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VITRINE DO EU:
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE ESTEREÓTIPOS DE BELEZA FEMININA NO
INSTAGRAM
NATAL
2021
LAÍS SOUSA DI LAURO
VITRINE DO EU:
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE ESTEREÓTIPOS DE BELEZA FEMININA NO
INSTAGRAM
NATAL
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes –
CCHLA
Charlotte Brontë
Ryane Leão
AGRADECIMENTOS
Não poderia encerrar esse ciclo sem agradecer a todos que, de alguma forma,
contribuíram para que eu chegasse até aqui. Se aqui estou, é porque nunca andei só. É porque
sempre tive uma grande rede de apoio, com pessoas maravilhosas, me segurando, me
impulsionando e acreditando em mim, mesmo quando eu mesma não acreditava. E é por isso
que eu tenho tanto a agradecer. Meu coração está repleto de gratidão neste momento e eu não
poderia estar mais feliz. Não apenas pela realização de um sonho, que apesar de ser meu, foi
sonhado por muitos, mas também pela concretização de uma pesquisa que, por quase três anos,
foi uma grande parte da minha vida.
Fazer pesquisa nem sempre é fácil, mas quando a pesquisa é feita com amor e com uma
rede de apoio, é muito prazerosa. E aqui tem muito afeto. Muitos foram os momentos de dúvida,
de agonia, de renúncias, mas também muitos momentos de felicidade, de descoberta e de
entusiasmo. Em cada linha desta dissertação há muito de mim, mas há muito dos meus,
também. Por isso agradeço.
Aos meus pais Bete e Alessandro, ao meu irmão Lean e aos demais familiares que
sempre estiveram ao meu lado, incentivando e impulsionando e sonhando com essa dissertação
junto comigo.
Ao meu orientador Josenildo Bezerra, que desde o primeiro contato sempre me acolheu
de forma afetuosa e gentil. Sempre esteve disponível quando precisei, nas várias orientações
que tivemos ao longo do período enquanto estive na condição de mestranda. Nesses quase três
anos de percurso, sempre me motivou, acreditou em mim, me ensinou e guiou pelos melhores
caminhos. Toda minha admiração pelo grande pesquisador e ser humano que é. Mais que um
orientador, ganhei um amigo.
A Stênio Gonçalves, meu companheiro de vida, por todo afeto incondicional, pela
paciência e compreensão. Por torcer, acreditar, confortar e motivar durantes os dias mais
difíceis.
Aos meus pais do coração, Marciane Maia e Homero Costa, e as minhas irmãs, Isabela
e Iana, pelo amor e apoio incondicional.
Aos meus avôs, Antônio e Francesco e à minhas avós Valdete e Sinhá (in memoriam),
que sempre torceram por mim e acreditaram em meu potencial.
A tia Ló, por sempre me acolher nos momentos de desespero com suas delícias e seu
amor incondicional. Por estar ao meu lado até tarde da noite, incentivando e me ajudando com
a correção. Por sempre me impulsionar e confiar em meu potencial. Você é, e sempre foi,
inspiração para mim.
As grandes amigas que encontrei durante essa trajetória, Marília Diógenes, Liz
Nóbrega, Madja Magno, Carol Reis, Danielle Abreu e Vírnia Martins, que nunca soltaram a
minha mão nos momentos de dificuldade e que trilharam cada passo desse percurso comigo,
seja compartilhando eventos, discussões, opiniões ou comendo um doce e chorando as pitangas
do percurso árduo. Tenham a certeza que a conclusão dessa pesquisa se deve muito a vocês
que sempre, mesmo distantes fisicamente a maior parte do tempo, estiveram perto. Obrigada
por todo apoio e partilha.
A Erick Ruan, Danilo Meireles, Laís Emanuelle, Isaque Cabrera, Diego Bezerra e
Raquel Assunção por todo carinho, partilha e cuidado durante o caminhar acadêmico.
Ao CORPOLÍTICA, que mais que um grupo de estudo e pesquisa, se tornou um local
de partilha de conhecimento, questões e afeto.
Ao Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN) e todos que
fazem parte dele, desde os professores aos servidores da secretaria, que foram essenciais nesse
percurso.
Agradeço, por fim, à CAPES, que financiou esta pesquisa.
RESUMO
Esta pesquisa propõe refletir sobre os estereótipos de beleza feminina no aplicativo Instagram.
Na cultura contemporânea, é fato que o Instagram se tornou um ambiente que potencializa
funções: de uma plataforma de publicação e edição de fotos, transformou-se em um espaço
virtual completo, que agrupa diversas possibilidades dentro da mesma interface. O corpo tem
destaque nessa rede social. Ele é um elemento da expressão de si; é uma potência explorada
pelos diversos ângulos, olhares e possibilidades. Sabemos que as mídias digitais alteraram os
comportamentos, hábitos e formas de consumo de informação, de comunicação e de relações
sociais. No Instagram, rede social de interesse desta pesquisa, a vida é narrada através de
publicações. Em sequência, os posts dessa rede compõem uma vitrine em que o corpo belo
feminino é exposto envolto em discursos categóricos de estereótipos de beleza. O corpus desta
pesquisa encontra-se nos discursos de beleza propagados dentro do universo do Instagram. Em
um cenário que convoca a visibilidade, esta pesquisa propõe analisar a produção discursiva dos
estereótipos de beleza feminina no Instagram, utilizando como ferramentas de investigação a
arqueogenealogia e a análise do discurso foucaultiana. Além da fundamentação em Foucault
(2014a, 2020, 2019), esta pesquisa tem o aporte em Debord (1997), Lasch (1985) e Bauman
(2001) no campo social, Castro (2001), Sibilia (2016), Santaella (2018) e Sant’anna (2014) nas
noções de corpo e beleza, e Veiga-Neto (2007), Veyne (2011), Gregolin (2015), Fischer (2005)
e incontáveis outras vozes que contribuíram para o embasamento teórico deste texto. Foi
constatado que o Instagram é uma vitrine onde os corpos belos são expostos; que a sociedade
convoca o corpo a se mostrar para existir; entretanto, para que esse corpo tenha o direito de
orbitar sob as luzes da rede social, é preciso entrar numa ordem discursiva; que os enunciados
produzidos no Instagram resultam na construção de estereótipos de corpo feminino belo e que
os corpos que não se enquadram nesses estereótipos são tidos como corpos sem valor, sem
forma.
This research proposes to reflect on female beauty stereotypes on the Instagram app. The
corpus of this study is composed of posts made by users of this social network. We know that
digital media has changed people's behaviors, habits and ways of consuming information,
communication and social relations. On Instagram, the social network of interest in this
research, life is narrated through publications. The posts of this network in sequence compose
a showcase where the beautiful female body is exposed wrapped in categorical discourses of
beauty stereotypes. In a scenario that calls for visibility, this research proposes to analyze the
discursive production of the stereotypes of female beauty on Instagram, using Foucault’s
archaeology and genealogy and discourse analysis as research tools. In addition to Foucault's
foundation (2014a, 2020, 2019), this research is also supported by Debord (1997), Lasch (1985)
and Bauman (2001) in the social field, Castro (2001), Sibilia (2016), Santaella (2018) and
Sant'anna (2014) in the notions of body and beauty and Veiga-Neto (2007), Veyne (2011),
Gregolin (2015) Fischer (2005) and countless other voices that contributed to the theoretical
basis of this text. We found that the statements produced on Instagram result in the construction
of stereotypes of a beautiful female body.
NOTAS INTRODUTÓRIAS................................................................................................. 12
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15
1 NA VITRINE DO EU: BELEZA E ESTEREÓTIPOS ................................................... 22
1.1 O BELO.......................................................................................................................... 24
1.2 O PERCURSO DA BELEZA NO SÉCULO XX .......................................................... 27
1.3 A BELEZA NA CONTEMPORANEIDADE................................................................ 33
1.4 OS ESTEREÓTIPOS ..................................................................................................... 35
1.4.1 Estereótipos de gênero ............................................................................................. 39
1.4.2 Os estereótipos de beleza ......................................................................................... 41
1.5 ESTÃO TODAS FICANDO IGUAIS?.......................................................................... 43
2 NA VITRINE DO CORPO: ENUNCIADOS, DISCURSOS E SUBJETIVIDADES ... 46
2.1 OS ENUNCIADOS ........................................................................................................ 46
2.2 AUTOR E DISCURSOS................................................................................................ 50
2.3 O CORPO....................................................................................................................... 54
2.4 O CORPO E O PODER ................................................................................................. 58
2.5 O CORPO NA CONTEMPORANEIDADE.................................................................. 61
2.6 A IMAGEM CORPORAL E OS DISTÚRBIOS DE IMAGEM ................................... 63
2.7 A SUBJETIVIDADE E A PRODUÇÃO DO SUJEITO ............................................... 65
3 NA VITRINE: MÍDIA, INSTAGRAM E PRODUÇÃO DE SENTIDO ....................... 69
3.1 MÍDIAS DIGITAIS E REDES SOCIAIS ...................................................................... 71
3.2 NA VITRINE DO INSTAGRAM.................................................................................. 77
3.3 NA VITRINE: O FILTRO IDEAL ................................................................................ 81
3.4 NA VITRINE: SEM FILTROS! .................................................................................... 86
4 NA VITRINE: O CAMINHAR E AS POSSIBILIDADES ............................................. 90
4.1 O CORPUS E O DISCURSO ........................................................................................ 93
4.2 PARA NOMEAR O BELO............................................................................................ 96
5 NA VITRINE: POSSÍVEIS OLHARES SOBRE O CORPO BELO FEMININO ..... 101
5.1 CORPO MAGRO X CORPO GORDO ....................................................................... 102
5.1.1 O que pode o corpo gordo? ................................................................................. 104
5.1.1.1 Livre para viver..............................................................................................104
5.1.1.2 Mulheres com corpos reais pra ser capa........................................................106
5.2 JOVIALIDADE X VELHICE .................................................................. ...................108
5.2.1 O que pode o corpo velho? .................................................................................. 109
5.2.1.1 Meu corpo não é mais o mesmo.....................................................................110
5.2.1.2 Passagem do tempo nas linhas do rosto.........................................................113
5.3 PELE LISA X PELE COM MARCAS ........................................................................ 115
5.3.1 O que pode o corpo marcado? ............................................................................ 116
5.4 CORPOS QUE RESISTEM: QUANTAS MARCAS UM CORPO PODE CARREGAR
EM SI? ................................................................................................................................... 118
6 PALAVRAS FINAIS, POR ORA .................................................................................... 123
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 126
APÊNDICE ........................................................................................................................... 135
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Assim como inúmeras vezes nos custa concluir uma pesquisa, digo que é caro, também,
começá-la. Especialmente quando nos encontramos cursando caminhos de um campo de
saberes predominantemente marcado pela ciência sem afeições e sem escapes.
Embora ao longo da minha curta trajetória acadêmica, iniciada em 2015, tenha tido
acesso privilegiado a mestres que me guiaram pelos caminhos do saber com afeto, foi apenas
na pós-graduação que verdadeiramente compreendi como a pesquisa é feita de pequenos
fragmentos de sentimentos que, imiscuídos a saberes técnicos e dotados do rigor da ciência,
possibilitam o descortinar dos mais diversos temas. Isto posto, convém dizer — antes de
efetivamente iniciar este escrito — que as considerações feitas aqui partem da defesa de uma
escrita autoral e assinada, que denotam uma escolha cuidadosa, realizada com respaldo e
admiração, de autores como Michel Foucault (1969), Rosa Maria Bueno Fischer (2005) e
Alfredo Veiga-Neto (2014; 2009). Cada palavra aqui parte em favor de uma escrita
transgressora e, em decorrência disso, menos automática e menos servil (FISCHER, 2005).
Portanto, proponho desenvolver este trabalho nas fronteiras-limites entre arte, produção
científica e exposição de mim mesma, recorrendo à escrita e à postura autoral marcadas pela
simplicidade, pela honestidade, pelo vigor e, principalmente, pela paixão.
A jornada do pesquisador demanda muito tempo, esforço intelectual e afeição. Em vista
disso, os frutos desse percurso talvez pudessem resultar em “textos mais vibrantes, mais vivos,
mais mobilizadores de nós mesmos e daqueles que nos leem” (FISCHER, 2005, p. 1). É claro
que essa postura não objetiva negar a natureza científica da pesquisa, tampouco “perde de vista
a lei (a lei da Pós-Graduação, a lei das agências fomentadoras de pesquisa, a lei do mundo
científico, todas as leis que nos fizeram e fazem dizer e escrever deste ou daquele jeito), até
porque justamente nessa transgressão tal ordem se faz viva” (FISCHER, 2005, p. 10).
Importa ressaltar que essa postura adotada é, acima de tudo, uma postura poética,
sensível e política, a qual invoca o “engenho e arte”, valoriza os discursos proferidos
anteriormente e respeita os discursos que serão expressados após essa enunciação.
Este texto é fruto de inúmeros autores dos quais me aproprio para redigi-lo, do
empirismo, de devaneios, da imersão, da teoria bruta lapidada especificamente para esta
pesquisa. E, quando digo que trago este texto à vida é porque, a partir de caminhos traçados,
de escolhas feitas e de sentidos desvendados, ultrapasso conceitos, teorias e métodos e me
inscrevo numa criação que não se restringe apenas a um texto, mas a uma paixão.
12
Aqui dou espaço a várias vozes que ecoam e se configuram sob o meu olhar, pois,
como bem nos diz Fischer (2005, p. 3), “reescrever um autor, apropriar-se dele, é vasculhar em
suas formulações teóricas um ponto de encontro com nós mesmos, com aquilo que escolhemos
como objeto, com aquilo em que nós investimos nossa vida, nosso trabalho, nosso
pensamento”. É na exploração dos detalhes que vivemos efetivamente as experiências e
ativamos a nossa potência criativa.
Destaco, por fim, que tentarei escapar do plural majestático, do sujeito indeterminado,
dos pronomes da terceira pessoa do singular e do mito da neutralidade (VEIGA-NETO, 2014),
progredindo a passos fundos na dimensão da linguagem, indicada por Foucault (2014a). Para
tanto, adotei uma postura direta, clara e determinada, comprometendo-me com cada palavra
que será despendida no decorrer deste texto, sem perder de vista, é claro, os incontáveis
discursos que me permeiam, e continuam a me permear neste exato segundo, nos mais variados
formatos, que moldaram e ressignificaram minha subjetividade. Todos os processos que nos
subjetivam estabelecem uma estreita e indissociável relação conosco, sobre a qual não é
possível desassociar o ser sujeito do ser pesquisador ou do ser autor. Portanto, assumo a autoria
deste texto na medida em que articulo “as coisas que já estavam à solta no mundo, nas práticas
discursivas e não discursivas que me constituíram” (VEIGA-NETO, 2014, p. 66).
A motivação inicial deste trabalho despontou de uma inquietação que, enquanto usuária
do Instagram e de outras mídias sociais, sempre se fez presente: a espetacularização do corpo
ideal feminino. Essa inquietação ficou ainda mais forte quando, ao me dar conta dela, começava
a notar nos mais diversos âmbitos, nas menores práticas, a produção de sentidos em torno do
corpo da mulher.
Com a ascensão do Instagram e com inúmeras condições facilitadas de acesso aos meios
tecnológicos, os smartphones e a internet, essa exploração do corpo se tornou ainda mais
intensa. E o incômodo, que sempre esteve ali presente, transformou-se em um problema. Um
problema que eu desejava entender profundamente. Não me recordo precisamente quando
comecei a refletir sobre esse tema, mas me lembro exatamente do momento em que esse
problema se tornou meu objeto de estudo. Lembro-me justamente de quando esse tema me
escolheu para sacudi-lo.
Ainda sem muitas ferramentas de análise crítica, sem um arcabouço teórico e sem real
noção da dimensão do problema, sentada num degrau do prédio do Laboratório de
Comunicação, em uma fração de segundos, um insight: e se eu pudesse compreender como os
estereótipos de beleza feminino são construídos e propagados?
13
Desde pequenos, somos bombardeados por narrativas que preenchem a vida de
significados. Essas narrativas são propagadas especialmente pela mídia e, paulatinamente, são
incorporadas a nosso cotidiano sem paragens. Por fim, são aceitas e tornam-se uma fração da
realidade; é como se desde sempre elas estivessem ali, habitando aquele espaço. Mas essas
narrativas, que impregnam o nosso cotidiano, têm raízes submersas na história.
“Mulher tem que ser magra”; “é… a mulher tem que se cuidar, né?”; “não dá para
querer ter um marido ou ter sucesso se você é desleixada com a aparência”; “você viu como
a fulana engordou? É por isso que não desencalha”; “aquela atriz da novela é linda demais.
Olha o corpo dela, alta, loira, magra e com belas curvas”; “isso é que é uma mulher bonita,
viu?”; “se eu fosse assim, com certeza faria muito sucesso”; “mas a idade chega e não dá pra
ser bonita e velha ao mesmo tempo”; “e se você fizesse uma cirurgia plástica?”.
Enunciados como esses, reproduzidos de conversas cotidianas e registrados aqui, são
repetidos infinitas vezes todos os dias, por pessoas das mais diversas classes sociais, idades,
próximas ou não. Foi a partir de enunciados como esses que encontrei motivação para me
debruçar sobre este estudo. Nesta pesquisa, a inquietação se faz presente e me move. E é por
essa incessante sensação incômoda que pesquiso.
14
INTRODUÇÃO
Que corpo é esse, exposto nessa vitrine como um objeto de desejo e consumo, cobiçado
e aplaudido? Vitrine, no sentido metafórico, mas que muito bem define a relação
instrumentalizada que o corpo foi adquirindo ao longo dos anos. Através dessa linguagem
metafórica, conseguimos compreender que o corpo, muitas vezes, torna-se mercadoria e
adquire status de objeto. Outras vezes, serve como suporte para venda de produtos e/ou
serviços. Ali, o vemos em destaque, iluminado pela luz das telas que o valorizam…
Embora ao pensarmos em uma vitrine sejamos remetidos para a fachada de uma loja,
em que sempre existe alguém modelando os manequins e vestindo-lhes a bel prazer, pois estes
são inerentes à vida própria, o sentido de vitrine utilizado aqui vai além dessa definição
tradicional. É preciso salientar que as mulheres não são meros manequins que trocam de roupa
e mudam seu corpo conforme a ditadura das influenciadoras, mas são indivíduos dotados do
poder de escolha, embora este seja diretamente influenciado pela mídia e pelas inúmeras
instâncias que compõem o social. Consequentemente, entendo que existe uma parcela de
escolha das mulheres que optam por seguir os padrões de beleza, seja de maneira consciente
ou não.
Na vitrine em que posa o corpo, os olhares o fitam avidamente. Mas não é qualquer
corpo que está ali, pois não é qualquer corpo que tem o direito de ser exposto; apenas aqueles
que ganharam o direito de se exibir. Direito esse obtido pela aprovação social, garantido pela
supremacia dos corpos ideais. O corpo em evidência, então, é bem apresentado, rígido, bem
portado. Ele representa uma imagem, que vende e se converte em lucro, seja esse lucro material
ou simbólico.
Na vitrine do Eu, os corpos tornam-se representações. Mais do que produtos num
mostruário, o corpo na vitrine é preenchido de significações que o colocam em posição de atuar
como um medidor de moralidade e de princípios. Ele, então, é associado à falência ou ao
sucesso e, assim, é louvado ou rejeitado, aplaudido ou censurado.
O ser agora é representado pelos corpos, que expostos, buscam aceitação a todo tempo.
Mas que corpo é esse, marcado pelo tempo, ressignificado pelas mais diversas instâncias, que
atraído pelo brilho das telas, dos mais diversos tamanhos, se expôs? Que corpo é esse,
evidenciado pelos holofotes e olhares curiosos de outrem que o procuram e observam? Que
corpo é esse, então, formidável, mas que está ali despido de pudor, de vestimentas e de
subjetividades? Que corpo é esse, pairado sob o holofote e olhares dos outros? Que corpo é
15
esse, delineado e marcado, disciplinado e rígido? Constituído pelo discurso e no discurso.
Corpo discursivizado. Corpo inacabado, corpo sarado, corpo modificado, corpo exposto. Corpo
plastificado.
É o corpo que foi posto naquele local para ser testado, julgado e condenado. Condenado
à morte1? Talvez a morte da subjetividade. Ora, talvez a morte da vontade de viver, ou da morte
do corpo físico. O corpo é enunciado. É uma travessia de poder-saber. É produtor discursivo.
E é nessa inquisição do belo, dos estereótipos, do perfeito, do ideal, que esse corpo
agora é exigido ao máximo e disciplinado aos imperativos da beleza. Que corpo é esse, vagando
solitário e cansado, mas ainda obediente aos mais severos tipos de coerção estética e
objetificação? É um corpo que se libertou da carne e do desejo? Ou um corpo que segue
acorrentado a premissas do esperado? O certo é que esse corpo, corpus deste estudo, é o corpo
de centenas, quiçá milhares de mulheres. E escolhi delimitar meu estudo aos corpos delas por
compreender que, historicamente, as mulheres sempre foram centro de pressão estética e,
também, por elas comporem estatisticamente a maioria dos usuários do Instagram, conforme
mostrarei a seguir.
Esse corpo foi — e é diariamente — reduzido a medidas e tamanhos, a expectativas. É
o corpo rotulado que anda em busca de aprovação, pois a aprovação é sinônimo de sucesso,
cuidado, vigor e saúde. Mas essa aprovação também é sina. E pesa. E consome o Eu. O peso
de ter que ser e de ter que carregar no corpo, nas próprias entranhas, marcas historicizadas é
fatigante e esgota cada milímetro corpóreo.
Esse corpo, incessantemente em busca de uma imagem inalcançável, é privilégio de
poucos. Mas será que é tão privilégio assim? No decorrer desta pesquisa, procurarei
compreender como, ao longo do tempo, o corpo da mulher foi pautado. Como ele foi vigiado
e docilizado na história, submetido a regularidades. Esse corpo, agora referenciado como ideal,
é uma soma historicizada de um passado que está arraigado em cada célula dele. Esse corpo
plastificado foi transpassado por inúmeras relações de poder-saber, que o docilizaram,
delinearam, marcaram, tornando-o liso e magro. Nesse sentido, adoto uma perspectiva de corpo
que se aproxima do entendimento foucaultiano, interessado em diagnosticar os processos, as
práticas, os modos de subjetivação e os meios pelos quais uma dada subjetividade, ou uma dada
realidade, se materializa.
1
Vale salientar que a morte aqui tem um teor simbólico, pois refere-se à exclusão, à marginalização, dos corpos
nos espaços midiáticos, digitais e, eventualmente, físicos.
16
Numa esfera virtualizada, numa sociedade do espetáculo2 e da cultura do narcisismo3,
a vida se sustenta, se apresenta e pulsa frenética e continuamente. Os olhares acompanham
feeds infinitos e os dedos são automatizados e induzidos ao toque. Dentro dessa era digital, em
que os comandos são dados pelas pontas dos nossos dedos, tudo se posta para validar o vivido.
Se anseia o recebimento de likes, quiçá comentários, que têm o poder de aumentar a autoestima
e de trazer felicidade. Nesse universo, filtros fornecem ao usuário possibilidades de vestir,
mesmo de forma instantânea, uma máscara da tal perfeição almejada com opções diversas de
modificações faciais. É nesse cenário em que os corpos são expostos e o meu objeto de estudo
habita: em uma vitrine límpida, reluzente, virtual, midiática, que nos enuncia repetidamente:
“o meu corpo sou eu, e ele me representa”.
A mídia está mais íntima do usuário: todos nós fazemos parte dela, a produzimos e
estamos imersos em uma dinâmica formulada por ela. Os meios de difusão de informação,
agora, estão em dispositivos que cabem na palma das nossas mãos. Pensar sobre a mídia na
contemporaneidade é, necessariamente, pensar sobre como as relações sociais se modificaram,
e continuam se modificando, com a eclosão da internet e das redes sociais. As mídias digitais
ganharam notoriedade nas duas últimas décadas e, apesar de ser um fenômeno relativamente
recente, foram capazes de alterar o comportamento, os hábitos e as formas de consumo de
informação, de comunicação e de relações sociais. A mídia provoca, cria e transforma o meio.
E todas essas transformações acontecem instantaneamente, sacudindo o antigo e despertando
o novo.
No Instagram, rede social de interesse desta pesquisa, a vida é narrada através das
publicações que, em sequência, compõem o feed formando narrativas imagéticas. Nessa rede
são construídas enunciações categóricas, ressaltando o belo, o perfeito, o feliz, o ideal. Muitas
vozes afirmam que essa é a plataforma do imperativo e, diferentemente de outras redes sociais
que antes ocuparam o pódio de acesso e de usuários, para se estar ali, é preciso entrar num jogo
dialógico, regido pelos mais diversos dispositivos e instâncias sociais e, também, simbólicas,
além de incalculáveis relações de saber-poder. Como bem nos disse Foucault (2014a), não
podemos falar o que queremos a qualquer instante e em qualquer lugar. É preciso estar
autorizado para dizer o que se diz, de onde se diz, para onde se quer dizer. E para enunciar, no
Instagram, é preciso se ajustar às lógicas da plataforma, mesmo que essa adequação não seja
de forma consciente.
2
Ver: DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
3
Ver: LASCH, C. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de
Janeiro: Imago, 1985.
17
Sendo composta massivamente pelo público feminino, conforme será demonstrado ao
longo deste texto, a plataforma do Instagram hoje soma mais de um bilhão de usuários ativos4
e está em crescente expansão. Em meio a enunciados, discursos e dispositivos, que integram o
Instagram, o corpo feminino emerge como um objeto de representação, se fazendo presente na
maior parte das mais de 100 milhões de publicações diárias da rede social. Analisar a produção
discursiva em torno da beleza feminina nessa plataforma nos conduz ao desafio de
compreender a lógica por trás dos estereótipos de beleza que faz o belo ser considerado belo.
É importante ressaltar que a construção discursiva da beleza feminina, no caso deste estudo,
sempre se opera no corpo.
A mulher foi e é discursivizada pela e na mídia. É a vida das mulheres, de um modo
geral, que está imbricada nos jogos de poder subjacentes às imagens do Instagram e é isso que
tentaremos mostrar aqui. Para tanto, utilizaremos a arqueogenealogia e os estudos do discurso
inspirados nas teorizações foucaultianas como ferramentas de investigação. Essas abordagens
foram escolhidas como opções teórico-metodológicas ao compreender que esta pesquisa
desliza entre as fases foucaultianas da arqueologia, da genealogia e da ética. Ainda, acredito
que elas são capazes de abarcar o meu objeto, auxiliando na tarefa de descortinar as narrativas
imagéticas do Instagram. Com o método da arqueogenealogia, é possível entender como os
saberes aparecem, se transformam e produzem subjetividades. Além disso, o discurso em
Foucault (2014a) nos apresenta ferramentas que possibilitam diagnosticar o presente e
problematizar a construção de estereótipos de gênero por meio de acontecimentos de dimensão
histórica e por atravessamentos de ordem discursiva.
O corpo e a mídia são temas tratados academicamente por diversas áreas do saber. Um
estudo transversal realizado por Lira et al. (2017) demonstrou que 85,8% das entrevistadas
estavam insatisfeitas com a sua imagem corporal e desejavam uma silhueta menor. Além disso,
foi constatado que o acesso diário maior de dez vezes ao dia ao Facebook e Instagram aumentou
a chance de insatisfação em 4,47 e 6,57 vezes, respectivamente.
Outras meta-análises de pesquisas experimentais e correlacionais realizados por Grabe,
Ward e Hyde (2008) e Groesz, Murnen e Levine (2002) concluíram que há um efeito negativo
pequeno e médio consistente e significativo da exposição à mídia do “magro ideal” na imagem
corporal da mulher. Além disso, ensaios realizados por Bessenoff (2006), Tiggemann e McGill
(2004), Tiggemann e Polivy (2010) e Tiggemann, Polivy e Hargreaves (2009) descobriram que
4
Dados disponíveis em: https://www.websitehostingrating.com/pt/instagram-statistics.
18
a exposição das mulheres aos ideais de “corpo magro”, disseminados pela mídia, tem um efeito
negativo semelhante no estado de humor delas.
Uma pesquisa encomendada pelo Center for Eating Disorders5 revelou que 51% dos
usuários do Facebook relataram que o conteúdo da rede os tornava mais conscientes do corpo;
32% se sentiam “tristes” por comparar suas próprias fotos com as dos amigos nas redes sociais;
e 44% informaram desejar o mesmo corpo ou peso que os amigos do Facebook (CLEMMER,
2012). Da mesma forma, outra pesquisa, realizada por Taniguchi e Lee (2012), apresentou aos
participantes uma imagem de perfil do Facebook simulada e um status que expressava o desejo
de perder peso, seguido pelas respostas de seus amigos, encorajando ou desencorajando essa
perda de peso. Os participantes relataram maior insatisfação com os seus corpos e menor bem-
estar psicológico depois de ler os posts de “incentivo aos corpos magros” pelos amigos das
redes, em comparação com as mensagens que não apoiavam o corpo magro. Foi sugerido que
os amigos do Facebook, usualmente parecidos e socialmente relevantes para os usuários do
Facebook, incitavam processos comparativos mais significantes. Além desse dado, crescentes
evidências mostram que os usuários frequentes do Facebook e de outras redes sociais são mais
afetados do que usuários recorrentes das mídias convencionais.
Os regimes de visibilidade a que somos submetidos e os estereótipos que nos são
apresentados denotam-se como fragmentos representativos da cultura imagética. Eles têm força
para alterar formas de viver, adotar hábitos e, principalmente, fomentar o consumo, sendo a
mulher, historicamente, o principal alvo. Desse modo, nesta pesquisa busco trazer colaborações
para uma análise das relações entre as mídias (especificamente o Instagram) e a criação de
outros modos de ser mulher na atualidade, problematizando os estereótipos de beleza feminina.
A crescente utilização das redes sociais e o avanço das interações virtuais foram a mola
propulsora desta pesquisa. Buscar compreender as implicações desse fenômeno para a mulher,
para o corpo da mulher, sempre foi o objetivo deste meu trabalho. Assim, tendo em mente que
é impossível pensar o corpo sem pensar no universo no qual ele emerge, que é essencialmente
discursivo, esta pesquisa parte da necessidade de compreender a construção discursiva dos
estereótipos de beleza feminina no Instagram. Portanto, o objetivo geral deste estudo é analisar
a construção discursiva dos estereótipos de beleza feminina no Instagram. Isto posto, gostaria
de indicar os objetivos específicos que desvendarei no decorrer deste trabalho: investigar como
são produzidos os discursos acerca dos ideais de corpo belo na mídia ao longo da história
recente; apurar como os enunciados produzidos no Instagram podem resultar na construção de
5
Dados disponíveis em: https://theillusionists.org/2012/04/guest-post-facebook-body-image-friend-or-foe/.
19
estereótipos de corpo feminino; e problematizar os efeitos dos discursos acerca do corpo ideal
feminino sobre a prática de subjetivação das mulheres.
Embora tenha falado até aqui sobre o corpo ideal, padronizado, estereotipado, é por
meio dos locais de resistência que tecerei as análises a seguir. Isso porque onde o poder se
encontra, encontram-se também forças contrárias que tendem a resistir a esse poder. São nos
embates de forças que fica evidente o poder hegemônico e é por meio da perspectiva das
diversidades que tratarei a beleza feminina. Uma das verdades do nosso tempo é, justamente,
os movimentos de aceitação do diferente, do diverso. Assim, a partir desse prisma, olhando
para os locais marginalizados, apresentarei a seguir o poder dos discursos que compõem os
estereótipos de corpo belo feminino na plataforma do Instagram. Por que alguns corpos são
“sufocados” enquanto outros são exaltados? Por que querem ofuscar os corpos que escolhem
trilhar por uma estrada oposta aos padrões ditados? Esses corpos, que para tantos olhos causam
efeito de horror e indignação, são representações de resistências extremamente necessárias em
tempos de padronização. Assim, o corpus deste trabalho são publicações de usuárias do
Instagram que enunciam seus corpos a partir de locais de resistência.
No primeiro capítulo, apresento um breve percurso sobre a beleza. A partir de uma
análise histórica, traço as perspectivas da beleza ideal e dos padrões que a circunscreveram e a
definiram ao longo do tempo. Trato, nesse ponto, de conceitos importantes para posterior
desenvolvimento do tema da minha pesquisa. Discorro também sobre as questões relativas aos
estereótipos.
No segundo capítulo, abordo o tema principal deste trabalho: o corpo feminino. Ainda,
disserto acerca dos enunciados e discursos, passando brevemente pelo conceito de autoria. Em
seguida, abordo a imagem corporal e dos distúrbios de imagem. Por fim, evidencio a
subjetividade e a produção do sujeito.
No terceiro capítulo, discorro sobre as mídias digitais, as redes sociais, o Instagram e
sobre os discursos criados a respeito do corpo feminino na plataforma. Assim, trato dos
conceitos de redes sociais, performance e espetacularização do Eu e do corpo. Além disso,
discuto acerca das relações e da produção de sentido do corpo feminino no universo on-line,
além da escrita sobre si na rede.
No quarto capítulo, trato do percurso metodológico percorrido nesta pesquisa, além da
análise do objeto de estudo; e o quinto capítulo destina-se às análises desprendidas sobre o
corpus.
Parto da premissa de que, enquanto pesquisadora, temos uma experiência limitada por
fronteiras discursivas e por atitudes limites. Assim, esta pesquisa desponta da imbricação de
20
conhecimentos (o saber, o poder e a ética) e de uma experiência particular, que leva em conta
a época, as práticas, os discursos e os modos de subjetivação. Dito isso, iniciaremos, a seguir,
uma imersão no universo da beleza e dos estereótipos de belo feminino. Assim, convido o leitor
a explorar, junto a esta pesquisadora que vos fala, esse meio belíssimo — ipsis litteris.
21
1 NA VITRINE DO EU: BELEZA E ESTEREÓTIPOS
6
Ver: BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
22
Entretanto, nota Lipovetsky (2000), foi no renascimento que a beleza feminina atingiu seu
apogeu. Naquela época, o triunfo do belo sexo coincidiu com a proliferação de hinos de
exaltação ao feminino — poetas, pintores, escritores e filósofos embeiçados pelos encantos da
mulher debatiam sobre o tema, glorificando-as — e, também, com um cenário propício ao
humanismo da renascença que favoreceu a ruptura entre a diabolização e a mulher, resultando
em um movimento de dignificação do feminino.
7
Adentrarei nesse conceito no capítulo a seguir.
23
Se por um lado a beleza gera fascínio, por outro, a feiura é incômoda. Falar sobre o belo
implica, necessariamente, falar sobre o feio. Em relação a isso, creio ser necessário pontuar
que ao lado de uma concepção própria de belo, cada cultura sempre colocou a própria ideia de
feio, “embora em geral seja difícil estabelecer pelos vestígios arqueológicos se aquilo que está
representado é realmente considerado feio” (ECO, 2004, p. 131). No percurso da história, o
feio foi associado ao fora de norma e, embora esse feio quase sempre surgisse em oposição às
características do belo, que não são permanentes, ele não pode ser descrito como tal. Sant’Anna
(2014) exemplifica que, durante a primeira metade do século passado, a feiura era descrita
como semblantes medonhos, corpos horríveis, mirrados, raquíticos, famélicos ou então balofos
e excessivamente “pançudos”. Na contemporaneidade, a feiura passou a ocupar um novo
estatuto, com novas representações.
Isto posto, convém prosseguir em nosso mergulho, agora, desbravando o percurso
histórico do belo.
1.1 O BELO
8
A “proporção áurea” é uma relação matemática que aparece de forma recorrente em coisas belas da natureza,
bem como em coisas que são tidas como “belas”. Hoje em dia, essa proporção é muito utilizada pelo visagismo
para calcular o “ideal harmônico” facial e corporal. Para determinar se um rosto é realmente “bonito”, o cirurgião
plástico Steven Marquardt criou essa máscara, denominada Máscara de Phi (ou Máscara de Marquardt),
fundamentada nas sequências matemáticas da proporção áurea. A máscara é projetada em cima do rosto, dessa
forma, é possível analisar se um rosto é esteticamente “perfeito” e o que é necessário alterar para torná-lo
24
Figura 2 – O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli (1482)
“perfeito”. Essa técnica é muito utilizada atualmente pelos profissionais que realizam o procedimento de
harmonização facial.
25
Para Eco (2004), esse laço estreito entre o belo e o bom foi tecido e formulado ao longo
de diversas épocas históricas. O “belo”, na cultura ocidental, é um adjetivo utilizado
frequentemente para indicar algo que nos agrada e, nesse sentido, aquilo que é belo parece
igual àquilo que é bom. No entanto, nesse pensamento, tendemos a definir como bom não
apenas o agradável, mas também aquilo que apreciaríamos ter, embora por vezes chamemos
de bom algo em conformidade com algum princípio, mas que, por egoísmo ou temor, não
gostaríamos de nos ver envolvidos em uma experiência análoga. Nesse prisma, “o belo é algo
que como tal se mostra para nós, que o percebemos, que é ligado aos sentidos, ao
reconhecimento de um prazer, é ideia predominante em ambientes filosóficos diversos” (ECO,
2004, p. 277). O belo pode então ser descrito, em uma perspectiva neoclássica, como um efeito
— ou sentimento — gerado por meio de uma experiência, que causa prazer a quem julga o belo
ou o produz.
Segundo Sant’Anna (2014, p. 8), “a beleza é trunfo de quem a possui, um objetivo dos
que não se consideram belos, um instrumento de poder, uma moeda de troca em diferentes
sociedades”. Nesse sentido, podemos compreender a beleza como um conceito que está
diretamente atrelado a fatores sociais, históricos e culturais e ao poder. É possível perceber,
também, a beleza como um instrumento significante, um elemento não palpável, abstrato, mas
que é igualmente empírico. O belo então pode ser materializado por meios para alcançá-lo, o
que o torna, também, valor e moeda de troca, afinal, a beleza é capital (NOVAES, 2013). E a
beleza é também tida como um patrimônio que, de privilégio de poucos, passa a ser desejo de
muitos.
Segundo Wolf (2019), cada geração teve de enfrentar sua própria versão do mito da
beleza, sendo esse mito caracterizado pelas imposições estéticas direcionadas às mulheres. Para
a autora, “as qualidades que um determinado período considera belas nas mulheres são apenas
símbolos do comportamento feminino que aquele período julga ser desejado” (WOLF, 2019,
p. 31). Sant’Anna (2014) discorre sobre diversas interferências disciplinares sob as quais o
corpo da mulher foi, e ainda é, submetido, sendo o comportamento feminino considerado um
medidor do belo. Aqui, há um movimento que visava conter as mulheres pelo julgamento,
sendo os comportamentos esperados para elas associados à beleza, especialmente porque “para
a mulher, a beleza é representada como um dever cultural” (NOVAES, 2013, p. 90).
Han (2019, p. 43) comenta que a beleza é, necessariamente, uma aparência. Embora,
por vezes, essa definição pareça suficiente, será que nós podemos compreendê-la assim?
Enquanto a indústria da beleza trabalha obstinadamente para nos propiciar meios de consumo
dessa aparência que agrada o olhar, principalmente o olhar do outro, e enquanto nós
26
despendemos recursos para nos aproximar do belo, não seria essa uma experiência de busca do
belo? Seria então a busca de uma boa aparência? Mas então, quais são as características de belo
as quais busco auferir?
Com o entendimento de que, para compreender a beleza, especificamente a beleza
feminina, é preciso sacudir as evidências, buscaremos a seguir, com respaldo na
arqueogenealogia e nas ferramentas do discurso inspirada nas postulações foucaultianas
(FOUCAULT, 2000, 2014a, 2014b, 2020), conter o conceito de belo a fim de depreender
melhor a beleza feminina que, por vezes, de tão fluida nos escapa.
27
meios de proporcionar às mulheres as características de beleza desejadas. Esses produtos eram
destinados a todas as mulheres, com seus mais diversos tipos de belezas, de modo que cada
uma poderia se aproximar das características ideais por meio do consumo, afinal a “beleza é
valor e moeda de troca” (NOVAES, 2013, p. 83). Assim, desde o começo desse período, um
movimento de propagação direta dos ideais de beleza pela publicidade e pela mídia, tendo
como suporte os mais diversos meios de comunicação, pôde ser percebido.
Segundo Sant’Anna (2014), no início dos anos 1900, a preocupação com os bons
modos, as vestimentas e os calçados caracterizavam práticas de embelezamento. Vestidos,
saias, saltos, penteados caprichados, bolsas, tons e cores específicas para cada mulher, gestos
comedidos, além do uso de alguns cosméticos, principalmente no rosto. O bonito, naquele
momento, constava nos detalhes, no ser elegante. Desse modo, a “beleza rimava com trajes
bem engomados, sapatos de couro e alguns adereços” (SANT’ANNA, 2014, p. 14) e, de forma
sutil, já havia certa preocupação com o volume corporal e com o vigor da pele. Embora não
houvesse ainda tratamentos estéticos, eram utilizadas técnicas como “uma boa dose de
cerimônia e o aprumo de uma silhueta ereta” (SANT’ANNA, 2014, p. 14) para se alcançar a
formosura.
Anos mais tarde, influenciadas principalmente pelo cinema, as mulheres passaram a
valorizar o uso da maquiagem para acentuar a beleza e disfarçar imperfeições. A década de
1920 foi marcada pela formulação de um novo ideal físico e a imagem cinematográfica
interferiu significativamente nessa construção (CASTRO, 2001). Dessa forma, características
como o corpo esbelto e esguio passaram a compor os atributos de belo do momento. Lipovetsky
(2000) comenta ainda que, nesse mesmo período, o consumo de cosméticos aumenta e as
mulheres os batons, bronzeadores e esmaltes de unha passam a fazer muito sucesso.
Para além das telas dos cinemas e atrizes globais, na mídia da época, especialmente nas
revistas e periódicos, há um deslocamento discursivo em busca da legitimação desses meios
enquanto manuais de comportamento e normas, principalmente para os que tinham como
público-alvo as mulheres e a família. Conforme salienta Castro (2001, p. 45), essas mídias
“desde seus primórdios trazem dicas de beleza, como cuidados com a pele e com o cabelo,
sessões de moda e ginástica, num discurso que busca convencer mesclando argumentos
estéticos e técnicos”. Sant’Anna (2014) afirma, por exemplo, que, entre 1910 e 1920, médicos
eugenistas9 publicavam textos em revistas e anais que exaltavam características da beleza
9
“Eugenia” é um termo criado por Francis Galton, em 1883, que veio do grego e significa ‘bem nascido’. Para os
eugenistas, o conceito de seleção natural de Charles Darwin também se aplicava aos seres humanos. O Brasil não
só ‘exportou’ a ideia como criou um movimento interno de eugenia, que foi aderido por médicos, engenheiros,
28
feminina inspiradas na estética da Grécia Clássica, enaltecendo as formas da “magnífica
Afrodite”. Ao mesmo tempo, cresciam as críticas severas às mulheres com características como
“seios caídos”, ventres flácidos e volumosos, pernas curtas e aparência mestiça. Nos anais de
Eugenia de 1919, inclusive, havia uma sessão destinada “às moças feias e às moças belas
(SANT’ANNA, 2004, p. 62)”. Naquele momento, a beleza estava atrelada à raça, à pele alva
(com ausência de manchas e cicatrizes) e a um consenso em torno da ideia de que a beleza
feminina ideal da época deveria se aproximar das formas helenísticas.
Nas décadas seguintes, pôde ser visto, de forma escancarada, a exaltação da pele branca,
jovem, sem marcas e dos cabelos lisos. Em contrapartida, a pele negra e os cabelos carapinha10
eram expostos sem pudores em jornais e revistas de forma preconceituosa e excludente.
Naquela época, “o que a publicidade vendia era um ideal de beleza eugênico, historicamente
construído e perpassado por relações de poder. Para ser considerado bonito, elegante e
moderno, era preciso ceder a esse padrão” (BRAGA, 2020, p. 104). Assim, muitos dos
discursos preconceituosos e excludentes, que ainda emergem nos dias de hoje acerca da beleza
negra, têm raízes históricas profundas, trazendo resquícios de um período escravista e sendo
delineados nas tramas de uma história que sempre privilegiou a estética branca como padrão a
ser seguido.
Num contexto pós-Segunda Guerra Mundial, a publicidade passou a ser “a grande
responsável pela difusão de hábitos relativos aos cuidados com o corpo e às práticas de higiene,
beleza e esportes” (CASTRO, 2001, p. 17), aliada ao rádio, com jingles comerciais, e aos
avanços da indústria farmacêutica, que se aperfeiçoava para oferecer às mulheres soluções para
alcançar as características de beleza almejadas. Para Sant’Anna (2014), os conselhos de beleza
e as propagandas daquele período criavam uma aura de felicidade em torno do consumo, bem
maior que no passado. Heine (2014) ressalta também que, naquele momento, o corpo feminino
estava atrelado à concepção de que a mulher deveria, como obrigação, servir ao matrimônio e
à maternidade. Ainda a respeito das características sobre o belo dos anos 1950, afirma a autora,
Os padrões de beleza da época relatada eram o de uma mulher mais "cheinha", não
muito magra, cuja compleição física indicasse saúde e, consequentemente, indicasse
capacidade física para gerar filhos. Na época, o discurso sobre a saúde também era
diferente: a gordura, ao invés de indicar algo negativo, era vista como símbolo de
corpo saudável, enquanto ser magro era sinal de pouca saúde, de fraqueza, de doença
(HEINE, 2014, p. 7).
jornalistas e muitos nomes considerados como a elite intelectual da época no Brasil, que buscavam respaldo na
biogenética para justificar a ‘solução’ para o desenvolvimento do país e a discriminação de raças.
10
Cabelo crespo e lanoso, semelhante à lã.
29
Sant’Anna (2014, p. 62) acentua, nessa conjuntura, o corpo belo como aquele dotado
de “uma cintura fina — a famosa ‘cinturinha de pilão’ que permaneceu uma qualidade feminina
resistente à passagem dos anos”. Em oposição, o corpo feio seria o das mulheres gordas, que
eram rotuladas por não possuir curvas sedutoras sendo apelidadas de “mulheres bucho” pelo
excesso de gordura, precisamente na cintura e quadris, e as mulheres magras e sem curvas, que
eram chamadas de “mulheres bacalhau”, consideradas feias devido à secura física.
Nos anos 1960, “o corpo entra em cena como lócus da transgressão, do delírio, do
transe, pelas experiências da droga e do sexo” (CASTRO, 2001, p. 18). Em um cenário repleto
de transformações políticas e mutações sociais, eclode a preocupação com a saúde e com o
bem-estar. Além disso, a ascensão do movimento feminista, a difusão da pílula
anticoncepcional e a chamada ‘revolução sexual’ também propiciaram uma década marcada
pela liberação do corpo, principalmente do corpo feminino, em relação às premissas sociais e
às amarras sexuais. Em termos de vestuário, Castro (2001) salienta ainda que o século XX foi,
também, marcado pelo desnudamento e pela exibição, afinal, “o corpo é para ser mostrado”
(CASTRO, 2001, p. 19). Noto, assim, em meio a polêmicas e constrangimentos, a manutenção
de características de beleza ideal como sendo uma pele lisa, sem marcas ou manchas, e cabelos
lisos e alinhados.
Cintura fina, pés delicados, sorriso meigo e largo também faziam parte dos atributos da
bela mulher. Naquele momento, houve um boom de propagandas de produtos para emagrecer
e podiam aparecer com mais frequência nas mídias conselhos para controlar o peso. Nas
passarelas, as misses, com seus quadris retos, estatura alta e ossos despontando, eram a atração
da moda e ocupavam as capas de revista dos anos 1960, mostrando que “a beleza devia perder
quilos e alongar a silhueta” (SANT’ANNA, 2014, p. 130). Braga (2020) observa, naquele
momento também, uma ruptura histórica no que diz respeito à beleza negra, visto que os
concursos de beleza passaram a incluir mulheres “não brancas”, desde que estas fossem
consideradas esteticamente bem dotadas, ou seja, que apresentassem as características de
beleza próximas ao ideal, tornando-se “bonitas e atraentes” perante os olhos dos responsáveis
pelas seleções.
As décadas subsequentes viram a beleza ser moldada pela possibilidade de consumo,
afinal, “só é feio quem quer”. A imagem da brasileira, ícone de beleza e de sensualidade, foi
intensamente explorada para oferecer produtos e serviços de emagrecimento e estéticos. O
desenvolvimento acelerado da cirurgia plástica e da indústria farmacêutica impulsionaram as
possibilidades de modulação do corpo, propiciando transformações não apenas na aparência
física, mas também na autoestima. No entanto, “a cirurgia plástica era vista como um pecado
30
à obra divina, uma prova de vaidade excessiva, em suma, uma transgressão moral”
(SANT’ANNA, 2014, p. 171). Essa visão da cirurgia plástica se alterou com o aperfeiçoamento
e o progresso das técnicas cirúrgicas, que entraram num jogo enunciativo respaldado e
legitimado como ferramenta de transformação que possibilita mudanças da aparência física e
propicia felicidade, saúde e aceitação social.
Há uma estreita relação entre o corpo, a beleza, o poder e a sexualidade. Para
Goldenberg (2011, p. 49), “determinado modelo de corpo, na cultura brasileira contemporânea,
é uma riqueza, talvez a mais desejada pelos indivíduos”. A autora verifica que os brasileiros
tendem a perceber seu corpo como um veículo de ascensão social e capital no mercado de
trabalho, no casamento e no âmbito sexual. Entendendo a sexualidade como o exercício de si
inerente ao ser, como uma possibilidade de existência, podemos compreendê-la, também, como
um instrumento de poder. A sexualidade, nesse sentido, tida como um dispositivo de saber e
poder, revela camadas simbólicas. A sexualidade está contida no corpo, produz sentidos e
efeitos, além de incitar relações. Como afirma Goldenberg (2011), o corpo é capital simbólico.
Ouso complementar que o corpo é também local de poder, intersecção de práticas e exercícios
sociais.
No entanto, nem todos os corpos podem ser classificados como ‘corpo capital’; apenas
aqueles que se enquadram em um determinado modelo. Para um corpo ser capital simbólico,
ele deve ser “sexy, jovem, magro e em boa forma. Um corpo conquistado por meio de um
enorme investimento financeiro, muito trabalho e uma boa dose de sacrifício”
(GOLDENBERG, 2011, p. 49). Um corpo regido pelos dispositivos, que o modelam e o
dirigem em direção ao local de corpo ideal.
Os anos 1980 foram marcados pela atividade física e pelas mulheres esportivas. Para
Courtine (1995, p. 84), essa década teve um desenvolvimento considerável “do mercado dos
músculos e do consumo de bens e serviços destinados à manutenção do corpo”. É naquele
momento que os músculos se tornam um espetáculo, quase que um modo de vida, e o culto à
“massa de corpo11” constitui uma prática de consumo e de necessidade em um momento em
que cada indivíduo assume o papel de gestor do seu próprio corpo.
Os músculos conquistaram uma positividade inusitada no corpo feminino, embora
“nem todas eram facilmente consideradas belas com corpos musculosos” (SANT’ANNA,
2014, p. 161). Características como juventude, boa estatura, magreza, ombros largos e pernas
longas, além de uma “pele de cetim”, eram consideradas ideais para um corpo belo feminino.
11
Termo cunhado por Courtine (1995) para referir-se aos músculos.
31
Nesse contexto do boom das academias, Sant’Anna (2014) destaca que a voga da malhação se
deve, em parte, ao Estado, que fixou normas que tornaram obrigatório o ensino da educação
física nas escolas com o objetivo de desenvolver o esporte de alto nível e, também, a vontade
de autonomia individual e a transformação do corpo. Posto isto, “a corporeidade ganha vulto
nunca antes alcançado em termos de visibilidade e espaço na vida social” (CASTRO, 2001, p.
18), e as questões relacionadas à saúde entram em foco. Naquele momento, os discursos
midiáticos e publicitários enunciavam dicas de mudanças, de hábitos nocivos à saúde para o
combate do sedentarismo, incentivando a prática de atividades físicas e a boa alimentação.
Na última década do século XX, movimentos culturais trouxeram um novo olhar sobre
o corpo feminino até então delineado, sendo responsáveis por uma ruptura com os discursos de
beleza feminina vistos até aquele instante. A eclosão do funk com as “popozudas”, por
exemplo, foi primordial na ruptura do corpo feminino com os padrões pré-estabelecidos. A
imagem de mulher sem limites, radical no corpo e na mente, vestida com roupas que
acentuavam as curvas, explorando a sensualidade feminina era mostrada pelas funkeiras, indo
em contraposição aos padrões de beleza que circulavam no mundo das top models. Sant’Anna
(2014) explicita que as opiniões acerca do funk perpassavam o grotesco e o criativo, sendo
considerado por alguns como um estilo aderido por mulheres livres e ativas, e por outros, como
uma expressão arrojada e inventiva.
Além desse movimento, conforme nota Heine (2014, p. 11), na década de 1990, “o
discurso científico passou a exercer cada vez mais influência em outras áreas da sociedade,
funcionando, inclusive como discurso transverso que atravessa vários outros discursos sobre
beleza, sustentabilidade, salubridade etc.”. Deste modo, uma aproximação discursiva entre a
magreza aliada à saúde, ao bem-estar, à beleza e à positividade pode ser vista ao mesmo tempo
em que discursos sobre o sobrepeso são associados aos riscos à saúde e à feiura.
Conforme busquei elucidar no decorrer deste tópico, ao longo do século XX, a beleza
sofreu inúmeras transformações e mudanças. Embora, aqui, tenha tentado, com fins
elucidativos, delinear datas para acontecimentos considerados disruptivos em relação aos
discursos predominantes em cada época, creio ser necessário ressaltar que esses
acontecimentos emergiram em imbricações enunciativas, não sendo, portanto, livre de
resquícios de momentos históricos passados. De acordo com o que salienta Braga (2020), as
características de belo cultuadas em uma determinada época carregam continuidades e
descontinuidades em relação a modelos anteriores. Assim sendo, não é possível dissociar esses
modelos de beleza dos discursos anteriores, que vêm sendo ressignificados ao longo da história.
32
Tendo em vista que toda rede discursiva é construída historicamente, a última década
do século XX foi essencial para a ruptura de discursos sobre o belo que se perpetuaram ao
longo dos anos. Conforme discorrerei no tópico adiante, a década de 1990 se sobressaiu como
uma fronteira, que possibilitou um novo deslocamento da concepção de belo observada a partir
dos anos 2000.
Devido à mais nova moral, a da “boa forma”, a exposição do corpo, em nossos dias,
não exige do indivíduo apenas o controle de suas pulsões, mas também o
(auto)controle de sua aparência física. O decoro, que antes parecia se limitar à não
exposição do corpo nu, se concentra, agora, na observância das regras de sua
exposição (GOLDENBERG, 2007, p. 25).
Em janeiro de 2002, o reality Big Brother Brasil e a ascensão da classe média tiveram
papéis importantes na divulgação dos “corpos turbinados” e de discursos que enunciavam uma
hipersaúde, que diz respeito a um desejo de ter um corpo forte e seguro de si. As “mulheres
bomba” ou “mulheres turbinadas”, denominadas assim por serem consideradas um “estouro”,
exibiam suas curvas corporais firmes, definidas e com dureza muscular, “obtidas com muita
12
Neologismo que faz referência às atitudes corporais do século XVII descritas na obra de Foucault (1988).
33
“malhação”, podendo incluir o uso de anabolizantes e a inclusão de próteses no corpo”
(SANT’ANNA, 2014, p. 178).
Esses atributos de belo, que exibiam a beleza bombada daquele momento, contrastavam
drasticamente com as características de beleza vistas nas décadas anteriores. Embora nos anos
1980 tenhamos visto que os músculos ganharam espaço no corpo feminino, estes apareciam de
forma sutil, atrelados à delicadeza esperada pelo corpo feminino, sem necessariamente
preconizar a valorização da firmeza e da saliência muscular. Destarte, Sant’Anna (2014) diz
que:
Se cada época cria ideais de beleza que expressam seus mais profundos receios e
desejos, talvez as superpoderosas possam revelar muito do que hoje é uma parte da
realidade brasileira. Seus corpos, como aqueles dos soldados e dos antigos
gladiadores, resultam de muita disciplina em exercícios e treinos diários. Mas
também é preciso seguir dietas especiais e, em vários casos, realizar cirurgias
plásticas. Uma imbatível guerreira pode ser desse modo construída. Se a mulher bela
já foi assimilada à flor, à gatinha e, recentemente, à fera, agora, esta última se armou,
cresceu e alargou a musculatura (SANT’ANNA, 2014, p. 179).
Esse corpo, a que Sant’Anna (2014) se refere, é o corpo da mulher na primeira década
dos anos 2000. É o corpo que circula nas ruas do século XXI, carregado de história, de discursos
e de marcas que o penetram, pronto para descobrir “o mito da beleza” (WOLF, 2019) da sua
época. É um corpo disciplinado, que faz de tudo para alcançar o resultado desejado; de
cirurgias, dietas restritivas, procedimentos estéticos, exercícios físicos excessivos até o uso de
remédios.
Para Novaes (2013, p. 18), “na sociedade contemporânea, a ditadura da aparência nos
diz que o corpo sarado e definido — tido como belo — é também sinal exterior de uma beleza
interior, de uma mente saudável, de uma internalidade ‘bem resolvida’”. Nesse sentido, a
beleza, nos dias atuais, é tida como um marcador de sucesso e felicidade. Assim, a beleza torna-
se representação de êxito, como um medidor social. Ora, para ser bem-sucedido, é preciso,
antes de tudo, ser belo.
Se formos além, nessa perspectiva, vemos que as pessoas que apresentam certas
características de beleza têm mais sucesso profissional e melhores salários. Harper (2008)
revela que a aparência física tem um efeito substancial nos rendimentos e nos padrões de
emprego independentemente do gênero. Por outro lado, aqueles que são avaliados como pouco
atraentes ou baixos sofrem uma penalidade significativa nos ganhos. Ainda, o autor mostra que
mulheres de estatura alta ou acima do peso têm menos probabilidade de se casar.
34
Além desse estudo, uma pesquisa realizada por Estevão-Rezende, Nascimento e Alves
(2018) evidencia que, especificamente na área de eventos, há predileção pela contratação de
mulheres dentro de um padrão estético e físico. Os autores notam que as mulheres acima do
peso ou negras são preteridas para trabalharem em eventos, atuando em funções em que o
contato com o público é restrito. Assim, podemos observar que a beleza possui um valor
simbólico e capital e que as características do que se considera belo aumenta ou reduz,
significativamente, as oportunidades.
Se, por um lado, os anos 2000 preconizaram uma maior libertação do corpo às amarras
sexuais, por outro, apertou os laços com os imperativos da beleza. Respaldada na mídia, na
tecnologia, na facilidade e na rapidez da disseminação de informações, a sociedade
contemporânea torna-se um terreno fértil para a propagação de discursos do belo. De acordo
com Novaes (2013, p. 91), “de dever social (se conseguir, melhor), a beleza tornou-se dever
moral (se realmente quiser, eu consigo)”. O “ser belo”, assim, é convertido em uma obrigação
de responsabilidade individual, que tem um peso ainda maior quando diz respeito à mulher.
Nessas circunstâncias, Han (2019) nota, também, um movimento de conversão da
beleza em sex-appeal. De acordo com o autor (HAN, 2019, p. 71), “a beleza foi por um longo
tempo historicamente relevante apenas na medida em que expressava moral e caráter. Hoje, a
beleza de caráter cede totalmente ao ser sexy”. Assim, o autor expõe um novo atributo de
beleza: a atratividade sexual. Nesse entendimento, a indústria da beleza passa a explorar o
corpo tornando-o sexualizado e consumível, visto que “o consumo e ser sexy condicionam-se
mutuamente” (HAN, 2019, p. 72). O corpo belo é, também, esse sexy body, um corpo
sensualizado ao extremo, que não envelhece, não tem imperfeições ou marcas, que é
fetichizado e é objeto ideal de consumo. É um corpo condicionado a seguir determinados
padrões e práticas, para não se tornar ultrapassado, desgastado, vencido. Essa compreensão é
relevante à medida que pensamos no corpo imerso em uma cultura do consumo, condicionado
a estímulos discursivos que o levam a se delinear para alcançar o belo. Não é à toa que Santaella
(2018) observa que a indústria que mais cresceu nos últimos anos foi a farmacêutica, vendendo
juventude, bem-estar e beleza.
1.4 OS ESTEREÓTIPOS
35
A palavra “estereótipo” inicialmente denominava uma “placa gravada sobre o metal
para a impressão de imagens e textos por meio de prensa tipográfica” (LYSARDO-DIAS,
2007, p. 26). Em sua origem etimológica, “estereótipo” deriva de estereo, do grego stereós,
que significa “sólido”, e de týpos, com o sentido de modelo, forma. Assim, em uma acepção
geral, o estereótipo pode ser compreendido como um “modelo sólido”, um entendimento pré-
concebido quanto a determinado assunto, coisa ou sujeito, que se encontra cristalizado.
Walter Lippmann foi o primeiro autor a refletir sobre a noção de estereótipo em sua
obra Opinião Pública, de 1922. Em seu entendimento, os estereótipos são imagens mentais,
previamente concebidas, seletivas e parciais, resultado de um processo inevitável que medeia
relação do indivíduo com a realidade. De acordo com o autor, isso ocorre porque
Na maior parte dos casos nós não vemos em primeiro lugar, para então definir, nós
definimos primeiro e então vemos. Na confusão brilhante e ruidosa do mundo
exterior, pegamos o que nossa cultura já definiu para nós, e tendemos a perceber
aquilo que captamos na forma estereotipada para nós por nossa cultura (LIPPMANN,
2008, p. 85).
Essa conceituação proposta por Lippmann (2008) dialoga e duela, em certa medida,
com o conceito de discurso que encontramos em Foucault (2014a). Se os estereótipos, segundo
Lippmann, são imagens mentais, estas seriam imagens que estão dadas na realidade. Nesse
sentido, essas imagens mentais teriam uma materialidade e, portanto, se configurariam como
discurso. Assim, podemos pensar nos estereótipos como unidades discursivas, formuladas
historicamente e perpetuadas a partir de determinadas relações de força que atuam no presente
coercitivamente para subjetivar determinados indivíduos ou grupos de indivíduos. Logo, os
estereótipos, em sua própria definição, são discursos de caráter autoritário, a partir das imagens
utilizadas para estereotipar, para rotular. Eles instituem padrões globalizados, sendo capazes
de classificar, rotular, segregar e excluir. Para Hall (2016, p. 192-193), “em suma, a
estereotipagem é aquilo que Foucault chamou de uma espécie de ‘poder/conhecimento’ do
jogo. Por meio dela, classificamos as pessoas segundo uma norma e definimos os excluídos
como o ‘Outro’”.
Em um mundo moderno, em que o modo de vida é apressado e atarefado, “não há tempo
nem oportunidade para conhecimento íntimo. Em vez disso, observamos um traço que marca
um tipo muito conhecido, e o resto da imagem preenchemos com os estereótipos que
carregamos em nossas cabeças” (LIPPMANN, 2008, p. 91). Essa elucidação explicaria então
o fato de os estereótipos, bem como os discursos, possuírem uma estrutura rígida, difícil de ser
mudada — embora não impossível —, especialmente com relação aos estereótipos de grupos
36
ou contextos aos quais o indivíduo não tem contato direto. Ainda, de acordo com o autor
(LIPPMANN, 2008, p. 83), “inevitavelmente, nossas opiniões cobrem um largo espectro, um
longo período de tempo, um número maior de coisas que podemos diretamente observar. Elas
têm, portanto, que ser formadas de pedaços juntados do que outros nos relataram e do que
podemos imaginar”.
Lysardo-Dias (2007) fala sobre o estereótipo enquanto um discurso social, amplamente
difundido, e que é, também, atualizado a cada situação de uso.
Por mais que se possa associar o estereótipo àquilo que já está previamente definido,
ele não é estático dentro do tecido social do qual faz parte integrante: ele pode ser
renovado e ganhar novos contornos, assim como pode ser modificado,
acompanhando a dinâmica da vida em sociedade e suas novas demandas.
(LYSARDO-DIAS, 2007, p. 26).
37
que nos fazem optar por estes atalhos, que se as vezes nos poupam, cortando significativamente
o caminho, em outras, nos conduzem aos indesejáveis becos do preconceito e da
discriminação”. Tendo como base o pensamento da psicologia social, o estereótipo seria o
alicerce cognitivo do preconceito e da discriminação. Hall (2016) diz que a estereotipagem é
parte da manutenção da ordem social e simbólica. Ainda para o autor, ela tenderia a ocorrer
onde existem enormes desigualdades de poder, geralmente sendo dirigida contra um grupo
subordinado ou excluído.
Dentro da estereotipização, há ainda o ato de rotular. Os rótulos estão relacionados a
uma maneira de facilitarmos os nossos relacionamentos interpessoais, além de destrinchar a
percepção do mundo. Desta maneira, eles se caracterizam por serem atribuições que
possibilitam antecipar certos comportamentos ou certas características. Um bom exemplo de
rótulo é a associação — errônea e preconceituosa — comumente feita com relação às mulheres
gordas: se ela é gorda, é porque não se cuida e é desleixada com a sua aparência.
38
— mas se materializa —, o estereótipo, ao emergir em um determinado momento, gera uma
materialidade. E essa materialidade, embora seja a mesma — porque é o mesmo discurso —,
não enuncia a mesma coisa, pois a enunciação é singular. E, assim, seguindo na perspectiva de
Lysardo-Dias (2007), cada vez que um estereótipo é utilizado, ele é inserido em um contexto
efetivo de comunicação e interação social, “que o retoma, seja para reforçá-lo, seja para
questioná-lo” (LYSARDO-DIAS, 2007, p. 26).
Creio ser preciso salientar, ainda, que os estereótipos possuem um papel fundamental
na vida social e atuam diretamente na formação e na manutenção de um sistema de valores
individuais (LIPPMANN, 2008). Sem eles, “o indivíduo estaria mergulhado na vazante e no
fluxo da pura sensação: seria impossível compreender o real, categorizá-lo ou agir sobre ele”
(AMOSSY; PIERROT, 2010, p. 32). Assim, compreender os estereótipos e refletir sobre a sua
formação é também uma forma de lançar o olhar sobre o mundo que nos cerca.
Dentro do universo da estereotipia, cada caso exige uma análise profunda e específica
para a elaboração de uma compreensão íntegra. Para dissecar os estereótipos e categorizá-los,
seria necessário desprender laudas e mais laudas para conseguir abarcar, minimamente, essa
discussão. No entanto, essa problematização fugiria dos meus objetivos. Portanto, nesta seção,
tratarei de um caso importante neste momento: os estereótipos de gênero. No próximo tópico,
discorrerei sobre os estereótipos de beleza.
Pois bem, ao estudar os estereótipos de gênero, é possível encontrar vários exemplos
— incontáveis e corriqueiros — que se fazem presente em nosso dia a dia. Esses estereótipos
têm raízes históricas profundas e refletem valores e comportamentos de uma sociedade
patriarcal, machista, violenta, preconceituosa e desigual. Não é à toa que, ao falar sobre
estereótipo de gênero, logo vem à nossa mente inúmeros exemplos clichês que são percebidos
desde a infância.
Rodrigues, Assmar e Jablonski (2009, p. 144) salientam que, muitas vezes, “quando o
estereótipo é suficientemente forte, até os membros do grupo alvo tendem a aceitá-lo”. Se
olharmos mais de perto, percebemos que os estereótipos atuam de modo limitante,
estabelecendo implicações para a capacidade e para o desenvolvimento individual.
Duarte e Spinelli (2019) argumentam que os estereótipos de gênero são naturalizados
na sociedade por meio das relações de poder e buscam justificar, com elas, o espaço ocupado
39
pela mulher na sociedade como um todo. Apesar de todos os progressos feitos pela pressão
exercida pelos movimentos feministas, como notam Rodrigues, Assmar e Jablonski (2009), os
estereótipos de gênero ainda estão muito presentes no social. E é possível identificá-los nas
mais diversas instâncias, determinando papéis e funções como exclusividade de um gênero.
No mercado de trabalho, por exemplo, é possível visualizar claramente a discrepância
que há entre os gêneros. Àvila (2004) ressalta uma expansão nas últimas décadas da inserção
das mulheres no mercado de trabalho formal ou informal. Embora a autora (ÀVILA, 2004)
note um crescimento significativo da mão de obra feminina, ela ressalta também a precarização
dessa mão de obra e das condições frágeis em que as mulheres são inseridas. Isso decorre, em
suma, da polivalência e da multiatividade relacionada ao trabalho feminino, além das
atribuições que são feitas às mulheres, como as obrigações com a esfera reprodutiva. Para a
autora, “esse ‘atributo herdado’ tem sido tão incorporado como definição sobre o agir das
mulheres que passa a ser percebido como uma condição natural do feminino que está colocado
à condição de ser das mulheres” (ÀVILA, 2004, p. 5). Essas características acompanham as
mulheres na linha da história e, em decorrência delas, as mulheres são pressupostas.
Com todas as conquistas alcançadas pelas mulheres, com a grande revolução dos
costumes, o novo milênio ainda deixa transparecer muitos desequilíbrios na tão
almejada igualdade de poderes entre homens e mulheres. Um deles diz respeito à
imagem do corpo da mulher, que ainda é permeada por discriminações, pois atrás da
aparência de independência da mulher, esconde-se sua submissão, dependência e
inferioridade, visto que ao corpo da mulher é embutido a obrigação de estar sempre
belo e jovem (PAIM; STREY, 2004, n.p).
Rodrigues, Assmar e Jablonski (2009) afirmam que, mesmo nos dias atuais, não se
espera de uma mulher significativo sucesso profissional. De acordo com os autores, “quando
isto acontece, todos tendem a atribuí-lo a uma capacidade fora do comum em termos de
motivação ou a uma sorte, igualmente rara” (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2009,
p. 147). Esse processo da estereotipia de gênero se faz evidente nesse ponto.
Diversas outras pesquisas sistemáticas apontam como os estereótipos de gênero recaem
sobre as mulheres, objetificando-as e categorizando-as em detrimento do gênero. A
representação da mulher foi, ao longo do tempo, associada a valores espaciais e temporais.
Essas atribuições concatenam a imagem da mulher a discursos que reforçam a feminilidade e
a vinculam aos papéis domésticos, à inferioridade, à objetificação, ao desejo sexual, a imagens
mentais de um corpo com instinto materno e dever reprodutivo, que está ali para cuidar da casa
e da família. As atribuições de gênero que vimos até agora ficam ainda mais evidentes e
severas, como veremos a seguir, quando nos referimos aos estereótipos de beleza.
40
1.4.2 Os estereótipos de beleza
41
em alta agora no universo do belo — digo, no dia em que registro estas palavras —
provavelmente já terão sido transmutados neste dia em que você atravessa esses escritos.
Enquanto vos falo acerca desses estereótipos que tento definir ao longo desta pesquisa,
é provável que outros já terão tomado espaço, principalmente no sítio da potência midiática.
Isso não significa, entretanto, que esta pesquisa esteja ultrapassada ou inválida; pelo contrário.
Essa temporalidade célere dos estereótipos, que os tornam um elemento de estudo de difícil
apreensão, reforça ainda mais a necessidade de serem apreendidos antes que se diluam no
espaço.
Os estereótipos de beleza — especialmente quando falamos dos estereótipos de beleza
feminina — se apresentam de forma intensa, em particular neste momento em que nos
encontramos: rodeados por tecnologias que mediatizam todos os detalhes da vida. Então, os
estereótipos de beleza, neste momento, tornam-se massivos perante os outros. E isso pode
explicar o fato de a proporção desses estereótipos ser muito maior do que o esperado.
Toda essa reflexão parte do princípio de que só podemos discutir a dimensão alcançada
pelos estereótipos neste instante graças a midiatização excessiva que marca o tempo presente.
Nessa atmosfera, a espetacularização do cotidiano nos determina. Estamos em uma sociedade
extremamente narcisista, que utiliza o corpo como instrumento de representação do eu. Nessa
vitrine, o corpo é uma representação da pessoa, uma representação de sucesso… O corpo
representa. E, se o corpo representa, os estereótipos podem ser compreendidos como um
carimbo, marcado ali para ser visto, para ser um referencial.
Os estereótipos de beleza são o tempo todo reforçados, retomados, atualizados, pelos
mais diversos âmbitos. Podemos identificá-los sendo propagados amplamente em várias
instâncias midiáticas: nas redes sociais, nas revistas, nas televisões, nos filmes, nas séries. São
reproduzidos pela atriz que seguimos no Instagram, ou pela influencer que acompanhamos no
Twitter, incluindo também a criadora de conteúdo digital que está ali no YouTube. Os
estereótipos de beleza estão presentes para todos, em todos os lugares, a todo momento.
E uma das coisas que mais chama a atenção é que se antes esses referenciais de
estereótipos de beleza eram avistados de um lugar distante, agora encontram-se próximos; cada
vez mais perto, podendo ser vistos em uma influencer da sua cidade, ou em uma mulher que
passa ao seu lado. Seja uma vizinha, uma amiga ou uma conhecida. E esse fenômeno se torna
possível em consequência da exploração do belo pela mídia, pela indústria, pela sociedade, que
dizem que é possível ser belo se assim o quiser.
Novaes (2013, p. 28) é enfática ao afirmar que “o que é normativo para a mulher
contemporânea não é o fato de os modelos de beleza serem impostos, uma vez que o discurso
42
sempre foi esse, nem mesmo de que seja dito que ela deve ser bela, mas o fato de ser afirmar,
sem cessar, que ela pode ser bela, se assim o quiser”. De fato, algumas pessoas estão mais
suscetíveis a ser influenciadas que outras. E essas pessoas, mais facilmente sugestionáveis,
encontram à sua disposição uma vasta gama de produtos, que estão a cada dia sendo
aperfeiçoados pela indústria farmacêutica, cirurgias plásticas, cada vez menos invasivas,
diversos procedimentos estéticos e fórmulas de emagrecimento que prometem deixar seu corpo
com o contorno ideal. Essas pessoas estão submersas em um universo que oferece a elas a
solução para ser tudo o que elas quiserem ser. Assim, esses ideais de beleza, vão sendo
perseguidos incessantemente porque os discursos as induzem a acreditar que esses estereótipos
podem ser alcançados se assim desejarem.
Portanto, quando falo de estereótipos de beleza, falo de um fenômeno que tem grande
impacto na sociedade e, principalmente, na vida das mulheres. É um evento bem mais denso e
complexo do que muitos imaginam.
Há uma grande gama de estereótipos de beleza, que se agrupam em articulações como
um grande nó temático. Eles são maleáveis, ou seja, sofrem facilmente mutações que variam
de acordo com a sociedade, a época, a cultura. Ainda, são influenciados pela moda, pelo social,
e, principalmente, pela mídia. Podemos descrevê-los, sem hesitar, como impermanentes,
embora algumas características possam resistir ao passar do tempo.
Essa impermanência e essa temporalidade podem estar atreladas à mídia e à relação que
temos desenvolvido com ela nos últimos tempos. Sabemos que a mídia vem, a cada dia,
alterando a forma como funciona para se adaptar a um cenário em que há receptores sedentos
por informações frescas, que são transmitidas com celeridade. Esse movimento alimenta
instantaneamente a saciedade dos receptores e, ao mesmo tempo, os torna um campo minado:
eles são bombardeados por informações o tempo todo — informações estas que são novas neste
instante, daqui a dez segundos já não mais. E, claramente, resquícios dessas alterações
midiáticas podem ser percebidos por todos os lados, inclusive na lógica dos estereótipos que
estão, cada vez mais, impermanentes.
Em julho de 2020, um tweet publicado pela conta oficial do portal G1 chamou minha
atenção enquanto rolava a timeline do Twitter. Nele, a seguinte pergunta me intrigou: “É o
filtro dos Stories ou elas estão ficando iguais?”.
43
Figura 4 – Tweet da matéria do G1 sobre os filtros do Instagram
Mexer no nariz ou no olho faz parte de um pacote de mudanças estéticas feitas por
celebridades e influenciadores nos últimos três anos para atingir um padrão novo e
globalizado de beleza. O resultado é um rosto padronizado com uma ou mais dessas
características: olhos amendoados, nariz fino e arrebitado, maçã do rosto saltada,
bochechas com entrada, boca volumosa e maxilar definido13 (MATOS, 2020, n.p).
Essas características listadas no trecho anterior, retirado do G1, podem ser tidas como
estereótipos de beleza feminina nos dias atuais. É sabido que muitos desses atributos se
popularizaram com o fenômeno dos influenciadores digitais, também chamados de criadores
de conteúdo digital. Esses profissionais, formadores de opinião on-line, atuam em uma ou mais
plataformas digitais e somam uma significativa quantidade de seguidores. Algumas dessas
arrobas chegam a ter mais de duzentos milhões de seguidores, como acontece com a atriz,
13
Trechos retirados da matéria “Rosto de influenciadora: Por que ex-BBBs e celebridades estão cada vez mais
parecidos?”. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/07/08/rosto-de-influenciadora-por-que-
ex-bbbs-e-celebridades-estao-cada-vez-mais-parecidos.ghtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_
campaign=g1.
44
cantora e apresentadora estadunidense Ariana Grande. Outro exemplo é o caso das irmãs
Kardashians, que juntas contabilizam quase oitocentos milhões de seguidores. Veja aí, então,
a proporção que o conteúdo disseminado nessas plataformas tem.
45
2 NA VITRINE DO CORPO: ENUNCIADOS, DISCURSOS E SUBJETIVIDADES
Friedrich Nietzsche
2.1 OS ENUNCIADOS
Compreendo o enunciado como uma partícula pequena que, agrupada a diversas outras
partículas, compõe uma rede discursiva. É possível, ainda, imaginar o enunciado como um
fuxico — aquelas pequenas rosetas feitas de tecido, geralmente retalhos e sobras de tecido,
usadas como aplique em bordados — e o discurso como uma colcha espessa, densa e comprida,
formada pela composição desses fuxicos. Em suma, o enunciado é a produção que materializa
o discurso.
O enunciado é, pois, uma parte primordial do discurso. Ora, o enunciado não é livre,
muito menos independente de todos os outros enunciados: ele se encontra embaraçado a uma
rede discursiva. Como claramente explica Foucault (2019, p. 104), o enunciado “não é,
tampouco, uma unidade como um objeto material poderia ser, tendo seus limites e sua
46
independência”. Todo enunciado emerge no interior de um jogo de relações que possibilita que
ele venha à tona e seja produzido (informação verbal).14 Ainda,
O enunciado não se configura como speech act, pois não há preocupação com a
performatividade da realização de um ato, nem como frase, visto que não se restringe à
estrutura linguística e/ou gramatical, tampouco à proposição, uma vez que um enunciado não
é passível de qualificação. Foucault (2019, p. 104) é claro quando nos diz que “o enunciado
não existe nem do mesmo modo que a língua [...] nem do mesmo modo que objetos quaisquer
apresentados à percepção”. Ainda assim, na concepção foucaultiana o enunciado é sempre
dotado de certa materialidade e é possível situá-lo segundo coordenadas espaço-temporais. O
enunciado é, então, a manifestação de um fato, é o elo, a amarração do discurso nas tramas da
história, é o liame que constitui e sustenta o discurso.
O que torna um enunciado um enunciado é a sua função enunciativa, ou seja, o fato de
ele ter sido produzido por um sujeito, em um local, em um contexto. É exatamente isso que o
possibilita emergir enquanto enunciado. Não apenas estruturalmente, mas considerando a sua
espessura histórica, as regras que o possibilitam emergir, as relações enunciativas, e assim por
diante. Um enunciado se configura como tal, precisamente, pelo interior de sua função
enunciativa, que está amparada no fato de ele ser produzido por alguém, ou por alguma
instância produtora, em um determinado local, que o enunciou e possibilitou que ele existisse
enquanto enunciado. Para Veiga-Neto (2007), o enunciado é um tipo muito especial de ato
discursivo.
Ele [o enunciado] se separa dos contextos locais e dos significados triviais do dia-a-
dia, para constituir um campo mais ou menos autônomo e raro de sentidos que devem,
em seguida, ser aceitos e sancionados numa rede discursiva, segundo uma ordem —
seja em função do seu conteúdo de verdade, seja em função daquele que praticou a
enunciação, seja em função de uma instituição que o acolhe (VEIGA-NETO, 2007,
p. 94-95).
14
Fala da Prof.ª Dr.ª Amanda Braga no minicurso Michel Foucault e a Análise do Discurso, ministrado na
UFRN, no dia 05 de agosto de 2020.
47
Os enunciados nos permitem, portanto, extrair deles um sentido, um valor, que poderá
ser por nós apropriado, repetido e transformado. Foucault (2019) anuncia, ainda, que todo
enunciado carrega em si elementos inerentes e essenciais para a sua existência, afinal,
Poderíamos falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado, se uma superfície
não registrasse seus signos, se ele não tivesse tomado corpo em um elemento sensível
e se não tivesse deixado marca - apenas alguns instantes - em uma memória ou em
um espaço? Poderíamos falar de um enunciado como de uma figura ideal e
silenciosa? (FOUCAULT, 2019, p. 121-122)
Para o autor, toda função enunciativa está ligada a um referencial que “não é constituído
de ‘coisas’, de ‘fatos’, de ‘realidades’, ou de ‘seres’, mas de leis de possibilidade, de regras de
existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos”
(FOUCAULT, 2019, p. 110). Esse referencial, dito aqui, é caracterizado por reger as condições
de emergência do enunciado, definindo suas possibilidades de aparecimento e de sentido.
Uma outra característica intrínseca ao enunciado é a sua relação com o sujeito que
enuncia. De acordo com Foucault (2019), essa é uma questão que precisa ser especificada para
que não seja confundida com outros tipos de relações.
Portanto, vemos a partir do trecho anterior que o sujeito enuncia de um “lugar vazio”,
que pode ser ocupado por qualquer indivíduo, desde que este tenha autoridade para estar
naquele lugar e assumir a função de sujeito dos discursos.
A terceira característica da função enunciativa apontada pelo autor é o domínio
associado que, conforme comentei anteriormente, diz respeito à coexistência dos enunciados,
afinal, “[...] um enunciado tem sempre margens povoadas de outros enunciados [...]
(FOUCAULT, 2019, p. 118)”. Esse campo associado é
[...] constituído, de início, pela série das outras formulações, no interior das quais o
enunciado se inscreve e forma um elemento [...] pelo conjunto das formulações a que
o enunciado se refere (implicitamente ou não), seja para repeti-las, seja para modificá-
las ou adaptá-las, seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma delas
(FOUCAULT, 2019, p. 119).
48
Em Foucault (2019, p. 146), encontramos ainda que “estudam-se o enunciado no limite
que os separa daquilo que não está dito, na instância que os faz surgirem à exclusão de todos
os outros”. Trata-se, portanto, do princípio nomeado pelo autor de raridade, que parte do
pressuposto de que todo enunciado é raro diante das infinitas possibilidades de enunciados que
poderíamos ter. Portanto, o que foi formulado materialmente é valioso, pois quando uma coisa
é dita, incontáveis outras deixam de ser ditas. Uma infinidade de outras coisas deixam de
existir.
Ainda, de acordo com Foucault (2019), entre outras características em que repousa a
análise enunciativa está a exterioridade. Como disse anteriormente, o enunciado está imerso
em um jogo de relações da história e é preciso empreender a história do que foi dito. Assim,
nesse princípio, o que importa é reencontrar o exterior em que se repartem os acontecimentos
enunciativos. O autor (FOUCAULT, 2019, p. 149) diz também que a descrição dos enunciados
supõe que o campo em questão “não seja descrito como uma ‘tradução’ de operações ou
processos que se desenrolam de algum outro lugar [...] mas que seja aceito [...] como local de
acontecimentos, de regularidades, de relacionamentos, de modificações determinadas, de
transformações sistemáticas”. Deste modo, a descrição dos enunciados deve se preocupar com
as relações externas estabelecidas pelos enunciados na medida em que eles são produzidos e
com as relações históricas externas na medida em que eles são materializados.
Outro traço-chave pontuado por Foucault (2019) para a descrição dos enunciados é o
acúmulo, conceito fundamental para a análise que empreenderei a seguir. O acúmulo trata-se
de um princípio que supõe que o enunciado seja considerado em sua remanência própria, tendo
em vista o fato de “todo enunciado compreender um campo de elementos antecedentes em
relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações
novas” (FOUCAULT, 2019, p. 152). Esse acúmulo, portanto, remete aos fenômenos da
recorrência, uma vez que ainda que a enunciação seja um acontecimento singular, sua
materialidade é repetível.
Por fim, Foucault reconhece ainda a questão da materialidade específica, que diz
respeito à forma como o enunciado existe. Nas palavras de Foucault (2019, p. 122), “o
enunciado é sempre apresentado através de uma espessura material”. Em outros termos, não
existe enunciado sem materialidade, até porque ele é a materialização do discurso.
Se é certo que o enunciado é a materialização do discurso, podemos afirmar que não
existe enunciado sem materialidade. Mas que materialidade é essa?
A espessura material a que o autor se refere é responsável por registrar os signos
enunciados em uma memória ou em um espaço. A materialidade de um enunciado na
49
perspectiva foucaultiana, segundo Fischer (1996, p. 105), trata-se de “coisas efetivamente ditas,
escritas, gravadas em algum tipo de material, passíveis de repetição ou reprodução, ativadas
através de técnicas, práticas e relações sociais”. Nesse sentido, a enunciação se configura,
portanto, como um acontecimento que não se repete, ao contrário da materialidade que é
passível de ser repetível em virtude do fato de ela ter um lugar e uma data.
É possível assimilar que cada enunciado é singular, embora a materialidade possa ser
repetível. Pela materialização, torna-se possível analisar o enunciado, interpretando e
apreendendo sentidos e significações diversas. Entretanto, é claro, não isoladamente de outros
elementos tão importantes quanto.
Outra conceituação abordada por Foucault, e que é de suma relevância aqui, é a questão
da formação discursiva.
Como vos falei anteriormente, uma série de enunciados agrupados — que se apoiam na
mesma formação discursiva — compõe, na concepção foucaultiana, o discurso. No entanto,
50
antes de abordar efetivamente essa questão, gostaria de passar brevemente pela noção de
autoria. Isso porque essa noção integra o discurso, mesmo quando não é evidente. Assim,
acredito ser inevitável, aqui, apontar a diferenciação que Foucault (2020) faz entre a noção de
autor, referida como o indivíduo real que escreve ou articula a frase, e a noção de sujeito
enunciador, descrita como aquele que se constitui no discurso.
É preciso deixar claro, a meu ver, que este texto, este discurso, este compilado de
enunciados que registro nestas linhas, é produzido por uma autora que o assina. No entanto,
essa autora não deve ser confundida como um sujeito, visto que produz este discurso da posição
de estudante e pesquisadora.
Mas “que importa quem fala?”. É essa citação de Beckett, utilizada por Foucault, que
dará início a uma série de questionamentos acerca da autoria. A escrita, para Foucault (1969,
p. 269), “trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer”.
Por esse ponto de vista, Foucault indica que nessa indiferença se afirma o princípio ético da
escrita contemporânea. O apagamento do autor, nesse sentido, tornou-se um tema cotidiano.
Foucault (1969) nota uma ligação estreita entre a escrita e a morte. Nesse sentido, o
autor aponta que essa relação “também se manifesta no desaparecimento das características
individuais do sujeito que escreve” (FOUCAULT, 1969, p. 270) e que “a marca do escritor não
é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo
da escrita” (FOUCAULT, 1969, p. 270). Essas afirmações tornam-se emblemáticas à medida
que expõem um problema atual relativo à escrita e aos discursos: a dificuldade em desvincular
o sujeito discursivo da função-autor que se desfaz no discurso.
Compreender a autoria, portanto, é compreender um vasto universo de procedimentos
que antecedem o discurso. É lançar mão de que a função-autor é um elemento relevante dentre
os mecanismos internos que regulam e conferem unidade a um determinado discurso. Ainda, é
entender que o autor não é um indivíduo falante que pronunciou ou constituiu o texto, mas,
diferentemente, é aquele que organiza os sentidos, transformando-os em discurso. O autor “é
aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua
inserção no real” (FOUCAULT, 2014a, p. 26).
Não há aqui, portanto, ausência de sentido, embora esse discurso siga regras pré-
determinadas; afinal, como bem nos indicou Foucault (2014a), não temos o direito de dizer de
tudo, em qualquer circunstância, a qualquer momento. Nenhum discurso está isento dos
procedimentos que o interpelam, o controlam e o organizam. Este texto, inclusive, está contido
dentro dessa ordem do discurso, que prevê regras para que ele exista. Esse sistema ao qual este
texto se encontra submetido, por exemplo, fora definido pela universidade e pelo Programa de
51
Pós-Graduação do qual faço parte; pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), que, felizmente, financia esta pesquisa e pelos inúmeros outros
pesquisadores que, antes de mim, falaram e continuam, ainda, falando. Assim, este texto se
articula de modo a obedecer às regras previstas por essas instituições, a fim de ser entendido
como um discurso acadêmico.
Retornemos, agora, à questão do discurso. Como vos falava anteriormente, o discurso
é situado por Foucault (2020, p. 147) como “[...] um bem — finito, limitado, desejável, útil”.
Essa conceituação torna-se cara para esta pesquisa, visto que é a partir dela que absorverei
elementos de análise que darão conta desta dissertação. Portanto, a seguir, tentarei deslindar o
discurso e suas repercussões, tendo como base as problematizações foucaultianas.
Em Foucault (2020, p. 7) encontramos que “o discurso está na ordem das leis; que há
muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o
desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que lhe advém”. O discurso,
nessa perspectiva, emerge, desde sua existência, nas imbricações do desejo e do poder e, por
natureza, configura-se como um objeto de luta, embora não seja “simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do
qual nós queremos apoderar” (FOUCAULT, 2014a, p. 10).
O ponto de partida da formulação do discurso na obra de Foucault gira em torno da
hipótese de que — em toda sociedade — a produção do discurso “é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2014a, p. 8-9). De fato, o discurso não é livre
de amarras sociais. Se puder listar três fatos acerca dos discursos na perspectiva foucaultiana
seriam: em primeiro lugar, o fato de que o discurso existe dentro de um jogo sinuoso de relações
entre a razão, o poder e o desejo; em seguida, a questão do tensionamento ao qual o discurso
está implicado; e, por último, embora não menos importante, o controle minucioso que é
despendido no discurso pelos inúmeros procedimentos que o regulam.
É certo que o discurso, em toda sua complexidade, exerce diferentes funções
extremamente relevantes para o social. Um discurso não existe só; ele existe dentro de um
sistema, ele se conecta a outros tantos discursos dentro de um jogo. Gosto de pensar o discurso
como um átomo, formado por diversas partículas. Cada micropartícula dessa é um enunciado,
e juntas, bailando em perfeita harmonia e ligadas por uma força que não pode ser rompida,
compõem o discurso.
52
Um discurso nunca está sozinho; ele está sempre conectado e amparado em uma rede
de signos em meio a tantos outros discursos. Dentro desse sistema perfeito, os discursos
controlam, limitam, validam, registram, reproduzem e estabelecem princípios. São eles que
têm o controle de perpetuar valores.
Se no caso desta pesquisa pensarmos os valores como os estereótipos, por exemplo,
temos como efeito a suposição de que os discursos, alinhados em um jogo complexo de
relações, perpetuam valores de uma determinada sociedade. São esses discursos, também, que,
nas brechas históricas, atuam no rompimento de alguns desses valores — nesse raciocínio, os
estereótipos —, transformando-os, emergindo-os ou enterrando-os.
Peço licença a Foucault (2014a), neste momento, para me apropriar de uma de suas
inquietações. Mas, afinal, “o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de
seus discursos proliferarem indefinidamente?” (FOUCAULT, 2014a, p. 8). Embora a resposta
desse questionamento seja bem mais complexa do que aqui poderia vos dizer, ouso supor que
o perigo do discurso reside justamente no poder que lhe é contido. A capacidade, a influência
e o controle dos discursos repercutem em diversos âmbitos sociais, implicando alterações e
conservação de práticas, costumes e valores. Os discursos — embora seja preciso reiterar, aqui,
que não estou isentando-os das regulamentações dos diversos mecanismos e procedimentos
externos a ele que o delineiam — fazem parte de uma estrutura social responsável por atribuir
significados e sentidos às coisas, práticas, crenças e sociedades.
É certo que existe uma ordem do discurso e que todos nós bailamos dentro das normas
ditadas por esse sistema. E essa ordem atua como um controle de produção e circulação dos
sentidos. Os discursos nos coagem o tempo todo, eles determinam tudo o que nós somos ou o
que um dia iremos ser. Eles estão presentes nos mínimos detalhes do cotidiano, na forma como
a gente age, pensa e se comporta. E mesmo que tentemos escapar dessa ordem de discursos,
seria improvável conseguirmos. Refletir sobre isso, mesmo que por um breve instante, espelha
o que venho dizendo: estamos atravancados dentro dessa regulamentação. Só é possível refletir
sobre a existência desse sistema porque, impreterivelmente, fazemos parte dele. Tudo o que
revoa sobre nosso pensamento é, de uma forma ou de outra, discursivizado.
Como ressaltou Foucault (2020, p. 206), o discurso “não é uma consciência que vem
alojar seu projeto na forma externa da linguagem; não é uma língua, com um sujeito para falá-
la. É uma prática que tem suas formas próprias de encadeamento e de sucessão”. Tudo é
discurso. Não apenas escritos ou dizeres orais. Um corpo é discurso, uma pintura, uma música,
um gesto. O mundo é discursivizado.
53
Por fim, para concluir esse raciocínio, convoco, uma vez mais, Foucault. Pergunto-me
afinal, o que é, enfim, o discurso? E uma voz que me precede faz ecoar: “o discurso nada mais
é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos”
(FOUCAULT, 2014a, p. 46).
2.3 O CORPO
É certo que o corpo é o elo que possibilita a existência do Eu no mundo. Ele é a nossa
casa e, também, o nosso maior mistério. É por meio do corpo que experimentamos as mais
diversas sensações, afinal, ele é sensorial. É pelo corpo, também, que se torna possível a ligação
com outros corpos. O nosso corpo é biológico, fisiológico, químico, orgânico, sociológico e
filosófico. E por mais que ao longo dos séculos, desde antes mesmo da época renascentista,
diversos homens tenham se debruçado sobre o corpo para tentar decifrá-lo, até hoje algumas
inquietações não têm resposta. O que se sabe é que o corpo é um marco do começo e do fim da
existência humana.
Uma aura misteriosa sempre encobriu o corpo. Ela assombrou a igreja católica durante
séculos e, com as desculpas de que “o corpo é sagrado” e “decifrá-lo seria profanar”, o corpo
foi, por muito tempo, afastado das interrogações que o rondavam. Não havia respostas para as
perguntas sobre o corpo, embora os questionamentos fossem muitos. Mas, então, o que é o
corpo? O corpo é enunciado e, também, discurso. E esse corpo esteve submetido, por muito
tempo, a práticas discursivas que o controlaram e o docilizaram.
De acordo com Witzel (2014, p. 530), ao longo da história, o corpo feminino “foi
objetivado e manipulado pelo poder médico; censurado, confiscado e fortemente vigiado pelo
poder religioso; foi, ao longo da grande duração de sua história, tratado como território de posse
e de cultivo masculino”. Esse corpo que esteve por tanto tempo preso a amarras diversas, que
por inúmeras vezes foi objetificado e ressignificado, depara, no século XXI, com um campo
fértil de possibilidades de autonomia, embora esta tenha custado caro: esse corpo encontra-se
cingido por coerções estéticas impiedosas, que o dominam, o atiçam e o afetam.
Ao mesmo tempo em que o século contemporâneo brota com perspectivas positivas em
relação à libertação de inúmeras amarras que, por tanto tempo, ataram-se ao corpo, suscita
novos vínculos e novas imposições, principalmente relacionadas à aparência física. Como nos
dizem Philippi e Alvarenga (2004, p. 109), “o nosso corpo deixou de ser um instrumento a
nosso favor passando a ser um objeto a ser exibido”.
54
E, “se historicamente, as mulheres se preocupavam com a sua beleza, hoje elas são
responsáveis por ela” (NOVAES, 2013, p. 91). E, assim, vemos nascer diante dos nossos olhos
um novo modelo imperativo de governo sobre o corpo da mulher. Ainda de acordo com a
autora (NOVAES, 2013), o corpo, neste início de século, é eleito centro das atenções e tido
como um objeto fetiche de consumo. Assim, ele é constantemente instigado a adentrar num
universo de experiências que o modelam, fazendo-o se aproximar de padrões estéticos pré-
estabelecidos.
Mas, afinal, que corpo é esse, que vos falo? Seria um corpo corrompido pelo desejo e
pelo poder, quiçá um corpo disciplinado e docilizado por ser submetido regularmente a
imposições severas? Ora, esse corpo que busco apreender é o corpo que está exposto, sendo
testado, julgado por olhares impiedosos a todo momento. É o corpo glorificado (SANTAELLA,
2018).
Embora o corpo tenha inúmeras definições possíveis que perpassam as mais distintas
áreas biológicas, fisiológicas, sociológicas, históricas, filosóficas etc., duas foram as que acolhi
para me guiar nesta pesquisa. E ambas concepções têm algo em comum, que são, acredito eu,
pontos norteadores e delimitadores importantes a este lugar que vos falo: o corpo como uma
organização provida de individualidade e de subjetividade. O corpo como impermanente e
transmutável.
Com o ingresso do corpo nos redutos dos questionamentos movidos a partir da ação, do
desejo e das vontades humanas, foi possível descortinar superfícies obscuras — até então
ignoradas pelas ciências da razão —, abrindo um novo horizonte de visibilidade do corpo.
Assim, reflexões acerca das “inscrições dos fatores econômicos, políticos, da moral, da cultura,
dos fantasmas e dos investimentos de desejo que circunscrevem o modo como o corpo emprega
sua força de trabalho, instintual ou pulsional” (SANTAELLA, 2018, p. 27) tornaram-se
possíveis.
Ao longo da história, o corpo sofreu — e continua a sofrer nos dias de hoje — inúmeras
interferências externas que o seduzem. O corpo experimenta o atravessamento constante de
discursos, saberes, poderes, relações sociais, dispositivos e instituições. Nesse panorama,
Foucault (2019) defende que o corpo pode ser tido como “superfície de inscrição dos
acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de
dissolução do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua
pulverização” (FOUCAULT, 2019, p. 65). Assim, podemos considerar o corpo como um
campo político, movido pelos resultados de forças que lhe são aplicadas. Ele é conduzido e
direcionado por mecanismos e dispositivos que o cercam e o controlam.
55
Sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo
que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles [os
desejos, os desfalecimentos e os erros] se atam e de repente se exprimem, mas nele
também eles se desatam, entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu
insuperável conflito (FOUCAULT, 2019, p. 22).
56
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o
dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
tecer entre estes elementos (FOUCAULT, 2019, p. 364).
57
1) é um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e
não linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de
segurança, proposições filosóficas etc. O dispositivo, em si mesmo, é a rede que se
estabelece entre esses elementos.
2) O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre
em uma relação de poder.
3) É algo de geral (um reseau, uma "rede") porque inclui em si a episteme, que, para
Foucault, é aquilo que em uma certa sociedade permite distinguir o que é aceito como
um enunciado científico daquilo que não é científico (AGAMBEN, 2005, p. 9-10).
Baracuhy e Pereira (2013, p. 134) são enfáticas ao afirmar que nas proposições
foucaultianas “o corpo é a peça central sem a qual o poder não tem condições de ser exercido”,
afinal, nas sociedades modernas, como nos demonstrou Foucault (2014b), inúmeros
procedimentos de disciplinarização têm como alvo o corpo.
Para Foucault (2019, p. 235), “o poder penetrou no corpo e encontra exposto no próprio
corpo”. O poder, na acepção foucaultiana, não é compreendido como uma apropriação, um
bem ou uma riqueza, mas como algo que funciona e se exerce em redes, devendo, portanto, ser
analisado como circulante e não centralizado. Deste modo, o poder não se aplica aos
indivíduos, todavia, passa por eles à medida que estes estão em posição de exercer esse poder
e, também, de sofrer a sua ação.
58
Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam
identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos do poder.
Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O
indivíduo é um efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um
efeito, seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele
constituiu (FOUCAULT, 2019, p. 285).
59
Apesar de diferenciar as disciplinas do biopoder, de fato, são as disciplinas que nos
importam aqui, pois elas tentam “reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa
multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados,
utilizados e, eventualmente, punidos” (FOUCAULT, 2005, p. 289). Ouso, ainda, acrescentar
que os efeitos das disciplinas são ainda mais violentos sobre o corpo feminino, especialmente
quando olhamos através do lugar do belo.
Vemos, portanto, um movimento de disciplinarização do corpo da mulher, que tende a
colocá-la a serviço do seu próprio corpo, incentivando, com práticas sutis de dominação, o
esquadrinhamento e o culto ao corpo, além de uma preocupação excessiva com a aparência
física. É nesse cenário que Santaella (2018, p. 128) nos mostra que, nos dias de hoje, “o corpo
consome principalmente a si mesmo”.
A respeito disso, acredito ser pertinente abrir um pequeno parêntese. É fato que o poder
disciplinar incide de maneira diferente sobre o corpo feminino; com outra força e de outra
forma. Historicamente, o corpo da mulher é disciplinado a partir de outros lugares, é submetido
a forças outras que, por vezes, não atingem o corpo masculino, ou o atinge de forma mais
amena. E uma das grandes críticas feministas às postulações foucaultianas é exatamente essa;
o apagamento da mulher, do corpo da mulher e das questões relativas às mulheres.
Federici (2017) fala, por exemplo, que nas análises de Foucault, o autor ignora questões
como a reprodução, fundindo a história das mulheres e dos homens de forma indiferenciada e
sendo indiferente ao disciplinamento do corpo feminino. De acordo com a autora, Foucault
nunca se interessou, por exemplo, pelos ataques ao corpo das mulheres na época moderna.
Nos anos 1970, o interesse por questões relativas às mulheres propiciou um vasto
acervo de estudos feministas, tendo a maioria como área de interesse questões sobre a
sexualidade, a procriação e o corpo. Todas essas questões estavam no centro das
problematizações feministas da época. Ouso dizer que essa crítica feminista a Foucault é um
tanto quanto cômoda. Foucault foi um estudioso, como ele mesmo descreveu, pirotécnico; ele
se interessou e se debruçou por diferentes áreas do saber. É sabido que pesquisadores costumam
estudar aquilo que nos desperta o interesse e, no caso dele, ele se interessou por questões
distintas.
A questão do desinteresse de Foucault pelas questões femininas, a meu ver, poderia ser
explicada por duas hipóteses. A primeira seria o foco dado pelo autor a assuntos outros, que
eram seu interesse primevo. A segunda hipótese se justifica pela eclosão de estudos feministas
da época que já estavam levando essa questão — inclusive, algumas dessas pesquisadoras
feministas faziam parte do círculo pessoal do autor. De todo modo, em meu entendimento,
60
essas críticas não são infundadas; elas apenas partem de um olhar estrito perante o todo. Seria
da mesma forma restritivo como, por exemplo, tecer uma crítica às feministas da época —
sendo a maioria europeias, brancas e de classes privilegiadas — por não terem problematizado
a questão do feminismo negro.
Esse corpo, alvo das técnicas de sujeição, submisso às relações de poder, bosquejado
pelos discursos, é convocado a se tornar útil, posto que a utilidade está atrelada à adequação,
ao sucesso, à boa aparência. Como nota Santaella (2018, p. 10), “o corpo tornou-se [...] um nó
de múltiplos investimentos e inquietações”. Mas, que investimentos são esses e por que eles
são direcionados ao corpo?
Na contemporaneidade, o belo assume estatuto de dever moral, devendo ser alcançado
independentemente do preço. Aliás, a beleza deve caber no corpo, afinal, ele é a verdadeira
forma de representação do Eu. Essa movimentação reafirma o pensamento de Novaes (2013,
p. 86), que diz que hoje “o sujeito serve ao corpo, em vez de se servir dele”. Seguindo esse
61
raciocínio, Santaella (2018) nos fala também sobre uma crise do sujeito, do Eu e da
subjetividade, que coloca em questão a nossa corporalidade e a nossa corporeidade.
Neste ponto, creio ser necessário fazer um breve adendo acerca da corporeidade e da
corporalidade. Esses conceitos, discutidos pelo viés fenomenológico por autores como
Merleau-Ponty (1996), Mauss (1974), Nóbrega, Mendes e Gleyse (2017), refletem a
preocupação com um corpo senciente, cognoscível e impermanente. E, embora sejam
concepções que estabelecem relações epistêmicas de semelhança, penso ser necessário uma
breve explanação.
Oliveira, Oliveira e Vaz (2008, p. 306) afirmam que a corporalidade pode ser
compreendida como a “expressão criativa e consciente do conjunto das manifestações
corporais historicamente produzidas, as quais pretendem possibilitar a comunicação e a
interação de diferentes indivíduos com eles mesmos, com os outros, com o seu meio social e
natural”. Portanto, a corporalidade diz respeito à extração das mais diversas sensações e
movimentos, que é obtida através das experiências com a história, com a cultura, com o social
e com o mundo. Já a corporeidade, tendo em consideração o ponto de vista merleaupontiano
(MERLEAU-PONTY, 1996), é uma concepção que nasce do ponto de vista biológico — ainda
que não unicamente — e reflete o corpo enquanto carne. Nessa perspectiva, as experiências
vivenciadas são essenciais e direcionadas para o corpo (biológico), ainda que estas sejam
estabelecidas pelo social. Tudo que esse corpo produz de corporal e de corporeidade. A
corporalidade, pois, corresponde ao exercício do corpo; enquanto a corporeidade, ao corpo em
movimento, ao corpo em exercício.
Estando os conceitos de corporeidade e corporalidade, de forma breve, diferenciados,
retomo a questão que discutia anteriormente. Ora, se vos falava que o corpo, neste último
século, tornou-se um campo de aplicações e investimentos, cabe a mim mostrar-lhes o porquê.
Em partes, isso decorre das relações que temos estabelecido com a tecnologia e com a mídia,
mas não somente. De fato, as inúmeras transformações que ocorrem nas diversas instâncias
sociais impactam o corpo. Como afirmei anteriormente, o corpo é emanado na história. E a
história se faz a todo instante, inclusive no agora.
Santaella (2018) fala sobre um processo civilizador que afeta o corpo, induzindo-o a
uma “crise do Eu”. Para ela, “o corpo está em todos os lugares” e esse corpo é intimamente
investigado, pesquisado, dissecado e transfigurado. Em partes, essa obsessão com o corpo pode
ser explicada pelo fato de que ele “[...] se tornou um dos sintomas da cultura do nosso tempo”
(SANTAELLA, 2018, p. 134). Mas esse culto ao corpo tem antecedentes bem mais profundos,
que envolvem, inclusive, a questão da imagem corporal.
62
2.6 A IMAGEM CORPORAL E OS DISTÚRBIOS DE IMAGEM
Conforme tenho procurado argumentar, com base em diversos autores, o corpo está
cada vez mais no centro das relações sociais, nas imbricações do poder-saber. Esse arsenal de
relações ao qual o corpo encontra-se subalterno afeta não apenas o físico, mas também a
imagem corporal do ser.
Para Schilder (1999, p. 11, tradução nossa) a imagem corporal é “a imagem que temos
do nosso próprio corpo, que se forma em nossa mente15”. De acordo com o autor, ela é
construída com base nos eventos diários e, devido a isso, envolve fatores emocionais, culturais,
genéticos e físicos. Juntos esses fatores determinam como os indivíduos se posicionam no
mundo e como o percebem. O autor afirma também que “as imagens corporais são, em
princípio, sociais, visto que nossa própria imagem corporal nunca está isolada, mas sempre
acompanhada por imagens corporais outras16” (SCHILDER, 1999, p. 240-241, tradução
nossa). Por conta disso, existiria um intercâmbio contínuo de trocas entre as imagens corporais
que, coexistindo, afetam-se mutuamente.
Segundo Cash e Pruzinsky (1990), a imagem corporal é um fenômeno complexo que
possui múltiplas dimensões. Dessa maneira, para os autores, a imagem corporal é muito mais
complexa do que a definição trazida por Schilder. Na compreensão deles, a imagem corporal
reflete as experiências vivenciadas pelo ser, incluindo as suas percepções, pensamentos e
sentimentos. Portanto, a imagem corporal seria subjetiva e volátil.
Há ainda o fato de que a imagem corporal afeta as emoções e comportamentos
cotidianos, além das relações sociais. Por isso, as experiências da corporeidade experimentadas
pelo indivíduo podem, inclusive, afligir significativamente a qualidade de vida do ser humano,
já que são permeadas por sentimentos sobre o próprio corpo.
Como expus até aqui, a imagem corporal é influenciada por diversos fatores. No
entanto, é possível também afirmar que três deles apresentam maior interferência: os pais, os
amigos e a mídia (LIRA et al., 2017). Ainda, de acordo com os autores, esta última, sinônimo
de “meios de comunicação social”, é a mais pervasiva das influências (GRABE; WARD;
HYDE, 2008; GROESZ; MURNEN; LEVINE, 2002; LEVINE; MURNEN, 2009;
THOMPSON et al., 1999; TIGGEMANN, 2011; WANT, 2009).
15
The image of the human body means the picture of our own body which we form in our mind [...].
16
Body-images are on principle social. Our own body-image is never isolated but is always accompanied by the
body-images of others.
63
Num cenário hipermidiatizado, como veremos mais a frente, o corpo, e
consequentemente a imagem corporal, são drasticamente afetados por padrões estéticos
impiedosos e imperativos. Assim, o fenômeno do culto ao corpo, notadamente elucidado por
Castro (2001), intensifica-se.
A grande questão que gira em torno dessa preocupação excessiva com a aparência é
que, por vezes, ela revela desdobramentos nocivos. Philippi e Alvarenga (2004, p. 109)
ressaltam que “o homem sempre se preocupou com sua imagem e, através da sua história,
sempre estabeleceu padrões de beleza para essa imagem”. A internalização do padrão da
imagem “ideal”, ou seja, a incorporação do valor a ponto de modificar as atitudes e
comportamentos pessoais é um importante mediador da insatisfação corporal e,
consequentemente, dos distúrbios de imagem. A respeito disso, Franco e Novaes (2005, n.p)
comentam que “com toda essa pressão social e cultural pelo desejo estético, é cada vez maior
o número de pessoas que sofrem de transtornos corporais de imagem”.
A frustração de não se enquadrar nos padrões de beleza é capaz de induzir a um
descontentamento consigo, com o corpo e com a imagem corporal. Isso pode resultar no
Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), popularmente conhecido como distúrbio de imagem.
O TDC se caracteriza pela percepção distorcida da própria imagem e pode causar enormes
estragos na vida psíquica e social dos afetados. Pessoas que são acometidas por esse distúrbio
se veem de forma distorcida e, muitas vezes, acabam desenvolvendo outros transtornos, sejam
alimentares ou psicológicos, que colocam em risco a saúde física, mental e a integridade
pessoal.
De acordo com o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013), indivíduos com Transtorno
Dismórfico Corporal se preocupam com um ou mais defeitos ou falhas em sua aparência que
são inexistentes ou leves para outras pessoas. Essa preocupação frequentemente causa
ansiedade social e isolamento.
Para Delalibera (2005), a obsessão com a aparência está atingindo uma população
preocupada com a perfeição do corpo. Essa população está sendo afetada por alterações
psíquicas caracterizadas por distúrbios na representação pessoal do esquema corporal —
consciência do corpo como meio de comunicação consigo mesmo e com o mundo. Para a
autora,
essa busca obsessiva da perfeição do corpo tem várias formas de se manifestar seja
através da anorexia e bulimia, seja através de uma imagem deturpada sobre o corpo,
com a distorção da autoimagem, mas o que todos esses transtornos têm em comum é
64
o desejo por uma imagem corporal (DELALIBERA, 2005, p. 38).
65
A subjetividade está relacionada à forma como o sujeito é produzido. Nas palavras de
Foucault (2004, p. 236), refere-se “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo
em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo”. Trata-se da forma sujeito
(VEIGA-NETO, 2007).
É importante ressaltar que os estudos realizados por Foucault sempre partiram de uma
crítica radical do sujeito humano pela história. Portanto, quando pensamos nas subjetividades,
devemos “pensar em um sujeito que não é dado a priori, mas que se constitui no interior mesmo
da história, que é a cada instante fundado e refundado pela história” (FOUCAULT, 2003a, p.
10).
Foucault (2000) nos diz que uma coisa é certa: o homem é uma invenção recente17, cuja
arqueologia do nosso pensamento mostra facilmente. De acordo com o autor, diversas
mutações afetaram o saber das coisas, mas somente uma deixou aparecer a figura do homem.
E, se “estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram [...], pode se apostar que
o homem desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 2000, p. 536).
Essa sugestão do desaparecimento do homem refere-se, na interpretação de Fischer (1996, p.
69), “ao fim da existência de um homem essencial, fonte da verdade, da liberdade e de todo
conhecimento”. Essa explicação reforça a perspectiva de um sujeito carregado de
subjetividades, formado essencialmente pelas práticas, experiências e sentidos, mas, que bem
como foi inventado, pode sucumbir ao esvanecimento.
Santaella (2018, p. 9) diz que “muito do que percebemos e experienciamos é construído
socialmente: nossa identidade psíquica e sexual, o que constitui o prazer e a dor, onde estão as
fronteiras do eu”. As subjetividades que persistem em nós são a imagem da experiência privada
e irrenunciável de cada um; fazem parte de quem somos, do que somos e do que nos define e
nos identifica como únicos, para além de seres humanos, como entidades individuais.
Somos resultados de experiências adquiridas em um mundo vasto e em movimento. E,
tal qual esse mundo gira, pulsa e mobiliza, nós também giramos, pulsamos e mobilizamos. E é
por isso que a nossa subjetividade não é estática e, muito menos, permanente.
A subjetividade está em constante constituição. Ela é formada por pequenos pedacinhos
de vidro, ora espelhados, ora opacos, outros translúcidos, dispersos por toda parte e que são
recolhidos e agrupados por nós, de forma única e sui generis. É um engano acreditar que a
17
Quando, em As palavras e as coisas, Foucault (2000) afirma que o homem não existia até os séculos XVII e
XVIII, referindo-se a uma ruptura histórica da sociedade ocidental, a um momento em que o homem se tornava
objeto de saber, constituía-se como aquilo que é “necessário pensar e o que há a saber” (s.d., p. 448), na medida
em que é alguém que vive, fala e produz (FISCHER, 1996).
66
subjetividade não se trata de uma questão individual, mas de uma constituição do social, do
coletivo. Ela não é cartesiana. Ela é intrínseca a cada ser, é única e é intransferível.
Em meio ao estabelecimento das subjetividades, o corpo transgride e assume uma forma
de produção simbólica de subjetividades. Se é bem verdade que o corpo está no centro das
relações entre o saber e o poder, ele está também entrelaçado aos processos de subjetivação.
Mas, como vos falei antes, há uma suposta “crise do Eu”, sugerida por “filósofos, teóricos
sociais, do universo psíquico e do contemporâneo” (SANTAELLA, 2018, p. 123), que tem
desdobramentos, também, no corpo.
Santaella (2018) nota que, no lugar do eu, proliferam novas imagens da subjetividade.
Imagens que são construídas com incertezas existenciais, delineadas pela indefinição e
fugacidade dos dias contemporâneos. Imagens da subjetividade que “são hoje multiformes,
heteróclitas, descentradas, instáveis e subversivas” (SANTAELLA, 2018). E isso é, em grande
parte, responsabilidade das mídias.
67
É um corpo disciplinado, moldado e dócil que, para além das capas de revista e das
televisões, posa agora nas mãos, nos smartphones, dentro das plataformas digitais, em uma
publicação no feed do Instagram.
68
3 NA VITRINE: MÍDIA, INSTAGRAM E PRODUÇÃO DE SENTIDO
18
Neste texto, uso a expressão “meios de comunicação tradicional” para me referir às mídias presentes no universo
offline, tal qual o telefone, a televisão, o cinema, entre outras.
69
A mídia é discurso. Ela institui, produz e reafirma práticas sociais e produz sentidos,
influencia subjetividades e medeia realidades. Para Gregolin (2007, p. 16), atualmente ela “é o
principal dispositivo discursivo por meio do qual é construída uma ‘história do presente’ como
um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento”. De acordo com a autora, o que
a mídia nos oferece não é uma realidade, mas “uma construção que permite ao leitor produzir
formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta” (GREGOLIN,
2007, p. 16). Esses efeitos de sentido, que são materializados pela mídia, fazem parte de uma
parcela da realidade, que circula no social através dos discursos midiáticos. Esse é um dos
recursos utilizados pela mídia para mediar a relação entre os usuários midiáticos e o mundo
real.
A mídia exerce algumas funções sociais básicas como “a reprodução de imagens
culturais, a generalização e a integração social dos indivíduos” (GREGOLIN, 2007, p. 17). De
acordo com a autora, “essas funções são asseguradas pela ampla oferta de modelos difundidos
e impostos socialmente por processos de imitação e formas ritualizadas” (GREGOLIN, 2007,
p. 17). Para o social,
Os modelos citados por Gregolin (2007) são difundidos pela mídia através de discursos
que exercem um ‘poder pastoral’ que, nas discussões foucaultianas, caracteriza-se como o
poder de governar a vida humana. Entretanto, esse poder aparece como sendo paradoxal, na
medida em que cuida dos indivíduos e governa suas condutas. Esse poder, muitas vezes, não é
percebido, mas atua diariamente de forma contundente, sendo capaz de ditar regras, reforçar
estereótipos e comunicar ‘vontades de verdade’.
Os discursos difundidos na mídia operam dentro das relações do poder/saber. Eles são
previamente selecionados, autorizados ou interditados. E essas interdições que os atingem
revelam o vínculo do discurso com o poder. Como nos diz Gregolin (2007, p. 17), “estamos, o
tempo todo, submetidos aos movimentos de interpretação/reinterpretação das mensagens
midiáticas”. Essas mensagens são essencialmente discursivas, são controladas, são
direcionadas, têm o poder de incluir ou excluir, de orientar práticas, de servir de modelo e de
vigiar. Se no clássico romance distópico 1984, George Orwell diz que “the big brother is
70
watching you”, podemos afirmar, seguramente, que nos dias de hoje “a mídia está nos
assistindo”.
Embora saibamos que a mídia interfere nas mais diversas instituições sociais, é preciso
ter em mente que ela não atua sozinha: ela possui ligações estreitas com diversos outros
campos, como o político e o cultural. Para Hjarvard (2014), esses vínculos são nomeados de
midiatização, que se caracteriza como um processo recíproco entre a mídia e outros campos
sociais. Sobre outro prisma conceitual, Hepp (2014, p. 51) explica a midiatização como “o
conceito usado para analisar a inter-relação (de longo prazo) entre a mudança da mídia e da
comunicação, por um lado, e a mudança da cultura e da sociedade por outro, de uma maneira
crítica”.
Vários estudiosos da comunicação apresentam o ser humano como indissociável da
mídia. Gomes (2016), por exemplo, nos diz que a sociedade e o ser humano estão em
midiatização. Para o autor, “isso, hoje, configura um novo modo de ser no mundo” (GOMES,
2016, n.p). Nessa perspectiva, fica evidente que a mídia e nós nos relacionamos em um
movimento cíclico, articulando saberes, poderes e subjetividades em uma dinâmica de
midiatização mútua.
O mundo está mais conectado do que nunca e isso se deve às mídias, em especial às
mídias digitais. É um consenso entre estudiosos da área que os meios de comunicação
transformaram significativamente a forma como os indivíduos se relacionam com os outros e
com o mundo e, quando nos referimos aos meios de comunicação digitais, as dimensões dessas
transformações podem ser percebidas de forma mais nítida.
Neste exato momento em que esta pesquisa é desenvolvida, em um cenário pandêmico
causado pelo novo coronavírus — denominado SARS-CoV-2 e causador da doença Covid-19
—, as mídias digitais ganharam um protagonismo ainda maior do que antes. Por vivenciarmos
um contexto extremamente delicado, em que o distanciamento físico é mundialmente
recomendado, as redes sociais conectam as pessoas, que mesmo a distância, conseguem manter
a proximidade. Neste período, por exemplo, grande parte das orientações que tive para a
realização desta dissertação, dos encontros do grupo de pesquisa que participei e dos inúmeros
eventos a que tive acesso, só foram possíveis graças às redes sociais e ao grande avanço
tecnológico, que acontece em largas passadas.
71
Não é novidade que as mídias digitais trouxeram, desde seu surgimento, a possibilidade
de expressão, conexão e sociabilização. Todas essas funções, que já eram mundialmente
utilizadas, foram reafirmadas a partir de março de 2020, quando as medidas sanitárias contra o
novo coronavírus foram instauradas, tornando-se uma parte ainda mais essencial da vida das
pessoas.
Um relatório divulgado pela We Are Social19 em parceria com a Hootsuite, revelou que
cerca de 4,66 bilhões de pessoas em todo o mundo estavam conectadas à internet em janeiro
de 2021, expondo um aumento de 316 milhões de pessoas conectadas, 7,3% em comparação
com o ano de 2020. Um outro dado trazido por esse estudo mostra que houve um crescimento
significativo nas mídias sociais durante esse período: existem agora 4,20 bilhões de usuários
de mídia social em todo o mundo. Esse dado revela um crescimento de 490 milhões de usuários
nos últimos doze meses. O número de usuários de mídias sociais, agora, equivale a mais de
53% da população total do mundo.
A investigação da We Are Social em parceria com a Hootsuite mostrou também que,
em média, mais de 1,3 milhão de novos usuários ingressaram nas redes sociais todos os dias
durante 2020, o que equivale a aproximadamente 15 novos usuários a cada segundo. Além
disso, a pesquisa traz dados relativos ao tempo de uso da internet pelos usuários: no total, são
quase 7 horas gastas por dia utilizando a internet em todos os dispositivos, o que equivale a
mais de 48 horas por semana on-line — ou seja, dois dias inteiros em cada semana. Outra
pesquisa realizada pela GlobalWebIndex20 demonstra ainda que 58% dos usuários brasileiros
de internet, com idade entre 16 e 64 anos, afirmaram ter aumentado o tempo gasto em redes
sociais durante a pandemia.
Se pensarmos que até meados dos anos 2000, computadores e celulares eram itens quase
inacessíveis à população, os fenômenos das redes sociais que vivenciamos hoje, e
normalizamos, é um caso interessantíssimo. Se as mudanças sociais costumam acontecer de
forma lenta, sendo incorporada gradualmente à sociedade, após a eclosão das mídias digitais,
esses fenômenos ocorrem quase que instantaneamente, em uma velocidade muito maior do que
conseguimos acompanhar. As mídias digitais e as redes sociais se incorporaram ao cotidiano
e, nos dias de hoje, é muito difícil encontrar alguém que não tenha, pelo menos, uma rede
social.
19
Disponível em: https://www.amper.ag/post/we-are-social-e-hootsuite-digital-2021-resumo-e-
relat%C3%B3rio-completo
20
Disponível em: https://gente.globo.com/pandemia-e-o-consumo-de-noticias-nas-redes-sociais/
72
Sá Martino (2014) defende que rede social é uma categoria sociológica que define um
vínculo entre pessoas. Para o autor, ela pode ser entendida como “um tipo de relação entre seres
humanos, pautada pela flexibilidade de sua estrutura e pela dinâmica entre seus participantes
(SÁ MARTINO, 2014, p. 55)”. Os laços dessas redes, nessa perspectiva, seriam formados por
estruturas menos rígidas que as estruturas que sustentam as organizações sociais, por exemplo.
Assim, se a organização social família tem seu vínculo unido pelo afeto ou amor, por exemplo,
as redes sociais podem ser sustentadas por vínculos como interesses em comum ou
características partilhadas pelos participantes. Ainda de acordo com o autor, uma das
características mais marcantes das redes sociais é o seu caráter relacional, definido por vínculos
fluidos, flexíveis, e pelas várias dinâmicas dessas relações.
Jogando um pouco com as palavras, [a rede social] trata-se não de uma relação apenas
entre indivíduos, mas de uma relação entre relações, isto é, uma perspectiva mútua e
recíproca sobre a maneira como as pessoas interagem. Em outras palavras, não
interessa apenas como dois indivíduos se relacionam, mas também a maneira como
essa interação interfere nas outras - daí a perspectiva de uma relação entre relações.
(SÁ MARTINO, 2014, p. 57).
Nós somos seres sociais e nos conectamos com outras pessoas através de redes de
convívio e das redes sociais. Como nota Recuero (2018), o estudo das redes sociais não é novo,
o que muda agora é que as redes sociais na internet, mais do que permitir que os indivíduos se
comuniquem, amplificam a capacidade de conexão, permitindo que esses vínculos se criem e
se expressem através de espaços virtuais.
Nesse mesmo prisma conceitual, Sá Martino (2014) acredita ainda que a ideia de rede
social ganhou impulso com a mediação da tecnologia e da internet na construção dessas redes,
que possibilitaram as interações via mídias digitais. Outro ponto levantado pelo autor (SÁ
MARTINO, 2014) de suma importância nessa discussão, é a questão da dinâmica das redes
sociais. Cada rede tem sua lógica própria, que está ligada desde à mecânica de funcionamento
da plataforma até ao número de caracteres disponíveis para conversa, entre incontáveis outras
características. Todos esses elementos juntos formam os vínculos entre os indivíduos nas redes
sociais que, de acordo com o autor, “tendem a ser fluidos, rápidos, estabelecidos conforme a
necessidade em um momento e desmanchados no instante seguinte” (SÁ MARTINO, 2014, p.
56). São nesses espaços virtuais, segundo a lógica dos dispositivos das redes sociais, que as
pessoas se inscrevem para construir sua identidade, visto que nas redes os usuários também se
subjetivam, se modelam e narram o seu Eu.
Em um cenário midiático convidativo, somos incitados o tempo todo a nos mostrarmos.
Eis-nos no cerne da sociedade do espetáculo, tão bem retratada por Debord, ainda nos anos
73
1960. Debord (1997, p. 13) nos diz: “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas
condições de produção se apresentam como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o
que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. E tal afirmação não poderia ser mais
atual.
Registramos nossas vidas para que elas existam, para que elas sejam validadas. Cada
postagem é uma autenticação do que se viveu, do que se comeu, do local frequentado, da
viagem realizada, do ‘look do dia’, da vacina contra o novo coronavírus que finalmente foi
recebida. O tempo todo somos estimulados a falar sobre nós mesmos e a espetacularizar a nossa
vida para sermos vistos, pois quem não é vivo, não é lembrado. E, de fato, vivemos em meio a
uma vontade de verdade, a um desejo de se mostrar. Sibilia (2003) denomina essa necessidade
de exposição pessoal de imperativo da visibilidade. Para a autora, “os novos mecanismos de
construção e consumo identitário encenam uma espetacularização do eu por meio de recursos
performáticos, que visa ao reconhecimento nos olhos do outro e, sobretudo, ao cobiçado fato
de ‘ser visto’” (SIBILIA, 2003, n.p). Esse fenômeno da visibilidade descrito por Sibilia dialoga
com as teorizações do culto ao corpo (CASTRO, 2013), da sociedade do espetáculo
(DEBORD, 1997), além de com a modernidade líquida (BAUMAN, 2001).
A exposição do Eu faz parte de um movimento contemporâneo de afirmação de si, visto
que nos dias de hoje o anonimato tem valor negativo. Se antes afirmei que os corpos se
tornaram mercadorias, serei enfática ao dizer que os modos de ser, nesse contexto, também se
tornaram mercadorias.
Já nos dizia Bauman (2001, p. 15) que “seria imprudente negar, ou mesmo subestimar,
a profunda mudança que o advento da ‘modernidade fluida’ produz na condição humana”. O
cenário inspira liberdade, efemeridade e fluidez. Inspira inconstância, mudanças e adaptação.
Para o autor, a pós-modernidade é marcada pela diferença, fragmentação,
desinstitucionalização e subjetivismo.
Qualidades como a incerteza, o prazer momentâneo e a busca pelo sucesso são
marcantes nesse tempo delineado pelo Bauman (2001). Há ainda uma vontade de liberdade se
sobrepondo às relações e que pode ser descrita como uma fuga a algo que inspira constância.
Todo esse fenômeno da fluidez pode ser percebido nas redes sociais que estão o tempo todo se
reinventando e se adaptando às necessidades tecnológicas que vão surgindo e que, segundo
Sibilia (2016), são inventadas para desempenhar funções que a sociedade, de alguma forma,
solicita.
O cenário pós-moderno delineado por Bauman (2001) implica mudanças que
modificam os modos de ser e de existir. Nessa ordem, os limites entre o público e o privado
74
ficam muito tênues. Nas redes, cada um narra suas próprias experiências. De acordo com
Moreira (2006, s/p), “o desenvolvimento tecnológico contribui para essa lógica da visibilidade
pois atualmente é simples, barato e acessível à maioria das pessoas os recursos para gravar,
fotografar e divulgar fragmentos de sua vida”. As pessoas se expõem, são julgadas e percebidas
pelos discursos que propagam. Nesse processo, é perceptível a constituição das subjetividades
de cada um, que muitas vezes refletem apenas uma parte curta da vida real. Cada publicação
nas redes sociais tem como função a visibilidade e o descortinar da vida privada, do íntimo.
Se de um lado das redes os usuários encontram uma espécie de ‘confessionário’, em
que podem depositar suas confissões; de outro lado, há espectadores sedentos pela curiosidade
e satisfação de conferir vidas alheias. Essa dinâmica, observada por inúmeros estudiosos da
área, incita a construção identitária a partir da espetacularização da vida e do cotidiano. A
produção de subjetividades é uma necessidade nos dias de hoje.
É um verdadeiro ‘show do eu’. Sobre essa visibilidade e conexão sem pausa, Sibilia
(2016, p. 21) comenta que são “vetores fundamentais para os modos de ser e estar no mundo
mais sintonizados com os ritmos, os prazeres e as exigências da atualidade, pautando as formas
de nos relacionarmos conosco, com os outros e com o mundo”. Há uma dinâmica que provoca
o usuário a se mostrar, seja como for, o tempo todo, seja pelo tempo que deseja fazê-lo, seja
por 24 horas, seja ao vivo. No campo do consumo, o importante é experienciar, aparecer,
mostrar e ser. A autora nota ainda que “a subjetividade não é algo vagamente imaterial que
reside ‘dentro’ de cada um. Por um lado, ela só pode existir se for embodied, encarnada, num
corpo, mas também estará sempre embedded, embebida, numa cultura intersubjetiva”
(SIBILIA, 2016, p. 26).
É fato que o corpo e a subjetividade foram, e continuam sendo, profundamente afetados
pelos movimentos midiáticos. As formas de ser e estar no mundo estão em constante adaptação
para acompanhar as transformações do mundo. Não há dúvidas de que, nesse cenário que venho
desvendando ao longo deste capítulo, o corpo é parcela ativa da inscrição do Eu nas mídias
digitais, afinal, ele faz a mediação dos modos de ser e estar no mundo. E, nesse cenário repleto
de exigências de visibilidade, os cuidados com o ele e com a imagem de si ganham um local
75
de privilégio inegável. Não foi sem motivos que a indústria da beleza nunca faturou tanto
quanto nos dias de hoje.
Castro (2013, p. 151) nos diz que a mídia e a indústria da beleza são aspectos
estruturantes da prática de culto ao corpo. Ouso incrementar que, num contexto de crescimento
exponencial das redes sociais, essas práticas nunca foram tão determinantes quanto agora. Se
pensarmos nas inúmeras estratégias de publicidade emplacadas pelas mais diversas marcas de
beleza dentro das redes sociais, veremos que essa dinâmica rompe com as lógicas de consumo
adotadas antes da internet. Os produtos são exibidos — e supostamente testados e utilizados
— por influenciadores das plataformas, que se aproximam do público-alvo através da
humanização, mostrando-se como ‘pessoas reais’. Assim, as marcas utilizam desses
influenciadores, que têm uma audiência relativamente grande e que são inspiração para muitos
usuários, para mostrar o seu produto e as vantagens oferecidas por eles em um próprio
consumidor. Essa é apenas uma das inúmeras estratégias firmadas entre a indústria da beleza e
a mídia digital nessa era da conectividade.
Não é à toa que a mídia é considerada um dos principais meios de difusão e
capitalização do culto ao corpo como tendência de comportamento (CASTRO, 2013). Por
intermédio da mídia, a exigência de um corpo perfeito, delineado, esbelto e bem cuidado é
imposta por vezes de forma tão normatizada que passa despercebida.
Discursos acerca de ideais de corpo belo são produzidos na mídia há muito tempo. O
percurso da beleza feminina perpassa, necessariamente, a mídia, afinal, ela é a grande
responsável pela exposição dos discursos imperativos de beleza. Essa condição foi imposta
desde os primórdios midiáticos, desde pelas esculturas, desenhos, pinturas, fotografias, revistas
e jornais, pela televisão, pelos cinemas e filmes hollywoodianos, até pela publicidade.
Ao longo da história recente, podemos notar inúmeros exemplos de discursos que
propagavam, em determinado momento, noções pré-concebidas de beleza da mulher. Imagens
de rostos e corpos perfeitos estão em todos os lugares estampando marcas, povoando outdoors,
modelando nas passarelas, posando nas redes sociais, habitando no Instagram.
Não tem como falar sobre a beleza no Instagram sem considerar o que levou a beleza
ao Instagram, o que levou a beleza a esse estado, a esse lugar de beleza ideal que a gente tem
hoje. É certo que, como delineei no primeiro capítulo deste texto, nem sempre a mulher magra
foi considerada a mulher bela. Se analisarmos os quadros do período renascentista, por
exemplo, veremos que belas eram as mulheres “cheinhas”. Ainda, se formos um pouco mais
adiante, encontraremos na produção da antiguidade clássica e do Brasil colonial o padrão de
beleza da época: a mulher gorda, com curvas volumosas.
76
Figura 5 – Vênus de Urbino, de Ticiano (1538)
77
vividos por meio de fotografias. Estas, posteriormente, poderiam ser editadas com
aprimoramento de contraste e aplicação de filtros que simulavam efeitos retrô.
Inicialmente, o Instagram foi disponibilizado apenas para usuários do iOS, sistema
operacional implementado nos aparelhos da Apple. Desde o início, a rede social foi um
sucesso: no mesmo dia em que foi lançada, a plataforma tornou-se o aplicativo mais baixado
na Apple Store, alcançando nos primeiros meses a marca de 1 milhão de usuários no mundo.
Após algumas atualizações e solicitações dos usuários, tornou-se possível acessar a
galeria do celular para realizar publicações, o que permitia o compartilhamento de fotos tiradas
em outros momentos. Assim, o usuário conquistou autonomia para manipular a imagem que
gostaria de postar, utilizando-se de elementos externos para a edição da foto e “desvirtuação”
da realidade. Não demorou muito para inúmeros aplicativos surgirem, oferecendo aos usuários
possibilidades de edição e aprimoramento das fotos antes de elas serem publicadas.
Em 2011, a plataforma lançou o sistema de hashtags, que funciona como nós temáticos
em que são agrupadas as publicações da mesma categoria. Essa foi uma atualização importante,
que permitiu aos usuários buscar e acessar conteúdos com facilidade.
Em 2012, a rede social lançou sua versão para celulares com sistema operacional
Android, que está presente em múltiplos aparelhos de outras fabricantes, o que popularizou
ainda mais o aplicativo. Ainda, inaugurou o Instagram para browser, com o objetivo de ampliar
78
as possibilidades de uso da rede social, antes limitada apenas a smartphones. Em abril do
mesmo ano, a rede social foi comprada pelo Facebook. Alguns meses depois, a plataforma
aderiu a aba ‘explorar’, um local personalizado em que algoritmos selecionam conteúdos
personalizados com base nos interesses de cada usuário. O algoritmo que atua no Instagram é
o EdgeRank e ele opera de acordo com os seguintes fatores:
O primeiro é a afinidade: quanto mais próxima a nossa amizade com alguém -o que
é determinado pelo tempo que passamos interagindo com a pessoa
e investigando seu perfil -, maior será a probabilidade de que o Facebook nos mostre
suas atualizações. O segundo é o peso relativo de cada tipo de conteúdo:
atualizações sobre relacionamentos, por exemplo, têm peso grande; todos gostam de
saber quem está namorando quem [...] O terceiro é o tempo: itens mais recentes têm
mais peso do que postagens mais antigas (PARISER, 2012, p. 39).
79
Figura 7 – Print da primeira versão do aplicativo do Instagram
Muita coisa mudou desde a primeira versão da plataforma. Até 2013 não era possível
publicar vídeos no Instagram. Após a liberação dessa função, estes eram limitados a 15
segundos por post. Esses segundos só foram ampliados para vídeos de até um minuto em 2015,
e essa restrição é mantida até hoje.
A oportunidade de publicação de vídeos foi o pontapé inicial de grandes mudanças que
estariam por vir no Instagram. Em 2016, a rede social implementou a aba stories, que
possibilitou o compartilhamento de fotos e vídeos curtos de até 15 segundos, que desaparecem
após 24 horas. Essa funcionalidade surgiu como uma resposta à rede social Snapchat, que
estava em alta no ano de 2016, oferecendo aos usuários uma aplicabilidade similar. Assim, com
o objetivo de reter os seus usuários em sua própria plataforma, o Instagram lançou os stories e
revolucionou o uso da sua plataforma. Ainda naquele ano, o Instagram possibilitou aos usuários
realizarem transmissões ao vivo. Essa funcionalidade foi, inclusive, muito utilizada durante a
pandemia, como alternativa de canal de comunicação, tendo um crescimento de 70% de acordo
com informações divulgadas pela própria plataforma.
80
3.3 NA VITRINE: O FILTRO IDEAL
A implementação dos stories foi um dos maiores marcos da história do Instagram. Com
o sucesso da funcionalidade e com a implementação dos filtros de realidade virtual e aumentada
no ano de 2019, o Instagram alcançou uma popularização ainda maior. Assim como já era
possível fazer na rede social Snapchat, o Instagram ampliou suas possibilidades, permitindo
aos usuários utilizarem em suas postagens nos stories filtros de tecnologia imersiva, capazes
de alterar as feições do rosto e do corpo.
O sucesso desses filtros foi tão grande, que logo foram ampliados para que todos os
usuários pudessem criar filtros. Várias oportunidades surgiram a partir daí, tanto para marcas
que passaram a divulgar seus serviços e produtos a partir dessa funcionalidade quanto para
influenciadores e outros usuários da plataforma que conseguiam alcançar mais pessoas com o
lançamento de filtros interativos. Entretanto, algumas polêmicas começaram a surgir por causa
desses filtros, sendo necessária, inclusive, uma intervenção da plataforma.
Em novembro de 2019, o Instagram decidiu que baniria alguns desses filtros que
distorciam a imagem dos usuários após diversos estudos comprovarem que mulheres,
predominantemente jovens, estavam tendo sua autoimagem afetada pelo uso exacerbado deles.
Esses estudos revelaram que vários dos filtros que estavam sendo amplamente utilizados
tendiam a aproximar a imagem das mulheres a um padrão de beleza que beirava a perfeição,
com características que remetiam a procedimentos de cirurgia plástica e estética, como a
harmonização facial. Dentro das principais características físicas que os filtros
proporcionavam, estavam lábios carnudos, nariz menor e mais fino, olhos de cores claras,
bochechas magras, sorrisos extremamente brancos e uma pele impecável, sem manchas,
olheiras ou qualquer marca.
81
Figura 8 – Prints de mulher com e sem filtro do Instagram
Um estudo realizado por Ramphul e Mejias (2018) constatou que os filtros amplamente
utilizados no Instagram e no Snapchat geraram efeitos negativos na autoimagem das mulheres.
De acordo com os autores, cirurgiões plásticos relataram que pacientes — geralmente mulheres
com idade inferior a 30 anos — buscavam mudanças na aparência similares às características
oferecidas pelos filtros dessas redes, como redução de linhas e rugas e das bochechas, aumento
da região dos olhos e lábios, entre outras. Ainda segundo os autores, uma cirurgiã plástica
relatou que uma paciente chegou a levar para a consulta uma foto sua com um dos filtros,
solicitando mudanças para ficar como naquela foto. Esses são apenas dois casos dos inúmeros
existentes. Esses efeitos negativos na percepção que os usuários dessas redes sociais têm de si,
provocados pelo uso exacerbado dos filtros nas redes sociais, ficaram conhecidos como
“Dismorfia do Snapchat”.
Além do banimento de filtros que simulavam cirurgias plásticas, harmonização facial e
outras mudanças drásticas na aparência, os usuários ganharam a possibilidade de denunciar
filtros que consideram uma violação das políticas da rede social. Em agosto de 2020, o
Instagram também restringiu publicações sobre produtos de emagrecimento ou procedimentos
estéticos para usuários menores de 18 anos. Além disso, publicações patrocinadas com
produtos para emagrecer ou dietas milagrosas foram proibidas. Os principais afetados com
essas medidas foram os influenciadores digitais, muitas vezes acusados de não consumir os
produtos que veiculavam.
No Instagram, vivemos na era dos influenciadores digitais. Com muita recorrência,
empresas e agências de comunicação e/ou publicidade fecham parcerias com esses
82
influenciadores com o intuito de divulgar produtos e serviços. No entanto, apesar de essa ser
uma prática comum, até então ela não era regularizada e, muito menos, tinha direcionamentos
éticos. Para Abidin (2015), influenciadores digitais são microcelebridades que têm um grande
alcance e número de seguidores nas redes sociais. Ainda de acordo com o autor,
frequentemente esses influenciadores utilizam da sua visibilidade como capital social para ter
acesso a recursos financeiros.
Várias foram as polêmicas envolvendo influenciadores digitais e propagandas. Um dos
casos envolveu a ex-BBB e influencer Flay (@flay) que, após realizar vários procedimentos
estéticos como rinoplastia, harmonização facial e lipo LAD (lipoaspiração HD), publicou uma
propaganda de um ‘creme emagrecedor’.
83
Figura 10 – A influenciadora @mcmirella faz sorteio de cirurgias plásticas no Instagram
A repercussão negativa da publicação feita por Mirella foi tão grande que dois dias após
ser postada, e depois de ter alcançado mais de 1 milhão de usuários, a publicação foi retirada
do ar. De acordo com dados de uma pesquisa feita pela Academia Americana de Cirurgia
Facial, Plástica e Reconstrutiva21, em 2017, 55% dos cirurgiões plásticos faciais relataram
atender pacientes em busca de procedimentos estéticos para aparecer melhor em fotos nas
redes. É inegável o efeito que as redes sociais têm na realização de procedimentos estéticos e
cirurgias plásticas.
Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), sorteios de cirurgias
plásticas nas redes sociais são ilegais e, caso a influenciadora faça parceria com um cirurgião
plástico, este pode ter sua licença médica cassada, pois essa ação é proibida pelos órgãos
reguladores. Entretanto, para a influenciadora que sorteia a cirurgia, não há nenhuma punição
prevista.
No senso comum, a internet é reconhecida como “terra sem lei”. Essa é uma expressão
comumente utilizada por internautas para relatar, muitas vezes, a falta de fiscalização e
regulamentação em diversas instâncias da web, que incluem também as redes sociais. Somente
em dezembro de 2020, o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
Ética na Prática) lançou um documento que traz recomendações para a aplicação das regras
éticas para publicidade em redes sociais, especialmente voltada para os influenciadores digitais
21
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43910129.
84
e para a produção de conteúdos focados em ações publicitárias em qualquer plataforma
(CONAR, 2020).
Ainda em 2020, a SBCP lançou uma campanha em suas redes sociais denominada “Não
existe milagre”.
[...] o grande perigo acontece quando ferramentas deste tipo são utilizadas para
simular cirurgias plásticas. E isso acontece com mais frequência do que você imagina.
Por isso, não acredite em tudo o que vê nas redes sociais. Por aqui, não existe qualquer
filtro de veracidade e qualquer um pode publicar o que bem entender. Não se deixe
enganar.
85
hegemônicos são de suma importância para a desconstrução de padrões amplamente vista nas
redes sociais. Bem como nos lembra Foucault (2006), resistir é travar lutas com o poder.
[...] como não tô super em paz com o espelho, cada vez que experimento um filtro,
parece que ele me mostra o que eu poderia ser e não sou, aí quando solto o celular
(porque a vida acontece com o celular solto né), eu volto pra versão original de mim
mesma. No momento, uma versão meio capenga, mas é o que tenho e é a versão que
vai na rua, no pilates, no médico, no mercado... a versão que tá dando tudo tudo tudo
de si pra gerar uma vida.
Mas, nos dias de hoje, quem consegue se olhar no espelho e se reconhecer sem filtros?
O uso de filtros e a manipulação de imagem são práticas tão recorrentes que, muitas vezes, são
naturalizadas. Entretanto, por vezes, essas práticas tomam proporções para além das redes
sociais, afetando a autoimagem do usuário. Em entrevista à Elle (EIRAS, 2020), a pesquisadora
e doutora em antropologia do consumo Hilaine Yaccoub afirma que no cenário atual, nos
acostumamos a ver nosso reflexo no celular, não mais no espelho. E, se desejamos passar um
batom, por exemplo, em vez de passarmos efetivamente, utilizamos filtros que nos
proporcionam diversas possibilidades. Ainda de acordo com a pesquisadora, estamos
acostumados à visão irreal de nós mesmos e da nossa aparência, propiciada pelos inúmeros
softwares disponíveis hoje. Assim, afirma a Hiliane, “muitas pessoas perseguem a sua própria
imagem do perfil do Instagram como se fosse uma versão ‘melhorada’ de si mesmas” (EIRAS,
2020, n.p).
86
Figura 12 – Post feito pela influenciadora Hariana Meinke
87
[...] pela primeira vez em um tempo infinito, apontei a câmera sem filtro para mim e
segurei o choro de tanto desgosto que tive. Não consegui tirar uma foto sem filtro.
Tô me sentindo uma fraude e com uma certa crise de identidade por me ver nas fotos
de uma forma que definitivamente não sou, mas não quero me ver como sou de
verdade.
De fato, pesquisas revelam uma relação negativa entre o uso das mídias sociais e o bem-
estar psicológico (BAKER; ALGORTA, 2016), sugerindo inclusive alterações na autoestima
e na autoimagem dos usuários (MUQADDAM; RYU; JIN, 2018).
Além da questão em torno dos filtros dos stories e do banimento dos que simulavam
procedimentos estéticos, outra questão gerou polêmica no Instagram: os likes. Diversos
estudiosos pautaram os likes como problemáticos, pois eles geram uma busca incessante pela
perfeição, levando à comparação social, insatisfação com a autoimagem, frustração, além de
problemas de autoestima (TIGGEMANN et al., 2018). Assim, em novembro de 2019, o
Instagram anunciou que removeria os likes visíveis nas publicações, a fim de fazer um teste
e apoiar o bem-estar por meio da redução da competição pelas curtidas. Nessa experiência de
ocultamento piloto, apenas o usuário sabia quantas pessoas haviam curtido as suas publicações.
Um estudo realizado nos Estados Unidos por Wallace e Buil (2021), após a mudança
da visibilidade dos likes no Instagram, investigou os efeitos do número de likes recebidos e da
visibilidade desses likes para os usuários. As investigadoras concluíram que há um impacto
psicológico negativo no uso do Instagram e que a proporção desse impacto depende de os
resultados serem visíveis para os outros ou não, tendo um efeito negativo maior quando estão
visíveis. Para Han (2019, p. 16), “onde penetrou a curtida, o like, esmorece-se a experiência,
impossível sem negatividade”.
Na cultura contemporânea, é fato que o Instagram se tornou um ambiente que
potencializa funções. De uma plataforma de publicação e edição de fotos, transformou-se em
um espaço virtual completo, que agrupa diversas possibilidades dentro da mesma interface.
Para Cintra (2020, p. 24), “o Instagram se tornou o maior centralizador de referências estéticas,
sobretudo no que concerne ao corpo humano”.
No senso comum, o Instagram possui fama de ser a rede social da perfeição. Vários
usuários relatam que as fotos que costumam partilhar em outras redes sociais, como o Twitter,
por exemplo, não poderiam ser compartilhadas no Instagram. Isso porque o Instagram se tornou
uma vitrine e, em uma vitrine, se expõe o melhor produto: não é qualquer imagem que se posta
no Instagram, mas uma imagem planejada em que determinada ordem do olhar seja atingida.
O corpo tem destaque nessa rede social. Ele é um elemento da expressão de si; é uma
potência explorada pelos diversos ângulos, olhares e possibilidades. As pessoas necessitam da
88
aprovação do outro. Então elas se subjetivam no Instagram e se inscrevem de forma que atinjam
o maior número de seguidores, para que sejam vistas pelo maior número de pessoas e para que
sejam aprovadas. E a aprovação do outro nessa rede social vem em troca de curtidas (likes),
comentários e reações. Para Cintra (2020, p. 29), “os usuários, em grande parte, são avaliados
simbolicamente na lógica da rede. É por meio da sua exposição e representação imagética que
o exercício de identidade do sujeito se dá na vida virtual”. É na constante midiatização do seu
corpo, e consequentemente de si, que os instagrammers22 (MILES, 2013) existem, e resistem,
na rede social.
É no Instagram também que vemos uma recorrente postagem de padrão de beleza que
está sempre representado por mulheres de aparência esguia, bela e jovem. Por ser uma rede
social predominantemente imagética, as imagens carregam em si grande potência. Os discursos
ecoam por todos os lados e ditam estereótipos, fenômenos, influências, padrões e estigmas.
Mas, afinal, quais as vontades de verdade que se impõem no Instagram hoje sobre a beleza
feminina? Por que determinadas características são consideradas belas e são vistas
massivamente na plataforma? Quem está autorizado a falar sobre a beleza feminina e definir
padrões estéticos a serem imitados por milhares de seguidores? E, afinal, os discursos
produzidos e disseminados no Instagram podem resultar na construção de estereótipos de corpo
belo feminino?
22
Termo cunhado pela primeira vez por Miles (2013) para designar usuários da rede social Instagram.
89
4 NA VITRINE: O CAMINHAR E AS POSSIBILIDADES
Bem como diz João Cabral de Melo Neto (2007) em sua obra Morte e vida Severina,
uma roupa cingida ao corpo, vestirá melhor. Assim compreendo a metodologia: como uma
costura que deve ser feita sob medida para cada objeto de investigação. Uma tessitura
cuidadosa, justa e precisa, que é tecida no decorrer da pesquisa e que incorpora as lacunas do
corpus em questão; o caminho é construído gradualmente durante o ato de caminhar.
Assumo o entendimento de que se nós conhecemos bem as margens do nosso objeto de
investigação, sabemos também até onde podemos ir. Se identificamos os limites enunciativos
e teórico-metodológicos, desvendamos inúmeras condições de caminhada e partida. E, dessa
forma, as escolhas ficam mais claras e fáceis. Diria até que a metodologia se apresenta e as
ferramentas analíticas se colocam à disposição para integrar a pesquisa e auxiliar na
averiguação dos dados.
Este estudo é fundamentado metodológica e teoricamente em Foucault. Entretanto,
tenho atenção ao dizer isso, pois, a rigor, não existe um método em Foucault. Como nos alerta
Veiga-Neto (2007, p. 17), para ser possível pensar em “método” nas postulações foucaultianas
é preciso antes compreendê-lo como “uma certa forma de interrogação e um conjunto de
estratégias analíticas de descrição”. É preciso captar o significado de método de forma mais
livre e menos rígida do que a tradição moderna costuma fazer.
Sendo assim, tenho o método com um sentido afastado das concepções positivistas,
longe da metodologia concreta na qual, assevera Deleuze (2005), somos forçados a partir de
palavras, de frases e de proposições que organizamos em um corpus determinado, variável de
acordo com o problema em questão. Tomo o método, portanto, como “um conjunto de
procedimentos de investigação e análise quase prazerosos, sem maiores preocupações com
regras práticas aplicáveis a problemas técnicos, concretos” (DELEUZE, 2005, p. 17). Dessa
maneira, o método adotado por mim para esta pesquisa funciona sempre com uma certa
vigilância epistemológica.
Apesar disso, essa escolha metodológica não significa menos rigor acadêmico, valor ou
veracidade. Como nos fala Veiga-Neto (2009, p. 87), “é preciso não confundir abertura e
90
flexibilização com ‘vale tudo’, com a negação a quaisquer formalismos ou com a ausência de
rigor”. O rigor também está presente em uma pesquisa sensível, ainda que de um modo pouco
cartesiano. Assim, ao assumir essa abordagem, não podemos perder de vista o respeito e os
preceitos previamente estabelecidos por uma cultura que nos precede e pelas leis que regem o
discurso. Sem esquecer, é claro: “é possível ser rigoroso sem ser rígido” (VEIGA-NETO, 2009,
p. 87).
Acredito que fazer pesquisa é interpretar o mundo com lentes teóricas. A vida está
entrelaçada nas teorias, no pesquisador, no corpus da pesquisa, em cada pequeno detalhe.
Tentar se aproximar de uma suposta imparcialidade, assumindo uma postura linguística neutra,
tentando se afastar do objeto de estudo para apreendê-lo distante é, no mínimo, uma tentativa
vã e utópica. A isenção não passa de um desejo quimérico e longínquo, visto que o pesquisador
é subjetivado a todo instante. O pesquisador também é teoria e se inscreve na pesquisa o tempo
todo.
Como mencionei anteriormente, minha pesquisa nasceu bem antes deste escrito.
Nasceu de uma inquietação e logo se tornou um processo de desconstrução, com passos lentos
e várias dificuldades. Em meio às incertezas e apreensões, pude aos poucos descobrir de onde
eu pesquisava. Tive acesso, também, a um universo científico que, até então, era desconhecido.
A ciência é bem maior do que costumam nos mostrar. Mas, para descobrir isso, é preciso nadar
contra as correntezas da previsibilidade e da prática.
Por vários meses após o ingresso na pós-graduação, imersa na teoria, sentia-me bem
distante da minha pesquisa. Foi apenas ao conhecer mais profundamente autores como
Foucault (2014a), Alfredo Veiga-Neto (2014), Rosa Maria Bueno Fischer (2005), Rosário
Gregolin (2007), entre outros, que tive o primeiro contato com um modo de fazer ciência
transgressor, mobilizante e diria até revolucionário.
Inicialmente, quando submetido à seleção da pós-graduação ainda em 2018, o projeto
desta pesquisa era intitulado “Vitrine da autoestima: a construção ideológica de um estereótipo
de beleza e o distúrbio de imagem na era do Instagram”. Ainda naquele momento, havia
proposto utilizar a fenomenologia para apreender os objetivos da pesquisa. Entretanto, após ter
contato com as propostas foucaultianas, percebi que elas seriam mais adequadas ao estudo
proposto, por se tratar de uma abordagem que traz a noção do sujeito e da constituição da
subjetividade.
Após uma série de discussões e questionamentos, a “vitrine da autoestima” tornou-se a
“vitrine da beleza” e, por fim, “a vitrine do Eu”, ao compreender que os estereótipos e as
características do belo estão intrinsecamente relacionados à escrita de si e às questões que
91
envolvem a subjetividade. Achei necessário também incluir o discurso no título, visto que este
passou a ocupar uma posição-chave dentro da pesquisa.
Do mesmo modo, aconteceram ainda algumas mudanças no que diz respeito à
delimitação do tema. Anteriormente, havia proposto compreender a repercussão que a
propagação de estereótipos de beleza dentro da plataforma do Instagram causaria nas mulheres,
dando ênfase aos distúrbios de imagem, como o TDC (Transtorno Dismórfico Corporal). Essa
percepção foi retirada de foco após entender que abarcaria um campo do qual não tenho o
domínio teórico e o respaldo necessário para adentrar nessa questão de maneira aprofundada,
tal qual deveria ser.
Por fim, defini que utilizaria das ferramentas arqueológicas e genealógicas como
operadores metodológicos para apreender o corpus estudado aqui. O método
arqueogenealógico foi escolhido por compreender que possibilita condições de problematizar
e perceber o objeto — que é fluido e abstrato —, mais amplamente abarcando a linguagem, os
discursos e os enunciados que estão nas penumbras, mas que fazem parte da constituição da
subjetividade feminina no Instagram. Penso também que os conceitos de enunciado e discurso
presentes em Foucault permitem explicar as múltiplas formas de discursividades
contemporâneas. Ainda, analisar a relação intrínseca entre o saber, o poder e a construção de
subjetividades nos mais diversos ambientes, por meio da materialidade, incluindo a digital,
universo da minha pesquisa.
Foucault (2005, p. 4) nos fala que, com suas postulações, oferece “pistas de pesquisa,
esquemas, pontilhados, instrumentos”. Com isso, cada um deve fazer o que bem entende.
Diante disso, aproprio-me dos instrumentos da arqueogenealogia e da análise do discurso por
ele deixados, assumindo os riscos dessa escolha — que é, também, uma escolha política —
para compreender a construção discursiva dos estereótipos de beleza feminina no Instagram.
Foucault (2020) revela que na arqueologia as relações discursivas estão no limite do
discurso. Essas relações, portanto, não se caracterizam como a língua ou os códigos utilizados
pelo discurso, tampouco as circunstâncias em que ele se desenvolve, mas sim o discurso como
prática. A arqueologia quer justamente revelar a historicidade do discurso, a camada da história
por trás do acontecimento que possibilitou a emergência do discurso. Ela não se esgota no
próprio discurso, não se limita ao acontecimento discursivo; a arqueologia permite a busca do
que está além do discurso e a compreensão das condições históricas que possibilitaram o
discurso em questão emergir e os enunciados aparecerem.
Já a genealogia tem como preocupação primeira o a priori histórico e as relações de
poder que permeiam o discurso. De acordo com Veiga-Neto (2007, p. 59), “pode-se entender
92
a genealogia como um conjunto de procedimentos úteis não só para conhecer o passado, como
também, e muitas vezes principalmente, para nos rebelarmos contra o presente”. Por
compreender meu objeto de pesquisa deslizando entre a arqueologia e a genealogia, o método
que o cinge é a arqueogenealogia.
93
Com relação à influência da plataforma, a pesquisa mostrou que 61,5% das mulheres
entrevistadas declararam que o conteúdo que consomem no Instagram influencia na sua vida
fora das redes; 63,3% garantem que o Instagram interfere na forma como elas se percebem
fisicamente; 53,4% seguem contas que servem como inspiração de padrão físico; e 47,3%
comparam a sua aparência com a de mulheres que seguem na mídia digital. Além disso, 40,2%
admitem, também, que utilizam filtros e/ou corrigem as suas fotos antes de publicá-las. Sobre
as características físicas femininas, as mais mencionadas são: mulheres brancas (89%), cabelos
lisos (82%), jovens (75,5%), sensuais (67,2%), felizes (68,2%), corpo sarado/malhado
(69,5%), magras (62,8%) e corpo liso — sem marcas, estrias, celulites etc. — (68,7%).
Conforme tenho argumentado ao longo deste texto, a beleza feminina tem se afirmado
ao longo do tempo por práticas que a configuram como um pódio desejado por muitas, mas
que é alcançado por poucas. Em uma sociedade em que a exibição faz parte da cultura e o uso
das redes sociais integra a rotina, o corpo é coberto pela luz dos holofotes. E, ocupando o centro
do palco, ele é cultuado, modelado e exibido. O corpo, na contemporaneidade, tornou-se o mais
belo objeto de consumo e exibição (PAIM; STREY, 2004).
Alvo das relações de saber-poder, o corpo é marcado e discursivizado por práticas,
especialmente as midiáticas, que o constitui e o indica como belo, afinal, “são, de fato, as
representações nas mídias e publicidade que têm o mais profundo efeito sobre as experiências
do corpo” (SANTAELLA, 2018, p. 126). Entretanto, conforme comenta Gregolin (2007, p.
16), “o que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao
leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta”.
E são essas interpretações que geram a produção de sentido acerca do corpo e do corpo
feminino belo.
Para se apoderar do status de corpo belo, é necessário reter no corpo certas
características que, apesar de serem inatas a muitas pessoas, são consideradas necessárias para
compor o arsenal do belo. Quando falamos acerca do corpo belo feminino, essas qualidades
apresentam-se não como uma escolha, mas como uma exigência social, e os olhares e
cobranças direcionados a esses corpos são ainda mais impiedosos. É claro que, ao dizer isso,
não desconsidero os discursos contra-hegemônicos, muito menos tenho a pretensão de
generalizar a postura feminina. Existe, sim, uma parcela de mulheres que se coloca em
contraposição a sujeição dessas características de belo, seja de forma consciente ou não. Como
assegura Foucault (2014b), onde há poder, há também resistência. E as imposições sociais das
características de belo feminino se configuram como uma forma de poder, tendo em vista que
visam à disciplinarização dos corpos e dos comportamentos das mulheres.
94
Mas, afinal, quais são essas características e até onde uma mulher deve ir para alcançá-
las? Em janeiro de 2021, a influenciadora digital Liliane Amorim, de 26 anos, morreu por causa
de complicações de uma lipoaspiração, cirurgia plástica para remoção de gordura e modelagem
do corpo (Figura 14). Assim como Liliane, inúmeras mulheres se submetem a procedimentos
estéticos, frequentemente invasivos, para alcançar padrões de beleza que, muitas vezes, são
inalcançáveis. A pressão estética que recai sobre o corpo feminino e fomenta a busca incessante
pelos ideais estéticos nem sempre tem um final feliz.
95
ser apenas mais um post numa rede social, na qual são realizadas, pelo menos, cem milhões de
postagem diariamente.
O meu interesse está exatamente em compreender os enunciados que emergiram em
cada postagem escolhida para análise, o que possibilitou esse enunciado vir à tona. Por que ele
e não inúmeros outros que poderiam ter emergido? Quais as condições que tornam possível seu
aparecimento em detrimento de inúmeros outros que poderiam estar ali, ocupando aquele
espaço enunciativo? Logo, a partir desses questionamentos, a seguir tentarei arrematar a grande
questão que move esta dissertação: analisar a construção discursiva dos estereótipos de beleza
feminina no Instagram.
96
organizando, e reorganizando, por vezes até entrando em convergência, sob o ângulo das
instituições, das práticas e das significações comuns a toda uma época.
O corpo que posa em busca do sol (Figura 15) se torna evidente e traz uma reflexão
acerca da matéria como mercadoria e do corpo como objeto. É um corpo meticulosamente
posado e iluminado, afirmando na sua postura e reforçando na legenda: “era sol que me
faltava”. É um corpo que se livrou das amarras dos séculos, do recato e das vestimentas
compostas e, agora, posa livre. Mas livre de quê? Embora tenha se desprendido de certos tabus
que regulavam as práticas do feminino e de ser mulher, prendeu-se a novas correntes, e “o
decoro, que antes parecia se limitar à não exposição do corpo nu, se concentra agora na
observância das regras de sua exposição” (GOLDENBERG, 2007, p. 25).
Essas regras de exposição dizem respeito aos atributos de beleza em voga neste instante,
pois, como mencionei anteriormente, as características que definem um corpo como belo
constantemente se alteram.
97
subjetividade da mulher. Assim como essa postagem, inúmeras outras povoam o feed infinito
do Instagram, reforçando e retomando características estéticas que vão se tornando
imperativas: a cada nova publicação, um novo pontinho minúsculo do tecido espesso dos
discursos que constroem os estereótipos. Pouco a pouco, esses pontinhos formam tessituras
incomensuráveis que entrelaçam o social e se tornam determinações predominantes.
Como observa Santaella (2018, p. 129), “os padrões de beleza são tão imperiosamente
obedecidos que, por mais que variem as mulheres fotografadas, nas imagens, todos os corpos
se parecem”. E esse fenômeno é tão contundente que, por vezes, um olhar apressado é capaz
de notar os corpos sendo esculpidos através de cuidados extremos com a alimentação, de
exercícios físicos, remédios, cirurgias plásticas, procedimentos estéticos, produtos e
tratamentos para a pele, entre incontáveis outros.
98
tratarei a seguir dos possíveis trajetos de sentido produzidos pelos discursos de beleza feminina
no Instagram, enquanto prática, história e produto da linguagem.
A prática discursiva midiática enuncia a todo tempo verdades sobre o corpo da mulher:
aponta como ele deve ser, como deve se portar e, principalmente, como deve se mostrar. Essa
verdade midiática é, por via de regra, enunciada pelo próprio corpo da mulher, que tendo
aderido aos discursos de corpo belo, expõe-se. Na vitrine do Instagram, o corpo da bela mulher
posa vislumbrado por centenas, milhares de olhares que o consomem.
Nesse corpo concentra-se o lócus do prazer, da dor, dos sentimentos e da existência. E
sua aparência reflete mais que a vida: representa sucesso, felicidade e saúde, pois, como afirma
Santaella (2018, p. 126), “as imagens do corpo, sua boa forma surge assim como uma espécie
de economia psíquica da autoestima e de reforço do poder pessoal. Aí não há separação,
portanto, entre a configuração externa do corpo e a imagem interna do eu”. No entanto, esse
corpo que tem sua imagem amplamente explorada em nossa sociedade do espetáculo, encontra-
se também esgotado pela busca incessante de um pódio que se distancia a cada minuto.
Em uma era em que a manipulação das imagens é amplamente utilizada, alcançar os
padrões de beleza dominantes se tornou quase impossível, visto que muitas vezes esses corpos
perfeitos só existem no universo on-line, local onde o corpo pode ser moldado a bel prazer,
ajustado, modelado, aumentado, reduzido, ofuscado e valorizado. Assim, a busca pela beleza
e pelos padrões estéticos se transforma em uma caminhada sem fim; quanto mais perto se tenta
chegar nesse local onde o corpo perfeito habita, mais inalcançável ele se encontra.
É fato que bem como tudo tem acontecido a uma velocidade frenética, os padrões de
beleza, de corpo belo, estão também cada vez mais fluidos e vertiginosos. Como nota Castro
(2013, p. 44), “o crescimento da indústria da beleza — envolvendo, entre outros setores de
atividades, cosméticos, cirurgias plásticas e moda — consiste num forte indicativo da
centralidade que o culto ao corpo vem assumindo na cultura contemporânea”. A ciência e a
tecnologia nunca em outro momento estiveram tão avançadas no quesito de aprimoramento do
corpo. São inúmeras as técnicas lançadas todos os dias para modelar, cultuar e esculpir esse
corpo, a vitrine do Eu.
O estereótipo, em sua própria definição, é um discurso autoritário e isso pode ser visto
a partir das imagens que são utilizadas para estereotipar, para rotular. Ele institui padrões de
beleza globalizados, classifica, rotula, segrega, controla e exclui. Há aqui uma ligação tênue
com Foucault (2014b), quando o autor discorre sobre a vigilância, a exclusão e o controle. E a
questão que gira em torno da sociedade do controle está exatamente no fato de esse controle
ser interiorizado pelos indivíduos de forma democrática, como bem nota Gregolin (2007).
99
Deste modo, o poder do controle é exercido pelas redes de informação e pelos sistemas que
monitoram as atividades do corpo.
Os estereótipos são amarras invisíveis que circundam o corpo, sendo capazes de cingi-
lo sutilmente em movimentos quase invisíveis, apesar de incisivos. E esses movimentos dos
estereótipos estão embutidos no social, nas mais diversas instâncias, compondo as mais
diversas referências discursivas. A mídia é apenas mais uma das instâncias em que esses
estereótipos estão alocados. Entretanto, conforme foi discutido anteriormente, ela é a mais
perversa das influências, tanto pelo alcance que possui quanto pelo vasto universo que tem
alcançado diariamente. Isso ocorre especialmente após o fenômeno global da internet, que
mudou drasticamente os modos de vida, os modos de ser e os modos de existir.
100
5 NA VITRINE: POSSÍVEIS OLHARES SOBRE O CORPO BELO FEMININO
Michel Foucault
É fato que a parte predominante das publicações feitas no Instagram retomam discursos
que trazem referências sobre o corpo belo enquanto magro, jovem, rígido e útil. Seria então
este o corpo belo: disciplinado, esculpido e desejado. Esses discursos incitam — ainda que de
forma sutil, conforme mencionei anteriormente — modelos de estereótipos a serem seguidos,
especialmente pelas mulheres que, como vimos, compõem a porcentagem predominante de
contas na plataforma. Portanto, é considerado belo o corpo da mulher que carrega em si
sentidos de beleza que perpassam o imaginário, a estética, os estereótipos e o que dá prazer.
O corpo belo da mulher no Instagram é um corpo que baila sobre o feed infinito, sempre
bem portado, posicionado e alinhado. É um corpo que busca olhares e likes. É o corpo
expressão dos estereótipos de beleza que, mesmo que não carregue em si todas as
características de belo desejadas no momento, exterioriza feminilidade, beleza, saúde e
sucesso, respondendo ao desejo do outro. Em contrapartida, corpos plurais respondem a esses
discursos hegemônicos de belo no Instagram com postagens de resistência e de existência. À
luz, os corpos marginalizados expõem-se na vitrine dos corpos belos, marcando o local e
proferindo discursos de um grito: “eu também estou aqui, eu também existo, eu também sou
bela”.
Ao pensar com Foucault, compreendo que as relações discursivas se dão no limiar
discursivo. Assim, “essas relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as
circunstâncias que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática (FOUCAULT,
2020, p. 159)”. O discurso é prática, e compreendê-lo nos leva a refletir acerca do ato em sua
existência. Nesse raciocínio, para compreender os discursos acerca da beleza feminina, é
preciso depreender o olhar para o corpo, pois é nele, e através dele, que os processos de
afirmação ou transgressão das normas regulatórias se realizam e se expressam. Os corpos são
marcados social, discursiva, simbólica e materialmente — pelo próprio sujeito e pelos outros.
E esses corpos que existem e resistem, que posam na vitrine do Instagram, merecem nossa
atenção.
101
5.1 CORPO MAGRO X CORPO GORDO
Não é preciso muito para definir quais as características físicas e estéticas são
consideradas belas nos dias atuais, porque a mídia está a todo tempo explorando os corpos
ideais nos mais diversos meios, formatos e plataformas. Como vimos no decorrer deste texto,
a magreza é uma das características de beleza incontestáveis neste momento, que resistiu à
passagem dos anos. O corpo magro entrou em voga a partir dos anos 1920 e, desde então,
manteve-se em alta como o corpo ideal e, como bem notam Vasconcelos, Sudo e Sudo (2004,
p. 74), a magreza “passa a ser representada e glorificada como um sinal externo de sucesso”.
Em nenhuma outra época esse corpo esteve tão em evidência como nos tempos atuais,
seja vestido, seja despido: quando olhamos para o corpo feminino nos dias de hoje, buscamos
nesse corpo a magreza que, para além de um estereótipo de beleza, acumula significados que
perpassam o físico e entram na ordem da moral. Assim, além de a mulher magra ser considerada
uma mulher bela, é também tida como saudável, feminina, cuidadosa e bem-sucedida. A
magreza está na vitrine dos estereótipos, em um local privilegiado e desejado por muitos. Ser
magra, nos dias de hoje, é ser bela. No entanto, ao fazer essa afirmação sistemática, tenho em
mente que ela só faz sentido ao olharmos para os discursos que a precedem e para as condições
históricas que possibilitaram esse enunciado emergir.
Em contrapartida ao corpo magro, o corpo gordo, que em outro momento da história
foi tido como o corpo belo, hoje é marginalizado. Quando refletimos sobre o estatuto do sujeito
gordo na atualidade, geralmente deparamo-nos com um corpo que está à deriva (VIGARELLO,
2012), com um corpo que denuncia a irremediável distância entre o que se deseja e o que (não)
se consegue. É o que Sant’Anna (1995) denominou de “corpo desumanizado”.
O corpo gordo encontra-se à deriva, principalmente por causa dos discursos de
valorização da magreza que alocaram a gordura como um símbolo de falta de disciplina, saúde
e utilidade. Esses discursos pesam sobre o corpo gordo, alocando sobre eles significados
sociais. Assim, o corpo gordo é entendido como um corpo doente, impossibilitado, limitado e
indesejado. Esse corpo é percebido pela sociedade como “deficiente no sentido de não ser
eficiente o suficiente para ser enquadrado nos padrões de normalidade, bem como no que se
refere à esfera do mundo produtivo” (MATOS; ZOBOLI; MEZZAROBA, 2012, n.p).
Nessa época de “lipofobia” (FISCHLER, 1995), em que há obsessão pela magreza e
rejeição à obesidade, os gordos aparecem como seres transgressores, visto que “eles parecem
violar constantemente as regras que governam o comer, o prazer, o trabalho e o esforço, a
vontade e o controle de si” (FISCHLER, 1995, p. 74). Deste modo, o corpo gordo é
102
constantemente atrelado a um imaginário simbólico de um corpo desumanizado, desprovido
de beleza, cuidado e saúde. Sob o crivo desses juízos, os donos de corpos gordos são
objetivados e podem se subjetivar numa dinâmica morosa, culturalmente viabilizada
(VIGARELLO, 2012).
No que diz respeito à relação do corpo gordo com a mídia, o que é percebido é que a
imagem do gordo explorada geralmente está associada a uma pessoa desajustada socialmente,
dona de um vazio que preenche com comida em excesso (VASCONCELOS; SUDO; SUDO,
2004). Vários são os estigmas e preconceitos que esses corpos carregam e que, muitas vezes,
são representados na mídia de forma pejorativa.
O sujeito que apresenta um corpo denominado de gordo está imerso em questões que
envolvem o mal-estar subjetivo, que é posto em oposição aos corpos magros, frequentemente
associados à felicidade, à saúde e à aceitação.
Tendo em vista uma sociedade que valoriza corpos esbeltos, é possível notar um
direcionamento do corpo gordo à exclusão, à marginalização e à discriminação. Entretanto, em
contrapartida a essa imagem do corpo gordo como desajustado socialmente, é possível
encontrar discursos que emergem a partir de locais de resistência. Esses enunciados brotam de
vozes marginalizadas, que utilizam de um espaço predominantemente ocupado pela exibição
de corpos hegemonicamente magros e bem portados para ressignificar os estereótipos e
questionar o “corpo ideal”. Mas ideal para quem?
Analisaremos, a seguir, publicações realizadas no Instagram por perfis que trazem
narrativas de resistência, exibindo a beleza feminina sob uma outra perspectiva, mais diversa e
inclusiva.
103
5.1.1 O que pode o corpo gordo?
Como afirma Veyne (2011), costumamos encarar os discursos através de ideias gerais,
que consideramos adequadas, de maneira que desconhecemos a diversidade e singularidade de
cada um deles. Deste modo, pensamos através de estereótipos, clichês e generalidades, “e é por
isso que os discursos permanecem ‘inconscientes’ para nós, escapam ao nosso olhar” (VEYNE,
2011, p. 24). Mas, se prestarmos atenção e interpretarmos a prática discursiva através das lentes
que temos como ferramentas analíticas, poderemos nos aproximar de uma compreensão do que
supõe os gestos, as palavras, as instituições e os sentidos daquele momento. É claro que, nesse
prisma, a gente consegue pensar no discurso de beleza da mulher que se desloca a partir do
corpo magro. Mas, existem os discursos de resistência… E podemos vê-los a partir desse
mesmo prisma, olhando na direção oposta.
O discurso é um conjunto de práticas reais. Para Veyne (2011, p. 16), o discurso em
Foucault é “a descrição mais precisa, mais concisa de uma formação histórica em sua nudez”.
Ademais, o autor diz que o instrumento de análise foucaultiana é a “[...] prática cotidiana, a
hermenêutica, a elucidação do sentido” (VEYNE, 2011, p. 26)”. Tendo em mente isto, além do
fato de que “[...] Foucault tem por método fundamental compreender da maneira mais precisa
possível o que o autor quis dizer em seu tempo” (VEYNE, 2011, p. 27), olharemos para as
publicações a seguir a partir das lentes disponíveis neste momento.
A análise dos enunciados e das formações discursivas repousa em postulações que nos
leva a crer que nem tudo é sempre dito: “estudamos os enunciados no limite que os separa do
que não está dito, na instância que os faz surgirem à exclusão de todos os outros”
(FOUCAULT, 2019, p. 146).
104
que teve quase 800 mil visualizações, é o discurso de resistência que está contido nela. Em uma
rede social em que os corpos exibidos e explorados estão dentro de um padrão estético que
prioriza a magreza, a branquitude e a ausência de marcas, essa publicação retrata um corpo que
nos grita “estou aqui também, e sou livre para viver”. Livre de amarras, de julgamentos, de
moldes estéticos e dos imperativos de beleza.
105
O corpo é exigido pelas diversas instâncias sociais a se adequar às normas da época e
da cultura em que está inserido. Se pensarmos que, conforme nos diz Veiga-Neto (2007, p. 99),
“aquele que enuncia um discurso é que traz, em si, uma instituição e manifesta, por si, uma
ordem que lhe é anterior e na qual ele está imerso”, veremos que a potência dessa publicação
perpassa, antes de tudo a própria influencer que está na posição de autora, enunciando de um
local de marginalização, em uma plataforma que funciona dentro da lógica de um sistema que
tem como predominância discursos hegemônicos. É um corpo que permanece e, exatamente
por isso, vai de embate ao poder.
Onde cabe o corpo gordo? Ele cabe em uma publicação no Instagram? A postagem a
seguir (Figura 17), realizada pela influenciadora Letticia Munniz no dia 09 de novembro de
2019, teve mais de 27,9 mil curtidas. O perfil da influencer conta com mais de 704 mil
seguidores. O close fotográfico traz um corpo posado e marcado por uma aura de sensualidade.
Esse corpo sexy retratado, que explora mecanismos de atratividade sexual, é o corpo que
percorre na contramão dos padrões de beleza feminino, que enunciam repetidamente que, para
ser sexy, é preciso ser magra.
Figura 17 – Publicação de Letticia Munniz
106
Em apoio à fotografia, a legenda explicita: “nadando aqui rapidão enquanto espero a
@whbrasil e @boaforma e todas as revistas chamarem mulheres com corpos reais pra serem
capa”. As menções realizadas às revistas Women's Health Brasil e Boa Forma — que têm
como escopo temático o corpo magro, jovem e esbelto e a supervalorização da disciplina e do
sacrifício — demonstram rejeição à forma editorial com que essas publicações se posicionam.
Além disso, a postagem faz parte do comportamento que conduz à narrativa imagética criada
pelo perfil em direção contrária aos discursos hegemônicos de corpo belo feminino vistos na
plataforma.
Essa publicação traz, em suas entrelinhas, enunciados que fazem referências aos
inúmeros discursos que enquadram o corpo gordo como um corpo desleixado, sem
sensualidade, doente e marginalizado. A voz irônica que menciona as revistas produz efeitos
de sentido que retomam enunciados históricos que têm por tradição expor em suas capas
belezas femininas em concordância com os estereótipos de belo. E essa tradição se perpetua na
história e segue sendo perpetuada com regularidade nas redes sociais e nos perfis do Instagram
dessas mesmas revistas, que, num movimento de convergência, migraram total ou parcialmente
para esses meios, mantendo seus escopos editoriais, conforme afirmam Di Lauro e Diógenes
(2021).
Publicações como essas nos colocam em confronto com os estereótipos de corpo belo
feminino que nos são imperativamente expostos todos os dias, nas mais diversas instâncias.
Como afirma Gregolin (2007, p. 17), “como os sujeitos são sociais e os sentidos são históricos,
os discursos se confrontam, se digladiam, envolvem-se em batalhas, expressando as lutas em
torno de dispositivos identitários”. Os discursos, presentes nessas postagens, criam narrativas
sobre o corpo gordo através de uma perspectiva outra, em oposição ao que vemos diariamente
nos diversos cenários midiáticos. A enunciação, assim, vai de encontro aos discursos
hegemônicos que dizem às mulheres que o corpo perfeito é o corpo magro, esguio e esbelto,
traçando novas perspectivas acerca do corpo da mulher real, com imperfeições, tamanhos
diferentes e marcas desiguais.
São inúmeros: as clínicas de estética, as revistas de saúde, de beleza, do nu; os discursos
midiáticos, as constituições e produções de sentidos socioculturais, as artes plásticas, a música
etc., que moldam os sentidos, os corpos e os atos, estão espalhados em redes que constituem
quase tudo que temos contato hoje. O Instagram, meio no qual inúmeros discursos definem
estereótipos, é sustentado por diversos dispositivos, produtores de discursos, que criam lógicas
107
a serem seguidas dentro da plataforma. Entretanto, embora essa lógica seja criada dentro da
plataforma, ela migra para o social a partir do momento em que as pessoas que estão ali,
conectadas no virtual, são as mesmas pessoas que compõem o social. Essa lógica que delineei
aqui diz respeito aos estereótipos de beleza nos quais as publicações feitas na plataforma devem
se enquadrar, aos discursos que devem transmitir e às narrativas que devem ser criadas. A
dinâmica do Instagram torna perceptível aos próprios usuários da rede que as fotos publicadas
em outras redes sociais — como o Twitter ou o Facebook — não é são as mesmas fotos que
devem ser postadas no Instagram. Essa plataforma funciona com uma dinâmica de uma vitrine
e, como já mencionei anteriormente, em uma vitrine sempre se expõe o mais belo
objeto/produto, sendo este bem posado, bem iluminado e bem nítido.
A grande questão, e também a questão que nos limita, em certo sentido, é que só
podemos olhar para os discursos através das lentes que o nosso tempo permite, pois, como nos
diz Veyne (2011, p. 32), “não se podendo pensar qualquer coisa em um momento, só pensamos
dentro das fronteiras do discurso do momento”. Será que vai ter algum dia, ou voltar a ter, um
discurso hegemônico que diga que o corpo bonito é o corpo gordo? É difícil pensar além dos
limites que a nossa época nos permite, além das fronteiras discursivas estabelecidas neste
momento. Questões como essa ficam em suspenso e só podem ser respondidas ao longo dos
anos, através da história que ainda será tecida.
108
apenas uma versão da velhice estereotipada, bem posada, saudável, feliz e, geralmente, branca,
torna-se evidente.
O corpo velho é tido como frágil e o corpo forte como aquele que está em moda, não
apenas pela sua força produtiva, mas também pela sua irredutibilidade, pelas suas
possibilidades de transformação, pelo seu vigor e pelo seu tempo de vida. Goldenberg (2007,
p. 29) nos diz que “sob a moral da ‘boa forma’, um corpo trabalhado, cuidado, sem marcas
indesejáveis (rugas, estrias, celulites, manchas) e sem excessos (gordura, flacidez) é o único
que, mesmo sem roupas, está decentemente vestido”.
Muito tem se falado nos últimos anos sobre a longevidade e o aumento da expectativa
de vida mundial que quase dobrou na metade da última década. Os avanços da ciência e da
tecnologia percorrem em direção ao prolongamento da vida e à receita tão esperada da eterna
juventude. A indústria farmacêutica, como mencionei anteriormente, não para de crescer e
investir em produtos e serviços que visam à manutenção e ao prolongamento da juventude e da
vida, com investimentos bilionários nesse setor.
Pode parecer contraditório, portanto, que em um cenário em que a pirâmide etária
mundial está se afunilando e os idosos estão em maior número, esse corpo velho siga sendo
marginalizado. Como reflete Sibilia (2012, p. 88), “não é fácil ser um corpo velho hoje em dia,
por mais paradoxal que isso soe numa época que ampliou o direito à velhice de forma inédita
e desativou quase todos os tabus que constrangiam as realizações corporais.” E por falar nisso,
“velho” passou a constar em uma aura negativa, num rol das palavras ofensivas que devem ser
evitadas ou atenuadas por eufemismos, afinal, ninguém quer ficar velho: a velhice chega
acompanhada de marcas, rugas, cansaço, doença, fraqueza e inutilidade.
O catálogo de possibilidades de produtos e serviços para a manutenção da jovialidade
se expande a cada dia, mas a responsabilidade pela manutenção da juventude recai no colo de
cada indivíduo. Cada um é responsável por manter-se jovem em uma sociedade que enuncia
repetidamente que o fardo de um corpo na velhice é pesado demais para se carregar.
Ser jovem está no cerne da preocupação das mulheres brasileiras. Como afirma Sibilia
(2012, p. 85), “não é fácil ser velho no mundo contemporâneo — ser velha, então, pior ainda!”.
A velhice, que já ocupou um espaço virtuoso, hoje encontra-se escanteada pelos discursos que
ditam que ser belo é ter uma aparência jovem, especialmente no caso das mulheres. Envelhecer
109
tornou-se um crime moral, afinal, como em um momento em que há tantas possibilidades
estéticas para cuidar do corpo, alguém se deixa ter as marcas do tempo?
Os discursos que enunciam a juventude, geralmente, estão ligados aos discursos da
felicidade, saúde, estética e bem-estar, entre outros. É impossível olhar para um discurso
isoladamente, visto que ele é tecido em uma rede discursiva e, por isso, está sempre ligado a
outros discursos em uma relação de codependência. Todo discurso tem suas margens povoadas
por outros inúmeros discursos.
Veyne nos lembra (2011, p. 21) que “o discurso é aquela parte invisível, aquele
pensamento impensado onde se singulariza cada acontecimento da história”. Cada publicação
feita no Instagram é parte da rede discursiva da história. E, ao despender o olhar a cada uma
dessas publicações, podemos ter três certezas: a primeira é que o enunciado de cada post surgiu
da exclusão de inúmeros outros enunciados, consequentemente posts, que poderiam estar ali,
povoando o feed infinito do Instagram; a segunda é que toda e qualquer publicação realizada
no Instagram é feita seguindo as lógicas da plataforma e as regras do jogo de relações externas
com a história, o saber e o poder; a terceira é que todo post produz uma espessura material que
registra os enunciados no espaço do Instagram.
110
Na vitrine do Instagram, o corpo velho é minoria. Na rede social em que predomina o
jovem, viril e energético, o corpo idoso não tem muito espaço para se exibir, não apenas pelas
inúmeras questões que envolvem o uso da tecnologia pelos mais velhos, mas principalmente
pelos inúmeros discursos de interdição que ditam normas de adequação para a exposição do
corpo. Nessas normas, a velhice é desprezada. Vejamos a publicação a seguir.
111
Nesse post, é possível verificar o discurso retomando outros discursos. É fato que há
uma série de discursos que precedem essa publicação; e isso fica claro na própria imagem
escolhida para ser reproduzida. Há vários discursos que antecedem essa publicação e,
principalmente, enunciados taxativos que dizem que o corpo belo é o corpo jovem.
Na sociedade da exposição, o corpo precisa ser apresentado para existir, afinal, se você
não está no universo on-line, você não existe. Para Sibilia (2012, p. 97), “[...] nesta ‘sociedade
do espetáculo’ que insta a obter celebridade midiática para poder ‘ser alguém’, e que avalia
quem é cada um pelo que se vê em sua superfície corporal e em sua atuação puramente visível,
a velhice é um direito negado”. Quantos são os corpos idosos que não ocupam esse espaço? A
velhice cabe no Instagram? E no discurso midiático?
Na legenda da publicação, há ainda um reforço descritivo da imagem. Diz Dona Dirce:
“meu corpo não é mais o mesmo de quando eu tinha 18 anos e TÁ TUDO BEM! Eu amo ele
do mesmo jeitinho, as vezes acho que até mais agora do que antes. É um corpo que me faz
sentir viva, me amar e principalmente me sentir livre”. Apesar de não explicitar os estereótipos
de beleza, eles estão na margem, sendo retomados e atualizados. Se, nos diz Foucault (2014a,
p. 37) que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se
não for, de início, qualificado para fazê-lo”, pensemos: quem enuncia esse discurso, enuncia
de onde? De um local marginalizado, por certo. Enuncia para ir de encontro aos discursos
imperativos de beleza, que dizem que apenas os corpos belos têm o direito de se expor. E de
quem são esses corpos belos que podem se expor? Nesse cenário, são aqueles das jovens, que
carregam em seus corpos poucas marcas do tempo vivido, que não esbanjam excessos de pele
e gordura, flacidez, varizes, manchas e, menos ainda, cabelos brancos. Os cabelos brancos
evidenciam aquilo que deve ficar escondido. Os cabelos brancos expõem de longe a mais
absurda das características: a velhice.
A rede de discurso que dita o corpo jovem como belo é tão grande e naturalizada por
nós, que raras são as vezes que nos questionamos por que os corpos idosos são marginalizados,
afinal, eles raramente estão lá para serem notados e lembrados. Essa rede de enunciados é
produzida em vários lugares, enunciada por várias vozes, que acaba se tornando algo natural.
Percebemos, nessa postagem específica, uma dispersão do enunciado de corpo belo jovem, que
fica escancarada pela comparação evidente feita do corpo jovem, belo, magro e sarado em
oposição ao corpo velho, flácido e marcado. Onde vemos esse corpo velho? Principalmente em
publicidades. Mas o corpo que ocupa esse local enunciativo não é o corpo velho qualquer, mas,
como mencionei anteriormente, é o corpo velho tratado, higienizado, que retrata poucas rugas,
poucas marcas, vigor, saúde e felicidade. Num contexto em que os diversos meios de
112
comunicação enunciam o corpo idoso estereotipado, enunciando que “envelhecer é normal,
envelhecer bem é opcional” e que “você pode atenuar as marcas do tempo”, essa dispersão
emergida a partir do discurso de Dona Dirce é extremamente necessária por nos fazer perceber,
e questionar, os padrões que passam por nós diariamente, em diversos momentos, e que são
tidos como regra.
A regularidade dos enunciados nos diz que ser velho não está na moda, pelo contrário.
E para provar isso estão aí os incontáveis cremes milagrosos e procedimentos estéticos que têm
o objetivo de “[...] mascarar os estragos do tempo nas superfícies visíveis dos pobres corpos
vivos” (SIBILIA, 2012, p. 97). As marcas do passar dos anos devem ser contidas a todo custo
e essa responsabilidade é única e exclusiva de cada um. Vejamos, a seguir, a publicação da
@carlisealmeida.
113
A publicação anterior, realizada por Carlise Almeida, que tem pouco mais de 30 mil
seguidores em seu perfil, retrata mais um momento cotidiano compartilhado no Instagram. Em
um close, podemos ver de perto as marcas que evidenciam na pele da influencer o passar do
tempo. A legenda ancora o enunciado retido na fotografia, que revela no espaço das redes a
velhice:
Uma foto séria, com luz natural e sem filtro que evidencia a passagem do tempo nas
linhas no meu rosto. Ilusão minha, que com 56 anos não teria marcas na testa,
cabelos brancos, pés de galinha, vinco na gabela, pescoço flácido, bochechas caídas,
lábios diminuídos, “bigode chinês” e o temido “código de barras”. Isso tá longe de
ser uma queixa, é uma constatação que precisa ser normalizada e aceita por nós
mulheres e pela sociedade que cobra da gente uma juventude eterna. Vamos gostar
da gente assim porque também há beleza nas marcas da passagem do tempo!
Os discursos de estereótipos nos cercam e nos coagem o tempo todo no Instagram, seja
em nosso feed, seja na aba ‘Explorar’. Ele está lá, presente nas práticas discursivas, nas
imagens, nas legendas, nos likes, nos comentários que expressam o modo como pensamos e a
forma como nos comportamos. Como nota Novaes (2013, p. 86), “é belo o corpo cirúrgico,
esculpido, fabricado e produzido”. E nesse corpo, não há espaço para “as rugas, a flacidez
muscular e a queda de cabelo, que irremediavelmente acompanham e indiciam o
envelhecimento” (SANTAELLA, 2018, p. 127). A postagem de Carlise Almeida vai de embate
ao poder e às relações intrínsecas a ele. É um discurso de resistência que ecoa na produção de
uma narrativa do Eu, no perfil do Instagram da influencer para, pelo menos, duas mil pessoas
que curtiram essa publicação.
Sibilia (2018) nos fala sobre o software Baselight, amplamente utilizado no cinema e
na televisão com o objetivo de ‘polir’ e tratar as imagens em movimento para ampliar sua
qualidade visual. Esse software é um recurso capaz de uniformizar a pele das atrizes, deixando
a pele de atrizes de mais de cinquenta anos “[...] tão lisa que pareciam recém-saídas de uma
cirurgia estética” (SIBILIA, 2018, p. 98). Esse foi só um exemplo das inúmeras técnicas que
intervêm na mídia sobre a imagem da mulher na velhice para atenuar o passar do tempo.
É fato que todas essas práticas retomam os enunciados que estão interligados e fazem
parte da rede de discursos de corpo belo feminino. Essa rede é infindável e é por isso que é
naturalizada, porque desde criança entramos nessa ciranda discursiva e dançamos conforme os
sons que são tocados. E esses sons enunciam o tempo todo verdades de beleza sobre o corpo
da mulher que não incluem as marcas da velhice.
114
O problema se agrava ao constatar que, cada vez mais, corpo — e tão somente corpo
— é tudo o que somos. Em consequência dessa transmutação, não é “apenas a carne”
que se deixa corromper, por exemplo, como rezariam outras narrativas. É cada um de
nós, por inteiro, o que “piora” irremediavelmente ao envelhecer: tudo o que nos
constitui perde valor quando nos tornarmos velhos, pois nesse cruel processo ocorre
uma gradativa descapitalização de nossas púberes virtudes (SIBILIA, 2012, p. 93).
Em meio a tantos enunciados que reiteram a beleza na aparência jovem, a velhice ocupa
um local de rejeição, sendo temida. Evitar as marcas do tempo na pele é o objetivo de centenas
de mulheres que se escondem atrás de filtros, de efeitos, de manipulações para se expor, isso
quando decidem ocupar a vitrine do Instagram. Enunciados que emergem dos locais de
resistência como os de Dona Dirce e Carlise Almeida são exceção, mas são também um convite
à reflexão e à análise da ordem do discurso da beleza feminina, que diz como as mulheres
devem ser, como devem se parecer e se portar, como devem estar para entrar no jogo da
visibilidade nessa sociedade do espetáculo que, de acordo com Debord (1997, p. 14), “constitui
o modelo atual de vida dominante na sociedade”. E note que quando o autor nos disse isso, as
redes sociais nem existiam ainda.
Quem foi que disse que a mulher bela é a mulher jovem? Essas características que hoje
temos como características de beleza da mulher são parte de uma construção histórica que é
reforçada pelas práticas discursivas, responsáveis pela perpetuação desse discurso. Esses
discursos estão naturalizados como verdades, estão sempre circulando, se atualizando, se
conservando e dizendo às mulheres como elas devem ser belas e controlando suas práticas.
De acordo com Han (2019, p. 7), “o liso é a marca do presente”. Para o autor, achamos
o liso belo, pois nele se reflete um ‘imperativo estético universal’ e, nessa perspectiva, o liso
traz em si uma positividade, marcas de um tempo atual; “o liso não quebra. Também não opõe
resistência. Ele exige likes (HAN, 2019, p. 7)”. Segundo Han (2019), a comunicação dos
aparatos digitais também opera de modo alisado, pois nela o que se troca são, sobretudo,
positividades (likes e sharing). Mas quando pensamos no corpo, por que o liso é exigência de
beleza?
Entendendo o liso sob a luz de Han (2019), o que encontramos está ancorado em um
discurso de positividade, que o impele com uma aragem positiva. O liso chama atenção pela
sua suposta perfeição; sem sulcos, estrias ou marcas que distorcem essa superfície lisa. Mas,
115
ao voltarmos o nosso olhar para o corpo, como se pode exigir essa suposta integridade da pele
e dos seus vasos capilares que a tornam uma superfície cheia de vida?
O corpo marcado é abraçado por uma brisa negativa, que o tira de circulação no campo
do ‘perfeito’. Atributos que o assinalam, tal qual rugas, varizes, manchas, pelos, celulites e
estrias, são riscados da lista de características que constam no corpo belo feminino, pois
revelam uma falta de cuidado com o corpo e com a própria saúde, visto que os discursos de
beleza têm o respaldo dos discursos da saúde.
A imagem do corpo belo como um corpo liso surge da obsessão pela positividade. Para
Santaella (2018, p. 130), “a imagem dos corpos imaculadamente lisos e sem defeitos interpela-
nos pelos quatro cantos: nas capas de revistas, nos outdoors, nos programas televisivos e nas
publicidades que os acompanham, nas telas de cinema [...]”; acrescento no Instagram, com os
filtros e efeitos que embaçam, escondem e retiram qualquer mancha.]
As manchas são tidas como defeitos. E ninguém quer ter defeitos, especialmente
estéticos. Os corpos manchados ficam às sombras, pois não estão no direito de se expor na
vitrine gloriosa. Esse direito é dos corpos perfeitos, delineadamente perfeitos, que orbitam nas
luzes suntuosas da visibilidade.
Como afirma Cintra (2020, p. 37), “[...] o fato é que o Instagram acabou por se tornar
o grande centralizador de referências estéticas, sobretudo no que concerne ao corpo humano”.
Os filtros dessa rede social são um bom exemplo de como o liso tem, cada vez mais, tomado
espaço nas configurações de beleza ideal. Grande parte desses filtros, disponibilizados na
ferramenta dos stories, possui um efeito blur que uniformiza a pele escondendo marcas,
espinhas, olheiras, rugas e outras formas de expressão, sendo capaz de mudar
significativamente a expressão do usuário, eliminando qualquer saliência da pele, sobretudo do
rosto.
116
Figura 20 – Publicação da influencer @eusuellenneves
117
que tentam romper com essa regularidade enunciativa e incentivos à prática de aceitação dos
mais diversos tipos de cabelo e da transição capilar.
Uma pele lisa e perfeita é o sonho de muitas mulheres. Embora, muitas vezes, nem
mesmo os bebês tenham uma pele assim, essa é a pele em voga no estereótipo de beleza da
mulher. Uma pele lisa, macia e sedosa. Sem marcas, sem imperfeições, sem traços acentuados.
Um corpo liso é desejado, pois o liso enuncia, também, uma característica de feminilidade. Há
diversas opções de tratamentos e procedimentos para a retirada integral dos pelos, propiciando
uma pele lisa e polida.
O Instagram é um lugar para ser livre? Se cada um tem o direito de publicar o que bem
entende a um clique de suas mãos, de narrar sua vida e de espetacularizar o seu corpo da forma
que bem entende, a resposta poderia ser ingenuamente positiva. Entretanto, o Instagram é só
mais um dos aquários decifrados por Veyne (2011, p. 32), que nos lembra da nossa condição:
“estamos sempre presos num aquário de cujas paredes nem nos apercebemos”. A censura das
manchas, marcas ou qualquer sinal que rompa com a estética do imperativo liso tem raízes
mais profundas do que imaginamos. Todos os pensamentos pré-concebidos que temos só são
possíveis porque foram, de alguma forma, discursivizados em nós.
O que um corpo precisa ter para ser livre? Ou melhor, o que um corpo não pode ter para
ser livre? A liberdade do corpo da mulher se encontra no tal pódio da beleza? Será que ao
encontrar o topo do pódio, a liberdade a alcançará? Indubitavelmente, digo que não. Esse pódio
do corpo belo ideal, tão sonhado e desejado, não existe. A perfeição não pode ser alcançada,
porque ela não existe. Trata-se, então, de uma corrida infinita (SANT’ANNA, 2001).
Todas as características que emergiram a partir das inúmeras análises desprendidas até
aqui fazem parte de um olhar de dentro do aquário ao qual todos nós estamos presos: o aquário
social. Como lembra Veyne (2011, p. 50), “os discursos são as lentes através das quais a cada
época os homens perceberam todas as coisas, pensaram e agiram”. E com essas lentes do tempo
presente, tracei as características que emergem sobre o corpo belo da mulher de hoje. A
definição da beleza feminina que temos na época atual, neste momento, encarna um corpo
magro, rígido, liso, torneado e jovem, com ausência de excessos, manchas, marcas, flacidez ou
qualquer outra característica que revele o passar do tempo, a vida que pulsa, o corpo que sangra.
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Todos os enunciados e discursos analisados aqui fazem parte da mesma rede de beleza
da mulher. E todos eles estão entrelaçados e, de uma forma ou de outra, sempre se remetem, se
atualizam, se opõem ou concordam entre si. Essa rede é tamanha e é exatamente por isso que
esses enunciados estão por todo canto. Ainda que no Instagram consigamos identificar
enunciados que tentem desconstruir esses discursos que ditam os estereótipos do corpo belo da
mulher, não podemos deixar de considerar que para desconstruir um discurso, precisamos falar
sobre ele e, ao falar sobre ele, permanecemos na rede discursiva da qual ele faz parte. Não há
como ir de encontro ao poder sem retomar esses discursos, sem falar sobre eles.
Toda rede discursiva é construída historicamente, no cotidiano, nas práticas sociais que
produzem sentido. Essas redes sempre retomam um efeito de memória, que conecta um
enunciado a outro e, ao pensar na desconstrução de um discurso, temos que levar isso em conta,
compreendendo que toda e qualquer ruptura na regularidade discursiva só ocorre por meio da
descontinuidade histórica, por meio da descontinuidade do discurso.
Para ir de encontro com o poder e com as condições enunciativas que estão o tempo
todo retomando os discursos predominantes sobre a beleza da mulher, é preciso entrar na ordem
119
discursiva que Foucault (2014a) nos advertiu. Os discursos que constroem os estereótipos de
beleza feminina no Instagram são hegemônicos e expressivos nas redes; compõem parte
predominante das publicações na plataforma. Mas esses enunciados só emergem porque
encontram respaldo e condições para isso, tanto históricos quanto discursivos.
Por trás de cada discurso que emerge no Instagram, há uma espessura histórica os
ancorando e criando possibilidades para o seu aparecimento. E essa afirmação funciona tanto
para os discursos que reforçam os estereótipos de beleza na plataforma quanto para os discursos
que pretendem criar uma descontinuidade discursiva desses padrões. E é por isso que
conseguimos encontrar nesse ambiente, que privilegia em sua lógica o corpo feminino
estereotipado, discursos que trazem inclusão e diversidade das características de corpo belo da
mulher.
Para Santaella (2018, p. 130), é “difícil abdicar da retórica da beleza e da estética
funcional que se refletem na disciplina feroz a que o corpo é submetido”, mas não é impossível.
E é nesse cenário que surgem movimentos como #instagramvsreallife, #bodypositive,
#corpolivre, #projetoafroestima como deslocamentos discursivos dentro do Instagram, que
120
enunciam o corpo belo feminino sob perspectivas outras. Diversas publicações podem ser
notadas na plataforma com discursos que trazem visibilidade aos corpos marginais e invisíveis.
Sabemos que a mídia sempre é, e sempre foi, uma fonte poderosa de disseminação de
discursos de beleza. Em um cenário em que as mídias digitais ganham potência a cada dia, os
discursos de resistência têm uma função de suma importância para a desconstrução dos
estereótipos. Como nos lembra Gregolin (2007, p. 23), “se só houvesse submissão, não haveria
produção de novos sentidos”. E, se é bem verdade que “em suas metamorfoses, ao sabor de
seus fantasmas e dos modelos culturais impostos, o corpo fala de seus medos ou de seu
abandono e de sua entrega aos poderes reguladores” (VASCONCELOS; SUDO; SUDO,
2004), é fato também que esse corpo pode falar sobre suas subjetividades e singularidades,
narrando sua própria história.
São infinitos os enunciados e os discursos que moldam diariamente os estereótipos de
corpo belo feminino. Eles estão por toda parte e chegam até nós de várias formas, incluindo
pelo Instagram. E esses discursos nos afetam, nos moldam, nos constroem e nos limitam,
121
porque nos fazem acreditar que as características que fujam às regularidades não são bem-
vindas. E é aí que mora o perigo. A partir do momento que encaramos os corpos belos
femininos como estereotipados, deixamos de fora uma vasta pluralidade de outros corpos que
também são belos e que existem.
Do outro lado, o corpo que ocupa a vitrine é o corpo da mulher bela. Mulher que tem
características físicas que a tornam um ser único em um universo de padrões. Cada curva, cada
marca, cada pequeno sinal que marcam o corpo são vestígios da vida. Da vida que passa por
ele e o faz pulsar, da vida que o marca e o torna vivo. Dentro de cada corpo, há marcas
profundas de subjetividade, de ser e de existir como mulher. Num cenário em que os corpos
são convocados pelas práticas discursivas à regularidade, resistir é um ato de coragem. É um
ato de bravura ir de encontro ao poder e enunciar “eu também existo e faço parte desse universo
onde reinam os imperativos de beleza”. São nesses momentos de resistência que encontramos
um pouco de ar puro para respirar. Porque, como bem lembra Veyne (2011), estamos dentro
de um aquário. E nem sempre vemos nitidamente pelos vidros desse aquário, quase sempre
temos uma visão turva, na verdade. E nesses breves momentos em que os enunciados
conseguem, de certa forma, romper esses vidros e passar pelas microtrincas feitas, conseguimos
existir, ser e nos encontrar.
Na vitrine, expõe-se um corpo. Um corpo único num universo de corpos vários. E ao
chegarmos perto desse corpo, despido de pudores, regras e roupas, podemos ver pequenos
fragmentos discursivos, talhados como tatuagens invisíveis ao olho nu; pequenos detalhes que
ali foram tecidos no decorrer dos dias. E, ao chegarmos mais próximos a ele, a luz nos ofusca
e ilumina aquele corpo. O corpo de uma mulher. Mas não podemos discernir os seus traços,
nem suas marcas, apesar de ter consciência que aquele corpo, que ora ocupou as margens, agora
ocupa o centro da vitrine, sendo regido pelos regimes de visibilidade do momento. O ano não
sabemos. As características desse corpo também não. Só podemos ver o que as lentes que temos
em mãos nos permitem. E, neste momento, nosso olhar é restrito ao agora. O corpo que estará
na vitrine amanhã só a história poderá nos dizer.
122
6 PALAVRAS FINAIS, POR ORA
Michel Foucault
É sempre arriscado e perigoso pôr um ponto final em qualquer coisa e, por isso, as
conclusões desta pesquisa não são verdades universais; são as palavras finais, por ora. Esse
campo de estudo no qual ousei ingressar é vasto, cheio de possibilidades. É um território do
saber fluido, que segue o ritmo frenético da internet e das mídias digitais. É um local onde os
acontecimentos avançam em um tempo totalmente diferente; as redes sociais têm um tempo
próprio e infinito; não é à toa que o feed nunca acaba, que os stories vão e voltam no looping
infindável em que as atualizações são lançadas diariamente.
É difícil acompanhar qualquer coisa dentro do universo on-line. As conclusões que
chegamos neste momento podem facilmente se reverter em um instante seguinte. Trazer à luz
uma pesquisa no campo da comunicação, que está em diálogo com tantos outros campos do
saber, tem seus desafios, principalmente quando trabalhamos com um objeto de estudo tão
complexo e abstrato como os estereótipos de beleza feminina.
O enfoque dado a esta pesquisa partiu da vontade de compreender e analisar a
construção discursiva dos estereótipos de beleza feminina no Instagram. Para realizar esta
pesquisa, foi preciso afunilar o olhar para determinados corpos, deixando inúmeros outros
corpos e características de fora neste momento (o corpo da mulher deficiente, negra, indígena,
mutilada, deformada, trans e tantos outros). Em um mundo de subjetividades, de corpos
diversos e plurais, seria muita pretensão tentar chegar perto de apreender, de forma integral, a
amplitude desses discursos e corpos. Mas é importante destacar, por fim, que o corpo é plural,
efêmero, diverso e transmutável. Esse corpo é cobrado e testado por diversos investimentos,
que atuam sobre ele na tentativa de moldá-lo e torná-lo útil, e está cercado pelo poder dos
dispositivos que moldam os discursos e produzem efeitos de verdade. Ao final deste estudo,
algumas considerações podem ser feitas. Ao investigar como são produzidos os discursos
acerca do corpo belo na mídia ao longo da história recente, alguns pontos interessantes se
iluminaram.
A beleza é fruto de uma construção histórica que, assim como outros discursos, têm
raízes sociais profundas. É um objeto de estudo volátil, que varia de acordo com a cultura, com
o tempo, com a sociedade e com o olhar que é despendido sobre ele. Ela é também subjetiva,
123
embora nos dias de hoje tenhamos a tendência de padronizar o belo conforme o que recebemos
diariamente das mídias.
É fato que, com o passar dos anos, a influência da mídia alcançou proporções muito
maiores, especialmente com o advento da internet e das redes sociais, e foi nesse cenário que
o corpo belo feminino emergiu e que as exigências sobre esse corpo atingiram status de dever
moral. Claro que sempre existiram estereótipos de beleza, mas nunca em outro momento da
história foram difundidos como são agora. Eles passaram de discursos de generalização para
discursos de exigência e os corpos que não se enquadram nesse local são marginalizados.
A sociedade convoca o corpo a se mostrar para existir; entretanto, para que esse corpo
tenha o direito de orbitar sob as luzes da rede social, é preciso entrar numa ordem discursiva,
tal qual anunciava Foucault (2014a). E a ordem dessa rede diz que para o corpo se mostrar, ele
tem que apresentar características consideradas belas agora, como a magreza, a jovialidade, e
a pele lisa. Essa ordem convoca os corpos a se enquadrarem, mesmo que para isso tenham que
recorrer a poses específicas, luzes, ângulos que favorecem, filtros e edições: vale tudo para
estar dentro dos estereótipos, afinal, o corpo perfeito tem o seu valor. O corpo belo é tido como
um corpo bem-sucedido, de prestígio, um corpo que está no ápice do desejo, da saúde e do
bem-estar. Não se medem esforços para alcançar esse corpo; é por isso que a ciência, a
tecnologia e a indústria da beleza estão a todo tempo oferecendo às mulheres soluções para
alcançar esse pódio de beleza.
O corpo que não se enquadra nos estereótipos é tido como um corpo sem valor, sem
forma. E quando falamos especificamente do corpo feminino, este vem acompanhado de
discursos de desleixo, falta de saúde e fracasso, que desqualificam esse corpo e o direcionam
às margens da sociedade. Assim, torna-se inconcebível, em pleno século XXI, que um corpo
não consiga se adequar às exigências sociais impostas. Sendo assim, quando isso ocorre, esse
copo é marginalizado, desprestigiado, discriminado e rejeitado.
O Instagram é uma vitrine onde os corpos belos são expostos. Numa era de influencers,
de visibilidade exacerbada e de exposição do corpo, as mulheres são o alvo dos discursos
imperativos que criam os estereótipos de belo. Sendo a maior parcela de usuárias do Instagram,
e sabendo também que o poder recai sobre o corpo da mulher de uma forma totalmente
diferente que em outros corpos, percebe-se que os discursos de beleza são uma violência contra
o corpo feminino. A partir desses discursos que emergem a partir de locais hegemônicos que
têm respaldo histórico, mulheres se submetem e submetem seus corpos a práticas que têm como
intuito moldá-los, cultuá-los e enquadrá-los num determinado padrão amplamente disseminado
124
nas redes sociais, especialmente no Instagram, que, como vimos, é uma rede
predominantemente imagética, que convoca seus usuários a se expor e a expor seus corpos.
O formulário aplicado na plataforma do Google Forms teve como objetivo identificar
as práticas e costumes de utilização do Instagram pelas mulheres usuárias dessa rede social,
que compõem o recorte de interesse desta dissertação, e foi determinante para a análise
discursiva realizada posteriormente. Os dados obtidos foram proveitosos para a análise deste
corpus, visto que forneceram informação acerca das mulheres, usuárias do Instagram, por
exemplo: formas de consumo de conteúdo; interesses predominantes; e formas de
reconhecimento da influência que essas mulheres percebem enquanto usuárias da plataforma.
Tudo isso foi essencial para a compreensão de como esses discursos afetam as mulheres e
resultam na construção de estereótipos de corpo feminino.
Quem está autorizado a enunciar os discursos de beleza no Instagram são as mulheres
que reúnem em seu corpo características determinantes de belo. Esses discursos de ideal de
corpo feminino, enunciados na rede social Instagram, afetam a prática de subjetivação das
mulheres. Como vimos, a relação da mulher com o seu corpo teve grandes transformações ao
longo da história e, ao olharmos para a contemporaneidade, vemos que o corpo se tornou um
objeto de representação do Eu, tornou-se a materialização da subjetividade. As mulheres se
subjetivam no Instagram ao se inscreverem na plataforma a partir das publicações que realizam.
Não é qualquer imagem que pode ser publicada no Instagram, mas uma imagem que foi
planejada para que determinada ordem do olhar seja atingida.
Os enunciados de resistência que emergem no Instagram são respostas aos discursos
de beleza que ecoam na rede social. Eles trazem os corpos marginais para a vitrine,
majoritariamente ocupada pelos ‘corpos perfeitos’, colocando-os em cena. Se os corpos são
diversos, suas representações devem ser também. Embora ainda vejamos hoje uma
predominância na exposição dos corpos estereotipados, vemos também um movimento que
ganha propulsão em direção aos sujeitos que não se enquadram nos padrões estéticos.
As considerações feitas não devem ser entendidas como única verdade, até porque,
como nos lembra Veyne (2011, p. 46), “o absoluto não está ao nosso alcance”. Todas as
reflexões tecidas ao decorrer deste texto são fruto de uma análise que recorreu às ferramentas
foucaultianas para lançar um olhar sobre o objeto de pesquisa em questão a partir de uma lente
entre tantas outras possíveis. Essa pesquisa não acaba aqui; há muitos corpos a serem
investigados. Contudo, como faz-se necessário um ponto final, por ora, deixo algumas lacunas,
mais como um ponto de reticência, que podem ser preenchidas em futuras pesquisas.
125
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APÊNDICE
1) Nome
2) Endereço de E-mail
3) Idade
4) Sexo
5) Estado Civil
6) Grau de escolaridade
7) Estado em que reside
1) Você sente que o conteúdo que consome no Instagram influencia na sua vida fora das
redes?
2) Você percebe alguma influência do Instagram na forma como você se percebe
fisicamente?
3) Você costuma utilizar filtros ou corrigir suas fotos antes de publicá-las?
4) Quais das características a seguir (relativas à aparência das mulheres) você encontra
regularmente no feed do seu Instagram?
5) Com base nas contas que você segue, você identifica o reforço (ou criação) de algum
estereótipo de beleza feminino?
6) Você segue contas que servem para você como inspiração de padrão físico?
7) Você compara a sua aparência com a aparência de mulheres que você segue no
Instagram?
8) Quais dos seguintes perfis você conhece e/ou segue?
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