sobre a pastora ter viajado financiada por mulheres “do mundo” trazia tentativas de
deslegitimação constantes por parte de membros e lideranças da igreja. Os comentários foram
indiretamente respondidos em diferentes pregações que acompanhei em seu retorno 199. Nestas,
Cristiane costumava ressaltar sobre os desafios de exercer o pastorado na Europa sendo
brasileira, abordando aspectos que traçavam oposições entre diferenças culturais e associavam
a brasilidade a quem tinha “raiz pentecostal”. Nesse contexto, o pentecostalismo era indicado
como um lugar de acolhimento que vincula experiências com a transcendência ao imaginário
de um “povo barulhento”:

Eu quero dizer pra você que tá aqui, que é uma coisa que eu observo muito.
Eu observo que quando nós estamos no Brasil, nós temos um tipo de
comportamento, até mesmo na fé. E quando a gente sai do Brasil e vem pra
Europa, principalmente, há uma mudança de comportamento das mulheres.
Eu quero dizer pra vocês que vocês podem ir aonde vocês forem, vocês têm
que entender que vocês são mulher de Deus. Que a sua raiz tá lá no Brasil, e
a sua raiz é pentecostal! Aquele povo lá no Brasil, eles não têm medo de abrir
a boca e dizer “aleluia, glória a Deus”. Então, meu amor, eu vou te pedir para
descer do salto e dar um glória a Deus e um aleluia! O povo brasileiro é um
povo barulhento! E você não pode perder essa essência. (Pastora Cristiane,
pregação realizada em um Chá na Espanha, outubro de 2019)

Ao fazer referências ao "medo de abrir a boca", a pastora busca unificar noções de


pertencimento territoriais à experiência devocional do pentecostalismo espontâneo e destemido,
provocando sentimentos de comunhão que sustentam imaginários coletivos descritos por
Benedict Anderson (2008) através do conceito de “comunidade política imaginada”. A pastora
mobiliza um imaginário de nação que, como pontuou a pesquisa de Raquel Sant’ana (2017),
vem operando mais amplamente na consolidação de coletividades evangélicas contemporâneas,
unindo membros que “jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria

199
Embora estes comentários não tenham sido especificados com maiores detalhes, minhas interações no trabalho
de campo levam a crer que eles envolveram um imaginário relacionado às brasileiras imigrantes na Europa e sua
vinculação ao trabalho sexual. As pesquisas antropológicas sobre os fluxos migratórios da prostituição entre Brasil
e Europa (PISCITELLI, 2007, 2011) indicaram fatores que se relacionam a outro imaginário, desta vez exercido
pelas próprias interlocutoras, que diz respeito ao fascínio que estes trânsitos exercem em universos feminizados
sobre o sonho de “trabalhar na Europa” (TEIXEIRA, F., 2008).
243

de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”
(ANDERSON, 2008, p. 32).
Além disso, os elementos mobilizados na interação da pastora ao associar a “raiz
pentecostal” ao comportamento mais espontâneo e “barulhento” apontam para o que Rocha e
Vásquez (2016) analisaram a respeito da dimensão de um imaginário brasileiro global. Este,
por sua vez, é formado pelo consumo de estilos de vida que constituem aspectos transnacionais
do campo religioso brasileiro, de maneira que o exotismo atrelado ao chamado “turismo
espiritual” produz suas próprias dinâmicas de migração. Os autores investem em uma releitura
do conceito de diáspora para explicar o impacto global das religiões brasileiras, abordando
como memórias destes deslocamentos nas dinâmicas migratórias formam identidades
religiosas.
Para os fins desta análise, considero relevante situar alguns pontos que dialogam com
os efeitos interseccionais nestes deslocamentos entre fronteiras. Dentre os estudos sobre
transnacionalização do (neo)pentecostalismo brasileiro, os trânsitos entre Brasil e o continente
africano trazem contribuições importantes a este debate 200. Linda Van de Kamp (2012) realizou
uma pesquisa em Moçambique em que explorou como a oferta diferenciada de cultos sobre
amor e casamento, junto à maior abertura de pastores brasileiros para pregar sobre questões
relacionadas à sexualidade, tem criado dinâmicas específicas para as mulheres envolvidas nas
mobilidades pentecostais Sul-Sul.
Quando se trata das questões de gênero, as mudanças que Van de Kamp (2012, p. 74)
notou entre suas interlocutoras envolveram dinâmicas conjugais e de parentesco reforçadas em
pregações de pastores brasileiros sobre “manter a distância com a família extensa e sobre
igualdade entre esposos”. Dialogando com transformações urbanas mais amplas no local, a
autora sinaliza para a leitura moçambicana de uma “franqueza” brasileira como causadora de
transformações culturais que ocorrem em constantes confrontos no campo dos costumes. Trata-
se, nesse sentido, de fluxos que têm permitido maiores possibilidades de deslocamentos nas
fronteiras que se referem ao que ela indicou como “questões (re)produtivas” entre estas
mulheres:

O espaço transnacional pentecostal Sul-Sul tornou-se especialmente relevante


para as mulheres urbanas com uma mobilidade socioeconômica ascendente
que estão buscando novas formas para dirigir e controlar as suas novas

200
Embora este tenha sido um caso de fluxo Sul-Norte global (ORO, 2014), considero as dinâmicas dos fluxos
Sul-Sul que envolvem a África, e em que o papel central da IURD recebeu significativo destaque (FRESTON,
1999), mais pertinentes aos diálogos interseccionais que proponho neste momento.
244

posições num ambiente urbano mutável e incerto, mas desafiador. [...] A


abertura explícita dos pastores brasileiros às questões de amor, casamento e
sexualidade – para além de sua força espiritual e do caráter cross-cultural que
lhes permite atravessar fronteiras culturais sensíveis – torna-os curandeiros e
conselheiros atraentes quando se trata de reformar questões de gênero (VAN
DE KAMP, 2012, p. 76).

Além destes fatores dialogarem com o que venho chamando ao longo da tese ora de
fluxos eróticos, ora de roteiros conjugais, analisar a mobilização da pastora Cristiane para
engajar mulheres nestas coletividades evangélicas sem vinculação institucional também
permitiu identificar como sua busca por um público-alvo comum foi adaptada na circulação
transnacional. Para ser uma mulher de Deus com “raiz pentecostal”, como informa sua fala
durante o Chá que trago anteriormente, além da franqueza brasileira à qual se refere Van de
Kamp, seria necessário deslocar fronteiras entre “igreja” e “mundo”. Se no Brasil as críticas às
“assembleianas” ou às “crentes santas demais” estava refletida no uso de coisas eróticas no
casamento e nas estéticas da autoridade pentecostal, a contraposição ao comportamento de
brasileiras que migram para a Europa se dava em relação ao que nesse contexto era conhecido
como “frieza” europeia.
O resgate da “raiz pentecostal” buscava, assim, resolver desafios gerados neste diálogo:
de um lado, as dificuldades de ganhar dízimos e ofertas (“pra conseguir um euro tem que orar
e jejuar por meses, o dízimo não vem fácil como no Brasil”); do outro, suas aproximações
prévias com um estilo considerado “moderno” de se vestir e realizar pregações (“esse discurso
que me levou para a Europa, a minha modalidade de oração, dizendo que a mulher pode ser
moderna e se vestir bem”)201. As fronteiras se deslocavam através de um exercício de
“bifurcações”, como a pastora costumava se referir, apresentando uma “viradinha para a
esquina” que buscaria ampliar seu público para além de mulheres que já se apresentavam como
evangélicas e promoveria aprendizagens necessárias para ser “ousada na fé”.
Os trajetos destas “bifurcações” na Europa construíram pontes que pude acompanhar
também nas interações nos grupos de WhatsApp “do Brasil” e “da Itália” e, posteriormente, ao
entrevistar duas mulheres que participaram ativamente do processo. Além de terem oferecido
suas casas para a hospedagem da pastora, elas também ajudaram a organizar os Chás na Europa
que foram realizados em lares das mulheres e em uma igreja pentecostal independente na cidade
de Turim, liderada por um casal de pastores brasileiros. Virgínia e Luíza eram brasileiras,

201
Os trechos entre parênteses foram ditos em diferentes ocasiões pela pastora Cristiane através de mensagem de
áudio enviadas no WhatsApp, compartilhadas nos anos de 2019 e 2020.
245

moravam respectivamente há vinte e há oito anos na cidade, frequentando esporadicamente esta


igreja. Durante nossas entrevistas, ambas me contaram sobre como se deram os primeiros
contatos com a pastora, seus cotidianos na Itália e as diferenças entre a relação que estabeleciam
com igrejas e lideranças religiosas fora de seu país de origem:

Nesses anos que eu posso dizer que tô sem igreja, porque sabe... não
frequentando fisicamente é muito difícil! Quem que sempre esteve
disponível? Quem é que às 4h da manhã pode falar comigo porque é a hora
que eu tenho pra conversar, porque é a hora que eu tô dentro do carro, indo
pro trabalho? Com quem é que eu vou desabafar? Chorar? Quem é que tá
acordada àquela hora? Pastora Cristiane! (Entrevista com Virgínia realizada
por chamada de vídeo no WhatsApp, janeiro de 2021)

A proximidade do exclusivismo gerado em performances da intimidade que apresentei


na seção anterior produzia diferenças quando se tratava de uma relação transnacional. Nesta,
além do lugar ocupado pelo uso do celular, que produz adaptações espaço-temporais aos
diferentes fusos horários destas rotinas transnacionais, a aproximação com a pastora trazia a
dimensão de pertencimento ao pentecostalismo e, consequentemente, um resgate da brasilidade
que acompanha as expressões “quentes” e mais espontâneas desta religiosidade. Na trajetória
religiosa de Virgínia, mulher branca de origem da região Sul do Brasil, este resgate foi feito
através de sua empregada doméstica brasileira, que a chamava para jejuarem juntas com
frequência. O contato com a pastora Cristiane estreitou práticas que permitiram formas de
aproximação mais calorosas de tratar as pessoas e de viver a experiência religiosa:

Eu sinto muita falta do avivamento! Daquela coisa gostosa de você se


derramar, sabe? Eu lembro que um dia eu fui num culto, aí eu comecei a me
derramar, eu tava tão emocionada com a presença do Espírito Santo que eu
chorava! [...] Tipo assim, às vezes você quer dançar. Aonde é um pecado
dançar pra Deus? Tem um louvor, tô dançando pra Deus! Lógico, sempre com
ordem e decência... mas as pessoas te olham! [...] Então assim, esse calor da
oração, do chorar, do pular, do bater palma, aqui não tem! (Entrevista com
Virgínia realizada por chamada de vídeo no WhatsApp, janeiro de 2021)

Assim como Virgínia, Luíza associava as experiências em igrejas italianas como “muito
frias”. Comparando esta experiência com as que considera vigentes na denominação brasileira
da igreja Batista, ela explica que as denominações pentecostais italianas eram “mais
tradicionais”, referindo-se à falta da manifestação de dons espirituais. Além do espaço de
acolhimento direto para seu sofrimento, Luíza ressalta que a pastora Cristiane passou a ocupar
um espaço de aconselhamento para dúvidas sobre como praticar a Palavra que ela não havia
conseguido encontrar em contatos anteriormente estabelecidos nas igrejas que frequentou. Ao
246

participar de grupos de jovens e ter contatos com outros pastores, ela conta ter feito
questionamentos que ficavam sem resposta e ter recebido a fama de “pérola rebelde”.
Nestas redes de que Virgínia, Luíza, suas familiares e outras virtuosas faziam parte, a
pastora Cristiane se apresentava em contraposição a uma presença distanciada das
institucionalidades. Esta proximidade sugere, por sua vez, acessos a experiências religiosas
mais coerentes com princípios considerados “modernos”, os quais permitiriam compartilhar
emoções que compõem o imaginário unificador de povo brasileiro. Estudos sobre a formação
de redes religiosas transnacionais têm chamado a atenção para modos distintos de formação
que podem ser formalizadas em maior ou menor escala nestes fluxos. Segundo Oro, Steil e
Rickli (2012), de um lado, estão aquelas centralizadas em seus países de origem, caso de
grandes denominações brasileiras que estabelecem filiais em outros países; de outro, estão as
redes abertas, que envolvem negociações em torno de pessoas e são descritas pelos autores
como parte de mecanismos menos formalizados e que envolvem carisma pessoal e
engajamentos institucionais mútuos. Na medida em que o foco da viagem da pastora não incluiu
contatos estabelecidos através de redes institucionais, considero haver aqui uma composição
que não se sustenta em alianças colaborativas de redes semiformalizadas (ORO; STEIL;
RICKLI, 2012, p. 10), estando mais próxima às igrejas pentecostais independentes.
Em sua análise sobre a formação de uma igreja africana independente, Engelke (2010)
apontou para a importância do sentimento de valorização do passado para explicar como o
contexto pentecostal opera com noções específicas de ruptura. Nesse sentido, o autor propõe
que nossas análises explorem outros conceitos sobre romper com o passado; para além de
“tradição” e “modernidade”, categorias que expõem a dificuldade de separação, sua abordagem
etnográfica lembra como as tradições são situadas através de uma “narrativa bíblica abrangente”
que inclui vínculos históricos com figuras do novo e velho testamento, concluindo que, nesse
contexto, “toda ruptura é sempre um realinhamento” (ENGELKE, 2010, p. 186, tradução
minha)202.
As emoções implicadas nestes vínculos estabelecidos através de viagens internacionais
da pastora Cristiane possibilitam compreender como a nostalgia compartilhada pelo imaginário
de nação produz realinhamentos com expressões de autenticidade, sinceridade e franqueza que
estariam na “raiz pentecostal”. A passagem da pastora por países europeus apontou, ainda, para
como as mobilidades transnacionais do pentecostalismo brasileiro vêm possibilitando a
emergência de transformações nas carreiras de lideranças femininas que transitam no sentido

202
No original, em inglês: “[...] an overarching biblical narrative. [...] every rupture is always also a realignment”.
247

Sul-Norte global, bem como suas tentativas de driblar tensões no campo evangélico decorrentes
do imaginário exótico sexualizado de ser uma mulher brasileira que constrói redes com suas
semelhantes na Europa.
Como indica a fala selecionada para o trecho de abertura deste capítulo, as mobilidades
transnacionais no Ministério vêm produzindo articulações que ampliam redes de ajuda mútua
entre imigrantes brasileiras. As reflexões sobre transnacionalização religiosa cujas agentes
centrais são mulheres pentecostais sugerem que performances da intimidade nesse contexto não
estão voltadas somente para intervenções no âmbito doméstico, mas ganham contornos
coletivos para responder a demandas emergenciais que se relacionam à própria viabilidade da
permanência destas mulheres na Europa.

4.4 Vestida de pastora: mediações das corporalidades graciosas

Quando conheci Glória, ela realizava diversos trabalhos de evangelização junto ao


marido, que atua como diácono na mesma igreja. Ao longo dos seis anos como missionária em
uma Assembleia de Deus localizada em um bairro de classe média baixa da Zona Norte carioca,
ela começou nossa entrevista em sua igreja contando sobre seus afazeres naquele dia, o que
acompanhou desabafos que misturavam sensações de esgotamento e prazer em estar
constantemente “fazendo a obra”. Esta inquietação refletia a maneira como Glória lidava com
um trabalho de evangelização que se dava no cotidiano, muitas vezes realizado paralelamente
às atividades desempenhadas no interior da instituição religiosa em que congregava. Passados
alguns anos de uma delicada cirurgia que precisou realizar, no dia de nossa entrevista ela me
contou ainda bastante emocionada seu testemunho sobre o tempo que permaneceu internada
“entre a vida e a morte”.
Numa de suas noites em que permaneceu internada nestas condições em um hospital,
Glória solicitou a uma funcionária que fosse liberada para evangelizar nas enfermarias. A
resposta negativa para realizar a atividade veio acompanhada de uma solução, imediatamente
oferecida pela própria enfermeira que trouxe a notícia sobre o impedimento: “com a roupa do
hospital, não! Se veste de pastora aí que tá liberado!”. Orgulhosa, Glória me contou sobre os
milagres ocorridos naquela noite em que foi “usada por Jesus”. A autoridade conferida à sua
experiência só pôde ser garantida quando gestos, posturas e oratória dividiram sua passagem
com roupas que lhe conferissem posição de pastora naquele espaço que, por sua vez, já estava
habituado a receber visitas como esta.
248

A expressão utilizada por minha interlocutora intitula esta seção não somente por
mobilizar um conjunto de elementos vinculados à autoridade religiosa, o que chamei
anteriormente de estéticas da unção. Se nas seções passadas chamei a atenção para as políticas
contidas em formas de escolher “detalhes” de roupas, cabelos e outros elementos que formam
estas estéticas, aqui passarei a analisar corporalidades envolvidas nas performances de poder
de mulheres que lideravam cultos e evangelizações em diferentes espaços. Que tipos de
mudanças em suas gestualidades, posturas e tons de voz estar “vestida de pastora” evoca? Que
atitudes e disposições são incorporadas nestas sensibilidades, como sugere Charles Hirschkind
(2017) ao questionar sobre a existência de um “corpo secular”?
Como venho argumentando ao longo deste capítulo, por serem eventos atípicos, Chás,
Congressos e Conferências para mulheres são festividades que buscam expandir as experiências
sensoriais na interação com o público. A maioria das pregações que assisti ao longo do trabalho
de campo se deu durante estas ocasiões, quando a impostação da voz de modo firme e enérgico,
junto aos movimentos do corpo nos púlpitos, parecia ganhar ainda mais vigor em sincronia com
efeitos que não constituem cultos rotineiros. Com microfones em riste e expressões austeras,
tamanhos grandes 203 dos corpos que se buscavam femininos formavam as coletividades
significativamente presentes nos púlpitos e no público de eventos pelos quais transitei. Nos
registros fotográficos que fiz da pastora Cristiane em diversos cultos em que pregou, seu
semblante sério e combativo visibilizava modos particulares como os movimentos do corpo
constroem sua autoridade religiosa:

Enquanto segura o microfone com uma mão, vira a palma da outra mão em
direção ao público, distribuindo movimentos enérgicos em posição de quem
oferece bênçãos. Alterna estes movimentos de forma circular, ora com a mão
aberta e os dedos colados um ao outro, ora com o punho cerrado, com
movimentos bruscos em direção ao chão, como se o batesse com cada vez
mais força. Ao chamar pelos “espíritos malignos” para serem repreendidos,
aumenta o tom de voz e coloca o dedo indicador em riste. Fala em línguas,
bate com um dos pés de forma firme no chão e repete o movimento com o
outro pé, alternando o sapateado. Com pulos curtos, rodopia e grita para que
“Deus se sinta à vontade para se fazer presente” naquele lugar. O público em
êxtase, arrebatado pela presença do Espírito Santo, de olhos fechados, com as
palmas das mãos voltadas para a frente, deitados no chão e amparados por
obreiras, é acompanhado por um louvor que toca ao fundo, que agora ganha
alguns trechos também cantados na voz da Pastora. (Diário de campo, junho
de 2019)

203
No capítulo 2, elaboro sobre a importância de eventos como o Chá das Virtuosas para negociar maneiras como
corpos autodenominados “gordinhos” ganhavam status afirmativos para serem erotizados.
249

Além dos jogos de luzes e sons, os efeitos de potencialização destes movimentos se


davam através de usos de outras mediações presentes na cena, a exemplo do manto de oração.
Se sua disposição no corpo ganhava formas de uso semelhantes entre as mulheres, de modo
transpassado ao corpo e por cima da roupa, seu manuseio em outras pessoas, no entanto, era
feito por quem ocupava a hierarquia mais alta nos cultos. Seja cobrindo a cabeça das fiéis para
simular um espaço seguro a partir do qual se remete a uma sensação de escuridão e
individualidade que as aproxima do transcendente e da “intimidade com Deus”, seja jogando o
manto em suas direções em movimentos rápidos, que atingem bruscamente seus corpos e
lembram os usos feitos por pastores de seus paletós para abençoar fiéis durante os cultos, o
manto de oração recebia modalidades de uso que borravam distinções de gênero nas
performances buscadas por homens e mulheres em posições de liderança. Ao contrário do
observado nas lideranças, não notei diferenças significativas em sua utilização pela membresia,
que o destinava somente ao uso individual e, por sua vez, não autorizado ao manuseio em
interações com outras pessoas. Para ambos os casos, no entanto, cabe destacar um dado
importante que presenciei através da pastora em diferentes ocasiões. Ao mesmo tempo que
mantos de oração conferiam autoridade e unção pastoral às mulheres em igrejas de
determinadas denominações pentecostais, caso da Missões, noutras aparecia como símbolo de
impureza espiritual, sendo manuseados em maior ou menor grau de visibilidade a depender dos
locais em que as circulações ocorriam.
Embora nas igrejas pelas quais circulei ao longo do trabalho de campo operassem
distinções mais diretas para sua utilização, com a separação por cores em que o talit branco e
azul estava destinado aos homens e o manto vermelho para as mulheres 204, as formas como o
manto era empregado indicavam para sua capacidade prostética, semelhantemente à conferida
aos usos de aparatos tecnológicos nas performances de masculinidade feminina descritas por
Halberstam (1998) 205. Os usos do manto/talit, nesse sentido, atuam como aparatos prostéticos
que recriam elasticidades de gênero nesse contexto. Nas diferentes ocasiões em que observei
seu manuseio pela pastora Cristiane, pela bispa e outras lideranças, este se vinculava a situações
do que chamavam de “oração forte”, frequentemente envolvendo cura e outras intercessões por

204
Apresento outros detalhamentos sobre talits e mantos de oração no capítulo 3 da tese.
205
Segundo o autor, as “masculinidades femininas” não corresponderiam a uma imitação da virilidade, mas “sobras
depreciáveis da masculinidade dominante” (HALBERSTAM, 1998, p. 23, tradução minha. No original, em inglês:
“female masculinities are framed as the rejected scraps of dominant masculinity”). Na medida em que a
masculinidade nada teria a ver com a ideia biológica alocada à virilidade mas seria essencialmente prostética, o
autor apresenta diversos efeitos pelos quais se produzem masculinidades que teriam a ver com o uso de aparatos
tecnológicos, ricamente exemplificados em seu trabalho através dos usos de armas e outros elementos destinados
ao combate na atuação do personagem James Bond nos cinemas.
250

milagres. Os ritmos cadenciados aos movimentos do corpo e tons de voz complementados pelos
usos deste acessório religioso visibilizavam performances de gênero para o que chamei de
estéticas da unção que criam autoridade religiosa.
Além de permitir que mulheres também aperfeiçoem performances de poder que em
diversos espaços religiosos cristãos restringem o uso do símbolo religioso do talit aos homens,
o manto auxilia em produções mais eficazes de performances que buscam se qualificar como
virtuosas206. Dialogando com outro termo êmico central no trabalho de campo, estas são
performances “graciosas”. Aqui, novamente recorro ao investimento antropológico de Pitt-
Rivers (1992) através do qual o conceito de graça pode auxiliar a refletir sobre as ambivalências
que sua associação cristã com a vontade desperta em termos de (im)possibilidades de sua
obtenção. Na medida em que a vontade não vem só de quem a pratica, mas também pertence a
Deus, sua obtenção é alvo de cálculos imprevisíveis e arbitrários. Isto torna a unção, descrita
pelo autor como “técnica ritual para a graça” (PITT-RIVERS, 1992, p. 240, tradução minha) 207,
estado de busca infindável e em constante aprimoramento.

Imagem 24: Disposição corporal durante uma pregação

Fonte: Acervo da pesquisa, 2018.

206
Agradeço à Barbara Pires pela leitura atenta deste capítulo, cujas intervenções do que vinha indicando através
da categoria “feminilidades viris” desde a qualificação da tese permitiram que minha análise se modificasse para
passar a contemplar sentidos mais aproximados às corporalidades nesse contexto.
207
No original, em inglês: “Anointing, whether of kings or neophytes, is a ritual technique for according
grace”.
251

Em relações criativas com estas materialidades, as performances graciosas atuantes nos


espaços dos eventos também repercutem outras mediações presentes em contextos
evangélicos 208. De modo paralelo ao protagonismo feminino nos púlpitos debatido no contexto
das igrejas (SANTOS, M., 2002; TARGINO, 2010), o campo dos eventos está relacionado à
larga presença de cantoras que também são pastoras, fenômeno que destaca como a expansão
deste “mercado” dos eventos não está desvinculado da visibilidade atingida por mulheres no
cenário da música gospel.
Em sua etnografia sobre o ministério Profetizando às Nações, liderado por Fernanda
Brum, Jamille Bezerra (2020) argumentou sobre as afinidades entre trajetórias femininas no
pastorado com as mídias. Para além de compreender o protagonismo alcançado por mulheres
evangélicas nos púlpitos como tributário de exigências do exercício em casal, a autora aponta
que a presença de cantoras gospel como lideranças possibilita reflexões sobre a construção de
novas carreiras pastorais em circuitos pedagógicos voltados ao público feminino evangélico 209.
Assim, diferente de outros grupos etários, como os de jovens e de crianças, os chamados
“ministérios de mulheres” que intitulam estes eventos são geralmente compostos por mulheres
adultas, em sua maioria casadas, com idades que podem variar entre 30 e 60 anos. Enquanto no
cotidiano das igrejas suas participações podem estar articuladas com outros subgrupos, como
ministérios de louvor, ministérios de dança etc., nestes eventos as tentativas de fazer circular
pedagogias que possam atingir demandas comuns a estes grupos acabam definindo públicos
formados por mulheres nem muito mais novas, nem muito mais velhas.
As temáticas abordadas nas diferentes pregações que ocorreram no evento que
acompanhei da igreja Missões, apresentado na primeira seção deste capítulo, podem indicar
alguns dos motivos que geram distanciamentos destes perfis geracionais, criando variações
significativas entre públicos de eventos pentecostais voltados para mulheres e aqueles voltados
ao público geralmente definido como “jovem”. Em boa parte do tempo, os eventos para
mulheres que frequentei durante o trabalho de campo abordaram conteúdos voltados às
dinâmicas cotidianas do casamento e da maternidade, o que também pode justificar o dado que
apresentei anteriormente neste capítulo sobre as contrariedades sentidas pelas adolescentes que
me acompanharam naquela ocasião.

208
Ver: C. Machado (2020a, 2020b), Bandeira e Netto (2017), Oosterbaan (2015) e Pinheiro e Farias (2019).
209
Sobre negociações no mercado da música gospel contemporâneo e a formação da “identidade evangélica”, ver
Olivia Carvalho (2017).
252

Tal pertencimento geracional citado está presente também em diferentes lideranças com
projeção nacional, algumas delas com trajetórias na música gospel, que comandam a agenda
dos eventos voltados para mulheres em suas igrejas 210. Em formato cantado ou em pregações –
práticas que muitas vezes estão em continuidade nos púlpitos, como demonstra a descrição
etnográfica da performance da pastora Cristiane –, as mensagens pentecostais transmitidas no
púlpito pelas pastoras e missionárias que acompanhei são conduzidas por performances que
disputam espaço em universos tradicionalmente dominados por homens brancos.
Para citar alguns exemplos que aludem a estes deslocamentos políticos formulados nos
protagonismos femininos evangélicos no campo da música, o tom de voz firme e enérgico
adotado por cantoras e pregadoras bastante conhecidas entre as interlocutoras e que aparecem
noutros momentos da tese são alvo de acusações em tom pejorativo dentro e fora do meio
evangélico, que levantam suspeições de que as performances destas mulheres as levariam a ter
desejo sexual por outras mulheres. Entre elas, estão a Pastora Camila Barros e as cantoras
Ludmila Ferber, Elaine Martins e Neide, da dupla Alisson e Neide. Em atuação num clipe
lançado em 2017, a dupla performa um diálogo em que a voz de Deus, que no contexto cristão
que orienta o pentecostalismo é tomada pela referência ao masculino, é cantada por Neide
(“ALISSON E NEIDE...”, 2017). Durante o trabalho de campo, acompanhei uma coreografia
formada somente por homens em que o papel de Deus foi representado e cantado por um
homem, que dublou a voz de Neide durante a apresentação.
As performances de gênero nesse contexto enunciam modelos em que os usos de
materialidades que abordo enquanto formadoras de estéticas da unção e a mediação com a
música permitem adentrar em compreensões que merecem ser mais aprofundadas, mas já são
enunciadas tanto nos diálogos com as autoras que mobilizo como em estudos pioneiros sobre
mulheres no pentecostalismo. Por exemplo, ao observar as experiências pentecostais e
carismáticas no Rio de Janeiro, Maria das Dores Machado (1996) se pergunta como a
expressividade corporal marcada pela intensa interatividade com as músicas durante os cultos,
que marca aquilo que uma de suas interlocutoras chamou de “uma religiosidade quente”,
apresenta atravessamentos com manifestações próprias de festas como o carnaval.
As pistas fornecidas por Machado (1996, p. 154) ao destacar a forte impressão deixada
pela “espontaneidade, o molejo do corpo e a riqueza gestual” trazem perguntas em que a autora

210
Além de Fernanda Brum, anteriormente citada, destaco a centralidade neste cenário político-midiático de
atuação voltado para as mulheres evangélicas as pastoras Ana Paula Valadão e Elizete Malafaia e a Bispa Sonia
Hernandes.
253

buscava refletir sobre articulações entre gênero e sexualidade a partir do lugar destinado ao
corpo e suas emoções – em detrimento dos credos e significados do discurso religioso –,
problemas que ela informa não se encontrarem devidamente explorados na sociologia da
religião vigente. Este caminho se encontra abordado em uma pergunta feita pela autora sobre
as expressões destes marcadores sociais da diferença nas corporalidades evangélicas: “As
mudanças percebidas no uso do corpo na relação com Jesus, sobretudo nos momentos de louvor,
expressariam mudanças também no exercício da sexualidade feminina?” (MACHADO, M.,
1996, p. 157).
O que a autora chama de “momento do louvor” é elemento central no debate que busco
explorar sobre a sonoridade nesse contexto. As disputas produzidas através de “formações
acústicas” (LOPES, A., 2022) oriundas das periferias brasileiras, como o funk, rap, forró 211,
samba e outros ritmos musicais, incorporam conflitos e cruzamentos destes ritmos com o
gospel, o que, por sua vez, implica em transformações em suas performances. Em seu artigo
“Funk e gospel como construções acústicas do Atlântico Negro”, Arthur Lopes (2022)
assemelha as rejeições sofridas tanto pelo funk como pelos corinhos de fogo e suas
manifestações nos “retetés” como parte de um conjunto de negações que envolvem
corporeidade e musicalidade dos povos diaspóricos. O autor explica que, enquanto para o funk
as recusas ocorre(ra)m externamente e envolvem relações das periferias com os centros, a
exemplo da Lei estadual 5.265/08, que visava à sua criminalização, os corinhos de fogo sofrem
rejeições internas do público evangélico e ganham menor visibilidade na mídia hegemônica 212.
Conduzindo o debate das sonoridades musicais para a articulação com gênero e
classe/território, Mazer, Gelain e Guerra (2019) analisam cenas femininas do rap brasileiro para
sugerir que, nestas estéticas construídas por contextos de desigualdade social, a midiatização
produziu profundas transformações para o protagonismo feminino. Na medida em que raça e
classe historicamente ganharam maior evidência nas posições de resistência do que o gênero na
cena musical em questão, as demandas mobilizadas por mulheres envolvem aspectos do
cotidiano que chamam a atenção para estéticas no uso dos cabelos crespos, violências e
desigualdades no âmbito doméstico, sexualidade, maternidade, entre outros. Segundo os

211
Em artigo recente, Carly Machado (2020b) faz uma analogia entre a performance de uma importante
personagem pública do universo pentecostal na baixada fluminense, Flordelis, com este gênero musical.
212
No mesmo artigo citado, o autor promove interessantes analogias com eventos ocorridos no surgimento do jazz,
do blues e do gospel durante o contexto de escravidão norte-americana e trabalhados por Angela Davis (1998).
Assim como os corinhos de fogo, o blues tem uma história de marginalização em relação ao jazz, tendo sido
protagonizado por mulheres negras do sul dos Estados Unidos (LOPES, 2022).
254

autores, a visibilidade que estas mulheres vêm ganhando, por sua vez, impulsionou maneiras
de “fazer por si próprias” e forneceu novas vinculações às artistas mulheres no mercado
fonográfico.
Considero este argumento importante para situar modos como os usos de mídias digitais
vêm produzindo protagonismos e transformando performances de gênero através de
articulações interseccionais, o que trarei com maior aprofundamento a partir de minha
etnografia com mulheres evangélicas no próximo capítulo. Nos projetos éticos pentecostais
apresentados ao longo do presente capítulo, busquei explorar como as disposições que preparam
o corpo para combater em batalhas espirituais durante os eventos para mulheres envolvem
deslocamentos em que as normas não são ressignificadas, mas “performadas, habitadas,
experenciadas de várias maneiras” (MAHMOOD, 2006, p. 136). Os agenciamentos da
autoridade religiosa que busca pela unção são promovidos pelas mulheres evangélicas através
de estéticas e mediações sonoras elaboradas em diálogos críticos com institucionalidades e
contextos em que vivem.
255

5 UM MINISTÉRIO NO WHATSAPP

Ore junto, não fica só ouvindo. Tem muitos milagres que não acontece porque
você não abre a sua boca.

Tem mulheres q moram em Portugal Londres Itália e Estados Unidos fora as


q moram em OUTROS Estados e q fala q até pelo áudio sente a presença de
Deus. 213

Entre as muitas singularidades que a etnografia de um Ministério sem vínculos


institucionais pôde oferecer para a análise que me proponho a fazer nesta tese, a entrada nos
grupos de oração femininos no WhatsApp apresentou uma maneira de conhecer a expansão do
cotidiano devocional de mulheres evangélicas no tempo e espaço. Em seus quartos, salas de
estar, locais de trabalho, deslocamentos em transportes públicos pela cidade, entre muitos
outros espaços possíveis para se colocar em oração, a rotina coletiva de preparação em
campanhas de jejum e oração e compartilhamento de conteúdos que dialogavam com seus
engajamentos com Deus indicavam que qualquer momento e local poderiam ser preparados
para a posição de “joelho no chão, boca no pó” 214.
Como venho argumentando ao longo desta tese, fazer parte do Ministério/ Projeto/
grupo Mulheres Virtuosas articulava duas dimensões de uma socialidade vivida
transnacionalmente: de um lado, os eventos, intitulados em sua maioria como Chás das
Mulheres Virtuosas e realizados em igrejas de mulheres que congregavam em diferentes
denominações pentecostais e seus lares; do outro, os grupos de oração, todos também nomeados
“Mulheres Virtuosas” e gerenciados pelo casal de pastores que liderava o Ministério, Cristiane
e Bruno. Ao longo do trabalho de campo, participei de dois destes grupos.
No primeiro, acessado logo no início da etnografia, o título “Mulheres Virtuosas” estava
acompanhado de emojis com bandeiras do Brasil e Israel e três planetas. No segundo, que passei
a integrar no início de 2019, outros emojis acompanhavam o título: bandeira da Itália, coroa,
família formada por um pai, uma mãe e duas filhas com o tom de pele amarelo, salto vermelho,
batom vermelho e vestido em tom azul claro. Os grupos eram respectivamente chamados pela
pastora de “grupo do Brasil” e “grupo da Itália”, sendo o primeiro o que contava com o maior
número de integrantes e se manteve estável, com cerca de uma centena de mulheres entre os

213
Trechos de mensagens de voz e texto, respectivamente, compartilhadas nos grupos de oração “Mulheres
Virtuosas” no ano de 2018.
214
A expressão bíblica do Velho Testamento corresponde à posição de humilhação e submissão perante Deus.
Ver: Lamentações 3, 29.
256

anos que compõem a análise desta tese. Não acessei os outros grupos de oração liderados pelo
casal, que eram classificados por cidade, região ou país. Além do “grupo do Brasil”, também
chamado de “grupo do Rio”, e o “grupo da tropa”, que contava com as integrantes mais ativas
do Ministério, havia o que chamavam de “grupo de Minas”, “grupo do Nordeste”, “grupo do
Norte”, “grupo da Espanha”, entre outros. Similar ao “grupo da Itália”, estes eram descritos
como modelos menores e com engajamentos inferiores ao primeiro, o “grupo do Brasil”,
inaugurado em 2015.
Um dos grupos que não acessei era liderado somente por Bruno, marido de Cristiane.
Como único homem que integrava os grupos de oração femininos, sua interação com as
participantes se dava de maneira sempre formal e estava restrita à companhia da pastora. O
casal frequentemente orava juntos em mensagens de voz e gravação de vídeos para liderar
campanhas de oração e jejum, ou fazer elogios à sua esposa em ocasiões especiais, como datas
de aniversário ou de casamento. Ele também liderava desde 2019 um grupo pequeno voltado
aos homens, intitulado “Guerreiros da fé” 215, e realizava investimentos para se engajar como
liderança do público evangélico masculino 216, em sua maioria maridos das mulheres que
participavam do Ministério Mulheres Virtuosas.
Havia diferentes maneiras de tornar-se parte de um ou mais grupos de oração femininos
liderados pelo casal. A entrada era facilitada via links públicos, compartilhados pela pastora em
grupos no Facebook, ou através de convites como o que me foi feito após o primeiro Chá, dia
em que conheci a pastora e algumas das principais integrantes da “tropa”. A estratégia de
divulgação do casal segue outras que pude encontrar em diversos grupos de oração digitais
vinculados a links que podem ser facilmente encontrados através de grupos no Facebook,
geralmente intitulados com nomes de igrejas, pastores(as) e cantoras(es) gospel, ou de pesquisas
em buscadores como o Google. Ao longo do trabalho de campo, fui adicionada a alguns destes
grupos por pastores e membros de igrejas que conheci durante a pesquisa, mas não se tornaram
interlocutores217. Esta breve incursão me levou a notar que, de modo geral, seus integrantes
também costumam compartilhar conteúdos semelhantes aos daqueles em que estive inserida.

215
Em sua pesquisa sobre grupos carismáticos pentecostais em aplicativos móveis, Josiah Taru (2019) indica que
a presença constante do termo “guerreiros da oração” (prayer warriors) denota uma chamada pública para lembrar
os integrantes de seus horários coletivos de oração.
216
Esta exclusividade tornou inviável minha participação neste grupo, o que busquei compensar através em
interações presenciais durante o trabalho de campo e na realização de entrevistas com ele e outro membro, também
pastor, que frequentemente participava dos Chás das Virtuosas (ver subseção 3.1.2 da tese).
217
Por ter privilegiado a análise de dois grupos que faziam parte da pesquisa que já desenvolvia com mulheres
evangélicas, os conteúdos publicados por estes outros grupos não se encontram analisados na tese.
257

Este era o caso de Vilma, 38 anos, que mora na Bolívia e conheceu o grupo Mulheres
Virtuosas através de sua irmã. Além do grupo de WhatsApp com membros de sua igreja, que
nomeou como “círculo de oração”, ela participa de diversos outros grupos de oração com
mulheres, em sua maioria liderados por amigas que atuam como pastoras no Brasil. Marina,
por sua vez, uma das integrantes da “tropa” e tornada administradora do “grupo do Brasil” em
2018 junto a outra participante, constitui mais dois grupos de oração com intercessoras de sua
igreja, uma Assembleia de Deus na favela de São Carlos, Rio de Janeiro. Ela confessa não ser
muito participativa nos grupos pois, em suas palavras, fica “sobrecarregada espiritualmente”.
Marina me disse uma frase em nossa entrevista que mostra a principal justificativa para a
viabilidade de ser uma pesquisadora no grupo de oração Mulheres Virtuosas: “o grupo das
virtuosas ajuda todo tipo de pessoa, inclui qualquer tipo de pessoa que queira Jesus”. Para ela,
diferente de outros grupos de oração que integra, os grupos em que estamos juntas não
contariam “só com mulher de oração”, mas com “todo tipo de pessoa”.
Essas hierarquias estabelecidas também fora dos contextos digitais acerca de uma rotina
de devoção que caracteriza a vida evangélica indicaram rumos ético-metodológicos a esta
pesquisa. Se, não sendo evangélica, me engajar em trabalhos relacionadas aos eventos
presenciais e às redes sociais da pastora me mantinha no grupo, empreendi esforços para indicar
frequentemente meu desejo de permanecer ali como pesquisadora. A rotinização deste formato
de comunicação que se fazia nos grupos e, por vezes, também “no privado”, indicava que ser
excluída do grupo também implicava em deixar o Ministério. Fernanda, interlocutora que fazia
parte da “tropa” e que acompanhei no trabalho de campo mesmo após sua saída voluntária do
“grupo do Brasil”, indicou em nossa entrevista que sentia saudades, mesmo ainda fazendo parte
do “face das virtuosas”218. Sua fala indica como o peso afetivo de sair de um grupo de
WhatsApp extrapola as fronteiras digitais do aplicativo e escoa em relações offline.
Meu principal objetivo neste último capítulo da tese é identificar sentidos associados às
participações das interlocutoras nos grupos de oração do “zap”, como chamam mais
frequentemente. Semelhante ao que propôs danah boyd (2014) a partir do termo “mídias
sociais”, considero o WhatsApp parte de uma arena midiática composta por outros aplicativos
móveis, plataformas e ferramentas de comunicação que surgem após os anos 2000, inaugurando

218
Sua referência é ao perfil do Ministério no Facebook. Um detalhamento sobre a saída de Fernanda pode ser
visto na seção 2.5 da tese.
258

a chamada web 2.0219. Inserindo-se no campo de contribuições antropológicas sobre o campo


da cibercultura (SEGATA; RIFIOTIS, 2016), as escolhas analíticas que explorei nesta tese
tiveram como premissa básica as transformações causadas pela portabilidade adquirida após os
usos da tecnologia móvel dos celulares. As funcionalidades de conexão e facilitações em
consumos de pacotes com redes sociais como WhatsApp e Facebook por diversas empresas de
telefonia brasileiras indicaram, ainda, outros aprofundamentos formadores do contexto em que
esta pesquisa se inseriu enquanto efeito do “uso dos smartphones simbioticamente associado à
popularização das redes sociais” (LINS, 2019, p. 58).

Imagem 25: Ilustração do perfil dos grupos de oração “Mulheres Virtuosas” no WhatsApp

Fonte: Autoria desconhecida.

Minhas primeiras impressões sobre a imensa quantidade de conteúdo compartilhado nos


grupos de oração Mulheres Virtuosas despertaram incertezas metodológicas e
desconhecimentos sobre como agir em um ambiente que soava tão familiar quanto estranho às
minhas interações cotidianas. Assim como boa parte de minha geração, nascida após os anos
1980, cresci ouvindo sobre nossa intimidade com o “internetês” (LINS, 2019). Embora as
relações com o WhatsApp extrapolem nichos geracionais específicos em nosso país 220, estar
em muitos grupos no aplicativo também fazia parte de minha rotina como usuária de mídias

219
As numerações que acompanham a terminologia “web” são categorias comerciais e vinculadas ao marketing.
Segundo Lins (2019), a web 2.0 foi caracterizada principalmente por produzir transformações causadas pela
capacidade dos usuários de produzir conteúdos autorais.
220
Os números coletados através do Data Reportal, empresa que divulga publicamente comportamentos digitais
baseados em estudos de marketing e tendências, têm apresentado relatórios utilizados por diversos veículos de
comunicação brasileiros para apontar o crescimento do uso do WhatsApp no Brasil nos últimos anos. Sua
estimativa é de que em 2022 o Brasil foi o país que contou com maior número de usuários(as) do WhatsApp no
mundo (KEMP, 2022).
259

sociais. No entanto, era incomum em minha trajetória como pesquisadora passar horas
interagindo com conteúdos compartilhados em um grupo no WhatsApp. A imersão no cotidiano
religioso em que ouvir longas mensagens de voz com pregações, orações e testemunhos, além
de visualizar fotos e ver/ouvir vídeos motivacionais, ocupava a centralidade do tempo dedicado
à pesquisa despertou para outras percepções em que as habilidades sensoriais relacionadas à
prática da oração se fizeram fundamentais para compreender as interações no grupo221.
Aprender a orar na oração conjunta implica, sobretudo, em orar ouvindo. Junto à
centralidade da dimensão sonora nestas rotinas, aspecto caro às formações da presença religiosa
(HIRSCHKIND, 2006; OOSTERBAAN, 2009), fazer pesquisa através do WhatsApp apontou
para outros modos de escutar sobre como mulheres pentecostais têm construído carreiras
paralelas à institucionalidade dos templos e exercido sua fé em espaços digitais transnacionais
que chamam de Ministérios, Projetos e grupos.
Para além de ferramenta e contexto, o WhatsApp passou a integrar a pesquisa como um
dos principais campos da pesquisa (LINS; PARREIRAS; FREITAS, 2020). O contato com
diferentes investigações socioantropológicas que têm se engajado em compreender como a
religião é vivida através das mídias (STOLOW, 2005; MEYER; MOORS, 2006; MACHADO,
C., 2013; JUNGBLUT, 2012; SILVA, A., 2021), as especificidades voltadas às interações
religiosas em smartphones e aplicativos móveis (SILVA, S., 2015; FEWKES, 2019), bem como
os próprios sentidos pentecostais atribuídos aos grupos de WhatsApp (FAIMAU, 2017; TARU,
2019), trouxeram indicativos importantes para explorar mais profundamente os
atravessamentos interseccionais222 nas dinâmicas produzidas por meio da centralidade deste
aplicativo na vida contemporânea no cotidiano de usuários(as) brasileiros(as).
Ao longo das próximas seções, busquei caracterizar as interações na rotina digital a
partir de seus aspectos mais gerais, identificando inicialmente os principais estilos narrativos
elaborados através de textos, imagens e mensagens de voz. Analiso algumas das principais
recorrências e modos como gerenciam diferenças, dentre as quais o fortalecimento de
estratégias de prestígio da liderança pastoral e de pertencimento ao Ministério que são
constantemente elaboradas no interior do grupo. Indico, assim, caminhos para explorar
perguntas que guiaram minhas principais inquietações na tese: que fatores produzem
engajamentos digitais entre as “virtuosas”? Por que “seguem” o casal de pastores em eventos e

221
Agradeço à generosidade de Carly Machado por chamar a atenção para este dado, também necessário para me
afastar do imaginário de “campo religioso”, supostamente fixo e institucionalizado, fazendo com que o WhatsApp
ganhasse maior importância em minhas análises.
222
Para uma discussão sobre masculinidades nos usos dos grupos de WhatsApp, ver Zanello (2020).
260

participam dos grupos de oração? De que formas essas mulheres descrevem e fornecem
significados para os laços construídos através do digital? Como os usos do WhatsApp têm
modificado modos de exercer a fé pentecostal e sua autoridade religiosa?
Ao fazer um trabalho sobre o WhatsApp e no WhatsApp, inspiro-me na proposta de
Christine Hine (2020) através da qual fazer etnografia na/da/sobre a internet envolve uma
“abordagem multimodal”: múltiplas modalidades e estratégias de engajamento com o campo,
combinando online e offline, seguindo suas conexões. Ao lado da sugestão de Hine, levar a
sério a presença generalizada em diferentes países da América Latina sobre os usos do
WhatsApp enquanto “infraestrutura coletiva” e “tecnologia da vida”, conforme afirmaram
Edgar Gomez Cruz e Ramaswami Harindranath (2020), também apresentou caminhos em que
as práticas online no WhatsApp foram combinadas às conexões offline. Conectar-me aos grupos
do “zap”, nesse sentido, não significou simplesmente responder a um convite das interlocutoras,
mas permanecer aberta à possibilidade de conhecê-las através do que fazem, pelo que e por
quem pedem e louvam em suas orações.
Nesse sentido, foi fundamental para a análise que trago neste capítulo considerar a
materialidade do celular através do qual se clama junto aos outros objetos que podem consagrar,
como o óleo de unção, serem consagrados, como peças de roupas e documentos, ou, ainda,
amaldiçoar, como as chamadas “obras de macumbaria” e “feitiçarias”. A repetição coordenada
desta dinâmica no cotidiano de pesquisa chamou a atenção para modos nos quais estes rituais
performativos (TAMBIAH, 1985) constroem relações que vêm qualificando estas mulheres
enquanto virtuosas e conferindo a “unção” de autoridades religiosas mutuamente exercidas com
as lideranças dos grupos.
As relações religiosas possibilitadas através de diversos suportes de acesso ao sagrado
provocam, através do celular, a sensação de presença divina experimentada ao orar junto para
quem ouve pregações ou participa de campanhas digitando mensagens de texto, enviando
áudios, vídeos e fotos de seus cenários de oração. A onipresença dos sons e imagens, estáticas
e em movimento, experimentada com a sensação de estar constantemente inserida no trabalho
de campo, conjuga com o rompimento que pesquisas realizadas em espaços digitais
estabelecem em relação ao imaginário formado pelas viagens, isolamentos e deslocamentos
para espaços longínquos, os quais já receberam diferentes críticas em trabalhos
antropológicos223.

223
Entre eles, destaco os efeitos do “estar lá” enquanto recurso de escrita para produzir legitimidade (GERTZ,
2002), a virada para a análise do texto etnográfico (CLIFFORD; MARCUS, 2016) e a crítica às identidades
261

A oposição entre online e offline, presencial e digital, proposta por movimentos de


entradas e saídas do trabalho de campo, esteve distante do modo como esta etnografia se
realizou, já que ela reflete o próprio tempo histórico e contexto a partir do qual estamos nos
relacionando contemporaneamente. Sair dos grupos de WhatsApp, como argumento
anteriormente, escoa em relações de afeto e respeito produzidas ao longo desta pesquisa.
Sobretudo após a pandemia do novo coronavírus, esta condição se tornou ainda mais
importante, na medida em que boa parte das interlocutoras convive cotidianamente no
WhatsApp sem nunca terem dividido presencialmente um espaço. A este respeito, Appadurai
(1996) nos lembra a respeito da grande mobilidade pela qual as religiões passaram com a
ascensão dos meios de comunicação de massa, tendo seus repertórios modificados, articulados
a modelos de consumo coletivos, transnacionais e globalizados, criando diásporas que se
vinculam às políticas da vida urbana.
Tais formas de expansão do Ministério no tempo e espaço (MACHADO, C., 2020b)
que ocorrem através dos usos do celular entre sujeitos pentecostais integram, de diferentes
maneiras, a elaboração de métodos para que se estendam no mundo e para além de si mesmos,
prática que Coleman (2018) chamou de “dimensões do transbordamento”. Ao compreender
estas experiências como parte de transbordamentos espaço-temporais, entendo que as
interações digitais compõem formas de ação religiosa no mundo que criam e fortalecem
relações, maneiras de compartilhar condutas éticas da virtude e da graça através de pedagogias
de gênero e erotismo.
Embora o ambiente digital não tenha sido o único a partir do qual a pesquisa foi
realizada, sua centralidade e as negociações em torno de seus usos apresentaram fronteiras
fundamentais para a compreensão de disputas pela autoridade religiosa nos circuitos que
ocorrem dentro e fora do institucional. Reconhecendo humanos e não-humanos que atuam
através da internet como “plataforma que cria tecnologias”, conforme apontado por Miller
(2013), encarar o WhatsApp analiticamente refletiu sobre um universo de continuidades entre
online e offline, situado por uma perspectiva em que a antropologia do digital (MILLER;
HORST, 2012) busca romper tanto com o dualismo imbricado na noção de “virtual” (MILLER;
SLATER, 2004) como produz noções de gênero e sexualidade que se (trans)formam nas
relações com múltiplas plataformas e tecnologias (LEITÃO; GOMES, 2018).

forjadas na noção de “campo” ou “local de campo” como unidade analítica privilegiada pela antropologia
(GUPTA; FERGUSON, 1997).
262

Este olhar para as mediações em aplicativos e plataformas digitais, por sua vez, requereu
a transformação de perguntas e caminhos metodológicos ao longo do processo etnográfico.
Assim, as questões que conduziram esta pesquisa buscaram compreender como a religiosidade
evangélica tem possibilitado a formação de agrupamentos digitais entre mulheres e mobilizado
relações entre coisas e pessoas, possibilitando a criação de efeitos de presença humana e
transcendental para explorar como pessoas também são formadas por imagens e sons.
Ao explorar cenas do cotidiano nos grupos de oração no WhatsApp, busquei
compreender como a atuação pastoral por meio deste aplicativo tem possibilitado a criação de
vidas religiosas amparadas em estratégias, tanto para carreiras pastorais autônomas quanto para
a fixação de fiéis a um cotidiano evangélico que não necessariamente tem contado com sua
presença em espaços físicos de devoção. Argumento, nesse sentido, que estes vínculos
evangélicos institucionalmente mais frouxos e instáveis são agenciados nas intimidades dos
usos dos smartphones. Enquanto espaço seguro para o compartilhamento de intimidades entre
mulheres, os grupos de WhatsApp têm possibilitado refletir sobre “mobilidades de gênero”
(KENNY, 2016) e novas explorações do desejo que ocorrem na subjetivização de plataformas
e dispositivos móveis.

5.1 Espaço, tempo e dinâmicas de controle nos usos do celular entre mulheres
evangélicas

O uso de celulares é o principal meio de acesso à internet para grande parte dos(as)
brasileiros(as). Quando falamos de brasileiros de camadas populares, o dispositivo se torna
exclusivo como forma de conexão em detrimento de computadores de mesa, notebooks, tablets
e acessos pela TV. Esses dados, correspondentes à última pesquisa TIC Domicílios (2021),
mostram como as classes D e E concentram 89% deste modelo como única forma de acessar a
internet. Alguns marcadores sociais demonstram que o acesso mais desigual nestes grupos está
refletido entre pessoas pretas e pardas (para quem o celular é o meio principal de acessar a
internet para 65% e 69%, respectivamente), mulheres (68%), com nível de escolaridade
fundamental (84%) e variações de 70 a 80% para o público a partir de 45 anos.
As diferentes maneiras de utilizar o celular durante os eventos voltados para mulheres
evangélicas que acompanhei em ginásios, igrejas e lares, somadas aos seus usos domésticos,
tornaram a materialidade dos celulares do tipo smartphone parte significativa da compreensão
sobre modos como mulheres vem formando coletividades evangélicas. Entre minhas
interlocutoras, majoritariamente integrantes do conjunto apontado na pesquisa anteriormente
263

citada, estes celulares são visibilizados em cultos rotineiros, festividades e como principal meio
de comunicação para estabelecer vínculos.
Sempre a postos para registrar áudios, fotos e vídeos dos cultos, não havia práticas
proibitivas por parte de lideranças ou fiéis para sua utilização 224. O incentivo, que
frequentemente se estendia a mim enquanto pesquisadora que realizava constantes registros ora
pelo celular ora por uma câmera fotográfica, era comentado como um incremento à
evangelização para expandir a Palavra através das redes sociais. Assim, frequentemente ouvi
das interlocutoras combinações entre os desígnios de Deus com os usos de mídias em práticas
religiosas no cotidiano: “Deus me mandou entrar para filmar e fotografar tudo”, me disse uma
delas após uma atividade de evangelização realizada em um hospital.
As funcionalidades destes dispositivos se aliam à sua capacidade portátil, repercutindo
deslocamentos feitos pelas mulheres não só em suas atividades de evangelização, mas em
modos como os usos rotineiros modificavam formas como se relacionavam coletivamente. Em
sua pesquisa sobre o uso de celulares na Jamaica, Daniel Miller (2013) utiliza a ideia de “uso
inerente” do celular para se referir aos múltiplos usos feitos através do dispositivo tecnológico,
possibilitando uma extensão significativa dos atributos conferidos ao aparelho. Alguns
exemplos citados pelo autor vão desde a utilização funcional do celular como relógio,
calculadora e calendário ou simplesmente para administrar o trabalho e vida pessoal, até o uso
de aparatos estéticos como enfeites ou personalização do aparelho através de toques destinados
a um contato específico.
O item ao qual mais tive acesso para notar estas personalizações foram as bíblias
utilizadas pelas mulheres durante os cultos. Bíblias em lilás e cor-de-rosa ou decoradas com
acessórios brilhantes eram frequentemente alvo de comentários elogiosos, chamando a atenção
de outras mulheres. Além destes usos que provocam pertencimentos identitários, também
observei frequentemente os usos de celulares para leitura da Bíblia. Ler a Bíblia pelo celular,
através de aplicativos que reproduziam o texto sagrado, era algo bastante comum tanto na
ocasião dos cultos presenciais quanto nas interações cotidianas nos grupos de oração, nos quais
versículos eram sempre compartilhados com a assinatura daqueles mais utilizados pelas

224
A diversidade relativa às interdições, anuências totais ou parciais nos usos do celular tanto por grupos
evangélicos como noutros contextos religiosos é trabalhada por diferentes autores do campo interdisciplinar de
estudos da religião. Tais usos em grupos de judeus ortodoxos foram estudados por Fader (2017); entre grupos
católicos, ver Sousa (2018); para religiões de matriz afro-brasileiras como a umbanda e o candomblé, ver S. Silva
(2015).
264

interlocutoras. No entanto, a facilitação gerada por estes usos era frequentemente também
justificada com certa vergonha.
Ao longo do trabalho de campo nos eventos, notei que aquelas que recorriam aos
aplicativos no momento solicitado para o acompanhamento da leitura da Palavra pelas(os)
pastoras(es) o faziam em olhares de soslaio, em contraposição aos elogios à materialidade do
livro bíblico portado por quem o levava aos cultos. O fato de eu também não ter percebido usos
do celular para realizar uma pregação no momento da leitura por parte dos(as) pastores(as) traz
mais um elemento para indicar como estes usos facilitadores também estavam permeados por
hierarquias no pentecostalismo, vistos como elementos inferiores para ocuparem lugares de
poder nos estilos que denotam distinção (BOURDIEU, 2007).
Ao mesmo tempo, os usos generalizados dos smartphones como principal meio de
comunicação para acionar redes de contatos de trabalho, da vizinhança e familiares também
provocam diferentes rupturas em relação às formas como espaço e tempo são vividos em
coletividades. Como afirmou Iara Beleli (2015, p. 95) a partir de um trabalho com mulheres
que usam aplicativos de relacionamento, o celular é “atado, ou confundido mesmo com o corpo
– não é apenas uma tecnologia, mas é parte da constituição do corpo”. O que a autora chamou
de “tecnologia incorporada” fornece noções de mobilidade imiscuídas à pele, tons de voz e
outras sonoridades.
As confusões com o próprio corpo nestes usos do celular e das mídias digitais eram
conduzidas em muitos casos através de dinâmicas de purificação e contágio (DOUGLAS,
2014). Ao comentar sobre publicações que traziam vídeos de candidaturas políticas, uma das
participantes indicou que estaria apagando as mensagens que acabara de ver para evitar que se
“contaminasse”. Paralelamente, aspectos incorporados ganhavam efeitos de expansão da
mobilidade e encurtamento do tempo também em meu próprio corpo, devido aos longos
períodos imersa em intensas dinâmicas digitais entre centenas de pessoas 225.
Durante as orações coletivas, mulheres contavam estar no trabalho, no transporte
público, nos quartos de suas casas. Os chamados do casal de pastores confirmavam a atenção
dada a este detalhe, quando frequentemente as convocavam a “se colocar de joelhos aí de onde
estiverem”. Quando me desloquei com a pastora ao longo do trabalho de campo, pude
presenciar o momento rotineiro em seu cotidiano de enviar pregações por mensagens de voz a
estes grupos da esquina de sua casa, enquanto esperávamos por um motorista solicitado via

225
Vale ressaltar que, no período da pandemia, esta sensação se alargou devido à própria rotina de isolamento
social.
265

aplicativo de transportes. Desse modo, a dinâmica se repetia entre quem ouvia e quem enviava
os áudios.
Ainda no que se refere ao tempo, outro aspecto transformado pelas intensas experiências
de uso do celular nesse contexto diz respeito a uma prática recorrente entre evangélicos(as): a
oração nas madrugadas. “À meia-noite, os povos são perturbados”, “Às três da manhã, horário
em que castas de demônios estão soltas”, foram alguns dos argumentos mobilizados para
localizar maior disponibilidade para a oração nestes horários. As justificativas também
ganhavam tom pragmático, como orações feitas ao meio-dia na medida em que haveria maior
disponibilidade para orar durante o almoço, horário em que necessariamente estariam em casa
ou no intervalo do trabalho. Combinados a isso, argumentos amparados em interpretações
bíblicas se articulavam à adequação ao cotidiano:

Existe um espírito de morte que assola ao meio-dia.


15h é a hora nona, o horário em que Jesus consumou na cruz o sacrifício.
Os demônios, espíritos da morte, são setas que voam ao meio-dia, horário que
marido e filhos chegam para almoçar (Trechos de mensagens de voz
compartilhadas nos grupos de WhatsApp em 2018 e 2019).

Os deslocamentos nas dimensões de espaço e tempo destacam modos como o caráter


móvel do celular cria formatos para orar junto, permitindo diferentes usos entre estas
coletividades de mulheres evangélicas. Tais formatos se adequam aos horários, deslocamentos
urbanos e rotinas das mulheres e lideranças evangélicas, podendo ser compreendidos muitas
vezes pelas interlocutoras como continuidades ou extensões que uma necessária presença no
espaço físico da igreja costuma provocar em reivindicações pela identidade evangélica. Um dos
exemplos mais comuns a este respeito está nas diferenças já popularizadas nesse contexto que
separam “crentes domingueiros”, em referência à presença nos cultos somente aos domingos,
de “crentes de verdade”, indicando as hierarquias que a presença física na igreja conforma aos
pertencimentos evangélicos.
Estas classificações reverberavam em falas constantes da pastora Cristiane sobre os
necessários distanciamentos entre o espaço da igreja e os usos religiosos do celular. Além de
suas orientações destinadas à importância de que cada integrante do grupo continuasse indo às
suas devidas igrejas, após o aumento do número de mulheres participando dos grupos de
WhatsApp em decorrência da pandemia, a pastora me indicou em uma de nossas conversas que
diminuiria a frequência de pregações e as substituiria pelas orações: “elas não estão mais indo
à igreja”, contou. As preocupações da pastora indicavam experiências que posteriormente
266

foram compartilhadas por virtuosas comigo a respeito do lugar substitutivo ocupado pelo
cotidiano religioso online.
No exemplo de Virgínia, que conta estar “sem igreja” nos últimos anos, esta substituição
é realizada a partir da associação com a figura da principal liderança do grupo como espaço
prioritário de relação cotidiana com a fé. Devido ao fuso horário e à sua rotina de trabalho
exaustiva, ela explica que a pastora Cristiane “sempre esteve disponível” para ouvi-la
“desabafar” e “chorar” nos únicos horários em que ela teria disponibilidade. Agregando ao
papel acolhedor de “mãe espiritual”/“mãe na fé” (ver capítulo 2) e de pastora que “sempre está
à disposição no privado”, como a própria Cristiane costuma frisar, o celular ganha uma
dimensão espaço-temporal transformadora nestes cotidianos religiosos. Ao mesmo tempo, as
divisões entre público e privado que reverberam nos dualismos provocados entre igreja e casa,
religião e espaço público, são deslocadas por Virgínia, que também utilizava o celular para
fortalecer suas relações coletivamente com Deus amparada em temporalidades específicas ao
seu cotidiano como imigrante na Itália. “Estar sempre à disposição” incluía, sobretudo, fazer-
se disponível em horários menos comuns para se estar acordada, como a madrugada, ou que
podem se adaptar à rotina corrida de trabalho. Combinando-se às adaptações causadas por fusos
horários diferentes, as orientações de Cristiane poderiam se ajustar às diversas rotinas de
mulheres do Ministério espalhadas pelo mundo.
O caso de Luíza, que chegou a frequentar igrejas evangélicas, mas acabou se afastando
por não compartilhar dos mesmos valores que lideranças e membros, mostra alguns elementos
que a fizeram deixar de ir a estas igrejas para exercer sua fé através da relação estabelecida com
a pastora Cristiane. Após ter sido frequentemente chamada de “pérola rebelde” nestes espaços,
Luíza indica que enfrentava constantes conflitos sobre comportamento das lideranças que não
correspondiam à exemplaridade exibida em pregações. Por residir em outro país, as relações
estabelecidas com a pastora se dão exclusivamente através do celular.
Esse é o caso de muitas outras integrantes do Ministério que, assim como Virgínia e
Luíza, são brasileiras migrantes na Itália. Os vínculos formados com a liderança podem se dar
tanto no formato de grupos como em conversas estabelecidas individualmente com a pastora,
preferência de Luíza. Semelhante ao que Daniel Miller (2021) chama a atenção a respeito dos
usos contextuais dos smartphones, os casos de pessoas migrantes indicam uma experiência que
evoca vínculos com a memória de casa. Partindo de diversos exemplos sobre estes usos, o autor
explora a noção de smartphones como “casas de transporte”. Integrados aos usos do WhatsApp
e outros aplicativos móveis, estes dispositivos têm “recriado a informalidade da casa” e
proporcionado outros modos de convivência mais aceitáveis que os da família tradicional, o
267

que, por sua vez vem modificando relações familiares e intergeracionais (MILLER, 2021, p.
868, tradução minha)226.
Miller indica que as analogias entre usos do digital e espaço doméstico não são novas e
foram descritas por diversos autores sobre experiências digitais anteriores ao dos usos de mídias
sociais nos smartphones. No entanto, também reflete sobre como a inovação causada por
dimensões afetivas da personalização e capacidade móvel dos smartphones tem “criado uma
forma de lar que nunca existiu antes” (MILLER, 2021, p. 867, tradução minha) 227. Considero
este dado importante para refletir sobre como os sentidos de igreja têm sido ressignificados
entre brasileiras imigrantes evangélicas, na medida em que as dimensões de pertencimento
congregacional remetem às memórias afetivas vivenciadas em suas casas, modo como muitas
também chamam seu país de origem.
No entanto, nem sempre é na dimensão coletiva que muitas escolhem vivenciar estes
novos processos. Ao contrário de Virgínia, quem integra um dos grupos do WhatsApp, Luíza
encontra na troca de mensagens instantâneas com a pastora “no privado” uma maneira de
estabelecer contatos com Deus que não foram bem-sucedidos nas igrejas que frequentou. A
experiência de Luíza identifica como os pertencimentos ao Ministério podem existir de
maneiras distintas e não necessariamente através da presença no grupo, indicando como “falar
no privado”, como costumam chamar as interlocutoras, também pode ser um meio de habitar
noções de pertencimento e comunhão encontradas na igreja e construir-se como parte de um
Ministério de mulheres.
Se para as interlocutoras são transformados sentidos de casa, parentescos e igreja, as
dinâmicas digitais entre mulheres pentecostais constroem também novas carreiras pastorais. Ao
fazer parte de um formato digitalizado de interação com sua liderança, as participantes dos
grupos de oração estabelecem uma relação de confiança que envolve práticas voltadas à
divulgação e crescimento do Ministério. De modo público ou velado, essas mulheres passam a
autorizar a partilha de conteúdos como testemunhos e orações, sobretudo aquelas enviadas por
mensagem de áudio, para que a pastora os publique em redes sociais e os compartilhe nos
diferentes grupos de oração que lidera. Assim, mesmo que Luíza e outras mulheres não estejam
no cotidiano online do grupo, a mediação de Cristiane e, em menor medida, também do pastor

No original, em inglês: “constant communication […] recreates the informality of the household”.
226

227 No original, em inglês: “the smartphone is a form of home that has never previously existed”.
268

Bruno fazem com que elas passem a integrar esta coletividade com os “encaminhamentos” 228
que promovem a sensação de multidão de vozes compartilhadas nos grupos.
Ao contrário de Luíza, cujo contato está restrito ao elo produzido com a pastora, Virgínia
está conectada em espaços diferentes e de forma síncrona ou assíncrona com outras virtuosas,
promovendo o estreitamento de suas relações com o divino. Ao ouvir uma oração gravada e
orar junto, as virtuosas estabelecem comunicações entre si para fortalecer comunicações com
Deus. Um termo utilizado pelo pastor Bruno ao final de uma oração em vídeo lembra a função
do celular de estabelecer ligações: “obrigado a todas vocês que persistiram junto comigo na
ligação”. Com a câmera frontal apontada para seu rosto, o pastor fala o horário da madrugada
em que estava gravando o vídeo, circula a câmera pelo local, uma rua residencial escura no
Centro carioca, e profetiza para que Deus traga milagres e bênçãos a quem ora junto.
Considero as estratégias adotadas em encaminhamentos de mensagens, vídeos de
campanhas e outros usos feitos pelo casal nesse contexto enquanto parte de um conjunto maior
dos deslocamentos causados pela flexibilidade em suas carreiras pastorais “voluntárias”.
Conforme argumentei no capítulo 2 desta tese, Cristiane e Bruno contam com uma
flexibilização na igreja Missões que os mantém em carreiras religiosas precarizadas. Ambos
acessam apenas financiamentos esporádicos por graças alcançadas no grupo através de suas
intercessões, além de não receberem nenhum tipo de salário da obra ou doações de fiéis
vinculados a esta igreja. A carreira no WhatsApp, além de possibilitar agenciamentos que não
são autorizados aos(às) pastores e pastoras “oficiais”, como administrar um Projeto/Ministério
avulso e interdenominacional, é movida por ações que combinam variadas estratégias
autônomas de influência digital. Na elaboração destas estratégias, o casal tanto engaja suas
seguidoras para a realização de atos proféticos como atualizam constantemente as formas como
estas dinâmicas ocorrem.
Ao pesquisar dinâmicas de influência digital do campo evangélico feminino, Katie
Gaddini (2021) se deteve sobre outra rede social, o Instagram229, para compreender como se

228
A função “encaminhar” foi adotada pelo WhatsApp em 2014, permitindo que o(a) usuário(a) possa enviar uma
mesma mensagem para diferentes contatos. Desde 2019, a empresa Meta, que gerencia o aplicativo, gerou um
limite para o encaminhamento simultâneo de uma mesma mensagem para até cinco contatos ou grupos por vez. A
partir de 2020, mensagens identificadas como “encaminhadas com frequência” foram limitadas ao envio para um
contato ou grupo por vez (VENTURA, 2019; 2020).
229
Administrado desde 2012 pelo conglomerado Meta, na época ainda intitulado Facebook, o Instagram é uma
mídia social que surge voltada ao compartilhamento de fotos que podiam receber uma legenda e comentários de
“seguidores” do(a) usuário(a). Suas atualizações ao longo do tempo passaram a incluir aumento no número de
fotos compartilhadas por vez e a possibilidade de compartilhar vídeos. Os mais curtos, chamados pelo termo
“story”, compõem uma funcionalidade que também permite encadear com diversos formatos narrativos digitais,
como a inserção de textos e gifs em imagens e vídeos, além de edições proporcionadas pelo próprio aplicativo, os
269

dava o compartilhamento de “estilos de vida” e modelos de “bem-estar” que chamou de


“versões feminizadas da teologia da prosperidade” (GADDINI, 2021, p.758, tradução
minha)230. Abordando em sua maioria “microcelebridades” evangélicas casadas com lideranças
de megaigrejas, conhecidas também como “esposas de pastor”, a autora indica formas nas quais
os vínculos identitários nesse contexto se colocam em viagens caras e compras de luxo. Estas
influenciadoras digitais cristãs231, segundo Gaddini, seguem padrões corporais convencionais,
são brancas, casadas e de classe alta232.
Em paralelo, as dinâmicas de influência digital brasileiras que se constroem em
contextos periféricos compartilham aquilo que Carla Barros (2022, p. 20) indicou como
“trajetórias de ascensão social vivenciadas a partir da inserção em ambientes digitais”. Em seu
estudo sobre a personagem “Blogueira de baixa renda”, a autora reflete sobre como a lenta
mobilidade social brasileira obteve significativo crescimento em cenários econômicos mais
recentes e após os governos petistas vigentes desde o início dos anos 2000, sugerindo pistas
importantes para refletir sobre como a atuação de agentes periféricos através do digital envolve
terrenos de disputa com estilos de vida e padrões de consumo há até pouco tempo inatingíveis
para as classes populares brasileiras. Além disso, o caso da personagem que a autora analisa
propõe usos do próprio Instagram em combinação com seu canal no YouTube para realizar
constantes denúncias sobre a elitização dos usos daquela rede social, parte de sua estratégia de
ocupação em espaços antes considerados inacessíveis233.

“reels”. Os usos destas ferramentas têm sido amplamente associados à monetização pelos chamados “criadores de
conteúdo” ou “influenciadores digitais”, cuja explicação trago em nota posterior. Conforme também apontei neste
capítulo, ao longo do trabalho de campo com mulheres evangélicas não notei usos mais frequentes do Instagram,
sendo as mídias sociais mais utilizadas entre as interlocutoras o WhatsApp e o Facebook.
230
No original, em inglês: “a feminized version of prosperity theology”.
231
Decorrente do termo em inglês digital influencers, esta carreira recente no Brasil se refere à ascensão social e
econômica de personalidades, anônimas ou públicas, que passaram a desenvolver um cotidiano de interações com
seguidores(as) e parcerias remuneradas para divulgação de produtos destinados ao consumo em diferentes
plataformas digitais. Antes de designar um modelo de atuação sem especificação de uma plataforma digital, a
ocupação já recebeu nomes mais diretamente associados à plataforma em que atuavam. Uma das mais conhecidas
são os(as) blogueiros(as), como passaram a ser conhecidos(as) usuários(as) que utilizavam diários nos weblogs,
surgidos no final dos anos 1990.
232
No cenário evangélico brasileiro contemporâneo, exemplos de autodenominados(as) influenciadores(as)
digitais “cristãos”, que assumem identidade evangélica e declaram pertencimentos ideológicos à direita, vêm sendo
recentemente pesquisados também por organizações e institutos de pesquisa como Gênero e Número (2019) e a
Casa Galileia (sobre este, ver M. Menezes e Ferraz, 2022).
233
Vale ressaltar que a combinação entre usos do Instagram com o YouTube forma um conjunto analítico
significativo para marcadores de gênero e classe. Estes são evidenciados na atuação digital de agentes evangélicas
que são “artistas do baixo escalão”, como indicou Raphael Bispo (2019) sobre a trajetória da atriz e ex-Miss
Bumbum Andressa Urach, atualmente membra da IURD. Mais recentemente, a migração destes usos para outras
redes aqui citadas, como TikTok e Kwai, trazem outras especificidades geradas para a emergência de personagens
nestas redes ou em usos combinados com outras plataformas, o que pretendo investigar em trabalhos futuros.
270

Como também lembrou Miller (2013), a ideia de “uso inerente” do celular comporta
outras maneiras de compreender como esta forma de comunicação promove mudanças em
relação à renda. Se entre os jamaicanos na pesquisa do autor estabelecer contatos curtos e
ocasionais com o maior número possível de pessoas é uma maneira de obter renda, no contexto
pentecostal em que estive inserida os usos inerentes mobilizavam trocas de favores e redes de
confiança estabelecidas predominantemente através do WhatsApp. Além de doações pontuais
feitas entre integrantes, a eficácia para a solução de crises através do acionamento de suas “redes
extensivas” (MILLER, 2013) garantia a chegada de rendas oriundas de doações feitas ao casal
de pastores pelas integrantes do grupo.
Se neste contexto religioso a materialidade do celular implica em incremento nas
conexões com Deus através de formas de obter renda para investir em carreiras pastorais e,
assim, incrementar estratégias para usar o celular como instrumento de evangelização, também
observei sua operação como dispositivo de controle. Ao mesmo tempo que serve aos rituais
religiosos, o celular habita a ambiguidade de uma abertura à liberdade que pode trazer tanto
bênçãos como maldições às fiéis. Frequentemente, o objeto também é apontado como parte de
um conjunto mais amplo de tecnologias e coisas “do mundo” que levam à degradação, seguindo
um caminho comum ao evangelismo protestante de disputas entre modernidade e tradição que
orienta classificações historicamente atribuídas à problemática dos fetiches no cristianismo234.
Em diferentes textos e memes235 compartilhados pelas mulheres nos grupos de
WhatsApp, referências às mídias eram personificadas como seres demoníacos que destroem a
família. Geralmente metamorfoseados em corpos femininos, televisões, celulares e tablets eram
descritos como “encantadores”, associados à promiscuidade sexual junto a outros
comportamentos e vícios mundanos. Destaco aqui dois de diversos exemplos publicados nos
grupos a este respeito.
No primeiro, um texto assinado por “autor desconhecido” e intitulado “A amante”
descreve a transformação de uma televisão na figura de uma mulher que não envelhece,
seduzindo o “pai de família”. Este, por sua vez, se distancia da esposa e filhos, formando uma
nova família que tem como filhos computadores, tablets e celulares. No segundo exemplo,
compartilhado em momento posterior, uma ilustração mostra duas sequências em quadrinhos:

234
Ver Latour (2002).
235
Memes são conteúdos imagéticos que estão associados à grande quantidade de compartilhamentos na web. Sua
multiplicação através de variadas mídias sociais ganha significados conhecidos através do termo “viralização”. O
vínculo com a replicação viral indica sua popularização on e offline, na medida em que afirmar que algo ou alguém
“virou meme” implica em considerar o nível massificado de alcance destes conteúdos.
271

de um lado, brincadeiras infantis coletivas contrastam com crianças jogando individualmente


no celular; e, de outro, uma família reunida em volta de uma mesa de jantar substitui este mesmo
grupo familiar no sofá, com cada membro manuseando individualmente seus celulares e sem
interagir entre si.
A sedução atribuída ao feminino metamorfoseado em seres tecnológicos que evoca
ameaças à família associa noções de gênero e sexualidade a modelos de conduta reprováveis
em histórias popularmente conhecidas sobre os perigos das tecnologias aos seres humanos. Os
modos como mulheres evangélicas experimentam inserções para a prática de sua fé nestes
espaços estão em constante disputa com moralidades que não apenas inferiorizam o status
destas tecnologias, mas também as demonizam. Ao mesmo tempo que o uso do celular se torna
inescapável, as moralidades em torno de sua materialidade podem se apresentar conflitantes
nesse contexto, com atravessamentos relativos também à geração como importantes elementos
da batalha espiritual travada contra as tecnologias midiáticas para a proteção da família.
Em paralelo à circulação destes conteúdos, considero importante pensar sobre como as
interlocutoras realizam constantes negociações com o que pode ser demoníaco nesse contexto.
Na pesquisa de Sandra Rubia da Silva (2015) sobre usos de celulares entre grupos de
evangélicos, a materialidade dos smartphones também aparece como alvo de disciplinamentos
para proporcionar usos mais compatíveis com seus princípios. Como a autora indica, nestes
grupos circulavam permissões para que somente hinos e louvores gospel funcionassem como
toques nas chamadas. Semelhantemente, Juliano Spyer (2018) apontou que interlocutores(as)
evangélicos de um povoado baiano que compôs sua pesquisa utilizam mídias sociais para
disciplinamento da família e ascensão no trabalho, indicando modos como estas tecnologias
podem ser frequentemente utilizadas para se protegerem de ameaças de “forças
modernizadoras” e reforçar conservadorismos.
Os conteúdos armazenados no celular também estiveram envolvidos noutras formas de
controle na pesquisa de Josiah Taru (2019) sobre usos de aplicativos móveis entre membros de
um Ministério no Zimbábue, quando analisou estes disciplinamentos na fala de um jovem
interlocutor que indicou não “misturar” em seu smartphone os aplicativos e grupos utilizados
para fazer orações com vídeos e imagens pornográficas enviadas através de outros aplicativos
e grupos. Estes modos de controle, segundo o autor, criam formas de governamentalidade
(FOUCAULT, 2010) potencializados pelo olhar pastoral vigilante. Nas narrativas destes(as)
fiéis, suas práticas “erradas” eram vigiadas tanto por Deus como pelas lideranças, as quais
captariam espiritualmente desvios por meio da unção transmitida através de interações
mediadas nos aplicativos.
272

Assim, a necessidade de sair de grupos de WhatsApp em que nudes e pornografias eram


trocadas poderia aparecer para os pastores em sonhos proféticos para denunciar o pecado
cometido pelos(as) fiéis, criando “regimes disciplinares sutis” (TARU, 2019, p. 165, tradução
minha)236 que lembram constantemente ao congregante jovem da onipresença de sua liderança.
Sensações similares também foram descritas a respeito de envolvimentos extra-maritais que
poderiam ser descobertos da mesma maneira.
De modo distinto aos discursos sobre os perigos que as mídias causariam à família,
também atentei para similaridades com regulações disciplinares nas práticas de boa convivência
nos grupos de oração em que estive. Ao longo de nossa convivência online, não notei nenhum
comportamento que houvesse sido punido com alertas públicos 237 ou que tenha acarretado
expulsões de integrantes do grupo, mas interdições relacionadas ao compartilhamento de
pornografia e de conteúdos formaram um texto que circulou no fim do ano de 2020 pela pastora
Cristiane sobre boas práticas, intitulado como “regras do grupo”. Alternando um texto
totalmente escrito em caixa alta, a liderança combinou diferentes emojis na cor vermelha que
indicavam, além da proibição em “postar vídeos de violência e pornografia”, também a vedação
a “falar mal de qualquer igreja e pastor”.
O comunicado, recebido pelas participantes com “aleluia”, “amém”, “sim senhora,
minha pastora” e emojis que expressavam concordância, também apresentava regras para a boa
convivência no grupo. Entre elas, a pastora solicitava a participação das mulheres na realização
de campanhas e respostas aos pedidos de oração de integrantes, apoio nos Chás e Conferências
organizados através dos grupos e, ainda, que as participantes evitassem interrompê-la ou desviar
o assunto em momentos dedicados a orações de campanhas e comunicados importantes
compartilhados por ela e seu marido no grupo.
Se o aspecto de ubiquidade na onipresença reforça vigilâncias, as interlocutoras desta
pesquisa também indicaram a potencialização da vida religiosa para aquilo que consideram
mais “reais” em sua relação com Deus. Nas formas como Luíza e Virgínia descreveram suas
escolhas em fazer parte de um Projeto/Ministério/grupo digital, os usos do celular e das redes
sociais diferenciavam relações estabelecidas com a pastora no “privado” e nos grupos com as
demais integrantes do grupo como mais “reais” que outras relações estabelecidas com membros

236
No original, em inglês: “subtle disciplining regime”.
237
Há uma exceção relacionada ao compartilhamento de conteúdos sobre política. Após os ataques às sedes dos
três poderes recentemente ocorridos no dia 8 de janeiro em Brasília, a pastora Cristiane enviou uma mensagem de
voz proibindo o compartilhamento de “opiniões políticas”. Apresento esta situação com mais detalhes na última
seção deste capítulo.
273

que não praticam aquilo que pregam em suas igrejas, a exemplo do que contou Luíza. Suas
interpretações da realidade enquanto franqueza e autenticidade, características centrais à
autoridade religiosa no pentecostalismo, apontam para complexidades etnográficas das
interações entre evangélicas(os) e diferentes mídias digitais que não se reduzem às apropriações
de doutrinas teológicas e, por sua vez, vêm ressignificando práticas religiosas.
Embora estes achados produzam diálogos possíveis com o campo dos estudos sobre a
internet (“internet studies”) que tem se dedicado a compreender a incidência de marcadores
sociais da diferença e sua relação com algoritmos 238, busquei explorar outros modos como
controles morais e desigualdades digitais se expressam no acesso às mídias sociais, indicando
formas nas quais estes usos têm transformado participações coletivas e definido atuações
transnacionais para carreiras pastorais e experiências devocionais no pentecostalismo. As
materialidades e funcionalidades que compõem os usos dos smartphones apontaram para como
tais usos, profundamente atravessados por marcadores de classe, gênero e nacionalidade, vêm
fortalecendo alianças entre mulheres evangélicas.

5.2 Uma etnografia no/do/sobre o WhatsApp

Se o caráter portátil dos celulares e os usos das mídias digitais entre mulheres
evangélicas transformam relações com espaço e tempo e criam estratégias de ascensão social,
quando se trata dos usos do WhatsApp outros contornos entram em cena. Junto ao Facebook, a
outra rede social mais utilizada entre as mulheres evangélicas que compuseram a pesquisa, o
WhatsApp é disponibilizado de modo gratuito por muitas operadoras de telefonia móvel
brasileiras. Em geral, não há necessidade para utilização de pacotes de dados e o uso de ambos
pode ser feito através de chips pré-pagos, que podem ser adquiridos em locais de fácil acesso
como casas lotéricas e bancas de jornal. A compra concede acesso liberado ao aplicativo, o que
cria uma experiência comunicacional particular em segmentos populares brasileiros que
utilizam o celular como modo exclusivo de acesso à internet.

238
Algoritmos podem ser definidos como códigos numéricos programados por operações matemáticas para realizar
funções pré-determinadas. Seus mecanismos organizam resultados preditivos que se baseiam em bolhas de filtro
(“filter bubbles”) e conservam autonomia de decisão através da chamada “aprendizagem da máquina” (SILVEIRA,
2017). Além de estudos que refletem sobre atravessamentos dos marcadores sociais da diferença, tais como a
incidência racial para fins de controle e criminalização das populações negras (BENJAMIN, 2019; NOBLE, 2021;
SILVA, T., 2022) e contribuições feministas ao campo das ciências de dados (D’IGNAZIO; KLEIN, 2020), os
estudos sobre algoritmos integram análises sobre vieses em mecanismos de busca e inteligência artificial
(GRANKA, 2010; CRAWFORD, 2021) e reflexões sobre Big Techs, democracia e desinformação (MOROZOV,
2015; O’NEIL, 2020).
274

Pesquisadores do campo de mídias sociais como Edgar Gómez Cruz e Ramaswami


Harindranath (2020) identificam no WhatsApp capacidades de agenciamento provocadas por
usos flexíveis, móveis, instantâneos e personalizados. De acordo com os autores, sua qualidade
de mediação de quase todos os aspectos da vida social o transformou em uma “tecnologia da
vida”. A partir de uma pesquisa desenvolvida na cidade do México, eles destacaram a qualidade
de manutenção de conexões cotidianas provocadas pelos usos do WhatsApp que têm permitido
combinar distintas propriedades: trata-se de uma “tecnologia de parentesco digital”, reforçando
sensações de pertencimento e controle para as relações familiares; “tecnologia de segurança”,
facilitando a organização de redes de confiança em grupos de uma vizinhança e grupos maiores.
Com características similares ao que encontramos nos usos de tecnologias digitais
brasileiros 239, a população mexicana também não tem majoritariamente acesso a computadores
ou modelos de smartphones mais recentes, sendo o WhatsApp o aplicativo mais utilizado no
país desde seu lançamento mundial, em 2009. Os baixos custos oferecidos pelo WhatsApp para
enviar e receber mensagens em smartphones baratos levaram a que este aplicativo se
constituísse como a primeira experiência de acesso à internet entre muitos desses usuários. Ao
oferecer poucas restrições às classes sociais mais baixas, os autores afirmam que “o WhatsApp
se tornou o menor denominador comum, quase sinônimo de comunicação móvel, moldando a
experiência do usuário de smartphone” (CRUZ; HARINDRANATH, 2020, p. 5, tradução
minha)240.
Inspirada pela proposta de refletir sobre a presença generalizada do WhatsApp no
cotidiano espiritual e político de minhas interlocutoras evangélicas, nesta seção apresento as
múltiplas interfaces deste aplicativo de troca de mensagens e suas funcionalidades.
Posteriormente, destaco desafios e estratégias metodológicas utilizadas no trabalho
desenvolvido junto aos usos do WhatsApp durante a etnografia. Em diálogo com os
empreendimentos de Cruz e Harindranath (2020), busquei contribuir com a construção de
epistemologias decoloniais alternativas aos estudos “data-centrados”241, propondo enfoques

239
Faço referência à pesquisa TIC (2021) a respeito dos usos exclusivos dos smartphones para acessar a internet
entre as classes D e E. Cruz e Harindranath (2020) indicaram dificuldades de lidar com dados totais da América
Latina devido tanto aos interesses corporativos de empresas que divulgam dados do acesso digital como à
distribuição desigual das tecnologias em diferentes regiões latino-americanas. Eles argumentam que, no caso do
Peru, Nicarágua e Guatemala, por exemplo, o WhatsApp não aparece como a plataforma mais utilizada em relação
à população total, o que não exclui a forte presença do aplicativo no cotidiano do continente como um todo.
240
No original, em inglês: “WhatsApp has become the lowest common denominator, almost synonymous with
mobile communication, shaping smartphone user experience”.
241
Cruz e Harindranath (2020) apontam que esse tipo de abordagem, caracterizada pela coleta de dados a partir de
métodos que utilizam extração automática, se tornou dominante nos estudos sobre mídias digitais. Eles ressaltam
como esse tipo de pesquisa pode incorrer na mesma exploração adotada pelo capitalismo de vigilância e corre o
275

analíticos que privilegiem como a funcionalidade dos grupos passou a se configurar como
“ferramenta coletiva de gerenciamento da vida”, extrapolando as práticas online para atravessar
diferentes plataformas e conexões online e off-line242.

5.2.1 Interfaces das desigualdades digitais: entre privacidades e empreendedorismos

Em smartphones com sistemas iOS e Android, o WhatsApp apresenta interfaces


intuitivas que levam a possibilidades de acesso através de diferentes guias a serem selecionadas
pelo(a) usuário(a). Disponibilizado gratuitamente nas lojas de aplicativos destes sistemas, a cor
verde clara da tela de início leva ao campo principal, o qual prioriza atalhos gráficos de acesso
rápido à criação de novos grupos. No caso do iOS, também há um atalho que conduz
diretamente para listas de transmissão. Estas facilidades, conforme argumentarei mais abaixo,
são parte de investimentos da empresa Meta, que gerencia o WhatsApp, voltados ao
empreendedorismo dos(as) usuários(as).
O formato geral da principal interface do aplicativo (ver imagens 27 a 29, abaixo) é
composto por três partes com diferentes tamanhos, funções e ícones. A parte que ocupa maior
espaço na tela do celular é conferida às visualizações de múltiplas mensagens, cada uma
composta por ícones que exibem pequenos círculos com fotos dos contatos, seus nomes e uma
visualização curta da última mensagem compartilhada em cada conversa, com o horário da
troca em que esta foi enviada. Os ícones de atalho 243, ilustrados por lápis e papel no canto
superior esquerdo para iOS e balão de diálogos no canto inferior esquerdo para Android,
concedem acesso a uma nova interface em que é permitido criar grupos, conversar com um
novo contato e com contatos frequentes ou, em rolagem para baixo, conversar com outros
contatos armazenados na memória do telefone.
Também há atalhos em ícones ou texto para acesso rápido em ambos os sistemas que
permitem registrar fotos e vídeos, realizar chamadas e ver o status. O atalho para realizar
chamadas conduz à interface em que o(a) usuário(a) faz ligações por voz ou por vídeo. Ao

risco de marginalizar populações, além de não compreender diferentes adaptações feitas por tecnologias digitais
no mundo.
242
Ibid.
243
Estes ícones são ilustrados de maneiras diferentes nos sistemas citados. Enquanto no Android os únicos atalhos
que contam com ícones gráficos são o balão de diálogos e a câmera, no iOS, há um ícone diferentes para cada
função. O atalho “status” é representado por um pequeno desenho formado por dois círculos inseridos um no outro
fornece acesso a outra interface, “chamadas” faz alusão ao gancho de um telefone, dois balões fornecem acesso à
interface “conversas”. Por último, o ícone “configurações” é exibido pela imagem de uma engrenagem, levando à
interface que permite diversas funções. A maior parte deste acesso corresponde no sistema Android ao ícone
representado por três pontos em formato vertical.
276

adentrar neste espaço, pode-se tanto visualizar chamadas efetuadas e perdidas, bem como
realizar chamadas gratuitas. O aplicativo não efetua nenhuma cobrança pelo uso dessas
funcionalidades, que dependem unicamente do acesso à internet via wifi ou conexão móvel –
algo que torna essa possibilidade mais vantajosa em comparação a ligações telefônicas que
exigiriam a compra de pacotes de minutos, na medida em que as principais operadoras do país
oferecem acesso ilimitado ao WhatsApp 244.

Imagem 26: Interface do Imagem 27: Interface do Imagem 28: Interface do


aplicativo WhatsApp no WhatsApp no sistema WhatsApp no sistema
sistema iOS (WhatsApp Android (WhatsApp Android, mostrando o
versão 2.22.24.81) versão 2.22.24.78) menu superior direito

Fonte: Capturas de tela registradas pela autora, janeiro de 2023.

As facilidades voltadas à gestão do consumo de dados também se estendem à


administração do armazenamento no aparelho de celular. O aplicativo tanto disponibiliza
formas de gerar baixo consumo de dados no compartilhamento de imagens quanto permite que
o(a) usuário(a) gerencie seu armazenamento de dados, o que confere a possibilidade de reduzir
o uso de rede, indicando a qualidade da mídia que deseja receber de outros usuários e permitindo
a utilização de menos dados em chamadas. A economia de dados aumenta a capacidade de
armazenamento no aplicativo, o que também justifica a popularidade deste aplicativo entre
classes economicamente menos favorecidas. Em muitas das entrevistas que fiz com mulheres

244
Agradeço pela colaboração de Caio Maia nas sugestões principalmente voltadas a este capítulo, sobretudo pela
atenção para mudanças mais recentes nos usos do WhatsApp.
277

que escolhiam não participar dos grupos, ouvi que as recusas em aceitar convites se davam por
não terem mais espaço na memória de seus aparelhos de celular. Assim, trocar áudios em vez
de vídeos também tendia a deixar celulares com pouca capacidade de memória mais leves para
a navegação online.
O acesso à interface das conversas em grupo exibe, para ambos os sistemas, uma barra
inferior com atalho para registrar uma foto instantânea, enviar fotos e vídeos armazenadas no
aparelho celular, pagamentos, documentos, localização e contato. A mesma barra também exibe
um microfone que concede permissão para gravar mensagens de voz que são compartilhadas
com todos os membros do grupo. Tais funções são idênticas tanto para os grupos como para os
contatos individuais, indicando uma demarcação intuitiva do WhatsApp para funções bastante
utilizadas no cotidiano dos grupos, como o envio de áudios e fotos. Desde 2022, este espaço
passou a ser dividido com a função pagamentos.

Imagem 29: Interface de um grupo no Imagem 30: Interface de um grupo no


sistema iOS (WhatsApp versão sistema Android (WhatsApp versão
2.22.24.81) 2.22.24.78)

Fonte: Capturas de tela registradas pela autora, janeiro de 2023.

Estas facilidades para a abertura de grupos e transmissão de mensagens


instantaneamente enviadas para uma grande quantidade de usuários(as) vêm tornando o
WhatsApp o aplicativo mais utilizado pelas empresas (TIC EMPRESAS, 2021). Aliada à
grandiosidade dos números alcançados pelo aplicativo nos últimos anos, a disseminação de
notícias falsas levou à manutenção de acordos entre a empresa controladora dessa tecnologia e
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) brasileiro. O adiamento na liberação de novas funções
278

relacionadas aos grupos, como o aumento no número de participantes de 256 para 512, foi
resultado de um destes acordos, o que também afetou a chegada do recurso “WhatsApp
Comunidades”, que agrega diferentes grupos e permite alcançar número ainda maior de
usuários, para serem iniciados após as eleições de 2022 (“WHATSAPP AUMENTA...”, 2022).
Somando-se às suas enormes proporções de usuários ativos alcançadas no Brasil, as
funcionalidades de agrupamento e transmissão de mensagens para grandes listas de contatos
vêm contribuindo para a construção de análises sobre o neoliberalismo e o lugar chave do digital
para formas de “uberização” do trabalho 245. Um exemplo de aliança com funções do próprio
smartphone para gerar alternativas econômicas através do empreendedorismo246 está nos usos
da câmera do celular. Para além de registrar fotos e vídeos, o WhatsApp utiliza a câmera para
facilitar o compartilhamento de contatos via código QR, fornecendo acesso imediato a
informações cadastrais como o número de telefone da(o) usuária(o) a outras pessoas que
também tenham o WhatsApp instalado. Trata-se de uma funcionalidade também recente no
Brasil, assim como a aplicação “pagamentos”, inserida em 2021 e que permite transferir
dinheiro diretamente das conversas individuais ou em grupo. O território brasileiro foi o
primeiro em que a plataforma de transações financeiras pelo aplicativo foi implementada,
estratégia que seguiu os investimentos já realizados com o WhatsApp Business, permitindo que
os usuários obtenham contas comerciais.
As funcionalidades que envolvem compartilhamento de imagens no status, emojis e
personalizações individuais são bastante utilizadas pelas interlocutoras da pesquisa,
possibilitando refletir sobre como seus usos se estendem a estes novos recursos, mas não a
outros. A exemplo da função pagamentos, apresentada anteriormente, até o momento da escrita
da tese não notei esta função sendo utilizada para arrecadação de quaisquer tipos de doações
classificadas como dízimos ou ofertas, que eram feitas através de transferências bancárias.
Destaco, ainda, as funções que vêm sendo implementadas nos últimos anos em torno da
personalização e gestão autônoma das imagens pelas(os) usuárias(os) do aplicativo. Os usos da
câmera também possibilitam registrar imagens e vídeos em câmera frontal ou, ainda, selecionar
uma imagem ou vídeo armazenado nos arquivos do celular. Na função status, inserida no
WhatsApp a partir de 2017, visualizam-se as atualizações recentes dos contatos. É possível
compartilhar imagens e vídeos que ficam disponíveis por 24 horas, com diferentes graus de

245
Sobre isso, ver Abílio (2020).
246
As reportagens sobre o uso do WhatsApp entre classes populares brasileiras aumentaram significativamente
após a pandemia do novo coronavírus. Para um exemplo, ver Vicenzo (2020).
279

acesso a depender da configuração de privacidade selecionada pela(o) usuária(o): podem ou ser


acessados por qualquer pessoa que tenha interagido com aquele número no aplicativo ou apenas
exclusivamente por aquelas previamente escolhidas para tal. Recentemente o status também se
tornou mais acessível, podendo ser visualizado através do ícone de foto de cada contato na
interface principal do WhatsApp, assim que um círculo nas cores azul ou verde, a depender do
sistema operacional entre os aqui citados, surge ao redor da foto para mostrar que o status do(a)
usuário(a) foi atualizado.
Cada usuário(a) também pode personalizar seu perfil no aplicativo, adicionando uma
foto e um recado em formato de texto ou emojis, que permanece de modo fixo a todos que
adicionarem aquele número à sua agenda de contatos. Os recursos de personalização individual
também se estendem aos grupos, que podem ter suas notificações “silenciadas” no smartphone
por tempo indeterminado, o qual também pode contar com modificações no papel de parede
utilizado para as conversas no aplicativo, backups de conversas, arquivamentos e/ou sua
limpeza completa. As imagens e mensagens também podem ser agrupadas através de recursos
como “mensagens favoritas”, organizando mensagens trocadas com diferentes contatos em um
mesmo local.
Os recursos de personalização e compartilhamento de imagens também incluem o
aumento progressivo de emojis. Desde meados de 2022 foram liberadas no Brasil reações
individuais a cada mensagem, com as reações polegar, coração, riso, assustado, choro e mãos
juntas. Embora atualmente o(a) usuário(a) já possa selecionar uma diversidade maior de emojis,
chama a atenção que o último ganhe traduções para o português com o significado de oração.
Esta classificação frequentemente aciona acusações sobre o “uso incorreto” dos(as)
usuários(as), na medida em que a imagem foi originalmente implementada para representar o
cumprimento conhecido em inglês como “high five”, mas é mais utilizado para se referir a um
gesto de oração, para religiosidades cristãs, ou de agradecimento, mais frequente no budismo e
hinduísmo247.
Os investimentos em recursos imagéticos, como afirmaram Miller et al. (2016), são
parte fundamental da justificativa da popularização dos smartphones nos usos das mídias
sociais. Em sua tese de doutorado, Beatriz Accioly Lins (2019) chamou a atenção para como
os usos da câmera frontal trazem transformações significativas a estes usos. Além dos emojis,

247
Cf. Botelho (2022), “FOLDED...” (2023).
280

gifs, figurinhas 248 e outros formatos de imagem que permeiam o cotidiano lúdico dos grupos de
WhatsApp, registrar e compartilhar fotos de si em estéticas amadoras que marcam o tom de
intimidade compartilhada se tornou um dos principais meios de estabelecer comunicações em
aplicativos de mensagens. Como indica a autora, “o envio e recebimento das imagens é uma
interação social que invoca noções de lealdade e confiança” (LINS, 2019, p. 66).
O recurso instalado em 2021 que permite ao(à) usuário(a) enviar uma foto de
visualização única, vista somente uma vez pelo contato e não permitindo capturas de tela,
aponta para constantes investimentos em torno de estratégias relacionadas à gestão da
privacidade no aplicativo. Outras funcionalidades similares já haviam sido propostas em anos
anteriores, como a possibilidade de deletar mensagens e o aviso de quando um texto ou imagem
foi “encaminhado(a)” ou “encaminhado(a) com frequência”. As restrições em relação à
quantidade de vezes que conteúdos podem ser compartilhados(as), por sua vez, estão sendo
frequentemente implementadas pelo aplicativo nos últimos anos. Para além dos sentidos
propagados sobre o incremento da segurança249, o investimento nestes novos recursos aponta
para continuidades com iniciativas de outros aplicativos consideradas mais eficazes por
usuários(as) que evitam deixar rastros na web, a exemplo do Snapchat250.
Não tive como objetivo realizar aqui uma análise pormenorizada de cada uma destas
funcionalidades, mas, em seu lugar, apresentar modos como os investimentos do WhatsApp no
acesso ao empreendedorismo e sua imagética lúdica, intuitiva e cada vez mais focada no
incremento da privacidade vêm proporcionando vínculos que buscam estimular intimidades e
aperfeiçoamentos de seu uso para dinâmicas laborais. As vantagens aprimoradas pelo
WhatsApp também podem contribuir com reflexões a respeito de como os usos destes novos
recursos podem ser distintamente negociados a depender das diferenças em jogo. Entre distintos

248
Originalmente nomeadas de “stickers”, ou “adesivos” em inglês, as figurinhas chegaram ao WhatsApp em 2019
e possibilitaram tanto ampliar formatos para compartilhamento de memes quanto agregar outros modos de
comunicação através do aplicativo (GERMANO, 2019). Trata-se de pequenos ícones com imagens estáticas ou
em movimento, que contam com dinâmicas autorais de produção facilitadas através de recursos de fácil acesso,
como aplicativos gratuitos voltados a esta atividade. Tais dinâmicas de produção não se estendem somente a
indivíduos, mas também a grupos formados por empresas e organizações não institucionalizadas que têm utilizado
figurinhas para ampliar a divulgação de seus conteúdos. Como exemplo, cito a empresa de streaming Netflix, que
customiza figurinhas com personagens de séries e filmes encontrados em sua plataforma, as quais podem ser
solicitadas através de um número disponibilizado no próprio aplicativo para o compartilhamento com usuários(as)
(PEDRO, 2022).
249
Nesse sentido, a criptografia de ponta a ponta é um dos diferenciais propagados pelos gerenciadores do
WhatsApp para garantir a vinculação dos sentidos de privacidade e segurança nos usos do aplicativo
(WHATSAPP, 2023).
250
Lançado em 2011, o Snapchat é uma mídia social que oferece compartilhamentos de fotos instantâneas e vídeos
curtos que contam com tempo limitado de visibilidade. O aplicativo foi fundado pela Snap Inc., uma empresa
voltada para a comercialização de câmeras (SNAP INC, 2023).
281

graus de escolaridade, por exemplo, os áudios e vídeos podem ser priorizados por aqueles que
apresentam maior dificuldade em ler e escrever, como indicou Spyer (2018).
Indo além dos argumentos sobre a viabilidade econômica e relativas ao grau instrucional
dos(as) usuários(as), Spyer também analisou como os efeitos de processos de distinção
socioeconômica causados através de mídias sociais têm manifestado novas formas de
prosperidade material. Exibir esta prosperidade, nesse sentido, pode ser incentivado enquanto
“ação culturalmente estabelecida com a intenção de mostrar os valores e as conquistas pessoais”
(SPYER, 2018, p. 24), resultando em performances que não são vivenciadas como privadas
nesse contexto. Privacidade e intimidade podem não ser pares contíguos, apresentando
diferentes sentidos na pesquisa desenvolvida pelo autor.
Os usos religiosos do WhatsApp nos chamados grupos de oração, por sua vez, me
permitiram refletir sobre distintas noções de privacidade aprimoradas em acessos atravessados
por marcadores de gênero e raça nos smartphones. Segundo Josiah Taru (2019), antropólogo
que vem pesquisando processos religiosos através de aplicativos móveis, a criação de grupos
de WhatsApp em denominações pentecostais no Zimbábue vem possibilitando a emergência de
sentidos comunitários para sujeitos que enfrentaram trânsitos diaspóricos. Conforme indiquei
em exemplos etnográficos apresentados na seção anterior e que serão aprofundados ainda neste
capítulo, os vínculos transnacionais no estabelecimento de intimidades entre si e com Deus
também têm proporcionado experiências racializadas e de gênero com características
encontradas nos usos religiosos de aplicativos móveis, tais como “portabilidade, facilidade de
acesso, ubiquidade e privacidade” (FEWKES, 2019, p. 6, tradução minha)251.
Jaqueline Fewkes (2019) nos lembra que os sentidos religiosos para a ubiquidade
combinam a onipresença divina com a abundante circulação de diferentes mídias na
organização da vida cotidiana. Estar perto de Deus através de aplicativos móveis, por sua vez,
contempla duas formas de onipresença, compartilhada tanto pelas dimensões do divino como
do digital, indicando complexidades que não se resumem ao debate exaustivamente provocado
sobre separações entre público e privado, online e offline. A autora defende reflexões que
estejam implicadas em explorar relações do corpo em contato com o digital. Considerar a
centralidade dos sentidos implica em extrapolar noções funcionalistas geralmente associadas às
imagéticas e usos intuitivos dos aplicativos móveis e compreender a coparticipação dos

251
No original, em inglês: “[...] the ubiquity of mobile apps that – through portability, ease of access, continuous
presence, technological networks, and a broad scope of interaction – foster experiences unique among digital
technologies”.
282

elementos digitais, distanciando-nos de interpretações que concebem as mídias como inertes ou


meras continuidades de processos anteriores nas transformações religiosas.

5.2.2 “Não fique só observando, participe”: reflexões ético-metodológicas através dos


grupos de “zap”

As formas específicas de engajamento das interlocutoras evangélicas através de grupos


de oração no WhatsApp conduziram a diferentes ressignificações metodológicas na pesquisa.
Partir de “uma noção de etnografia localizada no corpo” (HINE, 2020, p. 4) implicou no
deslocamento de métodos previamente escolhidos e fundamentados em modos clássicos como
percorremos e nomeamos noções de “campo” (GUPTA; FERGUSON, 1997) no trabalho
antropológico para sensibilidades que exigiam novas escolhas. Assim, na medida em que
refletir sobre métodos de investigação no digital pode indicar mais nitidamente “práticas ocultas
de dentro” do que “códigos de conduta de fora”, como indicou Annette Markham (2006, p. 39,
tradução minha)252, explorar estes novos caminhos metodológicos implicou em realizar também
novos acordos no processo da pesquisa.
Um dos principais cuidados éticos que vêm sendo destacados por diferentes
pesquisadoras(es) do campo de estudos sobre a internet tem sido a atenção para experiências
distintas na construção de conceitos como privacidade e consentimento (BOYD; CRAWFORD,
2011). Mais do que seguir ou propor diretrizes universais, os cuidados adicionais em torno das
questões éticas envolvidas com dados e significados associados a estes conceitos dizem respeito
ao que Markham e Baym (2009, p. xviii, tradução minha) indicaram como um “tratamento ético
indutivo”253, sendo tanto sensíveis ao contexto como fundamentados na especificidade que cada
projeto pode apresentar como contribuição mais geral às pesquisas sobre a internet. Nesta seção,
exploro como os deslocamentos nos caminhos para uma etnografia no contexto digital
apresentaram tanto reflexões sobre ética antropológica na pesquisa com grupos de WhatsApp
como a adoção de novos esforços metodológicos junto às interlocutoras da pesquisa.
No decorrer da etnografia, compreendi que um dos formatos de interação mais utilizados
nesse contexto, a troca de mensagens de voz por meio do WhatsApp, poderia se mostrar
ferramenta útil não só para construir vínculos na observação participante, mas também para a

252
No original, em inglês: “Reflexively interrogating one’s methods of inquiry shifts attention away from codes
of conduct imposed from the outside and reveals hidden ethical practices from the inside”.
253
No original, em inglês: “ethical treatment of human subjects is inductive and context-sensitive”.
283

realização de entrevistas. “Mandar áudios”, como preferiam nomear esta prática, era “condição
de socialidade” (MILLER, 2021, p. 4) a partir da qual aprendi a agregar como parte de outros
métodos que já vinha empregando. Assim, realizei muitas entrevistas em que uma lista de
perguntas era previamente enviada para que os(as) interlocutores(as) respondessem por áudios,
o que se demonstrou mais eficaz do que entrevistas realizadas com horários previamente
marcados através de chamadas de voz ou de vídeo, recursos mais frequentes após o período de
isolamento social causado pela pandemia.
A liberdade em escolher horários que estivessem mais à vontade para gravar a
mensagem, por exemplo, tornou este processo produtivo entre aquelas que expressavam
vergonha ou receio de falar sobre assuntos como sexualidade. Por outro lado, a convivência
online nos grupos implicou na adoção de outros engajamentos. Em atenção aos próprios aos
códigos compartilhados entre as interlocutoras nas interações nos grupos de oração, busquei
distanciar minha participação nestes espaços da imagem de alguém que “só observa”.

Imagem 31: Ilustração incentivando a participação, compartilhada em um dos grupos de


oração no WhatsApp

Fonte: Envio de participante no “grupo do Brasil”, autoria desconhecida. Data da coleta254: 14/12/2018.

Inicialmente, conduzi minha presença online em diálogo com continuidades


estabelecidas em dinâmicas em que eu já estava envolvida fora dos grupos de WhatsApp e
relacionadas à organização dos eventos, tais como distribuição de vagas em vans, caronas e
resoluções sobre itens alimentícios, decorativos e brindes. Com o passar do tempo, adaptei estas
imersões aos formatos coletivamente compartilhados no aplicativo. Na medida em que os
grupos de WhatsApp se faziam importantes modos de divulgação de uma intensa produção
midiática relacionada aos cultos, além de participações anteriores aos eventos, minha atuação

254
As datas de coleta correspondem ao dia em que as imagens foram compartilhadas pelas interlocutoras nos
grupos aos quais faço referência.
284

nestes grupos envolvia o compartilhamento de conteúdos produzidos mediante solicitação da


pastora Cristiane, como flyers para divulgação dos Chás, um jornal, vídeos no TikTok com
pregações enviadas pela pastora, entre outros.
A divulgação incluía tanto conteúdos audiovisuais dos cultos registrados em câmera
fotográfica quanto a produção de outros materiais adicionais que contavam sobre a trajetória do
Ministério. Participei, ainda, de interações online mais pontuais, como felicitações em datas
comemorativas, divulgação de oportunidades de emprego e outras situações que envolveram
arrecadação de cestas básicas para doações em catástrofes naturais ou decorrentes de violências
ocorridas entre as mulheres e seus familiares.
Em contrapartida, optei por não participar do cotidiano religioso de orações, jejuns e
testemunhos, conteúdos que contavam com maior engajamento no grupo. Nas ocasiões que
envolviam campanhas e pedidos de oração, por exemplo, limitei-me a reações breves que
incluíam a repetição de emojis como os de coração, mãos juntas e mãos para o alto. Além destas
interdições, evitei compartilhar conteúdos classificados como “falar de política” pelas
interlocutoras, embora estes fossem alvo de diálogos fora do grupo entre mim e aquelas com
quem tinha mais proximidade. Na medida em que pude construir relações interpretadas por
muitas delas como semelhantes às de alguém que “trabalha pra Jesus” (ver capítulo 2), tanto
meu engajamento através das mídias como as escolhas por não participar orando e contando
testemunhos nas dinâmicas das campanhas de oração trouxeram diferenciais que incorreram
em limitações e aproximações, tensões estas que não envolvem somente pesquisas online, mas
se mostram comuns à convivência etnográfica de modo mais geral.
Noutro plano das negociações ético-metodológicas para pesquisas online, busquei
compreender que noções eram atribuídas em suas interações nos grupos de WhatsApp aos
sentidos de consentimento, bem como às aproximações e distanciamentos entre público e
privado. Diferente dos usos privados, em que uma pessoa conversa diretamente com outra, a
funcionalidade dos grupos era interpretada pelas interlocutoras de modo análogo aos usos que
faziam de outras mídias como o Facebook, indicando muitas vezes que havia duas formas de
fazer parte do “grupo das virtuosas” para além dos eventos: no “feice” e no “zap”. Além de
aproximações que denotam usos cotidianos mais frequentes destas duas mídias sociais entre
classes populares brasileiras, como indicou Spyer (2018), considero que a funcionalidade dos
grupos gera mais semelhanças com os usos do Facebook.
Em uma de suas análises sobre esta mídia social, Daniel Miller (2012) se referiu ao
“mural”, espaço em que as publicações também chamadas de “postagens” são realizadas
pelos(as) usuários(as), enquanto um espaço “semipúblico”. Segundo o autor, por se tratar de
285

um conteúdo que não exige uma interação direta, “postar” no mural não impõe o mesmo tipo
de demanda reservada às interações privadas, ocorridas quando enviamos uma mensagem
direcionada a alguém ou realizamos uma ligação. Estes mecanismos desenvolvidos para a
comunicação em grupo, tais como e-mails, fóruns especializados, salas de chat, entre outros,
foram descritos posteriormente por Miller et al. (2016) como responsáveis por modificar a
polarização entre público e privado nos espaços online. Cesarino (2020b), por sua vez, chamou
a atenção para a funcionalidade dos grandes grupos públicos em fornecer o que chamou de
“caráter híbrido” do WhatsApp, permitindo a criação de ambientes que lembram o de outras
mídias sociais.
A partir destas leituras e investigações no campo da pesquisa, considerei apropriado
compreender os grupos de oração que acessei no WhatsApp como espaços semipúblicos.
Compartilhar uma mensagem ou imagem nestes grupos habita a ordem de expectativas difusas,
na medida em que pode estar tanto direcionada a alguém em específico que foi indiretamente
citado, quanto aguardar reações generalizadas dos(as) participantes. Ao mesmo tempo, o caráter
semipúblico se refere às próprias formas de acessar o grupo, as quais não se davam somente
entre mulheres conhecidas que haviam sido adicionadas a pedido de integrantes pela pastora,
ou contatos de sua própria rede, mas também através dos links públicos, como indiquei na
introdução deste capítulo.
Para além de simplesmente considerar o caráter semipúblico dos grupos das virtuosas
como arena livre para coletar dados sem realizar negociações individuais e coletivas, considerei
outras especificidades nestas reconfigurações das fronteiras entre público e privado realizadas
pelo WhatsApp. Na medida em que compartilhar conteúdos em grupos evangélicos (quase)
exclusivamente habitados por mulheres constrói relações de confiança mediadas por valores
vinculados a imaginários de gênero, estas reconfigurações também podem implicar, como vêm
mostrando pesquisas que exploraram marcadores de gênero e sexualidade em contextos digitais
(PELÚCIO, 2015; LINS, 2019), em diferentes graus de intimidade e consentimento vinculadas
às relações de confiança construídas com as lideranças, com o grupo e com o(a) pesquisador(a).
Assim, por não ter estabelecido contato com todas as participantes dos grupos de
WhatsApp, que totalizavam em torno de 150 na soma dos dois grupos de oração, utilizo
somente imagens e mensagens de voz compartilhadas por aquelas com quem pude realizar
acordos a este respeito. Como venho argumentando, nossas aproximações foram estendidas
desde o início à realização de entrevistas e/ou à convivência no trabalho de campo. Também
tive como hábito aproveitar muitas ocasiões em que interagi no grupo para indicar que eu era
286

pesquisadora, buscando formas de fazer com que esta não fosse uma informação fornecida de
maneira mecânica e protocolar.
Para os conteúdos analisados, busquei tomar cuidados para não gravar capturas de tela
que pudessem incorrer em identificações de participantes dos grupos. Com as mensagens de
texto apresentadas na tese, os cuidados se voltaram para não transcrever literalmente conteúdos
que contavam com usos de hashtags255, os quais geram links indexáveis por buscadores online.
Tais estratégias buscaram evitar o rastreamento de publicações por mecanismos de busca
presentes em diferentes plataformas digitais256.
Ao longo dos anos, a frequência com que acompanhei os conteúdos dos grupos foi se
modificando, estando mais concentrada para armazenar materiais nos primeiros dois anos da
pesquisa. Neste período, que classifico como uma fase inicial exploratória, busquei maneiras
de sistematizar os conteúdos utilizando um recurso disponibilizado pelo próprio aplicativo, o
de “favoritar mensagem”, para salvar em meu celular aqueles que mais chamavam minha
atenção. A montagem de quadros semanais ajudou a compreender recorrências através de
registros que considerei prioritários: Quem são os(as) puxadores(as) de conversas? Quais eram
os conteúdos mais compartilhados? Quais eram as regras explícitas e implícitas? Que diferenças
podiam ser notadas em interações das integrantes entre si e aquelas que estabeleciam com as
lideranças que administravam o grupo? Que tipos de conflitos eram mais recorrentes?
Estas perguntas orientaram a segunda fase da pesquisa nos grupos de WhatsApp, na
qual analisei o material coletado. As recorrências verificadas semanalmente ajudaram a
construir quadros baseados nas próprias dinâmicas dos grupos, as quais dividi entre quadros
fixos e quadros temáticos. Enquanto os quadros fixos auxiliavam no reconhecimento de quais
dinâmicas mais se repetiam em ocasiões lideradas pelo casal de pastores e introduzidas pelas
participantes, com os quadros temáticos busquei descrever outras atividades habituais que
tinham maior oscilação na rotina de compartilhamentos no grupo. Neste quadro, acrescentei
conteúdos relacionados à política institucional, conteúdos conspiratórios, anúncios de vagas de
empregos, mensagens motivacionais, saudações de bom dia/tarde/noite, entre outros.

255
Caracterizadas pelo símbolo do jogo da velha (#), as hashtags têm como função agregar públicos nas redes
sociais em torno de tópicos formados por uma ou mais palavras. Tais tópicos podem ganhar efeitos “virais”, como
são chamados conteúdos que ganham grande repercussão, engajamento e visibilidade nas redes sociais.
256
Os cuidados com a rastreabilidade foram tomados após orientações sobre ética nas pesquisas digitais que
acompanhei no minicurso online ministrado por Carolina Parreiras e Barbara Castro com o apoio da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Sobre estes e outros cuidados relacionados à circulação e segurança do material
de campo armazenado, ver Parreiras e Castro (2020).
287

Preenchi ambos os enquadramentos com descrições de observações participantes em


diferentes espaços, anexei vídeos, fotos, emojis, figurinhas e trechos de mensagens
compartilhadas no mesmo período ou em ocasiões distintas. Com diferentes ordens de
engajamento das interlocutoras, a escolha destes quadros seguiu critérios baseados em minha
observação do que se destacava para uma análise através do WhatsApp, cujos fluxos se
construíram entre práticas online e offline que se somavam às minhas circulações no trabalho
de campo.
A partir de informações que organizavam outras perguntas, desta vez mais focadas nas
dinâmicas internas do grupo, iniciei a terceira fase da pesquisa em meados de 2019. Nesta,
passei a buscar interlocutoras que já conhecia para entrevistá-las e entrar em contato com outras
que conhecia somente através do WhatsApp. Solicitei em muitos casos a mediação do casal de
pastores, principalmente da pastora Cristiane. Esta fase contou com entrevistas em sua maioria
realizadas por chamadas de voz e de vídeo no WhatsApp, direcionadas à participação nos
grupos de oração, suas relações online com o casal e usos do próprio aplicativo em seus
cotidianos.
Na medida em que tais tentativas de organização manuais foram os únicos recursos que
utilizei para sistematizar os dados que apresento na tese, considerei desafiador lidar com a
intensa frequência de interação nos grupos. A grande quantidade diária de mensagens gerava
acúmulos que não era possível acompanhar por diversas vezes, gerando lacunas que busquei
lidar na medida do possível em conversas informais e entrevistas com as interlocutoras. Por
outro lado, a facilidade em armazenar imagens, vídeos e áudios para rever e retomar assim que
possível e, em sua maioria, sem a necessidade de interações síncronas, permitiu, além de
qualidades ao processo da pesquisa, constituir uma memória digital com informações do
Ministério que auxiliou na produção de materiais audiovisuais que foram amplamente
utilizados em eventos liderados pelo casal.
Além disso, estar nos grupos de oração possibilitou a abertura de outras maneiras de
conhecer minhas interlocutoras e fortalecer vínculos com quem estive nos eventos. Mesmo que
muitas daquelas que estavam nos grupos não comparecessem nestas ocasiões, sua presença nos
grupos se tornou importante para que eu compreendesse modos de participação distintos e
dinâmicas de contágio (DOUGLAS, 2014; MACHADO, C., 2020a) nos grupos de WhatsApp
evangélicos, tais como controvérsias relacionadas à política partidária e a figuras públicas do
cenário gospel.
Ao contrário do que este argumento pode levar a crer, os desafios relacionados a lidar
com um espaço de intenso tráfego de dados não se resumiram a limitações de organização
288

baseadas em critérios quantitativos. Embora a validade destes critérios e sua combinação com
metodologias qualitativas seja legítima para muitas pesquisas que vêm sendo conduzidas sobre
o WhatsApp mais recentemente 257, a adoção de uma pesquisa qualitativa feita de modo
inteiramente artesanal e em constantes negociações com as(os) interlocutoras(es) permitiu
explorar etnograficamente o debate ético-metodológico. Refletir sobre usos, funcionalidades e
acordos relacionais mediados pelo WhatsApp aponta para relações entre teoria antropológica e
etnografia a partir de “tensionamento dos limites do método etnográfico, com a possibilidade
de muitos experimentos e redefinições contextuais da etnografia” (PARREIRAS, 2015, p. 71).
Fazer etnografia nos grupos de WhatsApp, nesse sentido, apresentou metodologias
também direcionadas para a reorganização do que Charles Hirschkind (2021, p. 213) chamou
de “uma sensibilidade metodológica específica”. Ao dar destaque às experiências sensoriais de
percepção do mundo, enfocar uma análise a partir destas sensibilidades chamou a atenção para
perspectivas teórico-metodológicas que vêm enfatizando o agenciamento dos sujeitos em
mediação com tecnologias e os aprimoramentos de suas performances nestas relações. Para o
autor, trata-se de performances éticas que desenvolvem “capacidades corporificadas de gestos,
sentimentos e fala” (HIRSCHKIND, 2021, p. 235), as quais busquei compreender na análise
destes elementos através de suas práticas de devoção nos grupos de oração.

5.3 Batalhas sensoriais em imagens, sons e textos da oração

Como explico na subseção anterior, as mudanças gradualmente realizadas em torno dos


métodos para organizar dados de minha observação participante nos grupos de oração
resultaram na elaboração de dois enquadramentos classificatórios das rotinas destes espaços
digitais. Os quadros eram inicialmente semanais, modificando-se após a exploração das
principais dinâmicas adotadas pelas lideranças e participantes. Posteriormente, passei a
organizá-los a partir de dois formatos: de um lado, quadros fixos, que apresentavam conteúdos
mais estáveis, alguns destes estabelecidos como regras do grupo pelas lideranças; do outro lado,
os quadros temáticos, assim nomeados para indicar que seus conteúdos não enquadravam nos
fluxos estáveis do grupo, embora fossem também recorrentes. Ao contrário de critérios
quantitativos que dividem – e, muitas vezes, também hierarquizam – classificações de

257
Refiro-me aqui aos monitoramentos de conteúdos políticos nos grupos de WhatsApp e, mais recentemente,
também no Telegram, que vêm sendo realizados por acadêmicos(as) e institutos de pesquisa que
predominantemente utilizam a abordagem do tipo espião/“lurker”, conforme definiu Ferguson (2017).
289

conteúdos entre os que mais e os que menos se repetem, esta organização buscou contemplar
em ambos os enquadramentos tanto os elementos mais recorrentes como questões menos
frequentes que marcaram conflitos centrais às dinâmicas dos grupos de oração.
Nesta seção, analiso observações registradas nos quadros fixos. Seu conteúdo abrange
pedidos e organização de campanhas em torno da prática que nomeia os grupos, ou seja, as
orações. A realização periódica de campanhas de jejum e oração era a principal ação liderada
pelo casal de pastores Cristiane e Bruno nos grupos que administravam, estando sempre
acompanhadas por pedidos de oração das participantes, destinados a seus(suas) amigos(as) e
familiares. Como indiquei anteriormente, os grupos também contavam com outras mulheres
neste gerenciamento. Estas diferentes participantes entre os dois grupos que acompanhei eram
interlocutoras que faziam parte da “tropa”, núcleo formado por mulheres mais próximas ao
casal e com quem também tive maior contato ao longo da pesquisa. Embora compartilhassem
de modo mais constante e liderassem a organização de eventos junto ao casal, as mulheres da
tropa não realizavam funções comumente habilitadas para administradores(as) de grupos no
WhatsApp, como banir ou adicionar participantes258.
A realização de campanhas ditava ritmos que podiam ser seguidos tanto de modo
síncrono como assíncrono pelas participantes ao longo da quinzena ou do dia, trazendo estilos
narrativos geralmente apresentados repetidamente a cada nova campanha. São mensagens de
voz com diferentes durações, imagens do registro síncrono das campanhas, além de reações
tanto às orações como aos pedidos feitos pelas integrantes que intercediam por entes queridos,
com emojis e comentários direcionados ao fortalecimento da fé de quem realiza os pedidos.
Trago abaixo alguns dos quadros fixos utilizados para analisar estes elementos, cuja
apresentação segue o mesmo formato utilizado em meus registros durante o trabalho de campo,
com imagens compartilhadas em momentos posteriores, muitas delas repetições em anos
diferentes de uma mesma campanha:

258
Vale lembrar que também havia pastoras de denominações diferentes daquela seguida pelo casal nos grupos de
oração no WhatsApp. No entanto, elas participavam destes grupos enquanto integrantes e não lideranças, embora
em diversos momentos recebessem deferências públicas diferenciadas da pastora, que se referia a elas como
“senhora” e “minha pastora”.
290

Quadro 2: Registro de campo para uma semana em campanha de oração

Mulheres Virtuosas Período: 14 a 21 de junho de 2017


(“Grupo do Brasil”)

Campanha “dos três elementos”

A abertura da campanha às 00:30 é feita com uma mensagem de voz da pastora Cristiane, cuja
duração de três minutos e meio explica como realizar a campanha diariamente nos próximos
sete dias. No interior de uma garrafinha com os três elementos – água, azeite e suco de uva, com
o suco de uva “representando o sangue do cordeiro” –, o nome de “alguém problemático” deve
ser colocado para que o “Senhor visite esta pessoa” e possa desfazer a “feitiçaria que foi lançada
contra ela”. Ao longo do período da campanha, o papel se dissolveria na garrafinha, “junto com
os problemas”, enquanto o balanço da garrafa viria para “estremecer a estrutura da pessoa” e,
assim, “abrir seus ouvidos” para a voz de Deus.

Durante o período da campanha, a pastora compartilha a realização de orações com seu marido,
o pastor Bruno. Ambos compartilham vídeos nos quais caminham segurando uma garrafa com
o conteúdo dos “três elementos” por uma rua deserta de seu bairro, em diferentes horários da
madrugada. Alguns destes vídeos diários, nomeados como “caminhada da fé”, trazem o pastor
Bruno sozinho, noutros ele está na companhia da pastora. Ambos alternam estes chamados para
orações com mensagens de texto, sempre no horário da madrugada.

As respostas chegam instantaneamente, em mensagens de texto e áudio com orações. Uma delas
canta um louvor. Há também muitos emojis de mãos em oração e labaredas de fogo, mensagens
de texto com brados de “Glória a Deus”, “Aleluia”, este muitas vezes digitado repetidamente
por uma participante. Registros de realizações síncronas das campanhas em fotos se dividem
com rostos de familiares por quem participantes pedem por orações. Algumas orações chegam
somente ao longo do dia, pela manhã e tarde. Outras indicam “orei, mas não postei”; “já fiz
minha oração, mas não vou postar”.

Fonte: Elaboração da autora, 2017.


291

Imagem 32: Registro de participação na campanha “três elementos” em 2018

Fonte: Envio de imagem, já montada pela interlocutora da pesquisa, no “grupo do Brasil”. Data de coleta:
16/02/2018.

Imagem 33: Ilustração compartilhada Imagem 34: Ilustração compartilhada por


por integrante do grupo integrante do grupo, convidando para a oração
conjunta

Fonte: “Grupo do Brasil”, autoria desconhecida. Datas de coleta, da esquerda para a direita: 12/04/2018,
23/04/2018.
292

Quadro 3: Registro de campo para um dia em campanha de oração

Mulheres Virtuosas Data: 30 de abril de 2018


(“Grupo do Brasil”)

Campanha “Jeová Jiré”

Na abertura de mais uma campanha, a preparação é novamente narrada em áudio pela pastora.
Durante todas as noites dos próximos quinze dias, um copo com água, roupas, documentos e
um pedaço de pão devem ser “apresentados ao Senhor”. As roupas podem ser levadas para
quem está em presídios ou hospitais, enquanto o pão deverá ser comido com a água após a
oração, para que quem ora possa “abrir seus olhos”, “ter estratégia”, “ver Jesus”. Durante a
campanha, a partilha destes elementos também deve ser feita entre familiares que precisam das
orações. A água ungida pode ser adicionada ao cozimento de refeições, junto a pedaços do pão
“esfarinhados” para serem oferecidos ao “filho que é viciado”, “ao marido que tá lá com a
cabeça toda voltada para a amante”. Usar a fé para provocar milagres “é loucura”. “Tem que
ser louco!”, diz a pastora. Esta interjeição traz a lembrança de que aquele seria um “ato
profético”, termo repetido em diferentes momentos do áudio, com ênfase na palavra “ato”. “Ato
profético é para quem crê. Se você não crê, apenas se une na oração”. Muitas fotos chegam com
registros da campanha nos dias seguintes. Ao longo do dia, selfies de familiares surgem em
momentos de lazer, em suas casas, em festas. São pedidos de oração prontamente atendidos por
poucas, no máximo três, mulheres que respondem ao longo do dia.

Fonte: Elaboração da autora, 2018.

Imagem 36: Registro fotográfico da campanha


de oração “carta de afronta”
Imagem 35: Ilustração de divulgação da
campanha de oração “carta de afronta”

Fonte: Envio de liderança no “grupo do Brasil”,


autoria desconhecida. Data de coleta: 14/06/2019.

Fonte: Envio de interlocutora no “grupo do Brasil”. Data


de coleta: 14/06/2019.
293

Imagem 37: Ilustração Imagem 38: Ilustração da Imagem 39: Ilustração da


da campanha da família, campanha da família, campanha da família,
realizada em outubro de realizada em outubro de realizada em outubro de
2017 (1) 2017 (2) 2017 (2)

Fonte: Imagens compartilhadas pelas lideranças do grupo de oração. Autoria desconhecida. Data da coleta:
19/10/ 2017.

Imagem 42: Ilustração de


campanha de jejum e/ou oração (3)
Imagem 41:
Imagem 40: Ilustração de Ilustração de
campanha de jejum e/ou campanha de jejum
oração (1) e/ou oração (2)

Fonte: Ilustrações compartilhadas por lideranças e integrantes do grupo. Autoria desconhecida. Datas de coleta,
da esquerda para a direita: 18/04/2018, 13/02/2018, 16/02/2018.

Quadro 4: Registro de campo para uma quinzena em campanha de oração

Mulheres Virtuosas Período: 1 a 15 de junho de 2020


(“Grupo do Brasil”)

Campanha “da justiça”

No primeiro dia do mês de junho de 2020, às 01:55 da manhã, a pastora envia uma mensagem
de texto convocando para a nova campanha. Citando o livro bíblico de Mateus 5:6, a mensagem
indica que a justiça se fará em todas as áreas da vida: financeira, sentimental, ministerial,
familiar. Esta e outras diversas partes do texto estão escritas em caixa alta, alternando com
emojis que ilustram uma balança e um livro aberto. Após o texto, ela compartilha a imagem de
294

um martelo com a palavra “justiça” escrita em inglês. Nos dias seguintes da campanha, a
imagem é trocada para outras ilustrações similares, com martelos e versículos bíblicos, ou
outras que indicam palavras motivadoras que citam Deus. Integrantes do grupo também
compartilham imagens similares ao longo da campanha. Nos dias seguintes, horários diversos
são utilizados para as lideranças realizarem suas orações da campanha. Além do casal, há duas
mulheres que acompanham diariamente com orações neste período. Ao final, no dia 15 de
junho, uma mensagem de encerramento da pastora é compartilhada em texto com emojis em
tons de vermelho.

Dois áudios com a voz do pastor são compartilhados através do celular da pastora. No primeiro,
com duração de cerca de um minuto, o pastor Bruno anuncia a abertura da campanha. No
segundo, realiza uma oração que dura em torno de dois minutos. Nos dias seguintes da
campanha, é a pastora Cristiane quem compartilha suas orações através do celular de seu
marido, com áudios de cerca de seis minutos. Diversos áudios com mulheres orando em
espanhol e em português, alguns deles com louvores tocando ao fundo, são compartilhados pelo
casal. As durações variam entre um e cinco minutos.

As respostas das participantes surgem em diferentes formatos: figurinhas em cores vibrantes,


algumas com dizeres como “orar sem cessar”, “o povo clama e Deus responde”, emojis em dois
tons de cores pretas, em sua maioria de mãos cuja palma está voltada para a frente. A oração
de uma delas pede que Deus “faça justiça pelo Brasil”, pedindo pela mudança de leis que
privilegiam “aqueles que não são inocentes”, e fazendo “cair por terra” “planos diabólicos
arquitetados para destruir o Brasil”. Algumas também oram em línguas, pedindo justiça para
“o maior dos advogados”. Outras mensagens de voz pedem orações por sua saúde e de
familiares. Uma delas indica que está com sintomas de covid-19 e pede orações por sua vida.

Fonte: Elaboração da autora, 2020.

Imagem 43: Imagem 44: Imagem 45: Imagem 46:


Figurinha de Figurinha de Figurinha de Figurinha de
WhatsApp (1) WhatsApp (2) WhatsApp (3) WhatsApp (2)

Fonte: Figurinhas compartilhadas pelas lideranças e integrantes dos grupos. Autorias desconhecidas. Datas de
coleta, da esquerda para a direita: 09/11/2021, 07/04/2020, 30/04/2020, 24/08/2019.
295

Com períodos que tanto variam na duração da análise como abrangem anos distintos, os
quadros apresentam usos de recursos imagéticos e sonoros enquanto suportes fundamentais ao
exercício das orações através do WhatsApp. Para além de um enquadramento que aponte para
mudanças realizadas por integrantes dos grupos ao longo do tempo, busquei compreender como
estes hábitos cotidianos de compartilhar imagens e gravar mensagens de voz durante as orações,
aliados à prática do casal de pastores de realizar pregações por mensagem de voz, propiciam
experiências sensoriais em que o digital possibilita engajamentos femininos em coletividades
pentecostais.
Em seu trabalho sobre a escuta de sermões em fitas cassete, Charles Hirschkind (2006,
2021) explorou como muçulmanos no Egito contemporâneo desenvolvem técnicas de
autodisciplina baseadas em exercícios da escuta através de seus hábitos sensoriais. Para o autor,
o treinamento de sensibilidades religiosas e suas “arquiteturas acústicas de moralidades
distintas” (HIRSCHKIND, 2006, p. 8, tradução minha)259 envolvem aquilo que chamou de
“sensorium”, descrita enquanto capacidade visceral formada pela devoção. Esta perspectiva de
uma performance exercida através da escuta permite explorar não somente a interdependência
entre sentidos e sensorialidades, mas também, conforme Hirschkind argumenta, como o
“autocultivo ético” formado nestes processos aprimora tradições relacionadas às técnicas de
pregação, disposições auditivas e textuais260.
Através da impostação da voz que “perde a vergonha”, “abre a bora para orar”, como
frequentemente indicam as integrantes em suas orações e a pastora em suas pregações, gravar
e escutar áudios corporifica virtudes almejadas nestas condutas. Nesse sentido, as disposições
corporais coletivamente compartilhadas através da circulação de áudios nos grupos de oração
recebiam frequentes estímulos das integrantes. Além de receber profecias das lideranças por
“bênçãos especiais” para aquelas que enviassem suas orações neste formato, participantes se
justificavam caso deixassem de mandar mensagens de voz durante as campanhas e
compartilhassem, no lugar, suas respostas em outros formatos, como texto, emojis e figurinhas.
Enquanto algumas alegavam vozes impactadas por gripes, “vergonha de falar com Deus” e
outros motivos que sinalizavam para diversas questões impeditivas, o valor do áudio para outras

259
No original, em inglês: “sermon tapes are part of the acoustic architecture of a distinct moral vision”.
260
Hirschkind indica que a corporeidade envolvida na ética da escuta, além de se distanciar do enfoque mentalista
da percepção sensorial localizada no domínio da consciência, também se distingue de uma compreensão sobre
discursos que sustenta a noção de habitus (BOURDIEU, 1996). Em vez disso, sua proposta pela análise da escuta
como “técnica prática” busca compreender a formação de sensibilidades morais.
296

aparecia através de solicitações das mensagens de voz com orações para que parentes enfermos
pudessem acompanhar a voz de quem ora e, assim, orar junto.
Os pedidos pelos áudios não abrangiam somente orações, mas incluíam também outras
práticas frequentes, como o envio de mensagens em vídeo e voz por integrantes que estariam
presencialmente nos eventos do grupo. Ao longo de registros audiovisuais que fiz de momentos
diversos em um dos Chás das Virtuosas, participantes que não estavam no evento pediam para
que eu e outras mulheres enviássemos “mais áudios” para que elas continuassem “recebendo
bênçãos” e “orando junto”. Estas diferentes situações indicam dois caminhos que me chamaram
a atenção para o desenvolvimento de disposições éticas relacionadas à escuta.
De um lado, a hierarquização de modos de participar do grupo nos momentos de oração,
através da qual recursos como mensagens de texto e imagens, como ilustrações, emojis e
figurinhas, são menos requisitados ou então classificados como inferiores. Este é um dado que
faz referência a um elemento destacado anteriormente neste capítulo, na medida em que as
mensagens de voz (e não as de texto e outros formatos) com orações e testemunhos das
participantes são os únicos conteúdos compartilhados pela pastora entre os grupos que gerencia,
produzindo a sensação de multidões de mulheres em diferentes países que oram
simultaneamente.
De outro lado, as pedagogias voltadas ao disciplinamento através das orações e
pregações em áudios também imprimem condições sensoriais distintas às mensagens
compartilhadas em outros formatos pelo WhatsApp. Hirschkind (2006, 2021) argumenta que
entre seus interlocutores muçulmanos havia diferenças envolvidas entre escutar sermões e
músicas por meio das fitas cassete. Enquanto a música promoveria tranquilidade e
receptividades mais espontâneas para o contato com o divino, os sermões movimentariam o que
o autor chamou de práticas de “progressão moral”, que envolvem, sobretudo, habilidades
cuidadosas do exercício de “ouvir com o coração” (HIRSCHKIND, 2021, p. 215). Deter a
atenção sobre o que se escuta, nesse sentido, seria um diferencial no contexto abordado pelo
autor para adquirir profundidade nas práticas de progressão moral.
Não notei ao longo do trabalho de campo recomendações direcionadas às práticas de
escuta dos áudios. Embora o estímulo para que as participantes prestassem atenção ao que o
casal de pastores publicava no grupo e “evitassem conversas paralelas” no momento da oração
fosse uma das regras explicitamente publicadas pela pastora no grupo, esta não era uma
recomendação restrita às mensagens de voz, mas abrangia também outros formatos de
comunicação adotados pelas lideranças. Além disso, escutar áudios realizando tarefas
297

domésticas cotidianas, a caminho do trabalho ou no momento de dormir era prática comum


entre as integrantes dos grupos.
Na medida em que este momento digitalmente coletivo da oração também era
vivenciado como privado, a experiência de gravar e ouvir áudios era realizada em banheiros,
salas e quartos descritos como “cantinhos de guerra”, espaços estes que não contam com a
presença física de outras pessoas. Na imagem abaixo, enviada por uma interlocutora que
descreveu seu “quarto de oração” quando falamos dos grupos de WhatsApp em nossa
entrevista, sobressaem elementos relacionados à importância de demarcar um lugar reservado
no qual se possa “guerrear” em oração. Em conversas que tive a respeito com outras
interlocutoras, muitas me indicaram ter também seus “cantinhos de oração” que muitas vezes
não chegavam a constituir espaços reservados, mas estavam demarcados com a presença de
elementos como arca da aliança, bíblia, vidro de azeite, suco de uva, pão, entre outros.

Imagem 47: Registro fotográfico de um quarto de oração

Fonte: Envio de interlocutora da pesquisa. Data de coleta: 11/01/2021.

Em uma conversa com a pastora Cristiane sobre sua prática de gravar áudios de suas
pregações para serem enviados nos grupos, ela explicou que nestas mensagens ela se esforça
em fazer a “humanização do personagem bíblico”. Ao se definir como uma “pastora
comparativa”, Cristiane faz analogias destas ações com outras encontradas em grupos cristãos,
conteúdos geralmente chamados de “devocionais”. Em suas palavras, este seria um momento
voltado para a leitura bíblica, com sugestão de modos para praticar no cotidiano aquilo que se
leu, “trazendo o personagem bíblico para os dias atuais”. Ao acompanhar a rotina das mulheres
evangélicas, o compartilhamento de pregações e devocionais no grupo de oração traz
semelhanças com aquilo que Heloisa Buarque de Almeida (2003) indicou sobre os programas
de rádio acompanharem o ritmo doméstico entre as donas de casa. A linguagem simplificada
298

adotada pela pastora, por sua vez, converge com outro atravessamento de gênero observado
pela autora nesta tecnologia, o de “traduzir a linguagem da televisão” (ALMEIDA, H., 2003,
p. 21).
Conforme também argumentei no capítulo 4 desta tese a partir da música entoada
durante os cultos pentecostais, as sonoridades compartilhadas nesse contexto performam
diferenças marcadas por gênero, raça, classe e geração. Assim, ao contrário do que a análise de
Hirschkind (2006, 2021) demonstra sobre o desenvolvimento de distintos cultivos éticos entre
a escuta das músicas e dos sermões entre muçulmanos, os múltiplos conteúdos que podem ser
exibidos em mensagens de voz durante as orações podem indicar aproximações entre
performances que envolvem a música durante os cultos e o compartilhamento de áudios com
orações e pregações entre mulheres pentecostais.
A prática comum de cantar louvores durante a gravação de áudios, igualmente frequente
durante as pregações femininas nos púlpitos, promove tanto pontes como ritmos singulares
entre estas práticas. A melodia nestas oratórias não se faz, no entanto, somente ao cantar
músicas. O ritmo cadenciado de versos que habitualmente iniciam as orações também confere
imponências similares e melodias características às súplicas pentecostais. Tanto digitadas
quanto em áudio, os versos iniciais de orações compartilhadas nos grupos ditavam ênfases nos
tons de voz, pausas que conferiam hiatos e outros movimentos vocálicos reproduzidos durante
estes momentos:

Ó Deus poderoso de Is-ra-el / Diante da tua santa e poderosa presença, Pai/


Nós nos colocamos mais uma vez.

Soberano Deus e Eterno Pai / Mais uma vez nos colocamos aqui.

Senhor Meu Deus / Eterno Pai / Estamos mais uma vez em tua Presença.261

Se nas mensagens compartilhadas pelos áudios os elementos sonoros apresentam ritmos


coletivamente treinados das vozes pentecostais, nas mensagens de texto os elementos visuais
realçam outras sensibilidades. Modos como um texto era escrito com repetições de letras,
inserção de pausas, palavras em caixa alta e emojis utilizados em grande quantidade
expressavam variados tons de voz e sentimentos. Revelações, profecias e outros momentos em
que o poder do Espírito Santo se manifestava em “oração forte”, conforme são chamadas

261
Trechos iniciais de diferentes orações, compartilhadas em mensagens de voz por participantes dos dois grupos
de WhatsApp.
299

ocasiões de maior entusiasmo e proximidade com Deus, recebiam estas distinções emocionais
ao longo de textos. Em meio a outras mensagens, estas e os áudios com orações eram as mais
frequentemente destacadas por outras participantes, cujas mensagens curtas (“É forte”,
“Aleluia”, “Eu recebo”) eram enviadas através do recurso de resposta individual a uma
mensagem262 diretamente para quem orava ou ministrava a Palavra naquele momento, em
demonstração de reconhecimento da autoridade divina presente nas mensagens.
Em diferentes “ministrações” em áudio e texto de pastoras e missionárias integrantes do
grupo, o compartilhamento em texto era realizado em mensagens enviadas em longas
sequências pela narradora. As respostas, síncronas ou assíncronas, que vinham através de outras
participantes, empregavam o recurso de responder individualmente voltado tanto para os áudios
como para mensagens em que a narradora expressou de modo mais enfático a manifestação
divina. O uso do termo “revelar” e similares, nesse sentido, era o mais presente para demarcar
estes momentos. Exemplifico como este uso se deu em uma situação rotineira do “grupo da
Itália”, cujas interações apresento de modo ininterrupto a seguir:

[Pastora Cristiane, 00:15] Eitaaaaaa Glóriaaaaaa é


guerraaaaaa
[Pastora Cristiane, 00:15] Deus te chamou para GOVERNAR e não para ser
escrava, escravo
[Pastora Cristiane, 00:15] Vamos pra cima, o diabo não vai mais te prender
neste posso, nessa prisão. Vai ter viradaaaaa vc vai voltar a sonhar e realizar
seus sonhos
[Pastora Cristiane, 00:15] Abre a sua boca mulher, abre a sua boca homem é
guerraaaaaa o inimigo não vai suportar ele vai caiiiiiirrrr
[Pastora Cristiane, 00:15]

[Pastora Cristiane, 00:15] [envio de imagem encaminhada, ilustração do


personagem bíblico José governando o Egito]
[Virtuosa X, 00:19]
[Virtuosa X, 00:20] Glorias a deus aleluia
[Pastora Cristiane, 00:24] [envio de áudio com oração]
[Virtuosa X, 00:27]
[Virtuosa X, 00:28] Vdd meu Deus
[Virtuosa X, 00:28] Glórias a Deus
[Pastora Cristiane, 00:32] o Senhor me revela que em meio a
dor que uma mulher está sentindo Deus vai te honrar . Deus hj vai realizar o
sonho de uma mulher mediante a sua dor. Vc foi tão humilhada que Deus te
viu e sentiu a sua dor. Hoje chega ao fim essa injustiça, essa dor pq ele te
liberou a bênção que vc só sonhava. Pode enxugar as lágrimas e agradecer.

262
O recurso de resposta individual, apresentado em inglês como “reply” conta com o atalho que possibilita ao(à)
usuário(a) selecionar a mensagem que deseja responder e deslizar levemente o dedo para a direita. Esta
funcionalidade está presente tanto para conversas “no privado” como nos grupos, permitindo que conversas
simultâneas possam ocorrer com retornos específicos a um assunto ou pessoa envolvida na interação.
300

[Pastora Cristiane, 00:33] [envio de gifs de chama de fogo se movimentando


e alerta azul com o texto “atenção”]
[Virtuosa X, 00:48] [em resposta à mensagem anterior da pastora que foi
enviada às 00:32] [envio de figurinha com criança e texto “oh glória!”]
[Virtuosa X, 00:48] Aleluia
[Virtuosa X, 00:48] Eu creio
[Virtuosa X, 00:48] E recebo
[Virtuosa Y, 01:12] [em resposta à mensagem anterior da pastora que foi
enviada às 00:32] O glória a deus eu recebo
[Virtuosa Y, 01:13] [em resposta ao áudio da pastora] Meu Deus é forte
mesmo
[Virtuosa Z, 01:23] [em resposta à mensagem anterior da pastora que foi
enviada às 00:32]
263
[Virtuosa Z, 01:23] Amém

Estas e outras manifestações do poder do Espírito Santo eram momentos vivenciadas


com excepcionalidade pelas interlocutoras não só nos momentos de mas também no espaço
digital dos grupos de WhatsApp. Para Virgínia, participante do “grupo da Itália”, as
dificuldades em orar com pessoas cujo idioma é diferente do seu só são contornadas em
situações nas quais precisa explicar diretamente a quem recebe a mensagem, como na
manifestação de revelações. Essa afirmação surgiu em nossa entrevista quando respondeu
negativamente à minha pergunta sobre a presença de mulheres que não falavam português no
grupo de oração: “você tá ali na guerra, não pode ficar traduzindo toda hora”. Na medida em
que ora “do jeito que sai”, em diferentes idiomas, Virgínia indica que era somente na
manifestação do dom de revelação que suas palavras seguiam de modo coerente e devidamente
traduzidas para a língua da pessoa destinada a ouvir.
A orientação divina recebida por Virgínia nestas ocasiões traz referências às formas
como a revelação também circula nos espaços presenciais de sociabilidade pentecostal. Seja
com o dedo apontado em direção a alguém, como presenciei em cultos ministrados por
diferentes pastores, ou na narração de detalhes de uma ou mais vidas envolvidas, a revelação
precisa se fazer compreendida como destinada a quem se sente atingido por esta manifestação
divina. Assim, para operar enquanto prática que confere autoridade religiosa a quem narra, as
revelações proferidas através de Virgínia decorrem de aprendizados coletivamente treinados.
Conforme demonstrou Martijn Oosterbaan (2009), a exibição de “políticas da presença”
produzidas através dos sons no pentecostalismo sugere caminhos em que as disputas através
das mídias têm consolidado outras arenas de poder nos fluxos pentecostais. Considero esta
perspectiva rentável para compreender políticas da presença pentecostal nos textos, na medida

263
“Grupo da Itália”, Data de coleta: 03/02/2022.
301

em que há aqui a articulação entre sensorialidades distintas. A este respeito, a pesquisa de Bruno
Reinhardt (2014) apontou alguns caminhos ao analisar performances de pregadores
pentecostais em Gana. O autor analisa como a prática de gravar em fitas é experimentada por
estes interlocutores em proximidade ao método bíblico da imposição das mãos. Através deste
paralelo com um modo de transmissão da autoridade religiosa, o autor buscou compreender
como a transformação do sentido tátil exercido pelo toque das mãos em ações como falar e
ouvir as pregações pastorais desenvolve “vozes hápticas”. As pedagogias sensoriais e suas
materialidades, nesse sentido, condicionam elementos centrais a estas disputas pela transmissão
da graça nos fluxos de poder do pentecostalismo (REINHARDT, 2014).
Os modos de enviar mensagens direcionadas por Deus e gerenciar conflitos que
envolvem o digital e o transcendente também contavam com sugestões sobre o que deveria ser
compartilhado no grupo. Durante sua pregação em um “Chá entre amigas”, a pastora Cristiane
recomendou que os pedidos públicos por orações fossem utilizados com parcimônia no
WhatsApp, indicando que a exposição de problemas e dificuldades afetivas e profissionais
poderia acarretar conflitos interpessoais entre as mulheres:

O grupo é pra gente orar. Se você tá com algum problema rápido, joga lá no
grupo que a gente vai tentar resolver, mas nesses níveis de muito particular,
não precisa colocar lá. [...] Às vezes você tem um monte de colega invejosa
que tá lá dentro, você vai expor a sua bênção, gente? Vai no privado, tenha
sabedoria. Tem coisas que não se pode botar no grupo. Sabe o que eu acho
que tem que botar mesmo lá no grupo? Quando é uma coisa assim que é um
problema de terceiros, “por favor, gente, entre em oração pela minha mãe”,
entendeu? Mas quando é algo muito seu, se protege do olho gordo e da inveja,
porque tem crente invejoso sim, tá? Tem crente feiticeiro que faz oração
contrária, sim, macumba gospel! Ora ao contrário! (Pregação realizada em
outubro de 2019.)

Além do controle de sentimentos que devem ser mantidos “no privado”, como a inveja,
a vergonha também era uma emoção que ditava maneiras como a oração e seus pedidos
poderiam circular no grupo. A utilização das mensagens de texto para dar coragem a quem tem
“vergonha de Deus”, como indiquei anteriormente através do exemplo de uma interlocutora
nesta seção, era motor para gerar aproximações. Na mesma mensagem que compartilhou sobre
a vergonha, esta participante indicou que utilizaria aquele espaço para “escrever”, pedindo em
seguida por “misericórdia”. Sua mensagem curta apresenta a capacidade da escrita de transmitir
a unção no pentecostalismo, religiosidade imersa em práticas de “posse da Palavra” (MAFRA,
2002).
302

Por outro lado, a vergonha também pode ser vivenciada através de limitações impostas
pela coletividade. O caso de outra interlocutora, que compartilhou um áudio com sua oração e
recebeu risadas de uma participante logo após sua publicação no grupo, foi alvo de conflitos
entre as mulheres. Na ocasião, a interferência de outra participante para reprovar o riso
destinado ao áudio compartilhado por uma “irmã” foi recebida em concordância pelo grupo,
revelando tensões em torno do riso nesse contexto. Mais do que um controle relacionado à
interdição do sagrado, a situação demonstrou como o riso pode apontar para aquilo que pode
escapar nos constantes improvisos que regem as performances oratórias no WhatsApp. Se
aprender a orar implica em orar ouvindo outras pessoas, orar junto também implica em perder
a timidez para treinar habilidades oratórias, característica central ao disciplinamento
pentecostal. O aprendizado da oração feminina através destes grupos se coloca necessariamente
no esforço em perder a timidez e a vergonha de orar, pois “ter vergonha significa se envergonhar
de Deus”.
Os conflitos relacionados à exposição, riso e vergonha também atravessam o
compartilhamento de imagens nos grupos de oração. Em sua etnografia sobre os sentidos
compartilhados pelo “vazamento” de nudes, Lins (2019) demonstrou como a popularização das
redes sociais vem moldando vínculos sociais que reconfiguram noções de intimidade e
proximidade. Para analisar a estética caseira e amadora de conteúdos femininos “vazados” na
internet, a autora indica que estas transformações dialogam também com mudanças
relacionadas ao digital na própria circulação da fotografia. Seu barateamento e circulação em
grande quantidade ajudaram a consolidar o “ar de oficialidade” (LINS, 2019, p. 65) que rondava
sentidos historicamente vinculados ao registro de imagens de si e dos outros.
Considero os registros domésticos de campanhas e as fotografias de entes queridos, em
sua maioria selfies caracterizadas por imagens frontais de rostos ora sorridentes, ora em
situações de debilitação em hospitais e situações de violência urbana, fortes propiciadoras da
criação de vínculos mantenedores de participações no grupo. Diferente do que ocorre com o
apelo lúdico de gifs, figurinhas e emojis coloridos, com efeitos dinâmicos que simulam
movimentos, as fotos resultantes da câmera dos smartphones contam com grande engajamento
das participantes em orações.
Este engajamento se coloca, sobretudo, entre imagens que solicitam por pedidos de
oração para pessoas que não fazem parte do grupo. Acompanhadas de mensagens de texto ou
de voz que justificam os pedidos pelas orações para “filhos no tráfico”, “filhas na prostituição”,
amigas que estão em hospitais, casais que correm o risco de se divorciar, entre muitos outros
303

motivos, tais fotografias viabilizam dinâmicas específicas de confiança e intimidade nos grupos
de oração.
Minha escolha por apresentar imagens autorais enviadas durante campanhas de jejum e
oração nos grupos teve como objetivo indicar paralelos com a similitude da espontaneidade de
fotografias caseiras, resultantes de momentos coletivos de socialidade que são compartilhadas
através destas imagens. Por outro lado, a ludicidade de memes, gifs e figurinhas que se
relacionam aos momentos de oração promovem outra modalidade de engajamento. Embora
ocupem a maior parte das telas de celulares, estas imagens não recebem retornos das
participantes e são compartilhadas repetidamente e em grande quantidade. Nisto se incluem,
além das ilustrações amplamente enviadas em massa por diferentes interlocutoras (ver imagens
33 e 34) as próprias imagens vinculadas às campanhas de jejum e oração que as lideranças
compartilhavam de acervos disponibilizados gratuitamente em buscadores na internet (ver
imagem 35 e imagens 37 a 42).
Os distintos engajamentos que atravessam as ilustrações de autores(as)
desconhecidos(as) estão refletidos na importância que sua combinação com o áudio ou texto
exerce para as interlocutoras. Em mensagem de texto compartilhada no “grupo do Brasil”, uma
participante pede para que alguém compartilhe com ela uma “passagem de Jonas”, referência a
um personagem bíblico presente em uma “ministração” da pastora que havia circulado em dias
anteriores. Mais do que simplesmente “anexos ao texto principal da etnografia”, estas imagens
são “objetos de uma auto-representação” (SILVA, V., 2015, p. 59) e indicam dinâmicas
relacionais específicas às campanhas e pregações, estas sempre oferecidas pela pastora.
A auto-representação compartilhada nas imagens, nesse sentido, também é racializada.
Se tanto nas ilustrações que convocam para campanhas, como na imagem dos perfis de todos
os grupos, é predominante o tom de pele branco, os usos mais recentes de diferentes tons de
pele nos emojis que evocam posições de reverência e oração (🙇🏿‍♀️) e a produção de figurinhas
trocadas nos circuitos digitais evangélicos (ver imagens 45 e 46) vem permitindo expressar o
caráter racializado da circulação das imagens nos grupos. Assim como a escuta dos áudios,
imagens autorais e emojis vêm proporcionando condições sensoriais para a emergência de
projetos ético-políticos nos quais as religiosidades pentecostais estão fortemente engajadas com
novas demandas de representação racial.
Na experiência corporal e subjetiva de ouvir pregações, vocalizar gravando orações e
produzir conteúdos como fotos e vídeos durante os cultos e demais festividades nas igrejas, o
engajamento religioso com esta mídia digital demarca um espaço devocional e ocupacional,
304

cuja estética e circulação vem tanto propiciando a viabilidade de novas carreiras pastorais como
aprimorando relações para que mulheres evangélicas se tornem virtuosas.

5.4 Hashtags e testemunhos: contranarrativas da violência nas intimidades digitais

Transformar os esforços de um trabalho espiritual que resultou na operação de milagres


é uma ocasião que merece ser compartilhada, publicizada para que “outras vidas possam ser
tocadas por Jesus”, como ouvi frequentemente de diversas interlocutoras evangélicas com quem
convivi durante o trabalho de campo a respeito dos testemunhos. Nossas entrevistas muitas
vezes se transformavam em momentos de partilha de testemunhos que eu já conhecera por ter
ouvido trechos e fragmentos daquelas histórias noutros espaços, contados por elas ou por outras
pessoas com quem compartilhávamos o convívio. A repetição deste momento, no entanto, não
suavizava as emoções que surgiam ao contar mais uma vez a mesma trajetória de superação.
“Eu sempre choro, é sempre como se tivesse contando pela primeira vez”, me disse Ruth
durante nossa entrevista.
No entanto, não havia sido através dela a primeira vez em que conheci seu testemunho,
mas da pastora que lidera um dos grupos de oração do Ministério Mulheres Virtuosas. No
gerenciamento de seus grupos homônimos no WhatsApp, a pastora Cristiane costumava
compartilhar trechos contados por suas “filhas” sobre transformações do grupo na vida de cada
uma. Os pedidos e incentivos para que as participantes enviassem testemunhos que
certificassem os milagres operados através de orações e campanhas convocadas pelo casal
chegavam através de áudios e textos, quase sempre acompanhados de registros em fotos ou
prints que comprovavam aquilo que acabava de ter sido narrado.
Em sua análise sobre a circulação de testemunhos evangélicos nas dinâmicas digitais,
Raphael Bispo (2019) argumenta a partir de casos de “artistas evangélicas” que a midiatização
desta modalidade narrativa tem possibilitado a emergência de novas possibilidades de contar
testemunhos, participação de novos agentes e de novos espaços. Junto à interpelação destes
diferentes personagens, em sua maioria do circuito familiar das artistas, a visibilidade de
espaços domésticos como quartos e salas de estar como cenários para estas narrativas tem
formado o que o autor indicou como uma “corrente midiática da fé”. Enquanto veiculadora de
produtos e produtores cotidianos de valor moral (TEIXEIRA, C., 2016), a circulação midiática
de testemunhos tem possibilitado compreender articulações entre gênero e religião no espaço
público perante as “reconfigurações da privacidade” provocadas pelas mídias sociais (BOYD,
2014).
305

Caminho em diálogo com estas perspectivas para refletir nesta seção sobre as dinâmicas
enunciativas produzidas pelos testemunhos nos grupos de oração. Se acompanhar os usos feitos
por mulheres evangélicas apresentou disputas produzidas nestas relações que abrangeram
diferentes espaços de sociabilidade e mídias digitais, seleciono aqui as interações que
atravessaram o WhatsApp com o objetivo de analisar como a circulação de testemunhos tem
expandido e transformado redes religiosas de confiança entre mulheres e modos de renarrar o
sofrimento (DAS, 2020).
Abordo nesta seção formas com que estes usos vêm integrando redes digitais femininas
de cuidado que, em alguns casos, entram em disputa com institucionalidades jurídicas e
eclesiásticas, formando novas coletividades que extrapolam limites territoriais de seus bairros,
estados e países. Se na seção anterior apontei para engajamentos sensoriais viabilizados pelas
orações, aqui adiciono como a circulação de testemunhos em formatos sonoros e textuais nos
grupos de oração faz circular outros tipos de autoridade religiosa. Dentro ou fora das dinâmicas
das campanhas de jejum e oração, a celebração coletiva de um testemunho contava vitórias
alcançadas após dedicações que resultaram em milagres no campo da saúde, da vida financeira,
da família e do matrimônio.
Aponto, nesse sentido, para algumas ressonâncias com as mudanças produzidas por usos
testemunhais que mobilizações feministas têm feito nas mídias sociais nos últimos anos,
possibilitando pensar sobre como usos interseccionais do digital vêm transformando
sensibilidades relacionadas à família, violência e justiça entre mulheres evangélicas. Ao se
articularem a outros processos cotidianos, as dinâmicas nos grupos expressam transformações
mais amplas que as dinâmicas digitais vêm causando através da relação do espaço público com
o campo das intimidades. Estas relações e suas fronteiras tornaram-se fontes fundamentais para
compreender como estas práticas religiosas estão se transformando no digital e, por sua vez,
também mutuamente modificando formas de usar este aplicativo.
Se, como afirmou Heloisa Buarque de Almeida (2019), as disputas feitas pelos
“feminismos hashtag” ocasionaram mudanças nas sensibilidades públicas sobre violência
sexual nos últimos anos, de que maneiras mulheres evangélicas que não se definem feministas
elaboram suas pedagogias “virtuosas” e modificam sensibilidades através dos usos do
WhatsApp? Busquei caminhos para responder a esta pergunta apontando para ressonâncias
306

entre coletividades digitais femininas evangélicas e movimentações feministas 264 mais recentes
que recorreram à popularidade das hashtags. Em seus estudos sobre as dinâmicas populistas
em mídias digitais como o WhatsApp, Leticia Cesarino (2020a) chama a atenção, em diálogo
com Paolo Gerbaudo (2018), para como as mobilizações relacionadas ao compartilhamento de
hashtags têm construído novas formas de fazer política amplificadas nas redes:

As ressonâncias desse tipo de discurso político com a linguagem da memética


e outras dinâmicas próprias das redes sociais já foram notadas – por exemplo,
a hashtag como significante vazio que articula “multidões” insatisfeitas online
e o “espírito transgressor” que faria das mídias digitais avenidas privilegiadas
para “representar os não-representados”, excluídos da grande mídia e dos
sistemas políticos (GERBAUDO apud CESARINO, 2020a, p. 99).

Ao propor uma reflexão sobre os atravessamentos dos usos do WhatsApp por mulheres
evangélicas com as mobilizações digitais feministas, considerei explorar este fenômeno
enquanto resultado do encontro de dois processos: as dinâmicas midiáticas contemporâneas e o
impacto de celulares e aplicativos móveis nas rotinas religiosas de mulheres evangélicas.
Sobretudo para aquelas que não ganham espaço na rotina dos circuitos evangélicos das igrejas
com grande capital econômico e midiático, observei como os grupos de oração no WhatsApp
têm apresentado estratégias concretas de enfrentamento à violência doméstica, como
exemplificarei mais abaixo. Os grupos e suas relações de confiança têm, nesse sentido,
oferecido espaços privados e seguros tanto para o compartilhamento de intimidades como para
resolução de urgências cotidianas em redes de ajuda mútua entre classes populares (SPYER,
2018).
Por necessitar do suporte de smartphones para seu funcionamento e contar com
funcionalidades que vêm ampliando a gestão da privacidade por seus(suas) usuários(as), o
“zap” reforça qualidades relacionadas à confiança e intimidade que ganham especificidades
relativas ao gênero e atravessadas pela racialização de territórios periféricos e coletividades
pentecostais. Conforme venho argumentando, as desigualdades e transformações que o uso
deste aplicativo tem possibilitado entre mulheres evangélicas não abrangem somente fatores
econômicos, mas também incluem novas economias das intimidades, que vêm sendo
compreendidas enquanto mobilidades atravessadas pelo gênero (KENNY, 2016) 265. A

264
Além dos sentidos êmicos que opõem as categorias feminina e feminista, apresentei na introdução da tese, a
partir de caminhos percorridos nos estudos feministas, outras justificativas para a escolha pelo termo “feminina”
ao longo da tese. Sobre isso, ver Bonetti (2004).
265
Tradução minha. No emprego original da autora, o termo utilizado é “gendered mobility”.
307

ampliação para refletir sobre desigualdades emocionais e sexuais através dos usos de aplicativos
móveis, feita por Erin Kenny (2016) em seu estudo sobre os usos do celular entre jovens
universitárias(os) na Tanzânia, indicou que as transações tecnológicas entre mulheres nestes
grupos têm permitido o desenvolvimento de estratégias para driblar desigualdades morais e
econômicas persistentes nas relações de gênero naquele contexto.
Kenny (2016) cita casos de mulheres que escolhem agenciar sua sexualidade através do
consumo e passam a depender de outros homens para sua subsistência. A articulação do uso de
celulares nestas práticas de “intimidade sexual transacional”, como chama a autora, pode
envolver a subversão de normas de gênero e expectativas familiares em que o erotismo é
utilizado para ascensão econômica. Ao mesmo tempo, para outros grupos nesta faixa etária,
celulares também são apontados como reprodutores de práticas que mantêm zonas de sigilo.
Assim, se entre adolescentes brasileiros (PETROSILLO, 2016) e jovens adultos tanzanianos
(KENNY, 2016) as tecnologias móveis moldam percepções de mundo e permitem novas
possibilidades para viver a intimidade, para as interlocutoras evangélicas o WhatsApp vem
possibilitando agenciamentos também atravessados por vetores geracionais.
Mulheres evangélicas com idades que flutuam entre trinta e sessenta anos utilizam seus
celulares para contar testemunhos que circulam em redes de cuidado, espaços de convivência
digital que, por serem exclusivamente “femininos”, são experimentados como mais seguros
para buscar auxílios relativos à violência doméstica. Ao mesmo tempo, as novas economias da
intimidade que operam na privacidade destes espaços digitais também têm se revelado eficazes
no compartilhamento de questões relativas ao sexo no casamento. Durante suas pregações por
mensagem de voz, a pastora Cristiane compartilhava orientações a este respeito, como no trecho
que trago abaixo:

Eu vou contar um segredinho íntimo pra você: a pastora usa camisinha, mas
não é porque meu parceiro é infiel, porque graças a Deus ele é fiel. Eu não
quis tomar remédios, ela me protege da gravidez, amém? “Ah, pastora, é muito
ruim”. Não é nada! Eu tô há anos assim e te recomendo, tô feliz demais! Tô
muito bem e recomendo pra você se proteger. Você que tem aí esse marido
danadinho, esse marido abençoadinho, que gosta de dar aquelas escapadinhas,
eu te recomendo a usar. Porque tem muita mulher de Deus, fiel, que casou
virgem, com o vírus da aids. Porque o marido andava com prostitutas, com
mulheres infectadas. Tem pessoas que tá pagando um preço pelo pecado
alheio. (Mensagem de voz compartilhada nos grupos de oração no WhatsApp,
janeiro de 2019)

Os reflexos de ações voltadas à preservação do corpo como “templo divino”, central às


subjetividades evangélicas nesse contexto e já indicada em capítulos anteriores desta tese,
308

podem apresentar proximidades com mobilizações feministas. No entanto, busco aproximações


que não se referem aos conteúdos, mas às formas como estas distintas mobilizações digitais têm
se construído. No sentido abordado por Foucault (2008a), a prevalência da forma em detrimento
do conteúdo é o que mobiliza seu conceito de discurso. Assim, analisar eventos sócio-históricos
enquanto “acontecimentos discursivos” pode ajudar a compreender o que a naturalização das
práticas cristalizou enquanto “regimes de verdade”.
Para além de explorar suas falas, as aproximações que proponho se referem às maneiras
como seus discursos articulados em rede fazem emergir vozes femininas que narram
sofrimentos em primeira pessoa. Assim, distintos de movimentos de protesto baseados na
“cultura da autonomia” (CASTELLS, 2013 apud COSTA, C., 2018), mais
desinstitucionalizados e descentralizados, as forças conjunturais dos “feminismos hashtag”
(ALMEIDA, H., 2019) “potencializaram uma estratégia feminista histórica, que se baseia na
força do privado e das narrativas pessoais” (COSTA, C., 2018, p. 60).
Através da análise de dois testemunhos compartilhados nos grupos de oração em que
estive durante o trabalho de campo, esta seção indica como usos coletivos que sujeitos
“feministas” e “femininos” vêm fazendo das redes sociais nos últimos anos são resultantes de
efeitos políticos que pavimentaram a formação de diferentes identidades. Formados por
dinâmicas de representação política unificadas em torno de “campos discursivos de ação”
constituídos por igrejas, ONGs, Estado e outros “nós articuladores” para os feminismos
(ALVAREZ, 2014) e das disputas pela participação na esfera pública através do voto, para os
evangélicos 266 ambos os campos historicamente estruturaram, a partir de constantes disputas,
engajamentos de gênero e linguagens interpretativas para noções como violência e justiça no
debate público.
Aliados ao repertório cristão do acolhimento universal e à expansão de fronteiras
midiáticas pelo pentecostalismo, os grupos de oração femininos operam como agregadores de
modos específicos de narrar o sofrimento, aumentando o alcance e replicação de testemunhos
contados por mulheres evangélicas. Se, para entrar nos grupos em que estive, a única regra
explicitada pelas lideranças era ser “mulher”, as dinâmicas, vocabulários e estéticas

266
Destaco aqui alguns estudos que se debruçaram sobre a compreensão das disputas travadas por segmentos
evangélicos no campo da representação política, que se deram a partir de sua participação nos fóruns da
Constituinte de 1988 e ficaram conhecidas a partir do lema “irmão vota em irmão” (SYLVESTRE, 1986): Burity
(2011); Freston (1993); M. Machado (2015) entre outros. Adiciono a este cenário de disputas mais amplo a
lembrança de Jacqueline Teixeira (2016) para a influência do movimento teológico norte-americano do
Evangelicalismo. Surgido no final do século XX, o movimento também impulsionou a circulação identitária da
categoria “evangélicos” em nosso país.
309

compartilhadas nos grupos passava a ditar quem permaneceria ali. Assim, o caráter semipúblico
(MILLER, 2012) que se reflete nos grupos de “zap” se apresenta às participantes desta pesquisa
enquanto mediação segura para que estabeleçam e ampliem suas redes de confiança entre
mulheres que compartilham repertórios em experiências evangélicas.
Enquanto espaços que sobrevivem fora da institucionalidade das igrejas, há no caso
deste Ministério digital constantes negociações em torno de sua legitimação e tentativas de
driblar precariedades de carreiras pastorais que se fortalecem nas interações digitais. Usar o
celular como “campo de batalha”, como as interlocutoras desta pesquisa costumavam reforçar
em suas rotinas digitais de expulsão de demônios e construção de intimidades com Deus,
constitui um dos modos pelos quais mãos femininas que lideram o pentecostalismo vêm
expandindo seus limites através de mediações digitais. Recorro à circulação de testemunhos no
Ministério para indicar modos como estas narrativas e contranarrativas se conectam a outros
processos que ocorriam no grupo, apresentando transformações que sua visibilização
possibilitava enxergar.

***

Na medida em que testemunhos eram constantemente solicitados pelo casal “para que a
Palavra de Deus possa ser disseminada”, eles também nem sempre eram compartilhados pela
pessoa que o viveu, como mostra o caso de Dani. A primeira ocasião em que ouvi sobre o que
foi apresentado como seu “testemunho de ‘ex-travesti’” foi através da pastora Cristiane, em
uma de suas pregações por mensagem de voz nos grupos de oração durante a campanha da
família. Ao entrelaçar a história de uma personagem bíblica que “se humilhou em oração” com
uma conversa que havia tido com a mãe de Dani, Verônica, a dor de uma mãe que “carrega um
espinho na carne” por ter seu “filho primogênito” homossexual ganhou protagonismo no grupo.
A mensagem acompanhava duas fotos de Dani lado a lado: uma em que estava de
vestido colado ao corpo, maquiagem, cabelos lisos e longos, posando sorridente em um cenário
que remetia a uma avenida movimentada, e outra, em que trajava blusa e calça social, com
semblante sério, sem maquiagem e de cabelos curtos. Por meio do áudio com duração de cerca
de doze minutos, a pastora contava ao grupo sobre ter orientado para que a mãe de Dani
continuasse realizando jejuns e orações e, assim, pudesse “conquistar o menino com amor”.
Após orações conjuntas com a mãe feitas através do WhatsApp, e também na casa que Dani
dividia com a família e na igreja que frequentavam na ocasião, a pastora contou que “o Espírito
Santo começou a trabalhar”.
310

Ao longo da mensagem, Cristiane enfatizava o quanto era importante que Dani fosse
“abraçado e amado” e não “condenado ao inferno”. Ela explicou que chamar de “amor”, e não
pelo nome feminino que havia sido escolhido na ocasião deste encontro, funcionaria também
para não “ofendê-lo”. Ouvir o áudio fornece acesso à abertura de Dani a estes momentos, nos
quais ora junto e reage positivamente às revelações da pastora sobre sua mudança com “uma
nova forma de vestir e de falar”, concretizada poucos meses depois com o envio da foto que se
tornou testemunho contado pela pastora.
Embora o testemunho tenha sido recebido com grande celebração por integrantes do
grupo, não notei manifestações nem de Dani, nem de sua mãe, naquela ocasião. Quando pude
conhecê-la posteriormente, realizamos uma entrevista em que Verônica me contou não fazer
parte de nenhum grupo de oração, mantendo contato com a pastora somente “no privado”. Eu
já havia conhecido Dani, que frequentou duas edições do Chá das Virtuosas na companhia de
sua mãe e de outros familiares, na ocasião da mensagem de voz compartilhada no grupo. No
evento, notei que a pastora buscou incentivar Dani a contar seu testemunho publicamente, mas
sua reação tímida resultou em adaptações que Cristiane buscava fazer para propiciar
receptividade: “a pessoa virá aqui pra frente quando estiver pronta pra dar o testemunho”,
contou em tom bem-humorado.
Ao final deste culto, que não resultou em nenhum testemunho público, fui chamada pela
pastora para ser apresentada para Dani: “Ele só usava saltão e vestidinho! Olha como está hoje,
um homem lindo!”. Olhei para Dani e perguntei se havia um número de telefone para que
conversássemos posteriormente. Ao ouvir em resposta a justificativa de que estaria sem celular
no momento, deixei meu número, mas Dani nunca me procurou e também nunca mais voltou a
outras edições do Chá das Virtuosas com sua família.
Este é um testemunho em que a situação de Dani se combina a outros efeitos. Aqui, as
moralidades sexuais moldam a relação estabelecida com a mãe de Dani e, consequentemente,
com outras mães que compõem o Ministério, na medida em que as palavras de Cristiane
dialogam com quem passa por situações similares. Conforme indica Gabriel Faimau (2017),
sociólogo que pesquisou ministérios proféticos em Botswana, os testemunhos digitais são
valiosas narrativas não apenas porque são divulgadas, mas também porque são armazenadas,
preservadas para serem enviadas para novos públicos. De acordo com o autor, a relação que
testemunhos online estabelecem com ouvintes desloca o pertencimento da narrativa a quem
testemunha, gerando um engajamento em que ela passa a pertencer também a quem a ouve, ou
seja, às/aos usuárias/os da mídia em questão. Para legitimar sua autoridade como pastora junto
311

ao Ministério, Cristiane segue um caminho já adotado por outras ações pentecostais de legitimar
sua credibilidade circulando testemunhos (FAIMAU, 2017).
Se no caso de Dani e sua mãe os efeitos do testemunho não se refletiram na relação
estabelecida com o Ministério, o caso de Luíza, 35 anos, amasiada, com um filho e vivendo
como imigrante na Itália, apontou para soluções sustentadas em redes de apoio mútuo que
envolveram outras mulheres do Ministério. Luíza me contou em nossa entrevista que conheceu
a pastora em um dos momentos difíceis de sua vida, quando vivia um relacionamento em que
seu então namorado a agredia com “xingamentos e insultos”.
A pedido de uma amiga da mãe de Luíza, a pastora ficaria hospedada em sua casa
durante a estadia na Itália. Com a conexão descrita como “espiritual” provocada pelo encontro
com a pastora Cristiane desde então, a relação entre ambas passou a ocupar um espaço de
aconselhamento que Luíza não havia construído com outros e outras líderes religiosos(as) nas
igrejas pentecostais que frequentava naquele país. Em sua narrativa de “gratidão eterna” para
com a pastora, Luíza indica a centralidade do que é sentido “através do coração”. O vínculo
entre esta sensação e a manifestação de dons é indicado quando a interlocutora conta uma
situação ocorrida assim que se conheceram, quando a pastora “revela” que Deus teria falado
com ela sobre o sofrimento em uma relação que Luíza estaria vivendo. Se os vínculos entre
ambas foram iniciados nesta ocasião, puderam ser fortalecidos após a ocorrência de uma
agressão física do ex-companheiro durante a estadia da pastora em sua casa. Os cuidados da
pastora, atados por relações de parentesco espiritual construídas no Ministério e descritos por
Luíza como “maternais”, acionaram o compartilhamento de noções particulares de violência e
justiça nesse contexto.
Em paralelo à opção por denunciar o ex-namorado, Luíza foi auxiliada pela pastora a
não retornar para a antiga relação e “se cuidar espiritualmente”. Ao narrarem seus sofrimentos
e buscarem redes paralelas à institucionalidade jurídica, Luíza e as outras mulheres que conheci
através de seus testemunhos nos grupos de oração no WhatsApp e que vivenciavam situações
de violência doméstica não contavam suas histórias como estímulos para que outras mulheres
denunciassem as próprias. Embora o incentivo à denúncia já tenha sido anteriormente
propagado nos grupos pela própria pastora, em nossas conversas mais recentes esta escolha tem
sido nomeada como um “radicalismo” que não tem sido adotado em suas intervenções no
Ministério, na medida em que suas publicizações para a denúncia estariam, segundo ela,
afastando as mulheres de buscarem por sua ajuda nestas ocasiões.
A intensa produção de “inimigos” no campo da família tem mobilizado debates públicos
em que as experiências evangélicas são mais frequentemente retratadas como coniventes com
312

violências perpetradas contra mulheres. Enquanto pesquisas clássicas sobre as dinâmicas de


gênero no pentecostalismo apontaram para o lugar de maridos que são “prisioneiros do espírito
do mal”, alocados ao lugar de vítimas que devem ser convertidas (MARIZ; MACHADO, 1996,
p. 150), investigações mais recentes têm indicado tanto o lugar de perpetuação de práticas
nocivas por parte de lideranças institucionalizadas em igrejas evangélicas quanto a
transformação de “discursos religiosos de sujeição em práticas efetivas de denúncia” (SOUZA;
OSHIRO, 2018, p. 215)267.
Ao mesmo tempo que o âmbito das conjugalidades tem possibilitado debates sobre
transformações nestas experiências evangélicas ao longo do tempo, as inscrições relativas à
diversidade sexual têm sido recebidas em frentes de atuação que mutuamente acolhem e
combatem, reforçando estigmatizações sobre perigos associados a estas experiências
(NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009). Diferente do caso de Luíza, que recebeu uma solução
considerada satisfatória por ela e por Cristiane, não pude acompanhar os agenciamentos
realizados por Dani em face às investidas heteronormativas que classificam suas práticas como
pecado que precisa de salvação. Da pista deixada por Marcelo Natividade e Leandro de Oliveira
(2009, p. 156) sobre a necessidade de maior investigação de “tipos particulares de homofobia”
expressos em “posturas de cuidado e ajuda – [as quais] não necessariamente difundem pânicos
morais de forma explícita”, busquei compreender através de Verônica como as maternidades,
junto às conjugalidades, também se tornam parte de uma gestão moral da violência no âmbito
destas intimidades digitais.
Quando me concedeu uma entrevista, Verônica contou que Dani, aos 25 anos, estava
“afastado da presença do Senhor” e que ela não conseguia “lidar muito bem” com este
“processo”. Este termo fazia referência tanto à afirmação interpretada pela mãe como
“homossexual” quanto à mudança religiosa do “filho” para uma religião de matriz africana.
Verônica culpabilizava lideranças de igrejas que frequentou junto com Dani por terem causado
feridas e tristezas que resultaram neste afastamento, indicando o caminho dado para suas
insatisfações dividido entre duas obrigações: embora não “possa”, ela “tem” que aceitar as
decisões do “filho”. Assim, sua narrativa apresentou constantes tentativas de conciliação entre
estes dois lados: a escolha maternal pelo “amor ao filho” e a vontade divina que anseia pela
“salvação” da alma de Dani. Estas negociações envolviam uma dinâmica relacional entre mãe
e “filho” que Verônica me apresentou durante a entrevista para justificar a importância de estar
ao lado de seu “filho”:

267
Ver também: Souza (2001/2002) e Vilhena (2009).
313

Hoje em dia você vê meu filho, você nem diz que ele é o que ele era. Mudou
muito! Pastora sabe disso. Hoje ele tem cavanhaque, antigamente ele usava
implante, botava unha postiça, salto alto. Hoje não, hoje meu filho se comporta
como homem. Porém, além da homossexualidade dele ser posto, ele se veste
como homem hoje, tem cavanhaque, tem tudo. Às vezes tem algumas mães
que não aceita os filho da maneira que é, só que eu acho que quando a gente
não aceita... não é nem aceitar né, você tem que ter um equilíbrio! (Entrevista
com Verônica, realizada por ligação no WhatsApp em outubro de 2021.
Ênfase da interlocutora.)

Se a constante busca pelo “equilíbrio” tem indicado modos como expressões de gênero
e sexualidade que escapam à norma heterossexual podem ser inferiorizadas em nome da
salvação, a experiência simbolicamente sacralizada de ser mãe pondera estas hierarquias sociais
com disputas construídas na “relação entre o tempo e a ação social” (VIANNA; FARIAS, 2011,
p. 107), oferecendo cuidados resultantes de profundas negociações éticas na vida pentecostal.
No trabalho de Vianna e Farias (2011) sobre o protagonismo de mães de vítimas da violência
do Estado, a ação do tempo é identificada como central no agenciamento das mães em busca
de transformar a representação de seus filhos mortos como “corpos amados e bem criados”, e
não “marginais e bandidos que ‘merecem a morte que tiveram’” (VIANNA; FARIAS, 2011, p.
108).
Ao criticar lideranças que feriram Dani com palavras e buscar fornecer segurança ao
“filho” que abriga em sua casa, Verônica confronta moralidades institucionalizadas e escolhe
negociar entre diferentes planos de Deus. De um lado, a graça de cuidar de um filho e, do outro,
reconhecê-lo como pecador. “Amar o pecador, mas não o pecado”, como ouvi de diferentes
interlocutoras durante a pesquisa, torna este exercício articulado aos princípios do Evangelho.
Adentrar na narrativa de Verônica apontou, nesse sentido, para como a circulação de
intimidades provocada por seu testemunho tem reforçado noções de cuidado materno
salvacionistas entre mulheres evangélicas, ao mesmo tempo que resulta em conflitos que não
refletem a coerência de testemunhos que se tornam públicos.
O modo como a pastora Cristiane escolhe contar a história de Dani possibilita questionar
sobre que testemunhos têm sido publicizados nos grupos de oração e outros “circuitos
midiáticos da fé” (BISPO, 2018) e, além disso, sobre quais condições de existência têm sido
permitidas nesse contexto para que contranarrativas maternas como as de Verônica possam ser
contadas a partir do testemunho que ela escolhe não publicizar e que passa, assim, a ser contado
em terceira pessoa. No sentido adotado por Saidiya Hartman (2021) sobre as histórias contadas
pelos arquivos negros, publicizar contranarrativas é contar histórias de fracasso que, neste caso,
314

estiveram submersas pela salvação que situa corpos LGBTQIAP+ em “zonas de morte social e
corporal” (HARTMAN, 2021, p. 122) para criar modos de enunciação insurgentes também
entre as maternidades evangélicas, apesar das hierarquias de discursos autorizados.
Em paralelo às negociações constantemente insatisfeitas da mãe de um “filho
homossexual”, as violências provocadas contra mulheres evangélicas produzem outras
estratégias de coletivização do sofrimento no grupo. Ao explorar os cruzamentos com
“feminismos hashtag” (ALMEIDA, H., 2019), tive como objetivo compreender como os
conflitos que se apresentam no Ministério em torno dos testemunhos têm transformado
sensibilidades relacionadas às violências contra minorias sociais distintas. Ao mesmo tempo
que podem ser instrumentalizados para forjar agenciamentos contrários às mobilizações
progressistas em torno das pautas feministas e LGBTQIAP+, testemunhos contados por
mulheres evangélicas em grupos de oração no WhatsApp podem também formular diálogos
feministas possíveis.
Como argumento nas próximas seções desta tese, os confrontos provocados com pautas
feministas de quaisquer ordens e sua vinculação com a “ideologia de gênero” têm sido
engajados por estas mulheres através de instrumentalizações políticas conservadoras que se
fortaleceram nos últimos anos entre grupos evangélicos. A categoria êmica “mulheres”, nesse
contexto, apresenta rentabilidades que possibilitam enfrentamentos às desigualdades
vivenciadas em espaços religiosos institucionais e dispositivos jurídicos entre evangélicas no
que se refere, sobretudo, à violência doméstica. Não proponho aqui uma saída que aprofunde
investimentos na categoria “mulheres” 268, cuja utilização no plural pelas interlocutoras da
pesquisa não abarcou diferenças relativas à diversidade sexual e de gênero. Tampouco se trata
de uma aposta política na categoria “mulher” no singular, cuja associação com outra categoria,
a “família”, tem provocado retrocessos nos arranjos institucionalizados do campo dos Direitos
Humanos e das políticas públicas de gênero brasileiras 269.
Considero os usos ético-políticos que mulheres evangélicas vêm fazendo do WhatsApp
importantes para destacar como espaços digitais têm propiciado condições sociotécnicas para
enfrentamentos que, muitas vezes, estão associados nos debates públicos tão somente às pautas
feministas progressistas. Ao visibilizar ações pentecostais que estão se fortalecendo através de
arranjos de intimidade propiciados em mídias sociais como o WhatsApp, podemos

268
Sobre a crítica a esta categoria como alvo do “sujeito feminista”, ver Butler (2003).
269
Ver Teixeira & Barbosa (2022) e Almeida, H. (2023).
315

compreender modos como o gênero vem agindo enquanto principal integrador para a demanda
de soluções políticas que se referem ao campo das intimidades e seus efeitos no espaço público.
Ao adotar uma perspectiva sobre os usos político-religiosos do WhatsApp e a expansão
de suas funcionalidades a partir da interação com marcadores sociais da diferença, busquei
deslocar meus objetivos de repertórios que têm recebido maior destaque no debate público
contemporâneo, cujo centro está na replicação de “novos” formatos de igreja e nos discursos
oficiais de representantes evangélicos. Em seu lugar, trouxe como proposta refletir sobre a
multiplicação de personagens anônimos, com a incidência interseccional modificando maneiras
como o pentecostalismo é vivido. Assim, a análise etnográfica possibilitou pensar tanto sobre
transformações rituais no pentecostalismo quanto em práticas de enfrentamento e negociações
éticas que as coletividades de mulheres evangélicas vêm construindo a partir dos usos do digital.
A partir das contranarrativas da violência mobilizadas para esta análise, busco propor
caminhos de construção de políticas feministas que possam se afastar de imaginários
secularistas direcionados ao progresso, baseados em noções de autonomia dessintonizadas com
as negociações éticas da conduta virtuosa evangélica. Ao contrário de posicionamentos
monolíticos sobre a manutenção de práticas conservadoras entre grupos evangélicos, busquei
demonstrar como as interlocutoras vêm indicando caminhos ambivalentes de cuidado no âmbito
de suas intimidades e construindo brechas para dar coerência às suas histórias de fé, mesmo que
elas não adentrem a esfera autoritativa dos testemunhos públicos.
Chamo a atenção, nesse sentido, para caminhos nos quais diálogos possam ser
estabelecidos a partir do reconhecimento de aproximações que apontem para semelhanças e
diferenças entre alianças evangélicas e mobilizações feministas “seculares”. Na medida em que
secular e religioso são categorias que só podem ser definidas em relação, persigo a pergunta de
Hirschkind (2017) sobre o corpo secular para questionar modos como podemos explorar os
atravessamentos de nossos feminismos com o que chamamos de modernidade: como se
definem os feminismos seculares? Que sensibilidades e afetos os caracterizam? Como eles se
transformam com os usos de tecnologias digitais? De que maneiras as experiências religiosas
se fazem presentes em suas narrativas de progresso?
Para além de utilizar o termo “secular” como categoria de acusação, relacionada à falta
de escuta que silencia a participação de mulheres evangélicas que se definem antifeministas nas
políticas progressistas, estas perguntas buscam pavimentar caminhos para visibilizar problemas
decorrentes da construção de políticas feministas que historicamente se fizeram aliadas ao
discurso secularista. Em continuidade com reflexões sobre a presença religiosa e seus conflitos
a respeito do sexo (SCOTT, 2018) e do gênero e raça nas dinâmicas de transnacionalismo
316

religioso (BUTLER, 2009; MAHMOOD, 2019), os diálogos que construo na tese também
buscaram contribuir para um aprofundamento deste debate no interior dos estudos feministas
sobre as interseccionalidades das violências.

5.5 “Não somos um grupo político”

Em mais um de seus importantes textos sobre os emaranhados entre religião e política


no Brasil, Patricia Birman (2020) analisa, à luz das contribuições de Talal Asad, como os
movimentos observados na eleição à Presidência ocorrida em 2018 apontaram para novidades
tecnológicas e políticas que atualizaram a união entre o par “guerra e religião”. Em sua menção
à responsabilidade das fake news como um dos elementos disparadores de moralidades 270 que
ajudaram a eleger um presidente de extrema direita em nosso país, há algumas justificativas
elaboradas pela autora para a centralidade que os debates sobre religião passaram a ocupar na
esfera pública nacional após este episódio. Segundo Birman, as notícias falsas ativaram
sensibilidades que até então estavam “pouco acionadas e valorizadas” neste âmbito, sobretudo
aquelas relativas ao “sentido moral e religioso da ação política” (BIRMAN, 2020, p. 74-75).
Com a extrapolação da moralidade do campo limitado (pelo secularismo) da política e
a “explosão da divisão moderna e secular entre as esferas” (BIRMAN, 2020, p. 86), os debates
que irromperam sobre as formações político-religiosas atravessadas pelo campo inescapável
das tecnologias digitais trouxeram grupos evangélicos como atores centrais para a disseminação
de notícias falsas (cf. FONSECA; DIAS, 2021). Na medida em que busquei não repetir a
oposição hierárquica comum entre ações políticas institucionalizadas daquelas que não se
vinculam aos aparatos institucionais, olhar para as zonas de “‘fluxos e refluxos’ dos
movimentos” e seus “campos discursivos de ação”, como propõe Sonia Alvarez (2014, p. 45),
se tornou exercício fundamental para compreender como conteúdos classificados pelas
interlocutoras como “políticos” produziam relações no Ministério. Analisar os grupos de oração
no WhatsApp sem identificar os impactos destes conteúdos incidiria em lacunas importantes

270
Birman (2020) aponta para a generificação destas moralidades nos conteúdos majoritariamente misóginos de
fake news, chamando a atenção para o impacto de imagens sobre violações do corpo feminino. Destaco também
outras investigações feministas que vêm se debruçando sobre a circulação digital do ódio às minorias raciais,
sexuais e de gênero e que resultam em fenômenos que vem sendo chamados de “violência política”: AzMina e
InternetLab (2021), Instituto Marielle Franco (2020), Sívori e Mochel (2022).
317

para situar controvérsias e disputas específicas 271 que usos do WhatsApp vêm produzindo, cujos
impactos se refletem diretamente na configuração de coletividades de mulheres evangélicas.
Ao longo dos diversos conflitos que acompanhei a este respeito, havia uma frase
recorrente, proferida principalmente pela pastora Cristiane, que buscava delimitar fronteiras na
rotina digital do Ministério: “Não somos um grupo político, somos um grupo de busca”. Sua
oposição entre a busca devocional exercida pela prática da oração e os conteúdos que
considerava políticos apresentava algumas características fundamentais a estes processos de
diferenciação. Além de fazer referência mais direta aos debates morais que têm atravessado a
esfera pública a partir do protagonismo de atores evangélicos na esfera institucional e/ou
partidária, “falar de política” evocava tentativas de distinguir seus grupos de oração de outros
grupos que compõem o espaço mais amplo do WhatsApp.
Tais distinções estão situadas em arranjos nos quais os grupos de WhatsApp vêm se
inserindo nos últimos anos. Segundo Leticia Cesarino (2020a), a diluição de fronteiras do que
se considerava política mudou radicalmente após as campanhas digitais que ajudaram a eleger
Jair Bolsonaro em 2018. Em seus estudos sobre grupos públicos bolsonaristas que vêm atuando
através deste aplicativo, a autora indicou que a digitalização contemporânea tem consolidado
mecanismos de expansão do “populismo digital” 272. A presença de “padrões discursivos
estruturantes” que dialogam com modelos populistas (CESARINO, 2020a, p. 96) e a
emergência de lideranças carismáticas digitais estiveram amparadas neste período em lógicas
igualmente estruturantes dos discursos pentecostais, como a retórica bélica (PEREIRA, R.;
MESQUITA, 2022) e a estrutura militarizada de uma guerra binária que enquadra inimigos e
aliados (FARIAS, 2021).
No entanto, este campo de tensões e antagonismos pavimentados antes de 2018 e
consolidados neste período através de grupos de WhatsApp popularmente conhecidos como
“grupo da família”, “grupo da igreja”, entre outros, não resultou, naquela ocasião, em conflitos
publicizados nos grupos de oração em que a etnografia se desenvolveu. Os acirramentos
ocorreram somente na última eleição, a partir de outubro de 2022, e se aprofundaram no início
de janeiro de 2023, após a invasão de grupos bolsonaristas às sedes dos três poderes, em
Brasília.

271
Entre as controvérsias que envolveram relações eleitorais e mídias digitais, uma das mais importantes envolveu
a empresa Meta, comandada por Mark Zuckerberg e hoje proprietária do WhatsApp, Instagram e Facebook. Esta,
por sua vez, foi a principal plataforma envolvida nas investigações sobre os impactos da parceria com a Cambridge
Analytica nas eleições americanas (BBC, 2018).
272
Nos termos da autora, esta categoria se refere “tanto a um aparato midiático (digital) quanto a um mecanismo
discursivo (de mobilização) e uma tática política de construção de hegemonia” (CESARINO, 2020a, p. 95).
318

Desde que comecei a acompanhar os grupos de oração, em 2017, esta foi a primeira vez
em que “falar de política” no grupo foi publicamente exposto em associação a valores negativos
por sua principal liderança. Se nas eleições de 2018, as mensagens a favor do ex-presidente Jair
Bolsonaro, candidato à Presidência da República na ocasião, eram predominantes no grupo, as
primeiras reações começaram a surgir a partir das últimas eleições, em 2022. Mais focadas no
compartilhamento de conteúdos relativos ao cargo de presidente, mas não restrito a estes 273,
participantes do “grupo do Brasil” se confrontaram por meio de memes, mensagem de texto e
de voz ainda durante o primeiro turno, após o posicionamento contrário de duas participantes
ao então candidato à reeleição Jair Bolsonaro e a favor de Luiz Inácio Lula da Silva. Os debates
acalorados entre as participantes foram causados por reações ao compartilhamento constante
de integrantes mais participativas no grupo sobre a suposta liberação de banheiros unissex e
proibição de cultos nas igrejas no caso da vitória de Lula. Diante da mediação de outras
participantes que, em maior quantidade, sugeriam suas posições neutras no debate, além de
nenhuma interferência do casal de pastores, o episódio resultou na saída voluntária de uma das
apoiadoras do petista do grupo.
Com posicionamentos limitados a mensagens de texto compartilhadas nos dias
marcados para a votação, sempre a favor de candidatos que defendessem a “família” e sem citar
nomes, a única ocasião em que a pastora Cristiane se posicionou publicamente para vetar
conteúdos no grupo ocorreu após os recentes ataques no Palácio da Alvorada. Sua interdição
foi motivada por outro debate, ocorrido após o compartilhamento de uma integrante sobre a
hipótese de haver pessoas infiltradas de partidos de esquerda nos ataques de apoiadores(as) do
ex-presidente que ocasionaram em depredações na sede do governo federal. A publicação foi
rebatida pela única apoiadora de Lula que havia continuado no grupo após ter se posicionado
anteriormente. Também a única a continuar suas críticas contra o ex-presidente e candidato
derrotado Jair Bolsonaro após o compartilhamento de pedidos de recontagem dos votos das
urnas eletrônicas e intervenção militar no grupo, esta integrante, sempre em mensagens de texto,
voltou a rebater comentários. Desta vez, o debate foi recebido com desaprovação pela pastora

273
As únicas exceções a este respeito estiveram no compartilhamento de conteúdos reiterados sobre a ex-ministra
e senadora Damares Alves e ao ex-governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Diferente da presença constante
de vídeos e áudios atribuídos à Damares, os compartilhamentos relativos ao ex-governador estiveram restritos ao
período de sua campanha para o governo do Rio de Janeiro. Candidatos menos conhecidos que concorriam aos
cargos de vereador e deputado estadual também apareciam através de propagandas de algumas integrantes do
grupo.
319

Cristiane, que imediatamente publicou uma mensagem de voz gravada em formato genérico 274
que seria enviada a todos os grupos de oração, acompanhada de imagens e figurinhas em tom
vermelho, habitualmente compartilhadas por ela em momentos voltados para comunicados
importantes.
Com a voz trêmula, Cristiane indicava estar nervosa com os últimos acontecimentos e
pedia para que as participantes não expressassem mais suas “opiniões políticas” no grupo. Suas
reclamações também indicavam vetos aos conteúdos contrários às religiosidades de matriz
africana e às “preferências” e “opções” sexuais alheias. Após reações às palavras da pastora
com emojis de mãos juntas e corações, o áudio e todos os conteúdos relacionados aos debates
sobre os ataques ao Palácio da Alvorada recentemente compartilhados pelas integrantes foram
deletados dos grupos.
Embora declarassem suas preferências eleitorais em outras redes sociais e mantivessem
vínculos voluntários com uma igreja cujas lideranças indicavam apoios públicos a Jair
Bolsonaro e outros candidatos de seu partido 275, os grupos de oração no WhatsApp eram
administrados por Cristiane e Bruno como espaços que não eram utilizados por eles com este
mesmo objetivo. Suas tentativas de manter fronteiras maleáveis para que participantes
compartilhassem conteúdos sobre política nos grupos se refletiam em participações tímidas do
casal e mais frequentes das integrantes, que constantemente compartilhavam notícias falsas
relacionadas a partidos e mobilizações associadas à esquerda. A circulação de fake news
diminuiu consideravelmente ao longo dos anos e das campanhas eleitorais. Com exceção de
ocasiões em que notícias falsas foram compartilhadas pelas lideranças, as participantes
costumam avisar umas às outras quando se trata de uma notícia falsa e frequentemente enviam
prints para comprovar a inveracidade das notícias compartilhadas.
A partir da análise destes eventos e suas relações na configuração de um Ministério sem
vínculos institucionais, considero fundamental expandir investigações que possam extrapolar
perguntas sobre a circulação de fake news entre evangélicos. O que estamos produzindo ao
investir em teorias sobre supostas suscetibilidades de evangélicos(as) a consumir

274
Este tipo de áudio é gerado quando o(a) usuário(a) grava um áudio e o encaminha para outros contatos e/ou
grupos. Em vez da foto do contato que gravou a mensagem, este áudio é caracterizado pela presença de um ícone
musical.
275
Estas declarações públicas de apoio entre as lideranças da igreja Missões se expressavam não somente no
período eleitoral, embora se aprofundassem nestas ocasiões. Elas se explicitavam através de postagens em redes
sociais para pedir votos tanto para Jair Bolsonaro como para vereadores e deputados de sua coligação, alguns
também vinculados à igreja, além de homenagens em datas comemorativas a diferentes políticos apoiados pela
igreja, presença de bandeiras do Brasil e de Israel em campanhas de oração, usos de fotos e citações de Bolsonaro
e adesão pública em campanhas de orações e jejum pelo Brasil convocados por ele e pela ex-primeira dama,
Michelle Bolsonaro.
320

desinformação? Que tipo de mobilização estes argumentos provocam no debate público? De


que maneiras ajudam a reforçar ataques marcados por ódios brasileiros racistas e/ou motivados
por ódio à pobreza? Com este argumento, não sugiro que a importância desta discussão seja
reduzida, mas busco reiterar que outras perguntas sobre desinformação entre grupos
evangélicos possam ser feitas e que, sobretudo, considerem o peso da “arquitetura neoliberal
das mídias digitais” (CESARINO, 2021, p. 75) na sustentação da máquina protagonizada por
personagens economicamente favorecidos com a disseminação de notícias falsas. Além de não
ajudar a compreender motivações relacionadas ao que tem sido chamado de engajamento pela
indignação em setores conservadores da sociedade (SPYER; NEMER; MOURA, 2018, s. p.),
a limitação a recortes sobre a predisposição evangélica e de igrejas pentecostais neste
engajamento não ajuda a compreender “motivações voluntárias e descentralizadas”, além de
atravessadas por marcadores sociais da diferença.

5.5.1 Conspirações religiosas nas guerras femininas através do digital

Entre os enquadramentos analíticos que produzi para viabilizar a análise dos conteúdos
compartilhados nos grupos de WhatsApp, abordo nesta seção parte do anunciei na subseção
5.2.2 da tese, os quadros temáticos. Organizei estes quadros a partir de critérios que priorizaram
engajamentos gerados pelos conteúdos e suas repetições no cotidiano do grupo, baseados
naquilo que compreendi serem os principais conteúdos ali compartilhados mediante relações
produzidas entre modos de participação das integrantes e suas relações com as lideranças.
Para além da oração, analisada a partir dos quadros fixos, entre os temas que mais
circulavam nestes grupos276 havia classificados de emprego, memes destinados ao público
evangélico (ver imagem 48), versículos bíblicos, saudações de bom dia, tarde e noite e de boas-
vindas ao grupo – estas sempre acompanhadas do nome da nova participante em mensagem de
texto (ver imagem 49) –, convites para eventos em diversas igrejas pentecostais, transmissões
ao vivo feitas pelas próprias participantes de suas orações, pregações em vídeo de pessoas
anônimas e canções gospel, compartilhadas principalmente através dos aplicativos Kwai 277 e
TikTok.

276
Na medida em que não notei diferenças significativas entre os “grupos do Brasil” e “grupo da Itália” para o
compartilhamento de conteúdos temáticos, farei menções tanto no singular como no plural que buscam se referir
a ambos a partir daqui.
277
O aplicativo foi criado por fundadores chineses no início dos anos 2010 e conta com recursos para gravar e
editar vídeos curtos. Sua popularização no Brasil se deve à monetização gerada nos compartilhamentos destes
321

Entre as fake news mais frequentes, estavam os alertas, com ou sem conteúdo
conspiratório, voltados às mães e ao público evangélico. Ao longo dos anos, o crescimento do
acesso às informações relativas ao compartilhamento de notícias falsas tanto diminuiu sua
circulação como possibilitou a criação de formatos mais difíceis de identificar como
desinformação. Nesse contexto, destaco notícias publicadas por veículos de imprensa
tradicionais, mas foram descontextualizadas nessa circulação. As edições geralmente estavam
em formato de imagens em baixa resolução, com partes das notícias oficiais mantidas e outras
editadas com opiniões pessoais do(a) autor(a) do falseamento, indicando a intenção expressa
de prejudicar quem protagoniza o conteúdo.

Imagem 48: Meme com a cantora gospel Imagem 49: Mensagem de boas-vindas
Fernanda Brum compartilhada pela pastora Cristiane

Fonte: enviado por participante no “grupo do


Fonte: enviado pela liderança no “grupo do Brasil”.
Brasil”, autoria desconhecida. Data da coleta:
Data da coleta: 27/11/2017.
28/11/2017.

Com exceção das mensagens de saudação, sempre compartilhadas com recursos


imagéticos estáticos ou em movimento, havia diversidade nos formatos dos conteúdos
temáticos. Dentre os materiais citados, os engajamentos das participantes eram mais frequentes
em relação às mensagens alarmistas sustentadas em teorias conspiratórias. Enquanto vídeos de
pregadores, memes motivacionais, versículos bíblicos autorais ou copiados em mensagem de
texto de aplicativos da Bíblia não engajavam trocas entre as integrantes, os “alertas aos crentes”
(ver imagens 51 e 52 abaixo), como eram mais frequentemente chamados, contavam muitas
vezes com a combinação de recursos em áudio, vídeo, texto e fotos autorais enviadas em massa.

vídeos em diferentes plataformas digitais, caso dos vídeos compartilhados nos grupos de oração que contavam
frequentemente com legendas que pediam a instalação do aplicativo para receber dinheiro.
322

Estas eram combinações que constantemente produziam efeitos de verdade às narrativas


testemunhais sobre a manifestação de dons que se faziam presentes nestas mensagens.
Anunciando-se como “irmãos” e “irmãs” que combatem perigos e riscos à espreita, mensagens
de voz alertavam mães e familiares para influências da “ideologia de gênero” e riscos
relacionados à saúde infantil. De modo geral, seus conteúdos envolviam mobilizações nas redes
sociais, usos de brinquedos vinculados a personagens “satânicos”, comidas ligadas à
alimentação infantil como balas e doces que, por sua vez, também indicavam associações
negativas à festa de São Cosme e Damião ou ao período do Halloween. Em grande medida,
também havia aquelas destinadas a alertas de segurança para a família, sugerindo a existência
de mensagens “ocultas” que operariam para a destruição dos “lares cristãos” pela mídia
brasileira, em especial novelas da Rede Globo. As vinculações com teorias conspiratórias
propagadas por autoridades da política institucional também se faziam presentes. Descrevo
abaixo mais detalhadamente uma delas, disseminada no período de vacinação infantil contra a
covid-19 nos grupos de WhatsApp.
A mensagem trazia um modelo bastante frequente de combinação para os alertas, com
áudio e texto que podiam ser atribuídos a uma autoria desconhecida, vinculados ao nome de
uma(a) fiel e sua igreja com dados breves sobre sua localidade, ou associados a pastores(as) e
pregadores(as) evangélicos(as). O áudio em questão trazia a voz de uma mulher que diz seu
nome completo, estado e igreja, contando sobre um momento de revelação vivido durante uma
oração durante a madrugada. Na ocasião, a mensagem indicou uma premonição da voz divina:
“as minhas crianças serão mortas a fio na espada”. A espada, ela explica, refere-se à agulha,
“uma espada que não sangra, mas mata”. O recado “do Senhor para o Brasil” indicava que a
vacina seria uma arma contra as crianças, comparando a situação de mães que se recusarão a
ser consoladas pela morte dos filhos com a personagem bíblica Raquel, quem, segundo a
narradora do áudio, havia optado por não ser consolada após a morte dos filhos.
Outro personagem bíblico também foi acionado em seguida. Seria necessário “salvar a
família”, assim como fez Noé ao colocar sua própria família na arca para fugir do dilúvio que
enfrentava. Junto ao áudio, uma mensagem de texto igualmente ativada com o recurso
“encaminhada com frequência” foi compartilhada, articulando o alerta de vigilância pelas
crianças a outros personagens bíblicos como Herodes, Moisés e Abraão. Ao longo daquelas
semanas, notícias de crianças que haviam sido hospitalizadas após a vacinação também foram
compartilhadas por diferentes mulheres, junto a múltiplos envios de um vídeo do então
323

presidente Jair Bolsonaro gravado em câmera frontal, nos quais se posicionava contra a
vacinação infantil278.

Imagem 51: Fotografia de brinquedo de


Imagem 50: Alerta conspiratório enviado
pelúcia compartilhada como alerta
nos grupos de oração, alertando para riscos
conspiratório
em “brincadeirinha” no Facebook

Fonte: Envio de participantes no “grupo do Brasil”, autoria desconhecida. Datas de coleta, da esquerda
para a direita: 02/03/2018 e 19/10/2017.

Diferente de vozes de supostos especialistas 279 que compõem estas e outras fake news
da modalidade conspiratória, as mensagens às quais me refiro são compartilhadas por vozes
que se autodeclaram “evangélicas”. Nos diversos áudios, vídeos e textos que analisei, apontar
para tal pertencimento, seja através de termos característicos deste vocabulário religioso, ou
indicando nome e igreja, modo mais comum desta circulação, se demonstra como algo
importante de ser dito de alguma maneira ao longo da mensagem. As informações pessoais e
que comprovam o pertencimento a uma comunidade de confiança seguem uma estratégia

278
Outros personagens da política institucional com pertencimento evangélico pentecostal, como a ex-ministra e
atual senadora Damares Alves e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, eram citados através de áudios com
vozes que lhes eram atribuídas em mensagens sobre a proteção da infância em temáticas que, de modo geral,
envolviam erotização precoce e perseguição aos cristãos.
279
Outros alertas contra o uso de vacinas já haviam sido divulgados em massa em grupos de WhatsApp através de
mensagem com a voz de uma suposta médica, que indicava os perigos das reações às vacinas (ESTADÃO
CONTEÚDO, 2018).
324

narrativa que busca ampliar o efeito de verdade da notícia através da autoridade religiosa,
buscando convencer quem partilha da mesma fé do(a) autor(a) do áudio.
Mais do que analisar os elementos bíblicos e o acionamento de pânicos morais relativos
a gênero e sexualidade contidos nestas mensagens alarmistas, a análise descritiva destes
conteúdos e suas reações buscou compreender o estabelecimento de dinâmicas relacionais
provocadas por este tipo de mensagem nos grupos de oração. Assim como na narrativa em áudio
sobre os perigos da aplicação da vacina em crianças, as imagens acima compartilhadas (51 e
52)280, também foram recebidas com reações similares pelas participantes, as quais exclamavam
reações através de emojis que expressavam emoções como susto ( ) choro ( ) e mãos em
oração ( ), acompanhados ou não de textos curtos: “Misericórdia”, “Jesus está voltando”,
“Vamos orar, irmãs”, entre outros exemplos.
Seus efeitos sensoriais e de continuidade com a prática de contar um testemunho
compõem padrões de comunicação mais amplos da disseminação do que vem sendo
compreendido através do termo “pós-verdade”. Segundo Cesarino (2021), a lógica da pós-
verdade estaria baseada em três aspectos: o “ver para crer”, transmitido por uma linguagem
audiovisual que também fornece a sensação de viver experiências exclusivas e em primeira
mão; a produção de narrativas alarmistas e conspiratórias, sustentada pela ideia de que se pode
descobrir informações ocultas ao grande público por meio de pesquisas online; e, por último, o
antagonismo amigo-inimigo, orientando a avaliação moral do que é ou não verdade baseada
nos conteúdos que cada um compartilha nas redes sociais (CESARINO, 2021).
Na medida em que há atores pentecostais amplamente engajados nestas dinâmicas de
influência digital através de mensagens alarmistas que seguem a lógica da pós-verdade, as
atualizações do “par guerra e religião” (BIRMAN, 2020) permanecem fortemente, resultantes
dos mecanismos neoliberais que regem a maquinaria das notícias falsas. Ao mesmo tempo,
percebo movimentos individuais e coletivos discordantes, que se expressam tanto nos modos
cada vez mais organizados por ações conjuntas das interlocutoras em desengajar a
desinformação nos grupos como em tensões, que podem ser mais explícitas ou mais discretas,

280
Os conteúdos que acompanhavam estas imagens seguiam padrão discursivo semelhante ao alerta anteriormente
descrito, com a presença de imagem e mensagem de voz. Não trago detalhamentos maiores de seus conteúdos para
evitar repetições nesta análise, mas vale ressaltar aspectos contextuais em ambas. Na imagem que alerta para a
“brincadeirinha” no Facebook, a referência mais direta é a uma atividade “viralizada” no ano de 2018 por meio do
aplicativo FaceApp, que analisava traços do rosto de fotos enviadas pelo(a) usuário(a) e simulava como seria caso
fosse do gênero oposto (ESTADÃO CONTEÚDO, 2018). Na outra imagem, trata-se de um brinquedo de pelúcia
distribuído na rede de fast food McDonald’s junto a uma de suas ofertas. Enquanto a característica conspiratória
compartilhada pelo primeiro se colocava em torno da ideologia de gênero, para o segundo a questão compartilhada
como “demoníaca” se referia mais diretamente aos perigos que correm os “filhos de crentes” em aceitar brinquedos
de pessoas “do mundo”, podendo aquele objeto carregar maldições que entrariam nos lares evangélicos.
325

em relação aos modos como igrejas, grupos evangélicos e outros grupos de caráter mais íntimo
no WhatsApp passaram a consolidar debates políticos.

Imagem 52: Ilustração de conteúdo Imagem 53: Ilustração de conteúdo


classificado como político (1) classificado como político (2)

Fonte: Envios de participantes no “grupo do Brasil”. Autoria desconhecida. Datas de coleta, da esquerda para a
direita: 29/05/2018 e 28/05/2018.

Imagem 54: Ilustração contrária à mistura entre religião e política

Fonte: Envio de participante no “grupo do Brasil”, autoria desconhecida. Data de coleta: 20/02/2020.

Se era a estética disseminada por mobilizações de apoiadores do ex-presidente em


combinações com a prática da oração a que se fazia mais presente entre os memes e figurinhas
que circulavam no grupo (ver imagens 52 e 53), as discordâncias mais discretas vinham
daquelas que apontavam para o estabelecimento de fronteiras desejáveis entre o que definiam
como campo da “fé” e da “religião”. Na imagem acima, compartilhada por uma participante
326

durante a campanha eleitoral em 2018, uma mão que lembra a de um pastor segura um
microfone que está sendo aberto e carregado com munições, condenando os usos do púlpito
para pregações que não se refiram ao Evangelho enquanto, ao mesmo tempo, associa conteúdos
políticos a outras condutas reprováveis.
Enquanto ato espontâneo e corriqueiro, os desconfortos em relação a como, quando e
onde se fala de política em grupos evangélicos estiveram presentes entre as mulheres desta
pesquisa através de diferentes níveis de organização. Nesse sentido, o período da pandemia do
novo coronavírus indicou aumentos nas explicitações de incômodos sobre o compartilhamento
de conteúdos relacionados ao ex-presidente nos grupos. Tais inquietações se relacionavam
principalmente ao modo como Bolsonaro se posicionava em relação à pandemia, ilustradas em
publicações que criticavam seu negacionismo e defendiam a vacina. A pastora Cristiane
também me indicou estar enfrentando desafios maiores na administração dos grupos durante
este período, apresentando uma comparação com a chegada da covid-19, sobre “a política matar
mais que o vírus”.
Embora tais processos em que o WhatsApp tem servido como principal cenário
midiático sejam resultantes de formações de alianças historicamente forjadas no contexto
evangélico pentecostal, os reflexos populistas nos usos desta mídia social (CESARINO, 2020a)
são constantemente expandidos com a ascensão de personagens evangélicos à política
institucional. Na análise de Renata Menezes e Lívia Reis (2017) sobre a eleição de Marcelo
Crivella à Prefeitura do Rio de Janeiro, os usos de redes sociais pelo ex-prefeito foram
destacados como integradores de duas imagens que se buscava conciliar, entre “o Prefeito e o
crente”. As autoras apontam como a aliança desta prática com a valorização de políticas
neoliberais entre evangélicos determinou quem seriam as principais parcerias político-
religiosas e acirrou mediações da equipe de Crivella para que ele continuasse sendo visto como
autoridade tanto da cidade como da igreja, mesmo que tenha se licenciado do cargo de Bispo
para exercer sua função no executivo municipal.
As aproximações geradas através dos usos de mídias digitais entre líderes e público
eleitoral, como destaca Cesarino (2020a), são comuns a estas práticas populistas exercidas
através da arquitetura neoliberal das mídias. Elas compõem combinações e continuidades com
o WhatsApp cujas especificidades busquei explorar nesta seção, e operam como parte
fundamental das relações de intimidade estabelecidas das participantes entre si e com a política
que circulam através dos grupos de oração. Os usos do WhatsApp vêm provocando reflexões
sobre a permanente ressignificação de limites que são novos para um público que expressava
sua falta de intimidade com a política até a eleição de Jair Bolsonaro. Na medida em que a
327

intimidade tem demonstrado gerar pesos significativos e distintos das multidões reunidas em
torno das hashtags, transformações causadas por sujeitos isolados como as que geraram
conflitos no grupo após os ataques no Palácio da Alvorada podem consolidar impactos afetivos
que ainda precisam ser melhor investigados em pesquisas posteriores.

5.5.2 O #jejumnacional e outras transformações rituais no pentecostalismo

Encerro este capítulo com a análise de um evento ocorrido no início da pandemia do


novo coronavírus, a convocação feita por Jair Bolsonaro e lideranças evangélicas para o “jejum
nacional”. Este momento coletivamente vivenciado pelas interlocutoras não correspondeu a
uma campanha de jejum e oração mais rotineira como aquelas já realizadas no grupo, mas
apresentou elementos que apontaram para como a excepcionalidade de ter abarcado um
movimento nacional, convocado pelo então Presidente da República, gerou variados
engajamentos. Divido esta seção em duas partes, uma em que primeiro explico sobre como os
jejuns eram feitos no grupo para, depois, analisar sua realização digital após a convocação
supracitada.
A centralidade variável do jejum no cotidiano de diferentes sujeitos e vertentes cristãs
demarca pertencimentos que são parte de suas principais disputas por legitimação. Se sua
distinção em relação à abstinência é um dado que compõe normativas presentes em documentos
oficiais, a exemplo do último Código de Direito Canônico281, é possível observar este debate
como alvo de intensas negociações nas experiências religiosas cotidianas. No convívio digital
entre lideranças e fiéis evangélicas, referências às modalidades de jejum dialogavam com
“vícios” vinculados ao domínio secular, tomado nestas prescrições em uma perspectiva que
busca separá-lo do religioso através de dinâmicas de purificação que negociam fronteiras entre
sagrado e profano (DOUGLAS, 2014).
Tal separação é vivenciada para combater perigos que as diversas dinâmicas de contágio
articulam entre virtude e pecado, tradição e modernidade, religioso e secular. “Jejum dos
olhos”, “jejum dos ouvidos”, “jejum de internet”, “jejum de sexo”282 foram alguns dos
exemplos que mais circularam entre as narrativas evangélicas, indicando como, para além de

281
Versão revista, promulgada em 1983 pelo Concílio Vaticano II.
282
Vale lembrar que as práticas de abstinência sexual também são frequentes entre adeptos de religiões de matriz
africana. O caso do candomblé é descrito por Rios (2012) para associar normas ao “cultivo do axé”.
328

abrir mão da comida, praticar o jejum envolve diversas modalidades de renúncia que convivem
no que chamam de “mundo”:

Tem gente que faz jejum que só passa fome, porque ela escuta música do
mundo... não tenho nada contra ouvir música do mundo, quem quiser que
ouve, aí é você, o seu particular com Deus. Mas escuta música do mundo,
dança, grita, briga, fala palavrão... isso não é jejum! Jejum é santificação, é
separação! (Pastora Cristiane, mensagem de voz compartilhada nos grupos de
WhatsApp, junho de 2019)

Ao mesmo tempo que envolvem disciplina para aprender a separar-se do mundo, as


negociações no contexto destas coletividades de mulheres evangélicas são constituídas por
contenção e seletividade entre elementos que invadem seus cotidianos. Nesse sentido, Cristiane
costumava ressaltar que “não importa se tá tocando música do mundo ao seu lado, o importante
é ficar em consagração”, elegendo o hábito de “abrir jejum” como sacrifício que extrapola
sentidos relacionados à privação da comida.
Em sua forma mais frequente, com duração entre um e três dias, a pastora jejua “a pão
e água”, sendo a carne e o café os alimentos citados como os mais comuns para a retirada. Para
além destes e outros alimentos, entre as orientações que costumava compartilhar com suas
seguidoras, diversas adaptações são propostas com o intuito de “abrir mão de coisas com as
quais se tem apego”, podendo-se retirar elementos causadores de vícios, tais como usar o
celular, ouvir músicas seculares e praticar sexo. Tomados de modo inseparável, orar e jejuar
ocupam lugar privilegiado para refletir sobre a preparação do corpo que se põe em sacrifício na
vida pentecostal, santificando-se e aprimorando-se para melhor “falar com Deus”. Ao longo
deste preparo, a oração se configura como aquilo que traz o poder de alimentar, desde que
combinada a outras disposições negociadas coletivamente.
As temporalidades, por sua vez, delimitam distinções importantes para a realização do
jejum. As orientações para a oração e jejum se situavam em horários que tanto podem se
relacionar às justificativas bíblicas como ao pragmatismo cotidiano. São desde “horários em
que castas de demônios estão soltas” à maior disponibilidade para orar durante o almoço ou nas
madrugadas, horários em que necessariamente estariam em casa ou no intervalo do trabalho.
Para a religião vivida no campo destas experiências pentecostais, o tempo opera na aprimoração
das práticas de disciplinamento e autocultivo ético (HIRSCHKIND, 2021). Quanto maior o
pecado, mais tempo e dedicação devem ser destinados ao jejum.
Em vez de rupturas e continuidades entre diferentes práticas religiosas, muitas delas
lidas na chave do sincretismo, a abertura de adaptações no jejum, seja como ato de “separação”,
329

“santificação” ou combinação com outros componentes alimentares, é elaborada no conjunto


do que Duarte et al. (2006) chamaram de estilo de vida individualizado. As articulações destes
diferentes elementos produzem diferentes vínculos inter-religiosos, transformando modos de
vivenciar o pentecostalismo e suas noções de sagrado. A transformação de tradições que articula
elementos de continuidade e ruptura pode ser notada na seguinte fala da pastora Cristiane: “Já
fiz o Ramadã, jejum muçulmano, faço o que vem ao meu coração”.
Para além de concepções que encerram fenômenos religiosos ao lugar de crenças
formadas por símbolos e significados a serem desvendados por leituras secularistas (ASAD,
2021), o jejum pentecostal vivido nesse contexto implica em desejos e sacrifícios que são
vividos em “regimes de valor” (APPADURAI, 1996), constituindo-se enquanto prática ritual
performativa (TAMBIAH, 1985) que envolve as materialidades de substituições da rotina
alimentar por outros itens, usos do celular e de outros elementos frequentemente encontrados
nestas práticas de devoção, como o óleo de unção, peças de roupa, fotografias etc. Sua variedade
de prescrições expande a noção do que é a comida e dos significados relacionados ao ato de se
alimentar, transformando constantemente o exercício desta prática devocional.
Recentes destaques ao jejum elaborados por estes atores no âmbito da política
institucional contemporânea vêm estabelecendo esta prática como alvo de mobilizações
ocorridas, sobretudo, após a pandemia do novo coronavírus. A primeira delas, também a que
mais resultou em engajamentos nos grupos de oração que acompanhei, ocorreu no mês de abril
de 2020, quando uma articulação feita entre diferentes grupos evangélicos divulgou a
convocação ao “jejum nacional” mencionado acima. Em um vídeo curto em que olhava para a
câmera do celular que o filmava, o então presidente Jair Bolsonaro compartilhou um chamado
voltado “àqueles que tem fé e acreditam” para um jejum. Uma versão maior deste vídeo,
somada a outras manifestações de pastores brasileiros de denominações pentecostais que
reforçaram o pedido do ex-presidente em prol da superação da crise econômica e sanitária
agravada pela pandemia. A versão foi veiculada em diversas mídias sociais, inclusive nos
grupos de oração dos quais participei. Junto a isso, Bolsonaro também deu entrevistas indicando
que o jejum estaria sendo organizado junto aos “amigos católicos e evangélicos”, e convocou
outra chamada similar em março de 2021. Neste ano ele aparece em um novo vídeo, agora ao
lado de alguns dos pastores que estavam no vídeo anterior. As lideranças direcionaram seu
pedido ao “povo de Deus”, “em favor da nação brasileira” e foram precedidas pela palavra final
de Bolsonaro para que o jejum fosse “pelo futuro do Brasil”.
330

Imagem 55: Primeira convocação ao “#jejumnacional”

Fonte: Envio de participante no “grupo do Brasil”, autoria desconhecida. Data de coleta: 03/04/2020.

Tendo atendido às convocações ao primeiro jejum, as lideranças e muitas participantes


do grupo indicaram motivações para se juntar a este movimento que não seria “por nenhum
político”, mas “pelo povo” e “pela saúde da nação”. Se entre o cotidiano do Ministério a
convocação para o jejum ocorria frequentemente na abertura de uma nova campanha, este
evento extraordinário estabeleceu identificações que ajudaram a solidificar a produção de um
imaginário compartilhado de “nação cristã”. O que antes só circulava através dos memes passou
a ganhar status de legitimação no grupo, apoiado pelo casal de pastores que o liderava como
valorização desta prática tão central à rotina pentecostal.
No entanto, cabe lembrar que as disputas travadas no interior desta “etnografia do
particular” (ABU-LUGHOD, 2018) apresentam configurações mais complexas quando
enredadas ao imaginário sobre grupos evangélicos que circulam na esfera pública. Se para o
enquadramento presidencial “os muçulmanos” e outras religiosidades compõem comunidades
imaginadas homogêneas com fronteiras impermeáveis à sua noção compartilhada de “nação
cristã”, para o jejum praticado entre as interlocutoras evangélicas diversos emaranhados inter-
religiosos se evidenciam, modificando inclusive aqueles que se associam à recriação do “Israel
mítico”. No caso do jejum do Yom Kippur, por exemplo, as diversas restrições envolvidas para
esta prática no Antigo Testamento bíblico sofreram adaptações entre igrejas e grupos
evangélicos que adotam o período enquanto parte campanhas e outros tipos de mobilização.
Tratando-o nesse contexto como o “dia do perdão”, as interlocutoras costumavam
realizar o jejum nesta ocasião que é especialmente dedicada à expressão de arrependimentos
331

por erros cometidos, com realização entre os meses de setembro e outubro. Diferente das
expressões compartilhadas pelas vertentes judaicas e das diversas restrições envolvidas para
esta prática contidas no Velho Testamento, as práticas pentecostais adotam a data como parte
de suas campanhas enquanto seus braços digitais dialogam com a representatividade desta
ocasião entre celebridades que se apresentam como judeus. Um dos exemplos mais
compartilhados nos grupos nesse sentido eram imagens e vídeos narrados pelo dono de uma
das maiores emissoras de TV brasileiras, Silvio Santos283.

Imagem 56: Ilustração compartilhada durante uma campanha do “Yom Kippur”

Fonte: “Grupo do Brasil", autoria desconhecida. Data de coleta: 30/09/2017.

Os intercâmbios inter-religiosos nos grupos de oração ajudam a esgarçar as fronteiras


delimitadas por quem tem protagonizado as dinâmicas relacionadas ao jejum na esfera pública
contemporânea brasileira. Além das singularidades mais amplas ao contexto pentecostal que
envolvem adaptações frequentemente realizadas pelas interlocutoras, como apresentei
anteriormente, as relações que o jejum proporciona convoca a refletir sobre seu caráter de
mercadoria. A frase “a pastora fez um jejum pela minha vida” compôs uma das principais
tônicas vivenciadas neste encontro, demonstrando a circulação do jejum nas dinâmicas
relacionadas ao “ciclo de dádivas com Deus” (MARIZ, 2016) nesse contexto. Sua vinculação
com o trabalho pastoral não enfatiza que o destino de auxílios financeiros seja especificamente

283
Vale lembrar que, desde a primeira campanha de Jair Bolsonaro à presidência, o apresentador declara apoio
público ao ex-presidente. Para um exemplo, ver Poder 360 (2018).
332

para a prática do jejum mas, em seu lugar, configura um conjunto de significados a respeito do
que deve ser pago em dinheiro como retribuição da graça alcançada 284.
Uma exceção a este aspecto pode ser encontrada nas orientações voltadas para mulheres
grávidas e lactantes que, de acordo com a pastora, não poderiam aderir ao jejum e eram avisadas
de que seu próprio jejum “as alcançaria”. A força do trabalho pastoral para mobilizar
aproximações com o divino encontra, nesta prática, uma atuação transformadora que rompe
com a “polarização conceitual entre pessoas individualizadas e coisas mercantilizadas”
(KOPYTOFF, 2008, s. p.). Fazer relações por meio do jejum possibilita, assim, a formação de
vínculos em que gênero, tangenciado por outros marcadores sociais da diferença, atravessa as
prescrições de gênero e sexualidade que mobilizam sentidos econômicos, corporais e
espirituais, tornando o jejum um elemento político central às construções coletivas de nação
compartilhadas por evangélicos.
Observar sua realização no digital apresentou diferenças que venho buscando
demonstrar ao longo deste capítulo no que se refere às transformações das práticas rituais
através do WhatsApp. As transformações que se combinam a outras religiosidades indicam para
questões que não são facilmente encontradas em contextos offline, como o caso da prática do
Ramadã descrita pela pastora. No entanto, mais do que inspirar comparações entre online e
offline, cabe explorar como as interações digitais têm possibilitado aperfeiçoamentos sensoriais
ao jejum e outras práticas pentecostais entre mulheres evangélicas. Se desde o início as
interações online já apontavam para outras experiências em relação às percepções de espaço e
tempo vivenciadas naquele contexto, com a chegada da pandemia outras possibilidades vieram
à tona. Trago abaixo a situação que me foi contada sobre uma experiência de cura vivida através
do uso do celular:

Nós começamos a fazer batismo nas águas para aqueles que estavam
enfermos. Então quando a gente via que tinha alguém tava bastante enfermo
num hospital, ou que tava num lugar isolado, por exemplo, onde ninguém
entra, a gente pedia ali pra uma enfermeira... Contamos com “virtuosas” que
são enfermeiras, né? Ali nós usávamos aquela enfermeira, pedíamos, né, para
a enfermeira nos ajudar a batizar aquelas pessoas, a fazer o apelo se elas
aceitam Jesus. Outras não eram enfermeiras, eram o próprio parente. A gente
pedia pra aquela pessoa pegar um pouco de água e fazia o apelo, perguntava
se aquela pessoa que estava ali no leito, que às vezes quase não está falando,
está numa situação muito difícil, se ela aceitava Jesus como seu único e
suficiente salvador. Ela aceitando, nós ali consagrávamos aquela água que
tava naquele copo pedindo para aquela enfermeira, aquela pessoa que tava ali,

284
Em sua dissertação, Julia Chaise (2021) argumenta sobre como o jejum entre mulheres brasileiras convertidas
ao Islã é atravessada por sentidos econômicos que frequentemente envolvem a comercialização desta prática.
333

aspergir a água. Então nós estamos fazendo o batismo aspergindo água.


(Pastora Cristiane, mensagem de voz enviada em maio de 2020)

O batismo por aspersão, prática mais frequente em vertentes cristãs católicas, demonstra
através de outro exemplo sobre transformações que implicam em continuidades que envolvem
tanto condutas inter-religiosas como o aproveitamento de espaços já utilizados por estes grupos
em práticas de cura e evangelização. Ao mesmo tempo, a aspersão feita pelo casal lembra a
clássica cena do copo de água a ser bebido após a oração de pastores pentecostais que
comandam programas de TV evangélicos brasileiros. As replicações podiam ser notadas tanto
em modelos que já eram aplicados através da mediação com as mídias no pentecostalismo
quanto em adaptações feitas por Cristiane durante a explicação de suas campanhas de jejum e
oração.
Além das citadas anteriormente a respeito do jejum, as diferentes temáticas anunciadas
nestas ocasiões propiciavam relações com diferentes materialidades. Durante uma campanha
intitulada como “derrubando muralhas”, a pastora pedia para que as ouvintes desenhassem
tijolinhos em um papel com seus problemas inscritos em cada um e, ao final da campanha,
ateassem fogo, pois “o fogo consome tudo”. As ressalvas relacionadas às limitações físicas,
assim como no jejum, também eram sempre lembradas. Para aquelas que tinham dificuldades
de andar, em outra campanha que solicitava uma caminhada de oração em volta no quarteirão
de suas casas durante quinze dias, as participações estariam garantidas com uma caminhada em
volta de uma cadeira, com seus pedidos escritos em um papel posicionado no assento.
A exploração de recursos digitais de aproximação entre lideranças e fiéis propiciou ao
casal o treinamento de outras sensibilidades através de imagens, sons e textos compartilhados
no cotidiano religioso, permitindo ampliar suas criações de efeitos da presença divina através
dos usos do WhatsApp. Com desafios impostos pelo fechamento dos templos e diante do
aumento da participação nos grupos, também havia pregações mais extensas, campanhas mais
frequentes, pedidos de oração atendidos de modo mais contínuo por Cristiane e Bruno e que
não se realizavam somente em suas casas, mas no aumento de idas aos “montes” após o
fechamento das igrejas.
Cenas do cotidiano do casal também passaram a ser inseridas no grupo, em interações
que mostram o pastor Bruno realizando tarefas domésticas que antes eram realizadas pela
pastora. Entre elas, áudios e fotos de uma cena em que o pastor cozinhava causaram grande
engajamento no grupo, com reações que apresentaram continuidades com o tom bem-humorado
utilizado pelo casal na situação. Trata-se de uma cena que expressa diversas normativas e
334

modelos compartilhados a respeito de ser uma boa esposa e um bom marido, o que reforça um
argumento tradicionalmente levantado pelos estudos de gênero e pentecostalismo sobre o valor
central da domesticação do masculino nestas conjugalidades.
Tais aprofundamentos das intimidades durante o isolamento social provocado pela
chegada do novo coronavírus causaram modificações nas formas como o próprio casal
descrevia a importância de cultivar relações cotidianas com suas seguidoras nos grupos de
oração. Em uma de nossas conversas por mensagem de voz no período inicial da pandemia,
Cristiane me descreveu estas mudanças realizando uma comparação entre os grupos sob sua
liderança e aqueles comandados por outros(as) pastores(as) evangélicos(as): “A maioria dos
grupos de oração tem uma palavra, tem um versículo, mas o próprio líder pregar todos os dias,
não tem”. Segundo a pastora, o vírus havia contribuído para “ir além” em sua rotina religiosa
coletivamente compartilhada com centenas de fiéis distribuídas pelo mundo, propiciando
interações que passaram a ocorrer em períodos com intervalos mais curtos e com maior
participação das integrantes do grupo.
Nesse sentido, o aprofundamento ocorrido desde o início do isolamento social em sua
disposição para liderar esta rotina refletia transformações que, como indiquei anteriormente,
eram vividas em processos de continuidades tanto com práticas de mediação amplamente
utilizadas no pentecostalismo como através de alianças interreligiosas. Na conclusão desta tese,
busquei indicar como as sensorialidades despertadas por meio do digital também dialogavam
com materialidades eróticas e religiosas que apareceram em diferentes capítulos da tese,
formando os conjuntos ético-políticos da fluidez da unção entre mulheres evangélicas.
335

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A unção era palpável.


(Pastora Cristiane, comentário publicado nas mídias sociais).

Esta frase que ilustrou muitas análises que trago na tese foi compartilhada como resposta
ao registro fotográfico de um “Chá entre amigas” no lar de uma interlocutora. Falar sobre a
palpabilidade da unção caracterizava momentos representativos que as imagens traziam da
intensidade emocional vivida coletivamente. Cantando louvores em voz alta, expulsando
demônios que amaldiçoavam suas vidas, orando juntas, a expressão indicava como haviam sido
tocadas pelo Espírito Santo que se manifestava enquanto choravam, falavam em línguas e
“entravam no manto”, pulando e rodando em torno de si mesmas. Nos eventos e grupos de
WhatsApp em que estavam juntas, combinavam-se variadas dinâmicas de comunicação para
gerir a conjugalidade do casal e aperfeiçoar a intimidade com Deus. Em suas convivências
diárias tanto com o Sagrado como com as coisas malignas do “mundão”, a expulsão de
Demônios é vivida como processo de constante busca pela unção.
Conquistar a unção é uma atividade sempre incompleta e em permanente movimento,
implicada em se fazer através de gestualidades, indumentárias, cabelos e estéticas de corpos
que atravessam invariavelmente o intenso cotidiano religioso nos grupos de WhatsApp. Nestes
espaços, a guerra contra demônios que estão nas materialidades que compõem corpos e coisas
é formada por constantes exercícios de diferenciação entre múltiplos Sagrados e Demônios.
Esta multiplicidade é conferida através de coisas consagradas nos cultos, objetos amaldiçoados
que devem ser sacralizados, vozes digitalizadas que podem maldizer ao invés de abençoar em
revelações. Foram diferentes expressões que ouvi de muitas interlocutoras como referência a
este exercício: a Palavra que tanto fere quanto cura, o fogo que pode queimar e aquecer, os
“deuses mudos” que podem se transformar em um Deus para começar a falar após o batismo
no fogo.
Tais frases muitas vezes eram seguidas por ensinamentos sobre como aprendiam a
diferenciar estas instâncias coletivamente, através da oração, jejum e leitura da Palavra bíblica,
importantes elementos na construção do disciplinamento na intimidade a ser desenvolvida com
Deus. Também houve ocasiões em que as ouvi contar sobre vozes que, ecoando repetidamente
em suas cabeças, traziam incertezas: “não sabia se era Jesus ou o Demônio falando comigo”.
Para que se tenha uma relação com Deus, é preciso saber se, de fato, é Deus que está falando
consigo. Sabe-se que é Deus quem “visita” e “passeia” nas casas e pelos corpos quando ele
336

enxerga ossos, células, órgãos, ouve pedidos, fala, responde. Já o Diabo, pluralizado através de
espíritos também onipresentes, pode estar por perto manifestando-se através de alguém, sempre
à espreita como “espírito que cria inquietação, briga, discórdias”.
Busquei explorar ao longo desta tese como os sentidos sobre o pentecostalismo não
estão prontos, mas são continuamente construídos a partir das relações entre fronteiras
situacionais. A estética presente nos corpos e a materialidade e dildos, óleos de unção e da
cosmética sensual se combinaram com formas de comunicação no WhatsApp, produzindo
múltiplas maneiras como mulheres evangélicas configuram noções de prazer e conformam
sentidos sobre o projeto de vida fluido de ser evangélica. Os usos da categoria fluidez não
operam aqui como metáfora; eles expressam elementos constituintes da própria plasticidade
material das coisas que compõem a vida evangélica. A inspiração em trabalhos como o de
Appadurai (1996; 2008) possibilitou reflexões em que a categoria fluidez também permitiu
compreender movimentos desterritorializados e resultantes de multipertencimentos destes
circuitos que tornam alguém evangélico(a) hoje.
Enquanto dispositivo, o pentecostalismo opera modos de agir no mundo que se
constituem a partir de relações entre raça, gênero, classe e sexualidade. Analisar através de
métodos proporcionados pelas teorias da interseccionalidade, nesse sentido, compuseram
diversas cenas que apresento na tese para contribuir com críticas etnográficas sobre o “jogo do
secularismo” (HIRSCHKIND, 2021) persistente nos debates públicos brasileiros sobre grupos
evangélicos. Tal exercício analítico implicou em esforços para destacar ao longo deste trabalho
como a busca pela unção é disposta em relações entre Sagrados e Demônios que são líquidos,
“instáveis” e “indeterminados”, como afirmou Charles Hirschkind (2021). Realçar a fluidez da
unção envolveu demonstrar fronteiras móveis e portáteis dos usos de coisas eróticas, celulares
e dos usos centrais de aplicativos como o WhatsApp nos fluxos sensoriais que constituem as
ambiguidades e ambivalências da autoridade religiosa.
Além disso, os recursos presentes nos meios de comunicação eletrônico indicam a
emergência de “eus imaginados e de mundos imaginados” com espectadores que não cabem
em “espaços locais, nacionais e regionais” (APPADURAI, 1996, p. 14-15). A fixidez do espaço
é constantemente desafiada pelos formatos digitais, o que vem permitindo analisar como
transformações temporais ao longo das interações online podem produzir rompimentos críticos
através do conhecimento etnográfico (FABIAN, 2013).
As constituições mútuas das mediações religiosas com mídias e materialidades
possibilitaram refletir, ainda, sobre como Ministérios no WhatsApp têm sido parte da estética
da política pentecostal contemporânea (MACHADO, C. B., 2020b). Pesquisar sobre as disputas
337

pentecostais através do WhatsApp apontou, ao mesmo tempo, para reflexões sobre as relações
entre online e offline no trabalho de pesquisa antropológica. Na proposta da antropologia digital
adotada por Miller e Horst (2012), as fronteiras entre online e offline transitaram historicamente
dos paradigmas acadêmicos da separação para a fusão destes domínios. Segundo os autores, tal
proposta pela unificação reflete um diagnóstico equivocado, sustentado em argumentos
escatológicos a partir dos quais persiste uma compreensão do virtual como transcendente em
detrimento do real como dimensão física autêntica. Ao seguir a perspectiva que explora a noção
de digital, não se tratou de investigar a separação ou fusão dos domínios online e offline, mas,
conforme explicam os autores, suas relações mútuas, conflitantes e complementares. Optei por
utilizar o termo “digital” ao longo da tese sem desconsiderar contribuições da ampla trajetória
consolidada pelos estudos sobre mídia e religião, os quais frequentemente recorrem ao termo
“virtual” para analisar os efeitos de construção da presença religiosa.
As circunstâncias desta etnografia me conduziram a disputas no cotidiano evangélico
feminino que incluíram tanto o espaço dos cultos em igrejas e lares como as cenas domésticas,
através das revelações, testemunhos, pregações, jejum e oração. Em todas estas ocasiões, as
interlocutoras se posicionavam na batalha espiritual em um combate de constantes “deslizes”,
como chamou Birgit Meyer (2019b), entre múltiplos espíritos que atuam através de Deus e das
coisas malignas. Explorar estes deslizes e sua polissemia de sentidos estabeleceu o tom analítico
que movimentou este trabalho. As relações de mulheres evangélicas com coisas e mídias
constituíram diferentes cenários para analisar como o corpo pentecostal vive suas batalhas, estas
também vivenciadas no Brasil enquanto gramática de combate às religiões de matriz africana e
profundamente imersas em articulações tecnológicas.
Aprender o que chamam de “dom de discernimento” e adquirir “intimidade com Deus”
para diferenciar os Diabos e o Espírito Santo de Deus também cria outra camada que precisa
ser gerenciada pela disciplina pentecostal: as disputas travadas entre o próprio Deus e os
Inimigos que incomodam a vida das mulheres evangélicas. O diabo pode entrar como punição
pelo distanciamento na busca da presença divina, como ouvi de modo recorrente em diversas
pregações da pastora Cristiane: “O Diabo entrou com fúria na sua vida, com a permissão do
Senhor”. Vale lembrar que o sentido punitivo atribuído à desobediência a Deus era
frequentemente encontrado na fala das interlocutoras e em diferentes passagens bíblicas que
citavam a este respeito (Ver: Genesis 3,19). Em suas palavras, “Deus não é bonzinho, é amor,
é justiça e muitas vezes na justiça não existe maldade”. Em um de seus vídeos que editei para
que compartilhasse em suas redes sociais, a pastora ensina suas seguidoras a fazer a
diferenciação entre situações colocadas por Deus, pelo Diabo ou pela própria fiel:
338

Existem desertos que Deus te coloca, existem desertos que o inimigo te coloca,
que o Diabo te coloca, e existem desertos que nós nos colocamos. Qual é o
deserto que você está vivendo? Eu quero te dizer uma coisa, o deserto que
Deus te coloca, nada falta. Se tem alguma coisa faltando, provavelmente esse
deserto não foi Deus que te colocou, quem te colocou aí foi o Diabo ou você.
(Pregação compartilhada via TikTok, março de 2020)

Se olhar para as relações entre pessoas, artefatos e tecnologias permite visualizar


“deslizes” entre Deus e Diabo, o que olhar para as relações estabelecidas entre Deus e os
múltiplos demônios que habitam o cotidiano de mulheres pentecostais através das coisas pode
nos dizer? Tanto a habilidade de discernimento para diferenciar vozes divinas das demoníacas,
exposta em exemplos citados nesta tese, como neste em que a pastora faz um chamado para a
responsabilidade de si sobre a falta de conexão com Deus, é preciso também conhecer o(s)
Demônio(s) para saber como diferenciá-lo de Deus e de si própria diante das dificuldades. Se
ao longo do desenvolvimento de habilidades relacionais com o sobrenatural as interlocutoras
adquirem intimidade com Deus, o mesmo vale para sua capacidade de afastar os demônios com
os quais inevitavelmente precisam conviver.
Os usos de diferentes mídias, por sua vez, transformam e constituem novos processos
nestas diferenciações agregadas ao “dom de discernimento”. O exemplo de minha inserção no
TikTok em parceria com a pastora, assim como suas inserções no Facebook em campanhas de
oração e convites para que virtuosas contassem seus testemunhos na transmissão de “lives” que
se tornaram mais frequentes após o início da pandemia, indicou para outros caminhos que não
receberam análises limitadas ao recorte que privilegiei ao WhatsApp. Ambas as plataformas,
Facebook e TikTok, compuseram estratégias de expansão informacional e produziram
engajamentos específicos com o público evangélico. Os limites impostos pela escrita de uma
tese, no entanto, não tornaram possível analisar que tipo de públicos estas inserções agregaram,
caminho que pretendo aprofundar em futuras investigações.
Minhas parcerias com Cristiane durante o período desta pesquisa foram centrais às
apostas analíticas que me propus a enfrentar. A quantidade de mulheres que interagiam nos
grupos de oração fez com que eu tivesse que buscar estratégias para compreender quantas e
quais pessoas eu poderia entrevistar, na intenção de considerar que o Ministério ia além da
circulação física que eu já realizava com o casal de pastores. O modo como esta seleção para
as entrevistas foi feita apresenta um dado importante para os resultados alcançados. Tal seleção
foi delineada tanto por mim, quando convidei aos poucos aquelas com quem mais convivia para
uma entrevista, quanto pela pastora, quem atendeu aos meus constantes pedidos por contatos
339

de participantes do grupo em diferentes momentos da pesquisa. Sua demanda para que eu


entrevistasse mulheres com “testemunhos fortes”, com especial atenção àquelas que haviam
sido agredidas pelos ex-cônjuges, por exemplo, foi uma sugestão dela que segui e
posteriormente incorporei ao último capítulo da tese.
Nossas conversas “no privado” implicaram na participação de Cristiane como coautora
de muitas temáticas que escolhi abordar no trabalho. Mesmo que eu tenha buscado ressaltar a
importância desta interlocução com a pastora ao longo da tese, considero ter sido através de
nossa parceria, estabelecida para expandir seu Ministério, que pousaram as contribuições mais
significativas até agora para as interlocutoras desta pesquisa. Esta dimensão, por sua vez, torna
coletiva a aposta de conceder o que análises antropológicas convencionaram chamar de
“retorno” do(a) pesquisador(a) para o campo. A experiência com a gestão de mídias sociais e a
dimensão de “trabalhar pra Jesus” me estimulam a pensar, ainda, sobre como coletivizar outros
modos de divulgação desta tese de doutorado que sejam mais compatíveis e afinados com
práticas de consumo das interlocutoras. Explorar conteúdos como lives e vídeos em aplicativos
e redes sociais, cuja maior popularidade se encontra no WhatsApp, Facebook, TikTok e Kwai,
são caminhos para possíveis desdobramentos desta proposta.
Considero que essas futuras entradas possam estar dispostas a enfrentar um campo de
questões incontornáveis aos debates construídos por mulheres evangélicas, como os conflitos
com as políticas feministas. Ao assumir uma posição crítica aos feminismos aliados às
narrativas de progresso moderno-seculares, busquei apontar para a ressignificação de projetos
progressistas em que eu também estive muitas vezes implicada durante minha trajetória
acadêmica e ativista nos feminismos. Abdicar de enclausurar mulheres evangélicas no campo
dos conservadorismos não exclui uma análise sobre como estes debates eram majoritariamente
rejeitados pelas interlocutoras. Do que pude acompanhar entre o mercado erótico gospel,
pregações de lideranças evangélicas e narrativas das fiéis, os feminismos e movimentos
antirracistas faziam parte de um grupo influenciado pelo mal, restando-os a conversão como
único modo de serem “salvos”. Mobilizações em que estes temas se faziam presentes
apareceram principalmente no quarto capítulo desta tese, com foco em torno das mídias.
Durante muitas conversas sobre este assunto com aquelas de quem mais me aproximei,
elas me contaram sobre suas concepções de amor a Deus e às almas em oposição às pautas
centrais das lutas feministas, antirracistas e LGBTQIA+, bem como outros ideais que se
distanciavam de noções já amplamente criticadas em estudos brasileiros pioneiros sobre gênero
e pentecostalismo (MARIZ; MACHADO, 1996; BIRMAN, 1996; MAFRA, 2001) e nos
340

feminismos críticos à noção de resistência forjada pelo imaginário de sujeito liberal autônomo
(MAHMOOD, 2005; ABU-LUGHOD, 2012, MCCLINTOCK, 2010).
Ao mesmo tempo que debatemos longamente sobre os equívocos excludentes de
conceitos como “sororidade”, dialogamos sobre seus pontos de vista que expuseram diferentes
maneiras com que as feministas erram ao “esculachar os homens” em vez de “tratá-los como
seres humanos”, conforme me contavam. Nos “movimentos de amazonas”, uma das formas
como se referiam aos feminismos, reinariam atitudes utilitárias em que os homens serviriam
“apenas para engravidar, e logo depois são jogados aos crocodilos”. Mesmo minhas reações
críticas às suas homogeneizações dos feminismos não surtiam os efeitos que eu esperava, dada
a insistência em suas reclamações sobre tratar os homens como “inimigos” e não “aliados”.
Estas preocupações em muito se assemelham às críticas dos feminismos negros às
epistemologias brancas sobre a casa, a família (HOOKS, 1990) e sobre o mito de estupradores
atribuídos aos homens negros (DAVIS, 2016), indicando como estas mulheres vivem
experiências racializadas através de marcadores de classe e território, através da chave de
sofrimentos que devem ser superados por meio de batalhas espirituais.
A unidade da família, e não do sujeito, opera como marco regulatório para as
interlocutoras evangélicas, desenvolvendo formas de agência que não se enquadram no
binarismo da escolha por sucumbir ou resistir (MAHMOOD, 2005). A ação é facultada por
respostas dadas aos problemas que devem ser resolvidos pela família, embora elas saibam que
muitas vezes serão resolvidos somente pelas mulheres. Em grande medida, a construção da
unção também se coloca como dispositivo familiar, pois exercer sua agência sexual confere à
pastora Cristiane autoridade para construir pedagogias conjugais enquanto liderança de um
Ministério de mulheres.
Suas pedagogias eróticas desenvolvidas junto às Mulheres Virtuosas promoveram
aberturas para diferentes imersões que fiz ao longo da pesquisa. O livro de Cantares, vale
ressaltar, é alvo de interpretações em diferentes campos de disputas, inclusive entre os
feminismos considerados progressistas. Entre teólogas que adotam a abordagem da
“Hermenêutica Negra Feminista”, Cleusa Caldeira (2013) questionou sobre a visão estritamente
ocidental que circula majoritariamente em torno do Cântico dos Cânticos. A autora chama a
atenção para o protagonismo de Sulamita como mulher negra que fala e deseja em primeira
pessoa, fortalecendo suas interseções de gênero e raça a partir de uma perspectiva que busca
recuperar o erotismo presente neste livro bíblico, fornecendo uma interpretação que o
ressacralize.
341

Segundo Caldeira, a dessacralização do erotismo compõe um projeto respaldado pela


elite sacerdotal que se apoderou dos textos bíblicos, sendo o livro de Cantares um destes textos
que foi desinvestido de sua negritude afro-asiática em decorrência da centralização da leitura
eurocêntrica. Refletindo a respeito do etnocentrismo que construiu as bases dos usos racistas da
Bíblia para amaldiçoar o povo negro e legitimar a escravidão, a autora afirma sobre a
importância de considerar o protagonismo de uma mulher negra no texto de Cantares nestas
reapropriações do erotismo, defendendo que as interpretações coloniais “têm servido para
condenar o erotismo, a sensualidade e a beleza do corpo de mulher negra” (CALDEIRA, 2013,
p. 1200).
Sacralizar o erotismo, mais do que para uma semelhança entre as narrativas das
interlocutoras desta pesquisa e as da hermenêutica feminista negra – as quais de um lado e do
outro são múltiplas e estão em constante disputa –, apontou para os diferentes desejos das
mulheres de Cantares. Enquanto para as interlocutoras evangélicas desta pesquisa falar sobre
erotismos resultou em conflitos relacionados a ser casada ou solteira, para a provocação da
hermenêutica feminista negra do trabalho de Caldeira (2013), o marco se coloca no
silenciamento em torno do prazer erótico, fruto da subordinação negra e feminina ao patriarcado
colonial.
O diálogo com os feminismos negros que destaquei a partir da narrativa apresentada
pela pastora Cristiane, mesmo que não forjado no campo dos ativismos progressistas, aponta
para formas de articulação mais complexas do que a dualidade rejeição e adesão. São
cruzamentos que levam a perguntar, por sua vez: que limites as experiências de mulheres
pentecostais criam com o que chamam de “feminismo”? Que sensibilidades são produzidas com
o reforço desta categoria no singular? Algumas delas podem ser encontradas na recorrência ao
modelo estereotipado e frequentemente tratado em tom ridicularizante (por exemplo, “ter o
sovaco cabeludo” e “mostrar os seios em público”) 285 refletindo a eleição de inimigas que não
possuiriam feminilidades alcançadas através da transmissão da graça e da disciplina virtuosa.
Vale comentar que Rachel Soihet (2005), em seu trabalho sobre a zombaria como arma
antifeminista, destaca como os discursos cômicos que associam feministas como feias,
masculinizadas, radicais, entre outros estereótipos, são formas de violência simbólica

285
Em seu trabalho sobre a zombaria como arma antifeminista, Rachel Soihet (2005) destaca como os discursos
cômicos que associam feministas como feias, masculinizadas, radicais, entre outros estereótipos, são formas de
violência simbólica historicamente utilizadas por críticos na imprensa europeia no século XIX. Os ataques são
repetidos no auge dos movimentos contraculturais dos anos 1970 no Brasil e Estados Unidos, com o objetivo de
manter a inferioridade feminina.
342

historicamente utilizadas por críticos na imprensa europeia no século XIX. Os ataques são
repetidos no auge dos movimentos contraculturais dos anos 1970 no Brasil e Estados Unidos,
com o objetivo de manter a inferioridade feminina.
Transitando entre alianças e contrastes, as moralidades presentes em figuras bíblicas
femininas como Hadassa, Ester, Vasti, Jezabel, Debora, entre muitas outras, se situam como
parte deste conjunto amplo de moralidades no qual as mulheres pentecostais exercem sua
religiosidade. O trabalho de conciliação feito por identificações e afastamentos a estas
personagens, bem como entre categorias como submissão e independência, abre possibilidades
ambivalentes, como ser obediente e desobediente, “moderna à moda antiga” (cf. HORTELAN,
2018), independente e submissa. O agenciamento através de personagens sagrados possibilita
que as mulheres evangélicas estabeleçam adesões críticas para não submergirem ao que
indicavam como “escravidão no casamento”. Mais do que perguntas que me conduzem a traçar
relações entre pentecostalismo e feminismo como polos opostos, os usos das mídias e
materialidades nas cenas e narrativas em jogo nesta etnografia apontaram para questões que
dizem respeito às constituiçõs mútuas entre secular e religioso (ASAD, 2021) nas articulações
interseccionais e seus arranjos como determinantes para a construção de erotismos,
conjugalidades e feminilidades pentecostais.
343

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