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Nina Paim
Introdução
Maryam Fanni, Matilda Flodmark, Sara Kaaman
Conversas
Trecho de uma conversa com Inger Humlesjö
Trecho de uma conversa com Ingegärd Waaranperä
Trecho de uma conversa com Gail Cartmail
Trecho de uma conversa com Megan Dobney
Fac-símile de Bookmaking on the Distaff Side,
Seriam as mulheres inimigas naturais dos livros?
Notas
Créditos
Prefácio à edição brasileira
Nina Paim
***
Distribuir e controlar a mensagem de forma autônoma é
crucial para qualquer movimento ativista. Ritu Menon,
cofundadora da Kali for Women, a primeira editora feminista
da Índia, enfatizou que toda vez que houve uma insurgência
do movimento das mulheres, também houve um levante da
imprensa feminista.[1] Não é surpresa que o Movimento de
Libertação das Mulheres dos anos 1960 e 1970 tenha aberto
o caminho para o que mais tarde ficou conhecido como o
movimento Women in Print [Mulheres na impressão]. Só na
América do Norte, mais de cem livrarias feministas
construíram “uma rede transnacional que ajudou a moldar
alguns dos debates mais complexos do feminismo”, como
apontou Kristen Hogan em The Feminist Bookstore
Movement [O Movimento Livreiro Feminista]. No Brasil, a
imprensa feminina e feminista tem uma longíssima tradição
que vem sendo explorada por muitas pesquisas recentes,
desde períodicos do século XIX como Belona Irada (1833-
1834) ou Jornal das Senhoras (1852-1955), passando por
títulos como Nós Mulheres (1976-1978), Mulherio (1981-
1989), Nzinga Informativo(1985-1989)[2], até iniciativas
atuais, como a plataforma digital AzMina, iniciada em 2015.
De jornais, boletins, revistas e outros periódicos a editoras
feministas, como Virago, Spinifex, Kali for Women, Kitchen
Table Press e tantas outras; esse surto de publicações
feministas criou uma infraestrutura de comunicação
controlada por mulheres que foi verdadeiramente
internacional em escala e escopo. Sua força não estava
numa única editora ou título internacional, mas em sua
interconectividade. Segundo a estudiosa feminista Agatha
Beins[3], os periódicos fizeram circular informação, ajudaram
a construir e reforçar redes e criaram uma comunidade
imaginária de feministas, articulando teorias e contando
histórias de mulheres. As publicações constituíam
verdadeiros locais de encontro onde as leitoras estabeleciam
relações com o movimento e entre si, construindo
comunidades a despeito da distância geográfica.
A edição feminista entrelaçou historicamente o pensar e o
fazer. As mulheres tiveram que assumir o controle dos meios
de produção – as prensas – para poder se expressar e levar
adiante suas ideias. Quando Maryam, Matilda e Sara se
debruçaram sobre tipos de metal, colaborando
reciprocamente no ajuste dos detalhes de seu design,
entenderam algo profundo não apenas sobre o trabalho
coletivo, mas sobre suas próprias condições materiais como
designers. Elas foram capazes de compreender na prática as
mudanças tecnológicas ao longo da história, ao mesmo
tempo que se conectaram com muitas mulheres que lhes
antecederam.
Em seu livro Feminist Literacies [Letramentos feministas]
[4], Kathryn Thoms Flannery reflete sobre os periódicos
feministas como contrainstituições à universidade. A criação
de periódicos forçou as mulheres a aprenderem tudo
sozinhas – não apenas a imprimir, mas também a pesquisar
e a escrever. No fim da década de 1990, no entanto, muitas
editoras e instituições de mulheres autônomas fecharam ou
faliram. Quando nossa geração pesquisa sobre elas hoje,
luta com frequência para encontrar as fontes documentais,
problema que só se agrava quando procuramos publicações
e materiais ainda mais antigos, como Bookmaking on the
Distaff Side. É por isso que o momento do encontro desse
material pode ser tão emocionante. Encontrar dá sentido e
contexto à nossa vida atual e ao ativismo diário, mas esse
prazer só é completo quando compartilhado com outras.
***
A MMS inicialmente não pretendia vincular sua pesquisa a
um livro, mas seu material era precioso demais para não ser
compartilhado. Natural Enemies of Books, versão original
em inglês do livro traduzido que você tem em mãos, foi
publicado pela Occasional Papers no início de 2020, assim
que a pandemia de Covid-19 começava a abalar nosso
mundo. A pandemia suspendeu rapidamente o plano de
viajar com o livro por várias feiras especializadas na Europa.
Por outro lado, isso não significa que o livro deixou de viajar
– passou a circular nas redes sociais.
Na mesma época, o acaso estava novamente prestes a
surpreender, dessa vez na Suíça confinada. O Centro
Nacional de Artes Gráficas da França solicitou que minha ex-
parceire de trabalho Eliot Gisel e eu organizassemos um
workshop on-line como forma de compensar o programa
cancelado previsto para os próximos meses. Ao optar por
coletivizar nossa pesquisa sobre a história da publicação
feminista, não esperávamos a magia que se desenrolaria
nas semanas seguintes. Embora isoladas em nossas
respectivas mesas de cozinha ou quartos, nos encontramos
através das luzes das nossas telas de computador para
mergulhar fundo no passado, revelando histórias pouco
conhecidas sobre periódicos impressos feministas que
vieram antes de nós. Para saber mais sobre essas crônicas,
vasculhamos arquivos digitais, contrabandeamos textos
acadêmicos e pesquisamos nas entrelinhas e nas margens
de jornais digitalizados, revistas, zines, jornais e boletins
informativos. Buscamos histórias perdidas de trabalhos,
amores, redes, hierarquias, amizades, desentendimentos,
lutas, vitórias, finanças, conflitos, perdas e cotidiano de
mulheres no passado, elaborando o que poderia significar a
organização de uma práxis feminista. O resultado foi o zine
Feminist Findings [Achados feministas], exposição
homônima na A—Z Design Gallery em Berlim, que lançou a
base do que mais tarde emergiria como a plataforma
feminista para a política de design FUTURESS, da qual hoje
sou codiretora.
***
A cerca de 10 mil quilômetros da Suíça, a designer gráfica
Tereza Bettinardi passava as primeiras semanas do
confinamento olhando para o teto de seu apartamento em
São Paulo, assustada com o futuro. Além do isolamento
social, estava lidando com a pressão de ter que se manter
“ágil” e se adaptar ao “novo normal” – um discurso de
pânico então generalizado. Nos últimos quinze anos, Tereza
vinha fazendo principalmente livros, o meio perfeito para
uma jornalista-designer. Ela ouviu que talvez fosse
necessário aprender uma nova habilidade, mudar o foco de
atuação, enquanto assistia a uma enxurrada de novos cursos
e workshops on-line com a promessa implícita de dar conta
dessa ansiedade coletiva.
Então, o acaso entrou novamente em ação. Tereza foi
convidada a resenhar de um novo livro de design e, quando
publicou o vídeo nas redes sociais, foi inundada por
mensagens pedindo mais e mais recomendações de livros.
Ela começou a vislumbrar: nesses tempos de
distanciamento social, quando estamos todos isolados em
nossas casas, e se começássemos a ler livros juntos? Foi
assim que surgiu o Clube do Livro do Design.
Juntamente com sua amiga, a produtora cultural Bruna
Knabem, Tereza escolheu alguns dos livros de design em sua
biblioteca e planejou um programa de palestras e
discussões mensais. Ambas esperavam que talvez trinta
pessoas se interessassem, mas ficaram surpresas com mais
de trezentas inscrições de todos os cantos do Brasil. Duas
edições depois, elas começaram a complementar a
bibliografia do curso com a encomenda de artigos curtos, e
aos poucos a ideia foi crescendo: será que o Clube do Livro
do Design poderia se tornar uma editora também?
Mesmo quando as pessoas não podem viajar, os livros
continuam viajando. Além de serem viagens em si mesmos,
livros rompem fronteiras e constroem pontes. Portais,
introduções, caminhos e bifurcações: livros forjam
colaborações, tecem relações e produzem amizades. Mais
do que tudo, são objetos fundamentalmente coletivos.
Dependem de muitas mãos – escritoras, tradutoras, editoras,
designers gráficas, ilustradoras, revisoras, impressoras,
produtoras gráficas, distribuidoras e tantas outras,
trabalhando em parceria, na proximidade e a distância. O
livro que você tem em mãos, Inimigas naturais dos livros, é
uma miscelânea de tudo isso, e muito mais.
Nina Paim é designer gráfica, pesquisadora, curadora, educadora e ativista
brasileira atualmente radicada em Portugal. Depois de passagens pelas
faculdades de economia e filosofia, Nina estudou design na Escola Superior
de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Esdi/Uerj) e
na Gerrit Rietveld Academie (Holanda) e fez mestrado na Hochschule der
Künste Bern (Suíça), investigando a história e a filosofia pedagógica da
editora suíça Niggli. Atualmente faz doutorado na Esdi/Uerj. É diretora da
Futuress, uma plataforma editorial sobre feminismo, design e política.
Coeditou o livro Design Struggles: Intersecting Histories, Pedagogies and
Perspectives e editou Taking a Line for a Walk.
Primeira página de Echo das Damas – “Órgão dos Interesses da Mulher. Crítico,
Recreativo, Científico, Literário e Noticioso”, 18 de abril de 1879. Segundo conta a
pesquisadora Constância Lima Duarte, a publicação surgida no Rio de Janeiro em
1879 circulou até 1888, provavelmente com algumas interrupções e
irregularidades. Crédito da imagem: Biblioteca Nacional
Capa de Nós, mulheres, nº 1, jun. 1976. Acervo Fundação Carlos Chagas.
Capa do jornal Nzinga Informativo, nº 4, jul.-ago. 1988. Acervo Centro de
Documentação e Pesquisa Vergueiro. Capa do jornal Mulherio. No conselho
editorial do jornal há nomes como Lélia Gonzalez, Maria Carneiro da Cunha, Maria
Rita Kehl, Ruth Cardoso. A editora responsável era a jornalista (e atualmente
curadora) Adélia Borges. Ano 1, nº 3, set.-out. 1981. Acervo Fundação Carlos
Chagas.
Introdução
Verso de Cooking to Kill: The Poison Cookbook, Peter Pauper Press, 1956, autoria
e projeto gráfico de Edna Beilenson. Cortesia da autora.
Página da esquerda: “Caramba, tio Osbert, o senhor quer dizer que gostou de
verdade?”
Cozinhando para matar: O livro das receitas venenosas
Receitas cômicas para assombrações, canibais, bruxas & assassinos. Cozinhe e
conserve sogras. Receitas testadas para crianças mimadas, rivais no trabalho e
ex-amantes. Piquenique com carne canibal. Saladas incendiárias. Como fazer seus
amigos morrerem rindo!
Receitas de Ebenezer Murgatroyd
Cartuns de Herb Roth
Peter Pauper Press, Mount Vernon, NY
Oh
por favor seja meu namorado
serei boa serei legal
serei rápida serei sagaz
não te deixarei jamais
II
Agora você pode pensar
que sou apaixonada demais
mas isso é muito forte
eu não consigo racionar
III
e esse tem sido um
inverno horroroso
Oh, Deus, como é difícil
ser uma impressora.
“Oh please be my Valentine”, de Jane Grabhorn, autora e impressora. The
Compleat Jane Grabhorn , Arion Press, 1968. Cortesia da autora.
A poderosa elefoa
agora está
em movimento
PREFÁCIO
Louca,/ abandonada,/ a Jumbo Press está
revolucionando o mundo editorial/vir
ando de ponta/cabeça de pernas pro ar, ex
pondo todo seu feitiço/mandinga, e se des
pindo de todo salamaleque e de todo seu gla
mour. A Jumbo faz cair a máscara do ti
pógrafo Médico/Curandeiro e seus discí
pulos os verão como eles são: farsantes cam
baleantes pomposos, papagaiando con
ceitos e transpirando decadência.
Três princípios tipográficos
desenvolvidos no laboratório da Elefoa
Os princípios são 3 (ver Um guia e Man
ual para gráficos amadores):
1/ não hifenize as palavras. Isso n
ão é por causa do efeito inusitado ob
tido e portanto chama a atenção, m
as por causa da bela lógica de tal pr
ocedimento. Considerem essas ideias, sen
horas, e permitam que qualidades tão pecu
liares das mulheres/ coragem, imaginaç
ão, adaptabilidade & o desejo de experim.
entar/ dê espaço a elas e deixe que os res
ultados sejam cáusticos, páginas decoradas
com tipos caídos do céu do papel e da tinta.
Não tenham gosto por imitar bonecas de pano es
tufadas com memórias cantando “antes de p e
b, só com m posso escrever” nem desperdicem horas
preciosas separando sílabas e franzindo su
as belas sobrancelhas finas. Agora que o cho
que inicial passou, você não lê isso com natur
alidade? (tudo bem, tudo bem mas nem o próp
rio Gutenberg resolveu aquela interrogação no f
im daquela linha). Segue um resumo deste imp
ortantante princípio em verso para as jovens:
Não estupre suas palavras
em vergonha ou embaraço//
pois o hífen é no máximo um trav
essão emasculado//
É melhor ser uma editora cor
ajosa
E deixar as palavras caírem com
o querem quando chegar a hora.
FIM DO PRINCÍPIO NÚMERO UM
A prensa Albion na qual Laura Riding e Robert Graves imprimiram vários de seus
trabalhos sob o selo Seizin Press em sua casa em Deià (Maiorca, Espanha).
Licença Creative Commons de compartilhamento 4.0 Internacional. Fotografia:
Manuel Ramirez Sánchez.
Fac-símile de Bookmaking on the Distaff Side,
texto de Gertrude Stein
Eu me lembro e isso foi há muito tempo, eles estavam falando sobre
automóveis e estavam dizendo o que era um e o que era o outro e um
homem lá que tinha tido automóveis desde o começo e disse bem tudo o
que eu posso dizer sobre automóveis talvez seja que uns são melhores que
os outros mas todos os automóveis são bons. É assim eu me sinto em
relação à impressão desde que as prensas imprimam palavras eu gosto
delas quando elas imprimem minhas palavras eu gosto muito mais
naturalmente mas todas as palavras têm que ser impressas e eu gosto
quando estão sendo impressas. Para ser exata, eu tenho sentimentos em
relação a margens, eu não gosto das grandes, gosto das pequenas, você
pode dizer que isso é natural pois eu gosto que palavras sejam impressas e
quando as margens são grandes você tem menos delas, devo dizer que eu
gostava imensamente da editora da Geographical History of America, é
provavelmente a melhor impressão que eu já vi de livros puramente
comerciais, mas ainda que com margens grandes se tenha menos palavras
do que com as pequenas eu gosto do jeito como a página parece melhor
com as muito pequenas, eu até sonhei que não havia margem nenhuma,
mas então não haveria livro, e então fiz Maurice Derantiere imprimir quase
sem margem nenhuma e era um livro. Deixe-me ver o que mais sobre
impressão quando eu era mais nova meu irmão e eu tínhamos uma prensa
bem pequena mas nunca conseguimos fazer nada além de imprimir cartões
de visitas eu não acho que imprimimos quaisquer palavras que não fossem
nomes e nunca desde então imprimi mais nada. Livros estadunidenses têm
uma aparência muito diferente dos ingleses e dos franceses, eu imagino que
gosto mais dos estadunidenses, naturalmente.
Gertrude Stein
Uma baita ideia:[1]
gráficas feministas e
Movimento de Libertação
das Mulheres na Inglaterra
Jess Baines
A cultura da impressão era central para o Movimento de
Libertação das Mulheres (MLM), que cresceu e se espalhou
pela Inglaterra nos anos 1970, com uma gama de flyers e
newsletters, pôsteres e panfletos, revistas e livros que
constituíam uma parte vital da dissidência na esfera
pública[2]. Coisas novas estavam sendo ditas, imaginadas e
descobertas. Novos discursos eram construídos e
contestados. A linguagem estava sendo desmontada como
uma ferramenta de opressão, e as palavras enquanto
discurso, conversa, poesia, informação e polêmica eram
concebidas de outra maneira, como instrumentos de
libertação. A principal tecnologia para disseminação de toda
essa verborragia, assim como as imagens concomitantes,
era a impressão. No entanto, para grupos autônomos de
mulheres adotando ideias impopulares, os recursos
disponíveis eram inicialmente restritos. O “Women’s Lib” era
ridicularizado e criticado com frequência na cultura
mainstream – sentimentos que se refletiam no mercado
editorial e gráfico. Imprimir também era caro. O mimeógrafo
de segunda mão ou emprestado desempenhava um papel
importante nessa insurgência, mas suas capacidades eram
limitadas em termos de quantidade, qualidade e formato. O
MLM precisava de uma gráfica toda sua ou, melhor ainda, de
gráficas. Para as feministas, comandar suas editoras e
gráficas significava assumir o controle dos meios de
produção e, principalmente, da representação. “Estávamos
convencidas de que para sermos ouvidas, para que nossas
palavras fossem publicadas, nós teríamos que controlar o
processo de publicação. E, para nós, naquela época, isso
significava aprender a imprimir”, disse Sheila Shulman da
Onlywomen Press[3]. No fim dos anos 1970, havia uma série
de gráficas feministas independentes administradas por
mulheres espalhadas pelo Reino Unido e o arco da
existência coletiva delas refletia a situação do MLM[4]. Neste
ensaio, eu rascunho uma breve história do que poderia ser
chamado de um movimento de mulheres na impressão na
Inglaterra naquele momento, das motivações e das formas
que assumiu até os desafios que encarou. O foco aqui é
principalmente as gráficas offset menos estudadas (porém
mais difundidas), em vez de ateliês de impressão de
pôsteres em serigrafia[5], embora eles certamente sejam
parte da história e recebam menções no texto. Uso
informações reunidas pela minha pesquisa de doutorado[6],
que teve origem no meu envolvimento com gráficas
feministas independentes e com gráficas “mistas” de
esquerda e em um desejo de entender mais aquilo com que
passei tantos anos envolvida.
O MLM na Inglaterra começou a se unir no fim dos anos
1960, quando pequenos grupos de mulheres começaram a
organizar “grupos de formação de consciência” e fundaram
o Ateliê da Libertação das Mulheres em Londres. Assim foi
fundada a revista Shrew, que circulou regularmente entre
1969 e 1974, com algumas edições especiais após esse
período. A Shrew foi produzida por diferentes grupos de
mulheres por todo o país, cada um ficava responsável por
uma edição específica. Como a revista era impressa, nos dá
uma percepção inicial do surgimento das gráficas feministas
independentes. Ao longo do primeiro ano, normalmente, a
revista era mimeografada, para então ser impressa em
offset por várias gráficas de esquerda até 1974. Na edição
de verão daquele ano, um anúncio na revista propunha uma
nova possibilidade: “Vamos imprimir a Shew nós mesmas da
próxima vez. Uma gráfica feminista está se formando”[7]. É
provável que a gráfica tenha sido a Women in Print,
localizada em Londres, que começou suas atividades em
1975. Naquele momento, as mulheres que deram início à
Onlywomen Press também estavam recebendo treinamento
em impressão em uma das universidades londrinas e
imprimindo materiais feministas nas máquinas dessas
instituições – mas ainda assim havia objeções[8]. A
Onlywomen finalmente montaria sua gráfica em 1978. Elas
deixavam claro que a gráfica era parte de uma operação
editorial, e a maioria das mulheres envolvidas também era
escritora. Enquanto isso, em 1976, um grupo de feministas
tinha assumido o comando de uma gráfica comunitária em
Manchester: a Moss Side Community Press se tornou a Moss
Side Women’s Community Press (também conhecida como
Amazon Press). Mais tarde aconteceriam outras
“conversões”, como a Bradford Printshop, Open Road em
York, Rye Express e, por um breve período, a Islington
Community Press, ambas em Londres. A Ramoth Prints foi
estabelecida em Nottingham, e, em 1979, nasceu a
Sheffield Women’s Printing Co-op. As últimas edições de
Shrew então poderiam ser, e foram, impressas por gráficas
feministas, junto de outros materiais do movimento.
Durante esse período, duas gráficas de pôsteres que viriam
a ter uma vida longa também foram montadas, a See Red
Women’s Workshop (1974) e a Lenthall Road Workshop
(1975). A maioria operava em tempo integral, utilizando
espaços baratos disponíveis em regiões decadentes no
centro das cidades, e dependiam de mão de obra gratuita
ou barata das participantes. Em 1977, havia tantas
feministas envolvidas (ou querendo se envolver) com as
gráficas e editoras do movimento que foi realizada uma
conferência nacional, a Womenprint. O evento foi realizado
em outra base que o MLM tinha formado, o Camden
Women’s Centre em Londres. A Womenprint foi organizada
pelas fundadoras da Onlywomen Press e contou com a
presença de 60 mulheres.
As gráficas feministas independentes eram uma extensão
de um fenômeno emergente mais amplo de pequenas
gráficas radicais e/ou comunitárias aparecendo em cidades
inglesas, como a já mencionada Moss Side Community
Press. Elas eram montadas para atender às necessidades de
comunicação de uma crescente atividade política de
esquerda plural após os anos 1960. Havia várias condições
que viabilizavam essa cena “alternativa” mais ampla de
gráficas, não só a oferta de espaços mais baratos
mencionada anteriormente, como também a oferta de
tecnologias de impressão acessíveis, o que é relevante aqui,
especialmente pequenas impressoras offset e a serigrafia
para a produção de pôsteres. Pequenas impressoras offset,
embora usassem a mesma tecnologia que máquinas offset
de grande formato, tinham sido comercializadas para o uso
em escritórios, como uma alternativa superior e mais flexível
ao onipresente mimeógrafo. Impressoras de segunda mão
podiam ser compradas a valores relativamente baixos e com
facilidade, e se tornaram a pedra fundamental desse campo
da impressão alternativa, incluindo muitas das novas
gráficas feministas.
A conferência Womenprint de 1977 incluiu uma série de
debates – sobre propaganda feminista, distribuição, troca de
habilidades, finanças, autopublicação e impressão, é claro.
Mulheres de todas as gráficas já citadas participaram, junto
de um bom número de feministas que trabalhavam com as
gráficas radicais comunitárias “mistas”. As apresentações
sobre as gráficas foram esclarecedoras, e uma indicação de
práticas – e ideias – que persistiu. Quero destacar aqui, em
particular, a organização e a habilidade dentro das gráficas
feministas. No relatório do evento, há a seguinte
observação: “Embora tenhamos como objetivo trabalhar
coletivamente em um arranjo não hierárquico, é difícil
eliminar padrões patriarcais de ensino e aprendizado,
especialmente quando vários níveis de experiência estão
envolvidos em ambas as etapas”[9]. Entre outras coisas, essa
declaração revela uma dimensão-chave que constituía o
caráter dessas gráficas feministas: todas eram
administradas coletivamente. Essa forma de trabalho era
um aspecto intrínseco do MLM – parte da práxis feminista
em geral. Um desdobramento comum dessa perspectiva era
o objetivo de que todo mundo no grupo fosse capaz de
fazer/aprender tudo, ou que no mínimo não estivesse
limitada a um cargo, função ou parte do processo, fosse ela
“administrativa”, “design” ou “impressão”. Em certo sentido,
esse objetivo era pragmático, para lidar com a flutuação de
membras, mas também tinha a ver com o
“compartilhamento de habilidades”, outro ideal difundido
pelo MLM. O compartilhamento de habilidades era parte do
ethos “faça você mesma” do movimento de decompor e
disseminar habilidades até então percebidas como
“especialidades”, principalmente aquelas que estavam
concentradas nas mãos dos homens. O compartilhamento
de habilidades e o autodidatismo estavam relacionados ao
empoderamento – e à autonomia. É notável que o relatório
da Womenprint afirme que “todo mundo que não pode
imprimir quer aprender”. Dentro de uma gráfica feminista, o
compartilhamento de habilidades e a duplicação de funções
também estava relacionada com uma distribuição anti-
hierárquica de conhecimento e de poder. O relatório da
Womenprint destaca como as gráficas feministas
geralmente eram um lugar para aprender como imprimir
em primeiro lugar. Como vimos no caso da Onlywomen
Press, algumas mulheres fizeram cursos de impressão, mas
isso geralmente envolvia entrar em uma arena sexista
dominada pelos homens, então com frequência o ideal para
as mulheres era uma ensinar à outra, apesar dos desafios
em potencial. Muitas se juntavam às gráficas sem
conhecimentos prévios, embora eles sempre fossem
desejáveis. No entanto, o envolvimento com o MLM era
praticamente um pré-requisito. Encorajar mulheres a
considerar a impressão como um emprego viável em geral e
pressionar os sindicatos de gráficas era algo que as
feministas começaram a fazer, especialmente o grupo
Women in Printing Trades, formado no fim dos anos 1970,
que mais tarde também patrocinou o vídeo educacional No
Set Type[10].
As motivações para se juntar a uma gráfica feminista, em
vez de outras formas de organização, eram variadas,
embora uma questão frequente fosse “fazer alguma coisa”
dentro do movimento das mulheres – e aprender a imprimir.
Da, que participou da Women in Print, se recorda: “Eu só
pensei uau, trabalhar com mulheres seria incrível... e fazer
parte de um coletivo… Comecei sem nenhuma
experiência… E pensava: assim eu posso aprender isso e vai
ser divertido e empolgante aprender uma habilidade toda
nova... Dava a sensação de que nós éramos uma parte
essencial do movimento feminista e acho que no lugar de
um pagamento havia uma verdadeira satisfação com o
trabalho”.[11]
Para outras mulheres, além de ser algo prático para o
movimento, o fato de que a impressão era considerada uma
área inacessível para elas significava que essa atividade
ressoava fortemente em suas identidades e políticas
feministas. Jo, que era integrante da Moss Side Women’s
Press, recorda: “Eu fui atraída por aprender um trabalho
manual… A impressão era um negócio muito dominado
pelos homens e de repente estava aberto para mim… era
um coletivo e tudo isso fazia com que me parecesse algo
bom pra mim… A gráfica era parte do meu ativismo”[12].
Em alguns setores do movimento de mulheres, também
havia certo prestígio em trabalhar numa gráfica, porque isso
era percebido como uma quebra dos papéis e das
habilidades atribuídas ao gênero. De acordo com Jesse, da
Sheffield Women’s Printing Co-Op, “também havia alguma
coisa em torno de ser uma impressora A3, não havia muitas.
As pessoas [mulheres] ficavam bem impressionadas!”[13].
Para muitas mulheres que se envolveram com as gráficas,
imprimir não era uma “escolha de carreira” – entre aspas
porque esse tipo de planejamento futuro era contrário à
ética da “estrutura de sentimento” predominante (pegando
emprestada a expressão de Raymond Williams) –, mas era
parte de um período de ativismo mais amplo e uma
experimentação na vida delas. Embora algumas mulheres
permanecessem muitos anos dentro ou trocando de gráficas
feministas, ou às vezes fossem para gráficas mistas radicais,
muitas fizeram uma passagem e se envolveram com outras
coisas que nada tinham a ver com impressão.
A questão das mulheres que aprendiam um ofício e então
deixavam a oficina era um desafio para as gráficas
feministas. Geralmente isso significava mais treinamento e
compartilhamento de habilidades, o que, por sua vez,
impactava na qualidade e na quantidade do que elas
podiam imprimir. Conseguir uma demanda suficiente de
impressões para manter as atividades também era um
problema em si. Muitos dos grupos com quem queriam
trabalhar tinham orçamentos baixos ou zero, e, no caso das
organizações feministas, havia expectativas explícitas de
que as clientes que eram parte do movimento de mulheres
fossem atendidas. Tabelas de preços mutáveis eram
comuns. O que uma gráfica feminista era realmente capaz
de imprimir era determinado pela tecnologia de que
dispunham. A maior impressora offset que qualquer uma
delas tinha era uma A3, que não era eficiente para revistas
com muitas páginas, livretos, muito menos para livros. Por
exemplo, era inconcebível para qualquer uma dessas
gráficas ser capaz de assumir a impressão da revista mais
popular do MLM, Spare Rib. Desse modo, as feministas
acabavam tendo que levar algumas de suas produções para
serem impressas em gráficas de esquerda, que em alguns
casos eram simpáticas à causa e geralmente tinham
ativistas feministas nas suas equipes. Uma mensagem no
relatório da Womenprint de uma das integrantes de uma
gráfica alternativa de esquerda é sintomática: “Três gráficas
feministas estão famintas por material feminista. Alguma
proposta??”. Embora o apoio do movimento estivesse
estabelecido, para a maioria não havia demanda suficiente
para sustentar as gráficas. Em 1979, a Moss Side Women’s
Press declarou: “Não conseguiríamos sobreviver imprimindo
apenas coisas de mulheres”[14]. O trabalho vindo de outros
grupos “aceitáveis” criava o equilíbrio, embora para isso as
gráficas feministas entrassem em competição com as
gráficas radicais e comunitárias. Geralmente havia uma
espécie de política relacionada ao que uma gráfica feminista
se recusava a imprimir; nada sexista, racista ou homofóbico,
obviamente. Também poderia haver discussões sobre a
possibilidade de imprimir para grupos de esquerda
organizados, como o Partido Socialista dos Trabalhadores, ou
para indivíduos[15]. No fim, uma quantidade significativa de
impressões continuava a ser feita no mimeógrafo, e anos
depois nas fotocopiadoras, quando elas se tornaram uma
opção de baixo custo.
As gráficas comandadas por mulheres descritas neste
texto surgiram com o MLM dos anos 1970. Como qualquer
movimento social, ele era complexo e dinâmico, reunindo
muitos grupos e posicionamentos, e isso se refletia nas
gráficas feministas. O movimento estava sujeito ao fluxo
interno e a contestações, e talvez seja mais exato falar de
movimentos de mulheres naquele período – no plural. No
entanto, o que se definiu a princípio como o MLM era e é
uma referência, historicamente e como um ponto a ser
criticado, conforme mais mulheres encontraram suas vozes
e articularam as falhas e omissões do MLM.
Em meados dos anos 1980, o movimento tinha mudado
consideravelmente, e algumas das bases da atividade
comunista que tinha caracterizado os anos 1970 pareciam
estar diminuindo na década seguinte. Relacionando a
sensação da morte de uma atividade política feminista com
mudanças de expectativas, Lyser, da Women in Print,
recordou: “Tinha a sensação de que havia menos
publicações acontecendo… e todas elas se tornaram
artísticas… nós não conseguíamos fazê-las do jeito que os
clientes queriam”[16]. A questão da estética e da qualidade
talvez fosse definida pelo processo inevitável de uma nova
geração de feministas rejeitando a política e os significantes
de suas antecessoras imediatas, junto de uma maior
atenção cultural ao design e ao estilo nos anos 1980[17].
Ao longo de suas existências, as gráficas feministas foram
em grande parte financeiramente marginais, embora
fossem parte da cultura de um movimento de mulheres que
queria suas gráficas próprias e as via como uma
contribuição e um prenúncio de uma realidade feminista
alternativa. Eram lugares onde feministas podiam aprender
novas habilidades, forjar relacionamentos, experimentar
formas anti-hierárquicas de trabalhar, ao mesmo tempo que
forneciam recursos tangíveis e que viabilizavam o
movimento das mulheres. Entretanto, conforme a
efervescência do movimento feminista diminuiu, ficou ainda
mais difícil encontrar mulheres motivadas a se juntarem às
gráficas. Feministas se movimentaram em diferentes
direções: trabalhando politicamente com homens gays, se
dedicando a “carreiras” ou à terapia e ao autoconhecimento.
A promessa radical de trabalho coletivo teve impacto sobre
muitas mulheres, assim como os anos de precariedade
financeira. Gráficas rápidas, editoração eletrônica e
fotocopiadoras contribuíram para a diminuição do valor
material da gráfica feminista. (A popularização do acesso à
internet ainda estava por vir.) Não havia mulheres, nem
condições de impressão, muito menos parecia ser o
momento do MLM sustentar as gráficas feministas
subcapitalizadas. A Onlywomen Press fechou no início de
1984, a Women in Print em 1986, a Rye Express em 1987,
Moss Side Women’s/Amazon Press em 1988, a See Red
Women em 1990, a Lenthall Road Workshop em 1992, e por
aí vai. Outros recursos culturais do movimento das mulheres
também desapareceram, como as revistas, livrarias e
centros de mulheres. O caso atípico foi a Sheffield Women’s
Printing Co-op, que continuou em atividade até o início do
século XXI e que tinha, surpreendentemente, conseguido se
estabelecer como a principal gráfica “alternativa” em
Sheffield.
A confluência do revival feminista contemporâneo de uma
cultura gráfica de impressão em pequena escala tem
resultado em um novo interesse em atividades de impressão
dos feminismos anteriores. Pode-se argumentar que o
acesso extraordinário à comunicação possibilitado pelas
ferramentas digitais e tecnologias em rede significam que
realmente não há necessidade de que as feministas
imprimam algo hoje. No entanto, elas o fazem.
Comparativamente, o impresso é uma mídia lenta e
complicada, um contraponto à onipresença, à facilidade e à
velocidade do material online e dos comentários. Imprimir
agora, de certo modo, pode ser um ato de dissidência.
Imprimir também cria um material cultural tangível, objetos
visuais imutáveis que agem como símbolos e afirmações de
presença, identidade e talvez de comunidade –
especialmente a impressão em pequena escala. Talvez
então isso seja necessário de um novo jeito.
Meus agradecimentos ao Arquivo Bishopsgate, a
Biblioteca Feminista de Londres e a todas que me
concederam entrevistas.
Breaching the Peace: A Collection of Radical Feminist Papers [Perturbando a paz:
Uma coletânea de escritos feministas radicais], editado e impresso pela
Onlywomen Press, em 1983. Livreto A5 de 44 páginas: capa de Cath Jackson. Na
quarta capa, está impresso: “A Onlywomen Press é uma editora e gráfica de um
grupo pela libertação das mulheres, produzindo obras de e para mulheres como
parte da criação de uma rede de comunicação feminista e, no fim, de uma
revolução feminista”.
“A liberdade de imprensa pertence a quem controla a imprensa”, do calendário da
See Red Women’s Workshop, 1978.
Cabeçalho do relatório da conferência Womenprint, 1977.
Em inglês
Introdução
Inimigas naturais dos livros: uma história conturbada das mulheres na impressão e na tipografia / organização Maryam Fanni, Matilda
Flodmark, Sara Kaaman; tradução Stephanie Borges. — 1. ed. — São Paulo: Clube do Design, 2022.
recurso digital
Título original: Natural enemies of books: a messy history of women in printing and typography
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-997850-1-6 (recurso eletrônico)
1. Design gráfico (Tipografia) - História 2. Ensaios - Coletâneas 3. Impressão gráfica - História 4. Mulheres na indústria gráfica 5. Poesias
Diversas I. Fanni, Maryam. II. Flodmark, Matilda. III. Kaaman, Sara.
22-111096 / CDD-686.2209
1. Tipografia: Artes gráficas 686.2209
Aline Graziele Benitez — Bibliotecária — CRB-1/3129