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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

BÁRBARA RODRIGUES ARIOLA

AFETOS DA PELE:
CORPO E DISSIDÊNCIA NA PERFORMANCE ARTÍSTICA

GUARULHOS
2021
BÁRBARA RODRIGUES ARIOLA

AFETOS DA PELE:
O CORPO E DISSIDÊNCIA NA PERFORMANCE ARTÍSTICA

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: Antropologia
Orientação: Valéria Mendonça de Macedo

GUARULHOS
2021

2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada à fonte.

Ariola, Bárbara Rodrigues

Afetos da Pele: o corpo e dissidências na performance artística/Bárbara Rodrigues


Ariola. Guarulhos, 2021.
123f.

Skin Affects: the body and dissent in artist performance.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)/ Universidade Federal de São Paulo,


Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2021.
Orientação: Valéria Mendonça de Macedo.

1. performance artística. 2.corpo, 3.gênero dissidente4. acismo5. redes sociais.

3
BÁRBARA RODRIGUES ARIOLA

AFETOS DA PELE:
O CORPO E DISSIDÊNCIA NA PERFORMANCE ARTÍSTICA

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre em Ciências
Sociais
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: Antropologia

Aprovação:

Prof.a Dr.a Valéria Mendonça de Macedo


Universidade Federal de São Paulo

Prof.a Dr.a Andréa Claudia Miguel Marques Barbosa


Universidade Federal de São Paulo

Prof.a Dr.a Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra


Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Prof.a Dr.a Rose Satiko H. Hikiji (suplente)


Universidade de São Paulo

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Para Benedito e Catarina

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior (CAPES) como instituição que tornou possível a execução deste trabalho, assim
como os funcionários da Universidade Federal de São Paulo que persistiram e nos auxiliaram
mesmo em um momento tão vulnerável das instituições de ensino. Dentre eles, agradeço à
minha orientadora, a Prof.a Dr.a Valéria Mendonça de Macedo pela imensa generosidade em
acolher este trabalho, pela parceria e trocas imensas que muito enriqueceram minha
experiência.
Às interlocutoras Berna Reale, Julha Franz e Tao Bruni que cederam espaço, tempo e
corpo para nossas trocas. Torço imensamente pelo trabalho e carreira de vocês, espero ainda
contribuir no que me for possível para que o reconhecimento e visibilidade de vocês tomem
proporções gigantes. Sou extremamente e infinitamente encantada e grata pela arte que vocês
trazem para o mundo, que tornaram possível todas as minhas investigações, curiosidades e
pesquisa do entendimento do corpo e seus rituais!
Agradeço aos colegas e laços que criei com os companheiros de mestrado, a turma
que eu mesma saudava por ter pesquisas tão profundas e necessárias: Alice Coutinho, Beatriz
Figlino, Carolina Alencar, Eduardo Fernandes, Érico Munjuri Brito, Juliana Bartholomeu,
Laís Borges, Mário Cabral, Pedro Rabello, Paulo Soares Correia. Sou grata pelas trocas das
salas às mesas de bar.
Agradeço às amigas e amigos que estiveram ao meu lado e que partilharam debates,
discussões e construções de afetos sinestésicos me fortalecendo para continuar firme na
minha jornada: Bruno Ferreira, Bruna Gomes Afonso, Guilherme dos Santos, Lorrane
Campos, Julio Soares, Marianna Muricy, Manu Mello, Pedro Ogata, Suelen Domingues,
Thalita Giachetti. À Karen Rego, por me apresentar o mundo da antropologia durante nossa
jornada de vida que compartilhamos. À Anna Hanel e Lívia Bueno por me guiarem pela
cidade de Porto Alegre e fazer da experiência etnográfica muito mais prazerosa. À Júlia
Bezerra pelo nosso companheirismo, pelas páginas incansáveis da dissertação que ela me
escutou lendo durante a quarentena.
À minhas alunas dos cursos de mulheres performers pela extrema confiança em meu
trabalho e possibilidade de me fazer pensar novas possibilidades de criação e experiência a
partir do corpo. Aos meus colegas e parceiros das diversas oficinas de dança e performance
que compartilhamos durante esses últimos anos.

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À minha mãe Maria Luiza Rodrigues e ao meu pai Nelson Ariola por acreditarem no
meu trabalho e me incentivarem com seus gestos. Obrigada por me gestarem e me darem
coragem, isso me possibilita acreditar na pesquisa e nos estudos como uma forma de viver e
estar no mundo. À minha madrasta Vanessa Franzese e minha irmã Giovanna Ariola pelo
afeto que me atravessa e me sustenta.
À Mira e Pape, minhas gatas, e aos seres vivos da flora que habitam os arredores da
minha casa e que me mantiveram atenta aos ciclos da vida, me recobrando à existência do
corpo para persistir em meu trabalho, mas também à minha nutrição e descanso.
Agradeço aos que defendem a ciência e a universidade como um fazer democrático.
Em momentos sombrios de descrédito da universidade, saúdo a todos que dedicam suas vidas
para manter a chama do conhecimento acesa, porém em sua devida autocrítica de que o saber
encerrado e estancado não flui, e que nossa luta não é só para manter o conhecimento, mas
também para mudar nossas epistemologias do conhecimento, do olhar e do se afetar.
Ao meu Orí e meu corpo: como diz os filhos de Iemanjá, ‘minha cabeça me ganha ou
me perde’, e agradeço à persistência do meu Orí que me trouxe até aqui, sem jamais esquecer
que o corpo nutrido e vulnerável é o que está vivo, e se posso aqui agradecer é porque este
corpo me sustentou e o Orí me manteve lúcida do presente. Estar viva agora. Salve as forças
da natureza!

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“Os rituais humanos são como pontes sobre as águas turbulentas da vida.”
Richard Schechner

“O mundo acadêmico encarna as palavras do herói. Eu não sou uma exceção. Como mulher, falo a
linguagem dos homens. A minha história de formação foi um lento e persistente processo de aquisição
de uma língua que produziu um “meu corpo-mulher”, deixando ainda ecoar por entre os períodos
menstruais as formas do herói masculino. Porque um corpo não pode ser um corpo de mulher ou de
homem. Porque o corpo de mulher não pode silenciar outros corpos. Porque um corpo que menstrua
vaza. Uma escrita de corpo é uma escrita de vazão.”
Ana Rita Queiroz Ferraz

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RESUMO

Este trabalho aborda a performance artística através da perspectiva de gênero e uma


abordagem decolonial do corpo, a partir de incursões etnográficas em apresentações, obras,
redes sociais e entrevistas com três artistas brasileiras: Berna Reale, Julha Franz e Tao Bruni.
Particularmente, como seus trabalhos e vidas ensejam reflexões sobre dissidências de gênero,
questões raciais e produção artística. Ainda, como tais questões se interseccionam em
algumas abordagens e debates na historiografia da arte e na antropologia como ato
performático, a partir das lentes da crítica decolonial, feminista e queer.

Palavras-chave: performance artística, corpo, gênero dissidente, racismo, redes sociais

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ABSTRACT

This work approach the artistic performance through of gender perspective and decolonial
method of the body, from ethnographic incursions in presentations, social media and
interview with three brazilian artists: Berna Reale, Julha Franz e Tao Bruni. Particularly, the
works of these artists wish thoughts about gender dissidences, racial issues and artistic
productions. From the fieldwork, such issues intersects some approaches and discussions in
the art historiographic and anthropology as like a performative act, from the view of
decolonial criticism, feminist and queer, looking for approaches about the body on the
performance ritual.

Palavras-chave: artistic performance, body, gender, dissidence, racism, social media

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO I

Histórias da performance e historiografia como performance 13

Primeiras histórias 13

Corpo que performa: latina e brasileira 22

Corpos afetados e efetuados por diferenças 25

Performance e performatividade de gênero: Debates feministas no corpo em cena 26

Corpos sob análise, corpos sob feitura: antropologia e arte como performance 29

CAPÍTULO II

Raça, gênero e outras máscaras ativando o corpo, a cena e o campo 39

Desmascaramentos 39

A dor e suas orelhas 45

Toda minha dor 48

Máscaras e dores da Covid-19 54

Performance, linguagem e silêncio 58

CAPÍTULO III

Descaramentos, desmascaramentos e dissidência de gênero 63

Dragando o gênero 64

Contexto e pertencimento 70

Silêncios e brados retumbantes 77

Espinhos 84

CAPÍTULO IV

O corpo que se move nas redes virtuais 93

Netnografia e performance digital 96


Redes e limites 109
CONCLUSÃO 121

BIBLIOGRAFIA 126

11
INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como ponto de partida o corpo e o gênero nas artes performáticas.
Particularmente, volta-se para o trabalho de pessoas que foram posicionadas socialmente
como do sexo feminino (por serem providas de seios e vagina) e como sua produção
performática é atravessada por essa experiência, buscando subvertê-la ou multiplicá-la. Três
artistas que centram sua produção artística na intervenção em seus corpos são foco dessa
reflexão: Berna Reale, Julha Franz e Tao Bruni.
A proposta de pesquisa provém de uma inquietação desde a graduação em História da
Arte sobre a ausência de mulheres nos livros que eu lia e nas aulas que eu frequentava. Com
o tempo e pesquisa, fui percebendo que não são apenas as mulheres, mas também as pessoas
negras, transsexuais, não binárias, indígenas, ou seja, o que foge à norma do padrão do
homem branco. Dentro da performance, encontrei o corpo. E o corpo é quem demarca e
expõe todos esses símbolos e todas essas relações entre o fazer artístico e o trabalho de
registro dessas ações por meio da pesquisa acadêmica ou do olhar do espectador. O corpo
expõe e apresenta contradições e coerências vividas socialmente. Sendo assim, apresento as
artistas estudadas em questão.
Berna Reale nasceu em 1965 em Belém, no estado do Pará, e se formou em Artes
Plásticas pela Universidade Federal do Pará em 1996. Atualmente trabalha como artista
visual com foco em performance, videoarte e fotografia (esses dois últimos atuam mais como
registros elaborados de suas performances). Além da profissão artista, Berna é perita criminal
do Centro de Perícias Científicas do Estado do Pará. Julha Franz nasceu em 1993 em Porto
Alegre/RS, onde vive. Suas performances buscam uma estética queer, aproximando-se do
universo das drag queen e king, de modo a questionar o lugar e papel de seu corpo e o que ele
comunica. Já Tao Bruni nasceu em Cubatão/SP em 1994, e hoje mora entre São Paulo e o
interior. Artista não-binário, traz em seu trabalho a subjetividade de suas vivências através do
uso de máscaras e outros artefatos, sendo o único artista, entre as três em foco nesta pesquisa,
que faz uso também das artes plásticas, como pintura e desenho, como parte de seu trabalho.
Questões raciais se sobrepõem à pauta de gênero em muitos de seus trabalhos.
A pesquisa se efetivou por meio de trabalho de campo durante alguns processos
criativos e apresentações destas artistas, assim como de interlocuções com elas e com seus
respectivos trabalhos, que em grande parte têm como suporte imagens digitais (fotografias e
vídeos) disponibilizados na internet e redes sociais. Ainda, a pesquisa se efetivou por

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ausências, silêncios e dificuldades de aproximação. Assim, esse é um trabalho sobre
encontros e desencontros, traduções e transformações, tanto da performance artística como da
performance antropológica, e do corpo como lugar da diferença e das composições.
O primeiro capítulo se volta para alguns aspectos históricos da performance no
contexto internacional e brasileiro, buscando problematizar a ênfase predominante na
historiografia em artistas homens e propondo uma releitura decolonial, feminista e queer
dessa produção.
Já o segundo, terceiro e quarto capítulos centram foco em performances dessas três
artistas, buscando abordá-las de modo articulado. O capítulo 2 enfatiza questões raciais e de
gênero, enquanto o capítulo 3 se volta para o fazer gênero e outras diferenças por meio da
feitura de corpos em performances e em trajetórias de vida. Por fim, o capítulo 4 discorre
sobre a relevância do suporte digital no trabalho das três artistas e nos caminhos desta
pesquisa, buscando concluir com uma reflexão acerca de continuidades e singularidades entre
performance artística e pesquisa antropológica.

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CAPÍTULO I
Histórias da performance e historiografia como performance

Primeiras histórias

O que define a performance? Diversos autores, sob diversas perspectivas, narraram


dezenas ou centenas de vezes a experiência da performance. Diana Taylor (2013) sugere que

‘performance’ traz consigo a possibilidade de desafio, até mesmo de


autodesafio. Uma vez que o termo implica simultaneamente um processo,
uma práxis, uma episteme, um modo de transmissão, uma realização e um
meio de intervir no mundo, ele em muito excede as possibilidades dessas
outras palavras oferecidas em seu lugar. (TAYLOR, 2013, p. 16).

Performance pode abranger dimensões cotidianas e naturalizadas, a exemplo da


performatividade de gênero sobre a qual discorreu Judith Butler (2018), ou esferas
marcadamente rituais, abordadas por Victor Turner (1979, 1988), até as criações artísticas,
sob o foco de Richard Schechner (2012) no caso do teatro, ou de Paul Zumthor (2018) na
poesia. Esses são apenas uns entre numerosos autores que se voltaram para a performance
sob diferentes focos analíticos.
Especificamente no campo das artes visuais, Renato Cohen (2013) aborda a
performance como linguagem que implica a presença “viva” do artista, chamando o corpo
para a cena, estando ele ao vivo, que o autor enfatiza, ou em suportes digitais, como foi se
tornando cada vez mais frequente. Seja como for, para este e outros autores a performance se
particulariza pela experimentação dos artistas para além de bases convencionais como o
palco, ou a tela, tinta e escultura. A performance seria uma arte de ruptura que trabalha no
limiar das artes plásticas e cênicas. É a partir dos anos 1960 que a performance se consolida
no campo das artes, principalmente na Europa e Estados Unidos.
Um dos nomes atribuídos à arte da performance foi a live art ou body art (COHEN,
2013), considerando a performance como uma arte viva que se aproxima da ideia do viver
“natural” (idem, 2013) e espontâneo. Uma das ideias da body art é justamente o corpo como
condutor da obra de arte, o suporte em si. Dentro desta conceituação temos então um objeto
de arte que não é retido pelo tempo, nem de maneira mercadológica. Teoricamente, a body
art acontece em um tempo-espaço específico, porém efêmero, e fica memorizada apenas em
quem presenciou o corpo em cena. Ela chamava atenção para o “objetificador” e não para o

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objeto. As esculturas associadas à body art tinham como foco fazer a experiência parte da
construção do objeto. Dennis Oppenheim (1938-2011), artista norte-americano, foi um
performer da live art que propôs uma escultura corporal a partir de uma experiência que
partia da própria pele. Em seu trabalho ‘Two Stage Transfer Drawing’ (1971), Oppenheim
propõe que uma pessoa desenhe nas costas da outra e, a partir do efeito sensorial causado no
toque, a pessoa tente transferir o mesmo desenho para o papel ou parede à sua frente.

‘Two Stage Transfer Drawing’. Dennis Oppenheim, 1971 (Reprodução)

Outro exemplo, dado por Renato Cohen sobre a live art, é a performance de George
Brech, do grupo Fluxus:

(...) na medida em que, de um lado, se tira a arte de uma posição sacra,


inatingível, vai se buscar, de outro, a ritualização dos atos comuns da vida:
dormir, comer, movimentar-se, beber um copo de água (como numa
performance de George Brecht do Fluxus) passam a ser encarados como atos
rituais e artísticos. (COHEN, 2013, p. 38)

15
‘Water by George Brecht, 1963’, 2009 (print do frame)1

Nas artes visuais a performance rompe com a lógica de quadros pendurados a serem
admirados na parede e traz uma presença viva a ser observada, podendo acontecer fora dos
museus e galerias. Há ações nas ruas, por exemplo, que quebram o andar cotidiano dos
passantes ao se confrontarem com um ato, uma cena fora do esperado cotidiano. Como
exemplo, vemos o artista brasileiro Paulo Bruscky, em 1978, fazendo a ação “O que é arte?
Pra quê serve?” nas ruas de Recife, se utilizando das mesmas estratégias dos ‘homens
propagandas’ dos centros comerciais urbanos para abordar, através da ironia, a provocação ao
problematizar a função da arte na sociedade.

“O que é arte? Pra que serve?”. Paulo Bruscky, 1978 (Reprodução)

1
Não encontrei fotografias ou vídeos da performance original. Encontrei uma releitura feita em Nova York por
um evento chamado ‘FLUXCONCERT 20090220-21’: https://www.youtube.com/watch?v=CTwAOzYBWAo -
Acesso em 18 de novembro de 2020.

16
A live art é um momento de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de
sua função meramente estética, elitista. A ideia é de resgatar a característica
ritual da arte, tirando-a de “espaços mortos”, como museus, galerias, teatros,
e colocando-a numa posição “viva”, modificadora. (COHEN, 2013, p. 38)

Nas principais bibliografias sobre o tema, como a de Renato Cohen (2013) e Roselee
Goldberg (2007), há destaque para nomes como o Grupo Fluxus, Joseph Beuys (1921-1986),
Yves Klein (1928-1962), entre outros. O Grupo Fluxus, por exemplo, nasce em 1961 da
Revista Fluxus através do artista lituano George Maciunas (1931-1978), o qual afirmava que
todos poderiam compreender arte, que arte poderia ser qualquer coisa e que todos poderiam
fazer arte. Mobilizados pelas ideias da revista, diversos artistas nos Estados Unidos, Europa e
Japão aderem ao movimento como um grupo, inclusive artistas como o próprio alemão
Beuys, que fez muitas performances críticas ao consumo norte-americano e pró movimentos
ambientalistas.
Marina Abramovic é uma das raras mulheres destacadas pela historiografia.
Abramovic é uma artista iugoslava, nascida em 1946, que começou seus trabalhos nos anos
1970, auge do movimento performático. Ela levou o corpo ao limite com trabalhos como
‘Rhythm’, em que fazia várias ações ao longo dos anos, incluindo cortar uma estrela de cinco
pontas na própria barriga. A artista abordava temáticas como seu passado difícil na infância,
com a família e a situação de guerra do país, além de questionar o limite das pessoas ao
propor performances que interagiam diretamente com o seu corpo. Seu trabalho passou a ser
mais conhecido recentemente, principalmente após sua mostra no Museum of Modern Art
(MoMA), Nova York, em 2010, onde reuniu os últimos 40 anos de seu trabalho, incluindo
fotografias, vídeos, objetos pessoais e instalações.
Nos últimos anos Abramovic fez uma pesquisa sobre espiritualidade e religião que
gerou, em 2016, o documentário “Espaço Além - Marina Abramovic e o Brasil”, uma
pesquisa sobre a ritualística em diversos grupos espiritualistas e religiosos no Brasil. Um ano
antes, em 2015, a artista também realizou uma mostra chamada “Terra Comunal” no Sesc
Pompeia, em São Paulo, onde mesclava performance e ritualística através de práticas
meditativas, cristais, além de encontros imersivos e presenciais com a própria artista.

17
“Rhytm”. Marina Abramovic, 1974 (Reprodução)

Com exceção de Abramovic e outras poucas mulheres, indiscutivelmente a maioria


dos artistas em foco são homens brancos, cujas obras são celebradas na literatura
especializada por quebrar os paradigmas das artes se utilizando de espaços não-convencionais
de apresentação, de intervenção no e pelo corpo, assim como criando uma relação entre
público e plateia que não se adequa ao conceito de teatro, sendo uma linguagem sobretudo
experimental.
Dentro deste contexto, em 1971, Linda Nochlin publica um artigo intitulado “Porque
não houve grandes mulheres artistas?”, onde dá um pontapé inicial nos estudos norte-
americanos sobre a presença das mulheres nas artes. Na segunda onda feminista2 nos Estados
Unidos, diversas autoras questionam o papel das mulheres nas artes visuais, assim como sua
falta de visibilidade nos espaços institucionais. Discussões entre acadêmicas e artistas trazem
à tona um pedaço que faltava na historiografia da arte: as mulheres.

Na realidade, nunca houve grandes mulheres artistas, até onde sabemos,


apesar de haver algumas interessantes e muito boas que ainda não foram
suficientemente investigadas ou apreciadas, como não houve também
nenhum grande pianista de jazz lituano ou um grande tenista esquimó, e não
importa o quanto queríamos que tivesse existido. É lamentável que seja esse
o caso, mas nenhum tipo de manipulação de evidência histórica e crítica vai
alterar a situação, nem acusações de distorções machistas sobre a história.

2
O período estabelecido como “Segunda onda feminista” se iniciou nos anos 1960 e foi até meados de 1970,
sobretudo nos Estados Unidos, sob o slogan “o pessoal é político”, questionando opressões vividas como
pressões estéticas, matrimônios e questões reprodutivas. Igualmente, no mesmo período, ascendia o movimento
Panteras Negras, trazendo demandas e pautas raciais, além do movimento lésbico se reivindicar como sujeito
histórico. (documentário WAR! – Woman Art Revolution. Direção Lynn Hershmann Leeson, 2011, EUA)

18
Não existem mulheres equivalentes a Michelangelo, Rembrandt, Delacroix,
Cézanne, Picasso ou Matisse, ou mesmo nos tempos recentes, a Kooning ou
Warhol, assim como não há afro americanos equivalentes dos mesmos.
(NOCHLIN, 1971, p. 7)

Em sua provocação irônica que aponta a inexistência de mulheres artistas, Nochlin


argumenta que a pergunta que dá título ao texto busca nos interpelar sobre questões históricas
que fizeram eleger apenas homens como os grandes cânones da arte. A autora destaca a
classificação de “gênio” para o artista que nasce com um dom iluminado que aparece na tenra
idade e vai se reverberando até que seja descoberto por um mestre, ou tenha que lutar
bravamente para fazer valer sua genialidade. Como observa a autora, apenas a homens é
concebido o status de gênio. A “aura mágica” que circunda estes artistas tem alguns recortes
de gênero e também de raça.
Outro ponto colocado pela autora é a questão do papel da mulher dentro dos contextos
em que esses artistas aparecem. Mulheres praticamente não tinham disponibilidade para “dar
vazão” a seus talentos artísticos enquanto eram responsáveis pela casa, filhos, demandas do
parceiro, além de outras limitações sociais. O paradigma que Nochlin rompe é, sobretudo, a
ideia de que a arte faz parte desta tal “aura mágica” ao invés de ser produto de um meio
social, político e econômico.
Como destaca a historiadora Luana Saturnino Tvardovskas (2013), “a arte, assim
como as demais esferas da sociedade, está constituída, em maior ou menor grau, pelos
regimes de verdade como as desigualdades de gênero, tendo em vista que pertence ao campo
da cultura, com suas tensões e historicidade” (TVARDOVSKAS, 2013, p. 20). Neste sentido,
ignorar as mulheres na arte pode ser uma escolha ou uma ignorância pela incapacidade de
visão de quem conta a partir de certos regimes de verdade.
A compreensão de como são as dinâmicas de um corpo de acordo com o recorte de
gênero não se dá apenas como um nicho de interesse, mas como uma possibilidade de outra
epistemologia, a que especifica os locais de fala. Trata-se de compreender, sobretudo, como
são os afetos dos corpos a depender do seu contexto específico e as possíveis convergências
entre corpos dissidentes.
Buscar caminhos pelos quais o corpo se afeta pode desromantizar a ideia de que a
artista traz a sua criação como um pulso interno, uma epifania, atentando para as condições
dos encontros, oportunidades, local de nascimento, condição social, entre tantos outros
fatores que multiplicam o próprio conceito de artista. Há artistas e artistas, e não
necessariamente todos têm ou desejam o mesmo papel enquanto sujeitos criativos.

19
No documentário norte-americano “WAR – Women Art Revolution”3, é narrada parte
desta história em que é possível compreender quais discursos políticos estavam em disputa.
No fim dos anos 1960, nos Estados Unidos, mais especificamente em circuitos artísticos
como Nova York e Chicago, estava em voga a arte minimalista que tinha como ideia uma
obra final onde a aparência tivesse a menor interferência possível da mão humana. Para isso,
se aludia ao trabalho da carpintaria e sua maestria de finalização como uma função
masculina. Um exemplo é o artista norte-americano Carl Andre (1935-) que fazia esculturas
que visavam a perfeição do entalhe e da modelagem.

Carl Andre, Hulton Archive / Getty Images (Reprodução)

Em um contexto de Guerra do Vietnã e nascimento do partido Black Panthers, além


de movimentos fortes da segunda onda feminista, questionamentos das artistas da época eram
justamente qual preocupação este movimento minimalista tinha em um contexto tão
conturbado politicamente. Como resposta, a arte da performance para essas mulheres se
contrapõe ao minimalismo. Se o minimalismo era um objeto impecável, a performance era o
corpo bruto, com toda sua vida, fluidos e potência.
Ainda que a proposta das artistas mulheres da época fosse uma crítica ao
“puritanismo” minimalista, existia também a questão do corpo da mulher ali colocado. Um

3
WAR! – Woman Art Revolution. Direção Lynn Hershmann Leeson, 2011, EUA.

20
corpo cheio de estigma, portanto passível de mais leituras do que simplesmente o corpo
objetificador. As performances não se encerravam somente na ideia de corpo, mas também na
ideia do corpo feminino. Performances com temáticas de violência doméstica, sexualidade,
maternidade, menstruação etc. foram produzidas em grande quantidade e diversidade.
Um exemplo curioso que ilustra de forma literal o embate entre esses movimentos
artísticos foi a morte da artista Ana Mendieta (1948-1985) aos seus 37 anos. Mendieta era
performer, cubana, e morava nos Estados Unidos desde criança. Muitos dos seus trabalhos
envolviam as questões do retorno à sua terra, identidade como latina num país norte-
americano, além de violências de gênero, como o estupro. Grande parte de seus trabalhos
envolvia seu próprio corpo, fluidos, muitas vezes até o seu sangue. Mendieta, em 1985, ano
da sua morte, estava em um relacionamento com o artista minimalista Carl Andre. A causa da
morte foi sentenciada como suicídio ao se jogar de uma janela. No entanto, o tal ‘suicídio’
ocorreu em um momento em que Carl e Ana discutiam em um apartamento e, inclusive,
testemunhas falaram sobre ouvir gritos de Ana em meio a discussão violenta4.
Carl Andre chegou a ir a julgamento, mas foi absolvido. O evento causou furor entre
as feministas da época, que chegaram a protestar na abertura de uma exposição de arte
minimalista, em 1992, na SoHo do Museu Guggenheim em Nova York, onde Carl Andre
faria uma abertura. Cerca de 500 mulheres, incluindo o grupo Guerilla Girls, carregavam
placas com os dizeres ‘Where is Ana Mendieta’ (Onde está Ana Mendieta?). Esta
controvérsia se estende até os dias atuais. Em 2014, em uma exposição retrospectiva de Carl
Andre no Dia Art Foundation, em Nova York, um grupo chamado ‘No Wave Performance
Task Force’ depositou uma pilha vísceras de animais com sangue na porta de entrada em
formato de silhueta, semelhante ao trabalho de Ana, e a frase com os dizeres ‘I wish Ana
Mendieta Was Still Alive’ (Eu gostaria que Ana Mendieta ainda estivesse viva)5.

4
“The Case of Ana Mendieta”. Art In America https://www.artnews.com/art-in-america/features/ana-mendieta-
56737/ - Acesso em 19 de novembro 2020
5
“Crying for Ana Mendieta at the Carl Andre Retrospective”
https://hyperallergic.com/189315/crying-for-ana-mendieta-at-the-carl-andre-retrospective/ - Acesso em 19 de
novembro 2020

21
“Silueta Series”. Ana Mendieta, 1973–1980 (Reprodução)

O movimento de performance feminista aparece assim em documentários como


WAR, em volumes específicos sobre o tema6, mas dificilmente como componente da
historiografia sobre o movimento de performance. Griselda Pollock (1982), teórica norte-
americana, irá atentar à necessidade de escrever a história da arte sob a perspectiva feminista,
incluindo também as mulheres, não na tentativa de classificar as obras de arte como
meramente feministas, e sim como uma maneira histórica e social de ver os acontecimentos
de acordo com as dinâmicas e conjunturas do mundo.

O feminismo tem exposto novas áreas e formas de conflito social que


requerem suas próprias formas de análises das relações, a construção social
da diferença sexual, sexualidade, reprodução, trabalho, e por consequência,
cultura. A história da arte se ocupa de um aspecto desta produção cultural – a
arte – como seu objeto de estudo; porém a mesma disciplina é também um
componente crucial da hegemonia cultural exercida pela classe, raça e gênero
dominantes. É por isso que se torna importante desafiar as definições da
realidade de nossa sociedade, que são produzidas nas interpretações da
cultura na história da arte. A história feminista da arte nesta nova forma não
será uma mera adição, nem questão de produzir vários livros sobre mulheres
artistas. Isso pode ser facilmente incorporado ou esquecido como muitos
volumes publicados sobre o trabalho das artistas do século XIX. É necessária
uma aliança com a história social da arte, porém sempre deve ser crítica de
seus inquestionáveis prejuízos patriarcais. (POLLOCK, 1982, p. 47)
[tradução livre]

Desta forma, o que se torna questionável na historiografia é que, quando autores como
Cohen colocam uma experiência performática do corpo, pode ser perguntado: que corpo? De

6
As obras “Gendered: Art and Feminist Theory. Cambridge Scholars Publishing” (DEKEL, 2013) e “The
Radical Gesture: Feminist and Performance Art in the 1970’s” (WARK, 1997) são alguns exemplos.

22
onde vem, que relações constrói? Se a performance é uma arte marginal, que visa quebrar o
paradigma institucional, por que o que temos como narrativa está correlacionado com
museus, galerias, exposições e corpos de homens brancos? Não seria, portanto, adequado
questionar primeiro que corpo é performado para então discorrer sobre a performance?

Na performance há uma acentuação muito maior do instante presente, do


momento da ação (o que acontece no tempo “real”). Isso cria a característica
de rito, com o público não sendo mais só o espectador, e sim, estando numa
espécie de comunhão. (...) A relação entre o espectador e o objeto artístico se
desloca então de uma relação precipuamente estética para uma relação mítica,
ritualística, onde há um menor distanciamento psicológico entre o objeto e o
pesquisador. (COHEN, 1989, p. 97)

Foi através dessa afirmação de Cohen que uma nova problemática se abriu dentre as
várias que podem definir performance. Na historiografia (cujos autores são na maioria
homens norte-americanos ou europeus) existe uma enunciação da performance partindo da
ideia de um corpo universal. Quando Nochlin (1971) narra que o conceito de gênio fez com
que as artes visuais apenas consagrem homens artistas levando em consideração seu meio,
status quo e acessibilidade ao ensino de artes, concluímos que outras formas de expressão das
artes (e da vida, como reivindicam várias outras autoras e autores) sofrem essa perda de
detalhe e especificidade por conta da narrativa hegemônica. Como considerar a performance
e seu efeito prático na criação e ação como algo que abrange todas as experiências subjetivas,
visto que é algo que parte de um corpo, e um corpo é uma matéria necessariamente política?

Corpo que performa: latina e brasileira

No dia 11 de março de 1982, María Evelia Marmolejo, artista colombiana, performou


na Galeria San Diego, em Bogotá, o trabalho intitulado “11 de Marzo - ritual a la
menstruación digno de toda mujer como antecedente del origen de la vida”. Nesta ação,
María estava menstruada, andava e dançava nua, com uma série de absorventes descartáveis
colocados em seu corpo, exceto na vagina, em um papel disposto pelo chão da galeria onde
sangue da sua menstruação tingia o papel. Nesta ação, a artista reivindicava por uma
liberdade ao ato de menstruar, que não fosse visto como algo vinculado a pudor ou vergonha,
mas um ciclo natural das funções do corpo.

23
“11 de marzo”. María Evelia Marmolejo, 1982 (Reprodução)

Anos antes, em 1967, a artista Lygia Pape não falava de menstruação, mas propunha a
experiência do nascimento no trabalho ‘O Ovo’, em que um cubo de madeira era envolvido
por papel e plásticos muito finos que deveriam ser rompidos por quem estivesse dentro do
cubo, com o objetivo de experimentar o sentimento do nascimento.

“O Ovo”. Lygia Pape, 1967 (Reprodução)


24
No contexto feminista dos anos 1960 nos Estados Unidos, o que convergia para o
corpo vinha de uma manifestação política acerca do corpo feminino. Tendo como cerne de
sua opressão seus próprios corpos, as mulheres reivindicavam o espaço nas artes se utilizando
deste próprio corpo. Algo que se aproxima um pouco da realidade brasileira e latino-
americana, mas que é necessário trazer à cena em suas especificidades. A primeira delas é a
do corpo que performa dentro dos contextos latino-americanos, uma região que partilha a
experiência da colonização, tendo boa parte de sua população dizimada no período colonial
(FEDERICI, 2017) e a restante quase totalmente imposta ao trabalho forçado. Com o tempo,
a população latina se tornou composta pelos nativos que sobreviveram, os africanos trazidos
para serem escravizados e os europeus descendentes dos colonizadores ou aqueles vindos
com a imigração do fim do século XIX. Tendo suas terras exploradas, os minérios arrancados
e os corpos forçados a trabalhar em condição alienante e violenta, este trauma acaba por estar
demarcado de múltiplas maneiras na existência dos latinos. A própria nomeação “latinos”
provém de uma hierarquia colonial que nomeia aqueles países colonizados pelos falantes do
latim. As etnias indígenas e africanas se tornam suprimidas, silenciadas, subjugadas.
Silvia Federici (2017) faz um paralelo entre a caça às bruxas na Europa e a exploração
dos nativos e africanos nas colônias no que tange a questão do corpo e o acesso à terra como
consciência corporal e cíclica. A caça às bruxas, sobretudo, se torna uma investida do Estado
para perseguir mulheres que tinham domínio sobre a terra, seu próprio sustento e sua
capacidade reprodutiva. Para o crescimento do capitalismo emergente foi necessário
expropriar as terras das mãos dos trabalhadores camponeses, mas sobretudo das mulheres. O
domínio sobre seus corpos, especialmente para que elas fossem vistas como reprodutoras em
potencial para mais mão-de-obra foi fundamental e então, para isso, as mulheres não podiam
ter autonomia em relação à terra e a seus corpos. No mesmo período, nos países latinos, os
corpos indígenas e africanos eram vistos igualmente como território de domínio. Fora
igualmente essencial para o crescimento econômico do período a escravidão e a política de
violência contra estes corpos. Mulheres que viviam na América Latina eram, portanto,
duplamente oprimidas: por serem mulheres e por serem indígenas ou africanas. Não tinham
direito à terra, à sua força de trabalho e muito menos ao controle de sua capacidade
reprodutiva.
Os corpos que aqui se demarcam vivem assim uma narrativa sobretudo de
silenciamento. No entanto, é exatamente entre as populações que vivem os maiores horrores
da escravidão e violência onde se desenvolvem expressões potentes do corpo de danças como
o samba, a luta da capoeira, e credos como religiões de matriz-africana ou xamânicas, formas
25
ritualísticas e performáticas que resistiram ao longo dos séculos, mas que não são exatamente
uma forma de “superação”, visto que são marcas ainda perpetuadas na sociedade atual.
O trauma do racismo é permanente. No cotidiano, nas falas e nas formas de se
reproduzir os preconceitos, como formula Grada Kilomba (2019), a ferida se mantém aberta.
Não é diferente na arte da performance.

(...) não é com o sujeito negro que estamos lidando, mas com as fantasias
brancas sobre o que a negritude deveria ser. Fantasias que não nos
representam, mas, sim, o imaginário branco. Tais fantasias são os aspectos
negados do eu branco reprojetados em nós, como se fossem retratos
autoritários e objetivos de nós mesmas/os. Elas não são, portanto, de nosso
interesse. (KILOMBA, 2019, p 38)

E conclui mais adiante: “Esse é o trauma do sujeito negro; ele jaz exatamente nesse
estado de absoluta “Outridade” na relação com o sujeito branco. Um círculo infernal.”
(KILOMBA, 2019, p. 40). Assim, é relevante que pensemos uma historiografia da
performance brasileira e latina dado o contexto específico local. Algo que não se torna
simples, visto que as dinâmicas de quais narrativas são valorizadas também estão em jogo na
arte brasileira. Em seu ensaio, Maíra Vaz Valente (2018) anuncia uma possibilidade de
narrativa historiográfica da performance brasileira a partir dos Manifestos do Concretismo
(1959) e as performances pelas ruas de Flávio de Carvalho (1899-1973). Ainda que sejam
eventos bastante relevantes na história da arte brasileira, eles concernem um grupo específico
e elitizado. Outras formas de performance, como as expressões populares e rituais, não são
interpretadas como parte das belas artes, ou foram consideradas marginais, ou por último
aparecem como coadjuvantes, como é o caso da obra de Hélio Oiticica (1937-1980), hoje
amplamente reconhecida na história da arte brasileira. As performances de Oiticica contam
com a participação e referência de manifestações culturais como o samba da Mangueira, mas
a escola de samba acaba se tornando pano de fundo para sua obra, não necessariamente sendo
explorada como uma manifestação performática por si mesma.
Valente (2018) destaca como é preciso determinar o sujeito artista para se falar do
objeto artístico. As relações com a arte brasileira estão imbricadas com processos políticos
locais que não só influenciaram o fazer artístico, como as políticas e regimes determinavam o
que era possível ou não de ser expresso. Neste contexto de início dos anos 1960, o Manifesto
Neoconcreto (1959) e A Teoria do Não-Objeto (1959) constituíram documentos importantes
que propunham uma revisão das artes visuais brasileiras, e um dos principais pontos destes
manifestos seria a inserção da arte no cotidiano dos grandes centros urbanos.

26
O conceito de obra e objeto se reconfiguravam a partir da percepção do
mundo, porque o próprio mundo passava a ser parte da ideia de obra. No
embate sobre o fim da obra de arte, buscava-se a ressignificação do sentido
da arte, por meio do engajamento dos artistas à liberdade criadora com vistas
a alcançar um objeto da arte aberto em condição experimental. (VALENTE,
2018, p. 291)

O “não-objeto” e a nova conceituação de obra de arte propõem que a construção seja


feita junto ao espectador. A concepção da obra de arte não se fecha em si mesma, ela é
contínua junto ao espectador e, para isso, são necessárias a presença e a experiência sensorial.
Tal proposta visava a “superação do modernismo” (idem, p. 297) em contraposição à
construção do estado brasileiro e a crítica à lógica capitalista. No contexto do modernismo
brasileiro, particularmente em 1922, a construção da “identidade nacional” acaba reforçando
a nacionalidade local. Uma crítica do Manifesto Neoconcreto é que a obra de arte não se
limita a um espaço, mas o transcende, trazendo uma consciência política e social que irá
culminar nos movimentos artísticos durante a ditadura militar. Já no início do regime militar,
vão ganhando maior relevância a participação do espectador, arte coletiva e a tomada de
posição frente a questões políticas:

Diferentemente do encontrado no ambiente onde se gozava da democracia,


como diversos países do norte global, os artistas propositores brasileiros
experimentavam (sob a ordem da opressão) a necessidade de realizar ações
na qualidade de um “corpo ausente”. Diante da violência do Estado, a
estratégia para se construírem obras de caráter provocativo, aberto e
transformador, convocava o espectador anônimo para impulsionar o desejo de
transformação da obra na dimensão do corpo coletivo. A situação vivenciada
em países de dependência econômica, como é o caso do Brasil, sob o agravo
de um regime militar, condicionava a arte a estratégias de sobrevivência do
artista como uma primeira possibilidade performática. (VALENTE, 2018, p.
297)

Sendo assim, ainda que houvesse uma classe de artistas que gozavam de privilégios
de status social e serem pertencentes à elite, devemos considerar o contexto de represália
política diante a certas manifestações culturais. Um ponto interessante apontado por Valente
se deve ao fato de que se o corpo era censurado, portanto a participação do espectador, por si
só, fazia a obra acontecer como uma “testemunha” dos fatos.

E quanto mais a arte confunde-se com a vida e com o quotidiano, mais


precários são os materiais e suportes, ruindo toda ideia de obra. Da
apropriação de objeto, partiu-se para a apropriação de áreas geográficas ou
poéticas simplesmente de situações. A obra acabou. (MORAIS, 1975, p 24).

27
É interessante notar que, no contexto brasileiro, havia um interesse por parte de
diversos artistas em democratizar a obra de arte e torná-la acessível ao seu meio, quase que se
confundindo com a arte-experiência. Portanto, não seria exatamente um questionamento ou
uma experimentação do corpo na obra, mas o fazer artístico como um cotidiano. Tomando
como referência a experiência do Brasil como país que viveu um processo colonial e depois
de ditadura militar, ambos processos que subjugaram e silenciaram os corpos, vemos que os
movimentos artísticos não se debruçam totalmente sobre questões que tangem o corpo em
seus aspectos diferenciadores. O corpo se torna, ainda assim, silencioso. A maioria dos
artistas que propõe essas intervenções – como Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica, Ferreira
Gullar – são homens brancos. Teríamos uma outra narrativa se a proposta fosse feita por
outros corpos?
Podemos tentar responder essa pergunta olhando sob a perspectiva das mulheres
artistas deste mesmo período. As artistas que inserem seus corpos na obra têm um discurso
diferente do que observamos acontecer no período dos anos 1960-70 dos Estados Unidos,
onde a reivindicação feminista e o direito ao corpo se tornam a pauta principal. De acordo
com a historiografia da arte, não são muitas as artistas que se reivindicam feministas neste
mesmo período no Brasil. Tratando-se de um período de repressão dos corpos, especialmente
de mulheres, mas principalmente de um país que tem como antecedentes uma forte violência
patriarcal, por que esta pauta não seria relevante? Aqui construo alguns pontos que podem
responder a esta pergunta.
Primeiro é necessário enfatizar os diferentes contextos do movimento de mulheres e
feministas quando se trata da América Latina. No mesmo período em que surtia os
movimentos feministas e de performance nos Estados Unidos e na Europa, o Brasil vivia sob
os anos de chumbo da ditadura militar. Como argumenta Luana Saturnino Tvardovskas:

Nos casos brasileiro e argentino, por exemplo, uma maior liberdade das
discussões do movimento de mulheres ganhou forma apenas com o fim dos
regimes autoritários. (...) Não é viável ou produtivo ensaiar uma periodização
para a crítica feminista da arte no Brasil, Argentina, Chile ou Uruguai
buscando que esta seja coincidentemente com as efervescências europeias e,
sobretudo, com a norte-americana da década de 1970 em diante. Ainda que
mulheres artistas em períodos ditatoriais latino-americanos possam haver
demonstrado interesse nos temas do feminismo, tais empreitadas não
chegaram a constituir-se como um movimento nas artes visuais. Essa
especificidade exige, assim, um olhar mais afinado com as urgências políticas
dos anos de ditaduras militares. Apenas a partir dos anos de saída desses
regimes violentos o feminismo impactou mais amplamente a indústria
cultural e também o terreno das artes. (TVARDOVSKAS, 2013 p. 34)

28
No contexto de militância da esquerda no Brasil, não só esses movimentos eram
suprimidos como todas as demonstrações de minorias, inclusive mulheres. O machismo
dentro do próprio movimento partidário e sindical acaba se tornando uma questão que
também suprimiu a voz e uma possibilidade de organização feminista. Ainda assim, será que
nos cabe falar de feminismo, nestes termos? Como coloca Tvardovskas (idem, p. 34),
algumas criadoras levantavam o tema dos papeis de gênero sem necessariamente usar o termo
feminismo. Considerando também a origem do movimento e seus termos, é importante
delinear que não necessariamente houve uma ausência das pautas de gênero nas artes visuais,
mas possivelmente ainda uma não assimilação de uma teoria que vinha verticalmente do
Norte para os trópicos.
Pedro Paulo Gomes Pereira, em seu artigo ‘Queer nos trópicos’ (2012) propõe pensar
como se adequa a teoria queer no hemisfério Sul, especialmente no Brasil, partindo do
princípio que é um termo cunhado por movimentos e teóricos norte-americanos, sendo
inclusive uma palavra em inglês. Uma teoria que visa falar dos corpos dissidentes e abjetos
daria conta das dinâmicas dos países latino-americanos, visto que parte do mesmo local que
outras teorias do Norte Global?
Sendo assim, faço o mesmo questionamento acerca da terminologia feminismo e sua
aplicação, especialmente nas artes: estaríamos diante de mais uma teoria do centro para as
periferias? Como pensar feminismo nos trópicos? Partindo desta pergunta, considera-se que
talvez a ausência do discurso feminista no movimento de performance brasileiro dos anos
1960 não seja por falta de discussão acerca do direito das mulheres neste período, mas porque
este nome e nomenclatura – feminismo – ainda não se assimilava da mesma forma que
compreendemos hoje dentro das artes visuais. Não é questão de não ser feminista, e sim de
não usar o termo. Importante lembrar que o feminismo, enquanto terminologia e método,
parte do Norte Global.
A discussão não se esvazia exatamente neste tópico. É preciso levar em consideração
que as principais representações de mulheres artistas performers da segunda metade do século
XX no Brasil provém das classes mais altas, que em maioria são brancas e não tematizam
violência de gênero. Um exemplo é a obra de Letícia Parente (1930-1991), artista baiana que
em 1982 fez a performance registrada em vídeo com o nome “Tarefa 1”. No filme, a artista
aparece deitada numa tábua de passar, enquanto a empregada doméstica – uma mulher negra
–, a passa como se ela fosse uma roupa. Na sua obra, Parente faz uma alusão ao confinamento
das tarefas domésticas e a objetificação da mulher, no entanto sem se ater ao posicionamento
de mera coadjuvante que impõe à mulher negra, empregada doméstica, de quem o rosto não
29
aparece. A tentativa de refletir sobre a condição da mulher, no entanto, dá brecha para
reforçar o racismo, não só pelo uso da personagem dentro da performance, como o não
questionamento da terceirização do trabalho doméstico às mulheres negras, perpetuando uma
cultura de “sinhás” do passado colonial.
Em um ensaio escrito por seu filho, André Parente, o mesmo descreve a obra como “a
artista se deita em uma tábua de passar e uma preta passa a sua roupa a ferro” (grifo meu)
(PARENTE, 2014, s/p). Na abordagem proposta por autoras como Grada Kilomba (2019),
este trabalho pode ser emblemático do lugar de “Outridade” onde o sujeito negro é colocado.

Na maioria dos estudos, nos tornamos visíveis não através de nossas próprias
autopercepções e autodeterminação, mas sim através da percepção e do
interesse político da cultura nacional branca dominante, como é observável
na maioria dos estudos e debates sobre o racismo, que contêm ‘um ponto de
vista branco’ (Essed, 1991, p 7). Nós somos, por assim dizer, fixadas/os e
medidas/os a partir do exterior, por interesses específicos que satisfaçam os
critérios políticos do sujeito branco. (KILOMBA, 2019, p. 73)

É interessante enfatizar que as especificidades do Brasil como país colonizado, de


população indígena, da diáspora africana etc. não aparece nas obras que têm como suporte o
corpo e, quando aparecem, não são estes corpos que protagonizam. Em um ensaio sobre
mulheres artistas dos anos 1960 dentro do catálogo da exposição Mulheres Radicais (2018),
da Pinacoteca de São Paulo, Maria Angélica Melendi menciona a respeito dessas artistas:

Sem pudor, elas encontraram seu caminho até lugares que não lhes eram
reservados. Frequentaram reservas indígenas, escolas de samba e cultos afro-
brasileiros; levaram sambistas, pivetes, índios, negros, homossexuais e
travestis para o Aterro do Flamengo, para os museus e para o Parque
Municipal em Belo Horizonte. Elas se transvestiram, se fantasiaram e se
mascararam. Elas extravasaram seus impulsos vitais e promoveram uma
política e uma poética do corpo que culminaria em festa, diálogo, comunhão
e luto. (MELENDI, p. 230) (grifo meu).

Artistas como Lygia Pape, Lygia Clark, Celeida Tostes, Márcia X, entre outras,
incorporavam em suas performances práticas e personagens populares para criarem suas
próprias narrativas artísticas. Se por um lado algumas dessas artistas promoveram a
visibilidade de certos grupos marginalizados, por outro não houve esforço em incluí-los na
narrativa das artes visuais como verdadeiros protagonistas de sua história. A tentativa da
autora do ensaio em especificar os grupos remete à reflexão de Grada Kilomba: “Só se torna
‘diferente’ porque se ‘difere’ de um grupo que tem o poder de se definir como norma - a

30
norma branca” (KILOMBA, 2019, p. 75). No mais, não houve preocupação das artistas em
construir uma narrativa sobre corpo e criação artística: “É o entendimento e o estudo da
própria marginalidade que criam a possibilidade de devir como um novo sujeito.” (idem, p.
69).
O que nos leva, novamente, a questionar que tipos de narrativas estão sendo
valorizadas quando se trata de performance. A questão não seria denunciar as artistas e o
movimento feminista que se deu nas artes visuais e performance ao longo dos anos, mas de
atentar como não estavam em foco questões específicas de interseccionalidade, além de olhar
criticamente para a historiografia crítica da arte que viabilizou somente algum dos discursos a
respeito das artes do corpo, corroborando por uma visão ortodoxa da História da Arte que
mantém os cânones artísticos em alguns nomes seletos e específicos, pertencentes à uma certa
elite branca, que é o que Georges Didi-Huberman (2017) irá chamar da ‘constituição de um
corpo social’, iniciada na ideia de artista nascida na Renascença e que se mantém na arte
contemporânea. Daí a importância de um pensamento decolonial dentro da academia, onde se
possa quebrar a ideia de cânone que circunda os “gênios” homens da história da arte, mas
também dos corpos brancos, dentro de padrões, não-deficientes e um longo etc. É necessário
manter o olhar atento de quais discursos sustentam essas narrativas.
Neste aspecto também me interessa, ao longo da dissertação, me colocar enquanto
uma pesquisadora e antropóloga mulher, branca, lésbica, nascida e vivia em São Paulo,
capital, questionando também meu lugar como produtora de conhecimento intelectual e
desmantelando a hierarquia de detentora do saber.
A partir de discussões de autoras como Ochy Curiel, que propõe uma possibilidade de
antropologia decolonial e que questiona não apenas as estruturas racistas e machistas da
sociedade, mas também propõe uma perspectiva distinta do saber hegemônico a partir de uma
leitura crítica do que se define o que é e o que não é conhecimento, o que é ‘Eu’ e o que é
‘Outro’:

Me proponho aportar a construção do que foi denominado como a


antropologia da dominação, que consiste em desvelar as formas, maneiras,
estratégias, discursos que vão definindo certos grupos sociais como “outros”
e “outras” a partir de lugares de poder e dominação. (CURIEL, 2013, p. 28,
tradução livre)

Desta forma, posiciono a metodologia analítica da pesquisa por uma antropologia


decolonial sob dois vieses. Primeiro, o de me colocar enquanto sujeito que pesquisa, a partir

31
da objetividade feminista, ou seja, os saberes localizados a partir de meu corpo como
dispositivo de conhecimento e ação (HARAWAY, 1995). Sendo assim, busco me situar em
relação a leituras de textos, obras e interlocuções com as artistas me responsabilizando por
aquilo que aprendi a ver. Ainda com Haraway, “a objetividade feminista abre espaço para
surpresas e ironias no coração de toda produção de conhecimento; não estamos no comando
do mundo.” (idem, p. 38) Segundo, busco no meu trabalho e no trabalho de minhas
interlocutoras interpelações sobre configurações de poder no universo das artes do corpo, da
performance, do mercado de arte e da historiografia da arte. Observo, a partir de minha
localização, quais estruturas sustentam discursos universalistas sobre a ideia de um ‘corpo’
que performa, partindo também da interlocução com as artistas desta pesquisa. Isso porque,
afinal, que outras práticas corporais e performáticas aconteciam fora dos circuitos artísticos
da elite que não foram registrados pela história?
Em ‘Performances da Oralitura’, Leda Martins (2003) nos conta sobre os congados
que acontecem em algumas regiões do Brasil como Minas Gerais e Recife, abordando-os
como o teatro do sagrado, já que constituem uma reinterpretação da devoção a santos
católicos, como Nossa Senhora do Rosário, numa estética ritualística africana de origem
banto. A ritualística envolve muitos momentos, vestuário, danças e cortejos.

Toda a história da constituição dos Congados (violentamente reprimidos e


perseguidos na segunda metade do séc. XIX até meados do séc. XX), e das
culturas negras em geral, parece-nos revelar a primazia desses processos de
deslocamento, substituição e ressemantização, suturando os vazios e as
cavidades originadas pelas perdas. A instituição desse poder alterno, que
ainda hoje fermenta várias comunidades negras, prefigura as estratégias de
resistência cultural e social que pulsionaram as revoltas dos escravos, a
atuação efetiva dos quilombolas e de várias outras organizações negras contra
o sistema escravocrata. Como nos revela o aforismo popular, as contas do
meu rosário são balas de artilharia. Ou como Roach (1995, p. 61), ‘os textos
podem obscurecer o que a performance tende a revelar; a memória desafia a
história na construção das culturas circum-atlânticas, e revisa a épica ainda
não escrita de sua fabulosa co-criação’. (MARTINS, 2003, p. 63)

Sendo assim, para além de considerar que a performance é um gesto artístico que vem
de uma pulsão subjetiva, também considero que as performances acontecem em muitos
espaços e locais que podem ser de natureza religiosa, ritualística ou de manifestação política.
Muitas elaborações intelectuais tentam identificar as performances por uma semelhança,
muitas vezes até entrando na retórica de “o que é arte?”, não questionando que o próprio
nome Arte e sua atribuição é uma formulação social específica. Ainda que nesta dissertação
as interlocutoras sejam artistas, como elas mesmas se nomeiam, penso na arte enquanto

32
expressividade, sem A maiúsculo e institucional, pensando em manifestações expressivas que
revelam e testemunham memória sobre o tempo em que se vive, como é o caso histórico dos
Congados, que expressam em corpo, música e movimento uma longa história da diáspora
africana para o Brasil.
Com o advento das tecnologias, redes sociais e construção de espaços independentes,
além de uma injeção de investimento das políticas públicas culturais entre os anos 2000-2014
no Brasil, outras narrativas e protagonismos puderam ganhar visibilidade. Podemos ver
dentro das artes visuais, assim como na música e outras multimídias, uma diversidade muito
maior de sujeitos e corpos. Ainda que existam os espaços culturais de marchands, galerias de
arte e exposições, não se torna mais necessário ser valorizado por algumas destas instituições
para desenvolver e veicular um trabalho artístico. A internet e redes sociais, assim como
políticas públicas de editais e financiamento, permitiram que o acesso à produção de artistas
do Brasil inteiro pudesse ser acessado muito mais facilmente. Este “mero” detalhe não só é
uma constatação, como foi um importante ponto para metodologia etnográfica desta pesquisa,
como será abordado no último capítulo.
Sendo assim, ao longo desta pesquisa proponho uma revisão crítica do critério que
autores mais proeminentes na História da Arte hierarquizam para denominar quem são os
artistas mais relevantes por se adequarem ao cânone e gênio. Considerar um artista com certa
relevância dentro de uma narrativa ortodoxa acaba por desconsiderar o sujeito inserido em
um tempo e espaço, com raça, gênero, classe social, localização geopolítica etc.

A história da arte fracassa em compreender a imensa constelação de objetos


criados pelo homem em vista de uma eficácia do visual quando busca integrá-
los ao esquema convencional do domínio do visível. É assim que ela
seguidamente ignorou a consistência antropológica das imagens medievais. É
assim que seguidamente tratou o ícone como simples imaginária
estereotipada e implicitamente desprezou sua ‘pobreza iconográfica’. É assim
que excluiu e ainda exclui do seu campo uma série considerável de objetivos
e dispositivos figurais que não correspondem diretamente ao que um
especialista chamaria hoje uma ‘obra de arte’. (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.
39)

Georges Didi-Huberman irá fazer uma crítica ao que a História da Arte, enquanto
cátedra, transformou em ‘tirania do visível’ na análise dos objetos de arte, considerando
passível de ser documentado somente aquilo que é possível ser visto e ‘verificável’ de acordo
com sua datação e contexto histórico. Didi-Huberman aponta que esta literatura ignora que
este método é uma escolha de análise que acaba por não considerar outros fatores relevantes,

33
como, por exemplo, a forma que os corpos se relacionam no passado ou se relacionam com o
objeto artístico estudado. Ou, outro exemplo, onde este objeto era colocado, qual era a
relação com o cômodo ou o espaço, quais eram as estruturas sociais que ali frequentavam etc.
O resultado disso, como aponta o autor, faz o historiador da arte apenas reiterar ‘banalidades
verificáveis’ (idem, 2017), atendo-se apenas às questões estéticas formais construídas na
imagem a partir de um referencial que nasce na Renascença do artista canônico.
Pensar em uma análise do corpo que performa não é possível dentro desses
paradigmas. Além das categorias criadas para classificar os artistas e suas criações, também
há a construção do historiador da arte que aparece para classificar, registrar e, por fim,
enaltecer os feitos deste artista. No Renascimento há o dito ‘primeiro historiador da arte’,
Giorgio Vasari, que registrou os feitos dos artistas de seu período, e corrobora para que
mesmo atualmente a história da arte se encarregue deste discurso de eternidade. “Tal foi,
portanto, o primeiro disegno, o primeiro grande desígnio de Vasari historiador: salvar os
artistas de sua suposta ‘segunda morte’, tornar a arte inesquecível. Ou, dito de outro modo:
imortal.” (Didi-Huberman, 2017, p. 82).
Em contrapartida a essa abordagem, proponho pensar uma história da arte
performática que vise considerar os corpos que participaram do processo artístico, desde as
experiências vividas de acordo com suas diversas intersecções, como a construção de si como
artista, até a prática artística, seja ele de uso do corpo ou não. Esta proposta também inclui o
pesquisador num ato performático - no caso eu, pesquisadora - o que inclui a si mesmo como
parte integrante deste processo de construção do que se entende por artista e do que se
entende por pesquisadora. Leva-se em consideração a relação entre os corpos de ambos,
artista e pesquisadora, em interlocução e a experiência sensorial ao se relacionar com os
objetos e ações artísticas.
A história da arte performática é um fazer em devir que considera a organicidade do
seu corpo: não visa eternizar o artista por seus feitos gloriosos, mas localizar sua ação num
tempo histórico, num corpo também histórico e social, assim como o é também o corpo do
historiador ou do etnógrafo. Nesse sentido, Francirosy Ferreira questiona: “Como a
antropologia poderia colaborar para o pensamento mais reflexivo das artes, e como as artes
poderiam contribuir para um fazer etnográfico?” (FERREIRA, 2012, p. 97).

34
Corpos sob análise, corpos sob feitura: antropologia e arte como performance

O processo de pesquisa da performance me levou à necessidade de fazer performance.


Há experiências sensoriais e físicas que apenas o corpo em cena pode viver, não apenas meu
corpo, mas o de outras pessoas envolvidas no processo criativo. Participei de um processo em
uma Oficina de Teatro e Performatividade, ministrada por um diretor de teatro em setembro
de 2019. Ao longo de algumas semanas tivemos um processo criativo individual, porém com
exposições conjuntas. As questões interseccionais sobre o corpo que eu validava, até então,
foram confrontadas. Como resultado do processo criativo, não apenas do meu, mas dos
colegas, observei que o corpo em cena fala justamente dessa subjetividade urgente no corpo
que provém dos afetos. Se para Bruno Latour (1996) um corpo se constitui pelos modos de
ser afetado por outros, na performance isso se expressa de forma mais explícita. Conhecendo
um pouco da história e narrativa daquelas pessoas, era visível a coerência entre a proposta
performática e os afetos cotidianos vividos por elas.
A antropologia em si requer a experiência da alteridade, mas passando isso
diretamente para experiência física e sensorial, as hipóteses construídas na performance
artística tinham muito mais abertura para ruir. Levei para campo pontos e questionamentos do
corpo feminino, de mulher, com seios e vagina – não sabia como definir –, dentro do
exercício performático. Afinal, toda desconstrução e crítica feita acima da historiografia da
arte que valoriza discursos dominantes, teria algum sentido ao chegar nos corpos das artistas
performers? O campo da antropologia realmente seria a forma de chegar até essas artistas?
Ao longo do livro Performance, recepção e leitura (2018), Paul Zumthor lembra
como o escritor também está performando e é responsável pelo que causa no corpo de quem
lê:

(...) para ir ao sentido de um discurso, sentido cuja intenção suponho naquele


me fala, era preciso atravessar as palavras; mas que as palavras resistem, elas
têm uma espessura, sua existência densa exige, para que elas sejam
compreendidas, uma intervenção corporal, sob a forma de uma operação
vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada e ouvida ou de uma voz
inaudível, de uma articulação interiorizada. E nesse sentido que se diz, de
maneira paradoxal, que se pensa sempre com o corpo: o discurso que alguém
me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que ele me
fala) constitui para mim um corpo a corpo com o mundo. O mundo me toca,
eu sou tocado por ele: ação dupla, reversível, igualmente válida nos dois
sentidos. (ZUMTHOR, 2018, p. 70 - 71)

35
Esse corpo a corpo com o mundo se torna mais visível, perceptível, em situações que
Roy Wagner (2010) reconhece como de “choque cultural”, em que percebemos como
artificial ou singular aquilo que tomávamos como natural ou universal. O desafio de uma
reflexão antropológica cujas comunidades estão nas galerias ou websites de arte é fazer esse
exercício de estranhamento, que é outro, mas guarda alguma analogia com o próprio
exercício das artistas para as quais me volto sobre seus corpos e mundos.
Roy Wagner irá explanar especialmente como quaisquer sociedades constroem a
linguagem e são construídas por ela, de modo que qualquer ato de comunicação implica
convenção para ter significado, mas este está sempre sendo atualizado ao ser performado. A
performance artística, particularmente, busca justamente tensionar as convenções e deslocar
ou multiplicar significados. Ainda segundo Roy Wagner:

Se admitimos o fato de que a linguagem e o significado criam realidade, em


lugar do contrário, então a prioridade da denotação (a derivação evolutiva ou
“cognitiva” da categoria cultural a partir da ordem natural) é posta em
questão. O tipo de ‘tradução’ de que dependem os procedimentos da
etnossemântica só é possível na medida em que a mesma ‘realidade’ geral das
‘coisas’ discretas seja compartilhada pelos falantes das duas línguas em jogo,
pois de que outra maneira definições denotativas poderiam ser ‘traduzidas’ de
uma para a outra? Uma vez que se reconheça que essa realidade universal
postulada existe, as tendências e conformações peculiares das respostas dos
informantes (o delineamento de suas “categorias”) podem ser explicadas e
descartadas como diferentes classificações do mundo das coisas reais.
(WAGNER, 2010, p. 204)

A performance antropológica produziu em mim esse efeito de estranhamento em


relação a situações até então não questionadas em minhas experiências. Quando fui a uma
fala pública de Berna Reale e seu curador, dentro de uma galeria de arte em zona nobre de
São Paulo, por exemplo, vivi os efeitos desse reposicionamento como ‘antropóloga’. Eu
conhecia bem o caminho da galeria e seus espaços internos, o comportamento esperado, os
trajes habituais de uma pessoa acostumada a frequentá-los. Porém, pela primeira vez iria
registrar uma fala com o gravador do celular, e não foi sem constrangimento que o fiz,
vestindo a nova personagem de antropóloga, a partir do aprendizado com Roy Wagner:
inventar um outro implica inventar também um si mesmo, dando contornos à diferença.
A antropologia como performance passa por uma feitura analítica da experiência, mas
também uma experiência poética, tal como formulada por Zumthor: “O contexto indica muito
claramente que se trata de uma acumulação de conhecimentos que são da ordem da sensação

36
e que, por motivos quaisquer, não afloram no nível da racionalidade, mas constituem um
fundo de saber sobre o qual o resto se constrói”. (ZUMTHOR, 2018, p. 72).
Me colocar como pesquisadora que está em exercício de performance aproxima-se do
saber localizado, em que “uma ótica é uma política de posicionamento” (HARAWAY, 1995,
p. 27). Usarei meus olhos e outros sentidos para dar corpo às artistas de minha pesquisa, cujas
vidas e obras interferem na minha vida e pesquisa. Como destaca Haraway, “posição diz
respeito à vulnerabilidade” (ibidem, 1995), de modo que esse trabalho resulta da
situacionalidade de meu encontro com essas obras e corpos, por sua vez também situados e
configurados por relações específicas. Essa é a condição das obras dessas artistas e desta
pesquisa.
Segundo Roy Wagner, a cultura diz respeito a um modo da antropologia elaborar
metaforicamente a diferença. Portanto, quando Haraway fala sobre se responsabilizar pelo
conhecimento que está se produzindo, penso o mesmo sobre a responsabilidade de inventar
uma cultura. Ao ler qualquer tipo de obra de arte, artista ou sujeito, eu preciso inventá-lo. E a
partir do momento que eu o invento, eu também invento a mim mesma, e sou inventada como
pesquisadora pelo artista que se dispõe a ser meu interlocutor.

O antropólogo é obrigado a incluir a si mesmo e seu próprio modo de vida


em seu objeto de estudo, e investigar a si mesmo. Mais precisamente, já que
falamos do total de capacidades de uma pessoa como ‘cultura’, o antropólogo
usa sua própria cultura para estudar outras, e para estudar a cultura geral.
(WAGNER, 2017, p. 26)

Lendo estudos decoloniais contemporâneos, começo a me localizar como mulher


branca e lésbica, por exemplo. A heterossexualidade compulsória, assim como a branquitude,
é um projeto de naturalização performativa (BUTLER, 2018) muito bem-sucedido. Nos
escritos decoloniais de mulheres negras, a exemplo de Grada Kilomba, pude encontrar
ressonâncias no que diz respeito à centralidade da emoção e da subjetividade na produção de
conhecimento:

Sendo assim, demando uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo


como parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e
lugar específicos, de uma história e uma realidade específicas - não há
discursos neutros. Quando acadêmicas/os brancas/os afirmam ter um
discurso neutro e objetivo, não estão reconhecendo o fato de que elas e eles
também escrevem de um lugar específico que, naturalmente, não é neutro
nem objetivo ou universal, mas dominante. É um lugar de poder. Desse
modo, se esses ensaios parecem preocupados em narrar as emoções e a
subjetividade como parte do discurso teórico, vale lembrar que a teoria está

37
sempre posicionada em algum lugar e é sempre escrita por alguém. Meus
escritos podem ser incorporados de emoção e de subjetividade, pois,
contrariando academicismo tradicional, as/os intelectuais negras/os se
nomeiam, bem como seus locais de fala e de escrita, criando um novo
discurso com uma nova linguagem. (KILOMBA, 2008, p. 58)

A performance contém, em si, a pessoa que a exerce. Não é uma obra de arte terceira,
que vira uma entidade nova. Não é uma representação. É o corpo ali, sendo visto, sendo
encarnado. As narrativas sobre performance-arte, até hoje, foram narrativas sobre um corpo.
O exercício performático da escrita não se encerrava apenas em escrever a tese, mas também
de estar presente. Por essas e outras, veio a escolha da Antropologia da Performance para
nortear a pesquisa, conforme explicitado em seguida.
Uma rápida leitura do índice do livro Antropologia e Performance - ensaios
NAPEDRA (2013), notamos que performance pode ser: roda de dança, rituais religiosos e
pagãos, filme, teatro e artes visuais - sendo esta última a menos abordada na publicação.
Como sintetizou Richard Schechner:

O ‘problema’, se é que há um problema, é que o campo da performance ‘em


geral’ é muito grande e abrangente. Pode ser, e de fato é, aquilo que os que
estão fazendo dizem ser. Ao mesmo tempo e pela mesma razão, o campo
‘específico’ é muito pequeno e cheio de subterfúgios; é tão pequeno como a
própria práxis de quem a desempenha. (SCHECHNER, 2013, p 42)

De acordo com Schechner, a performance em seu sentido clássico envolveria a


incorporação de personagens no ritual revivendo acontecimentos históricos, sociais e míticos.
Com base na observação dos rituais com os Ndembu, da região da atual Zâmbia, na década
de 1950, o antropólogo Victor Turner (1988) reconhece como liminar a posição daqueles
cujos papeis são suspensos, invertidos ou alterados durante um ritual. Schechner toma
emprestado estes termos para a performance artística no mundo ocidental: entre o que é e o
que performa, o sujeito situa-se num entre. Nas palavras de Schechner, “Um espaço de teatro
vazio é liminar, aberto a todos os tipos de possibilidades – espaço que, por meio da
performance, poderia tornar-se qualquer lugar.” (2002, p. 65). No entanto, Schechner não
reconhece nessa experiência o potencial transformador dos rituais liminares no sentido
clássico:

Rituais liminares mudam permanentemente o que as pessoas são. Ocorrem


transformações. Rituais liminoides efetuam uma mudança temporária -
algumas vezes, nada mais que uma breve experiência de communitas
espontânea ou uma performance com várias horas de duração em único papel.

38
Ocorrem transportes. De um ponto de vista do espectador, uma entrada para a
experiência é “movida” ou “tocada” (metáforas apropriadas) e depois deixada
onde ela aconteceu. Para performers, a situação é mais complexa, pois ocorre
uma ‘longa jornada.’ (idem, p. 70)

Muitos artistas, em especial aquelas evocadas na presente pesquisa, não interpretam e


não se colocam como personagens, pelo contrário: são suas próprias subjetividades que se
corporificam em cena sob diferentes formas. Schechner define que o ritual liminoide implica
uma mudança temporária no sujeito performático. Sendo assim, me questiono se o corpo que
performa estaria, de fato, com toda essa liberdade de mudança temporária. Exemplo prático:
um corpo com seios – uma parte do corpo extremamente erotizada – teria uma mudança
temporária só porque está atuando de forma X ou Y? Além disso, Schechner pressupõe para
além do que ocorre com o performer como um processo de transformação, também coloca
em implicação uma sensação de “nós estamos todos juntos” envolvendo o público no caso
dos rituais, algo que não aconteça necessariamente e constantemente no caso das
performances artísticas e seu público.
Desta forma, a performance pode ser pensada como um momento de suspensão da
vida cotidiana e trivial, onde se é despido de suas funções ditas cotidianas para que entre em
modo performático e dê vazão a representações que somente o corpo pode demonstrar. O
ponto interessante da performance é principalmente este local, portanto, de não-definição.
Além do fato de não se conseguir definir o que é uma performance, os contornos no momento
liminóide não são completamente definidos, sendo cheio de brechas, lacunas e possibilidades.
Uma performance artística não se encerra no seu ato em si, dando possibilidades para que
exista de formas diferentes a cada vez que é apresentada, se é de fato apresentada mais de
uma vez.
Tendo a performance como forma de expressão, as artistas colocam no corpo algo que
não está no campo de uma racionalidade linear, diferentemente da produção acadêmica. Na
criação artística, a interpretação subjetiva final é aberta e o encontro com o outro pode ser um
meio, mas não um fim, como na criação antropológica. Nesta, a construção de um argumento,
ainda que aberto, deve ser conclusiva. Mas, em ambos os casos, o processo criativo e os
corpos atravessados pela potência minoritária do gênero feminino ou não binário trazem à
cena posições convergentes. Escolhi a performance de ser uma antropóloga vulnerável.

39
CAPÍTULO II
Raça, gênero e outras máscaras:
ativando o corpo, a cena e o campo

Em um de seus artigos, Bruno Latour (2004) propõe uma definição patológica de


corpo, fundamentado em suas afecções, ou nos modos como o corpo é afetado e assim
efetuado:

ter um corpo é aprender a ser afectado, ou seja, “efetuado”, movido, posto em


movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas. Quem não se
envolve nesta aprendizagem fica insensível, mudo, morto. (...) não faz sentido
definir o corpo directamente, só faz sentido sensibilizá-lo para o que são estes
outros elementos. (LATOUR, 2004, p. 39)

Ainda com o autor, “adquirir um corpo é um empreendimento progressivo que produz


simultaneamente um meio sensorial e um mundo sensível” (idem, 2004, p. 40). Não cabe,
portanto, fazer descrições reducionistas sobre o corpo enquanto essência do mundo
materializado, tampouco o tomar como um todo “holístico”. O corpo é composto por
diferenças, e quanto mais diferenças ele articula, mais interessante se torna (idem, p. 48).
Corpos são diversamente afetados em diferentes instâncias, e o que se torna instigante é que o
corpo não é algo passivo e preexistente a relações, mas resultante de relações e relacionante.
Os corpos em jogo nas performances de minhas interlocutoras nesta pesquisa são efetuados
por materialidades e imaterialidades, como máscaras, racismo, lantejoulas, sorrisos, orelhas
grandes, cordas, trauma, feminismo, patriarcalismo, sangue, entre outras formas e forças para
as quais se volta o capítulo.

Desmascaramentos

O interesse provocador da pesquisa, como já dito, foi a inquietação sobre a


abordagem de gênero dentro do campo das artes, especialmente da performance. Meu projeto
implicava encontrar interlocutoras artistas, e essa própria busca suscitou reflexões sobre a
performance, assim como nossas relações ao longo do trabalho. Os caminhos pelos quais meu
interesse chegou até às artistas com quem trabalho nesta pesquisa, assim como nossos
contatos, primeiras conversas e, por fim, as interlocuções, foram nada óbvios, às vezes
rasteiros, silenciosos, com pausas, dúvidas, outras vezes também com um grande fluir.

40
Importante delinear que somente a experiência destas relações já me fez pensar sobre a
performance, assim como nossas relações ao longo do trabalho em si.
A diversidade dos corpos me parecia importante na busca das artistas. Ficar dentro de
uma bolha das mesmas experiências não me parecia produtivo, sobretudo em minha bolha de
maioria branca e cisgênera7. Pesquisei algumas artistas negras da performance, mas no fim
fiz o bom uso que as redes sociais proporcionam ao serem literalmente uma rede de
sociabilidade, e lancei no meu story do Instagram que gostaria de indicações de mulheres
negras na performance. Uma querida colega fotógrafa me passou o perfil de Tao Bruni, e
comecei a segui-lo. Ele8 me seguiu de volta, viu a story a tempo (as storys têm a duração de
24h) e respondeu: “serve não-binário?”.
A esta altura já tinha visto algumas imagens do trabalho dele disponíveis no perfil e
estava gostando, cogitando, e pedi para ele me enviar seu portfólio por e-mail. Respondi
falando do meu interesse, expliquei a pesquisa e desde então tivemos uma série de encontros
e desencontros. Sei que nosso encontro foi oficializado quando fizemos uma
videoconferência, mas não lembrava como tínhamos marcado isso. Revirei e-mails e
mensagens para me lembrar como conseguimos nos reunir, de fato. Marcamos diversos
encontros pessoalmente. Um na casa dele, que desmarcamos, marcamos de novo,
desmarcamos, até que marcamos na biblioteca e, por último, desmarcamos e ele sugeriu o
vídeo ao afirmar que não estava bem para sair na rua. Em nossa conversa, onde expliquei a
intenção de minha pesquisa, ele topou e pudemos falar mais deste trabalho que poderíamos
fazer conjuntamente. Ele me apresentou as máscaras que sempre o acompanham nas
performances, comentando ainda sobre confeccioná-las e conversar ou manter algum tipo de
relação com elas.

7
Por “cisgênera” me refiro a corpos que não se dizem transsexuais ou não-binários. Tento me ater ao fato de
que “cis” não significa necessariamente conformidade com seu gênero, pois nem todos os corpos cis estão em
conformidade com o gênero, como ficará mais explícito durante a narrativa do campo.
8
Quanto ao uso do pronome masculino, transcrevo entrevista com Tao: “Me sinto confortável com ‘ela’, na
real, entrei nessa onda de ‘ele’ pra que as pessoas entendessem que eu sou não-binária. Mas meu ouvido está
mais acostumado a ouvir ‘ela'. Da maneira que você quiser falar, eu estou respondendo.” Como Tao é não-
binário e ele mesmo diz que usa o pronome masculino para que entendam sua identidade, além de ser a forma
que ele se posiciona publicamente, mantenho, portanto, o pronome masculino.

41
Máscaras de Tao Bruni, 2017 - foto Instagram de Tao Bruni9

“Mula: agenda dissidente”, 2016 - portfólio de Tao Bruni

Ao longo da pesquisa, assistindo os vídeos e vendo as fotografias de seu trabalho, as


máscaras acabavam por me remeter a alguma memória assustadora. Na minha adolescência
tinha uma banda de rock famosa chamada Slipknot que eu não gostava muito, tanto pelo som
muito agressivo que me remetia a algo que dava medo, como também pelo fato de que todos
os integrantes usavam máscaras que eram igualmente assustadoras. Lembro que uma vez eles
iriam fazer show em São Paulo e vários outdoors pela cidade ilustravam a cidade com os
rostos destes homens mascarados. Máscaras assustadoras com furos, spikes, metalizadas, que
me remetiam ao Jason Voorhes, famoso personagem de terror do filme Sexta-feira 13 que

9
https://www.instagram.com/ar.tao/ - Acesso em 23 de setembro 2020.
42
andava com um facão ou uma motosserra. Sendo assim, foi essa a primeira impressão que
tive das máscaras de Tao. De tal maneira que as vídeo performances que eu assistia ou me
eram muito incômodas e dolorosas de ver, ou eu não conseguia assistir até o final. Havia algo
de doloroso em Tao enquanto ele estava performando, uma espécie de súplica desesperada
que me atravessava e me dava... medo. Apenas medo. Um medo do mundo dos sonhos, das
fantasias, como os personagens de terror. Não um medo de algo objetivo e concreto, como de
altura ou sequestro, mas medo atordoante que as figuras fantasiosas criam em nosso
imaginário.
Interrompi essa escrita três vezes. Provavelmente estou fugindo de uma tentativa de
explicação. Vou insistir mais uma vez: Tao, em seu relato, diz que traz a monstruosidade
vinda de um olhar da branquitude em relação ao seu corpo e sua existência. O monstro que
vem com a máscara é um monstro apropriado, como catalisador para a arte, daquilo que
criaram sobre ele. A princípio, eu acreditava que o monstro da máscara eram seus monstros
internos à tona. (Fiz outra longa pausa da fuga). Ao ver os monstros da máscara de Tao, eu
sofria como quem se compadece do sofrimento de alguém. E essa foi minha postura, um
tanto quanto até paternalista, em relação ao seu trabalho. O monstro em seu corpo era algum
dentro de mim. O incômodo era meu. Em momento algum Tao me falou sobre estar
performando suas dores internas... e essa foi a minha leitura, não por querer fazer uma rápida
interpretação, mas porque eu genuinamente senti dor e incômodo.

“Coragem”. Tao Bruni, 2017 - print de frame de vídeo

43
Ao me deparar com as leituras de Grada Kilomba, algo ficou mais enfático e difícil de
encarar: Kilomba narra a projeção que a branquitude faz em corpos negros de tudo aquilo que
rejeita em si. Me deparar possivelmente com o compadecer de uma dor que nem sequer
estava sendo mencionada, me confrontou mais ainda. Tao me desloca com seus temas de
violência, seja ela racista ou as experiências ruins que teve ao longo de sua vida,
especialmente em relacionamentos. De repente projetei alguns medos e receios na sua
performance. Creio que não dá pra descrever sem falar da forma como me relacionei com ele.
Talvez essa dificuldade de descrição minuciosa venha do lugar de não encarar de frente as
questões que seu trabalho desperta em mim e no quanto é relevante descrever neste trabalho,
justamente porque toca na importante pauta da branquitude e no fato de eu ser uma mulher
branca.
Vou me ater à performance Todo meu amor que vi pessoalmente no primeiro semestre
de 2019. Era uma oficina aberta para Tao falar de seu trabalho, uma contrapartida do
documentário “Nossa História Invisível” produzido pela Produtora Pujança. O documentário
se volta para a produção de cinco artistas negras, de diversas frentes, e Tao Bruni aparece
como performer. A oficina aconteceu na Ação Educativa, ONG e espaço cultural no centro da
cidade de São Paulo, onde Tao apresentou a performance.
Tao trazia um banco estofado para o centro, onde se sentava de costas para nós, o
público. Usava um vestido longo, vermelho e sem alças. Pegava um pedaço de pano branco e
enrolava em volta de seu rosto com uma linha que se assemelhava a um barbante ou uma
linha comum de costura, construindo assim sua máscara diante de nossos olhos. Enrolava
continuamente, até que a máscara estivesse firme no seu rosto. A máscara só tinha a parte da
frente, que não víamos, e era aberta atrás, onde ficava aparente a sua cabeça.
Tao desce o vestido até a cintura, deixando as costas nuas. Pega um pedaço de corda
retorcida e bem trabalhada em nós (se não me falha a memória, de cor azul) e começa a se
auto flagelar nas costas. Um, dois, três, quatro, cinco, seis vezes... sete, oito, nove, dez, onze,
doze, treze vezes... O primeiro era um susto, o segundo ainda assustado, seguido de dor,
seguido de horror, vontade de chorar, não faça isso com você mesmo, será que tá doendo?, o
som se repete, passam-se os minutos, parece normal, parece comum, nem deve estar doendo,
será?, de repente só se espera o que acontecerá em seguida. A mente te julga por não estar
sentindo mais nada, por não estar mais horrorizada. Tao não geme, não chora, não reclama de
dor. Apenas se flagela. Continuamente. Não sei quantas vezes, mas totalizando dez minutos.
Até que para, larga a corda no chão. Não me lembro novamente, mas acho que sobe o vestido
de volta.
44
Começa uma música lenta, emocionada, acho que é da banda Sigur Rós. Um
instrumental delicado e intenso. Tao se levanta, sobe os degraus e vai para um nível acima do
palco de apresentação, onde faz uma dança lenta, vagarosa e um pouco dolorida. Uma dança
que tinha movimentos com os braços e o tronco, que se envergava um pouco e ficava entre
planos altos e médios. Vemos sua máscara: é um pedaço de pano branco que tem dois
buracos no lugar dos olhos e um traço vermelho que poderia ser tinta, ou batom ou até
sangue, no lugar da boca. Desenhado como se uma criança tivesse o feito, na tentativa de
desenhar uma boca que acaba saindo falhada. Ele dança, até que retira a máscara e vemos que
ele está sorrindo.
Ao final, quando Tao abre para perguntas, uma das mulheres do público, sua
namorada, pergunta a razão de ter tirado a máscara. Então ele responde:

[Tao]: É que hoje rolou uma coisa.... eu nunca tiro a máscara quando eu
performo... e hoje eu tirei porque ter performado me fez me sentir à vontade
até com meu rosto. Então... hoje foi... do caralho.

[Carol Rocha, produtora]: Então, eu ia perguntar esse lance da máscara,


porque eu lembro que, quando a gente te entrevistou, você até preferiu num
momento colocar a máscara pra se sentir mais à vontade. E aqui o final pra
mim foi muito forte, você estava…

[Gim, namorada de Tao]: Radiante... É, no começo quando você começou a


dançar, você dizia que não conseguia dançar sem a máscara e que era preciso
colocar a máscara pra conseguir estar nos espaços dançando...

[Tao]: Eu acho que... não deixa de ser isso, eu não consigo fazer uma
preparação performática totalmente sem máscara, quer dizer, fora aquela que
eu tô gorfando, mas isso eu não preciso contar pra ninguém, já gravei pra não
ter que fazer isso na frente de ninguém porque ninguém é obrigado também!
Mas... Eu não sei responder essa pergunta porque foi a primeira vez que isso
aconteceu, preciso pensar. Talvez eu esteja num momento de estar gostando
mais da minha cara mesmo, porque eu me sentia mó excluída, mó zuada, mó
feia, mó preterida, mó várias fitas e dançava, mas sentia vergonha dos olhares
que eu recebia enquanto estava dançando, me sentia envergonhada quando
alguém me olhava na rua, me sentia envergonhada quando alguém falava
comigo, tá ligado? Se tivesse alguém que falava comigo no rolê, eu ia
embora! Me incomodava muito a sensação de ter alguém me olhando, me
incomoda até hoje. E ter tirado as máscaras da parede e colocado elas me deu
uma sensação de força que eu não sei da onde, não só essas máscaras que eu
costuro que tem todo esse processo de passar pela minha mão e de passar pela
mão das pessoas que eu confio. Esses dias tava num rolê com minha
namorada numa festa de bêbado e a gente colocou uma máscara de pintinho
assim, a gente ficou brocada na dança, tirando a máscara a gente foi pro
canto... Eu não sei que lugar é esse que o uso de máscara acessa, eu não sei se
é isso de enquanto eu uso a máscara, eu posso ser... mas, sinto... que é
exatamente isso, não consigo explicar, não é um negócio que consigo
racionalizar. Mas rola isso de força, de potência, de confiança, porque aí me
desvinculo da minha figura, basicamente isso.

45
Ficou em aberto para mim, quase um ano depois, se ele ficou à vontade por conta do
público. Com exceção de um garoto adolescente, irmão de uma das minas presentes, todas
eram mulheres. E com exceção de mim e sua namorada, todas negras. A pergunta que não
consegui fazer é se o público o fez se comportar de forma diferente com a máscara e, por
isso, ela foi retirada. Em uma conversa via Skype, mais de um ano depois e durante o
contexto da quarentena em meio a pandemia de covid-19, finalmente fiz a pergunta:

[Bárbara]: Falando na gravação do Pujança, eu tenho uma pergunta que eu


quero te fazer desde aquela época. no dia você tirou a máscara e você falou
que era um feito, né? Digo, e até a gente perguntou o porquê e você falou
“ah, não sei, preciso pensar.” Você pensou? [risos] Por que você tirou a
máscara aquele dia?

[Tao]: Nossa, porque eu estava muito bem, na real... Eu lembro que eu saí
daquele rolê e nossa, eu estava radiante, conversando com todo mundo no
caminho que a gente fez, eu estava conversando com todo mundo, eu estava
abraçando todo mundo, eu tenho medo das pessoas, assim, eu não saio
abraçando, falando sobre a minha vida, perguntando sobre a vida dos outros
geralmente... e nesse dia aconteceu porque eu senti que o que eu me propus a
fazer tipo funcionou da maneira que eu tinha planejado, e eu fiquei tão
realizada que eu até não tive, sei lá, vergonha de mostrar minha cara do jeito
que ela estava, porque a cara que eu quero que as pessoas vejam atualmente
assim.

[Bárbara]: Você acha que tem a ver com público também que estava lá?

[Tao]: Hum...Talvez, pode ser que, se fosse um público maior e com pessoas
totalmente desconhecidas, eu já instantaneamente não conseguisse acessar
esse lugar do conforto assim, da segurança.

[Bárbara]: Eu lembro que eu contei ‘aqui tem não sei quantas pessoas’ e, de
todas, essas pessoas com exceção do irmão de uma das meninas, eram todas
mulheres, e com exceção de mim e da Gim todas eram minas pretas, né? E eu
fiquei pensando muito nisso, se tinha a ver com isso.

[Tao]: Ah, provavelmente sim... Mas irracionalmente também. Nesse um ano


e pouco eu não parei pra pensar, real assim, o que aconteceu, eu lembro dessa
sensação tipo ‘eu estou segura’. Geralmente as máscaras servem justamente
pra isso, pra que eu me sinta forte e pra que eu me sinta confiante, e potente e
possível. E quando me bateu isso naquela dança e com vocês... Não precisei
mais usar a máscara assim [risos] e isso foi muito bom…

[Bárbara]: Imageticamente, diga-se de passagem, foi bem bonito, o momento,


sabe. Foi um sorrisinho assim, foi tão bonito, bem bonito.

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A dor e suas orelhas

Quando fiz o campo em Porto Alegre para acompanhar o trabalho de Julha Franz,
notei que recorrentemente nos eventos ela estava com as orelhas pintadas. Intrigada por este
“detalhe” nada usual, em nossa entrevista perguntei se as orelhas pintadas tinham um
significado:

[Julha]: Nesse processo de pesquisa individual eu comecei a pensar no que


me causa dor fazendo drag. E uma das coisas que eu encontrei foi que um dos
bullyings que eu sofri muito forte foi em relação a minha orelha. Minha
orelha é um pouquinho de abano, não dá pra ver tanto, mas quando eu era
pequena minha orelha era desse tamanho e eu era assim. Eu tinha um orelhão
mesmo e me chamavam muito de Dumbo, faziam horrores comigo. Por muito
tempo eu não cortei o cabelo, não fiz nada, porque eu escondia as orelhas, era
uma parte do meu corpo que eu odiava, tinha muito problema. Elas e meus
peitos. E aí eu comecei a ressignificar isso no drag. Então as primeiras vezes
que consegui prender o cabelo e tal foi fazendo drag e pintando a orelha. Aí
começou a ser uma coisa que eu adotei na minha personalidade pra tentar
ressignificar essa coisa que é uma parte que eu odeio em mim. Aí funcionou.

[Bárbara]: E você nunca pensou em fazer intervenção cirúrgica…

[Julha]: Já, milhões de vezes, mas não tinha dinheiro, primeiro, e depois
quando tinha eu quis tentar superar. Porque eu vi como um trauma e vi como
uma coisa que ‘tá, não, peraí, sabe? Talvez eu consiga lidar com isso.’ E aí o
drag me ajudou. Muito louca essa relação. Por isso eu tenho trabalhado tanto
as orelhas e tá presente na exposição [no caso, a exposição individual que
Julha estava produzindo, onde contarei mais adiante].

[Bárbara]: Você acha que você performa na vida, você se vê como uma
pessoa que performa sem estar no estado ritual de performance? Eu vi que
você faz o lance da orelha também no bloco de carnaval e em outros
momentos.

[Julha]: Ahn, em momentos sociais, eu faço. Em momentos sociais em que eu


sei que vou ter algum tipo de destaque. Então quando eu falo, quando eu vou
num bloco, quando eu faço outras coisas, isso aparece. Mas sei lá, quando eu
vou sair com meus amigos, etc., não. Quando eu tô em destaque como uma
artista, é meio uma marca que eu tô criando. [Bárbara]: É o seu cartão de
visita!

[Julha]: Mais ou menos por aí, mas é muito ligado às questões de convívio
social, e da minha imagem... Por exemplo, meu nome não é Julha com H.
Então quando a Julha aparece, bem isso, quando a Julha aparece, essas coisas.

47
Julha Franz, 2020, do seu Instagram10

Julha, assim como Tao, ressignifica um trauma e uma violência recorrente num corpo
potente da performance. Enquanto Tao coloca a máscara que a branquitude enquanto sistema
faz do seu corpo negro, o transformando em “monstro” ou “violento”, Julha se vale de
elementos doloridos de sua infância e adolescência na performance. Não são elementos
escondidos, tímidos, de vergonha. São vergonhas expostas e desveladas. Uma resposta às
estruturas de violência, mostrando exatamente aquilo que tentou-se suprimir, violentar e
esconder. A suspensão ritual da performance torna essas “máscaras” potentes.
As artistas estão tratando de traumas físicos e psíquicos diante da ideia que a
sociedade impõe aos seus corpos. Entretanto, o trauma de Julha é de ordem muito mais
pessoal do que o racismo que incide no corpo de Tao. Na hora de executar seus trabalhos,
vejo uma diferença sutil, mas de importante localização. Neste momento tocamos em um
ponto abordado por Tao na oficina de 2019:

[Tao]: Eu me pergunto o porquê das pessoas ficarem instigadas quando eu tô


me batendo e não ficarem instigadas quando tô produzindo uma coisa que é
muito foda que é minha fotografia! Eu estudei muito pra produzir fotografia,
pra produzir imagem. (...) sou obsessiva por imagem, tanto desenho,
fotografia, performance, filmo a performance, me filmando performando,
misturo tudo... e me apresento! Mas me agredir, me machucar fez com que as
pessoas quisessem se aproximar de mim, mas por que só essa relação? Será
que se eu produzir uma performance com flores eu vou ter credibilidade...
tenho certeza que não. Se eu performar conversando com as pessoas eu vou
dar credibilidade? Não... e aí eu quis credibilidade, porque minha formação

10
https://www.instagram.com/julhafranz/ - Acesso em 23 de setembro 2020

48
foi sobre publicidade e eu tenho isso de marketing também, marketing
pessoal, e eu comecei a destrinchar tudo que eu podia dessa criação
performática pra que isso fosse um projeto cada vez mais refinado. Comecei
a terminar meus desenhos, não jogava mais fora o que eu produzia porque eu
precisava ter alguma coisa pronta, coisa firme, alguma coisa comigo... mas...
a dúvida que fica hoje é justamente essa: porque é tão receptivo e tão
agradável as pessoas verem, quer dizer não agradável no sentido de ‘nossa,
que prazer de ver uma pessoa se batendo!’, mas porque isso atinge, leva meu
trabalho positivamente, sendo que eu tô destruindo meu corpo? Não sei... eu
tenho umas teorias, mas nenhuma delas se encaixa... a partir daí eu comecei a
performar mesmo.

O lugar potente da performance enquanto transferência da dor e o ser monstrificado


que a sociedade faz do corpo negro torna possível, portanto, a ação performática de Tao. No
entanto, abre-se a questão de um certo fetiche branco em torno da representação daquela dor.
O tipo de arte que o público branco espera de um artista negro: que falem sobre racismo.

Toda minha dor

Em uma das apresentações de Todo meu amor, no Festival Valongo, em 2017, na


cidade de Santos, Tao se apresenta para um público maior. Tive acesso ao vídeo de registro
da performance: Tao está de calça marrom até os joelhos, nu da cintura para cima, uma
máscara de couro que tampa todo seu rosto na parte da frente e uma fresta com umas cordas
atrás, junto a uma coleira de metal que se estende por uma guia. Ele se arrasta pelo chão, se
auto guiando por essa guia que carrega no pescoço. Seus movimentos são rápidos e ágeis
enquanto está de quatro andando pelo chão. Me remete a um movimento que um cachorro
faria, um pouco confuso e atordoado. Enquanto anda de quatro, por vezes cai e se arrasta pelo
chão, tenta levantar de quatro e cai novamente. Tudo acontece com muita rapidez.

49
“Todo meu amor”. Tao Bruni, 2017 - frame do vídeo disponível em seu canal Vimeo11

Bate a cabeça no chão propositalmente algumas vezes seguidas, como quem se frustra
por não conseguir dar andamento à caminhada. Bate na própria cabeça algumas outras vezes
seguidas. Se esgueira em uns bancos à frente, prostra diante deles, pega a corrente que sai de
seu pescoço e se flagela nas costas continuamente.

“Todo meu amor”. Tao Bruni, 2017

O vídeo sofre uma pausa e corta para cena que Tao aparece de pé. Tenho dificuldades
de descrever esse momento. É uma dança de gestos repetidos, onde em dado momento ele
soca novamente a própria cabeça e arranca a máscara de couro num ímpeto acelerado,
impulsivo. O que vemos é sua boca aberta, um rosto de dor e desespero, o corpo que vai
caindo em direção ao chão até que volta a se arrastar.

11
https://vimeo.com/238127367 . Acesso em 23 de setembro 2020.

50
“Todo meu amor., Tao Bruni, 2017

Não é simples de encarar. É permeado por dor. Diferente de quando Tao tira a
máscara na apresentação que vi – como um gesto doce, terno, feliz e sorrindo – aqui ele está
com dor, em desespero. A máscara o desnuda de uma forma dolorosa, não porque ele está
confortável, mas porque está exposto ao extremo de vulnerabilidade.

“Todo meu amor”. Tao Bruni, 2017

Em uma outra versão da performance12, Tao é filmado em algum lugar mais


reservado, uma sala, não mais uma apresentação pública. Começa com Tao de costas, sentado
com uma roupa um pouco acima da cintura e as costas nuas. Veste a mesma máscara de
couro. Bate continuamente na própria cabeça e, em seguida, começa a se flagelar com uma
guia de metal que envolve seu pescoço. Às vezes pausa e se contorce, no que parece ser de

12
https://vimeo.com/260791367 - Acesso em 23 de setembro 2020
51
dor. Me sinto estranha em tentar pegar um momento pra conseguir tirar o print do vídeo. O
sadismo de esperar este momento.

“Todo meu amor | Afeto”. Tao Bruni, 2017 - frame de vídeo

Em um momento suas pernas tremem, como quem está impaciente e deseja que isso
acabe logo. Tenta mais duas vezes seguidas, mas dói. Se cansa da dor. Acredito que seja este
lugar do cansaço da dor que retomamos a conversa, agora feita por Skype em agosto de 2020,
sobre os interesses que permeiam seu trabalho que se centram e se localizam fortemente na
questão racial. Ponto que eu mesma me coloquei em dúvida e em questionamento ao
conduzir os interesses e curiosidades da minha pesquisa. Meu interesse pelo Tao e seu
trabalho era sobretudo sobre sua fluidez física na dança e na performance e em especial nas
máscaras. O que elas diziam, quem eram elas? Aos poucos, fui conhecendo outras aptidões
de Tao, até me encontrar com seu senso estético para fotografia e também o desenho. Tao é
um artista multimídia com desenvoltura para fazer o que se propõe. No entanto, nos
centramos em questionar porque o interesse do público só é ativado pelo por conta dos
atravessamentos raciais de dor.

[Tao]: Não sei, eu estou fazendo essa série sobre gravidez transmasculina,
desenhando cavalos marinhos pra ver qual é na real... Aquele dia eu tinha
falado ‘Porra, eu não sei se eu preciso ter um trabalho com flores, ou
qualquer outra coisa natural assim...”.

[Bárbara]: [risos] Eu lembro que você falou das flores sim.


[Tao]: Pra ver se daria uma mesma repercussão assim. Eu comprei os dois
catálogos das Histórias Afro Atlânticas e a maioria das obras que estão lá são
iguais a essas, com pessoas negras acorrentadas sofrendo, cara de sofrimento,

52
e eu acho que isso vira por que isso é a imagem que a arte deu sobre pessoas
negras, até hoje, até na História Afro Atlântica que tem a parte da arte
contemporânea, toda a parte histórica é só de escravidão e sofrimento …

[Bárbara]: Sim... eu penso muito nisso no que me tange na questão lésbica,


que falar de arte lésbica não é falar necessariamente de arte que fala de coisas
lésbicas, é falar de arte que é feita por corpos lésbicos, e como os
atravessamentos da vida dessas meninas se mostra na arte. Então, por
exemplo, você fazer um cavalo marinho... Fala muito sobre os seus outros
atravessamentos. Vai da coisa de não separar o artista e a obra. Eu fico
pensando até que ponto as curadorias estão privilegiando esse espaço de dor,
que é muito importante, eu acho é meio educativo pras pessoas brancas, que é
meio que ‘ok, galera, temos uma questão aqui’, mas em outro lugar fica
parecendo que a arte é um lugar de alguma forma de sublimação. Você não
está sublimando se você está criando todo tempo narrativas sobre as suas
dores, né? Você está reforçando.

[Tao]: Ah, sei lá, muito artista negro da performance, da pintura só


trabalhando dor. As coisas estão muito parecidas na real, isso me deixa tipo
bolada, não no sentido de não validar o que essas pessoas estão fazendo, mas
pra mim fazer dessa maneira se tornou tipo um fácil acesso assim, justamente
por ser… Sei lá, não fácil de entender, nem fácil de olhar, mas é (...) é um
reforço do estereótipo que as imagens produzem sobre a questão negra.
Sempre penso nisso da produção não ser necessariamente eu falando sobre a
minha negritude, mas consequentemente tudo vai ser sobre ela. Eu não
queria, sei lá, ser lembrada como uma artista que trabalha questões negras
assim, mas querendo ou não é isso. Nas minhas pinturas eu nunca pintei uma
pessoa branca, porque, sei lá, eu pinto pessoas que estão perto de mim, minha
família, eu, (...) minhas referências das pessoas que estão perto de mim são
todas pretas. Só a Giovanna [namorada] que não é, e minha melhor amiga.

53
desenho de Tao Bruni, setembro 2020 - disponível em seu Instagram

Como coloca bell hooks (2019), a criação da imagem do sujeito negro via de regra é
vista na perspectiva da branquitude, e “se houve pouco progresso [em relação a pauta de
criação de imagens da pessoa negra] é porque nós transformamos as imagens sem alterar os
paradigmas, sem mudar perspectivas e modos de ver” (idem, p. 37). Portanto, não basta falar
de racismo nas apresentações performáticas ou quaisquer outras representações visuais. A
exigência de que um artista racializado continue falando das pautas que lhe doem – no caso, o
racismo – sem que alteremos os paradigmas de nossa visão é continuar atendendo as
expectativas do espectador branco.

Se muitas das pessoas não negras que produzem imagens ou narrativas


críticas a respeito da negritude e das pessoas negras não questionarem suas
perspectivas, elas podem simplesmente recriar a perspectiva imperalista – o
olhar que procura dominar, subjugar e colonizar. Isso em especial para
pessoas brancas que observam e falam sobre negritude. Em seu ensaio “The
Miscegenated Gaze” [O olhar miscigenado], o artista negro Christian Walker
sugere que, ‘se artistas brancos comprometidos com a criação de uma
sociedade sem racismo, sem machismo e sem hierarquia, em algum momento
compreenderem por completo e abraçarem sua própria identidade e sua
perspectiva miscigenada, eles terão que acolher e celebrar o conceito de uma
subjetividade não branca’. Seus modos de olhar devem ser fundamentalmente

54
alterados. Eles devem ser capazes de se engajar na luta da militância negra
pela transformação das imagens. (hooks, 2019, p. 41)

Deste ponto de vista, reflito muitas vezes que a metodologia antropológica desta
pesquisa não é apenas na interlocução com as artistas e como elas criam, mas também nas
estruturas que fundam nosso olhar, especialmente o meu, de pessoa branca. Neste
entendimento foi necessário a compreensão de desmascarar não somente o trabalho de Tao e
suas subjetividades criativas, mas sim o olhar que eu mesma estava dando. Talvez eu
estivesse na expectativa que alguém que tem uma experiência racial me contasse mais sobre
racismo, quando eu mesma também vivo a experiência racial da branquitude! Um olhar que,
como diz hooks, domina, subjuga e coloniza. E o faz muitas vezes na tentativa de
compreender e de agregar. No entanto, essa compreensão vem no lugar do sentimento de que
algo precisa ser acolhido, o paternalismo da pessoa branca que precisa ajudar, amparar e
resolver. “A etnicidade se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da
merda insossa que é a cultura branca dominante” (hooks, 2019, p. 66). Esta visão só
retroalimenta a expectativa, o desejo e o fetiche branco. Quando Tao me aponta seus desejos
de representação dos cavalos-marinhos, das pessoas negras de sua vida ou até das flores, isso
deve nos recobrar a consciência do sujeito que ele é, e nas palavras dele:

[Tao]: Minha busca é provar pras pessoas coisas básicas e bobas: que eu
sinto, que eu penso, que eu crio, que eu raciocino, que eu amo muito as
pessoas que eu amo, que eu amo muito estar viva apesar de tudo que constitui
a pessoa que eu sou, eu ainda estou viva. eu quero continuar viva.

A branquitude não espera das pessoas negras as coisas “básicas e bobas”, ou a


sublimação artística, e sim a dor e o flagelo. Ainda que a representação do que é o racismo
seja importante “Peço que consideremos a perspectiva a partir da qual olhamos, questionando
de modo vigilante com quem nos identificamos, quais imagens amamos.” (hooks, 2019, p.
39).
É curioso, senão irônico, que me atenho à performance que leva como nome Todo
meu amor. Desmascarando-o, podendo vê-lo sem suas máscaras colocadas pela branquitude,
em um gesto de uma imensa generosidade em falar com minha pesquisa, me permitir entrar
na sua vida e sua subjetividade, o que eu vejo em Tao não são as dores e flagelos, mas amor.
Tao é cheio de amor e vida. Desmascarar não é um gesto de ver seu “eu verdadeiro” ou
somente conhecê-lo na sua intimidade, mas o desmascarar os meus olhos colonizados,
brancos e que de alguma forma reproduzem essas visões violentas sobre o que vamos chamar

55
equivocadamente de “Outro”. Quanto mais o escuto, mais percebo as marcas que um
contexto hegemônico branco incide, mas também enxergo, principalmente e como ele mesmo
diz, uma pessoa viva. Nosso encontro desloca o paradigma do meu olhar e, imagino eu,
também gera afecção a ele. Encontro duas pessoas vivas onde desmantelo essa visão do eu
branco referencial, em lugar da troca entre corpos e vidas pulsantes, com seus desejos
próprios. Eu em pesquisar e entender performance através da escuta sobre seu trabalho, ele
em produzir arte e me contar mais sobre sua produção. O desmascaramento é mútuo. No
lugar da dor, flagelo, violência e discursos infinitos muito comuns à hegemonia branca,
damos espaço ao afeto, troca, ruídos, dúvidas e às vezes alguns silêncios.

Máscaras e dores da Covid-19

Parte deste questionamento na pesquisa se dá quando retomo a escrita da dissertação


quinze dias após a transcrição do áudio de Tao e gesto variadas linhas em minha mente,
concateno ideias, penso em bibliografias que ainda preciso me ater para construir de forma
mais consistente o que tenho a pensar sobre tudo isso. A verdade é que, no meio disso tudo,
existe um incômodo desde o princípio de ver reafirmado a minha branquitude em frente ao
trabalho de um jovem negro e a tentativa de fazer essa relação ser a mais produtiva possível,
não produtiva no sentido linear capitalista, mas no sentido de produzir algum pensamento que
seja viável para o futuro.
Desejo trazer a voz e o trabalho de Tao, Julha e Berna no sentido de pensar corpos
que produziram arte nesses tempos em que vivo, não tomando a voz delas, não sendo a
mulher branca que, mais uma vez, narrou as pessoas não-brancas. Não é que não quero ser
vista assim, eu não quero ser essa pessoa. Pesquiso mulheres artistas e só me deparo com
ausência, e quando há presença, só encontro corpos brancos e da elite. Como Tao me disse,
ninguém percebeu que só tem um tipo de corpo sendo mencionado na história da arte da
performance? Pois bem, quando estava equalizando essas intenções, tentando encontrar
caminhos, o mundo inteiro foi tomado por uma pandemia.
É fundamental, a meu ver, posicionar que durante o processo da escrita deste capítulo
daqui em diante, a covid-19, o vírus que surtiu a pandemia que se iniciou em janeiro de 2020
e se encontra em boa parte dos países no mundo. No Brasil, a situação é estarrecedora. O
Governo Federal não tem levado a sério as indicações da Organização Mundial de Saúde para
quarentena e tenta a todo custo voltar à rotina empresarial e industrial. Já caíram dois
56
Ministros da Saúde e os ministérios vão sendo assumidos, aos poucos, por generais. Não
consigo escrever e me dedicar, existe um contexto em que escrever história e pensar no futuro
me parece uma estupidez. Quando acho que estou sendo fatalista, outros eventos me marcam
profundamente. Não é exagero de linguagem: profundamente é a palavra. Fiquei triste e
imobilizada.
No dia 18 de maio de 2020, um domingo, abro as redes sociais que lamentam a morte
de Demétrio Campos, um garoto negro, transsexual e dançarino. A primeira notícia que tenho
é uma postagem de Tao, que, enlutado, diz que todas as pessoas que ele conhece que se
suicidaram são pessoas negras. Demétrio se matou. Não sei como, mas a internet estava
comovida. Por ser da dança, acho que muitos amigos e conhecidos meus o conheciam. Eu
não sei se o conheci, penso que não. Olho suas redes sociais, um garoto que eu achei muito,
muito bonito, e que fazia vídeos falando da dificuldade do ser negro e transsexual. Meu
domingo é tomado de melancolia, na segunda-feira mal consigo me organizar, e na terça-
feira, dia 20 de maio: é encontrado o corpo de João Pedro, morador de São Gonçalo, no Rio
de Janeiro, 14 anos de idade. A polícia invadiu uma casa – dizem que atrás de traficantes –,
acertaram João e ainda esconderam o corpo dele. Nesta terça, seu corpo foi encontrado.
Desabo. Desabo mesmo.
Não tenho palavras, forças, ainda me dói só de escrever. E aquela coisa da
branquitude me bate mais, porque uma consciência que me chega é que há certas dores que
nunca viverei diretamente no meu corpo, e com isso não tenho intenção de me centralizar
nessa narrativa, e sim de estar consciente e tornar explícito a quem lê que eu estou consciente.
Essa consciência faz eu me questionar sobre esta pesquisa. Qual a utilidade de uma mulher
branca na academia? Elucubrando a ideia de corpo, pensando na diferença entre eu e Tao? Há
um abismo entre nós, não de vontades, desejos, amores e intenções, mas da forma como
nosso corpo se intersecciona com o meio social.
Por último, leio um relato na internet onde a mestra Beth Beli do grupo artístico e
bloco de carnaval Ilú Obá de Min, em São Paulo, é vítima de racismo numa padaria perto da
minha casa, onde eu muito frequentei. Ela pergunta à atendente se havia fermento biológico e
um homem branco aparece e diz que não há comida pra dar, pra ela sair dali. Lembro do Tao
dizendo que não saía nem na padaria porque as pessoas a tratavam mal. Na pandemia, onde
cumprimos a quarentena, este estado faz com que a gente se sinta preso em casa, e a saída
eventual no mercado é um pequeno suspiro de alívio que acontece a cada quinze dias. E se
esse suspiro fosse a razão de uma violência desse tipo? Sou mulher e lésbica, também
vulnerável à violência, mas o corpo da mulher negra, fora do padrão, lésbica, não binário e/ou
57
transsexual é um corpo infinitamente mais suscetível a dores – físicas ou psicológicas – e até
à morte. Sim, não estou narrando nenhuma novidade, são coisas que eu não descobri ontem,
eu sei muito bem que vidas pretas morrem todos os dias na mão do Estado ou em
consequência da sociedade racista. A quantidade de mortes trágicas num curto espaço de
tempo bombardeando as redes sociais enquanto escrevo uma dissertação sobre as relações
interraciais de conhecimento... Pra quê eu estou fazendo isso? No meio desses dias, me
deparo com este trecho escrito por Audre Lorde13:

Que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer? Que tiranias vocês
engolem cada dia e tentam torná-las suas, até asfixiar-se e morrer por elas,
sempre em silêncio? Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento
um de seus medos. Porque sou mulher, porque sou Negra, porque sou lésbica,
porque sou eu mesma – uma poeta guerreira Negra fazendo seu trabalho.
Pergunto: vocês, estão fazendo o seu? E, certamente tenho medo, porque a
transformação do silêncio em linguagem e em ação é um ato de auto-
revelação, e isso sempre parece estar cheio de perigos. (LORDE, 1978 p. 17)

Escrevendo aqui essas linhas e esse trabalho me auto-revelo. Uma mulher branca
querendo pensar a performance a partir das diferentes relações que os corpos têm em seu
contexto. Fazer meu trabalho é garantir que essa leitura seja interseccional. Não quero
explorar a questão racial e seu contexto fazendo com estes trabalhos artísticos sejam
produtivos para meu sucesso. Quero respeitá-los em toda sua forma de ser e existir, e
respeitar é lembrar que performance é feita em variados corpos. Farta de ver páginas de livros
falando apenas de corpos brancos e quando corpos desviantes aparecem são em “volumes
especiais”.
Em contraste aos “volumes especiais”, Kilomba, ao narrar sua experiência enquanto
corpo negro na universidade, salienta que “a capacidade que os corpos brancos têm de se
mover livremente naquele recinto resulta do fato de eles estarem sempre “no lugar” – na não
marcação da branquitude.” (KILOMBA, 2019, p. 62) Já o corpo negro é outro. Como destaca
Achille Mbembe (2018), na produção de um sistema capitalista liberal, a ideia de liberdade
deve legitimar a proteção frente ao outro. De modo que a produção da ideia de raça foi
fundamental para criação do liberalismo e da modernidade.
Não há nada de especial em corpos marcados para morrer, seja de suicídio, do Estado
ou com traumas psicológicos. O problema do volume especial é a criação da norma, é a

13
“Transformação do silêncio em linguagem e ação”, apresentação lida no painel sobre Lesbianismo e
Literatura, da Associação de Língua Moderna, em Chicago, Illinois, 28 de dezembro de 1977, publicada pela
primeira vez em 1978, no volume 6 de Sinister Wisdom, encontrada na zine revista de feminismo radical.
Tradução Heretica Difusão Lesbofeminista, sem data.

58
criação do outro. Pensar corpo e performance se dá porque aqui tem um corpo, aqui tem um
desejo criativo, e também tem um desejo de mudar paradigmas históricos, narrativas
hegemônicas. Para isso, criarei com muitos desafios, pois vou me confrontar com realidades
distintas. Não que eu não saiba o que é violência e dor. Eu não sei o que é esta violência e
dor. Eu nunca vou experimentar o racismo. Em 1979, Audre Lorde já provoca:

Simone de Beauvoir disse: ‘É do conhecer as condições genuínas de nossas


vidas que devemos tirar nossa força para viver e nossas razões para agir’. O
racismo e a homofobia são as condições reais para todas as nossas vidas
nesse espaço e tempo. Eu conclamo cada uma de nós aqui a mergulhar
naquele lugar profundo de conhecimento dentro de si mesma, e alcançar o
terror e a abominação a qualquer diferença que ali reside. Ver que face
veste. Então o pessoal e o político podem começar a iluminar todas as nossas
diferenças. (LORDE, 1978, p. 26)

As diferenças sentidas nesta pandemia. As diferenças. Elas estão iluminadas, elas


estão tomadas por um sol gigante de verão, elas têm todos os holofotes de um palco, se tem
algo iluminado são as diferenças! Quem se identifica, sabe que dói. Nossa existência
compartilhada não se compartilha nos corpos. Me atenho às reflexões de Lorde: não é
possível criar conhecimento sem produção da diferença. Também não cabe a mulheres negras
educarem às brancas, assim como as mulheres educarem aos homens. Se estou escrevendo
isso, que ao menos eu esteja abrindo a cabeça de outras mulheres brancas que vivem numa
ilusão da categoria “mulher”. Lorde também defende que a diferença não deve ser apenas
uma constatação, uma “tolerância” e nem também negada, mas uma base criativa. Essa
palavra usada na tradução “criativa” me anima. Entre nós, mulheres, especialmente lésbicas e
desviantes, temos o comum, mas a percepção dessas diferenças rumo ao ciborgue (no sentido
de Haraway, 2009) que queremos.

É aprender a tomar nossas diferenças e torná-las forças. Pois as ferramentas


do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas podem nos permitir a
temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas nunca nos permitirão
trazer à tona mudança genuína. E esse fato só é uma ameaça àquelas
mulheres que ainda definem a casa-grande como sua única fonte de suporte.”
(LORDE, 1978, p. 24)

O que torna tão truncado a relação entre a experiência da pesquisa com as questões
raciais creio ser justamente evidenciar as relações que acontecem para este conhecimento ser
produzido. Para evidenciar que sou um corpo branco, preciso me colocar. Para me colocar, eu
poderia estar me envolvendo demais, ou me colocando num lugar centralizado. O que

59
evidencio, aqui, são nossas relações e não a mim. No entanto, para me relacionar com o
interlocutor, é preciso e necessário me localizar não só como sujeita, mas em que contexto
produzo, escrevo e afins.

Performance, linguagem e silêncio

Frantz Fanon articula em Peles Negras, Máscaras Brancas (2008), logo de início, que
“Uma vez que falar é existir absolutamente para o outro (...) falar (...) é sobretudo assumir
uma cultura, suportar o peso de uma civilização.” (FANON, 2008, p. 43) As reflexões de
Fanon podem ser conectadas às objeções que Tao Bruni tem com a fala, especialmente
quando menciona que o português é uma língua verborrágica.

[Tao]: meu problema principal é a fala, aliás um dos três problemas


principais, devido a minha infância. Eu era a única aluna negra na escola
particular, eu era bolsista, e isso gerou uma série de questões problemáticas
(...). O primeiro motivo que me fez não querer falar é que eu era gaga, eu fiz
vários anos de fono e (....), juntando isso com a educação na minha casa de
não falar, só obedecer, criou toda essa trama pra eu não conseguir me
desenvolver como pessoa. O segundo motivo que me incomoda em falar é
porque considero o português uma língua extremamente verborrágica, você
precisa usar mil palavras pra expressar uma ideia simples e não acho o
português prático, acho que dá muita volta, complicado, complexo, não tinha
muito interesse de ir pra escola também e isso brecou muito o meu entender a
fala, entender o uso das palavras. E o terceiro motivo, que é o mais óbvio, é
esse de ser negra. Infelizmente só entendi minha negritude quando tinha uns
20, 21 anos de idade, muito tarde, e o tempo suficiente pra entender que se eu
tivesse tido uma criação que me ensinasse desde pequena a falar, e querer, e
desejar, e me imaginar em lugares maiores, seria algo determinante.

Fanon analisa o processo de um jovem das Antilhas, colônia francesa, que vai para a
França e adquire o modo francês de falar. Não mais falante do creoule, o “francês caribenho”,
o jovem negro que migra pra Europa se acredita um homem francês superior entre muitas
razões, mas especialmente pela fala, pela assimilação da língua colonizadora. Anteriormente,
a educação na colônia já ensinava a língua francesa como um processo de assimilação
colonial. Portanto, Fanon nos apresenta que “todo idioma é um modo de pensar”, a injeção da
educação da língua francesa nas Antilhas é mais do que um processo de assimilação para se
facilitar as relações dentro de uma colônia, mas também para criar uma nova maneira de
pensar. A maneira de pensar que coloca o homem branco como centro e universal, a fim de

60
que se acredite que falar sua língua e reproduzir seus modos é uma forma de ocupar este
lugar como branco.
Grada Kilomba, nascida em Portugal, na introdução na edição brasileira de Memórias
da Plantação (2019), faz questão de pontuar e explicar diversas terminologias sob a forma de
um glossário:

Por um lado, porque me parece obrigatório esclarecer o significado de uma


série de terminologias que, quando escritas em português, revelam uma
profunda falta de reflexão e teorização da história e herança coloniais e
patriarcais, tão presentes na língua portuguesa; por outro lado, porque tenho
de dizer que esta tradução é maravilhosamente elaborada, pois traduz um
livro inteiro apesar da ausência de termos que noutras línguas, como a inglesa
ou alemã, já foram criticamente desmontados ou mesmo reinventados num
novo vocabulário, mas que na língua portuguesa continuam ancorados a um
discurso colonial e patriarcal, tornando-se extremamente problemáticos.
(KILOMBA, 2019, p. 14)

Sendo assim, Kilomba se posiciona criticamente à língua portuguesa e se debruça em


desconstruir algumas terminologias, dentre elas, por exemplo, o binarismo de gênero nos
sujeitos da língua portuguesa. Não apenas em seu glossário, mas em todo livro – sob forte
influência de Fanon – a autora descreve a força que a língua colonial tem sob a enunciação
dos corpos e relações.
Quando Tao Bruni diz que sua dificuldade com a língua portuguesa se deve a três
fatores: 1) o lar repressor e consequentemente o problema de fala, 2) o incômodo do
português verborrágico e finalmente, 3) o fato de ter nascido negro, temos então três
apontamentos de uma mesma matriz: a língua portuguesa colonial que é imposta já
simplesmente de forma repressora. No Brasil, onde temos uma colonização de assimilação e
não segregação, uma dessas formas de assimilação acontece por meio da linguagem. Como
conclui Kilomba na sua introdução:

(...) a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão
política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada
palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das
suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e
de quem é que pode representar a verdadeira condição humana. (KILOMBA,
2019, p. 14, grifo da autora)

O não falar, portanto, tem duas vias interpretativas que se complementam: a


repressão, em que aquele corpo não se adequa à norma vigente e, portanto, se cala. A outra

61
que, ao perceber as diversas formas de fala que lhe foram negadas, fala através do corpo, da
dança e da performance. Tao traz para os limites do corpo, e também na expressividade da
imagem dos seus desenhos, vídeos e fotografias, em detrimento da fala.
Na performance, portanto, existe o lugar dos corpos marginalizados e não produtivos
para as estruturas hegemônicas, sendo assim um lugar de protesto e representação daquilo
que é calado pela voz, pelo som que emana da voz. É de quem, como coloca Kilomba, seria o
não-normal, portanto o outro. Como colocou o performer e pesquisador mexicano Guillermo
Gómez-Pena, no Em defesa da arte da performance,

Em suma, nós somos o que os outros não são, dizemos o que os outros não
dizem, e ocupamos os espaços culturais que, em geral, são ignorados ou
desprezados. Por isso, nossas numerosas comunidades estão constituídas por
refugiados estéticos, políticos, étnicos e de gênero (PENA, 2013, p. 444)

No entanto, esta análise não cabe como forma total de interpretação da arte da
performance. Por mais que a língua colonial tenha seus atravessamentos também nos corpos
brancos que acabam por reproduzir esta linguagem, nestes corpos é o lugar “que lhe cabe
melhor”, e a expressão performática é tomada por outras vias e por outras razões. É
importante salientar que outros atravessamentos coloniais, como a questão da imposição do
gênero e da heterossexualidade compulsória também são lugares de profundo silenciamento
que dão vazão para a arte da performance, no entanto não necessariamente calam a voz da
expressão verbal.
Cheguei a essas reflexões pela bibliografia, mas principalmente observando a relação
que se estabelecia entre mim e as interlocutoras. Com Tao Bruni, nossa relação foi demarcada
por profundos silêncios, de certa forma perturbadores para mim. Cheguei a especular diversas
vezes que Tao não queria continuar com a pesquisa, mas continuamente fui desmentida.
Todos os contatos que conseguia fazer com Tao eram de poucas palavras, comentários e
sutilezas. Essa era minha inquietação. Caí na armadilha do próprio pensamento linear e
cartesiano onde as relações, para existirem, precisam passar pela fala e diálogo contínuo. Eu
já estava construindo uma relação com Tao, ou melhor, já existia uma relação com ele e seu
trabalho, eu só não compreendia pelo tamanho da minha expectativa.
No recesso do fim do ano de 2019, viajei para a cidade de Florianópolis. Nas redes
sociais, vi que Tao estava pela cidade e o comuniquei, por mensagem, que também estava por
lá. No dia que saí do norte da ilha para visitar o centro, Tao encontrou-me com sua namorada,
e juntas passamos uma noite passando por vários bares e trocando conversas. Carregava em

62
mim um receio imenso de Tao não querer mais fazer parte da interlocução da minha pesquisa
ou, por conta da minha pesquisa, não conseguir estabelecer este contato amigável, ao qual ele
sempre estava aberto. Não só aberto, como já se comunicando.
Neste momento, acho que me coube uma reflexão importante sobre a localização
política e social que me encontro enquanto pesquisadora e mulher branca. Exigi de mim
mesma e de quem buscava conhecer melhor, um diálogo dentro de certos paradigmas de
“entrevista” e de conversas sem notar as nuances das relações. A potência do silêncio, do
movimento e dentre tantas coisas que me propus a fazer essa pesquisa. Quando percebi o
lugar que este silêncio ocupava, e essas brechas, ruídos e dúvidas que me colocavam
exatamente no lugar vulnerável, foi possível continuar adiante com uma pesquisa onde prezo
não só uma epistemologia que pense a partir da margem, que questiona o paradigma, mas
também a afetividade destes encontros que não necessariamente estão cheios de palavras.

63
CAPÍTULO III
Descaramentos, desmascaramentos e dissidência de gênero

As três artistas desta pesquisa trabalham com temáticas de gênero. Começando pelo
próprio suporte do corpo, muitas vezes nu. São corpos com seios, vagina, apêndices e
orifícios. Em uma sociedade ocidental, o discurso científico da medicina e o biopoder como
regulador dos corpos incide em configurações do gênero e da sexualidade. Segundo Michel
Foucault (1999), para que os corpos fossem gestados e geridos visando a manutenção do
poder religioso e estatal, foram sendo estabelecidas práticas reguladoras que se apoiaram
sobretudo nos sistemas jurídicos e na medicina que se consolidaram a partir do século XVIII
na Europa. O discurso biomédico passa a definir o que é normal e o que é patológico, de
modo que a sexualidade passa a ser objeto de análise científica e gestão jurídica cisgênera e
heteronormativa.
Em outros universos culturais, como na Melanésia, outras são as premissas acerca
desses temas. Ali o gênero se efetiva como uma estética relacional, em que tanto corpos com
pênis como com vagina participam de relações e posições sociais consideradas masculinas ou
femininas. Como destaca Marilyn Strathern (2006), “o que distingue homens de mulheres não
são apêndices ou orifícios, mas as relações sociais em cujos contextos elas são ativadas (...).
A diferença [de gênero] (...) envolve interações, não atributos.” (idem, p. 211)
Diferentemente na chamada sociedade ocidental, o binarismo “homem” e “mulher”
associado a características físicas é enfaticamente demarcado. Ao escolher abordar a
perspectiva das relações de gênero na performance, não há intenção em universalizar corpos
tidos como de mulheres dentro da performance. O que é possível fazer é apontar os corpos
que essas artistas fazem e as relações que fazem seus corpos. Corpos dissidentes,
marginalizados, que recusam classificações patologizantes ou desqualificadoras ao longo da
história.
O corpo feminino, ao longo de relações históricas no Ocidente moderno, foi relegado
à atividade doméstica, objeto de reprodução e perpetuação dos herdeiros do patriarcalismo.
São corpos constantemente inferiorizados, violentados, expostos e manipulados para
obedecer a regras de um sistema comandado por homens. A égide do patriarcado se sustenta
na valorização do corpo masculino branco, de forma que nas relações patriarcais há corpos
masculinos e femininos que são subjugados, especialmente a depender da raça e classe social.
Silvia Federici critica a ênfase de Foucault nas práticas discursivas pelas quais o poder se
inscreve nos corpos, já que o “poder” é tomado como algo despersonalizado e, por isso,

64
reificado:

O caráter quase defensivo da teoria de Foucault sobre o corpo se vê


acentuado pelo fato de que considera o corpo como algo constituído
puramente por práticas discursivas, e de que está mais interessado em
descrever como se desdobra o poder do que em identificar sua fonte. Assim,
o Poder que produz o corpo aparece como uma entidade autossuficiente,
metafísica, ubíqua, desconectada das relações sociais e econômicas, e tão
misteriosa em suas variações quanto uma força motriz divina. (FEDERICI,
2017, p. 34)

Tal crítica pode ser aproximada da proposição de Haraway (2003) de que o


conhecimento não-localizado se torna irresponsável, incapaz de ser chamado para prestar
contas. O conhecimento que não se situa, que se tem como verdadeiro, universal, objetivo, é
predominantemente produzido por homens brancos heterossexuais.

Todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são


alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e
mente, sobre distância e responsabilidade, embutidas na questão da ciência
para o feminismo. A objetividade feminista trata da localização limitada e do
conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e
objeto. Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a
ver. (HARAWAY, 2003, p. 21)

Assim como Haraway nota a presunção do olhar masculino como neutro e universal
na ciência, Federici nota como Foucault desloca o foco da agência masculina branca como
origem da gestão da vida e regulação dos corpos no sistema capitalista ocidental. Para que
fosse possível a longa transição do sistema feudal em capitalista, para além da exploração das
terras e mão de obra na América e África, foi também necessário o cerceamento da liberdade
das mulheres e controle sob seus próprios corpos, com ênfase na “caça às bruxas” na
Inquisição. No Brasil, especificamente no período colonial, o controle do corpo da mulher se
torna também violentado sob a mesma lógica de caça às bruxas. As mulheres indígenas tendo
seus corpos abusados ou apagados da história, e mulheres negras vindas da diáspora africana
como mão de obra escravizada ou igualmente exploradas sexualmente.
Federici discorre sobre as estratégias da aristocracia, burguesia e também da igreja
católica de cerceamento do corpo feminino para garantia de sua domesticidade, tão
comentada por Foucault. Dentro desse desenvolvimento, foi possível transformar o corpo da
mulher em um bem, seja de seu marido, como de seu empregador. Mulheres perdem domínio

65
sobre a terra, a manipulação de sua contracepção, reprodução e até do próprio parto,
relegadas ao controle estatal e também aos médicos.
Através desta narrativa, podemos observar que a manutenção do poder (FOUCAULT,
1999) é estruturada através das relações entre os sexos. Desta forma, Judith Butler (2015) irá
argumentar que o sexo não é mais um atributo ou uma característica, mas uma identidade a
ponto de “ser” um determinado sexo. Butler também argumenta a desconstrução da separação
entre sexo e gênero, visto que o gênero parte já do significante do sexo designado. Quando o
sexo se torna parte de uma identidade que é regulada por estruturas de poder, o sexo se torna
uma performatividade, ou seja, uma série de gestos, modos, vestuário e modus operandi que
atende a uma norma na qual o corpo opera ao sexo/gênero designado. Desta forma, o poder
atua sob os corpos não apenas destituindo as mulheres de seus poderes de reprodução, mas
exigindo uma determinada performatividade associada à características subalternas e
reprimidas. Mesmo assim, a performatividade sendo uma reprodução ditada por um poder,
pode também ser disruptiva na medida que não atende aos anseios masculinos, misóginos e
patriarcais. Uma performatividade que se torna vulnerável, alvo e também ameaça justamente
por irromper a regulamentação das estruturas de poder.

Dragando o gênero

Julha Franz têm um personagem em especial nas suas performances que ocupa uma
parte interessante do seu fazer artístico. Esta persona é Leon, seu drag king. Assim como a
cultura drag queen consiste na criação de uma personagem que de forma cômica, exagerada
ou artística expressa o gênero feminino, o king visa expressar, portanto, o gênero masculino.
No entanto, como é do interesse de Julha a quebra dos paradigmas binários de gênero, Leon é
uma persona masculinizada, porém não de forma totalmente estereotipada.
A cultura drag king é muito menor ou com muito menos holofotes do que as queen,
na sua grande maioria interpretada por homens gays. Isso é algo que Julha reforça, nos
contando que quando começou a ‘testar’ o drag king em 2014, quando morava em Buenos
Aires, já questionava as categorias de gênero pessoalmente e simultaneamente eclodiu o
famoso programa Rupaul’s Drags Race. O programa norte-americano que consiste em um
concurso de drags elevou à prática artística drag queen ao status de cultura pop. Como Julha
já trabalhava com eventos, viu a possibilidade de fazer uma ponte entre os shows e as drags e,
consequentemente, com suas questões mais subjetivas acerca das questões de gênero, testar
66
em si a possibilidade de drag king. Porém, diferente das queen, Julha não encontrou tutoriais
de maquiagem na internet ou outros materiais que pudessem ser um ponto de partida para que
começasse a criar seu drag king. Para isso, então, criou sozinha em casa muitos testes de
maquiagem entendendo a lógica de luz e sombra das maquiagens até que pudesse reproduzir
uma feição mais masculinizada e, finalmente, criar o Leon.
Julha, nesta fala, me conta um pouco como é a personalidade de Leon:

[Julha]: Eu falo em espanhol, porque o Leon é latino. Portunhol, na verdade!


Surgiu como uma inquietação própria de entender onde é que tava minha
masculinidade. E aí transformar o corpo ajudava a entender esses
movimentos, essas coisas, transformar a partir da maquiagem.

[Bárbara]: Então o Leon pode ser uma expressão da sua masculinidade?

[Julha]: Ele era. inclusive era uma masculinidade bem viado, e aí entender
esse lugar, tem trejeitos. Aí que entra essa questão do que é o masculino e
como é que tu lida com esses estereótipos, que nem drag queen. Tem drags
queens que eu acho uma ofensa o que elas fazem. Porque é estereótipo de
feminino e reproduzir feminilidade de uma maneira muito padrão e restrita.
Minha ideia com o Leon era justamente isso, ele é muito macho, ele é esse
garanhão, mas ao mesmo tempo ele tem uns trejeitos, ele mexe a bunda, e
isso é tão masculino quanto. É essa discussão.

“Leon”, 2017 - foto do Instagram de Julha Franz

Em meio às trocas sobre a cultura drag, falamos especialmente sobre a misoginia no


meio, por ser especialmente protagonizado por homens gays interpretando queens. A partir da

67
hipótese da pesquisa que visava refletir sobre a atuação dos corpos lidos socialmente como de
mulheres na performance artística, Julha me trouxe algumas situações e reflexões que
reiteram a importância da localização do corpo no momento de abordar não só performance,
mas o corpo que performa a cultura drag. Performar um ser masculino, portanto, não o torna
um homem e, consequentemente, como um corpo que tem uma agência de maior poder
social. No entanto, o corpo socialmente visto como homem, uma vez performando o
feminino, tem uma maior aceitação, especialmente e principalmente dentro da sua
comunidade e entre os LGBTQI+. Uma das respostas de Julha foi Camaleon, a personagem
de sua drag queer, que tem uma performance que não seria identificável como pertencente a
um gênero em específico e permite um trânsito curioso entre diversas formas de aparições.
Comento com Julha sobre uma das performances de Camaleon que aparece como um
ser de quatro pernas usando saltos alto:

[Julha]: Essa é uma das performances mais interessantes em termos de


feminino, acho, que eu fiz. É uma crítica justamente a essa coisa de usar salto
alto, da drag usar salto alto. Então tem momentos que eu me questiono se a
arte contemporânea é um entretenimento, por exemplo. sabe? A performance
que eu fiz com o salto nas mãos e nos pés, várias pernas, digamos, surgiu da
inquietação de ‘ai que saco ter que usar salto alto’, e essa cultura do salto
alto, e aí surgiu essa performance que é um bichinho. A performance em si é
um lipsync [uma apresentação performática onde a pessoa dubla uma canção
pop] de uma música pop completamente de entretenimento. O look e o que
isso significa, e quando eu fui na rua com isso, pra mim já é arte
contemporânea. Não sei como chamar de outra forma. Daí vem esses
limiares. Mas assim, essa construção do Camaleon tá muito mais na ideia de
um ser sem gênero do que num binarismo de drag queen, drag king ou
feminino, masculino.

[Bárbara]: Até porque, eu venho pensando recentemente, a drag queen não é


uma mulher, né? Ela não é uma mimese da mulher porque a drag queen usa
uns batons hiper exagerado, o cabelo é gigante, o salto é 20, então o ser drag
é que muitas vezes o que as pessoas vão dizer por aí é ‘ah, essas pessoas que
imitam mulheres’, mas não é no sentido da mímese, né? É uma performance.
Você pega o atributo da feminilidade e exagera, acho até uma crítica, né?
Igual você falou, o salto…eu realmente não entendo muito desse universo, tô
aprendendo agora.

[Julha]: Isso é muito interessante, a grande questão é a seguinte: é um homem


fazendo isso. Então talvez seja muito mais interessante uma mulher brincar
com esses estereótipos do que pra um homem. E aí entra essa questão de
poder, de novo lugar de fala de quem tá fazendo. Tá, é um homem bicha,
beleza, qual a relação com a feminilidade dele? É super repressora também.
Então faz sentido ele estar ali fazendo isso, ao mesmo tempo ele não pode
esquecer que ele é um homem e aí que eu acho que entram as questões de não
entender o seu lugar e aí passar do limite. Em performances que eu considero
ofensivas, por exemplo, que eles não são limiares, que eu acho que só a gente
sendo mulher que a gente consegue entender. Na teoria acho incrível, mas aí

68
tem essas execuções que me fazem duvidar às vezes. Eu amo a cultura drag!
Não é uma crítica à cultura drag e sim ao que estão fazendo. A
responsabilidade. É uma responsabilidade tu lidar com esses temas.

[Bárbara]: Quais conexões e particularidades você vê entre a queen e o king.


Eles seriam partes muito distintas ou eles se interseccionam de alguma
forma? Quando você cria um, é muito específico, de um e de outro...eles
partem de um mesmo lugar? Eles são amigos? Eu lembrei de uma das
perguntas que eu fiz, que eu lembro que ficou muito na minha cabeça naquele
dia que você fez uma story falando de ter sido repreendida numa boate em
Nova York por fazer o queen, e o problema era com o drag queen, se você
tivesse fazendo drag king no lugar não teria a mesma leitura.

[Julha]: Mais ou menos. Meu grande problema é ser mulher, né, vamos ser
sinceros. Eles partem do mesmo lugar de discussão de gênero, só que
discutem de maneiras completamente diferentes. Eu me incomodo um pouco
com essa visão sempre, que vão me perguntar, essa visão binária. E sempre
que me perguntam é essa diferença de drag queen, de drag king, sempre que
me perguntam em relação a esse binarismo. Eu entendo porque é como o
mundo funciona e é como o drag tem funcionado, mas justamente o que eu
quero é quebrar com isso então talvez eu não consiga ainda, talvez por isso
que me perguntem dessa forma, mas...é interessante pra mim ver que sempre
chega no binário. A ideia do Camaleon por exemplo, é romper um pouco com
esse binário. É um personagem mais feminino? É, mas tenta romper com essa
questão de me olhar e das pessoas me perguntarem: o que que tu é? Tu é um
homem ou uma mulher? Pra mim é aí que tá o interessante. Esse
questionamento. Então o drag king ele surge assim como uma expressão de
masculinidade. É diferente do Camaleon? É, mas ao mesmo tempo é a mesma
coisa porque eu tô discutindo o gênero. Só que são estratégias diferentes.
Porque eu parei de fazer o Leon, porque não tinha público, porque por mais
que as pessoas achem legal, elas não veem isso como um grande
entretenimento, elas não veem o masculino como algo de entretenimento. Era
uma maneira de eu ganhar dinheiro, então é o feminino que vende. Então tá,
vocês querem que eu seja feminina, eu vou ser, mas assim eu não vou botar
uma peruca loira e um enchimento no peito e performar uma feminilidade,
jamais. Porque eu não acredito nesse feminino. então vamos fazer feminino
aqui: alegórico, porque me representa. Então surgiu como uma necessidade
de mercado e de expressão. Tem um lugar aqui muito famoso que se chama
Vitrô, é um lugar de show drag, clássico, tem tipo vinte anos, mas esse lugar
não me deixa mais performar porque eu sou uma mulher. Eles não me
chamam mais, e eu sou proibida de performar lá. Assim. Simples assim. Eu
nem fazia drag queen ainda, drag queer, que eu gosto de chamar, porque
brinca com esse termo. E eu fazia Leon, então era bem binário, lógica binária
e tal, modéstia parte acho que minhas performances eram bem interessantes,
sempre funcionava e não me chamam mais porque eu sou mulher. ‘Não quero
mulher cis aqui’. A comunidade drag é só homem e mulheres trans. Então
esse apagamento é uma coisa que eu reflito muito, sabe? Ai sim, é
relacionado a mulher fazer drag queen, como se não fizesse sentido e eu acho
que na cabeça dessas pessoas não faz sentido porque a dificuldade do drag
seria a transformação para outro gênero, então quando uma mulher faz drag
não faz sentido porque ela já é uma mulher, então na cabeça das pessoas é
isso, mas eu não vejo drag como uma transformação de um gênero pro outro,
então meu problema é o pensamento não binário em relação à isso. Ou o
problema é o pensamento deles ser binário. Então sempre é um problema,

69
drag queen, drag king, drag queer, sempre é um problema uma mulher
fazendo.

“Postura”, 2019 - videoperformance de Julha Franz interpretando Camaleon,


foto de seu Instagram

O binarismo enquanto uma categoria colonial (LUGONES, 2010) que


necessariamente visa a segregação, aqui, reitera seus espaços de poder dentro das
performances dissidentes. Apesar da delicadeza ao tratar-se do assunto, considerando o
conservadorismo presente na sociedade, localizo especialmente o funcionamento e regulações
da performance drag dentro das suas comunidades específicas e sob o olhar de Julha Franz.
Em março de 2018, Rupaul, a drag apresentadora do icônico programa Rupaul’s Drag
Race, afirmou em entrevista ao The Guardian que “Drag perde o sentido de perigo e de
ironia, uma vez que não é feito por homens”. Sobre mulheres trans, afirmou,

Provavelmente não. Você pode se identificar como mulher e dizer que está
em transição, mas muda quando você começa a mudar seu corpo. Vira uma
outra coisa, muda todo o conceito do que você está fazendo. Tivemos
algumas meninas que tiveram injeções no rosto e talvez um pouquinho no
14
bumbum aqui e ali, mas elas não fizeram a transição.

14
“Rupaul dispara contra mulheres como drags: ‘Perde o sentido’”, notícia do Observatório G, do Portal Uol
https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/rupaul-dispara-contra-mulheres-como-drags-perde-o-sentido -
Acesso em 11 de janeiro 2020

70
No dia seguinte, em sua conta do Twitter, Rupaul se desculpou, porém falando
especificamente das mulheres trans, “a comunidade trans é feita de heróis do nosso
movimento LGBTQ”15. A apresentadora não mencionou mulheres cis ou homens trans. Em
dezembro de 2020, quase três anos após sua declaração, seguido do pedido de desculpas, o
programa admitiu pela primeira vez o ingresso de um homem trans como participante.
Observando o depoimento de Julha em contraste com as declarações e o repertório do
famoso programa, compreendemos um pouco ainda o funcionamento dentro destas
comunidades. Ainda que seja uma comunidade que visa a quebra de alguns estereótipos de
gênero, e desafia a norma vigente perante uma sociedade machista, ainda opera numa lógica
binária que separa ainda os papeis sociais de homens e mulheres, ou seja, o ser socialmente
lido como mulher que nasce com uma vagina é condicionada à feminilidade, portanto o ato
da performance drag não seria uma quebra ou uma subversão o suficiente.

Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma


transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida.
Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e
colocam em questão, por esse motivo, os regimes de representação política,
mas também os sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”.
Nesse sentido, as políticas das multidões queer se opõem não somente às
instituições políticas tradicionais, que se querem soberanas e universalmente
representativas, mas também às epistemologias sexopolíticas straight, que
dominam ainda a produção da ciência. (PRECIADO, p. 18, 2011)

Sendo assim, como irei descrever e discorrer mais adiante, a ruptura com o
pensamento binário se torna fundamental ao pensar nos corpos dissidentes e também numa
perspectiva decolonial. Sob meu ponto inicial, que é o corpo lido socialmente como mulher
no espaço performático, sim, ainda têm atravessamentos distintos, mas não apenas por uma
sociedade patriarcal e misógina, mas principalmente pelo sistema binário de gênero e o
entendimento deste binarismo para julgar os corpos.

A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no


capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”,
as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e de feminilidade,
as identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder,
fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das
identidades sexuais um agente de controle da vida. (PRECIADO, p. 11, 2011)

15
“Rupaul pede desculpas por dizer que não permitiria mulheres trans no programa”, notícia do Observatório do
Cinema, Portal Uol https://observatoriodocinema.uol.com.br/series-e-tv/2018/03/rupaul-pede-desculpas-por-
dizer-que-nao-permitiria-mulheres-trans-no-programa - Acesso em 11 de janeiro 2020

71
A estratégia colonialista neste sistema é perversa e igualmente rasteira, pois penetra
em comunidades pró diversidade e que se dizem combatentes ao machismo, mas que reiteram
papeis sociais, não apenas diferenciando homens de mulheres ou masculino de feminino, mas
também heterossexuais de homossexuais, casados de solteiros, brancos de negros. Sem a
compreensão da inserção destes corpos com todas as suas leituras atravessáveis no seu
contexto, cai-se no simplismo binário que ocupa tantas páginas entre o “universal” do
“outro”.

Contexto e pertencimento

Assim como no caso de Tao, meu interesse pelo trabalho de Julha foi facilitado pela
internet. Pesquisava sobre artistas que fizessem uma performance que tivesse como tema
gênero, sexualidade e afins. Entrei no site da Galeria Vermelho na aba da Mostra VERBO,
uma mostra de performance anual com curadoria de Marcos Galon desde 2005. Havia uma
chamada aberta em que quase todos os inscritos seriam contemplados em expor sua
apresentação. Foi o caso de Julha Franz no ano de 2017. Me deparei com Mulher-Espinho,
performance em que ela se cobre com tachinhas, e outras vezes com pregos, expressando a
repulsão dos corpos femininos pelo assédio dos homens. Pesquisei sobre o trabalho dela e
encontrei seu website, e de início não me ficou claro se ela era brasileira por conta de sua
formação em Buenos Aires, mas continuei investigando seu portfólio online e vi várias outras
performances, inclusive de drag king, o que me interessou mais ainda.
Fiz o projeto de mestrado sem me comunicar com Julha, diferentemente do que
aconteceu com Tao. Escrevi para Julha pela primeira vez por e-mail em abril de 2019, pouco
mais de seis meses após ter meu projeto aprovado na pós-graduação. Prontamente ela aceitou,
e estava se preparando para viajar à Nova York por conta de uma bolsa de estudos em
performance. Passamos alguns meses apenas trocando mensagens, até que fizemos uma
videochamada no mês de junho de 2019. Ela estava nos Estados Unidos, contei do meu
projeto, que foi bem recebido, e alinhamos as datas em que ela estaria de volta. Foi quando
planejei minha viagem a Porto Alegre.

72
“Leon”, drag-king de Julha Franz, s/d (Reprodução)

Cheguei em Porto Alegre em setembro de 2019 e fiquei duas semanas. Me encontrei


com Julha no segundo dia, num café. Ela não estava muito bem emocionalmente, segundo
ela, o que me fez falar muito mais do que ela, quando na verdade eu estava lá pretensamente
para escutá-la. Ela perguntou da oficina de performance que ministrei dias antes em
Curitiba16, e fui falando até que isso foi dando abertura para que ela falasse mais comigo. Não
gravei a conversa, não era entrevista, eram impressões. Eu falei isso pra ela, que queria que
fosse algo de impressões ao menos naquela primeira conversa e que depois teríamos
entrevistas.
Falamos sobre a performance não ser definível, sobre as relações com o teatro e como
ela receia fazer essa intersecção. Me contou da performance que faria no dia seguinte, que era
algo com texto decorado, “seria isso performance?” “Performance nunca responde nenhuma
pergunta.” Gostei muito de um termo que ela usou: contexto. O nome que ela deu ao que eu
chamo de público. Ela não vê como público e sim como contexto: porque não são só as
pessoas que veem, mas também onde, em que espaço. Isso ficou muito redondo pra mim, não
só na performance, mas pra muitas coisas na vida. Por fim, tocamos em assuntos importantes
como lesbianismo e branquitude, ambos temas que ela quer tratar melhor nas suas
performances. Durante minha estadia consegui estar presente em alguns eventos em que ela
se apresentou, e um deles seria logo no dia seguinte de nossa conversa no café.
A performance, no dia seguinte, 25 de setembro, ocorreu no La Photo Galeria, num
evento chamado “Escuta Clandestina”. Clandestina é uma revista de discussões artísticas e

16
Em setembro de 2019 ministrei uma oficina de quatro dias chamada “Mulheres Perfomers BR” na Caixa
Cultural de Curitiba, que trazia um panorama das mulheres dentro da arte da performance no Brasil, dos anos
1960 até a contemporaneidade.

73
naquele dia eles tinham como tema “A censura na Arte”. A performance de Julha consistia
em ela lendo um texto em papeis vermelhos diante de um microfone e, a cada página que lia,
arrancava as folhas e as jogava. Usava terninho e tinha as orelhas pintadas de vermelho. O
texto era um discurso sobre corpos dissidentes, onde citava Bacurau, cu, buceta, pinto.
Conforme ela ia falando essas palavras, uma musicista, ao lado, ia colocando umas
interferências na voz dela, até que ela precisasse falar mais e mais alto. No fim, ela deu um
grito silencioso.
Em seguida, ocorreram falas sobre censura na arte por jornalistas, cineastas e artistas.
A composição do debate era de dois homens e duas mulheres, todos brancos. Eu não assisti
tudo porque fui socializar com a Julha do lado de fora. Dividimos umas cervejas, falamos
sobre o governo vigente e a censura. Ela contou sobre sua avó que foi perseguida pela
ditadura, teve casa revirada, livros saqueados e acabou votando no Bolsonaro no primeiro
turno. Depois do evento, fomos juntas com uma artista e cantora, Valeria, que também
performou no evento, para a boate Work Room, boate onde Julha trabalhou com direção de
arte. No dia, ocorria um show de drags com tema da Whitney Houston, temática por conta do
setembro amarelo, campanha de prevenção ao suicídio, e em decorrência da morte da cantora
ter sido o suicídio. Foi um show incrível feito por três drags.
A Julha é muito conhecida, querida por todos e uma das drags da casa. Me contou que
dava muito trabalho trabalhar lá, tinha muitas responsabilidades, mas se sentia numa situação
boa em poder conduzir trabalho de vários homens para apresentação, ainda que incomodasse
ela ser a única mulher da casa. Pediu um aumento pela demanda de trabalho, que não rolou e
ela então decidiu sair. Seus colegas que estavam se apresentando sempre faziam brincadeiras
com ela, a chamando de “nova-iorquina” em alusão à viagem recente que fez a Nova York
com a bolsa que ganhou. A casa contava com duas drags negras que faziam piadas sobre
branquitude, e que tinham uma ênfase bastante politizada.
Quando me programei para ir a Porto Alegre pensei em duas semanas para ter uma
mobilidade maior na agenda de Julha Franz, não precisar ficar insistindo muito e dando um
espaçamento de dias para nossos encontros. Depois, já comecei a achar que tinha exagerado
ao colocar duas semanas, que era muito tempo, tempo demais... e então, novamente, a minha
ideia inicial pareceu fazer sentido, mas um sentido muito maior: foi preciso esse tempo
pequeno, porém grande, para compreender um pouco melhor a artista. Parece algo óbvio
dentro do contexto antropológico: o antropólogo precisa estar um tempo no local onde quer
pesquisar para formular suas questões. No entanto, isso não é tão claro quando se pesquisa

74
algo tão próximo da minha realidade. Artistas, a cidade, jovens, mulheres, pessoas brancas, é
tudo um pouco do que sou também.
Fui surpreendida ao passar duas semanas em Porto Alegre porque as pessoas têm
coisas a nos dizer sobre elas mesmas, sobre a cidade que vivem, e quando sabem que você é
de fora, o que fica em evidência são nossas diferenças. Como vocês chamam cerveja? Como
que fala pra dar um passeio? Aqui tem muitos tipos de restaurante de buffet livre, não é?
Quem é o prefeito da cidade? Em quem a maioria das pessoas votam? Você sabe preparar um
chimarrão? Essas coisas. E me perguntavam, sempre: Por que você veio aqui? Está passeando
ou trabalhando? Você não vai ficar, né? Você está gostando daqui? O que você já fez até
agora na cidade? Eu ficava pensando como deve ser em lugares ainda mais diferentes, como
outro país ou uma sociedade diferente dos nossos modos do Ocidente, como uma comunidade
indígena. O interesse pelo forasteiro. Querendo ou não, antropólogos podem (e devem) trazer
todas as autocríticas, mas sempre serão forasteiros, e a primeira coisa que me vinham
questionar é: Por que você está interessada nisso? Ou seja, o que move sair da minha cidade,
do meu conforto e ir até um lugar diferente. A partir disso pude refletir sobre questões
bastante pertinentes a respeito da vivência do meu corpo em Porto Alegre, assim como os
depoimentos que escutei das pessoas que cruzaram meus caminhos, e, claro, de Julha Franz.
Porto Alegre é uma província, como todos preferem falar, e isto ficou explícito. Por
definição, província é uma subdivisão de um país. O Rio Grande do Sul é o estado daqueles
que escolheram, em algum momento da história, se separar do restante do país, na famosa
Revolta da Farroupilha. Em todos os lugares isso é lembrado. Não apenas em espaços
turísticos, mas é muito forte e enfatizado a cultura local. Talvez eu tenha me surpreendido
levando em consideração que São Paulo, no limite, é um múltiplo de culturas onde não existe
“O Paulistano”. Acredito que o mais próximo do paulista, em estereótipo, seria o italiano do
bairro da Móoca ou do Bixiga que, ainda assim, não é um paulistano, e sim um imigrante que
mais exalta a cultura do seu país ancestral do que o que foi construído aqui. Para mim, o
paulistano é o que vive nas periferias desde criança. Itaquera, Grajaú, Capão Redondo,
Pirituba. Atravessar a cidade de transporte público para chegar ao trabalho, assim como
também às atrações culturais, para ir ao médico, para resolver burocracias. Ficar na periferia
para fazer churrasco com os amigos, ter uma praça ou lugar para se encontrar, ruas onde
ninguém anda na calçada. Em Porto Alegre, o estereótipo gaúcho está relacionado muito com
a figura do passado colonial. O homem viril descendente de europeu que gosta de chimarrão,
carne e fala “bah, tchê!”. No entanto, não só essa imagem é ressaltada com muita potência,
mas a ideia de ter uma ancestralidade, de ter uma raiz, estar atrelado a algo que veio de antes
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acaba por ser muito forte. Digo isso porque nos meios que circulei, as pessoas em sua maioria
são jovens, mulheres, LGBTQI+, vegetarianos, e não reproduzem o estereótipo gaúcho. No
entanto, curiosamente, carregam em si algum resquício disso, com esse sentimento de
apreciação da cultural local. Algo que dificilmente vejo em São Paulo. Por mais que
tenhamos nossos lugares para sair, onde comer, o que comer, que lugares visitar, não tem
esse sentimento “tenha essa experiência, pois ela é única”. O que eu sentia em Porto Alegre é
que as experiências locais eram especiais e únicas, motivos de carinho, ligação com algo
afetivo, para além dos pontos turísticos básicos. Me lembro de passar na frente de uma
escadaria, a Escadaria da Borges, com duas colegas, e elas dizerem que ali era uma linda
paisagem, uma delas até ter mencionado algo como um dos locais com a vista mais bonita da
cidade. De fato, muito bonita, lembro que disse que parecia a vista da Avenida Nove de julho
em cima do Viaduto do Chá, porém mais bonita e com uma sensação de segurança maior do
que no centro de São Paulo. “Quer tirar uma foto?” eu ri e disse que não. “Tira! É um lugar
tão bonito da cidade, você tem que ter uma foto daqui”. Aceitei e deixei que ela me
fotografasse.

eu e Anna na escadaria, 2019

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Detalhe curioso desta foto é que na bicicleta da Anna tem um adesivo escrito “Pedale
como uma guria”. Assim como vi em algumas camisetas “Lute como uma guria”. O fazer
questão de substituir o “mulher” ou “garota” pelo clássico “guria” local. Fui conhecendo aos
poucos uma parte muito privilegiada de Porto Alegre. Rondei pelos bairros da Cidade Baixa,
Bom Fim, Centro Histórico e lá conheci algum destes pontos “imperdíveis”: bares,
restaurantes, cafés, paisagens para se sentar e ficar apreciando, parques, praças, o famoso Rio
Guaíba, a “praia” do gaúcho. No único domingo que estive na cidade, fui em um bloco de
carnaval dito por todas as pessoas, unânime, que conheci e que conheciam o bloco como algo
imperdível, incrível, uma experiência a se viver. Todos me perguntavam se eu ia, que eu
devia ir. De fato, é um bloco muito excepcional, diferente dos que conheço em São Paulo.
Igual em som, composição, no entanto a proposta de interação com o público, os jogos e o
lúdico tinham a sua excepcionalidade. Inclusive, no meio do bloco entre pulos e cerveja,
encontrei Julha Franz. Me surpreendia sempre este discurso do “imperdível”.
Neste dia do bloco, à noite, fui ver a fala de Julha Franz num evento de
empreendedorismo LGBTQI+ promovido por um coletivo. Foi neste evento que percebi que
tudo isso que acabo de descrever não era uma mera impressão. Uma fala de uma das
mulheres do evento era sobre o porto-alegrense não ter o hábito do “happy hour”, que ele sai
do trabalho e precisa ir pra casa tomar banho, se arrumar e então sair. Achei engraçado, já
que em São Paulo nem cabe a ideia de voltar pra casa, todos saem direto dos trabalhos para a
mesa de bar, restaurante ou o encontro que for. No entanto, essa pequena observação da
debatedora criou uma questão entre as pessoas que estavam no evento ao verem como
problemático o “pensamento provinciano”. A conclusão mais próxima daqueles que estavam
no evento é que o porto-alegrense se importa muito com sua aparência e reputação, já que lá
os círculos sociais são pequenos, restritos, todos se conhecem, além de ser necessário manter
hábitos que tenham relação com uma boa reputação. Uma mulher que foi assistir o debate
comentou sobre mulheres irem de salto alto em bares de rua e concluiu com “os olhares
porto-alegrenses são muito interioranos”. Com isso a percepção do trabalho de Julha Franz
não exatamente mudou, mas me fez ter uma atenção especial para muitas questões da
pesquisa. A constatação que me ocorria de que algo muito diferente do que conhecia existia,
ia tomando forma. Uma dessas questões é quando Julha fala sobre o tal “contexto”, e como a
formação de relações da cidade interfere no seu corpo performático:

[Julha]: Eu não penso muito no público. Eu penso em risco. Porque pra mim
performance é colocar o corpo em risco de alguma forma, de alguma

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maneira, mesmo que não tenha um risco evidente, existe um risco de
exposição, depende muito da ação. Então eu penso muito nos riscos dessa
ação, da receptividade do público. Pra mim é muito um processo do que eu
quero expressar e o público vem numa segunda instância. Normalmente
depois da performance é que eu vou pensar mais no público, de me aprimorar
ou não. Na hora que nasce não é um pensamento que me vem. Quando é ação
em via pública a única coisa que eu penso é o quanto eu posso me arriscar –
de novo o risco – e o quanto as pessoas são loucas ou não, e tentar entender o
espaço onde eu tô, muito mais do que as pessoas. Sobre público, por vir de
uma cidade bem provinciana, como você tá vendo, que é Porto Alegre, se eu
for pensar muito no público eu não faço nada. Real assim, não faço nada. Eu
lembro muito quando eu comecei tudo que eu sofri de julgamento, e de
pessoas falando, e eu acabei ignorando isso pra não ter isso na minha mente,
tipo cara, vou fazer o que eu acredito e o resto vem depois.

A passionalidade que o porto alegrense tem por sua cidade me trouxe de volta a São
Paulo com vontade de explorar mais as ruas, as atrações, o que a cidade tem a oferecer, que
não é pouco. Longe de querer romantizar essa relação, creio que o sentimento de província
tem dois lados, um que realmente é problemático, o conservador, racista e machista, mas
outro que cria um grupo coeso e coerente, principalmente quando são as minorias, os artistas,
os corpos dissidentes. Corpos que se parecem com o de Julha Franz.
Dito isso, há uma dicotomia entre o pertencer e o rejeitar que atravessa o trabalho de
Julha e me traz reflexões em paralelo ao trabalho de Tao Bruni. O nascer num lugar onde as
relações já estão dadas, a passabilidade, ou seja, a aceitação de seu corpo circulando é maior,
o circular das ruas é aceito, os locais como boates ou baladas serem acessíveis, coloca Julha
em um lugar de visibilidade desde o princípio da sua jornada como artista. É importante
considerar que o nascer branca e de classe média a coloca no circuito de uma forma muito
mais fluida, onde as relações foram se dando uma em consequência da outra. A jovem Julha
que discotecava nas baladas, a drag que se apresenta no Work Room, o cargo de direção nesta
boate, as performances autônomas, o ingresso no curso em Buenos Aires, a bolsa de estudos
em Nova York.
Por outro lado, há uma forma disruptiva no meio de tudo isso: Julha rompe com sua
família e com o meio onde foi criada para praticar sua performance. O pertencimento não é
de família ou de hábitos provincianos, mas pensando que o sistema hegemônico é a
branquitude, a aceitação destes corpos se dá com maior facilidade. Uma aceitação que não é
apenas externa: Julha não descreve o auto questionamento e dúvidas acerca de seu potencial e
auto estima como coloca Tao Bruni. A aceitação de seu próprio trabalho é também a porta de
abertura.

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Silêncios e brados retumbantes

Na última semana em que estive em Porto Alegre, Julha me convidou para ir ao seu
apartamento. Na época estava trabalhando para abertura da sua exposição, O Grito, na
Fundação Ecarta, com curadoria de Henrique Menezes, e ainda precisava gravar uma
performance para enviar ao seu curador. Sabendo do meu interesse, Julha me chamou para
entrevistá-la no mesmo dia que iria gravar a performance, em sua casa, me permitindo
assistir. Infelizmente não consegui ver a abertura da exposição. Marquei a viagem para
conseguir acompanhar a abertura, mas fora remarcada quando já tinha marcado a viagem. No
entanto, tive esta oportunidade de ver a gravação da performance. Todos os dias que passei
em Porto Alegre fazia muito sol, mas neste dia choveu muito. Quando cheguei no prédio de
Julha, molhada, não tinha energia elétrica. Chegamos em seu apartamento e subimos ao
quarto, onde ela se montava para drag queer em uma performance que ainda não tinha nome,
mas ela, vestida de drag, cantaria o hino nacional em inglês. Conversamos por cerca de duas
horas durante o tempo em que ela estava se montando e arrumando as coisas para gravar a
performance. Quando chegou o momento da gravação, ela pediu:

[Julha]: É... assim ó: meu rolê de gravar performance ele é bemmm solitário,
tá? Então eu vou ignorar tua existência, assim ignorar mesmo, senão eu não
vou conseguir. Aí tu fica no cantinho, tá, senão eu não consigo entrar na vibe.
Quando a gente descer, aí a gente já se despede. A gente pode conversar
depois, óbvio. Só pra esse momento, porque eu realmente preciso estar bem
eu.

Julha Franz se montando para gravar a performance, 2019 - fotografia que eu mesma fiz

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Em sua sala, que é um conjugado junto com a cozinha, Julha liga a câmera e se
despede de mim com um aceno. O gato dela se acalma e fica em silêncio. Julha veste uma
peruca, uma roupa colorida e uma maquiagem forte. Minha memória do seu traje talvez seja
um pouco deturpada: a performance final, que foi para exposição e também para as redes
sociais não é a mesma que eu vi sendo gravada. A performance foi a mesma, mas a gravação
foi diferente, com outra roupa e maquiagem. No dia ela usava uma maquiagem que consistia
em uma pintura vermelha no meio do rosto, com detalhes colados no rosto, próximo aos
olhos e à boca. A roupa era verde e amarela, de corpo inteiro, como se fosse um macacão de
lycra colado ao corpo. A peruca era uma espécie de cabelo feito de tule, que dá um ar
esvoaçante como se fosse um véu. A gravação final manteve a mesma peruca, mas o macacão
mudou para um preto brilhante e a maquiagem que lembra a de seu drag king, com bigode e
sobrancelhas arqueadas. O fundo é um tecido vermelho aveludado. Canta na frente da câmera
um trecho do hino nacional brasileiro em inglês. No entanto, termina dizendo “Dear nation...
Brasil” falando ‘Brasil’ com a pronúncia fonética do português. Ela grava sucessivas vezes,
confere na câmera e volta a gravar. Quando acaba de cantar, nas muitas vezes que grava, o
corpo está trêmulo e a mão fechada em punho. A mão se abre aos poucos. Curiosamente sua
geladeira começa a fazer barulho só depois que ela termina de gravar.

câmera posicionada para gravação na casa de Julha, 2019 - fotografia que eu mesma fiz

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Julha conta que a performance “Brado Retumbante” é ‘uma crítica à americanização,
um grito sobre o corpo queer latino, a denúncia da perda de identidade.’ Julha diz que
ninguém canta o hino sozinho, portanto ironiza através deste corpo dissidente, que não tem
uma identidade nem masculina, nem feminina, portanto, queer, o canto do hino, nacionalista,
porém com uma nação que se constrói através de diversos discursos estrangeiros,
colonizadores e americanizados. Neste sentido, os corpos latinos são destituídos de sua
identidade.
A articulação desses temas em torno da americanização dos corpos, me trouxe a
reflexão em torno da própria palavra queer, palavra norte-americana importada para nossos
saberes acadêmicos e artísticos. Sob este pensamento, trouxe à luz a reflexão de Larissa
Pelúcio em Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?

Assumir que falamos a partir das margens, das beiras pouco assépticas, dos
orifícios e dos interditos fica muito mais constrangedor quando, ao invés de
usarmos o polidamente sonoro queer, nos assumimos como teóricas e
teóricos cu. Eu não estou fazendo um exercício de tradução dessa vertente do
pensamento contemporâneo para nosso clima. Falar em uma teoria cu é acima
de tudo um exercício antropofágico, de se nutrir dessas contribuições tão
impressionantes de pensadoras e pensadores do chamado norte, de pensar
com elas, mas também de localizar nosso lugar nessa “tradição”, porque
acredito que estamos sim contribuindo para gestar esse conjunto farto de
conhecimentos sobre corpos, sexualidades, desejos, biopolíticas e
geopolíticas também. (PELÚCIO, 2014, p. 4)

“Brado Retumbante”. Julha Franz, 2019 - Foto de seu Instagram

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Julha Franz tem outro lugar de silenciamento, que não diz respeito a fala e linguagem,
como ocorre com Tao, mas de não expressar livremente sua sexualidade e performance de
gênero. Os questionamentos da sua categoria de gênero, a ênfase na existência lésbica, entre
outras dissidências, é questionada pela performance quando leva para o corpo as aparições
que não são socialmente aceitas pela hegemonia.
Em muitas ocasiões, ela diz que a performance e os personagens que cria são uma
expressão do seu verdadeiro eu, enquanto seu corpo muitas vezes não comunica esta sua
verdadeira subjetividade. E é este o lugar que a leva a fazer e desejar suas modificações
corporais, para que representem o que lhe é mais real e verdadeiro. A performance, então,
sendo um encontro consigo mesma. Neste sentido, podemos pensar na existência queer e
dissidente não apenas como uma inconformidade com a norma, mas uma reiteração física,
visual e literal de que este não é o lugar que se deseja ser ocupado. O corpo que é
reconhecido pela norma foge deste padrão através das suas modificações. O corpo ciborgue
que deseja romper com os binarismos. Julha assim o faz por meio de suas criações
performáticas.
A performance enquanto ritual é reforçada na narrativa de ambas as artistas. O ritual
enquanto momento de suspensão, o limiar, o entre, e o espaço “seguro”. Se pensarmos no
ritual enquanto uma homenagem, passagem ou até mesmo uma festa, é uma atividade que
tem como possibilidade despir os sujeitos de suas funções sociais: “As pessoas estão
despojadas de suas antigas identidades e lugares determinados no mundo social”
(SCHECHNER, 2012, p. 63). O objetivo no ritual é que, individual ou conjuntamente, os
seres vivam para um momento particular da expressão do que fortalece os laços da
comunidade. Se pensarmos nos rituais de passagem de sociedades como a reafirmação de sua
tradição, dos antepassados, renovação da memória ou celebração – como por exemplo, a
circuncisão de um bebê judeu, a entrega de um diploma na formatura, a elevação de status
religioso –, a performance-arte passa pelo corpo também como um lugar de reafirmação de
discursos que são importantes e relevantes para as sujeitas que performam mas,
consequentemente, para todas que compartilham da sua experiência, no caso a experiência de
ser uma pessoa negra, ou lésbica, queer, dissidente. “Uma transformação que está tomando o
espaço”, como diria Richard Schechner (idem, p. 64).
A performance, portanto, é ao mesmo tempo uma materialização simbólica e corpórea
das opressões que esses corpos vivem por questões raciais e sexuais, mas também a
enfatização deles. O que ocorre no espaço liminar da performance, a suspensão, é reforçado e
enfatizado (SCHECHNER, 2012). Ainda que seja na arte da performance onde as artistas
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podem expressar suas dores, incômodos e silenciamentos, é também neste lugar que
encontram seu poder e a reiteração de seus discursos. Como quando Tao diz “minha fala é
toda focada de medo, de insegurança, meu corpo traz isso, mas ao mesmo tempo tem uma
potência forte do outro lado” se liga diretamente às reflexões de que a performance é um
espaço “entre” sem o discurso da totalidade:

O trabalho da fase liminar é duplo: primeiro, reduzir aqueles que adentram no


ritual a um estado de vulnerabilidade, de forma que estejam abertos à
mudança. (...) Durante esse tempo, elas estão literalmente desprovidas de
poder e, muitas vezes, de identidade. Segundo, durante a fase liminar, as
pessoas internalizam suas novas identidades e iniciam-se em seus novos
poderes. (SCHECHNER, 2012 p. 63, grifo meu).

Por outro lado, podemos refletir que somente o estado de vulnerabilidade e a


possibilidade do acontecimento em aberto pode tornar possível a tomada da potência. As
performers não sabem o que pode acontecer ao longo do curso, mas entram num estado de
concentração que permite a vulnerabilidade, que se deixe desvelar aquilo que só o corpo,
orgânico, desmantelando a racionalidade excessiva, pode revelar. A concentração também se
torna possível com seus artefatos “de poder” como a máscara, a orelha pintada e a persona
drag.
Algo importante a ser elencado pensando na experiência de Tao Nare e Julha Franz é,
como colocado anteriormente, o fator da linguagem verbal e escrita ao longo do processo de
construção das suas performances e expressões artísticas. Dentro disso, podemos pensar
criticamente sobre a racionalidade excessiva enquanto hegemonia universalista. Tao aponta,
como já dito anteriormente, a sua dificuldade com as palavras, tanto escritas como faladas. A
sua expressão é muito mais produtiva em processos visuais, fotografia, desenho e, por fim, a
dança e performance. No entanto, esta descoberta de onde se expressar não é uma resolução.
A dificuldade de expressão com as palavras o coloca limites em muitos momentos, como na
hora de nomear seu trabalho, conseguir falar sobre o trabalho e seus processos, montar sua
autobiografia, entre outros. Entendendo que dentro do meio artístico existe a valorização do
artista que saiba se impor, se colocar e se auto descrever, Tao continua encarando estes
limites com a palavra. Como já dito anteriormente, não pretendo comparar Tao e Julha, tendo
em consciência suas existências e contextos tão díspares, mas justamente pensar nos
contrastes das experiências.
No segundo encontro que entrevistei Tao, trouxe muitas questões que tinha em mente
desde a oficina que ele havia ministrado em abril de 2019. Fiz a entrevista nas primeiras

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semanas de agosto de 2020 por videoconferência, de quarentena e em contexto pandêmico, e
ele pôde partilhar algumas de suas inquietações que envolviam justamente os processos de
escrita e verbalização. Tao reconhece que o fato de não ter concluído um curso universitário e
a falta de habilidade, que ele mesmo julga, com as palavras o coloca em um processo de
defasagem em relação ao meio artístico.
Sendo assim, considero importante continuar pensando que a construção do processo
performático – que a princípio visa apenas a construção e expressão corporal –, também
passa pelo contexto de precisar ser recorrentemente conceitualizado, explicado e legitimado
via instituições. E a potência subversiva do corpo, ainda assim, ainda cabe à algumas
narrativas hegemônicas. Em outras palavras, se o artista da performance e do corpo – e outras
formas de expressão também, como o caso da fotografia e desenho de Tao, e as esculturas de
Julha – deseja viver de sua produção artística, este mesmo artista precisa ter uma articulação
da linguagem verbal.

“Fronteiras”. Julha Franz, 2019 - foto de seu Instagram

Me detenho ao simples fato de Julha, no início de sua descoberta com a performance,


ter enviado uma carta de aceitação para Universidad de Buenos Aires, e mais adiante, ter
enviado a proposta de sua performance para a Mostra VERBO. Uma série de processos em
que o poder da palavra escrita e verbalizada, a formalidade e os formulários a serem seguidos
atravessam a possibilidade de seu trabalho. Pensando nos atravessamentos que os corpos têm
na arte da performance, este é um dos fatores. Os ‘obstáculos’ ou lugares a serem passados
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para que a performance aconteça e a importância de verificar de quais corpos se fala quando
se fala de performance. A burocracia das instituições acaba sendo um fator para que Tao
desanime, por exemplo. Para além de pensar o racismo como um evento, é importante
salientar as estruturas do racismo estrutural e as bases da branquitude e seus sistemas de
legitimação, como por exemplo a linguagem escrita e falada necessária para adentrar as
instituições.
Uma das questões a se pensar sobre sistemas de legitimação é, como coloca Leda
Martins (2003), o fato de que ao longo da história do pensamento e da literatura brasileira se
valoriza a retórica europeia dos arquivos textuais:

Nessa ordem, o domínio da escrita torna-se a metáfora de uma ideia quase


exclusiva da natureza do conhecimento, centrada no alçamento da visão,
impressa no campo óptico pela percepção da letra. A memória, inscrita como
grafia da letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visão
mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento. Tudo que
escapa, pois, à apreensão do olhar, princípio privilegiado de cognição, ou que
nele não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja, fora de nosso campo de
percepção, distante de nossa ótica de compreensão, exilado e alijado de nossa
contemplação, de nossos saberes. (MARTINS, 2003, p. 64)

Nesta perspectiva podemos pensar sobre o privilégio de um certo saber localizado na


produção de conhecimento de corpos dissidentes de acordo com suas experiências
específicas. No entanto, o pensamento hegemônico dominante não valoriza o corpo e a
oralidade como espaço de memória, e é isso que torna a performance, por si só, como uma
arte dissidente, pois ela não pode ser documentada e eternizada a princípio. Por outro lado, a
artista que performa e não reitera os discursos textuais tende a ficar marginalizada. A retórica
branca e europeia permanece até mesmo quando o tema são as artes do corpo ou sensoriais.
Especialmente este é um ponto quando visto a trajetória de Tao em relação a Julha.
Considerando jovens da mesma idade e com interesses parecidos, entendo que a questão de
gênero, como coloquei a princípio, se torna um fator que não pode ser cruzado nesta
experiência porque as categorias não funcionam como hierarquias. A experiência do gênero
nos corpos a depender da raça se dá de maneiras diferentes ao longo do repertório da
experiência de vida e, consequentemente, no fazer performático. São fazeres que são
atravessados pelo fator subjetivo do sistema da branquitude que começa por uma questão de
linguagem que, retomando Kilomba (2019), legitima quem pode e quem não pode falar, ou
quais discursos são assimilados.

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No entanto, a potência política da performance permanece a partir do momento que é
uma escolha decolonial a valorização do fazer do corpo em detrimento da fala, como é a
escolha de Tao. Como Tao coloca, é preciso negociar com as instituições, saber falar e
apostar em estratégias para se inserir.
A intersecção no trabalho da performance observável em ambas as artistas, portanto,
se torna possível na potência política da performance em relatar as subjetividades. Muitas
vezes, subjetividades que estão para além de denúncias sociais e políticas. Como Tao coloca,
não interessa a ele falar o tempo todo sobre o racismo e demais formas de opressão, mas
também de poéticas de outra ordem. Ainda assim, Julha, por exemplo, ao exercer a
performance como um lugar da liberdade no que tange as pautas da sexualidade e do gênero,
coloca no corpo toda a possibilidade de ser, independente das demarcações normativas de seu
corpo.

Espinhos

Na performance Mulher-Espinho, Julha preenche todo o corpo nu com tachinhas


viradas para fora, e em outras versões com parafusos, cerca de 2.500 ao todo. Ao fundo, uma
caixa de som toca barulhos de “fiu-fiu” e outros assédios que homens fazem com mulheres na
rua ou em espaços públicos. No que Julha escuta esses sons, seu corpo vai envergando pra
baixo, até que se torne insuportável. Ela volta pra posição inicial e começa tudo de novo. A
performance tem cerca de 5 horas de duração. Sendo um trabalho que vai tratar também do
flagelo e da dor – como Tao, em Todo meu amor –, Julha escolhe tratar do flagelo simbólico,
através da fala de outros, o assédio externo, e se utilizando de aparatos que colocam os
“espetos” para fora. Enquanto Tao inflige a dor em seu próprio corpo através dos flagelos,
Julha já parte deste corpo traumatizado que se coloca na defensiva.

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“Mulher-Espinho”. Julha Franz, 2017 (Reprodução)

Tocamos no assunto desta performance quando falávamos sobre o público, como que
eram as apresentações de acordo com os lugares e que resposta que se dava a cada contexto:

[Julha]: E aí eu fiz isso em Uberlândia num festival muito massa, numa


universidade de Uberlândia pra pessoas assim, que enfim, são da área e um
boy começou a fazer ‘psiu psiu psiu’ ao vivo e começou a se aproximar de
mim. Então ele começou a repetir, exatamente... assim, foi bizarro! Foi
bizarro! E aí eu tive que reagir e ele começou a vir na minha direção e eu
comecei a ir na direção dele, então comecei a me movimentar, coisa que não
existia na performance, mas foi minha forma de reagir, eu cheguei bem
pertinho até ele sair. Então foi uma coisa meio de afronte, mas... já me
tocaram, então... mil coisas assim, cê tem que tá meio preparado pra resolver
na hora.

É neste ponto que considero relevante a importância de se reconstruir e recontar as


narrativas da história da arte, de onde a antropologia pode somar para o fazer artístico. Um
lugar onde a existência, especialmente física, é constituída de memória sensorial e que isso se
desvela no fazer artístico. Uma artista não está dissociada de seu fazer. E a narrativa sobre a
artista, assim como a sua produção, não é feita por uma crítica externa a ela, mas com base na
sua própria vivência e a narrativa que ela mesma produz sobre si.
Como pesquisadora, me coloco também como sujeita atravessada pelo fazer artístico,
pela recepção deste trabalho de escrita, insegura com as interlocuções e em dúvidas sobre
meus processos em relação à pesquisa. Reconhecer meu corpo branco e o também corpo
racializado, branco, de Julha Franz foi algo que emergiu na interlocução com Tao, um corpo

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racializado negro. E então a escrita foi sofrendo deslocamentos – ou experimentando
convergências – da performance de gênero para um estudo decolonial dos corpos. O que seria
descolonizar o pensamento em relação ao corpo?
Maria Lugones (2010) defende que o gênero é uma categoria colonial. Portanto, a
classificação determinada pelos corpos em “masculino” ou “feminino” é derivada de um
sistema de poder. Um sistema de poder baseado na colonização, onde o homem europeu
heterossexual usou como ferramenta de poder a nomeação e classificação dos “selvagens”
para impor seu domínio. A criação dos nomes para classificar os corpos, portanto, faz parte
de um sistema de poder.

Eu compreendo a hierarquia dicotômica entre o humano e o não humano


como a dicotomia central da modernidade colonial. Começando com a
colonização das Américas e do Caribe, uma distinção dicotômica, hierárquica
entre humano e não humano foi imposta sobre os/as colonizados/as a serviço
do homem ocidental. Ela veio acompanhada por outras distinções
hierárquicas dicotômicas, incluindo aquela entre homens e mulheres. Essa
distinção tornou-se a marca do humano e a marca da civilização. Só os
civilizados são homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e
os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não
humanas – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem
europeu, burguês, colonial, moderno tornou-se um sujeito/agente, apto a
decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual,
cristão, um ser de mente e razão. A mulher europeia burguesa não era
entendida como seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e
capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao
lar a serviço do homem branco europeu burguês. (LUGONES, 2010, p. 935)

Um sistema de poder que, como argumenta Paul Preciado (2018), é uma ficção.
Assim como todos os hormônios e fluidos foram um dia nominados, os hormônios atribuídos
a corpos e, consequentemente, a gêneros também são nomes. Nomes dados por instituições e
sistemas de poder. Sistemas de poder também em relação a outros corpos, corpos esses
mesmos que se impuseram na colonização.
Sendo assim, um passo para um pensamento decolonial sobre os corpos é repensar as
categorias de gênero como um dado natural ou culturalmente dado sem pensar nos sistemas
de poder fundantes. Como argumenta Preciado (2008), o sexo e o gênero são centrais no
sistema político global, que aciona um mercado global da economia e lucra em cima das
formas como as categorias de gênero agem sobre os corpos. Mercado global que age desde a
não-remuneração do trabalho doméstico no caso das mulheres brancas, ou na terceirização no
caso das mulheres negras, até a prostituição, a indústria de cosméticos, das cirurgias plásticas,
do casamento e da pornografia. A categoria de gênero, assim como a racial, tem sido a mais

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bem-sucedida na perpetuação do neoliberalismo e na dominação dos mesmos corpos, estes
em sua maioria brancos, de homens e heterossexuais, os quais reiteram instituições, como as
de arte, universidades e galerias.
Se estes corpos da maneira que são classificados atendem a uma norma que tem um
processo histórico, especialmente no Brasil, país que sofreu e sofre marcas do colonialismo e
do racismo estruturante, pensar o corpo com as devidas considerações é questionar quem
trouxe a categoria de gênero como um ponto crucial. Esta é uma lógica que opera em todas as
sociedades ditas ocidentais, ou seja, àquelas que colonizaram ou que foram colonizadas.
Questiono, portanto, minha própria categoria de análise, especialmente pelo fato de que
busquei entender o fator de gênero dentro da performance artística e me deparei com as
marcas da colonização que se fazem no fator de raça e também de gênero, especialmente pelo
fato de que o não-binarismo se evidencia em ambas as artistas. Isso se torna evidente até pelo
momento em que repensei usar os termos “mulheres” ou “feminino” no título de minha
pesquisa.
Reitero a importância de destacar como o gênero, enquanto categoria, também age de
forma distinta nos corpos racializados. Em corpos brancos, historicamente, as ditas
“mulheres” são vistas como perpetuação da herança do homem branco, vistas como frágeis e
encaminhadas para a economia doméstica. Sendo assim, quando a mulher branca rompe o
espaço privado para o público, ela rompe o lugar de fragilidade e imbecilização de suas
capacidades. No caso da mulher negra, seu espaço quando é doméstico, é para servir a casa
das pessoas brancas. A mulher negra não foi restrita ao lugar da herança, nem vista como
frágil. Seu corpo é visto como objeto, seja de trabalho ou de fetiche, mais aproximado da
noção de animalidade. Portanto, a mulher negra que rompe o lugar que lhe fora imposto, não
disputa lugar com um homem branco, ela disputa um lugar como reconhecimento em ser um
ser humano e, portanto, poder falar. Como coloquei anteriormente, a própria disputa da
linguagem, o poder da fala e da escrita se fazem presentes pelo próprio sistema de poder
imposto. Desta forma, a diferenciação do gênero no fator raça não é questão de “mera”
categoria, e sim um ponto fundamental e crucial no entendimento dos corpos da forma como
eles foram colocados: dentro de padrões de gênero e consequentemente, dentro de padrões da
norma colonial europeia.
Desta forma, considero fundamental a esta abordagem um entendimento decolonial
dos corpos. Não só como método de compreensão dos termos “gênero”, mas também o
entendimento de que a organicidade dos corpos opera de maneiras que estão além da
normatividade. Há um paradigma posto em questão que é entender como as normas foram
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estruturantes na sociedade e contexto que vivemos, como age sobre os corpos e como as
violências são reproduzidas. Uma delas, a qual reitero à atenção, a questão da linguagem e as
possibilidades da fala e também da ocupação dos espaços.
Quando pergunto se Julha Franz escuta muito se é “corajosa”, ela afirma que sim, “o
tempo todo”. Em nossa entrevista, concordamos que a coragem, em alguma medida, é uma
nomeação que ocupa um lugar de privilégio. Se arrisca aquele corpo que sabe, de alguma
forma, quais os riscos que pode correr. Quando faço a mesma pergunta para Tao, ele me
conta sobre sua performance que leva o mesmo nome Coragem: “mais entendo que as
máscaras potencializam, que as minhas máscaras me encorajam, as máscaras que eu crio, não
as que me colocam” e que não escuta, de seu público, o ser “corajoso”, assim como não é da
sua vontade performar na rua ou no espaço público. Sem um olhar sensível em relação ao
olhar decolonial sobre o corpo corre-se o risco de fazer uma análise superficial e comparativa
sobre ambas as narrativas, considerando que um corpo branco tem acesso ao espaço e à ideia
de “coragem” enquanto o corpo negro, por conta das estruturas racistas, não tem o mesmo
acesso. E aqui aponto o outro lado do paradigma, que também não se conforma com essa
leitura.
Pensar a possibilidade decolonial do corpo é especialmente às possibilidades de
criação que fogem à norma e transcendem as categorias coloniais. Eis o lugar da
performance. A possibilidade de pensar corpo e suas variantes, sua potência, criação e
memória sem que a própria história da arte tenha conseguido classificar ao longo dos anos o
que torna algo uma performance. A prática performativa é um devir sem necessidade de
cumprir uma técnica ou protocolo. Ela age na própria memória e possibilidade que um corpo
pode ser. Isso inclui, como exemplo, a máscara que dá o “poder” à Tao, e torna possível que
ele faça suas ações, assim como as suas personas que se tornam um ser distinto dele, ou que o
multiplica. A performance está na possibilidade de não se encaixar em ser um “eu” ou um
“personagem”, viver nessa encruzilhada e permitir o rasgo, a fratura ou o borrão dessas
categorias. Lugones pensa no conceito da fratura instaurada pela colonialidade como uma
possibilidade:

E, desta maneira, quero pensar o/a colonizado/a tampouco como


simplesmente imaginado/a e construído/a pelo colonizador e a colonialidade,
de acordo com a imaginação colonial e as restrições da empreitada capitalista
colonial, mas sim como um ser que começa a habitar um lócus fraturado,
construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente,
onde os “lados” do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa

90
ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla.
(LUGONES, 2010, p. 942)

e conclui:

Mas o lócus é fraturado pela presença que resiste, a subjetividade ativa dos/as
colonizados/as contra a invasão colonial de si próprios/as na comunidade
desde o habitar-se a si mesmos/as. (idem, p. 943)

Aqui, portanto, podemos pensar que é especialmente a ‘contra-molas que resiste’


dentro das perversidades coloniais que tornam possíveis as trocas e poderes do corpo que se
expressam, independente se seus temas são questões políticas. Como aponta Luiz Antônio
Simas17 (2020), a ritualização faz parte da resistência à escassez imposta pelas violências
estruturais.
Ainda dentro do paradigma e a possibilidade de se analisar de forma decolonial o
corpo e, consequentemente, o gênero, observo o fato de que ambas as artistas estão em
inconformidade com a binariedade. Julha coloca a possibilidade de ter a vivência não-binária,
enquanto performa o corpo drag queer, e Tao assume sua identidade enquanto não-binário. O
trânsito e a encruzilhada são pontos essenciais, por exemplo, em culturas da diáspora
africana, como coloca Leda Martins:
Na concepção filosófica nagô/iorubá, assim como a cosmovisão do mundo
das culturas banto, a encruzilhada é um lugar sagrado das intermediações
entre sistemas e instâncias de conhecimentos diversos, sendo frequentemente
traduzida por um cosmograma que aponta para o movimento circular do
cosmos e do espírito humano que gravitam na circunferência de suas linhas
de interseção. Da esfera do rito e, portanto, da performance, a encruzilhada é
lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, textos e
traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e
rupturas, multiplicidade e convergências, unidade e pluralidade, origem e
disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como
um lugar terceiro, é geratriz da produção sígnica diversificada e, portanto, de
sentidos plurais. (MARTINS, 2003, p. 69)

Coloco esta citação pensando não apenas em termos de performance artística, mas
também de gênero. Considerando outras formas de existência que se reverberam em nossas
cosmovisões, podemos levar em consideração que a cosmologia citada vai pensar outra forma
de hierarquia que também se reflete nas relações de gênero e torna possível a vivência para

17
“Ritualizar a vida”, entrevista do historiador e escritor Luiz Antônio Simas para o portal Uol. Disponível em:
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/luiz-antonio-simas-prepara-livro-sobre-maracana-e-cre-na-
festa-como-meio-de-reencantar-mundo-pos-covid-19/#page1 - Acesso em 17 de janeiro 2021.

91
além das relações impostas pelo colonialismo. Oyérónké Oyewúmí vai apontar que “O
gênero não era um princípio organizador na sociedade iorubá antes da colonização” (2020, p.
33). Em diálogo com Oyewúmí, Maria Lugones irá dissertar sobre os impactos do
colonialismo na sociedade iorubá, afirmando que “toda forma de controle do sexo, da
subjetividade, da autoridade e do trabalho existe em conexão com a colonialidade”.
(LUGONES, 2020, p. 47).
A maior parte das tendências do pensamento não-binário provém do pensamento
norte-americano da teoria queer e o conceito de performance de gênero cunhado por Judith
Butler (2018), ao afirmar que o gênero é uma expressão performativa. No entanto, permitir
que outras cosmologias habitem nosso imaginário é, também, uma forma de pensar o corpo
na perspectiva decolonial, habitando o lugar potente da encruzilhada ou o que na performance
chama-se de limiar.
A não-binaridade é também a suspensão de um não lugar, que se recusa à
classificação. Um corpo que não se compreende em conformidade com as normas e não se vê
representado da forma que o discurso dominante tenta engendrar os corpos. Assim como a
performance artística é a possibilidade do poder na encruza, a suspensão, há também o corpo
que recusa as classificações e encontra sua livre expressão não mais precisando se identificar
com as categorias do feminino ou masculino. Potências não-binárias que se tornaram possível
com a prática da performance, no caso de Julha, e que já existiam antes mesmo de performar,
no caso de Tao. Não há como dizer quem veio antes ou depois, justamente por seu caráter
orgânico, em movimento e fluido do corpo. Também não existe a possibilidade de acabar se
tornando algo fechado em si mesmo, coerente, pois a performatividade de gênero é também
atravessada pelas marcas da violência racial e sexual no campo físico e simbólico.
Como Julha mesmo coloca, a autodeclaração de ser mulher, como categoria política,
ainda se torna relevante por estar um país terceiro mundista que ainda clama pela
sobrevivência dos corpos das mulheres. Em Tao, vemos a possibilidade da hormonização
com a testosterona, assim como a cirurgia de retirada de seios como a impossibilidade de
continuar alguns de seus trabalhos no lugar, onde ele mesmo coloca, marginalizados. Não
existe uma classificação que encerre as vivências justamente por ser um território ainda muito
marcado pela violência, onde ainda não podemos bradar por uma “liberdade” absoluta do não
performar algo entre os binarismos. E então voltamos ao princípio: se o gênero é uma
categoria fictícia, a história é muito bem contada, pois opera com sucesso. Por outro lado, a
não conformidade cria possibilidades de hackeamento: o corpo que se adapta, o corpo que

92
performa, se maquia, se traveste, confunde, explode, borra, por fim, desvela a
monstruosidade ciborgue para desespero e pesadelos do poder biopolítico colonizador.

93
CAPÍTULO IV
O corpo que se move nas redes virtuais

Quando se aborda a ideia de fazer uma etnografia ou um trabalho de campo


certamente se pensa no meio onde seu interlocutor vive e/ou interage para que a análise,
métodos e constatações sejam feitas durante a pesquisa. A internet certamente foi um desses
lugares que habitei durante a pesquisa. O lugar virtual foi potente do começo até o fim da
investigação etnográfica e penso que essa potência não se restringe somente a esta pesquisa
em específico, mas a forma como temos nos comunicado atualmente e especialmente durante
o período de pandemia global que abarcou o mundo durante a escrita desta dissertação.
As redes sociais (Twitter, Instagram, Facebook, WhatsApp, etc) atualmente não são
apenas meios de se comunicar, mas também uma nova forma de se respaldar algum tipo de
discurso. Os jornais de grande escala sejam na forma impressa, virtual ou na televisão
divulgam e se pautam pelo o que o presidente do país postou em seu Twitter, por exemplo. A
interação nas redes toma dimensões de discursos oficiais. A crença de que quem interage
conosco nas redes é, de fato, a pessoa que leva a foto de um determinado perfil nas redes
sociais tem sido culminante para repensarmos as nossas interações enquanto sujeitos.
Julha Franz e Tao Bruni foram artistas que encontrei no espaço virtual. Nossas
primeiras interações foram virtuais e durante o andamento da pesquisa muito do que eu sabia
e descobria sobre as artistas estavam dentro da plataforma digital. Tomar ciência de um
evento em que uma delas estaria e comparecer pessoalmente foi engajado pelas redes, por
exemplo, além de saber o que se passava na vida dessas artistas. No caso de Berna Reale, eu
já conhecia anteriormente por outro tipo de contato, mas igualmente pude acompanhar seu
trabalho e produção pela internet. Curiosamente, Berna foi a única artista que conheci fora do
meio digital e que não tive nenhum contato pessoalmente para entrevistas. Já Julha e Tao, que
conheci na interface, tive contatos pessoalmente e através de videoconferência onde eu podia,
de fato, ver seus rostos e interagir ao vivo.
Prezo especialmente por esta abordagem sobre a internet e as redes de sociabilidade
online pela seguinte questão: esta pesquisa seria viável sem as facilitações online? As artistas
que conheci seriam mesmo conhecidas sem as redes de contato? E por a resposta, neste caso,
ser não, a internet, portanto, se faz um meio extremamente importante, novo e delicado para

94
ser dissecado não apenas como metodologia de pesquisa, mas também para nosso
entendimento sobre relações sociais, os corpos e, por fim, a performance.
Antes de narrar os contatos feitos online, aponto como necessário pensar nas relações
que estão se construindo através das redes virtuais e eletrônicas. Digo isso porque alguns
artigos que debatem a “netnografia” ou a “etnografia virtual” vão pensar nas plataformas
digitais como um lugar real, e não mais que se distingue da realidade:

ainda que haja, sem dúvidas, singularidades quanto à mediação, linguagem e


formas de interação entre pesquisadores e pesquisados na internet e “fora”
dela, tal relação – mediada mesmo off-line – se dá em ambientes virtuais que
não podem mais ser tratados como “não-lugares” e menos ainda de forma
dicotômica, opondo- se o virtual ao “real”. (POLIVANOV, 2013, p. 14).

Nesses termos, a esfera virtual será encarada como um lugar real, assim como
qualquer ambiente, que tem suas regras, interações e sujeitos. As redes sociais como
Instagram, principal plataforma que usei para interação, ainda que gratuita e que viabiliza
apenas às imagens, acaba por ser um lugar ambientado que tem seus protocolos de
publicação, comentários e compartilhamentos. A grande questão posta é que as redes sociais,
atualmente, não são “apenas” um ambiente que se entra ou sai. As redes sociais, na vida de
muitas pessoas e inclusive artistas, acabam por ser parte da vida offline. Os contatos que se
faz, afinidades, desavenças, o que as pessoas sabem, o que se vê e o que não vê, cada vez
mais é ditado pelo que se publica, o que se curte e o que se compartilha. Como Donna
Haraway sugere em seu Manifesto Ciborgue (1985), chegou-se o momento de hibridização
entre a tecnologia e o corpo. Onde começa um e termina o outro? Esse borrão está cada vez
mais misturado e no que tange a produção artística e performática, a rede social cada vez
mais dita quem o sujeito é como artista e que produção faz, afetando as relações no espaço
virtual, mas também offline.
Sendo assim, o artista que escolhe estar nas plataformas digitais não apenas a usa
como “ampliação” do seu alcance, mas também se coloca como alguém que existe. É comum
associar a pessoa que não tem redes sociais à alguém que “não existe”. Estar “vivo”
digitalmente é um impulso para muitos trabalhos, especialmente o artístico. Um outro ponto é
que o artista que está na plataforma digital, ainda que compartilhe da sua vida pessoal e
cotidiana, ele performa o sujeito artista. Alimenta conteúdo de suas criações, referências e
opiniões que o respaldam como artista. Independente de ser ou não um performer, o artista
que se impulsiona pela rede social está performando o ser um artista, como vemos em perfis

95
de grandes celebridades como cantoras pop ou atrizes de Hollywood. O estar nas redes
sociais, portanto, cria uma possibilidade de uma interação outra: é virtual, é mediado por
telas, no entanto está aberto a um alcance maior em números de pessoas que podem ser
atravessadas e afetadas como público.

Observando a produção, em um primeiro momento, o pensamento do artista


mantém diálogo com a máquina e, outrora, por meio de circuitos eletrônicos e
interfaces, ele dialoga também com as linguagens, interpretações e afinidades
do público. Agora, o público se envolve na produção, o que põe em xeque a
autoria: a obra é aberta, pressupondo assim que as intervenções do espectador
também sejam partícipes do processo contínuo de transformação da obra,
emergindo no modelo de comunicação todos-todos (BRITO e ROCHA, 2013,
p. 354)

Há algumas considerações importantes a serem colocadas a respeito do alcance deste


artista. O público aumenta e as interações mudam, de fato. Antes as obras de arte estavam
encerradas nos museus e galerias, o que não só dificulta artistas serem notadas e reconhecidas
pelas instituições, como também restringe ao público culturalmente habituado a frequentar
espaços artísticos. A internet e as redes sociais ampliam essas conexões: o artista precisa
apenas da plataforma digital para se promover, e o público não precisa ir até um lugar para
chegar até ela, senão um lugar virtual. No entanto, uma pesquisa realizada pelo Comitê
Gestor da Internet18 (GCI BR) em 2018, mostra que 1 a cada 4 brasileiros não possui acesso à
internet, o que totaliza quase 50 milhões de pessoas desconectadas. A porcentagem de
pessoas desconectadas, segundo a pesquisa, se concentra em zonas periféricas das cidades ou
rurais, são pretas e pardas, e das classes D e E.
Palavras que muitas pesquisas caracterizam a internet como um lugar “universal” e de
amplo acesso precisam ser consideradas com cuidado, especialmente na abordagem
antropológica. Aqui localizo parte de uma população brasileira com acesso à internet, o que
nos faz pensar, brevemente, que ainda que as redes sociais possam facilitar o acesso, não
necessariamente têm sido ainda uma mudança estrutural nas relações políticas e econômicas.
As redes sociais mudam a forma de interação entre corpo, trabalho, artista e público, mas a
composição destes corpos ainda é muito semelhante ao que não é virtual. A internet é apenas
um reflexo de relações já estabelecidas no mundo offline, ainda que com as devidas
definições, como já disse, alteram as relações que temos com consumo de arte e o que
reconhecemos como arte e isso traz vantagens para artistas que não estão inseridos nas

18
https://www.cgi.br/ - Acesso em 6 de novembro 2020

96
galerias e museus, além de impulsionar o trabalho e a intimidade daquelas artistas que já
estão no circuito mercadológico das artes.
Há muitíssimas camadas e possibilidades de explorar essas questões da internet e
redes sociais no que tange à performance. Norteada pela abordagem decolonial e feminista,
construo neste capítulo alguns debates sobre a relação com público amplo formado pela
internet e também como o corpo se estabelece em interfaces digitais, quais são os produtos
das relações criadas - considerando as intersecções raciais e de gênero - quando um corpo
está exposto nas redes sociais.
Outro ponto que considero importante é a escolha da pesquisa no ambiente virtual por
uma questão de viabilidade perante o contexto imposto. Como já dito anteriormente, o ano de
2020 foi assolado por uma pandemia mundial, da covid-19, o que mudou a rotina e planos de
pessoas em suas diversas funções, e com as ambições acadêmicas não foram diferentes. Um
dos planos que estava em meu cronograma era entrevistar a artista Berna Reale pessoalmente
e, mesmo que não conseguisse, fazer uma etnografia na cidade em que a artista mora e atua,
Belém, no Pará. A intenção era conhecer os lugares onde suas performances foram
executadas, como o Mercado Ver O Peso, além de conhecer a dinâmica da cidade e
população para enriquecer a leitura de seu trabalho na pesquisa. Com este contexto impondo
as limitações, foi solicitado ao departamento a prorrogação da entrega da pesquisa, por
diversas razões, mas especialmente também pelo fato de que seria necessária uma
reprogramação metodológica da abordagem do trabalho de Berna Reale e suas intersecções
possíveis com os temas abordados, assim como com Tao Bruni e Julha Franz.
A abordagem que escolhi fazer na tentativa de não excluir Berna Reale da pesquisa,
apesar da ausência de nossa interlocução, assim como impossibilidade de conhecer o meio
onde a artista construiu seu trabalho, foi através do lugar onde eu continuei tendo acesso
continuamente: a internet e as redes sociais. Desde o início da pesquisa eu já acompanhava a
artista, tinha alguns registros e impressões e foi com esta experiência que utilizei como
material para me debruçar e articular pensamentos. Alguns de nossos breves contatos também
foram úteis para fazer essa ponte, considerando que meu contato com ela, apesar de escasso,
não foi nulo como demonstrarei adiante.
Enquanto escolha metodológica, as redes sociais e a internet por serem um fenômeno
razoavelmente recente, ainda carece de referências bibliográficas que tratem a internet como
um espaço do ponto de vista antropológico. Existem muitas pesquisas de etnografia virtual,
netnografia e afins, mas suas abordagens, ao que tive maior acesso, estão voltadas para as
áreas da comunicação, sociologia e marketing. No campo da antropologia é uma discussão
97
nova que alguns antropólogos têm discutido em artigos e periódicos. Importante salientar que
toda minha pesquisa por referências aconteceu ao longo de menos de seis meses, durante o
período de prorrogação da entrega, e não foi possível fazer um mergulho teórico nas leituras
disponíveis que respondesse a todas as questões que gostaria de levantar aqui. Temos que
levar em consideração que a pesquisa se direciona sobretudo a leitura decolonial do corpo na
performance, por uma ótica de gênero e sexualidade, que apesar de considerar as redes
sociais como parte integrante deste processo, não buscava se aprofundar nas dinâmicas das
redes sociais e quais abordagens a antropologia tem feito a respeito.
Dito isso, reconheço algumas possíveis falhas de avaliação que o período acabou
impondo ao trabalho, mas escolhi fazer essa abordagem ainda assim. Há alguns antropólogos
e estudiosos do corpo fazendo uma abordagem interessante sobre a internet e as redes sociais
como um campo que, ainda que seja virtual, está em nossa realidade e que avaliar a forma
como o corpo aparece e interage no ciberespaço é uma necessidade recente de compreensão
das relações sociais no campo das ciências humanas.
Uma das abordagens escolhidas para levar adiante a pesquisa é de redes sociais do
ponto de vista de “atores-redes” levando em consideração os híbridos entre sociedade e
tecnologia, como aponta Bruno Latour (2012).

Latour, bem antes das tecnologias de mídias móveis adquirirem esta


totalidade na comunicação recente, propunha perceber os significados entre
os elos hibridizados que existem entre os humanos e as tecnologias. A teia
relacional conectando de modo a gerar a constante continuidade de
associações possíveis. Segundo seus preceitos, aos pesquisadores das relações
sociais mediadas pela tecnologia, cabe deixarem os atores desempenharem
seus papeis sem interferência no contexto, onde cabe à eles explicarem como
se estabelecem neste sistema de relações misturadas ou híbridas. Por isso, a
observação oculta em mídias sociais é uma técnica capaz de coletar dados da
cultura (on-line e off-line), no ambiente digital. (FERRAZ, 2019)

Sendo assim, a análise das redes sociais como um ambiente a ser pesquisado não me
leva a elaborar e compreender as redes sociais nos ambientes web por si só, mas as relações
que as interlocutoras criam com estes locais e como elas mesmas vivem, articulam e dizem a
respeito deste ambiente. Considerando que não há dicotomia entre online e offline, o que se
sugere aqui é a observação dos atores em suas vivências em geral, on e off, e como se dão
essas relações.
Neste sentido, é importante também localizar que assim como o antropólogo que vai a
campo e registra seu entendimento daquele grupo de acordo com sua observação, aqui

98
também trago um testemunho, com metodologia científica, considerando minha incursão nas
redes sociais. Esta incursão tinha como objetivo ver as interações que surgiam nas redes
pessoais/profissionais das artistas, assim como a dos usuários considerados “públicos”, ou
seja, “seguidores” das interlocutoras. A espontaneidade dos acontecimentos online me levou
a redirecionar a outras páginas, perfis e discussões sobre as artistas, o que descentraliza os
perfis das artistas por si só. Como uma rede, clicks levavam a outros, debates abriam para
outras conexões e a cadeia de fluxo segue quase infinita. No caso de Berna Reale, optei por
seguir o fluxo de acordo com minha observação de suas “aparições”, ou seja, quando ela
lançava vídeos, fotos ou quando parceiros anunciavam eventos ou lives com sua presença. No
caso de Julha Franz e Tao Bruni, com quem tive oportunidade de ter um contato mais direto,
farei uma narrativa que cruza minha observação das suas redes sociais com as conversas que
pudemos ter pessoalmente ou por videoconferência a respeito.
A escolha também é avaliar sobretudo o Instagram. Atualmente, em 2020, o
Instagram tem sido uma das maiores plataformas digitais que centralizam a maior parte de
artistas, criadores de conteúdo e empresas. A rede social que nasceu em 2010 para veiculação
de imagens e vídeos curtos com filtros digitais ganhou seu impulso após ser comprado pelo
Facebook em 2012. O Brasil é considerado um dos países que mais acessa a rede social,
superando a média global, desde 2015. Em 2016, no mundo todo, 42% dos usuários com
internet acessam o Instagram enquanto no Brasil este número é de 75%19. Durante o período
pandêmico da covid-19, muitos artistas, intelectuais e criadores de conteúdo utilizaram a
plataforma para fazerem “lives” (vídeos ao vivo) e utilizarem o aplicativo para promover o
trabalho em tempos de impossibilidade de atividades ao vivo. É onde muitos artistas do corpo
e da performance fazem suas postagens, apresentações e, neste momento de pandemia,
promovem cursos, aulas e workshops.

Netnografia e performance digital

Tive o primeiro contato com o nome e trabalho da artista Berna Reale na Galeria Nara
Roesler, em São Paulo, no ano de 2015, lugar onde eu trabalhei. Foi através do site e arquivos
da galeria, além de trabalhos expostos no próprio espaço que tive esse meu primeiro contato
com a sua produção. Em meu Trabalho de Conclusão de Curso, em 2017, na graduação em

19
Dados retirados de portais de notícia e pesquisas sobre tráfego no Instagram via bibliografia do verbete
“Instagram” do Wikipedia em português/BR

99
História da Arte, analisei criticamente seu trabalho de performance sob um viés feminista,
porém sem fazer interlocução com a artista. A partir do projeto de mestrado, comecei a
buscar as primeiras interações, especialmente a partir das redes sociais, o Instagram, onde
Berna Reale se faz presente.
Berna Reale atualmente tem 20,2 mil seguidores20 e posta fotos com frequência sobre
seus trabalhos e opiniões sobre os acontecimentos políticos no Brasil e no mundo. Por
trabalhar como perita criminal na polícia do Estado do Pará, os assuntos mais abordados são
sobre a segurança pública, sistema carcerário, racismo e misoginia, a maioria sob o ângulo da
violência. Quando faz postagens sobre seu trabalho, a grande maioria são fotografias, sendo
poucos vídeos. Além das performances do seu próprio corpo, há trabalhos que envolvem
corpos de outras pessoas, das quais não temos muitas informações sobre quem são
individualmente (exceto alguns trabalhos como ‘Ginástica da Pele’ [2019] onde alguns
garotos comentam na parte de comentários que participaram do trabalho).
A primeira interlocução com Berna Reale foi em outubro de 2018, na Galeria Nara
Roesler. Eu não mais trabalhava no local, mas houve uma fala da artista junto do curador
Agnaldo Farias em função da sua nova exposição na própria galeria, chamada Gula. A
exposição exibia uma série de fotografias e uma instalação que abordavam questões de
violência em diversos corpos. Berna só aparece em uma das fotografias, a do trabalho ‘Gula’,
que leva o nome da exposição. Berna está entre três policiais fardados, também fardada,
comendo doces coloridos e bem recheados. O trabalho é uma crítica ao prazer exercido pela
violência, especialmente a policial, segundo a própria artista. Neste dia consegui falar
pessoalmente com Berna Reale sobre meu trabalho de dissertação, que foi muito bem
recebido e ela me passou seu número de telefone para contato futuro. Desde então, fiz contato
alguns meses depois pensando na possibilidade de fazer campo em Belém e Berna me
respondeu dizendo que não tinha agenda até o fim de 2019. Adiei a ida, e em outubro de
2019, numa vinda a São Paulo, perguntei se havia possibilidade de nos encontrarmos, na qual
acabou não acontecendo. Por fim, em 2020, em meio ao contexto pandêmico, perguntei se
podíamos fazer uma videochamada e Berna disse para eu mandar as perguntas por escrito que
ela responderia por Whatsapp, onde não houve retorno.

20
Conferido em https://www.instagram.com/bernareale/ pela última vez em 6 de novembro 2020

100
“Gula”. Berna Reale, 2018 (Reprodução)

Cogitei não incluir Berna Reale no trabalho diante a impossibilidade de interlocução


de forma mais direta. Uma das razões da mudança da análise de seu trabalho sair da História
da Arte e adentrar o campo da Antropologia era justamente o anseio em poder escutá-la, além
de acompanhar seu processo de produção. No entanto, seu trabalho ofereceu possibilidade de
outro ponto de vista e abordagem, que é o das relações virtuais. Berna fala de seu trabalho
para as câmeras e tem vídeos postados nas redes, além de ter participado de algumas lives que
acompanhei ao vivo, pelas quais tive acesso a algumas de suas respostas e questões para a
produção artística e pessoal. Sendo assim, utilizo da netnografia e algumas abordagens sobre
trabalho de campo no meio virtual. Ciente das limitações que a internet tem, como não poder
fazer minhas perguntas diretamente, por exemplo, utilizo da internet mais do que apenas um
material de análise e sim reconheço a possibilidade de interpretar a artista unida a seu
processo de criação pela forma que ela se faz presente nas redes sociais.
Como coloca Roy Wagner (2018), a invenção de uma cultura é um dos exercícios
etnográficos. No caso da internet e, consequentemente, das redes sociais, não temos um
grupo coeso e, ainda que as redes tenham suas leis e regras internas, a forma como cada
pessoa vai lidar com a ferramenta é diferente. Há quem use as redes sociais para lazer,
sociabilidade, compartilhamento de eventos sociais e pessoais, e há quem use para divulgação
de um projeto pessoal, marca ou empreendimento. São muitas variáveis e há de se ter um
cuidado com falas generalistas sobre conteúdo da internet.

101
Dentro da antropologia a discussão sobre netnografia ainda é recente, visto a natureza
também recente do impacto das redes sociais na vida contemporânea. A internet nas redes do
jeito que conhecemos data do início do século XXI e as redes sociais mais populares como
Facebook, Instagram e Twitter tem pouco mais de dez anos.

Assim, reconhece-se que netnografia como método de pesquisa, recente e


adaptado da etnografia, ainda não encontrou seu consenso entre
pesquisadores. Alguns estudos, portanto, têm sido desenvolvidos no sentido
de identificar seus principais contextos de aplicação e utilização em
pesquisas, tratando o referido método como objeto de estudo. (MESQUITA,
MATOS, MACHADO, SENA, BATISTA, 2018, s/p)

O que é importante salientar é que a netnografia não aparece aqui apenas como
necessidade de método, mas com o pressuposto que as redes sociais já fazem parte do
cotidiano intrínseco dos sujeitos. A vida acontece online e offline de forma borrada, e os
impactos do que é feito online se reverberam no que está fora das redes e vice-versa.
Portanto, pressuponho que as redes sociais são um dado presente na vida dessas artistas, não
apenas uma ferramenta de trabalho, dado as suas devidas especificidades.
Como pesquisadora, também fazendo parte destas redes sociais, tendo conta ativa no
Instagram, onde posto assuntos relacionados à vida pessoal e profissional/acadêmica, decidi
estar em posição de observação ativa às suas redes. Ativa pelo fato de Berna Reale saber que
eu a sigo, e me seguir de volta na rede social. No entanto, é observadora pelo fato de não
interagir por mensagens com Berna, nem fazer comentários em suas postagens.
Em janeiro de 2019, Berna lançou um trabalho chamado Bi Massa, uma performance
criada junto com uma conta no Instagram (@bi_massa_) e um videoclipe no YouTube
chamado A Massa é Bi. O lançamento foi anunciado em seu perfil do Instagram
(@bernareale). No videoclipe, Berna está vestida de um ser rosa com o que parece serem
seios grandes e caídos, e igualmente o que parece com sacos escrotais grandes e caídos no
meio das pernas. O ser não tem rosto, é apenas um cor-de-rosa liso. Ela sai andando pela
cidade de Belém, numa espécie de feira aberta, vestida dessa forma. A dança é
despretensiosa, às vezes tosca e debochada. Ao observar o conjunto, vi um peito grande
caído, um saco pendurado, um ser que é mulher e homem, é bi, massa do todo, massa de
pessoas... o ser rosa é uma massa. E Berna anda de um jeito meio monstruoso, freak,
aleatório. Um trabalho que surtiu estranhamentos e algumas questões. A definição de gênero,
os corpos, corpos fora do padrão, corpos sujeitos a rejeição.

102
Berna anunciou no Instagram que estava fazendo uma música para esta performance e
que foi lançada próximo ao carnaval daquele ano, numa batida funk, cantada por ela. A
música tem versos que diz “não me toca” numa intenção parecida com a máxima “meu corpo
minhas regras”, cantado na voz dela. Uma rádio de Belém a convidou para falar sobre e,
segundo ela mesma, na entrevista ela conta que Bi Massa diz sobre respeito ao corpo,
especialmente no contexto de festas de rua e a mensagem conseguir ser acessada através da
batida do funk.

“Bi Massa”. Berna Reale, 2018 (Reprodução)

A música com o clipe canta:

A massa é bi / é bi a massa / a massa es bi / es bi la massa / a massa é visível /


a massa é visível, a massa é massa / a massa é sensível, a massa é massa / a
música é pública, pública massa / pra massa é massa / porque não não pode
ser visível / a massa aqui ama a massa / eu quero mostrar a massa / a massa
tem que ser vista / a massa é bi.

Andando por esta feira, as pessoas olham para ela rindo, estranhando, enquanto ela
dança sensualizando, fazendo o rebolado do quadradinho ao som da música. Berna cria uma
reflexão interessante sobre “a massa aqui ama a massa” e sobre a questão dos corpos das
pessoas que mal se tocam afetivamente, a menos como estrutura de poder, violência ou
desejo sexual.

103
Há também outro vídeo com a animação do ser rosa Bi-Massa numa batida funk e
samba-enredo:

Ei você aí se toque / mas não me toque sem eu pedir / Não me venha com
essa conversa / se eu não quiser você não esfrega / não me venha forte assim /
porque sou dois e dois é bi / o meu corpo é meu o seu é seu / te sai te sai te
sai te sai te sai / se eu quiser eu chamo o seu.

Berna, ao divulgar o clipe, disse que estava permitido tocar no carnaval.

“Bi Massa”. Berna Reale, 2018 - animação disponibilizada no YouTube

O curioso é que enquanto eu acessava o vídeo do YouTube da Bi Massa, apareceu


uma sugestão na lateral de outro vídeo de Berna Reale chamado “A maior biblioteca que
você tem é conhecer pessoas” em um evento chamado LiveTalks, de 2016, onde Berna Reale
faz uma palestra falando de sua trajetória contando como virou perita criminal. Berna Reale
conta que era artista antes de tudo, trabalhava inclusive em uma fundação cultural em Belém.
Para variar, segundo ela, arte não dá dinheiro, principalmente no norte do país. Foi então que
a chamaram para fazer uma instalação no Mercado Ver O Peso, e ela decidiu fotografar
vísceras humanas e colocar no comércio de carne. Começou a ir toda semana ao Instituto
Médico Legal (IML) e se encantou pelo lugar. Cada cadáver era uma história, conta, e Berna
se encantava pela história das pessoas. Fala que sua obra não é sobre ela, é sempre de
responsabilidade social. Foi aí que foi instigada a prestar concurso para perita criminal, com
42 anos, uma filha para criar e sem dinheiro nem para a inscrição. Ganhou a inscrição do

104
irmão, parcelou o cursinho no cartão e passou. Sua condição econômica aumentou
consideravelmente viabilizando seus projetos enquanto artista. Como perita, também
conheceu a pobreza de Belém mais de perto. “A gente classe média não tem noção”, diz.
Me parece que muito do entendimento do trabalho de Berna Reale parte de sua
experiência em Belém, uma parte considerada periférica no Brasil no que diz respeito ao
circuito das artes. Em razão da pandemia, não pude ir a Belém, como fui a Porto Alegre, o
que trouxe outra limitação na abordagem da obra de Berna. Os espaços em que pude circular
foram as redes sociais.
Berna Reale é reconhecida dentro do mercado de arte. Dentre os códigos do que é um
reconhecimento no mercado de arte, Berna é agenciada por uma grande galeria de arte que
tem filiais em São Paulo, Rio de Janeiro e Nova York, além de ter sido uma das três artistas
que compõem o pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza em 2016, junto com os artistas
André Komatsu e Antonio Manuel. Em 2012 foi vencedora do Prêmio Pipa Online, e finalista
do Prêmio no ano seguinte. A Bienal de Veneza, no meio artístico, é uma das principais e
mais importantes mostras de arte contemporânea. Para além da repercussão de seu trabalho
na crítica de arte e por matérias jornalísticas, nas redes sociais é possível apreender o impacto
de seu trabalho junto a um público não especializado e variado.
Seu trabalho Ginástica da Pele, em 2019, conta com a participação de diversos
homens, das mais variadas etnias, enfileirados e obedecendo às ordens de um líder -
interpretado por Berna Reale - que apita ordenando posições de revista policial. Segundo
Berna Reale em diversas entrevistas, é um trabalho que critica o encarceramento em massa e
quais são os corpos violentados pelo Estado: pretos, pardos, tatuados, homossexuais e
transsexuais.

105
“Ginástica da Pele”. Berna Reale, 2019 (Reprodução)

Lançando o vídeo e fotografias do trabalho, a artista foi criticada por racismo ao


assumir a posição de uma figura de poder, o opressor, ordenando aos rapazes como se
posicionarem. Berna foi apontada por postagens nas redes sociais - muitos deles artistas
negras e negros – que, apesar da boa intenção, falhou em ocupar este lugar reforçando a visão
de uma mulher branca sobre o racismo.
Em agosto de 2020, Berna Reale participou de uma live com a Revista Zum de arte
contemporânea e neste canal, que acompanhei ao vivo, foi possível registrar as críticas.
Enquanto acompanhava a live, subiam perguntas pedindo explicações não só da performance
Ginástica da Pele, mas também de outras como Ordinário, de 2013, em que alguns a acusam
de usar ossadas de desconhecidos, propriedade do Estado, para fins privados.

106
“Ordinário”. Berna Reale, 2013 (Reprodução)

Pelo fato de não ter acontecido a interlocução com Berna Reale, fiquei limitada aos
comentários em entrevistas e nas redes sociais.

Este trabalho já está tendo as mais variadas leituras, pois já mostrei algumas
imagens e as reações são as mais contraditórias. Uns se emocionam, outros
sentem raiva, uns me aplaudem, outros me xingam. Uns até me chamaram de
racista, por eu estar ali no símbolo da polícia. O trabalho não é só formado
por pretos, pois ali também estão os brancos pobres periféricos, gays,
travestis, tatuados, que também enchem as prisões, enfim, todas as reações
possíveis. Eu estou ali no lugar mais difícil, o do poder, o do opressor. As
reações me fazem feliz, pois o trabalho alcançou o público, incomodou,
desestabilizou e a intenção é causar um ruído, questionamentos. (Berna Reale
em entrevista para Revista Continente, 202021)

O que analiso aqui é, portanto, o corpo e trabalho do artista nas redes sociais. Berna
Reale usa as plataformas digitais, como as redes sociais, como meio de divulgação de seu
trabalho para além dos meios formais como as galerias e instituições. As redes sociais
aparecem aqui mais como um veículo de informação do seu trabalho e sua opinião. Berna

21
“O corpo no meu trabalho é um elemento simbólico”
https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/235/ro-corpo--no-meu-trabalho--e-um-
elemento-simbolicor - Acesso em 6 de novembro 2020
107
Reale, em entrevistas, comenta que procurou buscar a experiência como perita criminal da
polícia de Belém para narrar experiências que enxerga e convive cotidianamente.

Tenho muito orgulho desta performance. Hoje, os artistas não negros têm
medo de fazer algo que envolva pessoas da raça negra, pois temem ser
acusados de apropriação de ‘protagonismos’ e ‘lugares de fala’. Mas estou
certa do meu objetivo, que é refletir sobre a sociedade e a violência contra os
negros e pobres. A arte não pode ter medo de tocar em feridas, tem que ser
presente, corajosa, ocupar seu lugar e resistir. (Berna Reale em entrevista à
Revista Trip, 202022)

Pensando que o corpo performático, antes da tecnologia digital, atuava ao vivo e


presencialmente, os atravessamentos esperados eram aqueles de quem estivesse presente
naquele tempo-espaço. Se fosse uma performance anunciada, muitas vezes seria o público
interessado. Se fosse espontânea, quem simplesmente estivesse ali naquele momento. Nas
redes sociais, esta possibilidade se amplia: é possível ter contato com o trabalho se o usuário
for um seguidor do perfil, ou se alguém que o usuário segue compartilhar, ou até mesmo nas
sugestões de pesquisa da plataforma Instagram. Isto sem levar em consideração os portais de
notícia e jornais que divulgam o lançamento de seu trabalho e carreira, como foi o caso da
live da Revista Zum.
Além do usuário se diversificar e se tornar maior em quantidade, a produção de
conteúdo crítico nas redes sociais é elaborada sem a mediação de um veículo de
comunicação, sejam jornais ou revistas. O produtor de conteúdo crítico também passa a ser
alguém que é legitimado dentro das redes sociais, como por exemplo um outro artista
paraense. Não necessariamente este artista é premiado ou agenciado por galerias, mas o fato
de ter grande alcance (e isso quer dizer, nas redes sociais, ter muitos seguidores e alta
frequência de postagens, o chamado “engajamento”) e um discurso político e cultural coeso,
torna o usuário apto a gerar críticas e, consequentemente, gerar um movimento crítico de
determinado assunto ou pessoa.
Considerando que a crítica de arte, historicamente, está associada aos periódicos de
jornais, artigos e produções acadêmicas, atualmente este lugar ganha uma outra esfera. Se,
por um lado, a internet reafirma lugares de poder (por exemplo, o jornal Folha de São Paulo,
que atua em grande circulação na cidade de São Paulo também continua sendo referência de
notícias nas redes sociais com muitos seguidores), por outro lado cria outro tipo de relação,

22
“Berna Reale apresenta performance artística e expõe o racismo no sistema carcerário brasileiro”
https://revistatrip.uol.com.br/trip/berna-reale-apresenta-performance-artistica-e-expoe-o-
racismo-no-sistema-carcerario-brasileiro - Acesso em 6 de novembro 2020
108
como a criação dos “formadores de opinião” ou na internet os chamados “influencers”. Deste
ponto de vista, a crítica de arte ganha um formato que vai para além das estruturas
dominantes de poder como o jornal, a mídia e a universidade. A exigência por um
posicionamento de determinado artista se torna mais enfático, e a artista é mais cobrada
daquilo que produz e compartilha.
Ainda assim, é necessário localizar a fala de uma outra perspectiva: a dos algoritmos.
Explicando brevemente, o algoritmo é a sistematização robotizada, porém programada de
uma determinada rede social - no caso o Instagram - que “escolhe” o que irá apresentar ao
perfil do usuário de acordo com quantidade de seguidores, visualizações, likes nas postagens
e engajamento. Quanto mais o algoritmo entende o que o usuário prefere, de acordo com
quem segue e curte, mais o algoritmo apresenta conteúdos semelhantes. Sendo assim, meu
campo das redes sociais é condicionado por um meio muito específico pelas razões que
expliquei anteriormente.
Durante a live da Revista Zum, diversas perguntas sobre o trabalho Ginástica da Pele
que tangiam a problemática racial foram feitas no chat, mas a mediadora não as repassou para
a artista. A depender da visibilidade da artista, o status quo que ocupa, maior será sua
vulnerabilidade de julgamento pelos usuários que fazem parte do meio (político, artístico,
geográfico) e questionam seus posicionamentos. Pensando na relação sinestésica que a
performance causa, seja presencial ou em vídeo, o vetor “redes sociais” desloca estes
sentimentos em uma amplitude mais global, com maior alcance não só de espectadores, mas
também de quem devolve a crítica ou opinião. Apesar de “democratizar” as opiniões e os
acessos, por outro lado as demandas que o corpo e a criação lidam vêm de lugares múltiplos,
tanto geográfica quanto intelectualmente. O corpo e a criação passam por afetos diferentes,
mas certamente em uma quantidade maior.
Se anteriormente, antes da internet e das redes sociais, a performance tinha um caráter
importante como ato de comunicação por acontecer em um tempo-espaço em sua forma
orgânica - o corpo - hoje as plataformas digitais viabilizam o corpo por outros vieses.

(...) performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um


momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de
participantes implicados nesse ato de maneira imediata. Nesse sentido, não é
falso dizer que a performance existe fora da duração. Ela atualiza
virtualidades mais ou menos numerosas, sentidas com maior ou menor
clareza. Elas as faz ‘passar ao ato’, fora de toda consideração pelo tempo. (...)
A performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em
que um enunciado é realmente recebido. (...) É verdade que a tecnologia de
nosso século de algum modo perturbou o esquema que eu esboço assim: a

109
introdução dos meios auditivos e audiovisuais, do disco à televisão,
modificou consideravelmente as condições da performance. Mas eu não creio
que essas modificações tenham tocado na natureza própria desta.”
(ZUMTHOR, 2018, p. 48)

Em 1990, já nos primórdios dos meios digitais, Zumthor concatena sobre a natureza
da performance não ser alterada por conta das novas tecnologias. Retomando a resposta de
Berna Reale em entrevista na qual disse que “o trabalho alcançou o público, incomodou,
desestabilizou e a intenção é causar um ruído, questionamentos”, a divulgação das fotografias
e filmagens em suas plataformas digitais, de fato, gera um movimento de recepção próprio da
performance. O corpo performático ainda comunica.

O que ocorre ao corpo na contemporaneidade é a alteração no seu estatuto.


(...) é a forma moderna do corpo que entrou em crise. Toda alteração no seu
estatuto não significa seu fim, mas o ingresso num novo regime corporal que
acompanha as transformações qualitativas da sociedade decorrentes dos
desenvolvimentos tecnológicos, econômicos, sociais, políticos e culturais.
Conectados às redes digitais, vivenciamos a virtualização do nosso sistema
perceptivo, sensitivo, comunicativo e interpretativo, os quais são ampliados
para além da nossa pele, fazendo-nos sentir instantaneamente estímulos
distanciados geográfica e temporalmente do nosso suposto centro corporal.
(PATZDORF, 2016, s/p)

Além disso, como dito anteriormente, a plataforma digital também se torna um


ambiente onde é possível performar. Os perfis do Instagram são centralizados em um
indivíduo, mesmo que seja um personagem ou perfil corporativo. É onde um usuário
transmite a imagem e um público a recebe. Sendo assim, a criação de uma persona nas redes,
independente de performance ou não, se torna um lugar possível para criação ou apenas para
viabilidade do trabalho. Questionado sobre o uso das redes sociais enquanto um lugar seguro
de produção - diferente da rua, onde se está mais vulnerável -, Tao me respondeu:

[Tao]: Hoje em dia eu tô nesses dois pensamentos na real, pensando que a


internet ainda é segurança embora eu não estou produzindo muito na internet,
também enxergando esse espaço como mais um lugar de validação e de
divulgação também. Usando umas hashtag certa você entra nos Trends e ai...
Alguém que tem os contatos te acha e você já vai pra outro lugar. Eu não sei
se pessoalmente isso é tão efetivo quanto na internet assim, não sei se dá
tanto retorno pendurar um quadro meu assim na rua e todo mundo que passa
se afetar por ele, eu acho que não daria certo assim, mas na internet é que tem
isso de ser essa ficção de que você faz absolutamente o que você quiser, e
boto fé que na internet eu pareça tipo ser uma pessoa muito séria, muito
dedicada ao meu trabalho, porque o que eu posto é tipo foto bonita, desenho
bonito assim, e ai eu criei uma imagem que não é o que eu sou. O que eu
acho massa da internet também, hoje em dia, é que naquela época que a gente

110
se viu pela primeira vez, eu estava muito nessa de tipo porra não to saindo de
casa, não tenho amigos, não tenho namorada, eu não tenho minha família por
perto, então tipo, eu só tinha a internet assim, e ai era tudo assim: se eu
dançava não olhava no espelho, olhava na câmera do celular, e postava,
queria que as pessoas vissem que eu estava vivona, vivendo...Da maneira
possível pra mim naquele momento. Também naquela época eu já comecei a
enxergar que quando eu postava essa série de processos de dança e de coisas
que aconteciam, tipo muita gente muito grande me seguiu nessa época, um
pintor famoso do México, me seguiu tipo do nada, tipo cantor famoso,
personalidades, Theo Becker é tipo lixo [risos] mas Theo Becker comentou
numa foto minha assim ele falou “meu, muito da hora o seu trampo” e eu
fiquei ‘isso não aconteceria em esfera nenhuma assim da vida real’ e é muito
louco pensar nisso, eu continuo achando a internet extremamente potente,
Instagram totalmente potente.

As possibilidades de um alcance em uma escala maior dentro das redes sociais,


portanto, dimensiona o trabalho em outra esfera. Tao Bruni, por exemplo, que faz parte de
um nicho artístico independente, vê na veiculação de vídeos e fotografias com as devidas
hashtags, um alcance e um engajamento de um público a qual interessa chegar: artistas,
galeristas, curadores e pessoas em geral deste meio artístico. Por outro lado, Tao utilizou da
plataforma para, como disse, mostrar que estava vivendo e poder estabelecer relações em
momentos de solidão. Mesmo que a pessoa ali retratada não faça jus à realidade (e o que
seria, portanto, a realidade?), cria pontes e vínculos para alcances que não foram possíveis em
espaços não virtuais.
Essas conexões são possíveis também porque o limite do profissional/pessoal dentro
das redes sociais fica borrado. De acordo com a experiência dentro das redes sociais, muitos
acontecimentos das quais as artistas estavam vivendo em suas vidas pessoais eram postadas e
compartilhadas no perfil do Instagram. Dois eventos que encontrei Tao pessoalmente,
inclusive, fiquei sabendo por divulgação em suas redes sociais, idem quando soube que ele
havia saído da cidade de São Paulo. A veiculação do trabalho então fica manifesta não só nas
imagens e vídeos, mas também nos eventos ou apresentações que a artista participa ou quais
movimentos está fazendo em sua vida pessoal. Este limite entre exposição da vida pessoal e a
profissional se torna algo a ser refletido para as artistas. Se o trabalho é um atravessamento
do corpo, e o corpo é atravessado pelas experiências pessoais, qual seria, portanto, o limite da
exposição?

111
Redes e limites

Na entrevista com Julha Franz, abordei os limites de um trabalho performático que


fale de questões pessoais, afinal é o corpo manifestado, mas sem entrar numa lógica egóica,
onde o trabalho acabe falando só de questões pessoais sem comunicar algo ao público, ao que
Julha respondeu, localizando a temática das redes sociais:

[Julha]: Eu fico pensando sempre nesses programas, já que a gente falou do


jornalismo e da comunicação, esses programas que mostram a vida das
pessoas, sabe? Ai, fulana de tal, e ficam contando a vida, e como as pessoas
são curiosas e a questão de vir de uma cidade provinciana, das pessoas
falando da tua vida, se interessando pelo que tu faz... E a questão das redes
sociais, eu já faço toda uma análise e que talvez socialmente seja interessante
tu mostrar tua vida, mas não tanto pra comunicar algo senão pra uma
sensação que eu tenho de especulação. Pra mim o problema de quando é
autobiográfico que tu não necessariamente consegue gerar um
questionamento, e sim uma especulação sobre tua vida, sobre tua
história...entende a diferença? E aí depende muito o que você quer, entendeu?
Se você quer expor sua vida porque isso é um processo seu e pra você é
importante falar sobre isso, é isso. O que vai gerar depois é consequência,
mas se você quer provocar um questionamento, não vai funcionar.

Traçando um paralelo entre as percepções das redes sociais de Berna Reale e o que
Julha Franz descreve, é possível refletir que um trabalho postado na rede social que apenas
expõe como transmissor, assim como a performance, em níveis menos abstratos, ou seja,
tratando de temas com objetividade, descrição, legenda, acaba por gerar mais especulação do
que atravessamento imagético que as artes visuais e do corpo causam no público. A
performance enquanto linguagem do corpo não exige explicações ou notas de rodapé para ser
inteligível e/ou sensível. As redes sociais criam uma nova demanda para o corpo que
performa. Não basta performar, dançar ou fazer uma ação corporal. Algo também precisa ser
dito, ou contextualizado e, caso não seja, a especulação e o julgamento estão em aberto nas
redes. As pessoas não assistem e vão julgar e especular silenciosamente, e sim se manifestar
nos comentários, fotos, fazer reviews a respeito, ou seja, a própria forma de recepção desta
linguagem se altera no sentido que o receptor é também alguém que, de alguma forma, está
performando. O crítico, o público que deseja explicações, o outro artista, enfim, este público
tem corpo e forma.
De alguma forma, isso altera as relações das percepções que temos sobre apreciação
da obra de arte em si. Socialmente acostumados a se portar diante de uma imagem de forma
hierárquica, onde o quadro, a escultura, a dança, ou apresentação tem algo a dizer e o público

112
tem algo a ouvir, e a entender também, neste lugar o público não está na posição passiva. Ele
assiste, mas também curte, e comenta no mesmo minuto, e pode em sua própria página fazer
sua crítica e gerar conteúdo em cima do que fora apresentado. Obviamente que as hierarquias
permanecem em números de likes e seguidores, afinal a visibilidade será de quem detém mais
público. No entanto, uma pequena crítica que gera um alto número de compartilhamento
afeta o artista e seu trabalho. O artista não é mais o detentor da criação.
Partindo do pressuposto de Paul Zumthor (2018) que performance deveria “englobar
o conjunto de fatos que compreende, hoje em dia, a palavra recepção” (idem, p. 18), a
performance, portanto, assume novas e diferentes formas de recepção dentro das redes
sociais. É sabido que não é apenas a performance que cria as interações das quais descrevo:
textos, imagens que não sejam performáticas, fotografias, também podem gerar esse tipo de
reação. Me detenho, portanto, a pensar especificamente o corpo performático, seja em
fotografia ou em vídeo.
Zumthor irá usar o termo “engajamento do corpo” para falar da experiência sensorial
de diversos elementos que ocorre durante o ato performático. O que é muito curioso nesta
terminologia é o fato de que atualmente o termo “engajamento” está associado ao uso que se
faz nas redes sociais. Em uma rápida pesquisa de busca no Google, um site especializado em
marketing23 conta que engajamento nas redes sociais nada mais é que o envolvimento que um
determinado perfil consegue criar com seu público. Isso passa desde interação por
comentários ou likes, como intimidade, que são as pessoas que conversam diretamente pela
caixa de mensagens, as direct messages, e por fim a influência, que é o que faz as pessoas
compartilharem o perfil, passarem adiante e indicarem. Pensando na correlação dos termos, o
engajamento do corpo performático nas redes sociais é o que se coloca para interagir, criar
intimidade e influenciar. O corpo que está vulnerável a recepcionar comentários, a ter quem
queira conversar sobre e quem também divulgue. Isso ainda não analisando o caráter das
mensagens, sejam elas de cunho positivo ou negativo.
Para o corpo estar engajando dentro das redes sociais, é necessário que esteja em um
suporte de vídeo ou fotografia. Muitas vezes a produção audiovisual em si não serve
meramente como registro: a produção faz parte do processo criativo da performance,
inclusive o refinamento da escolha de luz, local e edição. Isso faz com que muitos performers
- e pelo menos as três artistas que compõem esta pesquisa - tenham preocupações para além
da produção gestual e física, mas também conhecimentos técnicos de fotografia, vídeo e
23
“O que é mesmo engajamento?” https://novaescolademarketing.com.br/o-que-e-mesmo-
engajamento/ - Acesso em 9 de novembro 2020
113
edição. Isso havia sido uma questão no meio performático e na própria crítica de arte, se o
fato da performance ser documentada perdia o caráter da experiência performática enquanto
ritual. Perguntei para Julha Franz a respeito:

[Julha]: Sobre videoperformance e performance, eu tenho uma visão bem


contemporeazaça, de que videoperformance é performance. Você vai ver a
minha maneira de gravar. Pra mim é uma performance minha gravação, meu
tipo de videoperformance é quase um registro de uma performance, por mais
que eu edite depois, e realmente rola edição. Eu registro toda uma
performance que é feita na hora e isso vira um produto de videoperformance,
entendeu? Não tem como não dizer que é corpo, porque é meu corpo ali. De
novo, o corpo não é fictício. Eu não tô fingindo nada, eu to fazendo ali, eu to
sentindo, nunca boto meu corpo em situações que eu precise fingir. Eu
sempre provoco o corpo, e aí que eu acho que é a grande diferença também.
Eu não vou chegar na frente da câmera e começar a falar qualquer bobagem.
Pra mim...posso fazer isso, tá? Mas pra mim isso não é performance, pra mim
é uma encenação. Eu vou cantar ao vivo o hino nacional em inglês, eu podia
fazer essa performance numa galeria. Não faço por que? Porque não tem o
mesmo alcance, com vídeo eu consigo muito mais gente, então vou fazer
vídeo para câmera, e isso vai virar uma videoperformance. Não tem como
não considerar videoperformance, não é videoarte, é videoperformance, meu
corpo, é o momento, capta tudo, entendeu? Não existe coisa igual a
performance presencial. Só que o corpo em cena ao vivo em relação a outro
corpo, nunca vai existir um momento tão mágico quanto esse, mas eu consigo
ter intimidade o suficiente com a câmera pra poder fazer isso. E aí eu acho
que vira uma videoperformance.

[Bárbara]: E sobre alcance em rede social? Porque é um mundo, mais um


mundo paralelo, existem vários mundos, né? Performar pessoalmente, pessoa
que vai na galeria e vê uma performance, e pessoa que abre o celular, esteja
em qualquer parte do mundo, e vê sua performance. Como você vê seu
trabalho em relação à isso, não sei, como as pessoas estão lidando com isso
no mundo, você enquanto artista.

[Julha]: Eu acho que esvazia muito, mas acho que é uma forma de comunicar
e chegar em mais pessoas, então acho que tem que desapegar e pensar,
beleza, é minha forma de conseguir atingir mais gente que só a visitação de
museu, que são pouquíssimas pessoas que vão numa performance presencial,
entendeu? Então eu vejo uma forma mais superficial, mas também não posto
performances inteiras. Nunca. Então meu conteúdo de Instagram é
direcionado para Instagram e já é mais superficial por si só. Eu faço textos
mais longos pra quem quiser ler, é foto duma performance, um fragmento,
um teaser, nunca é a performance inteira, porque eu não acredito nesse tipo
de comunicação. Pra isso, entendeu? Então é um pouco selecionado. É
diferente essa maneira de apresentar trabalho no Instagram e na galeria ou
num museu.

Sendo assim, a performance não se transfere automaticamente para as redes sociais.


Tanto Berna, quanto Julha e Tao não produzem vídeos integralmente no Instagram. Tao
Bruni tem um canal do Vimeo que tem finalidade de portfólio, mas não funciona da mesma

114
maneira que o Instagram com a mesma quantidade de engajamentos em comentários ou
ademais interações. O Vimeo é mais uma plataforma de vídeos de maior qualidade do que
uma rede social como o Instagram. Sendo assim, nesta plataforma não existe o tal do
engajamento, servindo mais como um local para que as pessoas conheçam seu trabalho na
íntegra. A performance é adaptada às redes sociais como divulgação, e muitas vezes como o
cartão de visitas para produções da artista em outras versões, plataformas e até mesmo
pessoalmente.
Especificamente Berna Reale não produz performances a serem assistidas ao vivo
para um público específico. As performances, muitas vezes, acontecem na rua ou em locais
públicos com pessoas passando. Apesar de seu planejamento prévio, a performance não é
anunciada que irá acontecer. É o que diferencia das duas outras artistas, o fato de nenhuma
apresentação ser feita à público com a intenção de ser assistida enquanto performance. O que
seu público cativo, que a conhece, tem acesso são somente os registros em vídeos ou
fotografias. Em uma fala de Berna Reale na abertura de sua exposição, Gula, em 2018 na
Galeria Nara Roesler, uma pessoa perguntou sobre seus vídeos que são curtos e repetidos em
looping e questionou, em seguida, como é a performance que Berna executa na rua e como
ela lida com o espectador, ao que ela responde:

[Berna]: Essa questão da repetição é muito importante, porque, por exemplo,


as performances são muito curtas em vídeo, né? Só que na realidade elas
duram duas horas. Por que duas horas? Uma hora e meia, duas horas? Porque
duas horas é o tempo que eu garanto que eu vou ter vários tipos de imagens
ali, né? E é um tempo. Na rua também muitas pessoas vêem, eu sou uma
artista da rua, eu gosto da rua, eu gosto de fotografar, eu gosto de fazer
instalação, a rua é onde eu sinto prazer mesmo, é onde eu vou pra rua, eu to
louca pra ir pra rua porque faz tempo que eu não vou e eu gosto da rua, é...O
vídeo ele tem três minutos, porque eu detesto aqueles vídeos de horas que
fica ali, sabe? E passa aquela árvore, aquele balanço, aquele negócio, depois
tem uma pessoa, encontra com a outra, eu não gosto, eu não sou assim, sou
elétrica, então os meus vídeos eles são curtinhos, só que curtinho que se
repete, ele se repete como uma coisa de você ver várias vezes aquilo que se
repete no cotidiano, então você pegou bem, é uma coisa precisa, objetiva,
mas que ela se repete várias vezes, é uma intenção, né? Eu não vejo quando
eu estou na rua, respondendo a segunda pergunta, eu não vejo a expressão de
ninguém, eu estou tão concentrada, tão concentrada que eu não vejo
absolutamente nada, eu só vou ver na edição, porque eu edito todos os meus
vídeos, né? Tenho um técnico que trabalha comigo, mas eu faço a edição e no
final eu peço pra várias pessoas verem, da ideia, gostei daqui, não gostei, mas
é na edição que eu vou ver a reação das pessoas e eu procuro não
comprometer essas pessoas também, né? Geralmente eu pego umas pessoas
que estavam de costas, as pessoas que estão longe porque também tem que
respeitar a imagem do outro a partir do momento em que eu já passei pela
rua, eu não vou ver aquela pessoa, eu não sei onde aquela pessoa mora, e eu

115
tenho que respeitar a imagem do outro, é uma coisa que eu me preocupo
muito.

Berna Reale vive uma experiência sensorial na rua. O momento ritual performático
acontece no espaço público, independente do público ao redor. O que fica conhecido entre o
público e acaba indo para as redes sociais são os registros, que com certo rigor técnico, tem
edição, privilegiam cenas, movimentos e afins. Nas redes sociais o público tem acesso a um
fragmento do acontecimento performático. Por outro lado, Tao Bruni tem um atravessamento
diferente do seu corpo em relação ao espaço público. Seus trabalhos são disponibilizados na
íntegra em vídeos, e com grande refinamento estético de edição. Como Tao colocou
anteriormente, seus conhecimentos de fotografia e vídeo são anteriores ao de performance, o
que faz com que tenha uma composição estética na sua criação. O trabalho não se encerra no
corpo, é também o empenho que ele faz na edição, luz, fotografia e afins. Quando perguntei
sobre o corpo em risco dentro do fazer performático, Tao me colocou sob outra perspectiva,
incluindo a questão das ruas:

[Tao]: Eu penso que por situações de risco real, tipo risco muito sério, por
contato com outras pessoas, performando na rua e tal, tem performances que
buscam esse tipo de interação, que sabe da bestialidade das pessoas e vai no
fundo dela. Mas como eu vivencio isso, a bestialidade das pessoas sempre, a
bestialidade das pessoas é inerente a minha existência enquanto pessoa negra
e corpo dissidente, eu prefiro ficar tranquila e fazer da performance mais um
lugar tipo gostoso, mesmo que pareça que eu esteja fazendo alguma coisa
absurda, e eu to fazendo porque eu quero assim. Fazer as coisas da maneira
que eu quero já é uma coisa que não tive acesso a minha vida inteira. Já é
uma nova maneira de entender meu corpo no mundo, pra mim não é um lugar
de risco a minha performance da maneira que eu faço hoje, da maneira que eu
fiz até agora, mas pode ser que seja se eu pegar isso que foi apresentado
pontualmente em algumas situações e levar isso pra rua.

[Bárbara]: E você tem vontade de fazer isso ou não? [ir para rua]

[Tao]: Nossa nem fudendo [risos] Nossa não mesmo eu tenho medo real.
Tipo, eu já apanhei na rua, eu não quero apanhar de novo. Não sei, na rua a
única performance que me interessa pro meu corpo fazer é essa de sair na rua
indo comprar um pão, tá ligado? Com a cara que eu tenho, com o cabelo que
eu tenho, eu não preciso de mais nada pras pessoas já pensarem em mil coisas
quando me olham então, pra mim já é o suficiente assim...[risos]

São falas como esta de Tao, que localizam o corpo dentro de um tempo e espaço, de
forma social e geopolítica, que nos fazem atentar que não é possível fazer uma leitura acerca
da performance, assim como o corpo, sem uma localização deste corpo. Pensando em redes
sociais e produção de conteúdo via plataformas digitais e online, a produção da performance

116
não só tem um alcance maior, como torna possível acessos de corpos dissidentes para
produção e divulgação de seu trabalho. Em certa perspectiva e com muito cuidado nesta
análise, as redes sociais são uma forma de desmantelar a hierarquia de quem tem e quem não
tem visibilidade no meio artístico. Sendo assim, além de tirar a lógica hierárquica entre artista
transmissor e público receptor, ou artista criador e público espectador, também questiona a
lógica do corpo que só performa se estiver ao vivo ou na rua. Retomando as palavras de
Julha, mesmo filmado, o corpo não deixa de ser um corpo. Este corpo é um símbolo e tem
agência.
Colocando alguns cuidados em perspectiva, Tao me contou alguns de seus estudos
sobre afrofuturismo, que aponta algumas questões perigosas que aparecem nas redes sociais,
como a lógica da perseguição e criminalização se utilizando de questões raciais através dos
algoritmos, como identificar “criminosos” por um fenótipo. Não é possível ter uma leitura
global da facilidade das redes sociais visto que muito da lógica offline é colocado nas
plataformas virtuais. No entanto, o mesmo movimento afrofuturista, como me contou Tao,
aponta para perspectivas de acesso que sejam viáveis e transformadoras. As redes sociais
aparecem como uma plataforma impulsionadora, mas com o devido cuidado e militância do
entendimento da lógica interna das tecnologias.
Outro ponto importante a ser ressaltado, é o fato de que Tao Bruni, apesar de produzir
e divulgar online, não exclui o desejo e o almejo de trabalhar com instituições, justamente
pela estabilidade financeira e notoriedade que estes espaços dão para quem trabalha com
artes. As redes sociais, assim como a performance, são um lugar que parte da dissidência,
mas não necessariamente reafirma o lugar da margem como permanência. A possibilidade de
produzir outros trabalhos que não envolvam a pauta racial, por exemplo, é uma dessas
nuances que não permitem que façamos análises engessadas sobre as produções dissidentes,
como se elas produzissem apenas um monotema sobre suas dores pessoais. A compreensão
das questões sociais, econômicas e geográficas é justamente o ponto para que não caiamos
numa abordagem universalista e única, onde não se pode julgar que do corpo que foge à
norma não há possibilidade de abstração e criação de outra ordem.
Retomando o conceito de communitas, de Victor Turner (2012), e endossado por
Renato Cohen (2013), citado nos capítulos anteriores, é entendido que a solidariedade entre
os participantes do ritual performático vai depender da forma como e onde este ritual
acontece. As redes sociais, ainda que um espaço de alcance maior, também aproxima a quem
interessa o conteúdo disseminado. Quando ocorre o engajamento e a divulgação do trabalho,
mais pessoas interessadas se aproximam. Me ocorre contar que já havia divulgado o trabalho
117
de Tao Bruni nas minhas redes e, posteriormente, notar que alguns dos meus contatos na rede
social estavam também interagindo com suas postagens. Sendo assim, a rede social cria a
possibilidade de aproximar redes de apoio e interessados nas temáticas apresentadas em cada
perfil, podendo impulsionar e dar uma visibilidade diferente a este trabalho.
No entanto, o corpo que se expõe e que se engaja, tem uma agência e atravessamentos
próprios de um contexto. Não é possível fazer uma leitura sobre performance nas redes
sociais e o uso do corpo sem considerar estes elementos em conjunto. O corpo que está em
engajamento, também está se relacionando com estímulos e estruturas que partem de uma
sociedade com processos históricos, como o machismo, racismo, homolesbotransfobia etc. A
rede social pode mascarar ou disfarçar por conta da assimilação e do grande engajamento, por
exemplo: uma pessoa que tem muitos seguidores e é muito estimada na rede social não está
isenta de sofrer racismo nas ruas ou na própria rede social.
Uma leitura decolonial dos corpos visa não só localizar os corpos no tempo e espaço,
como desmantelar a visão que se tem deles. Como dito anteriormente, não esperar que os
corpos representem pautas que falem só das suas experiências pessoais, especialmente as que
envolvem questões políticas de dor e violência. De certa forma, isso é criar uma expectativa
que corrobora os discursos hegemônicos e não dão vazão para que as pessoas possam criar a
partir das suas abstrações, amores e desejos. Reconhecer a potência artística dessas artistas
para além do discurso importante que elas trazem através do seu trabalho e também dos seus
corpos. Além disso, não encerrar a análise das redes sociais como única saída para produção
dissidente, apenas um meio, mas objetivando ocupar outros espaços.
De forma geral, abordar o corpo nas redes sociais é um tema bastante abrangente e
com pesquisas responsáveis em curso e da qual me detive especialmente na questão
performática. Há uma certa concordância entre as artistas de que a plataforma é um meio de
divulgação, da qual faz parte boa parte da interação performática. No entanto, a criação ainda
acontece no corpo. Ainda que filmado, gravado, editado e exposto nas redes sociais, as
artistas estão presentes e existindo quando estão performando. Tao e Julha no ambiente
doméstico, Berna Reale nas ruas, ainda que sem um público que está propriamente
aguardando a ação. A diferença dessas dinâmicas, inclusive, é própria dos atravessamentos
que cada uma tem em particular por questões raciais e geopolíticas. A rede social é muitas
vezes o portfólio e extensão do trabalho em si, não uma mera ferramenta. No entanto, o
corpo, nos três casos, ainda existe. Não contamos aqui com simulacros, corpos em 3D,
hologramas ou robotizados. A experiência acontece no momento da filmagem, com ou sem
público.
118
Se tratando da performance enquanto experiência sinestésica que envolve a
ambientação, me remeto a um questionamento sobre a própria conceituação da performance:
a cristalização da história da arte em colocar a performance em um lugar público e coletivo. É
sabido que a performance se manifesta enquanto lugar de expressão artística em contextos
políticos das ruas, galerias e espaços públicos em geral, ao que outros tipos de rituais também
performáticos como a dança e jogos também acontecem em um espaço compartilhado e
coletivizado. Porém o ato solitário, não-visível, seria o quê? O corpo que dança e performa
sem espectador não seria um corpo performático?
Este exercício de ocultação da presença física manifestada no presente é o que vemos,
por exemplo, na literatura. Uma pessoa que escreve, seja para fins poéticos ou teóricos, mas
ainda assim, escritor, é um sujeito que oculta sua presença e a faz manifesta através das
palavras, assim como eu o faço neste momento.

Fundamental ao efeito da recepção/performance na leitura é a omissão dentro


da escrita. No vácuo gerado com a retirada de informações e dados concretos,
ocorre a reação de apropriação por parte do leitor. Basicamente, o autor tira
elementos da história com intuito de abrir espaço para o leitor criar. Zumthor
aponta que a partir do século XV a leitura perde a característica oral e
comunitária e passa a ser “puramente visual e muda” (2007, p. 55). A
natureza coletiva da atividade, na qual o importante é a mensagem
edificadora expressa, é substituída por uma experiência individual. A
diferença não é só na finalidade da narrativa (mensagem versus falta de
mensagem), mas em como o corpo recebe esses tipos diferentes de leitura.
(MASTROBUONO, 2019, p. 47)

Este trecho sintetiza a experiência do corpo do receptor ao ler um trabalho literário,


no qual alguns autores se utilizam das ausências e da produção de alguns sentidos na
narrativa para apurar a imaginação do leitor e criar alguns efeitos sinestésicos durante a
leitura. Neste sentido, o criador produz o trabalho de forma solitária para também uma leitura
possivelmente solitária. Podemos traçar um paralelo interessante entre o exercício da leitura
literária e a performance do corpo nas redes sociais. O corpo ao produzir uma criação em seu
ambiente doméstico ou em algum estúdio, solitário, como no caso de Julha e Tao, vive uma
experiência que quer se comunicar com alguém que irá ver, porém apenas no futuro. No
momento presente é apenas a ação solitária interagindo com a câmera. O momento de
compartilhamento é posterior. Do outro lado da tela, o efeito é semelhante: frequentemente
quem vai assistir a performance em vídeo ou ver as fotografias está sozinho na frente do
computador ou de um aparelho móvel, como celular ou tablet, por algo que foi feito no
passado. A experiência sinestésica dos sentidos que ao ver as performances das artistas

119
produz é sentida de forma individualizada. Da mesma forma, podemos traçar um paralelo
entre o escritor que elege a ordem das coisas escritas para o performer que, após gravar sua
performance, a transforma na edição. A escolha de cores, luz, momentos, música e outros
efeitos é como construir um filme, mas colocando o próprio corpo em cena. E, desta forma,
se assemelha mais ao escritor do que a um diretor de cinema, pois este que tece uma narrativa
na medida que cria sozinho, sem a produção de uma equipe, se utilizando apenas do próprio
corpo para construir a própria narrativa.
Considerando que a performance mantém sua natureza ritualística, ela atravessa um
espaço-tempo interessante entre o momento da ação e o momento em que se é visualizado. O
ritual enquanto uma suspensão do tempo aqui se efetiva: o corpo que performa será
visualizado apenas no futuro. O corpo já visualizado foi performado no passado. O instante
em que se assiste a performance é o presente. Desta forma, a performance cumpre sua função
de ritual ao nos atentar ao momento presente, um efeito sensorial que atravessa noções de
espaço e de tempo.
A finalidade desta análise é inconclusiva. Talvez uma maneira de compreender que a
performance nas plataformas digitais não se perde apenas por ser um trecho ou por ter uma
tela como mediadora. É certo que muitas vezes as redes sociais podem criar um
distanciamento, e considerando que a organização coletiva destas reuniões e o viver junto são
extremamente importantes não só como expressividade artística, mas também para
sobrevivência de muitos grupos enquanto resistência. No entanto, não podemos nos lançar de
uma leitura ortodoxa da performance que desconsidere o efeito da performance ao ser
visualizada de outras formas que não o ao vivo. Relembro das minhas primeiras impressões
com os vídeos de Tao Bruni e todos os receios e dificuldades que me surtiam de ver o vídeo
até o final. Não deixa de ter uma impressão sensorial.
Para além dos efeitos sensoriais, ao criarem este atravessamento emocional, torna
possível a projeção das artistas, como já dito, em outras esferas. Possibilitando que a
disseminação do trabalho de Tao Bruni nas redes ganhe impulsionamento para ocupar outros
espaços, inclusive os institucionais que dê notoriedade ao seu trabalho, ou de Julha Franz que
se utiliza de outros efeitos visuais, como música e edição de vídeo, para criar representações
visuais e Berna Reale que tem outra interlocução da crítica de seu trabalho por conta do
espaço virtual. Como coloca Zumthor, o ato da leitura na esfera privada continua por
coletivizar anseios e inquietações, e dessa forma a performance vista por plataformas digitais
que geram engajamento, também terão seu alcance, ainda que de forma individual, geram
uma comoção de maneira coletiva:
120
O fato de termos uma apropriação individual da narrativa não significa
necessariamente que a coletividade ou de um conjunto compartilhado de
valores desapareceu, acarretando a deturpação da esfera social. Muito pelo
contrário. Vemos nesse movimento uma possibilidade para que segmentos da
população até então marginalizados e excluídos da narrativa socialmente
aprovada se apropriarem da narrativa que, a partir de então, constroem
juntamente ao autor. (MASTROBUONO, 2019, p. 28)

Este seria, portanto, o resultado do engajamento do corpo. Considerando que a


produção e elaboração deste capítulo foi desenvolvido especialmente por conta do contexto
de pandemia da covid-19 em 2020, as redes sociais também devem ser encaradas como um
suporte e auxílio não só para divulgação, mas também para o trabalho continuar sendo feito e
divulgado ao público, já que a disseminação do vírus torna mais dificultoso e de maior risco
sanitário a performance em vias públicas ou em aglomerações como eventos artísticos. Isso
demonstra não só que é o trabalho dessas artistas que está na rede, mas também o anseio de
estar em movimento, nos retomando o porquê das performances ainda existirem e continuar,
reverberando, tanto na artista que produz, quanto no espectador que visualiza,

A performance se origina da necessidade de fazer que as coisas aconteçam e


entretenham; obter resultados e brincar; mostrar o modo como são as coisas e
passar o tempo; transformar-se em um outro e ter prazer em ser você mesmo;
desaparecer e se mostrar; incorporar um outro transcendente e ser ‘apenas eu’
aqui e agora; estar em transe e no controle; focar no próprio grupo e
transmitir ao maior número de pessoas possível; jogar para satisfazer uma
necessidade pessoal, social ou religiosa; e jogar somente com contrato ou por
dinheiro! (SCHECHNER, 2012, p. 83)

Sobretudo, a performance reitera a existência, mas a existência de um corpo, da


matéria, do fluido, do movimento, da voz e do som. Visível aos olhos ou mediado pela tela,
sobretudo um corpo. Sozinha ou acompanhada, sobretudo um corpo. Quem expressa é o
corpo. Quem existe é o corpo.

121
CONCLUSÃO

Para concluir foi necessário ler, maturar, fazer conexões, ir para campo, conversar,
experimentar, escrever, revisar, escrever mais, e ao final, quando tudo foi vivido, lido e
escrito, me detenho a escrever esta conclusão. Se anteriormente vislumbrei uma possibilidade
de estar performando uma antropóloga, pesquisadora ou acadêmica, seria este então o fim da
minha performance? Eu concluo, o tempo limiar e suspensão agora vai se dar em revisões,
limpezas de texto, envio para a banca, o ritual de leitura das membras da banca, o ritual do
julgamento da minha dissertação, o parecer e, se tudo se encaminhar para aprovação,
encerramos. Encerramos a performance?
Um dos questionamentos que me fiz ao longo da pesquisa foi se a performance
começa e acaba, qual o tempo da performance? Onde mora este limiar? Se performance é
corpo, o corpo interrompe o momento limiar e volta a trivialidade? Acabei por perceber que o
limiar está apenas no presente. Os significados dependem dos contextos colocados, os
atravessamentos que estes corpos têm e os que eles se propõem. Até um quarto solitário com
a câmera ligada pode ser uma performance. Sendo assim, finaliza-se, conclui-se esta
dissertação, e a pesquisadora sairá da sala e do último ponto final ainda pesquisadora, mas se
propondo a outro tipo de performance, talvez com outra nomeação. Talvez eu não esteja mais
em uma universidade, não faça doutorado, ou que eu avance até o pós doutorado e tenha uma
carreira acadêmica e ainda me desenrolarei em muitas performances de acordo com as
proposições que meu corpo faz. Concluo esta performance minha, de fato, chamada
dissertação de mestrado, concluindo também as ideias e presenças aqui evocadas.
A proposta da dissertação que era pensar atravessamentos de gênero na performance
artística, em contrapartida a uma bibliografia que aborda a performance sob o viés de um
corpo universal, acabou por seguir este caminho e descobrindo muitos outros. O exercício foi
dispor de meus dispositivos ópticos e saberes situados para uma experiência de pensamento
com artistas também situadas no gênero, raça, localização geopolítica e temporal de seus
corpos e afetos. Os corpos não partem do mesmo lugar, não têm os mesmos atravessamentos
e, consequentemente, ainda que todos criem pela performance, elas se colocam no mundo de
formas diversas. Dessa forma, olho para trás do discurso do corpo universal e passo a
questionar esta estrutura fundante destes discursos. Estruturas seculares, que não foi possível
de abordar em toda a dissertação, mas que optei por olhar privilegiando discursos sobre
linguagem e imagem. Sendo assim, criar discursos sobre corpos diversos seria apenas

122
acrescentar mais páginas sobre as elaborações sobre arte da performance. O que acabou por
se tornar mais relevante e fundamental foi o questionamento do nosso olhar, como direciona-
se às abordagens sobre corpo, performance e criação artística através do corpo. Partir de um
referencial uno de arte, de corpo e performance não resolve a questão de uma outra leitura, e
sim só varia pontos de vista de uma mesma estrutura.
Ao longo da dissertação, toda vez que me defrontava com uma leitura ou metodologia
que mobilizasse alteridade e produção da diferença, me percebia situada em um local do
mundo, e produzindo discursos através destes posicionamentos. Foi assim que, ao longo da
escrita, uma abordagem que seria feminista acerca do corpo acabou por ir para um caminho
do decolonialismo, ainda que seja também um feminismo decolonial. As questões de gênero
são uma das tantas categorias que a colonização e branquitude criaram para controlar corpos
e manifestar seu poder. O que era para buscar as semelhanças e diferenças em três artistas
lidas socialmente como mulheres ou femininas no exercício performático, acabou me abrindo
perspectivas interessantes sobre diferentes atravessamentos para além das questões de gênero.
E quais as semelhanças? Partindo da premissa que há muitos feminismos, justamente
porque há muitas experiências em ter nascido no sexo designado como feminino, as
semelhanças ficaram mais borradas do que as diferenças, ao contrário do meu ponto de
partida. As semelhanças se dão dentro do lugar e localização que as três interlocutoras
nasceram, cresceram e vivem dentro de um sistema, no Ocidente, que é hegemonicamente
patriarcal e misógino, sendo recorrente a exploração, violência, repressão e silenciamento de
mulheres em diferentes matizes e intensidades. As três artistas aqui em foco, em suas vidas e
performances, escolhem não se adequar ou conformar com o esperado de uma “mulher”. Em
meio a suas singularidades, elas convergem nas disrupções. Disrupções essas que chegam até
meus olhos e experiência, me mostram a possibilidade de ser um corpo para além do que eu
entendia sobre um corpo. Há muito mais sobre essas artistas que não consegui abordar nesta
dissertação, mas que as tornam igualmente, semelhantemente, complexas em suas vidas.
O primeiro capítulo propõe um olhar para a história da arte performática que
considere corpos em seus atravessamentos diversos não apenas na produção artística, mas
como parte dela. De encontro a abordagens que excluem o artista da análise de suas obras,
considero que a construção da pessoa em seus atravessamentos singulares, o estar no mundo
e suas relações são também parte do seu processo artístico e do trabalho final que chega ao
público. Ao chegar no público, vão se criando novas relações, e este processo se torna fluido,
diverso e rico em contradições e coerências. Esta abordagem também inclui na cena a
pesquisadora que está criando a narrativa, como alguém também inserido em um tempo,
123
localização e com diversos atravessamentos, o que a leva a se responsabilizar pelos discursos
que faz e revelar de onde parte sua fala não apenas enquanto referencial teórico, mas também
como sujeito histórico e socialmente posicionado. Pesquisadora e artista estão vivas
contemporaneamente, portanto também se relacionam e se afetam entre si. Partem de locais
distintos, por vezes próximos, mas o encontro de ambos os corpos se dá numa combinação
local e temporal que incide na performance antropológica da escrita.
No Capítulo II e III discorro sobre esses encontros, remetendo a performances de Tao
Bruni e Julha Franz, assim como suas vivências e experiências enquanto sujeitos no mundo.
O que concluo, a partir de nossas experiências, é ,que ainda que partam de algumas
semelhanças – em termos de gênero não binário, orientação homossexual e por serem artistas
da performance – seus atravessamentos seguem caminhos distintos. Eu já esperava que
seriam diferentes, mas as descobertas e contrastes que lidei ao longo do trabalho foram muito
mais imensos e profundos, expondo, novamente, não apenas uma diversidade de corpos, mas
uma configuração social que implica diferentes acessos ao mercado de arte, museus,
instituições culturais e universidades. Tais diferenças apontam a emergência da
descolonização dos nossos saberes e olhares. A performance se apresenta como um lugar de
potência, que nos “obriga” a ver o que muitas vezes o discurso hegemônico não está
narrando. Por mais contradições que relações dentro e fora dos corpos carregam, o corpo vivo
traz o discurso e, através dele, chama atenção para o orgânico, não-linear e todos os fluidos e
experiências de poder e violência impressas no corpo mesmo que não sejam verbalizadas. A
performance, ainda que inserida e afetada por configurações sociais de poder e violência,
pode ser um caminho de resistência e dissidência.
Por fim, no Capítulo IV, o que era para ser uma narrativa sobre o corpo performático
nas redes sociais da internet, acaba por trazer uma reflexão sobre a temporalidade e
espacialidade da performance. Se a performance nos chama pro corpo, o que é o corpo num
espaço etéreo do qual chamamos de virtual? Ainda que as relações dos corpos estejam se
modificando, e que os estímulos e interações tenham se potencializado – o que altera o estar
do corpo – ainda temos um corpo na produção performática, mesmo que mediado por telas.
Por meio da pesquisa em meio virtual, pude me aproximar do trabalho de Berna Reale, a
despeito da dificuldade de interlocução direta com a artista. Pude acompanhar a repercussão
de suas obras no mundo das redes sociais, sua interação com o público e ainda construir uma
relação minha com seu trabalho. O que era uma frustração da ausência da interlocução direta
com Berna Reale, acabou revertendo em um capítulo sobre a internet e as redes sociais,
ferramenta e elemento que fez possível muitos atravessamentos e contatos para esta pesquisa.
124
Já vimos sentindo intensamente o impacto das relações virtuais em nossas vidas, mas
elaborações sobre seus limites e possibilidades na pesquisa constituem um campo recente de
debates. Cabe lembrar que, aos finalmentes da dissertação, os países afetados, incluso Brasil,
pela pandemia do novo coronavírus ainda se encontram em situação pandêmica, alguns
iniciando as vacinas, mas ainda não temos perspectivas de um cotidiano semelhante ao que
vivíamos, o que nos causa profundo temor.
Durante esses longos oito meses de pandemia, dos quais seis foram de quarentena
completamente restrita de contatos externos, busquei refletir sobre a questão do ritual em
nosso cotidiano. O que a performance me ensinou, sobretudo, foi sobre sua função ritualística
de suspensão do tempo que nos foca no momento presente. Talvez por isso achei
emocionante pensar que um corpo performa solitário, sendo gravado, mas ainda performa.
Ainda ritualiza. Os rituais são fundamentais para a existência coletiva. São nos rituais que
retomamos nossas cosmologias de origem, de fé, de crenças, e também onde celebramos
nossas vidas, os antepassados ou os anos que acumulamos. Na performance, ainda que trate
de assuntos mais complicados, ainda é a celebração do corpo vivo e presente. Foi com
profunda beleza, mas também melancolia que pude refletir sobre a ritualização dos corpos
durante a performance.
Corpos performam suas dores e essas performances celebram a vida desses corpos.
Essas artistas celebram suas dissidências e a não conformidade com uma estrutura violenta. E
escrevo essas palavras num contexto de morte, desgoverno e violência social. O advento da
internet intersecciona afetos da pele e das telas, mas a pandemia vem também produzindo
distâncias. Nossos rituais cada vez mais distantes, feitos por videoconferência, apenas como
uma ideia e não mais de matéria sinestésica. Como eu disse, ainda não é possível prever os
impactos de nosso futuro que ainda são incertos. No entanto, o que consigo afirmar com esta
pesquisa é a vontade dos corpos ritualizar e estarem vivos. Temos tela, internet, postagens,
storys, mas ainda estamos sedentas por rituais, festas, performances e encontros presenciais.
Se minha premissa inicial é que se um corpo é de fato atravessado e elaborado de
formas distintas na performance a depender do seu gênero, a resposta é sim, mas isso é só
uma parte de um todo de atravessar-se. Se existe um momento limiar de suspensão no
momento da performance, onde somos dotadas de um poder diferente, e se isso vale para
todos os corpos que performam, a resposta é relativa para os corpos de acordo com suas
vivências. No entanto, consegui compreender um certo tipo de poder que escapava à minha
vista: a vida. O prana, a alma, o presente e o agora. Ritualizamos porque vivemos e somos
agradecidas por essa vida, ainda que cheia das suas dores e contradições.
125
Neste momento, em que minha performance-pesquisadora se encerra, me encontro
sentada, solitária, penso em minhas interlocutoras, na banca, orientadora, colegas de curso,
alunas, e no privilégio de viver entre todas essas relações. Ainda que estejamos vivas em um
contexto social e político tão complicado, com rituais restritos e alguns receios, estamos todas
vivas. O corpo que performa declama que, ainda que não gostem, estamos vivas.

126
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