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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MESTRADO INTERINSTITUCIONAL EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


MUSEU NACIONAL E UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA/MG

LÍVIA RABELO

Pelos olhos da fé:


os dilemas morais na “caminhada” de lideranças políticas e
religiosas na Zona da Mata mineira

Rio de Janeiro
2019
LÍVIA RABELO

Pelos olhos da fé:


os dilemas morais na “caminhada” de lideranças políticas e
religiosas na Zona da Mata mineira

Dissertação apresentada junto ao Mestrado


Interinstitucional em Antropologia Social -
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e Universidade Federal de Viçosa
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Antropologia Social.
Orientador: John Cunha Comerford
Co-orientador: Fabrício Roberto Costa Oliveira

Rio de Janeiro
2019
LÍVIA RABELO

Pelos olhos da fé: os dilemas morais na “caminhada” de lideranças políticas e


religiosas na Zona da Mata mineira

Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social


do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. John Cunha Comerford
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

__________________________________________________________________
Co-orientador: Prof. Dr. Fabrício Roberto Costa Oliveira
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Federal de Viçosa

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

__________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra
Universidade Federal Fluminense
Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Rio de Janeiro, 24 de maio de 2019.


i

À Mirtes Mary da Silva Rabelo, minha mãe,


por me inspirar e sempre confiar em mim.
ii

AGRADECIMENTOS
Agradecer pode parecer trivial numa dissertação, mas não. Não para mim. A
pesquisa se tece nas relações cotidianas, nos afetos, nas amizades antigas e novas, nos
livros que a gente lê e nos filmes que a gente vê. Não consigo separar agradecimentos
de pessoas que contribuíram para a dissertação das pessoas que contribuem para minha
vida. A pesquisa se faz na vida e cada uma das pessoas citadas aqui, e ainda as que não
estão aqui, me ajudaram de alguma forma a chegar onde estou. Vamos à melhor parte!
Agradeço a mim mesma, por ter tido a coragem de recomeçar e seguir meu
caminho com amor! À minha mãe, meu porto seguro, pelo o apoio incondicional dado,
pelas histórias contadas sobre o passado no nosso município. A meu irmão, meu
exemplo de disciplina e força de vontade, por toda inspiração, carinho e apoio nos
momentos em que eu mais precisei. Agradeço à toda minha família, em especial, à tia
Dilma que me fez compreender como se dão os mapeamentos sociais de forma tão
familiar por vivenciar na infância e na adolescência, nossos momentos em fim de tarde,
sentadas nas pedras da calçada de sua casa, em que cada passante era identificado pela
família, destino e motivação e/ou obrigação.
Ao meu orientador John Comerford, pela oportunidade, generosidade e
paciência em todo o processo de produção. Pela orientação compreensiva e estimulante
dos possíveis caminhos de pesquisa. Os diálogos, reflexões e estímulos foram
fundamentais para construir a pesquisadora que sou hoje, mais que me orientar, me
apoiou e através de suas reflexões me fez ver sob outra perspectiva minha história e a de
minha família. Através dele consegui compreender que aquilo que minha tia fazia
sentada nas pedras era um “mapeamento”, um controle, mas também um cuidado dos
seus. Descobri que meu avô paterno, a quem não conheci, fizera parte da direção do
Sindicato Rural, mas não atuava efetivamente, por isso o fato era desconhecido pelas
filhas e, portanto, por mim.
Ao meu co-orientador, Fabricio Oliveira, pela parceria, incentivo e por sempre
acreditar em mim, mesmo quando eu já não acreditava. Graças ao Fabrício me aventurei
no campo da educação, da religião e da política. Conheci o Movimento da Boa Nova,
seu tema de estudos, e fui apresentada ao mundo da antropologia política, em especial
meu atual orientador John Comerford. Fabrício foi muito mais que um orientador e co-
orientador ao longo do meu processo, se tornou um grande amigo e parceiro.
Ao meu terapeuta, Jackson Pádua, por me ajudar nos momentos de crise, me
ensinar a me aceitar imperfeita, a me cobrar menos, que errar pode ser bom e a
iii

compreender que tudo é só uma fase. Jackson foi, sem dúvida, o pano de fundo dessa
pesquisa, sem ele esse processo seria bem mais complexo.
As pessoas importantes que de alguma forma estiveram presentes, seja física ou
emocionalmente. Ter vocês por “perto” torna a vida possível. Agradeço a compreensão
da minha ausência em momentos importantes. Em especial: Josimara, Soraya, Daniela,
Estevão, Raquel, Nicole, Elkin, Tiago, Cristian e Brenda.
Ao Alexandre por tornar meus dias mais leves nessa jornada de
autoconhecimento, por estar presente e me apoiando a cada passo a mais de uma
década. Por me ensinar a pedir ajuda quando o mundo parecia desabar. Gratidão pela
paciência, dedicação, pelo ombro, pela vida!
Ao Emiliano, por toda compreensão dos meus momentos de ansiedade, de crise
e por sempre estar ao meu lado me mostrando que eu precisava descansar. Seu carinho,
apoio e confiança me ajudaram muito.
Aos amigos do Minter pela experiência de colaboração, pelo ânimo das escritas,
nas reflexões em que tudo se tornava objeto de análise, por esse saber fazer coletivo
lindo que criamos. A experiência com vocês foi incrivelmente única.
Ao Ramon, amigo e parceiro de pesquisa, por toda cumplicidade, pelas
conversas, pelos desabafos, enfim, por toda parceria iniciada. Ainda ouço sua voz
quando escrevo, já não sei bem o que é meu e o que é nosso. Esse trabalho é nosso
companheiro! Espero que se estenda por muitos e muitos anos.
À Amanda, esse ser tão iluminado e doce, pelas reflexões antropológicas do
cotidiano, por tornar meus dias mais complexos e mais interessantes, mas por saber
também o momento de simplificar a vida e respirar. Sinto falta do seu abraço.
Ao Wagner pela inflexão em minha vida. Existe uma Lívia antes e uma depois
dele. Wagner me ensinou sobre a disciplina, sonho e força de vontade quando tudo
dentro e fora dizia que não ia dar certo. Ele disse: “já deu” e o menino do interior foi
para capital. Com ele aprendi que sabedoria e humildade moram ao lado e que eu
sempre poderei contar com seu aconchego. Você é meu orgulho e minha inspiração! Me
espera, eu tô chegando!
Aos professores e funcionários do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Viçosa e aos professores do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro pela
experiência incrível de fazer parte da “primeira turma de antropólogos da Zona da Mata
mineira”. Em especial, Fabrício R. Costa Oliveira, Guillermo Vega Sanabria, Douglas
iv

Mansur, Raquel Lima, Ana Luísa Borba Gediel, John Comerford, Moacir Palmeira, Renata
Menezes, Luiz Fernando Dias Duarte, Adriana Vianna e Edmundo Pereira, pelas reflexões e
intensa produção de conhecimento nesse período e nessa dissertação. É uma honra ter sido
aluna de vocês.
As pessoas que fazem o Movimento da Boa Nova acontecer: Alípio Jacinto,
João Resende, Denilson Mariano, Dona Conceição, José Roberto e Darci pela acolhida,
atenção, cuidado e por toda ajuda fornecida durante a estadia na casa Sede do Mobon
(especialmente o pão na chapa, ai que saudades!).
Por fim, agradeço aos meus interlocutores e interlocutoras da Zona da Mata
mineira que me acolheram tão bem e gentilmente, com conversas regadas a café,
biscoitinhos e queijo. Nada como estar em Minas! Pessoas incríveis que me afetavam
cada uma a seu modo, quantas vezes voltava para casa chorando, me redescobrindo.
Essa pesquisa é sobre eles, mas não posso deixar de expressar minha gratidão nesse
percurso de descoberta da minha história. Aquela casa branca de janela pintadas a tinta
óleo azul, com pedras na calçada, um quintal e cerca de bambu em que eu brincava com
minha prima em meio as cinzas de carvão, à medida que eu crescia ia se modificando,
tendo os cômodos ressignificados. As modificações só foram possíveis devido à
indenização que meu tio havia recebido na forma da casa, dada a falência da usina
açucareira em que trabalhava. Eu sempre soube meu tio, a figura paterna mais próxima
dado falecimento de meu pai, havia conquistado a casa como forma de pagamento, o
que eu não sabia é isso havia se dado graças ao trabalho do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais do meu município. O que eu não sabia é que minha vida cotidiana e o bem estar
de muitas das “minhas famílias”, desde os parentes mais próximos aos mais distantes
com quem retomei contato, eram tecidos graças as mãos de trabalhadores que
acreditaram e lutaram pelos direitos dos trabalhadores, pelos direitos dos homens da
minha família, que em grande parte eram responsáveis pelo sustento dos meus primos.
Faço aqui meus agradecimentos à todas as lideranças cebistas e dirigentes sindicais que
assim como mudaram minha vida sem que eu soubesse, tenho certeza que mudaram a
vida de muitas pessoas que ainda não sabem. Minha sincera gratidão por toda luta.
v

RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo identificar quais dilemas morais as subjetividades
formadas direta ou indiretamente num mundo religioso enfrentaram no mundo político
partidário. Estudamos lideranças religiosas – que passaram pelo Movimento da Boa
Nova (Mobon) e/ou pelas Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s) – e se enveredaram
pela política partidária. Inspirada na “andança”, percorri oito municípios (cinco na Zona
da Mata e dois no Leste mineiro) para construir uma relação de escuta das narrativas de
tais lideranças, o que se somou à observação participante de eventos que elas
participavam. Parto do pressuposto que nossas ações são permeadas por uma série de
relações tecidas socialmente e que pressupõe códigos morais, explícita ou
implicitamente. Assumo que a constituição de um tipo de sujeito moral específico se dá
não apenas por seguir os códigos, mas também através das práticas e trabalho de si
consigo próprio. Nossa pesquisa indica que os dilemas morais dizem respeito à
ampliação e ao realinhamento partidário, bem como as consequências apontadas, como
a mudança da metodologia, a sobreposição de interesses pessoais, etc. Estamos diante
de um jogo entre relações comunitaristas e relações pessoais em que cada narrador
justifica moralmente sua ação em face das alternativas possíveis no contexto em que se
via. Há também uma centralidade do julgamento do outro, mas também de si, uma
reflexão sobre a “caminhada” realizada e uma justificativa de “não falhar enquanto
cristão”.

Palavras-chave: Religião. Partido Político. Sujeito Moral. Dilema Moral.


vi

ABSTRACT
This research aims to identify which moral dilemmas the subjectivities formed directly
or indirectly in a religious world faced in the party-political world. We studied religious
leaders - who went through the Movimento da Boa Nova (Mobon) and / or the Ecclesial
Base Communities (Comunidades Eclesiais de Base - Ceb's) - and engaged in partisan
politics. I used the methodology of "wandering" in eight municipalities (five in Zona da
Mata and two in Leste de Minas Gerais) to construct a listening list of leaders'
narratives, as well as participant observation of events in which they participated. I start
from the assumption that our actions are permeated by a series of socially woven
relations that presupposes moral codes, explicitly or implicitly. I assume that the
constitution of a specific type of moral subject occurs not only by following the codes,
but also through the practices and work of oneself with itself. Our research indicates
that moral dilemmas are related to party enlargement and realignment, as well as the
consequences pointed out, such as changing methodology, overlapping personal
interests, etc. We are facing a game between communitarian relations and personal
relationships in which each narrator morally justifies his action in the face of possible
alternatives in the context in which it was seen. There is also a centrality of the
judgment of the other, but also of itself, a reflection on the "path" held and a
justification of "not fail as a Christian."

Keywords: Religion. Party political. Moral subject. Moral dilemma.


vii

LISTA DE SIGLAS
CEBs: Comunidades Eclesiais de Base
CONTAG: Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura
CPT: Comissão Pastoral da Terra
CUT: Central Única dos Trabalhadores
CTA-ZM: Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata
EMATER: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FETAEMG: Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura do Estado de Minas
Gerais
FETRAF: Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na Agricultura
Familiar
FUNRURAL: Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
MOBON: Movimento da Boa Nova
PT: Partido dos Trabalhadores
REDE: Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas
STR: Sindicato de Trabalhadores Rurais
UNICAFES: União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia
Solidária
viii

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10

Da entrada em campo... ......................................................................................... 10


Das condições de negociação para a entrada em campo... .................................... 14
Do transitar entre campos: Mobon/Ceb’s, STR’s e PT ......................................... 15
Do deslocamento físico e metodológico: vivenciando a “andança” ..................... 18
Situando termos analíticos... ................................................................................. 24
Dos deslocamentos estruturais em busca de sentido ............................................. 25

CAPÍTULO I
CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MORAL: PRESCRIÇÕES E O SABER
FAZER NO MOVIMENTO DA BOA NOVA .................................................... 27

1.1. Os elementos de questões éticas e morais no Mobon 29

1.1.1 União e solidariedade .................................................................................... 30


1.1.2 Humildade e Resiliência ................................................................................ 34
1.1.3 Justiça social, responsabilidade do cristão e missão ...................................... 36
1.1.4 “Fé e Vida”, “Oração e ação” ........................................................................ 39
1.2. O saber fazer aprendido no Mobon/Ceb’s.................................................. 42
1.2.1 Saberes organizacionais ................................................................................ 42
1.2.2 Saberes comunicacionais............................................................................... 49
1.2.3 Saberes comportamentais .............................................................................. 57

CAPÍTULO II

A VIVÊNCIA DA “MISSÃO”: CORPOS E MOVIMENTOS NA


EXPERIÊNCIA SINDICAL E POLÍTICA ........................................................ 67

2.1. A experiência sindical .................................................................................. 72


2.2.O movimento em direção a política partidária .......................................... 83
2.3. A delimitação moral do “ser PT de verdade”...................................................... 101
2.4. A corporeidade na experiência ................................................................. 104
2.4.1 As gerações posteriores à fundação ............................................................ 106
ix

CAPÍTULO III

DILEMAS INCOMPREENDIDOS: EXEMPLARIDADE, SUJEITO


MORAL E JULGAMENTOS ............................................................................ 118

3.1. Situando a discussão .................................................................................. 118


3.2. Pontos de tensão, dilemas e justificativas morais .................................... 123
3.3. “Perda de princípios”: quais princípios? ................................................. 128
3.4. Julgamentos, autojulgamentos e o sentir-se traído ................................. 131

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 141

REFERÊNCIAS ................................................................................................ 145


10

INTRODUÇÃO

Da entrada em campo...

Ao refletir sobre minha entrada em campo e escrevendo estas linhas me vem


uma imagem à mente, uma lembrança de um momento síntese da minha pesquisa. Me
lembro das mãos de uma liderança que abriam os caminhos me guiando entre os
cafezais, me explicando sobre as sementes, o ponto da colheita, me alertando sobre os
acidentes do terreno para que eu não me machucasse no caminho. A vista era linda e o
clima agradável, não fossem os perigos iminentes: saber que serpentes eram comuns
nesse caminho me deixava apreensiva. Minhas emoções oscilavam entre os casos que
iam e vinham sobre a produção, colheita e comercialização do café, a beleza do local e
os casos de trabalhadores que morreram atacados por cobras no cafezal. Sim, eu me
emociono. Me emociono tanto que não pude perceber a riqueza de detalhes nessa
atividade no momento, foram anos até chegar a essa página. Até compreender que essa
liderança me guiava, pelo seu caminho, pela sua vida, pelas belezas do caminho, mas
também pelos perigos e dores que se tornaram costumeiras a ela, mas ainda eram muito
estranhas a mim. Todo esse percurso, essa caminhada entre os frutos, mas também entre
perigos, não era um passeio comum, tinha um objetivo, uma finalidade, me apresentar à
uma mina onde nascia a água que abastecia todo aquele córrego. A finalidade era me
mostrar algo secreto, um segredo da comunidade. E este segredo não poderia ser mais
simbólico. O início da mina era camuflado por uma porta feita de pedaços de tábua e
para acessá-la havia que se retirar alguns galhos que pareciam escondê-la. A mina era
estreita, escura e na maior parte do caminho não podíamos nem ficar de pé, o percurso
tinha cerca de 100, 150 metros. A luz da lanterna fazia brilhar a terra das paredes e
permitia esquecer a falta de oxigênio aparentemente mais intensa a cada passo. Me
lembrar dessa escuridão e da lanterna nas mãos da liderança me faz compreender
poética e imageticamente minha pesquisa ao adentrar esse mundo social.
Assim como foi boa parte da pesquisa em campo, o medo da recepção, da
aceitação, da desconfiança entre cada novo local ao prosseguir no deslocamento, era
semelhante a cada curva da mina. Hoje, finalizando essa pesquisa, me sinto no mesmo
estado daquela pesquisadora que dava passos rápidos e emocionados para alcançar à luz
no fim do túnel, ou melhor, no fim da mina, para voltar ao cafezal, ao verde e vermelho
que pintavam a paisagem em meio ao céu limpo e azul. Os passos finais eram
11

destemidos e certos de que toda essa experiência já tinha valido a pena. E essa foi
apenas uma das tantas vezes que me esqueci de ser apenas uma pesquisadora, fui
humana e me permiti ser uma antropóloga. Me emocionei, chorei escondida, chorei
ouvindo o choro na fala, chorei de mãos dadas, chorei abraçada. Nada disso me faz
menos, pelo contrário, me faz mais. Ser afetada me fez compreender parte do
sentimento do outro, me permitiu sentir e compreender a partir da experiência do ouvir,
mais do que observar e mais do que ler, que a dor une e que apesar da distância física
entre meus interlocutores há uma partilha, um sentimento de pertencimento, uma
unidade que se sobrepõe as diferentes formas de vida que escolheram viver, as diversas
formas de conduzir-se.
O universo social estudado diz respeito à indivíduos que, de maneira direta ou
indireta, passaram pela experiência do Movimento da Boa Nova (Mobon) e
participaram das Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s), se diferenciando enquanto
“lideranças leigas”1 responsáveis por “repassar” os ensinamentos bíblico-religiosos
aprendidos. A primeira geração2 de tais lideranças, em sua maioria trabalhadores rurais
de baixa escolaridade formal, foram os responsáveis pela fundação dos Sindicato dos
Trabalhadores Rurais (STR’s) e dos diretórios do Partido dos Trabalhadores (PT) em
seus municípios. Sendo a segunda e terceira geração os responsáveis pela continuação
e ampliação do processo.
Em termos territoriais, entre os oito municípios que compuseram minha
“andança”, dois deles se encontram no Leste do estado de Minas Gerais, e seis deles
fazem parte da Zona da Mata mineira. A Zona da Mata é uma das doze mesorregiões
que compõe o estado de Minas Gerais (Mapa 1), inserida no Bioma da Mata Atlântica.
Está localizada no sudeste do estado, tendo como fronteira ao leste os estados do
Espírito Santo e do Rio de Janeiro.

1
A expressão “liderança leiga” é recorrente tanto entre missionários tanto entre os fiéis para designar
aqueles que também tem o papel de missionário, mas que não passou por alguma formação clerical.
Embora o termo “leigo” no seu sentido comum seja um termo pejorativo, aparece no discurso tanto dos
clérigos quanto dos fiéis como uma qualidade, um status importante. Enquanto nas narrativas clericais o
termo “leigo” venha sempre seguido da sua importância e dever, entre as ditas “lideranças leigas” o termo
aparece como “eles chamava a gente assim”. Neste trabalho, sempre que me referir a “lideranças” estou
remetendo a ditas “lideranças leigas”.
2
Os termos em itálico dizem respeito a categorias analíticas; os termos “entre aspas” que não são
seguidos de referência referem-se a “termos nativos”.
12

Mapa 1: Microrregiões do Estado de Minas Gerais.


Fonte: IBGE.

A mesorregião da Zona da Mata é dividida em sete microrregiões (códigos de 60 a


66), sendo que as lideranças que aparecem de forma explícita nesta pesquisa dizem
respeito às localizadas nos municípios da Zona da Mata mineira, mais especificamente
nas microrregiões 63 e 64, como destacado na figura abaixo (Mapa 2).

Mapa 1: Microrregiões da mesorregião da Zona da Mata no estado de Minas Gerais.


Fonte: IBGE.
13

Esta pesquisa se propõe a compreender as maneiras pelas quais tais lideranças,


constituídas enquanto sujeitos morais no mundo religioso3 – organizado por relações
comunitaristas –, agem quando postas frente a dilemas morais no mundo político –
organizado por relações pessoais.
Essa abordagem consiste em complexificar a relação entre moral/ética e política
partidária tendo como base a perspectiva de políticos “cebistas”, tal como vista pelos
próprios. Como narram e avaliam suas trajetórias na religião, no sindicato e na política?
O que os diferenciavam do tecido social enquanto sujeitos morais exemplares? Quais as
tensões se apresentaram no mundo sindical e no mundo político partidário? Como
justificam moralmente ações que podem ser avaliadas como contraditórias, ou seja, os
dilemas morais? São questões como estas que serão refletidas e exploradas ao longo do
trabalho.
Trata-se de compreender para além do senso comum – “político é tudo igual”,
“política é essa sujeirada toda”, “político nenhum presta” – quais os dilemas em que
estas lideranças se encontraram a cada ação tomada e, em seguida, julgada moralmente.
Compreender os germes do dilema moral, as alternativas apontadas e a justificativa
moral da escolha pela melhor opção, naquela situação, entre as possíveis em seu leque.
Como trazido por Novaes (2001: 62), apesar das “correntes da Teologia da
Libertação e da Renovação Carismática não serem as únicas que convivem no seio da
Igreja Católica no Brasil, parece-me que são as que mais produzem discussões sobre a
relação religião e política.” Como bem sabemos, há divisões entre religiões e mesmo
dentro de uma mesma religião. Digo isso para especificar os agentes desta pesquisa, ou
seja, lideranças religiosas de um movimento católico alinhado à “corrente” da Teologia
da Libertação, bem como suas comunidades criadas. A intenção não é romantizar e ver
o campo religioso como um ambiente harmonioso, visto que também há divisão e
disputa na religião.
No entanto, o recorte de um grupo específico de lideranças que se “formaram”
direta ou indiretamente pelo Mobon traz a especificidade de preceitos morais e práticas
de si orientadas pela união, solidariedade, missão e testemunho de vida. O foco não está
simplesmente nas regras do jogo político, mas nas táticas e estratégias utilizadas, após
refletir sobre o dilema moral imposto. Como nos lembra Kuschnir (2007: 166) o papel
da antropologia “é estudar não o que a política deve ser, mas o que ela é para um

3
A partir daqui, sempre que me utilizar do termo “religião” e seus derivados, me refiro à religião católica
relacionada às Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s).
14

determinado grupo, em um contexto histórico e social específico.” Trago a perspectiva


do “ponto de vista do nativo”, sobre suas ações no mundo político e seus
enfrentamentos dos dilemas.
Dito isso, posso partilhar as condições de negociação para minha entrada em
campo4.

Das condições de negociação para a entrada em campo...

Compreender a etnografia como produto de relações estabelecidas em


determinado período do tempo, com determinados interlocutores, me faz perceber como
as relações construídas a priori me abriram portas para realizar a pesquisa.
Com relação à maioria das lideranças, a entrada a partir de John Comerford, que
já conhecia e mantém relações com grande parte de meus interlocutores, se deu de
maneira fluida. O contato se iniciou através da ligação telefônica, me apresentando,
apresentando meu trabalho, me situando como aluna do John, que me orientava nesta
pesquisa, e logo já marcávamos uma conversa.
Já quanto ao coordenador do Movimento da Boa Nova, Alípio Jacinto, e à Casa
do Mobon, as portas foram abertas através de Fabrício Oliveira, em 2016, quando fui
iniciada como pesquisadora do Mobon. Fabrício é sobrinho e afilhado de Alípio, além
de pesquisador sobre o processo de politização do Mobon. A partir do acesso a casa e
como ajudante nos preparativos do curso, consegui interagir com lideranças antigas e
novatas no Leste mineiro, mas sempre com indagações do tipo “você é nova aqui né?
Nunca te vi por aqui”.
Algumas entradas se deram graças as “relações bairristas” e meu mapeamento
dentro de uma família conhecida pelas lideranças (Comerford, 2003). A partir da
primeira conversa com a primeira das lideranças, ao entrar em contato com as outras, eu
enfatizava a indicação de seu nome pela liderança já entrevistada, ao que se seguia “ah,
você já conversou com ele?”. E assim, se deu os outros contatos. Em uma das conversas
marcadas para manhã, fui avisada que a liderança não poderia me encontrar e
questionada se eu poderia voltar à tarde. Respondi afirmativamente que sim, e
aproveitando o tempo livre na cidade, fui almoçar na casa de parentes, onde encontrei
um trabalhador aposentado que me contou que a liderança com a qual eu me encontraria
4
Termo usual nas pesquisas antropológicas, embora haja sempre o questionamento sobre quando começa
o campo. Trato das negociações referentes ao contato estabelecido para a realização desta pesquisa de
forma específica.
15

foi muito importante no seu processo de aposentadoria. “Ele que me ajudou lá com a
papelada e tudo” me disse o homem empolgado pela coincidência e meu interesse nesse
assunto. Como se pode imaginar, essa entrada deu o enquadramento adequado à nossa
conversa.
Outras se deram por minha proximidade com integrantes de organizações
sociais, num processo de transferência de confiança. Como me disse a secretária de um
dos sindicatos dos trabalhadores rurais quando eu disse por que eu a conhecia, embora
ela não me conhecesse “Se cê é amiga dela é amiga minha também” e me convidou para
a reunião de troca de gestão do sindicato.
Mas como nem tudo são flores, após várias tentativas de entrar em contato com
uma liderança que já não faz mais parte do partido, mas foi central na construção dos
sindicatos na região e do diretório municipal, acabei por desistir de insistir e
compreender que essa negação me diga algo. Por que alguém tão importante nesse
processo se negaria a conversar sobre ele? Retornei então às pessoas que o indicaram e
o que falaram sobre ele. Homem em geral visto como “bom de serviço”, fundamental
para a criação dos sindicatos, mas “ele mudou um pouquinho a cabeça dele”. Ora, a
negação, ou melhor, as respostas de agenda cheia e visualização de mensagens de
WhatsApp® sem resposta podem sim ser por falta de tempo dado o cargo político que
possui. Mas pode também sugerir falta de interesse em participar de uma pesquisa que o
colocasse num papel social junto a pessoas que ele já não gostaria de estar.

Do transitar entre campos: Mobon/Ceb’s, STR’s e PT

Como Das (1995) salienta em Critical Events, os diversos planos – global,


nacional e local – podem estar presentes de forma simultânea na vida de um só
indivíduo. Nesse sentido, assumo que um evento internacional como o Concílio
Vaticano II gerou efeitos diferenciados em regiões diferentes, tendo sido ressignificado
de uma maneira peculiar na América Latina. As Conferências Episcopais Latino
Americanas mostram a tônica adotada pela “preferência pelos pobres”. Assim, normas
católicas internacionais, após serem ressignificadas pelos bispos latino americanos,
foram incorporadas por um missionário mineiro durante um curso sobre o Concílio
Vaticano II no Chile, afetando as normas locais ao incorporar novos elementos à um
16

movimento já existente – o Mape5 – em direção à criação do Movimento da Boa Nova.


Este movimento, por ter como objetivo a formação de “lideranças leigas” religiosas
através da transmissão de conhecimentos bíblico-religiosos e a formação de
comunidades, acabou modificando o cotidiano e a trajetória de trabalhadores rurais, em
geral de baixa escolaridade formal. Assim como mostram outros trabalhos (Comerford,
2003; Oliveira, 2012; Weitzman, 2016) o Mobon teve importante influência na ação da
vida cotidiana influenciando e contribuindo para que suas lideranças se organizassem
em comunidades, estimulando assim a atividade em organizações sociais.
Para além desta dimensão de organização de grupos e eventos, acredito que as
práticas e técnicas utilizadas pelo Mobon para “formar uma liderança”, bem como seu
estímulo constante nas comunidades, constituem um tipo característico de sujeito moral,
de quem se espera uma determinada conduta moral coerente com os ensinamentos
religiosos. Como veremos, os preceitos morais estabelecidos dizem respeito a um
conjunto de práticas de si, num constante trabalho de si mesmo. A liderança que passou
por esses ensinamentos, se tornou coordenador de comunidade, liderança sindical e
político partidária. É alguém que tem “caminhada”6. A caminhada aqui, remete a todo
um processo de trabalho e controle de si. Um político para inspirar confiança deve ter
“caminhada”.
O Movimento da Boa Nova se utiliza de uma metodologia característica para
formação de lideranças religiosas que, entretanto, pode ser visto como uma formação de
lideranças de outras dimensões. Assim, esta metodologia pode ser pensada não apenas
na dimensão religiosa, mas também na dimensão política, sendo esta última tendo
desdobramentos tanto na micropolítica como na macropolítica.
A coerência necessária entre “oração e obras” configura o “testemunho de vida”,
do ser “exemplar” (Humphrey, 1997) ou seja, no nível da micropolítica, do agir
coerentemente com uma conduta moral no mundo cotidiano. Já com relação à
macropolítica, há uma participação significativa de muitas das lideranças formadas pelo
movimento na fundação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR’s)7 e dos
diretórios municipais do Partido dos Trabalhadores (PT) na Zona da Mata mineira.

5
Movimento Apostólico dos Pioneiros do Evangelho. Para saber mais, ver Comerford (2001), Araújo
(1999), Oliveira (2012).
6
O termo também é central entre as trabalhadoras rurais estudadas por Weitzman (2016: 23) no Leste
mineiro, remetendo “ao desafio de movimentar e, dentro deste caminho trilhado, de ultrapassar os vários
obstáculos que se apresentam no trajeto.”
7
Entre meados da década de 1980 e meados da década de 1990 foram fundados na Zona da Mata 15
STR’s assessorados pela CUT e pela CPT (TEIXEIRA, 2017, p.13-15).
17

De acordo com Comerford (2001), em fins da década de 1970, os ideais da


Teologia da Libertação estiveram mais presentes nos cursos do Mobon, sendo o foco na
necessidade de atuação social e política dos leigos para buscarem justiça social,
possibilitando uma vida terrena mais justa. Já na década de 1980, afirmam Oliveira e
Zangelmi (2009), após o processo de redemocratização, setores da Igreja Católica, como
o Mobon, tiveram forte significação eleitoral.
Neste trabalho, partimos das considerações já anunciadas por Cintrão (1996) de
que lideranças religiosas que se conheceram e estabeleceram uma rede, iniciaram um
processo de sociabilidade e solidariedade que se aprofundou ainda mais com a formação
dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR’s). De acordo com Comerford (2003)
sindicatos organizados na Zona da Mara mineira construíram uma Articulação Sindical
de quinze sindicatos organizados em três microrregionais, que posteriormente foi
formalizada como Polo Regional da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de
Minas Gerais (FETAEMG).
Apesar da solidariedade e do aprofundamento das relações, é no mundo sindical
que experimentam com maior intensidade as fissuras das unidades. Apesar disso,
constituem-se enquanto uma coletividade, ainda que não muito bem delimitada
formalmente, mas são frequentemente referidos como o “pessoal do
Mobon/Ceb’s/sindicato/PT”.
As lideranças sindicais de “caminhada” que se embrenharam na “aventura” de
fundar o diretório do Partido dos Trabalhadores em seus municípios passaram por
experiências semelhantes. Desde o aprendizado de um “modo de ser cristão” com
primazia pela ação coerente com a fé, um modo de saber e fazer – os saberes –
atividades antes desconhecidas, como a criação e gestão das comunidades locais,
passando posteriormente pela experiência sindical de desbravar um mundo ordenado
por leis que foram domesticadas após a prática sindicalista, até a experiência político
partidária8 em que as divisões já vivenciadas no mundo sindical sobressaem e se
impõem como modus operandi.
Bem sabemos que as experiências e os processos não se dão de forma linear
como aqui contados. São partes que se sobrepõem, se complementam, vão se
encaixando, construindo-se e construindo o mundo num eterno tecer de retalhos da
existência, tecendo a vida. Não obstante, para fins analíticos pode ser interessante

8
Em alguns municípios a fundação do STR e do diretório do PT se deu de forma simultânea, em outros, o
partido é fundado logo em seguida.
18

pensar como esse fenômeno global que foi o Vaticano II é interpretado e repassado na
América Latina, chegando à um missionário do interior da Zona da Mata mineira e
dando origem ao que hoje se conhece como Mobon. Sejam as experiências no Mobon e
nas comunidades os germes ou não das organizações sociais, as narrativa referentes à
“época do Mobon” são frequentemente associadas à mudança das relações cotidianas,
da coerência entre “oração e ação” e da “luta por justiça social”. Como já nos diz
Comerford (1999) um dos sentidos morais da “luta” está associado ao sofrimento. Os
enfrentamentos de ordem judicial, legal e cotidiana, marcam a vida destas lideranças
constituindo uma “comunidade moral” que se fortalece na dor. Na dor de apanhar
dentro da capela, na dor de ser ameaçado de morte, na dor de perder amigos e
familiares, na dor da fuga que deixa para trás mais que uma casa, mas uma vida que se
reconstrói em outro espaço, com outras relações. Passada a dor inicial, o movimento –
característico dos missionários Sacramentinos9 – segue o curso dos corpos morais em
viagens para cursos, encontros e congressos, valorizando a troca de saberes. É nessa
“andança” que o sofrimento se faz presente novamente nos corpos que andam, que
viajam sem dormir e dormem viajando, sem ter o que comer ou o que beber “nessas
estradas da vida”.
Há toda uma noção de “missão”, de conscientizar o outro, de repassar
ensinamentos, sejam religiosos, organizacionais, de forma de produção, de coligações.
A vivência deste processo pelo qual me interesso aqui é permeada pela dor, o que
constitui uma coletividade diferenciada enquanto partido político, por isso a noção
central de “ser PT de verdade”. Nesse sentido, “ser PT de verdade” emerge como um
“modo de ser” um acúmulo de experiências vividas nesse processo.
Como veremos a seguir, esse universo social específico e complexo exige
movimento, escuta, sentimento e porque não sofrimento, no recorte metodológico.

Do deslocamento físico e metodológico: vivenciando a “andança”

Frente a especificidade do Mobon em relação à sua dispersão espacial, apesar


dos cursos terem se concentrado na Casa do Mobon em Dom Cavati a partir de 1979, o
Movimento é caracterizado por sua mobilidade – as “andanças” – anterior a Casa e
mesmo após sua construção, já que os missionários responsáveis são convidados por
diversas paróquias para realizarem os cursos em suas regiões. Além disso, a abertura da

9
Referente aos membros da Congregação dos Missionários Sacramentinos fundada em 1929.
19

Igreja para os leigos, e a horizontalização de alguns conhecimentos bíblico-religiosos,


gerou um efeito multiplicador, em que lideranças leigas católicas, agora aptas a
ministrarem cursos, se espalhavam não só por comunidades adjacentes às suas, como
viajavam para longe para ministrarem cursos.
Dessa forma, a fim de conhecer as diversas perspectivas dos agentes envolvidos
em diversas localidades, o foco em apenas uma comunidade produziria uma visão muito
limitada para a proposta da pesquisa. Concordando com Comerford (2014) para quem
“narrativas e julgamento morais são constitutivos das próprias movimentações, uma vez
que para narrar ou para ouvir narrativas, para julgar e saber de julgamentos, é necessário
movimentar-se, o que por sua vez potencializa novas observações e narrativas.”, me
propus a realizar uma “andança”. O movimento se mostrou interessante a fim de melhor
compreender as memórias, narrativas e julgamentos de diversos agentes envolvidos no
processo, não ficando restrita a apenas uma localização espacial, dada a dispersão
geográfica característica do Movimento.
Há aqui um deslocamento da prioridade de sentidos, da visão para a audição.
Clifford (2016a) aponta para um impacto importante da crítica político/teórica da
antropologia que ficou conhecida como “visualismo”, em que
[...] as metáforas predominantes da pesquisa antropológica têm sido a
observação participante, a coleta de dados e a descrição cultural, que
pressupõe, todas elas, uma visão externa – observar, objetificar ou, um
pouco mais de perto, ‘ler’ uma dada realidade (Clifford, 2016a: 44).

Assim, acredita que uma vez que as culturas não sejam prefiguradas visualmente
será possível pensar uma interação de vozes entre elocuções posicionadas. Assim, as
metáforas se afastariam do olho que vê para a fala e o gesto. “A ‘voz’ do escritor
perpassa e situa a análise, renuncia-se à retórica objetiva e distanciada” (Clifford,
2016a: 45).
Para Clifford (2016a), os interesses nos aspectos discursivos da representação
cultural deslocam a atenção para as relações de produção, apontando uma “tendência
em direção a uma especificação dos discursos na etnografia: quem fala? Quem escreve?
Quando e onde? Com quem ou para quem? Sob quais limites institucionais e
históricos?” (Clifford, 2016a: 45).
Como evidenciava Peirano (1997), Das (1995) “substitui a metáfora do olhar
(gaze), que teria marcado a antropologia neste século, pelo ouvir, explicitando nesse
momento a influência, na sua abordagem, da perspectiva pós-moderna” (Peirano, 1997:
79-80).
20

I suppose the idea of using 'voice' to describe the relation of an


anthropologist to her subjects had the attractive potential of
overcoming the reifying notion of 'gaze'. [...] In order to cast off this
reifying anthropological gaze, critics of 'vision' show it needs to be
supplanted by a 'voice', which is expected to be more open to the
fragmented and multiple character of social experience. The
anthropologist must appear not in the role of an observer but that of a
hearer, and the subject must correspondingly appear in the role of a
speaker. By this means the subject is transformed from third person
into first person, her relation being mediated now, through the voice,
with a second person. (Das, 1995: 18)

Nesse sentido, opto pela primazia no ouvir tomando o devido cuidado para que
minha análise não seja centrada numa determinada perspectiva situada individualmente
ou em determinado coletivo. De acordo com Das (1995), o sentido da audição
estabelece o mínimo de interação uma vez que aquele que narra, constrói um relato 10 de
acordo com a reação do interlocutor, de acordo com as falas e gestos. Já durante a
observação, há uma falsa ilusão de que somente o observador observa uma realidade
que sua presença não altera, desconsiderando o fato de que ele próprio está sendo
observado. Há que salientar que a ênfase no discurso não exclui a observação a ser
realizada durante a interação: os atos de fala, o silêncio etc. O ouvir neste trabalho será
focado na construção de relatos orais a partir da interação pesquisador e pesquisado
baseados nas memórias dos agentes com relação às experiências vividas propiciadas
pelo Movimento da Boa Nova.
Minha andança se deu durante o período de 03 de fevereiro até 15 de março de
2018, compreendendo 8 municípios, sendo 6 deles na Zona da Mata mineira e 2 no
Leste mineiro, embora as negociações por telefone tenham se iniciado no mês de
janeiro. No que tange aos materiais a serem explorados como resultado desse giro 11, o
foco recai sobre a observação participante do curso Campanha da Fraternidade 2018, de
09 a 11 de fevereiro em Dom Cavati; conversa12 com onze lideranças antigas da região
da Zona da Mata mineira, sendo que uma delas foi realizada com um casal de
lideranças; e uma entrevista com o missionário Alípio Jacinto. Há que salientar,
entretanto, que relatos concedidos numa reunião de sete lideranças que ajudaram a
consolidar o Movimento no Leste mineiro, bem como vivências e relatos de meu

10
Compreendo relato como narrativas construídas nas interações entre interlocutor (a) e a pesquisadora
que as vezes seguem um fluir mais livre e outras vezes mais condicionado, a depender ato de comunicar
do interlocutor (a), bem como da relação estabelecida.
11
Sobre o giro realizado, há uma tabela da agenda percorrida no Apêndice A.
12
Uma tabela com o nome das lideranças está presente no Apêndice B.
21

primeiro contato, em 2016, com lideranças de Martins Soares, também estiveram


sempre presentes em minha escrita, ainda que de modo menos explícito. Dito isso,
passemos pela compreensão de quem são estas lideranças em termos de situá-las no
tempo e no espaço da Zona da Mata mineira.
Com relação aos relatos formais, o material utilizado para análise nesta pesquisa
foi construído baseado em relatos de onze lideranças13 de cinco sindicatos distintos,
totalizando representantes das três microrregionais, o STR’S 1 da microrregional 1, o
STR’s 2 da microrregional 2 e os STR’s 3, STR’s 4 e STR’s 5 da microrregional 3
(Diagrama 1).

Diagrama 1: Microrregionais e STR’s da Zona da Mata mineira


Fonte: Elaborado pela autora do trabalho.

Como já trabalhado por Cintrão (1996), os treze STR’s da Articulação Sindical


se agrupavam em três “microrregionais”: a "micro" de Muriaé, a "micro" de Carangola
e a "micro" de Visconde do Rio Branco. Estas microrregionais não coincidem com as
microrregiões do IBGE e o principal critério para este agrupamento está relacionado à
proximidade e a facilidade de transporte entre os municípios.

13
Os nomes utilizados, salvo nome públicos, são fictícios a fim de proteger a identidade das lideranças.
22

Os relatos indicavam caminhos a percorrer nos documentos históricos e notas


dos cursos do Mobon presentes nos Cadernos de Cora Furtado de Melo14. Assim, parto
de elementos recorrentes nas narrativas e analiso os documentos relativos aos cursos do
Mobon.
No que tange à análise documental, foco em livros históricos sobre o Movimento da
Boa Nova, em documentos analisados na Casa do Mobon, como os cadernos que
registram as listas de presença, livros redigidos a mão sobre a história do Movimento e
fotos, e no material de Cora Furtado Melo que contêm anotações manuscritas, livretos e
folhetos referente às atividades do Mobon as quais participava, desde a década de 1970.
No que concerne a observação participante do curso Campanha da Fraternidade
2018, de 09 a 11 de fevereiro em Dom Cavati, se deu não somente durante o evento,
mas também durante os preparativos. Minha intenção não é descrever o evento, mas
sim, trazer à tona cenas que foram importantes para minha compreensão dos relatos que
ouvi.
No primeiro dia de curso, após sermos percebidos – não sem estranhamento
pelos participantes – na entrada da Sede, já que éramos os responsáveis pelas inscrições
dos participantes que chegavam, João Resende15 apresentou a mim e a Ramon Teixeira
(companheiro de pesquisa) como pesquisadores interessados na “relação entre fé e
vida”. Identificados, então, como universitários, o missionário, fazia brincadeiras sobre
a importância da “coerência entre oração e ação”, e que até os universitários estavam
interessados no tema. A apresentação do missionário fez com que as pessoas se
aproximassem sutilmente, em geral, se aproximaram mulheres contando sobre
familiares que estavam na universidade ou que haviam acabado de realizar esse sonho.
Esse também foi o tema de introdução de uma longa conversa com duas jovens que
finalizavam o terceiro ano do ensino médio.
Entretanto, somente mulheres, ou homens que tiveram um contato inicial, como
na mesa de inscrição quando eu estava juntamente com Ramon, se aproximavam de
mim, os outros homens que conversei nos dois primeiros dias fui eu quem me sentei ao

14
Cora Furtado de Melo foi uma liderança religiosa, historiadora e pedagoga, e considerava importante
registrar o conteúdo dos cursos que participava. Participou de quase todos os cursos do Mobon e deixou
registros em cadernos e pastas, que contém anotações dos escritos no quadro, os livrinhos de
evangelização utilizados (colados) e as repostas passadas por seu grupo (normalmente, se faziam
pequenos grupos para elaboração de respostas aos missionários).
15
João Resende é missionário da Congregação dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora e junto
com o também missionário Alípio Jacinto da Costa, formou o Movimento da Boa Nova nos fins da
década de 1960.
23

lado e puxava conversa com o clássico “você faz curso aqui faz muito tempo?” e, em
geral, a conversa tomava o rumo para a família e estudos.
A noite de sábado, entretanto durante a celebração, Pe. Zé Leão nos perguntou
sobre o tema de nossa pesquisa e deu o microfone a Ramon e depois a mim para que
pudéssemos explicar do que se tratava. Em seguida, nos indicou um filme e nos mostrou
a mão, tocando a base do dedo anelar, perguntando o que era isso, em seguida, consegui
ver o anel de Tucum que ele trazia no dedo. Notei que após o tratamento e a abertura
dado por ele em sua celebração a nós, as pessoas se aproximaram e me buscavam para
contar sobre seu testemunho.
Mais do que a fala autorizada (Bourdieu, 1996), o ouvido também deveria ser
autorizado a ouvir as histórias. De alguma maneira, muitos compreenderam que nosso
interesse era como a fé havia modificado suas vidas, independentemente de em que
área. A partir daí ouvi relatos desde um rim doado que surgiu milagrosamente rápido,
até o sofrimento com o marido alcoólatra que havia deixado de beber e a esposa que
apanhava desde os 15 anos e somente há 4 anos deixou de apanhar “Graças a Bíblia”.
Eu que estava tentando introduzir o assunto da política partidária com uma liderança de
Entre Folha (MG), indicada por João Resende em conversa anterior ao início do curso, e
por três vezes ele desconversou introduzindo outros temas – como ele ter cuidado do
neto e sobre a amizade do neto com o padre e sua pretensão de ser padre. Entretanto,
após a celebração da missa esta mesma liderança se sentou entre mim e Ramon numa
mureta e introduziu o tema sem dificuldade.
O último dia de curso foi emocionante e constrangedor, João Resende pediu aos
pesquisadores que fizéssemos a benção final. Eu, que não sabia como fazer uma benção
final, olhei em direção ao Ramon com expressão desesperada ao sussurrar “eu não sei
fazer isso” e ouvi seu sussurro que também não sabia como fazê-la, com cara assustada.
Isso nos faz compreender o que as lideranças passavam quando estavam sendo iniciadas
e o que queriam dizer ao relatar que “passavam aperto” quando eram colocados para
falar em público. Aprender a falar em público foi a justificativa dada quando eu disse
que não me sentia preparada para explicar a discussão do grupo e para participar da
celebração que seria realizada por Simonésia. Diziam-me “vai ser bom pra você
apresentar lá na universidade”.
Os códigos utilizados pela Igreja Católica ainda são uma dificuldade para mim,
já que apesar de ter passado pelos sacramentos, nunca me considerei católica. No
episódio da benção final, Ramon iniciou com uma fala, anunciou que eu leria uma
24

passagem bíblica e seguiu com a reflexão sobre a passagem, no entanto, no meio da


reflexão ele começou a agradecer, se emocionou, eu me emocionei, todos nos
emocionamos e ao final recebemos os cumprimentos em filas, para nos agradecer pela
presença e nos parabenizar pelo interesse de pesquisa. Senti-me numa posição meio
clerical, já que o outro momento em que isso havia acontecido foi ao fim da missa
celebrada pelo padre, mas logo eu que nem vou a missa. Esse me parece ser um
diferencial do catolicismo cebista praticado pelo Mobon.

Situando termos analíticos...

Entre os termos frequentes neste trabalho está a “política”, mas qual política?
Bom, se entendermos como política toda e qualquer ação criativa, a própria ação
cotidiana se caracteriza como política (Das, 1995; Abu-Lughod, 1986; Mahmood, 2006;
Scott, 1986). Nesse caso, como veremos a conduta moral adotada no cotidiano, a
exemplaridade ou tornar-se um “testemunho de vida”, se configura como uma ação
política bastante incentivada nos cursos, nas comunidades e mesmo nos sindicatos. Esta
política religiosa, ou seja, a exemplaridade foi de fundamental importância na
construção de um sujeito moral típico do Mobon/Ceb’s, no trabalho sobre si realizado
para agir de acordo com um modo diferente de “ser cristão”, o cristão-cebista. Assim,
dada a centralidade da exemplaridade no cotidiano das lideranças “formadas pelo
Mobon”16, o que chamarei aqui de saber fazer do Mobon, foram sendo absorvidos,
inculcados, refletidos, reproduzidos e produzidos em contextos diferentes, além de
produzir realidades diferentes. As formas de se organizar, de se comunicar e de agir
moralmente tornaram-se “hábitos” (Das, 2012), ou seja, o local onde a ética comum ao
movimento se manifesta. Assim, a ética comum ao “pessoal do Mobon” desloca-se, ou
transita com eles, entre contextos distintos, regido por regras próprias.
Dito isto, preciso enfatizar que a política à qual me refiro neste trabalho não diz
respeito ao “testemunho de vida” ou à política religiosa ou à política sindical, embora
elas apareçam compondo a trajetória e o trabalho de si na construção do sujeito moral,
mas sim à política partidária, especificamente as experiências de lideranças políticas do
Partido dos Trabalhadores (PT) – algumas filiadas, outras não, mas todas de
fundamental importância na fundação e/ou manutenção do diretório municipal.

16
Há que se fazer uma ressalva que embora seja recorrente a expressão “formado no Mobon”, Alípio
Jacinto salienta que o curso não é pra conferir um certificado, mas sim para aprender a viver em
comunidade e disseminar a “Palavra de Deus”.
25

Dos deslocamentos estruturais em busca de sentido

A estrutura da dissertação faz parte da minha reconstituição durante o processo


de escrita e minha construção enquanto pesquisadora deste tema específico. Apresentei,
primeiramente, minha relação pessoal com os documentos históricos e com meus
interlocutores, de forma a situar meus leitores no meu universo empírico, para em
seguida, dialogar com a literatura sobre questões abordadas nesta pesquisa. Isso não
impede as citações ao longo do texto, mas sim significa que a concentração da discussão
se dá no último capítulo.
O descontextualizar trechos de falas de seus contextos, não raras vezes
emocionantes, se fez necessário para recontextualizar dentro da estrutura lógica que
exponho aqui. Aquele grupo de lideranças que antes do contato me parecia sutilmente
homogêneo, não em sua completude, mas em tratá-lo como o “pessoal do Mobon”, o
“pessoal do sindicato”, o “pessoal do PT”, uma coletividade cristalizada no tempo e no
espaço (“os Nuer” e “os Azandes” de Evans-Pritchard) (Clifford, 2002). Eu pude viver
toda a crítica à homogeneização de grupos sociais no meu cotidiano, a cada movimento
novo ou repetido, de município em município, da casa para a prefeitura, da sala para a
cozinha, a cada novo passo novas interpretações das histórias, novas justificações das
ações, novas afetações.
As diferenças entre os diferentes sujeitos construídos, ainda que seguindo um
mesmo código moral, desordenaram minhas concepções e as reordenaram novamente,
por isso afirmo que entre minhas idas e vindas no ato de me deslocar entre os
municípios, entre minhas informações, reflexões e escritas, uma nova pesquisadora
também se constituía. De que é feito o universo social se não de perspectivas? Entre as
várias avaliações proferidas em relação a si e em relação ao outro, tudo se reduzia a uma
questão de justificação moral e perspectiva. As verdades são parciais (Clifford, 2016a).
Assim como Figurelli (2010) descobri que não existe um Mobon, são vários Mobon’s a
depender da perspectiva, da experiência, da vida. “Do ponto de vista de quem?” (Da
Cunha, 2005).
A diversidade me encantava e me desesperava, afinal, analisar a unidade me
parece sempre menos complexa, embora também seja menos real. É fruto da
insegurança e da necessidade de domínio de uma totalidade diante do trabalho, ainda
que fictícia na realidade (Clifford, 2016b), o motivo pelo qual senti a necessidade de
mapear os elementos e práticas que constituem sujeitos morais (Capítulo I), bem como
26

contrapor ideias do senso comum, através das experiências das lideranças religiosas que
se tornaram lideranças sindicais e político-partidárias (Capítulo II), de que “os políticos
são todos iguais” ou “ele era religioso, mas depois foi pra política e se corrompeu lá
dentro”.
Como argumento no Capítulo III, os cursos e celebrações no Mobon e nas Ceb’s
constituem um tipo de sujeito moral, “um novo modo de ser Igreja” que se constitui
enquanto um trabalho de si e não diz respeito simplesmente a seguir regras, mas quanto
à sua produção e manutenção enquanto um sujeito ético diante daquilo que acredita. O
sujeito moral que circula, é constituído de todo um trabalho de si, um trabalho de
reflexão em torno das normas que julgava corretas, e que se utiliza da dúvida metódica
frente a outras prescrições. Se há algo que é certo se dizer sobre estas lideranças é que
todas elas passaram por dilemas morais quando decidiram entrar no mundo político
partidário.
O interesse desta pesquisa está exatamente em compreender quais foram esses
dilemas, quais argumentos estavam em jogo durante as ações tomadas, como foram
vistos pelas outras lideranças e como se viam a si mesmas?
27

CAPÍTULO I

CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MORAL: PRESCRIÇÕES E O


SABER FAZER NO MOVIMENTO DA BOA NOVA

“Nós somos instrumentos (violão nas mãos de Deus)”


Cora Furtado de Melo (Reza do Povo)

A moral religiosa propicia princípios e elementos que são condutores de ações e


práticas cotidianas, desde a mais simples à mais elaborada, seja refletida ou fruto de um
comportamento aprendido. A partir deste plano cosmológico condutor traçam-se
estratégias a fim de alcançar um objetivo. No caso específico do Mobon o objetivo é
construir uma “nova Terra”, “o reino de Deus” e para isso é necessário seguir os passos
de Jesus, ou seja, testemunhar na Terra o modo como Jesus viveu. As estratégias
utilizadas são o anúncio da Boa Nova, através de uma linguagem simbólica; a formação
de “lideranças leigas” capazes de se organizar, gerando um efeito multiplicador na
transmissão da Boa Nova; e a formação e animação de comunidades, através da prática
da mensagem na vida, união entre “fé e vida”.
Existe um universo cosmológico que orienta os cursos que pretendem formar
lideranças capazes de criar comunidades e viverem em união. São os elementos
constituintes e orientadores deste universo que busco compreender e os aglutino no que
denomino “código moral” no sentido de Foucault (2018a), como um conjunto
prescritivo de regras e ações propostas aos indivíduos. As prescrições que constituem o
código moral a ser seguido conformam um modo de ser e as devidas formas de agir no
cotidiano. Como veremos, há um conjunto de elementos que orienta a ação como a
união, a solidariedade, a busca por justiça social, a coerência entre ação e oração.
Adicionalmente há também as estratégias e técnicas para se alcançar esse objetivo, o
que denomino de um saber fazer que se constitui não apenas das normas, mas de
vivências e aprendizados no cotidiano, desenvolvendo capacidades que serão centrais ao
longo desse processo.
Para além de um mapeamento inicial e de situar o leitor no universo do Mobon e
das Ceb’s, pretendo mostrar nesse capítulo como preceitos e estratégias nesse universo
social podem ser vistas como “práticas de si” (Foucault, 2010a, 2018a) através de um
constante trabalho e vigília sobre si dado a essencialidade de ser um exemplo para se
28

manter na liderança. A centralidade do “testemunho de vida” exige um “governo de si”


para posterior “governo dos outros” (Foucault, 2010b). Seguindo essa abordagem, a
exigência de uma “conversão” e de uma posterior coerência entre “oração e ação”, para
a manutenção da “reputação” (Bailey, 1971) e, consequentemente, para a manutenção
da posição de liderança, pode ser pensada como a noção de “exemplar” sugerida por
Humphrey (1997) ao estudar a vida moral na Mongólia.
A fim de contribuir para construções da moralidade de maneira geral, Humphrey
(1997) traz uma discussão das maneiras pelas quais o mundo moral dos mongóis pode
ser compreendido. Dada a não correspondência imediata do termo europeu
“moralidade” entre os mongóis, adota em seu trabalho a compreensão como referindo-
se à avaliação da conduta em relação às qualidades estimadas ou desprezadas. A
combinação de termos usados pelos mongóis para traduzir essa ideia europeia de
moralidade denotam áreas de atividade moral conectadas, porém funcionam de
maneiras distintas no que tange à prática de avaliação de conduta. O termo em questão é
yos surtakhuun, sendo que yos representa as regras de ordem, da razão e dos costumes
que são comumente comuns, enquanto surtakhuun refere-se à ética pessoal, às coisas
que foram ensinadas. Humphrey (1997) percebe que para eles, embora haja regras, a
principal arena da moralidade dos mongóis é a relação da pessoa e seu exemplar.
O exemplar (üliger) seria uma combinação da figura de um professor escolhido
pelo discípulo que a partir de suas palavras e ações o considerou pessoalmente exemplar
para seu desenvolvimento pessoal. Os professores podem ser qualquer pessoa que tenha
a honra de ter aperfeiçoado uma qualidade admirada, alguém que avançou e se
aprimorou em relação a algum princípio moral. Além disso, pode-se ter mais de um
exemplar em sua vida, exemplificando qualidades diferentes. Especificamente, neste
trabalho, este professor ou mestre a ser seguido diz respeito à Jesus Cristo e suas
palavras e ações remetem à sua “caminhada”, sua conduta moral em vida. Entretanto, ao
se conformarem enquanto lideranças, essas então deveriam ser um “exemplar” para os
fiéis da comunidade e dar o exemplo de como seria uma vida moralmente conduzida.
Há outro fio condutor nesse processo pelo qual passam as lideranças, que diz
respeito à especificidade do saber fazer. Entre as estratégias e práticas do saber fazer
encontra-se o que denomino aqui de metodologia reflexiva, pautada na metodologia do
ver-julgar-agir, está centrada na utilização de trechos bíblicos e o “ajuste de seu
conteúdo à situação” local concreta em que vive o fiel em sua comunidade (Theije,
29

2002). Consequentemente, a liderança é estimulada a desnaturalizar e repensar seu


cotidiano em termos de preceitos morais prescritos no “Livro Sagrado”.
De fato, tal reflexão se expressa nas metáforas utilizadas nos casos sobre a
conduta dos fiéis na comunidade, ambiente que assim como o religioso se organiza por
relações de união, fraternidade e coletividade. Denominarei esse tipo de relação de
relações comunitaristas para designar que a coletividade se sobrepõe às relações
interpessoais. Os preceitos morais enfatizados aqui fazem parte de um recorte
construído de acordo com a recorrência e ênfase dada na interação entre pesquisadora e
seus interlocutores, sempre tendo em mente o cuidado necessário ao local de onde
emerge esse saber (Haraway, 1995). Obviamente não é uma pretensão deste trabalho
fazer uma análise exaustiva destes elementos, nem de todas as estratégias aprendidas,
mas sim das que se mostraram importantes para as lideranças dessa geração.
Isto posto, o material utilizado nesse capítulo consiste tanto de relatos das
lideranças, que me indicavam caminhos a percorrer nos documentos históricos e notas
dos cursos do Mobon presentes nos Cadernos de Cora Furtado de Melo, como da
observação participante do curso da Campanha da Fraternidade 2018 (CF 2018)17 em
que pude perceber elementos já mencionados por diversas lideranças. Assim sendo,
parto de elementos recorrentes nas narrativas e analiso os documentos relativos aos
cursos do Mobon para abordá-los aqui de uma forma que esses elementos possam ser
invocados para compreensão de tensões experienciadas pelas lideranças em questão ao
se depararem com o impasse entre códigos morais do mundo religioso e as práticas do
mundo político, que será explorado no Capítulo III.
Diversas leituras do código moral podem ser feitas, o que foi fortificado pela
metodologia reflexiva possibilitando o ajuste situacional no mundo político, o que traz a
necessidade da justificação moral da ação para a manutenção do prestígio, e do capital
social (Bourdieu, 1980).

1.1. Os elementos de questões éticas e morais no Mobon


Acredito haver a elaboração de um discurso ético-moral relativo às experiências
no Mobon/Ceb’s, por conseguinte, parece interessante analisar alguns dos elementos
que constituem tal discurso que estaria fundado no que chamo aqui de moral religiosa.

17
A campanha da Fraternidade teve por muito tempo o nome de “Curso da Semana Santa”.
30

Faz-se necessário ressaltar que se trata de uma moral de um grupo específico da Igreja
Católica que se identifica com a Teologia da Libertação e a “preferência pelos pobres”.
Elementos recorrentes, como: união e solidariedade; justiça social,
responsabilidade do cristão e missão; humildade e resiliência; e “fé e vida”, “oração e
ação” se fizeram presentes nas narrativas. A seguir me dedico a afunilar minha atenção
à maneira como esses elementos estavam e ainda estão presentes nos eventos do
Mobon.

1.1.1 União e solidariedade


O princípio da união como central entre os fiéis que passaram pelos cursos do
Mobon fica evidente em diversas documentos e cursos. Em especial, o Curso da Boa
Nova, teve como foco a importância da vida em comunidade. Como pode ser visto no
material manuscrito de Cora Furtado de Melo, que participou do curso da Boa Nova em
setembro de 1970, em Iapu-MG. O item seis, “Vivência Comunitária” versa sobre a
importância da união entre os fiéis.
A vida comunitária é de importância capital:
⎯ O homem não vive isolado.
⎯ O Cristianismo exige vida comunitária.
⎯ Os convertidos precisam de apoio da comunidade.
⎯ A fé necessita de ambiente: de vida, de diálogo, de comunidade.
⎯ A pessoa humana precisa de segurança. Apoio e realização em grupo.
Vantagens de Comunidades pequenas:
⎯ Conhecimentos profundos.
⎯ Todos têm sua vez.
⎯ Amizade.
⎯ Sentido mais profundo da vida.
⎯ A comunicação é mais autêntica.
⎯ A comunidade é estímulo para o homem.
⎯ Faz crescer em forças desconhecidas.
⎯ Leva-o a se expandir. Dá-lhe disposição e otimismo para trabalho.
Na Comunidade deve haver:
⎯ Participação – ambiente de família – confiança – Liberdade –
Aceitação – Muita solidariedade.

A vida comunitária emerge como crucial para o verdadeiro cristão, já que a


conversão é vista como inserção e engajamento na vida religiosa da comunidade.
Assim, a assertiva “o homem não vive isolado” traz consigo as premissas de quão
significativa são as relações pessoais. Deve haver engajamento na comunidade de
forma a apoiar os convertidos, construindo uma força que vem da união, da amizade, do
diálogo. É nesse ambiente que a “fé” se constrói e se fortifica.
Os missionários responsáveis pelo curso acentuavam a pertinência de
comunidades pequenas, refletindo sobre suas vantagens para sua união. Em uma
31

comunidade pequena, todos teriam o seu momento de fala e de participação, formando


conhecimentos mais profundos assim uma comunicação mais autêntica. Também o
número reduzido de pessoas poderia levar a relações pessoais mais profundas, com
amizades mais intensas e a partir daí se desenvolve o sentimento de pertencimento ao
grupo.
Em suma, em uma comunidade deve haver um ambiente familiar, onde as
pessoas se sintam à vontade, pertencente e tenham confiança suficiente para participar
de forma solidária. A comunidade é um espaço de união e solidariedade.
Em setembro de 1972, foi oferecido no mesmo município o Curso de
Aprofundamento e Revisão, em que foram enfatizados quatro pontos: 1- Pessoa; 2 –
Comunicação; 3 – Curso de Base; e 4 – Liturgia. O item 3 do segundo ponto refletia sobre
os problemas de comunicação, enfatizando a importância da união e colaboração nos
trabalhos feitos em grupo para que a comunicação fosse efetiva. “O trabalho em grupo não
é competição. É colaboração. Se os componentes do grupo não forem capazes disto, é
sinal de que não estão maduros para o trabalho em equipe e muito menos para a
comunicação.” (Curso de Aprofundamento e Revisão, 1972: 5). A própria norma
prescrita sugere que comportamentos competitivos estavam presentes também nos
trabalhos em grupo e por isso a necessidade de uma orientação, um modelo a ser
seguido.
Essa descrição de como seria uma vida comunitária ideal, com centralidade na
união entre os participantes, vai aos poucos prescrevendo e construindo um modelo de
comunidade a ser alcançado através da ação moral cotidiana. Já que “o Cristianismo
exige vida comunitária”, o cristão deve ter uma conduta moral cotidiana coerente com
tal anseio.
Também no livreto, editado na década de 1980, A Caminhada de Jesus (1985), está
clara a ênfase na união ao tratar dos objetivos da Boa Nova trazida por Jesus.
O primeiro objetivo da Boa Nova de Jesus é reunir as pessoas. É formar
comunidade (Mc 1, 16-20). Formar comunidade é se comprometer com a
causa do povo. É lutar contra o que divide e oprime. É desempelotar. É entrar
na caminhada de Jesus. (A Caminhada de Jesus, 1985: 7, grifo da liderança).

No mesmo livreto, o combate à divisão e à opressão segue no item c do capítulo


Mensagem e posição de Jesus, intitulado, Jesus combate as divisões, afirmam que
Jesus denuncia todas estas divisões e as combate com atitudes bem concretas.
[...] O modo de agir de Jesus libertava o povo da opressão da lei, da opressão
dos que explicavam a lei, da opressão dos que em nome de seu saber punham
fardos pesados nas costas dos outros (Mt 23, 4). (A Caminhada de Jesus,
1985: 12-13, grifo da liderança).
32

Dada a projeção dos ensinamentos religiosos para a vida, é importante não


perder de vista os elementos da moral subentendidos através de uma metáfora. Uma das
muitas metáforas recorrentes no processo de interação diz respeito aos tipos de Igreja
possíveis. O primeiro contato que tive com a metáfora da “Igreja Laranja” se deu numa
conversa em 2016. Ao me contar sobre como se davam os cursos comunitários, uma
liderança explica metaforicamente a união e complementariedade dos setores da
comunidade
[...] a laranja, quando você pega uma laranja e descasca uma laranja, por
dentro você não tem noção de como ela é, porque vocês vê só a casca, mas
depois que descasca são vários gomos tudo ligado um no outro e cada gomo
daquele representava uma área social ou religiosa da comunidade né....(João
Clemente, primeira geração, relato18, 26.07.16).

A partir daí, diante do interesse na compreensão deste universo social e de sua


linguagem específica (Oliveira, 2010), busquei a referência necessária nos livretos e
anotações dos cursos. O tema sobre os tipos de Igreja faz parte do conteúdo do livreto
Reconstrução do Povo, em que se faz comparações entre as diferentes formas possíveis
da Igreja Católica tratar o povo, como a Igreja Caju, a Igreja Abacate e a Igreja Laranja,
sendo que nesta última, sementes e gomos estão misturados. Assim, há entrosamento, já
que os membros da Igreja Laranja têm todos a mesma missão libertadora, não tendo
tanta preocupação com cargos e títulos.
A Igreja do tipo laranja [...] não tem medo de descentralizar o poder. Acredita
na capacidade do povo. Por isso seus planos não são feitos de cima para
baixo. São fruto de uma escuta de uma convivência com as pessoas. São
respostas às necessidades do povo. Por isso mesmo seus planos não são
complicados. Seu palavreado é simples. As reuniões desta Igreja são
marcadas por ações fraternas. Não há distinção de pessoas. Suas revisões são
RX de sua caminhada.
Esta Igreja tipo laranja, onde domina a comunhão, é uma, não só porque tem
os mesmos ritos, mas sobretudo porque tem uma mesma missão libertadora.
[...] Suas grandes virtudes são a solidariedade, a participação nas decisões
comunitárias, amadurecimento das decisões na base, ser perseguida por causa
da justiça. [...] Esta Igreja, tipo laranja, se concretiza nas Comunidades
Eclesiais de Base. Estas comunidades são o encontro do povo crente e
sofrido. [...] As Comunidades quando são de fato Eclesiais e de Base, vivem
em profundidade a solidariedade que as leva a uma oração séria, que lhes dá
força para enfrentar as perseguições que têm levado muitos de seus membros
ao martírio.
Somente uma Igreja deste jeito tem condição de lutar pela verdadeira
reconstrução do povo. Somente nesta Igreja o povo vai acreditar.
(Reconstrução do povo, 1984: 28-30, grifo da liderança)

18
Como a maior parte dos relatos são fruto de uma interação comigo, aos relatos seguirão apenas “nome,
geração, relato, data”. Em caso de fonte de outras pessoas indicarei “nome, relato concedido à [...], data”.
33

A fraternidade, a solidariedade, e participação nas decisões comunitárias são


marcas da Igreja Laranja, que se concretiza nas Ceb’s, onde os fiéis estão unidos pela fé
e propósito. Interessante notar como uma metáfora de 1984, parecia tão viva na
memória desta liderança em 2016. Esta metáfora emerge em diversos outros contextos,
embora ressignificada pelas lideranças que aciona em momentos distintos para explicar
atividades distintas, ora a laranja representando a Igreja enquanto instituição, ora
representando a comunidade e seus setores ou mesmo o “caráter” de outras lideranças
na prática de julgamento. Voltaremos à habilidade de comunicação aprimorada no
Mobon mais adiante.
Por agora, podemos enfatizar a importância do canto no Movimento da Boa
Nova. Os Cursos de Cânticos são frequentes no Movimento, sendo atualmente os mais
frequentados. Aqui, me detenho especificamente no conteúdo da mensagem, ou seja, na
letra do canto, a fim de compreender a cosmologia da união presente na fala das
lideranças. A apresentação do livreto Cantando a Igualdade de 1988 inicia exaltando a
unidade e igualdade
“Não há escravo nem livre” pois todos somos um, em Cristo Jesus! (CF G1 3,
28). Chega de desigualdade! Chega de divisão! É hora de nos unirmos, para
podermos “fazer acontecer”, aqui e agora, o REINO DA GRAÇA, DA
JUSTIÇA, DO AMOR E DA PAZ! (Cantando a Igualdade, 1988: 02)

Também a canção Igreja em Ação de Ladir Ozório de Freitas enfatiza a


importância da união no trabalho na segunda estrofe “Trabalhemos todos juntos/ em
favor da igualdade, / combatendo o racismo/ que divide a sociedade. / O Espírito de
Deus/ sobre nós habitará;/ novo mundo de justiça/ para os pobres surgirá.” (Cantando a
Igualdade, 1988: 03).
Pensando a atualidade, o lema evangélico da Campanha da Fraternidade 2018
foi “Vós sois todos irmãos” (Mt 23, 8) e o livreto referência para o curso traz em sua
introdução:
O que nos motiva neste caminho de superação da violência é a prática de vida
e os ensinamentos de Jesus. Ele próprio é quem nos recorda: “Vós sois todos
Irmãos” (Mt. 23, 8). Neste sentido, não basta conhecermos as Escrituras e
não é suficiente compreender os ensinamentos da Igreja. É preciso que
sejamos praticantes da Palavra e que aprendamos a viver como irmãos.
(Campanha da Fraternidade, 2018: 05).

Como pode ser visto a união e solidariedade vem também através do argumento
da fraternidade de “filhos do mesmo pai”, numa espécie de parentesco relacional
(Carsten, 2000) baseado em relações profundas e duradoras dada a partilha de uma
34

história de luta e de memórias tanto de conquistas como de sofrimentos e


enfrentamentos em busca de um ideal comum e religioso.
Vimos nessa seção como a união, a solidariedade, a vida em comunidade foi
uma tônica presente nas atividades do Mobon e nas Ceb’s, já que os cursos e cantos
eram replicados e ensinados nas comunidades (efeito multiplicador). Percebemos
também uma tendência a ver vantagens em comunidades pequenas, o que ajuda a
compreender a dificuldade posterior que tais lideranças teriam com a ampliação dos
grupos políticos aos quais pertenciam, ao aceitarem indivíduos orientados por outras
condutas que não a religiosa.
Vejamos agora sobre outros elementos fundamentais na “caminhada” religiosa
como a humildade e a resiliência, que serão objeto de acusações e autoacusações entre
as lideranças políticas quando ingressam no mundo político partidário.

1.1.2 Humildade e Resiliência


A humildade é trazida como uma virtude cristã e acima de tudo para uma verdadeira
liderança, era enfatizado que numa relação se trocam experiências, aprende-se com o outro
e não só se ensina. O ensino nesse Movimento se assemelha a metodologias de Paulo Freire,
com um ensino dialógico.
Segundo Freire (1996), uma das tarefas mais importantes da prática educativa é
propiciar condições para que o educando possa se assumir enquanto ser social e
histórico, como ser pensante, comunicante, transformador e criador em suas relações
uns com os outros e com seus educadores. Ensinar não é transferir conhecimentos e
conteúdo, mas sim um processo dialógico baseado na reciprocidade, por isso a
importância de conhecer o universo simbólico de quem se ensina, como faz João
Resende em suas “comparações”. Também é importante entender que o sujeito que
forma está formando outro sujeito, ou seja, ele forma e ao mesmo tempo é formado.
Freire (1996) acredita que não existe docência sem discência. “Quem forma se forma e
re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” (1996: 23).
Reformar-se e aprender com o outro está intimamente relacionado com a
humildade da liderança, com a instrução de ouvir mais do que falar, “aprender a ouvir o
clamor do povo” (A Força do Restolho, 1987: 10) e não se sentir o dono da verdade. Ao
escrever sobre um dos cursos em que esteve presente, Kerandel e Del canto (1977: 25),
afirmam que “o que se percebia era a humildade, a paciência e o esforço que faziam
para tomarem consciência que cada um deles tem sua função”.
35

Quando questionado por Ramon Teixeira sobre quais as práticas pedagógicas ou


educativas o curso se fundamenta, Alípio afirma que:
Nasceu mais da nossa prática mesmo... João Resende muito bom nisso, né.
E enquanto o João... antes o João Resende chegar eu fiquei sozinho. Eu tive
uma ideia, que eu acho que até acertei que era muito deixar o pessoal falar.
[...] Podia falar a vontade, não cortava nunca. Nós fizemos um plenário lá
no Caratinga, nós falamos o dia todo... foi pra nós até a uma hora da
madrugada...[...] por quê? Porque eles foram discutindo, eu deixava
discutindo. Podia falar mal do padre, falar mal de quem eles quisessem, aí
assim ia discutindo... depois eles foram chegando a conclusão: "eu tava
falando mal dos padres, mas e nós? Que que nós estamos fazendo?", ai
assim... [...] Ou seja, eles falando, quanto mais eles falavam, melhor era.
[...] então essa, isso aí nós aprendemos conosco mesmo. A ideia de ouvir.
Ouvir, ouvir, deixar falar, deixar falar. E com isso nós fomos aprendendo
com o povo, né, as reações do povo então... e o João Resende chegou com a
capacidade extraordinária que ele tem, né... e aí ele foi ajudando mais com
as comparações, etc. Mas é a natureza do João Resende, ele é assim. Ele é
comparativo. Então nós fomos mais aí. (Alípio Jacinto, entrevista
concedida a Ramon Teixeira em 08.02.2018).

Esse aprendizado a partir da experiência dos missionários foi transmitida nos cursos,
principalmente os específicos para a formação de lideranças, como é o caso do Curso da
Boa Nova. De acordo com a análise do material manuscrito de Cora Furtado de Melo,
que participou do curso da Boa Nova em setembro de 1970, em Iapu-MG, o item cinco,
“O Apostolado de Jesus Cristo” versa sobre elementos necessários à realização do
apostolado, como
[...] O método de Cristo – [...] Não força. É oportuno. Sabe ouvir. Fala no
momento oportuno. [...] Cristo valoriza os ouvintes. Falava para multidões,
grupo, pessoas. Valorizava os encontros, as conversas. Queria uma resposta
livre. [...] Zaquel: Cristo quase não fala. É amigo. Respeita-o. Escuta-o.
Valoriza-o. [...] Adultera: respeita-a. É silencioso. Mostra-lhe o seu erro.
Recomenda-lhe vida nova. [...] Pecadora: Cristo dá uma lição, uma
mensagem aos ouvintes. Mostra o seu amor ao pecador arrependido. [...]
Samaritana: Cristo demonstra paciência e simplicidade. Valoriza-a, levando-a
à aceitação de Sua Mensagem. Anunciar o Cristo. Levar o ouvinte a
encontrar-se com Cristo. (Cora Furtado de Melo, 1970: 15)

As anotações de Cora Furtado de Melo nos ajudam a compreender como esse


aprendizado do “ouvir mais” foi incorporado aos cursos e se tornado uma estratégia
pedagógica importante e transmitida de geração em geração. Falaremos melhor sobre as
estratégias aprendidas no Movimento e nas Ceb’s na próxima seção.
Também no material do Curso de Aprofundamento e Revisão de 1972, no item 3
que trata sobre os Cursos de Base, há uma passagem que ilustra bem o caráter da humildade
necessária para ser uma liderança “Não vamos, então, aproximar-nos do outro como o
‘dono da verdade’. Mas, como aquele que ajuda a descobrir a verdade.” (Curso de
Aprofundamento e Revisão, 1972: 6).
36

Para explorar o método de Jesus, os missionários também ministraram o curso A


Caminhada de Jesus (1985). No livreto correspondente há trechos que ressaltam a
importância da humildade na pregação pública.
O povo logo notou uma diferença entre Jesus e os pregadores da época. Jesus
pregava caminhando junto ao povo. Os fariseus ficavam por cima. Não
caminhavam com o povo. Jesus, caminhando junto com o povo, se colocou
ao lado dos que eram pisados, postos para escanteio. [...]
A caminhada de Jesus com o povo buscava um novo tipo de vida que fosse a
realização do projeto de Deus. É a caminhada em busca da Terra prometida.
É a realização de Isaías 65, 17-25. Nessa caminhada surgem muitas
dificuldades. Aparecem muitos conflitos. É que o caminho da libertação
passa pelo conflito. Por isso mesmo muita gente na hora que a coisa aperta
tira o time de campo ou se junta ao poder e à força. Os que restam nessa
caminhada são reavivados pela esperança. (A Caminhada de Jesus, 1985: 3-4,
grifo da liderança)

Voltaremos-nos agora, para as consequências ou deveres do cristão. Assumindo


a fé e ação necessária para a construção do “reino de Deus”, a consequência das boas
ações seria a justiça social. Entretanto, a justiça social é vista como uma
responsabilidade do cristão, a missão no mundo. Vejamos, então, como tais elementos
aparecem nos registros históricos.

1.1.3 Justiça social, responsabilidade do cristão e missão


A postura do Movimento da Boa Nova quanto à Teologia da Libertação e,
consequentemente, à “preferência pelos pobres” “só se revelou mais consistente na
década de 1980; isso se deu mais em função da pressão e aproximação dos agentes mais
engajados com as concepções liberacionistas do que por estudos e escolhas dos agentes
sociais” (Oliveira, 2012: 25). Assim sendo, a temática da justiça social e da igualdade é
frequente nas atividades do Movimento, como pode ser visto nos livretos, orientadores
dos encontros. Reestabelecer a justiça social “quebrada” exige a responsabilidade do fiel
com tal causa. Em nota manuscrita na lombada do livreto A Caminhada de Jesus
(1985), mais precisamente nas páginas 7 e 8, que dissertam sobre os objetivos da Boa
Nova de Jesus, Cora Furtado de Melo toma nota do que sugiro ser uma sentença
proferida pelo ministrante do curso em questão. Escreve ela na página 7 “O objetivo de
Jesus é acabar com a opressão e a divisão” e em seguida, na página 8, escreve “Obs. A
presença do Pobre é sinal que a justiça de Deus foi quebrada. O projeto de Deus foi
desviado.” (Cora Furtado de Melo, 1985: 7-8, grifo da liderança).
Ora, a busca de justiça social passa então a ser vista como uma missão.
Entretanto, é importante compreender o que tais lideranças entendem por justiça social.
37

Para além das pistas dadas nos relatos, busco fundamentá-las nos ensinamentos
religiosos experienciados, em geral vistos como uma escola. Ainda no livreto A
Caminhada de Jesus (1985), no item “De que lado fica Jesus”, está posta a centralidade da
Boa Nova nos fracos, pobres e enjeitados, apesar de não excluir ninguém.
Jesus anuncia a Boa Nova a todos. Não exclui ninguém. Mas Jesus faz o
anúncio a partir dos pobres e dos enjeitados. O lugar, o ambiente de onde se
faz o anúncio, é muito importante. A posição diante da vida fala mais do que
as palavras. Por isso mesmo, Jesus, mesmo sem excluir ninguém, convive
com aqueles que não tinham lugar dentro da sociedade da época. [...] Jesus dá
atenção a quem não tem poder nem saber. É o caso dos fracos e os pobres.
Quem não tinha lugar recebe um lugar na convivência com Jesus. Fica assim
claro de que lado ficou Jesus. Ficou do lado dos que foram postos para
escanteio. [...] Jesus se colocando do lado dos pobres nos ajuda a entender
que os pobres nos levam a descobrir o Evangelho como Boa Notícia e Jesus
como libertador. A posição de Jesus nos ajuda a entender que o pobre não é
simplesmente o carente. É alguém capaz de lutar pela sua vida, pela sua
libertação. (A Caminhada de Jesus, 1985: 9-11, grifo da liderança).

A responsabilidade e a missão vêm ser lembrada no também no livreto A


Caminhada de Jesus (1985) ao tratar dos objetivos da Boa Nova trazida por Jesus.
Um outro objetivo da Boa Nova é manter a consciência de que temos uma
missão a realizar. Não podemos parar nas pequenas vitórias obtidas. Elas são
forças para outras lutas. [...] Este objetivo da Boa Nova nos lembra que
nossas comunidades devem ser missionárias. Não podem focar só no terreiro
de sua cozinha, fechada dentro de seus limites. (A Caminhada de Jesus, 1985:
08).

No livreto A Força do Restolho (1987), a organização e o comprometimento


com a realidade em favor da vida aparecem como um culto a Deus
O povo está acordado. Está se organizando melhor politicamente. As
comunidades Eclesiais de Base, à luz da Palavra de Deus, vão se
comprometendo mais com a realidade. Muitos de seus membros vão se
engajando na política, cientes de que a Política, quando é feita para manter a
vida, se torna um verdadeiro culto prestado a Deus (Puebla 521). Os
sindicatos vão se desempelegando e ficando mais combativos. O Movimento
dos sem-terra vai se firmando cada vez mais. Os movimentos populares vão
respondendo aos desafios. [...] Com Deus aprendemos a ouvir o clamor do
povo (A Força do Restolho, 1987: 09-10).

Note que as políticas realizadas em favor da vida, são vistas como uma forma de
um culto a Deus, ou seja, também pode ser interpretada como uma forma de oração.
Isso significa que já no ano de 1987, aparece alusão mais explícitas à política como uma
forma de alcançar a justiça social.
No ano de 2011, Denilson Mariano, missionário que desde 1991 integra a equipe
do Mobon, enfatiza que um dos eixos centrais do Movimento da Boa Nova é o
compromisso social a favor da vida e identificar os problemas exige uma reflexão sobre
a realidade.
38

O estudo bíblico feito de frente para a realidade da vida vai despertando o


senso crítico e abrindo a pessoa para a participação nos meios sociais para o
compromisso de transformação da realidade. Há uma constante preocupação
em ligar fé e vida, oração e ação. O diferencial é que se parte da Palavra de
Deus para se chegar a conclusões de engajamento e compromisso social. É a
fé que se desdobra em ações a favor da vida. Com isso surge uma nova
consciência de ser cristão, comprometido em mudar a sociedade para que
haja mais vida e dignidade para todos. Fruto disso é que muitos se engajaram
nas lutas sindicais, nas associações, nas organizações de base e nos partidos
políticos comprometidos. Muitos descobriram assim a política e a
organização social como ferramentas para a militância e para a transformação
da sociedade. (Mariano, 2011: 153-154).

Ou seja, a metodologia reflexiva de realizar um estudo bíblico diante da


realidade de cada comunidade observando o contexto em que se encontra desperta o
senso crítico que, se somada à responsabilidade de transformação do social, pode legar
ao engajamento em organizações sociais.
Alípio Jacinto, quando questionado por Ramon sobre o Movimento Fé e Política,
fala sobre a política no cotidiano, sobre a visão de que política está relacionada ao sujo e
que, na verdade, política é a luta pelo bem comum, é a responsabilidade do cristão.
Olha, o Mobon... Fé e política têm a ver né só com o Mobon não, com todo
cristão né. O Mobon então chamou atenção, chama a atenção sobre a fé.
Porque o problema do povo é falar assim "eu não quero saber de política".
Tem uma mulher aí que falou se eu falasse a palavra política que ela saia da
sala. [...] Cheguei lá, falei política o tempo todo ela não saiu, porque eu não
falei a palavra política, falei, falei, falei de outra maneira, né. Falei da
participação nas questões sociais da paróquia... de tudo... não falei a palavra
política não. Ela ficou que é zóio puro. Prestou atenção direitinho... o pessoal
acha que política é um negócio sujo. Não, a política é um negócio muito
bonito que é lutar pelo bem comum. Esse... aí falei do bem comum, de buscar
o bem de todos, né só a gente ser egoísta não, né... tava falando de política.
Então fé e política não é do Mobon não é... é do cristianismo. É de nós todos,
a qualquer hora. E o Mobon está atento a isso aí. De vez em quando a gente
faz a palestra sobre fé e política, o pessoal chama pra gente falar sobre as... eu
falo das responsabilidades do cristão diante da política. (Alípio Jacinto,
entrevista concedida a Ramon Teixeira em 08.02.2018).

Ao compreender que a política também é feita no cotidiano (micropolítica), a


prática do cristão aparece como orientada para alcançar o bem comum. Ora, se política é
a luta pelo bem comum e é responsabilidade do cristão, o que fazer quando os códigos
que regem o mundo religioso da união e da comunidade, se choca com o mundo da
política regido pela divisão e competição? É o que veremos mais adiante.
A visão de um Deus diferenciado, que olha pelos oprimidos esteve presente em
muitas das conversas com várias lideranças em questão, cada um em seu contexto e
compreensão local, sendo também um elemento central na construção da união e da
identidade “cebista”, que é parte da Igreja Católica, mas não se confunde e não se limita
à instituição, tendo suas especificidades e princípios mais específicos. No caso
39

específico da Zona da Mata mineira, a identidade cebista está intimamente relacionada


ao campo e à moralidade camponesa, ou seja, a ênfase da justiça está no combate à
opressão do trabalhador rural. As lideranças com quem interagi durante o período mais
intenso de pesquisas são de origem rural, sendo que alguns seguem como trabalhadoras
e trabalhadores rurais, embora alguns também tenham se engajado em outras formas de
cumprir sua “missão”, sempre relacionada ao trabalhador rural.

1.1.4 “Fé e Vida”, “Oração e ação”


Como pôde ser visto ao longo dos elementos trazidos até então, é forte a
presença da conversão e do posterior testemunho de vida. Isto porque, como afirmou
João Resende no CF 2018, “fé e vida devem andar alinhados”. Enquanto falava,
desenhava no quadro negro um trilho, uma linha de trem, e explica que são coisas
diferentes, que nunca se juntam, mas estão sempre alinhadas. A coerência entre a oração
e a ação na vida cotidiana, não só esperada, mas exigida para se manter como liderança,
já que será o exemplo vivo da vida a ser seguida. A vida da liderança deve honrar a
moral religiosa.
O Curso da Boa Nova trata a conversão no antigo e no velho testamento. O item
três do curso tratava da “Conversão no Antigo testamento” se referindo à Atos 17, 12-
33.
⎯ O povo escolhido de Israel foi escolhido para ser sinal entre os povos.
Desviou-se julgando que só ele era de Deus. Quis impor suas leis e
ritos.
⎯ Nós católicos, também nos afastamos da linha de Testemunho.
Prendemos a salvação em nossos ritos. Deus tem outros meios de
salvação que desconhecemos.
⎯ Pecado no A. T. – O povo perdeu o sentido do Essencial. A conversão
se prendia a cerimonias vazias.
⎯ Missão dos profetas: mostrar ao povo o verdadeiro sentido da
Conversão.
(Caderno Cora Furtado de Melo, 1970: 15)

A conclusão desse item é que no Antigo Testamento, a “Conversão é VIDA


NOVA” (Caderno Cora Furtado de Melo, 1970: 14).
No que tange à conversão no Novo Testamento, o item quatro consistia na
“Conversão no Novo Testamento” se referindo à Lucas 15, 12-32.
⎯ Pecado no N. T. é afastamento da casa do Pai. Conversão é volta à casa
do Pai.
⎯ Sentido bíblico de penitência: Metanóia: mudança de coração –
mudança total do homem.
⎯ Metanóia: Condição para entrar no Reino de Deus.
[...]
Conclusão:
40

⎯ Precisamos de nos libertar totalmente.


⎯ Adesão a Cristo, Sacramento de Deus.
⎯ Dar a Deus a nossa resposta pela vivência fraterna.
(Caderno Cora Furtado de Melo, 1970: 15)

As anotações sobre a conversão trazem uma necessidade de um trabalho de si


(Foucault, 2010a) rumo ao modelo teleológico de um novo homem, uma nova vida. A
vivência fraterna é uma das práticas para as quais se deve atentar no cotidiano.
O livreto A Caminhada de Jesus (1985) vem trazer um modelo de caminhada
exemplar a ser seguido pelos fiéis. É importante ressaltar que o termo “caminhada” é
recorrente entre as lideranças.
Para Jesus, a posição, o lugar que uma pessoa toma diante da vida e das
pessoas, é fundamental no anúncio de sua mensagem. A posição da pessoa
diante da Vida fala mais do que suas palavras. Jesus anunciou a Boa Nova do
Reino a partir dos marginalizados. Esta posição de Jesus leva os pés de
chinelo a acreditar n’Ele e também ir atrás d’Ele. E diziam, Jesus é diferente.
Ele está conosco. Sua palavra não é papo furado (A Caminhada de Jesus,
1985: 5, grifo da liderança).

Como já visto anteriormente, Jesus está a favor dos oprimidos, então, mas que falar
e rezar por tais indivíduos marginalizados, a vida do fiel deve condizer com a caminhada de
Jesus. Dito de outro modo, é importante alinhar oração e ação. O mesmo livreto traz
também a importância da coerência entre “fé e vida” ao tratar dos objetivos da Boa Nova
trazida por Jesus.
Outro objetivo da Boa Nova é nos levar a ficar unidos ao Pai, através da
oração (Mc 1, 35). Uma atitude muito comum em Jesus é a oração. Às vezes
ele deixava a multidão e se punha em oração. A ação não dispensa a oração e
nem a oração dispensa a ação. Fé sem obras é morta (Tgo 2, 14). [...] A
oração é assumir a vida que estou levando. É ver se essa vida está de acordo
com o projeto de Deus. Oração é contemplar Deus na realidade. Não
podemos reduzir a oração a uma simples conscientização. Fé e vida devem se
misturar. Não podemos cair na tentação de batizar o ativismo como oração. O
animador de comunidade e a própria comunidade que não fertilizarem seus
trabalhos na intimidade com o Pai, não terão forças para fazer a libertação.
(A Caminhada de Jesus, 1985: 8, grifo da liderança).

Entretanto, assumir um serviço concreto e reforçar a dimensão comunitária da fé


não é visto por todos como uma responsabilidade da Igreja.
Hoje muita gente não aceita a Igreja lutar contra as divisões da sociedade.
Para esse tipo de gente a Igreja não tem nada a ver com estas coisas. Mas,
apesar de toda essa oposição, a Igreja vai seguindo sua caminhada de estar ao
lado do mais sofrido. [...] Quando a Igreja não se orienta pelos clamores dos
sofridos ela perde o rumo do Reino de Deus. A Igreja não tem planos prontos
para acabar com as divisões. Nem responde aos clamores através de “simples
milagres” como fazem alguns por aí. (A Caminhada de Jesus, 1985: 14-15,
grifo da liderança).

O trabalho da Igreja começa através de uma convocação. Uma chamada do


povo para se unir e se organizar. Para a Igreja é o próprio povo iluminado
41

pela Palavra de Deus é que vai encontrando soluções para seus problemas.
Mais importante do que percorrer o caminho é fazer o caminho. No caminhar
se faz o caminho. (A Caminhada de Jesus, 1985: 14-15, grifo da liderança).

Essa ênfase dada à relação entre “fé e vida” ainda é muito forte no Movimento,
como eu observei durante o CF 2018. Entre as muitas falas de João Resende sobre o
testemunho está a seguinte “Jesus denuncia a diferença entre lei e vida, entre fé e
prática, por isso que ele diz ó os fariseus tão com uma prática errada. Fé dentro do
templo e quando vai pra fora o trem fede. Não tem coerência entre fé e vida.” (João
Resende, CF 2018). O curso esteve sempre recheado com questionamentos reflexivos
com relação à prática cotidiana de cada fiel, sobre sua própria “caminhada” como
“Como estão as paredes da sua igreja?”, “Passa a mão no rosto e vê se tem máscara”.
A canção Povo Reunido, de Francisco J. Mendes, presente no Livreto Cantando
a Igualdade traz à baila a importância da relação entre fé e vida.
2. Queremos amar e queremos viver, / nós vamos mudar o nosso proceder. /
Cristão é aquele que vive na luz, / e em todo lugar testemunha Jesus. 3. Se
rezamos sempre e com devoção, e não vemos o Cristo que sofre no irmão, /
não vamos dizer que nós somos cristãos, /se em nossas palavras não houver
ação. (Cantando a Igualdade, 1988: 04).

Este trecho da canção mostra claramente que o cebista tem um “novo jeito de ser
cristão” que enfatiza o peso da ação em detrimento do peso da oração verbal. O “novo
modo de ser Igreja” é pautado na ação, uma ação moral que representa uma oração
prática. De acordo com Mariano (2011), o engajamento na vida de comunidade,
assumindo responsabilidades, está entre os eixos centrais do Movimento da Boa Nova.
A partir do aprofundamento feito nos cursos e encontros de formação, a
pessoa deve enraizar-se em sua comunidade assumindo um serviço concreto
como um desdobramento de sua fé. Com isso visa-se também a superação do
individualismo e o reforço da dimensão comunitária da fé. (Mariano, 2011:
153).

Há uma fronteira ideológica sobre “o que é ser cristão” que implica em


responsabilidades e ação junto à sociedade. O senso de ter uma “missão” e firmar sua
“conversão” frente aos outros fiéis e à comunidade através do “testemunho” fortifica a
noção de identidade pela diferença em relação aos grupos mais próximos. A rede de
lideranças a quem dediquei minha atenção nesta pesquisa, está unida por experiências
semelhantes, embora subjetivamente absorvidas de formas distintas, guiadas por uma
moral religiosa que, mesclada à missão de anunciar a Boa Nova na fala e na ação,
aprendeu estratégias de organização de atividades e eventos, de comunicação e de
comportamento.
42

1.2. O saber fazer aprendido no Mobon/Ceb’s


Já sabemos que os cursos do Mobon têm por objetivo o anúncio da Boa Nova e
para tanto, forma lideranças religiosas leigas para que possam transmitir a mensagem de
Jesus e criar comunidades onde seriam plantadas a semente de um “novo céu, uma nova
Terra”. Assim sendo, o foco desta subseção está no que chamo de saber fazer
aprendido. Este termo se refere à um conjunto de técnicas, conhecimentos e saberes que
foram aprendidos pelas lideranças religiosas durante suas experiências nos cursos do
Mobon, bem como na vivência cotidiana nas Ceb’s e as atividades proporcionadas por
essa rede social. Ao fazê-lo, não pretendo afirmar que tais eram saberes exclusivos ou
uma inovação do Movimento, mas sim que as experiências de interações foram aos
poucos sistematizadas e aplicadas numa espécie de bricolage (Lévi-Strauss, 1989)
metodológica que foi e ainda é transmitida não somente nos cursos, mas também de
geração para geração familiar dentro das comunidades.
Para fins analíticos segmentei o saber fazer em três conjuntos de estratégias
aprendidas com a finalidade de “anunciar a Boa Nova e testemunhar o reino de Deus”, a
saber: o organizacional; o comunicativo; e o comportamental.

1.2.1 Saberes organizacionais


De acordo com os missionários responsáveis pelo Movimento19, Alípio Jacinto e
João Resende, ao longo das vivências foram percebendo e desenvolvendo habilidades,
aprendendo com os fiéis durante as interações e, a partir disso, estabeleceram um
método de formação de lideranças, que se constituía num processo tanto pedagógico
como organizacional. Como líderes responsáveis a transmitirem os conhecimentos
bíblico-religiosos, as lideranças eram ensinadas a organizar as atividades e cursos, falar
em público com segurança, avaliar coletivamente os cursos que ministraram, ouvir mais
do que falar e adequar o conteúdo. Entretanto, como já salientado, tais cursos eram
diferenciados, já voltados para um público específico, os trabalhadores rurais de
diferentes comunidades. Assim, as lideranças leigas foram ensinadas a utilizar o método
“Ver – Julgar – Agir”20 nos trabalhos de formação, com o foco nos problemas
cotidianos da comunidade local e as possíveis soluções construídas pelos próprios

19
Atualmente o Mobon conta também com o missionário Denilson Mariano.
20
O método “Ver-Julgar-Agir” é atribuído à Joseph Léon Cardijn, fundador da Juventude Operária Cristã
(JOC) (cf. Castelhano, 2017).
43

participantes dos cursos. Tal método está vinculado à Encíclica Mater et Magistra
publicada em 15 de maio de 1961, no septuagésimo aniversário da encíclica Rerum
Novarum e no terceiro ano do pontificado de João XXIII.
Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-
se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à
luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e
deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo
e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que
habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: "ver, julgar e agir".
(Igreja Católica. Papa (1958-1963: João XXIII), 1961: 235).

Quando questionado por Ramon Teixeira sobre o Mobon de antes e o Mobon de


hoje, Alípio compreendeu o questionamento como se tratando do Mape21 como o
Mobon de antes, o Mobon da polêmica e dos irmãos em cristo separados e o Mobon de
hoje como o relacionado ao Concílio Vaticano II, o Mobon do Papa João XXIII.
Ah bão, você falou Mobon de antes... eu falei. Mobon de antes é muito ligado
ainda... no começo... à, ao, à questão da polêmica, né. [Ramon: da polêmica,
do MAPE...] mas aí a partir de 67, o Mobon de hoje. O Mobon do João
XXIII, né; nossos irmãos separados... Então hoje, o Mobon de hoje, né. Então
hoje nós tamo mostrando a importância do nosso trabalho, não se toca em
protestante, não interessa saber. Nem eles interessam em discutir conosco,
não tem, não existe isso mais. [...] O Mobon de hoje é o Mobon da mensagem
ligado com o Vaticano II, com, agora... o Papa Francisco e lá vamos pra
frente. (Alípio Jacinto, entrevista concedida à Ramon Teixeira em
08.02.2018)

Os cursos do Mobon de hoje, como o Pré-Boa Nova e Boa Nova, treinavam


lideranças leigas para ministrar cursos que aos poucos levava o povo a se organizar em
comunidades
Aqui não se trata de cursinhos que dão diplomas ou certificados. Trata-se de
cursinhos periódicos que animam e fortificam a caminhada da comunidade e,
aos poucos, levam o povo a se organizar em sua classe social (agricultores,
operários, etc). Naturalmente o povo vai se organizando oficialmente em
associações para ajuda mútua e em sindicatos combativos, os quais vão
lutando por sua real autonomia e contra peleguismos de quaisquer tipos... [...]
esses cursinhos são ministrados por leigos treinados para esse serviço. Trata-
se de leigos ocupados em sua profissão e que se dedicam ao serviço
comunitário na base da gratuidade. Leigos que falam a linguagem própria de
leigos. Também esses cursinhos são ministrados na própria comunidade. [...]
Para os primeiros cursinhos (de base) são convidados todos que o desejarem.
Isso para que se possa fazer uma nucleação. O cursinho tem como primeiro
objetivo, formar grupos de reflexão... O cursinho de base é o anúncio de um
tema que convoca o pessoal para a vida cristã e apostólica em grupos. Para
isso, dentro desses cursinhos tudo gira em torno de grupos e plenários. Isso já
é o começo de uma caminhada. Caso na comunidade já existam grupos de
reflexão, no cursinho se faz uma revisão e um treinamento para que os grupos
se reforcem mais. [...] Pelo que se vê, tudo isso se faz a modo de iniciação
para a dinâmica da comunidade. O cursinho de base inaugura na comunidade
uma espécie de curso constante: grupos de reflexão toda semana; plenários

21
Para saber mais sobre as continuidades e descontinuidades entre o Mape e o Mobon, ver Araújo (1999),
Gomes e Andrade (2011) e Oliveira (2012).
44

dos grupos todos os meses... E sempre dirigidos por leigos, repetimos.


(Costa, [19-]: 02)

Como enfatizado por Alípio, os cursos do Mobon não conferem certificado ao


participante, o que difere estes cursos de outro tipo de formação. A formação no Mobon
é pautada na prática e vida cotidiana, de nada adiantaria um certificado, ou mesmo uma
oração, sem a conduta de vida de acordo com o “modo de ser cristão”.
Os grupos de reflexão são uma catequese para adultos, são formados de “pessoas
variadas e de várias idades” e “fazem da Bíblia o ‘farolete’ da caminhada”. São grupos
apostólicos, uma “escola de missionários leigos” que, aos poucos, “vão adquirindo o
desejo de partilha”.
De acordo com Kerandel e Del Canto (1977: 31) “a organização de equipes
(grupos) de reflexão foi considerada como um dos meios mais práticos para continuar o
trabalho de evangelização iniciado”. A reunião dos grupos de reflexão de uma
comunidade é feita mensalmente no Plenário, onde se partilham as descobertas dos
grupos.
Na caminhada da comunidade, dentro dessa dinâmica (grupos de reflexão e
plenários), as lideranças vão surgindo. Esses líderes populares vão
despontando e, como foi dito, começa a “pedir marcha”. Começam a pedir
mais cursos, mais treinamentos para enfrentarem as novas realidades (Costa,
[19-]: 03).

Em setembro de 1972, foi oferecido no município de Iapu o Curso de


Aprofundamento e Revisão22, em que se enfatizou a importância do uso de um método,
pelos missionários, para se comunicar a mensagem durante os Cursos de Base. Assim,
salientam a importância de estratégias organizacionais, comunicativas e
comportamentais a serem seguidas. Além de condicionar o assunto, as lideranças leigas
são ensinadas a organizar e distribuir bem o assunto, percebendo de antemão assuntos
essenciais dos secundários, dado o tempo disponível para trabalhar o conteúdo. Essa
organização é importante para que todos tenham tempo de participar, mesmo os mais
tímidos. O curso deve ser pensado e preparado com antecedência. “Não dizer que o
tempo não está dando. Que teria muito a dizer, mas infelizmente, etc. Isto não traz
nenhum resultado prático.” (1972: 08).
Frente à dificuldade de alcançar a reflexão de um grupo sobre um texto de
maneira organizada num período determinado, eram dados exemplos de como
introduzir um tema, que seria trabalhado no texto a ser lido anteriormente à leitura. Uma

22
Material disponibilizado por Cora Furtado de Melo.
45

característica organizacional presente em muitos dos cursos desde a década de 1970 e


que segue semelhante no Curso da Campanha da Fraternidade, em que eu estive
presente em 2018, diz respeito à segmentação do grande grupo em grupos menores para
facilitar a discussão de diferentes temas e a posterior apresentação da discussão feita em
cada grupo menor para todo o grande grupo.
Além dessa dinâmica de organização dos trabalhos, há uma organização anterior
da linha de reflexão a ser seguida com relação ao conteúdo a ser discutido nos grupos.
Os livretos são divididos em temas, seguidos de uma “Chave de leitura” que são
questionamentos sobre o texto bíblico a ser lido. Após a leitura realizada em cada grupo,
seguiram-se questionamentos que provocaram a reflexão sobre elementos centrais do
texto, bem como o que a “Palavra de Deus” recomenda para a conduta do fiel. Em
seguida houve uma pergunta de caráter reflexivo, em que a resposta não poderia ser
encontrada no texto bíblico, mas sim relacionada com a realidade atual, ao que João
Resende chamou de “uma pergunta mais individual, cada um vai ter uma resposta”.
Logo abaixo havia um texto que relaciona o tema da “chave bíblica” com problemas
sociais, trazendo dados estatísticos e citando documentos. A parte final traz um
“Aprofundamento” que nada mais é que uma convocação para encontrar uma solução
para um problema identificado a nível local. Como por exemplo “O que podemos fazer,
de imediato, para superar a violência doméstica e a violência no trânsito? Dê exemplos
concretos.” (Campanha da Fraternidade, 2018: 20).
Embora haja variações com relação ao número de perguntas e de “chave de
leitura”, pode-se perceber, através dos materiais de Cora de Melo Furtado e da
documentação descritiva feita pelo Padre Gwenael23, é mantida uma estrutura geral de
um texto bíblico, questionamentos relacionados à realidade, um texto explicativo sobre
a sociedade atual e reflexões de como problemas atuais se relacionam com a passagem
bíblica, ressaltando a importância de não se cometer anacronismos e saber interpretar e
transportá-la para o momento atual.
Como já evidenciado por Comerford (2003: 175), a partir de Kerandel e Del
Canto (1977):
Foram criadas então as equipes de reflexão, uma reunião plenária mensal, a
celebração da palavra semanal, a eucaristia mensal. A equipe (ou grupo) de
reflexão, seguindo o padrão proposto pelo MOBON, se compõe de 10 a 12
membros adultos (8 a 10 em outras versões) pertencentes a famílias vizinhas,

23
Em 1977, Gwenael e Luís Mario Del Canto escreveram uma avaliação dos trabalhos realizados junto
com os missionários e apresentaram tal estudo ao Instituto Pastoral do Conselho Episcopal Latino
Americano (CELAM).
46

que se reúne uma vez por semana na casa de alguma das famílias, durante
uma hora. “Em cada equipe deve haver pelo menos alguns que tenham
participado de cursos de base, encontros de jovens, etc.”. Cada equipe deve
ter uma Bíblia e o livro “Anúncio da Boa Nova” (atualmente, empregam-se
livretos produzidos pela diocese), com temas para reflexão e perguntas para
cada reunião. A reunião segue um plano:
Abertura: oração inicial, canto, etc...
Leitura do livro “Anúncio da Boa Nova”
Reflexão sobre o texto: cada um expressa o que pareceu mais
interessante para sua vida
Reflexão sobre uma pergunta (indicada). Ao fim do debate o
secretário anota a resposta da equipe para a reunião plenária.
Rogações espontâneas
Conclusão: outros assuntos. Oração final, cantos...
Nota: na reunião o dirigente deve fazer todo o possível para que
todos os membros participem e cheguem a uma conclusão final
aceita por todos.

Esta estratégia pedagógica de trabalho é a dinâmica presente nos grupos de


reflexão, que podem ser vistos como o pequeno grupo, que se reúnem mensalmente no
Plenário, que pode ser pensado como o grande grupo, onde cada pequeno grupo expõe
as reflexões realizadas ao longo das quatro semanas de reunião mensais. Dada a
frequência semanal das reuniões dos grupos de reflexão nas comunidades, esse tipo de
organização, ou seja, esses saberes organizacionais foram sendo incorporado à vida das
lideranças comunitárias. O entranhamento desta metodologia organizacional no
cotidiano leva a tomada de decisões coletivas o que caracterizaria uma representação
direta nas decisões tomadas, após a reunião com o grupo. Assim, a cada desafio ou
impasse, todos deveriam ser consultados e a decisão tomada após a reflexão e debate de
todo o grupo.
De acordo com Kerandel e Del Canto, os fiéis da comunidade também se
organizavam para realizar a Celebração da Palavra aos domingos e mensalmente, onde
já havia sido realizado um curso de base, se iniciou a Eucaristia mensal. Durante a
missa da Eucaristia mensal, afirma Kerandel e Del canto (1977)
[...] ao iniciar a missa o sacerdote encontrava uma folhinha com os nomes
dos que participariam: um faria a introdução da missa, outro, da leitura,
outros: a leitura, as reflexões, os pedidos (apenas a conclusão era feita pelo
sacerdote), a introdução do “Pai Nosso” e, as vezes, alguma ação de graças e
os avisos gerais (Kerandel e Del canto, 1977: 34).

Esse relato deixa clara a capacidade de organização adquirida pelas lideranças


que passaram pelo curso de base e foram incentivadas a seguirem no trabalho de
evangelização iniciado. A celebração aos domingos era organizada e realizada pelos
próprios fiéis da comunidade, assim como a organização da Eucaristia também era
realizada pelas lideranças religiosas, embora nessa ocasião a presença do sacerdote
47

fosse imprescindível. Ao iniciar a missa, o sacerdote era informado, através uma folha
com os nomes de quem iria participar da missa, ou seja, toda a organização, a
conciliação de potenciais conflitos na atribuição de atividades, já havia sido sanada,
cabendo ao clérigo apenas conduzir o que já estava estruturado.
A própria organização da comunidade, já que havia nesse meio religioso uma
ênfase na construção das capelas para se fazer as reuniões das comunidades, possuía um
formato burocrático mínimo (coordenador, presidente, secretário e tesoureiro) que,
posteriormente, foi reproduzido na organização do sindicato. Ou seja, já havia uma
experiência na dimensão de gestão, inicialmente da própria comunidade, como recolher
recursos, apesar de já haver o festeiro que recolhe os recursos em tempos de festa, nas
comunidades se trouxe uma dimensão minimamente burocrática no sentido de ter uma
organização com registros, com cadernos, registro de atividades, de custos, de gastos,
contribuições que também foram experiências desse período que familiarizou esse
grupo com esse tipo de procedimento.
Nesse sentido, há também uma outra dimensão deste aprendizado que passa pela
noção de relatorias, a prática de anotar para levar o curso para a comunidade. O próprio
material que trabalho nesta pesquisa, o material de Cora Furtado de Melo, é uma espécie
de exemplo de dedicadas anotações e expressões de sentimentos. Uma valorização do
anotar para depois repassar aos outros.
No que tange à preparação das lideranças leigas para ministrar cursos, os
missionários realizavam um curso de preparação, para auxiliar no conteúdo, na
metodologia e na performance necessária.
[...] a gente fazia curso no mínimo 45 dias antes, pra depois passar pras
comunidades. Nesses 45 dias, é procê ter prazo de estudar, sabe? E todo
cursinho que a gente trabalhava era tirado de um livro da Bíblia, Rute,
profeta Jonas, né? Profeta Isaias, apostolo Paulo, né? Então era… o Alípio,
mais o João Resende e sua equipe, tirava dentro da Bíblia um cursinho, eram
cursos bíblico só que era recheado com a vida social tinha que casar as duas
coisas e tocar né, mas foi muito bom! Todo lugar que eu chego aí, o pessoal
que me conhecia [...] (João Clemente, primeira geração, relato, 26.07.16).

[...] o Resende preparava a gente tão bem, que chegou lá, as professoras
depois admitiram que nós tava muito bem preparado [...] falar de história
para professores e nós de primário, eu não, tinha nem entrado em sala de
aula, mas graças a Deus, justamente, pela preparação é boa, do Boa Nova, do
curso a gente conseguia passar. Claro que uns mais, talvez com facilidade e
domínio de falar, o dom de falar, e os outros menos, no meu caso graças a
Deus conseguimos lá e vim muito satisfeito daquela época. (Walmir Soares,
segunda geração, relato, 23.07.2016).

[...] E nós não era preparado só para dar o cursinho, nos era como se fosse um
professor, nos exercia o papel de professor e pra aprender com a comunidade,
mas a gente tinha bagagem pra qualquer um que fizesse uma pergunta pra
48

gente, a gente tinha bagagem, tanto de vida, como de aprendizado dentro dos
cursos, porque nos estudava [...] (João Clemente, primeira geração, relato,
26.07.16.)

[...] Isso era interessante porque a gente ia pro Mobon, né, e ficava lá as
vezes, uma semana, três dias ou então ia pra, pra Eugenópolis, ficava com o
João Resende, dois dias nos preparando, era... era duas datas especificas, era
Natal e na Semana Santa e a gente depois saia em duplas de dois em dois nas
comunidades, reproduzindo aqueles cursinho com aquele material e ai
interessante que a gente não dava conta disso, da dimensão disso... (Antônio
Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018 ).

Como pode ser visto acima, após a preparação, havia uma estratégia de envio de
lideranças para ministrar os cursos. Tais cursos eram sempre ministrados em duplas, um
mais experiente e um novato, sendo que o foco estava na formação e segurança do
novato, que teria a prioridade na exposição, ou mesmo seria “forçado” a falar.
Entretanto, a presença do mais experiente teria a função de passar confiança para o
iniciando, auxiliar em questões técnicas, dada a experiência, e sanar dúvidas que o
novato ainda não se sentisse à vontade para esclarecer.
[...] inclusive era dupla que ia. Teve um compadre meu que foi comigo,
primeira vez que ele foi e minha responsabilidade era maior ainda, porque eu
já tinha mais algum tempo de estrada e ele a primeira vez, mas nós saímos
muito bem [...] ali um ajuda o outro. E na preparação também alguma coisa
que a gente tá esquecendo o que poderia falar um dá um toque ou… então a
dupla ajuda demais da conta (Walmir Soares, segunda geração, relato,
23.07.2016).

E sempre mandava um que não era tão desenvolvido como nós já estávamos
(João Clemente, primeira geração, relato, 26.07.16).

Podemos dizer, então, que a experiência nos grupos de reflexão, nos plenários,
nas celebrações semanais e na Eucaristia mensal, bem como ministrar cursos em
diferentes comunidades potencializou um saber organizar eventos e atividades sociais
que foi de caráter elementar para as atividades subsequentes dessas lideranças que
passaram pelo Mobon/Ceb’s. Comerford (2001: 371) chama atenção para “a força
simbólica da imagem da estrada associada à ideia de ‘missão’ no seu sentido
propriamente religioso e cristianizador, com seu componente de sacrifício e sobretudo
de prova de coragem humana e de Graça divina.”
Entretanto, os saberes não se esgotam na organização, um cuidado especial é
dado também à comunicação durante os cursos, que abrange a fala, o gestual, o canto, a
dança, a arte do falar em público. Por outro lado, o performar um modo de vida
exemplar no cotidiano é de importância central para as lideranças em questão.
49

1.2.2 Saberes comunicacionais


Antes de iniciar a questão da comunicação propriamente dita, seria conveniente
frisar que as lideranças não chegaram ali prontas para aprender o conteúdo para ser
transmitido. Vale lembrar que estamos falando de trabalhadores rurais e de uma Igreja
Católica que apenas iniciava o processo de abertura para a participação dos fiéis. Nesse
sentido, os missionários, já de posse de um habitus militante (Oliveira, 2012), se
utilizam de estratégias a fim de ensinar os fiéis a terem domínio para falar em público
com propriedade, motivação e confiança.
A fala de maneira motivadora e confiante era uma temática enfatizada nos
cursos e atividades do Mobon. Isto porque o aprendizado de como “falar em público”
está imbricado na formação da liderança. Esse é um temor constante nos relatos de
muitas dessas lideranças, o medo quando “do nada” foi chamado para ministrar um
curso. Esse chamado não dava opção de escolha ao fiel, exatamente por saber da
timidez e medo no novo, diziam “você vai lá passar o curso” e dado o poder simbólico
dos missionários, o novato acatava a decisão e iniciava o processo de habilidade da fala.
Essa decisão aparentemente “forçada” e hierárquica, na realidade, fazia parte de uma
estratégia de formação mais que política. Havia a compreensão do temor do fiel em se
expor e a decisão “forçada” mostrava a ele que ele era capaz de se comunicar tanto
quanto os próprios missionários, assim ele poderia cumprir sua missão de “passar a
palavra de Deus”.
Pude presenciar e sentir na pele a estratégia de se sentir coagido a se manifestar
durante minha participação no CF 2018. Fui apresentada como pesquisadora da
universidade. Quando da divisão dos grupos para discutir sobre temas específicos,
decidi interferir o mínimo possível na discussão. Compreendo que minha presença já
afetava o que diziam e como diziam, mas optei por não partilhar minha forma de ver o
mundo naquele espaço. Era nítida como minha posição de universitária, ou de novata no
Movimento, afetava o discurso dos fiéis. As falas eram direcionadas para mim que me
restringia a acenar afirmativamente com a cabeça e olhos e sorrir, numa comunicação
não verbal de afinidade com o que estava sendo exposto. Ao final da discussão, é
necessário escolher algum membro do grupo para apresentar o que foi discutido para o
público. Nesse momento, enquanto a maioria se esquivava da responsabilidade uma
liderança indicou a “universitária” que já está acostumada a falar. Subitamente me veio
à mente a velha desculpa de “eu sou muito tímida, morro de vergonha de falar”, e nesse
momento pude sentir o que várias lideranças já me haviam reportado, a timidez deveria
50

ser combatida. Nesse enquadramento a timidez nunca seria uma desculpa, mas sim um
incentivo para que o tímido fosse o responsável pela fala pública. O fiel é sempre
incentivado a falar em público, e esse incentivo pode ser visto de uma forma insistente.
A mesma liderança que me indicou disse que isso seria bom para mim, para que eu
pudesse perder o medo e a vergonha e apresentar meus trabalhos na universidade.
Outra decisão enfática de iniciar o novato na fala, ao menos o novato naquele
grupo, aconteceu no último dia de curso, que foi ao mesmo tempo emocionante e
constrangedor. João Resende pediu “aos pesquisadores”, eu e Ramon que fizéssemos a
benção final. Eu não sabia como fazer uma benção final e Ramon também sussurrava
que não sabia como fazê-la com cara assustada. Isso nos faz compreender o que as
lideranças quando estavam sendo iniciadas passavam quando diziam que “passavam
aperto” quando eram colocados para falar em público. Isto porque fomos pegos de
surpresa. Não havia sido feita uma conversa anterior concordando com essa atribuição
de responsabilidade, mesmo porque, em sã consciência eu nunca aceitaria fazer a
benção final, que eu aprendi ser tão sagrada. A estratégia de fazer falar em público
como formação política inclui ser colocado em situações surpreendentes às quais seria
impossível recusar. Quando contamos empolgados e ainda constrangidos as outras
pessoas da casa com quem partilhamos os dias anteriores ao curso, nos perguntaram “e
ele não tinha falado nada com vocês não?” e diante de nossa resposta negativa disseram
“é, João faz isso mesmo” e todos rimos.
Sentir e experienciar o que muitas lideranças me haviam reportado foi
extremamente significativo para mim. No episódio da benção final, Ramon iniciou com
uma fala, anunciou que eu leria uma passagem bíblica e seguiu com a reflexão sobre a
passagem, no entanto, no meio da reflexão ele começou a agradecer, se emocionou, eu
me emocionei, todos nos emocionamos e ao final recebemos os cumprimentos em filas,
para nos agradecer pela presença e nos parabenizar pelo interesse de pesquisa. Sentia-
me numa posição meio clerical, já que o outro momento em que isso havia acontecido
foi ao fim da missa celebrada pelo padre. O acolhimento do grupo e a forma calorosa
como nós cumprimentaram foi proporcionada pela atividade de fala relativamente
imposta, dada a situação. Realmente, uma exposição não consensual seguida do
acolhimento posterior próprio das lideranças leigas proporciona uma sensação de
pertencimento, de acolhida, de “somos todos irmãos” e uma desenvoltura e desinibição
que aprofunda a sociabilidade.
51

Desenvolvida esta habilidade na liderança, a questão passa a ser como se deveria


proceder para que a “palavra de Deus” alcançasse outros fiéis. Vale destacar que para
além da importância religiosa da Bíblia, o objeto representa também o início do
Movimento da Boa Nova, como uma forma diferenciada de “ser Igreja”. Como nos
conta Alípio Jacinto:
O Mobon nasceu com a bíblia na mão. Movimento da Boa Nova, o dos
Pioneiros primeiro, né. Nasceu pra esclarecer pro povo que a bíblia... que a
Igreja Católica ensina a verdade de acordo com a bíblia. Nasceu por isso. Aí
veio a polêmica, veio tudo aquilo. Então, o nosso movimento... até hoje eu
falo assim oh "Nós nascemos com a Bíblia na mão" e a Bíblia na mão... igual
fala para os carismáticos, por exemplo, que tem um sistema diferente do
nosso, mas, as portas estão abertas pra eles. Muitas vezes os carismáticos
vêm pra cá ou eu fui lá nos Estados Unidos por exemplo, dei encontro lá. É
para Movimento Carismático, né, mas eles não têm esse sistema nosso. O
nosso sistema o que que é? É passar a mensagem bíblica... a mensagem
bíblica...esse que é o nosso, é o nosso... [...] O nosso papel... é... o Mobon,
passar a mensagem, esclarecer a mensagem, ai vem a cantoria, vem toda a
animação paroquial, mas sempre tendo base na mensagem... [...] Igual eu
falei com você, Jesus quando começou a pregar... olha como ele falou: "O
Reino de Deus está próximo, fazei penitência e crede no Evangelho". Então...
começou assim. Assim que Ele começou. Você, durante a Bíblia toda, você
vai vendo Jesus ou... Moisés, tudo mostrando o caminho de Deus. Então
nosso trabalho é mostrar para o povo o caminho de Deus segundo inspiração
da escritura. (Alípio Jacinto, entrevista 24 concedida à Ramon Teixeira em
08.02.2018).

Para que a mensagem contida na Bíblia se apresentasse compreensível, o


processo de comunicação inicial entre missionários e trabalhadores rurais, se baseava
numa linguagem simbólica que traziam elementos da vida cotidiana dos trabalhadores
rurais, afim de potencializar a democratização da informação (Oliveira, 2010). Ao se
descobrir os símbolos e comparações, os missionários puderam adentrar à realidade do
povo para que a prática comunicativa fosse munida de sentido de acordo com os
costumes locais, em uma comunicação que se fizesse entender, a partir da realidade
daqueles que aprendem. De acordo com uma ex-liderança religiosa e política de Martins
Soares: “O Alípio, mais o João Resende e sua equipe, tirava dentro da Bíblia um
cursinho, eram cursos bíblicos, só que era recheado com a vida social, tinha que casar as
duas coisas” (João Clemente, primeira geração, relato, 26.07.16) Estabelecendo-se,
assim, uma comunicação entre dois universos culturalmente diferentes, por meio da
utilização dos símbolos, comparações e formas das falas.
O uso da metáfora como uma linguagem simbólica compreensível, sugere que o
modelo educacional que parte do concreto, moldando-se ao público específico, marcou
24
Chamo de entrevista por seguir uma estrutura de perguntas e respostas, com perguntas já formuladas,
diferentemente do que chamo de relato, em que forneço uma linha temática de interesse e o interlocutor
se organiza para narrar sua experiência da forma como se sente mais à vontade.
52

a trajetória dessas lideranças, sendo frequente a representação do Mobon como uma


“escola”, “uma faculdade”. Não somente o relato dos cursos como um ponto de inflexão
na vida da liderança, mas também a forma como se comunicam quando se refere aos
conhecimentos ensinados trazendo de forma recorrente as metáforas para explicar as
razões de suas ações ou elementos importantes nos cursos.
De acordo com João Resende
[...] o que eu tinha visto na teologia, eu coloquei num moinho e fui triturando
num jeito mais popular e no começo eu ficava pensando, e quando as
comparações acabarem, o que eu vou arrumar? Porque o forte eram as
comparações, mas agora a gente percebe que isso não acaba, porque uma
mesma comparação você pode usar diversos ângulos é uma mina tão grande
que a gente vê que não acaba e no contato com o pessoal a gente vai
descobrindo coisas novas (João Resende, entrevista concedida à Fabrício
Oliveira, novembro de 2009).

Em entrevista concedida a Oliveira (2012) João Resende argumenta que “no


contato com o pessoal a gente vai descobrindo coisas novas”. Assim, Oliveira (2012:
108) argumenta que “há um processo relacional em que o missionário acaba aprendendo
novos ‘ângulos’, possibilidades e argumentos, caros ao universo dos leigos”. Aqui está
também presente um ensino dialógico (Freire, 2017), em que ambos se formem e re-
formem, e se parta da realidade do educando para concretizar informações abstratas.
Essa forma de comunicação simbólica facilita a compreensão por fiéis com baixa
escolaridade formal e proporciona maior interação entre educando e educador.
Sobre o condicionar do assunto, a instrução diz respeito a falar de acordo com os
ouvintes, procurar conhecer gírias do local e “buscar exemplo do lugar. Só em último
caso vou falar de mar aqui em Minas” (Curso de Aprofundamento, 1972: 08). Buscar,
então, dominar o conteúdo sem, entretanto, querer ser o dono da verdade, “a
simplicidade cabe em qualquer lugar” (Curso de Aprofundamento, 1972: 09), devendo-
se estabelecer a confiança não tendo medo de dizer que não está por dentro de
determinado assunto.
De acordo com Resende (2011) um dos pontos marcantes da Boa Nova é o uso
da linguagem simbólica através de comparações.
Esse tipo de linguagem leva as pessoas a se sentirem em casa. Sentem que
seus afazeres e seus ditos populares estão cheios de sabedoria e que ajudam
muito na vida de comunidade. Isto torna a comunicação mais agradável,
compreensível, mais direta, mais educativa e mais transformadora. (Resende,
2011: 150).

Ao buscar uma linguagem clara para o trabalhador rural, os grupos de reflexão


estimulados pelo Mobon ganharam um caráter popular potencializando o sentimento de
53

pertencimento nos fiéis, de fazerem parte da Igreja Católica, o que difere de outros
cursos anteriormente propostos por esta instituição. Esse sentimento fica evidente na
fala de Romualdo Alves:
Então, ele [João Resende] veio trazendo essas ideias, falou olha em muitos
lugares já tem o Movimento da Boa Nova e, através de um grupinho de
reflexão... porque a Igreja tinha outros encontros, [...] nesses encontros eles
chamavam só aqueles que nois chama de cabeçudo, tubarão, homi rico, está
entendendo? (Romualdo Alves, primeira geração, relato, 24.07.2016).

Os grupos de reflexão, por serem pensados para os trabalhadores rurais e


estimularem a reflexão, a fala e a ação de liderança, potencializaram a percepção de “ser
capaz” nesses indivíduos. “Uma preocupação de todos é não ficar falando ‘em termos
de cúpula’ arriscando-se a desligar-se da base.” (Costa, [19-]: 03). Essa formação
popular que estimula o sentimento de pertencimento, dando abertura para uma maior
participação e reflexão sobre si e sobre o ambiente em que se vive, potencializou a
capacidade de organização enquanto comunidade, a possibilidade de mudar não
somente a sua história, mas a forma como eram vistos pelos outros. Dito de outro modo,
as categorias linguísticas são categorias de construção de mundo. É a partir da produção
da metáfora e da metonímia que se constrói a possibilidade da transformação, onde se
constrói o código, o engajamento, o sentimento de pertencimento. É na produção da
estética, onde o significante se descola do significado, que surge a possibilidade da
construção do novo.
A formação das lideranças não ocorre somente através do conteúdo passado nos
cursos através de metáforas e de uma linguagem referencial, mas também se dá por uma
linguagem poética sempre referenciada enfaticamente à João Resende. Assim,
argumento que o significado da mensagem também está na poética, na estética, a
própria forma já é conteúdo e, por conseguinte, já produz um efeito por si só (Tambiah,
1985; Bauman e Briggs, 2006; Bloch, 1989). “A primeira preocupação não é tanto com
o conteúdo. O método já é o conteúdo inicial. O importante é que as pessoas vão se
encontrando, começando uma experiência de comunidade, através de um
relacionamento pessoal” (Resende, 2011: 194). Não significa dizer que a função
referencial não estava presente nas narrativas dos cursos. O modelo das ações cotidianas
dos líderes deveria ser transmitido oralmente via cursos, entretanto a própria descrição
das ações de Jesus Cristo – como no livreto A Caminhada de Jesus – já se apresentava
como uma prescrição de agência (Bourdieu, 1996). A própria função referencial da
54

linguagem dizia respeito, muitas vezes, a importância da utilização das “parábolas”, ou


seja, do “método de Cristo”.
Também a manutenção do status de líder, exigia a coerência a um imperativo
moral religioso. Para auxiliar nessa formação, havia cursos específicos para aqueles que
teriam funções específicas. Um dos cursos com objetivo de formar lideranças era o
Curso de Coordenador de Comunidade, que tinha prescrições explícitas sobre a conduta
do coordenador, como pode ser visto abaixo com base nos manuscritos de Cora de Melo
Furtado, referente ao curso ministrado em 1982:

1. Seja você mesmo.


2. Não seja covarde.
3. Não atrapalhe a Comunidade.
4. Vendo que não dá, peça para sair.
5. Não esconde seu dom.
6. Não seja comodista.
7. Procure não cansar a Comunidade.
8. Seja prudente no falar.
9. Não dê ouvidos à fofoca. (Manuscrito de Cora de Melo Furtado, Curso de
Coordenador de Comunidade, 1982).

Ao analisar o conteúdo deste curso, Oliveira (2012) sugere que


As características que desejam aos líderes comunitários são fundamentais
para o exercício de liderança, que extrapola o campo religioso, pois podem se
constituir como princípios de ação política e civilidade. Algumas dessas
características são válidas para uma série de cargos públicos e fundamentais
para que uma liderança se sustente enquanto tal [...] (Oliveira, 2012: 103).

Dito de outro modo, os saberes comunicacionais aprendidos pela liderança


religiosa, poderia ser aplicado a qualquer outro tipo de liderança, como ocorreu com
muitas dessas lideranças religiosas.
O que me parece mais interessante não é o significado literal das mensagens em
si, mas a forma como eram transmitidas. Algumas lideranças leigas me garantiram que
eu só compreenderia o que eles queriam dizer ao me contar sobre a performance de João
Resende, quando eu participasse de um curso em que ele ministrasse. A experiência em
participar da CF 2018, ministrado por este missionário, me permitiu compreender
melhor sobre a função poética das metáforas. A entonação, o gestual e a expressão
corporal estavam evidentes na maneira como erguem a Bíblia com uma de suas mãos
enquanto embalam seus corpos de um lado para o outro e cantam “sua palavra é/luz no
meu caminho/luz no meu caminho meu Deus/ sua palavra é”. Esse canto é a
“proclamação de Deus”, que, como explicado por João Resende
55

[...] olha, proclamar é um ato solene, é um ato alegre, então suponha que a
gente fala ‘vamo proclamar’ aí canta assim olhando pra baixo, olhando de
banda, aí não tá proclamando, né. Então a proclamação ela é uma atitude de
alegria, uma atitude festiva e também o corpo precisa de acompanhar, não
deixar ele duro (João Resende, Curso da Campanha da Fraternidade, 2018).

Ou seja, o ato de proclamar envolve mais que proferir palavras num canto,
envolve todo o corpo e seus movimentos integrados nessa festividade. Não só o
conteúdo da letra da canção dizia sobre a “palavra de Deus” orientar a ação no mundo,
no caminho a ser seguido. A “palavra de Deus” está presente no “livro sagrado” que
estava sendo exaltado nas mãos do fiel em direção ao céu, ao sagrado. A tônica da
“Bíblia na mão” do Mobon tão presente nos registros históricos e na fala do missionário
coordenador Alípio Jacinto, foi performada por João Resende e os fiéis presentes no
salão. A forma de comunicação para além da fala também se expressa com o pedido do
missionário para que fizéssemos um silêncio interior após a leitura de um trecho da
Bíblia - “chave bíblica” - para que nos acostumássemos a fazer um instante de silêncio
após leitura, já que, segundo ele, “o silêncio é uma forma de comunicação superior a
própria palavra”. Em silêncio seria, então, possível perceber qual foi a frase e/ou palavra
que mais toca a quem lê, numa maneira sensorial de sentir os ensinamentos e não
apenas reproduzi-los.
Em geral, o uso do sensorial esteve intensamente presente nas metáforas do
missionário, propiciando nova compreensão da mensagem. Ao enfatizar a importância
do “testemunho de vida” das lideranças de comunidades, o missionário pede para que
cada um levante a mão direita e em seguida a passe no rosto na direção da testa para o
queixo e perguntava “tem máscara?”. Após a experiência sensorial, seguia-se uma
explicação oral complementando o que já havia sido transmitido.
A função referencial da linguagem estava presente, mas não se sobressaia sobre
a função poética, a estética do que se dizia. Ou seja, seguindo Tambiah (1985), tratar o
ritual a partir da noção de performance nos permite recuperar a dimensão
multissensorial do ritual, compreender que o ritual não é apenas um fenômeno religioso,
mas também produz efeitos. Na fala autorizada (Bourdieu, 1996) de João Resende, a
própria ação já estava presente, nesse caso, a palavra já era a ação (Tambiah, 1985).
Tem-se uma ampliação da noção de linguagem, o gesto, a expressão facial, os
movimentos também são linguagem. Logo, o texto escrito seria uma redução dessa
linguagem.
56

Dito de outro modo, o conteúdo e o uso da metáfora enquanto uma tradução do


abstrato para o concreto da população local poderia ser reproduzida, mas não a
prosódica, o gestual, a emoção de João Resende ao performar sua fala. Por isso que o
missionário se empenha para ensinar também a poética para os “leigos”, como pude
perceber durante o CF 2018. Enfatiza a forma motivada como a mensagem do curso
deve ser passada para as comunidades, pelos coordenadores ali presentes.
Você não vai chegar aqui e comprar o material pra levar pra sua paroquia,
como um caminhão de carga. Você vai levar como se fosse um fusquinha,
um carrinho pequenininho, vai de pouco em pouco, vai levar... vai levar com
motivação. Cada um tem seu jeito, você tem que ser você mesmo, mas você
não pode chegar lá, puxar um banquinho, encostar na mesa e falar 'então
vamos ler aqui'. Pode ler o livrinho, mas tem que ter motivação, não é fingir
não, tem que ter motivação. (João Resende, Campanha da Fraternidade,
2018).

Seu foco em não fingir, remetia a sentir verdadeiramente, “não encenar, não é
um teatro”, ser autêntico, e para isso se utilizou de uma dinâmica. Se dirigiu ao público
e interagiu (Baumann e Briggs, 2006) com um senhor e disse “olha bem no olho, na
minha cara” e proferiu “Jesus Cristo disse”, apertando a mão do senhor que em seguida
respondeu “Somos todos irmãos”. Então, o missionário pede que cada um faça essa
dinâmica com os “irmãos” que estavam ao lado, sem fingir, com o coração.
Estamos diante da problemática já trabalhada por Bauman e Briggs (2006) e
Vansina (2010), qual seja, a tradução de uma lógica oral dotada de poética e contexto
para a lógica ocidental da escrita, os textos não são suficientes para transmitir os
sentimentos presentes nessa poética. Esta reflexão nos ajuda a compreender a
necessidade contrária, da tradução dos textos bíblicos escritos para a lógica oral, que
tem eficácia através da poética, da prosódica (Goody, 2010), do enquadramento
(Goffman, 2013) e da ação.
É interessante perceber neste capitulo que apesar das normas prescritas e das
técnicas ensinadas – uma série de habilidades são aprendidas, como a participação nos
cursos e uma familiarização e um domínio com a leitura e a escrita, a própria preparação
e organização dos cursos, da sala, do procedimento pedagógico do curso, sua
transmissão – há também uma dimensão retórica e experiencial, ou seja, uma dimensão
do “trabalho sobre si” (Foucault, 2010a) voltada principalmente para as lideranças.
Perceba que há uma preocupação com relação ao que é “ser uma liderança” que
tem a ver como o modo de falar, o modo de proclamar, como também uma conduta
mais geral. Além da transmissão da técnica de fala e de expressão, há uma lista de
prescrições de conduta do líder e várias delas dizem respeito a como a pessoa deve ser,
57

sobre autenticidade, isto é, sobre o trabalho da liderança em construção consigo mesma.


A partir da prescrição “seja você mesmo” a liderança, então, precisa descobrir quem ela
é, que se relaciona intimamente com a prescrição do “não fingir”. Autenticidade é
central na formação das lideranças. Ao mesmo tempo que tem uma técnica, de
proclamar de forma solene e alegre, deve-se ser autêntico, ou seja, não deve ser
puramente uma técnica, não pode fingir. Não é uma retorica vazia, uma inculcação de
certas formas, mas uma transformação de si, efetivamente é uma pedagogia de um
trabalho sobre si mesmo, um cultivo de algumas virtudes, como a paciência, a
prudência, a coragem, a autenticidade, a descoberta de si mesmo. É um trabalho sobre
si, mas também de um trabalho da relação com a comunidade, sendo que um dos
trabalhos sobre si é o trabalho de ser uma pessoa que tem cuidado com a comunidade,
que cuida da comunidade sem agredir. Então, a própria figura da comunidade vai
surgindo, se construindo, como algo que se espera que seja a comunidade.
Nesse sentido, argumento que esses espaços de formação estão produzindo um
tipo de sujeito moral (Foucault, 2018a) específico. Compreender o trabalho sobre si
nesses espaços nos ajudará a compreender os dilemas morais enfrentados pelas
lideranças frente às experiências ao longo do tempo (que discutirei detidamente no
Capítulo III). Compreendida a centralidade do trabalho do tempo (Das, 2007) efetuamos
o deslocamento de foco do compromisso que se tem com as normas prescritas para a
forma como tais normas são vividas no curso da vida cotidiana.

1.2.3 Saberes comportamentais


Os saberes comportamentais dizem respeito não apenas ao comportamento que
deve ser adotado durante os processos formativos e cursos, mas também na vida, no dia-
a-dia na comunidade, este último terá maior atenção que o primeiro, dada a recorrência
nas conversas e relatos.
Embora os saberes comportamentais durante os processos formativos não
estejam no âmago desta seção, me parece notável salientar comportamentos desejados
às lideranças leigas que ministram e organizam atividades educativas nas comunidades.
O Curso de Aprofundamento e Revisão, já citado acima, também traz à baila a
importância de um bom comportamento por parte da liderança leiga. Entre os
componentes de um bom comportamento se encontra o tratamento com as pessoas.
Enfatizava-se que o comunicador deveria ser paciente e atencioso com todos, inclusive
os mais quietos e tímidos, daí a importância de fazer até os tímidos se expressarem e se
58

acostumarem a falar em público. Uma atenção especial deveria ser dada ao se tratar
respostas dos grupos, enfatizando que o objetivo da discussão é promover e
potencializar a reflexão de questões cotidianas frente os ensinamentos bíblicos, não
havendo importância se a resposta estava certa ou não.
Se por um lado, havia uma preocupação por parte de quem conduzia esses
cursos para que essa discussão fizesse com que as pessoas se expressassem, inclusive os
mais tímidos, e, portanto, o trabalho deveria ser o trabalho de incentivar a expressão das
pessoas, de reflexão sobre seu cotidiano, ou seja, não era uma questão de se ter uma
resposta certa ou não. Por outro lado, houve relatos de pessoas que se destacavam nos
cursos porque sempre acertavam as respostas e ao mesmo tempo uma certa preocupação
em acertar as respostas. Dito de outro modo, a questão de ter ou não uma resposta certa,
não era uma preocupação das pessoas que conduziam os cursos, por outro lado, parte
das pessoas se preocupavam com acertar ou não as questões propostas para reflexão,
numa dimensão mais competitiva.
Perceba que a competição não deixava de estar presente nos cursos. Se por um
lado há toda essa dimensão cultivada de paciência, atenção, ouvir, tratar as pessoas com
cuidado e garantir o espaço de expressão dos mais tímidos. Por outro, pessoas que eram
lideranças de comunidades ao lembrar dos cursos anos depois, se lembravam da
provocação e competição entre as lideranças. Como nos mostra Comerford (2003), uma
das dimensões recordadas pelos participantes dos cursos, era o Pe. Gwnael lidando com
essa questão competitiva no sentido de se competir, mas não extrapolar certos limites.
Estimulava as pessoas a debaterem, mas evitando que esse debate se tornasse uma briga
ao exercitar esse senso de limite.
O conteúdo do curso destaca também a criação de um ambiente amigável que
fosse favorável à interação entre os participantes. Para tanto, era importante tratar as
pessoas pelo nome ou apelido que foi dito ao se apresentar. Durante a CF 2018, João
Resende chamava a todos pelo nome ou apelido pelos quais eram conhecidos, fazia
brincadeiras25 relacionadas à vida pessoal das lideranças leigas de acordo com a
temática debatida. Aos novatos ele perguntava o nome e pedia para se apresentar. Como
sugerido por Comerford (1999) as “brincadeiras” fazem parte da construção e
estabelecimento de relações entre grupos distintos que mantem relações sociais

25
Para saber mais sobre o espaço do lúdico, do jogo e da brincadeira na construção de relações sociais ver
Bateson (1972), Radcliffe-Brown (1973), Huizinga (1980) e Comerford (1999).
59

fundamentais entre si. Assim, o ambiente amigável estava conectado à realização das
brincadeiras.
Ainda segundo as instruções contidas no curso, seria desejável que a liderança
leiga demonstrasse interesse pelas atividades locais, bem como pelas tradições,
buscando compreender o surgimento e a motivação dos residentes na realização de tais
atividades. É de suma relevância a compreensão do universo local, bem como a
atribuição de sentido que a população local dá à elementos e atividades cotidianas para
que se possa adaptar o conteúdo à realidade específica. Para que se crie também
relações mais profundas e de confiança é crucial manifestar interesse também pelos
problemas pelos quais os fiéis vêm passando, tentando ajudar na medida do possível,
mas também, tendo cautela para não ser indiscreto ou invasivo. “Fazer falar é mais
positivo do que ficar contando nossas histórias” (Curso de Aprofundamento e Revisão,
1972: 08).
Apesar da prescrição como um comportamento idealizado, entendo a
compreensão do universo local menos como uma conduta e comportamento que como
uma habilidade de investigação e estabelecimento de confiança. As lideranças que se
deslocam entre comunidades para coordenar um curso ou atividade deveriam
desenvolver a habilidade de investigar a comunidade sem ser indiscreto ou invasivo,
fazer falar, já que precisa entender o que está em jogo naquela comunidade (problemas,
motivações, etc). Esta investigação pode ser associada ao “curandeiro Ndembu”, ou
mesmo ao antropólogo (Turner, 2003), na medida em que iam para a comunidade ouvir,
perceber e questionar, até compreender o que estava em jogo naquela comunidade,
fazendo uma espécie de sociologia das relações da comunidade. As lideranças, assim
como o curandeiro, se volviam cientes das relações dentro das comunidades, o que lhe
ajudavam a intervir de forma adequada quando julgavam necessário. Assim, aos poucos
foram construindo maneiras de provocar sem criar desconfiança e apesar dessa
capacidade ter sido em boa parte aprendida na prática, prescrições relacionadas já
estavam formuladas nos cursos.
Já no que diz respeito à vida cotidiana, ou seja, a coerência necessária entre “fé e
vida”, “oração e ação” mostro como apenas transmitir uma mensagem oralmente não
era suficiente se a prática cotidiana não estivesse de acordo com o que pregava. A partir
daqui, volto minha atenção para o ritual no cotidiano pós curso, baseada em relatos de
lideranças, e me utilizo da noção de performance para analisar elementos desta
60

performance necessária para manutenção da posição de liderança. De acordo com


Taylor (2013),
[...] as performances funcionam como atos de transferência vitais,
transmitindo conhecimento social, memória e senso de identidade por meio
de comportamentos reiterados – ou ‘duplamente comportados’ (twice-
behaved behaviour), como chamou-lhe Richard Schechener (Taylor, 2013: 9-
10).

Nesse sentido, o “performar” (Taylor, 2013), ou o dar “testemunho de vida”


estabelece uma comunicação mais ampla ao transmitir o conhecimento social, partilhar
a memória, introduzindo padrões de comportamento e reiterando como se deve atuar no
mundo e reforçando a identidade de “filhos do mesmo pai” e de “o pessoal do
Mobon/da Ceb’s”. Emerge como uma tradução da visão cosmológica local do que é “o
reino de Deus” frente a uma realidade local. Em outras palavras, a questão central posta
é “como devo atuar na dimensão terrena para que ela se torne o mais próximo possível
do mundo que Jesus Cristo ensinou?”. É nesse sentido que compreendo o “testemunho
de vida”, como uma metáfora da ação, que se utiliza da linguagem oral e na forma como
se profere a fala, mas que não se finda nela, a própria ação produz efeitos de
transmissão de conhecimento e reproduz metaforicamente o mundo desejado. A
provocação proposta aqui vai além da eficácia da palavra por si só, se ela é eficaz pela
legitimidade de quem a emite (Bourdieu, 1996), ou se é eficaz graças a função poética
(Bauman e Briggs, 2006; Tambiah, 1985), ainda que não a exclua. As lideranças do
Movimento da Boa Nova comportam a legitimidade, são ensinados a utilizar uma
linguagem simbólica se utilizando da função poética e metalinguística, mas também são
avaliados pela sua performance cotidiana, seu testemunho de vida (Comerford, 2001).
Como está nítido na fala de João Resende
[...] a gente não pode querer ser mestre, ser dono da verdade, deixa que o
pessoal reconheça e na hora que o pessoal reconhece, o reconhecimento
popular, ele é muito mais forte do que uma lei que tá escrita num papel, que
no papel a gente pode escrever o que quiser, o testemunho de vida não, isso
ai a gente tem que perceber na vida da pessoa (João Resende, Curso da
Campanha da Fraternidade 2018).

As anotações de Cora Furtado de Melo nos ajudam a compreender elementos


importantes das atuais e/ou ex-lideranças que passaram pelas experiências do Mobon. A
partir do “testemunho de vida”, a Bíblia deveria ser vivenciada e praticada no dia a dia,
não sendo suficiente apenas a oração verbal. A ênfase na linguagem não verbal (Bloch,
1989) tem uma centralidade essencial no ritual cotidiano do “testemunho de vida”. A
mudança da prática cotidiana é fundamental para se dar o exemplo ao outro no processo
61

de formação de discípulos, esse exemplo só pode ser dado através do corpo, que é o
meio pelo qual o homem existe no plano terreno. A liderança do Mobon era ensinada a
adaptar-se ao contexto em que se encontrava, a fim de obter uma comunicação efetiva,
para isso buscava-se partir do concreto, da realidade do novo discípulo a fim de chegar a
uma compreensão bíblica através do uso de metáforas. Essa comunicação efetiva e a
compreensão da “palavra de Deus” contribuía na busca pelos discípulos mais
desanimados, que muitas vezes se sentiam tímidos e deslocados. As lideranças eram
treinadas para saber ouvir, participar das preocupações do outro, dialogar e caminhar
junto com ele, se tornando um militante religioso.
O testemunhar explicitado acima refere-se ao ato de tornar-se o exemplo, agir de
forma exemplar, ser um exemplar (Humphrey, 1997). A coerência entre “oração e ação”
tão enfatizada pelos missionários e lideranças está intimamente relacionada à noção de
“exemplar”. Isto é importante para darmos a devida atenção à dimensão do exemplar
como portador de uma força diretiva na deliberação dos sujeitos e seu
comprometimento com um modo de ser e um caráter individual em detrimento de uma
coerência sistemática em nível coletivo nos modos de conduta. Isto não significa que
não haja um modo coletivo, mas sim que a forma como cada liderança internaliza essas
normas diz respeito a si, sua condição e seu contexto. As normas diretivas que orientam
a ação moral num contexto e que podem se tornarem bases para uma prática coletiva,
não necessariamente serão interpretadas da mesma maneira por todas as lideranças em
um contexto distinto somada a condição e o trabalho de si de cada sujeito.
A importância da centralidade de um desenvolvimento pessoal a partir do
exemplar é importante para compreender que embora as lideranças em questão
partilhem valores e princípios, dada a prescrição no código moral da “caminhada de
Jesus”, a forma de ação diante dos contextos sindical e político partidário não
necessariamente condiz entre as lideranças, o que não significa dizer que não agem
pautados pelo código moral que partilham, mas sim que a maneira como se comportam
diante das normas variam de sujeito para sujeito (Foucault, 2018).
O discípulo não apenas tem Jesus como seu exemplar, mas para dar “testemunho
de vida” deve se portar coerentemente como o modo de vida de seu exemplar de modo
que ele mesmo possa se tornar um exemplar para outros. Nesse ponto faz-se necessário,
como ressalta De Sousa Bonfim (2016: 71), distinguir as tipologias de testemunho,
quais sejam, “o exemplo, dentro da tradição católica, e os relatos pessoais acerca da
62

conversão e da vivência de milagres, hoje relacionados com as denominações


pentecostais”.
Embora o tipo de testemunho em torno do qual esta pesquisa se desenvolve seja
a noção de exemplar, os relatos pessoais também aparecem com intensidade durante o
curso da CF 2018. Nesta ocasião, eu e meu companheiro de pesquisa, Ramon, fomos
apresentados como universitários interessados na relação entre fé e vida e, então, vários
fiéis nos procuraram para relatar seu “testemunho”, ou como a “palavra de Deus” havia
“tocado” suas vidas. As falas quando proferidas próximas à Bíblia, eram acompanhadas
pelo toque da mão no “livro sagrado” se referindo ao que havia dado suporte à
conquista alcançada. A fala de uma mulher me vem à mente “foi isso aqui ó, que mudou
minha vida”. Os testemunhos variam numa ampla gama de realidades cotidianas, desde
a violência doméstica, passando pelo abandono do uso de agrotóxicos, até o
desarmamento voluntário. Não obstante a variação temática, todos estão interconectados
pela motivação, pela coerência buscada entre “fé e vida”, pela fé que se alcança a
vivência de milagres.
Durante a CF 2018, tive a oportunidade de escutar e conhecer alguém que havia
passado por um dos testemunhos mais famosos do Mobon. Normalmente, as lideranças
fazem comentários sentados se utilizando do microfone que permanece nas mãos de
João Resende. Nesse caso, a liderança, já mais velha, se levantou e ocupou o
posicionamento do expositor para nos contar como a Bíblia e o Mobon haviam
contribuído para que ele compreendesse a importância da não violência. Conta que
possuía uma arma, mas a enterrou pois vende-la significaria passar a “desgraça” de seu
uso para o comprador e como cristão ele não desejava isso.
Oliveira (2012) ao estudar um município na região onde reside tal liderança fala
sobre a importância da mudança de comportamento em favor da paz.
A formação da comunidade mudava lógicas de comportamentos entre
pessoas que eram vizinhas e havia estímulos para que não houvesse conflito
entre as pessoas. Além disso, Padre Léssio insistia para que os católicos
entregassem suas armas na delegacia ou as enterrassem, pois seria uma
incompatibilidade ser católico “de verdade” e possuir armas. É revestido do
poder institucional católico que tinha legitimidade para fazer uma afirmação
tão contundente. (Oliveira, 2012: 84).

Afirma ainda, em nota de rodapé que, “uma liderança religiosa disse-me, depois
de uma entrevista, que era comum andar armado, mas enterrou seu revólver como fizera
alguns de seus vizinhos produtores rurais por influência dos pedidos do Padre Léssio”.
O desarmamento é uma temática recorrente quando se fala em testemunho. Em uma
63

conversa com João Clemente, liderança de outra região de Minas Gerais, ele fala sobre
o desarmamento em sua região:
Porque a Comunidade Eclesial de Base, ela trouxe um conhecimento muito
grande pras área rural e conseguiu desarmar o pessoal que andava muito
armado aqui, vendeu suas armas não por medo da política, ou porque a
mulher mandou, o pai mandou, foi por causa da Bíblia. Foi conscientizado
que a arma não vale nada pra gente, que um homem armado ele morre mais
rápido e conseguimos desarmar 80% das famílias da nossa região aqui,
pegando Mutum, pegando Lajinha, essa região toda aí, com a Bíblia e
cursinho. Ai a gente vai lá, e as vezes a gente corria risco de vida, porque a
gente vai trabalhar com pessoas diferentes, pessoas distantes (João Clemente,
primeira geração, relato, 26.07.16).

O “testemunho de vida” se apresenta, a meu ver, como a própria estética e


poética da linguagem, mostrando que existe uma outra forma de linguagem que não a
referencial, corroborando com Bauman e Briggs (2006). Assim, conteúdo, forma e ação
dançavam juntos ao som da mesma canção trazendo a intensidade sensorial múltipla
para o ritual da vida cotidiana, como na canção “Quem plantar a paz e o bem pelo
caminho/ E cultivá-los com carinho e proteção/ Não mais verá a violência em sua Terra.
(Is 59,6) / Levar a paz é compromisso do cristão! (Ef 6, 15)”. O trecho transcrito diz
respeito a uma parte do Hino Da Campanha da Fraternidade de 2018, com o tema
“Fraternidade e superação da Violência” e traz elementos como “plantar”, “cultivar”,
“caminho” e “compromisso”, remetendo-se não somente à terra e à plantação e ao
cuidado, mas ao compromisso que o cristão tem de agir em prol da paz no mundo.
Há um deslocamento evidente da oração apenas verbal, para uma oração verbal
e prática. A mudanças das práticas sociais como forma de oração, era uma ênfase dos
cursos do Mobon, como pode ser visto no livreto Oração e Vida26, em que o papel da
ação na oração é colocado como fundamental para que se atinja o objetivo. “Rezar só
com a boca não basta. A ação é condição para a entrada no Reinos dos céus” (1986:12).
Através da leitura do livreto, pode-se compreender melhor a preocupação das lideranças
com o “testemunho de vida” e a ação enquanto oração: “é Deus que nos conduz, mas
quem movimenta as pernas é nós, os passos quem dá é nos. Não adianta nada Deus te
conduzir se você não move as pernas, entendeu?” (Romualdo Alves, primeira geração,
relato, 24.07.2016). A prática da palavra de Deus na vida cotidiana e o agir com
coerência em relação à crença católica tornou-se a principal característica de ser
católico. “A verdadeira oração está ligada com a vida. Com os problemas. Com as
necessidades de todos.” (1986:12).

26
Material disponibilizado por Cora Furtado de Melo.
64

A formação da comunidade, que se dava pela junção dos grupos de reflexão, era
um dos deveres instituídos pela diferença de se tornar líder (Bourdieu, 1996). Sendo a
vida comunitária um dos objetivos do Mobon, a formação de comunidades rurais cristãs
era estimulada a fim de dinamizar as práticas católicas de grupos que partilhavam o
mesmo espaço em torno de uma capela. Entretanto, nem todos os locais já possuíam
uma capela, sendo necessário o deslocamento de fiéis por longas distâncias. Assim, a
organização de grupos vizinhos em processo cooperativo para sua construção de uma
capela local era estimulada pelo Movimento. Então, católicos que dividiam o mesmo
espaço, em geral nos córregos distantes da igreja matriz, eram estimulados pelo Mobon
a se reunirem, rezarem e se organizarem via mediação de lideranças, consolidando,
assim, uma Comunidade Eclesial de Base.
O sentimento de pertencimento gerado durante os cursos de formação de
lideranças, o uso de uma linguagem simbólica e performatizada, juntamente com o que
chamo de metáfora da ação, gerava um forte sentimento de integração social, o que
viabilizava a concretização de projetos coletivos, como a organização de festas e
benfeitorias locais, surge assim o trabalho comunitário. “Serviço de um dia, dois dias,
eu num cobrava, nós ia pra lá fazer. Isso tudo saiu da Comunidade Eclesial de Base, as
CEB’s, porque antes a gente não tinha isso como um trabalho comunitário, não existia”
(José Mariano, primeira geração, relato, 25.07.16).
Através do Mobon, os muitos fiéis católicos aprenderam que a fé sem ação não
faz sentido e que juntos e organizados em comunidades eles eram capazes de mudar a
realidade em busca do “bem comum”. Em outras palavras, a oração verbal era
importante, mas não suficiente, está deveria ser coerente com a construção do “reino
dos céus” na Terra. E é baseado nessa cosmologia que, através de atividades de
cooperação, os trabalhadores rurais se ajudavam entre si, com trabalhos em estilo de
mutirão.
Um companheiro aqui achou que deveria ajudar o cara. Falou “vão pra lá”, lá
no Arrependido, lá no Durandé. “vamos lá fazer o barraco do rapaz”,
fizemos… e lá não era barraquinho não, era de alvenaria mesmo, o trem bem
feito (José Mariano, primeira geração, relato, 25.07.16).

Tais relatos evidenciam uma inflexão da prática católica e social, enfatizando o


papel da ação na vida religiosa como complementar da fé. Os cursos, com sua
linguagem simbólica, o contato com outras comunidades, a experiência de ações
comunitárias em prol do que consideravam como “bem comum” e a pressão da Igreja
por uma maior organização e conscientização social, levaram a uma nova forma de ser
65

católico, a uma nova prática religiosa, em que a ação fazia parte da fé, e o “testemunho
de vida” era tão ou mais importante que a oração verbal.
A necessidade de uma ação cosmologicamente orientada se dava também pelas
“lideranças leigas” estarem sob análise constante dos fiéis, de modo que não apenas o
que se dizia era importante, como também o que se fazia e como se fazia. Através do
rito de instituição o “fiel” se tornava líder e era autorizado a falar, a transmitir os
ensinamentos bíblicos-religiosos de forma legitimada pela Igreja Católica, não obstante,
se tornar-se líder era necessário, não era suficiente, já que estabelecia deveres para
manter seu prestígio e autoridade de fala (Bourdieu, 1996) em seu cotidiano.
Como pode ser visto, a performance das lideranças leigas do Movimento da Boa
Nova propiciou e reforçou o sentimento de pertencimento dos fiéis com relação à Igreja
Católica, fazendo com que se sentissem importantes no processo de difusão dos
ensinamentos religiosos nas áreas rurais onde as visitas dos padres eram esparsas. Todo
esse processo desde a formação de lideranças e comunidades até uma reordenação da
vida social, em que a ação é tão importante quanto a fé, estimularam as lideranças
católicas a atuarem não somente no campo religioso, mas também no campo político.
Isto é, a sociabilidade e religiosidade, promovidas pelo Mobon, influenciaram seus
agentes para se engajarem na militância sindical e político-partidária. Esse engajamento
atualmente sugere outra forma de performance, a ser analisada em estudos futuros.
As pessoas estão sempre muito atentas ao que as outras fazem, para além
daquilo que já perpassa o cotidiano de qualquer um, as lideranças são especialmente
cobradas. A ideia do testemunho, então, aponta para o sentido de que o que está em jogo
é menos seguir determinadas normas expressas pelo código moral, e mais construir sua
reputação como uma pessoa exemplar (Humphrey, 1997; Mahmood, 2012).
A ideia de um modelo a ser seguido, de um telos que está presente em Foucault
(2018a), está claramente evidenciada no livreto A Caminhada de Jesus, bem como no
“apostolado” e no “método de cristo”. O “testemunho de vida” é baseado em
prescrições para se agir moralmente, isto é, ter uma conduta moral que se traduz no
“exemplar” que foi Jesus Cristo. O telos a ser alcançado pelo fiel é o modo de conduta
de Jesus Cristo, sendo que seguir sua “caminhada” proporcionaria a construção do
“Reino de Deus”. Assim, temos aqui um telos referente à comunidade, mas também à
conduta necessária para alcançá-la. De forma semelhante, Mahmood (2012) identificou
que o modelo teleológico das participantes do movimento pietista no Egito busca tornar
66

real em suas vidas é baseado na conduta exemplar do profeta Maomé e de seus


companheiros.
67

CAPÍTULO II

A VIVÊNCIA DA “MISSÃO”: CORPOS E MOVIMENTOS


NA EXPERIÊNCIA SINDICAL E POLÍTICA

“Margem da palavra/ Entre as escuras duas/ Margens da palavra/ Clareira, luz


madura” (Terceira Margem do Rio, Caetano Velosos e Milton Nascimento)

Este capítulo tem por objetivo explorar como lideranças religiosas camponesas
narram as experiências vividas pelas quais passaram e/ou passam em suas trajetórias
rumo a (e na) política partidária. Faz-se essencial evidenciar novamente que estamos
tratando de um grupo específico de católicos que trazem uma moral específica, um
histórico familiar – fortemente significativo no meio rural, que interagiu com o
Movimento da Boa Nova. São pessoas que criaram e/ou coordenaram comunidades e a
partir daí se engajaram em outros tipos de movimento, como o Movimento Sindical, o
Movimento Negro, o Movimento de Mulheres, etc., e na política partidária27. Ressalto
as características elementares do grupo de lideranças estudadas uma vez que trajetórias
diversas existiram. Há lideranças que participaram do Mobon/Ceb’s, mas não tiveram
uma experiência sindical, ou mesmo partidária, bem como há aquelas que tiveram uma
experiência partidária sem passar pelo sindicato.
Embora a “motivação” apareça, não raras vezes, como um ideal religioso a partir
de uma Igreja diferente e um Deus que se preocupa com os oprimidos, a própria
discussão da motivação já é, em si, uma das polêmicas em jogo. Dito de outro modo, o
próprio discurso sobre o envolvimento com a política tem uma dimensão de discurso
aprendido, não somente, mas também através de preceitos morais religiosos. Como já
mostrado por Comerford (2001: 368) a narrativa da fundação do STR perpassa pela
missão da comunidade em favor dos “pobres, explorados, sofredores e trabalhadores”
em geral. A caridade, ação específica em direção a uma pessoa ou família se torna algo
mais generalizado, “uma ação agora pensada como ‘luta’”. Ou seja, há um

27
Nesse grupo com quem tive a oportunidade de interação, das dez lideranças do Movimento Sindical
que também se tornaram lideranças políticas, temos seis delas ainda filiadas ao Partido dos Trabalhadores
(Javé Lima, Roberto Castro, Efigênia dos Santos, Joaquim Pedro, Antônio Silvino dos Santos e Francisco
Cardoso) e quatro que já não estão mais filiadas (Rosangela Maria, Oscar Trivino, Eduardo Pereira e
Maria da Conceição).
68

posicionamento religioso da liderança que apresenta uma justificativa moral, numa


autorreflexão.
De acordo com Comerford (2003) várias lideranças que surgiram do Mobon já
tinham uma experiência significativa com a disputa política nos municípios. A
experiências com a participação religiosa no Mobon e a formação de comunidades se dá
de forma paralela à uma experiência prévia com a política do interior, ou seja,
experiência de enfrentamento, experiência de divisão. A participação ia desde o pai que
apoiava um candidato por estar em sua propriedade, ou mesmo que funcionava como
seu cabo eleitoral, como “partidários”, como pessoa de prestígio, os compadrios tão
comuns no mundo camponês, etc. Essas lideranças políticas muitas vezes não eram
vistas com motivação religiosa, mas sim como uma oposição de famílias que se
alternavam no poder: “a oposição está no sangue” Comerford (2001: 426).
Apesar da interpretação da política trazida acima, Palmeira (2010a) mostra que
não necessariamente a política passa pelo “sangue”, ou seja, o mundo político partidário
nos pequenos municípios, ao menos, é regido por relações tecidas no dia a dia através
das quais as pessoas vão se vinculando umas às outras. Como salienta Palmeira (2010a),
[...] a lealdade política, lealdade de voto, é adquirida via compromisso: ela
não implica, necessariamente nem ligações familiares nem vinculação a um
partido, mas tem a ver com o compromisso pessoal, com favores devidos a
uma determinada pessoa, em determinadas circunstâncias (2010a: 19).

Como bem salienta Heredia (2010b), a referência feita ao candidato em que se


pretende votar vem acompanhada da menção à existência de uma relação personalizada
com um candidato que independe do partido político, sendo que o voto é uma maneira
de retribuir algo que foi recebido. Nesse sentido, Kuschnir (2007) explica que na
antropologia da política, a política é entendida principalmente como um meio de acesso
aos recursos públicos, no qual o político atua como mediador entre comunidades locais
e diversos níveis de poder. Assim, estudos como de Teixeira (1998) e Bezerra (1995)
mostram como a noção de honra e a primazia das relações de caráter pessoal são mais
importantes que as opções ideológicas abstratas ou cálculos racionais individuais. Ou
seja, remete à “logica da dádiva” de Mauss (1974) para dizer que há um fluxo de trocas,
baseado nas obrigações de dar, receber e retribuir, fundadas a partir das relações
pessoais que regulam o funcionamento das instituições políticas.
Num contexto ordenado por relações pessoais, como a política partidária
municipal, as relações estabelecidas a priori, ou tecidas em meio a troca de favores, tem
também uma dimensão moral e se sobrepõe às relações comunitaristas tratadas no
69

capítulo anterior. Para designar a primazia de relações entre pessoas no cotidiano em


detrimento das relações comunitaristas, denominarei esse tipo de relação como relações
pessoais.
O sujeito moral que vai sendo conformado nas práticas de vida condizente com
os princípios morais cristãos ligados ao Concilio Vaticano II e as Conferências
Episcopais Latino-americanas, não são idênticos uns aos outros, ainda que seguindo o
mesmo código moral. Como enfatizado por Humphrey (1997), a mesma figura de
mestre, pode ter diferentes significados exemplares para diferentes indivíduos em
diferentes ocasiões, sendo que o significado se dá no contexto das aspirações especificas
do sujeito. É pertinente observar, no entanto, que a maneira como cada indivíduo
interpreta os preceitos e as estratégias se dá de modo distinto. Novos preceitos vão
sendo tecidos às subjetividades constituindo e reconstituindo uma forma de conduzir-se
no mundo. Por conseguinte, os modos de conduzir-se diante do código moral, tornam-se
relevantes para a análise proposta.
Ainda que o objetivo do Movimento da Boa Nova não fosse formar lideranças
políticas, a responsabilidade inculcada ao cristão a partir de normas religiosas, que
também eram cívicas, poderia levar a mudanças na forma de agir no mundo dos sujeitos
envolvidos. O “testemunho de vida”, elemento fundamental para se tornar, ser
reconhecido e manter-se como liderança, pode ser pensado como numa dimensão
micropolítica, que tem por objetivo a construção do “Reino dos Céus” a nível da prática
cotidiana – importa como o sujeito se porta com a família, com os amigos, se é honesto
no trabalho, nas negociações, ou seja, se sua vida é coerente com os ensinamentos
bíblico religiosos que aprendeu e que ensina. A política partidária aparece e entra em
jogo, agora interpretada de outra forma, em meados da década de 1980, como uma das
possibilidades para se cumprir a “missão”, qual seja, “restabelecer o projeto de Deus”.
A participação em organizações sociais, sindicatos e partidos pode ser vista em muitos
discursos como um instrumento, um meio pelo qual se alcança um fim. É nesse sentido
que argumento que a própria prática discursiva de atribuir a “motivação” da entrada na
política partidária também foi aprendida nos cursos e encontros. O sindicato ser visto
como um meio, não exclui o fato de que própria participação no sindicato se conforma
como uma vivência daquela missão. Dito de outro modo, em certo sentido a
participação em organizações sociais em si mesmo e mesmo nos sindicatos e,
posteriormente, no partido já é uma realização daquela missão. Tem uma perspectiva de
70

“projeto de Deus”, numa perspectiva de transformação do mundo, do “Reino de Deus”


na Terra.
É salutar, durante esse movimento de traçar linhas gerais das experiências, não
as homogeneizar, há especificidades que devem ser respeitadas. Baseada na hipótese de
que a experiência passa pelo corpo (Csordas, 2008) e, por conseguinte, o “saber é
localizado” (Haraway, 1995). Em linhas gerais estamos tratando de um grupo social de
trabalhadores rurais, provenientes de família camponesa, no entanto, questões como a
etapa do processo em que cada liderança se envolve com as atividades políticas
aparecem como significativas para a experiência individual e para o posicionamento
frente à política partidária28.
Nesse traçar de linhas gerais de experiências na política partidária, tampouco
podemos nos privar de explorar a trajetória de tais lideranças no Movimento Sindical.
Primeiro, porque é uma constante nas narrativas e, portanto, uma constatação empírica,
sendo que a relevância dada à essa experiência corrobora os estudos de Comerford
(2003) sobre a experiência sindical na Zona da Mata mineira. Segundo, porque
analiticamente há um continuum de um código moral, bem como o saber fazer do
Mobon/Ceb’s também na fundação dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR’s) e
no princípio da fundação dos diretórios municipais do Partido dos Trabalhadores.
Como a experiência dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais já foi explorada na
região em estudos como Cintrão (1996), Comerford (2003), Silva (2010), Schettini
(2013), Teixeira (2017), pretendo me ater aqui apenas aos elementos necessários à
construção de meus argumentos e que são base para a compreensão da experiência
política partidária, questão central deste capítulo e dessa dissertação.
Uma ideia central para se atentar, no que segue a leitura do texto, deve ser dada
a categoria geração como a utilizo aqui. Trata-se de uma categoria construída
etnograficamente, a partir da vivência da interação com tais lideranças, como pode ser
visto no Quadro 1 abaixo.

28
Compreendo a importância do contexto histórico e político municipal em que tais lideranças estiveram
e/ou estão inseridas, para entender diversidades internas, entretanto, dada a limitação de um trabalho de
dissertação, esta questão será deixada para futuros estudos, mais aprofundados e com foco nas
divergências dentro de um mesmo grupo de liderança, dado o contexto político municipal.
71

Quadro 1 – Gerações de lideranças


Geração Quem são?
1° Lideranças que fundaram comunidades, STR’s e diretórios do PT.

Lideranças que cresceram dentro da comunidade, participa do STR’s e do PT



que já estão estabelecidos.

3° Lideranças emergentes

Fonte: Elaboração da autora.

Considerando que tanto o Movimento da Boa Nova, os STR’s e o Partido dos


Trabalhadores seguem um processo com marcas diferenciadas em diferentes momentos,
pensar sobre em qual a etapa do processo se dá a entrada da liderança diz muito sobre a
experiência vivenciada. Como exemplo pode-se perceber que a tonalidade da fala e a
ênfase na dor da perseguição em narrativa da primeira geração não aparece na narrativa
da terceira geração.
Para uma melhor orientação cronológica do leitor, estabeleci o período temporal
aproximado em que os agentes sociais de cada geração entraram para o sindicato. A
primeira geração, responsável pela fundação/dinamização de comunidades, dos STR’s,
e do PT, sofreram as pressões mais intensas do confronto contra fazendeiros locais entre
fins da década de 1970 e a década de 1980. O contexto de redemocratização do período
de transição e a perseguição marca os relatos dessa geração na “luta”. De acordo com
Comerford (2001) entre os fundadores estavam mulheres, jovens solteiros e casados, em
geral, sitiantes ou meeiros. A segunda geração cresce em uma comunidade religiosa já
estabelecida, participa dos grupos de reflexões também estabelecidos e iniciam a
participação nos sindicatos dos trabalhadores rurais num período menos conflituoso.
Um ambiente menos hostil de “luta” possibilita refletir e repensar a organização e
hierarquia dentro do sindicato. É a geração que entra para os Sindicados dos
Trabalhadores Rurais entre a década de 1990 até os anos 2000, que vão pautar novas
bandeiras no Movimento, buscando espaço para novas lideranças. Por fim, a terceira
geração, que eu chamo de geração emergente, a partir de um processo de sindicato e
partido já consolidado e no poder a nível nacional, se envolve com as atividades
relacionadas a organizações sociais, ao sindicato e ao partido, ampliando a briga por
novas discussões que favoreçam as minorias.
72

O fato de segmentar as lideranças em gerações distintas para melhor


compreender suas falas e julgamentos não deve ser, entretanto, confundido com o
isolamento das gerações. Dito de outro modo, a primeira geração não deixa de atuar
com a entrada de lideranças da segunda geração. Nesse sentido, as gerações convivem
e partilham tanto afinidades como desavenças. Ao compreender a complexidade do
grupo em questão não podemos conformá-lo como homogêneo e harmônico. A
reputação é sempre algo em disputa entre gerações dado o fluir do processo ao qual
participam e constroem. Espero que fique mais claro ao longo do texto.
A sessão abaixo trata da experiência sindical vista pelos fundadores, ou seja,
pela primeira geração.

2.1. A experiência sindical


É significativo o destaque atribuído, na fala das lideranças, às atividades desse
processo de atividades sociais como um agente formativo. “O Mobon foi minha escola”,
“isso tudo aqui eu aprendi nas Ceb’s” são relatos recorrentes (Oliveira, 2012; Rabelo
2017). Comparação semelhante também está presente com relação ao Sindicato dos
Trabalhadores Rurais no trabalho de Comerford (2003). O sindicato é um espaço de
sociabilidade, de aprendizagem de novas práticas e reutilização das práticas antigas
aplicadas ao novo contexto. Assim, Comerford (2003) afirma que
[...] foi através da participação no sindicato que aprenderam a lidar com leis,
regulamentações previdenciárias, cálculos trabalhistas, e toda organização
burocrática; a entender o funcionamento do aparelho de estado, com seus
vários órgãos, agencias, e procedimentos; a negociar não só com patrões
como também com autoridades e funcionários do estado; a “trabalhar com o
povo”; a entender a política e a história do país; a refletir sobre o meio-
ambiente, a agricultura familiar, o desenvolvimento local, a questão da
mulher; a preparar projetos de financiamento; a falar em público, coordenar
eventos, e cursos; a usar telefones, fax, computadores (Comerford, 2003:
312-313).

Portanto, a experiência sindical é uma “etapa” importante rumo à política


partidária, como veremos nos relatos abaixo, o entendimento da política e da história do
país é frequente nos relatos das lideranças. Todas elas me contextualizavam suas ações e
trajetórias num contexto político mais amplo em algum momento da fala.
Muitas das práticas valorizadas no sindicato tiveram início nas atividades do
Mobon, como o “falar bonito”, a habilidade com a leitura e escrita, a organização
pedagógica das atividades sindicais, etc. Comerford (2003) chama a atenção para uma
73

série de características comuns entre as atividades dos sindicatos e as celebrações


ligadas à Ceb’s e ao Mobon.
É comum também a divisão de grupos para discussão de temas pré-
delimitados, e o retorno dos grupos para a apresentação sucinta à plenária,
sintetizada por um relator e co auxílio de métodos gráficos. Essas reuniões
produzem resultados escritos (atas, relatórios), e também lançam mão, em
seus procedimentos, do uso de materiais escritos (Comerford, 2003: 316).

De maneira semelhante, a dimensão do falar bem e falar bonito – tão cara aos
saberes comunicacionais do Mobon – foi importante também nas atividades do
sindicato. Comerford (1999: 55) mostra como havia uma “reserva” de tempo e de
espaço para a apresentação de pessoas que se destacavam nesse quesito nas reuniões do
sindicato. A habilidade de falar bem e do falar bonito, que como visto no capítulo
anterior, é incentivada nos cursos e atividades do Mobon, se apresenta como um
critério, já que assim alcança prender a atenção do público.
Assim como a modalidade de um discurso aprendido sobre a motivação de
“entrar para a política” como uma “missão”. Esse discurso também se encontra presente
na motivação sobre a necessidade de um sindicato. O discurso motivacional está
presente não somente na Zona da Mata, mas também no Leste mineiro (Oliveira, 2012;
Weitzman, 2016). Dentro de alguns discursos estava presente a argumentação de que a
participação no Mobon/Ceb’s propiciou a visão de um “novo Deus”, que sentia a dor do
oprimido e se compadecia por ele, e a compreensão da realidade local de uma maneira
diferenciada, questionando as explorações29, como narra a liderança a seguir:
[...] e daí comecei a participar das comunidades eclesiais de base, num é?! E
comecei a gostar porque tinha um Deus diferente... não era ooo... não era o
mesmo Deus pregado, né... pelas religiões convencionais que a gente
conhecia (aham), era um Deus diferente. Era um Deus que pisava no chão, né
que conseguia sentir a dor do oprimido, naquela região era muito forte o
processo de parceria, quer dizer, os empresários é, é, é... que na época eram
produtores rurais ainda tavam muito fortalecido, ou seja, tendo em vista que
durante toda essa trajetória de criação do Brasil, os latifúndios tiveram muito
poder de fogo na gestão de todo período colonial, mesmo perdendo essa força
por alguma... no pós Getúlio Vargas, com o retorno da ditadura eles se
fortalecem de novo. Então no pós-ditadura, esse patronato rural reacionário,
ele tava muito fortalecido, tava ligado ao poder e a gente num tinha essa
percepção de que o poder era um jogo de força, né, onde você tinha um
embate, onde levava o poder e as leis quem tinha mais força, como ainda é
até hoje e como vai ser sempre. E aí o que acontece? Nessa região, existia
muita falsa parceira, era o empregador que tinha o cidadão como parceiro e
na verdade ele era um empregado direto dele. Que que acontece? Quando
você começa a fazer uma reflexão de um Deus diferente que olhava essas
injustiças, que tinha a percepção dessas injustiças, ele te colocava numa

29
Como já visto no capítulo anterior, especialmente no livreto A Caminhada de Jesus (1985) e no saber
fazer aprendido nas atividades do Movimento, mais especificamente o que chamo de metodologia
reflexiva.
74

posição de ter que questionar esse formato de exploração, ou seja, não


bastava você ficar na Igreja orando e olhando seu parceiro ser explorado, era
preciso você fazer alguma coisa, certo?! Por quê? Porque quando você
pegava os textos do... por exemplo, eu costumo... do Amós, do Velho
Testamento, ele falava do empregador que explora, que mal chegava o final
de semana para ele explorar no peso e na qualidade do produto e aí Amós é
muito duro nessa questão, porque eu não sei se ele já viveu essa experiência
porque ele fala de uma experiência de exploração, no velho testamento, esse
profeta é tão grande que ele colocava a gente para fazer essa reflexão no
presente, ou seja, uma coisa escrita lá mas que fazia a gente refletir o que a
gente tava sentido, o que a Igreja convencional, ela omitia esses fatos, né, ela
não trazia uma reflexão nessa linha e aí muita gente começa a pegar essa
postura de Jesus Cristo e ele passa a fazer essa reflexão. E aí a gente percebe
nesse período 85, 86, 87, que Jesus cobrava da gente algo mais, não era só
aquela postura omissa de só ouvir e tal e aí em 86 se não me falha a memória,
87, esse Movimento da Boa Nova, das Comunidades Eclesiais de Base que a
gente não tinha uma noção do impacto que isso teria, nos leva a imaginar que
era preciso a gente ter um enfrentamento com os fazendeiro e que a gente
precisava de um instrumento pra fazer esse enfrentamento, né? E que esse
instrumento era o sindicato dos trabalhadores rurais, né, que era esse
instrumento. Então a gente cria. A CPT [Comissão Pastoral da Terra] nesse
período tá nos apoiando de maneira consistente. E aí foi interessante porque a
gente se sentiu seguro, porque a gente percebeu que uma fatia da Igreja
olhava por um outro viés, não era por aquele viés tradicional e aí a gente se
sentiu muito seguro e a boa nova... falou poxa, nós temos que tocar esse
barco pra frente, não dá pra ficar só falando de, de, de, de justiça, é preciso
botar a mão na massa. E aí aparece a partir daí uma série de conflitos que
depois eu vou delinear um pouco sobre eles, tá? (Antônio Silvino, primeira
geração, relato, 02.03.2018)

As reflexões nas comunidades, baseadas na realidade local (a metodologia


reflexiva), trazem questionamentos sobre a razão das “coisas serem assim” e o que
poderia ser feito por eles a nível local. Nesse momento o sindicato aparece como uma
“ferramenta” para lutar pelo direito do trabalhador rural. Em meio a um ambiente hostil
e violento é na igreja que se sentem seguros, mais especificamente na Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e no Mobon. Era necessária a ação, “não bastava... certo?”,
“não bastava você ficar na Igreja orando e olhando seu parceiro ser explorado, era
preciso você fazer alguma coisa, certo?!”. A moralidade ligada ao “testemunho de vida”
estava profundamente enraizada nas ações políticas das lideranças que se engajaram em
alguma forma de “luta”. Todos do grupo sabiam que a “justiça social” era um elemento
central, mas apenas falar sobre não resolveria os problemas reais da vida fora da igreja.
Assim, era preciso “botar a mão da massa”

[...] porque esse trabalho de evangelização pra gente, “Evangelho na Vida”,


“Fidelidade ao Evangelho”, “A vida que vem depois”, “Evangelho na vida”,
mas pera lá... nos tamo reunindo, nos tamo refletindo, nos tamos conversando
sobre a missão nossa que é aqui representante do próprio Jesus aqui na Terra
né, cumprir os mandamentos dele essa coisa toda, mas na prática, o que que
nos tamos fazendo? Nos tamos só aprendendo né, é muito bom, mas de
75

concreto na prática, o que que nos tamo fazendo, nós não tamo fazendo nada,
pra nos desempenhar o papel de cristão, aí vamos dizer o que que Vale da
Onça precisa... aí vamos pensando assim, conversando em grupo e tal até que
nós começamos a ver que tinha aqui a usina açucareira que os trabalhadores,
eles iam com dificuldade, de madrugada, em cima de caminhão sem proteção
nenhuma no meio das ferramentas aquela coisa e acontecia muito acidente e
eles não eram assegurados, eles eram filiados, isso aí deu muito trabalho,
porque aí é nos vimos que eles precisavam de algum órgão pra defender a
classe deles, boia fria. (Javé Lima, primeira geração, relato, 15.02.2018)

A forma de organização a partir do “ver, julgar e agir” propicia o estranhamento


da realidade e dos problemas cotidianos, já tão naturalizados na vida, e, a partir daí,
surgem reflexões do que causa o problema e como ele poderia ser mitigado ou mesmo
solucionado. Como pode ser visto acima, o caso específico deste município, assim como
de muitos outros, tem na metodologia reflexiva30 a identificação do problema de
garantia dos direitos aos trabalhadores rurais e a tentativa de mitigação através do
STR’s. Entretanto, criar um sindicato dos trabalhadores rurais não foi uma experiência
simples, já que em muitos dos municípios já existia o Sindicato dos Produtores Rurais,
conhecido como “Sindicato Patronal”. A necessidade de outro sindicato, sendo que já
existia um em que o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL)
garantia o atendimento médico31, era questionada mesmo pelos trabalhadores rurais que
“repetiam o que o patrão falava pra eles”. Assim como entre as trabalhadoras rurais
engajadas na organização sindical no Leste mineiro, o termo “conscientização” é
frequente e empregado “quando as mulheres se empenham em iniciativas para converter
o outro para uma outra visão da agricultura, que dispensa o uso de insumos
agroquímicos” como mostra Weitzman (2016: 143), também entre as lideranças na
Zona da Mata, o termo é frequente com a conotação de “abrir a mente”. O termo
“conscientização” é utilizado com frequência nos relatos sugerindo como
gradativamente as lideranças religiosas e sindicais foram “conscientizando” os

30
Vale lembrar que a metodologia reflexiva é um elemento central do Movimento da Boa Nova e,
portanto, dos saberes aprendidos no Mobon. Consiste, resumidamente, no uso de questionamentos acerca
de textos bíblicos relacionando-os às realidades das comunidades e dos indivíduos que leem as passagens
bíblicas. Mais do que ler, são estimulados a refletir se tem se comportado de maneira adequada frente aos
ensinamentos, e o que pode ser feito para mitigar problemas de suas comunidades.
31
De acordo com Comerford (2003: 287) “proprietários rurais associados ao Sindicato Rural poderiam
incluir como dependentes, para fins de atendimento, não só seus familiares como também parceiros e
empregados, desde que comprovada sua situação através de um contrato ou da carteira de trabalho.
Assim, muitos dos sócios desses sindicatos viabilizavam o atendimento médico não só de seus
empregados e parceiros como de seus vizinhos, compadres e parentes sitiantes que não eram sócios, e
mesmo dos parceiros destes. Assim, alguns dos sócios do Sindicato Rural aparentemente puderam
estabelecer pequenas clientelas em função do atendimento médico.” Sobre o médico como mediador
político influente na região no período pré-68, ver Greenfield (1977).
76

trabalhadores rurais da importância de um sindicato específico dos trabalhadores rurais


para defendê-los enquanto classe trabalhadora.
[...] aí então nós precisamos criar o sindicato dos trabalhadores rurais e aí nós
não podia falar lá no meio da turma assim aberto, porque nos tinha o
administrador, tinha o feitor que era o vigia pra não deixar ninguém chegar
pra fazer, pra poder manipular aquele povo, entendeu?! Então a gente ia na
hora do café, a gente ia naquele intervalo que a gente já sabia, chegava
naquele intervalo, enquanto o administrador ia tomar café em casa a gente
chegava e ia conversando com eles, explicando o que que era o sindicato dos
trabalhadores. 'Nós somos sindicalizados'. Vocês não é sindicalizado, você tá
no Sindicato Patronal, você não vai reivindicar nada em favor de vocês, a
reinvindicação... vocês nunca fizeram uma eleição pra vocês, escolher o
presidente de vocês, já? E fazíamos perguntas pra eles... 'pois é, vocês tão
sendo manipulados pelo Sindicato Patronal'. Aí alguns que foram abrindo a
cabeça e entendendo por que é difícil, ficaram muito tempo falando que não
aceitava, aquela coisa, mas alguns começou a abrir a mente e ver que de fato
eles tavam sendo mesmo escravizados mesmo. Aí aceitaram assinar pra
poder pegar o número de filiados pra fundar o sindicato dos trabalhadores.
No caderno, se for olhar lá no sindicato vai achar o papel, o caderno de
fundação todo sujo, com a mão suja de carvão, aquela coisa entendeu?! (Javé
Lima, primeira geração, relato, 15.02.2018)

Há todo um simbolismo da fundação do sindicato neste município usineiro. O


carvão é um marco do período em que a usina açucareira esteve em funcionamento, já
que cinzas de carvão voavam pelo céu das localidades mais próximas à usina. Aqui as
mãos sujas de carvão remetem àqueles que trabalhavam diretamente na usina
açucareira.
Assim, havia não apenas uma necessidade de se criar um Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, de acordo com as lideranças “cebistas”, como também, deveria
ser feito um “trabalho de conscientização” com os futuros filiados, já que segundo eles,
os trabalhadores haviam passado muito tempo sendo manipulados e não percebiam que
estavam sendo explorados e que tinham direitos a melhores condições de trabalho. Esse
“abrir mente”, que remete à metodologia reflexiva das Ceb’s e Grupos de Reflexão, não
era realizado num tempo suspenso da realidade cotidiana, mas no próprio dia-a-dia do
trabalhador, num processo de comensalidade, onde se partilha experiências e opiniões,
num processo dialético de ideias.
Como salientado acima, a conversa durante um lanche se justificava pela
ausência dos administradores que não dividiam o espaço de comensalidade com os
trabalhadores rurais, e sim, tinham um tempo para realizarem suas refeições em suas
casas. A presença de um alguém responsável pela vigilância “pra não deixar ninguém
chegar pra fazer, pra poder manipular aquele povo, entendeu?!” já poderia sinalizar os
77

conflitos que viriam ao se “enfrentar os grandes”, o que também explica o receio dos
trabalhadores.
Como já mostrado por Comerford (2001: 379), o termo “infiltrar” nas narrativas
da fundação do sindicato, tem uma centralidade, “no sentido de travar conhecimento e
estabelecer confiança com alguém ‘de dentro’ da localidade, algum parente daqueles
que se quer ‘conscientizar’”. No caso acima, a infiltração se deu nos rituais de
comensalidade, possibilitados por relações pessoais já estabelecidas entre alguns deles.
A noção de “infiltrar” pode dizer respeito à uma técnica já desenvolvida e incentivada
no âmbito da formação das lideranças religiosas, como a de conhecer a comunidade, as
relações que regem e organizam tal espaço. Conhecer para atuar. Em suma, para se
conscientizar e converter uma comunidade é necessário “pegar a estrada” e “caminhar”,
mas é também fundamental saber-se “infiltrar” para que se alcance o objetivo da
conscientização.
A necessidade da criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais se dava para
alcançar os direitos de melhores condições de trabalho para esta classe.
[...] porque tinha perseguição, aí os patrão não deixava, no início mesmo, não
deixava as pessoas participar da discussão do sindicato porque sabiam, os
caras vivia, nós né, nós vivíamos em um regime de semiescravidão, não
podia questionar, você não podia questionar o que ganhava, você não podia
questionar o horário de trabalho, normalmente a gente saia de casa 6h, 6:15 e
se chegasse 06:30 no serviço você tinha que pegar e parava 5h da tarde, é
horário de almoço era 20 minutos. Patrão não tinha esse negócio de horário, é
de acordo com a vontade do patrão, ele levantou... ele levantar é tipo uma
campainha das fábricas, patrão levantou, todo mundo tinha que levantar
(Roberto Castro, segunda geração, relato, 22.02.2018).

Os enfretamentos se deram com intensidades distintas nos diferentes municípios,


sendo uns mais violentos que outros, embora seja um marco comum a perseguição e
violência política. Em alguns casos, como conta Comerford (2001) foi necessário o
pedido de proteção à justiça e lideranças passaram a ser acompanhadas por agentes da
polícia federal, dada a frequência das ameaças e a proximidade dos assassinatos.
De acordo com Cintrão (1996: 67), já havia vínculos trazidos dos encontros do
Mobon que foram fortalecidos e consolidados pelos “mutirões” de fundação dos STR,
que foram organizados pela CPT32, fato que proporcionou a emergência de sindicatos

32
De acordo com Cintrão (1996) o primeiro sindicato foi criado com o apoio da FETAEMG; o segundo
teve a influência da Escola Família Agrícola e o com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que
enviou uma de pastoral para trabalhar na região, com esse objetivo. Após a fundação do terceiro
sindicato, a CPT envolveu os outros dois já fundados na fundação dos demais. “Eram feitos ‘mutirões’,
nos quais as lideranças dos vários municípios se deslocavam para um município onde não houvesse ainda
STR para ajudar nas reuniões de fundação do STR. Utilizavam a experiência anterior do MOBON e iam
78

com “fortes relações entre si, conhecendo-se e apoiando-se mutualmente”. Por isso, já
em 1986, inicia-se uma Articulação Sindical “de fato” com base no apoio mútuo ainda
que informalmente. Essa articulação pode ser sentida na fala de uma das lideranças que
foi perseguida.
Dentro desse período, dentro desse período começou os conflitos, né... que
são as ações judiciais né [fungadas de choro], de fazendeiro, de perseguição.
Só que aí a gente junto com isso também desenvolveu uma rede de
solidariedade, tá certo?! Foram sete sindicatos fundados numa mesma época,
de 86 até 88, 1987, 1986 até 1988 foram vários sindicatos que foram
fundados na região, tudo na mesma época, de forma solidária, então criamos
uma força política muito grande. Por quê? Porque era o sindicato de Campo
da Beira, Muriaé, Vieiras, de Eugenópolis, de Carangola, de Conaçara, de
Cruz da Mata, tá certo?! [aham... foi tudo junto?] Tudo junto! Um num mês,
outro no outro mês e tal, então a gente criou uma rede de solidariedade e a
CPT fazia essa articulação e o Mobon acabava fazendo porque a gente se
encontrava no mesmo núcleo. Então a gente saiu de uma ação da Igreja,
simplesmente evangelizadora, pra junto com essa ação evangelizadora, pra
uma ação social, né, que era o enfrentamento dos problemas e aí a gente
começa a perceber o seguinte... que o sindicato é um ferramenta jurídica,
muito importante e que tinha um papel muito importante, não é... que
acabava tendo uma repercussão política, que toda ação tem repercussão
política, mas que era um instrumento jurídico, sindicato é um instrumento
jurídico limitado, né. (Antônio Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018)

A liderança enfatiza a rede de solidariedade relacionada também a fundação de


sete dos sindicatos na mesma época na região. A dimensão do “testemunho de vida”
está posta como pano de fundo destas ações que foram feitas de forma muito semelhante
aos mutirões que se realizava nas comunidades locais. Perceba como um trabalho, uma
prática constituinte do saber fazer do Mobon/Ceb’s aplicado a nível local transborda, se
desloca, se movimenta da comunidade para a ser utilizado num nível de redes sociais
mais amplas. Para a liderança, não é apenas uma rede social, mas sim uma rede de
solidariedade que se criou. Os elementos da união, solidariedade e justiça social do
código moral religiosos permanecem nesse contexto de uma política institucional. Tem-
se uma ampliação de uma política religiosa e sindical para uma política partidária, sendo
que a prática discursiva mantém elementos da moralidade religiosa.
Como relata Antônio Silvino, o papel do sindicato está intimamente relacionado
com a “opção pelos pobres” da moral religiosa, tendo, portanto, uma responsabilidade
social e uma missão a ser cumprida.
[...] Quando foi próximo de 1990, 88, 89... ah... eu fui o primeiro sindicato
dos trabalhadores em Campo da Beira, tá certo?! E aí, a gente tinha em mente
o seguinte: o papel do sindicato era a defesa do oprimido. Esse era, era o
papel o sindicato. Era... não importava em que condições. Essa era a função

para as reuniões das CEBs em duplas falar da bíblia e da fundação do STR. Ajudavam também (depois da
fundação) na organização da sede. E foi assim que nos dois anos seguintes foram fundados os demais
STRs que participam hoje da Articulação Sindical.” (Cintrão, 1996: 62).
79

do sindicato, defender o oprimido. Qual que era a situação? Não importa. O


papel dele era esse e a gente tinha isso muito claro. (Antônio Silvino,
primeira geração, relato, 02.03.2018)

A busca pela “justiça social” ao “defender o oprimido” mesmo numa situação


adversa como o processo de redemocratização fazia parte da “missão” do sindicato.
Dado esse contexto geral de uma política já tradicional em favor dos coronéis
estabelecida, a experiência sindical é marcada por muita violência e dor, em todos os
relatos, uns menos emocionados que outros, mas todos com a tônica da perseguição, da
violência e da morte iminente.
[...] E aí houve um embate muito forte, por quê? Porque foi as primeiras
vezes que os fazendeiros se sentiram acuados, alguém que enfrentou. (aham).
Alguém que enfrentou. Alguém teve coragem de botar o empregador da
justiça e cobrar dele o que ele devia. Isso nunca tinha acontecido em Campo
da Beira, nunca. Tá certo?! Quando alguém coloca isso, então foi um
alvoroço... aí você imagina, em Campo da Beira que é uma cidade pequena e
isso ocorreu em outras cidades também, isso ocorreu em outras cidades ali...
Calvário do Norte, Muriaé, em Carangola muita pressão e tal. Por quê?
Porque até então ninguém tinha ousado questionar o mando dos
empregadores né, que nem era tão grande, mas a cabeça era que... o cara
tinha um pedacinho... sei lá tinha 20ha de terra, 10 ha de terra e já se sentia
grande aqui na região, então ele ia ficar do lado dos grandes, aí o clima ficou
muito ruim pra mim enquanto pessoa. Aí começou a acontecer ameaça de
morte, né, nesse período. Não foi no período de ditadura, foi no pós... (88,
89?) 88, 89 e aí ficou um clima muito ruim (Antônio Silvino, primeira
geração, relato, 02.03.2018).

Sobre o enfrentamento que se fez ao empregador, Comerford (2003) mostra o


deslocamento de “chamar a autoridade” como sendo usado para desmoralizar o outro na
narrativa, para o momento em que o sindicato se legitima enquanto autoridade e, então,
“chamar a autoridade” passa a ser uma fonte de prestígio e de boa reputação, ao invés
de sinal de inadequação moral.
Na visão dessa liderança acima, houve uma fase de solidariedade, de união entre
os que tinham os mesmos ideais e trilhavam trajetórias unidas pela religião e criação
dos STR’s. É no meio do conflito, da violência e da perseguição que se fortalece uma
identidade em contraposição aos outros grupos, é aqui que se intensifica o
pertencimento a um grupo religioso que busca a “justiça social” e arrisca a própria vida
em favor do “bem comum”. De acordo com as narrativas é a partir das trocas de favores
e cuidados uns com os outros nesse momento de fragilidade, de perda de
“companheiros” próximos, de morte iminente, vai se constituindo e consolidando o
“pessoal do Mobon”, o “pessoal das Ceb’s”, o “pessoal do Sindicato”, o “pessoal do
PT”. “Pessoal” aparece aqui, semelhante ao “pessoal” de Dainese (2015), o “povo” de
Carneiro (2015), mas também como uma espécie de “família” no sentido de Comerford
80

(2003), como um marcador de proximidade não formalizada, delimitando uma


coletividade ainda que com limites não muitos claros, que tem sua unidade no modo de
conduzir-se, nas práticas cotidianas e no posicionamento frente a questões morais.
Tem uma coisa muito interessante, durante esse período a gente viveu uma
fase de solidariedade entre companheiros que era uma coisa tão grande que a
gente não achava explicação. E nós tivemos dois avanços muito
interessantes: um, a solidariedade ela aparece né, e aí um companheiro
contribuindo com outro, apoiando o outro no próprio sindicato, os colegas se
ajudando nesse processo todo e intermunicipal também. E a CPT na verdade
era a voz nossa que a gente tinha em Belo Horizonte nos jornais, na grande
imprensa. [...] Naquela época a CPT era a nível nacional e a nível de estado,
então a CPT no estado de Minas, ela conseguia se havia uma ameaça aqui ela
conseguia botar isso na imprensa lá, denunciar, ela conseguia levar isso pra
FETAEMG, a FETAEMG denunciava. Porque nós era um conjunto de
sindicatos, tá certo?! E aí esse pessoal começou a ficar puto! (Antônio
Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018).

Com este enfretamento inusitado, ainda segundo essa liderança, a década de


1980, ou seja, o período de transição, foi um momento de muitas perdas, muitas pessoas
morreram em nome da causa sindical, por enfrentarem os poderosos em municípios nos
quais os problemas eram resolvidos de forma violenta, o que pode reforçar tanto a rede
de solidariedade como a motivação para a “luta” com espancamentos e assassinatos.
Sugere uma evolução dos sindicatos que passa de uma resolução dos problemas de
forma violenta para a forma judicial.
[...] E foi um, no pós-ditadura, foi um momento ainda de muito crime de
muito assassinato de lideranças no campo... por quê? Porque a gente tava
vivendo um período de transição... [silencio 2s] né?! A Constituição vem em
88 né, então esse período de... de, de, de 84, 85, 86 até 90 é o período que nós
chamamos de transição. A década de 80 foi um período de transição, com
várias... e aí, eles mataram muitas lideranças e não tinha, não tinha uma
apuração muito profunda, quer dizer, você não tinha uma, uma... um
judiciário, não tava consolidado, não tinha um governo consolidado, era
muito vulnerável, tudo era muito vulnerável... [...] E aí sofri algumas
ameaças, em 90 início de 90 o movimento já começa a avaliar que já tinha
morrido muita gente, que tinha muito mártires, que não tinha que morrer mais
gente, que tinha que parar com isso, e aí uma das avaliações que tiveram era
minha retirada de Campo da Beira. As coisas ficaram muito complicadas,
chegaram a mandar bilhete... chegava na casa do meu pai, falava que ia me
queimar, que ia me matar, coisas desse nível e tal e aí o movimento avaliou
que era preciso me retirar de Campo da Beira, né, era preciso. E uma das
opções que se tinha era me trazer pra aqui [Eu: por que aqui?] Porque aqui já
tinha uma estrutura sindical organizada, tá certo?! Eu já teria um suporte,
inclusive, a discussão sindical aqui ela já se dava no nível jurídico, não no
nível do, do, do 38 mais, tá certo?! Aqui já se discutia a usina, já era um nível
jurídico, a justiça do trabalho aqui em Ubá, já era em Ubá, na época. Então
toda discussão que se dava aqui já não era mais no cano do 38, diferente da
nossa região que ainda era muito comum o 38 ainda. Aqui já tinha maneirado
isso né. (Antônio Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018)

Então, após muitas perdas, o próprio movimento sindical em suas avaliações


feitas em reuniões (que faz parte dos saberes organizacionais do Mobon), decidiram
81

retirar uma das lideranças fortemente ameaçada de seu município. A solidariedade


exaltada por essa liderança sugere uma visão específica de alguém que se viu em perigo
e foi abrigada juntamente a sua família, por “companheiros do sindicato” em outro
município, onde a perseguição política já se dava a nível judicial, e não com base na
violência. A “participação na dor” serve como base para uma comunidade moral
(Durkheim, 2008; Das, 1995) estabelecida entre as lideranças que sofreram os mesmos
riscos em busca dos mesmos ideais, o que leva a criação de expectativas com relação ao
comportamento de quem “sofreu junto”.
A perseguição estabelecida estava ligada aos grandes fazendeiros que
frequentemente estavam conectados à política tradicional, principalmente aos partidos
de direita. Como pode ser constatado a partir do relato da liderança a seguir, a liderança
citada acima não foi a única a ter que abandonar sua casa, seu município, dada a
perseguição.
[...] Meu irmão, que era também das Ceb's, meu irmão mais velho, tava
fazendo um culto dominical, que a gente chamava numa comunidade lá perto
da nossa casa na roça, o cara ligado ao DEM [Democratas] aqui, entrou na
igrejinha com um monte de jagunço, pegou meu irmão, bateu a cabeça do
meu irmão na parede, deu uma coça no meu irmão, espaventou todo mundo
que tava lá. A nossa família, por causa da gente tá envolvido em sindicato e
partido político, os meus irmãos casados, aquela meninada, nós tivemos que
amontoar todo mundo numa casa só, o meu irmão foi embora, ficou longe da
família dele, perdeu tudo que tinha com cinco filhos pequenos. Meu irmão
mais velho, por causa dessa violência, que ele teve que ir embora, ficar
escondido na casa do bispo em Leopoldina. A família dele aqui e aquele
flagelo. Entendeu, gente morrendo todo dia, sabe? Tudo por causa da
fundação do sindicato e da fundação do PT, aquela confusão. A gente sendo
perseguida com o apoio desse grupo político que era Arena 1 e Arena 2 33
[Aliança Nacional Renovadora], depois veio pro PFL [Partido da Frente
Liberal], agora o DEM. (Rosangela Maria, primeira geração, relato,
03.02.18)

A perseguição a lideranças relacionadas ao STR’s e ao PT se efetivava não


somente em ambientes e atividades considerados políticas, como na sede do sindicato,
mas também em ambientes e atividades religiosas como o “culto dominical” realizado
em uma “igrejinha” na comunidade vizinha. A ligação entre as lideranças “cebistas”
eram tão intensas com o Bispo de Leopoldina a ponto de este abrir sua casa para
esconder uma liderança perseguida. Diante de situações como estas, pode-se imaginar a
profunda aversão que lideranças que sofreram mais diretamente com essa perseguição,

33
“Nos menores municípios brasileiros, o terror em relação a possível vinculação de uma liderança
oposicionista a identificação com um posicionamento ou aproximação com ideologias de esquerda (que
eram, obviamente, fortemente reprimidas e perseguidas) acabou por criar uma paradoxal divisão interna
no partido situacionista, dando origem à ARENA 1 e ARENA 2, situação típica de regimes de partido
único. As divergências políticas ficavam restritas ao interior do partido governista.” Ricci (2002: 119)
82

como o das duas lideranças que relatei acima, desenvolveram das representações
construídas como sendo os perseguidores.
Atualmente, a situação do sindicato é vista como diferente do sindicato dos anos
80, especialmente no que diz respeito ao caráter combativo e o caráter de “pelegagem”.
[...] acho que é o processo da própria vida mesmo né, sindicato teve tanta
conquista bacana né, que é muito diferente, quando você vê o sindicato de
hoje do sindicato da década de 80, não tô falando especificamente daqui né.
O sindicalismo do Brasil na década de 80 foi muito marcante né, e o papel da
Igreja também né. Da Comissão Pastoral da Terra, nos conflitos né [suspiro]
muita morte, assassinato, muitas ameaças que a gente, nós mesmo aqui
sofremos né, no município nosso na região né. O próprio Francisco lá no
Vale né, o Antônio Silvino, os dois né. Antônio Silvino acabou indo pro Vale
depois né, Piquetero, muito tempo que eu não vejo (Oscar Trivino, primeira
geração, relato, 09.03.18).

Pensando em termos políticos, de alguma forma, a experiência com o sindicato


foi também uma experiência com a política sindical. Como já enfatizado, não é o foco
da pesquisa, mas são experiências significativas dada sua proximidade organizacional
em termos de relações comunitaristas, mas também na política sindical que
experimentam mais intensamente as fissuras latentes nas unidades. Em outras palavras,
apesar de se configurar como uma experiência que aproximou as pessoas na medida em
que partilhavam da perseguição, da violência e do cuidado mútuo, ao mesmo tempo, foi
uma experiência de contato com um mundo novo naquele momento: o mundo
sindical34.
A participação na política sindical foi uma primeira experiência com uma
política de divisão. Se a preparação religiosa era focada na vida em comunidade e na
união, a vida no sindicato já foi uma experiência de lidar com a divisão, aprender a
compreender a divisão e se manter coeso. Assim, quando iniciaram sua participação já
havia um mundo sindical internamente dividido, até no final dos anos de 1990, a própria
Articulação Regional dos Sindicatos da Zona da Mata acabou se fragmentando35. Não é
minha pretensão responder à verdadeira motivação da fragmentação, apenas salientar
34
Federação Estadual dos Trabalhadores de Minas Gerais (FETAEMG), Central Única dos Trabalhadores
(CUT), Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), etc.
35
A fragmentação na dimensão sindical a nível nacional vem de um longo processo de disputas internas
entre o departamento rural da CUT e a direção da CONTAG, alinhamentos e realinhamentos, críticas e
oposições. Ao longo deste processo de disputas pairava um questionamento sobre a necessidade ou não
de se ter sindicatos distintos para setores específicos dentro do grande conjunto de trabalhadores rurais,
como por exemplos os assalariados rurais e os pequenos produtores. Esta disputa está como pano de
fundo e se reflete no sindicalismo regional. A nível regional tem-se as federações. No caso de Minas
Gerais tem-se a Federação Estadual dos Trabalhadores de Minas Gerais (FETAEMG) à qual os sindicatos
foram se articulando, embora com algumas críticas dos sindicatos mais “combativos”. Como relatado por
algumas lideranças, a articulação à Federação Estadual dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura
Familiar de Minas Gerais (FETRAF-MG) vem como alternativa para os sindicatos que já não se sentiam
representados pela ideologia da direção da FETAEMG.
83

que o pano de fundo fragmentado da dimensão sindical teve efeitos pragmáticos na


trajetória das lideranças36.
A experiência da perseguição e da violência durante a década de 80, deixou
marcas profundas e estabeleceu lados opostos para se “jogar” politicamente, o que será
elemento constituinte da justificativa moral de ações futuras. Assim, se associa os
políticos tradicionais aos opressores e a nova política sindical e partidária emergindo,
como a representatividade dos oprimidos. Ora, mas se “o papel do sindicato era a defesa
do oprimido” e a “justiça social” busca reestabelecer o oprimido em seu lugar de origem
antes do “projeto de Deus ser quebrado”, como pode ser percebido em muitos livretos
dos cursos do Movimento da Boa Nova, as narrativas seguem a coerência de que o
partido a ser fundado deveria ser coerente com às prescrições morais “cebistas” e a
experiência sindical, ou seja, o lado da oposição a que se pertence. Assim, o Partido dos
Trabalhadores rural, O “PT rural, aquele pé de chinelo mesmo” fundado na Zona da
Mata e Leste mineiro tem origem imbricada no Mobon/Ceb’s. Cientes de que o
Sindicato dos Trabalhadores Rurais era uma “ferramenta limitada” para alcançar os
objetivos, se estabelece que é necessário dar um passo à frente.

2.2. O movimento em direção a política partidária

A ampliação do mundo religioso para um mundo religioso-sindical-partidário


tinha como elemento central a “justiça social”, um valor presente nas atividades
formativas do Mobon e das Ceb’s. Buscar o “bem comum” aparece como o fio condutor
das narrativas, as lideranças argumentam que viam no sindicato um instrumento jurídico
para defender os trabalhadores rurais. Não obstante, a vivência da experiência sindical
evidenciou uma limitação, qual seja, a do poder judiciário, já que muitas vezes a
legislação não permitia uma atuação mais benéfica aos trabalhadores rurais como
desejado, ainda que de maneiras distintas, dada a situação de cada município.
A experiência no sindicato contribuiu para o conhecimento das leis no que tange
ao trabalhador rural, já que para realizar os processos era necessário pesquisar e
aprender sobre todas as possibilidades e funcionamento tanto legal, quanto prático.
Interessante notar que se inicia um processo de conhecimento de outras prescrições, de

36
Para saber mais sobre como a fragmentação afetou as lideranças ver Machado (2006) e Magalhães
(2008).
84

outro código moral. Assim, parte dos agentes sindicalizados, especialmente os que
compuseram em algum momento a direção do sindicato, tomou ciência da limitação das
leis e como tal limitação representava interesses de quem esteve no legislativo até então.
A saída seria, portanto, ter representantes do sindicato no poder legislativo, de forma a
reformar injustiças cristalizadas em formato de leis. A representatividade da moral
religiosa necessitava avançar rumo à política partidária tradicionalmente dominada
pelos partidos conservadores de direita. A esquerda era a saída e os ideais do Partido
dos Trabalhadores se aproximavam dos valores que faziam parte da conduta do sujeito
moral constituído no Mobon, como analisado no Capítulo I.
[...] E que a gente pra dar um passo mais era preciso mudança nas leis, né, era
preciso mudar as leis, tá certo?! Então na medida que o... e aí era interessante
que o... normalmente no Natal o João Resende vinha com um livrinho uma
cartilhinha mais avançada, tipo assim, empurrava a gente pra frente né, os
textos mais arrojados no Natal, empurrava a gente pra esquerda mesmo e tal
[risos]. Aí quando chegava o livrinho... o Alípio é que fazia o livrinho da
semana santa né. Aí o Alípio dava aquela puxada na gente (risos), João
Resende empurrava e o Alípio puxava. Era meio que um contraponto né, pra
que a gente... eu não sei também se ele tinha percepção disso, se era
planejado isso né. Ou seja, a gente empolgava, mas ia de maneira segura né,
não ia naquele só alvoroço né. E aí então a gente percebeu que era preciso de
estruturar uma outra ferramenta, né... e aí essa ferramenta na época era o PT,
né... já tinha outros partidos, por exemplo, já tinha o PCdoB, já tinha o... o
PCdoB tava saindo da clandestinidade, né, porque na ditadura ele ficou na
clandestinidade, tava saindo, o PCdoB, o PCB, o PCdoB, o PDT eu não me
lembro se ele foi criado pós ditadura ou se foi... porque ele aparece com o
Leonel Brizola né. (o PDT?) É, me parece que com o Leonel Brizola. Então
quase não tinha opção de esquerda, então o PT aparece como uma opção de
esquerda né. E eu me lembro que a gente viveu um período muito bonito,
porque era uma junção de três forças né, que era a conscientização nas
comunidades eclesiais de base, então você deixava de ser aquele ouvinte
religioso e passava a ter uma ação mais crítica, você ia pro sindicato que era
um instrumento jurídico, né, de mobilização e de força, tá. E você saia do
sindicato... não saia, você na sequência era o partido político pra alterar a
legislação. Então você começava, começo meio e fim. Então essa era meio
que a mentalidade que a gente tinha. É logico que tinha avanços e retrocessos
dentro desse processo... bom, essa foi a trajetória até chegar na questão
partidária, tá (Antônio Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018).

Interessante perceber que ao narrar sobre a entrada na política partidária, o PT


aparece como uma ferramenta para alcançar um objetivo: “essa ferramenta na época era
o PT”. Ao remeter à uma época específica está contextualizando a gama de opções
partidárias que apareciam também como possíveis ferramentas, sendo que “quase não
tinha opção de esquerda”. O termo “ferramenta”, que também aparece com frequência,
é significativo quando dito por trabalhadores rurais. Tanto as comunidades, como o
sindicato, como o partido emergem como “ferramentas”. De modo semelhante, o
sindicato também aparece como “ferramenta de luta” no Leste de Minas (Weitzman,
2016).
85

Como vimos, a política partidária aparece na descrição das lideranças, como um


passo a mais, numa narrativa processual linear: a partir do sindicato e para alcançar uma
representação mais ampla era necessário intervir na dimensão das leis. Inclusive, há que
se destacar que muitos dos dirigentes sindicais levaram a discussão dos sindicatos para a
discussão nas prefeituras, levando-a para a dimensão legislativa. Muitos se destacaram
na câmara dos vereadores por dominar a legislação, alguns inclusive se dedicando ao
estudo na área das leis, o direito. Mas se por um lado, aparece uma narrativa linear, por
outro lado, sabemos que houve um envolvimento prévio com a política municipal. Ou
seja, todas essas pessoas viviam num mundo em que a disputa política tal como se
efetiva no interior (Palmeira, 2010a; Heredia, 2010b; Palmeira e Heredia, 2010a) tinha
um peso significativo, sendo o sindicato um espaço para se envolver na política. Em
outras palavras, a política aparece como um passo a mais para o sindicato, no sentido de
um desenvolvimento da representação, entretanto, o sindicato também era um espaço
que proporcionou aprendizados e prestígio social, ou seja, há um ganho de capital
político e uma oportunidade de se envolver com a política partidária (Coradini, 2001).
Não somente o sindicato, as lideranças das comunidades já eram dotadas do saber fazer
o que lhes conferia prestígio social, legitimidade e confiança de alguns grupos sociais
que se sentiam representados nas figuras das lideranças. As relações estabelecidas dadas
as posições de lideranças em diferentes esferas sociais, puderam ser reconvertidas
(Coradini, 2001) em recursos políticos eleitorais.
Parece-me que a apropriação do partido dada a especificidade e a luta sindical já
estabelecida, faz emergir um modo de “ser PT” rural, de “ser PT de verdade”, que em
última instância é uma extensão do modo de “ser cristão” no contexto político. A
valorização da liderança quanto à “junção de três forças” não é uma atividade isolada,
diz respeito uma habilidade de governo de si que permite, através do exemplar no
cotidiano ou de cargos elegíveis na política institucional, governar o outro. As
lideranças relacionam o “modo de ser” constituído nas comunidades, a experiência
sindical, a perseguição e a atuação político partidária. É nesta perspectiva que o “modo
de ser cristão” se articula ao “modo de ser PT” na fala de algumas dessas lideranças
remetendo à “preferência pelos pobres”, à “justiça social”, em outras palavras “ao
reestabelecimento do Reino de Deus”. O “ser PT”, mas que estar ou não filiado ao
partido, diz respeito a constituição de um sujeito moral construído ao longo de um
processo que culmina na formação de um partido político.
86

“Ser PT” diz sobre uma trajetória, ou mesmo a “caminhada” do político, o que
pode sugerir uma maior ou menor probabilidade de cooptação dentro do “jogo político”.
Isto porque o político de “caminhada” tem uma trajetória de “testemunho de vida”, ou
seja, passa por um processo de trabalho de si mesmo, permeado por práticas de si,
baseadas nas prescrições cebistas e vivenciou a participação ativa seja na comunidade,
no sindicato e no partido. Nessa lógica, ao seguir o exemplo da “caminhada de Jesus”,
seria mais difícil de ser corrompido pela competitividade do âmbito político partidário,
marcado pela divisão característica da política (Palmeira e Heredia, 2010a; Comerford,
2003). Há uma série de expectativas sobre a conduta moral deste sujeito no cotidiano, a
realização ou não das ações esperadas é que será objeto de avaliação e julgamento dos
demais, construindo sua reputação (Bailey, 1971).
A compreensão do partido como o acúmulo de experiências e práticas de si na
“luta por justiça social” é dotada de uma lógica de união, solidariedade, humildade, que
remete aos elementos de normas e princípios da moralidade religiosa. Nas narrativas,
“ser PT” remetia à um modo de ser construído pelo contraste, pela oposição entre o
“eles” e o “nós”. Em que o “nós” remetia ao acúmulo de experiências, à “caminhada”,
às “lideranças de Deus” em missão na Terra e, portanto, aquelas que não se deixam
corromper facilmente, pois tem como foco o objetivo final, qual seja, o “reino de Deus”
e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, o “bem comum”, ou seja,
elementos da dimensão das práticas orientadas pelos princípios condutores descritos
acima. Nesse jogo de oposições, o outro é aquele que não passou por tais experiências,
não passou pelo processo de formação de lideranças religiosas, sindicais e políticas, ou
seja, não trabalhou o suficiente sobre si para não se deixar cooptar por situações
contextuais.
Entretanto, mesmo entre as lideranças que fazem parte da mesma rede de
conhecimento há uma diferenciação entre os que são reconhecidos pelo exemplo de vida
e os que não se enquadram como modelos a serem seguidos. Implícita à busca pelo
“bem comum” está a prioridade pelo bem do coletivo acima da satisfação individual.
Este é um dos julgamentos37 feitos à membros do partido, em geral àqueles que
chegaram posteriormente à fundação, que não participaram da “caminhada”. A

37
Na categorização proposta aqui, estas pessoas entrariam na segunda e/ou terceira geração. Entanto, há
que se destacar que as gerações também são grupos heterogêneos, merecendo estudos a nível micro
analítico. As lideranças que constituem parte de tais gerações que tem suas trajetórias analisadas neste
trabalho me foi dada etnograficamente, a partir de uma rede de lideranças que se auto indica, bem como
por conhecimento prévio das organizações religiosas, sindicais e partidárias.
87

“caminhada” se refere à experiência desde as comunidades, passando pelos sindicatos e


a fundação dos diretórios do partido. Uma caminhada de “testemunho” que remete aos
ensinamentos sobre a “A caminhada de Jesus”, tema foco de cursos que prescreviam um
“ser no mundo”, uma maneira de agir no cotidiano, de performar (Taylor, 2013) e,
consequentemente, construir (Tambiah, 1985) o “Reino dos Céus”. A busca por
privilégios pessoais dados à proximidade ou a posição na administração municipal era
malvista por esse grupo de interlocutores, como argumenta uma liderança em relação ao
pedido de apoio para negociar privilégios individuais juntamente ao prefeito, o que era
visto por ela como desnecessários à atuação administrativa. O sacrifício individual
objetivando o bem coletivo, tão presente no cristianismo, foi também uma prática de si
importante na constituição desse modo de ser cristão e um modo de ser PT.
Assumindo que os discursos religiosos que traziam a “Boa Nova do Evangelho”
são tratados como verdades e funcionam como normas, não no sentido de legislação,
mas numa segmentação dual entre o que é normal e o que é anormal (Foucault, 1995),
estabeleceu-se uma lógica de oposição entre “bom e mal”, “rico e pobre”, “grande e
pequeno”. O “nós”, isto é, os políticos religiosos em questão, ao trazer a moralidade
religiosa para o mundo da política (Kuschnir, 2007) se diziam governar a “favor dos
pequenos” enquanto a oposição, constituída por “eles”, governava “a favor dos ricos”,
“dos grandes”.
O que temos aqui é que de uma certa maneira a conduta moral do sujeito – “a
caminhada” e o “testemunho de vida” – delimita quem é ou não “PT de verdade”,
independente da filiação. Na fala que trago abaixo fica evidente a conexão entre ser PT
e ser cristão.
[...] O PT aqui é pé de chinelo, tatu e pé de chinelo. Os deputados lançaram
um jornal que saiu cavouca tatu. Por que que era tatu? Tatu, é o pessoal da
zona rural. Quando nós ganhamos em 88, no centro da cidade, penduraram
tudo enfeitando a casa de tatu e chinelo. Pé de chinelo é da roça e tatu é
pessoal da roça. E nós assimilamos o tatu, se ele entra cavoucando aqui ele
vazou lá na frente [...] (Eduardo Pereira, primeira geração, relato, 14.03.18).

O “PT pé de chinelo” retoma elementos essenciais dos valores do Mobon. Como


já visto do Capítulo I, o livreto A Caminhada de Jesus (1985: 5) vem trazer um modelo
de caminhada exemplar a ser seguido pelos fiéis e remete aos “pés de chinelo”. Nesse
livreto se afirma que a posição que uma pessoa toma diante da vida, ou seja, sua
conduta moral, vale mais que suas palavras e a posição de Jesus é ao lado dos “pés de
chinelo”. Não é à toa que o PT fundado nos pequenos municípios da Zona da Mata
mineira, constituído predominantemente de trabalhadores rurais, é chamado de “PT pé
88

de chinelo” o que é visto como motivo de orgulho, de legitimidade. O termo “tatu”


como já mostrado por Oliveira (2012: 135), segundo contam orgulhosos o deputado
estadual Raul Messias38 e outras lideranças do Mobon, popularizou-se a partir do caso
de um fazendeiro que
[...] um fazendeiro, político da Zona da Mata mineira, teria sido questionado
se não estaria com medo do PT. Ele teria respondido que o partido era
formado por um “bando de tatu” – um termo utilizado pejorativamente, para
chamar as pessoas de roceiras, bobas e pouco qualificadas. O jornal lançado
pelo deputado, assim que assumiu seu cargo, foi intitulado “Cavuca Tatu”. A
expressão se popularizou por todas as regiões influenciadas pelo Mobon, que
mostrou ter um considerável poder de mobilização – capaz de eleger um
deputado – ganhando, assim, proeminência no campo político. Oliveira
(2012: 135)

Esse é um dos casos semelhantes ao estudado por Seyferth (1992) em que o


termo “colono” proveniente da colonização do Brasil no Sul, foi incorporado e
reinterpretado pelos agentes saindo de um tom pejorativo para motivo de orgulho em
oposição aos “caboclos”. Aqui, o caso se dá com o termo “tatu” que usado de maneira
pejorativa, acabou sendo incorporado e se tornando símbolo de identidade em oposição
ao “da cidade”.

2.1. O processo de ampliação do partido e a dinâmica política das coligações


partidárias

Diante da mudança do contexto nacional e a experiência do jogo político, tais


lideranças religiosas, já acostumadas as negociações sindicais, percebem a necessidade
da ampliação do partido, e de aceitarem novas filiações de pessoas que “não tinham
uma ideologia assim de base”. Essa ampliação, ou “inchaço” como algumas relataram, é
apontada como uma das causas do “enfraquecimento da base” e da crise política com o
partido nos dias de hoje.
Como mostrou Oliveira (2012: 216) num município do Leste de Minas quando
da fundação do diretório do partido,
[...] havia uma espécie de seleção para filiação ao partido. Os motivos
expressos na filiação seriam demonstrações de boas intenções, muito embora
essas pessoas, pela interação face a face que a localidade permite, já tenham
uma avaliação moral previamente construída pelos membros do partido
(OLIVEIRA, 2012: 216)

38
Raul Messias é um filósofo formado pela UFMG, engajado na organização e mobilização de agentes
populares. Era vinculado aos setores considerados mais progressistas da Igreja Católica e trabalhava na
Zona da Mata de Minas Gerais na formação de cooperativas.
89

Entretanto, de acordo com Oliveira (2012) as exigências para a filiação


encontraram dificuldades de serem colocadas em prática devido ao fato de que a
seletividade inviabilizaria o jogo político, ou seja, negar o crescimento do partido iria
contra a lógica do campo político, onde a capacidade de mobilização do maior número
de filiados é o motor da vitória.
Francisco Cardoso, não concorda que houve um crescimento do Partido dos
Trabalhadores, mas sim um inchaço. Em suas palavras:
[...] aqui [...] é o seguinte, eu costumo dizer que muitas vezes o PT, Partido
dos Trabalhadores, ele ampliou muito [fala em tom mais baixo] e muitas
vezes a gente começa a pensar o seguinte, que o PT ele não cresceu, ele
inchou, ele inchou. Você vê hoje por exemplo né, e o pior, que mais
entristece a gente... né porque eu sou PT não, e eu nunca participei de partido
nenhum, o único partido que eu participei é o PT. E eu fico muito triste com
isso, que é o seguinte: companheiros nosso, de partido, hoje que tá preso, por
exemplo, Zé Dirceu né, fez besteira, quer dizer... Zé Genuíno, o próprio Lula,
mas só que o Lula hoje, a popularidade dele é tão grande que se eles vier por
ele na cadeia o nego vota nele, se Lula sair candidato (risos), ser candidato,
ele ficar preso, ele ganha dentro da cadeia. Agora, isso pra ele, Lula, tudo
bem, maior liderança que o Brasil criou, mas eu acho que isso é ruim pro
povo (Francisco Cardoso, primeira geração, relato, 06.03.2018).

Segundo Francisco Cardoso, esse inchaço do partido as vezes atrapalha os


trabalhos. Interessante compreender a situação de fala desta liderança fundadora, dado o
espaço de trabalho em que a conversa foi realizada, em uma sala compartilhada,
inicialmente vazia, mas com paredes que possibilitavam aos funcionários da sala de
entrada ouvirem. Seguindo Gumperz (2013), pistas prosódicas, como a redução do tom
de voz, e não-verbais, como a inclinação do tronco e aproximação em minha direção,
sugerem o proferir de uma mensagem que não poderia ser dita a qualquer pessoa, em
qualquer lugar. O conteúdo da mensagem diz respeito à novos filiados que “atrapalham
os trabalhos”, se remetendo aos trabalhos de base feitos inicialmente. A preocupação
com o futuro do partido parece estar também na diretoria do partido, já que Javé Lima,
liderança fundadora, afirma ter sido colocado como presidente do diretório municipal
para não “cair nas mãos de quem não tem essa ideologia do trabalhador”. Javé Lima fala
de um vereador eleito que se filiou ao partido por convite do atual prefeito, mas que não
tem “ideologia nenhuma, nenhuma, nenhuma de trabalhador”.
De forma semelhante, o realinhamento partidário39 seguindo a dinâmica política
da construção da oposição a cada eleição municipal, não foi vista com bons olhos por

39
Para ver uma crítica à imagem fixa que se faz das facções opostas apresentada pelos modelos teóricos
tradicionais, como o mandonismo, o clientelismo, etc., ver Palmeira (2010a) que argumenta sobre não
permanência das facções dando margem pra explicações de mobilidade interpartidária a partir do
rearranjo de compromissos no período entre eleições.
90

algumas lideranças. A eleição em pequenos municípios na Zona da Mata mineira, assim


como em outras regiões, tem uma característica interessante no que diz respeito ao
número de candidatos à prefeitura, ou seja, ao número de facções (Palmeira, 2010a). De
acordo com José Mariano “não adianta, cidade pequena não adianta não suporta ter três
candidatos, não adianta que não vai” (primeira geração, relato, 25.07.16). Esta
constatação coloca dilemas a serem resolvidos, já que para que se consiga alcançar o
cargo almejado, são necessárias coligações e realinhamentos partidários de modo que o
município se polarize entre dois grandes lados opostos, mas não permanentes (Palmeira,
2010a).
Em Vale da Onça, Javé Lima acredita que tanto a ampliação do partido quanto
as coligações eram necessárias, já que após passar pela experiência de um partido
pequeno e com ideais mais homogêneos, perceberam que tais estratégias não somente
era a única saída, como também refletia o que o partido estava fazendo a nível nacional.
[...] E aí a gente, foi assim, nós fomos muito assim, audacioso e lançamos a
candidatura sozinhos. Eles vinham querendo fazer coligação e aquela coisa e
a gente não aceitava. 'Tá bom, mas o grupo de vocês não chega a lugar
nenhum, grupinho pequeno' 'Não importa, nós queremos ser pequeno, mas
queremos...' A gente tinha uma utopia que o Partido dos Trabalhadores,
aquilo tava tão empolgado no coração da gente que a gente pensava que o
Partido dos Trabalhadores podia chegar ao poder né. Com o tempo a gente
foi vendo que não era... não é possível, não adiantava a gente ser puro ser o
fermento guardado, vamos dizer assim, fechado, porque não ia chegar. Então
onde aí começou a surgir as coligações... aí fez a segunda campanha já foi
com uma coligação, não chegou. A terceira a gente já chegou com o vice...
[...] E assim foi, na segunda já foi coligação com o PDT, depois foi com o
PMDB. Nós fizemos uma coligação com o PMDB, porque mesmo o Lula já
começou também a coligar com esses partidos mais de direita, mais
tradicional pra poder chegar a algum lugar, senão não adiantava, a gente não
chegaria, ele não chegaria, a gente também não ia chegar em lugar nenhum.
Aí coligamos, o Dr. Elton já tinha sido prefeito e fez um mandato bem
popular, atendeu bem a reivindicação do, dos trabalhadores e aquela coisa,
então a gente viu que melhor era fazer essa coligação. Fizemos essa
coligação e aí eu entrei pra candidato. Eu e um outro trabalhador também,
Francisco Cardoso, também foi eleito, dois do PT [...] E com isso aí a gente
pôde fazer um trabalho muito bom porque eu e o Francisco... a gente projetos
sociais... a gente que levou o projeto de trator agrícola pros trabalhadores
rurais e foi aprovado o projeto e já foi, já foi uma conquista nossa (Javé
Lima, primeira geração, relato, 15.02.2018).

O desejo inicial de manter-se como um grupo pequeno pode remeter aos


ensinamentos propostos pelo Mobon em que a comunidade deve ser pequena para que
tenha um sentimento amigável, todos possam ser ouvidos e expressar suas opiniões etc.
Entretanto, como a liderança acima afirma “com o tempo a gente foi vendo que não
era... não é possível” manter a “pureza do grupo em termos de “caminhada” no mundo
político partidário, pois era necessário um grupo maior para alcançar os cargos
91

pleiteados em votação. A liderança se utiliza de um dos saberes comunicacionais


aprendidos no Mobon/Ceb’s para esclarecer sua justificativa em apoiar as coligações do
PT no contexto das eleições municipais.
Para além de uma justificativa da estratégia municipal do diretório, se apoia
também na ação de coligação do líder do partido a nível nacional para justificar as
coligações a nível municipal para alcançar “chegar” ao poder e realizar algum dos
planejamentos em prol dos “menores”. Se inicia sua fala justificando uma tentativa
“audaciosa” de se candidatarem enquanto partido puro, pequeno e sem coligações,
mostra como a própria experiência no mundo da política fez com que percebessem que
se a “luta” continuasse no modo organizacional como era feito até então, não passariam
de candidatos. E para finalizar me mostra com exemplos o que ele e seu “companheiro”
eleitos vereadores conseguiram fazer pelo município ao aceitarem se coligar com outros
partidos, ainda que fosse “mais de direita”.
Então eu comento sobre o PT de Campo da Beira que coligou com o DEM,
porque sei que o PT de Vale da Onça também é coligado ao DEM, sendo que na eleição
municipal de 2012, o PT tinha um candidato a prefeito e o vice era do DEM, e ele me
diz:
[...] É, tem um ditado, unido é mais fácil de vencer, se desune aí num vai.
Aqui também tem muitas pessoas que saíram, muitas pessoas. Dona Vera
mesmo quando coligou com o, com o o o Dr. Elton ser candidato, ela saiu do
PT, não concordou de jeito nenhum. Quando voltou a coligar também com do
Mathias também ela não concordou também de jeito nenhum. [...] Ela não
queria, só o PT. Porque a gente tem que ser radical, mas não demais né. E
tem algumas pessoas que é radical demais, então não adianta, não adianta
(Javé Lima, primeira geração, relato, 15.02.2018).

Roberto Castro e Rosangela Maria, respectivamente em Cruz da Mata e


Conaçara, não concordam com determinadas coligações realizadas pelo Partido dos
Trabalhadores, como a realizada com o DEM a nível municipal em Campo da Beira.
Roberto Castro altera a entonação vocal, dando pista prosódica (Gumperz, 2013), ao
dizer que “não tem como não cara, não dá pra, não tem jeito”, o corpo também
acompanhou o movimento em uma comunicação não-verbal de indignação diferente da
trajetória que a conversa teve até então. Ao ser questionado sobre as coligações em Cruz
da Mata, enquadrado com a coligação PT e DEM no município de Campo da Beira,
Roberto Castro me diz:
Lá em Campo da Beira, nossa! Olha nós fizemos uma coligação muito doida,
mas no início, quando lançou o PSDB, nós fizemos uma coligação como vice
do PSDB, no início mesmo sabe, primeiro mandato do Fernando Henrique, aí
nós fomos vice. Foi vice uma vez para nunca mais... [...] nos afastamos no
92

primeiro ano... (Roberto Castro, segunda geração, relato concedido em


22.02.2018)

Em conversa informal, Marcelo Magalhães, liderança religiosa e ex-prefeito de


Cruz da Mata, que me foi indicado para conversa por Roberto Castro, afirma que a
coligação nas eleições de 2012 do PT com o PSDB se deu já que o presidente do PSDB
era “um grande companheiro político nosso”. Ele afirma não tem muito essa coisa de
ideologia de partido, mas diz também que muita gente no município que não vota nele
porque ele está no PT, mas que se ele saísse eles votariam.
Enquanto para Javé Lima a justificativa da coligação se dá para chegar ao poder
e efetivar projetos, a mesma justificativa é vista por Roberto Castro como uma busca
desenfreada pelo poder em si mesmo, vendo nessas coligações uma forma “[d]as pessoas
depois que querem o poder, aí não importa em quem ele vai dar murro pra chegar no poder.”
De modo semelhante, Rosangela Maria justifica sua indignação baseada em
fatos passados e sofrimentos causados por políticos ligados ao antigo PFL, atual DEM,
com o qual o PT se encontra coligado. Sua argumentação remete aos valores esperados
dos filiados ao Partido dos Trabalhadores, por compreender que o partido surge de uma
necessidade frente à “luta por justiça social” e a oposição “aos grandes” no “período de
transição” havia polarizado politicamente os lados marcando profundamente a trajetória
de lideranças pela perseguição, violência e mortes. Seu argumento então, é construído
com base em não perder seus “princípios”. Mesmo sem seu apoio individual, o partido
decide se coligar com o antigo partido de oposição, e a liderança, compreendendo que o
coletivo julgava como necessário, permaneceu filiada, ainda que sem votar e trabalhar
para o candidato pelo DEM. Essa atitude mostra também o peso dos saberes
organizacionais do partido, que preza pela decisão coletiva, sem satisfação de desejos
individuais, ainda que seja uma liderança com prestígio e reconhecida, bem como sua
resiliência em permanecer num grupo ao qual já não se sentia pertencente.
Note, entretanto, que nem todas as coligações eram vistas como problemáticas.
As coligações com o PMDB parecem ter contribuído na efetivação de projetos, como
lideranças, de Campo da Beira e Vale da Onça, relataram exemplos concretos de como à
coligação foi fundamental para alcançaram efetivar projetos que eram do Partido dos
Trabalhadores, ainda que o prefeito não o fosse, ambos sendo do PMDB. No caso de
Campo da Beira, Rosangela Maria, chefe de gabinete do Prefeito do PMDB, com vice-
prefeita do PT, afirma que a coligação proporcionava a realização dos sonhos que o PT
tinha.
93

[...] Eu queria implantar os projetos que a gente tinha, que a gente quando era
sindicalista sonhava em implantar, o único jeito que eu tinha de fazer aquilo,
é conversar com ele sobre as coisas, dar pra ele as ideias... [...] Os grupos que
nós criamos ó... [...] nós organizamos produção de leite, organizamos a
produção de café, nós zeramos a desnutrição no município, o analfabetismo
que era de 15% voltou pra 5%, nós alfabetizamos o povo da escola rural,
ampliamos escola, criamos escola em tempo integral. Quando eu fui
secretária de educação as crianças ficavam na escola o dia inteiro e eu
gastava menos merenda do que quando as crianças ficavam num turno só, eu
dava café da manhã, uma refeição e o lanche da tarde. E era uma refeição
com arroz, feijão, carne e verdura, entendeu?! Os meninos tinham aula de
música. Eu me emocionava de ver aqueles meninos que só cantavam funk
conhecendo Chico Buarque, Caetano Veloso, conhecendo arte, conhecendo
cultura, então assim... aquilo tudo era ideia nossa. Era a gente que queria
aquilo. (Rosangela Maria, primeira geração, relato, 03.02.18)

O relato desta liderança mostra a importância da coligação com o PMDB para


efetivar os sonhos que foram construídos no PT. Efetivar tais projetos só seria possível a
partir de coligações e a coligação com o PMDB era razoável já que não feria os valores
do modo se der cristão.
Na mesma perspectiva, em Vale da Onça, Javé Lima enumera algumas das
várias conquistas que ele e seu companheiro Francisco Cardoso alcançaram a partir da
coligação com o PMDB.
[...] Conquista do movimento de evangelização, Ceb's que é a mesma coisa
né, só que a evangelização era um trabalho mais pra falar vamos dizer assim,
do poder mais no alto né e aí então, foi, a gente foi tomando conhecimento
que a religião não é de cima pra baixo, ela é de baixo pra cima. Então aí a
gente, aí o Francisco Cardoso, ele é um trabalhador rural e eu mexia com
máquina de costura e nós dois fomos eleitos e a gente levou esse projeto de
tratores agrícolas e foi aprovado e hoje, até hoje nós temos os tratores
agrícolas. Lançamos um outro projeto de manilha para zona rural, onde tinha
mina de água. Aquelas minas de água, em lugares as vezes, que não é muito
adequado, as pessoas panhavam aquela água até meio contaminada, aquela
coisa, então na zona rural, acho que não tem uma mina que não tenha
manilha pro povo panhar água. Depois fizemos um projeto também de fazer
casa em mutirão, a custo zero para os pobres, fizemos 220 casas... no
Mutirão. Foi um projeto também e foi feito tudo assim, chamando o pessoal
inscrito pra eles trabalharem e ter a casa e eu no meio disso aí
acompanhando, entendeu? E essa foi a terceira conquista. E teve muitas
outras conquistas, eu organizei aqui um trabalho junto com as irmãs de corte
e costura. Ensinar pessoas, moças, senhoras a costurar e eu fornecia a
máquina, dava assistência e acompanhava aquilo ali e a gente arrumou uma
professora costureira e ela deu foi quatro anos, formou mais de 100
costureiras nesse trabalho. Era aqui no Barreiro mesmo, ali no salão ali. E
hoje tem muitas delas, umas donas de confecção, em trabalho de confecção.
Então foi um trabalho de promoção humana fantástico, entendeu?! Tudo
fruto desse trabalho de evangelização. (Javé Lima, primeira geração, relato,
15.02.2018)

Intitula os projetos conquistados por eles, lideranças religiosas-sindicais-


políticas, graças à coligação PT-PMDB, como “trabalho de promoção humana”
enfatizando que tudo isso eram consequências do “trabalho de evangelização” das
94

experiências religiosas que passaram por terem sido coordenadores de comunidades, de


setores, etc. Entretanto, para essa liderança outras coligações são possíveis. Tem-se
aqui, novamente, uma relação entre o “ser cristão” e o “ser PT”, em que o trabalho de
evangelização se traduziu num trabalho de promoção humana, embora, num trabalho
realizado pela coligação.
Alguns relatos demonstram que a coligação, para além da ideologia política, tem
grande peso das relações cotidianas, afinal os partidos são feitos por
[...] pessoas [que] se relacionam no dia a dia, através de múltiplos fluxos de
troca, que vão vinculando umas às outras, confirmando ou não relações
preexistentes, cuja interrupção é capaz de gerar conflitos ou redefinir
clivagens dentro de uma comunidade (Palmeira, 2010a: 19).

Em municípios onde não se comportam mais de duas facções, conflitos


cotidianos, questões e intrigas familiares (Marques, 2002), rumores (Das, 2007; Benites,
2015), disputa pelo mesmo cargo ou espaço de confiança (Heredia, 2010a; Boivin,
Rosato e Balbi, 1998) entre outros podem levar a ruptura pessoais que são refletidas de
alguma maneira na facção. Em muitos dos casos, o rompimento de uma liderança com o
partido ou sua facção não se configura numa questão ideológica, mas sim por situações
conflituosas no cotidiano. De relações pessoais conflituosas dentro de uma facção
podem emergir dilemas moralmente complexos de serem solucionados, dada a oposição
dual entre “eles” e nós”. Assim, tanto quem sai quando quem fica podem sentir-se
traído, como veremos no próximo capítulo. Se por um lado, os problemas de situações
cotidianas nas relações pessoais contribuem para o rompimento com o partido, as
narrativas das lideranças justificam suas ações pautadas na continuidade de valores
morais visto como mais democráticos e justos socialmente.
No nosso contexto, rumores, provocações e desentendimentos no cotidiano,
levaram a justificativa de coligação com a “direita tradicional”, especificamente com o
Democratas (DEM). Enquanto em alguns casos situações do cotidiano impossibilitaram
a permanência no Partido dos Trabalhadores e a filiação ao DEM era uma estratégia
possível, em outros casos, o próprio PT se alia ao DEM e a permanência da liderança no
partido se torna inviável. Se apresentam também lideranças que permanecem no partido
e apoiam a coligação com o DEM, com a mesma justificação da aprovação de projetos,
como vimos com a coligação ao PMDB.
Nesse contexto, as acusações que pretendem afetar a reputação moral de alguma
das lideranças conflitantes são frequentes. Isto se dá já que, como afirma Bailey (1971:
4), “a reputação de um homem é menos uma qualidade que ele possui do que as
95

opiniões que as outras pessoas têm sobre ele”. Como observado por Heredia (2010a)
dentro de uma mesma facção as disputas são veladas e se dão em termos do poder
impessoal dos rumores. Nesse sentido, através das fofocas e dos rumores as reputações
vão sendo construídas e desconstruídas, afetando a vida pessoal e política das
lideranças.
Assim como qualquer pessoa que ocupa um cargo público está sujeita à
avaliação moral de sua vida e de como efetiva seu trabalho, às mulheres, soma-se um
julgamento moral com relação a uma política de gênero, que não raras vezes pode ser
utilizada a fim de difamar a reputação política da candidata a algum cargo público, ou
mesmo tentar retirá-la de um cargo que já ocupa, com a justificativa de ferir princípios
morais. Em “tempo de política” a moralidade se exacerba de tal modo pelo conflito de
acusações que se torna momentaneamente mais relevante que o todo o trabalho já
realizado, ou as propostas apresentadas. Este tipo de julgamento relacionado ao gênero
se apresentou à Rosangela Maria que, mesmo após décadas de trabalho na diretoria
sindical, da participação na Comissão Estadual de Mulheres ligada a FETAEMG e na
Comissão Nacional de Mulheres (chegando a ser candidata a vice-presidente da
CONTAG em Brasília), dois mandatos como vereadora, chefe de gabinete e secretária
de educação, foi subjugada por ter sido mãe e não ser casada.
Pessoal fez um movimento para me tirar do gabinete porque ia ficar feio eu lá
grávida com um filho sem pai. Movimento do pessoal que almejava meu
lugar. Não é nem por moralismo mesmo não sabe, eles usaram isso pra
desocupar uma vaga, né. A política tem isso né, você não pode levantar da
cadeira, levantou o outro ocupa, né? Então essa disputa ela é muito
desgastante (Rosangela Maria, primeira geração, relato, 03.02.18).

Note como o julgamento moral atrelado ao gênero se sobrepõe à capacidade


desta liderança em duas situações, a manutenção do cargo (julgamento externo) e
candidatura a um cargo dentro do partido (julgamento interno). A presença da mulher
no mundo público, na política partidária, significa ser alvo de um julgamento moral
duplamente rigoroso: o que se espera de uma mulher e o que se espera de alguém que
ocupa um cargo público. Os rumores estiveram presentes também durante o “tempo da
política”. Dada uma divisão interna e informal do partido, lideranças de um grupo,
estimularam intrigas familiares para afetar uma liderança do outro grupo que constituía
o partido, atacando diretamente sua reputação como alguém que trairia seu próprio
familiar nas eleições municipais.
De forma contrária ao caso anterior em que a liderança sai do partido após sua
coligação com um partido de oposição ideológica por fatos cotidianos, o caso a seguir
96

representa lideranças que saem do partido, por acreditarem que este perdeu sua
ideologia, se deparam com a realidade do jogo partidário em eleições de um município
pequeno e, por estratégia política, e não por ideologia, se coligam com o partido de
oposição. Este é o caso do município de Calvário do Norte, em que Eduardo Pereira sai
do PT levando com ele parte do grupo fundador do partido, mas afirma que esse
rompimento não representa um rompimento ideológico com o partido. A liderança é
enfática ao iniciar sua narrativa sobre o PT dizendo que “Esse partido tem história!
Olha, na verdade, a gente saiu do PT, mas o PT não saiu da gente né, porque nós
tivemos essa trajetória toda, não tem como, mas nós aqui desfiliamos do PT por
decepção”. A saída desse grupo do qual fazia parte duas das lideranças com quem tive
contato se apresenta um evento polêmico e complexo.
O que está em jogo nessa ruptura, entre outros elementos, diz respeito a um
sentimento de falta de apoio quanto ao desejo de uma forte liderança a candidatar-se ao
cargo de prefeito representando com legitimidade o “PT rural”. O PT nesse município,
como em muitos outros, pode ser pensado como dois subgrupos: um “PT rural, pé de
chinelo” e outro “PT da cidade”, que já estava associado com o inchaço, de um PT
menos “pé no chão”. A candidatura dessa liderança representava uma volta a um PT
mais legitimo, mais verdadeiro o que remete ao modo de conduzir-se, de ser “PT de
verdade”. Entretanto, a narrativa da liderança em questão aponta para “perda de
princípios” que, nesse caso, se apresenta como ausência dos saberes numa dimensão
organizacional do partido, o que gerou conflitos entre os grupos internos.
Em ambos os casos, o rompimento seja com os valores religiosos, com atitudes
esperadas graças ao acúmulo de experiências de uma trajetória unida pela “luta pela
justiça social” e pelo “ser PT”, justificam a desfiliação do partido. Em situações de
expulsão iminente, ambas reagiram contra a perda dos “princípios” e saíram do partido.
Entre as lideranças insatisfeitas com o Partido dos Trabalhadores a nível municipal são
frequentes as seguintes queixas: “enfraquecimento da base”; “manutenção do poder”;
“satisfação de interesses pessoais”; coligação com esse “povo que bateu na gente”;
perda de confiança dentro do partido.
Esta divisão em dois é comum à própria vivência da comunidade política, ou
você se alinha com um lado, ou se alinha com o outro, o que tem uma série de
consequências. Sendo que esse alinhamento é moral apenas no sentido de dívidas, e
compromissos, ou seja, relações cotidianas que vão se transportar para a política.
Eventos cotidianos e práticos do dia a dia levaram tais lideranças a escolher caminhos e
97

ressignificar planejamentos, dada a fluidez do mundo e a adaptação necessária para


“sobreviver” em determinado campo social com regras próprias. Abaixo, trago um caso
sobre a dinâmica partidária, bem como questões morais relativas à uma certa conduta
moral esperada frente a dinâmica política partidária. Este caso, trará elementos cruciais
para a discussão realizada no último capítulo.

2.2.2 “Ô meu Deus, eu não sei o que vai ser de mim, eu não tenho coragem, não
tenho força, mas se o senhor tá me colocando, agora o Senhor se vira comigo”

A dinâmica partidária do município de Conaçara se assemelha com a de Campo


da Beira, no sentido de ter uma vice-prefeita na chapa com um candidato e na próxima
eleição ela ser vice da oposição. Entretanto, essas coligações não envolveram partido da
direita tradicional40, como no caso de Campo da Beira. Efigênia dos Santos, ao contar
sua trajetória e me explicar sobre como aconteceu a cotação de seu nome para ser vice-
prefeita do antigo opositor, conta que ao chegar na cooperativa “sem chão” e encontrou
Joaquim Pedro e que ao lhe contar sobre a proposta que lhe fizeram e que ela teria que
responder no dia seguinte, ele lhe aconselhou pensar que a política é muito dinâmica, ou
seja, “há quatro anos atrás era uma coisa e que agora é outra”.
[...] Em 2012 eu fui candidata a vice-prefeita pelo PT com o Gustavo Pires
[Gustavo era do PR] e até então eu tinha a intenção de ser candidata a
vereadora novamente, mas aí dentro da conjuntura e tudo, meu nome foi
cotado para ser vice-prefeita, candidata a vice na cola disputando com o
prefeito (PPS) que eu sou vice dele hoje. [...]. Na época eu e o Adrian a gente
se uniu pra poder quebrar o coronelismo do município. [...] A gente entrou
numa campanha bem pé no chão, o Adrian desconhecido no município e eu
com esse intuito do crédito fundiário, sindicato, habitação rural, tinha o nome
mais cotado (Efigênia dos Santos, segunda geração, relato, 24.02.18).

Não alcançaram eleger-se e o prefeito de oposição Pedro Luís (PPS) assumiu a


prefeitura em 2013, quando se iniciaram as indicações de que Efigênia dos Santos seria
boa candidata a vice nas próximas eleições municipais.
Segundo a liderança, na visão dos movimentos,
[...] a gente via no Pedro Luís um coronel acirrado [...] no sentido de rigoroso
que não teria abertura pra nada e não conseguiriam dialogar, pelo sobrenome
e por tudo, mas foi e tem sido totalmente o oposto. Uma das primeiras coisas
que Pedro Luís fez e nenhum outro governo tinha feito foi procurar os
movimentos - Sindicato, cooperativa de produção e comercialização,
cooperativa de crédito (Efigênia dos Santos, segunda geração).

40
A coligação Espera Feliz não pode parar é constituída pelo PPS/PT/PSD/PROS.
98

Segundo Efigênia dos Santos, o candidato vitorioso buscou conhecer o trabalho


realizado pelos movimentos sociais locais e se interessou pelas propostas. A partir daí
surge uma possibilidade de alinhamento, já que havia interesses comuns de
governabilidade. Afirma que ao apresentarem as propostas dos diferentes movimentos e
o que era feito no município e na região e ele “ficou apaixonado” pelos trabalhos
realizados. Efigênia dos Santos e Gustavo se conheceram para serem candidatos juntos,
fizeram a campanha e posteriormente não foi criado qualquer vínculo ou laço.
Contraditoriamente, a liderança e o antigo candidato da oposição se conheceram durante
a campanha como adversários, entretanto, se estabeleceu um vínculo posterior
relacionado aos diálogos em torno de interesses pelos trabalhos dos movimentos. O
argumento utilizado pela liderança para justificar a coligação realizada com o candidato
de oposição passa pelos interesses em comum: o bem do município. De acordo com a
atual vice-prefeita, a reação do atual prefeito diante dos trabalhos já realizados pelos
movimentos sindicais seguiu um tom nessa direção: “Nossa! Eu quero tanto o bem pro
município e vocês fazendo o bem pro município e um bem que a gente não fica
sabendo, então assim, ‘eu preciso é disso no meu governo’” (Efigênia dos Santos,
segunda geração, relato, 23.02.18).
É essencial a percepção da sociabilidade e forma de relações estabelecidas
durante o conflito, ou seja, Pedro Luís e Efigênia se conheceram em meio à campanha
eleitoral jogando em lados opostos. O ambiente de uma campanha eleitoral traz a
competição, acusações e defesas acirradas para ambas as partes. Entretanto, foi esse
contexto conflituoso que proporcionou o interesse e a necessidade de se conhecerem,
saberem quem são e o que fazem/fizeram pelo município. Passado este momento
marcado pela hostilidade, o “tempo da política”, o candidato vencedor, buscou conhecer
os movimentos sociais aos quais a candidata a vice da chapa perdedora participava, ou
seja, existiam pontos de afinidade que poderiam ser aprofundados.
Apesar do interesse da antiga oposição nos trabalhos realizados e num possível
estreitar de laços, a liderança, pautada em todo um trabalho de si realizado durante sua
trajetória, exigia de si uma conduta moral coerente com todas as críticas feitas à
oposição no período de campanha eleitoral. Em sua visão, os movimentos que
participava e a sociedade não compreenderiam esta nova aliança. Considerando que as
relações mais próximas da liderança eram de formação cebista, pode-se compreender
seus anseios se pensarmos que a lógica religiosa é aparentemente mais estável que a
lógica política. A moral religiosa estabelece uma polaridade relativamente permanente
99

entre o “bem e o mal”, claro que possíveis conversões individuais são possíveis,
entretanto, esta polaridade é estabelecida sendo que cada polo pode ser identificado com
determinados grupos políticos. Após esta identificação de determinado partido político
com o “mal” torna-se complexo, do ponto de vista da conduta moral, estabelecer
relações de confiança e proximidade com tais partidos.
Assim sendo, o sofrimento da liderança diz respeito ao dilema em que se
encontrava posto que há um conflito entre lógicas de moralidades distintas em campos
distintos. Sua preocupação e ânsia estavam na aceitação de seus “companheiros” de
movimento, que tem em sua maioria a trajetória semelhante à das lideranças analisadas
nesta pesquisa, qual seja, uma formação religiosa “cebista” e a passagem pela
experiência sindical. Relata, então, as dificuldades e sofrimentos durante o processo de
decisão sobre os rumos que sua vida tomaria no mundo político.
[...] Em 2016 a coordenação de campanha do Pedro Luís se aproximou de nós
e queria que o vice do Pedro Luís fosse alguém do nosso grupo. E o tempo
todo as pessoas falando “tem que ser você, tem que ser você” e eu resistente e
falava “gente eu não tenho cara, eu disputei, fui adversária do Pedro Luís em
2012, foi uma campanha acirrada e depois teve umas cosias que rolou até
processo, encontrando em Fórum por conta de processo político e pensei
‘como que eu vou encarar a sociedade?” Eu gosto muito do Pedro Luís,
admiro, tiro o chapéu pra administração dele, mas eu não tenho cara de
encara a sociedade, a sociedade vai apontar o dedo pra mim e vai dizer
‘aquela dali ó... né, foi adversaria e agora tá ali...aí depois eu falei assim, tô
disposta a tá no time, a trabalhar, pedir voto pro Pedro Luís, mas não eu
como vice dele. E assim, quero que seja um vice do nosso grupo, mas eu de
maneira nenhuma. Aí fizemos uma reunião e apresentamos o Marcio, da
EMATER, que era do partido e tudo, que é uma pessoa que quista pra ser
vice. E pensava, ganhando eu venho a assumir alguma secretaria, mas vice
não. (... ) Aí reuniu eu, o Pedro Luís, o Branco que faz até parte da
administração hoje, o Juarez, o contador do sindicato, que é o presidente do
Partido e o Marcio que hoje é até secretário de agricultura e aí na conversa
Pedro Luís falou assim, olha a questão é a seguinte, eu tô pra disputar as
eleições seja com a Efigênia, seja com o Marcio, mas as pesquisas estão
claras que se for a Efigênia não tem dificuldade e aí o Marcio já tava com o
nome na praça e tudo... aí o Marcio só falou assim ‘ eu venho e vou disputar
e tudo, mas depois o partido não precisa nem cogitar um próximo mandato
comigo’ tipo fica quatro anos de vice e depois vem 4 anos como prefeito ‘eu
não tenho esse proposito e eu vejo que é diferente com a Efigênia’. Aí
colocaram a bola na minha mão e eu entrei em desespero porque já tinha
decidido que não ia ser candidata a mais nada, saí daquela reunião sem
direção. (Efigênia dos Santos, segunda geração, relato, 23.02.18).

Sua preocupação estava relacionada à reação das pessoas, como encarar a


sociedade, como ia chegar em casa e compartilhar essa proposta com o esposo. Em
última instância dizia respeito a sua reputação como liderança religiosa e política. A
própria liderança se cobrava coerência no “testemunho de vida” já que a humildade e
“não buscar o poder acima de tudo” era uma tônica central na conduta moral do “ser
100

cristão cebista”. A liderança é constantemente avaliada e legitimada pelo “testemunho


de vida”, sugerindo o sofrimento causado por um possível julgamento de sua
moralidade, no que poderia ser visto como uma falha na representação de ser honesta
(Goffman, 1975).
O processo da tomada de decisão não foi simples e como é comum nos
movimentos cebistas e sindicais, não foi tomada sem antes escutar a opinião dos
companheiros. No caminho para casa Efigênia dos Santos passa pela loja da
Cooperativa e “aí quando chegou ali na cooperativa quem tava lá? O Joaquim Pedro.
‘Aí ele me perguntou porque você tá assim?’” Ela explicou o que tava acontecendo e
que tinha que “dar a resposta até amanhã.” O apoio de Joaquim Pedro foi inesperado e
de extrema importância, dado o poder da fala da liderança sindical e do movimento
negro, o qual Efigênia também apoia. Outros apoios inesperados foram surgindo à
medida que compartilhava sua dor, como no SINTRAF de Conaçara e de seu esposo.
Detalha como foi a conversa com o esposo.
Fui pra casa da minha sogra, meu esposo sentado no chão assim, eu cheguei
lá encostei na pia e fui falar o que que estava acontecendo, aí Adriano pensou
e ficou quieto, depois virou e falou assim ‘eu já ouvi um ditado Efigênia’
virei e falei qual? ‘Cavalo arriado só pasta uma vez. Eu acho que a sua
chance é essa, no que depender de mim, tamo junto’ Aí eu falei Meu Deus, ai
eu passei mais uma noite em claro, pensando... e chorava e aí quando chegou
no dia seguinte eu falei “ô meu Deus, eu não tenho coragem, eu não tenho
força, eu não sei o que é que vai ser de mim, mas se o senhor tá me
colocando agora o Senhor se vira comigo, falei assim com Deus sabe, porque
eu tô no chão de tanto medo, de vergonha de tudo, mas o Senhor se vira. Aí
naquela noite nós fomos e nós apresentamos pra sociedade no Seminário,
lotado de gente curioso e aí na hora que o Pedro Luís falou que vinha e que
me apresentou como vice aquilo as pessoas ficaram assim ó [simula o boca
aberta] (Efigênia dos Santos, segunda geração, relato, 23.02.18).

A justificativa do possível candidato a vice para a candidatura de Efigênia dos


Santos, era que ela tinha a intenção de seguir na política e se candidatar a prefeita na
próxima eleição. Roberto Castro explica a situação ao afirmar que o PT de Conaçara
nunca foi forte a ponto de eleger um prefeito do partido.
O partido em Conaçara ele nunca foi muito forte, nunca foi assim... o partido,
a ferramenta partido. Um monte de liderança, foi um monte de liderança, mas
o partido, assim... o partido tá forte, mas ele nunca conseguiu ganhar uma
eleição municipal, sempre foi... tá junto, vice e tal e, assim, o nosso aqui ser
vice foi no início que começou. Lógico que a experiência da Efigênia tá
sendo totalmente diferente, porque isso muda muito quando as pessoas
sentem que vão ficar fora do poder, aí o rumo da conversa muda muito, mas
eles sabem que até nas vésperas da eleição... eles tão embobado achando que
o prefeito lá vai lançar a Efigênia, mas eu acho que isso muda muito as
coisas. [...] Ela é vice e as conversas de hoje é que o prefeito lança ela, na
próxima eleição ele já não pode mais, porque ele ganhou uma eleição da
Efigênia, depois ganhou a outra agora junto com a Efigênia (Roberto Castro,
segunda geração, relato, 22.02.2018)
101

Efigênia dos Santos confirma a expectativa de ser candidata a prefeita na


próxima eleição municipal carregando com ela várias bandeiras de luta. “Se Deus
quiser, agora nosso intuito é ter a primeira mulher jovem, negra e agricultora sendo
prefeita do município de Conaçara, se Deus quiser”. Este relato corrobora a ideia de
que, em alguns municípios, o PT não alcançaria chegar ao poder e, consequentemente,
não teria representatividade, caso não fossem feitas coligações, ainda que não fossem as
ideais.
As mudanças de contextos, a fluidez da vida cotidiana recheada de novas
informações, e os conhecimentos muitas vezes provocam o reestabelecimento e
ressignificações de relações essenciais para os alinhamentos dinâmicos dos partidos
políticos. Uma questão central a ser evidenciada é que os partidos políticos são
constituídos de pessoas, pessoas estas que não só trazem, como constroem e
reconstroem relações pessoais frutos de interações em outros campos sociais. Já
sabemos que a moral camponesa valoriza as relações familiares, bem como compadrios,
trocas de favores etc. Todas estas relações pessoais não só podem, como interferem no
realinhamento partidário.

2.3. A delimitação moral do “ser PT de verdade”


O desafio imposto frente à coerência de seguir ações classificadas como morais
no universo cebista formado pelo Mobon num contexto pautado por relações individuais
e de competição, foi vivenciado de formas distintas pelas lideranças. Com a mudança do
contexto nacional e a experiência adquirida pela participação no jogo político partidário,
tais lideranças religiosas, já acostumadas ao mundo do sindicato, percebem a
necessidade da ampliação do partido, e de aceitarem novas filiações de pessoas que
“não tinham uma ideologia assim de base”, ou seja, não eram nem “cristão de verdade”,
nem “PT de verdade”. Essa ampliação, ou “inchaço”, como algumas relataram, é
apontada como uma das causas do “enfraquecimento da base” e da crise política com o
partido nos dias de hoje.
De forma semelhante, o realinhamento partidário seguindo a dinâmica política
da construção da oposição a cada eleição municipal, não foi vista com bons olhos por
algumas lideranças. Nem sempre as coligações necessárias no contexto local, são as
idealmente desejáveis, embora sejam as factíveis, dados conflitos ligados a relações
familiares e cotidianos. É importante frisar que partidos políticos são constituídos de
102

pessoas e em municípios pequenos, muitas vezes as pessoas já possuem relações, tanto


de conflito quanto de afinidade, preestabelecidas muito antes de entrarem para o mundo
da política.
Diante de um partido mais amplo, com relação ao inicial, a identidade de “ser
PT”, que está intimamente relacionada a um grupo de lideranças camponesas religiosas,
cebistas e sindicalistas, já não se confunde com estar ou não formalmente filiado ao
Partido dos Trabalhadores. Assim, estar filiado ao partido não é suficiente para ser
considerado “PT de verdade” por aqueles que participaram na sua fundação municipal.
Por não ter passado pela “caminhada” e aprendido a busca pela “justiça social” numa
dimensão mais vivenciada e sentida do que falada e ouvida, políticos que se filiaram a
partir da ampliação do partido são, muitas vezes, avaliados como não tendo “ideologia
de trabalhador” e “sem projeto para os pequenos”. Assim, na concepção de uma destas
lideranças fundadoras do STR’s e do diretório do PT em seu município, ao remeter a
um político municipal bastante conhecido e filiado ao partido, afirmou que o político
“nunca foi PT de verdade” e argumenta que tal político se “apaixonou” pelo partido ao
conhecer um dos deputados estaduais que fizeram parte do Movimento. Note que se
“apaixonar” pela causa do partido não é suficiente para “ser PT de verdade”, pois não se
vivenciou a “caminhada”. Mesmo dentro do movimento, é notável a diferença de
tonalidade ao narrar a perseguição, entre as lideranças mais jovens. A conotação de
quem se lembra ou soube é significativamente diferente de quem experienciou no corpo
a perseguição e a violência.
Se por um lado, há políticos filiados ao partido que não são considerados “PT de
verdade” pelos fundadores, por outro lado, há políticos fundadores, que já não estão
filiados ao partido, mas que ainda se sentem parte do Partido dos Trabalhadores. Entre
as lideranças desfiliadas se encontra o argumento “nós saímos do PT, mas o PT não saiu
da gente” ao justificar que os projetos pensados e efetivados por eles tinham como
público os “pequenos”, os trabalhadores rurais. O argumento dado mostra como a
filiação é menos importante que a forma de agir no mundo, seja a nível da política
religiosa, como a nível da política partidária. Mais importante que estar filiado ao
Partido dos Trabalhadores é ter os princípios morais constituídos ao longo da trajetória
com base na moralidade religiosa, ter projetos que beneficiem os “oprimidos” e
busquem “fazer o bem” na medida do possível, dada a especificidade do contexto local.
O fato de não estar filiado ao partido, não quer dizer que lideranças não se
sintam “PT”. Para algumas lideranças a desfiliação foi efetivada por se sentirem
103

“decepcionados” com integrantes do partido e suas atitudes, que foram vistas pelas que
saíram como “perda de princípios”, tanto a nível da micropolítica como a nível
organizacional do partido. Os argumentos seguem na direção de “a gente já não tava
fazendo como era”, “por isso que tá desse jeito, foi perdendo seus princípios”. Essa
maneira de teorizar são frequentes entre as lideranças que escutei. Essas narrativas
remetem ao princípio da união, do trabalho como cooperação e não competição, da
valorização do coletivo, como visto nos cursos de Aprofundamento e Revisão.
Dessa forma, ser ou não PT diz mais sobre a construção de uma identidade de
“PT rural” ou “PT puro”, do que sobre questões burocráticas e institucionais de filiação.
A ênfase na manutenção dos princípios pelos quais o diretório do partido foi fundado
em cada município é uma tônica em muitos relatos críticos como:
[...] aquilo que a gente pregou que queria ser, libertação pro povo, daí a
pouco nós tamo virando cabide de emprego, tamo só recebendo salário e, e...
vendo ali as pessoas né, dois mandato, três mandato, num abrindo mão
disso... eu, eu, como... eu sempre questionei essas coisas né (Joaquim Pedro,
segunda geração, relato, 24.02.18).

O relato acima mostra uma autocrítica ao remeter à missão de reestabelecer a


justiça social incorporada da moralidade religiosa que foi “esquecida” por algumas
lideranças políticas que se perpetuam no poder, não tendo a humildade de apoiar a
formação de novas lideranças para seguir o processo iniciado.
A dimensão moral de receber o salário sem o diálogo com a base do movimento
também é posta em xeque, já que havia um imaginário do que seria o envolvimento
político partidário destas lideranças religiosas e sindicalistas, ou seja, com menor ou
maior grau de consenso, havia um projeto inicial de busca pela “justiça social”.
Questiona-se o princípio da humildade, já que lideranças estabelecidas em seus cargos
já não “ouvem” mais as bases como pode ser percebido no relato de Joaquim Pedro, “E
sempre questionei também, né, os deputados que a gente já tinha, né, que não tinha de
fato esse compromisso, esse olhar pelas bandeiras que a gente defende”. Compreendo
aqui uma queixa à falta de diálogo com a base, com as minorias, “os oprimidos”, de
forma que elementos como o “saber ouvir e construir juntos” pode ter se perdido em
algumas caminhadas.
Através de elogios e queixas, ou seja, do vigiar e narrar (Comerford, 2014), do
mapeamento (2003) feito pelas lideranças fundadoras de diretórios do Partido dos
Trabalhadores, especificamente rural a princípio, busquei compreender como elementos
constituintes de um sujeito moral no Mobon/Ceb’s, não somente seguem presentes nas
104

narrativas e argumentos políticos destas lideranças, como também, são constituintes de


uma identidade de “ser PT”. O que se há de reter desta argumentação é a que o “ser PT”
rural, não significa estar filiado ao partido, mas sim uma forma de agir no mundo,
baseada na moralidade religiosa do Mobon/Ceb’s que orientou a conduta durante toda a
trajetória desde a formação/dinamização das comunidades, criação dos sindicatos dos
trabalhadores rurais e dos diretórios municipais do Partido dos Trabalhadores.

2.4. A corporeidade na experiência

Até aqui já foram trazidos elementos de divergência no que tange ao conflito


entre a lógica religiosa e a lógica política. Gostaria de discutir agora sobre a
centralidade da experiência corporal na construção de uma comunidade moral calcada
na partilha da dor de experiências de violências físicas e psíquicas. Como vimos nas
narrativas referentes às vivências sindicais e político partidárias, as narrativas das
lideranças trazem à tona essa dimensão corporal – ameaça de morte, fuga, experiência
de fome e de sede – que também compõe esse “PT rural”, autêntico e que traz essa
noção da “missão”. São elementos dessa dimensão corporal que são característicos
dessa articulação entre uma formação religiosa, a experiência do conflito sindical e a
formação do Partido dos Trabalhadores, não estando presentes em outros partidos. Essa
visão da missão associado a um sofrimento corporal está muito presente na narrativa do
PT como o “povo de Deus”.
Há um tipo de experiência pelas quais passaram essas lideranças que fazem parte
da constituição do “pessoal do Mobon”, “pessoal das Ceb’s”, “pessoal do sindicato” e
“pessoal do PT” de forma específica e diferenciada a cada etapa, é verdade, mas que há
uma unidade no todo, ao visualizar o processo. Refiro-me à uma atividade muito
presente no Mobon que é a “andança”, de sair da sua comunidade e ir para outras
comunidades. Esse movimento foi recorrente nos vários planos vivenciados. Na
dimensão das Ceb’s o deslocamento se dava não somente entre as comunidades
próximas, mas também a nível de encontro de formação. Como confirma a fala de Javé
Lima “aí a gente viajava esse Brasil inteiro, eu participei de encontros intereclesial em
Trindade, em Canindé no Ceará, Santa Maria no Rio Grande do Sul, Duque de Caxias
no Rio de Janeiro”.
105

No movimento sindical, estavam sempre viajando, indo para cursos e


congressos, alguns viajaram para várias capitais e até mesmo para o exterior. É
recorrente a relação entre “missão”, a “caminhada” e “pegar a estrada”.
Muito jovem, aí com 16, 17 anos, comecei a viajar, a participar desses
eventos do movimento sindical, dos encontros da Ceb's em Caratinga,
Carangola, Eugenópolis. Aonde tem uma casa de formação nessa região de
Minas Gerais, nessa Zona da Mata, na Região Leste, eu já fui, sabe. Não tem
uma rodoviária dessa que eu ainda não passei uma madrugada, uma noite, um
dia, né, viajando, indo pra esses encontros de formação (Joaquim Pedro,
segunda geração, relato, 24.02.18).

De acordo com Comerford (2001), outra ênfase dada à narrativa da fundação do


STR dizia respeito ao
[...] deslocamento, algo também muito presente na narrativa missionária
relacionada com o MOBON: sair, por assim dizer, do seio da família e da
comunidade para enfrentar o mundo, caminhar pelas estradas, passar fome,
ser mal recebido, ser ameaçado, lidar com o universo desconhecido da cidade
e da burocracia, onde o povo da roça não tem lugar, é tratado sem
consideração, e não se sente à vontade; mas também sair para aceitar caronas,
ser bem recebido nas casas, compartilhar alimentos, receber doações, fazer
amizades, ganhar conhecimento, mostrar coragem, e sobretudo ganhar
credibilidade e respeito (2001: 370).

Assim, os encontros de formação sejam eles realizados pelo Mobon/Ceb’s,


sejam pelo Movimento Sindical, era um incentivador dos deslocamentos, da “andança”,
andança está marcada não só pelas alegrias, mas também pelo sofrimento do corpo que
conforma um tipo experiência. Joaquim Pedro chama de parceiros as pessoas que
traçaram a mesma trajetória que ele ao passar fome e sede na estrada. Francisco
Cardoso, liderança da primeira geração reclama da quantidade e das condições das
muitas viagens que deveria fazer quando esteve na direção da Associação Regional “nós
sofremos muito, nossa senhora, viajava igual um boi...”.
Entretanto, uma liderança da terceira geração conta sobre sua experiência na
coordenação geral de uma cooperativa que teve “as portas abertas” graças ao STR do
município. A partir daí fez várias viagens, inclusive internacional, e conheceu vários
movimentos.
[...] Né e fiz várias viagens, vários, conheci vários movimentos. Aí nisso fui
fazer parte da direção do CTA [Centro de Tecnologia Alternativa], na
universidade tínhamos um diálogo forte lá, na UFV [Universidade Federal de
Viçosa] porque a gente fazia os intercâmbios né, as capacitações com os
agricultores. Aí depois disso fui fazer parte da direção da UNICAFES [União
Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária],
que é a União Nacional das Cooperativas de Economia Solidária de Minas
Gerais com a juventude, aí fui, viajei pra Colômbia pra levar a experiência
dos jovens da cooperativa, do trabalho que a gente faz o vale solidário no
município, né. E isso tudo sempre engajado na igreja, participando né, que
106

até hoje eu participo de grupo de reflexão, de Grupo de Jovem, da equipe de


cântico... (Elaine Vitoria, terceira geração, relato, 24.02.2018).

Para além de uma questão financeira como menos ou mais recursos para
financiamento de viagens pelo movimento, as experiências do deslocamento dizem
também sobre o destaque da liderança. Lideranças que realizam deslocamentos maiores,
como estadual ou mesmo internacionais, são as que, eventualmente, tiveram uma
trajetória política mais importante do ponto de vista da política municipal, em relação
aos que apenas faziam deslocamentos próximos à sua comunidade.
Vejamos então como as gerações sentiram as experiências considerando-se a
etapa que “entraram” no movimento e o contexto em que nasceram e cresceram.

2.4.1 As gerações posteriores à fundação


Compreender que mesmo dentro de uma rede de lideranças, como a estudada, há
especificidades em diversos aspectos é de suma importância para não homogeneizar
grupos sociais. Um elemento que me parece central nessa análise diz respeito às
diferentes gerações presentes nessa rede de lideranças. Percebê-las e buscar
compreender a forma como montam seu discurso, seu contexto de fala, permite
identificar elementos que unem, ou seja, que permanecem no grupo, mas também
prioridades distintas, dados diferentes contextos e vivências. Em outras palavras, a
preocupação está posta em não cristalizar no tempo uma rede heterogênea que tem
como central o fato de entrarem no movimento em etapas distintas. Há que se atentar
para a definição de geração que uso aqui. Trata-se menos de geração no sentido de faixa
etária e mais no sentido de etapa do processo em que inicia sua participação41.
Trabalho com a hipótese de que haja três gerações que passaram e/ou passam
pela trajetória que me interessa nesta pesquisa. A primeira geração diz respeito àqueles
adultos que se formaram nos primeiros cursos do Movimento da Boa Nova, que
estiveram presentes na Casa de Curso do Mobon42 em Dom Cavati, que formaram
Comunidades Eclesiais de Base e construíram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais em
seus municípios. De certa maneira, podemos dizer que a primeira geração está

41
Uma liderança que participou da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em seu município já
fazendo parte da direção aos 18 anos foi classificada como primeira geração.
42
Apesar do marco simbólico da fundação da Casa do Mobon em 1979, é importante lembrar que os
cursos eram oferecidos em outras casas de cursos, em salões paroquiais, escolas, debaixo de arvores, etc.
107

construindo uma conduta moral a ser seguida juntamente aos missionários, é a


responsável por propagar a novidade.
Nesse sentido, os elementos que diferem a segunda e a terceira geração da
primeira geração dizem respeito: à constituição de um sujeito moral a partir da
experiência cotidiana nas atividades das comunidades já estabelecidas pelas lideranças
da primeira geração e a centralidade da família cebista neste processo; e o fato de terem
seus nomes cotados para assumir alguma liderança.
No que tange ao aprendizado na comunidade, é interessante perceber que ter
feito parte de Grupo de Jovem e/ou Pastoral da Juventude é algo em comum entre os
não fundadores. Assim, a segunda e a terceira geração se constitui desde jovens que
estavam presentes na formação dos Sindicatos, mas não participaram efetivamente, até
aqueles que cresceram dentro das comunidades, e por isso aprenderam o saber fazer do
Mobon no dia a dia da família religiosa, vendo a atuação de familiares e/ou vizinhos nas
atividades das comunidades. Um aprendizado baseado em “relações horizontais de
parentesco e vizinhança, de trocas e reciprocidade” (Cintrão, 1996). Participaram dos
Grupos de Jovens e da Pastoral da Juventude, mas nem todos, necessariamente
estiveram na Casa do Mobon, ou fizeram os cursos Pré-Boa Nova ou Boa Nova. Nesse
momento, ser líder já não depende mais da realização de cursos, mas sim da experiência
cotidiana em que se vivência. Apesar de alguns não conhecerem a Casa, ou mesmo não
terem feito os cursos específicos para formação de lideranças, todas as lideranças da
segunda geração conhecem, admiram e já “foram preparados” por João Resende em
vários momentos, principalmente em “formações” realizadas pelos sindicatos. Essa
geração é quem dá a manutenção aos ensinamentos passados pelo Mobon na figura de
João Resende, missionário que tem por características suas “andanças” pela região,
sendo lideranças recentes na vida política partidária.
O atual vereador pelo PT de Cruz da Mata conta que apesar de nunca ter ido à
casa de curso do Mobon, ele fez cursos no Sítio Senhor Bom Jesus43 em Manhumirim
para receber formação antes de ministrar os cursos.
As pessoas iam lá e passavam pra nós, eu quando eu comecei assim a
participar de curso fora já foi aqui na Casa de Curso também que é um pouco

43
O Sítio Senhor Bom Jesus também foi onde as lideranças entrevistadas em Martins Soares fizeram a
maioria de seus cursos, sendo que alguns deles ajudaram na construção. Outras casas de cursos que
aparecem frequentemente nos relatos de acordo com a localização geográfica da liderança são a casa de
curso de Eugenópolis e a de Vargem Grande. Estas casas podem ser vistas como espaços de
sociabilidade, interações, trocas e intensificação das relações. Na CF 2018, João Resende incentivou que
não se isolassem em “montinhos” com as pessoas que vieram, pois ali tinham um espaço para trocas de
experiências.
108

parecida com essa do Mobon, não é tão famosa como a do Mobon, mas aqui
em Manhumirim... (Roberto Castro, segunda geração, relato, 22.03.18).

É interessante pensar as casas de cursos, inclusive a do Mobon, como espaços de


sociabilidade, entretanto, a casa não é uma centralidade, visto que muitas das lideranças
com quem tive contato passaram por espaços de formações distintos, de acordo com a
localidade de residência. É importante ressaltar que a ideia do Mobon é movimento, por
isso, como já visto anteriormente, as “andanças” de Alípio Jacinto e João Resende pelos
municípios da Zona da Mata, quando convidados pelos párocos locais. Dessa forma, tais
deslocamentos também se configuram como espaços de sociabilidade fundamentais
nesse processo.
Muitas vezes a própria comunidade pode ser vista como um parentesco por
consideração pela partilha de valores, atividades e espaços. Abaixo fica evidente a
centralidade da família na construção social destas lideranças de segunda e terceira
geração, que reflete a de muitas outras lideranças mais novas que crescem em um
ambiente em que as Ceb’s já existem e já fazem parte da organização cotidiana da vida.
A rotina dos grupos de reflexão e das atividades da comunidade são aprendidas como
natural desde muito cedo na vida destas lideranças, estabelecendo relações
comunitaristas. Em ambas as narrativas pode-se perceber a importância da influência da
mãe na criação religiosa dos filhos, o acompanhar a mãe é frequente nas narrativas,
como pode ser visto abaixo.

No final dos anos 80, onde eu ali estava com uns 13, 14 anos né, na fase da
adolescência e comecei a ter o contato com o trabalho de comunidade. Eu
acompanhava minha mãe nas rezas, nos cursos de... naqueles cursos do Pré-
Boa Nova de Natal de Semana Santa, eu acompanhava minha mãe e ali eu fui
ouvindo aquelas reflexões, aquelas coisas que o povo falava. Eu já conseguia
ler e o povo colocava eu pra fazer umas leituras né e eu vim pro município de
Conaçara, a gente mudou, é, a minha família sempre foi sem-terra, então meu
pai sempre trabalhou nas fazenda e era uma cara muito requisitado pra
trabalhar nas fazenda e tal e aí a gente vem pra trabalhar numa fazenda, numa
parceria de meia e nessa comunidade eu comecei a então a ter o contato com
o movimento sindical. Tinha 15 anos de idade, em 1990, mais ou menos
assim, é o contato com o movimento sindical. E por ter como base, a vivência
de participar daquelas atividades da comunidade, o movimento sindical deu
uma visão muito ampla da questão social, da questão política e tudo. E foi
muito interessante porque quando eu começo a participar do movimento
sindical, né, o final dos anos 90, o final dos anos 80, o começo dos anos 90,
tudo era muito novo, tudo era muito novo né. É... os movimentos sociais
assim que a gente tem envolvimento de luta, ele tudo foi gestado nesse
período. [...]. (Joaquim Pedro, relato concedido a autora do trabalho em
24.02.18)

Eu já tenho influência dentro de casa, né. Eu sou católica, sou da religião


católica, sempre participei, minha mãe sempre me levou pra Igreja, então,
109

desde pequena que eu participo do movimento das Ceb's, desse núcleo, do


grupo de reflexão, de tá na catequese, então... meu pai nunca gostou de
igreja, meu pai não é de ir na igreja, mas o meu tio Joaquim Pedro que é dos
movimentos sociais também, a gente morava junto então ele sempre me,
ajudava minha mãe me carregar, desde pequena gordinha, pesadinha, então
assim, ele ajudava a minha mãe, então desde criança que eu participo desse
núcleo das Ceb's. Eu não participei de curso do Mobon, assim sabe porque eu
sou dessa geração mais nova então eu não peguei tanto, mas das Ceb's eu
sempre participei e eu me identifico né, da religião, daí que eu acho que me
engrenei nos movimentos sociais, porque fui crescendo né, então depois eu
passei, fui ser catequista, então passei um tempo sendo catequista na
comunidade, depois eu me identifiquei com o cântico, que eu adoro cantar,
então fui fazer parte da equipe de cântico, depois fui chamada pra fazer um
curso de formação em relação a jovens, então eu fui fazer esse curso também,
promovido pela Paróquia na época, era de Cruz da Mata, que eu sou da
cidade de Cruz da Mata, e aí fiz esse curso.[...] E surgiu uma vaga pra
trabalhar na Cooperativa, que é a Cooperativa de produção da Agricultura
Familiar. Aí o tio falou assim "por que que você não faz? Faz a entrevista" e
eu fiquei com aquilo na minha cabeça. Falei assim "ah, eu entendo tão pouco
de cooperativa, de sindicato", porque até no momento meu envolvimento era
muito pouco, muito artificial. Aí eu falei assim "eu vou fazer". No dia eu
quase perdi a entrevista porque lá no serviço não queria deixar eu sair, eu saí
assim, nos últimos, nos finalmentes do segundo tempo, como diz o outro, fui
fiz a entrevista e pensei assim "ah eu não vou passar porque tinha professor,
tinha pessoas muito mais gabaritadas do que eu, assim, que entende muito
mais de cooperativismo que eu. Aí pronto, saiu o resultado, no sair o
resultado eu fui selecionada para trabalhar na cooperativa. Imediatamente
com a cara e com a coragem pedi baixa da minha carteira e fui trabalhar na
Cooperativa. Isso foi no ano de 2010 (Elaine Vitoria, terceira geração,
relato, 24.02.2018).

Assim o aprendizado do saber fazer do Mobon perpassa também pela família e


suas relações dentro e fora de suas comunidades. Esse saber fazer também se desloca
junto aos corpos morais sendo passíveis de aprendizado também dentro das atividades
das comunidades, como os Grupos de Reflexão, o Grupo de Jovens e a Pastoral da
Juventude. O que significa dizer que a formação das lideranças de segunda e terceira
geração, não se deu necessariamente nos cursos Pré-Boa Nova e Boa nova, mas sim
através do cotidiano cebista, graças às ações das lideranças de primeira geração que a
fundaram e/ou dinamizaram uma comunidade já existente. Nesse ponto se faz
interessante perceber que este saber fazer passou de geração para geração podendo
variar no conteúdo, mas mantendo um núcleo forte em questões metodológicas como a
discussão em grupos, os temas serem adaptados ao contexto local, refletidos e
debatidos; a formação de lideranças antes de que elas saíssem para ministrar um curso;
os cursos serem ministrados em duplas, etc.
Uma liderança da segunda geração que ocupa cargo na câmara dos vereadores
em seu município exprime sua “paixão” pela metodologia reflexiva dos Grupos de
Reflexão e da Pastoral da Juventude. Repare que os Grupos de Reflexão já se
110

encontravam consolidados para essa geração em contraposição à primeira, cuja


responsabilidade estava na sua criação. De acordo com Roberto Castro, que se assume
católico, apesar de questionar a Igreja Católica por sua ala que faz uma “lavagem
cerebral” nos fiéis, ele se diz “apaixonado pelos Grupos de Reflexão” e pelas “aulas da
Pastoral da Juventude”.
[...] As aulas das pastorais, as aulas do grupo de reflexão é uma coisa muito
bacana, porque esse negócio de discutir a realidade, querer transformar a
realidade, isso é pra mim isso... então... a trajetória minha toda eu tava na
Pastoral da Juventude, mas também participava dos Grupos de Reflexão.
(Roberto Castro, segunda geração, relato, 22.02.2018)

Assim, apesar de Roberto Castro nunca ter ido ao Mobon e não ter feito curso da
Boa Nova, ele aprendeu a metodologia reflexiva ensinada à geração anterior através dos
Grupos de Reflexão. Essa mesma metodologia sobre textos bíblicos poderia ser
utilizada de outra maneira, ao se adaptar as normas morais a outros contextos em que se
encontravam, algo como um “ajuste situacional” (Theije, 2002), e foi o que aconteceu
com a Pastoral da Juventude em Cruz da Mata.
Aí depois de uns três anos que a gente tava fazendo esse trabalho, foi lá
tivemos o primeiro envolvimento com a questão política, porque a gente
trabalhava religião, preparar as pessoas ali pra discutir a importância da
religião ali na zona rural era muito forte. A partir dali nós também
começamos a discutir a questão política, aí começamos a discutir, na época
era um pouco mais forte discutir essa questão de, de... começamos a discutir
a questão dos partidos... [isso era que época mais ou menos?] Foi na década
de, finalzinho de 80, 88, até 90, aí começamos a discutir, eu sei que culminou
com a, aquela eleição do, do Collor, que aí nós achamos interessante discutir
isso, porque nós ainda não tinha percebido que tinha alguma coisa de
estranha naquela veste do, do Collor. Aí começamos a fazer uma discussão
de partido de esquerda, o que significava partido de esquerda, de centro, isso
era bem forte na época, de direita e tal... [Isso no Grupo de Jovem?] É, isso...
aí já... o Grupo de Jovem já tinha transformado na Pastoral da Juventude, que
era uma organização dos jovens na Igreja católica e aqui na nossa diocese era
bem forte esse, e aí eu achei engraçado que não sei se foi a eleição de, não sei
se foi 92, nós enquanto pastoral da igreja dentro do município, fizemos uns
discursos em todas as comunidades e achamos interessante nós lançar um
candidato a vereador da Pastoral da Juventude e assim foi um troço muito
forte naquela época. Aí nós conseguimos colocar tipo de suplente, a menina
que nós escolhemos ela ficou de suplente. Aí depois eu, também participei
muito do grupo de reflexão, foi muito forte minha participação nos grupos de
reflexão, até hoje eu ainda participo, lógico que com menos afinco porque a
questão do tempo tá pouco, mas sempre gostei porque eu achava que era uma
coisa bacana da Igreja Católica que tinha aquilo (Roberto Castro, segunda
geração, relato, 22.02.2018).

A política, de uma maneira mais explícita, aparece fortemente na Pastoral da


Juventude, com discussões sobre o cenário político nacional, os posicionamentos etc.
Essa maneira explícita de refletir sobre a política, valendo-se dos textos bíblicos
também implicará num aprendizado e questionamento mais profundos para a terceira
111

geração. Dito de outro modo, a metodologia de reflexão perdura, se multiplica e se


intensifica através dos movimentos sociais que se desdobraram das Ceb’s e dos Grupos
de Reflexão incentivados pelo Mobon. Mas não apenas nos grupos, a reflexão do que se
entende por moral em outros contextos que não o religioso, ou seja, no cotidiano da
vida, é essencial no trabalho constante de si. A constante vigilância dos pensamentos e
atitudes faz parte da vida dessas lideranças.
Parece-me que a metodologia reflexiva nessa ala da Igreja Católica próxima à
Teologia da Libertação, citada por Roberto Castro, Joaquim Pedro e Marcelo Magalhães
leva à intervenção político-partidária como possível solução. Entretanto, como veremos
adiante, essa solução é provisória, dados os dilemas morais que se depararão no mundo
político.
Eu tava militando na Pastoral da Juventude, mas já fui convidado pra mim
fazer parte do movimento sindical, mas sempre com esse elo no grupo de
reflexão... [Ah então você foi convidado pra participar, o sindicato já
existia?] Já existia, 87. Na verdade assim, é fui convidado pra fazer parte da
diretoria, eu participei da Assembleia de Fundação do Sindicato, participei da
mobilização pra criar o sindicato... Isso assim, eu era bem, bem novo né...
[...] nós, eu ia, eu tava junto ali, mas eu num era uma liderança que puxava,
eu era da base que tava junto ali com o pessoal. Então eu lembro da
Assembleia de Fundação, eu lembro dos primeiros, das primeiras atuação do
movimento sindical, mesmo com as perseguição, aquelas lideranças do
sindicato passou aqui em Cruz da Mata, muitas vezes[...] (Roberto Castro,
2°Geração, relato, 22.02.2018)

Ao se destacar, no Grupo de Reflexão e se tornar liderança na Pastoral da


Juventude, o atual vereador foi convidado para participar da diretoria do sindicato, dada
seu evidente prestígio como liderança. Apesar de participar do sindicato e estar por ali
circulando, ainda não era uma direção sindical.
No que tange ao sofrimento corporal diferenciado, esta fala é instigante pelo fato
das lideranças da segunda geração se lembrarem que houve perseguição e as lideranças
sindicais da primeira geração seguiram atuando. A conotação de quem se lembra ou
soube é significativamente diferente de quem experienciou a perseguição, mas
infelizmente, na tradução do oral para o escrito (Bauman e Briggs, 2006; Vansina,
2010) perdemos a dimensão do sensorial, resta-me registrar as lágrimas, silêncios,
engasgadas e olhares fixos no ar da primeira geração ao me contar sobre a perseguição.
Todas essas experiências, muitas vezes vistas como uma “missão” – familia, a
atuação das atividades da comunidade e a participação no sindicato, ainda que não como
dirigente – vão construindo um tipo de sujeito moral específico e diferenciando estas
lideranças do tecido social como alguém de posse de relações que podem ser
112

reconvertidas em capital político, seja ele eleitoral ou não (Coradini, 2001). É nesse
sentido que a segunda e a terceira geração de lideranças tiveram seus nomes “cotados”
à candidatura de algum cargo público. Tais lideranças são postas em “apuros” com um
tipo de pressão incentivadora, situação que remete aos primeiros dias enquanto
lideranças religiosas formadas pelo Mobon, em que eram designados para ministrarem
cursos quando ainda não se sentiam preparados.
A cotação do nome é acompanhada do incentivo dos mais velhos para entrada
nos movimentos, sendo que o fato de não se ter experiência no trabalho não é visto
como um empecilho para a entrada, já que é “na luta que se aprende”. A reputação, o
caráter e o “dom” da liderança religiosa vale mais que anos de conhecimento do
trabalho sem “experiência de base”. Ser visto como liderança que se destaca e o
incentivo dado a estes sujeitos é uma característica do processo salientada por vários
estudos (Kerandel e Del Canto, 1977; Comerford, 2003; Oliveira, 2012).
Entre as lideranças da segunda e a terceira geração, todas as lideranças com
quem interagi relataram em algum momento da conversa que tiveram seus nomes
“cotados”, ou seja, o reconhecimento da moralidade e da capacidade de ser uma boa
liderança, passa antes pelo reconhecimento da comunidade e/ou do grupo a que se
pertence que por uma escolha individual isolada. A cotação do nome tem estreita
relação ao “prestígio social” que vai sendo adquirido na luta e nas mobilizações
(Palmeira, 2010b; Comerford, 2001; Oliveira, 2012; Weitzman, 2016) Em geral, ao ter
o nome sugerido para liderar ou coordenar algum grupo, a reação é de receio, de
incerteza, mas o próprio acolhimento e incentivo do grupo constrói a liderança que já
vem se destacando.
No caso da liderança da terceira geração abaixo,
[...] aí entrei como funcionária [da cooperativa], fiquei 2010, 2011, 2012.
Quando foi em 2013 me convidaram pra uma reunião e perguntaram se eu
queria assumir a direção da cooperativa, porque viram meu desempenho né, a
comunicação, essas coisas que as pessoas avaliam que a gente acha que é tão
natural, mas que quem tá de fora vê que é um, um líder, né é uma liderança
porque se destaca. Aí eu topei, falei assim "não, pra mim tudo bem, eu quero
eu já tô mesmo, eu já tô fazendo e eu gosto" e aí foi onde eu assumi na
coordenação geral da Cooperativa em 2013, isso mesmo. [...] Só que em...
2016 pra cá minha vida deu uma reviravolta totalmente. Que eu tava na
Cooperativa e assim, aquilo ali pra mim ia chegar o dia de vencer meu
mandato eu iria sair e procurar outras coisas a fazer. Eu fui convidada pra
participar de uma reunião da direção do sindicato, que é a instância maior no
nosso município, é onde existe uma instância de vários sócios e tal. É ele que
conduz esses outros caminhos. Foi através do sindicato que abriu a porta da
cooperativa de produção, que abriu a porta pra cooperativa de crédito, as
próprias associações das mulheres, né desse núcleo todo organizado. E
simplesmente eu cheguei na reunião, participei das reuniões de capacitação
113

que foi feito vários momentos de capacitação pra questões de assumir algum
cargo dentro do sindicato. E na penúltima reunião, eu sem movimentar,
porque eu jamais estava trabalhando pra isso, levantaram meu nome pra
assumir a presidência do sindicato, a coordenação geral do sindicato. Eu a
princípio rejeitei, falei que eu não tinha condições porque eu estava na
coordenação geral da cooperativa, que eu poderia ficar até no secretariado,
que eu sei que tem menos responsabilidade e falei que não tinha condições.
Aí o pessoal "não, você vai reavaliar porque a gente quer você na direção,
você é uma menina jovem, mulher, e a gente nunca teve um jovem na
presidência do sindicato de Conaçara e muito menos mulher. [Foi a primeira
mulher também?] Não, não foi a primeira mulher, fui a terceira mulher, mas
em relação a jovem a primeira. Aí eu fui de uma certa forma pressionada
porque tem alguns fatores políticos também, que isso é do município, dentro
dos movimentos sociais, onde depois foi feito a reunião com os meninos da
cooperativa, no sentido de entender a importância de eu migrar pra essa
direção também. A Efigênia, que era a atual presidente, estava saindo porque
ela foi concorrer a uma vaga política no município né. Vir se vice-prefeita,
que se candidatou e ganhou as eleições, então ela já estava se afastando por
isso também e me deram total apoio, o pessoal entendeu essa necessidade e
eu fui. Quebrando a cara, bastante até hoje, porque é totalmente diferente
sindicato com cooperativa, né cooperativa eu já sei tudo digamos assim né, e
do sindicato praticamente nada. Eu sabia muito artificialmente, sócio, não
sócio, que mexe com crédito fundiário, habitação, mulheres e tal, tem suas
secretarias, mas como se trabalhar isso? Aí, de 2016 pra cá, minha vida teve
essa reviravolta toda, tô agora na direção geral e tamo trabalhando. (Elaine
Vitoria, terceira geração, relato, 24.02.2018)

Tal liderança teve seu nome cotado por duas vezes em dois cargos distintos. E
mesmo não tendo tempo para assumir a Coordenação Geral do Sindicato, recebeu
insistentemente pedidos para que reavaliasse, já que sua participação dizia respeito
também a uma estratégia política municipal, devendo substituir a coordenadora em
questão para que ela pudesse se candidatar a um cargo nas eleições municipais. Aqui há
também uma preocupação com o coletivo, uma responsabilidade social, uma
representação realizada de acordo com o que sabe que se espera dela.
Embora a segunda e a terceira geração tenha muitos pontos em comum, existem
especificidades que devem ser demarcadas. A segunda geração é aquela que “compra a
briga” para que novos corpos adentrem o Movimento Sindical e, portanto, é crítica à
manutenção do poder de alguns fundadores. Outra diferença interessante diz respeito ao
sofrimento corporal que não tem suas necessidades básicas supridas na luta pela
consolidação do sindicato. A última diferença está relacionada ao fato de que o
aprendizado da terceira geração ter se dado em um ambiente em que ambos, primeira e
segunda geração estavam presentes, de forma que a “briga comprada” influencia no
“fazer da luta” desta geração.
Nesse sentido, as lideranças da segunda geração não fundaram o sindicato,
tendo iniciado sua participação posteriormente à fundação.
114

E, em 85, Conaçara, criou o Sindicato dos Trabalhadores, fruto então desse


trabalho das CEB's. Eu não participei desse momento, eu chego depois, eu
chego cinco anos depois, né. O sindicato já tinha cinco anos de idade e era
muito forte esse movimento sabe dos cursos de formação, sabe os cursos do
Mobon, o João Resende, o Alípio, o frei Arruda. Eram as pessoas que iam
pras comunidades e ficavam três dias com o povo, fazendo aquelas reflexões,
fazendo aqueles desenhos e falando da organização do povo, falando do
trabalho escravo (Joaquim Pedro, segunda geração, relato concedido a autora
do trabalho em 24.02.18).

A liderança acima relata que chegou cinco anos após a fundação do sindicato e
que nessa época o movimento era muito forte. O período de enfrentamento inicial
característico da criação de uma instituição que surge para garantir e legitimar os
direitos dos trabalhadores rurais, como as perseguições, ameaças e violência física, não
foi vivenciado por essa liderança, como foram pela primeira geração para toda a
segunda geração, dado o recorte etnográfico da categoria geração estabelecida. Nesse
relato podemos perceber a importância do movimentar-se, o deslocar-se para realizar os
cursos de formação. O deslocamento, a suspensão do cotidiano para uma vivência
coletiva e isolada da realidade cotidiana aflora o senso de coletividade, seja no
movimento religioso ou no sindical. É nesse deslocamento pelas estradas em constante
viagem para os cursos de formação do Movimento Sindical que o corpo padece em suas
necessidades básicas como dormir, comer e beber.
Pra você entender, eu enquanto liderança que a maioria das pessoas se, que
fez a trajetória que eu fiz, os meus parceiros, as pessoas que viajaram comigo
em muitos desses lugares, passando fome e sede na estrada, hoje continuam
nas direções dos movimentos, uns em cargos parlamentares, já em segundo,
terceiro mandatos, outros em direção de movimentos 5, 6 mandatos, muito
bem remunerados, muito bem, sabe, caminhando muito bem. Porém, pisando
na cabeça dos seus próprios irmãos pra manter nesses cargos. [...] Eu entro e
saio em qualquer município desse, em qualquer hora, em qualquer dia, sabe,
não tenho nenhuma mágoa e não tenho uma rixa. [...] Festa de 10 anos de
comemoração dos sindicatos na Zona da Mata, aí me pediram 'você pode
contribuir na mística?' Porque nós já comprava uma briga dentro do
movimento pra ter esse espaço das mulheres participarem... você acha que a
participação das mulheres no movimento foi assim do dia pra noite? Não, foi
uma conquista, com muita briga, né, e da juventude a mesma coisa. [...]
Então, assim... o sindicato comemorando os 10 anos de luta. Nós vivendo um
momento forte ali na década de 90, nos meados de 90, eu já tinha vivenciado
a experiência de ser candidato a vereador e estava muito ansioso querendo
organizar a juventude rural, a juventude camponesa, né. Em 95 eu tinha
participado de um encontro, do Regional Leste II, que a organização que a
gente chamava, que era o estado de Minas e Espírito Santo, eu voltei desse
encontro empolgadíssimo pra organizar a juventude nessa região, né. E
compramos briga muito grande, pra organizar a juventude rural, manter
aqueles grupos que já tinha e lutar pela identidade né Pastoral da Juventude
Rural. (Joaquim Pedro, segunda geração, relato concedido a autora do
trabalho em 24.02.18)
115

A segunda geração é a que “briga” por espaços dentro de um movimento que já


existe, mas está centralizado na figura dos fundadores. Espaço para os “jovens” criados
nessa dinâmica reflexiva das comunidades, para mulheres que já vinham se organizando
em comissões a nível estadual e nacional, para negros e negras que se auto identificam
como afrodescendentes e se organizam para partilhar os saberes quilombolas. Os
trabalhadores rurais são heterogêneos e esses interesses começam a aflorar dentro do
sindicato, em busca de uma maior representatividade. A liderança avalia o “testemunho
de vida” de pessoas que fizeram a mesma trajetória que ela, que partilharam a dor de
não ter o que comer ou beber na estrada. Uma visão da unidade dada uma ideologia,
mas que ao longo do tempo não “abriram mão” da posição de liderança para formar e
dar oportunidades aos mais jovens. A avaliação sugere uma “perda dos princípios” na
medida em que para se manter no cargo, a liderança antiga precisa “pisar da cabeça dos
seus próprios irmãos”. Nessa fala “irmãos” remete a mais que “irmãos em cristo” e a
“filhos do mesmo pai” já que para além desta condição, são “irmãos de luta” devido à
unidade construída na dor.
A terceira geração, dado o contexto nacional em que o Partido dos
Trabalhadores já estava a mais tempo no governo, se beneficiou dos projetos e políticas
públicas, viajando com relativo conforto, sem os sacríficos anteriores, bem como
oportunidades de atuação em diferentes espaços. Para relacionar esse contexto nacional
de ter o Partido dos Trabalhadores como “situação” desde o ano de 2002, quando Lula é
eleito presidente do Brasil, podemos pensar o caso concreto do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de um dos municípios da Zona da Mata mineira. Como apontou
Silva (2010) o sindicalismo de Conaçara passou por duas fases que ajudam a pensar
outros sindicatos da zona da mata no que tange ao cenário nacional. A primeira fase em
que o foco é a “luta por direitos” e “pela justiça”, em que a maior parte das ações eram
de mobilização, formação e eventos públicos (passeatas, marchas e manifestações) pode
ser associada à primeira geração. Já a segunda fase, marcada pela “gestão de políticas
públicas”, que no período de governo PT se ampliou para quase todas a áreas do Bem-
Estar Social na zona rural (habitação rural, crédito fundiário, compra institucional de
alimentos das cooperativas da agricultura familiar, etc.) se associa a segunda e a
terceira geração.
Há que se diferenciar também a profundidade dos questionamentos no uso do
saber fazer do Mobon, já que a terceira geração cresceu em meio a lideranças da
segunda geração comprando briga e aprendeu a metodologia reflexiva já com termos
116

políticos explícitos. Como fica evidente na fala “eu já dei uma grande contribuição e
vejo que já é hora também de outras pessoas vir com ideias novas” (Elaine Vitória, 3
Geração, relato, 24.02.18), em que se preza pela formação de novas lideranças que
trarão novas ideias, novas ressignificações e contribuirão na constante construção do
processo.
***
O cerne que tentei evidenciar nessa subseção diz respeito a uma lógica
sequencial das experiências, qual seja, entrada no catolicismo pela família,
comunidades, sindicato e partido, que se diferencia de acordo com o espaço, mas
também com o período que se “dá entrada” no movimento. A etapa em que uma
liderança da segunda ou terceira geração entra num processo iniciado anteriormente
pode sugerir explicações contextuais do período e facilitar a compreensão de uma
ampliação de pautas e quiçá uma segmentação e que contribuirá para uma posterior
fragmentação. Se por um lado, há uma manutenção de um “modo de ser cristão” e dos
saberes aprendidos no Mobon, por outro lado, as experiências corporais em contextos
distintos proporcionam o uso da própria metodologia reflexiva aprendida no movimento
para questionar pautas e questões dadas como naturais. Observe, entretanto, que a
geração não diz respeito unicamente à faixa etária, mas sim ao conjunto de experiências,
embora a idade esteja como pano de fundo.
A “época do Mobon era muito boa” proferida tão frequentemente em tom de
saudosismo também pode ser pensada como uma parte específica do que poderíamos
chamar, seguindo a noção de “tempo de política” (Palmeira e Heredia, 2010a), de
“tempo do Mobon”. Uma vez que os cursos do Mobon eram e ainda são dados em
“regime de internato” (Oliveira, 2012: 110), há uma suspensão do cotidiano que permite
compreendê-lo como um tempo distinto, nesse sentido.
Ritualmente os cursos são oferecidos para as comunidades da Casa do Mobon,
em Dom Cavati, logo, o “tempo do Mobon” segue em processo. No entanto, para meus
interlocutores, especialmente os da primeira geração que tiveram maior contato com a
casa em 1979 e na década de 80, a referência é realçada no passado. “Nessa época” a
suspensões do cotidiano tinha duração desde seis até três dias de imersão, tendo uma
redução gradativa, dada a dificuldade de o trabalhador deixar seu trabalho. Esses
momentos rituais reforçam os vínculos e as relações sociais, como também mostrou
Prado (2007) em que o tempo das festas é exatamente o tempo da reciprocidade, certas
propriedades de relações que são próprias dessas festas, se mostrando diferentes das
117

relações em momentos outros. Embora os cursos tenham sido dados também em outras
casas de cursos a referência se faz como “Aí o pessoal do Mobon veio aqui” ou “João
Resende vinha preparar a gente”, em geral, quando dizem Mobon estão se referindo à
casa, mas que esses também são momentos de suspensão.
Aos poucos a segunda e a terceira geração já habituadas ao deslocamento, ao
pegar a estrada, engajadas no movimento sindical e políticos passam a vivenciar o
“tempo de formação” como uma forma de imersão e sociabilidade que aprofunda
relações e pertencimentos. Em suma, são “tempos de deslocamento”, tempo de deixar o
cotidiano e “pegar a estrada”, de “organizar a luta” de mobilização e movimentação.
Apesar de não se adequar ao caso específico desta pesquisa, a percepção
diferenciada do tempo em comunidades argelianas (Bourdieu, 1963) ajuda a pensar
sobre as diferentes formas de se relacionar com o tempo e como isso implica nas
relações morais imbricadas no cotidiano. A percepção do tempo nas comunidades e na
religião, assume características de sociedades camponesas, sendo o tempo não é uma
sequência abstrata e homogênea, mas uma relação com o concreto. A própria dinâmica
da sociedade impede a pressa, caso contrário perderia prestígio social.
Interessante perceber que mesmo esse sujeito moral específico que se pauta no
saber fazer do Mobon, que já faz parte de si mesmo, se vê em desafio constante no
contexto da política partidária, já que os princípios de união, solidariedade e justiça
social podem muitas vezes não funcionar no mundo da política, ambiente visto como
pautado em uma lógica da divisão. A formação religiosa da comunidade ideal não é
pensada em termos de relações pessoais, mas sim como um ente que está acima das
relações pessoais. Ou seja, numa perspectiva religiosa a comunidade se relaciona a um
espaço para o trabalho de si mesmo e da produção de si enquanto uma pessoa virtuosa.
E em certo sentido, essa dimensão organizada por formas de relações comunitaristas,
são transferidas, para o mundo dos sindicatos. Aí se encontra o germe dos dilemas:
como fazer política pautada por relações comunitaristas diante de um mundo em que o
que está em jogo é a política partidária sendo pensada como feita por relações pessoais
e interpessoais, como troca de favores, como um jogo em que ou se perde ou se ganha?
Esse é o debate central que se fará no capítulo que se segue.
118

CAPÍTULO III

DILEMAS INCOMPREENDIDOS: EXEMPLARIDADE, SUJEITO


MORAL E JULGAMENTOS

O cerne deste capítulo está na reflexão acerca da dinâmica da política partidária


de municípios sob perspectiva de lideranças que tiveram formação direta e indireta do
movimento religioso católico-cebista e passaram por experiências no movimento
sindical de trabalhadores rurais. Guiada pela perspectiva das subjetividades morais,
reflito sobre quais dilemas, julgamentos ou autojulgamentos, e que tipo de trabalho
consigo próprio ocuparam posto de relevância na experiência com a política partidária?
Para tanto, é valido se questionar sobre: quais condutas eram esperadas e
valorizadas como prescrições advindas do código “ser cristão”? Qual o comportamento
dos indivíduos com relação aos valores e regras propostos pelo conjunto prescritivo
moral no contexto sindical e partidário?

3.1. Situando a discussão


Inspirada na compreensão da moral de Foucault (2018a) em três dimensões: “um
código moral”; “uma moralidade dos comportamentos”; “a maneira como cada um deve
constituir-se como sujeito moral”, o interesse desta pesquisa está justamente em
compreender a tensão de um sujeito moral advindo de uma dimensão religiosa
reconstituindo-se enquanto sujeito moral na dimensão político-partidária.
Nesta perspectiva, nos atentamos para as diferentes formas de sujeição ao
“código moral”. Um mesmo “código moral” pode apresentar diferentes “modos de
sujeição”, de sorte que o modo como lideranças estabelecem suas relações com as
regras, bem como a forma como se conhece vinculado à obrigação de praticá-la entre
lideranças. O que quero dizer é que a maneira como a liderança religiosa estabeleceu
sua relação com as normas e o modo como se reconhece sendo obrigada a praticá-las
são diferentes, não somente em termos individuais, mas também se transforma ao longo
do tempo. A constituição do sujeito histórico é um eterno fluxo entre o sujeito e os
“jogos de verdade” presentes nos grupos sociais, no caso específico nos campos
religioso, sindical e político.
119

Ora, mas se “é verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em
que se efetua” (Foucault, 2018a: 36) é verdade também que o contexto em que tal ação
é efetuada se mostra de extrema importância para compreendê-la. Nesse sentido, não se
trata apenas se seguir ou rejeitar as normas prescritas no código moral, mas sim de
compreender os desafios morais impostos a essas lideranças ao transitarem entre
mundos sociais pautados por códigos e “hábitos” (Das, 2012) distintos. Nessa
perspectiva Theije (2002: 43) chama de “ajustamento situacional” o ajuste, a adaptação
do que se aprende e dos discursos ao longo da vida cotidiana, é “a interpretação
contextualizada de discursos e mensagens”. Dessa forma, a interpretação de uma
mensagem, ou uma prescrição, assim como a maneira como esta é posta em prática, não
necessariamente será condizente com a intencional, da proposta originária.
Podemos, assim, pensar sobre a ressignificação necessária ao sujeito católico-
cebista quando se depara com as novas regras e/ou lógicas do mundo político. Como
visto no capítulo I, as regras do mundo religioso remetiam à união, fraternidade,
colaboração – relações comunitaristas – enquanto o mundo político jogava com regras
voltadas para a divisão, a acusação, competição, disputa de votos (Palmeira e Heredia,
2010b), mesmo entre os integrantes de um mesmo partido (Heredia. 2010a), etc. –
relações pessoais.
Podemos, então, “pensar de que maneira e com que margens de variação ou
transgressão os indivíduos ou grupos se conduzem em referência a um sistema
prescritivo” (Foucault, 2018a: 32). Nesse sentido, minha leitura de Foucault se
aproxima da feita por Laidlaw (2013) na medida em que compreendo o pensamento do
filósofo sobre subjetivação e liberdade como útil para a antropologia pensar sistemas
éticos e que não se trata de uma simples reprodução habitual, ou de uma prática
inconsciente, mas sim de uma fabricação de si, ou seja, a ética vai além da dimensão de
seguir regras socialmente aceitas. Laidlaw (2002) argumenta que nas técnicas de si
religiosas e formais, a partir da reflexão, as pessoas têm suas condutas moldadas por
tentativas de fazer de si próprias um tipo de pessoa e, portanto, sua conduta é ética e
livre, podendo ser admitida como um exemplo de liberdade ética. Esse trabalho de si
para alcançar um modelo teleológico de conduta também aparece em Mahmood (2006)
ao argumentar que o modo de subjetivação necessariamente envolve o trabalho que se
deve fazer para se colocar em acordo ou em alinhamento com uma tradição moral que
esteja fora de si mesmo.
120

Portanto, trata-se menos de obediência e reprodução das regras e mais da


produção de alternativas que levam em consideração elementos de dois mundos
opostos. A ação moral do sujeito tem normas prescritas que portam novos significados,
uma vez que foram adaptadas ao novo contexto. Assim, o sujeito não recebe
passivamente um modo do ser, mas constrói e reconstrói sua conduta à medida que
vive, se desloca, se pensa a si e aos outros, se avalia e segue e/ou modifica sua trajetória
dados novos contextos.
O trabalho de Simon (2009) sobre a construção das subjetividades morais e
resolução dos conflitos éticos entre os membros de uma comunidade na Indonésia traz
elementos importantes para se pensar a tensão entre dois universos ordenados por
lógicas distintas. Simon (2009) argumenta que na sociedade de Minangkabau, diante da
tensão entre o Islã e o adat – a ordem tradicional fundada no vilarejo –, vários
elementos do adat não foram apagados em função de uma vida social “islâmica”, mas
foram reincorporados nos discursos islâmicos. Um destes elementos diz respeito às
formas de interação social próprias do vilarejo, pautada na prescrição de que para se
alcançar a integração social deve-se eliminar a vontade e o desejo individual. Tais
ajustamentos ajudam a pensar o caso específico do Mobon, ou seja, como elementos do
saber fazer do Mobon/Ceb’s, bem como dos sindicatos, foram reincorporados nos
discursos nas ações político-partidárias, como uma nova maneira de se alcançar uma
mesma finalidade ou a mesma maneira de se alcançar coisas distintas.
Parto do pressuposto de que uma ação moral não é moral somente em si mesma,
mas sim porque está inserida em um conjunto de uma conduta moral que leva o
indivíduo a um modo de ser característico do sujeito moral (Foucault, 2018a). Estamos
tratando efetivamente de um “novo modo de ser cristão”, um “novo modo de ser Igreja”
que se estendeu, a meu ver, a um modo de “ser PT rural”, que poderia ser pensado
também como um “novo modo de fazer política”. O “testemunho de vida” parece-me
dizer respeito, assim, a uma conduta moral que leva a um domínio de si cada vez mais
completo. O modo de “ser cristão”, de “ser PT rural” diz respeito à constituição de um
sujeito moral, do qual se esperam determinadas formas de conduzir-se frente ao desafio
de agir de um modo comunitarista (Ceb´s, sindicato, partido) frente à uma dimensão
organizada por relações pessoais (mundo político partidário).
Considerando que as situações práticas são multidimensionais, é interessante
pensar sobre como a tensão entre as dimensões ordenadas por valores e relações
distintas força uma reflexão balizada entre regras de jogos distintos. É o esforço para se
121

manter coerente com a conduta esperada buscando brechas e possibilidades de agir


diante das constrições que constrói e possibilita uma nova forma de fazer política, não
como se pretendida na dimensão religiosa ou mesmo sindical, mas sim como possível
dado o intercruzamento dessas dimensões.
Como visto no Capítulo I, a exemplaridade (Humphrey, 1997) é uma
preocupação central nos cursos do Mobon proveniente de uma tradição católica cristã
que preza pela formação dos sujeitos éticos. Por isso é interessante analisar o que fica
destes cursos nas lideranças, uma vez que a exemplaridade não se trata apenas das
técnicas de organização – apesar de ter um aprendizado dessas técnicas, que foi
fundamental para toda a questão da organização dos sindicatos e posteriormente da
militância política, dos diretórios do partido – como também é um espaço de produção
de um sujeito moral que tem a ver com tradições, de uma ética da virtude ou cultivo de
certas virtudes que perpassam toda a organização dos cursos. Compreender a
centralidade do cultivo destas virtudes é compreender que essa preocupação, esse
cultivo, permanece na liderança e influencia na maneira como se veem e se pensam a si
mesmas. Daí a importância de ser exemplar e “dar o testemunho de vida”.
Embora fortemente ancorado na tradição cristã, como já salientado por (Das,
2007) a noção de testemunho não é restrita ao cristianismo, ainda que com significados
ligeiramente diferentes no Islã e nas tradições Bhakti no Hinduísmo. A noção de
exemplar também aparece em outras religiões, embora com outros nomes, como entre
as mulheres muçulmanas do Movimento Pietista no Egito (Mahmood, 2006) e o orar
como um transformar-se moralmente entre os Minangkabau, na Indonésia (Simon,
2009). De acordo com Simon (2009), entre os Minankkabau, há uma ideia central de
que a oração deve ser verdadeira para ser eficaz, não se deve somente fazer uma oração,
mas alcançar um estado de oração, ou seja, um estado de consciência moral que possa
ser então transposto para o mundo cotidiano. Ora, essa ideia tem uma íntima relação
com a ideia de “a oração sem ação é morta” presente tão fortemente no Mobon. A
constituição do sujeito moral que participou do Mobon, direta ou indiretamente, passa
pela dimensão de agir moralmente, sendo a atitude tão importante, se não mais, quanto a
oração verbal “da boca pra fora”. O que se assemelha ao estado de oração da Indonésia
seria a conduta moral de acordo com um modo específico de “ser cristão” que seria
praticado no mundo cotidiano, dando o “testemunho de vida”.
Dada a centralidade do exemplar, não podemos nos esquivar da corporeidade na
experiência. É exatamente o corpo que comporta os conhecimentos partilhados, o
122

cultivo das virtudes, o trabalho de si. O corpo constitui e é constituído pelas


experiências tanto religiosas quanto sindicais conformando de modo singular o sujeito
moral que enfrenta os dilemas da política municipal.
Ora, não apenas as normas prescritas, mas todos o saber fazer constituído na
“caminhada”, ou seja, nos cursos, nas comunidades e, posteriormente, nos sindicatos,
oscilavam entre a festividade dos eventos sejam religiosos ou sindicais, e a dor da
violência e perseguição. A centralidade do corpo não pode ser menosprezada nessas
experiências, dado que o mesmo corpo que aprende a se deslocar entre comunidades
para realizar cursos e organizar festividades, é o corpo que se desloca no movimento
sindical para participar de congressos, de cursos e representar seu sindicato em eventos.
Não obstante, esse mesmo corpo que, através da exemplaridade e da conduta moral
esperada, se tornou um corpo de prestígio social é o que sofre a dor da ameaça. São
corpos que partilham a dor da ameaça, que decidem deixar sua vida e se deslocar, agora
não mais visando um projeto coletivo, mas preservando sua via e de sua família; que
decidem ficar e sofrem com a cotidiana iminência da morte e do “agora é minha vez”;
são corpos que partilham a dor da perda de “companheiros” exemplares; corpos que ao
serem exemplares, ironicamente sofreram violência física para servirem como
contraexemplo na política municipal da forma como efetivamente funciona.
De modo mais abstrato, pensando em termos das categorias analíticas propostas
no subtópico 2.3.1, podemos dizer que o corpo ameaçado e que sofre a violência física
são os corpos que se enquadram no que chamei de primeira geração, são corpos que
enfrentaram “fazendeiros grandes” não acostumados a serem questionados jurídica e
legalmente. A segunda geração também tem o corpo marcado pelo sacrifício individual
em prol do projeto coletivo, são corpos que viajam excessivamente dada a grande
circulação do Movimento Sindical. Considerando o baixo acesso a recursos as viagens
eram marcadas pela não satisfação de necessidades básicas, o que inclui a fome, o frio,
o cansaço de dormir no ônibus ou mesmo na rodoviária. A terceira geração é marcada
pelo melhor acesso a recursos, já aprendido pelos anteriores, o que proporciona um
deslocamento menos sacrificial e a troca de experiências com diversas organizações
sociais nacionais e internacionais. Por outro lado, dada a satisfação das necessidades
básicas do corpo e do conjunto de corpos que configura o sindicato e o partido e a luta
já travada pelas lideranças da primeira e segunda geração, outras pautas puderam entrar
em debate de forma mais intensa, como são a negritude, o papel da mulher na
sociedade, o protagonismo da juventude, seus intercruzamentos, etc.
123

Considerando os modos de sujeição às regras constituintes do sujeito moral


construído pelas experiências do Mobon, Ceb’s e sindicatos, como efetivamente se deu
na experiência na política partidária, baseados nas condutas esperadas e nas condutas
efetivadas, podemos dividir as lideranças em grupos diferenciados quanto ao modo de
sujeição às regras. Para tanto, se faz necessário retomar brevemente os principais pontos
de tensão.

3.2. Pontos de tensão, dilemas e justificativas morais


As tensões recorrentes que me foram relatadas foram relativas à ampliação e
realinhamento partidário, de onde emergem os desafios entre as relações comunitaristas
e as relações pessoais. Como já explorado no Capítulo II, enquanto para alguns ampliar
o partido significou aceitar pessoas com outras ideologias e princípios que não os
religiosos e camponeses para alcançar um número capaz de chegar ao poder e
efetivamente concretizar projetos construídos e sonhados, para outros significava o
enfraquecimento da base e a “contaminação” do partido, visto, de certa forma, como
uma extensão da comunidade. Juntamente com o “inchaço do partido” outra tensão que
emerge da intersecção entre o mundo político e o religioso diz respeito às coligações e a
dinâmica partidária própria do mundo político. A característica da fluidez, inerente ao
mundo político, a construção e reconstrução da oposição a cada eleição e no entre
eleições (Palmeira e Heredia, 2010b) foi causa de estranhamento inicial às lideranças.
A argumentação a favor das coligações também passava pela dimensão de
alcançar efetivar os projetos e objetivos do partido e, para isso, era necessária uma
coligação. Entretanto, há uma dissidência entre as que aceitaram as coligações com
partidos da direita tradicional, enquanto outras argumentam que há um limite ético e
moral a ser seguido e, portanto, algumas coligações são inaceitáveis. Em geral, das
lideranças participantes desta pesquisa, nenhuma se opunha ou demonstrou oposição à
coligação com o PMDB, este não era visto como oposição44.
A divisão no modo de sujeição se deu pela aceitação ou não do realinhamento e
coligação partidária. Pauto minha análise nos elementos trazidos por Lambek (2010)
para o exercício da prática de julgamento, que será melhor explorado posteriormente,
para a compreensão dos conflitos cotidianos. Assim, podemos nos questionar acerca dos

44
Entretanto, em conversa informal no Leste de Minas, uma liderança me contou sobre a decisão do
Partido dos Trabalhadores, lançar candidatos à prefeitura sem realizar coligações, o que foi denominado
por ele de “PT puro”, em pesquisa sobre candidaturas, percebi outros dois municípios que realizaram a
mesma estratégia política.
124

atos realizados: a ação era conveniente? Qual a finalidade da ação? De que maneira essa
ação foi efetivada?
Embora em ambos os grupos os discursos do “bem comum” como finalidade
estejam presentes, as estratégias divergem na “caminhada” para alcançar o objetivo.
Segmentei as lideranças em dois grupos. O primeiro grupo é composto de lideranças
que não aceitavam a coligação com a antiga oposição porque isso significaria “perder os
princípios” Nesse grupo, as argumentações tem tom acusatório no que tange à estratégia
da coligação para se alcançar o poder.
Entretanto, o segundo grupo, composto por lideranças a favor da coligação com
a antiga oposição argumentava a favor da conveniência da ação, já que a partir desta
estratégia, se alcançaria a finalidade do “bem comum”, exatamente por alcançar a
efetivação de projetos propostos pelo partido. A conveniência se dava pela maneira
como, em geral, a política em pequenos municípios efetivamente se dá, com no máximo
dois candidatos à prefeito. A polarização entre duas facções não proporciona muitas
alternativas, principalmente quando há conflitos e tensões pessoais e familiares entre
filiados de uma mesma facção. Nesse caso, a escolha está entre deixar o mundo político
ou realinhar e coligar com a facção oposta.
Estamos diante de uma balança entre modos de sujeição às normas prescritas
que pesam mais ou menos para as estratégias ou as finalidades das ações. Enquanto as
lideranças do primeiro grupo não aceitam qualquer estratégia ou quaisquer meios para
se alcançar o fim prescrito pelas normas do código moral, qual seja, a “justiça social” e
o “bem comum”; as lideranças do segundo grupo argumentam exatamente que de nada
adiantaria sonhar com uma finalidade e não conseguir efetivá-la, mais valeria mudar as
estratégias para se alcançar ao menos parte do objetivo final. Essas diferentes
constituições do sujeito moral se deram de formas distintas, obviamente, envolvendo
relações humanas de conflito e /ou afinidade para além do âmbito sindical e político, já
que estamos tratando de agentes residentes em pequenos municípios.
Entretanto, não existem regras explícitas sobre uma única maneira de realizar
essas condutas. A metodologia reflexiva iniciada com os grupos de reflexão no Mobon e
tão presente nos sindicatos também contribui para que o sujeito reflita sobre sua atuação
em contextos diferentes, em que não há prescrições explícitas sobre como conciliar
hábitos religiosos e políticos. No que tange às experiências com o sindicato e o partido
político, não se pode dizer que havia no código moral seguido, instruções e um saber
fazer voltados para o mundo político. Como já visto, muitas das prescrições religiosas
125

eram também cívicas e políticas, entretanto estava voltada para o mundo religioso
cristão cebista, onde valoriza-se a união, humildade e solidariedade. Diante das novas
prescrições constituintes de um código político, que engloba tanto o sindicato45 quanto o
partido, os sujeitos morais constituídos com base nos preceitos da união, viram-se
diante do desafio de seguir a conduta moral de seu modo específico de “ser cristão” em
um campo em que as prescrições eram de competitividade e de divisão.
Algumas das questões centrais no que tange as tensões dentro do grupo e entre
os grupos, estão conectadas à acusação de “perda de princípios” do outro para justificar
moralmente a ação tomada. Ou seja, ao sentir-se traído, já que dada a perda de
princípios o senso de intimidade parece esmorecido, justifica-se moralmente o agir de
forma não condizente com a união, o sacrifício individual e a resiliência.
O senso de pertencimento ao partido a nível municipal baseado nas relações
pessoais se enfraquece dados os conflitos cotidianos, entretanto, o sentimento de “ser
PT” não pareceu abalado. Todo o trabalho de si proposto na formação das lideranças
conjuntamente com a continuidade da prática do saber fazer que foi aos poucos
tornando-se “hábito” (Das, 2012) no cotidiano dessas lideranças, formaram também um
senso de pertencimento que vai além da filiação ou não ao partido.
O que se tem em comum aqui (referente aos casos apresentados no Capítulo II)
consiste num jogo entre interesses pessoais e interesses partidários permeados de
acusações, contra-acusações, julgamentos e autojulgamentos baseados na justificativa
moral da ação. A relação entre as estratégias políticas pessoais, a necessidade de
justificativa moral junto à comunidade e a dinâmica partidária nos mostra a
complexidade das experiências vividas por esse tipo de sujeito moral religioso ao se
envolver no mundo político. São experiência de grande peso emocional e rupturas muito
profundas que remetem ao sofrimento, à raiva e à dor, já que muitas vezes se tratava de
relações de “uma vida toda”. Em alguns casos, como vimos de forma mais explícita,
trata-se de uma relação consigo mesmo, um trabalho sobre si.
Durante as narrativas, ao refletir sobre as condutas de si mesmo e dos outros é
central a importância da ação moralmente justificada. A partir da justificação moral, os
dilemas enfrentados por tais lideranças emergem das narrativas como ações dolorosas,
porém refletidas, dada a subjetividade moral, o contexto da ação – tanto histórico como

45
A experiência da divisão foi também sentida na divisão do Movimento Sindical, como visto no
Capítulo II.
126

local – e os hábitos e práticas do mundo social no qual a ação foi efetivada, as


alternativas possíveis.
A constituição do sujeito moral é processual, o que significa que a cada nova
experiência, novos códigos e novos “jogos de verdades”, o sujeito internaliza, ou não,
novas regras, adapta e ressignifica normas já internalizadas e mesmo a forma como cada
sujeito internaliza novas normas é específica. É nesse sentido que a consideração do
contexto se torna fundamental.
As normas e técnicas prescritas no Mobon/Ceb’s não foram apenas inculcadas
de forma a serem reproduzidas no mundo social, elas envolveram uma dimensão do
sensório e do descobrimento de si. Em outras palavras, a formação das lideranças com
quem interagi, foi permeada por um intenso trabalho de si mesmo e também com
relação aos outros. Esse trabalho de si, num ambiente de intenso julgamento dado o
status de liderança, intensifica o autojulgamento, ou seja, a autoavaliação de sua
“caminhada”, de sua conduta moral. Argumento que o trabalho de si é constante na vida
dessas lideranças, bem como a reflexão em busca de uma ação moral que não abandone
os “ensinamentos cristãos”, mas que também seja factível no mundo político.
Vejamos os dilemas diante de uma tensão recorrente, como o é o realinhamento
partidário. Após um longo processo permeado por dores e conquistas, um grupo nuclear
– “o pessoal do Mobon, o pessoal do sindicato” – fundador do diretório do Partido dos
Trabalhadores municipal, se vê frente ao dilema de aceitar filiações de políticos “sem a
ideologia de base”, “sem a caminhada”. Aí está o primeiro dilema, as narrativas de
fundação do partido apontam para um objetivo quase religioso: o “Reino dos Céus da
Terra”. Um objetivo moral a ser alcançado, traduzido no mundo político como o “bem
comum”, “trabalhar em favor dos pequenos”, ou mesmo do “ser PT de verdade”.
Narrativa semelhante aparece na justificação da criação do sindicato, como pode ser
visto em Comerford (2003). O sindicato e o partido como uma missão se apresentam
quase como um mito fundador, um mito religioso e político que conecta o Mobon, as
Ceb’s, o STR’s e o PT.46 Perceba então, que aceitar “esse pessoal de fora” implica numa

46
Por trabalhar com memórias que se tornaram tradição oral na região estudada, inspirada no mito
“familiar” em Lomnitz & Perez-Lizaur (1987), que pensam o mito como uma narrativa que mantem uma
unidade simbólica de um grupo, podemos pensar num mito “religioso e político” do MOBON, no sentido
de ser uma narrativa, onde são relacionados personagens e acontecimentos para serem transmitidos
oralmente, dando unidade ao grupo. Há que ressaltar, entretanto, que as autoras trataram de parentesco
consanguíneo e por afinidade, enquanto entre as lideranças do Mobon, estou considerando as experiências
vividas na partilha, pensando a noção de “relacionalidade” (Carsten, 2000) e “mutualidade do ser”
(Sahlins, (2011), cria laços mais ou tão fortes que os laços de sangue, que podem ser pensados como
127

reflexão e posterior flexibilização das normas. Uma das prescrições diz respeito ao
tamanho da comunidade que deveria ser pequena para que todos pudessem se expressar,
para criar um ambiente familiar e relações de confiança. Entretanto, no mundo político,
perceberam que um partido com poucos filiados não elegeria representantes e, por
conseguinte, os projetos sonhados para o “bem comum” não poderiam ser efetivados.
Se por um lado existem estratégias e maneiras de se construir um mundo “socialmente
mais justo”, como as comunidades num nível mais micro, ampliar essa justiça para além
das comunidades implicaria permitir o crescimento do partido. Esta tensão e muitas
vezes o desagrado de permitir a ampliação, se mostrou na fala de lideranças que
afirmam que houve um “inchaço do partido”, para essas lideranças não houve um
crescimento, já que as motivações dos filiados não vão em uma mesma direção, mas
como o número de filiados se elevou, pode-se falar de um “inchaço”.
A dinâmica e fluidez do realinhamento partidário apareceu como uma tensão
mais acentuada, uma vez que algumas coligações significavam “perder os princípios”.
A compreensão do funcionamento do mundo político partidário em pequenos
municípios foi central para perceberem a polarização fluida entre duas facções e a
intensificação de divisões que já havia experienciado no movimento sindical. Num
mundo em que as relações pessoais se sobrepõem às relações coletivas, conflitos
pessoais também influenciam negativamente na permanência dos sujeitos.
Como vimos, em geral, coligações com o PMDB não traziam grandes tensões.
Não obstante, alinhar-se com partidos que fizeram parte da oposição no período de
redemocratização e criação dos sindicatos, era visto por algumas lideranças como algo
inaceitável do ponto de vista moral. O segundo dilema se trata, assim, da tensão que
surge em pequenos municípios divididos em duas facções opostas, quando há um
conflito dentro de uma delas. Num ambiente em que o peso das relações pessoais é de
fundamental importância, conflitos pessoais, familiares, de trocas de favores etc.,
podem provocar dissidências internas (Palmeira, 2010a). Esse era o cenário posto para
muitas lideranças cebistas do PT.
Diante de conflitos internos à facção em que se encontrava filiado, havia duas
alternativas imediatas. A primeira delas consiste em permanecer nessa facção, “suportar
todo aquele sofrimento” e ser um exemplar da resiliência tão valorizada nos eventos do
Mobon/Ceb’s. No entanto, algumas vezes, a falta de compreensão do sofrimento e das

parentes por consideração. O que Comerford (2001: 381) chamou de “família de segunda ordem”
formada no processo de estabelecimento e consolidação do sindicato e do partido.
128

inquietações pelos outros membros do partido apareceu não raras vezes como uma
noção de traição, o que dificultava a convivência cotidiana e a “unidade inicial” do
partido. A segunda opção, portanto, surge com a possibilidade de deixar essa facção, o
que poderia se dar de duas maneiras: a liderança poderia “deixar a vida política”; ou
poderia se filiar a outro partido que fosse alinhado à facção oposta.
O pano de fundo destas questões consiste principalmente numa dinâmica entre
interesses pessoais e interesses partidários. Na primeira alternativa, tem-se um sacrifício
individual, típico do cristianismo católico, em prol do coletivo, no caso o partido.
Entretanto, lideranças que permaneceram por um longo tempo “suportando” acusam
outros membros do partido de terem “perdido seus princípios”, o que aconteceu tanto
pela sobreposição dos interesses pessoais acima dos partidários de alguns membros,
como pela recusa de parte do partido a seguir os saberes organizacionais que já faziam
parte das práticas das comunidades e do sindicato.
Na segunda alternativa, deixar a vida política, muitas vezes pode significar
deixar toda uma trajetória de um trabalho de si nessa direção e mais que se abster de um
projeto pessoal, pode ser também que haja uma perda de um projeto coletivo nos
moldes planejados. Faço aqui a ressalva de que algumas lideranças que deixaram a vida
política partidária se empenharam em realizar um “trabalho para os pequenos” de outra
maneira, como advogando para os trabalhadores rurais, trabalhando com a agroecologia,
saúde alternativa, pastorais sociais etc. Ainda dentro da segunda alternativa, poder-se-ia
deixar a facção ao desfiliar-se do partido, ao qual já não se sente mais pertencente, e
coligar-se com a facção oposta, uma vez que deixar a vida política não é uma opção. A
experiência na política partidária em pequenos municípios também mostrou a estas
lideranças que a disputa eleitoral funciona apenas com dois candidatos, ou se está em
uma facção ou está em outra, “se lançar sozinho não adianta”.
Há que salientar que esse fluxo de lideranças entre as facções e partidos diz
menos sobre a ideologia partidária que sobre o peso dos atritos pessoais cotidianos
típicos de um mundo político partidário. Entretanto, as referências aos princípios fazem
parte da narrativa das lideranças, o que nos leva a refletir sobre quais princípios se
utilizam para avaliar as condutas morais da resolução de dilemas cotidianos.

3.3. “Perda de princípios”: quais princípios?


Após os mapeamentos de elementos importantes e constitutivos de um tipo de
sujeito moral, com um modo de “ser igreja”, de “ser cristão”, de “ser PT”, o foco se
129

deslocou para a experiência política partidária, passando obviamente pela experiência


sindical que também a constitui. Entre as ações moralmente justificadas é recorrente a
acusação, contra-acusação ou avaliação de si proferida na fala “perda de princípios”.
Mas, então, faz-se necessário pensar quais são estes princípios? De que maneira se
relacionam aos elementos contidos no código? Ou de que maneira se relaciona com as
experiências sindicais e político-partidárias?
Ainda que em outro contexto, avaliação da ênfase nos projetos de interesses
pessoais como se sobrepondo ao projeto partidário de relações comunitaristas, está
posta através de diferentes narrativas, na “perda de princípios”. Esta aparece como uma
acusação de manutenção de poder por parte de alguns, ao não se preocuparem em
formar novas lideranças. Nesse sentido, o princípio remete a se utilizar da política como
um instrumento, um meio de se alcançar um fim – o projeto do Reino de Deus,
traduzido muitas vezes num projeto partidário. A acusação enfatiza os interesses e
projetos pessoais acima do projeto partidário.
De modo semelhante, usar das vantagens de um cargo político para favorecer
interesses pessoais também foi visto como um caso de “perda de princípios”, já que o
dinheiro público deveria ser usado para o “bem comum” e não para satisfazer desejos
pessoais “desnecessários” para o cargo ocupado. O princípio neste caso aponta para
uma conduta moral, específica de um modo de ser cristão, esperada daqueles que
partilharam as experiências religiosas, sindicais e partidárias, bem como as atividades
correlacionadas. Oliveira (2012: 219) apresenta um caso que ajuda a pensar as
lideranças na Zona da Mata. No Leste mineiro, uma liderança do Mobon que não teve
seus favores atendidos, saiu do partido e “mudou de lado”, sendo classificada como
“não consciente”.
Nesse sentido, o termo “consciente” tem o mesmo sentido de “ter princípios”. A
noção de “conscientizar” enquanto verbo, traz o movimento, ação de estabelecer
princípios, de “converter o outro”. Embora o uso termo “consciente” sejam também
alvo de disputas, ele aparece em diversos trabalhos (Comerford, 2003; Oliveira, 2012;
Weitzman, 2016) que envolvem agentes que passaram de modo direto ou indireto pelo
Mobon e atuam no sindicato dos trabalhadores rurais e/ou na política partidária. Existe
um fio condutor entre os sentidos, já que “converter o outro” (Weitzman, 2016: 143)
passa pela linguagem militante da “conscientização dos direitos e a revolta diante da
exploração dos fazendeiros e da situação dos trabalhadores” (Comerford, 2003: 264),
mas também pela noção de “ser consciente” e não “mudar de lado” (Oliveira, 2012:
130

219), o que compreendo que está intimamente relacionado ao “ter princípios” para
alguns de meus interlocutores, embora não para todos.
Outra especificidade diz respeito à mudança na forma de organização do partido
no que diz respeito à sua metodologia inicial, também aponta para a “perda de
princípios” na medida em que a organização pautada nos cursos do Mobon e nas
comunidades em que as reuniões enfatizavam as decisões coletivas, a expressão de cada
um dos participantes, a avaliação posterior às atividades, etc. A crescente importância
da representação indireta dada o crescimento do partido e necessidade de tomada de
decisões rápidas foi vista como uma mudança negativa. O “princípio” nesse contexto
diz respeito à organização partidária. Estranhamento semelhante foi relatado por
Heredia (2010a) sobre uma liderança sindical que ao se candidatar ao cargo de vereador
estranha o trabalho individual entre os candidatos ao mesmo cargo da sua facção que
concorriam pelos mesmos eleitores.
Compreender a forma de se organizar e tomar decisões – o saber fazer do
Mobon/Ceb’s – como “hábitos” (Das, 2012), aqui pensados como o local onde a ética
comum ao movimento se manifesta, pode ser importante para perceber que hábitos
como a tomada de decisão de maneira coletiva – que diz respeito a valorizar a opinião
do grupo em detrimento da sua própria – e satisfazer o “bem comum” – em detrimento
dos privilégios pessoais – se referem à saberes organizacionais que permaneceram e se
fortaleceram nos sindicatos dos trabalhadores rurais.
A reflexão perpassa também pela diferenciação do tempo entre os dois campos.
Enquanto a vida religiosa se desenhava de forma relativamente lenta, possibilitando a
expressão de todos e uma reflexão característica das Ceb’s, o jogo político se
apresentava como dinâmico, as decisões deveriam ser tomadas de maneira quase
imediata, sem muito tempo para consulta do coletivo. Esse estranhamento também se
deu no Leste mineiro, como mostrou Oliveira (2012: 218), ao constatar que “as lógicas
administrativas da prefeitura apresentavam formas de funcionamento diferenciadas
daquelas que se revelaram nas reuniões comunitárias. Assim, havia dificuldades
constantes em se colocar em prática a política mais participativa.”
Ao habituar-se ao modo de fazer política nas Ceb’s e no sindicato, lideranças
avaliaram atitudes incomuns no meio religioso e sindical como menos legítimas, como
“perda de princípios”. Como quando argumentam que o Partido dos Trabalhadores
deveria manter a metodologia inicial, tanto no que diz respeito à consulta à base, como
também no que tange à avaliação do mandato realizado, uma estratégia de construção
131

popular típica das Ceb’s e do movimento sindical. Como já salientado por Comerford
(1999), as reuniões pensadas como um espaço de sociabilidade proporcionam um
espaço de tomada de decisões coletivas, seja pelo consenso ou pelo voto, onde se
tornavam públicos os dilemas tanto da organização como de seus membros. As reuniões
no mundo sindical se constituem num espaço de aprendizado e conscientização a partir
de uma discussão participativa. Há uma expectativa generalizada de que o sindicato
promova reuniões com frequência, sendo que sua ausência pode ser vista como
sintomas de problemas com o sindicato.
Ora, mas as lideranças fundadoras dos diretórios do Partido dos Trabalhadores,
em geral, se confundiam com os grupos de fundadores do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, hábitos e práticas aprendidas como saberes do Mobon/Ceb’s que estavam
também presentes no cotidiano dos sindicatos, como as reuniões, também estavam
presentes na composição inicial do partido. A ausência das reuniões como espaço de
sociabilidade, de expressão, de dar publicidade aos problemas, de tomada de decisão
coletiva e de representação direta, aparece como uma justificativa do distanciamento e
posterior enfraquecimento da base. Dito de outro modo, o hábito do mundo político
apresentava formas de agir incomuns ao hábito do mundo religioso e, por vezes,
sindical. Os hábitos do Mobon/Ceb’s pautados pela união e pelas decisões coletivas
pode, muitas vezes, não funcionar no mundo da política, ambiente visto como pautado
em uma lógica da divisão e de relações pessoais.
Como visto, realinhamentos partidários também podem ser vistos como “perda
de princípios” tanto por uma questão ideológica, no sentido de terem projetos
incompatíveis, tanto do ponto de vista da memória, quando as relações pessoais
dolorosas da perseguição, violência e morte não podem ser silenciadas em prol de um
projeto político.
Refletir sobre a adequação à um código moral, somado às experiências sindicais,
para a atuação no mundo político é um trabalho que exige a avaliação não somente de
si, mas também dos outros, em especial dos seus “iguais” (Heredia, 2010a). Assim, as
ações moralmente justificadas são pensadas em termos de julgamento e autojulgamento.

3.4. Julgamentos, autojulgamentos e o sentir-se traído


Fazendo uma alusão ao texto Vigiar e Narrar de John Comerford publicado em
2014, que mostra sobre as formas de observar, narrar e julgar de movimentações
espaciais, ou seja, de deslocamentos territoriais, podemos pensar também sobre
132

deslocamentos sociais e morais. Com deslocamentos sociais pretendo captar


movimentos de interação e aproximação com novos grupos e organizações sociais, o
contato com novas formas de conhecimento que contribui para a reconstrução do
sujeito, possibilitando ressignificações da moral religiosa, em contato com outros tipos
de moralidade. De forma semelhante ao que foi analisado por Comerford (2014) em
uma dimensão espacial, existe um observar, narrar, julgar e punir no nível das relações e
atitudes, com a consequente punição (Foucault, 2010).
Esse foi o caso de uma liderança – antiga liderança religiosa e política – que
após ter uma longa trajetória de coordenador de comunidades e de setor, trabalhar na
fundação do STR’s e do PT, bem como ser o primeiro candidato à prefeitura pelo
partido, separou-se da esposa, a pedido dela. Após decepcionar-se com o modo de fazer
política municipal, afastou-se do sindicato e da política, mas não pode seguir sendo
liderança religiosa pois apesar de casado, não vive com a esposa e, segundo ele, “a
Igreja exige que seja casado”. Há, portanto, uma observação da sua conduta, um narrar
sobre ele viver sozinho, um julgar sobre os movimentos de relações antes apenas
religiosas, as relações estabelecidas com pessoas da FETAEMG, amizades com
lideranças não religiosas que só estavam no movimento por questões políticas e como
concussão, a punição de não poder permanecer liderança por não viver com sua esposa.
Apesar de seu “bom” comportamento e frequência na Igreja, a liderança não é um
exemplo a ser seguida pelos fiéis e, portanto, foi banida de seu trabalho religioso.
Como salienta Comerford (2014),
[...] a problematização cotidiana é realizada em conversas, comentários,
fofocas, mas também consolidada em uma certa etiqueta, certa disciplina, em
relação ao que se espera de si, dos seus e dos outros, na vizinhança ou à
distância, e acaba por constituir um cuidado ético ordinário, cotidiano,
configurador de sujeitos morais. (Comerford, 2014: 133).

Sendo assim, ao propor-se como um exemplar (Humphrey, 1997), como aquele


que se torna o próprio testemunho no cotidiano através da junção da “fé e vida”,
baseadas no código moral prescrito no mundo religioso, há um modo de conduzir-se
esperado, valorizado que está expresso no “ser cristão” e quando interage com o mundo
da política se configura no “ser PT rural”. As condutas esperadas são: a busca pelo bem
comum, priorizando os oprimidos; seguir os “princípios”, princípios estes relativos à
conduta moral religiosa – a união e solidariedade a humildade e a resiliência; a busca
por justiça social e uma conduta moral condizente com o “novo modo de ser Igreja” –; a
responsabilidade social e missão do “cristão de base” exige a ampliação dos efeitos de
133

atividades locais a nível mais amplo, ou seja, o que antes era feito a nível de
comunidade, agora deveria ser feito a nível municipal; não se afastar da base. A questão
moral passa a ser então, como manter na conduta moral esperada e alcançar cargos
políticos eletivos.
As metáforas são frequentemente perpassadas por preceitos e julgamentos
morais. Como mostra Weitzman (2016: 150) através da “metáfora do diluvio” as
mulheres se referiam à passividade daquele que se permite “ser levado”. Perder o
controle dos processos vividos tem a ver com os fluxos migratórios já que no caso da
migração “um vai puxando o outro” e no caso do agrotóxico “um faz a cabeça do
outro”. Ora, mas se justamente a ação se tornar um exemplo a ponto de “puxar o outro”
ou conscientizá-lo, convertê-lo ao “fazer sua cabeça” são as chaves centrais para o
conhecimento, cuidado e controle de si, os exemplos como os de Weitzman (2016)
mostram exatamente como a metáfora do diluvio representa o descontrole de si, o
deixar-se levar. A noção de contágio une as duas situações, em que um sujeito passivo é
“levado” a fazer algo, ao invés de optarem livremente por determinadas escolhas.
Parece-me que o que Weitzman (2016) chama atenção aqui se trata exatamente de um
julgamento dessas mulheres acerca da falta do trabalho de si, das práticas efetivamente
realizadas a fim de governar-se a si mesmo e, assim, escolher livremente, refletindo
sobre causas e consequências e não se permitindo ser levado. No caso de minha
pesquisa os vistos como “cabeça fraca” são aqueles políticos sem “caminhada”, sem
todo o trabalho de si realizado durante todo esse processo de experiências e atividades
sociais. São, portanto, visto como não capazes de controlar a si mesmo diante dos jogos
e estratégias de poder constituintes do campo político.
Como argumenta Lambek (2010), a ética é intrínseca à ação humana, à
coerência entre o dito e o feito e à vida orientada por critérios estabelecidos. Assim, a
ética implica julgar situações, ações, pessoas e caráter. O julgamento é ao mesmo tempo
sobre si e sobre o outro. Vamos partir dos elementos enfatizados por Lambek (2010)
sobre o julgamento com base em critérios para saber ou avaliar comportamentos: a
conveniência do ato; sua finalidade; e a maneira de fazê-lo. Acrescento ainda, o
contexto do ato, elemento de verdadeira importância nesse trabalho.
De acordo com Lambek (2010) ao se examinar o exercício do julgamento
prático tem-se uma descrição mais precisa do modo de vida que analisar apenas o seguir
ou rejeitar regras. A conduta moral, bem como as ações morais que a constituem não
estão isentas do julgamento dos outros. Como bem observado por Heredia (2010a), as
134

críticas e acusações entre candidatos de uma mesma facção não são feitas publicamente
e, portanto, não podem se defender delas. Apesar da impossibilidade de defesa das
acusações, neste trabalho, pude perceber que, as lideranças mais citadas entre seus
“companheiros” também eram as que construíam sua narrativa em uma tonalidade
defensiva, talvez por serem há tempos alvo de acusações “entre seus iguais” ou mesmo
para justificar-se a si mesmo. De acordo com Heredia (2010a), essas acusações entre
“companheiros” que não podem ser contestadas atingem diretamente à honra. Tais
acusações, se tornadas públicas, significaria tornar público também o conflito no
interior da facção, o que afetaria sua imagem. Daí a centralidade das fofocas e dos
rumores para compreender esses conflitos velados. Para Heredia (2010a), enquanto a
disputa entre facções é restrita ao período de campanha eleitoral, a disputa por espaço
dentro da facção é constante, especialmente entre aqueles que concorrem ao mesmo
cargo, aparecem como razões importantes de ruptura e mudança de facção, justificada
pela traição.
Para além do ser julgada pelo outro, a liderança não está isenta do
autojulgamento, ou seja, da reflexão de si para si, da avaliação e argumentação para si
mesmo das atitudes tomadas, sejam elas vistas por si mesmo como erradas ou certas. O
trabalho de si e a reflexão sobre a “caminhada” foi tema recorrente nas conversas e
discursos das lideranças estudadas. O caso de Efigênia dos Santos (Capítulo II)
representa não apenas uma forma dos dilemas morais que são enfrentados por muitas
destas lideranças, mas a maneira como refletem sua trajetória, suas ações, suas
reputações, a conduta de si no mundo. Assim como Efigênia dos Santos ter sua
reputação moral mantida é a primazia destas lideranças, isto explica a preocupação
recorrente em justificar moralmente suas ações, detalhando os contextos, as alternativas
em jogo e argumentando como naquela situação específica, a melhor ação foi tomada.
O relato de Efigênia é perpassado pela dor, pelo sofrimento de não saber o que
pensariam dela, caso se aliasse à antiga oposição política. É nesse momento que se
tornam nítidas a importância do cotidiano, também no entre eleições, nas formas como
as relações pessoais e interpessoais vão se ajustando e as facções se reformando até o
“tempo da política”. Este marcado por conflitos acirrados, legitimava ações das duas
lideranças políticas opostas, Efigênia dos Santos, de um lado e Pedro Luís de outro. O
interesse pela atuação no município, deu-se pela competição, pela busca de
conhecimentos do outro e assim atacá-lo, assim iniciou-se uma interação entre as
lideranças, embora publicamente conflituosa.
135

No entanto, passado o tempo de acirramento, o então prefeito, Pedro Luís, se


interessa por conhecer “mais de perto” os tais “movimentos” (Sindicato, cooperativa de
produção e comercialização, cooperativa de crédito...) que a opositora Efigênia tanto
falava. É a partir desse conhecimento concreto, de frequentar as atividades, que Efigênia
argumenta que seu opositor, como prefeito, percebeu a importância do que fazia pelo
município e, com o passar do tempo, e as insistentes “cotações” de seu nome para ser
candidata a vice na próxima eleição, Pedro Luís afirma que queria alguém de seu grupo
como vice. A narrativa de Efigênia justifica moralmente, como alguém visto como
representante do mal no “tempo da política”, havia se mostrado outra pessoa, com
objetivos comuns para o município. “A gente via no Pedro Luís um coronel acirrado”
no sentido de não ter abertura para o diálogo, uma reputação que segundo ela estava
relacionada ao sobrenome.
Com o interesse do prefeito pelas atividades dos movimentos em que Efigênia
dos Santos participava e o estabelecimento de um elo comum, o conflito entre os grupos
havia se amenizado, entretanto, ainda restava o conflito interno da liderança na busca de
uma coerência com tudo aquilo que havia feito. Seria coerente com sua moral aliar-se à
uma pessoa a quem ofendeu e foi ofendida publicamente? Em uma de suas falas
Efigênia dos Santos diz “quando eu paro para contar minha história é que eu vou vendo
assim, cada momento decidido da minha vida, assim, Ele [Deus] me deu opção de
escolha, mas tipo assim, é isso aqui que eu quero para você”. É interessante perceber
que a liderança se percebe como alguém que tem a escolha, ela reflete sobre sua
trajetória, ela compreende o chama de “sinais de Deus”, e ainda assim, acredita que a
escolha está em suas mãos.
São relatos como estes que me levam ao posicionamento de que, mais que
cumprir ou não cumprir regras e normas pré-estabelecidas, as lideranças ajustam tais
normas as situações presentes, se utilizando da metodologia reflexiva aprendida para
deslocar determinadas formas de ações para as situações concretas. O que antes dizia
respeito à tradução de passagens bíblicas para a realidade concreta das comunidades em
que viviam, a identificação de problemas e as ações necessárias para mitigá-los, agora
dizia respeito a como agir, de acordo com o sujeito moral construído em mim, de acordo
com todo o trabalho que realizei em mim mesmo ao longo de todos esses anos, me
privando e governando a mim mesmo da maneira como julguei melhor fazê-lo. Em
outras palavras, o código moral estabelecido no Mobon, bem como o saber fazer
aprendido, constituíram um sujeito moral a partir de práticas de si e de um trabalho
136

sobre si mesmo, e é esse sujeito que reflete sobre as situações no mundo político, é esse
sujeito que reflete sobre quais os problemas de alinhar-se aos antigos inimigos, quais as
consequências de não alinhar-se, num jogo entre uma reputação estabelecida e a
possibilidade de ação para o que consideram o “bem comum”.
No caso abordado acima, a liderança assume que seu grupo via no opositor um
“coronel acirrado”, o que com o tempo viram que não era necessariamente assim. Há
uma justificativa moral em torno de seu realinhamento que visto de fora, poderia ser
tomado como “cooptação pelo jogo político”, ou mesmo uma “traição”. Esta não foi a
única liderança que argumentou sobre a mudança de representação da oposição. Noutro
município, ao se alinhar com a antiga oposição, a liderança justifica que “ele faz parte
desse partido, mas na verdade ele faz o trabalho pros pequenos” e afirma que o antigo
opositor é uma “boa pessoa”, mas que como nasceu em determinada família, acabou
fazendo parte de determinado partido, que “não é tão bom assim”, mas que esse político
individualmente é de “bons princípios” e por isso estão com ele.
As relações entre pessoas podem preceder as relações políticas, como também
podem se constituir na política como no caso de Efigênia dos Santos. O que é certo, em
ambos os casos, é que a política municipal em pequenos municípios é regida por
relações entre pessoas, entre famílias, entre profissionais e seus clientes, entre outras, de
forma que a lógica partidária, pensada como um coletivo que está acima das relações
pessoais, como pretendida nas Ceb’s, no Mobon, e quiçá no sindicato, não é o tipo de
relação que ordena o mundo político. Como resultado, os julgamentos e
autojulgamentos, próprios de grupos camponeses, são ainda mais intensos quando se
tem a reputação não somente religiosa, mas também política em jogo. Diante disso, é
necessária uma justificação moral das ações não somente para os outros, mas antes de
tudo para si, uma justificativa que se ajuste ao contexto e que se mostre como a mais
coerente possível com os objetivos iniciais da “luta”.
Mesmo os arrependidos justificam a ação moral no tempo devido, pelas
circunstâncias momentâneas e locais, argumentando que era o melhor a ser feito no
memento. No entanto, a vida é fluida, e a reflexão do passado frente aos acontecimentos
do presente, levam algumas lideranças a repensar sobre suas atitudes. A noção de um
elemento presente no código moral do Mobon diz respeito à resiliência, que representa a
capacidade de persistir no sofrimento pelo “bem comum”, emerge nas narrativas de
lideranças fundadoras dos diretórios do partido dos Trabalhadores. Neste caso aparece
como uma negativa, a ausência de resiliência que tiveram ao deixarem o partido. Apesar
137

de toda uma justificativa e argumentação de como o processo se deu, em narrativas


estruturadas cronologicamente, em nuances de defesa talvez por já terem sido
demasiadamente julgados. Três das quatro lideranças que se desfiliaram do Partido dos
Trabalhadores se arrependem de ter saído, acham que deveriam ter resistido e
permanecido. As similaridades também se dão na medida que duas delas foram ou
seriam expulsas do partido após os conflitos internos.
Ora, a reflexão de si e das práticas de si são constantes na vida desses sujeitos
morais. “Eu não falhei enquanto cristão” emerge em meio a uma narrativa construída de
modo defensivo, como uma reflexão de si mesmo, de sua trajetória, da sua caminhada,
frente a julgamentos e acusações já feitas por “companheiros” da época do sindicato. Os
argumentos para as ações tomadas são pautados em uma justificativa moral da
conveniência, da finalidade e da maneira de realizar tal ação, já que é exatamente em
um, ou mais, desses pontos que as acusações dos outros incidem. Interessante perceber
como o peso maior dado à finalidade ou à maneira, por exemplo, já são suficientes para
produzir acusações e julgamentos entre lideranças orientadas por um mesmo código
moral.
Apesar da pesquisa em campo ter sido realizada em período entre eleições
municipais, a centralidade das narrativas estava posta nos conflitos no “tempo de
política” (Palmeira e Heredia, 2010a). Apesar de conflitos cotidianos entre membros do
partido no período entre eleições, é nas proximidades do período eleitoral que os
conflitos estão autorizados.
A noção de traição se apresenta na medida em que algumas lideranças – as que
se sentiram traídas – esperavam uma determinada conduta e esta não aconteceu como se
esperava. Algo interessante na literatura sobre “traição” (Thiranagama, 2011; Boivin,
Rosato e Balbi, 1998) diz respeito a não naturalização da noção de traição, já que “a
atribuição de significados [...] é produto de um processo concreto de interpretação
socialmente delimitado.” (Boivin, Rosato e Balbi, 1998: 60). Embora o termo “traição”
não tenha aparecido explicitamente, a ideia foi recorrente nas narrativas daqueles que
foram, de algum modo, rotulados como traidores. Os tidos como traidores de maneira
informal, demostraram o sentimento de sentir-se traído durante as justificativas de suas
ações. O sentir-se traído está relacionado à fidelidade que se espera dos seus
“companheiros” principalmente em relação à conduta moral de “ser cristão”. A
fidelidade entre “fé e vida” é um marco central na “caminhada” desses sujeitos morais.
Nesse sentido, a “perda de princípios” de indivíduos ou de grupos dentro do partido são
138

apontadas como a justificação moral da ação tida como traição. A traição é, nesse caso,
oposta à fidelidade aos “princípios”, ou seja, ao código moral e aos saberes construídos
e fortalecidos ao logo das experiências nesse processo. Embora haja, de forma
semelhante à lealdade peronista (Boivin, Rosato e Balbi, 1998: 52), uma lealdade ao
líder máximo do Partido dos Trabalhadores – Luís Inácio Lula da Silva – que unifica
todas estas lideranças, apesar dos conflitos e dissidências municipais, a fidelidade da
qual se referem diz respeito a sobreposição do projeto coletivo acima do individual.
Note que as noções de traído e traidor são fluidas47 de acordo com o grupo
interno ao partido que se tem acesso, ou seja, de acordo com a perspectiva de quem
narra. O mesmo sujeito acusado de traição é também o que vai se sentir traído. No caso
da liderança que deixa o partido justificando uma mudança da metodologia de base. Se
por um lado, as lideranças antigas que permaneceram no partido acreditam que a ruptura
da liderança se deu por ela visionar um projeto pessoal e não partidário. Por outro lado,
a liderança em questão argumenta sua saída por seguir o modelo de organização do
saber fazer aprendidos em atividades do Mobon/Ceb’s e do sindicato. Trata-se de
perspectivas distintas acerca de um mesmo evento. Fica a questão: quem traiu quem?
Diante da ampliação e realinhamento partidário, dilemas mais tensos foram
sendo postos na vida cotidiana dada o estranhamento e a desconfiança entre aqueles
novatos também chamados de “sem caminhada de base” e os fundadores “com
caminhada de base” onde existe um “senso de intimidade” (Herzfeld, 1997, apud
Thiranagama, 2011) entre os que partilham códigos, práticas, linguagem e um auto
reconhecimento no pesar.
Entre as narrativas e relatos ouvidos, as histórias de “conflitos” e “brigas”
internas ao partido emergem daquelas lideranças que se enquadram de alguma maneira
como uma “traidora”, o que vai ao encontro da constatação de Thiranagama (2011) de
que ser um “traidor” é o que o torna capaz de romper o silêncio e tornar público o
segredo interno do grupo social ao qual pertence. Isto é, as lideranças que de alguma
forma puderam ser pensadas como “traidoras” são as que têm algo a dizer e tornar
público os conflitos internos ao partido e/ou facção. Isso pode sugerir uma explicação
para o constante clima de tensão que se vive nesse ambiente. Não se sabe exatamente
quem poderá se tornar “traidor” ou “traído”. O medo do julgamento ou o medo da
exposição pública de conflitos internos do movimento mantém as relações pessoais

47
Assim como também o são a noção de “trabalho duro” e de “trabalho pesado” entre as trabalhadoras
rurais do Leste mineiro (Weitzman, 2016)
139

nesse constante “vigiar e narrar”, para que se torne possível colocar em perspectiva o
cotidiano e a própria vida para a avaliação e reflexão coletiva (nos grupos ou nas
plenárias; reuniões, encontros, cursos, etc.).
***
Como vimos a centralidade das narrativas apontam para ações moralmente
justificadas, sendo que as tensões são também moralmente justificadas pela “perda de
princípios”, pela não coerência de uma conduta moral esperada, da exemplaridade (o
“testemunho”). Pensar o Mobon, as Comunidades, os Sindicatos ou o diretório do
Partido dos Trabalhadores em termos abstratos não traduz a complexidade das
experiências, pautadas pelas relações pessoais, sentidas pelos que concretamente são
estas entidades. Dito de outro modo, estas entidades são constituídas no cotidiano de
seus participantes, a partir de relações pessoais estabelecidas, construídas,
descontruídas ou reconstruídas. Assim como enfatiza Palmeira (2010a), para se
compreender o período eleitoral deve-se ter em conta os rearranjos dos compromissos
estabelecidos no período “entre as eleições”. Há que se levar em consideração as esferas
de sociabilidade regidas pelo compromisso pessoal, já que influenciam no processo de
adesão.
Os pontos de tensões presentes nos relatos e conversas informais têm como pano
de fundo a justificação moral da ação, seja daquele que efetua a ação (o autojulgamento)
seja daquele que avalia a ação do outro (julgamento). A justificativa moral perpassa, em
geral, pela acusação da “perda de princípios” ou pela justificativa “eu tenho princípios”.
Embora pareça simples a divisão entre os que agem de acordo com a conduta moral
esperada, ou seja, o modo de “ser cristão” característico dessa rede de conhecimento, a
forma como cada um dos sujeitos incorpora e reproduz as normas e o saber fazer do
Mobon, mas também reflete sobre elas e sobre si produzindo novas normas adaptadas
aos novos contextos e sujeitos, trazem uma delicada complexidade para a análise. O
modo de ser é então adaptado e ressignificado de acordo com os dilemas e
enfrentamento de códigos entre os mundos cebista, sindical e partidário. Mais que agir
por orientar-se por valores transcendentais que foram objetivamente acordados, ao
longo do processo, a vida se dá no cotidiano, nas relações, nas afetações, há também
uma dimensão das ações que diz respeito ao cultivo de sensibilidades no cotidiano (Das,
2012). Os hábitos e os costumes formam a textura da vida cotidiana. Assim, o
ressignificar de normas e a ação moral que se produz é não raramente passível de
140

julgamento e autojulgamento e é com base neles que abrimos a questão: quais princípios
e em que contextos?
Em última instância, observados com uma lente microanalítica as diversidades
de ênfases em determinados “princípios”, em uma dimensão mais geral percebemos que
o que está em jogo nessas tensões perpassa a contradição de uma dimensão pautada em
relações comunitaristas com outra dimensão pautada em relações pessoais.
141

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como é desafiador finalizar escritas sobre processos! Afinal, eles seguem se


fazendo no mundo. Os contextos se alterando rápida e bruscamente entre as viagens, os
retornos, os relatos, as notícias, tudo tão dinâmico e fugaz como o fogo que transforma
vidas, trabalho e sonhos em cinzas, em memórias. Ironia do destino, quiçá!
O fato é que as memórias são elementos centrais nesta pesquisa uma vez que
meus interlocutores, hoje lideranças político-partidárias, passaram por um processo que
os constituíram moralmente. Elementos selecionados das memórias emergem em
formas de narrativas em tom de acusação, de defesa, de saudosismo. Assim, nesta
pesquisa parti de narrativas formais e informais de 11 lideranças “representantes” de 5
Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, cada um deles num município da Zona da Mata
mineira, que fazem ou fizeram parte do Partido dos Trabalhadores.
Temos movimentos que unem e movimentos que segmentam tais lideranças.
Entre os movimentos que unem esses políticos religiosos pode ser expresso no
emaranhado de relações que se conformaram e/ou se fortaleceram nas atividades
religiosas, sindicais e políticas. O senso de “filhos do meu pai” ou mesmo “filhos do
Mobon” e de se ter uma “missão” a ser cumprida como “missionário leigo”, a
solidariedade e o sofrimento trazido pelos enfretamentos necessários para penetrar nas
fissuras de um modelo visto como “opressor” do “trabalhador rural”, os preceitos
morais e uma conduta coerente com o sujeito moral por se saber julgado, tudo isso
constitui a noção de “ser PT de verdade” nesses pequenos municípios.
Os preceitos morais e o saber fazer aprendido no Mobon/Ceb’s foram tratados
no Capítulo I, onde se destacam as normas e modos de ser a serem perseguidas como a
união, a solidariedade, a humildade e a justiça social como “missão” do cristão
autêntico. No que tange à formação de lideranças no incentivo se volta a práticas que
são também um trabalho de si, como a habilidade de “falar bonito”, de “saber ouvir”, de
desenvolver a escrita para tomar nota dos cursos, bem como dos roteiros que os
orientavam em outros espaços. Há uma ênfase na autenticidade da liderança, que a
incentiva a descobrir-se, a buscar saber quem ela é de verdade. O exame constante da
consciência e dos pensamentos se ampliam também em direção à ação cotidiana, que
deve ser coerente aos princípios.
142

Nesse balizar entre “quem sou eu” e “como devo ser” um trabalho sobre si vai se
tecendo, sendo que entre as habilidades estimuladas, considero o que chamei de
metodologia reflexiva como central nesse processo. Isso porque estimula a reflexão de
situações no cotidiano tanto da liderança como de sua comunidade. Para além do “vigiar
e narrar” camponês se assevera um julgamento da conduta do outro e, por saber-se foco
de narrativas, também o autojulgamento no contexto das Ceb’s, Sindicato dos
Trabalhadores Rurais e do Partido dos Trabalhadores.
As lideranças narram a criação dos STR e do PT como uma forma de cumprir a
“missão” do cristão. A “missão” exige o “movimento”, deslocar-se para espalhar a “Boa
Nova do Evangelho”. A corporeidade no deslocar-se unem narrativas de “época boa”,
mas também de muito sofrimento. Sofrimento de deslocar-se e sair do seio da família,
de fazer longas viagens, da estrada escura e perigosa, das constantes ameaças, violência
física e simbólica, perseguições e medo. Entretanto, ao se focar nos detalhes, nas
ênfases, nos choros percebendo não só o que une, mas também diferencia a afetação nos
corpos.
A geração à qual pertence a liderança também influi na diferenciação da
experiência, dadas as etapas distintas de um processo de criação e consolidação das
atividades sociais. Se por um lado, as lideranças da primeira geração, dado o
enfrentamento, passaram pela dor da perseguição, violência física e morte dos seus. Por
outro lado, a segunda geração, responsável pela manutenção das instituições, passaram
pelo sofrimento atribuído a “pegar estrada” dadas as limitações financeiras, o que é
visto como parte do auto sacrifício da “missão”. Está também foi a geração que abriu
brechas para a disputa da significação do “povo de Deus”, afinal, outras formas de
opressão foram se mostrando ao longo da caminhada, como a que ocorre contra as
mulheres, jovens, negros, etc. A terceira geração, é a geração emergente, que tem
contribuído para a ampliação das instituições, e suas articulações com outros
movimentos sociais.
Todas essas experiências vêm constituindo a noção de liderança autêntica do
Partido dos Trabalhadores, do “ser PT de verdade”, “PT pé de chinelo”, de quem se
espera uma conduta moral coerente com o “modo de ser cristão” cebista. As
expectativas em torno do que se deve ser trouxeram importantes dilemas morais a essas
lideranças à medida que adentraram uma dimensão social regida por valores e práticas
distintas, o mundo da política partidária.
143

Em suma, lideranças que se constituíram num ambiente ordenado por relações


comunitaristas, pautadas no bem da comunidade como um ente superior às relações e
interesses individuais existentes, se viram frente a dilemas morais no ambiente da
política partidária eleitoral. Isso decorre do fato do ambiente político ser ordenado por
outros tipos de relação que priorizam as relações pessoais, relações de prestígio, ou
seja, como manter uma hipotética unidade do partido em situações que relações
pessoais e familiares são tão iminentes?
Dando sequência, explorei alguns casos cotidianos trazidos como dilemas
morais a fim de compreender a necessidade de uma justificação moral de sua ação. Nos
casos de conflitos públicos, as narrativas dos envolvidos se iniciavam e prosseguiam
tem tom de defesa, de justificar que não “falhou enquanto cristão”. Percebemos que há
um ajustamento situacional dos preceitos morais estabelecidos e que, dentre as muitas
formas de se comportar em concordância com eles, acreditam terem feito a escolha certa
no momento. Embora, algumas lideranças lamentem por não terem tido a resiliência
necessária e “não ter resistido até o fim”.
O ajustamento situacional, se dá uma vez que a vida social, bem como a situação
prática é multidimensional. Tendo em conta que cada dimensão social – a religiosa e da
político partidária – está ordenada por valores e práticas distintas, a reflexão em torno
de como se deve agir considerando as constrições da ação noutra dimensão é o que traz
a possibilidade da inovação, da produção do novo. O que se espera do petista cebista é
que ele coloque o partido acima das relações pessoais, assim como era feito nas
comunidades. No entanto, são as relações pessoais e as obrigações morais que regem a
política partidária nesses municípios. Ao adentrar esse mundo, pressupõem-se aceitação
de que o objetivo comum é ganhar, para assim alcançar realizar ações no município,
mas para isso, alguns preceitos morais deveriam ser repensados.
Assim, tem-se os dilemas das possibilidades de se fazer política: não coligar e
não se eleger; se coligar e eleger; sair do partido e se filiar à facção oposta; sair do
partido e realizar outro trabalho de transformação social em outras dimensões menos
conflituosas. Estamos diante de priorização de preceitos morais como mais importantes
que outros, bem como os modos de subjetivação apropriados para seguir, não seguir, ou
rejeitá-los. Tudo isso diz também sobre a subjetividade das lideranças, sobre toda a
“bagagem” que traz de suas experiências anteriores.
É essa reflexão das possibilidades de ação que possibilitam a criação de
alternativas que variam de acordo com os tipos de princípios morais que se mostram
144

mais intensos ao se intercruzar com interesses que são coletivos, mas também pessoais.
Além da justificação moral da ação, permanece também a noção de sujeito moral
transformador da sociedade, de “ser cristão”, de “ser PT de verdade”, sendo filiado ou
não ao partido.
Em suma, problematizei afirmações presentes no senso comum como “político
nenhum presta” mostrando os dilemas morais pelos quais um grupo de políticos,
advindos de uma formação religiosa, passaram ao adentrar o mundo da política
partidária. A própria existência de dilemas já informa a preocupação ética/moral e a
coerência com o que consideram princípios ético. Porém, mais que mostrar como esse
grupo de políticos está atento à suas ações morais, mostro que tais políticos também são
heterogêneos entre si. Complexificar a experiência vivida e ações morais na pratica
cotidiana parece promissor no sentido de desmistificar generalizações superficiais de
grupos sejam mais amplos ou mais restritos.
145

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APÊNDICE A – ROTEIRO DA “ANDANÇA”

Conversa/ Entrevista não


Local Data Entrevista Gravada
gravada/ Evento

Campo da Beira 03.02.2018 Rosangela Maria


06.02.2018 -
Dom Cavati Alípio Jacinto
11.02.2018
09.02.2018 - Campanha da Fraternidade
Dom Cavati
11.02.2018 2018
Miraflores 08.02.2018 Grupo de lideranças
Vale da Onça 15.02.2018 Javé Lima
Cruz da Mata 22.02.2018 Roberto Castro
Conaçara 23.02.2018 Efigênia dos Santos Reunião Cooperativa
Reunião Associação de
Elaine Vitória
Conaçara 24.02.2018 Mulheres Rurais Reunião
Joaquim Pedro
FOPPIR
Vale da Onça 02.03.2018 Antônio Silvino
Vale da Onça 06.03.2018 Francisco Cardoso
Conaçara 08.03.2018 Marcha das Mulheres
Conaçara 09.03.2018 Oscar Trivino
Celebrações do Movimento
Aveiro Novo 11.03.2018
Negro
14.03.2018 - Eduardo Pereira
Calvário do Norte
15.03.2018 Maria da Conceição

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