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LÍVIA RABELO
Rio de Janeiro
2019
LÍVIA RABELO
Rio de Janeiro
2019
LÍVIA RABELO
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. John Cunha Comerford
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
__________________________________________________________________
Co-orientador: Prof. Dr. Fabrício Roberto Costa Oliveira
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Federal de Viçosa
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Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra
Universidade Federal Fluminense
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
AGRADECIMENTOS
Agradecer pode parecer trivial numa dissertação, mas não. Não para mim. A
pesquisa se tece nas relações cotidianas, nos afetos, nas amizades antigas e novas, nos
livros que a gente lê e nos filmes que a gente vê. Não consigo separar agradecimentos
de pessoas que contribuíram para a dissertação das pessoas que contribuem para minha
vida. A pesquisa se faz na vida e cada uma das pessoas citadas aqui, e ainda as que não
estão aqui, me ajudaram de alguma forma a chegar onde estou. Vamos à melhor parte!
Agradeço a mim mesma, por ter tido a coragem de recomeçar e seguir meu
caminho com amor! À minha mãe, meu porto seguro, pelo o apoio incondicional dado,
pelas histórias contadas sobre o passado no nosso município. A meu irmão, meu
exemplo de disciplina e força de vontade, por toda inspiração, carinho e apoio nos
momentos em que eu mais precisei. Agradeço à toda minha família, em especial, à tia
Dilma que me fez compreender como se dão os mapeamentos sociais de forma tão
familiar por vivenciar na infância e na adolescência, nossos momentos em fim de tarde,
sentadas nas pedras da calçada de sua casa, em que cada passante era identificado pela
família, destino e motivação e/ou obrigação.
Ao meu orientador John Comerford, pela oportunidade, generosidade e
paciência em todo o processo de produção. Pela orientação compreensiva e estimulante
dos possíveis caminhos de pesquisa. Os diálogos, reflexões e estímulos foram
fundamentais para construir a pesquisadora que sou hoje, mais que me orientar, me
apoiou e através de suas reflexões me fez ver sob outra perspectiva minha história e a de
minha família. Através dele consegui compreender que aquilo que minha tia fazia
sentada nas pedras era um “mapeamento”, um controle, mas também um cuidado dos
seus. Descobri que meu avô paterno, a quem não conheci, fizera parte da direção do
Sindicato Rural, mas não atuava efetivamente, por isso o fato era desconhecido pelas
filhas e, portanto, por mim.
Ao meu co-orientador, Fabricio Oliveira, pela parceria, incentivo e por sempre
acreditar em mim, mesmo quando eu já não acreditava. Graças ao Fabrício me aventurei
no campo da educação, da religião e da política. Conheci o Movimento da Boa Nova,
seu tema de estudos, e fui apresentada ao mundo da antropologia política, em especial
meu atual orientador John Comerford. Fabrício foi muito mais que um orientador e co-
orientador ao longo do meu processo, se tornou um grande amigo e parceiro.
Ao meu terapeuta, Jackson Pádua, por me ajudar nos momentos de crise, me
ensinar a me aceitar imperfeita, a me cobrar menos, que errar pode ser bom e a
iii
compreender que tudo é só uma fase. Jackson foi, sem dúvida, o pano de fundo dessa
pesquisa, sem ele esse processo seria bem mais complexo.
As pessoas importantes que de alguma forma estiveram presentes, seja física ou
emocionalmente. Ter vocês por “perto” torna a vida possível. Agradeço a compreensão
da minha ausência em momentos importantes. Em especial: Josimara, Soraya, Daniela,
Estevão, Raquel, Nicole, Elkin, Tiago, Cristian e Brenda.
Ao Alexandre por tornar meus dias mais leves nessa jornada de
autoconhecimento, por estar presente e me apoiando a cada passo a mais de uma
década. Por me ensinar a pedir ajuda quando o mundo parecia desabar. Gratidão pela
paciência, dedicação, pelo ombro, pela vida!
Ao Emiliano, por toda compreensão dos meus momentos de ansiedade, de crise
e por sempre estar ao meu lado me mostrando que eu precisava descansar. Seu carinho,
apoio e confiança me ajudaram muito.
Aos amigos do Minter pela experiência de colaboração, pelo ânimo das escritas,
nas reflexões em que tudo se tornava objeto de análise, por esse saber fazer coletivo
lindo que criamos. A experiência com vocês foi incrivelmente única.
Ao Ramon, amigo e parceiro de pesquisa, por toda cumplicidade, pelas
conversas, pelos desabafos, enfim, por toda parceria iniciada. Ainda ouço sua voz
quando escrevo, já não sei bem o que é meu e o que é nosso. Esse trabalho é nosso
companheiro! Espero que se estenda por muitos e muitos anos.
À Amanda, esse ser tão iluminado e doce, pelas reflexões antropológicas do
cotidiano, por tornar meus dias mais complexos e mais interessantes, mas por saber
também o momento de simplificar a vida e respirar. Sinto falta do seu abraço.
Ao Wagner pela inflexão em minha vida. Existe uma Lívia antes e uma depois
dele. Wagner me ensinou sobre a disciplina, sonho e força de vontade quando tudo
dentro e fora dizia que não ia dar certo. Ele disse: “já deu” e o menino do interior foi
para capital. Com ele aprendi que sabedoria e humildade moram ao lado e que eu
sempre poderei contar com seu aconchego. Você é meu orgulho e minha inspiração! Me
espera, eu tô chegando!
Aos professores e funcionários do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Viçosa e aos professores do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro pela
experiência incrível de fazer parte da “primeira turma de antropólogos da Zona da Mata
mineira”. Em especial, Fabrício R. Costa Oliveira, Guillermo Vega Sanabria, Douglas
iv
Mansur, Raquel Lima, Ana Luísa Borba Gediel, John Comerford, Moacir Palmeira, Renata
Menezes, Luiz Fernando Dias Duarte, Adriana Vianna e Edmundo Pereira, pelas reflexões e
intensa produção de conhecimento nesse período e nessa dissertação. É uma honra ter sido
aluna de vocês.
As pessoas que fazem o Movimento da Boa Nova acontecer: Alípio Jacinto,
João Resende, Denilson Mariano, Dona Conceição, José Roberto e Darci pela acolhida,
atenção, cuidado e por toda ajuda fornecida durante a estadia na casa Sede do Mobon
(especialmente o pão na chapa, ai que saudades!).
Por fim, agradeço aos meus interlocutores e interlocutoras da Zona da Mata
mineira que me acolheram tão bem e gentilmente, com conversas regadas a café,
biscoitinhos e queijo. Nada como estar em Minas! Pessoas incríveis que me afetavam
cada uma a seu modo, quantas vezes voltava para casa chorando, me redescobrindo.
Essa pesquisa é sobre eles, mas não posso deixar de expressar minha gratidão nesse
percurso de descoberta da minha história. Aquela casa branca de janela pintadas a tinta
óleo azul, com pedras na calçada, um quintal e cerca de bambu em que eu brincava com
minha prima em meio as cinzas de carvão, à medida que eu crescia ia se modificando,
tendo os cômodos ressignificados. As modificações só foram possíveis devido à
indenização que meu tio havia recebido na forma da casa, dada a falência da usina
açucareira em que trabalhava. Eu sempre soube meu tio, a figura paterna mais próxima
dado falecimento de meu pai, havia conquistado a casa como forma de pagamento, o
que eu não sabia é isso havia se dado graças ao trabalho do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais do meu município. O que eu não sabia é que minha vida cotidiana e o bem estar
de muitas das “minhas famílias”, desde os parentes mais próximos aos mais distantes
com quem retomei contato, eram tecidos graças as mãos de trabalhadores que
acreditaram e lutaram pelos direitos dos trabalhadores, pelos direitos dos homens da
minha família, que em grande parte eram responsáveis pelo sustento dos meus primos.
Faço aqui meus agradecimentos à todas as lideranças cebistas e dirigentes sindicais que
assim como mudaram minha vida sem que eu soubesse, tenho certeza que mudaram a
vida de muitas pessoas que ainda não sabem. Minha sincera gratidão por toda luta.
v
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo identificar quais dilemas morais as subjetividades
formadas direta ou indiretamente num mundo religioso enfrentaram no mundo político
partidário. Estudamos lideranças religiosas – que passaram pelo Movimento da Boa
Nova (Mobon) e/ou pelas Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s) – e se enveredaram
pela política partidária. Inspirada na “andança”, percorri oito municípios (cinco na Zona
da Mata e dois no Leste mineiro) para construir uma relação de escuta das narrativas de
tais lideranças, o que se somou à observação participante de eventos que elas
participavam. Parto do pressuposto que nossas ações são permeadas por uma série de
relações tecidas socialmente e que pressupõe códigos morais, explícita ou
implicitamente. Assumo que a constituição de um tipo de sujeito moral específico se dá
não apenas por seguir os códigos, mas também através das práticas e trabalho de si
consigo próprio. Nossa pesquisa indica que os dilemas morais dizem respeito à
ampliação e ao realinhamento partidário, bem como as consequências apontadas, como
a mudança da metodologia, a sobreposição de interesses pessoais, etc. Estamos diante
de um jogo entre relações comunitaristas e relações pessoais em que cada narrador
justifica moralmente sua ação em face das alternativas possíveis no contexto em que se
via. Há também uma centralidade do julgamento do outro, mas também de si, uma
reflexão sobre a “caminhada” realizada e uma justificativa de “não falhar enquanto
cristão”.
ABSTRACT
This research aims to identify which moral dilemmas the subjectivities formed directly
or indirectly in a religious world faced in the party-political world. We studied religious
leaders - who went through the Movimento da Boa Nova (Mobon) and / or the Ecclesial
Base Communities (Comunidades Eclesiais de Base - Ceb's) - and engaged in partisan
politics. I used the methodology of "wandering" in eight municipalities (five in Zona da
Mata and two in Leste de Minas Gerais) to construct a listening list of leaders'
narratives, as well as participant observation of events in which they participated. I start
from the assumption that our actions are permeated by a series of socially woven
relations that presupposes moral codes, explicitly or implicitly. I assume that the
constitution of a specific type of moral subject occurs not only by following the codes,
but also through the practices and work of oneself with itself. Our research indicates
that moral dilemmas are related to party enlargement and realignment, as well as the
consequences pointed out, such as changing methodology, overlapping personal
interests, etc. We are facing a game between communitarian relations and personal
relationships in which each narrator morally justifies his action in the face of possible
alternatives in the context in which it was seen. There is also a centrality of the
judgment of the other, but also of itself, a reflection on the "path" held and a
justification of "not fail as a Christian."
LISTA DE SIGLAS
CEBs: Comunidades Eclesiais de Base
CONTAG: Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura
CPT: Comissão Pastoral da Terra
CUT: Central Única dos Trabalhadores
CTA-ZM: Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata
EMATER: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural
FETAEMG: Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura do Estado de Minas
Gerais
FETRAF: Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na Agricultura
Familiar
FUNRURAL: Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
MOBON: Movimento da Boa Nova
PT: Partido dos Trabalhadores
REDE: Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas
STR: Sindicato de Trabalhadores Rurais
UNICAFES: União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia
Solidária
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10
CAPÍTULO I
CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MORAL: PRESCRIÇÕES E O SABER
FAZER NO MOVIMENTO DA BOA NOVA .................................................... 27
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
INTRODUÇÃO
Da entrada em campo...
destemidos e certos de que toda essa experiência já tinha valido a pena. E essa foi
apenas uma das tantas vezes que me esqueci de ser apenas uma pesquisadora, fui
humana e me permiti ser uma antropóloga. Me emocionei, chorei escondida, chorei
ouvindo o choro na fala, chorei de mãos dadas, chorei abraçada. Nada disso me faz
menos, pelo contrário, me faz mais. Ser afetada me fez compreender parte do
sentimento do outro, me permitiu sentir e compreender a partir da experiência do ouvir,
mais do que observar e mais do que ler, que a dor une e que apesar da distância física
entre meus interlocutores há uma partilha, um sentimento de pertencimento, uma
unidade que se sobrepõe as diferentes formas de vida que escolheram viver, as diversas
formas de conduzir-se.
O universo social estudado diz respeito à indivíduos que, de maneira direta ou
indireta, passaram pela experiência do Movimento da Boa Nova (Mobon) e
participaram das Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s), se diferenciando enquanto
“lideranças leigas”1 responsáveis por “repassar” os ensinamentos bíblico-religiosos
aprendidos. A primeira geração2 de tais lideranças, em sua maioria trabalhadores rurais
de baixa escolaridade formal, foram os responsáveis pela fundação dos Sindicato dos
Trabalhadores Rurais (STR’s) e dos diretórios do Partido dos Trabalhadores (PT) em
seus municípios. Sendo a segunda e terceira geração os responsáveis pela continuação
e ampliação do processo.
Em termos territoriais, entre os oito municípios que compuseram minha
“andança”, dois deles se encontram no Leste do estado de Minas Gerais, e seis deles
fazem parte da Zona da Mata mineira. A Zona da Mata é uma das doze mesorregiões
que compõe o estado de Minas Gerais (Mapa 1), inserida no Bioma da Mata Atlântica.
Está localizada no sudeste do estado, tendo como fronteira ao leste os estados do
Espírito Santo e do Rio de Janeiro.
1
A expressão “liderança leiga” é recorrente tanto entre missionários tanto entre os fiéis para designar
aqueles que também tem o papel de missionário, mas que não passou por alguma formação clerical.
Embora o termo “leigo” no seu sentido comum seja um termo pejorativo, aparece no discurso tanto dos
clérigos quanto dos fiéis como uma qualidade, um status importante. Enquanto nas narrativas clericais o
termo “leigo” venha sempre seguido da sua importância e dever, entre as ditas “lideranças leigas” o termo
aparece como “eles chamava a gente assim”. Neste trabalho, sempre que me referir a “lideranças” estou
remetendo a ditas “lideranças leigas”.
2
Os termos em itálico dizem respeito a categorias analíticas; os termos “entre aspas” que não são
seguidos de referência referem-se a “termos nativos”.
12
3
A partir daqui, sempre que me utilizar do termo “religião” e seus derivados, me refiro à religião católica
relacionada às Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s).
14
foi muito importante no seu processo de aposentadoria. “Ele que me ajudou lá com a
papelada e tudo” me disse o homem empolgado pela coincidência e meu interesse nesse
assunto. Como se pode imaginar, essa entrada deu o enquadramento adequado à nossa
conversa.
Outras se deram por minha proximidade com integrantes de organizações
sociais, num processo de transferência de confiança. Como me disse a secretária de um
dos sindicatos dos trabalhadores rurais quando eu disse por que eu a conhecia, embora
ela não me conhecesse “Se cê é amiga dela é amiga minha também” e me convidou para
a reunião de troca de gestão do sindicato.
Mas como nem tudo são flores, após várias tentativas de entrar em contato com
uma liderança que já não faz mais parte do partido, mas foi central na construção dos
sindicatos na região e do diretório municipal, acabei por desistir de insistir e
compreender que essa negação me diga algo. Por que alguém tão importante nesse
processo se negaria a conversar sobre ele? Retornei então às pessoas que o indicaram e
o que falaram sobre ele. Homem em geral visto como “bom de serviço”, fundamental
para a criação dos sindicatos, mas “ele mudou um pouquinho a cabeça dele”. Ora, a
negação, ou melhor, as respostas de agenda cheia e visualização de mensagens de
WhatsApp® sem resposta podem sim ser por falta de tempo dado o cargo político que
possui. Mas pode também sugerir falta de interesse em participar de uma pesquisa que o
colocasse num papel social junto a pessoas que ele já não gostaria de estar.
5
Movimento Apostólico dos Pioneiros do Evangelho. Para saber mais, ver Comerford (2001), Araújo
(1999), Oliveira (2012).
6
O termo também é central entre as trabalhadoras rurais estudadas por Weitzman (2016: 23) no Leste
mineiro, remetendo “ao desafio de movimentar e, dentro deste caminho trilhado, de ultrapassar os vários
obstáculos que se apresentam no trajeto.”
7
Entre meados da década de 1980 e meados da década de 1990 foram fundados na Zona da Mata 15
STR’s assessorados pela CUT e pela CPT (TEIXEIRA, 2017, p.13-15).
17
8
Em alguns municípios a fundação do STR e do diretório do PT se deu de forma simultânea, em outros, o
partido é fundado logo em seguida.
18
pensar como esse fenômeno global que foi o Vaticano II é interpretado e repassado na
América Latina, chegando à um missionário do interior da Zona da Mata mineira e
dando origem ao que hoje se conhece como Mobon. Sejam as experiências no Mobon e
nas comunidades os germes ou não das organizações sociais, as narrativa referentes à
“época do Mobon” são frequentemente associadas à mudança das relações cotidianas,
da coerência entre “oração e ação” e da “luta por justiça social”. Como já nos diz
Comerford (1999) um dos sentidos morais da “luta” está associado ao sofrimento. Os
enfrentamentos de ordem judicial, legal e cotidiana, marcam a vida destas lideranças
constituindo uma “comunidade moral” que se fortalece na dor. Na dor de apanhar
dentro da capela, na dor de ser ameaçado de morte, na dor de perder amigos e
familiares, na dor da fuga que deixa para trás mais que uma casa, mas uma vida que se
reconstrói em outro espaço, com outras relações. Passada a dor inicial, o movimento –
característico dos missionários Sacramentinos9 – segue o curso dos corpos morais em
viagens para cursos, encontros e congressos, valorizando a troca de saberes. É nessa
“andança” que o sofrimento se faz presente novamente nos corpos que andam, que
viajam sem dormir e dormem viajando, sem ter o que comer ou o que beber “nessas
estradas da vida”.
Há toda uma noção de “missão”, de conscientizar o outro, de repassar
ensinamentos, sejam religiosos, organizacionais, de forma de produção, de coligações.
A vivência deste processo pelo qual me interesso aqui é permeada pela dor, o que
constitui uma coletividade diferenciada enquanto partido político, por isso a noção
central de “ser PT de verdade”. Nesse sentido, “ser PT de verdade” emerge como um
“modo de ser” um acúmulo de experiências vividas nesse processo.
Como veremos a seguir, esse universo social específico e complexo exige
movimento, escuta, sentimento e porque não sofrimento, no recorte metodológico.
9
Referente aos membros da Congregação dos Missionários Sacramentinos fundada em 1929.
19
Assim, acredita que uma vez que as culturas não sejam prefiguradas visualmente
será possível pensar uma interação de vozes entre elocuções posicionadas. Assim, as
metáforas se afastariam do olho que vê para a fala e o gesto. “A ‘voz’ do escritor
perpassa e situa a análise, renuncia-se à retórica objetiva e distanciada” (Clifford,
2016a: 45).
Para Clifford (2016a), os interesses nos aspectos discursivos da representação
cultural deslocam a atenção para as relações de produção, apontando uma “tendência
em direção a uma especificação dos discursos na etnografia: quem fala? Quem escreve?
Quando e onde? Com quem ou para quem? Sob quais limites institucionais e
históricos?” (Clifford, 2016a: 45).
Como evidenciava Peirano (1997), Das (1995) “substitui a metáfora do olhar
(gaze), que teria marcado a antropologia neste século, pelo ouvir, explicitando nesse
momento a influência, na sua abordagem, da perspectiva pós-moderna” (Peirano, 1997:
79-80).
20
Nesse sentido, opto pela primazia no ouvir tomando o devido cuidado para que
minha análise não seja centrada numa determinada perspectiva situada individualmente
ou em determinado coletivo. De acordo com Das (1995), o sentido da audição
estabelece o mínimo de interação uma vez que aquele que narra, constrói um relato 10 de
acordo com a reação do interlocutor, de acordo com as falas e gestos. Já durante a
observação, há uma falsa ilusão de que somente o observador observa uma realidade
que sua presença não altera, desconsiderando o fato de que ele próprio está sendo
observado. Há que salientar que a ênfase no discurso não exclui a observação a ser
realizada durante a interação: os atos de fala, o silêncio etc. O ouvir neste trabalho será
focado na construção de relatos orais a partir da interação pesquisador e pesquisado
baseados nas memórias dos agentes com relação às experiências vividas propiciadas
pelo Movimento da Boa Nova.
Minha andança se deu durante o período de 03 de fevereiro até 15 de março de
2018, compreendendo 8 municípios, sendo 6 deles na Zona da Mata mineira e 2 no
Leste mineiro, embora as negociações por telefone tenham se iniciado no mês de
janeiro. No que tange aos materiais a serem explorados como resultado desse giro 11, o
foco recai sobre a observação participante do curso Campanha da Fraternidade 2018, de
09 a 11 de fevereiro em Dom Cavati; conversa12 com onze lideranças antigas da região
da Zona da Mata mineira, sendo que uma delas foi realizada com um casal de
lideranças; e uma entrevista com o missionário Alípio Jacinto. Há que salientar,
entretanto, que relatos concedidos numa reunião de sete lideranças que ajudaram a
consolidar o Movimento no Leste mineiro, bem como vivências e relatos de meu
10
Compreendo relato como narrativas construídas nas interações entre interlocutor (a) e a pesquisadora
que as vezes seguem um fluir mais livre e outras vezes mais condicionado, a depender ato de comunicar
do interlocutor (a), bem como da relação estabelecida.
11
Sobre o giro realizado, há uma tabela da agenda percorrida no Apêndice A.
12
Uma tabela com o nome das lideranças está presente no Apêndice B.
21
13
Os nomes utilizados, salvo nome públicos, são fictícios a fim de proteger a identidade das lideranças.
22
14
Cora Furtado de Melo foi uma liderança religiosa, historiadora e pedagoga, e considerava importante
registrar o conteúdo dos cursos que participava. Participou de quase todos os cursos do Mobon e deixou
registros em cadernos e pastas, que contém anotações dos escritos no quadro, os livrinhos de
evangelização utilizados (colados) e as repostas passadas por seu grupo (normalmente, se faziam
pequenos grupos para elaboração de respostas aos missionários).
15
João Resende é missionário da Congregação dos Missionários Sacramentinos de Nossa Senhora e junto
com o também missionário Alípio Jacinto da Costa, formou o Movimento da Boa Nova nos fins da
década de 1960.
23
lado e puxava conversa com o clássico “você faz curso aqui faz muito tempo?” e, em
geral, a conversa tomava o rumo para a família e estudos.
A noite de sábado, entretanto durante a celebração, Pe. Zé Leão nos perguntou
sobre o tema de nossa pesquisa e deu o microfone a Ramon e depois a mim para que
pudéssemos explicar do que se tratava. Em seguida, nos indicou um filme e nos mostrou
a mão, tocando a base do dedo anelar, perguntando o que era isso, em seguida, consegui
ver o anel de Tucum que ele trazia no dedo. Notei que após o tratamento e a abertura
dado por ele em sua celebração a nós, as pessoas se aproximaram e me buscavam para
contar sobre seu testemunho.
Mais do que a fala autorizada (Bourdieu, 1996), o ouvido também deveria ser
autorizado a ouvir as histórias. De alguma maneira, muitos compreenderam que nosso
interesse era como a fé havia modificado suas vidas, independentemente de em que
área. A partir daí ouvi relatos desde um rim doado que surgiu milagrosamente rápido,
até o sofrimento com o marido alcoólatra que havia deixado de beber e a esposa que
apanhava desde os 15 anos e somente há 4 anos deixou de apanhar “Graças a Bíblia”.
Eu que estava tentando introduzir o assunto da política partidária com uma liderança de
Entre Folha (MG), indicada por João Resende em conversa anterior ao início do curso, e
por três vezes ele desconversou introduzindo outros temas – como ele ter cuidado do
neto e sobre a amizade do neto com o padre e sua pretensão de ser padre. Entretanto,
após a celebração da missa esta mesma liderança se sentou entre mim e Ramon numa
mureta e introduziu o tema sem dificuldade.
O último dia de curso foi emocionante e constrangedor, João Resende pediu aos
pesquisadores que fizéssemos a benção final. Eu, que não sabia como fazer uma benção
final, olhei em direção ao Ramon com expressão desesperada ao sussurrar “eu não sei
fazer isso” e ouvi seu sussurro que também não sabia como fazê-la, com cara assustada.
Isso nos faz compreender o que as lideranças passavam quando estavam sendo iniciadas
e o que queriam dizer ao relatar que “passavam aperto” quando eram colocados para
falar em público. Aprender a falar em público foi a justificativa dada quando eu disse
que não me sentia preparada para explicar a discussão do grupo e para participar da
celebração que seria realizada por Simonésia. Diziam-me “vai ser bom pra você
apresentar lá na universidade”.
Os códigos utilizados pela Igreja Católica ainda são uma dificuldade para mim,
já que apesar de ter passado pelos sacramentos, nunca me considerei católica. No
episódio da benção final, Ramon iniciou com uma fala, anunciou que eu leria uma
24
Entre os termos frequentes neste trabalho está a “política”, mas qual política?
Bom, se entendermos como política toda e qualquer ação criativa, a própria ação
cotidiana se caracteriza como política (Das, 1995; Abu-Lughod, 1986; Mahmood, 2006;
Scott, 1986). Nesse caso, como veremos a conduta moral adotada no cotidiano, a
exemplaridade ou tornar-se um “testemunho de vida”, se configura como uma ação
política bastante incentivada nos cursos, nas comunidades e mesmo nos sindicatos. Esta
política religiosa, ou seja, a exemplaridade foi de fundamental importância na
construção de um sujeito moral típico do Mobon/Ceb’s, no trabalho sobre si realizado
para agir de acordo com um modo diferente de “ser cristão”, o cristão-cebista. Assim,
dada a centralidade da exemplaridade no cotidiano das lideranças “formadas pelo
Mobon”16, o que chamarei aqui de saber fazer do Mobon, foram sendo absorvidos,
inculcados, refletidos, reproduzidos e produzidos em contextos diferentes, além de
produzir realidades diferentes. As formas de se organizar, de se comunicar e de agir
moralmente tornaram-se “hábitos” (Das, 2012), ou seja, o local onde a ética comum ao
movimento se manifesta. Assim, a ética comum ao “pessoal do Mobon” desloca-se, ou
transita com eles, entre contextos distintos, regido por regras próprias.
Dito isto, preciso enfatizar que a política à qual me refiro neste trabalho não diz
respeito ao “testemunho de vida” ou à política religiosa ou à política sindical, embora
elas apareçam compondo a trajetória e o trabalho de si na construção do sujeito moral,
mas sim à política partidária, especificamente as experiências de lideranças políticas do
Partido dos Trabalhadores (PT) – algumas filiadas, outras não, mas todas de
fundamental importância na fundação e/ou manutenção do diretório municipal.
16
Há que se fazer uma ressalva que embora seja recorrente a expressão “formado no Mobon”, Alípio
Jacinto salienta que o curso não é pra conferir um certificado, mas sim para aprender a viver em
comunidade e disseminar a “Palavra de Deus”.
25
contrapor ideias do senso comum, através das experiências das lideranças religiosas que
se tornaram lideranças sindicais e político-partidárias (Capítulo II), de que “os políticos
são todos iguais” ou “ele era religioso, mas depois foi pra política e se corrompeu lá
dentro”.
Como argumento no Capítulo III, os cursos e celebrações no Mobon e nas Ceb’s
constituem um tipo de sujeito moral, “um novo modo de ser Igreja” que se constitui
enquanto um trabalho de si e não diz respeito simplesmente a seguir regras, mas quanto
à sua produção e manutenção enquanto um sujeito ético diante daquilo que acredita. O
sujeito moral que circula, é constituído de todo um trabalho de si, um trabalho de
reflexão em torno das normas que julgava corretas, e que se utiliza da dúvida metódica
frente a outras prescrições. Se há algo que é certo se dizer sobre estas lideranças é que
todas elas passaram por dilemas morais quando decidiram entrar no mundo político
partidário.
O interesse desta pesquisa está exatamente em compreender quais foram esses
dilemas, quais argumentos estavam em jogo durante as ações tomadas, como foram
vistos pelas outras lideranças e como se viam a si mesmas?
27
CAPÍTULO I
17
A campanha da Fraternidade teve por muito tempo o nome de “Curso da Semana Santa”.
30
Faz-se necessário ressaltar que se trata de uma moral de um grupo específico da Igreja
Católica que se identifica com a Teologia da Libertação e a “preferência pelos pobres”.
Elementos recorrentes, como: união e solidariedade; justiça social,
responsabilidade do cristão e missão; humildade e resiliência; e “fé e vida”, “oração e
ação” se fizeram presentes nas narrativas. A seguir me dedico a afunilar minha atenção
à maneira como esses elementos estavam e ainda estão presentes nos eventos do
Mobon.
18
Como a maior parte dos relatos são fruto de uma interação comigo, aos relatos seguirão apenas “nome,
geração, relato, data”. Em caso de fonte de outras pessoas indicarei “nome, relato concedido à [...], data”.
33
Como pode ser visto a união e solidariedade vem também através do argumento
da fraternidade de “filhos do mesmo pai”, numa espécie de parentesco relacional
(Carsten, 2000) baseado em relações profundas e duradoras dada a partilha de uma
34
Esse aprendizado a partir da experiência dos missionários foi transmitida nos cursos,
principalmente os específicos para a formação de lideranças, como é o caso do Curso da
Boa Nova. De acordo com a análise do material manuscrito de Cora Furtado de Melo,
que participou do curso da Boa Nova em setembro de 1970, em Iapu-MG, o item cinco,
“O Apostolado de Jesus Cristo” versa sobre elementos necessários à realização do
apostolado, como
[...] O método de Cristo – [...] Não força. É oportuno. Sabe ouvir. Fala no
momento oportuno. [...] Cristo valoriza os ouvintes. Falava para multidões,
grupo, pessoas. Valorizava os encontros, as conversas. Queria uma resposta
livre. [...] Zaquel: Cristo quase não fala. É amigo. Respeita-o. Escuta-o.
Valoriza-o. [...] Adultera: respeita-a. É silencioso. Mostra-lhe o seu erro.
Recomenda-lhe vida nova. [...] Pecadora: Cristo dá uma lição, uma
mensagem aos ouvintes. Mostra o seu amor ao pecador arrependido. [...]
Samaritana: Cristo demonstra paciência e simplicidade. Valoriza-a, levando-a
à aceitação de Sua Mensagem. Anunciar o Cristo. Levar o ouvinte a
encontrar-se com Cristo. (Cora Furtado de Melo, 1970: 15)
Para além das pistas dadas nos relatos, busco fundamentá-las nos ensinamentos
religiosos experienciados, em geral vistos como uma escola. Ainda no livreto A
Caminhada de Jesus (1985), no item “De que lado fica Jesus”, está posta a centralidade da
Boa Nova nos fracos, pobres e enjeitados, apesar de não excluir ninguém.
Jesus anuncia a Boa Nova a todos. Não exclui ninguém. Mas Jesus faz o
anúncio a partir dos pobres e dos enjeitados. O lugar, o ambiente de onde se
faz o anúncio, é muito importante. A posição diante da vida fala mais do que
as palavras. Por isso mesmo, Jesus, mesmo sem excluir ninguém, convive
com aqueles que não tinham lugar dentro da sociedade da época. [...] Jesus dá
atenção a quem não tem poder nem saber. É o caso dos fracos e os pobres.
Quem não tinha lugar recebe um lugar na convivência com Jesus. Fica assim
claro de que lado ficou Jesus. Ficou do lado dos que foram postos para
escanteio. [...] Jesus se colocando do lado dos pobres nos ajuda a entender
que os pobres nos levam a descobrir o Evangelho como Boa Notícia e Jesus
como libertador. A posição de Jesus nos ajuda a entender que o pobre não é
simplesmente o carente. É alguém capaz de lutar pela sua vida, pela sua
libertação. (A Caminhada de Jesus, 1985: 9-11, grifo da liderança).
Note que as políticas realizadas em favor da vida, são vistas como uma forma de
um culto a Deus, ou seja, também pode ser interpretada como uma forma de oração.
Isso significa que já no ano de 1987, aparece alusão mais explícitas à política como uma
forma de alcançar a justiça social.
No ano de 2011, Denilson Mariano, missionário que desde 1991 integra a equipe
do Mobon, enfatiza que um dos eixos centrais do Movimento da Boa Nova é o
compromisso social a favor da vida e identificar os problemas exige uma reflexão sobre
a realidade.
38
Como já visto anteriormente, Jesus está a favor dos oprimidos, então, mas que falar
e rezar por tais indivíduos marginalizados, a vida do fiel deve condizer com a caminhada de
Jesus. Dito de outro modo, é importante alinhar oração e ação. O mesmo livreto traz
também a importância da coerência entre “fé e vida” ao tratar dos objetivos da Boa Nova
trazida por Jesus.
Outro objetivo da Boa Nova é nos levar a ficar unidos ao Pai, através da
oração (Mc 1, 35). Uma atitude muito comum em Jesus é a oração. Às vezes
ele deixava a multidão e se punha em oração. A ação não dispensa a oração e
nem a oração dispensa a ação. Fé sem obras é morta (Tgo 2, 14). [...] A
oração é assumir a vida que estou levando. É ver se essa vida está de acordo
com o projeto de Deus. Oração é contemplar Deus na realidade. Não
podemos reduzir a oração a uma simples conscientização. Fé e vida devem se
misturar. Não podemos cair na tentação de batizar o ativismo como oração. O
animador de comunidade e a própria comunidade que não fertilizarem seus
trabalhos na intimidade com o Pai, não terão forças para fazer a libertação.
(A Caminhada de Jesus, 1985: 8, grifo da liderança).
pela Palavra de Deus é que vai encontrando soluções para seus problemas.
Mais importante do que percorrer o caminho é fazer o caminho. No caminhar
se faz o caminho. (A Caminhada de Jesus, 1985: 14-15, grifo da liderança).
Essa ênfase dada à relação entre “fé e vida” ainda é muito forte no Movimento,
como eu observei durante o CF 2018. Entre as muitas falas de João Resende sobre o
testemunho está a seguinte “Jesus denuncia a diferença entre lei e vida, entre fé e
prática, por isso que ele diz ó os fariseus tão com uma prática errada. Fé dentro do
templo e quando vai pra fora o trem fede. Não tem coerência entre fé e vida.” (João
Resende, CF 2018). O curso esteve sempre recheado com questionamentos reflexivos
com relação à prática cotidiana de cada fiel, sobre sua própria “caminhada” como
“Como estão as paredes da sua igreja?”, “Passa a mão no rosto e vê se tem máscara”.
A canção Povo Reunido, de Francisco J. Mendes, presente no Livreto Cantando
a Igualdade traz à baila a importância da relação entre fé e vida.
2. Queremos amar e queremos viver, / nós vamos mudar o nosso proceder. /
Cristão é aquele que vive na luz, / e em todo lugar testemunha Jesus. 3. Se
rezamos sempre e com devoção, e não vemos o Cristo que sofre no irmão, /
não vamos dizer que nós somos cristãos, /se em nossas palavras não houver
ação. (Cantando a Igualdade, 1988: 04).
Este trecho da canção mostra claramente que o cebista tem um “novo jeito de ser
cristão” que enfatiza o peso da ação em detrimento do peso da oração verbal. O “novo
modo de ser Igreja” é pautado na ação, uma ação moral que representa uma oração
prática. De acordo com Mariano (2011), o engajamento na vida de comunidade,
assumindo responsabilidades, está entre os eixos centrais do Movimento da Boa Nova.
A partir do aprofundamento feito nos cursos e encontros de formação, a
pessoa deve enraizar-se em sua comunidade assumindo um serviço concreto
como um desdobramento de sua fé. Com isso visa-se também a superação do
individualismo e o reforço da dimensão comunitária da fé. (Mariano, 2011:
153).
19
Atualmente o Mobon conta também com o missionário Denilson Mariano.
20
O método “Ver-Julgar-Agir” é atribuído à Joseph Léon Cardijn, fundador da Juventude Operária Cristã
(JOC) (cf. Castelhano, 2017).
43
participantes dos cursos. Tal método está vinculado à Encíclica Mater et Magistra
publicada em 15 de maio de 1961, no septuagésimo aniversário da encíclica Rerum
Novarum e no terceiro ano do pontificado de João XXIII.
Para levar a realizações concretas os princípios e as diretrizes sociais, passa-
se ordinariamente por três fases: estudo da situação; apreciação da mesma à
luz desses princípios e diretrizes; exame e determinação do que se pode e
deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo
e no grau que a situação permite ou reclama. São os três momentos que
habitualmente se exprimem com as palavras seguintes: "ver, julgar e agir".
(Igreja Católica. Papa (1958-1963: João XXIII), 1961: 235).
21
Para saber mais sobre as continuidades e descontinuidades entre o Mape e o Mobon, ver Araújo (1999),
Gomes e Andrade (2011) e Oliveira (2012).
44
22
Material disponibilizado por Cora Furtado de Melo.
45
23
Em 1977, Gwenael e Luís Mario Del Canto escreveram uma avaliação dos trabalhos realizados junto
com os missionários e apresentaram tal estudo ao Instituto Pastoral do Conselho Episcopal Latino
Americano (CELAM).
46
que se reúne uma vez por semana na casa de alguma das famílias, durante
uma hora. “Em cada equipe deve haver pelo menos alguns que tenham
participado de cursos de base, encontros de jovens, etc.”. Cada equipe deve
ter uma Bíblia e o livro “Anúncio da Boa Nova” (atualmente, empregam-se
livretos produzidos pela diocese), com temas para reflexão e perguntas para
cada reunião. A reunião segue um plano:
Abertura: oração inicial, canto, etc...
Leitura do livro “Anúncio da Boa Nova”
Reflexão sobre o texto: cada um expressa o que pareceu mais
interessante para sua vida
Reflexão sobre uma pergunta (indicada). Ao fim do debate o
secretário anota a resposta da equipe para a reunião plenária.
Rogações espontâneas
Conclusão: outros assuntos. Oração final, cantos...
Nota: na reunião o dirigente deve fazer todo o possível para que
todos os membros participem e cheguem a uma conclusão final
aceita por todos.
fosse imprescindível. Ao iniciar a missa, o sacerdote era informado, através uma folha
com os nomes de quem iria participar da missa, ou seja, toda a organização, a
conciliação de potenciais conflitos na atribuição de atividades, já havia sido sanada,
cabendo ao clérigo apenas conduzir o que já estava estruturado.
A própria organização da comunidade, já que havia nesse meio religioso uma
ênfase na construção das capelas para se fazer as reuniões das comunidades, possuía um
formato burocrático mínimo (coordenador, presidente, secretário e tesoureiro) que,
posteriormente, foi reproduzido na organização do sindicato. Ou seja, já havia uma
experiência na dimensão de gestão, inicialmente da própria comunidade, como recolher
recursos, apesar de já haver o festeiro que recolhe os recursos em tempos de festa, nas
comunidades se trouxe uma dimensão minimamente burocrática no sentido de ter uma
organização com registros, com cadernos, registro de atividades, de custos, de gastos,
contribuições que também foram experiências desse período que familiarizou esse
grupo com esse tipo de procedimento.
Nesse sentido, há também uma outra dimensão deste aprendizado que passa pela
noção de relatorias, a prática de anotar para levar o curso para a comunidade. O próprio
material que trabalho nesta pesquisa, o material de Cora Furtado de Melo, é uma espécie
de exemplo de dedicadas anotações e expressões de sentimentos. Uma valorização do
anotar para depois repassar aos outros.
No que tange à preparação das lideranças leigas para ministrar cursos, os
missionários realizavam um curso de preparação, para auxiliar no conteúdo, na
metodologia e na performance necessária.
[...] a gente fazia curso no mínimo 45 dias antes, pra depois passar pras
comunidades. Nesses 45 dias, é procê ter prazo de estudar, sabe? E todo
cursinho que a gente trabalhava era tirado de um livro da Bíblia, Rute,
profeta Jonas, né? Profeta Isaias, apostolo Paulo, né? Então era… o Alípio,
mais o João Resende e sua equipe, tirava dentro da Bíblia um cursinho, eram
cursos bíblico só que era recheado com a vida social tinha que casar as duas
coisas e tocar né, mas foi muito bom! Todo lugar que eu chego aí, o pessoal
que me conhecia [...] (João Clemente, primeira geração, relato, 26.07.16).
[...] o Resende preparava a gente tão bem, que chegou lá, as professoras
depois admitiram que nós tava muito bem preparado [...] falar de história
para professores e nós de primário, eu não, tinha nem entrado em sala de
aula, mas graças a Deus, justamente, pela preparação é boa, do Boa Nova, do
curso a gente conseguia passar. Claro que uns mais, talvez com facilidade e
domínio de falar, o dom de falar, e os outros menos, no meu caso graças a
Deus conseguimos lá e vim muito satisfeito daquela época. (Walmir Soares,
segunda geração, relato, 23.07.2016).
[...] E nós não era preparado só para dar o cursinho, nos era como se fosse um
professor, nos exercia o papel de professor e pra aprender com a comunidade,
mas a gente tinha bagagem pra qualquer um que fizesse uma pergunta pra
48
gente, a gente tinha bagagem, tanto de vida, como de aprendizado dentro dos
cursos, porque nos estudava [...] (João Clemente, primeira geração, relato,
26.07.16.)
[...] Isso era interessante porque a gente ia pro Mobon, né, e ficava lá as
vezes, uma semana, três dias ou então ia pra, pra Eugenópolis, ficava com o
João Resende, dois dias nos preparando, era... era duas datas especificas, era
Natal e na Semana Santa e a gente depois saia em duplas de dois em dois nas
comunidades, reproduzindo aqueles cursinho com aquele material e ai
interessante que a gente não dava conta disso, da dimensão disso... (Antônio
Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018 ).
Como pode ser visto acima, após a preparação, havia uma estratégia de envio de
lideranças para ministrar os cursos. Tais cursos eram sempre ministrados em duplas, um
mais experiente e um novato, sendo que o foco estava na formação e segurança do
novato, que teria a prioridade na exposição, ou mesmo seria “forçado” a falar.
Entretanto, a presença do mais experiente teria a função de passar confiança para o
iniciando, auxiliar em questões técnicas, dada a experiência, e sanar dúvidas que o
novato ainda não se sentisse à vontade para esclarecer.
[...] inclusive era dupla que ia. Teve um compadre meu que foi comigo,
primeira vez que ele foi e minha responsabilidade era maior ainda, porque eu
já tinha mais algum tempo de estrada e ele a primeira vez, mas nós saímos
muito bem [...] ali um ajuda o outro. E na preparação também alguma coisa
que a gente tá esquecendo o que poderia falar um dá um toque ou… então a
dupla ajuda demais da conta (Walmir Soares, segunda geração, relato,
23.07.2016).
E sempre mandava um que não era tão desenvolvido como nós já estávamos
(João Clemente, primeira geração, relato, 26.07.16).
Podemos dizer, então, que a experiência nos grupos de reflexão, nos plenários,
nas celebrações semanais e na Eucaristia mensal, bem como ministrar cursos em
diferentes comunidades potencializou um saber organizar eventos e atividades sociais
que foi de caráter elementar para as atividades subsequentes dessas lideranças que
passaram pelo Mobon/Ceb’s. Comerford (2001: 371) chama atenção para “a força
simbólica da imagem da estrada associada à ideia de ‘missão’ no seu sentido
propriamente religioso e cristianizador, com seu componente de sacrifício e sobretudo
de prova de coragem humana e de Graça divina.”
Entretanto, os saberes não se esgotam na organização, um cuidado especial é
dado também à comunicação durante os cursos, que abrange a fala, o gestual, o canto, a
dança, a arte do falar em público. Por outro lado, o performar um modo de vida
exemplar no cotidiano é de importância central para as lideranças em questão.
49
ser combatida. Nesse enquadramento a timidez nunca seria uma desculpa, mas sim um
incentivo para que o tímido fosse o responsável pela fala pública. O fiel é sempre
incentivado a falar em público, e esse incentivo pode ser visto de uma forma insistente.
A mesma liderança que me indicou disse que isso seria bom para mim, para que eu
pudesse perder o medo e a vergonha e apresentar meus trabalhos na universidade.
Outra decisão enfática de iniciar o novato na fala, ao menos o novato naquele
grupo, aconteceu no último dia de curso, que foi ao mesmo tempo emocionante e
constrangedor. João Resende pediu “aos pesquisadores”, eu e Ramon que fizéssemos a
benção final. Eu não sabia como fazer uma benção final e Ramon também sussurrava
que não sabia como fazê-la com cara assustada. Isso nos faz compreender o que as
lideranças quando estavam sendo iniciadas passavam quando diziam que “passavam
aperto” quando eram colocados para falar em público. Isto porque fomos pegos de
surpresa. Não havia sido feita uma conversa anterior concordando com essa atribuição
de responsabilidade, mesmo porque, em sã consciência eu nunca aceitaria fazer a
benção final, que eu aprendi ser tão sagrada. A estratégia de fazer falar em público
como formação política inclui ser colocado em situações surpreendentes às quais seria
impossível recusar. Quando contamos empolgados e ainda constrangidos as outras
pessoas da casa com quem partilhamos os dias anteriores ao curso, nos perguntaram “e
ele não tinha falado nada com vocês não?” e diante de nossa resposta negativa disseram
“é, João faz isso mesmo” e todos rimos.
Sentir e experienciar o que muitas lideranças me haviam reportado foi
extremamente significativo para mim. No episódio da benção final, Ramon iniciou com
uma fala, anunciou que eu leria uma passagem bíblica e seguiu com a reflexão sobre a
passagem, no entanto, no meio da reflexão ele começou a agradecer, se emocionou, eu
me emocionei, todos nos emocionamos e ao final recebemos os cumprimentos em filas,
para nos agradecer pela presença e nos parabenizar pelo interesse de pesquisa. Sentia-
me numa posição meio clerical, já que o outro momento em que isso havia acontecido
foi ao fim da missa celebrada pelo padre. O acolhimento do grupo e a forma calorosa
como nós cumprimentaram foi proporcionada pela atividade de fala relativamente
imposta, dada a situação. Realmente, uma exposição não consensual seguida do
acolhimento posterior próprio das lideranças leigas proporciona uma sensação de
pertencimento, de acolhida, de “somos todos irmãos” e uma desenvoltura e desinibição
que aprofunda a sociabilidade.
51
pertencimento nos fiéis, de fazerem parte da Igreja Católica, o que difere de outros
cursos anteriormente propostos por esta instituição. Esse sentimento fica evidente na
fala de Romualdo Alves:
Então, ele [João Resende] veio trazendo essas ideias, falou olha em muitos
lugares já tem o Movimento da Boa Nova e, através de um grupinho de
reflexão... porque a Igreja tinha outros encontros, [...] nesses encontros eles
chamavam só aqueles que nois chama de cabeçudo, tubarão, homi rico, está
entendendo? (Romualdo Alves, primeira geração, relato, 24.07.2016).
[...] olha, proclamar é um ato solene, é um ato alegre, então suponha que a
gente fala ‘vamo proclamar’ aí canta assim olhando pra baixo, olhando de
banda, aí não tá proclamando, né. Então a proclamação ela é uma atitude de
alegria, uma atitude festiva e também o corpo precisa de acompanhar, não
deixar ele duro (João Resende, Curso da Campanha da Fraternidade, 2018).
Ou seja, o ato de proclamar envolve mais que proferir palavras num canto,
envolve todo o corpo e seus movimentos integrados nessa festividade. Não só o
conteúdo da letra da canção dizia sobre a “palavra de Deus” orientar a ação no mundo,
no caminho a ser seguido. A “palavra de Deus” está presente no “livro sagrado” que
estava sendo exaltado nas mãos do fiel em direção ao céu, ao sagrado. A tônica da
“Bíblia na mão” do Mobon tão presente nos registros históricos e na fala do missionário
coordenador Alípio Jacinto, foi performada por João Resende e os fiéis presentes no
salão. A forma de comunicação para além da fala também se expressa com o pedido do
missionário para que fizéssemos um silêncio interior após a leitura de um trecho da
Bíblia - “chave bíblica” - para que nos acostumássemos a fazer um instante de silêncio
após leitura, já que, segundo ele, “o silêncio é uma forma de comunicação superior a
própria palavra”. Em silêncio seria, então, possível perceber qual foi a frase e/ou palavra
que mais toca a quem lê, numa maneira sensorial de sentir os ensinamentos e não
apenas reproduzi-los.
Em geral, o uso do sensorial esteve intensamente presente nas metáforas do
missionário, propiciando nova compreensão da mensagem. Ao enfatizar a importância
do “testemunho de vida” das lideranças de comunidades, o missionário pede para que
cada um levante a mão direita e em seguida a passe no rosto na direção da testa para o
queixo e perguntava “tem máscara?”. Após a experiência sensorial, seguia-se uma
explicação oral complementando o que já havia sido transmitido.
A função referencial da linguagem estava presente, mas não se sobressaia sobre
a função poética, a estética do que se dizia. Ou seja, seguindo Tambiah (1985), tratar o
ritual a partir da noção de performance nos permite recuperar a dimensão
multissensorial do ritual, compreender que o ritual não é apenas um fenômeno religioso,
mas também produz efeitos. Na fala autorizada (Bourdieu, 1996) de João Resende, a
própria ação já estava presente, nesse caso, a palavra já era a ação (Tambiah, 1985).
Tem-se uma ampliação da noção de linguagem, o gesto, a expressão facial, os
movimentos também são linguagem. Logo, o texto escrito seria uma redução dessa
linguagem.
56
Seu foco em não fingir, remetia a sentir verdadeiramente, “não encenar, não é
um teatro”, ser autêntico, e para isso se utilizou de uma dinâmica. Se dirigiu ao público
e interagiu (Baumann e Briggs, 2006) com um senhor e disse “olha bem no olho, na
minha cara” e proferiu “Jesus Cristo disse”, apertando a mão do senhor que em seguida
respondeu “Somos todos irmãos”. Então, o missionário pede que cada um faça essa
dinâmica com os “irmãos” que estavam ao lado, sem fingir, com o coração.
Estamos diante da problemática já trabalhada por Bauman e Briggs (2006) e
Vansina (2010), qual seja, a tradução de uma lógica oral dotada de poética e contexto
para a lógica ocidental da escrita, os textos não são suficientes para transmitir os
sentimentos presentes nessa poética. Esta reflexão nos ajuda a compreender a
necessidade contrária, da tradução dos textos bíblicos escritos para a lógica oral, que
tem eficácia através da poética, da prosódica (Goody, 2010), do enquadramento
(Goffman, 2013) e da ação.
É interessante perceber neste capitulo que apesar das normas prescritas e das
técnicas ensinadas – uma série de habilidades são aprendidas, como a participação nos
cursos e uma familiarização e um domínio com a leitura e a escrita, a própria preparação
e organização dos cursos, da sala, do procedimento pedagógico do curso, sua
transmissão – há também uma dimensão retórica e experiencial, ou seja, uma dimensão
do “trabalho sobre si” (Foucault, 2010a) voltada principalmente para as lideranças.
Perceba que há uma preocupação com relação ao que é “ser uma liderança” que
tem a ver como o modo de falar, o modo de proclamar, como também uma conduta
mais geral. Além da transmissão da técnica de fala e de expressão, há uma lista de
prescrições de conduta do líder e várias delas dizem respeito a como a pessoa deve ser,
57
acostumarem a falar em público. Uma atenção especial deveria ser dada ao se tratar
respostas dos grupos, enfatizando que o objetivo da discussão é promover e
potencializar a reflexão de questões cotidianas frente os ensinamentos bíblicos, não
havendo importância se a resposta estava certa ou não.
Se por um lado, havia uma preocupação por parte de quem conduzia esses
cursos para que essa discussão fizesse com que as pessoas se expressassem, inclusive os
mais tímidos, e, portanto, o trabalho deveria ser o trabalho de incentivar a expressão das
pessoas, de reflexão sobre seu cotidiano, ou seja, não era uma questão de se ter uma
resposta certa ou não. Por outro lado, houve relatos de pessoas que se destacavam nos
cursos porque sempre acertavam as respostas e ao mesmo tempo uma certa preocupação
em acertar as respostas. Dito de outro modo, a questão de ter ou não uma resposta certa,
não era uma preocupação das pessoas que conduziam os cursos, por outro lado, parte
das pessoas se preocupavam com acertar ou não as questões propostas para reflexão,
numa dimensão mais competitiva.
Perceba que a competição não deixava de estar presente nos cursos. Se por um
lado há toda essa dimensão cultivada de paciência, atenção, ouvir, tratar as pessoas com
cuidado e garantir o espaço de expressão dos mais tímidos. Por outro, pessoas que eram
lideranças de comunidades ao lembrar dos cursos anos depois, se lembravam da
provocação e competição entre as lideranças. Como nos mostra Comerford (2003), uma
das dimensões recordadas pelos participantes dos cursos, era o Pe. Gwnael lidando com
essa questão competitiva no sentido de se competir, mas não extrapolar certos limites.
Estimulava as pessoas a debaterem, mas evitando que esse debate se tornasse uma briga
ao exercitar esse senso de limite.
O conteúdo do curso destaca também a criação de um ambiente amigável que
fosse favorável à interação entre os participantes. Para tanto, era importante tratar as
pessoas pelo nome ou apelido que foi dito ao se apresentar. Durante a CF 2018, João
Resende chamava a todos pelo nome ou apelido pelos quais eram conhecidos, fazia
brincadeiras25 relacionadas à vida pessoal das lideranças leigas de acordo com a
temática debatida. Aos novatos ele perguntava o nome e pedia para se apresentar. Como
sugerido por Comerford (1999) as “brincadeiras” fazem parte da construção e
estabelecimento de relações entre grupos distintos que mantem relações sociais
25
Para saber mais sobre o espaço do lúdico, do jogo e da brincadeira na construção de relações sociais ver
Bateson (1972), Radcliffe-Brown (1973), Huizinga (1980) e Comerford (1999).
59
fundamentais entre si. Assim, o ambiente amigável estava conectado à realização das
brincadeiras.
Ainda segundo as instruções contidas no curso, seria desejável que a liderança
leiga demonstrasse interesse pelas atividades locais, bem como pelas tradições,
buscando compreender o surgimento e a motivação dos residentes na realização de tais
atividades. É de suma relevância a compreensão do universo local, bem como a
atribuição de sentido que a população local dá à elementos e atividades cotidianas para
que se possa adaptar o conteúdo à realidade específica. Para que se crie também
relações mais profundas e de confiança é crucial manifestar interesse também pelos
problemas pelos quais os fiéis vêm passando, tentando ajudar na medida do possível,
mas também, tendo cautela para não ser indiscreto ou invasivo. “Fazer falar é mais
positivo do que ficar contando nossas histórias” (Curso de Aprofundamento e Revisão,
1972: 08).
Apesar da prescrição como um comportamento idealizado, entendo a
compreensão do universo local menos como uma conduta e comportamento que como
uma habilidade de investigação e estabelecimento de confiança. As lideranças que se
deslocam entre comunidades para coordenar um curso ou atividade deveriam
desenvolver a habilidade de investigar a comunidade sem ser indiscreto ou invasivo,
fazer falar, já que precisa entender o que está em jogo naquela comunidade (problemas,
motivações, etc). Esta investigação pode ser associada ao “curandeiro Ndembu”, ou
mesmo ao antropólogo (Turner, 2003), na medida em que iam para a comunidade ouvir,
perceber e questionar, até compreender o que estava em jogo naquela comunidade,
fazendo uma espécie de sociologia das relações da comunidade. As lideranças, assim
como o curandeiro, se volviam cientes das relações dentro das comunidades, o que lhe
ajudavam a intervir de forma adequada quando julgavam necessário. Assim, aos poucos
foram construindo maneiras de provocar sem criar desconfiança e apesar dessa
capacidade ter sido em boa parte aprendida na prática, prescrições relacionadas já
estavam formuladas nos cursos.
Já no que diz respeito à vida cotidiana, ou seja, a coerência necessária entre “fé e
vida”, “oração e ação” mostro como apenas transmitir uma mensagem oralmente não
era suficiente se a prática cotidiana não estivesse de acordo com o que pregava. A partir
daqui, volto minha atenção para o ritual no cotidiano pós curso, baseada em relatos de
lideranças, e me utilizo da noção de performance para analisar elementos desta
60
de formação de discípulos, esse exemplo só pode ser dado através do corpo, que é o
meio pelo qual o homem existe no plano terreno. A liderança do Mobon era ensinada a
adaptar-se ao contexto em que se encontrava, a fim de obter uma comunicação efetiva,
para isso buscava-se partir do concreto, da realidade do novo discípulo a fim de chegar a
uma compreensão bíblica através do uso de metáforas. Essa comunicação efetiva e a
compreensão da “palavra de Deus” contribuía na busca pelos discípulos mais
desanimados, que muitas vezes se sentiam tímidos e deslocados. As lideranças eram
treinadas para saber ouvir, participar das preocupações do outro, dialogar e caminhar
junto com ele, se tornando um militante religioso.
O testemunhar explicitado acima refere-se ao ato de tornar-se o exemplo, agir de
forma exemplar, ser um exemplar (Humphrey, 1997). A coerência entre “oração e ação”
tão enfatizada pelos missionários e lideranças está intimamente relacionada à noção de
“exemplar”. Isto é importante para darmos a devida atenção à dimensão do exemplar
como portador de uma força diretiva na deliberação dos sujeitos e seu
comprometimento com um modo de ser e um caráter individual em detrimento de uma
coerência sistemática em nível coletivo nos modos de conduta. Isto não significa que
não haja um modo coletivo, mas sim que a forma como cada liderança internaliza essas
normas diz respeito a si, sua condição e seu contexto. As normas diretivas que orientam
a ação moral num contexto e que podem se tornarem bases para uma prática coletiva,
não necessariamente serão interpretadas da mesma maneira por todas as lideranças em
um contexto distinto somada a condição e o trabalho de si de cada sujeito.
A importância da centralidade de um desenvolvimento pessoal a partir do
exemplar é importante para compreender que embora as lideranças em questão
partilhem valores e princípios, dada a prescrição no código moral da “caminhada de
Jesus”, a forma de ação diante dos contextos sindical e político partidário não
necessariamente condiz entre as lideranças, o que não significa dizer que não agem
pautados pelo código moral que partilham, mas sim que a maneira como se comportam
diante das normas variam de sujeito para sujeito (Foucault, 2018).
O discípulo não apenas tem Jesus como seu exemplar, mas para dar “testemunho
de vida” deve se portar coerentemente como o modo de vida de seu exemplar de modo
que ele mesmo possa se tornar um exemplar para outros. Nesse ponto faz-se necessário,
como ressalta De Sousa Bonfim (2016: 71), distinguir as tipologias de testemunho,
quais sejam, “o exemplo, dentro da tradição católica, e os relatos pessoais acerca da
62
Afirma ainda, em nota de rodapé que, “uma liderança religiosa disse-me, depois
de uma entrevista, que era comum andar armado, mas enterrou seu revólver como fizera
alguns de seus vizinhos produtores rurais por influência dos pedidos do Padre Léssio”.
O desarmamento é uma temática recorrente quando se fala em testemunho. Em uma
63
conversa com João Clemente, liderança de outra região de Minas Gerais, ele fala sobre
o desarmamento em sua região:
Porque a Comunidade Eclesial de Base, ela trouxe um conhecimento muito
grande pras área rural e conseguiu desarmar o pessoal que andava muito
armado aqui, vendeu suas armas não por medo da política, ou porque a
mulher mandou, o pai mandou, foi por causa da Bíblia. Foi conscientizado
que a arma não vale nada pra gente, que um homem armado ele morre mais
rápido e conseguimos desarmar 80% das famílias da nossa região aqui,
pegando Mutum, pegando Lajinha, essa região toda aí, com a Bíblia e
cursinho. Ai a gente vai lá, e as vezes a gente corria risco de vida, porque a
gente vai trabalhar com pessoas diferentes, pessoas distantes (João Clemente,
primeira geração, relato, 26.07.16).
26
Material disponibilizado por Cora Furtado de Melo.
64
A formação da comunidade, que se dava pela junção dos grupos de reflexão, era
um dos deveres instituídos pela diferença de se tornar líder (Bourdieu, 1996). Sendo a
vida comunitária um dos objetivos do Mobon, a formação de comunidades rurais cristãs
era estimulada a fim de dinamizar as práticas católicas de grupos que partilhavam o
mesmo espaço em torno de uma capela. Entretanto, nem todos os locais já possuíam
uma capela, sendo necessário o deslocamento de fiéis por longas distâncias. Assim, a
organização de grupos vizinhos em processo cooperativo para sua construção de uma
capela local era estimulada pelo Movimento. Então, católicos que dividiam o mesmo
espaço, em geral nos córregos distantes da igreja matriz, eram estimulados pelo Mobon
a se reunirem, rezarem e se organizarem via mediação de lideranças, consolidando,
assim, uma Comunidade Eclesial de Base.
O sentimento de pertencimento gerado durante os cursos de formação de
lideranças, o uso de uma linguagem simbólica e performatizada, juntamente com o que
chamo de metáfora da ação, gerava um forte sentimento de integração social, o que
viabilizava a concretização de projetos coletivos, como a organização de festas e
benfeitorias locais, surge assim o trabalho comunitário. “Serviço de um dia, dois dias,
eu num cobrava, nós ia pra lá fazer. Isso tudo saiu da Comunidade Eclesial de Base, as
CEB’s, porque antes a gente não tinha isso como um trabalho comunitário, não existia”
(José Mariano, primeira geração, relato, 25.07.16).
Através do Mobon, os muitos fiéis católicos aprenderam que a fé sem ação não
faz sentido e que juntos e organizados em comunidades eles eram capazes de mudar a
realidade em busca do “bem comum”. Em outras palavras, a oração verbal era
importante, mas não suficiente, está deveria ser coerente com a construção do “reino
dos céus” na Terra. E é baseado nessa cosmologia que, através de atividades de
cooperação, os trabalhadores rurais se ajudavam entre si, com trabalhos em estilo de
mutirão.
Um companheiro aqui achou que deveria ajudar o cara. Falou “vão pra lá”, lá
no Arrependido, lá no Durandé. “vamos lá fazer o barraco do rapaz”,
fizemos… e lá não era barraquinho não, era de alvenaria mesmo, o trem bem
feito (José Mariano, primeira geração, relato, 25.07.16).
católico, a uma nova prática religiosa, em que a ação fazia parte da fé, e o “testemunho
de vida” era tão ou mais importante que a oração verbal.
A necessidade de uma ação cosmologicamente orientada se dava também pelas
“lideranças leigas” estarem sob análise constante dos fiéis, de modo que não apenas o
que se dizia era importante, como também o que se fazia e como se fazia. Através do
rito de instituição o “fiel” se tornava líder e era autorizado a falar, a transmitir os
ensinamentos bíblicos-religiosos de forma legitimada pela Igreja Católica, não obstante,
se tornar-se líder era necessário, não era suficiente, já que estabelecia deveres para
manter seu prestígio e autoridade de fala (Bourdieu, 1996) em seu cotidiano.
Como pode ser visto, a performance das lideranças leigas do Movimento da Boa
Nova propiciou e reforçou o sentimento de pertencimento dos fiéis com relação à Igreja
Católica, fazendo com que se sentissem importantes no processo de difusão dos
ensinamentos religiosos nas áreas rurais onde as visitas dos padres eram esparsas. Todo
esse processo desde a formação de lideranças e comunidades até uma reordenação da
vida social, em que a ação é tão importante quanto a fé, estimularam as lideranças
católicas a atuarem não somente no campo religioso, mas também no campo político.
Isto é, a sociabilidade e religiosidade, promovidas pelo Mobon, influenciaram seus
agentes para se engajarem na militância sindical e político-partidária. Esse engajamento
atualmente sugere outra forma de performance, a ser analisada em estudos futuros.
As pessoas estão sempre muito atentas ao que as outras fazem, para além
daquilo que já perpassa o cotidiano de qualquer um, as lideranças são especialmente
cobradas. A ideia do testemunho, então, aponta para o sentido de que o que está em jogo
é menos seguir determinadas normas expressas pelo código moral, e mais construir sua
reputação como uma pessoa exemplar (Humphrey, 1997; Mahmood, 2012).
A ideia de um modelo a ser seguido, de um telos que está presente em Foucault
(2018a), está claramente evidenciada no livreto A Caminhada de Jesus, bem como no
“apostolado” e no “método de cristo”. O “testemunho de vida” é baseado em
prescrições para se agir moralmente, isto é, ter uma conduta moral que se traduz no
“exemplar” que foi Jesus Cristo. O telos a ser alcançado pelo fiel é o modo de conduta
de Jesus Cristo, sendo que seguir sua “caminhada” proporcionaria a construção do
“Reino de Deus”. Assim, temos aqui um telos referente à comunidade, mas também à
conduta necessária para alcançá-la. De forma semelhante, Mahmood (2012) identificou
que o modelo teleológico das participantes do movimento pietista no Egito busca tornar
66
CAPÍTULO II
Este capítulo tem por objetivo explorar como lideranças religiosas camponesas
narram as experiências vividas pelas quais passaram e/ou passam em suas trajetórias
rumo a (e na) política partidária. Faz-se essencial evidenciar novamente que estamos
tratando de um grupo específico de católicos que trazem uma moral específica, um
histórico familiar – fortemente significativo no meio rural, que interagiu com o
Movimento da Boa Nova. São pessoas que criaram e/ou coordenaram comunidades e a
partir daí se engajaram em outros tipos de movimento, como o Movimento Sindical, o
Movimento Negro, o Movimento de Mulheres, etc., e na política partidária27. Ressalto
as características elementares do grupo de lideranças estudadas uma vez que trajetórias
diversas existiram. Há lideranças que participaram do Mobon/Ceb’s, mas não tiveram
uma experiência sindical, ou mesmo partidária, bem como há aquelas que tiveram uma
experiência partidária sem passar pelo sindicato.
Embora a “motivação” apareça, não raras vezes, como um ideal religioso a partir
de uma Igreja diferente e um Deus que se preocupa com os oprimidos, a própria
discussão da motivação já é, em si, uma das polêmicas em jogo. Dito de outro modo, o
próprio discurso sobre o envolvimento com a política tem uma dimensão de discurso
aprendido, não somente, mas também através de preceitos morais religiosos. Como já
mostrado por Comerford (2001: 368) a narrativa da fundação do STR perpassa pela
missão da comunidade em favor dos “pobres, explorados, sofredores e trabalhadores”
em geral. A caridade, ação específica em direção a uma pessoa ou família se torna algo
mais generalizado, “uma ação agora pensada como ‘luta’”. Ou seja, há um
27
Nesse grupo com quem tive a oportunidade de interação, das dez lideranças do Movimento Sindical
que também se tornaram lideranças políticas, temos seis delas ainda filiadas ao Partido dos Trabalhadores
(Javé Lima, Roberto Castro, Efigênia dos Santos, Joaquim Pedro, Antônio Silvino dos Santos e Francisco
Cardoso) e quatro que já não estão mais filiadas (Rosangela Maria, Oscar Trivino, Eduardo Pereira e
Maria da Conceição).
68
28
Compreendo a importância do contexto histórico e político municipal em que tais lideranças estiveram
e/ou estão inseridas, para entender diversidades internas, entretanto, dada a limitação de um trabalho de
dissertação, esta questão será deixada para futuros estudos, mais aprofundados e com foco nas
divergências dentro de um mesmo grupo de liderança, dado o contexto político municipal.
71
3° Lideranças emergentes
De maneira semelhante, a dimensão do falar bem e falar bonito – tão cara aos
saberes comunicacionais do Mobon – foi importante também nas atividades do
sindicato. Comerford (1999: 55) mostra como havia uma “reserva” de tempo e de
espaço para a apresentação de pessoas que se destacavam nesse quesito nas reuniões do
sindicato. A habilidade de falar bem e do falar bonito, que como visto no capítulo
anterior, é incentivada nos cursos e atividades do Mobon, se apresenta como um
critério, já que assim alcança prender a atenção do público.
Assim como a modalidade de um discurso aprendido sobre a motivação de
“entrar para a política” como uma “missão”. Esse discurso também se encontra presente
na motivação sobre a necessidade de um sindicato. O discurso motivacional está
presente não somente na Zona da Mata, mas também no Leste mineiro (Oliveira, 2012;
Weitzman, 2016). Dentro de alguns discursos estava presente a argumentação de que a
participação no Mobon/Ceb’s propiciou a visão de um “novo Deus”, que sentia a dor do
oprimido e se compadecia por ele, e a compreensão da realidade local de uma maneira
diferenciada, questionando as explorações29, como narra a liderança a seguir:
[...] e daí comecei a participar das comunidades eclesiais de base, num é?! E
comecei a gostar porque tinha um Deus diferente... não era ooo... não era o
mesmo Deus pregado, né... pelas religiões convencionais que a gente
conhecia (aham), era um Deus diferente. Era um Deus que pisava no chão, né
que conseguia sentir a dor do oprimido, naquela região era muito forte o
processo de parceria, quer dizer, os empresários é, é, é... que na época eram
produtores rurais ainda tavam muito fortalecido, ou seja, tendo em vista que
durante toda essa trajetória de criação do Brasil, os latifúndios tiveram muito
poder de fogo na gestão de todo período colonial, mesmo perdendo essa força
por alguma... no pós Getúlio Vargas, com o retorno da ditadura eles se
fortalecem de novo. Então no pós-ditadura, esse patronato rural reacionário,
ele tava muito fortalecido, tava ligado ao poder e a gente num tinha essa
percepção de que o poder era um jogo de força, né, onde você tinha um
embate, onde levava o poder e as leis quem tinha mais força, como ainda é
até hoje e como vai ser sempre. E aí o que acontece? Nessa região, existia
muita falsa parceira, era o empregador que tinha o cidadão como parceiro e
na verdade ele era um empregado direto dele. Que que acontece? Quando
você começa a fazer uma reflexão de um Deus diferente que olhava essas
injustiças, que tinha a percepção dessas injustiças, ele te colocava numa
29
Como já visto no capítulo anterior, especialmente no livreto A Caminhada de Jesus (1985) e no saber
fazer aprendido nas atividades do Movimento, mais especificamente o que chamo de metodologia
reflexiva.
74
concreto na prática, o que que nos tamo fazendo, nós não tamo fazendo nada,
pra nos desempenhar o papel de cristão, aí vamos dizer o que que Vale da
Onça precisa... aí vamos pensando assim, conversando em grupo e tal até que
nós começamos a ver que tinha aqui a usina açucareira que os trabalhadores,
eles iam com dificuldade, de madrugada, em cima de caminhão sem proteção
nenhuma no meio das ferramentas aquela coisa e acontecia muito acidente e
eles não eram assegurados, eles eram filiados, isso aí deu muito trabalho,
porque aí é nos vimos que eles precisavam de algum órgão pra defender a
classe deles, boia fria. (Javé Lima, primeira geração, relato, 15.02.2018)
30
Vale lembrar que a metodologia reflexiva é um elemento central do Movimento da Boa Nova e,
portanto, dos saberes aprendidos no Mobon. Consiste, resumidamente, no uso de questionamentos acerca
de textos bíblicos relacionando-os às realidades das comunidades e dos indivíduos que leem as passagens
bíblicas. Mais do que ler, são estimulados a refletir se tem se comportado de maneira adequada frente aos
ensinamentos, e o que pode ser feito para mitigar problemas de suas comunidades.
31
De acordo com Comerford (2003: 287) “proprietários rurais associados ao Sindicato Rural poderiam
incluir como dependentes, para fins de atendimento, não só seus familiares como também parceiros e
empregados, desde que comprovada sua situação através de um contrato ou da carteira de trabalho.
Assim, muitos dos sócios desses sindicatos viabilizavam o atendimento médico não só de seus
empregados e parceiros como de seus vizinhos, compadres e parentes sitiantes que não eram sócios, e
mesmo dos parceiros destes. Assim, alguns dos sócios do Sindicato Rural aparentemente puderam
estabelecer pequenas clientelas em função do atendimento médico.” Sobre o médico como mediador
político influente na região no período pré-68, ver Greenfield (1977).
76
conflitos que viriam ao se “enfrentar os grandes”, o que também explica o receio dos
trabalhadores.
Como já mostrado por Comerford (2001: 379), o termo “infiltrar” nas narrativas
da fundação do sindicato, tem uma centralidade, “no sentido de travar conhecimento e
estabelecer confiança com alguém ‘de dentro’ da localidade, algum parente daqueles
que se quer ‘conscientizar’”. No caso acima, a infiltração se deu nos rituais de
comensalidade, possibilitados por relações pessoais já estabelecidas entre alguns deles.
A noção de “infiltrar” pode dizer respeito à uma técnica já desenvolvida e incentivada
no âmbito da formação das lideranças religiosas, como a de conhecer a comunidade, as
relações que regem e organizam tal espaço. Conhecer para atuar. Em suma, para se
conscientizar e converter uma comunidade é necessário “pegar a estrada” e “caminhar”,
mas é também fundamental saber-se “infiltrar” para que se alcance o objetivo da
conscientização.
A necessidade da criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais se dava para
alcançar os direitos de melhores condições de trabalho para esta classe.
[...] porque tinha perseguição, aí os patrão não deixava, no início mesmo, não
deixava as pessoas participar da discussão do sindicato porque sabiam, os
caras vivia, nós né, nós vivíamos em um regime de semiescravidão, não
podia questionar, você não podia questionar o que ganhava, você não podia
questionar o horário de trabalho, normalmente a gente saia de casa 6h, 6:15 e
se chegasse 06:30 no serviço você tinha que pegar e parava 5h da tarde, é
horário de almoço era 20 minutos. Patrão não tinha esse negócio de horário, é
de acordo com a vontade do patrão, ele levantou... ele levantar é tipo uma
campainha das fábricas, patrão levantou, todo mundo tinha que levantar
(Roberto Castro, segunda geração, relato, 22.02.2018).
32
De acordo com Cintrão (1996) o primeiro sindicato foi criado com o apoio da FETAEMG; o segundo
teve a influência da Escola Família Agrícola e o com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que
enviou uma de pastoral para trabalhar na região, com esse objetivo. Após a fundação do terceiro
sindicato, a CPT envolveu os outros dois já fundados na fundação dos demais. “Eram feitos ‘mutirões’,
nos quais as lideranças dos vários municípios se deslocavam para um município onde não houvesse ainda
STR para ajudar nas reuniões de fundação do STR. Utilizavam a experiência anterior do MOBON e iam
78
com “fortes relações entre si, conhecendo-se e apoiando-se mutualmente”. Por isso, já
em 1986, inicia-se uma Articulação Sindical “de fato” com base no apoio mútuo ainda
que informalmente. Essa articulação pode ser sentida na fala de uma das lideranças que
foi perseguida.
Dentro desse período, dentro desse período começou os conflitos, né... que
são as ações judiciais né [fungadas de choro], de fazendeiro, de perseguição.
Só que aí a gente junto com isso também desenvolveu uma rede de
solidariedade, tá certo?! Foram sete sindicatos fundados numa mesma época,
de 86 até 88, 1987, 1986 até 1988 foram vários sindicatos que foram
fundados na região, tudo na mesma época, de forma solidária, então criamos
uma força política muito grande. Por quê? Porque era o sindicato de Campo
da Beira, Muriaé, Vieiras, de Eugenópolis, de Carangola, de Conaçara, de
Cruz da Mata, tá certo?! [aham... foi tudo junto?] Tudo junto! Um num mês,
outro no outro mês e tal, então a gente criou uma rede de solidariedade e a
CPT fazia essa articulação e o Mobon acabava fazendo porque a gente se
encontrava no mesmo núcleo. Então a gente saiu de uma ação da Igreja,
simplesmente evangelizadora, pra junto com essa ação evangelizadora, pra
uma ação social, né, que era o enfrentamento dos problemas e aí a gente
começa a perceber o seguinte... que o sindicato é um ferramenta jurídica,
muito importante e que tinha um papel muito importante, não é... que
acabava tendo uma repercussão política, que toda ação tem repercussão
política, mas que era um instrumento jurídico, sindicato é um instrumento
jurídico limitado, né. (Antônio Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018)
para as reuniões das CEBs em duplas falar da bíblia e da fundação do STR. Ajudavam também (depois da
fundação) na organização da sede. E foi assim que nos dois anos seguintes foram fundados os demais
STRs que participam hoje da Articulação Sindical.” (Cintrão, 1996: 62).
79
33
“Nos menores municípios brasileiros, o terror em relação a possível vinculação de uma liderança
oposicionista a identificação com um posicionamento ou aproximação com ideologias de esquerda (que
eram, obviamente, fortemente reprimidas e perseguidas) acabou por criar uma paradoxal divisão interna
no partido situacionista, dando origem à ARENA 1 e ARENA 2, situação típica de regimes de partido
único. As divergências políticas ficavam restritas ao interior do partido governista.” Ricci (2002: 119)
82
como o das duas lideranças que relatei acima, desenvolveram das representações
construídas como sendo os perseguidores.
Atualmente, a situação do sindicato é vista como diferente do sindicato dos anos
80, especialmente no que diz respeito ao caráter combativo e o caráter de “pelegagem”.
[...] acho que é o processo da própria vida mesmo né, sindicato teve tanta
conquista bacana né, que é muito diferente, quando você vê o sindicato de
hoje do sindicato da década de 80, não tô falando especificamente daqui né.
O sindicalismo do Brasil na década de 80 foi muito marcante né, e o papel da
Igreja também né. Da Comissão Pastoral da Terra, nos conflitos né [suspiro]
muita morte, assassinato, muitas ameaças que a gente, nós mesmo aqui
sofremos né, no município nosso na região né. O próprio Francisco lá no
Vale né, o Antônio Silvino, os dois né. Antônio Silvino acabou indo pro Vale
depois né, Piquetero, muito tempo que eu não vejo (Oscar Trivino, primeira
geração, relato, 09.03.18).
36
Para saber mais sobre como a fragmentação afetou as lideranças ver Machado (2006) e Magalhães
(2008).
84
outro código moral. Assim, parte dos agentes sindicalizados, especialmente os que
compuseram em algum momento a direção do sindicato, tomou ciência da limitação das
leis e como tal limitação representava interesses de quem esteve no legislativo até então.
A saída seria, portanto, ter representantes do sindicato no poder legislativo, de forma a
reformar injustiças cristalizadas em formato de leis. A representatividade da moral
religiosa necessitava avançar rumo à política partidária tradicionalmente dominada
pelos partidos conservadores de direita. A esquerda era a saída e os ideais do Partido
dos Trabalhadores se aproximavam dos valores que faziam parte da conduta do sujeito
moral constituído no Mobon, como analisado no Capítulo I.
[...] E que a gente pra dar um passo mais era preciso mudança nas leis, né, era
preciso mudar as leis, tá certo?! Então na medida que o... e aí era interessante
que o... normalmente no Natal o João Resende vinha com um livrinho uma
cartilhinha mais avançada, tipo assim, empurrava a gente pra frente né, os
textos mais arrojados no Natal, empurrava a gente pra esquerda mesmo e tal
[risos]. Aí quando chegava o livrinho... o Alípio é que fazia o livrinho da
semana santa né. Aí o Alípio dava aquela puxada na gente (risos), João
Resende empurrava e o Alípio puxava. Era meio que um contraponto né, pra
que a gente... eu não sei também se ele tinha percepção disso, se era
planejado isso né. Ou seja, a gente empolgava, mas ia de maneira segura né,
não ia naquele só alvoroço né. E aí então a gente percebeu que era preciso de
estruturar uma outra ferramenta, né... e aí essa ferramenta na época era o PT,
né... já tinha outros partidos, por exemplo, já tinha o PCdoB, já tinha o... o
PCdoB tava saindo da clandestinidade, né, porque na ditadura ele ficou na
clandestinidade, tava saindo, o PCdoB, o PCB, o PCdoB, o PDT eu não me
lembro se ele foi criado pós ditadura ou se foi... porque ele aparece com o
Leonel Brizola né. (o PDT?) É, me parece que com o Leonel Brizola. Então
quase não tinha opção de esquerda, então o PT aparece como uma opção de
esquerda né. E eu me lembro que a gente viveu um período muito bonito,
porque era uma junção de três forças né, que era a conscientização nas
comunidades eclesiais de base, então você deixava de ser aquele ouvinte
religioso e passava a ter uma ação mais crítica, você ia pro sindicato que era
um instrumento jurídico, né, de mobilização e de força, tá. E você saia do
sindicato... não saia, você na sequência era o partido político pra alterar a
legislação. Então você começava, começo meio e fim. Então essa era meio
que a mentalidade que a gente tinha. É logico que tinha avanços e retrocessos
dentro desse processo... bom, essa foi a trajetória até chegar na questão
partidária, tá (Antônio Silvino, primeira geração, relato, 02.03.2018).
“Ser PT” diz sobre uma trajetória, ou mesmo a “caminhada” do político, o que
pode sugerir uma maior ou menor probabilidade de cooptação dentro do “jogo político”.
Isto porque o político de “caminhada” tem uma trajetória de “testemunho de vida”, ou
seja, passa por um processo de trabalho de si mesmo, permeado por práticas de si,
baseadas nas prescrições cebistas e vivenciou a participação ativa seja na comunidade,
no sindicato e no partido. Nessa lógica, ao seguir o exemplo da “caminhada de Jesus”,
seria mais difícil de ser corrompido pela competitividade do âmbito político partidário,
marcado pela divisão característica da política (Palmeira e Heredia, 2010a; Comerford,
2003). Há uma série de expectativas sobre a conduta moral deste sujeito no cotidiano, a
realização ou não das ações esperadas é que será objeto de avaliação e julgamento dos
demais, construindo sua reputação (Bailey, 1971).
A compreensão do partido como o acúmulo de experiências e práticas de si na
“luta por justiça social” é dotada de uma lógica de união, solidariedade, humildade, que
remete aos elementos de normas e princípios da moralidade religiosa. Nas narrativas,
“ser PT” remetia à um modo de ser construído pelo contraste, pela oposição entre o
“eles” e o “nós”. Em que o “nós” remetia ao acúmulo de experiências, à “caminhada”,
às “lideranças de Deus” em missão na Terra e, portanto, aquelas que não se deixam
corromper facilmente, pois tem como foco o objetivo final, qual seja, o “reino de Deus”
e a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, o “bem comum”, ou seja,
elementos da dimensão das práticas orientadas pelos princípios condutores descritos
acima. Nesse jogo de oposições, o outro é aquele que não passou por tais experiências,
não passou pelo processo de formação de lideranças religiosas, sindicais e políticas, ou
seja, não trabalhou o suficiente sobre si para não se deixar cooptar por situações
contextuais.
Entretanto, mesmo entre as lideranças que fazem parte da mesma rede de
conhecimento há uma diferenciação entre os que são reconhecidos pelo exemplo de vida
e os que não se enquadram como modelos a serem seguidos. Implícita à busca pelo
“bem comum” está a prioridade pelo bem do coletivo acima da satisfação individual.
Este é um dos julgamentos37 feitos à membros do partido, em geral àqueles que
chegaram posteriormente à fundação, que não participaram da “caminhada”. A
37
Na categorização proposta aqui, estas pessoas entrariam na segunda e/ou terceira geração. Entanto, há
que se destacar que as gerações também são grupos heterogêneos, merecendo estudos a nível micro
analítico. As lideranças que constituem parte de tais gerações que tem suas trajetórias analisadas neste
trabalho me foi dada etnograficamente, a partir de uma rede de lideranças que se auto indica, bem como
por conhecimento prévio das organizações religiosas, sindicais e partidárias.
87
38
Raul Messias é um filósofo formado pela UFMG, engajado na organização e mobilização de agentes
populares. Era vinculado aos setores considerados mais progressistas da Igreja Católica e trabalhava na
Zona da Mata de Minas Gerais na formação de cooperativas.
89
39
Para ver uma crítica à imagem fixa que se faz das facções opostas apresentada pelos modelos teóricos
tradicionais, como o mandonismo, o clientelismo, etc., ver Palmeira (2010a) que argumenta sobre não
permanência das facções dando margem pra explicações de mobilidade interpartidária a partir do
rearranjo de compromissos no período entre eleições.
90
[...] Eu queria implantar os projetos que a gente tinha, que a gente quando era
sindicalista sonhava em implantar, o único jeito que eu tinha de fazer aquilo,
é conversar com ele sobre as coisas, dar pra ele as ideias... [...] Os grupos que
nós criamos ó... [...] nós organizamos produção de leite, organizamos a
produção de café, nós zeramos a desnutrição no município, o analfabetismo
que era de 15% voltou pra 5%, nós alfabetizamos o povo da escola rural,
ampliamos escola, criamos escola em tempo integral. Quando eu fui
secretária de educação as crianças ficavam na escola o dia inteiro e eu
gastava menos merenda do que quando as crianças ficavam num turno só, eu
dava café da manhã, uma refeição e o lanche da tarde. E era uma refeição
com arroz, feijão, carne e verdura, entendeu?! Os meninos tinham aula de
música. Eu me emocionava de ver aqueles meninos que só cantavam funk
conhecendo Chico Buarque, Caetano Veloso, conhecendo arte, conhecendo
cultura, então assim... aquilo tudo era ideia nossa. Era a gente que queria
aquilo. (Rosangela Maria, primeira geração, relato, 03.02.18)
opiniões que as outras pessoas têm sobre ele”. Como observado por Heredia (2010a)
dentro de uma mesma facção as disputas são veladas e se dão em termos do poder
impessoal dos rumores. Nesse sentido, através das fofocas e dos rumores as reputações
vão sendo construídas e desconstruídas, afetando a vida pessoal e política das
lideranças.
Assim como qualquer pessoa que ocupa um cargo público está sujeita à
avaliação moral de sua vida e de como efetiva seu trabalho, às mulheres, soma-se um
julgamento moral com relação a uma política de gênero, que não raras vezes pode ser
utilizada a fim de difamar a reputação política da candidata a algum cargo público, ou
mesmo tentar retirá-la de um cargo que já ocupa, com a justificativa de ferir princípios
morais. Em “tempo de política” a moralidade se exacerba de tal modo pelo conflito de
acusações que se torna momentaneamente mais relevante que o todo o trabalho já
realizado, ou as propostas apresentadas. Este tipo de julgamento relacionado ao gênero
se apresentou à Rosangela Maria que, mesmo após décadas de trabalho na diretoria
sindical, da participação na Comissão Estadual de Mulheres ligada a FETAEMG e na
Comissão Nacional de Mulheres (chegando a ser candidata a vice-presidente da
CONTAG em Brasília), dois mandatos como vereadora, chefe de gabinete e secretária
de educação, foi subjugada por ter sido mãe e não ser casada.
Pessoal fez um movimento para me tirar do gabinete porque ia ficar feio eu lá
grávida com um filho sem pai. Movimento do pessoal que almejava meu
lugar. Não é nem por moralismo mesmo não sabe, eles usaram isso pra
desocupar uma vaga, né. A política tem isso né, você não pode levantar da
cadeira, levantou o outro ocupa, né? Então essa disputa ela é muito
desgastante (Rosangela Maria, primeira geração, relato, 03.02.18).
representa lideranças que saem do partido, por acreditarem que este perdeu sua
ideologia, se deparam com a realidade do jogo partidário em eleições de um município
pequeno e, por estratégia política, e não por ideologia, se coligam com o partido de
oposição. Este é o caso do município de Calvário do Norte, em que Eduardo Pereira sai
do PT levando com ele parte do grupo fundador do partido, mas afirma que esse
rompimento não representa um rompimento ideológico com o partido. A liderança é
enfática ao iniciar sua narrativa sobre o PT dizendo que “Esse partido tem história!
Olha, na verdade, a gente saiu do PT, mas o PT não saiu da gente né, porque nós
tivemos essa trajetória toda, não tem como, mas nós aqui desfiliamos do PT por
decepção”. A saída desse grupo do qual fazia parte duas das lideranças com quem tive
contato se apresenta um evento polêmico e complexo.
O que está em jogo nessa ruptura, entre outros elementos, diz respeito a um
sentimento de falta de apoio quanto ao desejo de uma forte liderança a candidatar-se ao
cargo de prefeito representando com legitimidade o “PT rural”. O PT nesse município,
como em muitos outros, pode ser pensado como dois subgrupos: um “PT rural, pé de
chinelo” e outro “PT da cidade”, que já estava associado com o inchaço, de um PT
menos “pé no chão”. A candidatura dessa liderança representava uma volta a um PT
mais legitimo, mais verdadeiro o que remete ao modo de conduzir-se, de ser “PT de
verdade”. Entretanto, a narrativa da liderança em questão aponta para “perda de
princípios” que, nesse caso, se apresenta como ausência dos saberes numa dimensão
organizacional do partido, o que gerou conflitos entre os grupos internos.
Em ambos os casos, o rompimento seja com os valores religiosos, com atitudes
esperadas graças ao acúmulo de experiências de uma trajetória unida pela “luta pela
justiça social” e pelo “ser PT”, justificam a desfiliação do partido. Em situações de
expulsão iminente, ambas reagiram contra a perda dos “princípios” e saíram do partido.
Entre as lideranças insatisfeitas com o Partido dos Trabalhadores a nível municipal são
frequentes as seguintes queixas: “enfraquecimento da base”; “manutenção do poder”;
“satisfação de interesses pessoais”; coligação com esse “povo que bateu na gente”;
perda de confiança dentro do partido.
Esta divisão em dois é comum à própria vivência da comunidade política, ou
você se alinha com um lado, ou se alinha com o outro, o que tem uma série de
consequências. Sendo que esse alinhamento é moral apenas no sentido de dívidas, e
compromissos, ou seja, relações cotidianas que vão se transportar para a política.
Eventos cotidianos e práticos do dia a dia levaram tais lideranças a escolher caminhos e
97
2.2.2 “Ô meu Deus, eu não sei o que vai ser de mim, eu não tenho coragem, não
tenho força, mas se o senhor tá me colocando, agora o Senhor se vira comigo”
40
A coligação Espera Feliz não pode parar é constituída pelo PPS/PT/PSD/PROS.
98
entre o “bem e o mal”, claro que possíveis conversões individuais são possíveis,
entretanto, esta polaridade é estabelecida sendo que cada polo pode ser identificado com
determinados grupos políticos. Após esta identificação de determinado partido político
com o “mal” torna-se complexo, do ponto de vista da conduta moral, estabelecer
relações de confiança e proximidade com tais partidos.
Assim sendo, o sofrimento da liderança diz respeito ao dilema em que se
encontrava posto que há um conflito entre lógicas de moralidades distintas em campos
distintos. Sua preocupação e ânsia estavam na aceitação de seus “companheiros” de
movimento, que tem em sua maioria a trajetória semelhante à das lideranças analisadas
nesta pesquisa, qual seja, uma formação religiosa “cebista” e a passagem pela
experiência sindical. Relata, então, as dificuldades e sofrimentos durante o processo de
decisão sobre os rumos que sua vida tomaria no mundo político.
[...] Em 2016 a coordenação de campanha do Pedro Luís se aproximou de nós
e queria que o vice do Pedro Luís fosse alguém do nosso grupo. E o tempo
todo as pessoas falando “tem que ser você, tem que ser você” e eu resistente e
falava “gente eu não tenho cara, eu disputei, fui adversária do Pedro Luís em
2012, foi uma campanha acirrada e depois teve umas cosias que rolou até
processo, encontrando em Fórum por conta de processo político e pensei
‘como que eu vou encarar a sociedade?” Eu gosto muito do Pedro Luís,
admiro, tiro o chapéu pra administração dele, mas eu não tenho cara de
encara a sociedade, a sociedade vai apontar o dedo pra mim e vai dizer
‘aquela dali ó... né, foi adversaria e agora tá ali...aí depois eu falei assim, tô
disposta a tá no time, a trabalhar, pedir voto pro Pedro Luís, mas não eu
como vice dele. E assim, quero que seja um vice do nosso grupo, mas eu de
maneira nenhuma. Aí fizemos uma reunião e apresentamos o Marcio, da
EMATER, que era do partido e tudo, que é uma pessoa que quista pra ser
vice. E pensava, ganhando eu venho a assumir alguma secretaria, mas vice
não. (... ) Aí reuniu eu, o Pedro Luís, o Branco que faz até parte da
administração hoje, o Juarez, o contador do sindicato, que é o presidente do
Partido e o Marcio que hoje é até secretário de agricultura e aí na conversa
Pedro Luís falou assim, olha a questão é a seguinte, eu tô pra disputar as
eleições seja com a Efigênia, seja com o Marcio, mas as pesquisas estão
claras que se for a Efigênia não tem dificuldade e aí o Marcio já tava com o
nome na praça e tudo... aí o Marcio só falou assim ‘ eu venho e vou disputar
e tudo, mas depois o partido não precisa nem cogitar um próximo mandato
comigo’ tipo fica quatro anos de vice e depois vem 4 anos como prefeito ‘eu
não tenho esse proposito e eu vejo que é diferente com a Efigênia’. Aí
colocaram a bola na minha mão e eu entrei em desespero porque já tinha
decidido que não ia ser candidata a mais nada, saí daquela reunião sem
direção. (Efigênia dos Santos, segunda geração, relato, 23.02.18).
“decepcionados” com integrantes do partido e suas atitudes, que foram vistas pelas que
saíram como “perda de princípios”, tanto a nível da micropolítica como a nível
organizacional do partido. Os argumentos seguem na direção de “a gente já não tava
fazendo como era”, “por isso que tá desse jeito, foi perdendo seus princípios”. Essa
maneira de teorizar são frequentes entre as lideranças que escutei. Essas narrativas
remetem ao princípio da união, do trabalho como cooperação e não competição, da
valorização do coletivo, como visto nos cursos de Aprofundamento e Revisão.
Dessa forma, ser ou não PT diz mais sobre a construção de uma identidade de
“PT rural” ou “PT puro”, do que sobre questões burocráticas e institucionais de filiação.
A ênfase na manutenção dos princípios pelos quais o diretório do partido foi fundado
em cada município é uma tônica em muitos relatos críticos como:
[...] aquilo que a gente pregou que queria ser, libertação pro povo, daí a
pouco nós tamo virando cabide de emprego, tamo só recebendo salário e, e...
vendo ali as pessoas né, dois mandato, três mandato, num abrindo mão
disso... eu, eu, como... eu sempre questionei essas coisas né (Joaquim Pedro,
segunda geração, relato, 24.02.18).
Para além de uma questão financeira como menos ou mais recursos para
financiamento de viagens pelo movimento, as experiências do deslocamento dizem
também sobre o destaque da liderança. Lideranças que realizam deslocamentos maiores,
como estadual ou mesmo internacionais, são as que, eventualmente, tiveram uma
trajetória política mais importante do ponto de vista da política municipal, em relação
aos que apenas faziam deslocamentos próximos à sua comunidade.
Vejamos então como as gerações sentiram as experiências considerando-se a
etapa que “entraram” no movimento e o contexto em que nasceram e cresceram.
41
Uma liderança que participou da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em seu município já
fazendo parte da direção aos 18 anos foi classificada como primeira geração.
42
Apesar do marco simbólico da fundação da Casa do Mobon em 1979, é importante lembrar que os
cursos eram oferecidos em outras casas de cursos, em salões paroquiais, escolas, debaixo de arvores, etc.
107
43
O Sítio Senhor Bom Jesus também foi onde as lideranças entrevistadas em Martins Soares fizeram a
maioria de seus cursos, sendo que alguns deles ajudaram na construção. Outras casas de cursos que
aparecem frequentemente nos relatos de acordo com a localização geográfica da liderança são a casa de
curso de Eugenópolis e a de Vargem Grande. Estas casas podem ser vistas como espaços de
sociabilidade, interações, trocas e intensificação das relações. Na CF 2018, João Resende incentivou que
não se isolassem em “montinhos” com as pessoas que vieram, pois ali tinham um espaço para trocas de
experiências.
108
parecida com essa do Mobon, não é tão famosa como a do Mobon, mas aqui
em Manhumirim... (Roberto Castro, segunda geração, relato, 22.03.18).
No final dos anos 80, onde eu ali estava com uns 13, 14 anos né, na fase da
adolescência e comecei a ter o contato com o trabalho de comunidade. Eu
acompanhava minha mãe nas rezas, nos cursos de... naqueles cursos do Pré-
Boa Nova de Natal de Semana Santa, eu acompanhava minha mãe e ali eu fui
ouvindo aquelas reflexões, aquelas coisas que o povo falava. Eu já conseguia
ler e o povo colocava eu pra fazer umas leituras né e eu vim pro município de
Conaçara, a gente mudou, é, a minha família sempre foi sem-terra, então meu
pai sempre trabalhou nas fazenda e era uma cara muito requisitado pra
trabalhar nas fazenda e tal e aí a gente vem pra trabalhar numa fazenda, numa
parceria de meia e nessa comunidade eu comecei a então a ter o contato com
o movimento sindical. Tinha 15 anos de idade, em 1990, mais ou menos
assim, é o contato com o movimento sindical. E por ter como base, a vivência
de participar daquelas atividades da comunidade, o movimento sindical deu
uma visão muito ampla da questão social, da questão política e tudo. E foi
muito interessante porque quando eu começo a participar do movimento
sindical, né, o final dos anos 90, o final dos anos 80, o começo dos anos 90,
tudo era muito novo, tudo era muito novo né. É... os movimentos sociais
assim que a gente tem envolvimento de luta, ele tudo foi gestado nesse
período. [...]. (Joaquim Pedro, relato concedido a autora do trabalho em
24.02.18)
Assim, apesar de Roberto Castro nunca ter ido ao Mobon e não ter feito curso da
Boa Nova, ele aprendeu a metodologia reflexiva ensinada à geração anterior através dos
Grupos de Reflexão. Essa mesma metodologia sobre textos bíblicos poderia ser
utilizada de outra maneira, ao se adaptar as normas morais a outros contextos em que se
encontravam, algo como um “ajuste situacional” (Theije, 2002), e foi o que aconteceu
com a Pastoral da Juventude em Cruz da Mata.
Aí depois de uns três anos que a gente tava fazendo esse trabalho, foi lá
tivemos o primeiro envolvimento com a questão política, porque a gente
trabalhava religião, preparar as pessoas ali pra discutir a importância da
religião ali na zona rural era muito forte. A partir dali nós também
começamos a discutir a questão política, aí começamos a discutir, na época
era um pouco mais forte discutir essa questão de, de... começamos a discutir
a questão dos partidos... [isso era que época mais ou menos?] Foi na década
de, finalzinho de 80, 88, até 90, aí começamos a discutir, eu sei que culminou
com a, aquela eleição do, do Collor, que aí nós achamos interessante discutir
isso, porque nós ainda não tinha percebido que tinha alguma coisa de
estranha naquela veste do, do Collor. Aí começamos a fazer uma discussão
de partido de esquerda, o que significava partido de esquerda, de centro, isso
era bem forte na época, de direita e tal... [Isso no Grupo de Jovem?] É, isso...
aí já... o Grupo de Jovem já tinha transformado na Pastoral da Juventude, que
era uma organização dos jovens na Igreja católica e aqui na nossa diocese era
bem forte esse, e aí eu achei engraçado que não sei se foi a eleição de, não sei
se foi 92, nós enquanto pastoral da igreja dentro do município, fizemos uns
discursos em todas as comunidades e achamos interessante nós lançar um
candidato a vereador da Pastoral da Juventude e assim foi um troço muito
forte naquela época. Aí nós conseguimos colocar tipo de suplente, a menina
que nós escolhemos ela ficou de suplente. Aí depois eu, também participei
muito do grupo de reflexão, foi muito forte minha participação nos grupos de
reflexão, até hoje eu ainda participo, lógico que com menos afinco porque a
questão do tempo tá pouco, mas sempre gostei porque eu achava que era uma
coisa bacana da Igreja Católica que tinha aquilo (Roberto Castro, segunda
geração, relato, 22.02.2018).
reconvertidas em capital político, seja ele eleitoral ou não (Coradini, 2001). É nesse
sentido que a segunda e a terceira geração de lideranças tiveram seus nomes “cotados”
à candidatura de algum cargo público. Tais lideranças são postas em “apuros” com um
tipo de pressão incentivadora, situação que remete aos primeiros dias enquanto
lideranças religiosas formadas pelo Mobon, em que eram designados para ministrarem
cursos quando ainda não se sentiam preparados.
A cotação do nome é acompanhada do incentivo dos mais velhos para entrada
nos movimentos, sendo que o fato de não se ter experiência no trabalho não é visto
como um empecilho para a entrada, já que é “na luta que se aprende”. A reputação, o
caráter e o “dom” da liderança religiosa vale mais que anos de conhecimento do
trabalho sem “experiência de base”. Ser visto como liderança que se destaca e o
incentivo dado a estes sujeitos é uma característica do processo salientada por vários
estudos (Kerandel e Del Canto, 1977; Comerford, 2003; Oliveira, 2012).
Entre as lideranças da segunda e a terceira geração, todas as lideranças com
quem interagi relataram em algum momento da conversa que tiveram seus nomes
“cotados”, ou seja, o reconhecimento da moralidade e da capacidade de ser uma boa
liderança, passa antes pelo reconhecimento da comunidade e/ou do grupo a que se
pertence que por uma escolha individual isolada. A cotação do nome tem estreita
relação ao “prestígio social” que vai sendo adquirido na luta e nas mobilizações
(Palmeira, 2010b; Comerford, 2001; Oliveira, 2012; Weitzman, 2016) Em geral, ao ter
o nome sugerido para liderar ou coordenar algum grupo, a reação é de receio, de
incerteza, mas o próprio acolhimento e incentivo do grupo constrói a liderança que já
vem se destacando.
No caso da liderança da terceira geração abaixo,
[...] aí entrei como funcionária [da cooperativa], fiquei 2010, 2011, 2012.
Quando foi em 2013 me convidaram pra uma reunião e perguntaram se eu
queria assumir a direção da cooperativa, porque viram meu desempenho né, a
comunicação, essas coisas que as pessoas avaliam que a gente acha que é tão
natural, mas que quem tá de fora vê que é um, um líder, né é uma liderança
porque se destaca. Aí eu topei, falei assim "não, pra mim tudo bem, eu quero
eu já tô mesmo, eu já tô fazendo e eu gosto" e aí foi onde eu assumi na
coordenação geral da Cooperativa em 2013, isso mesmo. [...] Só que em...
2016 pra cá minha vida deu uma reviravolta totalmente. Que eu tava na
Cooperativa e assim, aquilo ali pra mim ia chegar o dia de vencer meu
mandato eu iria sair e procurar outras coisas a fazer. Eu fui convidada pra
participar de uma reunião da direção do sindicato, que é a instância maior no
nosso município, é onde existe uma instância de vários sócios e tal. É ele que
conduz esses outros caminhos. Foi através do sindicato que abriu a porta da
cooperativa de produção, que abriu a porta pra cooperativa de crédito, as
próprias associações das mulheres, né desse núcleo todo organizado. E
simplesmente eu cheguei na reunião, participei das reuniões de capacitação
113
que foi feito vários momentos de capacitação pra questões de assumir algum
cargo dentro do sindicato. E na penúltima reunião, eu sem movimentar,
porque eu jamais estava trabalhando pra isso, levantaram meu nome pra
assumir a presidência do sindicato, a coordenação geral do sindicato. Eu a
princípio rejeitei, falei que eu não tinha condições porque eu estava na
coordenação geral da cooperativa, que eu poderia ficar até no secretariado,
que eu sei que tem menos responsabilidade e falei que não tinha condições.
Aí o pessoal "não, você vai reavaliar porque a gente quer você na direção,
você é uma menina jovem, mulher, e a gente nunca teve um jovem na
presidência do sindicato de Conaçara e muito menos mulher. [Foi a primeira
mulher também?] Não, não foi a primeira mulher, fui a terceira mulher, mas
em relação a jovem a primeira. Aí eu fui de uma certa forma pressionada
porque tem alguns fatores políticos também, que isso é do município, dentro
dos movimentos sociais, onde depois foi feito a reunião com os meninos da
cooperativa, no sentido de entender a importância de eu migrar pra essa
direção também. A Efigênia, que era a atual presidente, estava saindo porque
ela foi concorrer a uma vaga política no município né. Vir se vice-prefeita,
que se candidatou e ganhou as eleições, então ela já estava se afastando por
isso também e me deram total apoio, o pessoal entendeu essa necessidade e
eu fui. Quebrando a cara, bastante até hoje, porque é totalmente diferente
sindicato com cooperativa, né cooperativa eu já sei tudo digamos assim né, e
do sindicato praticamente nada. Eu sabia muito artificialmente, sócio, não
sócio, que mexe com crédito fundiário, habitação, mulheres e tal, tem suas
secretarias, mas como se trabalhar isso? Aí, de 2016 pra cá, minha vida teve
essa reviravolta toda, tô agora na direção geral e tamo trabalhando. (Elaine
Vitoria, terceira geração, relato, 24.02.2018)
Tal liderança teve seu nome cotado por duas vezes em dois cargos distintos. E
mesmo não tendo tempo para assumir a Coordenação Geral do Sindicato, recebeu
insistentemente pedidos para que reavaliasse, já que sua participação dizia respeito
também a uma estratégia política municipal, devendo substituir a coordenadora em
questão para que ela pudesse se candidatar a um cargo nas eleições municipais. Aqui há
também uma preocupação com o coletivo, uma responsabilidade social, uma
representação realizada de acordo com o que sabe que se espera dela.
Embora a segunda e a terceira geração tenha muitos pontos em comum, existem
especificidades que devem ser demarcadas. A segunda geração é aquela que “compra a
briga” para que novos corpos adentrem o Movimento Sindical e, portanto, é crítica à
manutenção do poder de alguns fundadores. Outra diferença interessante diz respeito ao
sofrimento corporal que não tem suas necessidades básicas supridas na luta pela
consolidação do sindicato. A última diferença está relacionada ao fato de que o
aprendizado da terceira geração ter se dado em um ambiente em que ambos, primeira e
segunda geração estavam presentes, de forma que a “briga comprada” influencia no
“fazer da luta” desta geração.
Nesse sentido, as lideranças da segunda geração não fundaram o sindicato,
tendo iniciado sua participação posteriormente à fundação.
114
A liderança acima relata que chegou cinco anos após a fundação do sindicato e
que nessa época o movimento era muito forte. O período de enfrentamento inicial
característico da criação de uma instituição que surge para garantir e legitimar os
direitos dos trabalhadores rurais, como as perseguições, ameaças e violência física, não
foi vivenciado por essa liderança, como foram pela primeira geração para toda a
segunda geração, dado o recorte etnográfico da categoria geração estabelecida. Nesse
relato podemos perceber a importância do movimentar-se, o deslocar-se para realizar os
cursos de formação. O deslocamento, a suspensão do cotidiano para uma vivência
coletiva e isolada da realidade cotidiana aflora o senso de coletividade, seja no
movimento religioso ou no sindical. É nesse deslocamento pelas estradas em constante
viagem para os cursos de formação do Movimento Sindical que o corpo padece em suas
necessidades básicas como dormir, comer e beber.
Pra você entender, eu enquanto liderança que a maioria das pessoas se, que
fez a trajetória que eu fiz, os meus parceiros, as pessoas que viajaram comigo
em muitos desses lugares, passando fome e sede na estrada, hoje continuam
nas direções dos movimentos, uns em cargos parlamentares, já em segundo,
terceiro mandatos, outros em direção de movimentos 5, 6 mandatos, muito
bem remunerados, muito bem, sabe, caminhando muito bem. Porém, pisando
na cabeça dos seus próprios irmãos pra manter nesses cargos. [...] Eu entro e
saio em qualquer município desse, em qualquer hora, em qualquer dia, sabe,
não tenho nenhuma mágoa e não tenho uma rixa. [...] Festa de 10 anos de
comemoração dos sindicatos na Zona da Mata, aí me pediram 'você pode
contribuir na mística?' Porque nós já comprava uma briga dentro do
movimento pra ter esse espaço das mulheres participarem... você acha que a
participação das mulheres no movimento foi assim do dia pra noite? Não, foi
uma conquista, com muita briga, né, e da juventude a mesma coisa. [...]
Então, assim... o sindicato comemorando os 10 anos de luta. Nós vivendo um
momento forte ali na década de 90, nos meados de 90, eu já tinha vivenciado
a experiência de ser candidato a vereador e estava muito ansioso querendo
organizar a juventude rural, a juventude camponesa, né. Em 95 eu tinha
participado de um encontro, do Regional Leste II, que a organização que a
gente chamava, que era o estado de Minas e Espírito Santo, eu voltei desse
encontro empolgadíssimo pra organizar a juventude nessa região, né. E
compramos briga muito grande, pra organizar a juventude rural, manter
aqueles grupos que já tinha e lutar pela identidade né Pastoral da Juventude
Rural. (Joaquim Pedro, segunda geração, relato concedido a autora do
trabalho em 24.02.18)
115
políticos explícitos. Como fica evidente na fala “eu já dei uma grande contribuição e
vejo que já é hora também de outras pessoas vir com ideias novas” (Elaine Vitória, 3
Geração, relato, 24.02.18), em que se preza pela formação de novas lideranças que
trarão novas ideias, novas ressignificações e contribuirão na constante construção do
processo.
***
O cerne que tentei evidenciar nessa subseção diz respeito a uma lógica
sequencial das experiências, qual seja, entrada no catolicismo pela família,
comunidades, sindicato e partido, que se diferencia de acordo com o espaço, mas
também com o período que se “dá entrada” no movimento. A etapa em que uma
liderança da segunda ou terceira geração entra num processo iniciado anteriormente
pode sugerir explicações contextuais do período e facilitar a compreensão de uma
ampliação de pautas e quiçá uma segmentação e que contribuirá para uma posterior
fragmentação. Se por um lado, há uma manutenção de um “modo de ser cristão” e dos
saberes aprendidos no Mobon, por outro lado, as experiências corporais em contextos
distintos proporcionam o uso da própria metodologia reflexiva aprendida no movimento
para questionar pautas e questões dadas como naturais. Observe, entretanto, que a
geração não diz respeito unicamente à faixa etária, mas sim ao conjunto de experiências,
embora a idade esteja como pano de fundo.
A “época do Mobon era muito boa” proferida tão frequentemente em tom de
saudosismo também pode ser pensada como uma parte específica do que poderíamos
chamar, seguindo a noção de “tempo de política” (Palmeira e Heredia, 2010a), de
“tempo do Mobon”. Uma vez que os cursos do Mobon eram e ainda são dados em
“regime de internato” (Oliveira, 2012: 110), há uma suspensão do cotidiano que permite
compreendê-lo como um tempo distinto, nesse sentido.
Ritualmente os cursos são oferecidos para as comunidades da Casa do Mobon,
em Dom Cavati, logo, o “tempo do Mobon” segue em processo. No entanto, para meus
interlocutores, especialmente os da primeira geração que tiveram maior contato com a
casa em 1979 e na década de 80, a referência é realçada no passado. “Nessa época” a
suspensões do cotidiano tinha duração desde seis até três dias de imersão, tendo uma
redução gradativa, dada a dificuldade de o trabalhador deixar seu trabalho. Esses
momentos rituais reforçam os vínculos e as relações sociais, como também mostrou
Prado (2007) em que o tempo das festas é exatamente o tempo da reciprocidade, certas
propriedades de relações que são próprias dessas festas, se mostrando diferentes das
117
relações em momentos outros. Embora os cursos tenham sido dados também em outras
casas de cursos a referência se faz como “Aí o pessoal do Mobon veio aqui” ou “João
Resende vinha preparar a gente”, em geral, quando dizem Mobon estão se referindo à
casa, mas que esses também são momentos de suspensão.
Aos poucos a segunda e a terceira geração já habituadas ao deslocamento, ao
pegar a estrada, engajadas no movimento sindical e políticos passam a vivenciar o
“tempo de formação” como uma forma de imersão e sociabilidade que aprofunda
relações e pertencimentos. Em suma, são “tempos de deslocamento”, tempo de deixar o
cotidiano e “pegar a estrada”, de “organizar a luta” de mobilização e movimentação.
Apesar de não se adequar ao caso específico desta pesquisa, a percepção
diferenciada do tempo em comunidades argelianas (Bourdieu, 1963) ajuda a pensar
sobre as diferentes formas de se relacionar com o tempo e como isso implica nas
relações morais imbricadas no cotidiano. A percepção do tempo nas comunidades e na
religião, assume características de sociedades camponesas, sendo o tempo não é uma
sequência abstrata e homogênea, mas uma relação com o concreto. A própria dinâmica
da sociedade impede a pressa, caso contrário perderia prestígio social.
Interessante perceber que mesmo esse sujeito moral específico que se pauta no
saber fazer do Mobon, que já faz parte de si mesmo, se vê em desafio constante no
contexto da política partidária, já que os princípios de união, solidariedade e justiça
social podem muitas vezes não funcionar no mundo da política, ambiente visto como
pautado em uma lógica da divisão. A formação religiosa da comunidade ideal não é
pensada em termos de relações pessoais, mas sim como um ente que está acima das
relações pessoais. Ou seja, numa perspectiva religiosa a comunidade se relaciona a um
espaço para o trabalho de si mesmo e da produção de si enquanto uma pessoa virtuosa.
E em certo sentido, essa dimensão organizada por formas de relações comunitaristas,
são transferidas, para o mundo dos sindicatos. Aí se encontra o germe dos dilemas:
como fazer política pautada por relações comunitaristas diante de um mundo em que o
que está em jogo é a política partidária sendo pensada como feita por relações pessoais
e interpessoais, como troca de favores, como um jogo em que ou se perde ou se ganha?
Esse é o debate central que se fará no capítulo que se segue.
118
CAPÍTULO III
Ora, mas se “é verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em
que se efetua” (Foucault, 2018a: 36) é verdade também que o contexto em que tal ação
é efetuada se mostra de extrema importância para compreendê-la. Nesse sentido, não se
trata apenas se seguir ou rejeitar as normas prescritas no código moral, mas sim de
compreender os desafios morais impostos a essas lideranças ao transitarem entre
mundos sociais pautados por códigos e “hábitos” (Das, 2012) distintos. Nessa
perspectiva Theije (2002: 43) chama de “ajustamento situacional” o ajuste, a adaptação
do que se aprende e dos discursos ao longo da vida cotidiana, é “a interpretação
contextualizada de discursos e mensagens”. Dessa forma, a interpretação de uma
mensagem, ou uma prescrição, assim como a maneira como esta é posta em prática, não
necessariamente será condizente com a intencional, da proposta originária.
Podemos, assim, pensar sobre a ressignificação necessária ao sujeito católico-
cebista quando se depara com as novas regras e/ou lógicas do mundo político. Como
visto no capítulo I, as regras do mundo religioso remetiam à união, fraternidade,
colaboração – relações comunitaristas – enquanto o mundo político jogava com regras
voltadas para a divisão, a acusação, competição, disputa de votos (Palmeira e Heredia,
2010b), mesmo entre os integrantes de um mesmo partido (Heredia. 2010a), etc. –
relações pessoais.
Podemos, então, “pensar de que maneira e com que margens de variação ou
transgressão os indivíduos ou grupos se conduzem em referência a um sistema
prescritivo” (Foucault, 2018a: 32). Nesse sentido, minha leitura de Foucault se
aproxima da feita por Laidlaw (2013) na medida em que compreendo o pensamento do
filósofo sobre subjetivação e liberdade como útil para a antropologia pensar sistemas
éticos e que não se trata de uma simples reprodução habitual, ou de uma prática
inconsciente, mas sim de uma fabricação de si, ou seja, a ética vai além da dimensão de
seguir regras socialmente aceitas. Laidlaw (2002) argumenta que nas técnicas de si
religiosas e formais, a partir da reflexão, as pessoas têm suas condutas moldadas por
tentativas de fazer de si próprias um tipo de pessoa e, portanto, sua conduta é ética e
livre, podendo ser admitida como um exemplo de liberdade ética. Esse trabalho de si
para alcançar um modelo teleológico de conduta também aparece em Mahmood (2006)
ao argumentar que o modo de subjetivação necessariamente envolve o trabalho que se
deve fazer para se colocar em acordo ou em alinhamento com uma tradição moral que
esteja fora de si mesmo.
120
44
Entretanto, em conversa informal no Leste de Minas, uma liderança me contou sobre a decisão do
Partido dos Trabalhadores, lançar candidatos à prefeitura sem realizar coligações, o que foi denominado
por ele de “PT puro”, em pesquisa sobre candidaturas, percebi outros dois municípios que realizaram a
mesma estratégia política.
124
atos realizados: a ação era conveniente? Qual a finalidade da ação? De que maneira essa
ação foi efetivada?
Embora em ambos os grupos os discursos do “bem comum” como finalidade
estejam presentes, as estratégias divergem na “caminhada” para alcançar o objetivo.
Segmentei as lideranças em dois grupos. O primeiro grupo é composto de lideranças
que não aceitavam a coligação com a antiga oposição porque isso significaria “perder os
princípios” Nesse grupo, as argumentações tem tom acusatório no que tange à estratégia
da coligação para se alcançar o poder.
Entretanto, o segundo grupo, composto por lideranças a favor da coligação com
a antiga oposição argumentava a favor da conveniência da ação, já que a partir desta
estratégia, se alcançaria a finalidade do “bem comum”, exatamente por alcançar a
efetivação de projetos propostos pelo partido. A conveniência se dava pela maneira
como, em geral, a política em pequenos municípios efetivamente se dá, com no máximo
dois candidatos à prefeito. A polarização entre duas facções não proporciona muitas
alternativas, principalmente quando há conflitos e tensões pessoais e familiares entre
filiados de uma mesma facção. Nesse caso, a escolha está entre deixar o mundo político
ou realinhar e coligar com a facção oposta.
Estamos diante de uma balança entre modos de sujeição às normas prescritas
que pesam mais ou menos para as estratégias ou as finalidades das ações. Enquanto as
lideranças do primeiro grupo não aceitam qualquer estratégia ou quaisquer meios para
se alcançar o fim prescrito pelas normas do código moral, qual seja, a “justiça social” e
o “bem comum”; as lideranças do segundo grupo argumentam exatamente que de nada
adiantaria sonhar com uma finalidade e não conseguir efetivá-la, mais valeria mudar as
estratégias para se alcançar ao menos parte do objetivo final. Essas diferentes
constituições do sujeito moral se deram de formas distintas, obviamente, envolvendo
relações humanas de conflito e /ou afinidade para além do âmbito sindical e político, já
que estamos tratando de agentes residentes em pequenos municípios.
Entretanto, não existem regras explícitas sobre uma única maneira de realizar
essas condutas. A metodologia reflexiva iniciada com os grupos de reflexão no Mobon e
tão presente nos sindicatos também contribui para que o sujeito reflita sobre sua atuação
em contextos diferentes, em que não há prescrições explícitas sobre como conciliar
hábitos religiosos e políticos. No que tange às experiências com o sindicato e o partido
político, não se pode dizer que havia no código moral seguido, instruções e um saber
fazer voltados para o mundo político. Como já visto, muitas das prescrições religiosas
125
eram também cívicas e políticas, entretanto estava voltada para o mundo religioso
cristão cebista, onde valoriza-se a união, humildade e solidariedade. Diante das novas
prescrições constituintes de um código político, que engloba tanto o sindicato45 quanto o
partido, os sujeitos morais constituídos com base nos preceitos da união, viram-se
diante do desafio de seguir a conduta moral de seu modo específico de “ser cristão” em
um campo em que as prescrições eram de competitividade e de divisão.
Algumas das questões centrais no que tange as tensões dentro do grupo e entre
os grupos, estão conectadas à acusação de “perda de princípios” do outro para justificar
moralmente a ação tomada. Ou seja, ao sentir-se traído, já que dada a perda de
princípios o senso de intimidade parece esmorecido, justifica-se moralmente o agir de
forma não condizente com a união, o sacrifício individual e a resiliência.
O senso de pertencimento ao partido a nível municipal baseado nas relações
pessoais se enfraquece dados os conflitos cotidianos, entretanto, o sentimento de “ser
PT” não pareceu abalado. Todo o trabalho de si proposto na formação das lideranças
conjuntamente com a continuidade da prática do saber fazer que foi aos poucos
tornando-se “hábito” (Das, 2012) no cotidiano dessas lideranças, formaram também um
senso de pertencimento que vai além da filiação ou não ao partido.
O que se tem em comum aqui (referente aos casos apresentados no Capítulo II)
consiste num jogo entre interesses pessoais e interesses partidários permeados de
acusações, contra-acusações, julgamentos e autojulgamentos baseados na justificativa
moral da ação. A relação entre as estratégias políticas pessoais, a necessidade de
justificativa moral junto à comunidade e a dinâmica partidária nos mostra a
complexidade das experiências vividas por esse tipo de sujeito moral religioso ao se
envolver no mundo político. São experiência de grande peso emocional e rupturas muito
profundas que remetem ao sofrimento, à raiva e à dor, já que muitas vezes se tratava de
relações de “uma vida toda”. Em alguns casos, como vimos de forma mais explícita,
trata-se de uma relação consigo mesmo, um trabalho sobre si.
Durante as narrativas, ao refletir sobre as condutas de si mesmo e dos outros é
central a importância da ação moralmente justificada. A partir da justificação moral, os
dilemas enfrentados por tais lideranças emergem das narrativas como ações dolorosas,
porém refletidas, dada a subjetividade moral, o contexto da ação – tanto histórico como
45
A experiência da divisão foi também sentida na divisão do Movimento Sindical, como visto no
Capítulo II.
126
46
Por trabalhar com memórias que se tornaram tradição oral na região estudada, inspirada no mito
“familiar” em Lomnitz & Perez-Lizaur (1987), que pensam o mito como uma narrativa que mantem uma
unidade simbólica de um grupo, podemos pensar num mito “religioso e político” do MOBON, no sentido
de ser uma narrativa, onde são relacionados personagens e acontecimentos para serem transmitidos
oralmente, dando unidade ao grupo. Há que ressaltar, entretanto, que as autoras trataram de parentesco
consanguíneo e por afinidade, enquanto entre as lideranças do Mobon, estou considerando as experiências
vividas na partilha, pensando a noção de “relacionalidade” (Carsten, 2000) e “mutualidade do ser”
(Sahlins, (2011), cria laços mais ou tão fortes que os laços de sangue, que podem ser pensados como
127
reflexão e posterior flexibilização das normas. Uma das prescrições diz respeito ao
tamanho da comunidade que deveria ser pequena para que todos pudessem se expressar,
para criar um ambiente familiar e relações de confiança. Entretanto, no mundo político,
perceberam que um partido com poucos filiados não elegeria representantes e, por
conseguinte, os projetos sonhados para o “bem comum” não poderiam ser efetivados.
Se por um lado existem estratégias e maneiras de se construir um mundo “socialmente
mais justo”, como as comunidades num nível mais micro, ampliar essa justiça para além
das comunidades implicaria permitir o crescimento do partido. Esta tensão e muitas
vezes o desagrado de permitir a ampliação, se mostrou na fala de lideranças que
afirmam que houve um “inchaço do partido”, para essas lideranças não houve um
crescimento, já que as motivações dos filiados não vão em uma mesma direção, mas
como o número de filiados se elevou, pode-se falar de um “inchaço”.
A dinâmica e fluidez do realinhamento partidário apareceu como uma tensão
mais acentuada, uma vez que algumas coligações significavam “perder os princípios”.
A compreensão do funcionamento do mundo político partidário em pequenos
municípios foi central para perceberem a polarização fluida entre duas facções e a
intensificação de divisões que já havia experienciado no movimento sindical. Num
mundo em que as relações pessoais se sobrepõem às relações coletivas, conflitos
pessoais também influenciam negativamente na permanência dos sujeitos.
Como vimos, em geral, coligações com o PMDB não traziam grandes tensões.
Não obstante, alinhar-se com partidos que fizeram parte da oposição no período de
redemocratização e criação dos sindicatos, era visto por algumas lideranças como algo
inaceitável do ponto de vista moral. O segundo dilema se trata, assim, da tensão que
surge em pequenos municípios divididos em duas facções opostas, quando há um
conflito dentro de uma delas. Num ambiente em que o peso das relações pessoais é de
fundamental importância, conflitos pessoais, familiares, de trocas de favores etc.,
podem provocar dissidências internas (Palmeira, 2010a). Esse era o cenário posto para
muitas lideranças cebistas do PT.
Diante de conflitos internos à facção em que se encontrava filiado, havia duas
alternativas imediatas. A primeira delas consiste em permanecer nessa facção, “suportar
todo aquele sofrimento” e ser um exemplar da resiliência tão valorizada nos eventos do
Mobon/Ceb’s. No entanto, algumas vezes, a falta de compreensão do sofrimento e das
parentes por consideração. O que Comerford (2001: 381) chamou de “família de segunda ordem”
formada no processo de estabelecimento e consolidação do sindicato e do partido.
128
inquietações pelos outros membros do partido apareceu não raras vezes como uma
noção de traição, o que dificultava a convivência cotidiana e a “unidade inicial” do
partido. A segunda opção, portanto, surge com a possibilidade de deixar essa facção, o
que poderia se dar de duas maneiras: a liderança poderia “deixar a vida política”; ou
poderia se filiar a outro partido que fosse alinhado à facção oposta.
O pano de fundo destas questões consiste principalmente numa dinâmica entre
interesses pessoais e interesses partidários. Na primeira alternativa, tem-se um sacrifício
individual, típico do cristianismo católico, em prol do coletivo, no caso o partido.
Entretanto, lideranças que permaneceram por um longo tempo “suportando” acusam
outros membros do partido de terem “perdido seus princípios”, o que aconteceu tanto
pela sobreposição dos interesses pessoais acima dos partidários de alguns membros,
como pela recusa de parte do partido a seguir os saberes organizacionais que já faziam
parte das práticas das comunidades e do sindicato.
Na segunda alternativa, deixar a vida política, muitas vezes pode significar
deixar toda uma trajetória de um trabalho de si nessa direção e mais que se abster de um
projeto pessoal, pode ser também que haja uma perda de um projeto coletivo nos
moldes planejados. Faço aqui a ressalva de que algumas lideranças que deixaram a vida
política partidária se empenharam em realizar um “trabalho para os pequenos” de outra
maneira, como advogando para os trabalhadores rurais, trabalhando com a agroecologia,
saúde alternativa, pastorais sociais etc. Ainda dentro da segunda alternativa, poder-se-ia
deixar a facção ao desfiliar-se do partido, ao qual já não se sente mais pertencente, e
coligar-se com a facção oposta, uma vez que deixar a vida política não é uma opção. A
experiência na política partidária em pequenos municípios também mostrou a estas
lideranças que a disputa eleitoral funciona apenas com dois candidatos, ou se está em
uma facção ou está em outra, “se lançar sozinho não adianta”.
Há que salientar que esse fluxo de lideranças entre as facções e partidos diz
menos sobre a ideologia partidária que sobre o peso dos atritos pessoais cotidianos
típicos de um mundo político partidário. Entretanto, as referências aos princípios fazem
parte da narrativa das lideranças, o que nos leva a refletir sobre quais princípios se
utilizam para avaliar as condutas morais da resolução de dilemas cotidianos.
219), o que compreendo que está intimamente relacionado ao “ter princípios” para
alguns de meus interlocutores, embora não para todos.
Outra especificidade diz respeito à mudança na forma de organização do partido
no que diz respeito à sua metodologia inicial, também aponta para a “perda de
princípios” na medida em que a organização pautada nos cursos do Mobon e nas
comunidades em que as reuniões enfatizavam as decisões coletivas, a expressão de cada
um dos participantes, a avaliação posterior às atividades, etc. A crescente importância
da representação indireta dada o crescimento do partido e necessidade de tomada de
decisões rápidas foi vista como uma mudança negativa. O “princípio” nesse contexto
diz respeito à organização partidária. Estranhamento semelhante foi relatado por
Heredia (2010a) sobre uma liderança sindical que ao se candidatar ao cargo de vereador
estranha o trabalho individual entre os candidatos ao mesmo cargo da sua facção que
concorriam pelos mesmos eleitores.
Compreender a forma de se organizar e tomar decisões – o saber fazer do
Mobon/Ceb’s – como “hábitos” (Das, 2012), aqui pensados como o local onde a ética
comum ao movimento se manifesta, pode ser importante para perceber que hábitos
como a tomada de decisão de maneira coletiva – que diz respeito a valorizar a opinião
do grupo em detrimento da sua própria – e satisfazer o “bem comum” – em detrimento
dos privilégios pessoais – se referem à saberes organizacionais que permaneceram e se
fortaleceram nos sindicatos dos trabalhadores rurais.
A reflexão perpassa também pela diferenciação do tempo entre os dois campos.
Enquanto a vida religiosa se desenhava de forma relativamente lenta, possibilitando a
expressão de todos e uma reflexão característica das Ceb’s, o jogo político se
apresentava como dinâmico, as decisões deveriam ser tomadas de maneira quase
imediata, sem muito tempo para consulta do coletivo. Esse estranhamento também se
deu no Leste mineiro, como mostrou Oliveira (2012: 218), ao constatar que “as lógicas
administrativas da prefeitura apresentavam formas de funcionamento diferenciadas
daquelas que se revelaram nas reuniões comunitárias. Assim, havia dificuldades
constantes em se colocar em prática a política mais participativa.”
Ao habituar-se ao modo de fazer política nas Ceb’s e no sindicato, lideranças
avaliaram atitudes incomuns no meio religioso e sindical como menos legítimas, como
“perda de princípios”. Como quando argumentam que o Partido dos Trabalhadores
deveria manter a metodologia inicial, tanto no que diz respeito à consulta à base, como
também no que tange à avaliação do mandato realizado, uma estratégia de construção
131
popular típica das Ceb’s e do movimento sindical. Como já salientado por Comerford
(1999), as reuniões pensadas como um espaço de sociabilidade proporcionam um
espaço de tomada de decisões coletivas, seja pelo consenso ou pelo voto, onde se
tornavam públicos os dilemas tanto da organização como de seus membros. As reuniões
no mundo sindical se constituem num espaço de aprendizado e conscientização a partir
de uma discussão participativa. Há uma expectativa generalizada de que o sindicato
promova reuniões com frequência, sendo que sua ausência pode ser vista como
sintomas de problemas com o sindicato.
Ora, mas as lideranças fundadoras dos diretórios do Partido dos Trabalhadores,
em geral, se confundiam com os grupos de fundadores do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, hábitos e práticas aprendidas como saberes do Mobon/Ceb’s que estavam
também presentes no cotidiano dos sindicatos, como as reuniões, também estavam
presentes na composição inicial do partido. A ausência das reuniões como espaço de
sociabilidade, de expressão, de dar publicidade aos problemas, de tomada de decisão
coletiva e de representação direta, aparece como uma justificativa do distanciamento e
posterior enfraquecimento da base. Dito de outro modo, o hábito do mundo político
apresentava formas de agir incomuns ao hábito do mundo religioso e, por vezes,
sindical. Os hábitos do Mobon/Ceb’s pautados pela união e pelas decisões coletivas
pode, muitas vezes, não funcionar no mundo da política, ambiente visto como pautado
em uma lógica da divisão e de relações pessoais.
Como visto, realinhamentos partidários também podem ser vistos como “perda
de princípios” tanto por uma questão ideológica, no sentido de terem projetos
incompatíveis, tanto do ponto de vista da memória, quando as relações pessoais
dolorosas da perseguição, violência e morte não podem ser silenciadas em prol de um
projeto político.
Refletir sobre a adequação à um código moral, somado às experiências sindicais,
para a atuação no mundo político é um trabalho que exige a avaliação não somente de
si, mas também dos outros, em especial dos seus “iguais” (Heredia, 2010a). Assim, as
ações moralmente justificadas são pensadas em termos de julgamento e autojulgamento.
atividades locais a nível mais amplo, ou seja, o que antes era feito a nível de
comunidade, agora deveria ser feito a nível municipal; não se afastar da base. A questão
moral passa a ser então, como manter na conduta moral esperada e alcançar cargos
políticos eletivos.
As metáforas são frequentemente perpassadas por preceitos e julgamentos
morais. Como mostra Weitzman (2016: 150) através da “metáfora do diluvio” as
mulheres se referiam à passividade daquele que se permite “ser levado”. Perder o
controle dos processos vividos tem a ver com os fluxos migratórios já que no caso da
migração “um vai puxando o outro” e no caso do agrotóxico “um faz a cabeça do
outro”. Ora, mas se justamente a ação se tornar um exemplo a ponto de “puxar o outro”
ou conscientizá-lo, convertê-lo ao “fazer sua cabeça” são as chaves centrais para o
conhecimento, cuidado e controle de si, os exemplos como os de Weitzman (2016)
mostram exatamente como a metáfora do diluvio representa o descontrole de si, o
deixar-se levar. A noção de contágio une as duas situações, em que um sujeito passivo é
“levado” a fazer algo, ao invés de optarem livremente por determinadas escolhas.
Parece-me que o que Weitzman (2016) chama atenção aqui se trata exatamente de um
julgamento dessas mulheres acerca da falta do trabalho de si, das práticas efetivamente
realizadas a fim de governar-se a si mesmo e, assim, escolher livremente, refletindo
sobre causas e consequências e não se permitindo ser levado. No caso de minha
pesquisa os vistos como “cabeça fraca” são aqueles políticos sem “caminhada”, sem
todo o trabalho de si realizado durante todo esse processo de experiências e atividades
sociais. São, portanto, visto como não capazes de controlar a si mesmo diante dos jogos
e estratégias de poder constituintes do campo político.
Como argumenta Lambek (2010), a ética é intrínseca à ação humana, à
coerência entre o dito e o feito e à vida orientada por critérios estabelecidos. Assim, a
ética implica julgar situações, ações, pessoas e caráter. O julgamento é ao mesmo tempo
sobre si e sobre o outro. Vamos partir dos elementos enfatizados por Lambek (2010)
sobre o julgamento com base em critérios para saber ou avaliar comportamentos: a
conveniência do ato; sua finalidade; e a maneira de fazê-lo. Acrescento ainda, o
contexto do ato, elemento de verdadeira importância nesse trabalho.
De acordo com Lambek (2010) ao se examinar o exercício do julgamento
prático tem-se uma descrição mais precisa do modo de vida que analisar apenas o seguir
ou rejeitar regras. A conduta moral, bem como as ações morais que a constituem não
estão isentas do julgamento dos outros. Como bem observado por Heredia (2010a), as
134
críticas e acusações entre candidatos de uma mesma facção não são feitas publicamente
e, portanto, não podem se defender delas. Apesar da impossibilidade de defesa das
acusações, neste trabalho, pude perceber que, as lideranças mais citadas entre seus
“companheiros” também eram as que construíam sua narrativa em uma tonalidade
defensiva, talvez por serem há tempos alvo de acusações “entre seus iguais” ou mesmo
para justificar-se a si mesmo. De acordo com Heredia (2010a), essas acusações entre
“companheiros” que não podem ser contestadas atingem diretamente à honra. Tais
acusações, se tornadas públicas, significaria tornar público também o conflito no
interior da facção, o que afetaria sua imagem. Daí a centralidade das fofocas e dos
rumores para compreender esses conflitos velados. Para Heredia (2010a), enquanto a
disputa entre facções é restrita ao período de campanha eleitoral, a disputa por espaço
dentro da facção é constante, especialmente entre aqueles que concorrem ao mesmo
cargo, aparecem como razões importantes de ruptura e mudança de facção, justificada
pela traição.
Para além do ser julgada pelo outro, a liderança não está isenta do
autojulgamento, ou seja, da reflexão de si para si, da avaliação e argumentação para si
mesmo das atitudes tomadas, sejam elas vistas por si mesmo como erradas ou certas. O
trabalho de si e a reflexão sobre a “caminhada” foi tema recorrente nas conversas e
discursos das lideranças estudadas. O caso de Efigênia dos Santos (Capítulo II)
representa não apenas uma forma dos dilemas morais que são enfrentados por muitas
destas lideranças, mas a maneira como refletem sua trajetória, suas ações, suas
reputações, a conduta de si no mundo. Assim como Efigênia dos Santos ter sua
reputação moral mantida é a primazia destas lideranças, isto explica a preocupação
recorrente em justificar moralmente suas ações, detalhando os contextos, as alternativas
em jogo e argumentando como naquela situação específica, a melhor ação foi tomada.
O relato de Efigênia é perpassado pela dor, pelo sofrimento de não saber o que
pensariam dela, caso se aliasse à antiga oposição política. É nesse momento que se
tornam nítidas a importância do cotidiano, também no entre eleições, nas formas como
as relações pessoais e interpessoais vão se ajustando e as facções se reformando até o
“tempo da política”. Este marcado por conflitos acirrados, legitimava ações das duas
lideranças políticas opostas, Efigênia dos Santos, de um lado e Pedro Luís de outro. O
interesse pela atuação no município, deu-se pela competição, pela busca de
conhecimentos do outro e assim atacá-lo, assim iniciou-se uma interação entre as
lideranças, embora publicamente conflituosa.
135
sobre si mesmo, e é esse sujeito que reflete sobre as situações no mundo político, é esse
sujeito que reflete sobre quais os problemas de alinhar-se aos antigos inimigos, quais as
consequências de não alinhar-se, num jogo entre uma reputação estabelecida e a
possibilidade de ação para o que consideram o “bem comum”.
No caso abordado acima, a liderança assume que seu grupo via no opositor um
“coronel acirrado”, o que com o tempo viram que não era necessariamente assim. Há
uma justificativa moral em torno de seu realinhamento que visto de fora, poderia ser
tomado como “cooptação pelo jogo político”, ou mesmo uma “traição”. Esta não foi a
única liderança que argumentou sobre a mudança de representação da oposição. Noutro
município, ao se alinhar com a antiga oposição, a liderança justifica que “ele faz parte
desse partido, mas na verdade ele faz o trabalho pros pequenos” e afirma que o antigo
opositor é uma “boa pessoa”, mas que como nasceu em determinada família, acabou
fazendo parte de determinado partido, que “não é tão bom assim”, mas que esse político
individualmente é de “bons princípios” e por isso estão com ele.
As relações entre pessoas podem preceder as relações políticas, como também
podem se constituir na política como no caso de Efigênia dos Santos. O que é certo, em
ambos os casos, é que a política municipal em pequenos municípios é regida por
relações entre pessoas, entre famílias, entre profissionais e seus clientes, entre outras, de
forma que a lógica partidária, pensada como um coletivo que está acima das relações
pessoais, como pretendida nas Ceb’s, no Mobon, e quiçá no sindicato, não é o tipo de
relação que ordena o mundo político. Como resultado, os julgamentos e
autojulgamentos, próprios de grupos camponeses, são ainda mais intensos quando se
tem a reputação não somente religiosa, mas também política em jogo. Diante disso, é
necessária uma justificação moral das ações não somente para os outros, mas antes de
tudo para si, uma justificativa que se ajuste ao contexto e que se mostre como a mais
coerente possível com os objetivos iniciais da “luta”.
Mesmo os arrependidos justificam a ação moral no tempo devido, pelas
circunstâncias momentâneas e locais, argumentando que era o melhor a ser feito no
memento. No entanto, a vida é fluida, e a reflexão do passado frente aos acontecimentos
do presente, levam algumas lideranças a repensar sobre suas atitudes. A noção de um
elemento presente no código moral do Mobon diz respeito à resiliência, que representa a
capacidade de persistir no sofrimento pelo “bem comum”, emerge nas narrativas de
lideranças fundadoras dos diretórios do partido dos Trabalhadores. Neste caso aparece
como uma negativa, a ausência de resiliência que tiveram ao deixarem o partido. Apesar
137
apontadas como a justificação moral da ação tida como traição. A traição é, nesse caso,
oposta à fidelidade aos “princípios”, ou seja, ao código moral e aos saberes construídos
e fortalecidos ao logo das experiências nesse processo. Embora haja, de forma
semelhante à lealdade peronista (Boivin, Rosato e Balbi, 1998: 52), uma lealdade ao
líder máximo do Partido dos Trabalhadores – Luís Inácio Lula da Silva – que unifica
todas estas lideranças, apesar dos conflitos e dissidências municipais, a fidelidade da
qual se referem diz respeito a sobreposição do projeto coletivo acima do individual.
Note que as noções de traído e traidor são fluidas47 de acordo com o grupo
interno ao partido que se tem acesso, ou seja, de acordo com a perspectiva de quem
narra. O mesmo sujeito acusado de traição é também o que vai se sentir traído. No caso
da liderança que deixa o partido justificando uma mudança da metodologia de base. Se
por um lado, as lideranças antigas que permaneceram no partido acreditam que a ruptura
da liderança se deu por ela visionar um projeto pessoal e não partidário. Por outro lado,
a liderança em questão argumenta sua saída por seguir o modelo de organização do
saber fazer aprendidos em atividades do Mobon/Ceb’s e do sindicato. Trata-se de
perspectivas distintas acerca de um mesmo evento. Fica a questão: quem traiu quem?
Diante da ampliação e realinhamento partidário, dilemas mais tensos foram
sendo postos na vida cotidiana dada o estranhamento e a desconfiança entre aqueles
novatos também chamados de “sem caminhada de base” e os fundadores “com
caminhada de base” onde existe um “senso de intimidade” (Herzfeld, 1997, apud
Thiranagama, 2011) entre os que partilham códigos, práticas, linguagem e um auto
reconhecimento no pesar.
Entre as narrativas e relatos ouvidos, as histórias de “conflitos” e “brigas”
internas ao partido emergem daquelas lideranças que se enquadram de alguma maneira
como uma “traidora”, o que vai ao encontro da constatação de Thiranagama (2011) de
que ser um “traidor” é o que o torna capaz de romper o silêncio e tornar público o
segredo interno do grupo social ao qual pertence. Isto é, as lideranças que de alguma
forma puderam ser pensadas como “traidoras” são as que têm algo a dizer e tornar
público os conflitos internos ao partido e/ou facção. Isso pode sugerir uma explicação
para o constante clima de tensão que se vive nesse ambiente. Não se sabe exatamente
quem poderá se tornar “traidor” ou “traído”. O medo do julgamento ou o medo da
exposição pública de conflitos internos do movimento mantém as relações pessoais
47
Assim como também o são a noção de “trabalho duro” e de “trabalho pesado” entre as trabalhadoras
rurais do Leste mineiro (Weitzman, 2016)
139
nesse constante “vigiar e narrar”, para que se torne possível colocar em perspectiva o
cotidiano e a própria vida para a avaliação e reflexão coletiva (nos grupos ou nas
plenárias; reuniões, encontros, cursos, etc.).
***
Como vimos a centralidade das narrativas apontam para ações moralmente
justificadas, sendo que as tensões são também moralmente justificadas pela “perda de
princípios”, pela não coerência de uma conduta moral esperada, da exemplaridade (o
“testemunho”). Pensar o Mobon, as Comunidades, os Sindicatos ou o diretório do
Partido dos Trabalhadores em termos abstratos não traduz a complexidade das
experiências, pautadas pelas relações pessoais, sentidas pelos que concretamente são
estas entidades. Dito de outro modo, estas entidades são constituídas no cotidiano de
seus participantes, a partir de relações pessoais estabelecidas, construídas,
descontruídas ou reconstruídas. Assim como enfatiza Palmeira (2010a), para se
compreender o período eleitoral deve-se ter em conta os rearranjos dos compromissos
estabelecidos no período “entre as eleições”. Há que se levar em consideração as esferas
de sociabilidade regidas pelo compromisso pessoal, já que influenciam no processo de
adesão.
Os pontos de tensões presentes nos relatos e conversas informais têm como pano
de fundo a justificação moral da ação, seja daquele que efetua a ação (o autojulgamento)
seja daquele que avalia a ação do outro (julgamento). A justificativa moral perpassa, em
geral, pela acusação da “perda de princípios” ou pela justificativa “eu tenho princípios”.
Embora pareça simples a divisão entre os que agem de acordo com a conduta moral
esperada, ou seja, o modo de “ser cristão” característico dessa rede de conhecimento, a
forma como cada um dos sujeitos incorpora e reproduz as normas e o saber fazer do
Mobon, mas também reflete sobre elas e sobre si produzindo novas normas adaptadas
aos novos contextos e sujeitos, trazem uma delicada complexidade para a análise. O
modo de ser é então adaptado e ressignificado de acordo com os dilemas e
enfrentamento de códigos entre os mundos cebista, sindical e partidário. Mais que agir
por orientar-se por valores transcendentais que foram objetivamente acordados, ao
longo do processo, a vida se dá no cotidiano, nas relações, nas afetações, há também
uma dimensão das ações que diz respeito ao cultivo de sensibilidades no cotidiano (Das,
2012). Os hábitos e os costumes formam a textura da vida cotidiana. Assim, o
ressignificar de normas e a ação moral que se produz é não raramente passível de
140
julgamento e autojulgamento e é com base neles que abrimos a questão: quais princípios
e em que contextos?
Em última instância, observados com uma lente microanalítica as diversidades
de ênfases em determinados “princípios”, em uma dimensão mais geral percebemos que
o que está em jogo nessas tensões perpassa a contradição de uma dimensão pautada em
relações comunitaristas com outra dimensão pautada em relações pessoais.
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse balizar entre “quem sou eu” e “como devo ser” um trabalho sobre si vai se
tecendo, sendo que entre as habilidades estimuladas, considero o que chamei de
metodologia reflexiva como central nesse processo. Isso porque estimula a reflexão de
situações no cotidiano tanto da liderança como de sua comunidade. Para além do “vigiar
e narrar” camponês se assevera um julgamento da conduta do outro e, por saber-se foco
de narrativas, também o autojulgamento no contexto das Ceb’s, Sindicato dos
Trabalhadores Rurais e do Partido dos Trabalhadores.
As lideranças narram a criação dos STR e do PT como uma forma de cumprir a
“missão” do cristão. A “missão” exige o “movimento”, deslocar-se para espalhar a “Boa
Nova do Evangelho”. A corporeidade no deslocar-se unem narrativas de “época boa”,
mas também de muito sofrimento. Sofrimento de deslocar-se e sair do seio da família,
de fazer longas viagens, da estrada escura e perigosa, das constantes ameaças, violência
física e simbólica, perseguições e medo. Entretanto, ao se focar nos detalhes, nas
ênfases, nos choros percebendo não só o que une, mas também diferencia a afetação nos
corpos.
A geração à qual pertence a liderança também influi na diferenciação da
experiência, dadas as etapas distintas de um processo de criação e consolidação das
atividades sociais. Se por um lado, as lideranças da primeira geração, dado o
enfrentamento, passaram pela dor da perseguição, violência física e morte dos seus. Por
outro lado, a segunda geração, responsável pela manutenção das instituições, passaram
pelo sofrimento atribuído a “pegar estrada” dadas as limitações financeiras, o que é
visto como parte do auto sacrifício da “missão”. Está também foi a geração que abriu
brechas para a disputa da significação do “povo de Deus”, afinal, outras formas de
opressão foram se mostrando ao longo da caminhada, como a que ocorre contra as
mulheres, jovens, negros, etc. A terceira geração, é a geração emergente, que tem
contribuído para a ampliação das instituições, e suas articulações com outros
movimentos sociais.
Todas essas experiências vêm constituindo a noção de liderança autêntica do
Partido dos Trabalhadores, do “ser PT de verdade”, “PT pé de chinelo”, de quem se
espera uma conduta moral coerente com o “modo de ser cristão” cebista. As
expectativas em torno do que se deve ser trouxeram importantes dilemas morais a essas
lideranças à medida que adentraram uma dimensão social regida por valores e práticas
distintas, o mundo da política partidária.
143
mais intensos ao se intercruzar com interesses que são coletivos, mas também pessoais.
Além da justificação moral da ação, permanece também a noção de sujeito moral
transformador da sociedade, de “ser cristão”, de “ser PT de verdade”, sendo filiado ou
não ao partido.
Em suma, problematizei afirmações presentes no senso comum como “político
nenhum presta” mostrando os dilemas morais pelos quais um grupo de políticos,
advindos de uma formação religiosa, passaram ao adentrar o mundo da política
partidária. A própria existência de dilemas já informa a preocupação ética/moral e a
coerência com o que consideram princípios ético. Porém, mais que mostrar como esse
grupo de políticos está atento à suas ações morais, mostro que tais políticos também são
heterogêneos entre si. Complexificar a experiência vivida e ações morais na pratica
cotidiana parece promissor no sentido de desmistificar generalizações superficiais de
grupos sejam mais amplos ou mais restritos.
145
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