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Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Rio de Janeiro
Maio de 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Rio de Janeiro
Maio de 2022
NELLY BARBOSA DUARTE DOLLIS (Varin Mema)
BANCA EXAMINADORA
Minha tese tem como objetivo entender o que significa, para noke Yôra-
rasῖ (nossa gente marubo), tornar-se parente (o que os nawa-rasῖ, os
‘brancos’, chamam de parentesco), do ponto de vista de uma pesquisadora
nativa: qual o processo de se tornar parente e o que é ser parente no
conjunto de conteúdos que tratam dos nawavo na sociedade yôra-rasῖ. O
termo nawavo tem sido traduzido em trabalhos anteriores de antropólogos
não nativos como ‘seção’ ou ‘clã’. Com auxílio dos estudos antropológicos
que antecederam e baseada em minha própria pesquisa de campo,
descrevo: os processos de origem dos nawavo narrados pelos mais velhos
e pelas mais velhas; os nawavo maiores e os nawavo menores; as formas
de parentesco; os nomes pessoais yôra-rasῖ; as relações entre nomes
pessoais e nawavo, descrevendo como os nawavo trocam nomes pessoais
entre si; como os nomes pessoais se diluem nas misturas de casamentos e
as consequências do esquecimento dos nomes pessoais associados aos
nawavo.
My thesis aims to understand what it means for noke Yôra-rasῖ (our people,
Marubo), to be a relative (it is what the nawa-rasῖ, the ‘white people’, call
relatives), from the point of view of a native researcher: what is the process
of becoming a relative, what is a relative in Yôra-rasῖ social organization
in the scenarios and situations that deal with the nawavo in Yôra-rasῖ
society. The term nawavo has been translated in previous works by non-
native anthropologists as ‘section’ or ‘clan’. With the aid of previous
anthropological studies and based on my field research, I also describe: the
processes of the origins of nawavo, as narrated by older men and older
women; the major nawavo and the minor nawavo; the forms of kinship;
the Yôra-rasῖ personal names; the relation between personal names and
nawavo, clarifying what the nawavo are that exchange names; how the
personal names dissolve in the mix of marriages and the consequences of
forgetting the personal names of the nawavo.
Diagrama 1 - Das relações entre os quatro primeiros nawawo (J.C. Melatti) ..................21
Fotos 1 e 2 - Canoão da FUNAI indo para o rio Ituí e retornando para a cidade de Atalaia
do Norte...........................................................................................................................33
Fotos 3 e 4 - Canoão do irmão mais novo do meu pai, indo para rio Curuçá....................34
Foto antiga 5 - João Tuxaua do lado esquerdo e Kenãpa do lado direito, arquivo Museu
do Índio............................................................................................................................43
Foto 6- kôka (MB) Tama-Saĩpa (foto da autora, visita ao Museu do Índio 2013) .............44
casáveis............................................................................................................................67
casáveis............................................................................................................................68
samaumeira’.....................................................................................................................81
Diagrama 6 - Mistura entre nawavo ego feminino (Varin Mema – Nelly) .....................112
árvore)............................................................................................................................124
japu).........125
samaúma/samaúma).......................................................................................................127
Quadro 18 - Nomes pessoais do txonavõ ane (macaco barrigudo)..................................127
Quadro 26 - Nomes pessoais rane nawavõ ane rasĩro náti (nawavo enfeites)…….....134
Quadro 27 - Nomes pessoais shawavõ ãne rasĩro náti (nawavo arara vermelha)...........135
nomes de MM................................................................................................................139
Quadro 36 - Diferentes caminhos a serem feitos por cada nawavo após a morte............157
LISTAS DE SIGLAS
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16
1. No caminho do mestrado ............................................................................................ 21
2. Eu comopesquisadora..........................................................................................................21
3. No doutorado .............................................................................................................. 24
4. A pesquisa de doutorado ............................................................................................ 26
5. As contribuições das pesquisas antropológicas sobre meu povo e da minha tese ...... 28
6. A realização da pesquisa............................................................................................. 33
7. A relação de parentesco nawavo entre a pesquisadora (marubo) e yoã-shoa-ivo ‘os
narradores’ ...................................................................................................................... 36
CAPÍTULO I
1.1 Nõ neskai weniti, ‘o modo como emergimos’: origem dos nawavo e do parentesco 40
1.2 Aproximação à narração dos nawavo ....................................................................... 66
1.3 Como os nawavo são narrados: origens, formas yoῖni-rasῖ ‘animais’, nomes,
relações ........................................................................................................................... 69
1.4 Dos casamentos ........................................................................................................ 90
CAPÍTULO II
2.1 Nõ aya wenia wetsama, ‘parentes que emergiram conosco’ .................................... 95
CAPÍTULO III
3.1 A origem dos nomes pessoais dos nawavo e o conhecimento onomástico ............ 114
3.2 O cenário narrativo da transmissão dos nomes pessoais ........................................ 117
3.3 Os nomes pessoais na mistura de casamentos ........................................................ 121
3.4 A relação social entre yoῖni-rasῖ ‘animais’ e os Yôra-rasῖ através dos nomes
pessoais ......................................................................................................................... 143
CAPÍTULO IV
4.1 Volta para onde emergimos sem causar a morte da vaká ....................................... 150
4.2 Restrições que fazem parte do conhecimento tradicional ...................................... 155
4.3 Os caminhos da morte dos nawavo ........................................................................ 157
4.4 Como meu txaitxo João Tuxaua contornou as restrições para salvar e multiplicar os
nawavo .......................................................................................................................... 159
CONCLUSÃO............................................................................................................. 175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 180
16
INTRODUÇÃO
Noke yôra-rasῖ é ‘nós gente/corpo’: yôra é matéria completa, com suas maneiras de ser,
surgimento de origens, conhecimentos; rasῖ é morfema plural. É assim que os Marubo se
apresentam. Falar de noke yôra-rasῖ como pesquisadora nativa é entrar na diversidade de
versões das narrativas que contam os surgimentos dos nawavo, como relatam os mais velhos e
mais velhas.
O termo nawavo contém o nome nawa e o sufixo coletivizador -vo. Nawa, singular, é
para os Marubo, ‘um homem ser social’, membro de uma sociedade. Se for mulher, o nome é
nawashavo. Nawavo pode ser entendido como ‘outros homens e outras mulheres’ com os quais
alguém se relaciona dentro de sua sociedade. Nawavo, enfim, é uma unidade internamente
plural da sociedade marubo. Ao longo do texto será usado o termo nawavo, mais apropriado
para os noke yôra-rasῖ, no lugar de termos como ‘clãs’ e ‘seções’ da literatura etnográfica sobre
os Marubo e outros povos pano.
Todos os que estão em relação dependem um do outro inteiramente e se unificam em
um yôra-rasῖ ‘corpo’, constituído, para cada nawavo, de nawavo casaveis e de nawavo não
casaveis.
Nas narrativas dos surgimentos, a formação dos nawavo se inicia com os vari-nawavo
(sol-nawavo), que são chamados de vevo weniyavo ‘os primeiros surgentes’, e com os aya-
weniya wetsama (junto-surgentes parentes). Estes últimos são tama-uavo ‘grande árvore’, isko-
nawavo ‘japu’ e shane-nawavo ‘azulão’, que formam com os vari-nawavo dois pares de
gerações alternadas matrilineares, que regram os casamentos e a transmissão de nomes pessoais.
Nos capítulos 2 e 3, farei uma descrição detalhada desse sistema, que é bastante complexo.
A partir dos quatro nawavo primeiros, surgiram os termos de parentesco que eles usam
entre si:
- as mulheres e os homens vari-nawavo se consideram, entre si, como takevo ‘irmãos’,
e o mesmo acontece com outros nawavo.
- as mulheres vari-nawavo são chamadas de ewavo ‘mães’ pelos homens e mulheres
tama-uavo e, vice-versa, as mulheres tama-uavo são chamadas de ewavo pelos homens e
mulheres vari-nawavo.
- os homens vari-nawavo são chamados de kokavo ‘irmãos da mãe’ pelos homens e
pelas mulheres tama-uavo, e vice-versa.
17
1
A escolha do gênero masculino para nawavo no contexto de um texto em português é tão somente uma constrição
da língua portuguesa, onde a distinção de gênero, nos nomes, é gramatical, o que não acontece numa língua como
o marubo.
2
No decorrer do texto, muitas vezes o leitor vai se deparar com as mesmas palavras com nasalização e sem
nasalização na vogal da última sílaba. Não se trata de um erro: a nasalização da última vogal da palavra indica que
18
nawavo ao qual pertenço e o meu nome pessoal é Mema; para que saibam quem sou eu, me
apresento, assim, dizendo que me chamo Varin Mema. É o que descreve a antropóloga Elena
Welper na sua tese de doutorado (2009: 24):
a mesma se refere a um ente que age sobre o ente referido pela palavra seguinte. Por exemplo: a palavra sol é vari,
mas ela é varĩ (ou varin) na frase ea varῖ koai, ‘o sol me queimou’, ou se eu falar ea Varῖ Mema, ‘eu sou Mema-
Sol (Mema de Sol)’.
3
Vaká (espírito ou alma); adquirir os conhecimentos ancestrais, para meu povo, é de suma importância para
fortalecer a vaká, após a morte.
19
de outros termos e expressões que iremos encontar ao longo da tese e que são centrais para o
entendimento da rede de relações de parentesco:
- nawavo aparari weniyavo (nawavo que surgiram primeiro) ou nawavo primordiais;
- nawavo pretendentes originários, tradução que comprime as expressões vevo weniyavõ panõ
anevo ‘primas cruzadas bilaterais de primeiros surgentes juntos’ e vevo weniyavõ txaitxõ anevo
‘primos cruzados bilaterais de primeiros surgentes juntos’, ou seja, os quatro nawavo surgidos
com seus determinados pares conjugais;
- nawavo pretendentes concorrentes agregados são nawavo casáveis, vevo weniyavõ ratea4
weniyavo ‘os primeiros surgentes de susto’, que pertencem a um conjunto de nawavo, com os
quais é possível o casamento como opção secundária;
- nawavo takevo são nawavo ‘irmãos’, com os quais o casamento é proibido, sendo que a
violação desse preceito é considerada tão errada quanto o incesto. Esses são nawavo rivais por
competirem por mulheres (e homens) de nawavo pretendentes. Acompanhando a sugestão da
minha co-orientadora Vanessa Lea, decidi chamar os nawavo takevo ‘irmãos’ de fratrias, por
analogia às fratrias encontradas entre povos tukano, consciente, todavia, de que o uso do termo
‘fratria’ para os Marubo é inédito na literatura sobre este povo. Foi necessário introduzi-lo para
dar conta das transformações no sistema dito australiano (ver o diagrama 2 na página 26), pela
agregação de nawavo suplementares ao sistema marubo. Os nawavo takevo ‘irmãos’ são
chamados também de ave meravo ‘irmãos do mesmo pai ou filhos dos irmãos do pai’; eles
protegem seus interesses em comum, sendo que o casamento entre eles é proibido. Esse modo
de ser dos yôra-rasῖ é repassado de uma geração para outra.
Para melhor compreensão, trago o diagrama abaixo com os quatro primeiros nawavo,
que se assemelha com o sistema kariera dos povos australianos. Este diagrama é uma
contribuição de Julio Cezar Melatti para esta tese.
4
Nas narrativas ancestrais, ratea ‘susto’ descreve a forma pela qual os nawavo negociavam o casamento. Após
varias conversas entre os pais, o casamento com o pretendente casável ou com a pretendente casável era
formalizado com um tsaῖki (fala ritual cantada). O ingresso numa família de outro nawavo era associado a ratea,
susto, receio, temor.
21
Diagrama 1 - Das relações entre os quatro primeiros nawawo (Julio Cezar Melatti)
No caminho do mestrado
Todas as narrativas para contar a origem de fatos ocorridos e que deram início, por
exemplo, ao ciúme, falsidade, traição, sobre a criação da morte, como a terra parou de falar,
entre muitos outros relatos, falam dos processos de desenvolvimento do povo, onde nossos pais
deixam claro que são atos cometidos a partir de um indivíduo ou pessoa que pertence a um
nawavo. Uma vez eu acolhi na minha casa o filho de um homem do meu nawavo (vari-nawavo
‘sol’), como filho de meu irmão; ele se casou com uma menina do nawavo da minha mãe (tama-
uavo ‘flor-grande-árvore’), mas o casamento deles terminou em traição. A mulher do meu kôka,
pertencente ao nawavo shane-nawavo (‘azulão’), o mesmo nawavo do rapaz que eu acolhi na
minha casa, indignada com a separação, fez um comentário dizendo: “fez bem ela te deixar,
porque contam que essa mulher, pertencente ao nawavo tama-uavo, por ser wenia-shavovo
(mulher originária), é tanasmavo ‘doida’”. Guardei esta observação como se fosse um estigma
22
ou rótulo dado para um nawavo. É claro que esta mulher não usaria o mesmo argumento na
frente da minha mãe; entendi que ela tinha certeza de que eu não entendia esse aspecto das
narrativas, como outros nawavo podem ser rotulados. São exemplos de histórias que servem
para explicarmos aos nossos filhos e netos. Como boa aprendiz desse conhecimento, tinha que
estar atenta para saber qual nawavo estava fazendo parte da narrativa que estava sendo contada
para mim. Apesar de, desde minha infância, meus pais terem feito o esforço para me manter
informada de tudo sobre a cultura do meu povo, para que eu não me distanciasse da minha
verdadeira realidade, mesmo assim isso não foi suficiente para meu entendimento, porque eu
fui criada na cidade, por isso não entendia como uma pessoa criada na aldeia, mas isso nunca
me tornou menos yôra-shavo. A centralidade do pertencimento a um nawavo, de qualquer
maneira, estava sempre em primeiro plano e isso me levou a pensar no desenvolvimento da
pesquisa de doutorado. Foi só ativar o que estava adormecido dentro de mim, eu como
pertencente ao vari-nawavo, a pioneira em fazer existir coisas boas (conhecimento de kene
‘grafismos’) e coisas ruins (fazer a terra parar de falar, fazer uma maloca desistir de fazer
mudanças e caminhar para uma nova aldeia).
Foi difícil entender a avalanche de conteúdos que estava sendo apresentada para mim,
em pouco tempo. Logo que iniciei o mestrado eu senti mais confiança no rumo da pesquisa:
falar (do tema principal da dissertação de mestrado) sobre aquilo que as mulheres mais
dominam no seu cotidiano, “o que é transformado nas pontas dos dedos das mãos”, um conjunto
complexo de conhecimentos que eu estava recebendo das mulheres, para poder registrar suas
memórias e narrativas, transmitidas oralmente (Dollis, 2017). Com o apoio da minha ewa
‘mãe’, que se dedicou a me explicar as informações, se tornava mais fácil para mim
compreender tal conteúdo, pois, muitos conhecimentos de relatos que recebia ali eu não
conseguia entender naquele momento imediato da conversa com as minhas yoãshoaivo
‘contadoras’.
Apesar de minha ewa estar lutando pela sua vida contra uma doença, sem sucesso de
recuperação, ela estava me motivando no aprofundamento dos assuntos de como eu deveria
expor para a universidade as questões da nossa cultura, pois, no seu entender, sou sua sucessora
para manter e cultivar o conhecimento milenar de meu povo: não importa como irei manter esse
conhecimento, entendemos que nossa resistência cultural se dá na continuidade pelos nossos
filhos e netos. Sendo assim, no percorrer do mestrado, eu já estava determinada a enfrentar o
doutorado para esclarecer para mim mesma as muitas dúvidas a respeito dos nawavo e do
sistema de parentesco na sociedade marubo. Mesmo que eu não tenha chegado à perfeição da
23
escrita, pensava em fazer algo que pudesse ser corrigido no futuro. Sabemos que nem todos
concordam sobre as histórias contadas (orais e/ou escritas).
Eu como pesquisadora
Meu nome é Mema ou Varin-Mema, nome que recebi quando nasci. Varin que
acompanha meu nome é a maneira como me apresento para meu povo ou para outro nawavo,
para que saibam que ea vari-nawavo ivo5 ‘eu pertenço ao nawavo-sol’. Sou da etnia marubo,
como dizem os nawa-rasῖ (nawa-rasῖ, branco-PL), mas nós dizemos que somos Yôra. Meu pai
se chama Tupane ou Ranen-Tupane, rane-nawavo ivo ‘pertencente ao nawavo-enfeites’; minha
mãe se chamava Sheta ou Tamã-Sheta, tama-uavo ivo ‘pertencente ao nawavo flor grande
árvore’. No mundo dos nawa-rasῖ, meu nome é Nelly Barbosa Duarte Dollis. Sou váva (filha(o)
da filha ou neta) do meu txaitxo (pai da mãe) João Tuxaua. Minha txichtxo (mãe da minha mãe),
sua segunda esposa, ã kanima shavo aῖ anosho inã ‘ele criou desde pequena para que se tornasse
sua mulher’. Sou oriunda da Terra Indigena do Vale do Javari, que está localizada no oeste do
Amazonas, no Brasil.
A minha pesquisa de campo, como estudante indígena e mulher, foi vista pelos meus
parentes sem credibilidade, não tive a relevância que um homem da etnia teria. Meus parentes
sempre me questionam nas redes socais (facebook, instagram ou whatsapp), dizendo “quando
tu voltas para nossa terra, porque tu não voltas?”. As vezes sinto que fazem questão de não
notar minha presença e minhas contribuições, para fazer criticas, como sempre fizeram em toda
minha jornada como estudante. Quando converso com meu pai, sinto que essa barreira da
tradição o impede de demonstrar o respeito que sente por mim; para ele o que importa é voltar
para casa, um emprego em alguma instituição e viver disso, já que para meus parentes a
representatividade do povo no mundo externo tem que ser papel de homem e não de mulher.
Durante minha pesquisa de campo no doutorado, enfrentei duas dificuldades: a primeira,
sempre que tentava conversar com os mais velhos e com as mais velhas, eles me transmitiam
todas as narrativas como se eu as soubesse desde sempre, enquanto eles despejavam uma
avalanche de assuntos aleatórios. Eu não conseguia entender, já que dominar a fala cotidiana
do meu povo não fazia com que eu entendesse o mundo complexo das narrativas orais. Não
5
Ivo ‘dono/pertecente’, ivovo ‘donos/pertencentes’ (-vo coletivizador). Nas descrições que apresento sobre os
nawavo, mencionarei os seus descendentes como “pertencentes”. É uma tentativa de tradução da palavra ivo ou
ivovo na língua marubo. O objetivo desta tese é tratar da forma como falamos de nós mesmos. Assim, a tradução
das palavras ivovo ou ivo como ‘dono’ não soa bem aos ouvidos de um falante nativo. Eu sou poderia ser dono do
vari-nawavo ‘nawavo sol’, se eu criasse o sol; meu nawavo, na verdade, surgiu no mesmo espaço do sol, por isso
me apresento dizendo, ea vari-nawavo ‘o meu nawavo pertence ao sol’.
24
sabia a quem recorrer para tirar minhas dúvidas. A segunda foi a dificuldade de ir para as aldeias
de modo a encontrar alguém que me ajudasse a entender melhor esses assuntos; infelizmente a
pandemia impediu meu acesso a interações presenciais com os meus kokavo (irmãos da minha
mãe) que compreendiam minha dificuldade em entender yoã vana ‘fala contada’ e iniki vana
‘fala cantada’.
Minha participação no Projeto Cultural do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, de 2011
a 2016, facilitou a pesquisa de mestrado no campo, para as aldeias onde não conseguiria chegar
só com uma bolsa de estudo. As condições da pesquisa de mestrado e da pesquisa de doutorado
foram muito diferentes, assim como são diferentes seus temas. O projeto do Museu do Índio e
minha dissertação se concentraram sobre o trabalho artesanal de um grupo de mulheres marubo,
com as quais eu tive uma intensa interação.
No doutorado, mesmo com bolsa de estudo, lidando com gastos de aluguel e outras
necessidades básicas, foi extremamente difícil viajar entre Rio de Janeiro, Manaus, Tabatinga,
Benjamin Constant, Atalaia do Norte e a Terra Indigena Vale do Javari. Resolvi mudar para
Manaus, depois de concluir os créditos das disciplinas. Amigos verdadeiros como Victor Gil,
Anari Braz Bomfim e Ana Coutinho me ajudaram num longo período de precariedade. Depois
de me instalar em Manaus, em março de 2019, viajei para Atalaia do Norte, com o intuito de
aproveitar a presença do meu koka (irmão da minha mãe) Tama-Saῖpa, quando ele estivesse na
cidade, mas, infelizmente, o Covi-19 não me deixou completar a pesquisa como planejava.
No doutorado
dificuldades se agigantavam, e uma das primeiras coisas que me fez sentir pânico foi a ausência
de um vocabulário da língua portuguesa no momento de escrever, com a insegurança diante das
duplicidades de sentido das palavras do português e não querendo estragar a essência da minha
língua. Cheguei a pensar em desistir de tudo. Com medo de me afundar nessa amargura,
procurei conversar com os meus colegas e amigos sobre as agruras da escrita e eles me falaram
que também as enfrentavam.
Mesmo que eu encontrasse algo semelhante nas conversas com meus colegas, não me
convencia que as dificuldades que eu ouvia poderiam ser dificuldades para mim, a situação
deles me parecia puro charme de carreira acadêmica, porque eu pensava que a escrita vem da
língua deles, não havia ali a possibilidade de eles sentirem o que eu estava sentindo de fato. A
solução opinada foi de me isolar com a intenção de buscar ajuda, mas o que ocorreu foi de
diversos assuntos pairarem na minha mente e perante os meus olhos, simplesmente senti que
estava paralisada. Tudo que queria escrever era sem sentido. O tormento maior foi de não
conseguir ser leal comigo em procurar ajuda, mas, como vi que o tempo estava correndo,
procurei e pedi ajuda da minha amiga professora Fabiana Maizza (Universidade Federal de
Pernambuco-UFPE), a única pessoa para a qual eu tive coragem de demonstrar a frustração
decorrente de todos os problemas acumulados.
Outras situações, felizmente, me motivaram a seguir adiante. Meus colegas pertencentes
a outros povos originários me fizeram enxergar uma luz no fim do túnel. Eu pensei, não sou a
única a desafiar uma vida acadêmica, enfrentando diversos obstáculos em meio a uma sociedade
não originária, para fazer valer uma política afirmativa, que é uma das conquistas da luta árdua
de nossas lideranças. Portanto, há uma diversidade de conhecimentos muito rica sendo trazida
pelos meus colegas, e, também, é um progresso do modo de fazer antropologia na nossa era, a
qual permite que as nossas histórias orais se tornem composições de ciências étnicas e raciais,
fundindo os novos pensamentos trazidos e desenvolvidos pelos acadêmicos originários. Já que
ao longo do tempo as histórias dos povos originários vêm reverberando no mundo acadêmico,
a partir de análises das mentes europeias sobre os povos originários, está na hora de nós,
pesquisadores originários, nos posicionarmos para apresentar nossos próprios pensamentos, não
importa o modelo de teoria que estamos trazendo.
A nossa presença na universidade é uma forma de visibilizar através da escrita o
conhecimento dos nossos povos. As dificuldades que relatei acima não estavam somente na
escrita, era a maneira como o aspecto das informações pairava na mente, tentar expor a escrita,
a forma como absorvi o conteúdo da história oral, quando no momento da conversa observava
os gestos, as expressões faciais, o distanciamento do olhar ao lembrar de quem contou,
26
A pesquisa de doutorado
O conteúdo de minha pesquisa de doutorado são os relatos dos Marubo mais velhos
oriundos das aldeias da calha de rio Curuçá e os que foram coletados no percurso do mestrado,
na Terra Indígena do Vale do Javari. Esta se localiza no extremo oeste do estado do Amazonas,
na região da tríplice fronteira – Peru, Colômbia e Brasil. Aqui vivem os povos originários
denominados de Marubo, Matses (Mayoruna), Matis, Kanamari, Kulina pano e Korubo, numa
extensão territorial de 8.544.444 hectares, sendo a segunda maior Terra Indígena do país. A
Terra Indígena do Vale do Javari também concentra, no seu interior, o maior número de povos
isolados do mundo (em torno de 27 grupos) – segundo informações da Coordenação de Índios
Isolados da Fundação Nacional do Índio/FUNAI – e mantém ainda grande quantidade de
biodiversidade preservada em sua área. A TI do Vale do Javari foi demarcada e homologada
em 2001 pelo Governo Federal.
O mapa abaixo foi elaborado, em 2019, por dois funcionários da FUNAI, Iltercley
Rodrigues e Artur Sinimbu da Silva, para controlar a entrega de merenda escolar nas aldeias
indígenas do Vale do Javari pela prefeitura do município de Atalaia do Norte. Inclui no mapa
algumas informações para destacar as duas calhas de rios onde vive meu povo: o rio Ituí em cor
verde cana e o rio Curuçá em cor azul claro.
27
6
Um exônimo é um nome próprio proveniente de outra língua que não aquela falada nativamente. Em outras
palavras, exônimos são nomes estrangeiros para nomes próprios.
28
(‘pertencente ao nawavo dos ‘brancos’’), vevo weniya nawavo e txipo weniya nawavo (‘que
surgiu depois dos originários’).
Pela leitura que realizei para ver o que falam os pesquisadores nawa-rasῖ sobre o povo
marubo, encontrei na tese de doutorado de Elena Welper (2009: 23) o seguinte relato sobre o
etnônimo que, ao longo do tempo, foi dado para o meu povo, escrito de várias formas:
O nome “marubo” (Herndon, 1854) bem como suas aparentes variantes Moruas
(Acuna, 1641: 25), Marovas (Castelnau, 1851: 40), Marobas (Raimondi, 1862 apud
Steward & Metraux, 1948: 552), Marugos (Cunha Gomes, 1897 apud Pessoa, 1985),
Maropas, Marubas, Marobos, Marahuas (Tessman, 1930: 582) não correspondem a
qualquer autodenominação do grupo, tendo sido, até meados da década de 70 do
século passado, um termo genérico aplicado por regionais e funcionários da FUNAI
a diferentes grupos de índios “arredios” da bacia do Javari. Foi somente após o
Relatório sobre os Índios Marubo (Melatti, J. & Melatti, D., 1975), que constatou a
ausência de relação entre todos os índios assim denominados, que o nome passou a
definir de modo exclusivo a população residente nas cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá,
precisamente a que havia sido objeto de estudo dos autores do mencionado relatório.
Como dizia meu avô João Tuxaua, somos: yôra-kuῖ-rasῖ kayaparvi, ‘grande gente de
verdade’, não há ninguém parecido conosco; noke txipo vea ivo ‘os que vieram depois da gente’;
nokẽ nõ rateniti weni tani okῖ ‘os que existiram através do nosso movimento após ter surgido’;
nõ wenia mai waka-tavarvi ‘surgimos no deságue do rio’; waka revo chinãni ‘depois seguimos
para a cabeceira do rio’. Meu avô se referia à denominação ‘marubo’ como: noke ichnakῖ
anekatsayavo txipochta wenirivi ‘os que nos vão dar nome feio surgido por último’; noke nõ
anõ weniatõsho wenimarvia atovo ‘eles não têm a mesma narrativa de surgimento que a gente’.
o singular. Por exemplo, com ‘meu nawavo’ me refiro ao nawavo específico ao qual eu
pertenço, que não é o nawavo da minha mãe, nem o nawavo do meu pai.
Ainda Melatti, em artigo publicado na Revista do Museu Paulista (1986: 83, 119),
contextualiza de modo geral o sistema da estrutura social, uma descrição feita quando meu povo
estava iniciando o ingresso no mundo não-originario. Ainda era a época do auge do importante
líder João Tuxaua (meu txaitxo, pai da minha mãe), que discursava dizendo: ẽ shovima yora
rasῖ ‘são as pessoas feitas por mim’. O texto de Melatti me ajudou a analisar a organização atual
na existência dos nawavo do meu povo, a partir de meu txaitxo João Tuxaua.
Na tese O mundo de João Tuxaua: (Trans)formação do povo Marubo, Elena Welper
(1999) analisa o percurso da história do meu txaitxo kakaya Niwa Wani (João Tuxaua). O
primeiro capítulo da tese, “Informações Preliminares”, me auxiliou na descrição dos nawavo.
Ruedas (2013), em artigo publicado na Revista Española de Antropología Americana,
trata do parentesco marubo, a partir da pesquisa de Welper, para embasar sua análise da ação
ritual no contexto de argumentos expressados pelo meu povo, que enfatizam a importância da
organização relacionada ao parentesco e aos nawavo.
Decodifiquei, parcialmente, os trabalhos de Cesarino: “Quando a terra deixou de falar:
Cantos de mitologia Marubo” (2013), “Oniska: poética do xamanismo na Amazônia” (2011), e
o artigo “Cartografias dos cosmos: Conhecimento, iconografia e artes verbais entre os marubo’
publicado na revista Mana 19(3), 2013: 437-471. Os dois livros de Cesarino e o artigo me
ajudaram a construir o contexto da explicação cosmológica dos nawavo e, sem dúvida, os dados
que apresento e discuto nesta tese complementam os resultados de suas pesquisas.
Nos estudos antropológicos mencionados, meu povo é descrito como sendo distribuído
em nawavo. Cada pessoa pertence ao mesmo nawavo de sua txichtxo (mãe da mãe, MM). Cada
dupla de nawavo, que se alternam através das gerações, em linha feminina, constitui uma
unidade matrilinear. Além disso, temos parentes agregados formados na época do surgimento
dos nawavo. Tratarei em detalhes destes aspectos – gerações alternadas matrilineares e
agregados - no segundo capítulo. Afinal, a organização social marubo, em termos de
parentesco, teria uma aparência australiana, algo intermediário entre o sistema Kariera e o
sistema Murngin7. Ressalvo que a literatura sobre meu povo também me ajudou a traduzir os
sentidos das palavras e em que contexto elas se encaixavam.
Perante todos esses estudos teóricos, quero trazer o tempero de uma perspectiva nativa
sobre como meu povo se organiza em nawavo, que contém toda uma história oral de suma
7
Lévi-Strauss (2012: 209).
30
importância. Quero mostrar que o valor de descender de um nawavo é ter conhecimento pleno
do contexto dos nawavo, reverberação da sabedoria dos nossos antepassados através dos filhos
e netos.
Utilizei como textos de apoio teórico: Claude Lévi-Strauss (2012), A. R. Radcliffe
Brown (1973), Vanessa R. Lea (2012), Eduardo Viveiros de Castro (1995), Piero C. Leirner
(2017), Igor José Renó Machado (2014), Nicole Soares Pinto (2017), Edilene Coffaci de Lima
(1997), Marcela Coelho de Souza (2002), Peter Gow (1997), Marcelo Pedro Florido (2008),
Gabriel O. Alvarez (2006), Ivo Schroeder (2006), Roque de Barros Laraia (2004), Philipe
Descolar (2015), Carlos Fausto (2008), Mauro Willian Barbosa de Almeida (2010), Márcio
Silva (2011), Relatório de Gestão 2010 (2011), Paulo Sérgio de Abreu (2008), Victor Sergio
Gil Serpa da Gama (2020), Janekely Reis D Avila (2018), Walter Alves Coutinho Junior (2011),
Marcus Maia (2006).
Todas essas indagações antropológicas estão no horizonte da minha compreensão para
o aprofundamento do tema nawavo por mim realizado a partir da perspectiva de mulheres e
homens do meu povo em relatos (pessoais e familiares) e narrativas tradicionais. O fato da
pesquisa ser realizada por uma pesquisadora yôra-rasῖ (pertencente ao vari-nawavo), falante
nativa da língua chai-nawavo, possibilitou-me obter novos dados e uma nova compreensão.
Os Yôra-rasῖ (Marubo) mais velhos contam, através das suas narrativas, que durante o
processo de migração rumo às cabeceiras dos rios tiveram vários contatos com outros povos,
onde houve misturas de casamentos. Um exemplo disso está na narrativa chamada Shane-
Romeya. A família de Shane-Romeya empreendeu uma jornada para acabar com os povos vari-
nomã-nawavo (nawavo sol, segundo os mais velhos as pessoas deste povo eram todas pequenas,
com aparência de crianças); nessa empreitada, morreram todos seus parentes, só sobrou Shane-
Romeya, que, sem parentes e perdido, fez suas andanças e acabou na aldeia da esposa de Oshẽ
(Lua), Tome, ali ele conseguiu se localizar para voltar para casa. Chegando em casa, encontrou
suas irmãs casadas com Anta e Veado.8 Ouvindo a explicação, perguntei para os meus mais
velhos se realmente essas mulheres se casaram com esses yoῖnivo ‘animais’. Eles me
responderam que não, que se referiam a outros povos que não faziam parte do povo marubo
8
Anta e Veado, na narrativa, são mencionados como sendo duas pessoas pertencentes a outro povo. No decorrer
do texto desta tese, a tradução do nome yoῖnivo ficou como ‘animais’, pelo modo como os meus mais velhos e
mais velhas explicaram para uma aprendiz; lógico que o relato não seria igual se eu estivesse sabendo das
narrativas de origens dos nawavo. Para o povo Marubo a existências dos outros seres acontece numa relação entre
sujeitos, e, neste sentido, a perspectiva do Yôra-rasῖ é próxima ao que refletem os antropólogos quando falam em
“animismo”, a propósito dos povos indígenas da Amazônia. Como esta tese se desenvolve através de uma minha
tradução para a língua portuguesa, não me preocupei em costurar a escrita com as teorias, o que poderei fazer
futuramente.
31
(casamento exogâmico), mas, pelo que escuto dos relatos dos mais velhos, antigamente nossas
vidas ainda eram um todo, todos os seres se entendiam, porque todos eram yovevo-rasῖ
‘entidades prototípicas’.9
Segue outro exemplo de misturas de casamentos, “aconteceu recentemente”, contado
pela minha mãe Tamã-Sheta. A mãe da mãe da mãe dela se casou com outro nawavo, com um
dos homens ascendentes do ni-nawavo (nawavo floresta), que a capturou; pois ao ver ela com
seu primeiro marido, um homem pertencente ao ni-nawavo comentou: “eu nunca havia visto
uma beleza assim”. Ouvindo isso, seu ave-merá (filho do pai ou filho dos irmãos do pai, e outro
pretendente nawavo) se preparou logo para eliminar o marido da mulher pertencente ao tama-
uavo, simulando que ele tinha caído da árvore quando coletava frutas, e depois mandou que o
admirador fosse buscá-la. E o ni-nawavo logo se reuniu com seus mais velhos e foi até a aldeia
pedir para se casar com ela. A viúva não tinha os pais, morava com o irmão da mãe e ela era a
única filha da mãe. Já que o irmão da mãe dela não queria vê-la longe deles, ela foi nininá
(levada à força). E ela conta que, assim que os ni-nawavo a levaram para a aldeia deles,
encontrou lá uma mulher kanamari enciumada com a sua presença, o que me fez entender que
não viemos a ter contato com outros povos na atualidade e que já tivemos contato com outros
povos em vários momentos.
Antigamente, eram poucas mulheres para muitos homens que queriam se casar. As
visitas dos homens solteiros nas aldeias aconteciam com pretexto de arranjar casamento.
Quando chegavam na aldeia observavam a quantidade de moças que ali havia, e, se o pedido
não era aceito, às vezes nininá ‘levavam à força’ a mulher escolhida, com direito a tsaῖki iki
‘fala potente em tom de desafio’ até convencer do principal motivo de querer se tornar parente.
Atualmente, meu povo, por mais que tenha contato intenso com outras etnias, ainda
preserva as regras de casamento internamente, onde a identificação de parentes entre os nawavo
se mantém. Porém, nos argumentos que ouço entre eles, as divisões consideradas nawavo
maiores (atõ vene pavo) quase desapareceram, havendo poucos hoje. Shane-vene-pavo (azulão
dos nawavo maiores), wani-vo vene-pavo (pupunha dos nawavo maiores), kana-nawa-vo
(arara-canindé), shai-nawa-vo (pássaros), yene-nawa-vo (cigarra), entre outros que aqui não
foram mencionados, são os nawavo extintos vene-pavo (nawavo maiores) e outros que ficaram
só nos mitos de origens.
Nos argumentos dos mais velhos, o caso de desaparecimento de nawavo acontece
quando as mulheres do nawavo passam a gerar somente filhos homens. Em outros casos, no
9
Adoto a tradução de yovevo como ‘entidades prototípicas’ proposta por Cesarino (Cesarino, 2011:414).
32
percorrer da vida dos Marubo, quando aconteciam guerras entre eles, uma mulher do nawavo
que restava era pega para casar com outro nawavo, e para não engravidar ela tomava remédio
moka ‘amargo’ ou tosma-rao ‘o que não engravida’ da raiz de planta, ou as mulheres de outros
nawavo (awe-ikiyavõ ‘concorrentes de seus pretendentes’) envenenavam seus filhos.
Todas essas informações me levaram a querer aprofundar mais e a esclarecer para mim
mesma o modo de organização atual do meu povo. Além de todas essas questões, também
abordarei as misturas de nawavo, que é denominada na língua de onã-kima-ikinanã ‘não
reconhecer’ (relacionamento não reconhecido ou não aprovado). Outra questão é que existe
uma complexa explicação dos nawavo surgidos dos restos de néctar ou néctares estragados.
Aqui vou expor a forma de organização dos Marubo através do sistema de parentesco
em relação aos nawavo, já que o pertencimento a um nawavo é fundamental para identificar
comportamentos, atitudes e modos de ser das pessoas na vida conjugal, ã mẽvisho shovima awe
‘no seu trabalho manual’ (caças, pescas, nos preparos de roças, nas colheitas, construção de
maloca, fazer canoa, entre outras atividades), ã mevi revõsho shovima awe ‘na sua produção
nas pontas dos dedos’ (enfeites, indumentárias, grafismos, entre outros).
Além de tratar das várias formas de explicação sobre os nawavo oferecidas pelos mais
velhos, resolvi escrever, a partir da experiência do mestrado e dos cursos de graduação, sobre
os modos de fazer e de ser nas origens dos nawavo.
Ea yoãshoa-ivo, os narradores de minha pesquisa, comentavam continuamente sobre os
nawavo ascendentes de wãsho-weneyavo (wãsho, ‘fonte-flor’; weneyavo, ‘surgidos’) e de
nãkõsho-weneyavo (nãkõsho, ‘fonte-néctar’; weneyavo, ‘surgidos’), como base para uma
classificação dos nawavo. Comentavam relatos históricos como vindo dos nawavo vene-pavo
(maiores) e poto-pavo (menores). No mestrado, procurei manter o foco no nukẽ mevĩsh shovia
awe, no ‘saber-fazer das mãos’ entre os Marubo do rio Curuçá, mas, como disse anteriormente,
me deparei com um conjunto de dados e informações que só fizeram aumentar minha
curiosidade e minhas dúvidas, o que me levou a pensar mais do que nunca na ligação entre
parentesco, nawavo e o ser/destino do artesão. É isso que retomei para aprofundar no doutorado,
entre os Marubo das calhas dos rios Ituí e Curuçá.
A tese está dividida em quatro capítulos, como se vê no sumário. No primeiro capítulo
descrevo o nõ neskai weniti ‘o modo como emergimos’ (origem do parentesco), em que língua
os mais velhos contam essa história e quais foram os processos que levaram à existência dos
nawavo. No segundo capítulo, apresento nõ aya wenia wetsama, ‘parente que emergiu conosco’
(origem dos nawavo), onde me atrevo a explicar, inclusive através de gráficos, a organização
social, o sistema de parentesco, os nawavo. No terceiro capítulo, tento explanar as origens dos
33
nomes pessoais de nawavo, a troca de nomes pessoais entre nawavo, qual é a importância dos
nomes pessoais e do conhecimento onomástico. O conteúdo mais relevante (dito entre os mais
velhos) diz respeito à transmissão dos nomes entre os nawavo, que é a essência dos nomes. No
quarto capítulo, trago o assunto mais complicado, que tem a ver com todos os conteúdos dos
capítulos anteriores, capítulo que chamei de “o retorno ao lugar de origem após a morte”, o que
implica também o que é considerado errado pelos mais velhos.
A realização da pesquisa
Como eu disse acima, a pesquisa de campo não foi realizada através de um longo
período de trabalho nas aldeias; eu tinha planejado estar junto ao meu povo nas calhas de rios
Ituí e Curuçá, na Terra Indígena do Vale do Javari. Fiz uma viagem rápida nas duas calhas. No
Rio Ituí cheguei até a primeira aldeia, Rio Novo, onde fiquei por dois dias, no mês de março de
2018. Depois de quatro dias de viagem, os homens desta aldeia estavam aguardando a chegada
de um funcionário da Fundação Nacional do Índio-FUNAI, o Sr. Michelangelo Rodrigues
Neves, para fazer capacitação de canoão, com um projeto que contemplava três aldeias, onde o
funcionário planejava ficar durante um mês em cada aldeia. Eu estava empolgada por ter a
oportunidade de uma carona, pois, seria o tempo suficiente para me aproximar das pessoas e
tirar dúvidas sobre minha pesquisa, durante três meses, mas não foi possível ignorar o
imprevisto que eu estava tentando enfrentar e, assim, preferi desistir no meio da viagem.
Fotos 1 e 2 - Canoão da FUNAI indo para o rio Ituí e retornando para a cidade.
Fonte: Arquivo da autora 2018.
A segunda viagem foi no rio Curuçá no mês de dezembro de 2018, logo após a minha
primeira viagem ao rio Ituí. Também foi uma viagem rápida, pois as pessoas com quem eu
pensava conversar não estavam na aldeia, pois estavam fazendo compras na cidade de Cruzeiro
34
do Sul (Acre). Cheguei até a aldeia Maronal onde moram os irmãos da minha mãe, onde passei
quatro dias, depois de sete dias de viagem, navegando dois dias pelo rio Javari e os outros dias
pelo rio Curuçá. Desta vez, a carona que aproveitei foi do irmão mais novo do meu pai (tio
Wilson, meu epa). Levei comigo uma moça de nome Maria Dayane Ferreira Brito, estudante
de graduação de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, participante de um projeto
de mobilização da Universidade Federal do Amazonas. Ela tinha entrado em contato comigo
falando do seu interesse em fazer pesquisa sobre kene (grafismos do meu povo), e, como eu
estava sem equipamento para registrar meu trabalho de campo, convidei-a para conhecer minha
família.
Foi graças a essa ajuda que eu pude gravar as conversas com meu kôka, o filho do pai
da minha mãe, Kenãpa (Sheka-Romeya). Foi um dos momentos mais emocionantes que vivi,
já que é muito raro eu ir para a aldeia dos irmãos da minha mãe, e esse meu kôka estava muito
doente, sem movimento nas pernas. Durante nossas conversas fizemos várias pausas porque
não conseguíamos conter nossas emoções. Ali não existia só o afeto de MB e ZD, por eu ser
descendente do nawavo da mãe da mãe dele; o passado e o presente se misturaram. Meu kôka
pertence ao mesmo nawavo do meu filho e eu pertenço ao mesmo nawavo da mãe dele: ele me
chama de ewa (mãe), eu posso chamar meu filho de kôka. Eu estava diante do meu filho, ele
estava diante da mãe. Os meus mais velhos dizem: rama vake-rasῖ naa ivo chinãyai atõ
kanimarvi “crianças de hoje não cresceram tendo os mesmos sentimentos” em relação ao
passado e ao presente; Yôra-rasῖ koῖniro aka tanaki “só quem sente é a pessoa verdadeira”10.
Eu senti que me incorporei às mulheres anciãs do nawavo ao qual eu pertenço.
Fotos 3 e 4 - Canoão do irmão mais novo do meu pai, indo para o rio Curuçá.
Fonte: Arquivo da autora 2018.
10
Essa frase sobre o sentimento do yôra-rasῖ koῖ se refere às pessoas sem mistura dos pensamentos de outra
sociedade.
35
11
As abreviações de terminologia de parentesco em inglês vão aparecer recorrentemente nas apresentações dos
termos de referência e vocativos: B=brother/irmão; Z=sister/irmã; M=mother/mãe; F=father/pai;
D=daughter/filha; S=son/filho. A leitura das siglas vai da direita para a esquerda: MM=mother’s mother/mãe da
mãe; FF=father’s father/pai do pai; MB=mother’s brother/irmão da mãe; MZ=mother’s sister/irmã da mãe;
FB=father’s brother/irmão do pai; FZ=father’s sister/irmã do pai; C=child/filho/a; SS=son’s son/filho do filho,
SD=son’s daughter/filha do filho, DD=daughter’s daughter/filha da filha, MBS=mother’s brother’s son/filho do
irmão da mãe; FZS=father’s sister’s son/filho da irmã do pai.
36
12
A troca de mensagens por whatsapp com minha orientadora, entre março e junho 2020, se tornou um texto
disponível em https://corposquefalam.weebly.com.
37
13
Todas as mulheres de um determinado nawavo, mesmo tendo seus nomes pessoais, são chamadas pelos seus
nawavo. Por exemplo, Varĩ Mema pode ser chamada de vari-shavo, ‘mulher sol’. O mesmo pode acontecer com
outras etnias e não indígenas, como, por exemplo, Matis-Shavo (mulher Matis), Kanamari (Kanamari-Shavo) e
Nawa-Shavo (mulher Branca), japonês (Japonês-Shavo). Shavo significa ‘mulher’ no singular, no coletivo é
shavovo.
38
CAPÍTULO I
Nõ neskai weniti, ‘o modo como emergimos’: origem dos nawavo e do parentesco
Este capítulo tem o objetivo de apresentar como sheni-wetsavo ‘mais velhos’ e kẽchῖtxo-
rasῖ ‘xamãs’ transmitem para seus filhos e netos, através das narrativas, o procedimento de
wetsam’ya ‘formar parente’, desde os surgimentos dos nawavo, para que as novas gerações não
percam o modo de ensinamento dos nossos antepassados, onde aprendemos o conhecimento da
formação social do nosso povo.
Para sermos o que somos hoje, emanaram vários nawavo pretendentes para se tornar um
único yôra-rasῖ, sendo yôra-rasῖ, literalmente, ‘nós gente-plural’. A palavra yôra-rasῖ, nesse
contexto, denomina o corpo de gentes (povos), ni-rasῖ ‘árvores’, waka-rasῖ ‘rios’, yoῖni-rasῖ
‘animais’, coisas, maloca. Com ela nós nos referimos aos componetentes das falas, como
ensinamentos e conhecimentos. Para a existência dos primeiros yôra-rasῖ emergiu o vari-
nawavo (vari ‘sol’), este até hoje alcunhado, pelos outros nawavo posteriores, como weniya
nawavo.
No comentário dos mais velhos, a formação social dos nawavo progrediu por etapas,
que são: apareri weniyavo ‘os primeiros surgentes’; aya weniaya wetsamavo ‘parentes
surgentes juntos’; nawavo weniyavõ ratea ‘os surgentes por meio do susto dos primeiros’. A
apresentação desses procedimentos acontece numa linguagem metafórica criada pelos
ancestrais que são chamados de vana shovimaiyavo ‘criadores/fazedores de falas’ ou chinã
vanayavo ‘pensamentos falantes’.
Tive que mergulhar no mundo dos meus ancestrais, preparar minha mente para decifrar
as palavras usadas pelos ẽ sheni-wetsavo ‘meus mais velhos’, até porque pertenço ao primeiro
nawavo, ou seja, em qualquer circunstância, sou a raiz desses ancestrais: não importa a minha
idade, sou wenia shavo ‘mulher emanante’. Como nativa, o passado e o presente não se
diferenciam, pois, carrego a responsabilidade do que foi originado através dos meus ancestrais,
como se surgisse por meio da minha existência.
Como os fluxos dos relatos estão no movimento das metáforas, penso que alguém com
a mente despreparada poderia se confundir na interpretação da tradução para outra língua, já
que, para nós, a cada narração oral, as línguas/linguagens têm um sentido potente, pelo modo
como o narrador escolhe sua voz sonora para ecoar nas mentes e corações dos aprendizes. Por
sua vez, quem recebe esse ese ‘ensinamento’ está ciente de que é uma memória ancestral
repercutindo sem muitos questionamentos, apenas aceitando e conduzindo a continuidade para
41
14
Os kẽchῖtxovo são os que fazem rituais de cura, interpretadores de palavras dos espiritos: xamãs rezadores,
detentores dos cantos de cura shõki e dos demais conhecimentos xamanísticos (Cesarino. 2011: 213).
15
Os romeyavo são especializados para viajar e receber em seu corpo os espiritos de outras dimensões, através de
cantos. É como uma das espécies de xamã, capaz de externalizar seus duplos e de transmitir os cantos dos espíritos
(Cesarino. 2011: 214).
42
Antes de prosseguir com as origens dos nawavo, relato o que meu kôka16 Kenãpa
(irmão da minha mãe e romeya ‘pajé’, comunicador dos yovevo-rasῖ ‘entidades prototípicas’)
me contou, em dezembro de 2018 (tradução livre, feita por mim, da nossa conversa).
Kanavoã (demiurgo) é um nome que se refere a três seres relacionados à origem da
terra. Ele se originou do redemoinho da nuvem cinza junto com outros dois seres, que, após
surgirem, começaram a flutuar em direções opostas no céu, explorando cada canto deste. Assim,
tiveram a ideia de criar a terra; sua saliva, ao cair, ficou suspensa no ar, originando o solo fértil.
Para desenvolver a superfície, chamaram outras três entidades: Utxiko, Pika-Shea e Koῖ-Tawa-
Shawã. Segundo meu kôka, não existia nada antes; os três, juntos com Kanavoã, criaram os
yôra-rasῖ, e, a partir de suas existências, plantaram yoĩni-rasĩ ‘animais’. Do cair da saliva surgiu
same-awa (anta-same), a sacrificaram e abriram sua carne para nutrir a terra. Do cair da saliva
surgiu koῖ-shawe (jaboti-cinza), o sacrificaram e tiraram seus ossos para sustentar a terra, com
sua mandíbula equilibraram a terra. Na awa-mai (na terra-anta) fizeram o mesmo. Do cair da
saliva surgiu yoma-rono (cobra-yoma), a sacrificaram com suas lanças de bambu e a abriram.
Do cair da saliva surgiu koῖ-txere (maritaca-cinza), a sacrificaram e tiraram seus ossos para
sustentar a terra. A terra não surgiu totalmente equilibrada, segundo meu kôka, e para que a
terra ficasse bem sustentada foi colocado tekane awa (anta-tekane) do lado de lá e do lado de
cá. Depois circularam de ponta a ponta para que a terra permanecesse suspensa na força do
vento deles: a terra então flutua na força do vento. “Nós a fizemos, disse Kanavoã”, segundo
meu kôka.
Durante o decorrer do texto, o leitor irá perceber que a maior parte das transcrições de
falas citadas são os relatos e conversas que tive com os meus kôka-rasῖ (irmãos da minha mãe).
É uma forma de demonstrar e preservar as narrativas orais contadas pelos chinã-vana-ivovo
(donos das falas dos pensamentos). O meu kôka Kenãpa é romeya “pajé” (se comunica com as
‘entidades prototípicas’ e as recebe por meio dos iniki ‘cantos de convocação’); meu kôka
16
Kôka designa o irmão da mãe, os homens do mesmo nawavo da mãe ou os irmãos agregados da mãe.
43
Tama-Saĩpa é kẽchῖtxo “xamã” (curador por meio dos shõki ‘cantos de cura’). Não basta só ser
o que são: eles são filhos do kẽchῖtxo kayapa ‘o maior xamã’, que é o meu txaitxo (pai da minha
mãe), João Tuxaua.
Nessa mesma conversa com meu kôka Kenãpa, ele me disse que nosso surgimento
aconteceu a partir da existência do rome-ua (flor-tabaco), nokẽ-yoãvana (na nossa narrativa),
ato chῖnã-ratea (este expandiu pensamento), fazendo existir vari-nawavo (nawavo-sol). E eu
perguntei: “meu kôka, quem seria o rome-ua (flor-tabaco) hoje?”, e ele me respondeu “moka-
nawavo kotoskiyavonã” (os povos amargos que têm furo nos lábios inferiores).
Em algum momento das nossas conversas, meu kôka (MB) fez uma ressalva dizendo
(transcrição e tradução minhas):
Para que se possa entender melhor a conexão dos nawavo na sociedade yôra-rasῖ
(Marubo), trago o relato de ensinamento sheni wetsã yosiã ‘de um mais velho para uma
aprendiz’, no caso eu mesma. Nesse relato meu kôka conta para mim, inicialmente, uma versão
da narrativa do nawavo do meu pai (rane17-nawavo). Assim, apresento a conversa que entretive
com o meu kôka (irmão mais novo da minha mãe, MyB), Tama-Saĩpa, que narrou para mim as
semelhanças e as diferenças entre os nawavo vene-pavo-rasῖ, ‘nawavo-maiores’, e poto-pavo-
rasῖ, ‘nawavo-menores’.
Ele começa me contando a origem do rane-nawavo (nawavo-enfeites): “atõ shovitῖsho
wenirotsẽ”, ‘as origens desses surgentes’. Tama-Saĩpa me explica que a maneira de contar os
surgimentos de nawavo não é para qualquer um, no exemplo dos rane-nawavo, alguns dos mais
velhos e mais velhas acham que eles têm poto-pavo e vene-pavo, as vezes acham que os rane-
nawavo existentes não são pertencentes a Shoma-Wetsaya18, e outros confundem com a
narrativa de origem do enfeite nôvo ‘caramujo (aruá)’, e acabam afirmando que são yawa-
nawavo ‘nawavo-queixada’. Tama-Sai᷉pa afirma, nessa nossa conversa, que os rane-nawavo
atuais são poto-pavo ‘nawavo-menores’, que, conforme a narrativa de origem, são:
17
A palavra rane denota enfeites/indumentárias corporais feitos de aruá (caramujo); na narrativa oral surgiram dos
textículos da queixada (Tayassu pecari); estes animais na nossa língua chamamos de yawa. Muitas vezes a origem
do rane-nawavo é confundida com a origem do caramujo aruá.
18
Shoma-Wetsa (ou Shoma-Wetsaya) é a primeira mulher original do ni-nawavo, após o surgimento dos dois ni-
nawavo e rane-nawavo, nos seus percursos rumo às cabeceiras dos rios, foi quem liderou, na frente, protegendo
seus parentes, sem ter medo por possuir pashoti-ati (uma ferramenta cortante) debaixo dos seus braços, segundo
a narrativa.
45
Ainda nessa conversa, meu kôka esclarece as origens dos vene-pavo ‘nawavo maiores’
e dos poto-pavo ‘nawavo menores’, bem como os nomes pessoais associados, usando o
exemplo dos sata-nawavo. Os sata-nawavo poto-pavo ‘nawavo menores’ são lontras, cujas
origens são:
- feitos da raíz do capim-lontra e os nomes pessoais associados são: Wasi Nawa ‘capim
nawa’, Panã ‘açaí’ (nome masculino), Wasi ‘capim’ ou Wasishavo ‘capim mulher’ (nome
feminino);
- os originados da secreção do pé de bananeira-lontra;
-feitos da tora do pé de bananeira-lontra, com o nome pessoal Mani ‘banana’ (nome
masculino) associado.
Os sata-nawavo vene-pavo ‘nawavo maiores’ são ariranhas e se originaram:
- do âmago do pé da árvore ako;
- da secreção do pé lontra da árvore ako;
- da tora do pé lontra da árvore ako.
Questionado por mim, Tama-Sai᷉pa explica a relação com outros seres. Lontras e
ariranhas são onças da água que, como todos os seres mencionados, fazem parte do mesmo
espaço das nossas origens: os que existem na terra, os que estão no céu e os que estão na água.
São sua forma que os diferenciam. Espero que, agora, o conteúdo do diálogo que tive com meu
kôka possa ser melhor compreendido pelo leitor ao acompanhar a transcrição e a tradução que
seguem.
46
Tama Saĩpa:
papa-vo wenia-rotsẽ neska19-i-tῖ oῖ-wẽ20
pai-PL surgir-AUX dessa.forma-PASS-DIST ver -imperativo
‘veja, foi assim o surgimento remoto do nawavo do teu pai’
aska-mainõ23 rane-mai-nãkõ-sh-ki
assim-SR enfeites-terra-âmago-CONC.PART -feito
‘e também feito do âmago da terra dos enfeites-açaí’
rane-tama-nãko-sh-ki.
enfeites-grande.árvore-âmago-CONC.PART-feito.
‘e do âmago da grande árvore dos enfeites-açaí’.
19
Neska é uma partícula anafórica (dessa forma/assim).
20
Õi ‘ver’; -we é sufixo de modo imperativo.
21
Para a linguista Raquel Costa, - ka e -ki são morfemas associados ao tempo passado, partindo-se do princípio de
que o tempo presente é um tempo neutro em marubo. Os auxiliares aka e iki sofrem redução silábica quando eles
se afixam a um marcador temporal (Costa,1992: 64).
22
Acompanhando os linguistas, a glosa ERG indica a marca de caso Ergativo, que distingue o papel do agente de
um verbo transitivo; como nas outras línguas pano, em marubo o caso ergativo é marcado por um traço de
nasalidade da vogal. Minha interpretação da ‘transitividade’ é como movimento do sujeito do verbo, de quem age
sobre um objeto, que não tem movimento. O traço nasal expressa este movimento, enquanto a sua ausência
expressa ausência de movimento.
23
Para a linguista Livia de Camargo, -nõ marca switch reference (sujeitos iguais ou diferentes entre orações
coordenadas ou entre oração principal e oração subordinada). Minha explicação como falante nativa é de que essa
palavra -mainõ, acompanhada de aska, ocorre sempre quando se quer mudar de assunto, comparando com outro
assunto anterior.
47
Varin-Mema:
hum ẽ papa-vo-ka-nã?
hum 1.ERG pai-PL-formativo-ERG
‘hum, o nawavo do meu pai?’
Tama Saĩpa:
papa-vo-ka-nã rane-poto-pavo ẽ yoã-vre aska-mainõ
pai-PL-formativo-ERG enfeites menores 1.2 ERG fala assim-SR
‘estou contando do nawavo menor ao qual teu pai pertence’
a ã poto-pavo-rasῖ-sh ã iki
DEM 3.ERG menores-NOM-PL-PL-CONC.PART 3.ERG vb
‘estes teus ‘menores’’
rane-mai-nãkõ-sh-iki
enfeites-terra-amâgo-CONC.PART -faz
‘e do âmago da terra-enfeites’
ato-voro ã vene-pa-vo-nã
3-NOM-PL 3.ERG maiores-ADJ -NOM-PL-AFIRM
‘essas são os nawavo maiores’
48
Varin-Mema:
hum, wa (shoma wetsavo)
hum, PRON (narração do contato do nawavo-enfeites, a matriarca Shoma-Wetsa)
‘hum, aqueles (são os shoma-wetsa)’
Tama Saĩpa:
ama-rivi ato-voro ato-võ wetsa-ma-vo-se.
NEG 3.PL 3-PL.ERG outro parente-PL-MODO
‘não são, esses são apenas outros parentes’
Varin-Mema:
aska mῖkῖ ane via nãnã-ro asnã?
assim nome troca igual
‘dessa forma na troca os nomes pessoais permanecem iguais?’
24
A-ve DEM-COM (-ve =comitativo).
25
Ivo significa ‘dono’ e pertecimento.
49
Tama Saĩpa:
atõ anero-asnã aska-ina yoã
3PL.GEN nome-AFIRM assim contam
‘eles têm nomes iguais; perceba o que te digo’
Varin-Mema:
aã anosho weniro awe kokã?
3.ERG sobre surgir PRON kokã
‘como são os surgimentos desses, kokã?’
Tama Saĩpa:
ar ẽ mia yoã-shoa-tῖ
PRON.obl 1.ERG 2.S contar -CONC.PART-PASS
‘esses, sobre os quais eu acabei de te contar’
rane mapõ-sh-ki
enfeites barro.ERG-CONC.PART-feito
‘é nawavo feito enfeites-barro’
rane-mai nãkõ-sh-ki
enfeites-terra âmago -CONC.PART-feito
‘do âmago enfeites-terra’
rane-tama nakõ-sh-ki’ka
enfeites-árvore grande âmago-CONC.PART-feito AFIRM
‘são surgidos do âmago enfeites-árvore grande’
aka-ivorasῖ-ro ã poto-pa-vo-nã
surgimento 3.ERG menor-ADJ-NMLZ-PL
AFIRM
‘o surgimento desse nawavo dos menores’
Varin-Mema:
arora ã kôka-vo26 mῖ yoanã
DEM(lembrando) 3.ERG kôka-PL 2.ERG contar.PASS
‘esses que você acabou de contar’
Tama Saĩpa:
ã shavõ toa-voro ni-nawavo tsikῖ
3.ERG mulher.PL.ERG cria-PL floresta-PL AFIRM
‘os filhos das mulheres do ni-nawavo’
rane-nawa-võ sha-võ-toa-vo ni-nawa-vo tsikῖ
26
Kôka-vo (kôka MB e -vo pluralizador); nós tembém consideramos kôka-vo os homens que pertencem ao
mesmo nawavo da mãe e os homens dos nawavo concorrentes da mãe.
51
Varin-Mema:
ã poto-pavo27 shavõ-toavo wetsa yasivi kokã ?
3.ERG menores mulher-cria.PL outro.diferente (?) kôka
‘kôka, crias (filhos) do nawavo poto-pavo são diferentes “literalmente”?’
Tama Saĩpa:
a wetsa-ma
DEM outro-NEG
‘não, são outros’
Varin-Mema:
ã potopavõ shavõ-toavo wetsarvi ?
3.ERG menores mulher-cria.PL outro.diferente
‘as crias (filhos) das mulheres dos nawavo menores são diferentes?’
Tama Saĩpa:
hum aska-pase neskai-nã oῖ
hum assim-quase assim-DEM olhe.ERG
‘hum, quase assim, dessa forma veja!’
27
Com o termo poto-pavo nós designamos uma transformação de espécies. É o caso de onça e jaguatirica ou gato:
onça é vene-pavo (nawavo dos maiores), jaguatirica e gato são poto-pavo (nawavo dos menores). Os nawavo poto-
pavo são também originados de frutos, secreções, despencar de flores (ver nas páginas 44 e 65 para mais uma
explicação).
52
Varin-Mema:
awẽ ati shavorasῖ ayanã? ã anõ aweyavo28 aya...
3.pertecentePASS mulher.PL tem.AFIRM 3.ERG junto suas tem...
‘eles têm suas próprias mulheres para se casar? Eles têm suas “irmãs” de ornamentos...’
Tama Saĩpa:
uhum aska-maῖnõ awe-tserã ?
uhum assim-sendo o que-INT
‘uhum, assim. O que é mesmo?’
Varin-Mema:
a mῖ yoanã, ã pano ane akavo ikira, a mῖ yoanã ?
DEM 2.ERG contando 3.ERG nome dizerPL dito DEM 3.ERG contando
‘o que você está contando tem a ver com os ‘pretendentes’ dos descendentes dele, no seu
relato?’
Tama Saĩpa:
aska-ma ato mamẽkase ẽ ane-rivi.
assim-NEG 3.PL todos 1.ERG nome-?
‘não é assim, estou citando todos eles’
28
Awe ‘ornamento’, aweya ‘ornamentar’, awayavo ‘as que ornamentam’. Nesse contexto, a palavra aweyavo
refere-se às irmãs, a maneira como uma irmã cuida ou protege um irmão.
54
Varin-Mema:
shãka nã
caranguejo VB-ERG
‘é caranguejo!’
Tama Saĩpa:
shãka nã Chôi tsikῖ
caranguejo DEM siri AFIRM
‘sim, Chôi é caranguejo’
Varin-Mema:
kokã, askakῖ yoini ane-ane takῖ nõ anõ wenia namasho ane anetãkῖ noke ivo aka keskakῖ akara?
‘kokã, recebemos os nomes de yoῖni-rasῖ ‘animais’ desde o nosso surgimento, digo, os nomes
destacam a conexão da origem conosco?’
55
Tama Saĩpa:
aska-tõsh weni-a iki-ro-tsẽ
assim-NMLZ surgir-SS AUX-PL-ERG
‘aproximam a sua origem’
Varin-Mema:
ene okesho wenia akῖ ane-ki-nã?
líquido fundo surgir fazer.ERG nome-AUX-DEM.AFIRM
‘os surgidos do fundo da água que nominamos?’
Tama Saĩpa:
uhum ene oke-sho wenia akῖ ane-ki-nã
uhum líquido fundo-CONC.PART origem fazer nome-AUX-DEM.AFIRM
‘uhum, nome dos que se originam do fundo da água’
Varin-Mema:
Posto shane ivo nã?
Posto recinto pertencente DEM.AFIRM
‘aquele que sempre foi (pertencente) “do Posto”?’29
Tama Saĩpa:
uhum posto-shane-ya ivo nã Mapi tsikῖ
uhum posto local-EXIST dono AFIRM Camarão AFIRM
‘uhum, aquele que sempre foi “do Posto”, ele se chama Mapi’
Varin-Mema:
ã ane nã?
3.ERG nome DEM.AFIRM
‘é o nome dele?’
Tama Saĩpa:
Toati ranẽ-Toati iki mῖ nῖka-yatῖ Txano iki aka
Toati enfeite de Toati AUX 2.ERG ouvir-EM.PASS Txano AUX
‘Toati, você deve ter ouvido falar de Ranẽ-Toati’
29
Falam desta forma quando alguém morre numa aldeia. Neste caso, este velho morreu numa aldeia chamada de
“Posto”, construída pela FUNAI para descimento dos indígenas.
57
anõ novo shovi-ro aro aska inã mia yoã-shoa-vo inã mia yoasho-avre
DEM caramujo surgir DEM assim AFIRM 2.ACC contar.CONC-PART-PL AFIRM 2 contei
‘o surgimento do caramujo que te contaram, te contei como procede-se’
30
Kiri - onde aconteceu o fato.
58
Varin-Mema:
askamẽkῖ ã yoini ã yoãrivinã?
assim 3.ERG animal 3.ERG contar.AFIRM
‘nesse caso, está me contando as origens dos yoῖni-rasῖ ‘animais’ vinculados aos nawavo?’
Tama Saĩpa:
aro ã yoini ã yoãrivi
DEM 3.ERG animal 3.ERG contando
‘este, estou contando o procedimento dos yoῖni-rasῖ ‘animais’’
59
Varin-Mema:
ã tama noke aneya awẽ chaῖ noke aneya aka keskanã?
‘a grande-árvore nos deu os nomes, os pássaros dela nos deram nomes também?’
Tama Saĩpa:
uhum, aska keska nã aska inã mia yoãshoa tsῖki akaro aska inanã
uhum assim parece que assim.AFIRM 2 contar assim parecido AFIRM
‘uhum, é isso que estou contando, o jeito como funciona, dessa forma que acontece’
Varin-Mema:
ana ã takevo ma-rivira ?
DEM 3.ERG irmãos NEG-VB/PL
‘estes não são irmãos?
Tama Saĩpa:
ã take-vo-ma ã wetsa ã vene-pavotsikῖ
3.ERG irmão-PL-NEG 3.ERG outra 3.ERG maiores
‘não são irmãos, são outros processos dos vene-pavo ‘maiores’ deles’
Varin-Mema:
mῖ aῖrora ã venepapavo ?
2.ERG mulherDEM 3.ERG maiores
‘sua mulher não faz parte do vene-pavo?’
Tama Saĩpa:
ama aro warisῖ takervi nasvirsῖ ivorivi
NEG DEM aqueles irmão estes aqui
‘não, são aqueles, os mesmos’
Varin-Mema:
askamainõ atõ takerora ?
assim 3.ERG irmãos
‘os irmãos dela (da mulher)?’
Tama Saĩpa:
atovo wetsarvi
DEM outros
‘são outros’
Varin-Mema:
aweshõ tana tirakῖ kokã ?
como saber.PASS MB
61
Tama Saĩpa:
tana yomẽse-rivi!
saber fácil-AFIRM
‘é muito fácil de saber!’
Varin-Mema:
oῖkiro ẽ oῖmẽki atoivovo sata-nawavo iki-ma
ver 1.ERG verPASS 3.PL lontra/ariranha feito-NEG
‘veja, eu os observo, porém não consigo identificar as diferenças dos nawavo entre sata-
nawavo’
Tama Saĩpa:
aska ma arotsẽ na ivo-vo-tῖ
assim NEG aqueles DEM dono-PL-PASS
‘não é assim; eles são esses’
Varin-Mema:
Tamãpa-nã ?
Tamãpa-este
‘está se referindo ao Tamãpa?’
Tama Saĩpa:
ẽh ẽh a-karotsẽ ãwe venepavonã ar
ẽh ẽh 3.EM PRON maiores DEM
‘sim, são estes os que são do nawavo dos maiores’
Varin-Mema:
atovoro aweti kokã ramanã ayavora kokã ?
3.DEM.PL quanto kôka.ERG agora.AFIRM tem.PL kôka.ERG
‘esses são quantos, kokã, ainda existem, kokã?’
31
Ako é uma árvore que serve para fazer o trocano (instrumento de percussão usado nas festas).
32
Otxi é termo para o irmão mais velho.
63
Tama Saĩpa:
atovo Tamãpa westichta
3.DEM Tamãpa unzinho
‘desses, só unzinho, o Tamãpa’
Varin-Mema:
Tamãpa mῖ akanã wá ẽ ẽ
Tamãpa 3.ERG dizendo.ERG DEM.DIST...
‘Tamãpa está se referindo àquele? aquele, ẽ, ẽ...’
Tama Saĩpa:
Pekõ-ewã toavonã
Peko.ERG mãe filhoAFIRM
‘o filho da mãe da Peko’
Varin-Mema:
ará?
PRON
‘aquela?’
Tama Saĩpa:
á Pekõ-ewar wets anã atõ toatsikῖ sata vene-pavo
DEM Peko-mãe outra PRON 3.ERG cria ariranha maiores
‘essa mãe da Peko é outra, estes são vene-pavo, dos ‘nawavo dos maiores’’
Varin-Mema:
ene oke ikiya-vo rasῖnã ?
liquído fundo fazer-PL COLL
‘também os que surgiram do fundo da água?’
64
Tama Saĩpa:
ẽh ẽh enẽ kamã-vo-tsikῖ natiopachta vakῖ33nã
líquido.ERG onça-PL-AFIRM desta.DIM medida AFIRM
‘ẽh ẽh, são as pequenas onças (lontras) do fundo da água’
Varin-Mema:
ene oke ikiyavo atõ vopivai voana askasivi, atõ vei voanã askasivi ?
‘os originados do fundo da água, quando morrem, voltam para o fundo da água?’
Tama Saĩpa:
atovo ene shavapa
3.PL líquido viver/morada
‘o percurso deles é do fundo da água’
Varin-Mema:
tama shavapa ayase ?
grande.árvore habitante têm
‘também tem na copa da grande-árvore?’
33
Em uma conversa formal, de demonstração de medida, dizemos vakῖ (altura ou tamanho).
65
Tama Saĩpa:
tama shavapa ayase tama-shavapa kamã’nã
grande.árvore habitante tem grande.árvore vivente/habitante onça.AFIRM
‘também tem na copa da árvore, existe onça da copa da grande-árvore’
Nesta longa conversa, o meu kôka (irmão da mãe) Tama-Saĩpa fala dos ascendentes do
nawavo do meu pai (rane-nawavo ‘enfeites’), para que eu possa entender a formação da nossa
sociedade, entre quatro diferentes dimensões - nai-mai ‘terra-céu’, tama-shava ‘vivente da copa
da árvore’, vei-mai ‘terra-morte’ e ene-oke mai ‘terra-fundo da água – bem como a conexão
existente entre os nawavo dos maiores e os nawavo dos menores. Por um bom tempo não
entendi a diferença entre nawavo dos maiores e nawavo dos menores. Meu kôka (MB), ao
perceber que não estava habituada a entender essas diferenças, começou contando o processo
de origem dos nawavo, o modo como se dá a continuidade do rane-nawavo (nawavo-enfeites)
e dos sata-nawavo (nawavo-lontras). Com relação aos sata-nawavo, é preciso entender que
existem sata-nawavo poto-pavo (nawavo-lontra dos menores) e sata-nawavo vene-pavo
(nawavo-lontra dos maiores, ou seja, nawavo-ariranha). Em outras palavras, no interior do sata-
nawavo existe a distinção entre ‘maior’ (sata ariranha) e ‘menor’ (sata lontra). Essas distinções
internas a um nawavo não acontecem em todos os nawavo. A transmissão do conhecimento
onomástico está associada a essas distinções.
66
34
As letras da escrita no papel não têm vida, não têm significado. Para os Marubo a escrita dos nawavo-rasῖ é
um traço sem sentido, não representa um corpo como kene faz. Então, eu precisava fazer as letras falarem. Aqui
pode começar uma longa conversa, que deixo para outra ocasião, outro ensaio.
67
nawavo para namorar e casar; se estiver em falta, o que tem que fazer é buscar casamento em
outras aldeias.
Apresento, então, o Quadro I, onde na primeira coluna à esquerda tem uma explicação
dos nawavo que estão na coluna adjacente e suas relações de parentesco. Do mesmo jeito, na
última coluna à direita está a explicação dos nawavo que estão na penúltima coluna à direita e
suas relações. 1A, 2A, 3A e 4A são nawavo concorrentes agregados (conjunto de nawavo não
casáveis, são nawavo takevo ‘irmãos’, com os quais o casamento é proibido); o mesmo vale
para 1B, 2B, 3B, 4B, 5B, 6B, 7B. Na coluna do meio, as setas permitem que o leitor identifique
os nawavo pretendentes de cada lado. Os mais velhos e mais velhas com os quais conversei
mencionaram, para mim, os nawavo extintos que se encontram nos dois Quadros abaixo
dizendo: “seus nawavo de casamento ainda não foram extintos”. Como aprendiz achei
importante não excluir.
Nos Quadros 1e 2, as linhas coloridas conectam os nawavo que podem casar entre si.
Tudo o que está contido nos parágrafos e Quadros acima sintetiza, à guisa de exemplo,
os conhecimentos que eu, como yôra-rasῖ, devo dominar para tecer a rede de minhas relações
de parentesco, incluindo possíveis casamentos. O que estou abordando aqui não é simplesmente
o modo de se tornar parente, mas, sim, o modo como os yôra-rasῖ (povo marubo35) se organizam
em nawavo, o que se reflete nos costumes e modos de ver o mundo. Segundo os mais velhos,
se não reforçarmos no mundo atual esse modo de ser, no futuro ninguém saberá como funciona
a identificação dos nawavo, principalmente no que concerne aos nomes pessoais, aos nawavo
pretendentes originários, aos nawavo pretendentes agregados (conjunto de nawavo fratria do
meu esposo) e aos nawavo concorrentes agregados (conjunto de nawavo fratria do meu
nawavo). Não será possível, também, saber das consequências de quebrar os tabus que estão
relacionados ao casamento com o nawavo errado, o que é fundamental para prevenir vaká
veima, a ‘morte do vaká’, principalmente no que se refere aos jovens, que costumam ser
capturados pelas lógicas simplificadoras dos Brancos.
O povo marubo, além da preocupação com wetsam’ya ‘ter parente’, se preocupa com
ane venoa, ‘perda de nomes pessoais’. Por exemplo, entre casamento de diferentes nawavo
(como vimos nos Quadros 1 e 2), a mulher sendo responsável por perpetuar o nawavo
35
Coloquei ‘povo marubo’ como tradução da palavra yôra-rasῖ, mas é só para entender a quem estou me referindo,
quando menciono yôra-rasῖ.
69
geracional, é visto como erro grave ela esquecer os nomes pessoais do nawavo dos seus filhos
e é condenável quando ela aceita os nomes pessoais de outro nawavo.
Para os meus mais velhos, o conhecimento sobre os nawavo e os nomes pessoais é
essencial para uma pessoa, porque a sabedoria é a ponte principal para fazer a passagem perfeita
entre a vida e a morte (voltarei a isso no quarto capítulo). Se a pessoa não sabe valorizar o
conhecimento e respeitar o modo de ensinamento dos nossos ancestrais, está colocando em
risco seu vaká e a possibilidade de fazer uma boa jornada para chegar na terra dos seus
ancestrais, onde vivem os yovevo, que Cesarino chama de ‘entidades prototípicas’ (Cesarino,
2011:414). Para isso não acontecer, tem que seguir o ensinamento dos nossos antepassados, o
ese (ensinamento) nos faz termos bons argumentos, de modo a não acontecer o que temem:
vana venoa, ‘perdas de falas’.
Para poder ter melhor compreensão de termos e expressões complexos, tive que
perguntar para o irmão da minha mãe, meu kôka, e para meu pai, e desta forma ouvi explicações
sobre os significados dos nomes pessoais na fala cotidiana. Comecei a simplificar as histórias.
Para minha sorte, os meus mais velhos demonstravam essa preocupação comigo; segundo eles,
como para toda fala de histórias orais, as interpretações não são as mesmas entre os diversos
kẽchῖtxo-rasῖ, ‘os xamãs’ (donos das sabedorias/pensadores, ascendentes anciões dos nawavo).
Eles não conseguem entrar em concordância, eles mesmos não têm consenso. Assim, na maioria
das vezes, eles são responsáveis por fazer seus filhos obterem a narração oral repercutindo o
modo como foi adquirido pelos seus mais velhos (o que os avôs receberam dos pais e os pais
receberam dos seus pais).
Como aprendiz de ese ‘ensinamento’, o que pude perceber dos meus mais velhos,
quando eu pergunto sobre algum assunto, é que eles não me respondem diretamente. Começo
a receber conselhos, eles mencionam exemplos de uma narração. Diante de tudo aquilo que não
conheço, às vezes acho que não querem me contar ou estão mudando de assunto, mas, na
verdade, eles querem me preparar para o universo do nosso conhecimento, antes de me dar a
resposta, e assim poderei compreendê-los melhor. Quem faz pergunta direta para ter resposta
direta são os não indígenas.
Muitas vezes, ao longo do meu crescimento, eu ouvia minha mãe falar para mim: “Se
queres ser boa ouvinte e boa aprendiz, tem que estar atenta ao que realmente está sendo dito,
para não cometer o mesmo erro que o jacaré, o cutia e o papagaio, quando vawãwã (o papagaio
70
grande anunciador da chegada das pessoas após a morte) repassou o recado de Rôka (o que
descasca a pele mortal das pessoas que chegam ao seu destino após a morte) dizendo: “Os
viventes desta terra daqui para frente terão uma vida longa, para isso trocarão de pele em cada
fase da sua vida”. Como eles estavam distraídos e não prestaram atenção, o papagaio correu
para dizer a seus parentes: “Olhe! Rôka disse para cortarmos a língua, assim teremos uma vida
longa”. E assim ele cortou a própria língua. O jacaré fez o mesmo. Cutia repassou o recado de
outro jeito para seus parentes: “Rôka falou para nós sentarmos no nane shepo ‘resíduo de
jenipapo’”. Aqueles que estavam atentos, aguardando o anúncio, ouviram o recado de vawãwã
corretamente. Os seres humanos nem sequer ouviram.”
Com esta história, minha mãe quis ilustrar o fato de que cada um interpreta e, por sua
vez, narra para outros, de uma forma diferente. O ser humano, ao ganhar esse mundo, sente-se
no direito de criar sua própria narrativa, esquecendo de seguir o que seus ancestrais lhe
deixaram. Cada um procura privilegiar a centralidade de seu próprio nawavo. Por isso, se de
um lado eu não escaparia desse caleidoscópio de versões e do ego-centrismo, por outro lado eu
deveria procurar a melhor forma para apresentar os diversos relatos que me foram contados,
um desafio quase impossível de vencer. Nesses relatos, os meus mais velhos sempre me
colocavam no centro irradiador das relações, já que estavam se dirigindo a mim, e não teriam
outro modo de contar.
Assim, na perspectiva dos mais velhos, as informações dadas através dos romeya-rasῖ,
‘pajés’, têm que ser recebidas com uma certa cautela, com base na interpretação, para que haja
um consenso. O mesmo pode ser dito das mensagens recebidas pelos kẽchῖtxo-rasῖ com a ajuda
do romeya; o romeya é intermediário de dois mundos, ele se comunica com o mundo dos vaká
dos yõinivo (yoĩni-rasĩ ‘animais’’), nivo (‘ni-rasῖ ‘plantas’’) e yôravo (‘yôra-rasῖ pessoas’’),
trazendo para seu povo linguagens diferentes para ensiná-lo. Para os yôra-rasῖ sempre houve
um modelo mental organizado pelo qual cada ser convivia e convive em relações sociais com
outros seres também sujeitos, além e aquém deles serem categorizados, como fazem os nawavo,
em yoĩni-rasĩ ‘animais’’, ‘plantas’ e ‘pessoas’ (Descola, 2015). Tais interações, porém, não
estão baseadas em hierarquia ou submissão, não há importância de uns seres sobre outros, pois
a relação principal que une o emblema (sol, onça, jaguatirica, grande árvore, arara, etc.) e a
pessoa está fundada exclusivamente no mesmo espaço de origem; já as relações de nawavo
como vari e tama, diferem por ter distintas narrativas de origem, ainda que haja vínculo por
gerações alternadas. Cada ser existe para realizar uma integração entre sociedades por meio de
trocas. Por exemplo, em um período de caça coletiva, as caças são acolhidas e divididas entre
os caçadores em formas de interação com os vaká das caças (sendo eles, outros nawavo).
71
O jeito certo de absorver a sabedoria dos ancestrais é no ritual, onde acontece sheni-
wetsa-rasῖ nikã vana, a ‘escuta da conversa dos mais velhos’ e a reunião noturna kenã-namãsho,
‘sobre o banco de sentar’, quando eles tanto trocam ideias como aprendem. A narrativa
mostrada a seguir, menciona a origem dos nawavo de maneira metafórica.
Nas falas ‘xamânicas’ dos kẽchῖtxo-rasῖ, as origens dos nawavo estão relacionadas às
terras (‘terra’ é a metáfora referente às mulheres, o símbolo das mulheres). Para que possam
entender, farei a descrição de cado nawavo, começando pelo nawavo-sol, que emergiu de vari
mai nãkõsho ‘âmago da terra sol’. As palavras dos kẽchῖtxo-rasῖ, ‘xamãs’ (a forma como eles
contam/relatam) narram o surgimento dos vevo weni’tivo yora-rasῖ, os ‘primeiros nawavo
surgidos’. Os varῖ-vake nawavo, ‘filhos do sol’, vari mai namesni pepinivaῖ weni’nitivo, ‘antes
de existir, eles gemeram, fazendo a terra-sol se mover’, ocasionando, com seus movimentos,
uma grande rachadura. Estes subiram, empurrando o osso da anta-sol (comparação com os
ossos fortes da anta), atõ awe-shavo-rasῖ’nῖ, ‘juntamente com as suas irmãs’. As vari-shavovo,
‘mulheres do nawavo sol’, são denominadas wenia-shavovo ‘mulheres surgidas’. Seus
pretendentes e suas rivais as chamam tanasmavo ‘doidas’, segundo o irmão da minha mãe, por
elas serem as pioneiras de aprender e ensinar a namorar, ter ciúmes, ter raiva, curiosidades,
engenhosas, entre outras coisas que “não prestam”.
As outras mulheres com as quais eu conversei me contaram que as mulheres do varῖ-
nawavo (nawavo-sol) são donas do conhecimento de kene-rasῖ ‘desenhos, grafismos’, por
serem as primeiras mulheres a surgirem como conhecedoras de sabedorias, assim como as
mulheres tama-uavo ‘flor-grande árvore’, que são toavo ‘crias’ das mulheres nawavo-sol. Os
kene-rasῖ (grafismos) se encontram em cada tama-meã ‘galhos da grande árvore’. Essa é a
identidade que representa os nawavo. Outra forma de denominar o vari-nawavo é varῖ-vake-
nawavo, ‘filhos do sol’.
Apresento a vocês, através de um desenho, a primeira ‘vari-shavo36 ‘mulher-sol’, na
perspectiva da descrição narrativa que estabelece o elo entre a terra e a mulher. O desenho, de
autoria do meu filho, resultou de nossas conversas e dos meus ensinamentos, enquanto fazia
minha pesquisa e escrevia a tese.
36
A palavra vari-shavo (singular) se refere a uma mulher pertencente ao vari-nawavo (plural); vari-nawa (singular)
se refere ao homem.
72
Como havia dito anteriormente, as mulheres do nawavo-sol são tidas como weniya-
shavovo (mulheres surgidas), juntamente com seus irmãos (homens e mulheres), assim
expandindo o isko-nawavo (nawavo-japu), para a existência dos tama-uavo (flor-grande árvore)
e shane-nawavo (nawavo-pássaro azul), como seus toavo ‘crias’. Ressalvo que o isko-nawavo
(‘japu’) apenas mencionado é o mesmo que se originou da copa de tama ‘grande árvore’ (falarei
da origen dos isko-nawavo no segundo capítulo, junto com as origens dos outros nawavo).
Através de outro desenho, abaixo, apresento a primeira mulher isko-nawavo, que fez
surgir o shane-nawavo ‘pássaro azulão’ (isko-nawavo e shane-nawavo formam par de gerações
alternadas). Os rovõ-vake nawavo, ‘os filhos do japu’, gemeram, fazendo a terra do japu se
mover, ocasionando uma rachadura com seus movimentos. Eles subiram, empurrando o osso
da anta-japu, atõ awe-shavo-rasῖ’nῖ, ‘juntamente com as suas irmãs’.
73
37
Dois pares de gerações alternadas, em analogia ao sistema australiano (Lévi-Strauss, 2012: 187).
74
38
A infertilidade ocorreu propositalmente através de ervas medicinais que bloqueavam a ovulação.
39
As quatro gerações alternadas do povo yôra-rasῖ (Marubo) encontram-se no Quadro 8, no segundo capítulo.
75
conexão de parentes para esclarecer os termos dados na língua a esses processes de agregações
de outros nawavo no desenvolvimento do próprio povo.
É necessário um comentário prévio sobre a repetição dos nomes dos nawavo. Tem cinco
isko-nawavo (japu), sendo que, pela explicação que obtive, suas diferenças são: os japus da
grande árvore, os japus da samaumeira, os japus das árvores baixas, os japus das palmeiras, os
japus da terra e dos capins. Tem dois ni-nawavo (floresta): o que pertence à terra firme e outro
que, na sua forma ‘animal’, pertence à profundidade dos rios e, na sua forma humana, pertence
às margens dos rios. Por fim, tem três ino-nawavo: onça-pintada, jaguatirica, onça-
vermelha/onça-parda.
Para facilitar, vou apresentar os yoῖni-rasῖ ‘animais’ emblemas que simbolizam as
origens dos nawavo através de desenhos40. Estes, mesmo tendo nomes iguais, possuem
diferentes formas de manifestar as suas existências.
40
Substitui imagens tiradas da internet por desenhos, seguindo sugestão de minha coorientadora, Profa. Vanessa
Lea. Os desenhos foram feitos por um amigo – Thiago Ferreira (não indígena oriundo da cidade de Curitiba) -
conhecido no facebook depois de uma minha palestra em 24 de abril de 2021.
76
filhos do japu’. Já adiantando o assunto do segundo capítulo, esta árvore, ao ser sacrificada,
pediu aos tama-uavo, ‘flores da grande árvore’, que recebessem, em homenagem a ela própria,
os nomes pessoais oriundos do evento de sua derrubada.
Apresento o Quadro dos nomes pessoais recebidos pelos tama-uavo (nawavo flores-
grande-árvore):
41
Tama, nome de nawavo, recebe nasalização na vogal da última sílaba ao entrar numa relação genitiva
(pertencimento) com outro nome, mas este ‘pertencimento’ pode ser desfeito. Se a última vogal não recebe
nasalização, trata-se de uma relação de pertencimento que não pode ser desfeita.
77
chegando a sua hora, começou a falar: “ẽ yomevo ‘meus filhos’, “txipo shava-otapa enõ
anetxoma ea mã neska”, ‘já que fizeram isso comigo, vocês irão me dar continuidade através
dos nomes pessoais que me homenagearão’. Assim, foram mencionados por Tama os seguintes
nomes:
Pelas flores que possuo, chamarão o filho de vocês de Tama-Ua ‘Flor-Tama’;
pelo meu sangrar ao ser cortada, irão chamar o filho de vocês de Tama-Imi ‘Sangue-
Tama’;
pelo dilatar das minhas cascas, irão chamar o filho de vocês de Tama-Ivi ‘Casca-
Tama’;
pelas minhas gemas axiliares42 irão chamar o filho de vocês de Tama-Shãkô ‘Gema-
Terminal-Tama’;
pelo volume das minhas folhas, irão chamar o filho e filha de vocês de Tama-Võkô
‘volume das folhas-Tama’;
pelas folhas novas que possuo, irão chamar o filho e filha de vocês de Txoko Tama
‘Broto-Tama’;
pelos meus frutos irão chamar o filho de vocês de Tama-Vimi ‘Fruto-Tama’;
pela forma como vou cair ao ser derrubada, irão chamar o filho de vocês de Tama
Pesu ‘Horizontal-Tama’;
pelas vespas que possuo no meu corpo, irão chamar o filho de vocês Tama Vina
‘Vespa-Tama’;
pelo jorrar do meu sangue, irão chamar a filha de vocês de Tama-Yaka ‘jorrar do meu
sangue-Tama’;
pelos insetos ou besouros que se hospedam em mim, irão chamar a filha de vocês de
Tama Sheta ‘Cerambicídeos (insetos)-Tama’.
Esses ‘insetos’ são denominados de sheta ‘dente’. Os nomes femininos são: Tamã-
Maia ‘Maia-Tama’, Tamã-Pekô ‘Pekô-Tama’, Tamã-Yuchi ‘Yuchi-Tama’, Tamã-
Tsau ‘Tsau-Tama’, Tamã-Võchi ‘Võchi-Tama’. Esses são os nomes dados por Tama,
‘grande árvore’.
42
A gema axilar é uma gema acessória localizada na axila (junção dos ramos com o pecíolo) das folhas.
78
Eu perguntei para os filhos da minha irmã mais velha quais seriam esses pássaros
tsiris-korovo, considerados nawavo menores existente hoje, como o isko-nawavo ‘japu’. O
pássaro trinca-ferro, por exemplo, é poto-pavo (nawavo dos menores) do isko-nawavo ‘japu’.
43
Os nawavo isolados não têm nawavo originário para casar, não têm nawavo maiores e nem menores, não têm
nawavo irmão para trocar nomes pessoais. A palavra ‘isolado’ é a minha tradução de nawavo wetsamama ‘nawavo
sem parentes’.
44
A palavra txaitivo pode ser analisada em txai-ati-vo (homem.casável-passado.origens-coletivizador). A hárpia,
nos tempos das origens, caçava para as mulheres enquanto seus esposos estavam distantes para procurar alimento.
As mulheres cantavam canto de ninar pedindo à hárpia caçar para elas e txaitivo as atendia deixando uma caça no
igarapé, para que, quando fossem tomar banho, pudessem pegá-la, como uma paca, um macaco, um nambu. Ela é
txai como se fosse amante das mulheres.
80
de isca para atrair txaitivo. Obedecendo a seus parentes, a anciã se dispôs a ficar na mira de
txaitivo. Assim que a anciã apareceu na porta do cercado, a ave voou em sua direção, só que ao
invés de capturar a anciã com suas garras enormes, ela apenas perfurou o caule da palmeira da
cerca, o que fez com que o plano não desse certo e as flechas não a atingissem.
Cansados pelo fracasso do plano, numa certa noite, os txonavo ‘macaco barrigudo’
ouviram os cantos dos sapos e tiveram a ideia de extrair o veneno destes para matar txaitivo.
Mais uma vez pediram que a anciã se arriscasse e fosse coletar o veneno de sapo. Obedecendo
aos seus parentes, com uma panela de barro nas costas para não ser vista por txaitivo, ela saiu.
Por um golpe de sorte, durante a caminhada ela escorregou e caiu justamente na casa dos sapos.
Ela disse: “Desculpem, achei que vocês eram yoῖni-rasῖ ‘animais’, estamos sendo atacados por
txaitivo, nossos planos de matá-lo não estão dando certo e me pediram que eu viesse pegar
veneno de vocês”. Os sapos se mostraram imediatamente muito atenciosos com a anciã,
dizendo: “Estamos sabendo da situação de vocês, nós estamos em festa, pois é a época de
fertilização”. Logo apresentaram à velha os vários tipos de veneno, explicando suas utilidades:
“Com este veneno só matamos yoῖni-rasῖ ‘animais’ como antas, queixadas, porcos; com este
matamos macacos e com este matamos aves, espero que isto os ajude”. A anciã voltou para
casa feliz, levando o veneno. A partir daí, os txonavo ‘macaco barrigudo’ se tornaram
conhecidos como donos do conhecimento de venenos; na atualidade recente, eles eram muito
temidos por jovens de outros nawavo, por eles agirem com maldade usando seus conhecimentos
xamânicos.
Lembro minha mãe ter me contado que os txonavo, ‘macaco barrigudo’, são nõ ave
ane viananãti ‘nossos irmãos nawavo para trocarmos nomes pessoais’; pela semelhança das
histórias de txaitivo/árvore samaumeira e árvore tama, as mulheres e os homens txonavo são
meus irmãos e eu tenho que me comportar como a tal de irmã merecida. Não bastando a
complexidade de tudo isso, nem todos os nomes pessoais do vari-nawavo, ao qual eu pertenço,
são iguais aos nomes pessoais do txonavo, ‘macaco barrigudo’, porque este também recebeu
nomes pessoais pelos artefatos usados para construir o cercado quando planejavam matar
txaitivo, como, por exemplo, o nome masculino Isã-Tapã, ‘Tronco-Bacaba’. Esta palmeira tem
um caule muito forte e bem resistente, não apodrece facilmente. Para que saibam do que estou
falando, abaixo trago um desenho da palmeira bacaba.
81
Além do par de geração alternada matrilinear, segundo os mais velhos (♀♂) alguns
nawavo também se originaram juntamente com seus pares de pretendentes primordiais. Assim,
os mais velhos (♀♂) me contaram que, na narrativa de origem, shono-nawavo ‘samaumeira’ e
sata-nawavo ‘ariranha’ são, entre eles, nawavo de pretendentes primordiais. O mesmo acontece
com os txonavo ‘macaco barrigudo’ e rovo-nawavo ‘japu do bico branco’, que também são,
entre eles, nawavo de pretendentes primordiais. Na nossa língua, denominamos essa relação de
txaitxo anevo ‘descendentes dos nomes pessoais do nawavo do pai da mãe (MF)’.
Os sata-nawavo ‘lontra’ alegam que o ni-nawavo ‘floresta’ faz par de geração
alternada matrilinear com o rane-nawavo ‘enfeites’, os rovo-nawavo poto-pavo ‘japu dos
nawavo menores’ e os rane-nawavo ‘enfeites’ são nawavo pretendentes primordiais dos satã-
nawavo. Alguns mais velhos (kẽchῖtxo ‘xamãs’), porém, dizem que essa afirmação é
equivocada, já que só é dito dessa forma porque estão pensando nos casamentos acontecidos
entre seus antepassados. Dizem que, mesmo que a jornada dos sata-nawavo ‘ariranha/lontra’
após a morte seja originalmente via ene-oke ‘fundo da água’, suas narrativas de origem são
diferentes das dos ni-nawavo ‘floresta’ e dos rane-nawavo ‘enfeites’. Os mais velhos (♀♂)
alertaram que ouviria de muitas pessoas diversas versões das histórias de cada nawavo, de
forma equivocada. Por exemplo, a existência do rane-nawavo (pela linguagem xamânica) se
originou a partir de uma mulher que veste mane ‘ferro’, conectada às florestas das margens dos
rios, enquanto em outra versão do relato, a origem do rane-nawavo está conectada à queixada
(Tayassu pecari), confundindo com a origem da narração dos enfeites de aruá (caramujo).
Sendo assim, como aprendiz não posso me basear em um único relato, para evitar
generalizações indevidas.
83
Através do desenho apresento, agora, para vocês o txona ‘macaco barrigudo’ e, com
ele, o txonã-vake-nawavo (nawavo filhos-macaco barrigudo).
Sina M Revolta/raiva/ódio/ciúme-ave de
rapina
Tete-Shavo-Maia F Maia-mulher-Tete
Tete-Pei M Pena-ave de rapina
Mentsisi M Unha
Tete-Shavo-Peko F Pekô-mulher-ave de rapina
Tete-Shavo-Mashe F Praia-mulher-ave de rapina
maiores” (ver explicação nas páginas (46 e 63). O sata-nawavo ‘lontra’ faz par de geração
alternada com o isko-nawavo/rovo-nawavo ou rovõ-vake-nawavo; estes são considerados poto-
pavo “nawavo menores”. Atualmente, esses dois nawavo semelhantes vivem em transformação
de casamento (casam-se entre si ou têm romances secretos). Do ponto de vista dos mais velhos,
por serem nawavo irmãos, não haveria possibilidade de relacionamentos íntimos entre seus
membros; se houver, isto é considerado incestuoso, fazendo com que suas vaká e suas verõ-
yochῖ ‘pupilas’ tenham uma morte permanente sem direito à jornada de volta ao seu lugar de
origem. Antigamente era considerado um erro vergonhoso para a família onãkimã-iki ‘não
reconhecer’ (a relação de ‘irmaõs’ dentro de uma fratria); hoje em dia se justifica esse ato
mencionando os casamentos misturados de João Tuxaua (ver o quarto capítulo).
Quando falo de nawavo maiores, nawavo menores, nawavo primordiais, nawavo que
transmitem e compartilham nomes pessoais semelhantes e nawavo isolados, o intuito é o de
apresentar para vocês que o povo marubo é composta por diversos nawavo, várias formas de
surgimentos, incluindo os nawavo que existiram e os existentes. Não adentramos em nosso
universo por uma única versão das histórias dos nossos antepassados. O que nos enriquece, nós
yõra-rasῖ, no conhecimento e no ensinamento, são essas diferentes formas de existência dos
nawavo ná-ivo maῖ ‘pertencentes a esta terra’.
Vamos retomar as histórias dos isko-nawavo. Logo abaixo vem o desenho de saracura-
de-três-potes, a forma animal do txachkõ-nawavo ou mai-iskovo ‘japu da terra’. Tem várias
versões para denominá-lo: iskõ-vake-nawavo (nawavo filhos do japu), isko-nawavo (nawavo
japu) ou txashkõ-nawavo (nawavo saracura de três potes).
Em seguinda vem a arara vermelha, a forma yoῖni ‘animal’ dos shawãvo (uma relação
simbólica cosmológica social da narrativa de origem); seus ancestrais nunca puderam viver por
muito tempo para transmitir seus ensinamentos. Os shawãvo são considerados por outros
nawavo como os que espalham intrigas.
tomavam remédios para não engravidarem dos seus inimigos. Tanto é que atualmente, entre os
yôra-rasῖ (povo marubo), os shawãvo ‘arara vermelha’ e txachkõ-nawavo ‘saracura-três-potes’
são vistos como tendo a maior população. Os mais velhos afirmam que as mulheres desse
nawavo não lembram mais de seus nomes pessoais originários e, por isso, ane-venoyavo
‘perderam nomes pessoais’ e ane-wetra-viayavo ‘pegam nomes pessoais de outros nawavo’.
Os membros do txachkõ-nawavo ‘saracura-três-potes’ são considerados como mai-
iskovo, ‘japu-terra’. Explicam os mais velhos que seu canto é como um ritual costumeiro entre
uma mulher pertencente ao nawavo e os seus pretendentes: todos os dias, ao entardecer, ela e
seu esposo faziam um “dueto de enganos”, já que no meio do canto havia mentiras e traição ao
invés de flerte.
reproduzida nas páginas 46-65, são da margem da água e não devem ser confundidos com os
ni-nawavo do qual falo agora, que são da terra firme.
Há muitas divergências no relato sobre ni-nawavo ‘floresta’ e rane-nawavo ‘enfeites’
pelos anciões. Muitos deles afirmam que são ascendentes da Shoma-Wetsaya e que já foram
extintos. Outros contam que os ni-nawavo foram humanizados (amansados) pelos vari-nawavo
‘nawavo sol’. Este ni-nawavo era vene-pavo ‘nawavo maior’. Outros mais velhos, inclusive
meu kôka Kenãpa, afirmam que os rane-nawavo, nawavo do meu pai, descendentes de Shoma-
Wetsaya, nunca tiveram nawavo maiores ou menores. Outro modo de se referir a ni-nawavo é
nῖ-vake-nawavo (nawavo filhos da floresta)/ni-nawavo (nawavo floresta) e ranẽ-vake-nawavo
(nawavo filhos dos enfeites) /rane-nawavo (nawavo enfeites/enfeites do corpo).
45
É uma relação social entre nawavo.
89
sheshe ‘maritaca’ (pássaro da pupunha). Em outras formas de narrar são denominados de wanῖ-
vake-nawavo (filhos da pupunha). Koro-nawavo e wanĩvo são considerados poto-pavo
‘menores’, pelo seu tamanho, na versão menor, derivada do kayapa (verdadeiro). Koro-nawavo
e wanĩvo têm ni-nawavo ‘floresta da árvore angico vermelho (Anadenanthera macrocarpa)’
como seu nawavo pretendente originário.
Naquela época a mulher era muito valiosa, porque, os nawavo tinham poucas
mulheres. Como ninguém tinha noção da distância entre as aldeias, a aproximação de
outros nawavo era sempre tensa, ninguém se casava fácil como hoje, a maioria das
vezes elas eram capturadas para serem desposadas. Essas atitudes sempre atraiam
vingança e as vinganças sempre terminavam com muitos corpos estendidos na floresta
e muito sangue jorrava das mãos de cada homem. Ninguém dormia sossegado como
hoje, qualquer barulho na floresta era motivo para ficar em alerta, o expediente da
46
Kasta é o termo para a cor amarela.
90
fuga era algo constante para os nawavo. Principalmente este nawavo que acabou de
entrar em extinção: um homem chamado Kama-Nawa, para se vingar do seu próprio
kôka, irmão da mãe, pediu ajuda aos caucheiros para obter arma de fogo. Este fato,
além de pôr um fim ao seu nawavo, também levou metade dos nawavo junto. Isso
aconteceu ali onde é o igarapé de Todos os Santos, no nosso rio Curuçá. Outros foram
levados pelos caucheiros para o desaguar dos grandes rios, hoje não sabemos quem
são, já são não indígenas (brancos).
Dos casamentos
♂♀ koro-nawavo – H 1-ni-nawavo
Até o início do ano de 2020, como afirmado anteriormente, havia nove pares de nawavo
de gerações alternadas, mas, como já mencionei, no mês de agosto de 2021, com a morte do
professer Benedito por Covid-19, aconteceu o desaparecimento definitivo dos ino-nawavo, que
fazem par de geração alternada com os kana-nawavo. Atualmente só temos oito pares de
nawavo e estas unidades são exogâmicas. Segundo os mais velhos, faz muito tempo, o par chai-
nawavo (coletivo de pássaro) e yene-nawavo (cigarra) foi extinto, já que crianças resolveram
juntar e torrar as cigarras (que são uma praga), para jogá-las no ar; as vaká das cigarras se
revoltaram e mandaram um vento forte que varreu esses nawavo, levantando-os do chão, como
forma de castigo.
94
47
É uma sombra, um reflexo; para os Yõra-rasῖ esses seres são fáceis de se corromper para o lado do mal, se
tornando animais insignificantes (uma barata, uma centopeia, um inseto) para vagarem na terra, assombrando as
pessoas por tentarem se comunicar.
95
CAPÍTULO II
Nõ aya wenia wetsama, ‘parentes que emergiram conosco’
- na coluna à esquerda estão os termos, em forma coletiva, para os meus parentes que recebem
nomes pessoais do seu nawavo;
- na coluna à direita, estão os nawavo aos quais pertencem as mulheres e os homens
referenciados pelos termos na coluna à esquerda.
Nõ aya wenia nokẽ wetsamanῖ nõ onanã neskakῖ aneti, onãniki ramachta nõ ikima,
eservi onaniki wetsamaya, yora wetsam yamisma chinã eseyashõ ã ikimarivi. Ea aska,
ea sinaka keska, aska mẽkῖ yora katsese ẽ onãrivi, ea weniya-shavovõ toarvi, ẽ papa
yora ãtsa akaya akasho, ẽ ese shõtikasma, rão pei yosikasma, vopi awesaimai ẽ chinã
vanayai wenikatsarvi, ẽ aya ashkari iki keskase.
Nossos termos de parente surgiram com a gente, os termos não foram inventados hoje,
eles fazem parte do ensinamento. Tais termos unem nossos parentes. Entre as pessoas
que não reconhecem esses termos, não há sabedoria. Tenho jeito mau encarado (riso),
mas todas as pessoas são reconhecidas por mim através desses termos; sou filho das
primeiras mulheres (nawavo), meu pai (João Tuxaua) é o responsável pela
multiplicação do povo. Meu conhecimento não é só xamânico, não aprendi a curar só
com ervas medicinais, a morte não dificultará o meu retorno à origem; tenho sabedoria
nas falas, farei o percurso como em vida.
dos termos de parentesco exibidos no Quadro 6 acima. Trago, diante da literatura existente, o
acréscimo das minhas informações sobre os quatro nawavo: vari-nawavo (sol), tama-uavo ou
isko-nawavo (flor-grande-árvore ou japu), isko-nawavo (japu) e shane-nawavo (pássaro
azulão). Aproveito o quadro de gerações alternadas elaborado pela antropóloga Elena Welper
(2009: 44), no qual fiz uma pequena atualização. Com base nos relatos dos mais velhos, inverti
as colunas do esquema apresentado por Welper, de modo que o que estava na coluna B foi
colocado na coluna A, em observância à ordem dos vevo wenio nawavo, os ‘primeiros
emanantes’ e resultando no Quadro 10. Como um dos mais velhos diz:
A B
G+1 Vari Isko
G0 Tama Shane
G -1 Vari Isko
G–2 Tama Shane
Fonte: Reelaboração de WELPER (2009: 44)
O Quadro acima representa o modelo dos casamentos geracionais entre dois pares de
nawavo na sociedade yôra-rasῖ, no formato que possibilita a continuidade dos nomes pessoais
ewã-anevo (nomes pessoais do nawavo da mãe da mãe MM) e natxῖ-anevo (nomes pessoais do
nawavo do pai do pai FF). Para a sociedade yôra-rasῖ, o conhecimento dos nomes faz parte da
sabedoria.
Mesmo que a perpetuação dos nawavo geracionais alternados esteja relacionada à
capacidade reprodutiva das mulheres, o conhecimento sobre os nomes pessoais é fundamental
para identificar os nawavo primordiais nos casamentos. Se por um acaso a mulher for se casar
com alguém de outro nawavo que não faz parte do surgimento, se ela não dominar o
ensinamento dos nomes pessoais dos nawavo da sua mãe, ela pode dar por perdida a
continuidade dos nomes pessoais do seu nawavo. Dominar as informações de nomes pessoais
também é muito importante para prevenir de ser acusado de roubar nomes pessoais. Cito o caso
de um homem isko-nawa ‘japu’, casado com uma mulher shawãvo ‘arara vermelha’, que
tiveram filhos do txashkõ-nawavo (saracura de três potes). Entretanto, os filhos receberam do
pai os nomes do tama-uavo, ‘flor da grande árvore’. As mulheres do vari-nawavo ‘sol’, sendo
geração alternada do tama-uavo, não perdoaram a mãe e a julgaram por roubo de nomes. O
mesmo pode acontecer com outros nawavo, que não dominam o conhecimento de nomes
pessoais.
Os termos de parentesco nos possibilitam o entendimento sobre quem são nossos
parentes mais próximos e os parentes agregados. Os termos também estão relacionados com a
sociabilidade nas malocas, nas aldeias, nas atividades, nos repartimentos das caças, nas
colheitas, nas visitas, na recepção de quem chega de outras aldeias, e nos casamentos.
De modo geral, o modelo de casamento do povo marubo é virilocal. Se os pais só têm
filhas e se os irmãos da mãe (MB) não têm filhos homens, as filhas da mãe ou das irmãs da mãe
(MZ) se casam com homens de outros nawavo e são levadas para as aldeias onde residem seus
esposos. O mesmo acontece quando as irmãs FZ e os irmãos FB não têm filhas, ou se houver
mais filhos homens na aldeia: as mulheres de outros nawavo pretendentes agregados se casam
e são trazidas para a aldeia onde residem seus esposos.
Antigamente, era costume um homem se casar com duas ou mais filhas da irmã do pai
(FZD), ou com as primas bilaterais ou com mulheres de nawavo concorrente do nawavo da
esposa deste homem, o que os nawavo (não indígenas) chamam de ‘poliginia sororal’. Quando
um homem é casado com mulheres que são irmãs entre si, a convivência é mais harmoniosa.
Por outro lado, um homem casado com as primas bilaterais tem menos sossego e há
99
desvantagem para a esposa mais nova48. Um homem casado com mulheres pertencentes aos
nawavo agregados (rivais) terá grandes problemas no âmbito doméstico, pois elas irão
provavelmente competir pelas prerrogativas de esposa. O arranjo irá inevitavelmente favorecer
sempre o nawavo de surgimento, mais prestigiado, fazendo com que as mulheres pertencentes
a outros nawavo se sintam menos como esposas e mais como ‘amantes’. Portanto, a mistura
entre nawavo em um arranjo matrimonial não é tida como harmoniosa, por isso é evitada ao
máximo, a fim de não produzir conflitos.
Resgato aqui as palavras de meu kôka Tama-Saĩpa, que já citei no primeiro capítulo,
mas que penso serem importantes de ser relembradas para melhor compreensão das novas
informações aqui apresentadas (ver na página 43):
Assim como meu kôka, muitos outros mais velhos lamentam a falta de tempo dos jovens
para o aprendizado dos ensinamentos tradicionais, principalmente agora, em que se vive um
intenso regime de agregação de casamentos com outras etnias indígenas e com não-indígenas.
Os termos originais diminuíram e os nawavo também. Os Yôra-rasῖ (povo marubo) não rejeitam
as agregações, mas entre os irmãos da minha mãe estes assuntos são comentados com
descontentamento, pelo temor que seu nawavo entre em extinção.
Diante dos diversos nawavo existentes, apresento a seguir como são identificadas as
relações de parentesco através do uso de seus termos:
48
As decisões da primeira esposa podem sobrecarregar a outra, nas atividades domésticas, propositalmente, meio
que punindo a segunda esposa.
49
No Brasil, a Lei n. 8.213 de 24 de julho de 1991 estendeu a cobertura beneficiária da Previdência social aos
trabalhadores rurais e aos indígenas. Por conta desta lei os indígenas passaram a contar com o BPC (Benefício de
Prestação Continuada) para idosos ou inválidos, auxílio-doença, auxílio-acidente, salário maternidade, pensão por
morte e auxílio-reclusão. Por falta de conhecimento, nem sempre os indígenas conseguem acessar todo o leque de
benefícios, mas o BPC dos idosos é algo presente nas comunidades, bem como as idas mensais à cidade para
acessá-lo.
100
- Os vari-nawavo (sol) e isko-nawavo (japu) são pares conjugais desde seu surgimento; são
primas cruzadas bilaterais e primos cruzados bilaterais, os homens são considerados txaitxõ-
anevo (‘que recebem os nomes pessoais do pai da mãe’) e as mulheres são consideradas panõ-
anevo (‘que recebem os nomes pessoais da mãe do pai’) (ver Quadro 6).
- A relação entre vari-nawavo e ni-nawavo (originado da margem da água) deu início a um par
conjugal, conforme contam as narrativas, para apaziguamento da guerra entre eles. Nos termos
de parentesco, vari-nawavo e ni-nawavo são considerados vavavo (filhos dos filhos, SS) e
txaitxovo ‘MF, mais os irmãos’; os seus ascendentes também são considerados txaitxovo;
mesmo não sendo do nawavo original do pai da mãe MF, os filhos de um homem de outro
nawavo casado com MM passam ser txaitxovo para os filhos da filha DS.
- Por fim, a relação dos vari-nawavo com outro ni-nawavo (originado da onça) e com kana-
nawavo, que podem se casar entre si, sendo que vari-nawavo e ni-nawavo (originado da onça),
segundo suas narrativas de origem, são mais afastados ou diferentes, de modo que as suas
relações são consideradas komã-name50 ‘sem restrições no modo de ser parente’, e os termos
de parentesco utilizados são txaivo e txavevo. A explicação que meu kôka Tama-Saĩpa deu é
que txai51 é o termo masculino e txave52 (a explicação encontra-se no Quadro 11 na linha 26) é
sua forma feminina.
O Quadro 11 sistematiza e sintetiza os termos de parentesco vocativos e referênciais.
50
Koma (nambu, Crypturellus tataupa) - name (carne), em tradução livre, designa mulher ou homem que faz
parte da narrativa de origem de nawavo distante; nambu é carne consumida sem restrições.
51
Txai termo de parentesco para homem de nawavo agregado, homem casável ou homem casável de outra etnia,
homem casável de outro povo.
52
Txave é o feminino de txai.
101
53
A presença das mulheres no trabalho coletivo, seja no preparo da roça, na construção da maloca, na caçada,
entre outras atividades, segundo os mais velhos antigamente era considerada importante para vataká ‘adoçar o
ambiente’, já que elas carregavam comidas, as refeições do dia.
104
kãpõ, ‘injeção de sapo54’. Esta criança então herdará sua sabedoria e boa índole; depois disso é
contado para a criança o porquê da escolha desse ancião ou dessa anciã em particular para este
rito, revelando as características do nawavo.
Para melhor compreensão das dinâmicas de parentesco entre os Yôra-rasῖ, passadas de
forma oral, vou fazer um complemento com base no trabalho de Delvair Montagner (1985: 34-
40), que informa que na década de 70 os povo marubo estavam entrando no processe de contato
mais frequente com a sociedade não-indígena, e. no afã de adquirir as ferramentas tecnológicas
para facilitar seu dia a dia, como transportes mais rápidos (motor de rabeta), artefatos, armas de
fogo, tecidos, entre outros objetos dos nawavo (brancos), buscaram um “bom patrão” que os
pagasse melhor, para poder comprar esses objetos. Conta meu kôka Tama-Saĩpa, e contava
minha mãe, que os ni-nawavo ‘floresta’ e os rane-nawavo ‘enfeites’, desde seu surgimento,
adquiriam os alimentos dos nawavo ‘não-indígenas’ e seus artefatos.
Outros nawavo ouviam falar que os ni-nawavo ‘floresta’ e os rane-nawavo ‘enfeites’
guardavam açúcar em um barril feito da palmeira chamada taô-posto ‘barriga de taô’, paxiúba
(Socratea exorrhiza), e que nas suas aldeias tinha espelhos enfeitados de pedras verdes, que
esses espelhos tinham pés, e que as mulheres desse nawavo não tomavam banho lavando
diariamente a cabeça porque aprenderam, através de uma mulher de etnia kanamari, a só lavar
seu corpo do pescoço para baixo, o que era proibido pelos nossos antepassados. Pois, tomar
banho sem lavar a cabeça para os Yôra-rasῖ não aparenta ser higiênico, além de não esfriar o
corpo para a circulação do sangue e a pessoa ficar com mau humor.
Uma Yôra-rasῖ aῖvo koῖ ‘verdadeira mulher Yôra-rasῖ’ tem vergonha de expor seu
odor; a mulher que não lava a cabeça, além de exalar seu odor panemando55 os homens, pode
ter queda de cabelo e ficar careca porque, segundo os mais velhos, quando dormimos, nosso
sangue se concentra na cabeça. Esta é a explicação do hábito de tomar banho cedo para resfriar
a cabeça, para distribuir o sangue pelo corpo, nami matsipá, ‘refrescar carne’. A mulher que se
encontrava entre os ni-nawavo e rane-nawavo, segundo os mais velhos, não tinha vergonha da
sua voz e nem do seu ciúme, tanto é que se exaltava mencionando o nome do esposo dizendo:
“Sai56, o espelho é meu, sempre me disseste que o espelho é meu”. Neste momento se deram
conta de que ela não era Yôra-rasῖ koῖ shavo, uma ‘gente verdadeira mulher’.
54
Kãpô ‘injeção de sapo’, uma substância extraída da pele do sapo, para o povo marubo é remédio, tratamento
para expulsar a energia negativa que pode causar preguiça e para prevenir as doenças que tiram o apetite. O kãpô
também é usado na preparação de caçadas coletivas, nas épocas de festa, para aumentar a percepção do corpo.
55
Isto é, dando má sorte na caça e na pesca.
56
Nome masculino do rane-nawavo (ranẽ-sai ‘enfeite-conta’).
105
Entre os Yôra-rasῖ não se deve mencionar o nome do esposo, tem que se dirigir a ele
com o nome do primeiro filho ou da primeira filha. Por exemplo: caso ele se chame Sai, sua
mais velha (mãe da mãe ou mãe do pai), que tem conhecimento dos nomes, a partir da
adolescência dele, vai atribuir um nome para ele, como Maiãpa57, apesar de ele ainda não ser
pai de Maia. Quando ele se torna pai, vai ser chamado definitivamente de Maiãpapa. As pessoas
são chamadas pelos seus nomes de criança apenas na fase da sua infância. Depois disso, vão
ser chamadas com os nomes de seus futuros filhos e filhas; o nome mudará novamente com o
nascimento do/a filho/a, passando a ser ‘mãe de X’.
Os termos vocativos são utilizados durante a vida toda a partir da adolescência. Os mais
novos não poderão mais chamar os mais velhos pelo nome, assim como os filhos (♂♀) das
irmãs e filhos (♂♀) das primas paralelas bilaterais mais velhos que eles. Por exemplo, eu vou
chamar de kôka/kôkavo os irmãos de minha mãe (MB), os filhos das mulheres do meu nawavo;
os filhos das irmãs do pai; de nawavo agregados, todos mais velhos do que eu. Chamarei de
txai os filhos das irmãs do pai, mais velhos do que eu, de txaitxo os MF, SS e MBS, ou seja, os
filhos dos irmãos e os filhos das primas cruzadas, mais velhos do que eu. Chamarei de epa FB,
BS e MZSS mais velhos do que eu. Chamarei de otxi FF, eB e ZDS. O mesmo procedimento
vale para as mulheres, tanto pelos nawavo primordiais, quanto pelos nawavo pretendentes
agregados e concorrentes agregados. Assim sendo, eu posso usar os mesmos termos de
parentesco para parentes de outros nawavo que não sejam do meu nawavo.
Durante nossa conversa, meu kôka Tama-Saĩpa me dizia: “a importância desses
nawavo nos faz afirmar, como yôra-rasῖ kôῖ shavo (gente verdadeira mulher) ou yôra-rasῖ kôῖ
vene (gente verdadeira homem), que fazemos parte desse mundo yôra-rasῖ kôῖ ‘gente
verdadeira’; o reconhecimento de que somos os primeiros povos a surgir nos permitiu crer no
valor do jeito que somos e isso está na memória dos mais velhos, pela forma de ensinamento
adquirido dos antepassados”.
A partir das conversas que tenho com os mais velhos, cada vez mais percebo que
quando alguém faz perguntas do tipo “qual é sua etnia?” a resposta tem o mesmo intervalo de
tempo de quando perguntam “qual é seu nome?”. Tanto o nome que consta no papel dos
nawavo, como o nome de identificação da etnia denominada pelos colonizadores, nos
diminuem, empobrecendo nosso jeito de ser. Nossos nomes de nawavo têm história que nos
complementa, do passado e do presente, e os nomes dos nawavo nos estimulam o interesse de
57
Maiã-pa: de acordo com a análise da linguista Raquel Costa (1992: 32) o sufixo -pa indica uma comparação. O
sufixo -pa no nome é uma redução de papa, denotando quem ainda não é pai de Maia, porém seu destino como
pai está predefinido no nome em questão.
106
saber mais das origens das nossos nawavo. Por exemplo: Maria, Katia, Nelly, não fazem parte
do nosso povo, a história é outra.
Retomando Montagner (1985: 36), a autora dizia que:
(...) a partir da década de 60 teve início o registro de que os Yôra-rasῖ (povo marubo)
migraram para margens dos rios Ituí e Curuçá, onde passaram por vários processes de
confronto com os povos Matses (Mayoruna), o auge de seringa ao que levou a divisão
dos povos que pretendiam obter melhor empreendimento com um bom patrão, assim
algumos nawavo se juntaram na aldeia chamada Vida Nova do rio Ituí, os nawavo
wanivo (pupunha) /kama-nawavo (jaguatirica), e de kana-nawavo (arara canindé)/ino-
nawavo (onça parda), juntamente com o missionário da missão Nova Tribos; nos
locais mais próximos do rio Curuçá encontravam os ni-nawavo (floresta)/rane-
nawavo (enfeites); nas malocas mais afastadas de Vida Nova estavam os shane-
nawavo (azulão)/isko-nawavo (japu); nas malocas mais distantes de Vida Nova e para
os lados do Curuçá estavam os vari-nawavo (sol)/tamauavo ou isko-nawavo (flor
grande árvore ou japu). Possivelmente, antes do primeiro contato com civilização, as
unidades matrilineares tinham uma localização bem diversa.
Numa quarta aldeia viviam os rane-nawavo (enfeites), casados com mulheres tama-
uavo (flor grande árvore) e mulheres rovo-nawavo (japu do bico branco). Na outra maloca vivia
um homem sata-nawa venepavo (ariranha nawavo maiores) casado com duas mulheres ni-
nawavo venepavo (floresta nawavo maiores) e shawãvo (arara vermelha). Morava, nesta mesma
maloca, um homem da etnia kulina, casado com a filha do dono da maloca. Nessa aldeia
também vivia uma mulher mestiça kanamari/nawavo (outra etnia), casada com um homem
rane-nawavo (enfeites), e uma mulher do rane-nawavo casada com um homem nawa (não
indígena). Esses já não moravam nas malocas, moravam em casas feitas de palmeira paxiúba.
Os Yõra-rasῖ da quarta aldeia trabalhavam como funcionários dos nawavo (brancos), como
pescadores, seringueiros e madeireiros.
O modo de vida dos Yõra-rasῖ ainda segue o padrão tradicional nas duas calhas dos rios
Curuçá e Itui, mesmo com contato constante com a sociedade não-indígena. N principal aldeia
do rio Curuçá, conhecida como Maronal, até 1996 só havia duas malocas. Hoje, o povo desta
aldeia cresceu, foram construídas outras aldeias próximas e recentemente encontram-se onze
(11) malocas e quarenta e três (43) famílias extensas, formadas por membros dos tama-oavo
(flor de grande árvore), shane-nawavo (azulão), isko-nawavo (japu), vari-nawavo (sol),
shawãvo (arara vermelha), txaskõ-nawavo (saracura), sata-nawavo (lontra e ariranha), rovo-
nawavo (japu do bico branco), rane-nawavo (enfeites), ni-nawavo (floresta).
Hoje, nas aldeias, a casa de paxiuba com cobertura de folhas de jarina, que servia de
deposito particular, descritas pelos antropólogos Delvair e Julio Cezar Melatti em suas
etnografias, “modernizou-se” para uma nova versão: a casa de madeira com cobertura de zinco,
assim como vemos nas casas das cidades do interior do Amazonas.
A aldeia São Sebastião, de acordo com a descrição que realizei na minha dissertação
(Dollis 2017: 42-43), é composta por nove (09) malocas e três (03) aldeias próximas, onde
vivem os rane-nawavo (enfeites), rovo-nawavo (japu do bico branco), sata-nawavo (lontra), ni-
nawavo (floresta), ino-nawavo (onça pintada), koro-nawavo (jaguatirica), wanῖvo (pupunha),
entre eles, uma mulher da etnia tikuna, uma mulher da etnia kokama, uma mulher da etnia
kulina e mulheres não indígenas (uma mulher de nacionalidade peruana e uma nawa-shavo
“mulher-branca”, que se tornou mulher deles). Entre os Yôra-rasῖ, conforme sua família for
aumentando, pelo casamento dos filhos, o indivíduo se separa da casa de seu irmão e constrói
sua própria maloca, o que demonstra maturidade, como antigamente.
No rio Ituí existem dezessete (17) aldeias, onde vivem os tama-uavo (flor da grande
árvore), isko-nawavo (japu), shane-nawavo (azulão), koro-nawavo (jaguatirica), wanivo
(pupunha), rovo-nawavo (japu de bico branco), sata-nawavo (lontra), txashkõ-nawavo
108
(saracura de três potes), shawãvo (arara vermelha), vari-nawavo (sol), ino-nawavo (onça
pintada) e ni-nawavo/venepa (floresta nawavo maiores). Não consegui fazer um levantamento
populacional nas aldeias do Rio Itui como planejado, por diversos imprevistos. Tenho
informações incertas por parte dos moradores deste rio, por isso prefiro não entrar em detalhes,
mas é certo que os Yôra-rasῖ da cabeceira do Rio Itui já possuem casas na cidade de Cruzeiro
do Sul, estado do Acre, e os que moram no baixo Rio Itui têm suas casas na cidade de Atalaia
do Norte, Amazonas.
dos nawavo, suas composições e relações. Não sei se consegui levar o leitor ao entendimento
da gigantesca complexidade dos conhecimentos e ensinamentos yôra-rasῖ. Pelo menos tentei e
é esta a responsabilidade de documentar, registrar esses saberes, que me foi atribuída pelos
meus mais velhos e pelas mais velhas, preocupados com o empobrecimento de chinã
(pensamento), mais do que com o seu eventual e desastroso desaparecimento.
CAPÍTULO III
A origem dos nomes pessoais dos nawavo e o conhecimento onomástico
Antes de prosseguir quero ressaltar que neste terceiro capítulo estão mescladas a minha
pesquisa e a pesquisa de Alfredo Barbosa da Silva, conhecido como Alfredinho ou Txanõpa,
filho do irmão da minha mãe (portanto, meu primo cruzado matrilateral). Recebi toda a pesquisa
dele, transcrita em língua marubo (que ele transferiu para o meu computador); a tradução para
o português foi feita por mim. Pelo que ele me explicou, todos os dados foram coletados em
conversas noturnas cotidianas junto aos sheni-wetsa chinã vana ivovõ vana ‘a fala dos mais
velhos donos dos pensamentos’, da sua aldeia Maronal. O Alfredinho é vavã (DS) dos homens
txonavo (pois estes txonavo são como o pai da mãe dele), portanto as vozes dos mais velhos
aqui são as de Vicente/Ivãpa, Guilherme/Wanõpapa e Curaká/Txonãkenãpa, todos do nawavo
txonavo. É muito comum os mais jovens transmitirem as narrativas orais dos seus parentes mais
velhos kẽchῖtxo-rasῖ ‘xamãs’ como verdadeiro conhecimento.
No ano de 2016 fui para a aldeia Maronal no rio Curuçá, com o intuito de conversar
com as pessoas mais velhas sobre a minha pesquisa. Chegando lá encontrei só Alfredinho, já
que os sheni-wetsarasῖ ‘mais velhos’ tinham ido para a cidade sacar seus benefícios e fazer
compras. Eu contei para Alfredinho sobre minha dissertação de mestrado e o que pretendia
fazer no doutorado. Ele chamou-me para ver o que vinha fazendo, dizendo que tinha começado
a fazer pesquisa por conta própria, porque os mais velhos considerados ‘donos dos
pensamentos’ estavam cansados, suas memorias eram cada vez mais fracas e os jovens estavam
perdendo interesse em aprender seus ensinamentos.
Segundo Alfredinho, a causa principal da mudança de interesse dos jovens foi a
chegada da escola dos brancos nas aldeias. Ele disse que pretendia incluir o ensino tradicional
na escola de alguma forma, que também é o sonho do pai dele, o Alfredão (Ivinipapa), para que
os jovens não esqueçam da importância dos nossos costumes e das narrativas que nos mantêm
como Yôra-rasῖ-koῖpavo (povo verdadeiro). Podemos viver a transformação da nossa cultura,
mas não podemos permitir que nossos jovens esqueçam as nossas histórias. Estou apresentando
aqui minha tradução da conversa de Alfredinho comigo.
Este capítulo reflete sobre o conhecimento onomástico como Yôra-rasῖ (povo
marubo). Seus chinã-vanayavo (‘falas pensantes’) contam, através das suas narrativas, os
diferentes momentos que os nawavo receberam nomes pessoais. Esse conhecimento não está
115
em uma única versão da narrativa oral, ele acompanha a multiplicação dos nawavo.
Acreditamos que os nawavo surgem em distintas dimensões, vivenciando fatos que
enriqueceram suas histórias, perpetuadas pelas suas gerações. Segundo os mais velhos, outros
nawavo são yôra-rasῖ ‘amansados’ pelos quatros nawavo (vari-nawavo, tama-uavo, isko-
nawavo e shane-nawavo), durante a jornada rumo as cabeceiras dos rios, após os surgimentos.
Em cada etapa das suas marchas, deu-se alteração de prole através do casamento e, conforme o
contato com outros nawavo, suas matriarcas ou seus anciões transmitiam conhecimento de
nomes pessoais.
O conhecimento onomástico é uma forma de identificarmos e aprendermos nosso elo
de parentesco com outros nawavo. Portanto, irei apresentar como os antigos anciões narraram
os nomes pessoais. Num primeiro momento, foi narrada a transmissão dos nomes pessoais,
depois do surgimento dos nawavo. Num segundo momento, os surgidos se concentraram para
a travessia do kape-tapã-namãsh58 ‘ponte-jacaré’. Mais uma vez, a transmissão dos nomes
pessoais aconteceu nessa travessia, de modo que os surgidos pudessem nominar seus filhos e
netos.
Os responsáveis pela multiplicação de nomes pessoais, pelo que contam os mais
velhos, são os anciões(ãs) de cado nawavo, que possuem a memória dos seus ancentrais.
Vejamos o exemplo de como os xamãs mencionam o nome de uma anciã na língua
xamânica, através de metáforas:
- nome dado para uma anciã: vari-mai-vorô
- analisando a tradução: sol-terra-toco
- tradução livre: toco-terra-sol
- Alfredinho explica o conceito do nome vari-mai-vorô expresso metaforicamente: vari-
nawavo-mai ‘personalidade, tempo e característica de uma anciã’ vari-nawavo; -vorô ‘modo
de sentar de uma anciã que tem sabedoria’.
58
A narrativa da travessia da ponte-jacaré conta os acontecimentos dos surgidos, quando estes se concentraram na
ponte-jacaré em sua jornada rumo às cabeceiras dos rios. Ver Melatti (2005: 44) para uma descrição e análise da
narrativa.
116
59
Txio, pelo que me disseram, que é uma matinha de folhas pequenas com flores brancas.
60
Yomê é uma árvore semelhante à figueirinha (ficus benjamina) que existe na mata.
61
Chῖwã é uma árvore semelhante ao pião roxo, mais encontrada na mata.
118
62
O leitor percebe que este trecho parece não se encaixar na lista; o narrador o repetiu. Eu só percebi na hora da
tradução e não pude perguntar.
63
A palavra ino é denominação geral dos felinos: kamã ‘onça’, wacha kamã ‘onça pintada’, kamã-koῖ ‘onça-
vermelha’, koro-kamã ‘onça de ponte pequena’ e ketsῖ kamã ‘gato do mato’.
64
O leitor pode observar que shawã ináne se repete em mais do que um nawavo. Pode ter sido um erro do narrador
ou de Alfredinho. De qualquer maneira, a minha transcrição da narrativa foi feita através de uma espécie de
entrevista com Alfredinho, na qual toda a fala foi gravada, sem omissões de detalhes (redundâncias, por exemplo).
119
65
Uma árvore chamada matamatá, Eschweilera coriácea.
120
Nossa narrativa nos apresenta a forma como conectamos o universo dos nossos
antepassados a ná mai ‘esta terra’. Assim, os kẽchῖtxo-rasῖ (xamãs) nos contam como é formada
a nossa sociedade perante o mundo, tornando coesa a linha de pensamento sobre nascimento,
vida e morte. Cada nawavo é formado por partes que compõem um sistema corpóreo, e os
nawavo formam um conjunto, englobado em Yôra-rasῖ67.
Apresento, agora, os nominadores ♂♀ (anciões), responsáveis pela multiplicação dos
nomes pessoais dos Yôra-rasῖ no momento da concentração nas margens da ponte-jacaré (kape
tewã tapã maná risho ato ane ãtsa akayaro náti vere):
- Tama Osho foi responsável por multiplicar os nomes pessoais para o nawavo Grande Árvore
(tama-uavo ane ãtsa akaya);
- txaitivo (hárpia) multiplicou os nomes do nawavo macaco barrigudo (tetéro txonavo ane ãtsa
akaya);
- Mai-Nawa multiplicou os nomes do nawavo japu-do-bico-branco (mai nawa nonoro rovo-
nawavo ane ãtsa akaya);
- Vari-Kene foi responsável por multiplicar os nomes pessoais para o nawavo sol (vari kenero
vari-nawavo ane ãtsa akaya);
- Sata foi responsável por multiplicar os nomes pessoais para o nawavo lontra e ariranha (sataro
sata shavovo ane ãtsa akaya).
Os anciões e as anciãs são os principais conhecedores das nossas narrativas de origem,
são fundamentais na transmissão de histórias dos nossos antepassados e são responsáveis pelas
existências dos nomes pessoais pertencentes aos nawavo. Essas narrativas são contadas para
que tenhamos conhecimentos dos processos relacionados ao sistema de parentesco a partir dos
diferentes termos, através dos nomes pessoais, de modo que nós, Yôra-rasῖ, identifiquemos
quais são parentes pertencentes aos nawavo da fratria de Ego, quais são nawavo da fratria do
pai, da fratria da mãe e quais são nawavo da fratria das primas e dos primos cruzados, e para
66
Algodoeiro-da-praia, Hibiscus tiliaceus.
67
Yôra-rasῖ na língua marubo designa matéria completa, com todos seus costumes, crenças, surgimento de origens,
conhecimentos; rasῖ é morfema plural.
121
que nossos filhos e netos saibam valorizar a origem dos nomes pessoais dos nawavo. Para os
leigos não indígenas e outras etnias, no que concerne à questão de como nós nos identificamos,
o fato dos nomes pessoais serem precedidos do nawavo serve para nos apresentar às pessoas
que não conhecem a história onomástica.
nome do filho (S) Varĩ- Mene nome do filho (S) Varĩ- Mene
No Quadro 13, ofereço um segundo exemplo. O casal é parente por afinidade. O pai do
pai (A -FF) pertence ao nawavo agregados não casável da mãe da mãe (B-MM) e, neste caso,
o padrão de casamento não é muito amigável, sendo que a diferença da origem de surgimento
entra na avaliação da sua importância. Pode, então, haver resistência na transmissão de nomes
pessoais do vari-nawavo (MM) que está no domínio das mulheres, considerada “a liberdade”
de permitir ou não que os homens transmitam nomes pessoais do nawavo do pai do pai do
122
esposo (nomes pessoais masculino e feminino). A mulher pode entrar em consenso com seu
cônjuge na escolha de nomes pessoais. Algumas vezes, decidem, de acordo, escolher nomes
pessoais iguais entre seus nawavo para nominar os filhos. No Quadro 13, está, então, um
exemplo de transmissão dos nomes pessoais dos nawavo da fratria da mãe da mãe. Nas duas
colunas os nomes pessoais recebidos pelos filhos são iguias, mas os nawavo que acompanham
os nomes pessoais são diferentes.
Quadro 13 - Transmissão de nomes pessoais a partir dos nawavo takevo ‘irmãos’ A (FF) e
B (MM)
A (FF) B (MM)
nawavo ao qual o pai do pai pertence nawavo ao qual a mãe da mãe pertence
sata-nawavo ♂♀ vari-nawavo ♂♀
nome da filha (D) Satã-Mema nome da filha (D) Varĩ-Mema
Nem todos os nomes pessoais dos nawavo agregados takevo ‘irmãos’, são aceitos
pelas mulheres para serem transmitidos por meio dos filhos. O motivo é que os nomes
influenciam a personalidade da pessoa: no caso do epônimo, ou seja, quem tem/tinha o nome
que está sendo transmitido à criança, seja qual for, e no caso desta pessoa ter cometido erros no
passado, a criança que recebe o nome tem chance de cometer novamente o mesmo ato na sua
vida. No entanto é muito importante que os nomes sejam escolhidos pelas avós e pelos avôs
maternos e paternos, acreditando que eles têm total conhecimento das narrativas dos seus
antepassados.
Segundo as explicações que obtive das mulheres com as quais conversei, os shawãvo
‘arara vermelha’ e txachkõ-nawavo ‘saracura de três potes’, na narrativa, têm história de
conflitos, incitados por mulheres por intermédio de fofocas. Seu aumento populacional sempre
causava guerras com outros nawavo, o que colocava em risco de extinção esses dois nawavo.
Desta forma ficaram sem suas anciãs e seus anciões para a transmissão de nomes pessoais.
Meu povo acredita que o que foi vivenciado pelos nossos antepassados pode se repetir
nas gerações seguintes. No mês de outubro de 2021, houve um incidente: um homem shawãvo
matou um homem shane-nawavo por causa de mulher. Antigamente os parentes da vítima não
deixavam passar em branco e a vingança só parava quando o outro nawavo morria do mesmo
jeito.
123
Então, pelos comentários que ouvi, os shawavo, por estarem, atualmente, em grande
crescimento populacional, estão pedindo outra pakã yamamkitaya vosho ‘matança de paka’68,
mas esses comentários parecem produtos de estigma, derivado de memórias de conflitos
passados, mais do que de uma situação objetivamente ameaçadora, hoje.
Prosseguindo com as explicações sobre as trocas de nomes pessoais entre nawavo
maiores e nawavo menores (encontra-se na p. 42), vou seguir de acordo com o modo como
relatam os mais velhos, explicando em primeira pessoa.
Nossos antepassados nos deixaram o conhecimento onomástico de cado nawavo, para
que possamos prevenir as perdas de nomes pessoais entre nós.
No Quadro 14, abaixo, a coluna 1 mostra os nomes pessoais masculinos e a coluna 2
mostra os nomes pessoais femininos do vari-nawavo (sol). Antes de prosseguir ressalvo que
não todos os nomes pessoais têm significados traduzíveis; alguns são só um nome composto,
como em Varĩ Mema, onde varῖ é o nawavo de pertencimento, e em Vote Pana.
1 1 - vari nawavõ ane ‘nomes masculino nawavo 2 - vari shavovõ ane ‘nome feminino
sol’ nawavo sol’
Vari Mai ‘terra-sol’ Varῖ Kemo ‘saliva-sol’
Varĩ Vana ‘fala-sol’ Varῖ Vôte ‘Vôte69-sol’
Varĩ Mesho ‘deslizar apoiando com as mãos’ Varῖ Veka ‘Veka-sol’
Varĩ Shoi ‘siri de sol’ Varῖ Txono ‘Txono-sol’
Vari Mãko ‘sol-calvo’ Varῖ Mashe ‘praia-sol’
Varῖ Kono ‘cogumelo-sol’ Varῖ Maya ‘Maya-sol’
Varῖ Sina ‘raiva/ciúme-sol’ Varῖ Mema ‘Mema-sol’
Varῖ Teka ‘atirador-sol’ Moma Nía ‘juriti-pé’
Txio Tôko (nome composto; txio é nome de uma Varῖ Vãti ‘Vãti-sol’
árvore torta muito dura, tôko é ‘toco’ da árvore
cortada)
Vari Panã ‘açaí-sol’ Varῖ Ino ‘Ino-sol’
Varῖ Vimi ‘fruto-sol’ Varῖ Kai ‘Kai-sol’
Varῖ Mãpe ‘Mãpe-sol’ Varῖ Yove ‘Yove-sol’
Varῖ Rame ‘Rame-sol’ Varῖ Kava ‘Kava-sol’
68
Paka é uma lança feita de bambu.
69
Nos qudros de tradução aos nomes pessoais, as palavras que repito na língua Yôra-rasῖ quando é impossível a
tradução em português.
124
As palavras do Quadro acima são os nomes dados pelos mais velhos conforme fatos
ocorridos durante a jornada do nawavo. Quanto ao nome Mepe, não pude trazer suas histórias
completas, que nem todos os mais velhos sabem contar.
No caso do nome masculino Txio Tôko, provavelmente originado de uma pessoa
deficiente, txio é uma árvore pertencente ao ‘sol’, segundo os mais velhos, e tôko significa a má
formação do corpo (criando um relevo ou uma estatura baixa). Nem todas as informações de
nomes pessoais são consensuais, entre os mais velhos; muitas vezes incluem nomes pessoais
dados pelo pai e que não são do nawavo de pertencimento de quem recebe o nome.
No Quadro 15, a primeira coluna mostra os nomes pessoais masculino e a segunda
coluna mostra os nomes pessoais feminino do tama-uavo/tama-iskovo (flor-grande árvore/japu-
grande árvore). Se encontrarem esses símbolos juntos ♂♀, significa que o nome serve tanto
para os homens como para as mulheres. Caso contrário, os nomes estão restritos à apenas um
dos sexos.
1 - isko nawavo ‘nomes masculino nawavo japu- 2 - isko shavovo ‘nomes feminino
samaúma/samaúma’ nawavo japu-samaúma/samaúma
Shono Ivi ‘casca-samauma’ Shonõ Peko ‘Peko-Samauma’
Yoá Ati ‘é de fazer panela’ Shono Txoko: ♂♀ ‘folhas novas-
samauma’ (esse nome serve para
mulher como para homem)
70
Assim como os exemplos de narrativas de recebimento de nomes pessoais dos tama-uavo e shono-nawavo, outros
nawavo também tiveram narrativas que contam os recebimentos de nomes.
127
1 - rovo nawavõ ane ‘nomes masculino 2 - rovo shavovõ ãne ‘ nomes feminino
nawavo japu de bico branco’ nawavo japu de bico branco’ ♀
Imachí (apenas nome sem significado) Rovo Shavo ‘mulher-japu de bico
branco’
Shoí ‘Siri’ Peko-Peko (apenas nomes composto)
Meshó ‘rastejar ou engatinhar’ Kena ‘chama’
Mainawá Tama ‘grande árvore-terra povo’ Tama Sai ‘despencar-grande árvore’
Mainawá Nono ‘Nono-terra povo’ Vó ‘cabelo’
Mainawa Katoko ‘Katoko-terra povo Nái (apenas nome sem significado)
Rovo Mai ‘japu de bico branco-terra’ Mashe ‘urucum’
Rovo Wire ‘Wire-japu de bico branco’ Roni (apenas nome sem significado)
Vana ‘fala’ Rami (apenas nome sem significado)
Tae ‘pé’ Võchi (apenas nome sem significado)
Mai Nawa Kavõya ‘aquele possui kavõ do
71
Vasi (apenas nome sem significado)
nawa terra’
Maya (apenas nome sem significado)
Sheta ‘dente/bico ou parasitas’
Vane (apenas nome sem significado)
71
Kavõ é uma cesta quadrada com tampa feito de folha de palmeira denominada na língua como kõta, serve para
guardar penas de pássaros e algodão, ya ‘a (o) que possui’.
129
72
Árvore-trocano é um instrumento de percussão usado para se comunicar nas aldeias e para animar as festas; em
língua marubo, é chamado de ako e a árvore também é chamada de ako, não encontrei o nome da árvore na língua
portuguesa.
130
73
Sako é como chamamos o saimiris ou macaco de cheiro depois que se torna nosso animal de estimação.
134
Quadro 26 - Nomes pessoais rane nawavõ ane rasĩro náti (nawavo enfeites)
74
Madeira modelada em formado de canoa para triturar milho e pupunha.
135
Quadro 27 - Nomes pessoais shawavõ ãne rasĩro náti (nawavo arara vermelha)
Não se deve pegar nomes pessoais de outros nawavo para colocar nos filhos sem saber
qual a relação social a partir de suas origens. Os nomes pessoais são importantes para nossa
história, nossos costumes nos advertem sobre a mistura de nomes pessoais e sobre como ela
empobrece nosso vaká, se não tivermos conhecimento aprofundado. A consequência de não ter
sabedoria, para ter bons argumentos, é a morte em vida. Quem abdica dos nomes da tradição é
nulo em conhecimento, não respeita seus costumes, ignora o modo de ser do seu povo. Em
nossa visão é um ignorante, morto vivo.
Quando uma pessoa escuta outra chamando seus filhos por nomes que não têm a ver
com sua descendência nawavo, ela comenta dizendo que aquela pessoa vana-venoya ‘perdeu a
fala’ ou vanã-petxiya ‘esqueceu a fala’. Para os mais velhos é algo grave, já que está sendo
cometido um deslize a respeito desse “ensinamento”. Nossa maior riqueza é ese vana ‘fala de
ensinamento’.
136
75
‘Donos dos pensamentos’ é como nós nos referimos aos kẽchitxo ‘xamãs’ e romeyavo ‘pajés’ e muitas vezes
aos anciões que possuem sua sabedoria.
137
Varĩ- Vô ♂ Satã-Vô ♂
Varĩ-Mãpe ♀ Satã- Mãpe ♀
Isapeĩ-Maia ♂ Wasi-Shavo-Maia ♂
Observo que os nomes trasmidos pela mãe e pelo pai são atribuídos ao mesmo filho
ou filha na linha de células das tabelas dos Quadros 28, 29, 30, 31 e 32.
O Quadro 29 abaixo, mostra a transmissão de nomes de parente dos nawavo fratria.
Aqui, a mãe da mãe (MM) é do vari-nawavo e o pai do pai (FF) é do txonavo (de Ego masculino
e feminino); esse dois nawavo são considerados como sendo originados de nomes pessoais
semelhantes, nas narrativas orais, nas gerações alternadas dos vari-nawavo e txonavo. Explico:
os isko-nawavo, para poder obter alimentação em maior quantidade, resolveram derrubar
(sacrificar) Tama76 ‘grande árvore’, cuja origem, em forma animal, é o ‘japu-grande árvore’.
Porém, ainda que haja semelhança nas origens narrativas dos dois nawavo, o pai pode
transmitir apenas alguns nomes para suas filhas e filhos, e, mesmo tendo permissão de dar
nomes pessoais, os pais não têm total liberdade nas escolhas dos nomes dos filhos; é a mãe que
dará o nome pessoal definitivo pela relação matrilinear. O Quadro 29, então, apresenta:
- os nawavo G+2 com o nome pessoal e o tecnônimos tanto de MM como de FF;
- o nawavo de M, G+1, com o nome pessoal e tecnônimos da mesma;
- o nawavo de F, nome o pessoal e os tecnônimos do mesmo;
- os dois nawavo aos quais os filhos estão vinculados, G0 (ego masculino e feminino), com os
nomes pessoais que os filhos recebem.
76
Na língua Marubo a maioria das palavras não têm acentos, mas lembro que os que têm til na última vogal das
palavras indicam que a próxima palavra está em ação sobre a anterior.
139
Tawã-ewa ♀ Tawã-papa ♂
nomes pessoais
nomes pessoais nome do nawavo de nome do nawavo do nawavo FF
do nawavo MM origem agregados
G0 G0
(ego masculino vari-nawavo txonavo (Ego masculino
e feminino) ‘sol’ ‘macado barrigudo’ e feminino)
Varĩ-Kono ♂ Txonã-Kono ♂
Txῖroa-Maia ♀ Txonã-Maia ♀
Varĩ-Veka ♀
O Quadro 30 apresenta também a transmissão via fratria. Aqui a mãe da mãe pertence
a shawãvo e o pai do pai pertence a sata-nawavo; os dois nawavo são considerados como tendo
origens de surgimento de dimensões diferentes e os seus nomes pessoais não se misturam, pois
os shawãvo, segundo os mais velhos, nunca tiveram oportunidade de ter seus anciões(as), por
serem causadores de conflitos com outros nawavo. Desde seus surgimentos, foram
sobreviventes de guerras, das quais apenas os parentes dos causadores da matança poderiam
escapar; suas sabedorias são contadas por outros nawavo, dessa forma. Os nomes pessoais do
shawãvo são considerados perdidos devido ao conflito entre nawavo ao longo de várias
gerações. Neste caso, a mãe ou não trasmite nomes ou se apropria dos nomes do nawavo fratria
do FF e o pai pode transmitir um nome inventado. A mãe dará o nome pessoal definitivo pela
relação matrilinear, também inventado ou apropriado, pelo fato dela não saber a continuidade
dos nomes de seu nawavo.
No Quadro 30, apresento:
- os nawavo G+2 (tanto por parte da mãe como por parte do pai), os nomes pessoais de MM e
de FF;
- o nawavo da M, G+1, nome pessoal e tecnônimos da M;
- o nawavo da F, nome pessoal e tecnonimos da F;
- os dois nawavo aos quais os filhos estão vinculados, G0 (ego masculino e feminino), no caso
em que a mãe não conhece os nomes pessoais de MM, nomes pessoais que os filhos recebem.
O Quadro 31 mostra o que acontece nos casamentos entre etnias diferentes. Aqui a mãe
da mãe é da etnia kanamari e o pai do pai pertence a vari-nawavo. Seus nomes pessoais são
literalmente distantes, pois o povo kanamari é outro. No caso em exame, a mãe foi adotada pelo
rovo-nawavo, para que seus filhos recebam nomes pessoais do sata-nawavo e para que o pai
pudesse transmitir nomes pessoais (masculino/feminino) para os/as filhos e filhas, considerando
o nawavo ao qual a sua esposa pertence, evitando criar problemas com o vari-nawavo ao qual
seu pai pertence. Adotada pelos rovo-nawavo, a mãe dará o nome pessoal definitivo pela relação
matrilinear.
No Quadro 31, então, apresento:
141
- a mistura de casamento G+2 (tanto por parte da mãe como por parte do pai) com os nomes
pessoais dos mesmos e a etnia da esposa;
- em G+1, o nome pessoal e o tecnonimos de M;
- o nawavo G+1 do esposo, nome pessoal e tecnonimos de F;
- o nawano que adota para que os filhos estejam a ele vinculados
- como são transmitidos os nomes pessoais em G0 (ego masculino e feminino), quando a mãe
é de outra etnia, os nomes que os filhos recebem.
Satã-Nãke Satã-Nãke
Neste Quadro, para transmitir os nomes pessoais
Satã-Poya dos filhos, o pai decide optar por adotar os nomes Satã-Poya
pessoais do sata-nawavo.
O Quadro 32 mostra também uma transmissão de fratria. Aqui a mãe da mãe (MM)
pertence ao sata-nawavo e o pai do pai pertence ao vari-nawavo; alguns nomes pessoais são
semelhantes, o pai pode transmitir os nomes pessoais do nawavo ao qual o pai dele pertence
para as filhas e filhos, nomes que ficam como segunda opção, mas lembrando que a mãe sempre
dará o nome pessoal definitivo pela relação matrilinear.
O Quadro 32, então, apresenta:
142
- os nawavo G+2 (tanto por parte da mãe como por parte do pai), com os nomes pessoais e
tecnonimos de MM e FF;
- o nawavo de M, G+1, nome pessoal e tecnonimos de M;
- o nawavo G+1 de F, nome pessoal e tecnonimo de F;
- os dois nawavo aos quais os filhos estão vinculados, G0 (ego masculino e feminino), com os
nomes pessoais que os filhos recebem.
Oni-aῖvo Maiã-papa
Menẽ-ewa
transmissão de transmissão de
nomes do sata- nomes do sata-
nawavo ‘lontra’ nome do nawavo nome do nawavo nawavo
originario agregados ‘lontra’
G0 G0
(ego masculino (Ego
e feminino) masculino e
feminino)
Satã-Mene sata-nawavo vari-nawavo Varĩ- Mene
Wasi-Shavo- Isapei-Maia
Maia
escutar as narrativas; nós nos dedicamos a ensinar para quem nos ouve, os jovens falam que
são Marubo, mas, nas suas cabeças, ser Yôra-rasῖ, é viver no mato ou simplesmente existir, o
que é triste, nossa riqueza é nokẽ chinã vanarivi (nosso pensamento-fala)”.
Além de misturas de casamentos, que perdem para sempre os nomes pessoais dos
nawavo geracionais, se os mais velhos não se esforçarem para motivar os jovens a terem
conhecimento dos nomes pessoais, no futuro não terão como lembrar a extensão dos nomes
pessoais, ou mesmo reconhecer os verdadeiros Yôra-rasῖ.
Outra causa de perda de nomes, mais comentada entre os mais velhos, está no
‘casamento anta’. Por exemplo, se um homem do vari-nawavo (nawavo Sol) se casa com rovo-
shavo (mulher do nawavo Japu-Bico-Branco) ou wani-shavo (mulher do nawavo Pupunha), o
casamento seria com nawavo da fratria da mãe da mãe. As mulheres vari-nawavo e as mulheres
rovo-nawavo não são pretendentes dos homens vari-nawavo, e é isso que chamamos de
‘casamento anta’, awẽ awa’a ‘se/fazendo de anta77’. Em outras palavras, as mulheres vari-
nawavo e rovo-nawavo não podem se casar com homens vari-nawavo e viceversa. Seus filhos
não teriam nomes pessoais privilegiados do nawavo da mãe da mãe, porque eles, filhos, são
considerados ravῖ vake ‘filhos que causam vergonha’, frutos de um relacionamento proibido.
A relação social entre yoῖni-rasῖ ‘animais’ e os Yôra-rasῖ através dos nomes pessoais
Durante minha conversa com os mais velhos, estes me davam a entender que
antigamente, quando nossas mentes, nossos ouvidos e olhos não eram totalmente humanos,
todos nós nos comunicávamos com os yovevo-rasῖ (entidades prototípicas), compartilhando
conhecimentos. Para nós, não há distinção entre humanos e yoi᷉ni-rasῖ ‘animais’, todos são
humanos, digamos assim. Temos relações de ancestralidade com todos os seres, que são de
alguma maneira pessoas, que animam e povoam as narrativas orais. Os chamados yoi᷉ni-rasi᷉
‘animais’’ são outros nawavo, com seus lugares e dos quais temos o mesmo conhecimento
xamânico. Através do conhecimento transmitido nas narrativas, todos recebem nome(s)
conforme a mesma lógica. Pelos seus nomes pessoais, os seres são ancestrais e iguais, sejam
eles Yôra-kuῖ ‘gentes verdadeiras’ ou Yôra-wetsavo ‘outras gentes’.
Vejamos um exemplo. O tatu se originou de uma anciã chamada Ti ᷉pi, do nawavo rane-
nawavo (enfeites). Todas as vezes que o filho dela fazia roça de milho, a mãe comia todas as
espigas, não deixando nenhuma amadurecer para replantar. Cansado de não conseguir guardar
77
Casar com uma mulher do conjunto de nawavo não casáveis da mãe.
144
nenhum grão de milho para a próxima roça, ele teve a ideia de enganar sua mãe, fazendo uma
roça bem distante da aldeia, atravessando quatro dedos de montanhas. Conforme a narrativa,
para chegar até a roça, eram dois dias de viagem a pé. Assim, sua mãe não podia acompanhar
o crescimento dos milhos. Ele combinou com a mãe que iria acompanhar o crescimento e a
manteria informada. Dessa forma, quando ele voltou da sua primeira visita à roça de milho, sua
mãe perguntou: “filho, em que altura estão os milhos?”. Ele respondeu: “mãe, agora que saíram
da superfície da terra”, quando na verdade os pés de milho já estavam na altura do seu joelho.
Em outra ocasião, sua mãe perguntou: “filho, em que altura estão os pés de milho?” e ele
respondeu: “mãe, estão na altura do meu joelho”, quando na verdade das plantas já estavam
brotando as espigas. Novamente sua mãe perguntou: “filho, de que tamanho estão os milhos?”
e ele respondeu: “mãe, agora os milhos estão se preparando para dar as espigas; depois de minha
próxima visita à roça, eu levarei a senhora”. A mãe ficou muito feliz com a promessa do filho.
Na sua última visita, o filho percebeu que o milho já estava com as espigas duras e avisou sua
mãe que os milhos já estavam prontos para serem comidos. A mãe se preparou e muito contente
foi na frente pelo caminho, dançando e cantarolando com a tocha na mão para poder comer
milho assado. Mas quando chegou na roça e começou a procurar os milhos com as espigas
novas, só encontrou as espigas duras, não encontrando nenhum milho novo. Sua decepção foi
tão grande que se transformou em tatu. Ela pegou suas contas de caramujo aruá, fez a carapaça
e algumas outras partes do seu corpo com estes enfeites.
Esta narrativa nos mostra os yoῖni-rasῖ ‘animais’ originados do mesmo espaço de
origem dos nawavo yôra-rasῖ e como atribuímos os nomes aos nawavo yoi᷉ni-rasῖ ‘animais’. Os
mais velhos e mais velhas nos contam essa narrativa para que saibamos os nomes que podemos
dar a eles. A lista de nomes de yoῖni-rasῖ ‘animais’ que são denominados como originados no
mesmo espaço que os nawavo, vinculados a essa narrativa, se encontram no Quadro 33. Devo
a Alfredo Barbosa as informações sobre os nomes de yoῖni-rasῖ ‘animais’ que estão vinculados
às origens de nawavo.
O Quadro acima apresenta a conexão parental entre weniyo nawavo ‘os nawavo dos
surgidos’ e yoi᷉nivo ‘seus yoi᷉ni-rasi᷉ ‘animais’’, interligados no mesmo espaço e
complementando o conhecimento transmitido pelas narrativas orais. Logo em seguida
apresento para vocês a explicação dada pelo meu txaitxo ‘filho do irmão da minha mãe’
(Alfredo Barbosa), pesquisador marubo, através das nossas conversas.
78
Yoi᷉ni (animal)-ka (verbalizador); traduzimos yoi᷉ni como ‘animal’, mas seu sentido é ‘ser/gente que nós
comemos’.
147
A palavra nawavo não se baseia na classificação de algum elemento por seu local de
origem e não classifica ‘povos indígenas’ ou ‘não indígenas’. Os sentidos dos termos como
nawa e yôra-rasi᷉ são amplos e sempre contextuais. No sentido mais profundo da palavra,
nawavo engloba a origem de como queremos contar a nossa sociedade. Já nawa-rasi᷉ é aplicado
de forma genérica ao povo fora da nossa ‘bolha social’, são aqueles cujos costumes e crenças
são desconhecidos.
Um significado na fala cotidiana não é o mesmo daquele que estou ouvindo numa
narrativa xamânica; os sentidos das versões mudam e precisa estar atento a quem conta, mesmo
sendo um falante nativo. Não me arrisco a dizer "assim contam os do meu povo", assim como
os mais velhos dizem “assim diziam os kechῖtxo-rasῖ (os xamãs) do nawavo X". Conhecemos
a história tanto quanto as maneiras de contar, mas recusamos a apropriação de qualquer versão
como sendo ‘oficial’. Alguns se arriscam e confirmam, mas são criticados pelos outros mais
velhos por generalizar: “quem sou eu para afirmar isso com todas as letras”.
Normalmente meu povo usa nawa-rasi᷉ para designar os brancos, já os nawavo não
separam os indivíduos por locais distintos, podendo nawavo diferentes terem origem no mesmo
148
espaço. Sendo assim, irei apresentar para vocês a variedade de usos da palavra nawa, para outras
sociedades:
nawa singular ♂
moka-nawa (um Mayoruna/Matses ♂)
moka-nawa-shavo (mulher-moka-nawa ♀)
Ex: apresentando o nome masculino de uma etnia ou o nome masculino de não indígena. moka-
nawa Waki, peruano-nawa Pedro ♂
Ex: nome feminino e masculino marubo.
Mema vari-shavo (Mema é mulher nawavo Sol)
Mene vari-nawa (Mene é vari-nawa ♂)
shane-nawavo que autorize o uso dos seus nomes pessoais. A permissão de nomes é uma
pacificação social.
Vimos, neste capítulo da tese, o complexo sistema onomástico marubo, com seus
mecanismos de transmissão de nomes pessoais, vistos em diferentes contextos e por diferentes
perspectivas. O caminho percorrido até aqui nos leva para o próximo e último capítulo.
150
CAPÍTULO IV
Volta para onde emergimos sem causar a morte do vaká
Este capítulo está relacionado aos outros capítulos, agora tendo a consciência da vida
‘no mundo dos Yôra-rasi᷉ (marubo)’. O que implica vei’a ‘morte’ na vida real? Awesai ikira,
vei’mai wenia ‘como volta para onde emergimos, sem causar a morte da vaká ‘? Vaká em vida,
de todos os nawavo, é definida pelo caráter, atitudes da pessoa em cada fase da vida.
A sabedoria entre os mais velhos, desde o princípio, circula com a fundamental
responsabilidade da transmissão para as novas gerações. Dessa forma, como principais
educadoras, as mulheres mais velhas (shavo-yome-mavo-rasῖ) de cada nawavo carregam seus
conhecimentos e ensinamentos herdados de seus parentes ascendentes (avôs maternos e avôs
paternos), com quem viveram por mais tempo nas suas aldeias. Segundo as anciãs, não é porque
somos parentes do mesmo povo que a reprodução da oralidade é a mesma para todos: cada
anciã traz uma versão do que aprendeu com seus pais e seus avôs.
O que se conta na narrativa oral, quando os nawavo emanaram, a comunicação entre
eles era em uma única linguagem, pois todos faziam parte do mundo dos yovevo ‘entidades
prototípicas’. Os seres, conforme sua marcha rumo às cabeceiras dos rios, foram humanizados
pelas suas teimosias: quanto mais suas curiosidades foram aumentando, foram surgindo ciúmes,
mentiras, calunias, cobiças. Segundo os mais velhos, através dessas impurezas criadas pelos
humanos, criou-se a morte, e a morte é vista como volta para o lugar de origem. Sendo assim,
com a morte, o vaká de uma pessoa voltaria a viver no mundo dos yovevo, mas como a vida
nesse mundo mortal não é vivida como planejado pelos yovevo, nossa teimosia mais uma vez
criou obstáculos nos caminhos da morte e, neles, a jornada enfrenta muitos dos percalços
vividos em vida.
Iniciei falando que este capítulo retoma o que consta dos outros capítulos. Trato da
morte, ressaltando o que ela nos exige de aprofundamento e manutenção dos conhecimentos e
práticas que nos foram deixados pelos ancestrais. Neste contexto, apresentarei alguns costumes
praticados ou ignorados conforme as mudanças ou transformações sociais.
Para seguir os costumes, antigamente, não morávamos muito tempo na mesma aldeia,
pois, muitas mortes podiam trazer energia ruim para o ambiente. Acreditava-se, assim, que as
mulheres grávidas podem ser molestadas pelos yochῖ-ichnavo (sombras más/que não prestam),
que incorporiam nos seus filhos, fazendo com que as mulheres acabem gerando vake-yochῖ
151
(filhos especiais). Obviamente, outro motivo das mudanças para novas aldeias era o da busca
de terra fértil para plantar.
As reuniões noturnas potencializam o conhecimento e o ensinamento através do
romeya ‘pajé’, porque ele é a principal ponte de enriquecimento de nossos conhecimentos, sem
grandes mudanças devidas à influência de outros povos que interagem conosco. Segundo os
mais velhos, somos o povo que, por meio da nossa sabedoria, amansamos outros seres, fazendo-
os nossos aliados e os tornando yora-kuῖ ‘gente verdadeira’.
Quando queremos morar em uma aldeia por muito mais tempo, para renovar o
ambiente promovemos uma festa chamado de shava-saika ‘festejar o dia’. Antes dessa festa, os
homens preparam seu corpo tomando o kãpô ‘injeção de sapo’, para abrir e aumentar a
percepção da pele e da visão e, assim, ajudar a ter agilidade na caçada. As mulheres, além de
preparar ornamentos, se organizam para a colheita coletiva, também com a ajuda das mais
velhas; elas usam a folha de uma erva, gotejando o líquido como um colírio para resistir à
passagem dos cinco dias de festa.
Aprender a identificar os nawavo é importante para evitar de se casar com um
descendente de nawavo errado. Esse fato é designado de onãkimã iki ‘ignorar o modo de fazer
parente’: a forma certa de casamentos, namoros e romances secretos só pode acontecer com as
primas e os primos cruzados ou txaivo, e não podemos namorar com as primas e os primos
paralelos. Para facilitar o entendimento, vou explicar com quais nawavo eu, Varin-Mema,
pertencente ao vari-nawavo (sol), não posso casar, namorar e nem ter romance e porque não
posso:
- wanivo (pupunha), em termos agregados, as mulheres são minha ewavo ‘mães’ e os homens
meus kôkavo ‘irmãos da mãe’, é nawavo não casável da mãe;
- koro-nawavo (jaguatirica), em termos agregados as mulheres são minhas txitxovo ‘irmãs’e os
homens são meus otxivo ‘irmãos’, nawavo não casável com meu nawavo;
- shono-nawavo (samaúma), em termos agregados as mulheres são minhas ewavo ‘mães’ e os
homens meus kôkavo ‘irmãos da mãe, é nawavo não casável da mãe;
- txonavo (macaco barrigudo), em termos agregados as mulheres são minhas txitxovo ‘irmãs’ e
os homens são meus otxivo ‘irmãos’, é nawavo não casável com meu nawavo;
- rovo-nawavo (japu do bico branco), em termos agregados as mulheres são minhas ewavo
‘mães’ e os homens meus kôkavo ‘irmãos da mãe’, nawavo não casável com nawavo da mãe;
- sata-nawavo (loutra e ariranha), em termos agregados as mulheres são minhas txitxovo ‘irmãs’
e os homens são meus otxivo ‘irmãos’, nawavo não casável com meu nawavo;
152
- rane-nawavo (enfeites), em termos agregados as mulheres são minhas natxivo ‘irmãs do pai’
e os homens são epavo ‘irmãos do meu pai no geral’, mesmo nawavo do pai;
- shane-nawavo (azulão), em termos agregados as mulheres são minhas natxivo ‘irmãs do pai’
e os homens são epavo ‘irmãos do meu pai no geral’, nawavo não casável do pai;
- kana-nawavo (arara canindé), em termos agregados as mulheres são minhas natxivo ‘irmãs do
pai’ e os homens são epavo ‘irmãos do meu pai no geral’, nawavo não casável do pai;
- kamã-nawavo (onça parda), em termos agregados as mulheres são minhas natxivo ‘irmãs do
pai’ e os homens são epa ‘irmãos do meu pai no geral’, nawavo não vasável do pai;
Logo abaixo apresento os termos de parentesco dos homens com os quais não posso
namorar.
vicha
(yB)
♂
epa kôka
(FB) (MB)
♂ ♂
Ego
♀
otxi vava
(eB) (SD)
♂ ♂
153
txitxo
(eZ)
♀
natxi ewa
(FZ) (M/MS)
♀ ♀
Ego
♂
txira vava
(yZ) (SS)
♀ ♀
Lembro que qualquer pessoa, qualquer descendente de nawavo, mulheres e homens, não
pode se casar com indivíduos referidos pelos cinco termos parentais apresentados nos Quadros
acima. Os homens só podem se casar com quem é referido pelos vocativos pano (primas
cruzadas), txave (casável79) e as mulheres só podem se casar com quem é referido pelos termos
vocativos txaitxo (primos cruzados) e txai (casável). Dada a integração de outras etnias e de não
indígenas, bem como casamentos exogâmicos, qualquer que seja o nawavo com o qual a pessoa
se casar, automaticamente ela recebe os termos parentais de um afim e terá o mesmo respeito
devido aos parentes dessas categorias. Portanto, essas pessoas, que passam a fazer parte
integralmente das relações de parentesco, também não podem ser alvos de brincadeiras
indecentes ou de chacotas. Quem não sabe reconhecer os parentes tratados por esses termos e
se comportar com eles adequadamente, pode ser mordido por txismã (traíra, Hoplias), não
somente nesta vida, como também após a morte.
Entre os parentes tratados pelos termos pano e txave, no caso dos homens, e txaitxo e
txai, no caso das mulheres, as brincadeiras são permitidas, sobretudo nas festas ako iyaá
‘carregar trocano’, vina-atxia ‘pegar vespa’, keve-na ‘medir força’ e veyá ‘encontrar-se’. Antes
da realização dessas festas, na noite anterior, essas brincadeiras acontecem para amansar as
79
Casável: os nawavo associados a uma narrativa de origem distante, relação com pessoas de outras etnias e não
indígenas (brancos).
154
presas das caçadas e, assim, atraí-las para nós. Caçar não é ‘caçar’, mas é uma relação de captura
de seres iguais a nós. A nossa relação com os chamados yoi᷉ni-rasῖ ‘animais’ perpetua a
socialização ancestral. Por exemplo, nas aldeias, após uma caçada coletiva de yawa ‘porco-do-
mato’, os caçadores se reúnem para o reconhecimento das caças e as partilhas: o que eu matei,
tenho que trocar com outra pessoa; o que outra pessoa matou é entregue para mim. Nesse
momento de troca acontece o ato de acolhimento das vaká-rasi᷉ do nawavo-yawa e o mesmo
acontecia quando todos eram iguais, nem humanos, nem não-humanos, mas, sim, yôvevo. Por
outro lado, o ato de encontro com outros povos (nawavo), nesse sentido, é como uma relação
de troca de mulheres, sendo estas o meio de amansar o inimigo. Em tempos antigos, os
encontros de guerra entre dois nawavo eram seguidos por txaῖki-vana ‘fala de convencimento’
dos dois chefes, para fazer entender que a melhor solução é vida na paz, tornando-se parentes
através da troca de mulheres.
Os homens e as mulheres que se chamam pelos termos pano/txave e txaitxo/txai, se
estiverem na festa, não podem escapar dessas brincadeiras, porque, se resolver ficar de fora,
mesmo estando presentes, lhe acontecerá algo grave, como ser mordidos por uma cobra. Para
que não fiquem de fora da brincadeira, os jovens são acompanhados pelas pessoas mais velhas
dos nawavo takevo ‘irmãos’, que os orientam a distinguir os parentes corretos para brincarem.
A importância do ese vana ‘fala de ensinamento’ é um fortalecimento espiritual, para
que no futuro pós-morte o vaká não fique vagando na terra no corpo de um ‘animal’, o maior
medo dos Yôra-rasi᷉: quem adquiriu bons conhecimentos e seguiu o saber tradicional consegue
voltar para a sua origem de surgimento sem ficar preso na terra.
A pessoa que não possuir o conhecimento tradicional é apontada como chῖnã-yama ‘sem
pensamento’. Qualquer ato errado que essa pessoa venha cometer serve de exemplo para os
pais aconselharem seus filhos, o porquê de darmos importância de adquirir os conhecimentos
dos nossos antepassados. O modo de aconselhamento aos filhos sobre exemplos ruins não pode
ser feito em tom de voz alto, para que não seja entendido como zombaria e recaia sobre os
filhos.
As festas dos noke Yôra-rasi᷉ (Marubo) também motivam os jovens a aprenderem
diferentes ese-rasi᷉ ‘ensinamentos’, para ter melhor conhecimento dos seus costumes, da
importância da alimentação, do cuidar do corpo, do elo entre parentes, da transmissão das
narrativas.
155
Quando a mulher percebe que está grávida, ela deve começar a ter certos cuidados com
os alimentos. Frutas e batatas gêmeas não podem ser vistas pela grávida ou a criança poderá
nascer com algum membro do corpo grudado ou poderão nascer gêmeos. Ela não pode tocar no
abacaxi, para a criança não nascer com matxo-kiti raveya (duas rotações capilares); não pode
comer nenhum tipo de ovo, nem frutas leitosas, para não ter parto seco e demorado, que implica
que a criança terá dificuldade para encontrar a passagem, morrendo no ventre. Não pode comer
tutano e cérebro de yoi᷉ni-rasi᷉ ‘animais’ para a criança não nascer seboso, ou seja, coberto por
uma película grudenta. Não pode tocar nos ossos de yoi᷉ni-rasi᷉ ‘animais’ para a criança não
nascer com a testa desproporcionalmente grande. Não pode comer goma de mandioca para a
criança não nascer com má formação nos ossos e para a mãe não sentir fraqueza na hora de dar
à luz. Ainda grávida, a mulher não pode fazer nenhum tipo de comentário maldoso ou fofoca,
assim como o pai da criança, já que tudo pode recair sobre a criança.
Ressalto o que as mulheres mais velhas sempre repetem para mim “pãtxo ni᷉kã keskai
vana-rasi᷉ mῖ vana mi᷉ ivoase (‘os ouvidos que escutam as palavras que você expressa, serão
seus’)”, de modo que nós colhemos o que plantamos, nós que fazemos existir as coisas ruins,
nós moldamos a própria realidade, vana-ichna ãtsamaiya ‘proliferamos as falas ruins’, nõ
nῖkãsma tõsho shovia isĩ, nokẽ vake-rasi᷉ mẽsho yora-keni aka ‘nossa teimosia faz surgir
doenças e estas incorporam nos nossos filhos’.
Os mais velhos me contam que o conhecimento oral nokẽ vana ãtsakaya ‘nos ajuda a
ter boas expressões’, perante os testes e desafios no caminho da morte. Os erros cometidos em
vida, nos seguirão como memórias que causam a morte permanente. A mulher deve aprender a
fazer os adornos produzidos pelas próprias mãos e estes estarão com ela para ajudá-la a ter bons
argumentos como proteção na jornada após a morte.
Segundo os mais velhos, os destinos dos que terão morte eterna (prisão perpetua na
terra), após a morte, são:
- quem viveu roubando os pertences alheios, os invés de produzir com suas próprias mãos, terá
ã vaká ‘o seu vaká’ preso para sempre na casa de cupim;
- quem sentiu vergonha excessivamente ao ponto de não se socializar ou foi devagar nas suas
atividades, terá ã vaká transformado em centopeia azul;
- quem viveu mentindo, na hora do teste da verdade, a coruja irá transformá-lo em centopeia
azul;
156
- quem não tiver tsitsa ‘adorno labial’ será confundido pelo nawa (não indígena) e impedido de
prosseguir seu destino de origem;
- quem namorar alguém pertencente ao nawavo da mãe, ou ao nawavo do pai, ou ao nawavo do
pai do pai, ou ao próprio nawavo, ou ao nawavo concorrente da mãe, ou ao nawavo concorrente
do pai, ou ao nawavo concorrente do pai do pai, ou ao nawavo concorrente do seu próprio
nawavo, terá a morte permanente da pupila ou, no percurso do caminho da morte, será comido
por iso ‘macaco aranha’ gigante, que fica de vigia na maloca da morte;
- se uma pessoa em vida não se esforçou para ter conhecimento oral e nem conhecimento através
das pontas dos dedos, não terá ã chinã vanaya ‘seu pensamento para falar’, weni-maiya ‘que o
faz seguir rumo ao seu destino de origem’;
- se uma pessoa cortava suas unhas para jogá-las em qualquer lugar, ela estará no caminho da
morte em forma de jabuti para que não consiga prosseguir a sua jornada;
- se em vida uma pessoa maltratasse seus yoi᷉ni-rasi᷉ ‘animais’ de criação, estes aparecerão no
caminho da morte para se vingar, devorando-a.
Os conhecimentos materiais repetitivamente mencionados pelas mulheres - mevi-
revõsho shovima awe ‘o pertencimento que surge nas pontas dos dedos’ - é uma habilidade que
exige ter conhecimentos imateriais, chinã ãtsaka ‘aumento de pensamento’, que vem dos ese-
rasi᷉ ‘ensinamentos’ que nos ajudam a trilhar o caminho da morte. Segundo os mais velhos, os
principais artefatos a serem adquiridos como sabedorias são os seguintes:
- remoshe ‘ornamento narina80’, que serve para puxar uma tora de árvore flutuante para a
travessia do igarapé-morte;
- txiati ‘ferramenta para apertar os fios da linha de algodão para fazer saia e rede’, que serve
para abrir o caminho-morte quando as hortigas-morte tentarem fechá-lo, impedindo a jornada,
e para bater nos braços de iso ‘macaco aranha’ gigante que impedirá seu percurso;
- wino ‘cajado’ do kakaya ‘chefe ou cacique’, feito do caule da pupunha, com a mesma função
do txiati;
- kene-rasi᷉ ‘grafismos, desenhos’ que servem para certificar o máximo do conhecimento
adquirido durante a vida; para comprovar o conhecimento dos kene-rasi᷉, em alguma fase pós-
morte, waka ‘espirito’ viajante deve fazer um discurso do aprendizado kene-rasi᷉, obtido de
forma material e imaterial.
80
Seis ou oito palitinhos feitos de aruá (caramujo) e caule ou espinho de pupunha. Quem tinha nariz pequeno
uvava três palitinhos cravados a cada lado do nariz (esquerdo e direito), quem tinha nariz grande usava quatro
palitinhos em cada lado.
157
Quadro 36 - Diferentes caminhos a serem feitos por cada nawavo após a morte.
ENE-VAI-VEI WEKOTI VEI-VAI
(caminho-morte fundo (abanador) (caminho-morte)
da água)
rane-nawavo (enfeites) tama-uavo ino-nawavo (onça)
sata-nawavo (flores-grande árvore) rovo-nawavo (japu de bico branco)
(ariranha e lontra) shono-nawavo wanivo (pupunha)
(samaúma) koro-nawavo (jaguatirica)
txonavo kana-nawavo (arara canindé)
(macaco barrigudo) ni-nawavo (enfeites)
vari-nawavo (sol) yene-nawavo (cigarra)
isko-nawavo (japu) chai-nawavo (pássaro)
shane-nawavo shawãvo (arara-vermelha)
(azulão)
txashkõ-nawavo (saracura de três
potes)
• wanivo (pupunha),
• kamã-nawavo (onça),
• ni-nawavo (floresta) venepavo (maiores),
• shawã-vo (arara vermelha),
• sata-nawavo (ariranha e lontra),
• kana-nawavo (arara canindé),
• koro-nawavo (jaguatirica)
São os que fazem ‘mudanças’ do vaká no vei-vai maῖ ‘caminho da morte’. Na descrição
dos mais velhos, nesse caminho tem os seguinte obstáculos: o primeiro é para quem não tem
adorno labial, que vai seguir o caminho da morte do nawa-rasi᷉ (brancos); o segundo é para
quem não tem rômosh (enfeite que fica na bochecha do nariz), que não terá como puxar a tora
de madeira flutuante para fazer a travessia do igarapé-morte; o terceiro obstáculo é para quem
cobiçou pertences alheios (enfeites, cestarias, plantações das roças), que irá passar por ilusões
óticas e se transformar em centopeia, chegando a uma passagem onde tem hortigas, o macaco
iso e a caldeira de fogo chamada de tani. Tani fica no meio da maloca-morte para a pessoa
atropelar e cair nela.
Ressaltando as diversidades de relatos, numa primeira versão os mais velhos me contam
que há três caminhos a serem feitos após a morte (vekotinin iki ‘via abanador’, vei-vai-iki ‘via
caminho-morte” e ene-oke iki ‘via debaixo d’água’). Na segunda versão, os mais velhos falam
que só tem dois caminhos (vekotinin iki “via abanador” e vei-vai-iki “via caminho-morte”). As
jornadas nesses caminhos nos pedem que sigamos o que aprendemos em vida, com rigor,
sobretudo no que concerne às restrições alimentares e comportamentais. As orientações da vida
são descritas pelos mais velhos para os jovens, a razão do porquê devemos seguir com o temor
ao que é proibido, se quisermos nos precaver de uma morte do vaká.
Vimos até agora, neste capítulo, as restrições que regram casamentos permitidos e
casamento proibidos. Como explicar então a mistura promovida por João Tuxaua, kenatá
‘chamado’e grande kakaya dos Yôra-rasĩ? Esta mistura, que ameaça com a morte da pupila,
159
Como meu txaitxo João Tuxaua contornou as restrições para salvar e multiplicar os
nawavo
Muitos kechῖtxo-rasῖ (xamãs) falam sobre o pai da minha mãe, e ele próprio afirmava
que era vẽchã-vake ‘filho de jiboia’, por isso dizem que ele era arisma ‘não sozinho’ ou yovevõ-
vake ‘filho de yovevo (entidades prototípicas)’. No seu cotidiano, entre seus filhos, na hora das
refeições, durante as conversas, para arrancar risos de seus filhos e noras, ele contava as
desgraças que viveu na sua infância ao ser criado pelas anciãs.
Não sendo considerado uma criança ‘normal’, ao nascer deixou sua mãe sem a
mobilidade das pernas e, depois de menos de um ano, sua mãe engravidou novamente da sua
irmã, que não chegou a viver, morrendo logo no nascimento junto com a mãe. Então, meu
txaitxo (MF) cresceu de mão em mão sem receber carinho, conforme os costumes do povo
marubo, pois as crianças especiais têm que viver longe da presença e dos olhares dos jovens.
Meu txaitxo era sarcástico, as tragédias e superações vividas eram transformadas em comédias,
como lições de vida.
Sobre meu txaitxo, por ele ter misturado casamentos com mulheres de diferentes
nawavo, as pessoas diziam que ele não obedecia às regras de casamento com o nawavo certo;
acabou surgindo a expressão “só estou seguindo o exemplo do Itsãpapa (nome marubo de João
Tuxaua)”, usada por quem era acusado de violar restrições de casamento. João Tuxaua dizia:
“ea mato keskama, ea yorakuῖ kama, ẽ eriashkayato mato otikarvi, ‘não sou igual a vocês, não
sou gente verdadeira’. Ele não se referia ao seu nawavo wanivo (pupunha), já extinto. Apesar
de ser o último remanecente deste nawavo, o mesmo da sua mãe, para ele era mais forte afirmar
ser filho dos yovevo, e a sua mãe seria ẽ anô nipati, frase que poderia ser traduzida como ‘eu
desci dela e fiquei em pé’ (tradução muito aproximativa), como fosse um portal para a sua
existência social.
Os mais velhos contam que meu txaitxo foi responsável pelo tratamento de fertilização
das mulheres que estavam inférteis, vítimas de conflitos entre nawavo. Algumas mulheres, para
não engravidarem dos inimigos que mataram seus pais e irmãos, usavam plantas medicinais
que as deixavam inférteis e contam que outras foram entregues aos nawa exploradores de
caucho com o propósito de que seus nawavo fossem extintos. Foi o caso dos sata-nawavo
‘lontra’ (poto-pavo, nawavo menores), shane-nawavo ‘azulão’ (poto-pavo, nawavo menores e
160
vene-pavo, nawavo maiores) e shono-nawavo ‘samaúma’. Tudo isso aconteceu quando meu
txaitxo ainda era criança. Contava meu avô que ele resgatou as mulheres desses nawavo das
mãos dos caucheiros quando entrou na fase de adolescência.
Quando comecei a cursar o doutorado, o Professor João Pacheco de Oliveira, no
âmbito de um curso realizado em 2018, propôs para os alunos que escrevessem as biografias
das pessoas que fizeram história em suas sociedades. Eu pensei no meu txaitxo e pedi que meu
pai gravasse o depoimento dos mais velhos falando sobre ele. Quando ouvi os áudios recebidos
por email, percebi que os mais velhos falavam do meu txaitxo como o grande instrutor da vida,
que trouxe para eles as explicações das narrativas de origens dos conhecimentos materiais e
imateriais como fatos absolutos, sempre alertando e profetizando o que iria acontecer para as
futuras gerações. Pelo que contava meu txaitxo pessoalmente aos seus parentes, desde pequeno
ele se viu na obrigação de não deixar seu povo colocar em risco de extinção nõ anõ wetsamya
‘os nossos parentes’ nawavo, pois, antigamente, havia conflitos por mulheres que faziam com
que os nawavo vivessem em pé de guerra com seus parentes, e, devido a isso, nossa população
foi diminuindo.
No último conflito, que resultou em muitas mortes, um homem chamado Shawã-Nawa
teve a ideia de se vingar dos seus parentes, com a ajuda dos colonizadores caucheiros peruanos.
As mulheres que restaram foram entregues a esses peruanos e o meu txaitxo foi responsável
pelo seu resgate. Welper (2009:20) confirma os relatos que eu ouvi e registrei:
Vou apresentar aqui para vocês as mulheres do meu txaitxo João Tuxaua, mais
conhecido com o nome de Itxãpapa/Tamãpa pelo seu povo (seu nome de criança como sua mãe
o chamava, Niwa-Wani), pertencente ao wanivo (pupunha). O seu pai, que pertencia ao ni-
nawavo, se chamava Tama, e sua mãe pertencia ao koro-nawavo venepavo (jaguatirica, nawavo
maiores). Ele dizia que sua mãe pertencia a um nawavo dos maiores, mas por narrativas
diferentes da origem de outros koro-nawavo existentes hoje. Segundo Itxãpapa, o nawavo da
sua mãe já era extinto.
Sua primeira mulher foi a viúva de um chefe, filha de um tero-nawavo/moka-nawavo
‘povo amargo’ (Mayoruna/Matses); ela pertencia ao rane-nawavo (enfeites), seu pai deu-lhe
161
um nome do seu povo, Kawepei; sua mãe a chamava de Vane/Tamãwã. Segundo meu txaitxo,
sua primeira esposa o escolheu mesmo sendo mais novo (pré-adolescente) do que seu irmão,
porque via nele um líder e uma personalidade muito falantes, enquanto o irmão era muito calado
e ela não apreciava um homem tão quieto.
Nesse casamento ele teve dois filhos. Tamã-Shãkô morreu flechado acidentalmente
ainda criança e Nishavo Pekô vive até hoje (possui o dom do pai, é romeya ‘pajé’). Esta sua
primeira esposa, quando meu txaitxo se afastou para assumir as outras esposas, acabou vivendo
com o irmão mais velho do meu txaitxo, chamado de Veo, que ela tinha recusado como esposo,
tornando-se cunhada do meu txaitxo. Ela teve mais um filho chamado Ni-Meni, mais conhecido
como Sina-Romeya (o último grande pajé marubo), muito considerado, até hoje, pelos kẽchῖtxo-
rasῖ ‘xamãs’.
A segunda esposa do meu txaitxo (MF) era minha txichtxo (mãe da minha mãe - MM),
seu nome era Isapei-Maia, pertencente ao vari-nawavo; ela era filha do irmão da primeira
mulher do meu txaitxo (João Tuxaua). O pai dela era Sai-Maiãpa, pertencente ao rane-nawavo
e sua mãe era Tamã-Sheta, pertencente ao tama-uavo. Segundo as mais velhas com os quais
conversei, o meu txaitxo pediu para a sua primeira esposa (Kawe-pei ou Vane ou Tamãwã) que
trouxesse a filha do seu irmão, ainda pequena, para ensinar-lhe os modos de comportamento
(fazer comida e recepcionar as pessoas), para poder ser mulher de chefe, e assim foi feito a
pedido do meu txaitxo. Nesse casamento, meu txaitxo teve seis filhos pertencente ao tama-uavo;
Pekô/Mashẽwa e Rao/Tama-Saĩpa estão vivos; Shãkô-Maiãpa morreu ainda criança;
Shupa/Memĩpapa e Vimi/Tamaua/Kamãpa/Ivinĩpapa faleceram em 2021 por Covid-19;
Txano/Itsa/Vanẽpa faleceu em 2014; Sheta/Isapeĩ-ewa faleceu em 2015. Antes de seguir, quero
esclarecer a separação dos nomes pessoais por barras: quando são três nomes, um deles é o
transmitido pelo pai e os outros dois são os transmitidos pela mãe, sendo um deles o nome de
criança e o outro é o nome de adolescente. No caso de quatro nomes, o último resulta da
mudança de nome após a morte de um filho ou filha. Perdi muitos parentes próximos,
mencionados e que estou para mencionar, ao longo do meu mestrado e do meu doutorado.
A terceira esposa do meu txaitxo pertenceu ao isko-nawavo, seu nome era Maia, juntos
tiveram três filhos do shane-nawavo: Metxô, Ne-Vanẽpa e Shanẽ-Rami já morreram. Outros
três filhos dessa esposa são de outro relacionamento: Simão/Pôya, Panã/Tawãpapa e
Kena/Poirako, pertencentes ao shane-nawavo.
Ofereço o caso do casamento entre Vimi/Tamaua/Kamãpa/Ivinĩpapa, filho do segundo
casamento do meu txaitxo, e sua irmã Shanẽ-Rami, para mostrar uma união entre irmãos (por
162
parte do pai), algo proibido e que acarretaria a ‘morte da pupila’. Todavia, os mais velhos
justificam essa união, com o objetivo de “correção dos nawavo primordiais”, já que os nawavo
dos irmãos unidos pelo casamento - Tama-uavo e Shane-nawavo - podem casar-se entre si
conforme as narrativas das origens. Vimi/Tamaua/Kamãpa/Ivinĩpapa casou-se também com
Kena/Pôirakô, irmã mais nova de Shanẽ-Rami.
Shane-Inô/Txitxane-ewa, pertencente ao shane-nawavo, foi a quarta esposa do meu
txaitxo. Juntos, tiveram seis filhos, todos do isko-nawavo: Vimi Peiya, Kena/Pinõewa,
Tama/Vasho/Wasĩpapa e Vo/Voĩ são falecidos; Nato/Mashẽpapa e Txitxã/Kenẽ-ewa estão
vivos.
A quinta esposa do meu txaitxo (MF), pertencente ao shane-nawavo, foi Shanẽ-
Vo/Chorĩ-ewa; juntos tiveram quatro filhos pertencentes ao isko-nawavo: Ronĩpa, Tamasai e
Vane são falecidos, Chori está vivo.
A sexta e última esposa de João Tuxaua pertencia ao sata-nawavo (poto-pavo dos
menores); seu nome era Satã-Vo/Txonanẽ-ewa e juntos tiveram sete filhos do rovo-nawavo:
Txoki, falecido por gripe ainda pequeno, Nono/Chinῖpa, Txonane/Ino/Ravẽwa, Tama,
Peko/Memã-ewa, Maia/Tamasai e Kena.
Meu txaitxo, além das mulheres já mencionadas, teve outras três mulheres como
amantes, que na minha língua são chamadas rakã-aῖvo (rakã ‘guardar/reservar’, aῖvo ‘mulher’).
A primeira rakã-aῖvo era pertencente ao vari-nawavo (sol), se chamava Sheta-Nomashavo e
teve um dos filhos mais velhos do meu txaitxo, Rane/Vimĩpa (mais conhecido como Sheni-
Vimĩpa81, por ele ser filho único da mãe), pertencente ao tama-uavo, e que morreu em 2018. A
segunda rakã-aῖvo pertencia ao ino-nawavo, se chamava Itxa e teve uma filha chamada Wanĩ-
Rave/Rokã-ewa, pertencente ao wanῖvo (pupunha). A terceira rakã-aῖvo pertencia ao shawãvo,
se chamava Yawãroa Maia e teve três filhos: Yôchi/Vonãwã, Pei/Sherõpapa e Nai/Koãwã,
todos falcecidos em 2018. No total, foram 33 filhos.
Nesta parte, apresento os filhos dos filhos do meu txaitxo (MF), com o intuito de
mostrar onde estão esses filhos e como seguem seus descendentes de nawavo até hoje. São ẽ
wetsamavo ‘meus parentes’ que vivem nas calhas dos rios Ituí e Curuça, na Terra Indígenas
Vale do Javari. Lembro que João Tuxaua justificava o fato dele ter sido casado com mulheres
81
Sheni significa ‘velho’.
163
de diferentes nawavo, dizendo que ele pertencia a um nawavo já extinto, sendo seu último
remanescente. Isso reforçava a sua fala perante os kẽchῖtxo-rasῖ (xamãs), e, também, por ser
yove-kave ‘filho de yovevo’.
Vou apresentar os filhos e netos de João Tuxaua, para que saibam como estão hoje e
onde estão os irmãos da minha mãe (kôkavo) e as irmãs da minha mãe (ewavo). Os falecidos
são marcados com o símbolo †; entre parênteses estão os nawavo dos filhos e netos, de modo a
mostrar a mistura de nawavo.
A primeira filha do meu txaitxo, Nishavo-Pekô, pertencente ao ni-nawavo (floresta), por
ser uma anciã, hoje é considerada a matriarca do rane-nawavo ‘enfeites’ da aldeia São Sebastião
do Rio Curuçá. Considerando o nawavo dela, ela é minha pano (o mesmo termo vocativo para
filha da irmã do pai ou filha do irmão da mãe), por pertencer ao mesmo nawavo da mãe do meu
pai. Por ser uma anciã, o termo vocativo que eu uso é paῖtxo (FM); para minha mãe ela era
txitxo (eZ) e pela relação de nawavo ela era natxi (o mesmo termo vocativo para irmã do pai).
A seguir, apresento a aldeia onde mora Nishavo-Pekô e seus filhos.
Aldeia São Sebastião
Nishavo- Pekô/Penῖ-txichtxo ♀ (ni-nawavo “floresta”)
Os filhos (rane-nawavo ‘enfeites’): Rami ♀
Kena ♀
Ranekama ♂ †
Shôpa/Memĩpapa ♂ (†2021), meu kôka (MB), otxi (eB) para minha mãe, que é a sua irmã
uterina.
Aldeia Maronal
Shôpa/Memĩpapa (tama-uavo ‘flores grande árvore’)
Os filhos (isko-nawavo ‘japu’): Veo/Tupãpa ♂
Napuma/Vimĩpapa ♂
Meni ♀
Tupa ♀ †
Vana ♂ †
Kena ♀ †
164
Vimi/Ivinĩpapa ♂ (†2021) é meu kôka (MB), para minha é otxi (eB), que é a sua irmã uterina.
Aldeia Maronal
Vimi/Ivinĩpapa (tama-uavo ‘flores grande árvore’)
Os filhos da primeira esposa † (isko-nawavo ‘japu’): Shapo/Chorĩpa ♂ †
Kama ♀ †
Txana/Shetãpa ♂
Sheta ♀
Txano/Itsa/Venẽpatxo ♂ (†2014) é meu kôka (MB), para minha mãe otxi (eB), que é sua irmã
uterina.
Aldeia Maronal
Txano/Itsa/Venẽpatxo † (tama-uavo “flores grande árvore”)
Os filhos da 1a esposa (rovo-nawavo ‘japu do bico branco’): Vane/Vinawã ♀
Vina/Chorĩpa ♂
Keoti/Memã-ewa ♀
Shoi/Mene/Tamãpa ♂
Wire/Vôpa ♂
Machero/Vinãpa ♂
Vimi/Txoki/Shãkõpa ♂
Panã ♂
Ino ♀
Mashe ♀
Rao/Tama-Saĩpa ♂ é meu kôka (MB), para minha mãe é otxi (eB), são irmãos uterina.
Aldeia Maronal
Rao/Tama-Saĩpa (tama-uavo ‘flor da grande árvore’)
Filho (rovo-nawavo ‘japu do bico branco’): Meke ♂
Ne-Vanẽpa ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte do pai, o termo vocativo otxi (eB),
em relação o nawavo é txaitxo (o mesmo vocativo do filho do irmão da mãe ou irmã do pai),
em relação a mim o mesmo termo vocativo para irmão do pai epa (FB).
Aldeia Maronal
Ne-Vanẽpa (shane-nawavo “azulão”)
Os filhos (vari-nawavo “sol”): Vane-Kashoya ♀
Peo ♂
Mepe/Mesẽwa ♀
Sina ♂
Mai ♂
Teka ♂
Vote ♀
Vimi-Peiyá ♂ é vicha (yB) para minha mãe, seu irmão consanguíneo por parte de pai, em
relação ao nawavo os termos vocativos usados por minha mãe são epa (FB) e natxi (FZ); para
mim é txaitxo (MF ou MBS).
166
Aldeia Maronal
Vimi-Peiyá † (isko-nawavo ‘japu’)
Os filhos (tama-uavo ‘flores grande árvore’): Tama-Nato ♂
Shapôni ♀
Tamã-Vina ♂
Vô ♀
Same ♂
Nato/Mesẽpapa ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte de pai; para minha mãe é
vicha (yB); em relação aos nawavo os termos vocativos usados por minha mãe são epa (FB) e
natxi (FZ); em relação a mim, ele é txaitxo (MF ou MBS).
Aldeia Maronal
Nato/Mesẽpapa (isko-nawavo ‘japu’)
Os filhos (tama-uavo ‘flores grande árvores’): Mese ♂
Tamã-Maia ♀
Tôpa ♀
Vena ♀
Rami ♀
Vasi ♀
Yaka ♀
Tama/Vasho ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte de pai, pelo termo vocativo
vicha (yB) dela; com relação ao nawavo, minha mãe usava os termos vocativos epa (FB) e natxi
(FZ); para mim é txaitxo (MF ou MBS).
Aldeia Maronal
Tama/Vasho (isko-nawavo ‘japu’)
Os filhos (tama-uavo ‘flores grande árvores’): Wasi ♀
Mashe/Kevo-Ina-Mashe ♀
Mesha ♂
Võsi ♀
Vote ♀
167
Txitxãne/Kenẽwa é irmã consanguínea da minha mãe por parte de pai; para minha mãe é txira
(yZ); com relação ao nawavo, são uma natxi (FZ) da outra; e em relação a mim, é minha pano
(MF ou MZD).
Aldeia Vari-nawavo
Txitxãne/Kenẽwa (isko-nawavo ‘japu’)
Os filhos (shane-nawavo ‘azulão’): Kene ♂
Wani ♂
Kena ♀
Shane-Pei ♂
Rane ♂
Vô ♀
Mema ♀
Kena/Pinõ-ewa é irmã consanguínea da minha mãe por parte de pai; para minha mãe é txira
(yZ); em relação aos nawavo, os termos vocativos entre elas é natxi; é minha pano (MF ou
MZD).
Aldeia Vari-nawavo
Kena/Pinõ-ewa ♀ † (isko-nawavo ‘japu’)
Os filhos (shane-nawavo “azulão”): Pino/Vati-shavõpa ♂
Metô ♀
Nonô/Chinĩpa ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é vicha
(yZ), é meu kôka (MB).
Aldeia Maronal
Nonô/Chinῖpa (rovo-nawavo ‘macaco barrigudo’)
Os filhos da primeira esposa (txonavo “macaco barrigudo”): Wasa ♂ †
Vimi ♂
Ivi ♂
Veo ♂
Kena ♀
Kana ♀
Tama/Eshẽpa ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é vicha
(yZ), é meu kôka (MB).
168
Aldeia Maronal
Tama/Eshẽpa (rovo-nawavo “japu do bico branco”)
Os filhos da primeira esposa (isko-nawavo “japu”): Kama ♀
Roni ♀
Pekô ♀
Pekô/Memã-ewa ♀ é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é
txira (yZ), é minha ewa (MZ).
Aldeia Maronal
Pekô/Memã-ewa (rovo-nawavo “japu do bico branco”)
Os filhos (sata-nawavo “lontra”): Mema ♀
Rao ♂
Vô ♀
Ako ♂
Kena/Penã-ewa ♀ é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é txira
(yZ), é minha ewa (MZ).
Aldeia Maronal
Kena/Penã-ewa (rovo-nawavo “japu do bico branco”)
Filho (sata-nawavo “lontra”): Pena ♂
Nai/Koãwa ♀ é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é txitxo
(eZ), é minha ewa (MZ).
Aldeia São Salvador
Nai/Koãwa † (txashko-nawavo saracura três potes”)
Filho (shawãvo “arara-vermelha”): Kero/Yôchῖpa ♂ †
Ino/Ravẽwa ♀ é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é txira
(yZ), é minha ewa (MZ).
Aldeia São Sebastião
Ino/Ravẽwa (rovo-nawavo “japu do bico branco”)
169
Metxo/Kemõpapa é irmão consanguíneo por parte do pai, para minha mãe é otxi (eB), em
relação ao nawavo é txaitxo da minha mãe (o mesmo termo para irmão do pai da mãe), é meu
epa (FB).
Aldeia Alegria
Metxo/Kemõpapa (shane-nawavo “azulão”)
Os filhos (vari-nawavo “sol”): Kemo ♀
170
Rane ♂
Mãpe ♂
Veka ♀
Rame ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é vicha (yZ), é
meu kôka (MB).
Aldeia Boa Vista
Rame † (rovo-nawavo “japu do bico branco”)
Sem tem filho
Ronĩpa ♂ é irmão consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é vicha (yB),
em relação ao nawavo é epa (FB) e minha mãe é natxi (FZ) do Ronĩpa, é meu txaitxo (MF ou
MBS).
Aldeia Paulinho
Ronipa (isko-nawavo “japu”)
Os filhos (tama-uavo “flores grande árvore”): Sheta ♀ †
Rave ♀
Ivi ♂
Vosĩpa ♂
Chori/Votẽ-ewa é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha é txira (yZ),
em relação ao nawavo entre eles natxi (FZ), é minha pano (MF ou MZD).
Aldeia Paulinho
Chori/Votẽ-ewa (isko-nawavo “japu”)
Os filhos (shane-nawavo “azulão”): Vote ♀
Sina ♂
Yôpa/Maiãpa ♂
Nãke ♀
Isatãe/Koãpapa ♂
Vô ♀
Mema ♀
171
Maia/Wanõ-ewa é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha é txira (yZ),
é minha ewa (MZ)
Aldeia Mancio Lima
Maia/Wanõ-ewa (rovo-nawavo “japu do bico branco”)
Os filhos (sata-nawavo “lontra”): Wano ♀
Vana ♂
Wasa ♂
Ino ♀
Pekô ♀
Vona ♀
Rame/Vimi/Vimipa ♂ é irmão consanguíneo por parte do pai e irmãos do mesmo nawavo, para
minha é otxi (eB) e é meu kôka.
Aldeia Á
gua Branca
Rame/Vimi/Vimĩpa † (tama-uavo “flores grande árvore”)
Filhas (isko-nawavo “japu”): Vane-Memiya ♀
Vo-Tama-Shavo ♀
Sherõpapa é irmão consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é otxi (eB),
é meu kôka (MB).
Aldeia Paraná
Sherõpapa † (txashkõ-nawavo “saracura de três potes”)
Os filhos da primeira esposa (isko-nawavo “japu”): Chero/Vimi ♂
Pena ♂
Manichi ♀
Maia ♀
Mashe ♀
Mashe ♀
Vonã-Ewa é irmã consanguíneo da minha mãe por parte do pai, para minha mãe é txitxo (eZ),
é minha ewa (MZ).
Aldeia Paraná
Vonã-Ewa † (txashkõ-nawavo “saracura de três potes”)
Os filhos (shavãvo “arara-vermelha”): Shawã-Shavo ♀
Masto ♀
Mema ♀
Metu ♀
Mene ♂
Vona/Saῖ-papa/Txõpapa ♂
Os filhos do meu txaitxo (MF), do isko-nawavo (‘japu’), que podem casar com meu
nawavo (vari ‘sol’), não aceitam ser chamados por mim pelo termo vocativo kôka (MZ), eles
preferem que os chame pelo termo vocativo txaitxo (MF ou MBS), com intuito de ‘corrigir’ a
relação parental pelo sistema tradicional dos nawavo, a partir dos seus filhos. Minha mãe me
apresentava seus irmãos e pedia que considerasse o elo de parente nawavo, porque o vínculo de
irmãos consanguíneos era com ela, mas as filhas e os filhos dos seus irmãos fariam a retificação
dos termos de parentesco a partir do sistema nawavo, tal como está na narrativa das origens.
Diante da minha perplexidade - “porque não posso chamar os irmãos da minha mãe de kôkavo?”
-, ela explicava que se continuássemos a repercutir o que meu txaitxo (MF) tinha iniciado,
contribuiría para a diminuição dos nawavo e dos nomes pessoais.
Tradicionalmente, as misturas de casamentos entre diferentes nawavo são vistas como
um erro muito grave, que denominamos de onãkima-iki ‘fazendo de não-conhecer’, um dos atos
não toleráveis de serem cometidos, verõ-yochῖ-vei-ka ‘causando a morte da pupila’: as
memórias estarão presas por onde a pessoa passar, assombrando as novas gerações com as quais
queremos nos comunicar. Quem comete esse ato, nas palavras dos kẽchῖtxovo ‘xamãs’ e dos
romeyavo ‘pajés’, tem vei’a ã iri-askãyai ‘morte em vida’, tanto para o vaká como para as
memórias.
A mistura de casamentos e casamentos fora dos padrões tradicionais não começaram
a acontecer através do meu txaitxo. Nas nossas narrativas das origens, aparece algo semelhante,
173
mas não com a mesma quantidade de mulheres que meu txaitxo (MF) possuía. Aqui vai um
exemplo. Varĩ Veka namorava escondida da sua mãe duas vẽsha (jibóia) e enganava sua mãe
dizendo: “mãe não faça fogo, um dos filhos dos seus irmãos vem dormir comigo”. A mãe,
acreditando na filha, evitava fazer fogo para se aquecer. Mal amanhecia e Varĩ Veka se
preparava para sair, dizendo; “mãe, não se aproxime para varrer onde durmo, deixei um dos
filhos dos seus irmãos dormindo, enquanto eu saio para caçar com um deles”. A mãe,
preocupada com o comportamento da filha, quis confirmar se os homens com os quais a filha
se relacionava eram os filhos dos seus irmãos. Resolveu remover o amontoado de lixo, e nele
apareceu um homem cheio de keoti (ornamento do lábio inferior) dizendo: “sou eu minha
natxitsõse (sogra)”. Ela saiu gritando, chegou onde os filhos de seus irmãos estavam fazendo
roça, dizendo: “meus filhos, encontrei um homem cheio de keoti me chamando de natxitsõse”.
Os filhos dos seus irmãos correram para ver, eles o mataram, logo em seguida foram atrás de
Varĩ Veka para ver com quem ela tinha ido caçar. Ao ver que seguia na direção da outra vẽsha,
correram na frente dela e mataram o seu homem. Assim Satã-Veka (o apelido que os filhos dos
irmãos da mãe lhe davam, porque ela se defendia mordendo-os quando molestada contra a sua
vontade), ao perceber quando se aproximaram dela, fugiu da sua aldeia, ressentida pela morte
dos seus homens. Andando pela mata, encontrou Tupane (nawavo rane-nawavo ‘enfeites’), ele
a pediu para ser sua mulher, só que Satã-Veka precisava dar à luz as crias que carregava no seu
ventre. Assim, Satã-Veka gerou todos os tipos de yoῖni-rasῖ ‘animais’: começando pelas koyõ-
rasῖ “formigas vermelhas” (suas ferroadas fazem ter sonhos de avisos, premonições aos seus
irmãos humanos), em seguida kais-kawã ‘pássaro acauã’ (seu canto anuncia a morte aos irmãos
humanos, dizendo que sua hora chegou, precisa partir para outra dimensão), txichká
‘tincoã/vaká-de-gato’ (Piaya cayana, seu canto prevê acidentes, dizendo aos irmãos humanos
que não haverá possibilidade de terminar seus trabalhos). Enfim, deu à luz kõsho ‘cujubi’
(Pipile cujubi), que assumiu o compromisso de anunciar a chegada de netewa ‘estrela dalva’,
ao amanhecer.
Falando em mistura de casamentos, meu povo também teve vários momentos de
convivência e reencontro desagradáveis como o povo Matses (Mayoruna). Nas falas dos mais
velhos, escuto frequentemente os dois conflitos ocorridos com os povos rome-nawavo (Matses),
que conviveram com os Marubo na mesma aldeia, conflitos de ambos os lados, acabando numa
guerra na qual um rome-nawavo, casado com uma mulher marubo, foi morto deixando um filho
(Mapi-shani) entre os Marubo.
174
Muito tempo depois se repetiu a guerra entre o povo marubo e rome-nawavo (Matses),
ameaçando o futuro dos Matses, com rapto de três mulheres marubo dos nawavo rovo-nawavo
(japu do bico branco), sata-nawavo (ariranha vene-pavo nawavo maiores) e ino-nawavo (onça
parda vene-pavo nawavo maiores). Hoje, o povo marubo chama os rome-nawavo rasῖ de moka-
nawavo, por possuírem arma que tem veneno moka-tepi (sarabatana), usada em suas caçadas.
Os ensinamentos que descrevi em outros capítulos são indispensáveis para enriquecer
nossos conhecimentos, de modo a precavermos de ficar presos no corpo de yoῖni-rasῖ ‘animais’,
após a morte. A transformação social é inevitável, os jovens têm que estar em alerta, para saber
transmitir as relações de parentesco entre os nawavo. Às vezes, ouço meus mais velhos
falarem: “mã ane petxia mã vaká venoase, mato aῖvo tanashma mã meiki mã vaká venoase
aka” ‘se vocês esquecerem a transmissão de nomes pessoais seus vaká-rasῖ já estão perdidos,
se vocês mulheres trabalharem sem conhecimento, seus vaká-rasῖ já estão perdidos’. Eles falam
também: “yôra esema, yora kuῖ mairivi ã vaká oratῖpa” ‘gente sem ensinamento, não é gente
verdadeira, seu vaká não vai longe’. E acrescentam: “Nokẽ esevis mẽkῖ txipo shava otapa mã
nawa-rasῖ vimaketsa, matõ ese keyosho” ‘ao invés de aprenderem nossos conhecimentos, no
futuro vocês deixarão que os nawa-rasῖ os dominem, colocando em extinção seus
ensinamentos’.
175
CONCLUSÃO
Iniciei esta tese relatando o percurso da minha vida acadêmica como uma mulher
originária de um povo originário, e aprendiz tardia. Explicitei meu ponto central: fazer
transparecer o comportamento e o conteúdo do parentesco, questão que tinha ficado comigo
durante a graduação e o mestrado, levando-me para meu objetivo no doutorado. Estava
convencida da importância de uma pesquisa rara. Adentrei-me em domínios de conhecimento,
complementando com o que ouvi, ao longo do meu crescimento, do meu pai, da minha mãe, do
meu txaitxo (pai da minha mãe), da minha paῖtxo (mãe do meu pai). Por fim, transmiti minhas
inquietações e falei dos caminhos que percorri para enfrentá-las.
A minha pesquisa se situa entre os Yôra-rasῖ (Marubo), localizados na Região do Vale
do Javari, uma terra indígena nos municípios de Atalaia do Norte e Guajará, habitada por
diferentes povos que falam línguas da família pano. Nesta região, também se encontram grupos
isolados, em boa parte ainda desconhecidos.
Procurei reconstituir, através das narrativas tradicionais e de forma coesa, a
reorganização social que ocorreu a partir do surgimento dos nawavo, termo nativo que substitui
‘clãs’ e ‘seções’, termos usados na literatura etnográfica sobre os Marubo e outros povos pano.
Ressalvo ainda que o que os nawa-rasĩ chamam de ‘sociedade marubo’ não pode ser
completamente compreendido sem as informações diversas que provêm de histórias paralelas,
que falam de guerras, fugas, povos extintos e transformados, assim como mistura de casamentos
com povos vizinhos. Tudo isso está envolvido nas transformações que, inevitavelmente,
alteraram e alteram os modos de ser e viver atuais.
Os Yôra-rasῖ são compostos por diversos nawavo, sendo que cada um deles é uma
unidade social com seu emblema, tal como encontramos nas narrativas de suas origens. O modo
pelo qual exigimos de nós mesmos ter conhecimento aprofundado da nossa maneira de ser se
encontra expresso no decorrer dos capítulos: retomando a introdução desta tese, os nawavo
aparari weniyavo (nawavo que surgiram primeiro) são os nawavo primordiais; os nawavo
pretendentes originários, os nawavo pretendentes concorrentes agregados são nawavo
casáveis, vevo weniyavõ ratea weniyavo ‘os primeiros surgentes de susto’; e os nawavo takevo
são nawavo ‘irmãos’, com os quais o casamento é proibido.
Cada um dos capítulos teve o intuito de desvendar o raciocínio por trás das relações
parentais, das quais antropólogos não-indígenas exploraram apenas alguns aspectos. O capítulo
1 faz jus às circunstâncias históricas do surgimento dos Yôra-rasῖ (Marubo). As narrativas orais
são um assunto de enorme importância para a progressão da tese, e elas foram abordadas e
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Os nomes pessoais, assim como todo o conhecimento que forma o ser social yôra-rasῖ,
são obtidos especificamente pela narrativa oral e refletem o surgimento do povo, através das
falas de anciões e anciãs, para expressar o início da ligação entre os diferentes nawavo. No
entrosamento da nossa sociedade, entre parentes, os termos de referência e vocativos têm uma
estimação de respeito e de identificação das faixas etárias, devido às circunstâncias históricas
em que o povo yôra-rasῖ se tornou mais pacífico do que seus ancestrais, pelo processo
geralmente dos casamentos essenciais para a harmonia, como demonstrado a partir do capítulo
2.
Os nomes pessoais, portanto, são de suma responsabilidade e não são usados para
dirigir-se diretamente às pessoas mais velhas, consideradas mães e pais por seu nome pessoal;
isto é visto como falta de respeito, pois o domínio do uso livre de nomes pessoais é reservado
aos mais velhos para demonstrar afeto e aproximação. Assim, os mais velhos usam termos de
referência que expressam orgulho diante das novas gerações, como por exemplo:
• ẽ shokô ‘pertencente ao meu nawavo’;
• ewashkô ‘pertencente ao nawavo da mãe’;
• kokã-shoko ‘pertencente ao nawavo do irmão da mãe’;
• natxishkô ‘pertencente ao mesmo nawavo da irmã do pai’;
• epã-shokô ‘pertecente ao mesmo nawavo do irmão do pai’;
• papã-shokô ‘pertencente ao nawavo do pai’;
• txaitxõshokô ‘pertencente ao mesmo nawavo do pai da mãe;
• txaῖshokô ‘pertencente a nawavo casável’.
Os termos referenciais acima apontam os nawavo com os quais temos aproximação
parental, além de demonstrar a relação de geração alternada (matrilinear).
Os termos parentais incluem a denominação dos nawavo, de forma a determinar e
permitir os casamentos corretos. Historicamente, a multiplicação dos wetsamavo ‘parentes’
nawavo vem desde o nawavo denominado como vari-nawavo, ao qual eu pertenço, que é o
primeiro a emanar. A partir da existência dos primeiros nawavo, surgem os termos de
parentesco otxivo ‘irmãos do mesmo nawavo’, txitxovo ‘irmãs do mesmo nawavo’, txaitxovo
‘pertencentes ao mesmo nawavo que o pai da mãe’ e panovo ‘irmãs do pai da mãe’, que são os
termos que orientam os nawavo para fazer as escolhas certas de casamento.
Segundo os mais velhos, durante a jornada do surgimento, os pares de gerações
alternadas (matrilinear) emanaram juntos. No entanto, ao invés de resultar apenas em
crescimento populacional, essas relações sociais sempre foram muito tensas, gerando conflitos
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sociais que chegavam a causar guerras, marcando a história com tempos de matança de homens
e mais velhos, fugas, raptos, sequestros, extinção de alguns nawavo, causados possivelmente
por ciúmes, rumores e traições. Mesmo assim, ainda havia certas exceções para escapar da
possível extinção.
Durante uma guerra, crianças que tinham pai kakaya ‘chefe’ ou que eram filhos de
irmãos do kakaya, que estavam em lados opostos, eram salvos, para que, quando crescessem,
se meninos ajudassem a multiplicar outros nawavo e se meninas ajudassem a multiplicar seus
próprios nawavo, mantendo a condição social e construindo outras.
Esses nawavo sobreviventes de conflitos internos capturavam mulheres, que, se aceitas
como futuras mães das proles de nawavo rivais, decidiam não engravidar, sendo que, em última
instância, o aborto ou até mesmo o suicídio seriam opções viáveis.
Algumas das mais velhas me contaram que a infertilidade que marcou certas mulheres,
colocando em extinção determinados nawavo, era causada por ervas consumidas por elas. Em
outras situações, a mulher capturada poderia ser rejeitada pelo povo rival: alguém, inimigo(a)
do seu nawavo, garantiria que ela se tornasse infértil, colocando as mesmas substâncias
extraídas de raízes e folhas na bebida ou próximas, para que a vítima inalasse a fumaça. Caso
tais tentativas falhassem e a criança conseguisse ser concebida, o povo rival estava aberto a
outros métodos para causar aborto.
O capítulo 4 reúne ações e eventos que atingem os que fogem das tradições, do ponto
de vista dos mais velhos: regras e punições decorrentes da mistura de nomes, casamentos,
traições, entre outros, para confrontar as regras impostas no pós-vida, na morte. O destino dos
Yôra-rasῖ depende dos ensinamentos adquiridos, para o retorno à origem ou para viver a morte
itsa ichna shete ni paokatsa (‘no cheiro da podridão’).
A morte de um parente pode representar um luto quase impossível de se superar caso
não haja uma maneira de perpetuar seus nomes pessoais em linhagens futuras de nawavo.
Aprendi isso com a perda de três dos meus quatro kôkavo durante a escrita desta tese. Foi como
se estivesse perdendo o elo com meus ascendentes sem poder transmitir a herança dos meus
nawavo. Como mulher e mãe de um filho homem, a continuidade de meu nome não tem lugar
no mundo atual e a única chance do meu nawavo persistir é através das filhas das minhas irmãs,
lembrando que os filhos homens só multiplicam outros nawavo. Quando meu nome está
destinado a ser transmitido a novas gerações de nawavo relacionados a mim, eu estou
prosseguindo com o meu ciclo, mesmo em outro corpo, tanto que uma pessoa pode estar
perpetuando o ciclo de diversas pessoas, assim como diversas pessoas podem suceder-se no
ciclo de uma única pessoa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS