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Irmãs e Estranhas
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Introdução à Literatura Feminista

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Contemporânea

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Patricia Duncker

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Irmãs e estranhas
Introdução à literatura feminista contemporânea
Patricia Duncker

A S.J.D.

Lá em casa, a minha mãe dizia, ‘Lembrem-se de ser irmãs na presença de estranhos.’ Ela referia-se aos brancos, como a
mulher que tentou fazer-me levantar para que eu lhe desse o meu lugar no autocarro Número 4, e que cheirava a
detergente de limpeza. Em St. Catherine's diziam, “Sejam irmãs na presença de estranhos,” e referiam-se aos não-
católicos. Na escola secundária, as raparigas diziam, ‘Sejam irmãs na presença de estranhos,’ e referiam-se aos homens.
As minhas amigas diziam, Sejam amigas na presença de estranhos, e referiam-se aos conservadores.
Mas na escola secundária, as minhas verdadeiras irmãs eram estranhas; os meus professores
eram racistas; e as minhas amigas tinham uma cor na qual se esperava que eu jamais viesse
a confiar.

Audre Lorde, Zami: A New Spelling of My Name [Uma nova forma de soletrar o meu
nome]

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CONTEÚDOS

Prefácio

Agradecimentos
1 Escrever e Bradar
2 Breve nota acerca de política editorial
3 Autobiografia
4 A Ficção de Género
5 Fábulas, Mitos e Mitologias
6 Escrita Lésbica
7 Escrita Anti Racista
8 Posfácio: Uma Política Antiquada
Bibliografia
Índice Remissivo

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Página
Prefácio
Tomei a decisão de escrever uma nota crítica das minhas leituras enquanto estava ativa
em muitos grupos feministas e em campanhas no movimento das mulheres britânico.
Estava envolvida nas ações de paz em Greenham e ensinava escrita feminista tanto num
contexto académico como em grupos de mulheres, muitas das quais não se definiriam
feministas. Portanto não vou pedir desculpa por este livro estar virado para as obras e a
experiência britânicas. Decerto muitos textos americanos foram publicados na Grã-
Bretanha – teoria, ficção e obras que rompem a distinção entre as duas. Escrevi sobre
esses livros americanos quando eram lidos extensivamente e eram influentes no
feminismoo britânico e quando eu própria tinha sido influenciada pelos mesmos, mas
cada pessoa tem as suas batalhas para combater, porque cada qual foi moldada por
histórias diferentes, e o movimento de libertação das mulheres na Grã-Bretanha foi
significativamente diferente do movimento das mulheres na América.
Concentrei-me na ficção, no sentido mais amplo, porque é o género que mais me
interessa enquanto escritora e leitora. Contudo, no capítulo “A Escrita Anti Racista”
referi-me detalhadamente à poesia escrita por mulheres negras, uma vez que muita
teoria política das feministas negras – as chamadas Black Womanist [mulheristas
negras]– é escrita como poesia, por razões que tentei descrever nesse capítulo. As obras
de lésbicas, negras (tanto asiáticas como afro-caribenhas) e lésbicas negras que vivem e
trabalham na Grã-Bretanha nunca receberam uma cuidada atenção crítica, nem mesmo
dentro das fronteiras políticas da crítica literária feminista. Este é um projeto que está
agora a começar e de que este livro é apenas uma parte. Não creio que a identidade
sexual ou racial de uma escritora constitua uma categoria teorética ou que marque
necessariamente um certo tipo de escrita; mas a experiência de ser forçada a uma
particular posição marginal não deixa de ter implicações para uma mulher que está a
escrever a partir da borda do círculo. A sua relação com as línguas que usa, com as
formas que habita, será diferente da relação dos legisladores reconhecidos das tradições
literárias. A sua posição afetará a maneira como publica ou o motivo por que continua
inédita – e como é lida. Saber que o seu trabalho será julgado por uma audiência que,
em parte ou até na sua maioria, será certamente racista e anti lésbica afeta de facto a
maneira de escrever de uma mulher. E eu, como mulher branca, vejo-me confrontada
com a dificuldade iniludível e irresolúvel de como deveria analisar a escrita de
mulheres negras. Não colocar a escrita negra no centro das minhas reflexões, que é o
lugar a que essa escrita tão claramente pertence, em terrenos que, seja qual for a
abordagem que escolher, serão racistas, seria silenciar e obliterar a obra e a energia das
mulheres negras. A cultura branca na Grã-Bretanha deve estar preparada a abordar as
escritoras negras emergentes neste país – e estar preparada para a inevitável
transformação e a mudança há muito devida. Espero vir a participar nesse processo.
Entretanto, tentei escrever honestamente.
Dediquei-me a todas estas dificuldades nos capítulos 6 e 7, “Escrita lésbica” e “Escrita
anti racista”; mas também analisei a obra de mulheres que poderiam gostar de definir-
se como escritoras negras, ou lésbicas, noutras passagens deste livro, sempre que foi
oportuno fazê-lo. Por outras palavras, recusei-me a transformar os capítulos em guetos.
As ideias produzem-se sempre coletivamente e por isso tenho que agradecer a muitas
mulheres: Caro Marsh, Lizzie Batten e Rose Buxton – sejam quem forem e onde quer
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que estejam agora; e as mulheres que leram alguns dos livros comigo nas minhas aulas
de ficção feminista e nos seminários de escrita feminina, e partilharam as suas respostas
e as suas ideias. Gostaria ainda de agradecer às minhas professoras, Jean Gooder, Sita
Narasimhan, Hilda Brown e Marilyn Butler, embora esclarecendo que não têm
qualquer responsabilidade pelo que se segue. O cantinho dos homens nos
agradecimentos feministas radicais nunca é muito grande, mas gostaria de agradecer a
James Read.
Blackwell pediu a três leitoras para comentarem o original. Kath Burlinson e Kathleen
Wheeler leram o livro criticamente, de forma útil e honesta. Tentei tirar proveito dos
seus conselhos. A terceira leitora evidentemente achou este livro uma leitura tão
dolorosa quanto desagradável e por conseguinte decidiu manter-se anónima.
Para as mulheres que estiveram do meu lado e ao meu lado em tempos difíceis apenas
uma palavra de agradecimento é irremediavelmente inadequada; mas aqui vai de
qualquer maneira. Obrigada a Dominique Rondi e Noemi Neumann por me escreverem
e me telefonarem. Noemi Neumann faleceu a 25 de abril de 1988; foi e é muito amada.
O meu obrigada mais inarticulado – como sempre – a Nasim Kassam e Sheila Duncker.

P. D. França, 1991

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Página
Agradecimentos

A autora e a editora agradecem as seguintes autorizações a reproduzir material


protegido por copyright.
A Elizabeth Wilson os excertos de Mirror Writing, © Elizabeth Wilson, publicada por
Virago Press, 1982. A Frauenoffensive Verlag e The Women’s Press os excertos de
Verena Stefan, Shedding, © The Women’s Press 1979. A Van Gennep, Amsterdam e
The Women’s Press por Anja Meulenbelt, The Shame is Over, © Tradução inglesa,
The Women’s Press, 1980. A The Women’s Press a autorização a reproduzir excertos
de: Gillian Slovo, Death by Analysis, 1984; Jen Green e Sarah Lefanu, Despatches
from the Frontiers of the Female Mind, 1985; Michèle Roberts, The Visitation, 1983;
Mary Wings, She Came too Late, 1986; Merle Collins, Angel, 1987; excertos do poema
de Merle Collins “No Dialects Please” e Meiling Jin, “Hurt”, ambos publicados em
Watchers and Seekers, 1987; Marion Molteno, A Language in Common, 1987;
Ravinder Randhawa, A Wicked Old Woman, 1987; Sistren, Lionheart Gal, 1986; Jane
Palmer, The Planet Dweller, 1985; Ellen Galford, The Fires of Bride, 1987; Anna
Livia, Accommodation Offered, 1985; Caeia March, Three Ply Yarn, 1986; Suniti
Namjoshi, The Conversations of Cow, 1985, e The Blue Donkey Fables, 1988; Isabel
Miller, Patience and Sarah, 1979; Valerie Miner, Murder in the English Department,
1984; Jill Miller, Happy as a Dead Cat, 1983; Nicky Edwards, Mud, 1986; Sharan-Jeet
Shan, In My Own Name, 1985. O copyright das obras acima é detido individualmente
pelas autoras, The Women’s Press, London. A David Higham Associates a autorização
a reproduzir excertos de Alice Walker, Meridian, © Alice Walker, publicado por The
Women’s Press, 1982. A The Charlotte Sheedy Literary Agency, New York os
excertos de Audre Lorde, Sister Outsider, © Audre Lorde, publicado por The Crossing
Press, 1984. A Sara Maitland os excertos de Telling Tales, © Sara Maitland, publicado
por Journeyman Press, 1983. A Judith McDaniel, executora literária de The Estate of
Barbara Deming, a autorização a utilizar excertos de A Humming Under my Feet, ©
The Estate of Barbara Deming, publicado por The Women’s Press. À Wallace Literary
Agency os excertos de Marge Piercy, Woman on the Edge of Time, © 1976, Marge
Piercy e Middlemarsh Inc., publicado por Alfred A. Knopf e The Women’s Press. A
Rebecca O’Rourke os excertos de Jumping the Cracks, © Rebecca O’Rourke,
publicado por Virago Press, 1987. A Lis Whitelaw os excertos de Rosemary Manning,
A Corridor of Mirrors, © The Estate of Rosemary Manning, publicado por The
Women’s Press, 1987. A Rachel Barton e Sita os excertos de The Scarlet Thread, ©
Rachel Barton, publicado por Virago Press, 1987. A W. W. Norton e Company Inc., os
excertos de May Sarton, Recovering: A Journal, © 1980 May Sarton. A Suzette Haden
Elgin os excertos de Native Tongue, 1985 e The Judas Rose, 1988, © Suzette Haden
Elgin, publicado por Daw Books Inc. New York e The Women’s Press, London. A
Curtis Brown Group Ltd os excertos de Joan Riley, The Unbelonging, 1985, Waiting in
the Twilight, 1987, e Romance, 1988 © Joan Riley, publicados por The Women’s
Press. A Routledge os excertos de Elizabeth Wilson, Hidden Agendas, © Elizabeth
Wilson, publicado por Tavistock, 1986. A Karnak House pelos excertos de Grace
Nichols, I is a long-memoried woman, © Grace Nichols, publicado por Karnak House,
1983. Ao Gower Publishing Group os excertos de Jack Zipes, Don’t Bet on The Prince,
©Jack Zipes, 1986. A Barbara Wilson de The Seal Press, Seattle os excertos de Murder
in the Collective, © Barbara Wilson, publicado por The Women’s Press, 1984, e Becky
Birtha, Lover’s Choice, © Becky Birtha, publicado por The Women’s Press, 1988. A
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Judy Holland e Sarah Burton os excertos de Hannah Wakefield, The Price You Pay, ©
Hannah Wakefield, publicado por The Women’s Press, 1987. A Fyna Dowé a
autorização a reproduzir na íntegra o seu poema “The Word”, © Fyna Dowé,
originariamente publicado em Watchers and Seekers, The Women’s Press, 1987. A
Savi Hensman pelo poema “Black is Not a Skin Colour”, originalmente publicado na
sua coletânea Flood at the Door, com ilustrações de Sarah Moriarty, Centerprise Trust
Ltd, 1979. A Bloomsbury os excertos tirados de Mothers and Lovers de Elizabeth
Wood, publicado por Bloomsbury Publishing Ltd (1988). A Pluto Press os excertos de
Lauretta Ngcobo (ed.), Let it be Told, © das autoras, Pluto Press, 1987. A Alyson
Publications os excertos de Sally Miller Gearhart, The Wanderground, © Sally Miller
Gearhart, publicado por The Women’s Press, 1985. A Simon & Schuster os excertos de
Hélène Cixous, “The Laugh of the Medusa”, em Elaine Marks e Isabelle de Courtivron
(eds), New French Feminismos, © de cada autora, publicado por Harvester-Wheatsheaf
(agora parte do Simon & Schuster International Group), 1981. A A. M. Heath &
Company Ltd os excertos de Dacia Maraini, Letters to Marina, © Dacia Maraini, ©
tradução de Dick Kitto e Elspeth Spottiswood, publicado por Camden Press Ltd, 1987.
Extratos tirados de Jeanette Winterson, Oranges Are Not the Only Fruit, © Jeanette
Winterson, publicado por Pandora Press, 1985, e Jane Rule, This is not for You, © Jane
Rule, publicado por Pandora Press, 1987, são reproduzidos com a permissão de Unwin
Hyman. A Chatto and Windus os excertos tirados de Toni Morrison, Beloved, © Toni
Morrison, publicado por Chatto and Windus, 1987. A Posy Simmonds a autorização a
reproduzir o seu cartoon, “The World Turned Upside Down”, publicado pela primeira
vez em The Guardian e novamente em Pure Posy, Jonathan Cape, 1987. A Alison
Ward a autorização a utilizar excertos de The Glass Boat, publicado por Brilliance
Books, 1983. Às Editions Gallimard os excertos de Moi Rigoberta Menchu, editado e
narrado por Elisabeth Burgos-Debray, 1983, © tradução inglesa de Ann Wright,
publicado por Verso, 1984. A Prism Press os excertos de Gail Chester e Julienne
Dickey (eds), Feminismo mid Censorship: The Current Debate, 1988. A Virago Press a
autorização a incluir excertos das seguintes publicações: Christina Roche, I’m not a
feminist, but…, 1985; Carolyn Steedman, Landscape for a Good Woman, 1986; Grace
Nichols, Whole of a Morning Sky, 1986; Aileen La Tourette, Cry Wolf, 1986; Zoë
Fairbairns, Stand We at Last, 1983; Maureen Duffy, That’s How It Was, publicado por
Virago, 1983; Beatrix Campbell, Wigan Pier Revisited, 1984, copyright detido pelas
autoras; Violette Leduc, La Bâtarde, © Editions Gallimard, traduzido por Derek
Coltman, publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha por Peter Owen Ltd em 1965,
publicado por Virago Press, 1985. A Sheba Feminist Publishers os excertos de Audre
Lorde, The Cancer Journals, 1980; Zami, 1984; Our Dead Behind Us, 1986; Suniti
Namjoshi, Feminist Fables, 1981; Barbara Burford, The Threshing Floor, 1986 (©
detido pelas autoras). A Naiad Press pelos excertos de Claire Morgan (Patricia
Highsmith), The Price of Salt, publicado por Naiad Press em 1984. A Blackwomantalk
por um excerto de “I’d also like to say…” de Adjoa Andoh em Black Wotnen Talk
Poetry, © Blackwomantalk, 1987. A Onlywomen Press os excertos de Lilian Mohin
(ed.), One Foot on The Mountain, 1979; Anna Wilson, Cactus, 1980; e Altogether
Elsewhere, 1985; Anna Livia, Relatively Norma, 1982, e Bulldozer Rising, 1988;
Caroline Forbes, The Needle on Full, 1985; e Lilian Mohin e Sheila Shulman (eds),
The Reach, 1984 (© detido pelas autoras). A Methuen pelos excertos de Toril Moi,
Textual/Sexual Politics, 1985; Elizabeth Wilson, Prisons of Glass, 1986; Gayatri
Spivak, In Other Worlds, 1987; Sara Maitland, A Book of Spells, 1987; e Michèle
Roberts, The Wild Girl, 1984, e The Book of Mrs Noah, 1987 (© detido pelas autoras).
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Escrever e Bradar

… o p o d e r e o charme de uma mulher residem no mistério, não no palavreado vigoroso. Mas


talvez o palavreado seja um sinal de vitalidade: estraga a linda criatura, mas mostra que está
viva.
E. M. Forster, A Room With A View

Este livro é uma autobiografia de leituras. Tem a ver com os livros, escritos por
mulheres para mulheres, que eu li; livros que me deram boas razões para raiva,
reconhecimento e dor, livros que mudaram a minha maneira de ver o mundo e de viver
a minha vida. Portanto é impossível para mim escrever um resumo imparcial dos êxitos
feministas no Grande Campo da Literatura; não é assim que estes livros foram escritos,
nem como foram recebidos. Tenho observado a extraordinária explosão da escrita
feminista em todas as partes do mundo a partir dos finais dos anos 60. Nestes anos
voltámos a ser capazes de escrever uma para a outra, de escrever a pensar numa
comunidade política a quem dirigir a nossa escrita, de escrever sabendo que existe um
movimento de libertação das mulheres. Devo necessariamente contar a história das
minhas próprias leituras, revelar a minha peculiar política de leitura e oferecer a minha
perspetiva sobre a política do movimento britânico das mulheres nos anos passados. O
que tenho para dizer será portanto parcial, dogmático e inacabado. Mal começámos a
enfeitar a nossa própria cultura, inventar as nossas próprias histórias. O feminismoo é
uma política inexperiente, que ainda é plasmada e construída pelas comunidades de
mulheres que são as fronteiras divisórias da mudança revolucionária.
Chamei-me vez feminista pela primeira em 1970, embora deva ter tido tendências
embrionárias visíveis muito antes daquela altura: um dos rapazes do meu ano na escola
costumava chamar-me A Sufragista. Mas foi em 1970, quando pela primeira vez fui
para o Newnham College em Cambridge estudar literatura, que me juntei pela primeira
vez a um grupo de mulheres, as Scarlet Women, e li pela primeira vez The Female
Eunuch de Germaine Greer, que recenseei para o primeiro e único número da nossa
revista feminista, Bloody Women. Cuidei atentamente de não ler Sexual Politics de Kate
Millett porque, naquela altura, estava casada com uma política de literatura que envolvia
a Grande Tradição. Esta consistia numa longa série de génios supostamente solitários e
isolados que criavam a ordem do caos, moldavam o mundo à sua própria imagem e, no
curso dos seus heroicos combates, traziam à superfície Verdades Eternas e Valores
Permanentes. O génio solitário era mais ou menos sempre homem e normalmente um
poeta, mas havia bons camaradas como Henry Fielding que escreviam ficção alegre
sobre igualmente bons camaradas que gostavam do rosbife da velha Inglaterra e das
mulheres nas pousadas. Kate Millett atacava os meus heróis, os deuses da revolução
sexual dos anos 60, e revelava-os como um conjunto de misóginos violentos. Estava
muito preocupada com a eventualidade de ter de deixar de ler – ou pelo menos deixar de
gostar da leitura – de D. H. Lawrence.
8

Sou branca e burguesa, mas não completamente inglesa. O meu pai é jamaicano, nasci e
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fui criada num agregado familiar dominado pelas mulheres numa ilha que foi explorada
pelos britânicos durante mais de cem anos. Formei-me principalmente na Inglaterra. Os
meus pais compraram-me uma educação cara numa escola pública onde aprendi como
parecer uma expoente da classe dominante embora nunca tenha tido o dinheiro para
eliminar o meu sotaque. Estas origens são muito importantes para mim e para a minha
escrita. Estou envolvida nas estruturas políticas da Grã-Bretanha branca e racista, mas
sou também uma observadora. Ainda tenho o meu passaporte jamaicano; tive que
requerer a nacionalidade britânica e o estatuto de residente. Não houve dificuldades,
naturalmente, porque as leis britânicas da imigração são abertamente racistas, e eu sou
branca. Mas não nasci aqui. Este não é o meu país. Quando li pela primeira vez
Wordsworth, nunca tinha visto um narciso. Na St Andrew’s High School for Girls de
Kingston, na Jamaica, olhámos para uma imagem. “Este é um narciso”, disse a
professora. A literatura inglesa era uma cultura alheia, uma cultura que eu estava
ansiosa por adquirir. Queria pertencer-lhe. Portanto não houve espanto nenhum que eu
empreendesse uma luta justa quando me pediram para ser furiosamente crítica face a
uma tradição dentro da qual me tinha esforçado tanto para encontrar um lugar.
Seguiu-se uma cisão psicológica e política. Estava envolvida diariamente em várias
campanhas feministas: contra a Liga de Cambridge para a Preservação dos Colégios
Universitários para Rapazes[Cambridge League for the Preservation of Gentlemen’s
Colleges] (agora, acredito, extinta); a favor de uma mulher da cidade cujo subsídio
suplementar tinha sido cortado e cujos filhos tinham sido dados em adoção temporária
porque ela se tinha entretido com o namorado da época; pedindo um bar de mulheres no
Colégio universitário; comprando o pão, o queijo e a conserva de Branston para o
Almoço das Mulheres. Mas durante o resto do tempo eu estudava a Grande Marcha dos
Grandes Escritores Brancos, convencida no meu subconsciente de que, se começasse a
fazer perguntas, tudo acabaria em lágrimas. Então estudava a minha Grande Tradição:
Chaucer, Spenser, Shakespeare, Milton, Wordsworth, George Eliot, Henry James, D.H.
Lawrence. Notei evidentemente que havia algo errado na lista. Mas George Eliot, sem
dúvidas, assumiu um nome masculino apenas porque tinha que silenciar o facto de não
ser convenientemente casada. Ou talvez pensava que isso lhe garantiria uma receção
melhor por parte dos críticos e uma resposta mais séria por parte dos seus editores e
outros escritores. Tinha muito cuidado em particular para não colocar a questão
sucessiva: porquê as escritoras não eram levadas a sério? Claro que eram. Vejam como
todos levam a sério Jane Austen. E escrevi ensaios sobre como, apesar da estreiteza e da
limitação de foco, Jane Austen podia contar com uma experiência de mulher. E ainda,
que profundeza! Ai, que penetração! Que ouvido pelos diálogos! Que introspeção na
psicologia feminina! A importância vital das pequenas preocupações das mulheres para
com as combinações, os materiais, os panos, as compotas, os chapéus, as bolas, os
soldados, as visitas. Admirável. E que sábio preocupar-se para com o namoro mais do
que com o casamento, de que, como solteira, não teria tido nenhuma experiência. Tal é
o poder da ideologia literária e o desejo inquieto duma jovem estudante de sair-se bem
que nunca apreciei a relação matrimonial do Senhor e da Senhora Bennett, nem vi para
além do fim das frases conclusivas de Jane Austen sobre a infelicidade inevitável que há
no casamento.
Na verdade, perguntava-me porquê não havia nenhuma Shakespeare mulher. E Virginia
Woolf disse-me porquê.1 Como podia haver? Às mulheres não se ensinava a ler. Se uma
Senhora Shakespeare tivesse partido para tentar fazer fortuna em Londres, decerto teria
sido violada e morta. Em todo o caso, não teria conseguido ganhar a vida como atriz. Os
9
Página

1
Cfr. Virginia Woolf, A Room of One’s Own (1928; London, Penguin, 1972). Quando li Moll Cutpurse:
Her True History de Ellen Galford (Edinburgh, Stramullion, 1984), fiquei deliciada ao ouvir Judith
Shakespeare contar a sua própria história.
rapazes atuavam nos papéis de mulheres no palco de Shakespeare.2 E assim a
racionalização continuava. Nunca cheguei à segunda série de perguntas nas minhas
supervisões de literatura. Mantinha a minha política sexual feminista e os meus estudos
literários em duas caixas separadas. O movimento de libertação das mulheres
significava para mim naquela altura o que significa para mim agora: o feminismoo é
uma análise política da opressão das mulheres por parte dos homens e uma resposta
política às condições dessa opressão. E falo de opressão das mulheres para referir-me ao
sofrimento, à desvantagem e à privação que as mulheres suportam precisamente por
causa do seu sexo. O que não significa dizer que as mulheres não sofrem outras
desvantagens e outras opressões; mas todas as mulheres são oprimidas enquanto
mulheres. Há, notoriamente, feminismoos diferentes. O movimento de libertação das
mulheres era naquela altura, e ainda é, um movimento largo e heterogéneo. Mas está
alicerçado numa batalha que não é solitária, mas coletiva. E essa batalha coletiva tem
um objetivo comum: transformar a sociedade, todas as sociedades, de uma forma que o
acidente do sexo não seja opressivo para as mulheres. Em Gossip: A Journal of Lesbian
Feminist Ethics Kris, uma mulher negra, descreve comovedoramente a sua experiência
de abuso sexual e o racismo que encontrou entre feministas brancas enquanto tentava
lidar com o seu próprio sofrimento dentro da comunidade lésbica. 3 A resposta de Kris
foi corajosa, prática e politicamente aguda. Criou uma linha telefónica e um grupo de
apoio para outras mulheres negras que tinham sobrevivido a abusos na infância. E
dedicou o seu testemunho às mulheres que não sobreviveram. Esta resposta – uma
análise política crítica da sua própria experiência e, à luz dessa análise, uma dedicação
inteligente e amável a outras mulheres – pertence ao âmago da teoria e prática feminista
no seu melhor.4
O feminismoo tem portanto a ver com a construção de laços entre mulheres,
inclusivamente no cruzamento das nossas diferenças. Tem a ver com o desafio aos
pressupostos e às expectativas que reforçam o poder e o privilégio masculino e que se
agrupam como percevejos ao redor do facto da diferença sexual. Até falar de diferença
sexual disfarça a realidade do privilégio; não faz sentido tratar da diferença sexual sem
encarar o poder masculino.
O sexo é um facto biológico. Alguns entre nós são irrefutavelmente mulheres e alguns
são homens.5 Mas esse não é o fim da história. Sobre este facto construímos o edifício
mais peculiar de expectativas sociais e edificámos uma grande quantidade de
instituições que, de um modo geral, confinam as mulheres nas cozinhas, nas profissões
assistenciais, nas indústrias dos serviços e nas categorias das remunerações cruelmente
baixas ou das desempregadas. Uma palavra-chave desdobrada no processo é “natural”; e
o conceito de natureza é, a meu ver, mobilizado normalmente para acabar com a

2
As implicações homoeróticas disso são exploradas aprofundadamente em Still Harping on Daughters:
Women and Drama in the Age of Shakespeare de Lisa Jardine (Brighton, Harvester, 1983), especialmente
no capítulo 1.
3
Kris, “Another Kind of Coming Out”, Gossip: A Journal of Lesbian Feminist Ethics, n. 2, 1986, pp. 80-
9.
4
Se isso pode parecer desesperadamente idealístico, então sugiro que perguntem à cínica no vosso
cérebro como pretende mudar o mundo.
5
Ora bem, mais ou menos irrefutavelmente. Os transexuais no nosso meio parecem-me reivindicar mais
espaço do que merecem. Como uma vez disse um livreiro gay que conheci, falando dum colega que tinha
10

enfrentado a operação, “Algumas pessoas fariam qualquer coisa para levar um homem para a cama.”
Simpatizo largamente com as visões de Janice Raymond, expressadas no seu livro The Transsexual
Página

Empire (London, Women’s Press, 1980). Qualquer homem ou mulher que não esteja contente com os
códigos e as definições que nos circunscrevem como mulheres ou homens tem a minha simpatia, mas as
respostas são políticas, não cirúrgicas.
discussão. Já devem ter ouvido dizer: é simplesmente natural para as mulheres
desejarem filhos. As mulheres são esposas e mães naturais. As mulheres são
naturalmente passivas, ou naturalmente emotivas, intuitivas, irracionais. As mulheres
são naturalmente infiéis e volúveis; ou, por estranho que pareça, naturalmente devotas,
fiéis e dignas de confiança. As mulheres são naturalmente libertinas e lascivas. As
mulheres são naturalmente frígidas. As feministas sempre desafiaram este conceito
instável de natureza, porque as normas sociais e culturais que convêm ao status quo
muitas vezes são disfarçadas de diferenças eternas e imutáveis. Mas não estamos
enclausurados dentro de prisões biológicas e o ponto de ruptura da natureza é
exatamente o ser humano.6
The Daughters of Egalia de Gerd Brantenberg é um fantástico romance alegórico que
inverte o espelho biológico da Natureza.7 Os menwim (ou wim-homens), esmagados e
dependentes das poderosas e violentas wim, são mantidos no seu lugar pela afirmação
explicitamente ridícula que “no fim de contas, são os menwim que geram e recebem as
crianças”. Gerd Brantenberg é uma feminista lésbica norueguesa. Sabe que não há nada
de natural na heterossexualidade, nem no sistema de opressão sexual. São obra dos
homens. O texto tem momentos de alta comédia quando os senhorezitos, penteando
ansiosamente as barbas, cultivam os seus rolos de gordura para atrair as cruéis e
magnificentes wim. Os encontros sexuais que ela descreve, revelando a sua completa
devoção política ao orgasmo clitoridiano (contraposto, obviamente, ao vaginal),
denunciam qualquer aspeto natural que poderíamos ter imaginado como inerente à atual
prática heterossexual. Não há nenhuma expressão dita natural da sexualidade, e seria
bom que nos lembrássemos disso. Mas o livro torna-se alarmante e arrepiante quando
ousa afirmar o que aparentemente não se pode mudar: ou seja, a força física superior
dos homens. Um dos menwim, Spinnerman Owlman, parte a sua carteira aos bocados na
frente da sua turma mista. O movimento de libertação dos menwim começa com um ato
de violência. A violência é muitas vezes embelezada e erotizada nos romances
populares escritos por homens. A própria Bratenberg trabalhou em abrigos para
mulheres que foram espancadas por homens. A violência normalmente tem um
significado político muito diferente na escrita feminista: torna-se numa força sinistra
para o controlo social. O romance de Gerd Brantenberg polariza os leitores em mulheres
e homens ou, neste caso, wim e menwim; esta é uma tática característica da ficção
feminista.
Os homens raramente desafiam a construção social da masculinidade, que muitas vezes
também é apregoada como um facto natural, porque não sentem ter interesse em fazê-lo.
Mas a masculinidade também está cheia de contradições. Assim escreve John Bowe no
New Statesman:

A experiência da masculinidade para todos os homens é de violência, de agrupamentos e


alianças heterogéneas contra nós mesmos, outros homens, mulheres. A nossa tarefa é, em
primeiro lugar, tornar claras quais são estas contradições, tornar evidente que existem e
depois subvertê-las. Talvez seja aqui que uma política da masculinidade difere duma política
feminista. Uma política feminista tem a ver muitas vezes com a composição de alianças, com
evidenciar a experiência comum da opressão, com unir as mulheres naquele conhecimento
comum. Uma política progressiva da masculinidade tem que se focalizar primariamente na
destruição das alianças entre homens contra outros, e na fundação de outras alianças, quer
dentro quer, o que é mais importante, fora das formas tradicionais da organização masculina,
11
Página

6
Sou devedora aqui do ótimo ensaio de Jon Ward “The Nature of Heterosexuality”, in Gillian
Hanscombe & Martin Humphries (ed.), Heterosexuality (London, GMP, 1987).
7
Gerd Brantenberg, The Daughters of Egalia (1977; London, Journeyman, 1985).
do clube de desporto ao sindicato.8

Os homens que leem ou estudam literatura encontram-se numa posição interessante em


relação aos debates de política sexual, porque a literatura se preocupa inevitavelmente
com as relações entre os sexos – de facto, este é o território clássico da ficção –, com a
construção do género e com aquilo que significa ser dum sexo ou de outro em
circunstâncias sociais específicas. Mas, naqueles primeiros anos de estudante
profissional de literatura, criei, como estou a dizer, uma absoluta separação entre a
minha política sexual e a minha política sexual textual.9 Nesse processo devo ter
fundido células cerebrais.
Tinha as minhas dúvidas, naturalmente, e estas vieram de repente à tona enquanto
estudava John Donne. Sabia que Donne era maravilhoso. T. S. Eliot dizia que o era. Até
sabia porquê. Um dos seus contemporâneos, Thomas Carew, escreveu uma elegia, por
ocasião da morte dele em 1631, em que exaltava o “verso de expressão masculina” de
Donne. O jardim da poesia isabelina estava, segundo Carew, “inundado de pedantes
ervas daninhas”; mas Donne tinha mudado tudo isso. Como uma gigantesca foice fálica
tinha posto a poesia em ordem; e muitas das metáforas utilizadas para descrevê-lo a
fazer simplesmente isso eram expressadas em termos de agressão sexual masculina.
Donne, aparentemente, “cometeu Sagradas Violações contra a nossa Vontade”.
Violação tem um significado radicalmente diferente para uma leitora que não para um
leitor, e era desconcertante passar das ruas, onde eu estava ocupada em tomar uma
posição direta em defesa do direito duma mulher a ter o controlo do seu próprio corpo,
para o interior da biblioteca e utilizar “violação atrevida” e “estupro” como termos de
aprovação crítica.
Mas perseverava. Sabia perfeitamente de cor a maior parte dos poemas de amor
impiedosamente heterossexuais de Donne. Um em particular costumava perseguir-me:
“The Sunne Rising”. Este é uma tirada declamatória contra o sol por entrar no quarto
enquanto o poeta e a sua amante ainda estão a fazer amor. No último verso ele
supostamente celebra a mulher.

Ela é todos os Estados, e todos os Príncipes, eu,


Nada mais existe.10

Escrevi ensaios cautelosos sobre como a arrogância do poeta-amante é absolutamente


plausível. O que não contestava era o pressuposto do poema segundo o qual o homem
era um governador sexual absoluto e a mulher era a subordinada governada; ou que
Donne estava a exaltar um sistema de opressão sexual que existia realmente na
Inglaterra do século XVII, e ainda hoje existe. As metáforas tópicas de imperialismo e
conquista aplicadas ao amor sexual estão espalhadas pelos seus poemas de amor. Aqui
há um trecho de “Elegie: To His Mistress Going to Bed” (é Donne que fala,
obviamente):

8
John Bowen, “Speaking of Men”, New Statesman, 24 de maio de 1985. Cfr. também Rowena Chapman
e Jonathan Rutherford (ed.), Male Order: Unwrapping Masculinity (London, Lawrence & Wishart, 1988).
12

9
Peço para consultar Mary Jacobus, “Is there a Woman in this Text?”, New Literary History, vol. 14, n. 1
(1982), pp. 117-41, e Toril Moi, Sexual/Textual Politics (London, Methuen, 1985) para mais informações
Página

sobre porque não é verdadeiramente possível pôr em prática este tipo de autoilusões intelectuais.
10
N.T – No original “She is all States, and all Princes, I, /Nothing else is.”
Ó minha América, meu novo mundo
Meu reino, tão mais segura quando um homem lavrou
A minha mina de pedras preciosas, minha Impéria
Como sou abençoado por te haver descoberto. 11

Então, o imperialismo era uma metáfora legítima para a posse e o controlo dos corpos
das mulheres. Reparei que as mulheres nunca replicavam nos poemas de Donne.
Ocasionalmente elas faziam coisas – dormiam com outra pessoa, morriam ou matavam
moscas na cama – mas Donne tinha todas os versos bons e fazia toda a conversa. Um
dos seus poemas abria-se com um grande grito: “Por amor de Deus cale-se e deixe-me
amar...” 12Depois Donne tornou-se padre e começou a dizer a Deus o que fazer.
Renunciei a escrever sobre John Donne e passei a escrever sobre George Herbert.
Herbert também era padre. Não falava às mulheres. Ele só falava a Deus. E, duma
maneira interessante, a Deus eram concedidos versos nos poemas. Estava até autorizado
a argumentar em resposta. Então os homens estavam com vontade de falar a Deuses
invisíveis e até de deixá-los responder: mas eles tornavam as mulheres presentes
invisíveis e negavam-lhes a palavra. Aristóteles dizia que o silêncio era uma glória da
mulher, e obviamente muitos homens levaram isso a sério.
Mas porquê as poetisas não escreviam em resposta a isso? Tínhamos instrução?
Teríamos sido publicadas? Podíamos escrever? As formas, os géneros, os estilos – até
as palavras que os homens tinham construído – teriam capturado o que queríamos dizer?
Ou os nossos patrões tinham compreendido a ligação entre educação e revolução? A
poesia de amor de John Donne estava cheia de mulheres invisíveis e silenciosas. Muitos
livros feministas contemporâneos têm a ver com a ruptura de silêncios: por exemplo
Silences de Tillie Olsen, e On Lies, Secrets and Silence de Adrienne Rich.13 Comecei a
escutar os silêncios e aprendi que silêncio não é ausência, nem é necessariamente
aquiescência cúmplice. Silêncio não é assentimento. E aprendi que a educação tinha a
ver com o abafo das informações tanto quanto com a transmissão delas; aprendi que a
leitura é um processo profundamente político. Na minha juventude quente ouvi o
silêncio das mulheres tornar-se num magnífico rugido não retido.
A base radical do feminismoo consiste em contar histórias: sentadas em círculos,
ouvindo-se uma a outra, avaliando as recíprocas palavras, contando-se histórias. Porque
o feminismoo não surge da experiência solitária de cada mulher, mas da análise política
da experiência coletiva das mulheres. E naturalmente todas partimos de lugares
diferentes. A diversidade do feminismoo deveria ser uma virtude e uma força e é do
nosso interesse estarmos empenhadas no diálogo, na discussão e na solidariedade
atravessando as nossas diferenças, porque não há nenhuma linha de partido e nenhum
dogma monolítico. O elemento do feminismoo que o torna quer difícil quer impopular
de aceitar é que exige de nós, como indivíduos, que nos perguntemos onde nos

11
N.T. – No original “O my America, my new founde lande /My kingdome, safeliest when with one man
13

mann’d /My myne of precious stones, mv Empiree /How blest I am in this discovering thee.”
Página

N.T. No original – “For Godsake hold your tongue and let me love…”
12
13
Tillie Olsen, Silences (London, Virago, 1980); Adrienne Rich, On Lies, Secrets and Silence (New
York, Norton, 1979).
encontramos com respeito a um sistema extraordinário de relações, papéis e
expectativas sociais baseados no acidente biológico do sexo. O que pensamos sobre a
política sexual? Onde nos situamos dentro daquele sistema? E de que formas aquele
sistema sexual nos tornou no que somos? Nenhuma destas questões é confortável de
perguntar. Mas interessa realmente perguntar, não só: este que escreve, que fala, é uma
mulher ou um homem? mas: qual é o significado do facto de ser uma mulher, e uma
mulher feminista, quem escreve?
Uma abordagem feminista à escrita feminina deveria ser também um compromisso com
o diálogo em direção de uma comunidade de escritoras e leitoras. A crítica patriarcal
inclui todos os outros textos dentro do seu próprio, como um fagócito: a crítica
feminista deveria recusar esse processo de desintegração e digestão. Não sou uma juíza
do gosto; eu falo por mim. E este livro é a história dum diálogo, a história de todas as
mulheres que escreveram as suas histórias e que me disseram algo.
Tenho a percepção de que há três correntes dentro do projeto da crítica literária
feminista. O primeiro é a crítica feminista da ideologia literária sexista, que põe em
discussão as estruturas profundas do texto, seja ele escrito por uma mulher ou por um
homem, põe em discussão o que foi suposto como natural, contesta clichés,
preconceitos, ódio pelas mulheres, as estruturas de poder existentes no mundo que
foram reproduzidas na página. O míssil Sexual Politics de Kate Millett foi uma
performance de mestria que nunca foi verdadeiramente igualada: este e The Female
Eunuch de Germaine Greer, até vistos contra a imensa corrente de pensamento
sofisticado que saiu dos prelos, feminista e outros, para fazer a nossa revolução, ou para
fazer as carreiras de mulheres individuais, ainda funcionam como Jeremias com uma
nova visão para Israel.14 Os dois livros apresentam um caso ainda amplamente não
resolvido – na verdade, não resolúvel – para uma revolução das mulheres.
Elaine Showalter cunhou o termo “gynocritics” (ginocrítica), do francês “gynocritique”,
para apelidar um discurso dentro da crítica feminista que se preocupa com

a mulher como escritora – com a mulher como produtora de significado textual, com a
história, os temas, os géneros e as estruturas da literatura feminina. Os seus sujeitos incluem
a psicodinâmica da criatividade feminina; a linguística e o problema duma língua feminina;
a verdadeira trajetória da carreira literária individual ou coletiva feminina; a história
literária; e naturalmente estudos de escritoras e obras específicas.15

Este projeto crítico, crucial para o nosso entendimento da nossa própria história como
mulheres literárias, mulheres que escrevem, é a segunda corrente; e sobrepõe-se à
terceira, a da escrita crítica especulativa feminista na tradição intelectual francesa, que
adota e desenvolve temas da psicanálise e da linguística.16
Houve um breve e glorioso momento em que imaginei realmente que a psicanálise seria
uma teoria imensamente poderosa e sugestiva para o estudo da literatura. Uma
exposição da criação da identidade psicossexual e da construção do género tem,

14
Kate Millett, Sexual Politics (1970; London, Virago, 1977); Germaine Greer, The Female Eunuch
(London, MacGibbon & Kee, 1970).
15
Cfr. Elaine Showalter, “Towards a Feminist Poetics”, in Mary Jacobus (ed.), Women Writing and
Writing about Women (London, Croom Helm, 1979), p. 25. Gostei também da passagem, em Showalter,
14

sobre “a conexão entre a consciência feminista e as narrativas de conversão”. Estou completamente de


acordo.
Página

16
Cfr. Deborah Cameron, Feminism and Linguistic Theory (London, Macmillan, 1985) para uma
abordagem iconoclasta e desmistificadora da matéria, e Moi, Sexual/Textual Politics, para uma versão
mais respeitosa.
obviamente, uma importância crucial para a leitura e a escrita de ficção. Toda a ficção –
contos, novelas, romances – coloca necessariamente a política e a diferença sexual no
âmago do texto, duma maneira que um desafio teorético às categorias supostamente
naturais de masculino e feminino na fragmentação de masculinidade e feminilidade
seria verdadeiramente revolucionário nas suas implicações. A insistência na moderna
teoria pós-freudiana de que haverá uma base linguística para a construção da diferença
sexual e que o sujeito humano, masculino ou feminino, vem a existir somente através da
língua, é uma ideia de extrema relevância para todos os tipos de escrita feminista;
verdadeiramente, afinal de contas, nós construímos as nossas ficções e polémicas
através da língua.
A teoria freudiana nega a noção de que haja uma qualquer personalidade humana
estável. Não há nenhum sujeito unificado dotado de percepção; somos uma massa de
impulsos conscientes e inconscientes, sexuais e de outro tipo, de processos e desejos
acerca dos quais sabemos pouco e sobre os quais muito menos temos controlo. Não nos
tornamos no que somos pelas nossas experiências, mas somos desconhecidos até para
nós mesmos. As teorias de Freud sobre o desenvolvimento psicossexual destroem a
noção de qualquer tipo de sexualidade natural e, em particular, qualquer noção da
heterossexualidade como uma preferência natural. Mas esta afirmação, cujos
pressupostos são extraordinariamente pertinentes para o feminismoo, perde a sua
agudeza radical face ao mito de Édipo.

Para Freud não há diferença sexual na fase pré-edipiana: durante as fases oral, anal e fálica,
a menina não é diferente do menino. É no momento da crise edipiana que ocorre a mudança
crucial na orientação da menina: enquanto o menino continua a tomar a sua mãe como
objeto, a menina tem que afastar-se da sua ligação pré-edipiana à mãe e tomar em seu lugar
o pai como objeto de amor. Esta mudança não é só difícil de explicar; é também difícil de
atingir; é até dúbio, como Freud admite livremente, que a maior parte das mulheres
realmente consiga abandonar inteiramente a sua afeição pré-edipiana e desenvolver uma
feminilidade completamente “madura”. 17

A implicação para as lésbicas é clara: nós ficamos implacavelmente paradas na fase pré-
edipiana e coladas às nossas mães.
Os sexólogos fin de siècle, incluindo Freud, na verdade deveriam ser lidos dentro do seu
contexto histórico e em relação com as campanhas feministas do período. No seu relato das
lutas sobre estas questões conduzidas pelo movimento das mulheres no começo do século XX,
Sheila Jeffreys afirma claramente que a homossexualidade entre as mulheres estava
irresistivelmente ligada ao feminismoo.18 Uma mulher que se recusasse a adotar um papel
conforme ao sexo feminino, que recusasse o casamento e a reprodução, era antinatural em si
mesma. E é neste primeiro período do feminismoo que a lésbica se torna numa categoria clínica
definida e que o estereótipo da lésbica masculinizada de cabelo curto é inventado e representado
na ficção. O ceticismo de Elizabeth Wilson quanto ao valor da psicanálise para o feminismoo,
que compartilho, revela-se particularmente agudo na questão do lesbianismo. Escreve a autora:

...as obras teoréticas feminista focadas na psicanálise têm tido muito pouco para dizer sobre
a homossexualidade e o lesbianismo. Quando muito, a psicanálise parece ter sido usada
implicitamente para justificar as relações heterossexuais numa altura do movimento das
mulheres em que as mulheres que queriam relacionar-se sexualmente com homens sentiam
a pressão das feministas que eram lésbicas. 19
15

17
Moi, Sexual/Textual Politics, pp. 132-3.
18
Sheila Jeffreys, The Spinster and Her Enemies: Feminism and Sexuality 1880-1930 (London, Pandora,
Página

1985), pp. 107 e seguintes e especialmente o capítulo 6.


19
Elizabeth Wilson, “Psychoanalysis: Psychic Law and Order?”, in Hidden Agendas: Theory, Politics
and Experience in the Women’s Movement (London, Tavistock, 1986), p. 164.
A objeção central de Wilson à psicanálise é a maneira em que foi utilizada para silenciar
o debate à volta da construção do género. Nós aprendemos os nossos papéis
psicossexuais e mais nada: se não os aprendemos de uma forma apropriada, acabamos
por tornar-nos neuróticas, psicóticas e histéricas. A teoria de Freud, fragmentária,
especulativa, contraditória, torna-se dogmaticamente normativa. Poucos comentadores
julgam importante o facto de também ser muito claramente etnocêntrica. Édipo pode ter
alguma coisa para dizer à Viena branca, ocidental e capitalista, mas na Jamaica as
estruturas familiares que me rodeavam na infância eram muito diferentes. Aquele
triângulo tensamente neurótico de mãe-pai-filho dificilmente existia. A maior parte das
crianças jamaicanas é criada por familiares mais velhas, muitas vezes as avós. 20 Na
minha família este papel foi assumido pela minha madrinha, a Tia Vi, naquela altura
bem nos seus sessenta, que eu adorava e ainda adoro, e que era a minha companheira
mais fiel. Tinha também uma criada, mas a Miss Vi era a supervisora. Os defensores da
teoria psicanalítica como instrumento para a análise feminista raramente evidenciam
isso, mas eu teria pensado que, como Freud descreve as neuroses do capitalismo
ocidental, é improvável que jamais pudesse derivar da sua obra uma teoria universal da
diferença sexual, da construção do género ou da aquisição da língua. E Freud teria
certamente concordado com isso. Quanto a ele, as suas “observações erguiam-se ou
caíam pela qualidade das provas clínicas que era capaz de produzir a favor delas”.21
A minha própria experiência de psicanálise é instrutiva a este respeito. Em 1978 fiquei
seriamente deprimida e como que me retirei no fundo do meu saco-cama. Um rico
membro da minha família sugeriu que me entregasse nas mãos dum analista que era
extremamente caro e bastante prodigioso. Aparentemente, poderia ter tratado Virginia
Woolf.22 Experimenta alguma coisa uma vez, pensei, e aceitei. O analista era um
homem branco que vivia num lindo apartamento, cheio de mobília linda. Quando
cheguei às 7h30 da manhã, ainda ensonada, não me perguntou quem era ou qual podia
ser o problema. Em vez disso, sentou-se e olhou para mim. Evitei o divã e sentei-me
numa cadeira de braços. Ficámos sentados e em silêncio durante uma hora. Isso custou
£55. A mesma coisa voltou a acontecer na semana seguinte. Fiquei sentada a perguntar
a mim mesma se deveria contar-lhe os meus sonhos. Não conseguia lembrar-me deles.
Tinha havido transferência? Aperceber-me-ia se houvesse? No fim daquela sessão
escrevi-lhe uma carta a dizer que abandonava a análise porque não parecia levar a lado
nenhum. Respondeu e disse-me que a análise leva muito tempo. Resolvi ir de férias a
França com uma amiga e voltei muito contente e completamente tratada.
Depois de ouvir este conto triste uma amiga feminista berrou: “Patricia, que estúpida!
Tinhas que fazer associações livres!” Com o quê, perguntava-me? E uma norte-
americana, ela também uma psicanalista freudiana, saltou de um lado para outro com
hilaridade e raiva. “Que idiota! Ele deveria ter dito alguma coisa. O teu silêncio era
resistência. Uma rebelião! Deveria ter falado sobre a razão do teu silêncio. A análise
tinha já começado.” Agora, ninguém chega à análise inocente sobre as teorias em que
Freud se apoiava. As duas mulheres que comentaram a minha experiência de análise,
embora nenhuma das duas fosse completamente séria, fizeram uma suposição comum:

20
Cfr. Sistren, Lionheart Gal: Life Stories of Jamaican Women (London, Women’s Press, 1986).
16

21
Cameron, Feminism and Linguistic Theory, p. 131.
22
Que Virginia Woolf precisasse de tratamento é assunto para disputa. Cfr. o estudo sugestivo de Roger
Página

Poole, The Unknown Virginia Woolf (1978; Brighton, Harvester, 1982). Contudo, em todas as suas
especulações sobre a relação da escritora com o seu próprio corpo, ele não chega a enfrentar o
lesbianismo dela.
que eu de alguma forma estava errada.23 Não tinha conseguido atuar. Tinha-me
rebelado. Tinha recusado os termos do contrato. (Tinha também poupado a mim mesma
e aos meus familiares muito dinheiro.) A minha própria visão de Freud, porque acho
que deveria dizer a verdade aqui, é a de um entusiasta admirável. É um escritor
extraordinário. Mas acho que deveríamos ler a sua obra como ficção especulativa ou
investigadora, os Contos das Velhas Florestas de Viena, o que estimularia uma sã
suspeita e irreverência.
Estou com dúvidas sobre uma passagem fácil da análise das pessoas à análise dos
textos. Reconheço as semelhanças: uma memória, um sonho ou um fragmento, gnómico
ou enigmático, podem parecer-se com a estrutura psíquica dum poema lírico; a narrativa
sequencial duma história de vida bem poderia ter as caraterísticas típicas dum romance
realista, a perturbação e a deslocação daquela sequência poderia parecer um texto
modernista. Quer os textos escritos quer os seres humanos são marcados por faltas,
omissões, evasões, silêncios; que as faltas e os vazios são tão vitais, tão significativos
como o que é efetivamente dito é verdade, sem dúvidas. Como os espaços entre as notas
musicais, os silêncios vazios põem os termos do que pode ser ouvido. Os silêncios das
mulheres são particularmente significativos; inúmeras vezes nós próprias – os nossos
corpos, as nossas vozes – somos os silêncios, os espaços censurados nos textos, como
descobri ao ler os poemas de amor de John Donne. Temos que estar lá para sermos
amadas, mas temos que calar as nossas bocas. Hélène Cixous, defensora extraordinaire
da écriture féminine, riposta.

... os meus desejos inventaram novos desejos, o meu corpo sabe canções
desconhecidas...
E porquê não escrever? Escreve! A escrita é para ti, tu és para ti; o teu corpo é teu,
toma-o...
Ao escrever-se a si mesma, a mulher regressará ao corpo que tem sido mais que
confiscado dela…
Escreve-te a ti mesma. O teu corpo deve ser ouvido…
É escrevendo, de mulher para mulher, e assumindo o desafio do discurso que tem
sido governado pelo falo, que as mulheres confirmarão as mulheres num lugar diferente
daquele que lhes é reservado no e pelo simbólico, ou seja um lugar diferente do silêncio.
As mulheres deveriam fugir da armadilha do silêncio .24

Fala! Escreve! E depois deparamo-nos com os problemas da língua – a língua fálica, os


sinais, sistemas, significados, até modos do pensamento que não são construídos por
nós.
Em dezembro de 1984 conduzi até ao Yorkshire do Norte para discutir o projeto dum
livro sobre a espiritualidade feminista com uma mulher que nunca tinha encontrado
antes. Recebi um acolhimento muito caloroso. Almoçámos vegetariano. Logo que nos
sentámos em frente da chaminé para falar, ela disse sorrindo: “Devo dizer bastante
claramente que não aceito qualquer forma de racionalidade e que não consigo utilizar o
raciocínio patriarcal em nenhum tipo de discussão.” Tornei-me muito pálida, no
momento em que a hierarquia de sujeito, verbo, objeto e a marcha fálica do pensamento
lógico patriarcal em que eu estava profundamente treinada desapareceu com flauta e
percussão à distância. Isso era, naturalmente, uma declaração de intenções por parte da
minha amiga. Estava a avisar-me que os meus pressupostos habituais não necessitavam
de aplicação. Concordei precipitadamente que se a corrida aos armamentos era racional,
17
Página

23
Para este ponto sou devedora de Sheila Shuman.
24
Hélène Cixous, “The Laugh of the Medusa”, in Elaine Marks & Isabelle de Courtivron (ed.), New
French Feminisms: An Anthology (Brighton, Harvester, 1981), pp. 246, 250, 251.
então eu era pela loucura o tempo todo.
Até àquela tarde tinha sempre assumido, sem ter a consciência disso, que a
racionalidade e a lógica eram neutrais com respeito ao género; que o pensamento, num
modo convencional e razoável, não era opressivo para as mulheres. Estava convencida
que o que importava era o que pensávamos, não muito como o pensávamos. E era
possível pensar sem a língua? E se verdadeiramente pensamos só com a língua, é
verdade que “os homens controlam a língua… e as mulheres são alienadas da língua
numa medida em que os homens não são”?25
A minha amiga argumentava que havia uma ligação indivisível entre lógica e força.
Passei muitas horas a pensar naquela afirmação. Não podemos separar a língua, ou
essencialmente a argumentação racional, das instituições que a criam ou dos usos a que
são submetidos. Deixem-me explicar. A poesia de amor, cujo objectivo literário era
convencer a mulher referida no texto a ir para a cama, deixou-me sempre incomodada.
Não gostei de “The Exstasie” de John Donne quando o lemos pela primeira vez na
escola. As duas almas dos amantes são comparadas a “two equall Armies” [dois
exércitos idênticos] que negoceiam; não estava muito segura no que se refere à alma,
mas sabia que quando se chegava aos corpos as mulheres nunca estavam numa posição
igual de negociação.26 Donne argumentava que a alma da sua amante e a sua própria se
uniam para formar um terceiro elemento.

Logo nós, que somos esta nova alma, sabemos,


De que somos compostos e feitos,
Porque, os Átomos a partir dos quais crescemos.
São almas, que nenhuma mudança invade.27

Está certo, mas a estrofe imediatamente seguinte mudava completamente os termos do


compromisso:

But O alas, so long, so farre


Our bodies why doe we forbeare?28

Neste ponto inchei-me com toda a probidade feminista que uma rapariga de dezasseis
anos pode reunir e sublinhei que os corpos das mulheres e dos homens não eram os
mesmos para nada, quaisquer que fossem as suas almas, e que o que ele dizia não podia
acontecer; mudança e invasão era exatamente o que ia acontecer à mulher no poema.
Ela, como sempre, não tinha dito absolutamente nada, fora o que Donne dizia que ela

25
Cameron, Feminism and Linguistic Theory, p. 133. Cfr. também o manual da mesma autoria sobre
feminismo e língua, que eu considero uma leitura essencial neste discurso (o ensaio introdutivo é
particularmente iluminante): Deborah Cameron (ed.), The Feminist Critique of Language: A Reader
(London, Routledge, 1990).
26
Mas Rosemary Manning, imaginando quer os amantes quer as mulheres, muda completamente o
significado do poema. Ela comenta: “Nenhum poeta ou filósofo jamais chegou a dizer algo capaz de
analisar de uma forma tão poderosa e verdadeira quer a consumação do amor quer o estranho momento
que a precede.” Rosemary Manning, Time and a Time: An Autobiography (1971; London, Marion
Boyars, 1986), p. 83.
18

27
N.T. – “Wee then, who are this new soule, know, / Of what we are compos’d, and made, /For,
th’Atomies of which we grow, /Are soules, whom no change can invade.”
Página

28
N.T. – No original “But O alas, so long, so farre / Our bodies why doe we forbeare?”
dizia. O meu professor tentou tranquilizar-me e sublinhou que Donne estava
perfeitamente consciente do que eu tinha dito e que ele estava a redefinir a sexualidade.
“The Exstasie” era uma consumação mútua, não uma sedução prolixa. Mas não estava
convencida.
Todas achámos “To His Coy Mistress” de Andrew Marvell, que lemos depois, muito
mais convincente, porque ele estava à vontade com os termos do encontro. “Deserts of
vast Eternity” jazem verdadeiramente perante todas nós. Marvell, também, fala de “nós”
o tempo todo, mas é o nós proposicional: ela pode dissentir em qualquer momento. E a
mulher também tem força e suavidade, ela também é uma “amorosa ave de rapina”.
Marvell não lhe diz o que está a acontecer: limita-se a explicar porque teriam que ir para
a cama imediatamente. Ela poderia ter ouvido a argumentação – muito boa – e ainda ter
recusado.29
A argumentação racional e lógica é sempre um pensamento linear que chega a uma
resolução. A lógica postula uma só resposta correta. Até um paradoxo sugere que a
resposta certa tenha sido deferida, que a solução exista nalgum outro lugar. Mas não
acredito que os homens tenham o monopólio sobre a lógica muito mais do que eles
tenham o controlo absoluto sobre o significado; se o tivessem, nem eu nem nenhuma
das outras mulheres de que li a obra jamais teríamos escrito para nada. Não seríamos
capazes de expressar qualquer significado nosso próprio. Penso que há uma ligação
entre a lógica e a força, mas não é necessária. Podemos produzir as nossas próprias
argumentações e apresentá-las, se queremos, de maneiras não lineares. Podemos e
teríamos que escrever uma para a outra com formas inovadoras, flexíveis, criativas. Não
estamos sujeitas à língua ou ao pensamento como se fôssemos seres abjetos dentro de
sistemas externos ou até internos a nós mesmas. Podemos pensar, falar e escrever
diferentemente se escolhermos de o fazer– e se tivermos o poder económico e político
de atuar essa decisão. Mas podemos também manter um tipo diferente de silêncio.
O problema com qualquer teoria determinística da língua que afirma que somos
construídos como seres pensantes inteiramente dentro e através da língua é que, em
seguida, perdemos o contato com o facto que é perfeitamente possível ter uma
experiência para a qual não há palavras. O determinismo linguístico nega sempre ou
subverte uma política da experiência, e o feminismoo baseia-se na experiência coletiva
das mulheres,30 que é a de serem sexualmente oprimidas pelos homens, uma opressão
que tem muitas formas, muitas faces e muitas linguagens.
Para as feministas intelectuais francesas a distinção instável entre mulher e texto,
analista e analisando, é redesenhada nas fronteiras imprecisas entre escrita literária e
crítica, entre autora e crítica de profissão. A meu ver a desintegração da última categoria
é particularmente útil. Uma crítica de profissão julga a escrita, estabelece os seus
próprios padrões de gosto e escolhe entre o bom, o mau e o feio. Penso também que este
poder não deveria ser subestimado. O sofrimento amargo de May Sarton para a recensão
negativa do seu romance A Reckoning não é a neurose duma artista ultrassensível. Estas
são as suas razões:

Cada escritor está demasiado consciente dos seus defeitos, demasiado ansioso em relação
ao seu trabalho, demasiado cheio de dúvidas a seu próprio respeito para ser capaz de pôr de

29
Gosto de acreditar pelo argumento que Marvell provavelmente era um escritor gay. Há uma intensidade
19

contida e lúdica em poemas como “The Definition of Love”, que reconhece uma igualdade genuína; e
uma vontade de ser vencido, dominado (cfr. “The Fair Singer”) que é muito diferente da masculinidade
Página

agressiva de Donne.
30
Cfr. a análise convincente e lúcida sobre este ponto de Deborah Cameron no seu Feminism and
Linguistic Theory, pp. 129-33.
parte com indiferença uma recensão negativa. É uma gota de veneno e lentamente vai
entrando no sistema, dia após dia… Podes mostrar-te superior a uma ou duas humiliações
como esta, mas ao cabo de dez ou mais isso mexe contigo. Senti-me acabada… Aqui é
preciso encarar o facto que estão em causa tanto o meu meio de vida como o meu talento de
escritora. Uma recensão negativa retém os leitores de comprarem um livro, é tão simples
como isso. Quando um trabalho importante perto do fim de uma longa vida é “estragado”
assim, significa que a escritora tem que meter logo mãos à obra e produzir outro para
manter-se financeiramente à tona.31

Todas as críticas são opinião – e também opinião política. Uma crítica de profissão
normalmente argumentará qual é o tipo de escrita que ela quer ler e ver na página; que é
a razão porque a autoridade magistral sem cara de que a crítica é investida é tão
perniciosa. Todas as críticas vestem um interesse, portanto é só cortesia dizer qual é
esse interesse e fazer com que a respetiva política seja completa e explicitamente clara;
e tornar também visível o processo político através do qual se está a mexer, porque só
os arrogantes e os loucos chegam sempre a uma posição fixa e estática. Ler com
suspeita dá a cada uma de nós o poder e a liberalidade de dissentir de todos os livros
que lemos. Porém devemos desejar ser envolvidas, engajadas, persuadidas,
convencidas. A minha leitura é uma experiência ativa e de certo modo agressiva. Nunca
peço emprestados os livros porque gosto de comentar nas margens, que é o que nós,
como mulheres, sempre fizemos. Se sabíamos escrever, fazíamos assim nas margens do
texto patriarcal.
Era, e é, muito importante para nós contar e ler as histórias das recíprocas vidas, das
nossas próprias vidas, das nossas conversões ao feminismoo. Mas temos que submeter
as nossas próprias histórias a um interrogatório político rigoroso. A maior parte do
nosso comportamento social, incluídos os nossos códigos sexuais, até as nossas
fantasias e desejos aparentemente mais íntimos, são de facto experimentados como se
estivéssemos a atuar em papéis pré-escritos. E muitas vezes interpretamos as nossas
experiências como nos disseram para fazer. Uma mulher violada muitas vezes sente
realmente que a culpa foi sua. A política da tomada de consciência tem como objetivo
não negar aquela experiência, mas olhar atentamente para as razões que tornam
conveniente para os homens o facto de termos de sentir vergonha e culpa, para o porquê
deveríamos carregar a culpa pela violência deles. Portanto não deveríamos ficar
surpreendidas se, ao contarmos as nossas histórias, descobrimos zonas desconhecidas de
dor, sofrimento, frustração e raiva. Em Prisons of Glass de Elizabeth Wilson um acorde
de alguma forma discursivo e elegíaco toca ao longo de toda a narrativa. 32 O romance
conta, numa sequência de cenas fragmentárias, como um velho filme, a história do
movimento de libertação das mulheres e a política que acompanhou o seu aparecimento.
A figura central, Crystal, acaba por retirar-se na convenção, no que se refere ao
casamento, envolver-se na psicanálise, e no fim recolhe as histórias das mulheres que
conheceu enquanto era uma ativista de ponta no movimento das mulheres. Acaba por
fazer a pesquisa para Prisons of Glass. Há um capítulo medonho e rigoroso, “The Lost
Weekend”, onde a irmandade chega ao ponto de ruptura. A cooperativa editorial de
Termagant, barricada numa quinta no campo, arenga-se reciprocamente de forma
mesquinha durante um inteiro fim de semana e vai-se embora no domingo à noite com
todas as feridas abertas. Provavelmente todas nós nos encontrámos dentro de pesadelos
como este, onde torrentes de egotismo e necessidade, intercalados com explosões de
20
Página

31
May Sarton, Recovering: A Journal (New York, Norton, 1980), pp. 20-1; A Reckoning (1978; London,
Women’s Press, 1984).
32
Elizabeth Wilson, Prisons of Glass (London, Methuen, 1986).
lágrimas e tentativas para alcançar o poder, fazem parecer uma discussão de família no
Natal sobre a vontade de um familiar morto uma bagatela. Mas um terreno político
comum nunca pode ser dado por assumido; não consigo lembrar-me de nunca ter
pensado que poderia ser, e não penso assim agora.

Ainda estavam aqui, sentados em círculo, revelando-se a fim de afirmar a sua igualdade, o
objetivo era uma mútua identificação... a igualdade que queriam era de mulheres oprimidas
e em luta, forjando uma identidade comum para brandir contra o mundo... Trabalhar juntas
o ano inteiro não tinha sido tão fácil como esperavam. Não podias explorar as diferenças
porque o imperativo constante da irmandade abafava a divergência. 33

Fiquei surpreendida ao ler isto. Presumivelmente na cooperativa de Termagant todas


pensavam realmente que eram “mulheres oprimidas e em luta” ou não teriam estado lá
na primeira fila. Elizabeth Wilson escolhe enfatizar a frustração, a diferença, a
inimizade e a divisão. Sem dúvida, trabalhando em qualquer grupo, todas
experimentamos realmente estas coisas; mas na minha vida, por estranho que pareça,
onde as mulheres se reúnem o sentimento de comunidade também está sempre presente.
Estive recentemente no hospital e no reparto de ginecologia experimentei a mesma
solidariedade e compreensão, até através das nossas diferenças, que encontrei também
num grupo de discussão de mulheres do campo. Ali eu era a estranha do grupo, a
mulher não casada sem filhos. Havia discordância, sem dúvida; a irmandade nunca
abafou uma divergência bastante significativa; mas havia um sentimento mais
irresistível de estarmos todas do mesmo lado. Estava tão surpreendida ao sentir isso ali
como estava o resto do grupo. Duma forma intrigante, na narrativa de Elizabeth Wilson,
são as alianças políticas com os homens, fora da cooperativa de Termagant, que
efetivamente são a causa do desentendimento: quem está no Partido Comunista, quem
faz parte dum grupo trotskista, quem está agarrada a uma relação heterossexual
realmente horrível. Faz parte do mal-estar do movimento de libertação das mulheres nos
anos mais recentes deplorarmos as nossas divisões, insistirmos nas nossas diferenças,
fragmentarmo-nos em grupos cada vez mais pequenos, sem olhar a sério para as razões
de tudo isso.34 A causa comum das mulheres é um produto da nossa opressão. São essas
as razões por que a irmandade, muito lamentada como prematuramente falecida por
muitas feministas vencidas, é tão difícil de aprender e de conseguir. Não faz parte dos
interesses dos homens que as mulheres deem àquela causa comum uma forma política;
mas esse é o projeto do feminismoo e está em nosso poder atuar assim.
Como é que a escrita de ficção se conecta com a modelação de um novo mundo? 35 A
literatura é uma “prática discursiva”... cujas convenções codificam as convenções
sociais e são ideologicamente cúmplices. Além do mais, assim como cada invocação
dum código é também o seu reforço ou reinscrição, a literatura faz mais do que
transmitir a ideologia: na verdade cria-a... Aqui Greene e Kahn deixam claro, com a sua
formulação algo cómica e impenetrável, que um ato de escrita é um ato de fé, quase

33
Ibid, p. 111.
34
Julia Penelope olha muito a sério para as razões de tudo isso num extenso artigo em três partes, “The
Mystery of Lesbians”, que discute o golpe liberal do movimento de libertação das mulheres. O artigo é
republicado pela revista norte-americana Lesbian Ethics em Gossip: A Journal of Lesbian Feminist
Ethics, nn. 1, 2, 3 (London, Onlywomen, 1986). Todas as mulheres que se definem feministas deveriam
21

ler este artigo; é uma polémica perturbadora e necessária.


35
Gayle Greene & Coppélia Kahn, “Feminist Scholarship and the Social Construction of Woman”, in
Página

Greene e Kahn (ed.), Making a Difference: Feminist Literary Criticism (London, Methuen, 1985), pp. 4-
5. Iluminante por instantes e ocasionalmente ilegível, este livro é uma coletânea inteiramente norte-
americana, que é portanto caraterizada por questões e preocupações críticas norte-americanas.
como dizer a Missa. O Verbo torna-se carne; escreve-o e ele torna-se num facto, um
facto ideológico pelo menos. E como o feminismoo é a recusa de aceitar o status quo
existente entre mulheres e homens e as resultantes divisões entre mulheres, o
feminismoo indica uma nova maneira de ver e de ser. A escrita feminista será portanto
sempre opositiva. Temos de escrever sempre polémica até termos escrito o nosso novo
mundo a ser. E neste sentido a nossa escrita é sempre escrita utópica, especulativa. Não
estamos só a escrever contra todas as estruturas, todas as essências que regem o nosso
mundo; estamos a escrever o futuro. Que é o que a escritora de ficção científica, lésbica
e feminista, Joanna Russ quer dizer quando afirma: “É tudo ficção científica.” 36
Mas é tudo apenas uma questão de conteúdo? Do que escolhemos como objeto da nossa
escrita? Significa simplesmente que temos que pintar os homens como monstros e as
mulheres como seres magníficos? Ora bem, este é um território muito disputado. O que
é a escrita feminina? E o que é a ficção feminista? Na verdade, nem sempre estamos
num terreno seguro se perguntarmos: O que é uma mulher? Mas como Elizabeth
Wilson, no seu papel de crítica interna do feminismoo socialista, sublinha: “Acredito
que podemos – e deveríamos – julgar a teoria em termos dos seus resultados
políticos.”37 A escrita – ficção, autobiografia, poesia, panfletos, opúsculos, polémica
enfurecida – que fez uma diferença tão radical nas nossas vidas coloca efetivamente
todas estas perguntas. Além do mais, coloca-as a mulheres. Acho que este é um aspeto
importante da escrita feminista: o público a que a ficção é endereçada supõe-se ser
feminino e amotinado. O “nós” de Shedding de Verena Stefan são mulheres zangadas:

Para mim é mais estimulante dirigir-me a um homem do que a uma mulher? Domesticaram
os nossos espíritos. Este termo impróprio, socialização! Este conceito que embeleza, que
condiciona.
Podemos deslocar-nos só se nos deslocamos para o sexo oposto, e mesmo assim apenas nos
movimentos coreografados que nos ensinaram quando nos domesticaram até nos
subjugarem.38

Nós – as mulheres; eles – os homens; o leitor é sempre construído como uma mulher, e
como um particular tipo de mulher com um particular tipo de política. Isso é o que torna
a escrita feminista muitas vezes irritante ou hilariante de ler: o nosso assentimento é
furiosamente requisitado ou assumido.
Uma mulher que leu a minha escrita – um esboço precedente deste livro – e tentou
moderar-me, perguntou: “Porquê estás sempre tão zangada?” Perdi logo a paciência.
Considero a raiva um aspeto importante do feminismoo e da escrita feminista. Como
mulheres não somos livres. Eu não estarei livre enquanto todas as mulheres, de qualquer
cor, idade, classe, raça e sexualidade também não estiverem livres. E temos muito para
estar zangadas. A raiva não é considerada uma emoção apropriada para as mulheres. A
meu ver este também é um ponto importante para a ficção feminista. Para as mulheres, a
escrita em si mesma torna-se num ato de transgressão, numa articulação de todas as
coisas que não deveríamos sentir ou pensar, numa consciente e deliberada recusa de
sermos boas meninas.
Germaine Greer disse que as mulheres têm muita pouca ideia de quanto os homens as
odeiam. Ora bem, ler Happy as a Dead Cat é descobrir que o sentimento é inteiramente
22

36
Joanna Russ, Extra(Ordinary) People (New York, St Martin’s, 1984), p. 147. A frase é uma epígrafe de
Página

Carol Emshwiller no princípio do último texto do livro.


37
Elizabeth Wilson, “Thoughts on Beyond the Fragments”, in Hidden Agendas, p. 70.
38
Verena Stefan, Shedding (1975; London, Women’s Press, 1979), p. 72.
recíproco.39 A narradora é uma mulher da classe operária sem nome, presa num
casamento convencional com cinco filhos. Ela estás muito zangada e não é uma boa
menina. O que o livro torna dolorosamente visível é a exaustão absoluta e a fadiga física
que ser esposa e mãe requer. A relação patrão-escravo é desenhada com precisão. O
patrão não tem acesso à mente do escravo. Mas nós temos – nós mulheres, nós leitoras.
O marido não tem outro nome que o de Shitface [cara de excremento]; e as fantasias da
mulher são todas desejos enchidos de raiva e vingança fantástica e selvagem.

Uma noite sonhei que tinha cortado vinte pénis e os tinha dado para comer a uma matilha
de cães vadios. Ele quis saber porquê naquela manhã tinha acordado com um sorriso
rasgado no meu rosto. Nunca lhe contei... “Tarte de maçã no frigorífico, meu amor”... Se
tivesse ficado quinze dias, podia ter-te estrangulado ou envenenado, com um bocado de
sorte... Pelo que vejo, o caminho para o coração de um homem desbrava-se com a porcaria
de uma picareta... (pp. 7, 11, 51).

O ódio dela escorrega como um fluxo subterrâneo. Duas coisas libertam a heroína: outra
mulher e um livro. A mulher é a sua amiga Jane (“Era Jane que me tinha tornado
consciente do sexismo”, p. 24), que leu o livro referido acima, The Women’s Room de
Marilyn French. “Houve um tempo, amiga, em que eu estava vergada e em posição de
vénia, e punha-me às ordens a cada capricho seu. Depois uma amiga bem-intencionada
emprestou-me The Women’s Room. Senti-me tão zangada que tive de desafiá-lo. Foi aí
que a merda bateu no ventilador” (pp. 25-6). Jane arma a sua rebelião em termos de
classe, com o marido como patrão e ela como o proletariado que faz continências. Mas
o livro é o instrumento político que torna as mulheres livres. Happy as a Dead Cat de
Miller tem a ver com o silêncio e a subversão, com o pensar diferentemente e encontrar
novas palavras para o dizer. A verdadeira ação do romance tem lugar dentro da cabeça
da narradora, embora o movimento decisivo chegue quando Shitface insiste em juntar
ao agregado familiar o pai antissocial: a heroína, com os seus cinco filhos, vai-se
embora e começa uma atividade com Jane. É um final feliz, mulheres juntas a criarem
os respetivos filhos; como diz Jane: “Aqui estou eu, uma mãe trabalhadora, livre e tão
feliz como um porco na merda” (p. 26). A vida duma mãe trabalhadora nunca é fácil ou
simples, mas, como Miller diz com perfeita clareza, ter Shitface em casa significava
acabar não com cinco filhos, mas com seis.
A escrita feminista não respeita as fronteiras, as categorias e os géneros que os homens
criaram. Somos deliberadamente indecorosas nas nossas concepções e na execução do
nosso trabalho. O estudo da maternidade de Adrienne Rich, Of Woman Born:
Motherhood as Experience and Institution, abarca autobiografia, poesia, mito, crítica
literária, boatos, análise histórica, anedotas, mexericos, superstições. 40 Na ficção
feminista, teoria, polémica, narrativa, fantasia, verismo, novelas e histórias da
carochinha muitas vezes entrecruzam-se. Esta informalidade, urgência e irreverência
resultam na intimidade reveladora de mulheres juntas na conversa. A escrita feminista
muitas vezes relata os eventos do movimento de libertação das mulheres
contemporâneo, tendo como teatro os eventos políticos contemporâneos. Assim a ficção
torna-se em documentário histórico. Mud de Nicky Edwards toma como pontos de
referência os dois grandes ajuntamentos junto das bases aéreas da Força Aérea norte-
americana de Greenham Common em dezembro de 1982 e de 1983.41 Eu estava lá nos
23

39
Jill Miller, Happy as a Dead Cat (London, Women’s Press, 1983).
Página

40
Adrienne Rich, Of Woman Bom: Motherhood as Experience and Institution (1976; London, Virago,
1977).
41
Nicky Edwards, Mud (London, Women’s Press, 1986).
dois dias. Sei do que fala e o efeito disso é curioso. Ao ler o romance, uma meditação
sobre a paz e a política da paz e da guerra de uma lésbica que participou naquelas
jornadas, encontro-me implicada numa inteira comunidade de escritoras e leitoras. A
heroína de Mud, que é escrito como uma narrativa confessional na primeira pessoa, está
a escrever uma peça teatral sobre a Grande Guerra. Qualquer mulher que tenha passado
algum tempo dormindo na lama em Greenham terá notado a relevância duma
comparação entre Greenham e as trincheiras: lama e golpes dos dois lados e o arame
entre nós. Os campos de paz de só mulheres enfatizam a polarização sexual, que é a
nossa realidade social, em termos particularmente crus. Os homens estão dentro,
poderosos cercados, a planejarem a próxima guerra. No romance de Edwards a heroína,
a lésbica Jo, encontra Ada, com 83 anos, no curso da sua pesquisa. As ligações entre as
mulheres são as únicas significativas; a história dos homens e da Grande Guerra
também é contada, mas ofuscada de forma ambivalente pela agressão, metida de lado
pela escritora e pela sua heroína enquanto a vida e as lembranças de Ada ganham a
precedência. A ficção feminista desafia as normas heterossexuais da ficção; o centro do
intercâmbio significativo já não se encontra entre mulheres e homens, mas entre as
mulheres.
A oposição feminista radical à política da paz de Greenham fala sob a forma do
agregado familiar separatista lésbico de Beryl. A paz não é uma questão de mulheres,
essa é a argumentação; salvar o mundo para os nossos maridos, as nossas famílias e os
nossos filhos é salvar um mundo onde as mulheres são violadas, abusadas, exploradas e
mal-pagas. O ponto não é salvar o mundo, mas mudá-lo. Esta argumentação parece-me
extremamente persuasiva. Uma mulher negra que encontrei em junho de 1983 ouviu
que eu acabava de voltar do bloco de dois dias na base da Força Aérea norte-americana
de Upper Heyford. “Oh”, disse sorrindo, “estás contra a bomba? Eu estou
completamente a favor. Que caia uma vez por todas!” “O quê?” respondi incrédula,
cheia de zelo político e virtude consciente por ter-me engalfinhado com os golpes da
polícia. “Olha”, disse, “Tens que estar a viver uma vida digna de ser salva para
importar-te com a proibição da bomba. E se és negra, facilmente não estás.” Alvo
atingido.42 Paz é obviamente uma palavra sem sentido se não vai a par com justiça.
Mud de Nicky Edwards dirige-se e contribui para o discurso feminista contemporâneo.
A ficção empenha-se diretamente com a política prática. A “outra mulher” na história é
Ada, velha e aberta mentalmente. Jo sai, ou melhor, é forçada a sair do armário durante
a última, longa cena no pub onde as duas mulheres se embebedam juntas e Tudo é
Revelado. Ada simplesmente diz: “‘Cada um com o seu. Ou a sua.’ E esse foi o último
comentário de Ada sobre o pronunciamento não programado” (p. 177). Ada é a mestra,
a mulher sábia. “‘Estás colada ao passado, rapariga. O teu problema é esse.’ Fiquei
chocada, apesar de ela ter falado só superficialmente. ‘Quando chegas a ver tanta
história como eu vi, e tão viva, dás-te conta que não é grande coisa’” (p. 192). Uma
nova imagem, algo romântica, de velha mulher efervescente, vívida, liberal está a
emergir na escrita feminista. Perguntei-me se Nicky Edwards fora influenciada pela
escritora lésbica norte-americana May Sarton, que escreve sobre mulheres idosas,
ancianidade e a persecução dos velhos. Em Mrs Stevens Hears the Mermaids Singing F.

42
Para uma discussão mais específica deste discurso cfr. três panfletos: Breaching the Peace: A
Collection of Radical Feminist Papers (London, Onlywomen, 1983); uma resposta de Jean Freer, Raging
24

Womyn: In Reply to Breaching the Peace. A Comment on the Women’s Liberation Movement and the
Common Womyn’s Peace Camp at Greenham (publicação gratuita, 1984; doações a The Womyn’s Land
Página

Fund, PO Box 51, 190 Upper Street, Islington, London Nl); e Black Women and the Peace Movement de
Wilmette Brown (publicado em julho de 1983 pela International Women’s Day Convention com parte da
subvenção do comité de mulheres do GLC; disponibilizado pelo King’s Cross Women’s Centre).
Hilary Stevens, a poetisa cujas memórias formam a ação do livro, tem setenta anos e
ganhou-os todos, como ela diz. As We Are Now conta a história de Caro, com sessenta e
seis anos, e a sua corajosa insistência sobre o seu próprio poder, dignidade e identidade
perante a gradual extinção por causa da sistemática humilhação num hospício. Laura em
A Reckoning visita a sua mãe que tem muita idade, Sybille, que pode ser uma idosa, mas
que continua frustrada, zangada, viva.43 Outras escritoras lésbicas norte-americanas que
foram publicadas na Grã-Bretanha colocam mulheres idosas no centro das suas
narrativas: a Amelia Larsen de Jane Rule em Against the Season é o eixo de todas as
outras personagens. Seja Jan Clausen (The Proserpine Papers), seja a escritora britânica
da classe operária Caeia March (Three Ply Yarn e The Hide and Seek Files) utilizam a
experiência de velhas mulheres ficcionais como instrumento para revelar uma história
lésbica perdida, para tornar a tradição eternamente invisível da vida lésbica parte da
perspetiva lésbica contemporânea.44 O movimento das mulheres contemporâneo foi
dominado por mulheres jovens; esta não era a realidade das sufragistas, muitas das
quais eram mães e avós. Existem agora redes para lésbicas e feministas com idade. A
escrita ficcional reflete e cria esta mudança política.
A escrita feminista é produzida no interior da comunidade das mulheres e a esta se
dirige. A heroína de Edwards, Jo, é uma escritora que vive e trabalha sozinha; mas é
vulnerável às opiniões das lésbicas que desafiam a sua política de Greenham. Sente-se
responsável pela sua comunidade. O discurso com final aberto no livro é um verdadeiro
diálogo. Nicky Edwards e a sua escritora estão conscientemente a “dissecar o estilo de
vida contemporâneo do [seu] género” (p. 176). A imagem do artista como génio
solitário, que combate para tirar a forma do caos e que cria significados no isolamento,
ainda tem os seus aderentes. A Helen de Michèle Roberts em The Visitation escreve
romances feministas, exatamente como a sua autora; tem blocos do escritor, torna-se
febril quando toca a caneta, é silenciada pela sua consciência social. “Neste momento
não consigo escrever nada”, admite: “Não consigo fazer nada. Não consigo pensar em
mais nada que os horrores da política internacional. Parece-me indecente preocupar-se
com a escrita.”45 Isto parece supor que a escrita não tem completamente nada a ver com
a política internacional. A crítica que Helen antecipa normalmente vem do “recenseador
trocista”, mas também da “feminista correta” – quem quer que ela seja. Reconhece que
a sua amiga Beth “trata com desprezo tudo o que tresanda a autoindulgência, tão
propensa a criticar a natureza elitista e individual do estilo de trabalho dos artistas...” (p.
81). Nem todos os artistas trabalham daquela maneira e de facto Helen impõe-se uma
tarefa que, penso, seria possível alcançar só dentro da comunidade das mulheres: “agora
define o eu, agora define mulher... Começa a escrever” (p. 173). Não podemos descobrir
o que uma mulher é no isolamento; precisamos uma da outra.
One Foot on the Mountain, a primeira antologia de poesia feminista britânica, de 1969 a
1979, põe o tónica na empresa coletiva.46 Muitas contribuintes agradecem aos
respetivos grupos de escritoras a crítica, o encorajamento e o suporte. Toda a escrita

43
May Sarton, Mrs Stevens Hears the Mermaids Singing (1965; New York, Norton, 1915); As We Are
Now (1973; London, Women’s Press, 1983); A Reckoning. Cfr. também Barbara Macdonald com Cynthia
Rich, Look Me in the Eye: Old Women, Aging and Ageism (London, Women’s Press, 1984). Macdonald,
cuja magnífica cara rugosa olha para nós da capa desta edição, escreveu uma poderosa recensão de As We
Are Now de Sarton: cfr. o seu ensaio na coletânea The Power of the Old Woman.
25

44
Jane Rule, Against the Season (1971; London, Pandora, 1988); Jan Clausen, The Proserpine Papers
(1988; London, Women’s Press, 1989); Caeia March, Three Ply Yam (London, Women’s Press, 1986) e
Página

The Hide and Seek Files (London, Women’s Press, 1989).


45
Michèle Roberts, The Visitation (London, Women’s Press, 1983), p. 81.
46
Lilian Mohin (ed.), One Foot on the Mountain (London, Onlywomen, 1979).
feminista torna-se política mais do que literatura se a escritora é forçada a escolher: ser
ou a favor ou contra as proposições estabelecidas. O facto de a política e a literatura
serem tão difíceis de imaginar de mão dada diz muito da cena literária britânica.47
Propaganda é ainda um termo de abuso crítico negativo. Thalia Doukas, uma das
contribuintes de One Foot on the Mountain, diz cautelosamente da sua própria obra: “...
Não estou bem a tentar criar literatura; estou a tentar falar” (p. 229). Aqui trabalha a
velha política da literatura: os poetas – homens – criam arte em isolamento; as mulheres
feministas começaram a difícil tarefa de tentar simplesmente falar uma com a outra. A
celebração de Ann Oosthuizen do seu grupo de escritoras em “Bulletins from the Front
Line”, “Lemos os últimos boletins da linha da frente/Atentamente estudamos o terreno
juntas” (p. 26), ecoa nas últimas linhas no primeiro romance de Michèle Roberts, Piece
of the Night: “As mulheres estão sentadas em círculos a falar. Estão a passar telegramas
ao longo das linhas de combate, a contar uma à outra histórias que não as deixaram
dormir, a reconhecer aliadas sob o disfarce da feminilidade, já não a contrabandear
munições por cima dos muros do jardim das traseiras, já não cadáveres na igreja e bocas
de homens.”48 Oosthuizen e Roberts falam uma para a outra, como as mulheres que
escrevem sempre fizeram, contando-se histórias. Essa é a empresa central da ficção
feminina; e nas palavras de Roberts repousa também a consciência de que todas as
histórias que nos foram contadas, as histórias que não são de nossa própria produção,
são mentiras para silenciar-nos. E então não podemos criar primariamente ARTE. Arte,
literatura, ficção, poesia, todas estas coisas não foram feitas à nossa imagem. A arte
aspira à permanência. Ambiciosas somos sem dúvidas; mas sabemos também que muita
da nossa obra é provisória. Temos de ser escritoras desconfiadas, assim como leitoras
desconfiadas; temos de interrogar tradições, formas, as mesmas noções de inspiração e
composição. Não podemos confiar em nada.
Dentro dos grupos de escritoras do movimento feminista, a prática da escrita muitas
vezes torna-se num projeto coletivo. Zoe Fairbairns, na sua introdução a Tales I Tell My
Mother, torna visível a origem da escrita: “é assim que nos definimos a nós mesmas...”
e conta-nos como fizeram. O processo torna-se tão crítico como o produto.

Encontrámo-nos nas respetivas casas para produzir este livro, a intervalos de uma a três
semanas. As histórias circulava entre nós nos intervalos e depois eram inteiramente
discutidas. As alterações costumavam ser feitas à luz das discussões e não foi incluída
nenhuma história que não tivesse o assentimento unânime do grupo para ser incluída;
contudo, acreditamos que a colectividade tem os seus limites e cada história é, afinal, obra
da sua autora individual, e é assinada por ela.49

A maior parte dos escritores têm, de facto, grupos de escritores, e sempre tiveram. Para
as Bröntes era a família inteira; para Wordsworth era Coleridge, a sua adorada irmã
Dorothy, a sua mulher Mary e a sua cunhada Sara. Dorothy copiava os poemas de
William, aprendia-os de cor e recitava-os a mando: escrevia aos que não estavam de
acordo defendendo os métodos dele. Ela fornecia-lhe os seus “olhos selvagens” como
fonte para ver; ele copiava passagens palavra por palavra dos diários dela nos seus

47
Em 1986 os homens tiveram uma disputa sobre isso: Tom Paulin e Craig Raine dissentiram por algum
26

tempo nas colunas literárias da imprensa patriarcal sobre o que é a poesia política e o que deveria ser
incluído na antologia de Paulin The Faber Book of Political Verse. Não me importei em seguir as suas
Página

argumentações muito de perto porque era bastante claro que eles não estavam a falar para mim.
48
Michèle Roberts, A Piece of the Night (London, Women’s Press, 1978), p. 186.
49
Zoe Fairbairns et al., Tales I Tell My Mother (London, Journeyman, 1978), pp. 1, 2-3.
próprios blocos de apontamentos.50 Dorothy e Coleridge estavam muitas vezes com ele
quando encontrava os temas da sua poesia; no rascunho final normalmente ele escrevia-
os por extenso e aí vemos o génio romântico solitário a experienciar a paisagem
visionária sozinho. Dorothy informa sempre os seus companheiros: “andei com
Coleridge pelas colinas.”51 Dorothy também era uma escritora; como muitas outras
mulheres utilizava géneros informais, cartas e diários. O agregado familiar de Shelley
era o seu grupo de escritores; na lista de Byron havia o seu médico, o seu editor e,
realmente, o entourage de Shelley. Durante um verão húmido em 1816 sentaram-se
todos em volta da fogueira à beira do Lago Geneva encorajando-se reciprocamente a
escrever histórias de fantasmas; só Mary Shelley completou a sua história –
Frankenstein. Mas os grupos de escritores da tradição literária não foram muitas vezes
divulgados ou dados a conhecer publicamente. Muitas muitas vezes, como no caso da
família Wordsworth, os autores eram homens e os grupos eram mulheres admiradoras.
Um grupo de escritoras feministas acaba por reunir-se como uma célula política, em que
cada membro é igual a todos os outros. A escrita por si só torna-se num ato político.
Esta é Valerie Miner: “Escrever histórias é ativismo... arte e ativismo não são
contraditórios, mas reciprocamente inclusivos.” 52 O esquema não é o do génio e do
grupo em suporte e de acompanhamento invisível, mas o de uma devoção igualitária a
uma política comum e do respeito mútuo. A perspectiva, o resultado de ninguém tem de
ser privilegiado face a qualquer outro. Sara Maitland, do grupo que trabalhou sobre
Tales I Tell My Mother, argumenta no terceiro texto de discussão (que consiste de
breves textos polémicos que fornecem algumas das ideias teoréticas, estéticas e políticas
do grupo) que “Esta não é uma antologia, é um livro, uma entidade individual, uma
acumulação de pontos de vista” (p. 114). A ficção feminista é normalmente prefaciada
com agradecimentos generosos às mulheres que digitalizaram, procuraram os livros,
leram os esboços. Nicky Edwards agradece a mulher que lhe emprestou o quarto com a
máquina de escrever. Mas no fim os limites da coletividade são atingidos brevemente;
cada texto é assinado – com um só nome. A não ser Somerville e Ross, que até
continuaram a escrever juntas com a ajuda de assistência sobrenatural depois que uma
delas tinha falecido, sei de poucas mulheres que escrevem ficção juntas. Katherine
Bradley e Edith Cooper escreveram sob o nome de “Michael Field” em finais do século
XIX; Hannah Wakefield é o nome de arte para duas mulheres norte-americanas
anónimas que escreveram The Price You Pay, um thriller político racial.53 Nos domínios
da teoria, da história e da biografia, é obviamente uma questão diferente e muitas
mulheres colaboram na pesquisa e na produção de ideias. Será que a ficção passou a ser
associada de uma forma demasiado estrita com a ideia da expressão individual? A
ficção em prosa e as personagens na paisagem do romance deveriam tornar-se
propriedade pública? Deveríamos ser capazes de pegar nas personagens e nos cenários
de outro escritor, melhorá-los ou reciclar as ideias sem medo das leis de copyright? As
escritoras feministas não contestaram a propriedade das ideias tanto quanto a construção
do génio. E continua a haver uma grande diferença entre escrever com o suporte de um
grupo e escrever como grupo.

50
Cfr. a descrição dos narcisos de Dorothy em Ullswater e comparem com o poema de William; notem
também a sua descrição do apanhador de sanguessugas, que se tornou na “Resolution and Independence”
de Wordsworth cerca de quatro anos mais tarde. Em The Journals of Dorothy Wordsworth, ed. Mary
27

Moorman (Oxford, Oxford Paperbacks, 1971), os poemas são reimpressos no fim com as referências ao
texto.
Página

51
Journals of Dorothy Wordsworth, p. 4.
52
Valerie Miner, “Feminist Fiction and Polities”, in Fairbairns et al., Tales I Tell My Mother, p. 61.
53
Hannah Wakefield, The Price You Pay (London, Women’s Press, 1987).
Os escritores também normalmente escreveram do interior de uma distinta comunidade
e para ela, ou pelo menos de e para uma cultura reconhecida: para os patrões, para as
cortes de reis e rainhas, para o mundo branco, burguês, heterossexual. A escrita
feminista – ou pelo menos, a escrita produzida por feministas ocidentais, brancas,
heterossexuais, burguesas – não é a única cultura oposicional a combater, se não para
tornar-se literatura, então simplesmente para falar. A escrita lésbica e gay torna-se no
Outro das assunções normativas heterossexuais na produção da ficção. A escrita dos
negros e dos asiáticos dentro da Grã-Bretanha define-se contra a cultura branca e
racista. A escrita proletária ou da classe obreira é o Outro da cultura burguesa. Mas,
como argumenta Sigrid Weigel, “Não pode fazer sentido usar a categoria de ‘estranhas’
para descrever a cultura das mulheres visto o grande número das que estão
envolvidas.” 54 Weigel desenvolve o ponto, com que me acho de acordo, que as
mulheres “ao mesmo tempo participam na cultura existente, mas também são excluídas
dela e nela oprimidas” (p. 63). É esta contradição absurda que está na origem do
necessário “duplo foco” literário de Weigel e da “dupla visão” política de Barbara
Deming. Deming escreve:

Parece-me que as feministas agora e por algum tempo hão de esperar ter de viver com algo
que representa uma dupla visão política. Quando olharmos para um homem qualquer que
classicamente seria definido oprimido, vamos passar a ver dois homens: um é uma pessoa
oprimida, e portanto um companheiro, mas o outro é uma pessoa que nos oprime. Ainda
mais grotescamente, se somos, como no meu caso, brancas e da classe média, vamos ver:
55
uma pessoa que me oprime e a outra que me vê como a sua opressora .

O opressor é também o nosso pai, o nosso amante, o nosso irmão, o nosso amigo.
Temos que vê-los como as duas coisas. Temos que aprender a ler as formas literárias do
patriarcado como estruturas que nos excluíram e que apesar disso ajudámos também a
construir. Não há respostas simples. Há só uma sequência de complexidades a
multiplicarem-se. Weigel afirma que “ao contrários dos colonizados, as mulheres não
podem resistir recorrendo às recordações de uma cultura pré-patriarcal autónoma. Não
têm nenhuma memória coletiva de um modo de existir independente do
patriarca/colonizador.”56 Ora bem, isso não é completamente verdade. A escrita e a
memória lésbica recusam-se a honrar os patriarcas e contestam, nem que seja de uma
maneira velada e deformada, as estruturas coercitivas da heterossexualidade. 57

54
Sigrid Weigel, “Double Focus: On the History of Women’s Writing”, in Gisela Ecker (ed.), Feminist
Aesthetics (London, Women’s Press, 1985), p. 62.
55
Barbara Deming, “To Fear Jane Alpert is to Fear Ourselves”, Remembering Who We Are [“Temer Jane
Alpert é temermo-nos a nós mesmos”, Recordando quem somos] (Pagoda-Temple of Love, 1981;
distribuído por Naiad, Tallahassee, Fla), p. 112.
56
Weigel, “Double Focus”, p. 63. O Matriarchy Network na Grã-Bretanha não estaria de acordo, sem
sombra de dúvida. Cfr. a revista Arachne, disponível para as mulheres só a partir do Arachne Collective,
Matriarchy Research e Reclaim Network (se ainda existe). Não tenho nenhuma opinião firme acerca deste
ponto. Sem dúvida houve uma religião de deusas antes de Jehovah; mas que as sociedades em que aquela
religião era praticada fossem realmente igualitárias e adorassem realmente as mulheres é assunto
discutível. As culturas de adoração das deusas não são agora fãs convictas da autonomia e do poder das
mulheres. Em qualquer lado onde a Bendita Virgem Maria é adorada as mulheres são ainda mais
duramente policiadas e controladas. Há muitas explicações possíveis por tal; possivelmente. onde o poder
28

das mulheres é reconhecido o medo desse poder por parte dos homens aumenta consequentemente. Para
uma leitura deprimente cfr. Gerda Lerner, The Creation of Patriarchy (Oxford, Oxford University Press,
Página

1986).
57
Cfr. Lillian Faderman, Surpassing the Love of Men: Romantic Friendship and Love Between Women
from the Renaissance to the Present (1981; London, Women’s Press, 1985) e o artigo de recensão de
Mas o que é a escrita lésbica? O breve e intenso artigo de Alison Hennegan no primeiro
número de Women’s Review, “What Lesbian Novel?” coloca todas as perguntas difíceis.
“Significa de lésbicas, para lésbicas, sobre lésbicas? As três, duas delas ou só uma?” 58
As mulheres heterossexuais podem escrever romances lésbicos? E os homens poderiam
escrever? Hennegan por fim opta por uma definição conservadora do romance lésbico:
“Para mim um romance lésbico passou a ser um romance onde a experiência de uma
autora lésbica e uma visão necessariamente oblíqua do mundo (que continua a
marginalizá-la) inspiram a sua obra, independentemente do género ou da sexualidade
das suas personagens” (p. 12). Isso é verdade, por enquanto. Mas então o que é uma
lésbica? Obviamente, é alguém que sofre como uma estranha no heteropatriarcado e
cujo amor sexual para outras mulheres torna a sua experiência vivida menos válida,
menos central, menos significativa do que a das mulheres heterossexuais da nossa
cultura. Esta definição deve ser provisória. Não queria pressupor um mundo
heterossexual onde as mulheres lésbicas sempre foram forçadas a posições oblíquas e
marginais na sua escrita e na sua vida. E muitas lésbicas que são escritoras ainda
resistem ao rótulo de “escritoras lésbicas”; às vezes porque estão firmemente no armário
e às vezes porque não são feministas e internalizaram uma ajuda substancial da
homofobia institucional. A Reckoning de May Sarton é um livro que Hennegan descreve
positivamente como um romance lésbico, “porque o próprio lesbianismo de Sarton ao
mesmo tempo inspira e aprofunda a sua compreensão e a sua percepção das mulheres”
(p. 12). Sarton, dalguma forma, demorou um ano a ultrapassar uma recensão do mesmo
romance que a acusava de ter escrito “um romance lésbico disfarçado.” 59 Sentia-se
menorizada e perseguida pelo rótulo de “lésbica”. “A culpa por associação fará com que
um recenseador me acuse de cobarde se todas as minhas personagens não são lésbicas,
ao que parece... Gostaria de ser pensada em termos humanos. A visão da vida na minha
obra não se limita a um ou outro segmento da humanidade e tem pouco a ver com a
inclinação sexual” (pp. 80-1). O problema de Sarton tem muito a ver com a sua política
literária. A experiência humana não é uma constante comum e universal, disponível
para ser dirigida e explorada por todos os escritores; a empresa do feminismoo provou
precisamente isso. A experiência das mulheres é radicalmente diferente da dos homens;
ser lésbica, gay ou heterossexual, negra ou branca, significa habitar um mundo
completamente diferente. E enquanto escritoras como Sarton recusarem histericamente
o rótulo de “lésbica”, as lésbicas serão consideradas como menos que humanas.
Se a prática da escrita é irrevogável e inevitavelmente política na sua implicação – e,
verdadeiramente, intenção – devemos desmascarar as nossas próprias posições e
investimentos políticao, na crítica e na ficção. As dimensões políticas do feminismoo de
cada mulher, o ponto de que elas partem, serão influenciados pela situação política em
que já se encontram. As feministas reformistas normalmente depositam confiança na
retórica liberal dos direitos e na transformação das estruturas existentes: tudo o que
temos que fazer é reescrever as mulheres nas histórias, nas instituições, nas hierarquias.
Mas isso necessariamente envolve as mulheres na aceitação de valores, procedimentos,
estruturas e métodos masculinos. Paridade, igualdade, justiça para as mulheres. Parece
convencedor. Mas igualdade em que termos? Ou melhor, de quem? É claro que as
vitórias podem ser consideráveis; estou a pensar no levantamento dos comités das
mulheres nos conselhos locais e no festival do feminismoo municipal que foi possível
29

Sheila Jeffreys na sua obra, “Does It Matter If They Did It?: Lillian Faderman and Lesbian History”,
Trouble and Strife, no. 3 (Summer 1984), pp. 25-9.
Página

58
Alison Hennegan, “What Lesbian Novel?”, Women’s Review, no. 1 (November 1985), p. 10-12.
Women’s Review existiu de novembro de 1985 até julho de 1987, depois abriu falência.
59
Sarton, Recovering, p. 20.
nos primeiros anos 80 graças ao Women’s Committee da agora falecida e lastimada
GLC. As feministas socialistas ofereceram uma crítica justa do movimento de libertação
das mulheres contemporâneo. Logo no começo dos anos 70 o feminismoo ocidental era
amplamente branco, visivelmente heterossexual e burguês. As campanhas e as questões
à volta das quais o movimento estava organizado eram pedidos burgueses. Mas
nenhuma divisão é estática; não só a classe, mas também a raça, a origem étnica, a
deficiência e a sexualidade dividem as mulheres uma da outra. As críticas internas ao
movimento de libertação das mulheres durante a década de 80 teve a tendência de se
focalizar nos direitos das minorias e tornar visível mais dimensões da experiência de
opressão das mulheres. O problema central com a crítica feminista socialista da
opressão de classe é que divide as mulheres uma da outra, as burguesas das operárias,
sem considerar o facto que as definições de classe são definições profundamente
masculinas. Beatrix Campbell, em Wigan Pier Revisited, conta como a sua viagem aos
bairros operários brancos de Orwell transformou as suas perspectivas socialistas:

...ser feminista coloca uma mulher simultaneamente dentro e fora da corrente dominante da
política da classe trabalhadora; que são embebidos em preconceito sexual e privilégio.
Comecei como o género de feminista que dizia “não são os homens, é o sistema”: mas este
jornada convenceu-me que os homens e a masculinidade, nas suas manifestações
individuais diárias, constituem um bloco de resistência sistemático para as mulheres da sua
própria comunidade e da sua classe. Quer os homens como indivíduos quer os homens dos
movimentos políticos que criaram dentro da classe trabalhadora são culpados .60

Estou de acordo que quer os homens, quer seus os sistemas necessitam de uma
renovação radical – e de uma crítica feminista radical.
O feminismoo radical e revolucionário enfatiza especificamente os factos da opressão
sexual e da violência masculina contra as mulheres, que todas as mulheres sofrem, sem
ter em conta a idade, a raça ou a classe. Ironicamente, a violência contra as mulheres é
um dos temas mais centrais e permanentes da nossa cultura literária, da violação de
Helena e o saque de Tróia, passando pelo assassinato de Desdemona por parte de Otelo,
até ao massacre ritual de The Woman Who Rode Away de D.H. Lawrence.61 As
campanhas políticas, à volta das quais as feministas radicais se organizam, visam tornar
visível e reagir contra aquela violência: protestos contra a pornografia, ataques às lojas
pornográficas, suporte e trabalho nos abrigos de Women’s Aid para as que sobrevivem à
violência doméstica, participação nas linhas da Rape Crisis. Quando as mulheres ou os
homens acusam as feministas de serem demasiado extremas, combativas e divisoras,
normalmente referem-se às feministas radicais. A razão é fácil de entender: é que as
mulheres que são feministas radicais definem os homens como os opressores das
mulheres. Eis um trecho do manifesto editorial de Trouble and Strife, um jornal
feminista radical:

Os homens oprimem as mulheres mas não por causa da sua (ou nossa) biologia – não
porque os homens sejam fisicamente mais fortes, nem porque os homens tenham falos e as
mulheres carreguem os filhos e possam amamentá-los, nem porque os homens sejam
inatamente mais agressivos. Consideramos que os homens oprimem as mulheres porque
tiram partido disso. Todos os homens, mesmo no patamar mais baixo das hierarquias
masculinas, têm vantagens que advêm de pertencerem à categoria masculina. Mesmo os
mais solidários com a libertação das mulheres obtêm benefícios da subordinação das
30

60
Beatrix Campbell, Wigan Pier Revisited: Poverty and Politics in the 1980s (London, Virago, 1984), p.
Página

14.
61
Este ofensivo romance breve é atentamente analisado por Kate Millett, Sexual Politics (1970; London,
Virago, 1977), pp. 285-93.
mulheres.62

Isto é perturbador de ler porque se dirige às raízes das divisões entre mulheres e homens
e à realidade da separação entre eles. Apesar disso é a ideia do separatismo como
estratégia política que provoca o alarme mais rápido e penetrante. A perspectiva da
desintoxicação dos homens por parte das mulheres, expulsando-os das nossas camas e
das nossas cabeças, normalmente enche o quarto de gritos raivosos. Acho isto mais
interessante simplesmente porque o separatismo, o separatismo total, para as mulheres
muito raramente é possível. Os homens possuem e guiam todas as instituições, todas as
posições de poder e influência. Eles não fazem todo o trabalho – bem longe disso; nós
fazemos – mas eles é que detêm a maior parte dos lugares de trabalho. Até ao começo
deste século as mulheres na Grã-Bretanha não tinham direito de voto, nem acesso ao
Parlamento, à lei, às profissões; a nossa influência na educação avançada era fraca. As
mulheres da classe operária, sem maravilha, não foram porém excluídas das fábricas ou
das manufaturas. O meu ponto de vista é simplesmente este; o separatismo prende-se
com o poder.63 Os homens podem e sempre praticaram o seu próprio separatismo
excluindo as mulheres. A exclusão dos homens por parte das mulheres é uma
reclamação radical de espaço e poder para nós mesmas.
Não é necessário ser uma feminista socialista para incorporar uma análise de classe e
raça dentro de uma leitura política da ficção feminista. O meu primeiro grupo feminista,
“Scarlet Women”, seria considerado agora como feminista radical. Eu era a única entre
nós a estudar literatura; as outras mulheres eram economistas, antropólogas,
historiadoras. A política marxista e antirracista informava as nossas primeiras análises
feministas. Os livros que líamos eram impenetravelmente teoréticos; mas visávamos a
ação direta. Não penso que a nossa crua insistência na base material da nossa opressão
ou os nossos slogans rudes fossem um fenómeno isolado e confinado ao grupos
universitários de jovens mulheres; a nossa política certamente vinha “desta tensão entre
o poder dos homens e a resistência das mulheres”.64 Uma mulher numa das minhas
aulas para adultos sobre a ficção feminista que dei no outono de 1985 contou-nos tudo
sobre a sua primeira sessão de tomada de consciência em 1970. Cada uma das mulheres
no seu grupo ou era casada ou vivia junto com um homem. Armadas com a política da
resistência das mulheres, todas fizeram surtidas até casa casa e proclamaram no coração
do lar afirmações revolucionárias, como “A partir de agora limparás a banheira e
prepararás o pequeno almoço.” Seguiram-se cenas torvas. Mas a política sexual delas, e
a nossa, tinha a ver com a resistência à opressão masculina a todos os níveis.
O poder negro e o feminismoo têm uma relação histórica no século XIX e uma conexão
mais particular durante a década de 60 do século XX, quando o feminismoo branco e
ocidental emergiu da esquerda revolucionária dominada pelos homens. Aquela herança
histórica de marxismo revolucionário e luta política pós-imperialista reveste uma
importância crítica para o feminismoo radical. Kate Millett, Shulamith Firestone,
Andrea Dworkin, Barbara Deming – todas feministas radicais norte-americanas das
décadas de 70 e de 80 – todas da velha guarda, da velha esquerda. A minha própria
história política é parecida, embora a esquerda revolucionária na Inglaterra, ou pelo
menos o pedaço dela em que eu estava, operava numa atmosfera estranha de drogas e
desordem. Lembro-me a organizar uma quermesse para comprar pistolas, a minar o
31

62
Editorial, Trouble and Strife, n. 1 (Winter 1983).
63
Cfr. também Marilyn Frye, “Some Reflections on Separatism and Power”, in The Politics of Reality
Página

(Trumansburg, NY, Crossing Press, 1983), pp. 95-109.


64
A justificação contínua para Trouble and Strife, impressa na capa interna de cada número. Ainda muito
forte.
capitalismo fazendo voar as obras de Cowley em Oxford à uma da manhã e a afirmar a
minha devoção ao Poder Negro derramando tinta vermelha sobre um defesa de críquete
racista. Eu costumava ser uma socialista revolucionária que aderia à causa de todos –
exceto à sua própria. Agora descrever-me-ia como uma feminista radical.
Sublinho esta conexão entre feminismoo radical e socialismo revolucionário porque
muitas feministas socialistas – e estou agora a pensar em Cora Kaplan e no seu ensaio
na antologia Making a Difference – constroem o feminismoo radical como o demónio
enganado no fundo da caixa de Pandora. O feminismoo radical, assim ela diz, “vinga
completamente a psique das mulheres, mas vê a mesma como bastante separada da dos
homens, amiúde em oposição direta”; ele defende “a sexualidade feminina como
independente e virtuosa entre mulheres, mas aviltante num contexto heterossexual”. 65 A
crítica da heterossexualidade como uma das instituições chave através das quais o
patriarcado é organizado e aos homens é dado direto acesso aos corpos, ao trabalho e à
força das mulheres, é certamente central no feminismoo radical. Mas não é um
correlativo automático e não conheço nenhuma mulher que reivindicaria que o é, que a
sexualidade é portanto independente e virtuosa entre mulheres. Virtuoso é uma palavra
vitoriana maravilhosa e certamente não tem nada a ver com as conotações pecaminosas
e misteriosas do lesbianismo. Ora bem, de certa forma estou completamente do lado do
pecado, mas evidentemente que não é verdade que a sexualidade entre mulheres não
apresenta problemas: como as Leeds Revolutionary Feminists sarcasticamente colocam
a questão, “Nunca te prometemos um jardim de rosas.”66 De facto, é precisamente
porque a heterossexualidade é tão difusamente opressiva, até dentro da comunidade
lésbica e gay, seja para quem nunca comprou o pacote completo de casa, casamento e
crianças dalguma maneira, seja para quem desistiu dele com desgosto, que a
heterossexualidade, quer como prática sexual quer como instituição de estado,
permanece um foco tão central de argumentação, crítica e análise. Tampouco gosto da
assunção heterossexista de Kaplan pela qual a sexualidade feminina se expressaria entre
mulheres como exatamente da mesma maneira que entre mulheres e homens. E parece
muito estranho de imaginar, como Kaplan faz aqui, a sexualidade de qualquer um
existindo fora das estruturas de classe, raça e cultura.
Kaplan oferece uma breve leitura de Jane Eyre de Charlotte Brönte. Este romance foi
central para algumas praticantes da crítica literária feminista contemporânea; foi lido
como um texto clássico para a ficção feminista.67 Jane Eyre é estruturado como um
romance de busca, a história duma mulher solitária e ardente, escrita como uma
apaixonada narrativa confessional na primeira pessoa. Jane persegue a felicidade e a
realização pessoal. Manifestos como “Preocupo-me comigo mesma” e “Nascemos para
tentar e aguentar” estão prestes a penetrar bem entre os oprimidos e os rebeldes. O
acesso de Jane no começo é famosa:

É inútil dizer que os seres humanos deveriam ficar satisfeitos com a tranquilidade: precisam
de ação; e hão de criá-la se não conseguirem encontrá-la… Milhões de indivíduos são
condenados a um destino mais tranquilo que o meu, e milhões estão numa revolta silenciosa

65
Cora Kaplan, “Pandora’s Box: Subjectivity, Class and Sexuality in Socialist Feminist Criticism”, in
Greene e Kahn, Making a Difference, p. 151. Para uma análise feminista socialista do movimento de
libertação das mulheres cfr. também Lynne Segal, Is the Future Female? Troubled Thoughts on
Contemporary Feminism (London, Virago, 1987), que tem a mesma linha de Kaplan.
32

66
Cfr. o documento das Leeds Revolutionary Feminists – muito disputado, debatido, aprovado,
vituperado – in Love Your Enemy? The Debate between Heterosexual Feminism and Political Lesbianism
Página

(London, Onlywomen, 1981), p. 8.


67
Vide Sandra M. Gilbert and Susan Gubar, The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the
Nineteenth Century Literary Imagination (New Haven, Yale University Press, 1979), capítulo 10.
contra o seu fado. Ninguém sabe quantas rebeliões para além das rebeliões políticas
fermentam nas massas de vida que as pessoas sufocam. Em geral supõe-se que as mulheres
68
sejam muito calmas: mas as mulheres sentem exatamente o mesmo que os homens.. .

Kaplan argumenta que aqui, falando de “seres humanos” e “milhões”, Brontë está a
invocar a revolução proletária. Eu teria achado que era perfeitamente claro que ela
queria dizer mulheres, todas as mulheres, mulheres como uma classe. Ela sugere
explicitamente que as rebeliões das mulheres são algo diferente das rebeliões políticas.
Kaplan continua dizendo que a diferença entre as mulheres “é um elemento pelo menos
tão importante quanto a diferença entre os sexos, enquanto maneira de representar tanto
a classe como o género”.69 Na realidade não acredito que isso seja verdade, mas o que
acho aqui é que, quer na política quer na crítica feminista socialista, uma ênfase na
diferença de classe aprofunda as divisões entre as mulheres – como de facto elas são
divididas no texto de Jane Eyre: puta crioula louca, virgem pálida e reta, repugnante
aventureira da sociedade e bailarina francesa inexplicavelmente imoral. Kaplan critica
as feministas radicais para ir à procura de “uma solidariedade ‘oculta’ entre mulheres” 70
e indica as representações hostis e pejorativas das mulheres na escrita feminina, até na
escrita que, como Jane Eyre, foi aclamada como ficção feminista. Portanto, as mulheres
tomam cuidado com as mulheres, nós somos os nossos próprios piores inimigos. Mas o
que têm em comum as mulheres acima referidas? Todas são, ou querem ser, Mrs
Rochester. É precisamente assim que o patriarcado trabalha, tanto sobre a página como
no mundo: dividindo as mulheres. Portanto a obsessão no âmago da carcaça de
Thornfield é Edward Fairfax Rochester. Não é suficiente dizer que as mulheres
menosprezam e abusam de outras mulheres sem dizer porquê. E eu ponho em dúvida
qualquer abordagem política que privilegie e enfatize as diferenças entre as mulheres.
No interesse de quem será isso? Não no nosso.
É estranho, considerada a sua explícita preocupação para com a raça 71 como categoria,
que Kaplan não enfatize a herança de Bertha Rochester. Bertha é enorme, alta como um
homem. Jane vê a sua cara medrosa, enegrecida, selvagem no espelho, vestindo o velo
nupcial. Bertha sai da página como o Outro das Índias Ocidentais, o Crioulo, não
simplesmente a louca, mas a Negra, no sótão.72 Kaplan afirma que Bertha se revolta
violentamente contra a sua rival.73 Não é verdade. Ela não faz isso. Ela aparece no
quarto de Jane durante a sua noite na véspera do casamento, como o monstro de
Frankenstein, como o seu duplo psíquico, como um aviso, como a verdadeira Mrs
Rochester. E o seu gesto simbólico é completamente claro. Ela deita para o chão o velo
nupcial e pisa-o. Enquanto a paixão descontrolada continuar a extravasar-se no andar
de cima, Jane não pode casar com o obsceno objeto do seu desejo. Mas porquê a paixão
sem controle é representada por uma mulher negra? Num nível textual mais literal
Rochester é ainda casado, ele é um barba-azul, Bertha é o seu segredo e isto é o que
acontece às suas esposas. Bertha é uma das milhões de condenadas a uma infelicidade

68
Brontë, Jane Eyre, capítulo. 12. Esta passagem é citada e discutida por Kaplan em “Pandora’s Box”;
leiam e vejam o que pensam.
69
Kaplan, “Pandora’s Box”, p. 166.
70
Ibid.
71
“Raça” é em si um termo dúbio que disfarça o problema real. Todos somos de raças diferentes. Não é a
raça que deveria importar-nos, é o racismo: a discriminação deliberada praticada pelos potentes contra os
33

impotentes na base de categorias raciais.


72
Cfr. o ensaio extraordinário de Chikwenye Okonjo Ogunyemi, “Womanism: The Dynamics of the
Página

Contemporary Black Novel in English”, Signs, vol. 11, n. 1 (Autumn 1985), pp. 63-80. Sou grandemente
devedora das suas análises sobre Jane Eyre.
73
Kaplan, “Pandora’s Box”, p. 172.
mais silenciosa do que a de Jane Eyre. Precisa de ação e gera-a quando não consegue
encontrá-la; ela reduz a cinza o edifício murcho do patriarcado.
Uma mulher negra jamaicana, ao ler Jane Eyre como estudante, descreve o seu
sofrimento e a raiva pela traição de Bertha Mason/Rochester.

No terceiro ano, deram-nos Jane Eyre para ler. Era a única obra literária em que havia uma
referência aos caraíbas. Também era o único livro escrito por uma mulher que nos tinham
dado para ler. Gostávamos dos excertos sobre a escola e depois chegámos à louca herdeira
da cidade espanhola trancada no sótão. A princípio demos risinhos, sabendo que era
suposto identificarmo-nos com Jane e a sua procura de independência e dignidade. Depois
passámos para a parte onde esta obra-prima da literatura inglesa descreve Bertha Mason
como “inferior, de pele azul … etc.’. Alguém estava a ler em voz alta na sala de aula como
era costume. Gradualmente os resmungos e os murmúrios na sala registaram um crescendo
numa revolta aberta com coros altos de “Não é justo, Miss!” A Miss reconheceu que não
parecia justo, mas continuou a não fazer nada com essa revelação... Não conseguia largá-
lo... ansiosamente à procura de um capítulo, de um parágrafo ou de uma frase que pudesse
redimir a insensata inferioridade animal dos caraíbas. Era o romance de uma mulher e tinha
gostado tanto da parte anterior, mas não podia suportar a maneira em que eu tinha sido
relegada para o sótão. Senti-me atraiçoada. Foscamente, poucas páginas do romance tinham
falado à minha vida como a maior parte das tolices com que desperdiçamos a nossa vida na
74
escola não fizeram.

Esta leitora caraíba em Bertha Rochester viu a sua irmã, não a estrangeira. Já obliterada
dentro da peculiar instrução britânica que estava a receber na St Andrew’s High School
for Girls em Kingston, na Jamaica (que é, por acaso, onde eu também estava a ser
instruída exatamente no mesmo período nalguma outra sala de aula), ela de repente viu
uma fenda no bloco de disparates – o que faz surgir a complicada relação entre
representação e experiência. Que a literatura tenha que “falar à vida” é um anátema em
certos setores. Mas o discurso ficcional é muito mais versátil, imaginativo e sofisticado
do que muitas outras formas de escrita. A mulher caraíba que justamente se sentiu traída
aprendeu uma lição política de Charlotte Brontë, uma lição sobre racismo e negação,
que ela nunca esqueceu. Viu que o signo, Bertha Rochester, louca, puta, negra, era
sobredeterminado por significados amargos; que as mulheres negras são muitas vezes
representadas como traiçoeiras, lascivas, perigosas. Para ela Jane Eyre nunca poderia
ser um texto celebrativo feminista. Nem nunca o poderia ser para qualquer mulher para
quem a política antirracista seja crucial para a sua política de leitura.
Para uma leitura celebrativa de Jane Eyre como ficção feminista a política sexual que se
articula na relação entre Rochester e Jane é tão prejudicial como as diferenças e as
divisões entre as mulheres. Sim, é uma luta para o poder, sim, a mutilação de Rochester
e a consequente dependência são os únicos termos sob os quais Jane, armada com uma
herança ficcional vitoriana, pode voltar. Mas é também uma paixão profundamente
saturada com as mitologias do estupro e da violência sexual. Leiam a seguir.

“Jane! will you hear reason?”... (he stopped and approached his lips to my ear);
“because, if you won’t, I’ll try violence.” His voice was hoarse; his look that of a
man just about to burst an insufferable bond and plunge headlong into wild licence.
I saw that in another moment, and with one impetus of frenzy more, I should be
able to do nothing with him. The present – the passing second of time – was all I
had in which to control and restrain him: a movement of repulsion, flight, fear
would have sealed my doom – and his. But I was not afraid: not in the least. I felt
34

an inward power; a sense of influence, which supported me. The crisis was
Página

74
Sistren, Lionheart Gal: Life Stories of Jamaican Women (London, Women’s Press, 1986), p. 185.
perilous; but not without its charm. 75

Brontë está interessada nas relações desiguais; Rochester é quem dá trabalho a Jane, o
patrão dela, com idade suficiente para ser pai dela, sexualmente experiente e não muito
exigente em questões de moral e amantes. Mas é precisamente este desequilíbrio de
poder que Brontë sente como erótico. A licença selvagem, assim ela diz, não é sem
fascínio. Rochester pode ser controlado e neutralizado só pela calmante duplicidade e
por fluxos de lágrimas. O conexão heterossexual entre paixão, poder e força é a base
sexista da ideologia violadora e é esta, afinal, toda a ação que Jane encontra.
Significativamente, o livro acaba não com Jane e Rochester mas com o imperialismo
apocalíptico de St John Rivers a combater pela alma aquecida da Índia. O credo
feminista de Jane Eyre “Nascemos para tentar e aguentar” – passou para ele. A empresa
racista da força colonial adquire um estatuto heroico.
O que aconteceria ao texto de Jane Eyre se realmente elaborássemos uma análise do
racismo e lêssemos Bertha Rochester como a heroína? Ora bem, teríamos que escrever
outro livro, articulando a experiência e a destruição de Bertha Rochester. Jean Rhys fê-
lo: Wide Sargasso Sea (1966). E é o exatamente que deveríamos fazer – escrever
preenchendo as lacunas nos textos e nas contribuições de cada uma à teoria feminista.
Qualquer pensamento teorético que tente construir sistemas que não são de nossa
própria produção comporta o risco de incorporar o seu ódio institucional pelas
mulheres. Prefiro utilizar o termo ódio pelas mulheres e não misoginia simplesmente
porque este último termo tem estatuto, autoridade e respeitabilidade. O ódio pelas
mulheres é um termo baixo e rude que significa o que diz. 76 O feminismoo britânico
tem laços históricos e profundamente enraizados com as tradições britânicas do
pensamento socialista revolucionário.77 Todas as mulheres que contribuíram para Tales
I Tell My Mother definiram-se como socialistas. A Feminist Review é produzida por
uma empresa cooperativa feminista socialista.78 O fenómeno da década de 80 do
feminismoo municipal emergiu do trabalho das feministas socialistas no Partido
Laborista e na esquerda. As secções femininas dentro do Partido Laborista encorajaram
as mulheres a organizarem-se autonomamente e, apesar disso, a continuarem a fazer
parte das estruturas do partido. Estas muitas vezes eram postas no meio de cenas
desagradáveis e diatribes furiosas por parte de mulheres e homens devotos aos grupos
mistos. As secções negras receberam uma resistência ainda mais furiosa. Mas a política
feminista socialista deveria ser quer uma análise investigadora radical quer uma força
para a mudança social. Nem sempre tem sido assim. Duma perspectiva feminista
radical, as feministas que identificam os sues interesses políticos como socialistas
muitas vezes pareceram subscrever os tipos mais danosos de compromisso reformista: a
política de colaboração e cooperação na subordinação sexual contínua das mulheres aos
homens.79 Até a presença potente de mulheres nos piquetes durante a greve da União
Nacional dos Mineiros de 1984-5, um desenvolvimento que era calorosamente
aplaudido pela imprensa socialista, tem o seu aspeto político ambíguo. Poderia ser uma

75
Brontë, Jane Eyre, capítulo 27.
76
Cfr. a primeira análise de Andrea Dworkin, Woman Hating (New York, Dutton, 1974).
77
Cfr. Barbara Taylor, Eve and the New Jerusalem: Socialism and Feminism in the Nineteenth Century
(London, Virago, 1983).
35

78
Cfr. o número especial de Feminist Review sobre “Socialist Feminism: Out of the Blue”, n. 23 (verão
1986).
Página

79
Elizabeth Wilson e Angela Weir, as duas socialistas e feministas, fornecem uma análise investigativa e
crítica no artigo, “The British Women’s Movement” (1984), reimpresso em Wilson, Hidden Agendas, pp.
93-133.
cínica caprichosa, mas não fiquei completamente convencida pelos argumentos que a
Feminist Review produziu para apropriar Women Against Pit Closures ao feminismoo
socialista: “O facto de esta mobilização ter sido feita a partir de uma base tradicional na
família e na comunidade e finalmente em relação com os homens, a nosso ver, não
contradiz as formas feministas de ação dentro desse movimento.” 80 Mas a família e a
comunidade local são precisamente os lugares onde a nossa opressão é situada e
reproduzida. Este facto torna-se mais problemático e complexo com as comunidades
negra ou asiática, onde a família é também a fonte do suporte, da força e da resistência
ao racismo branco. As ações das esposas dos mineiros podem ter mobilizado as
mulheres como mulheres, mas não para as mulheres. E isso faz toda a diferença. Mas
naturalmente, a luta das mulheres não acabou com a greve; muita da energia e da
experiência política ganha nos piquetes foi para a criação de centros, de projetos e dum
movimento autónomo de mulheres. Muitas das mulheres que estiveram envolvidas na
greve agora estão a organizar-se para si e para outras mulheres. Uma vez que
começamos, não há viagem de volta. A ideia que as mulheres constituem uma classe
não é nova.

As mulheres, sejam elas costureiras, operárias fabris, criadas, autoras, condessas... formam
uma classe comum. Pode haver toda a variedade de educação, de pensamento, de hábitos...
mas enquanto houver legislação de “classe”, enquanto a lei fizer uma diferença insuperável
81
entre homens e mulheres, deve-se falar das mulheres como de uma classe separada.

Será que uma análise marxista fornece uma linguagem política útil em que discutir a
subordinação e a opressão das mulheres pelos homens quando elas não são consideradas
em relação aos homens? As mulheres são muitas vezes consideradas como herdeiras da
posição de classe dos seus maridos ou familiares masculinos mais próximos. Se esse é o
caso, então o abismo entre a Senhora do Coronel e Judy O’Grady torna-se ainda maior.
Gostaria de acreditar que somos todas irmãs debaixo da pele, mas penso que ainda
temos que imaginá-lo e combater por isso. Muitos privilégios racistas brancos têm que
ser desmantelados. Há um mito segundo o qual as mulheres podem transitar duma
classe para outra muito mais facilmente do que os homens. Podemos casar um homem
mais rico. Para as mulheres, a classe é uma questão de superfície: maneiras, voz, roupa.
My Fair Lady torna Eliza Doolittle numa princesa húngara; e ela safa-se com isso. Os
homens não podem subir tão facilmente, porque têm que produzir propriedades, riqueza,
contactos, instrução, substâncias, alguma evidência tangível de estatuto.82 Uma mulher,
assim diz o conto de fadas, tem simplesmente que ser apresentável visual e verbalmente.
Mas a mesma Eliza Doolittle é a criação duma mente masculina burguesa. A sua
história é um mito para manter as mulheres da classe operária no seu lugar. Segundo
Marlene Packwood “As mulheres da classe trabalhadora praticamente nunca se livram
da rede da vida familiar para tornar-se diretoras de empresas, professoras, cirurgiãs,
críticas literárias, jornalistas, fotógrafas, artistas, bailarinas... A nossa autoconfiança é
fraca, as nossas vozes calmas e os nossos pedidos ignorados ao contrário de quem teve

80
Feminist Review, n. 23 (Summer 1986), p. 10.
81
“Women as a Class”, editorial, Englishwomen’s Review, maio de 1876, citado por Patricia Hollis,
36

Women in Public: The Women’s Movement 1850-1900. Documents of the Victorian Women’s Movement
(London, Allen & Unwin, 1979), p. 336.
Página

82
A representação do falo na ordem simbólica parece realmente requerer bens e cartões de crédito,
certamente não só o equipamento genital correto. Será que o falo tem uma base material, mais do que
uma função puramente simbólica como um sinal de diferença? Penso que nos deveriam dizer.
os benefícios de uma formação universitária.”83 A realidade da divisão económica entre
as mulheres burguesas e obreiras, e o hiato financeiro ainda mais profundo que separa
as negras das brancas, não pode ser desarticulado do privilégio colado com a capacidade
de expressão, a instrução, o conhecimento. Packwood evidencia a alienação da sua
própria língua experimentada por algumas operárias. O inglês é uma língua que é mais
fortemente marcada em termos de classe do que outras línguas europeias. 84 “Por vezes
experienciamos a língua inglesa como alheia, cheia de sutilezas e nuances à disposição
das classes médias. Certas palavras estão completamente fora da nossa área de
experiência... A necessidade mais básica, a língua em si, quase tão básica como respirar,
ainda não nos pertence para perguntar.”85 Na sua análise autobiográfica e política da sua
própria vida e da da sua mãe, Carolyn Steedman afirma um facto brutal. “Estamos
divididos: há cem anos teria estado a limpar os teus sapatos. Eu sei disso e tu não.” 86
Ora bem, as mulheres burguesas devem passar a preocupar-se em sabê-lo.
Mas no que se refere à outra dimensão, o racismo, levantada pelo texto de Jane Eyre?
Gloria Joseph, na sua contribuição a uma colectânea de ensaios organizada por Lydia
Sargent, Women and Revolution, recusa-se a abraçar quer a ideia que as mulheres
constituam uma classe, quer a definição de patriarcado de Hartmann. O racismo, ela diz,
o racismo institucional, criou (pelo menos nos Estados Unidos) duas sociedades
separadas, “uma branca, uma negra”.87 As categorias do Marxismo não olham para o
sexo e para a raça. E as dinâmicas psicológicas que funcionam entre homens e mulheres
negros “são qualitativa e culturalmente diferentes das dos brancos” (p. 93). A análise de
Joseph é contraditória e problemática. Ela constrói um caso potente pela maneira em
que a experiência compartilhada da escravidão provou ser um equalizador terrível nas
vidas dos negros norte-americanos, mulheres e homens, porque os dois sexos são
vítimas de violência. O inimigo são os brancos. “A violação de mulheres negras e o
linchamento e a castração de homens são igualmente abomináveis na sua natureza” (p.
94). Então, para Joseph, uma simples análise do patriarcado nunca pode ser aceitável,
porque a asserção básica que a divisão original é entre os sexos não pode ser aplicada às
mulheres negras. Ela declara: “As escritoras devem reconhecer... que as mulheres
negras na sociedade americana têm algo em comum com os homens negros pelo menos
na mesma medida que têm com as mulheres brancas” (p. 95). Esta afirmação é
extremamente problemática para o feminismoo, ou pelo menos para o feminismoo
radical. Mas Joseph move o seu terreno; ela não afirma que os homens negros não
oprimem as mulheres negras, o que seria, dalguma maneira, desmentido pela evidência.
Há demasiados testemunhos dolorosos por parte de demasiadas mulheres negras do
contrário. Maya Angelou, no primeiro volume da sua autobiografia I Know Why The
Caged Bird Sings, descreve como, quando criança, foi violada pelo amante da sua mãe.

83
Marlene Packwood, “The Colonel’s Lady and Judy O’Grady - Sisters Under the Skin?”, Trouble and
Strife, n. 1 (Winter 1983), p. 8.
84
O francês transporta uma forte marca regional; mas como uma mulher francesa me disse (em conversa,
julho de 1986), no que se refere à classe, é difícil decifrá-la do sotaque ou da língua. “Uma pessoa pode
dar os erros piores,” disse. Não pretendo entender o sistema de classe francês, mas este comentário revela
o facto óbvio que a maneira como nos tratamos reciprocamente depende fortemente da classe. Se uma
mulher se dirige a outra mulher simplesmente como uma mulher, o que constituiria um erro terrível?
85
Packwood, “The Colonel’s Lady and Judy O’Grady”, p. 12.
86
Carolyn Steedman, Landscape for a Good Woman: A Story of Two Lives (London, Virago, 1986), p. 2.
37

87
Gloria Joseph, “The Incompatible Ménage à Trois: Marxism, Feminism and Racism”, in Lydia Sargent
(ed.), Women and Revolution: The Unhappy Marriage of Marsism and Feminism (London, Pluto, 1981),
Página

p. 92. Cfr. também o livro da mesma autora escrito com Jill Lewis, uma feminista socialista britânica,
Common Differences: Conflicts in Black and White Feminist Perspectives (New York,
Anchor/Doubleday, 1981).
Alice Walker em The Color Purple (A cor púrpura) conta uma série de violações
infantis e maus-tratos domésticas que a torna numa leitura bastante torturante.88 Mas
Joseph, Angelou e Walker, todas elas insistem que o significado político desta violência
não pode ser lido da mesma forma que a violência entre os sexos no grupo dominante
branco. Estas mulheres compartilham uma potente preocupação comum de construir
uma solidariedade poderosa entre mulheres e homens negros na sua batalha comum
contra um mundo racista. O final feliz de The Color Purple é um caso em causa: os
agressores aprendem a coser as calças e a ser gentis. Eles tornam-se, pelo menos na
ficção, nos companheiros adequados para as mulheres negras.
O que alimenta a raiva de Joseph é o mais que legítimo pedido do movimento das
mulheres brancas de que deveríamos estender e aprofundar a nossa análise e dar plena
consideração às vozes, necessidades e pedidos das mulheres negras. “As feministas
brancas têm que aprender a lidar adequadamente com o facto que por serem brancas
elas são tanto opressoras como pessoas oprimidas” (p. 105). Joseph faz uma interessante
exceção na denúncia geral. Algumas feministas radicais lésbicas, observa, não suportam
o racismo branco. “Sozinhas, como grupo de mulheres, mais prontamente oferecerão
ajuda ou ampararão uma mulher negra” (p. 101). Mas isto é realmente tão
surpreendente? As feministas radicais lésbicas, que se recusam a passar por
heterossexuais, o que têm a ganhar do patriarcado branco? Elas também são estranhas.
E uma mulher cuja posição política identifica as mulheres, todas as mulheres, como
uma espécie ameaçada, verá uma mulher negra como si mesma.
No seu diálogo com Jill Lewis, Common Differences, Joseph analisa os significados
políticos da homofobia negra com alguma profundidade. Ela evidencia que “as
feministas negras e/ou lésbicas são vistas como se se identificassem com a cultura
branca, apesar das referências em muitos relatos de vida, nas culturas africanas, a
mulheres que se identificavam ou relacionavam com outras mulheres.”89 Esta
resistência de dentro das comunidades negras ao feminismoo quer heterossexual quer
lésbico não é justificável, mas é compreensível. Como Gloria Joseph admite
sarcasticamente, “Muitos homens negros abstêm-se de examinar a política lésbica por
medo de ter que renunciar a alguns dos seus prezados privilégios masculinos” (p. 192).
E aqueles poucos privilégios seriam todos preservados da maneira mais feroz dentro
duma comunidade que está em perigo.
No meio desta problemática análise ruge Audre Lorde – lésbica, feminista, caraíba,
poetisa, teórica, bio-mitógrafa, mãe, amante, mulher: gorda, negra e magnífica. Lorde
deu-me o título para este livro. Batizei este livro em seu nome não somente porque ela
influenciou muito o meu pensamento, mas porque o ponto na sua bio-mitografia Zami
onde sublinha as contradições de quem é nossa irmã e quem estranha, citado como
epígrafe deste livro, me parece falar diretamente aos problemas do racismo e da teoria
feminista.90 Nós formamos as nossas alianças como irmãs criando grupos que são
estranhos; mas cada grupo move-se e cruza-se com outros, recusa-se a ficar constante
ou digno de confiança. Precisamos da consciência da complexidade de Lorde bem como
da “dupla visão” de Barbara Deming. Lorde é uma mulher sábia, que nos pode ensinar
como amar os nossos próprios corpos e uma à outra, como combater o racismo, a
opressão, a injustiça, como enfrentar a morte. Os ensaios de Lorde em Sister/Outsider,
outro título que se move em direção das separações entre irmãs e estranhas, são cheios
38

88
Maya Angelou, I Know Why the Caged Bird Sings (1969; London, Virago, 1984); Alice Walker, The
Página

Color Purple (1982; London, Women’s Press, 1983).


89
Joseph and Lewis, Common Differences, p. 191.
90
Audre Lorde, Zami: A New Spelling of My Name (1982; London, Sheba, 1984).
de candor, inteligência e raiva.91 Se serve absolutamente da culpa quando contesta as
feministas brancas: “A culpa e a defensiva são tijolos num muro contra o qual todas nós
embatemos; não servem para os nossos futuros.”92 A culpa traz a atenção da mulher
negra que sofre a injustiça para a mulher branca que, embora possa não ter criado as
estruturas do racismo branco, certamente beneficia delas e das instituições do privilégio
branco. O nosso empenho deveria ser o de desmantelar as estruturas e instituições que
criam o nosso privilégio, mais do que ficar numa abjecta parálise na nossa culpa. Nós
não desmascaramos o racismo num vazio político, insiste Lorde, mas “nas engrenagens
de um sistema para o qual o racismo e o sexismo são essenciais”. A posição política de
Lorde é sempre no perímetro. “Muitas vezes perguntei-me porquê a posição mais
radical sempre me parece tão certa; porquê os extremos, embora difíceis e por vezes
dolorosos de se manter, são sempre mais confortáveis...” 93 Só na fronteira não há espaço
para o compromisso ou a desonestidade intelectual. E esta mulher na fronteira, negra,
lésbica, feminista, consegue ver as estruturas de poder que nos conectam intimamente
com homens ricos e brancos. Isso permite-lhe dizer palavras pesadas que nenhuma de
nós pode aceitar ignorar.

Sou uma mulher lésbica de cor cujos filhos comem regularmente porque trabalho numa
universidade. Se as suas barrigas cheias me fazem negar o reconhecimento da minha
comunhão com a mulher de cor cujos filhos não comem porque ela não consegue encontrar
trabalho, ou que não têm filhos porque as suas entranhas estão estragadas de abortos em
casa e esterilização; se nego o reconhecimento à lésbica que escolhe não ter filhos, à mulher
que fica fechada no armário porque a sua comunidade homofóbica é o seu único suporte na
vida, à mulher que escolhe o silêncio em lugar doutra morte, à mulher que está aterrorizada
de que a minha raiva ameace a explosão da sua; se nego o reconhecimento a elas como
outras faces de mim mesma, então estou a contribuir não só para cada uma das suas
opressões, mas também para a minha, e a raiva que há entre nos deve portanto ser utilizada
para a clareza e o fortalecimento mútuo, não para a evasão pela culpa ou para maior
separação. Não estou livre enquanto qualquer mulher não estiver livre, mesmo quando as
suas preocupações são muito diferentes das minhas próprias. E não estou livre enquanto
uma pessoa de cor estiver acorrentada. Nem nenhuma de vocês é.94

Lorde parte de factos muito duros: a liberdade não reside apenas no útero e na mente,
mas no estômago e no banco. A liberdade das mulheres tem a ver com o ter o suficiente
para comer. Os nossos próprios compromissos políticos com o sistema que destrói as
nossas irmãs e a nós mesmas poderiam tornar-se mais claros para nós se nos
perguntássemos uma à outra claramente: Quanto ganhas? Quem te paga? O que tens de
fazer para ganhar aquele dinheiro? Mas o inimigo principal para Lorde é o silêncio. A
sua experiência de câncer no seio e o significado político daquele câncer são
anatomizados em The Cancer Journals. “A morte... é o silêncio final... Ia morrer, cedo
ou tarde, não fazia diferença que me tivesse declarado ou não. Os meus silêncios não
me tinham amparado. O teu silêncio não te amparará... não é a diferença que nos
imobiliza, mas o silêncio.”95
Falar ou escrever os silêncios é o nosso tema; e fazê-lo significa descobrir a simpatia
escondida entre mulheres de qualquer cor, idade, fé e sexualidade. Porque esta simpatia

91
Audre Lorde, Sister/Outsider: Essays and Speeches (Trumansberg, NY, Crossing Press, 1984).
92
Lorde, “The Uses of Anger: Women Responding to Racism”, in Sister/Outsider, p. 124.
39

93
Lorde, Zami, p. 15.
94
Lorde, “The Uses of Anger”, pp. 132-3.
Página

95
Lorde, The Cancer Journals (San Francisco, Spinsters, Ink, 1980), pp. 20-3. (Existe agora também uma
edição inglesa: London, Sheba, 1985.) Cfr. também os ensaios de Lorde, A Burst of Light (Ithaca, NY:
Firebrand, 1988; também publicado na Grã-Bretanha por Sheba).
é a larva do patriarcado. Uma revolução feminina libertaria quer Bertha Rochester, a
mulher negra no sótão, quer Jane Eyre da mitologia perseguidora da violação inevitável
num romance. Como para os homens: eles têm muito mais para perder que as suas
cadeias.96
Não estou a par dos muitos eixos de desenvolvimento na teoria e na crítica literária
feminista. Nem estou a ser perversamente obstinada e irreverente quando me recuso a
envolver-me diretamente com aqueles discursos complicados sobre feminismoo francês,
psicanálise, dialética marxista,97 luta de classe,98 estruturalismo, sinais, significantes,
pós-estruturalismo, desconstrução, intertextualidade, langue, parole, o sujeito dividido,
semiótica, femiótica, discursos marginais e abstrações gasosas. 99 Amo tudo isso.
Chafurdar na teoria é ceder a uma peleja de pressões intelectuais antes de voltar,
encoberta com o suor de linguagens segredas, à arena académica. Todos esses discursos
informam as minhas leituras e a minha escrita, informam este livro. E não sou uma
defensora da abordagem à escrita estilo mulher-tranquila-olha-uma-peça-em-prosa.
Sempre chegamos à ficção com um cesto para as compras cheio de preconceitos,
prejuízos e assunções. Lembro-me dum comentário dum editor sobre um dos meus
próprios textos: “É tão evidente que é uma composição literária. Não consigo esquecer-
me de que estou a ler prosa e simplesmente apreciar a história.” Estava para mencionar
o modernismo, mas parei a tempo – como fui aliás parada por outra escritora num
workshop sobre o estilo na Conferência das Escritoras Lésbicas em fevereiro 1984:
“Quando usas a palavra soneto,” interrompeu-me, “começo a sentir o suor frio do
pânico. Não podemos escrever sonetos. Estamos neles.” O que me leva ao dilema
político central deste livro: o nó enrolado de política, estilo e prática da escrita.
Não estamos completamente ausentes das tradições da literatura e não somos
completamente silenciadas e confinadas às margens da cultura patriarcal. Christina
Rossetti e Elizabeth Barrett Browning escreveram sonetos: magníficos, extraordinários
poemas de amor. E pode-se argumentar que a novela é a nossa forma; que o monstro
livre e largo é na nossa própria imagem. As mulheres empregaram só cem anos – de
cerca de 1740 a cerca de 1840 – para afirmar-se como as principais consumidoras e
produtoras da ficção em prosa. O romance era a nova forma que cultivava
deliberadamente o “estilo simples”. Não era preciso ter uma educação clássica para
escrever romances. Quando o romance epistolar estava em auge no século XVIII, tudo o
que era necessário era a habilidade de redigir uma carta excitante. As cartas,
tradicionalmente, são uma forma de escrita privada. Uma forma feminina. Mas elas têm,

96
Obrigada a Heidi Hartmann por esta frase. Cfr. a sua contribuição a Sargent, Women and Revolution, p.
33.
97
Falei claramente de maneira crítica quer da teoria quer da prática da psicanálise e do socialismo
revolucionário nesta polémica introdutiva; mas não discuti a sua contribuição enorme e importante para a
teoria feminista, só sublinhei porque não acho nenhuma das duas muito úteis nas minhas leituras, escritas,
experiências de vida. Outras mulheres acham.
98
“Muito melhor escrever a luta de classe do que a guerra de classe”, como a minha tia costumava
aconselhar-me: “luta denota o peso dos corpos.” “É exato,” gritava o meu tio, um trotskista, “reduz tudo
ao sexo.” Esta anedota é crucial para a minha posição política; a luta que a política sexual é o ponto por
onde comecei.
99
Para ajuda ulterior com as abstrações gasosas, cfr. Moi, Sexual/Textual Politics e Elaine Showalter
(ed.), The New Feminist Criticism: Essays on Women, Literature and Theory (London, Virago, 1986);
para uma excelente crítica dos problemas da teorização da poesia feminina, Jan Montefiore, Feminism
40

and Poetry: Language, Experience, Identity in Women’s Writing (London, Pandora, 1987); e para a ficção
Paulina Palmer, Contemporary Women’s Fiction: Feminist Theory and Narrative Practice (Brighton,
Página

Harvester, 1989). Devo muito à inteligência e à generosidade de Paulina Palmer quer como colega quer
como amiga. Não estamos de acordo – e tivemos muitos desacordos criativos. Estou grata por eles e pelo
suporte de Paulina.
naturalmente, uma herança clássica nas cartas de Cícero e nas dos humanistas da
Renascença e antepassados impecáveis e morais, nas cartas de São Paulo. Assim as
mulheres podiam escrever, utilizando um estilo informal, mas ainda reclamavam que a
forma era irrepreensível. Em finais do século XIX já não havia nenhuma necessidade de
defender quer o romance quer a forma, ou a qualidade da obra por parte das mulheres
que escreviam.100 Mas qualquer que fosse o potencial do romance como uma forma
feminina temos também que lembrar aqui que o romance nem sempre foi utilizado para
transmitir significados progressistas – até quando a caneta estava em mãos femininas.
A mulher que me mandou calar sobre os sonetos estava a demonstrar “uma saudável
desconfiança para com todas as ferramentas conceptuais e metodológicas que sejam de
origem não feminista”.101 É uma desconfiança que partilho. Mas qual é a resposta?
Desprezarmos todas as nossas tradições literárias dentro do patriarcado, toda a teoria
estética, toda a história da escrita, da épica da classe dominante às baladas e canções de
taberna, toda a poesia de amor, as epopeias não escritas pela classe dominante, por não
ser a nossa cultura, embora as mulheres tenham contribuído e moldado aquela cultura,
de forma diminuta, implacavelmente censurada, mas significativa? Ignoramos a relação
entre as nossas tradições submersas e as da cultura dominante? E até se tivéssemos a
tentação de deitar todo o conjunto por água abaixo, seria isso possível? Não podemos
produzir palavras no vazio; as línguas são sistemas, jogos, formas com uma história. E
todas as línguas, todas as estruturas psicológicas, todas as formas literárias acarretam
significados agarradas como lapas no fundo do navio, significados que não podemos
criar independentemente e que não podemos sempre controlar. Podemos transformar os
significados tradicionais da ficção? E que outros significados queremos criar para nós
mesmas?
A ficção feminista tem a ver com a reclamação de poder e controlo, com a invasão do
espaço quer na página quer na imaginação que é nossa de direito e de que fomos
sistematicamente exiladas e excluídas pelos homens que se estabeleceram como os
árbitros do gosto e da cultura.102 As feministas escrevem contra as opiniões recebidas,
contra as normas aceites. Se uma mulher se considera como é considerada dentro da
nossa cultura, já capitulou. Assim, até o processo de construção do eu que escreve, de
construir as nossas identidades, é uma luta declarada e opositiva. Porque nem mesmo a
forma do romance é neutral. O feminismoo não é uma esperança utópica e piedosa num
mundo melhor, nem a suma da experiência de todas as mulheres. É uma análise política
das maneiras em que as mulheres são oprimidas pelos homens e das estruturas que os
homens criaram. O feminismoo é uma resposta ao poder e ao privilégio masculino.
Estamos portanto, em toda a nossa escrita, necessariamente em confrontação, em
oposição. Sempre escreveremos polémica. E a polémica nunca pode ser objectiva ou
desinteressada. A polémica argumenta um caso. As escritoras feministas são
necessariamente polémicas e usarão a página para arengar, maltratar e persuadir. O
rugido é polémica não diluída; a justa raiva das mulheres que foram abafadas,

100
Cfr. Jane Spencer, The Rise of the Woman Novelist: From Aphra Beltn to Jane Austen (Oxford,
Blackwell, 1986). Para uma breve e convincente explicação do porquê as mulheres emergiram tão
fortemente como produtoras de romance, cfr. também Josephine Donovan, “The Silence is Broken”
(1980), reimpresso em Deborah Cameron (ed.), The Feminist Critique of Language: A Reader (London,
Routledge, 1990), pp. 41-56.
101
Weigel, “Double Focus”, p. 63.
41

102
Encontro-me bastante de acordo aqui com Suzanne Kappeler. Cfr. o seu estudo The Pornography of
Representation (Cambridge, Polity, 1986) e o seu artigo, “What is a Feminist Publishing Policy?”, in Gail
Página

Chester & Julienne Dickey (ed.), Feminism and Censorship: The Current Debate (London, Prism, 1988),
pp. 233-7. Cfr. também Christina Battersby, Gender and Genius: Towards a Feminist Aesthetics
(London, Women’s Press, 1989).
frustradas, destruídas. A escrita, até a escrita feminina, vestiu demasiadas vezes a
camisa de forças da arte – arte e ideologia masculina. E por isso temos de aprender a
plasmar o nosso próprio rugido com subtileza e habilidade, e aprender a ser artísticas,
em todos os sentidos da palavra.

Figura 1 – “O mundo às avessas”: Posy Simmond em The Guardian, 1987

42
Página
2
Nota relativa a políticas editoriais
A supressão das ideias feministas nos patriarcados capitalistas ocidentais não é
conseguida através da legislação, mas através do controlo do mercado. O acesso à
opinião pública, de um ponto de vista histórico e estrutural, é gerido pelos homens
e, além disso, no setor privado é determinado pelo lucro. Os contributos das
mulheres têm sido excluídos numa escala massiva, rejeitados para a edição ou
reedição e para a preservação; não têm sido censurados enquanto tais.
Suzanne Kappeler, “What is a Feminist Publishing Policy?”

As editoras na verdade existiam. Havia, de facto, as condições materiais imediatas


para uma produção completamente feminina de panfletos. Havia algumas autoras e
um número maior de editoras. Mas as editoras não publicavam o trabalho das
escritoras. Porque não? Talvez porque faltasse uma articulada consciência
partilhada da condição feminina? Não havia um objetivo compartilhado, nem um
movimento comum, que aproximasse as diferentes produtoras. 103

Na Renascença havia mulheres que escreviam e mulheres que publicavam; mas


provavelmente não havia mulheres que podiam ler ou comprar livros suficientes para
produzir um movimento que pudesse ficar registado. Ao contrário de Shepherd,
acredito que terá havido uma “consciência partilhada da feminilidade” entre as
mulheres da época, mas provavelmente era articulada nas cozinhas e nos campos. No
começo dos anos 70 havia mulheres que escreviam, imprimiam e publicavam o seu
próprio trabalho, não para aprovação dos homens – embora os livros estejam,
evidentemente, à disposição do público geral – mas umas para as outras. A Onlywomen
Press, então chamada The Women’s Press, cresceu a partir de um movimento
revolucionário, publicando poesia, panfletos e posters.104 A editora tem mantido esse
compromisso inicial com o radicalismo, que se reflete no que publica. Em 1985
publicou os textos de três conferências sobre a violência sexual apresentadas nos anos
80: “Violência Sexual sobre Mulheres” [Sexual Violence Against Women] (Leeds,
1980), “Mulheres contra a Violência sobre Mulheres” [“Women Against Violence
Against Women”] (London, 1981) e “Poder Masculino e Abuso Sexual de Jovens

103
Simon Shepherd, The Women’s Sharp Revenge: Five Women’s Pamphlets from the Renaissance
(London, Fourth Estate, 1985), p. 23.
104
Devo agora declarar um interesse pessoal. Como resultado da investigação e das discussões que tive
com a Onlywomen Press enquanto estava a trabalhar neste capítulo, pediram-me para organizar o seu
próximo volume de ficção breve lésbica na sequência de The Pied Piper (London, Onlywomen, 1989), que
43

incluía um texto do meu próprio trabalho de ficção. O novo volume, In and Out of Time (London,
Onlywomen, 1990) contém trabalhos que refletem as preocupações e os interesses deste livro: a luta
Página

constante para desmantelar as estruturas racistas na publicação da escrita feminina e nas representações
que construímos, as questões controversas da paixão e do desejo, a nossa relação com o mundo em que
trabalhamos, as nossas comunidades, as nossas famílias – e as coisas que nos fazem rir.
Mulheres” [Male Power and the Sexual Abuse of Girls”] (Manchester, 1982).105 Estes
textos não estão escritos numa prosa elegante ou convencional, mas têm o áspero
imediatismo do movimento, o cheiro das ruas. Têm o sabor de toda a raiva necessária
que ainda está lá, apesar dos esforços por parte dos académicos da classe média para
transformar a libertação das mulheres nos estudos sobre as mulheres. E entretanto, nos
últimos dez anos, os livros feministas tornaram-se num grande negócio.
Em 1988 as duas primeiras editoras feministas na Grã-Bretanha que se dirigiam à
sociedade dominante, a Virago e The Women’s Press, atingiram oficialmente a
maioridade. A Virago tinha publicado livros de mulheres durante quinze anos. The
Women’s Press tinha dez anos. Ambas eram o produto do movimento de libertação das
mulheres e dos anos 70. A Virago começou com a reedição da escrita feminina
esquecida na coleção de grande êxito Virago Modern Classics. Atualmente publica
ficção inédita bem como ficção explicitamente lésbica e antologias lésbicas. The
Women’s Press nunca foi uma editora independente, no entanto sempre teve estreitas
ligações com o Namara Group. Ambas as editoras agora têm uma faturação anual de
mais de um milhão de libras. Na sequência do seu sucesso as editoras heterossexuais,
dominadas por homens, começaram a produzir os seus próprios catálogos feministas.
Este livro é um exemplo exatamente deste fenómeno: pediram-me para escrever um
ensaio sobre a escrita feminina de Julia Mosse, naquela altura a coordenadora editorial
feminista na Basil Blackwell.
Outro exemplo do alinhamento das editoras masculinas heterossexuais encontra-se no
catálogo de escritoras da Methuen, dirigido por Elsbeth Linder. A mesma escreveu um
artigo acerca da política editorial e dos métodos de trabalho da Methuen na Women’s Review.
“A empresa não é dirigida como uma cooperativa – as decisões editoriais são tomadas
discutindo com os nossos colegas coordenadores editoriais e com os vendedores e são
ratificadas durante a reunião editorial semanal… Depois fala-se para chegar à
percepção do potencial de venda do livro… também há uma convicção partilhada de
que o sucesso advém dum processo rigorosamente seletivo.”106 Editores e vendedores
trabalham juntos: no fim de contas, são negócios, não é uma instituição de caridade, e o
objetivo é ganhar dinheiro, se não para os autores então pelo menos para os editores.
Elsbeth Linder não chega a dizer o que significa na prática “rigorosamente seletivo”, ou
quais são os seus critérios, apesar de afirmar que “os manuscritos que chegam através
de agentes costumam receber uma atenção imediata, partindo do princípio que qualquer
coisa que tenha sobrevivido ao obstáculo inicial do escrutínio de um agente deve ter
algum potencial”. Aqui potencial deve referir-se ao potencial de comercialização.
Quando a Methuen lançou o seu primeiro catálogo de escrita feminina em 1984 já tinha
publicado nomes consagrados: Caryl Churchill, Michelene Wandor, Michèle Roberts,
Marina Warner. Elsbeth Linder expõe calmamente o que tem em comum com as
editoras feministas. “Nós todos temos um compromisso com a escrita feminina. Todos
os nossos catálogos têm de ser financeiramente proveitosos de modo a sobrevivermos.”
Ela não dá qualquer indício de que possa haver qualquer contradição ou dificuldade em
reconciliar estas duas afirmações. Um mercado pode ser criado por um movimento
político? Um desaparece ao suprimir-se o outro? Sabemos perfeitamente que os frágeis
resultados conseguidos pelas mulheres são facilmente revogáveis.
O meu receio em relação ao trabalho das mulheres, em qualquer género literário, é
apenas este: as editoras de heterossexuais só produziram os seus catálogos feministas
44
Página

105
Dusty Rhodes and Sandra McNeill (eds.), Women Against Violence Against Women (London, Onlywomen,
1985).
106
Elsbeth Linder, Women’s Review, no. 8 (June 1986), p. 11.
depois de as mulheres se terem demonstrado lucrativas. Deixaram que as mulheres
assumissem riscos e depois embarcaram na empresa financeira. No que diz respeito à
escrita lésbica radical, a Onlywomen Press é a única editora com um compromisso
exclusivo com a política lésbica radical. Mas se os editores heterossexuais compram
escritoras bem conhecidas – e não censuro as autoras por isso: acho que as mulheres
deveriam ser bem pagas – as editoras dirigidas por mulheres ficam com os riscos mais
do que com os best-sellers. E se têm de fechar, a inovação e a ambição feministas e a
política radical decerto também acabam. Não somos a maioria e temo os efeitos
políticos do gosto da maioria.
Deixem-me explicar o que quero dizer com efeitos políticos do gosto da maioria. Uma
vez, durante uma época sombria na indústria editorial, estava a tentar dar a conhecer
algum do meu trabalho às editoras masculinas e encontrei um interlocutor masculino
solidário. “Olhe,” disse ele, “Eu gosto do seu trabalho. Mas é demasiado sério e
demasiado preocupante. Posso vender livros de jardinagem, orquídeas, nazis, gatos,
golfe e a família real. Portanto se pode escrever-me uma história sobre um nazi que
gosta de golfe, jardinagem e orquídeas para superar a culpa, está obcecado com a
família real e no fim esgana o seu gato, eu posso vendê-lo.” Ele estava só a brincar; e
essa foi certamente a primeira vez que ouvi insinuar que os nazis não eram nem
preocupantes nem sérios mas sim, aparentemente, um produto comercial. Mas estas são
as leis do mercado. Não têm nada a ver com o feminismoo, nem com a qualidade. Os
editores publicam aquilo que vendem.
Ironicamente, uma nova editora lésbica tem levado esse aspeto a peito. A Silver Moon
Books, uma derivação da Silver Moon Bookshop em Charing Cross Road, começou a
publicar em 1990, sendo os seus dois primeiros títulos ambos reedições da editora
americana de leituras lésbicas fáceis, Naiad Press. Foi uma decisão consciente por parte
das editoras da Silver Moon, Jane Cholmeley e Sue Butterworth, a de “fazer livros
lésbicos ‘divertidos’”. Entrevistada pela jornalista de The Women’s Press Bookclub,
Sue chegou a afirmar: “É claro que outras editoras feministas publicam ficção policial
lésbica, por exemplo. Mas eu acho que se percepcionam, com alguma razão, como
editoras mais sérias, ao passo que aquilo de que estamos à procura é apenas
proporcionar ‘a leitura da sexta à noite’... Não acredito que outras editoras estejam a
fazer o mesmo.”107 A sua política editorial reflete a pesquisa de campo que fizeram
durante os seus anos como livreiras lésbicas e feministas. Sabem o que é que vende.
Sem surpresa, este é o mínimo denominador comum – géneros fáceis estereotipados,
novelas sentimentais, thrillers e contos policiais. Fica por provar se estes géneros
podem tão facilmente ser transformados numa escrita interessante pela acrescentada
presença lésbica. Irene Coffey leu um dos primeiros título da Silver Moon Books, Lessons
108
in Murder de Claire McNab, e a propósito das investigadoras lésbicas teve a dizer:

A investigadora está numa posição moralmente poderosa e trabalha perigosa e


dramaticamente para eliminar o mundo imediato do mal. E esta questão moral tem
uma importância crucial para a leitora lésbica enquanto alheia à sociedade
dominante, demasiadas vezes condenada como influência imoral e perversa. Neste
tipo de ficção criminal lésbica há um realinhamento da identidade lésbica do lado
da justiça, do lado da retidão.109
45

107
“Books For Fun”, artigo sobre a Silver Moon Books, no catálogo de The Women’s Press Bookclub,
Summer 1990.
Página

108
Claire McNab, Lessons in Murder (1988; London, Silver Moon Books, 1990).
109
Irene Coffey, “Lesbian Sleuths”, Spare Rib, no. 217 (October 1990), pp. 34-5. A discussão continua
no capítulo 4, “A Ficção de Género”.
Na Grã-Bretanha contemporânea, onde agora vivemos com o artigo 28110, qualquer
esperança de abandonar a nossa condição de banidas e reajustar-nos com a lei parece
uma fantasia confortável. Mas a questão é muito mais profunda do que isso: qual é o
lado da justiça numa sociedade racista, sexista e violenta? As leituras divertidas não
permitem colocar esse tipo de pergunta.
Como podemos desmantelar essas estruturas racistas e sexistas na nossa ficção se
continuamos a apoiá-las pelos meios com que produzimos os nossos livros? Não é
fácil, porque precisamos de dinheiro e poder para manter a nossa independência. As
editoras dirigidas por mulheres que insistem em modalidades coletivas de trabalho não
dominarão a finança nem terão a perícia para expandir-se em empreendimentos
capitalistas de primeiro plano. A democracia é terrivelmente demorada, amiúde
sórdida, e incrivelmente frustrante, como qualquer feminista que tenha trabalhando
numa cooperativa sabe bem. Mas a recusa de separar o processo e o produto é séria. As
Sheba Feminist Publishers são dirigidas conjuntamente por mulheres negras e brancas.
Este não tem sido um processo político fácil e implicou repensar os métodos de
trabalho. Em julho de 1986 deram uma entrevista ao Spare Rib.

Sue O’Sullivan: Por exemplo temos certos princípios que seguimos: quando
editamos um livro tentamos ter duas mulheres a trabalhar nele; um mulher negra e
uma branca. É uma coisa pequena mas está lá, como uma espécie de controlo.
Pratibha Parmar: Também princípios acerca de publicidade. Por exemplo quando
estamos a promover um livro de uma mulher negra tentamos fazer com que
estejam envolvidas uma mulher negra e uma mulher branca. Isso porque as
mulheres negras muitas vezes são promovidas pelos meios de comunicação
dominantes de formas que são racistas. É algo que queremos evitar. É claro que
queremos todas as recensões e entrevistas que conseguirmos mas não as queremos
às custas daquilo que defendemos.111

Sheba publicou ótima escrita de mulheres negras inglesas; entre as suas publicações
contam-se A Dangerous Knowing: Four Black Women Poets (1984) e The Threshing Floor (1986) de
Barbara Burford. As duas escritoras negras de sucesso publicadas por The Women’s
Press e pela Virago, Alice Walker e Maya Angelou respetivamente, são ambas
americanas. O racismo é mais perturbador quando é mais próximo de casa. As histórias
do sul profundo, além-mar e longínquas, são menos transtornantes de ler e mais
propícias à justificada indignação branca. A Sheba merece as felicitações por publicar
escritoras negras que vivem na Grã-Bretanha, e por enfrentar questões racistas perto da
nossa casa.
Quer a Sheba quer a Onlywomen Press têm um grupo de suporte editorial constituído
por outras mulheres. Este grupo de suporte não é pago e em geral aconselha sobre o que
deveria ser publicado. Os empregos dos membros não aparecem em anúncios; o
problema é que se por um lado é perfeitamente compreensível que as mulheres vão
querer trabalhar com outras mulheres que acham solidárias e prestáveis, por outro isso
não significa que o que de facto é publicado venha a ser escolhido por um grupinho de
mulheres que pensam da mesma maneira. A resposta aqui não é fragilizar ou abandonar
o que temos, mas sim estender os tentáculos da prática feminista para as editoras
heterossexuais. Qualquer mulher que alguma vez tenha tido o seu trabalho processado
46
Página

110
NT. - http://en.wikipedia.org/wiki/Section_28
111
“Can Black and White Women Work Together?”, Spare Rib, no. 168 (July 1986), p. 19.
por cada um dos membros de uma empresa cooperativa terá uma história de horror para
contar. Livros e ensaios escritos por um comissão ou uma cooperativa não costumam
ser contenciosos, nem coerentes ou interessantes; mas a ideia da Sheba de ter uma
mulher negra e uma branca a trabalharem juntas em cada texto, com efeito um método
de trabalho cooperativo antirracista, é excelente e se adotada mais extensamente decerto
desafiaria certo racismo institucional britânico. No mínimo, essa prática asseguraria
emprego para as mulheres negras.
Um número significativo dos livros que vou analisar são publicados pela Onlywomen
Press e por The Women’s Press. Fui visitá-las a ambas e coloquei perguntas acerca das
suas políticas de publicação e dos métodos de trabalho. Não é aqui minha intenção
referir a história de todas as editoras feministas britânicas, nem fornecer um estudo
detalhado da Onlywomen e de The Women’s Press.112 Pretendo apenas levantar alguns
dos problemas em causa ao publicar escrita feminista, porque estes afetam as escritoras,
os textos, a sua comercialização – e, crucialmente, quem consegue ser publicada
primeiro. Contudo, a Onlywomen e The Women’s Press a meu ver publicaram os textos
feministas melhores e mais interessantes dos últimos quinze anos.
Falei da Onlywomen Press com Lilian Mohin, uma das fundadoras desta editora, uma
das suas atuais diretoras e organizadora de muitas das suas coleções. Todas as mulheres
que conhecem Lilian Mohin confirmariam que foram a sua tenacidade e energia que
deram à editora a sua forma e o seu estilo distintivo. A Onlywomen oferece uma breve
história da sua empresa em cada exemplar do seu catálogo.
Em 1984 a editora alterou o texto do seu logótipo, que inicialmente era: “Um grupo
editorial e tipográfico de Libertação da Mulher, que produz trabalho por e para
mulheres como parte da criação de uma rede de comunicação feminista, e por fim, a
revolução feminista.” Agora descrevem-se, com uma brevidade frontal e drástica, como
“Editoras feministas radicais e lésbicas”. O desenho do logotipo também mudou. Lilian
explica a transformação: “Sentimos que a imagem do antigo logo é muito específica do
ponto de vista racial para ser coerente com a nossa posição antirracista. A nova implica
um pouco da nossa história (como tipógrafas) pela semelhança com um bloco da
impressora bem como a afirmação de exatamente quem somos.”
Questionei Lilian acerca da política da editora e do seu objetivo original, a
reivindicação e consciência iluminação do feminismoo radical lésbico. Ela explicou
que todas as mulheres que contribuíram para a criação da editora eram quer lésbicas
quer feministas radicais, e defende energicamente que haverá uma ligação entre as duas
coisas. A firmeza com que a editora deseja ser conhecida por “exatamente quem
somos” parece-me ser característica da sua política, que é apenas corajosa e
intransigente. Os tão publicitados e debatidos mal estar e fragmentação do movimento
de libertação das mulheres, a cooptação do feminismoo como uma ideologia liberal de
iguais direitos, e o socialismo rastejante do Labour Party no começo dos anos 80
entusiasmaram as mulheres da Onlywomen Press com a convicção de que deveriam
assumir uma posição ainda mais firme e clara. The Observer, ao ver a palavra “lésbica”,
acabou por recusar-se a levar a sua publicidade para terrenos onde seria notada. Houve
problemas com outras recensões; mas uma exceção interessante foi o destemido Times
Literary Supplement, que aceitou fazer a recensão da sua antologia de poesia feminista
lésbica Beautiful Barbarians (1986). Lilian destaca que ninguém poderia acusar o TLS de ser
lésbico. Outras recensões poderiam ter sido mais atentas. O efeito de declarar-se
47
Página

112
Para uma leitura dogmática mas intrigante sobre o estado atual da indústria editorial literária britânica
vide Nicci Gerrard, Into the Mainstream: How Feminism has Changed Women’s Writing (London,
Pandora, 1989), em especial cap. I.
editoras feministas radicais e lésbicas produziu um alarme geral entre os editores
heterossexuais; mas têm “vendido cada vez mais livros”. A razão é simples: “Ponha
lésbica em tipo grande no frontispício dos livros e as lésbicas comprá-los-ão.”
A editora teve que ser extremamente cautelosa na impressão e produção dos seus
livros. Três membros da empresa cooperativa original foram ao Camberwell Printing
College para aprender a imprimir: eram as primeiras mulheres que o instituto aceitou
para formação. Saber como imprimir foi uma questão crítica; a sua experiência com a
antologia de poesia feminista britânica, One Foot On The Mountain, foi instrutiva.113 Lilian
descreve esta antologia como “um livro do movimento”, indicando que o livro supera e
ao mesmo tempo reflete o movimento de libertação das mulheres dos anos 70. Muitos
dos poemas são diretos, muito radicais, rompendo tabus coerentemente. Quando o texto
voltou do primeiro tipógrafo (homem) a quem tinha sido entregue, estava muito mal
realizado, e impresso em tipos diferentes de papel. O segundo tipógrafo, um editor
(homem) de esquerda, mandou-o de volta com manchas de café. A Onlywomen Press
pediu que a edição fosse destruída e que o trabalho voltasse a ser feito. Então o editor
tornou-se muito desagradável e ficou com as ilustrações como compensação. Quando
as mulheres abriram elas próprias uma atividade como tipógrafas, recebendo à peça,
levaram o texto impresso do panfleto produzido pelo Matriarchy Study Group, Menstrual
Taboos, para encadernar. Não veio de volta. Foram perguntar o que era dele e encontraram-no
no lixo. Aparentemente, os homens leem os textos. Agora as mulheres pedem sempre
uma carta dos seus tipógrafos, onde consta que se encarregam de imprimir o trabalho
de acordo com as normas comerciais, sempre que entregam um manuscrito. “No
entanto”, afirma Lilian, “é mais fácil tratar com os tipógrafos e os encadernadores se
sabes como se imprime. Como tipógrafas já fizemos muito trabalho por conta de outros
grupos feministas e tivemos constantemente de interceder entre estes grupos e os
acabadores de impressão, bem como oferecer formação na produção de design e
impressão.”
Lilian sustenta que saber como imprimir marcou a diferença para como ela julga a
escrita e para os valores da escrita que ela está preparada a defender. Exige “uma
espécie de clareza” e, como diz mais sucintamente, “nada de tretas”. A editora quer que
os livros sejam lindos. Não há um formato padrão para os textos, embora desde 1987
tenha desenvolvido um design básico da capa em azul. Todas as ilustrações das capas
são originais e coerentes com o conteúdo do livro e não com a editora. Têm a
convicção de que podem vender os livros em que acreditam. “E mesmo que não se
acredite, podem-se vender 2.000 exemplares de qualquer coisa. No caso dos livros
feministas as mulheres querem-nos e compram-nos.” Imprimem o que querem ver
publicado e fazem pouquíssima pesquisa de mercado.
Fiz perguntas acerca da sua aventura com a publicação periódica de Gossip: A Journal of
Lesbian Feminist Ethics. Gossip teve seis números entre 1986 e 1988 e depois de repente
interrompeu a publicação quando, como as editoras admitiram no último número, “... a
produção, o plano dos encontros públicos e as preocupações financeiras (exacerbadas
por quem preferia apenas ler emprestado ou fotocopiar, em vez de assinar) tornaram-se
numa tarefa demasiado pesada de assumir juntamente com os outros nossos
compromissos e responsabilidades”114 Lilian disse que criaram a Gossip “... porque
queríamos. Porque precisávamos dela.” A revista foi um êxito breve mas notável. A
maioria dos assinantes eram ingleses; mas houve assinaturas do estrangeiro: mulheres
48
Página

113
Lilian Mohin (ed.), One Foot on the Mountain (London, Onlywomen, 1979).
114
“Notes from the Desk of the Many-headed Hydra”, Gossip: A Journal of Lesbian Feminist Ethics, no.
6 (1988), p. 5.
dos Estados Unidos, da Austrália, do Japão, da França, da Holanda, da Bélgica. A Gossip
gerou muitas discussões. Em Bristol houve um “Dia da Ética Lésbica” a 15 de abril de
1989. Dessa forma a editora abriu e gerou um debate no seio do feminismoo lésbico.
A lista de assinaturas da Gossip reflete o caráter internacional da comunidade lésbica e
também demonstra a necessidade da revista. As assinaturas muitas vezes eram
acompanhadas de calorosas mensagens de apoio. Lilian comenta: “Desde o princípio
queríamos que o nosso trabalho fosse vendido a qualquer pessoa, em toda a parte; e
obtido de escritoras lésbicas feministas radicais em todo o lado. Queríamos evitar
rodeios e dirigir-nos muito publicamente apenas a lésbicas, permanecendo quanto mais
alheias possível à presença dos homens.”
Perguntei quando começou a Gossip. Em 1983-84 a Onlywomen Press promoveu uma
série de encontros na livraria Sisterwrite em Londres sobre o tópico da ética lésbica. O
GLC tinha apoiado a editora com um subsídio e gostavam que os seus beneficiários
promovessem eventos. Os encontros eram lotados e a seriedade com que os tópicos
eram discutidos – sexualidade lésbica, maternidade, amizade entre mulheres,
antilesbianismo no movimento de libertação das mulheres, racismo e antirracismo –
convenceram a editora de que havia necessidade de um fórum permanente onde se
pudessem levantar questões sérias. Este grupo produziu a energia inicial. Mais tarde, no
começo de 1985 durante um voo de volta dos Estados Unidos, Lilian leu o artigo de
Julia Penelope sobre a viragem liberal do movimento das mulheres, intitulado “O
Mistério das Lésbicas” [“The Mystery of Lesbians”], publicado pela primeira vez na
revista americana Lesbian Ethics115 e decidiu tornar esta longa análise em três partes
facilmente acessível para uma audiência britânica: a defesa do separatismo por parte de
Julia Penelope foi devidamente publicada nos primeiros três números de Gossip.
O grupo de suporte da editora, constituído por mulheres, lê os manuscritos que chegam.
Os membros não pagos da Onlywomen Press também são tidos como sócios efetivos
quanto às decisões de publicação. Inicialmente, todas leem todos os manuscritos:
apesar disso tentam reduzir ao mínimo o tempo de espera para as escritoras que
aguardam. As suas cartas de recusa, extensas, compreensivas e empenhadas, são
famosas – e demoradas. Lilian destaca que gastam muito tempo a trabalhar nos
manuscritos que não publicam. Muitas das autoras que editam são conhecidas da
empresa cooperativa. Isso provavelmente é inevitável, vista a política da editora, mas
só cinco das autoras que escreveram para a primeira antologia de ficção lésbica The Reach
foram convidadas a submeter contos.116 O resto chegou por correio em resposta aos
anúncios.
A Onlywomen Press usa o contrato modelo da Associação de Escritores, portanto as
suas autoras têm melhores condições do que com outros editores comerciais. Isso
porque no começo, como Lilian diz com simplicidade, “Éramos todas escritoras”. Os
seus royalties começam a 10%, subindo a 12% depois dos primeiros 2.000 exemplares,
e finalmente a 15% acima dos 5.000 exemplares. Lilian comenta:

Se tivéssemos mais dinheiro investiríamos em publicidade – não como propaganda ou


promoção mas simplesmente para informar as mulheres de que os nossos livros estão
disponíveis. Sempre que alguém ouve falar de nós ou pede um catálogo, encomenda quase
todos os nossos livros. Todos os nossos romances são impressos em tiragens iniciais de
5.000 e a maioria têm uma reimpressão. Com títulos do estrangeiro imprimimos 3.000
49

115
Lesbian Ethics é disponibilizado por LE Publications, PO Box 943, Venice, California CA 90294,
Página

USA.
116
Lilian Mohin & Sheila Shulman (eds), The Reach: Lesbian Feminist Fiction (London, Onlywomen,
1984).
iniciais porque à partida ficamos excluídos de certos mercado estrangeiros. Todos os nossos
livros vendem, e vendem bem. No nosso caso, a falta de lucro está mais ligada aos nosso
preços baixos, diminutas margens de lucro e intenções políticas.

Esforçam-se por manter os seus livros à venda sempre que possível.


A Onlywomen Press nunca abandonou o seu empenho em questões radicais e
contemporâneas. Em 1983 publicou Breaching the Peace, uma resposta crítica e forte ao
movimento de paz das mulheres e ao fenómeno de Greenham.117 A sua série de
panfletos fornece ensaios radicais e guias práticos como Down There: An Illustrated Guide to Self-
Examination de Sophie Laws, num formato económico. E a editora tem-se mantido
inflexível no seu compromisso com a sua política original. O financiamento sempre foi
precário. Começou em 1974 como grupo voluntário. O ILEA concedeu bolsas de
estudo para mulheres que estudassem tipografia em Camberwell, sabendo, quando o
fez, que elas tencionavam criar uma editora de mulheres. Enquanto três estavam a
aprender a ser tipógrafas, usavam o equipamento em Camberwell para imprimir
material feminista. Por volta de 1977-78 mudaram-se para uma cave dickensiana em
Hackney, onde alugaram o espaço e uma máquina de impressão por £10 por semana.
Aí imprimiram textos comerciais e com esses fundos financiaram o trabalho das
mulheres. A editora sobreviveu graças a pequenos donativos de mulheres do
movimento: qualquer coisa entre £2.50 e £100. Recebeu subvenções mínimas do Arts
Council, para livros específicos, sem cobrir os custos de produção.
Quando o já extinto GLC oferecia subsídios a causas radicais a editora candidatou-se
para uma pequena subvenção, principalmente para a parte tipográfica, que usaram para
comprar equipamento. A Onlywomen não estava satisfeita com os vínculos ligados ao
dinheiro do GLC, que aliás era mais facilmente dado a causas socialistas do que a
empresas como uma editora lésbica ou radical feminista. Quando a atividade
tipográfica ainda estava de pé, a empresa cooperativa contava com até oito mulheres,
com quatro trabalhadoras a tempo inteiro. Nenhuma ganhava mais de £30 por semana.
Em 1984 a Onlywomen Press por fim deixou de imprimir para concentrar-se na
publicação. Um subsídio da Greater London Arts finalmente possibilitou salários
decentes – após dez anos de impressão, publicação e atividade feminista radical. Até
1989 havia só duas trabalhadoras a tempo inteiro, Anna Livia e Lilian Mohin;
ganhavam £8,580 anuais cada uma, menos se o dinheiro era pouco. A editora contava
com a ajuda voluntária, trabalhadoras part-time e suporte externo gratuito. A
Onlywomen sempre foi uma empresa limitada, mas as sócias nunca tiveram um
contrato de trabalho.
Algumas das mulheres que trabalharam com a empresa cooperativa da Onlywomen
Press, incluindo a própria Mohin, são americanas que residem há muito tempo na Grã-
Bretanha; isso significa que a editora sempre teve fortes ligações transatlânticas. For
Lesbians Only: A Separatist Anthology é um livro de história político-teorética do separatismo
lésbico; apesar de essencialmente americano, com uma secção consistente de
separatistas lésbicas francófonas, não chegou a ser publicado na América. 118 Agora a
Onlywomen Press está a reavaliar a sua posição com a esperança de publicar mais
livros por ano numa gama mais ampla de temas – teologia, história, teoria e crítica
feminista radical lésbica – além de antologias regulares de ficção breve e coletâneas de
poesia. Mas o atual clima económico é tudo menos favorável. A independência
50

117
Onlywomen Press Collective, Breaching the Peace: A Collection of Radical Feminist Papers (London,
Página

Onlywomen, 1983).
118
Sarah Lucia Hoagland and Julia Penelope (eds), For Lesbians Only: A Separatist Anthology (London,
Onlywomen, 1988).
editorial é incrivelmente cara. Pequeno pode ser lindo, mas muitas vezes é
economicamente impossível.
A Onlywomen Press tem-se mantido inflexível no seu compromisso com a sua política
original, em parte porque algumas das mulheres que se envolveram no projeto no
começo ainda estão lá. Mas a sobrevivência da editora também se deve a uma
integridade pertinaz, uma recusa a ser manipulada, cooptada, comprada quando não
reduzida ao silêncio. Nos tempos duros precisamos de palavras duras.
A editora comercial que se apoderou do nome original da Onlywomen Press e o
registou é, obviamente, The Women’s Press Ltd. E The Women’s Press comercializou
o feminismoo com um enorme êxito financeiro. Logo do início, teve mais
financiamentos convencionais de um grupo de sociedades dirigidas por homens. A sua
fundadora original tinha trabalhado no mundo editorial heterossexual. A sua política
tinha sempre tido uma base mais ampla do que a da Onlywomen Press e decerto nunca
explicitamente lésbica. Era difícil marcar uma entrevista ou abrir um debate com The
Women’s Press e, de forma irritante, nunca respondeu às minhas cartas. Mas por fim
consegui falar com Katy Nicholson, que na altura era a gestora de publicidade (já
deixou a editora). Pedi-lhe para me dizer tudo o que podia da história da editora, da sua
política de publicação e dos seus métodos de trabalho.
A mulher que teve o entusiasmo inicial para The Women’s Press foi Stephanie
Dowrick, coordenadora editorial na Triad. A editora tinha sempre sido uma companhia
limitada e no começo tinha fortes ligações com outra editora, a Quartet, também parte
do Grupo Namara. Namara, propriedade de Nairn Attulah, garante o saque a descoberto
de The Women’s Press. No início, a Quartet realizava todas as suas vendas e o
marketing, mas tem vindo a tornar-se cada vez menos dependente da Quartet desde que
começou a comercializar. A editora publicou os seus primeiros cinco títulos em 1978 –
Aurora Leigh de Elizabeth Barrett Browning, The Awakening de Kate Chopin, Lives of Girls and
Women de Alice Munroe, Lolly Willowes de Sylvia Townsend Warner e Love and Freindship (sic)
de Jane Austen. Este último texto era ilustrado por Suzanne Perkins, que acabou por
tornar-se diretora artística da editora. Os primeiros títulos eram todos reimpressões:
naquela época ainda havia uma grande quantidade de obras excelentes que estavam
esgotadas. A Virago remediou há muito essa situação e por conseguinte The Women’s
Press tem-se concentrado na publicação de novas obras, como refere o seu slogan:
“Autoras vivas, questões vivas”. A editora tem-se expandido a cada ano desde 1978 e
agora publica mais de sessenta títulos por ano. Katy Nicholson foi contratada em 1983
para ocupar-se da publicidade. Agora todos os serviços são realizados internamente.
Ainda compartilham o armazenamento e os representantes, que vendem os livros aos
livreiros, com a Quartet; e o seu financiamento ainda é segurado por Namara, que vigia
financeiramente The Women’s Press. Mas garantiram-me que Namara não tem
absolutamente qualquer controlo editorial sobre o que é publicado e que os lucros são
reinvestidos na editora e não desviados.
The Women’s Press não é, nem nunca foi, uma empresa cooperativa. Mas não emprega
secretárias ou uma rececionista e existe um certo ideal de comunicação constante entre
o pessoal. Katy descreve-o como “um sopro de coletividade no vento”. À medida que a
editor foi crescendo, desenvolveu uma estrutura mais formal, com um funcionário em
cada departamento. Não há uma hierarquia formal: Ros de Lanerolle é a diretora-geral
e ela tem a última palavra. Mas há uma reunião semanal de todas as trabalhadoras a
tempo inteiro da editora, atualmente às terças-feiras à tarde durante o horário de
51

trabalho, onde é distribuída a leitura semanal e se discutem os livros a serem


Página

publicados. Perguntei se davam os livros escritos por mulheres negras às mulheres


negras que integram o pessoal para os lessem e os livros de lésbicas a lésbicas. Katy
disse que sim.
A editora recebe cerca de trinta manuscritos por semana, mais cerca de três coletâneas
de poesia e umas oito propostas não de ficção; 25% das obras que recebe vem de
agentes literários. A editora não tem uma coleção de poesia, por isso as coletâneas de
poesia costumam ser devolvidas de forma bastante rápida. (Publica a poesia de Alice
Walker simplesmente porque é uma das autoras que vendem mais e publica várias
antologias, como as coletâneas interpretadas por The Raving Beauties, In The Pink e No
Holds Barred – mas de momento não coletâneas individuais.) No entanto está interessada
na ficção, sobretudo a nova ficção de escritoras britânicas. Quais são, portanto, os
critérios para estabelecer se um texto constitui material adequado para The Women’s
Press? Isso revelou-se difícil de explicar: “O livro tem de estar focado na mulher de
alguma forma… possivelmente com uma mulher como personagem central…” Foi
mais fácil indicar o que é que a editora procura com alguns exemplos. Com o atual
volume de trabalho simplesmente não é possível que cada funcionária leia tudo, mas
quando surge uma dúvida ou uma decisão difícil de tomar, então a maior parte das
funcionárias lê o livro. A maior parte da leitura é realizada internamente, mas são
contratadas leitoras externas para comentar textos especializados. A carta padrão da
editora para pedir a uma leitora para comentar um manuscrito contém o seguinte
parágrafo:

Para dar-lhe uma ideia do que procurar na “leitura”, em geral apontamos que gostaríamos
que no seu relatório explicasse porque acredita que o título em anexo deveria ou não ser
publicado pela TWP, e identificar qualquer apeto “original” (ou falta deles) da obra
considerada. Costumamos pedir às leitoras para procurarem perspetivas feministas/culturais
na obra, assim como habilidade na escrita e relevância para o nosso mercado. Em termos de
ficção, procuramos romances que apresentem protagonistas femininas que impulsionem a
ação e que sejam apresentadas de uma forma muito positiva. (Esta é uma afirmação muito
geral, portanto pedimos-lhe para usar o seu entendimento no caso de estes comentários
parecerem pouco claros ou irrelevantes para o título específico que estiver a ler para nós.)

A folha dos comentários também coloca a pergunta: “Este título apresenta algum
problema editorial ou político?” As mulheres da editora têm uma ideia muito precisa
daquilo de que estão à procura; mas nunca fica definido de forma suficientemente clara.
Quando em 1983 Katy chegou à editora pela primeira vez, havia três mulheres a
trabalharem no escritório e uma a trabalhar desde casa. Eram todas brancas. Katy vinha
do mundo editorial heterossexual, pois tinha trabalhado na Cassell e na Souvenir.
Quando a editora se expandiu e começou a publicar a obra de escritoras negras,
incluindo Alice Walker, as contradições políticas inerentes a uma equipa de mulheres
brancas que publicavam obras de negras tornou-se mais evidente. A editora agora
emprega mulheres negras e todas as vagas são anunciadas automaticamente na
imprensa negra. Há pouquíssimas mulheres negras na indústria da edição; Allison and
Busby, The Women’s Press, Virago e Women in Publishing estão empenhadas
conjuntamente em criar uma proposta de programa de formação para mulheres negras
no mundo da edição.
É claro que, de forma inevitável, há problemas para as mulheres negras que vêm
trabalhar para uma equipa que anteriormente era só de brancas. Katy frisou: “Espero
que nos tenhamos tornado mais conscientes das questões à volta daquilo que
52

publicamos.” O exemplo que deu foi a autobiografia de Sharan-Jeet Shan, In My Own


Página
Name (1985).119 O livro recebeu uma grande atenção mediática, mas a cobertura foi
incompetente e racista. Os média leram o livro como um ataque contra o supostamente
bárbaro costume sul-asiático dos casamentos arranjados, apesar do cuidadoso
desmentido da autora e a explicação no seu prefácio. Sharan-Jeet Shan chegou a
receber ameaças da comunidade sique, que se sentiu ameaçada e atraiçoada. Katy
admite que a editora deveria ter sido mais sensível em relação à possibilidade que isso
pudesse acontecer, e deveria ter feito mais para proteger a sua autora. O problema é que
tudo o que escrevemos pode ser usado contra nós. Para as mulheres negras e sul-
asiáticas que querem ser críticas face ao sexismo e ao preconceito nas suas
comunidades há sempre o perigo adicional que os racistas brancos peguem naquilo que
escrevem e se sirvam disso para confirmar estereótipos racistas prejudiciais. O primeiro
romance de Joan Riley, The Unbelonging (1985), também foi publicado por The
Women’s Press; e foi aí que surgiram os problemas causados pela complexa
intersecção entre racismo e sexismo. Uma mulher negra que preferisse publicar a sua
obra com The Women’s Press e não com uma editora negra é vista como se afirmasse a
sua lealdade para com as feministas brancas em vez de que com os negros e os asiáticos
em geral, e portanto como se estivesse a trair a sua raça. The Unbelonging é uma publicação
importante: foi o primeiro romance de uma escritora caraíba britânica negra a ser
publicado neste país. É o primeiro de vários livros de Joan Riley publicados por The
Women’s Press.120 A ironia em tudo isto é sublinhada pelo facto de Caryl Phillips, um
escritor negro cuja obra se mantém no mesmo território e na mesma área histórica de
experiência de Joan Riley, publicar com a Faber. O seu romance The Final Passage, passado
nas Caraíbas e na Inglaterra, também foi publicado em 1985. Publicar com a Faber não
é considerado uma declaração política; publicar com The Women’s Press é. Apesar
destes problemas The Women’s Press pretende publicar mais obras de autoras sul-
asiáticas e afro-caraíbas negras. Katy tem a certeza que as mulheres escreveram durante
anos: só que as suas obras permaneceram inéditas.
Também há um grande mercado para a ficção lésbica, em especial desde quando há,
pelo menos na Grã-Bretanha, menos competição por parte das editoras heterossexuais,
que tendem a aceitar material feminista menos radical e menos controverso. Katy
Nicholson achou que as escritoras lésbicas já eram capazes de assumir uma perspetiva
lésbica e não sentir que estavam a atraiçoar A Causa ao apresentarem uma personagem
lésbica que não fosse ideal de todos os pontos de vista. The Women’s Press tinha tido
problemas com a distribuição porque os representantes que levavam os livros aos
livreiros não são, em geral, feministas empenhados. Além disso, na maioria são
homens. A editora descobriu que não é fator de venda ter a palavra “lésbica” na
primeira ou segunda linha da informação na contracapa do livro. Os gerentes das
livrarias costumam ser homens e podem recusar-se a ficar com um livro, argumentando
que se trata de um “interesse especializado”.121 Os representantes acreditam que se a
palavra aparece mais abaixo na contracapa fará vender o livro, e os gerentes
habitualmente não a leem toda. A Palavra Fatal, como afirma Katy, nem costuma
aparecer nas capas da Virago: em vez disso, há um código homossexual: “companheira
constante”, “parceira de uma vida”, “grande amiga”. Uma revista minuciosa das

119
Sharan-Jeet Shan, In My Own Name (London, Women’s Press, 1985). Analisarei este texto
detalhadamente no capítulo 3, “Sobre Autobiografia”.
53

120
Vide capítulo 7, “Escrita Anti Racista”, para uma análise detalhada da obra de Riley.
121
Isso muitas vezes leva à supressão e à exclusão de certos títulos do mercado das leituras. Vide Noreen
Página

O’Donoghue’s article, ‘The Fate of Out for Ourselves: The Lives of Irish Lesbians and Gay Men’, in Gail
Chester & Julienne Dickey (eds), Feminism and Censorship: The Current Debate (London, Prism, 1988),
pp. 224-8.
informações de capa da Virago revela que na realidade não é bem assim. A de Nuns and
Mothers de Aileen La Tourette (Virago, 1984) diz da sua heroína: “Um pé na vida familiar
heterossexual com um marido e filhos na Inglaterra, o outro na América num amor
lésbico selvagem e maravilhoso com Georgia”. De facto, depois de eu ter falado com
Katy, a Virago deu o passo decisivo na escrita lésbica.122 A questão é que as mulheres
que em outras circunstâncias não poderiam ler nem poesia nem ficção difícil contudo
compram e leem obras lésbicas. No entanto, apesar da riqueza de obras publicadas
neste momento, estes livros ainda são um murmúrio num silêncio gigantesco. Katy
disse que acreditava que havia um mercado heterossexual para a ficção lésbica e
apontou-se como exemplo. “Sou uma mulher heterossexual que gosta de ler ficção
lésbica. É uma espécie de critério.”
Fiz perguntas sobre a política feminista da editora, que no passado publicou textos
pioneiros de teoria feminista radical dos Estados Unidos. 123 Katy disse que as
funcionárias se definiriam tanto feminista radicais como feministas socialistas. Todas
elas eram ativas em várias campanhas, quer na política de esquerda quer no movimento
das mulheres. Ros de Lanerolle está envolvida no movimento antiapartheid; Sarah
Lefanu também escreveu para Marxism Today, Jan Green trabalhou no Brighton Rape Crisis
Centre e fez parte de uma banda rock só de mulheres, a Devil’s Dykes; Jan Broom
participou na abertura de uma livraria radical em Bristol; Mary Hemming trabalhou
para os Scottish and Northern Distributors. Katy concordou que as mulheres da editora
viam a sua atitude política como mais de esquerda face às colegas da Virago; viam-se
como tendo um vigor mais cortante, mais radical. O slogan de The Women’s Press,
“Autoras vivas, questões vivas”, também visava sugerir uma escrita contemporânea e
controvertida.
É uma consciente atitude política da parte de The Women’s Press a de dar uma voz às
mulheres que até agora não tiveram acesso à edição. Não publicará – e isso também é
uma atitude política consciente – a obra de uma mulher de uma cultura que escreve
sobre mulheres de outra. E o seu objetivo editorial é marcadamente internacional. A
minha pergunta sobre os best-sellers era fácil de responder. The Color Purple (A cor
púrpura) de Alice Walker vendeu-se bem, mesmo no início, sem qualquer recensão, e
depois do filme de Spielberg vendeu mais de meio milhão de exemplares. Woman on the
Edge of Time de Marge Piercy já vendeu mais de 70.000 exemplares. Entre os best-sellers
fora da ficção surgem os ensaios In Search of Our Mothers’ Gardens de Alice Walker e Call Me
Woman de Ellen Kuzwayo, que é a autobiografia de uma mulher negra sul-africana. No
Immediate Danger de Rosalie Bertell, um estudo científico do aumento da poluição
radioativa, também está a vender-se bem; vendia-se bem mesmo antes do desastre de
Chernobyl, mas depois disso vende-se ainda melhor.124 Todos os títulos de ficção
vendem-se bem, com cerca de 7.000 exemplares no primeiro ano de publicação. Os
representantes, aparentemente, agora adoram vender ficção. A princípio havia alguma
resistência ao selo Zebra Stripes dos títulos de ficção, introduzidos em fevereiro de

122
Publicou Christian McEwen (ed.), Naming the Waves: Contemporary Lesbian Poetry (1988), Christian McEwen &
Sue O’Sullivan (eds), Out the Other Side: Contemporary Lesbian Writing (1988) e o romance de Helen Hodgeman
Broken Words (1989), que é um texto lésbico.
123
Mary Daly, Gyn/Ecology (1978; London, Women’s Press, 1979); Andrea Dworkin, Pornography: Men
Possessing Women (London, Women’s Press, 1981) e Right-Wing Women: The Politics of Domesticated Females (London,
54

Women’s Press, 1983).


124
Alice Walker, The Color Purple (1982; London, Women’s Press, 1983); Marge Piercy, Woman on the Edge of
Página

Time (1976; London, Women’s Press, 1979); Alice Walker, In Search of Our Mothers’ Gardens (1983; London,
Women’s Press, 1984); Ellen Kuzwayo, Call Me Woman (London, Women’s Press, 1984); Rosalie Bertell, No
Immediate Danger (London, Women’s Press, 1985).
1982; mas agora os livreiros, reconhecendo o potencial de venda do produto, ficam com
dez exemplares de uma vez. Quando a editora começou a comercializar pela primeira
vez em 1978, eram os livreiros radicais a promover os livros, e nos primeiros tempos
foram fundamentais: os representantes simplesmente não acreditavam que houvesse um
mercado. A Feminist Book Fortnight e a International Feminist Book Fair que se
realizaram em Londres em 1984 revelaram-se um ponto de viragem. The Color Purple, que
na altura já tinha ganho o prémio Pulitzer da ficção, foi escolhido como um dos textos
principais para serem promovidos, e pela primeira vez W. H. Smith recebeu grandes
encomendas.
A distribuição de The Women’s Press é gerida por Plymbridge em Plymouth. Desde
junho de 1986 a distribuição na Escócia tem sido gerida por Bookspeed, que aumentou
as vendas no norte de uns 50%. Desde 1985 Books for Students pegou em todos os
títulos da editora e submeteu-os para aprovação para as bibliotecas escolares e públicas.
Em junho de 1986, após três anos de pressão diplomática, Bookwise, o grossista
nacional, aceitou ficar com esses títulos. A Pipeline também distribui os seus livros. A
editora faz pouquíssima pesquisa de mercado; mas Katy achava que não fazia nem mais
nem menos do que qualquer outra editora. As condições para as suas autoras são 1\%
de royalties nas vendas nacionais de capa mole e 10% na capa dura; os royalties de
exportação são 6% na capa mole e 8% na capa dura. O adiantamento pelo primeiro
romance – ou seja os royalties do que a editora pode esperar vender em18-24 meses –
costumam rondar as £1.000. Autoras conhecidas não obtêm grandes adiantamentos.
Estas condições não diferem substancialmente das condições habituais oferecidas aos
escritores em qualquer editora comercial. É uma verdade reconhecida de forma
universal que os editores trabalham pelo dinheiro e os escritores por amor. Os salários
do pessoal de The Women’s Press variam entre £8.000 e £12.000: é uma política
deliberada a de não ter diferenças muito grandes de salário. A faixa etária das mulheres
que trabalham lá é de vinte e dois a cinquenta e cinco anos.
A editora aceita cerca de seis títulos por ano de uma pilha de manuscritos não
solicitados, incluindo obras que chegam por intermédio dos agentes literários. Katy
disse que encorajavam as suas escritoras a trabalharem tanto em workshops de grupo de
história como em grupos de escrita criativa. No conjunto, a maior parte das obras não
de ficção é encomendada. The Subversive Stitch (1985) de Rosika Parker, uma história radical
do bordado feminino, foi encomendada em 1979. Há uns anos também foi
encomendada uma análise feminista da astrologia, The Knot of Time (1987). Os textos da
coleção de manuais “Handbooks”, que inclui os títulos Sexual Violence, The Anorexic Experience e
Lesbian Mothers’ Legal Handbook, foram todos encomendados. As novidades a partir de 1985
incluem o catálogo de ficção científica feminista e a nova coleção de ficção
“Livewires” para raparigas.
Perguntei a Katy quais achava que eram as desvantagens de trabalhar em The Women’s
Press. Respondeu que a ambiguidade que persiste com o desejo residual de trabalhar
como uma empresa cooperativa poderia ser um problema. Achava que a empresa
provavelmente tinha estrutura a menos, mais do que estrutura a mais. A enorme pressão
do trabalho e o desejo de manter uma atmosfera cooperativa muitas vezes estavam em
conflito: por vezes o pessoal adoece gravemente e é obrigado a deixar. Os desacordos,
acrescentou, tendem a chegar à ebulição e logo desaparecer, mas há tanta pressão vinda
da crise exterior que as discussões internas que podem emergir acerca de um texto
específico conseguem ser contidas. Acreditava que a editora publicava uma grande
55

variedade de livros, suficiente para incluir e expressar contradições, não queria que a
Página

sua política, enquanto editora, fosse definida de forma demasiado estrita. Perguntei-lhe
do que gostava do trabalho na editora: isso foi fácil de responder. “Oh, a variedade… E
sinto que estamos a lidar com as questões que são importantes no feminismoo.”125

E o seu logo? O ferro voador? Bem, não é completamente sério. Passar a ferro costuma
ser uma tarefa feminina. John Osborne põe a heroína de Look Back in Anger (1956) a passar a
ferro durante a maior parte da peça. Agora ao ferro é dado um sentido progressivo,
“passar para a frente”.

125
Recebi notícias das atuais agitações em The Women’s Press enquanto estava a rever este texto. Parece-
56

me que a maior parte do pessoal com quem tinha falado se demitiu. Se os problemas não forem resolvidos
rapidamente e de forma pacífica o futuro para esta editora feminista vai ser lúgubre. Para um relato do
Página

que aconteceu vide Rukhsana Ahmad, “What’s Happening to the Women’s Presses?”, Spare Rib, no. 223
(May 1991), pp. 10-13.
Em 1974 algumas lésbicas feministas radicais em Londres formaram um grupo para imprimir
e publicar trabalhos do movimento de libertação das mulheres. Com vista a controlar os
processos envolvidos, três de nós foram a um instituto técnico superior para aprender a
imprimir. Como Women’s Press publicámos seis livros de poesia, o primeiro calendário do
Movimento Britânico de Libertação das Mulheres e a coleção de posters. Em 1977
organizámos a primeira conferência britânica sobre mulheres na tipografia e na indústria
editorial. Mesmo antes desse evento fomos obrigadas a mudar o nosso nome para
ONLYWOMEN PRESS porque um editor comercial tinha ficado com o nosso nome,
registando-o oficialmente, o que nós não tínhamos feito. Escolhemos ONLYWOMEN PRESS
para manter o nome próximo do original, fazendo uma clara conexão com o trabalho pioneiro
que já tínhamos feito.
Em 1978 abrimos a nossa atividade como tipógrafas comerciais e como editoras, equipadas
com prelos antiquados e suportadas por pequenos empréstimos de mulheres do movimento.
Formámos várias mulheres como tipógrafas e também conseguimos pagar a renda e subsidiar
a nossa atividade editorial.
Em meados de 1984 desistimos da impressão para concentrar-nos exclusivamente na
publicação. Algumas de nós têm saudades dos óbvios encantos das máquinas de impressão.
Todas nós temos saudades da certeza de uma impressora para o trabalho lésbico e feminista
radical. A transição concentra todos os nossos esforços para a reivindicação e a iluminação do
feminismoo radical lésbico, ou seja o nosso objetivo original.

Figura 2 Onlywomen Press: (a) o logo original e (b) a versão revista, com a breve
história da editora

UTKH
57

BOOKCLUB
Página

Figura 3 “Steaming ahead” (“Passar para a frente”): o logo de The Women’s Press
3

Sobre autobiografia
Tanto a maior como a mais pequena forma de crítica é um tipo de autobiografia.
Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray

A minha advogada é quase dez anos mais nova do que eu. Estou particularmente
interessada na forma como lê. Ela devora livros da mesma forma que outras mulheres
comem chocolate: com uma indiferença voraz em relação a tudo excepto ao assunto em
questão. É também uma leitora resistente, pois tem normalmente fortes ideias pré-
concebidas sobre o que deve estar a ler, e objecta em conformidade se o texto não
cumprir os seus desejos ou não obedecer às suas exigências. Um texto lançado para a
seduzir não iria muito longe. Enquanto esteve na minha casa deixei-a à vontade com os
meus livros e tirei as seguintes notas sobre uma das nossas conversas: Barbara está a
ler Time and A Time: An Autobiography de Rosemary Manning.É claramente uma
experiência terrível, a torrente de infelicidade abandonada está a atingi-la.
Assim falou Barbara:

“Para que isso seja uma autobiografia, tem que ser ou toda a sua vida ou tudo dela. E só estou
a ouvir falar das tentativas de suicídio de Manning e as razões pelas quais a sua vida
emocional está nesta confusão...”

Na verdade, se se tratasse de uma investigação clínica de suicídio ela acharia o trabalho mais
aceitável. Mas e se Manning considerasse a sua tentativa de suicídio e a sua confusão
emocional os aspectos mais importantes da sua vida? Penso que a Barbara se opõe à exclusão
deliberada da vida profissional de Manning. Esta foi uma professora bem sucedida, uma
diretora escolar. Bem, eu sugiro que, talvez, ela temesse que a revelação do seu Lesbianismo
resultasse num escândalo, demissões ou desemprego. Ou ainda, estou meramente a especular,
processos de difamação dos seus colegas. Barbara responde que uma proteção completa
contra a acusação de difamação de carácter é porque que é verdade. E depois explica que a
sua oposição à narrativa de Manning é apenas por que ela não conta tudo. Tendo prometido
fazê-lo, ela não cumpre a promessa. Ela esconde demais, o que Barbara considera importante.
Isto revela que Barbara lê autobiografias como se fosse ela a entrevistar uma testemunha.
Tem uma noção fixa na sua cabeça do que é importante numa vida, o que não acontece com a
versão de Manning.
Assim, esta é a expectativa da autobiografia. O leitor quer honestidade. E que lhe contem
tudo.
“Eu quero tudo dela. Ela está a manipular-me. . . ”
“Mas não é verdade que todos os escritores manipulam o leitor?”, pergunto calmamente.
“Ela não devia ser apanhada a fazê-lo,” replica Barbara. Resposta típica de advogado. Ri-me
dela. Mas ela está mesmo envolvida pelo livro. Deita-se em frente à lareira e continua a ler.
58

O pacto autobiográfico entre o escritor e o leitor é que a distância ficcional entre o


Página

escritor e o narrador não exista. O “eu” que fala é o “eu” que escreve, mesmo que a
tarefa em mãos seja a construção desse mesmo “eu”: a mulher cujo corpo passou por
toda a experiência narrada é a mulher que segura a caneta. “Quero toda a sua vida, ou
tudo dela.” Não pedi a Barbara para dissertar sobre esta diferença, que é interessante. A
autobiografia exige uma certa nudez da parte do escritor, o que é sempre um gesto
egoísta ou uma reivindicação de orgulho. A mulher escreve: isto foi o que me
aconteceu, assim foi como eu me senti, o que eu fiz e vale a pena ouvir.
Até este ano nunca tentei escrever uma autobiografia, intimidada pela simples
impossibilidade de nunca dizer como foi que aconteceu – o que tornou o título
provocante That’s How It Was, de Maureen Duffy, ainda mais notável.126 Quando Audre
Lorde disse a uma das suas amantes “Estou a escrever uma exposição privada da minha
vida e dos meus amores,” a sua amante respondeu, pedindo o impossível, “Certifica-te
apenas que dizes a verdade sobre mim.”127 Todos vivemos as nossas vidas nos nossos
próprios livros e só podemos contar as nossas próprias verdades. E os medos que
rodeiam a escrita de uma autobiografia são numerosos: o medo de nunca se encontrar a
pessoa que fez esse passado, o medo de desenterrar os mortos, os conflitos não
resolvidos, as tristezas não chorados, o medo de trair os vivos, ou de ser visto nu.
Uma autobiografia é muitas vezes uma busca de coerência e esclarecimento. E aqui
chegamos a um impasse crucial na teoria feminista, isto é, o político contra o
psicanalítico na construção do “eu”. Deixem-me pôr a questão o mais simples que
puder. A abordagem política, ou sócio-histórica, à construção da feminilidade é na
maior parte das vezes apoiada por feministas radicais, ou seja, por mulheres como eu
cujas prioridades continuam a ser o ativismo, campanhas sobre os problemas que
afetam as nossas vidas como mulheres e projetos coletivos. As feministas radicais têm
sido sempre materialistas no sentido em que, sim, afirmam que as mulheres têm sido
socialmente construídas por ideologias masculinas como passivas, masoquistas e servis
– mas também declaram que não necessitamos de continuar assim. É possível – com
muito trabalho árduo, reflexões profundas e decisões difíceis – que façamos uma
reestruturação tanto da forma política das nossas vidas como dos nossos desejos
sexuais. A abordagem psicanalítica para a causa da feminilidade tem exercido grande
influência nos departamentos das universidades. Aqui não existe nenhum assunto
autónomo capaz de ações decisivas ou de mudança na sua vida. Somos egos incoerentes
e quebrados à mercê de desejos inconscientes em ebulição que não podemos conhecer
ou controlar precisamente porque são inconscientes. Somos controladas por estruturas
culturais e linguísticas. A feminilidade só pode ser compreendida em relação à
masculinidade e é tão importante considerar a construção social dos
homens/masculinidade como a das mulheres/feminilidade. A opressão das mulheres, e
até a mulher como uma categoria, é instável, inconstante e desconhecida. Somos
estranhas para nós próprias.128
Certamente que não sou a única pessoa aqui a desconfiar. De facto, é bastante mais
fácil considerar a sua vida como algo inexplicavelmente misterioso, como faz Elizabeth
Wilson em Mirror Writing: An Autobiography, e ter a visão do seu ego quebrado como um
fragmento intrigante, variável e estilhaçado.129 Pode renegar partes de si próprio: estes
podem ser objetos de discussão nos quais você também pode analisar, a partir de uma
posição olímpica de perfeita indiferença. Se não existir nada como um “eu” unitário,

126
Maureen Duffy, That’s How It Was (1982; London, Virago, 1983).
127
Audre Lorde, Zami: A New Spelling of My Name (1982; London, Sheba, 1984), p. 190.
59

128
Paulina Palmer escreveu muito claramente sobre esta separação. Vide o artigo “The Representation of
Lesbianism in Contemporary Women’s Fiction: The Division between ‘Politics’ and ‘Psychoanalysis’”,
Página

in Jane Aaron & Sylvia Walby (eds), Out of the Margins: Women’s Studies in the Nineties (Lewes,
Falmer, 1991).
129
Elizabeth Wilson, Mirror Writing: An Autobiography (London, Virago, 1982).
então, num sentido libertador, você já não é a mesma mulher que foi casada, que teve
aquelas opiniões, que foi racista, que fez explodir aquela bomba, que tomou aquelas
drogas ou que virou a cara para o lado.
A construção da sexualidade e do desejo sexual torna-se aqui fundamental. Tem sido
sempre a questão central do movimento internacional das mulheres. É um assunto
crítico, difícil e emocional e que foi tema de muitas das autobiografias da década de 70.
E ainda hoje é um campo de batalha. Mas nós mudámos de posição. Em suma, ao
serem influenciados pela abordagem psicanalítica da construção do “eu”, os debates
tornaram-se abstratos e polarizados, as discussões já não são resolvidas dentro das vidas
reais, mas colocadas umas contra as outras como posições teóricas. A desordem crua
das autobiografias da década de 70, as suas confusões constrangedoras, a fúria
apaixonada e a dor expressada ainda são vistas como documentos puros e
revolucionários desse período. Este tipo de coragem, o de reconhecer que o feminismoo
não significa que tenhamos de tentar pensar e viver de formas diferentes e revelar essa
luta no papel, parece cada vez mais rara entre nós. Não considero isto uma derrota, mas
um recuo, pois já não damos a mesma atenção a estas dificuldades. A luta relativa ao
sexo e à sexualidade saiu da cozinha e do quarto, tornou-se um debate psíquico
altamente abstrato, um conflito digno da Guerra das Estrelas entre o Imaginário e o
Simbólico, o Phallus e a Chora. Quando a discussão é sobre masculinidade e
feminilidade como construções psíquicas, e não sobre homens e mulheres, penso que,
de facto, parámos de discutir. Fazemos as pazes com os homens por causa dos filhos,
da casa, do salário ou de senhas de refeição, e essas pazes serão feitas nos termos deles,
não nos nossos. O debate sobre sexo e sexualidade é fundamental para o feminismoo.
Os problemas não são resolvidos e a fuga para a abstração é sempre a evasão, se isso
não nos trouxer de volta para o limite da política: o quarto, a cozinha, o local de
trabalho e as ruas. Existem, claro, exceções que defendem esta tendência e
normalmente podem ser encontrados na Revolutionary and Radical Feminist Newsletter que relata
formas fortes de ação direta e também desenvolve uma teoria feminista que é baseada
na resistência das mulheres à opressão dos homens130. As políticas sexuais da década de
70 não desapareceram simplesmente com a década.
Nenhuma quantidade de ativismo político pode destruir o poder do subconsciente, se é
que tem mesmo um domínio universal sobre todas as mulheres. Num argumento
maravilhosamente convincente publicado em Feminist Review, Rosalind Minsky defende
que não só é “o assunto humano... fundamentalmente decomposto em consciente e
inconsciente”, mas que o nosso inconsciente é formado no início da infância e não num
período das nossas vidas sobre o qual temos muito controlo e é estruturado “pelo que
acontece emocionalmente no interior... a família, seja ela nuclear, monoparental ou
alargada”.131 Também não escolhemos nem a família biológica nem a substituta.
Minsky acompanha Melanie Klein no raciocínio de que o inconsciente é formado
durante a fase pré-edipiana do desenvolvimento da relação do bebé com a sua mãe ou
mãe substituta e não durante a crise edipiana. Mas todos nós temos um inconsciente e é
sempre traumático, para todos, mais ou menos da mesma forma. Minsky continua,
então, com uma pergunta muito pertinente. “Por que é que isto é precisamente um
problema tão grande para algumas pessoas, excepto em termos da dificuldade

130
The Revolutionary and Radical Feminist Newsletter, disponível apenas para mulheres, tem sido
60

impresso intermitentemente nos últimos dez anos. Tentar junto de: RRFM, 22 Finsbury Park Road,
London N4 2JZ (enviar cheques, à ordem de RRFM). A última edição que consegui ter nas mãos – e foi
Página

espetacular – foi a edição 120, Primavera 1990.


131
Rosalind Minsky, “‘The Trouble is it’s Ahistorical’: The Problem of the Unconscious in Modern
Feminist Theory”, Feminist Review, no. 36 (Autumn 1990), pp. 7, 6.
intelectual da integração de uma ‘consciência’ histórica central numa teoria social e
uma ‘inconsciência’ histórica central numa teoria psicanalítica?” (p. 9). Implícita na
pergunta de Minsky está a suposição de que a consciência e a inconsciência são difíceis
de integrar e que, num sentido, todos nós escolhemos o método que queremos utilizar.
O meu problema não reside na integração dos dois, mas sim na sua separação desde o
início. Forças históricas e pressões políticas nem sempre são fáceis de reconhecer, nem
sempre visíveis ou até nem mesmo discutidas. E também não é necessariamente
verdade que os impulsos inconscientes só podem ser revelados por perícia profissional,
psicanálise individual dispendiosa ou longas sessões de terapia. E mesmo quando
somos inscritos na história, de certeza que também o é o inconsciente, a não ser que ele
exista realmente, tal como a visão deísta de Deus, fora da história, do tempo e do
espaço.
Deixem-me dar um exemplo concreto do que quero dizer com a impossibilidade de
separação da consciência social e da inconsciência psicanalítica. Uma vez, tive uma
discussão demorada e íntima com uma mulher casada, que considerava os pedidos
sexuais do seu marido horríveis e desagradáveis. “Mas se eu não ceder,” continuou ela,
“ele descarrega nos nossos filhos”. “Porque é que não o deixa?”, sugeri depois de me
ter assegurado que ele não era persuadível nem através da razão nem pelas ameaças da
mãe dela. “Quem seria eu, depois?” perguntou-me desesperadamente. Não me
perguntou “O que é que eu iria fazer?”, ou “Como iria eu viver?” nem “Quem iria pagar
as contas?” Ela perguntou-me: “Quem seria eu?”. O seu sentido de identidade –
económico, político, social, afetivo e psíquico – estava inteiramente ligado ao facto de
ser a esposa daquele homem. Claro que lhe disse que ela é uma pessoa de direito
próprio e que pode tomar as suas próprias decisões. Mas num sentido ela não as podia
tomar e este é o ponto por onde devíamos começar. No fim, ficará satisfeita por saber,
ela deixou-o.
O inconsciente é um pouco como Deus, se existir terá um efeito sobre nós, quer
queiramos quer não, mas podemos perfeitamente viver, amar, escrever, pensar, falar e
tomarmos ações políticas como se ele não existisse. Podemos escolher em que termos
nos queremos compreender, podemos interrogar os nossos desejos racionais ou
irracionais e podemos ser estranhas para nós mesmas, mas não precisamos de ser as
nossas próprias vítimas. É tanto um gesto existencial como uma afirmação de
responsabilidade política assumir a criação de nós próprias, visto que o nosso “eu” é
construído. Não faz qualquer sentido sonhar com a descoberta de quem realmente
somos, como se houvesse uma boneca perfeita escondida dentro de nós debaixo de
camadas de algas. A nossa luta é para alcançar uma identidade e a maior parte de nós
atravessa uma série de identidades múltiplas algumas escolhidas, outras impostas. Os
nossos corpos são o território que ocupamos, mas também são o meio de interagirmos
com o mundo. Descubro que as minhas cicatrizes, as verdadeiras marcas físicas no meu
corpo, são reconfortantes. Estas são as marcas da história no corpo de cada mulher.
Dizer que agora sou bastante diferente da pessoa que já fui não é o mesmo que dizer
que já não sou a mesma pessoa. Tomar responsabilidade política sobre quem és,
significa julgar tanto a mulher que foste como a mulher em que te tornaste. Nenhuma
parte do ego quebrado fica livre de responsabilidades. Se reconhecermos cada parte do
ego quebrado emergimos como monstros, mas pelo menos seremos uns monstros
honestos.
Para uma mulher escrever a sua vida como um assunto perceptível, em que é tanto a
61

que age como a que faz o registo, quando existimos durante séculos simplesmente
Página

como mães, irmãs, amantes, filhas, criadas, empregadas e esposas, é a realização de um


gesto político decisivo. Quando os homens escrevem as suas histórias de luxúria, culpa,
triunfo e desastre, o mundo admira-os pela sua honestidade, franqueza e coragem.
Pense em São Paulo, Santo Agostinho ou Rousseau. Tornaram-se clássicos e
perdoámo-los. Além do mais, as suas vidas estão lado a lado com os seus feitos: a
fundação da Cristandade, a Cidade de Deus, a transformação da sensibilidade europeia,
a Revolução Francesa. Para as mulheres, o simples facto de que vivemos, e, ainda mais
particularmente, de que amámos, às vezes é o nosso único feito. As autobiografias das
mulheres são, assim, muitas vezes histórias de vidas interiores: não o que fizemos, mas
quem amámos e como nos sentimos. E é difícil escrever sobre sentimentos que
frequentemente nos ridicularizam em vez de serem considerados feitos que nos
dignificam.
A prática da autobiografia é normalmente uma rede de súplicas especiais,
autojustificação, criação de mitos, sentimentalismo e mentiras descaradas. Os motivos
para se escrever uma autobiografia estão muitas vezes na base de como uma vida é
reconstruída e um passado é relembrado. Eles vão explicar a prioridade do significado
que é dado a acontecimentos, paisagens ou pessoas. Tanto Audre Lorde como Ann
Oakley tiveram cancro.132 Lorde perdeu o seu seio direito e Oakley perdeu parte da sua
língua. Ambas ficaram sem partes do corpo que eram importantes para as suas vidas
eróticas por causa de uma doença invasiva, gananciosa e maligna. Ambas reconhecem a
própria mortalidade e por isso são coerentes nas suas vidas, julgam os seus pares, o
mundo e elas próprias. Lorde recorreu às mulheres e Oakley aos homens. As duas
mulheres são lutadoras, sobreviventes e querem muito ser ouvidas. Esta determinação
em imporem os seus próprios significados nas suas vidas advém do conhecimento que
essas vidas são frágeis e que já carregam nos seus corpos as suas mortes.
As autobiografias feministas da década de 70 são contos de transformação. A profunda
escuridão da confusa sexualidade, os horrores do casamento, os filhos e a culpa, o ódio
de si próprias e as tarefas domésticas, antecedem o início da consciência política, do
primeiro grupo de mulheres e a descoberta de outras mulheres. Uma autobiografia é
claramente um autorretrato; as mulheres feministas dos anos 70 apresentam retratos não
só delas mesmas, mas das suas vidas e dos tempos. Demonstram as formas nas quais as
suas vidas foram moldadas pelos políticos e por um movimento político feminino. Estes
livros são crónicas da história.
Às vezes penso que o movimento de libertação feminina foi inventado por Kate Millett
e Germaine Greer. Os seus livros, Sexual Politics e The Female Eunuch, foram ambos publicados
na Grã-Bretanha em 1970. Estes eram os mapas da misoginia institucional e também os
primeiros movimentos do jogo no papel. Millett tornou-se uma celebridade, diz ela, e
depois desmoronou-se. A sua autobiografia, Flying, abrange o período de um ano entre
dois dos seus desempenhos em público como figura principal do movimento feminino:
a reunião na qual é obrigada a assumir o seu lesbianismo e no júri antiviolência onde
apela a favor das suas políticas pacifistas. 133 O tema da autobiografia confessional de
Millett é o conflito entre a heterossexualidade e o lesbianismo.
Por trás de cada livro existe um outro livro. Os livros por trás de Flying são La Bâtarde, de
Violette Leduc, um livro não especificado de Emma Goldman, que é possivelmente a sua
autobiografia, Living My Life, e The Golden Notebook134 de Doris Lessing. A história apaixonada
da criação de Leduc como a lésbica literária e as convicções políticas inflexíveis de
Goldman quase que sufocam Millett. “Estas duas mulheres são arte e política. Ao ler as
62

132
Lorde, Zami; Ann Oakley, Taking It Like A Woman (London, Cape, 1984).
Página

133
Kate Millett, Flying (1974; London, Paladin, 1976).
134
Violette Leduc, La Bâtarde (1964; London, Virago, 1985); Emma Goldman, Living My Life, 2 vols
(1932); Doris Lessing, The Golden Notebook (London, 1935).
suas obras sinto-me julgada. É melhor não tentar nada.”135 Esta separação mental de arte
e política é perigosa, como Flying passa a demonstrar, Millett chega mesmo a conhecer
Lessing no decorrer da escrita do seu livro e juntas discutem The Golden Notebook. Lessing
mantém a sua vida debaixo dos agasalhos protetores da ficção, protegendo-se, assim, de
críticas pessoais. Millett é mais corajosa, corre o risco e assume as consequências. A sua
própria autobiografia é consequência do seu documentário, Three women. O filme, e o
seu making of, estão inscritos no livro. Millett centra a câmara em si própria. Ela é a
quarta mulher e cada momento da sua vida – o presente, a memória, acontecimentos,
amantes – é gravado. Ela não deixa nada de fora, excepto os verbos. Isto tem um efeito
curioso sobre a política do livro. Tudo é detalhado num momento desesperado,
luminoso, eterno. Os verbos trazem tempo, perspectiva, processo e história. Se os
deixarmos de fora, a experiência torna-se crua, imediata e terrível diante de nós. Mas
cada experiência tem igual peso. Não há nada que nos diga o que é trivial,
insignificante, e o que realmente alterou o rumo da vida desta mulher. A escrita de
Flying é um dos temas penetrantes do livro, é-nos dado o processo da escrita e o
processo da experiência. Isto significa que Millett nunca tem de julgar suas próprias
ações seriamente. Na verdade está demasiado ocupada a fazê-lo. Ela não é tola, antecipa
as sérias objecções que podem ser feitas contra o seu método e levanta-as ela mesma.
Mas não faz isso honestamente. O crítico discordante é Vita, uma das amantes mais
desagradáveis de Millett, que esmaga o livro, exigindo atenção e amor. Vita argumenta
que Flying vai acabar como “polpa Sappho”[poderá ser Literatura sáfica , no original
‘pulp sappho’] (p. 182), se for apenas um mexerico erótico sem qualquer análise. Vita
quer colocar de volta a política que se perdeu com os verbos. Millett refere com pouca
indulgência a crítica de Vita como discurso indireto. Não é permitido que Vita fale por
si própria. “ . . . Ela desvenda a sua brilhante nova ideologia, tudo deve ser político e
deve acenar uma bandeira. Tento argumentar que a propaganda é aborrecida, não tem
qualquer magia” (p. 181). Agora a política não pode ser descartada como propaganda ou
uma bandeira acenando a favor da magia da arte. A revelação das próprias contradições
não é fraqueza ou estupidez, pois todos nós vivemos através delas, mas o que Millett
oferece é um mergulho autoindulgente numa confusão sexual da sua própria criação.
Ela conseguiu suprimir as objeções de Vita, para que nenhum leitor no seu juízo
perfeito queira pensar como Vita, e o facto de que Flying foi na verdade um best-seller
prova que existe um mercado muito saudável para “polpa Sappho”.
Millett propõe para si mesma uma absolvição radical: o processo de contar tudo, não
deixar nada por dizer, por admitir e por estudar. “... Se eu terminar o meu livro não terei
segredos pelos quais ter medo, ser corrompida, ser amarrada, como tem sido toda minha
vida, a esconder...” (p. 210). Mas não há nada de intrinsecamente radical sobre contar
tudo. Acontecimentos, encontros eróticos, contradições insolúveis, caem sobre a página,
um após o outro, não expurgados, mas também não analisados. A política da
experiência torna-se num monólogo sem sentido, simplesmente porque ela nos oferece a
sua experiência, completa, sem a política. Política significa autocrítica e vermo-nos
como uma criatura moldada por forças sociais.
A política feminista é sobre a aprendizagem e sobre a mudança de nós próprios, ao
confrontar outras pessoas; e, fundamentalmente, sobre perceber que o que você faz, com
quem faz, até ou especialmente na cama, está relacionado com o mundo exterior.
63

Significativamente, Flying contém muito poucas conversas ou diálogos reais. Este é o


livro de Millett, a sua história, o seu rugido. Ocasionalmente, ela percebe que mais
Página

135
Millett, Flying, pp. 14-16.
ninguém conseguiu dizer uma palavra: “Estou transida de vergonha de ver quão pouco
eu a conhecia, é quase uma estranha para mim...” (p. 549). Millett tem dezenas de
amigas e amantes, mas ela quer dormir com eles, não ouvi-los.
Curiosamente, o seu marido, quando está autorizado a falar por si mesmo, fala sem
sentido de remorso. Os homens não são normalmente sensatos sobre sexo e sexualidade.
Fumio é. E Millet dá-lhe a sua própria voz, e até mesmo o seu próprio inglês original e
instável. “Mas você deve ser cuidadoso com o sexo. Ainda é perigoso. Toda a gente o
usa como arma. Eu estou fora disso. Estou a ser eu. Vivo aqui sozinho. Eu sou o meu
trabalho” (p. 489). Também Millett é ela própria, mas só o pode ser ganhando a
cobiçada aprovação dos outros, de preferência na cama. “A alegria de saber que terei o
que quero, que isso não será tirado de mim. Como se a aceitação na carne fosse a
aceitação de todos. E quem pode provar que não é?” (p. 550). Na verdade, eu não posso
provar que não é; mas é francamente imprudente conduzir as nossas vidas como se a
sexualidade e o poder não estivessem ligados. Como Fumio diz: o sexo é uma arma.
A agonia de Millett que regressa, está ligada à sua própria confusão sexual e à sua
impossibilidade de se desligar dos penetrantes clichés burgueses sobre lesbianismo e
casamento. Ela lembra-se do seu primeiro caso com a sua professora, JayCee, como
“depravação” (p. 116), imaginando “os nossos corpos, as roupas, o andar… carimbados
com a certeza da nossa culpa, gritando a nossa criminalidade” (p. 117). Quando observa
o irmão e a cunhada de uma das suas amantes, afirma: “O Reg e a Julia, pessoas reais,
casados e com filhos, têm um estatuto e uma autoridade que nos parece faltar…” (p.
498). É só porque as pessoas casadas e a família burguesa têm uma autoridade dentro de
uma cultura sexista em que as lésbicas se tornam não-pessoas indistintas. A
heterossexualidade assume a sua centralidade normativa com uma violência silenciosa.
Mas Millett nunca o diz. Ao invés, ela lembra-nos sempre que é uma esposa. “Uma
esposa, por amor de Deus, como esposa sou uma desgraça” (p. 513). Lésbica, contudo
casada. Millett não se pode dar ao luxo de criticar radicalmente o casamento porque tem
um pé em ambos os campos. E protege-se sempre cuidadosamente.

Vendo os dois, um em cada mão, o homem e a mulher no seu mundo, sabendo que
dentro de uma hora eu entro numa caverna de lésbicas num loft numa rua obscura da
baixa. Observando-os com olhos de amor e sentindo toda a tensão de dois mundos,
duas culturas seladas longe uma da outra, duas sociedades inteiras separadas tantas
vezes que parece permanentemente, fendas entre mim própria dilacerando como um
mulato que passa. Quando é que tudo se junta? (p. 221)

O que esta passagem apresenta é uma versão falsa das fendas. Nem tudo está bem entre
o “homem e a mulher no seu mundo”, caso contrário, nenhuma de nós seria feminista.
A caverna de lésbicas, que soa selvagem e devassa, é apresentada de acordo com o
cliché heterossexista, como uma espécie de submundo.
Millett sabe que é perigoso viver como lésbica. Logo no início no livro, descreve um
encontro assustado de lésbicas radicais. Uma delas foi assassinada pelo amante que
deixou. A rejeição sexual é aparentemente provocação suficiente para assassinar. Millett
aceita isso e, em seguida, experimenta com o seu marido Fumio. Ela diz-lhe, na cama,
que dormiu com uma mulher, cortejando deliberadamente o perigo. Fumio ri-se dela e
volta a dormir. Ele não leva a sério nem Millett nem a sua declarada bissexualidade. E
ele está certo em não o fazer e ela não está a falar a sério. Millett e o seu masoquismo
64

estão simplesmente a gritar por atenção. Ela diz, “Fiquei muito decepcionada e esperava
Página

que ele me matasse ou que saísse de casa para sempre” (p. 21). Millett foi forçada a
admitir em público que era lésbica: “A conversa continua, inflexível como um decreto
fascista, que a bissexualidade é desculpa” (p. 16).136 No entanto, em dez páginas Millett
deixou bem claro que as lésbicas radicais, a fonte do “decreto fascista”, estão
justamente com medo, até pelas próprias vidas. O termo “fascista”, que atribui o pior
dos métodos políticos a um pequeno grupo de mulheres corajosas, é portanto uma
calúnia irresponsável. A política traiçoeira de Millett, ou a falta dela, surge pela sua
linguagem. Ela descreve Zooey, uma das suas amigas, que é brutalmente violada por um
dos amantes de Millett: “...ela não queria e, então, ele obrigou-a, um corpo enorme de
jogador de futebol, atando-a à cama, causando-lhe hematomas, batendo-lhe...” (p. 74).
Três páginas depois, descreve uma discussão com uma das suas amigas feministas. Ela
recua, “violada pelo ódio da outra” (p. 77). Agora, a violação não é nas palavras duras
entre amigos, especialmente quando são mulheres. A violação é a violência dos homens
contra as mulheres. Trata-se de pénis, vaginas, vulnerabilidade e força. E é para abusar
tanto das mulheres como da linguagem e para fingir o contrário.
Os livros que são publicados pela imprensa comercial não podem ser apenas para os
olhos da mulher. As cenas de sexo lésbico em Flying, eróticas, potentes e explícitas
como elas são, aparecem dentro de um contexto que as tornam politicamente
desconfortáveis, inseguras como as afirmações da sexualidade feminina e do poder da
mulher. Em duas ocasiões na narrativa, Millett vai para casa para o seu marido levando
uma amante. Em seguida, abandona a amante para dormir com o marido. Vita lança um
ataque de acusações. Claire, tendo um caráter orgulhoso e digno, sai de casa, “declara a
sua independência, vai dormir no seu saco-cama sob as estrelas” (p. 458). Em ambas as
ocasiões Millett dá-nos conta crítica a crítica de um amor matrimonial requintadamente
terno. Na sua própria cama é Fumio que conta. No dilúvio de confissões verdadeiras,
Millett nunca faz a si própria um estranho conjunto de perguntas. Descrever-se como
bissexual pode de facto ser uma descrição exata da sua própria prática sexual, mas a
bissexualidade não é uma categoria sexual política. Reivindicá-lo como tal é fingir que
há um equivalente fácil entre amar homens e amar mulheres e é ignorar o privilégio
financeiro e a aprovação social que os heterossexuais desfrutam.
Há um mito, que não subscrevo, que no fundo todos nós somos ou lésbicas ou
heterossexuais. Isto é usado contra as mulheres que não se conformam com os
estereótipos de lésbicas patológicas do cliché heterossexista e ainda assim se recusam a
passar da fase “lésbica”. Mariana Valverde, num intenso capítulo sobre a
bissexualidade, realça: “não seria melhor trabalhar a partir da hipótese de que a
orientação sexual não é um dado... mas que está sujeito a profundas alterações – e é, de
facto, constantemente criado e recriado – tal como as nossas experiências sociais e
sexuais se desenrolam?”137 Estas experiências sexuais e sociais, além disso, serão
regidas por uma sociedade que pune qualquer lapso da norma heterossexual
supostamente feliz e natural. Valverde insiste: “Os homossexuais têm o direito de exigir
que os bissexuais não caiam na armadilha fácil de serem heterossexuais em público e
homossexuais em privado” (p. 117). Ninguém poderia acusar Millett de fazer isso, dir-
se-ia até que ela funciona no sentido inverso. Mas o que faz é usar o desequilíbrio do
poder inerente à experiência heterossexual e lésbica contra as mulheres lésbicas.
O fantasma lésbico acusador na máquina de Millett é Jill Johnston, que faz duas
aparições significativas. Na página 48 ela sai das sombras nas suas Levis e óculos de
sol. Ela vive em “outro mundo”. Esta é em si uma noção insidiosa e perigosa: construir
65

136
Para o trabalho de lésbicas radicais “The Woman Identified Woman” e outros documentos de lésbicas
Página

nos EUA no início dos anos 70, vide Sarah Lucia Hoagland & Julia Penelope (eds), For Lesbians Only: A
Separatist Anthology (London, Onlywomen, 1983).
137
Mariana Valverde, Sex, Power and Pleasure (Toronto, Women’s Press, 1985), p. 112.
uma separação entre lésbicas e todas as outras mulheres. Johnston é “sinistra, perigosa”
(p. 47), até mesmo “diabólica” (p. 49) o seu “desdém de machona... mais ameaçadora
do que qualquer desempenho de ator masculino de que eu me lembre” (p. 50). Millett é
paralisada pela culpa das suas próprias inseguranças e incertezas. Projeta todo o seu
medo e ressentimento sobre a figura intransigente de Jill Johnston. “Eu sei tão bem
como ela que, se as mulheres estão vulneráveis à atração de fufas, nós estamos
vulneráveis a tudo, a um movimento de papel, impotentes mesmo antes das palavras”
(p. 51). Absolutamente assim. Mas Millett, apenas uma página antes, transformou
irresponsavelmente Johnston numa fufa castradora do submundo. Mais adiante no livro,
Johnston aparece em Inglaterra. Apenas porque lhes apetece, elas vão juntas a um
espetáculo de strip em Soho. “O estômago observa, fraco de raiva. Parece que ouvi Jill
soluçar no seu lugar” (p. 391). As lésbicas negam o direito aos homens de consumir o
corpo feminino e definir o erótico. E aqui Millett é honesta, firme e clara. A sua própria
apoteose sexual com a sua amante intelectual é explícita, lírica e politicamente no
ponto. “A cumplicidade está tão perto que somos a vagina uma da outra... os nossos
dois corpos tão unidos que já não os posso separar... Enquanto dou também eu recebo.
A mesma tempestade, a mesma agitação. Nunca se tem isto com um homem, a sua
experiência está escondida tal como a minha. Mas duas mulheres têm a mesma
coragem” (p. 540).
Talvez ninguém possa agradar a todos e ainda assim ser o sujeito da sua própria
autobiografia. A narrativa na primeira pessoa é sempre crua e vulnerável. Millett é
particularmente aberta sobre os seus próprios motivos misturados: o egoísmo
manipulador e as iras reprimidas. Mas ela torna o público privado, em vez do político
pessoal. A dificuldade reside no seu egoísmo. Ela está a escrever Flying para salvar o
seu verdadeiro eu, quem quer que ele possa ser, dos destroços da celebridade Kate
Millett, autora de Política Sexual. Mas na verdade, ela ama o papel de celebridade
torturada, adora ser o centro das atenções e quer acreditar que é essencial para o
movimento nessa capacidade. Este desejo é confirmado quando ela é convocada à baixa
para salvar a Conferência sobre o aborto, que entrou em colapso por causa de um
desacordo feminista. Millett chega, qual Supermulher fora de uma banda desenhada.
“Por que é que não chegou mais cedo, onde diabos você esteve? Uma mulher grita
enquanto eu corro para a porta” (p. 448). A convicção de Millett, que o movimento será
condenado se ela falhar ou desistir é simplesmente de um individualismo bizarro e
equivocado.
O feminismoo, se quisermos sobreviver como um movimento político, deve ser um
esforço político coletivo. Millett escreve a convicção de que ela é em si mesma
significante, e assim são as pessoas que ela conhece. Flying é um exercício de referência
de nomes importantes. John Lennon e Yoko Ono têm papéis de figurantes: Yoko Ono é
apresentada como uma velha amiga do Japão. As outras estrelas dos média do
movimento de libertação feminina dos Estados Unidos são “amigas, colegas, as
melhores mentes da minha geração... Flo Kennedy, Anselma dell’Olio, Gloria Steinem,
Myrna Lamb, Robin Morgan, Martha Shelley...” (p. 562). 138 A razão ostensiva de
Millett para escrever o livro – parar de enlouquecer, para voltar a dar-se a si mesma –
levou-me a esperar uma pequena autoanálise, mas na verdade ela é escrita dentro de um
género americano já bem estabelecido, as confissões de uma celebridade. E ela sucumbe
às convenções: a imagem de poderosa, sensual, articulada, mas por baixo de tudo isto
está a mulher real, masoquista, incerta, confusa, vulnerável e ansiosa por ser aceite pela
66

sua mãe. As confissões verdadeiras são sempre uma tentativa de ganhar de volta um
Página

138
Compraz-me dizer que não tinha ouvido falar da maioria delas.
público inconstante, e eles dependem dessa contradição. “Céus”, é suposto chorarmos,
“será ela realmente tão impotente e confusa? Devemos perdoá-la, pois parecia sempre
tão poderosa, sensual e articulada...” A voz que clama no deserto é desleal, a sua
humildade é uma máscara. Millett só pode contar tudo e comercializá-lo em livros de
bolso como um best-seller porque Política Sexual fez da sua própria vida um produto
comercializável, instantaneamente interessante para as feministas, lésbicas, voyeurs e
homens que têm fantasias de foder com fufas.
A autobiografia de uma feminista não tem necessariamente de ser escrita como uma
autobiografia feminista. As nuvens de Millett sobre autoacusação devem alertar-nos
para o facto de que Flying é a vida de um santo, recordando os pecados. “Eu odeio
confessionários. Abençoe-me pai, porque eu pequei. Uma forma de lamentação” (p. 24).
Mas ela fê-lo, afinal, cara leitora; seiscentas páginas alongam-se diante de si.139
Flying é o livro por trás de The Shame is Over, de Anja Meulenbelt, onde as
inspiradoras heroínas da história da vida política de Meulenbelt são Kate Millett e Jill
Johnston: “Jill Johnston, que viajou para Espanha, a chorar, em busca do seu amor de
volta, novamente. Desesperada, ela não podia competir com o casamento com um
homem. E Kate Millett chora ao longo de um livro inteiro por Celia.” 140 Esse livro é,
obviamente, Flying e há uma crítica sobre ele e sobre outra escrita autobiográfica
feminista, incluindo Shedding de Verena Stefan, logo no início do livro.141 Meulenbelt
afirma: “Precisei de outras mulheres que escrevem sem vergonha para me tornar no que
sou” (p. 14). As narrativas reveladoras definem os termos para a sua própria narrativa.
As escritoras feministas brancas, mesmo através dos continentes, são extremamente
interdependentes. Eu acho que isto também é verdade em relação às escritoras negras. A
história do movimento e da realização do feminismoo contemporâneo é realmente
gravada em papel com peculiar intimidade. The Shame is Over é uma tórrida expansão
de encontros sexuais. Para Meulenbelt a sua vida é a vida sexual. Isto é justo;
Meulenbelt atingiu a maioridade durante a revolução sexual. Mas nós rastejamos de
cama em cama, apenas percebendo gradualmente que o modelo dos anos 60 de
libertação sexual foi outra gaiola para as mulheres, em que era má educação recusar-se a
ser fodida. Ela descreve-o como “...a revolução sexual que é na verdade sexual, mas
não tem nada de revolucionário” (p. 130).142 Tal como o épico de Millett, a saga de
Meulenbelt é escrito num tempo presente, sem fôlego e tal como Millett, ela faz da
escrita do livro uma parte crítica do seu tema. Mas é muito mais astuta sobre os seus
motivos para escrever e muito mais cruel sobre a política do feminismoo. Como ela diz,
“A irmandade é poderosa: pode matá-la. E ainda assim só podemos continuar em frente,
já não podemos voltar atrás. Mesmo os desertores, que não conseguem ser fiéis aos seus
ideais, continuam” (p. 14). Inicialmente, anda indecisa de um movimento político para
outro: teatro alternativo, as Panteras Negras, a esquerda dura, assume a causa de todos,
excepto a sua própria. Há uma litania de lamentações pelos amantes que a trataram mal,
mas que foram, pelo menos, uma boa foda.

O Shaun

139
Para uma análise muito mais simpática das estratégias autobiográficas de Millett e uma intrigante
avaliação psicanalítica de autobiografias femininas veja-se o ensaio de Linda Anderson, “At the
Threshold of the Self: Women and Autobiography”, in Moira Monteith (ed.), Women’s Writing: A
67

Challenge to Theory (Brighton, Harvester, 1986), pp. 54-71.


140
Anja Meulenbelt, The Shame is Over (1976; London, Women's Press, 1980), p. 6.
Página

141
Verena Stefan, Shedding (1975; London, Women’s Press, 1979).
142
A melhor análise política da “revolução sexual” dos anos 60 que li encontra-se em Andrea Dworkin,
Right-Wing Women: The Politics of Domesticated Females (London, Women’s Press, 1983), pp. 99-100.
Michael

Estes dois lagartos egoístas passeiam dentro e fora do livro e estão apocalipticamente de
luto. Meulenbelt é terrivelmente franca sobre a grande mentira, também conhecida
como o amor romântico. “Quando ele se vai embora, eu paro de viver” (p. 14). As suas
relações com os homens são como uma droga: ela está viciada, mas a vontade mata-a. E
o padrão em que se desenvolve a sua vida é o triângulo, com o homem a virar uma
mulher contra a outra. Meulenbelt descreve as suas experiências com detalhes
angustiantes e, em seguida, faz algo que Millett nunca faz: luta com a análise política
dessa experiência. E não o faz sozinha: ela vira-se para outras mulheres. As outras
mulheres são, reconhecidamente, o último porto de escala. “Não é por acaso, pensei eu
mais tarde, que era sensível ao movimento feminino, apenas quando eu não tinha mais
nada a perder” (p. 137). Na verdade, o refrão da música de Janis Joplin ecoa por todo o
livro: “A liberdade é apenas outra palavra para nada mais a perder.” Mas o que é
demonstrado no livro é o processo político.
O próprio entendimento político crescente de Meulenbelt dá-lhe o poder de assumir o
controlo sobre a sua própria vida. Ela começa a pensar e a viver de forma diferente. É
atacada na rua e riposta, o homem arremessa tijolos contra ela. De imediato descreve a
experiência a outras mulheres, e juntas produzem “bocadinhos da teoria que estamos
lentamente a desenvolver... A única maneira de a evitar [a violência sexual e a
agressão], é pôr-se ao serviço de um homem que protege de todos os outros homens”
(pp. 190-1). O seu caso triangular com um casal – ela dorme com ambos – acaba. As
mulheres, em conjunto, discutem esta experiência e desenvolvem a análise.
“Certamente, não te surpreende que a Anna não te tenha escolhido, dizem as minhas
amigas. Certamente que não era uma escolha entre ti e Ton, foi uma escolha entre duas
formas de vida completamente diferentes” (p. 248). A autobiografia torna-se, então, um
testemunho confessional e em comentário político. Meulenbelt nunca se vê como
psiquicamente fragmentada. Ela constrói-se como uma mulher em progresso, em
movimento, um ser político crescente e assim toma a responsabilidade por quem foi e
por quem é. Ela nunca renega ou despreza o seu passado, sabendo que fazê-lo seria
rejeitar outras mulheres. “Eu ainda sou aquela mulher, ferida, amarga, desconfiada, ao
mesmo tempo a mulher forte, criativa e independente que sou” (p. 4).
Meulenbelt tem muito a dizer sobre questões tendenciosas. A sua vida foi moldada por
um período turbulento na política de esquerda, a sua análise é influenciada pelos anos
de domínio masculino da esquerda marxista e dos movimentos revolucionários negros,
para os quais ela encheu um monte de envelopes e um monte de camas. A sua conclusão
é inflexível. “Se um homem negro é espancado na rua, é a política. Se uma mulher é
espancada em sua casa, é um problema privado, uma relação conturbada” (p. 49).
Meulenbelt torna-se famosa no decurso do livro. Pela página 255, ela pode encher o
salão com “as pessoas que vêm ver com o que é que o vampiro realmente se parece” (p.
255). Mas a sua fama é irrelevante para o projeto do livro, cujos temas são os do
feminismoo radical – sexualidade, lesbianismo, políticas de educação sexual,
separatismo – e cujo padrão segue os métodos clássicos do feminismoo radical: teoria e
ação em consequência de uma análise crítica da experiência pessoal.
A autobiografia como testemunho é geralmente justificada pela alegação de que é
excepcional, ou que é típica. Uma mulher única, ou qualquer mulher, conta a sua
história, escreve a sua vida. A ideia de que a sua vida pode ser, em algum sentido, típica
68

de uma mulher que descobre o feminismoo e outras mulheres certamente nunca entrou
Página

na cabeça de Kate Millett. Ela é única, extraordinária, mesmo (ou talvez


principalmente) para ela própria. Mas Anja Meulenbelt e Verena Stefan em Shedding
narram as suas histórias e despertam como vidas exemplares; ou, pelo menos, como a
vida exemplar de mulheres brancas ocidentais sob o capitalismo. Aqui é Meulenbelt
(itálico dela própria): “Quem quer que pense que isto é tudo, uma mulher que lutou
contra a sua vergonha, uma história única separada de todas as outras, não entendeu” (p.
275). O “nós” em Shedding, de Stefan aparece na poesia, como um coro grego. E somos
“nós”, as mulheres.

Nós fazemos nascer o mundo de novo nós


agitamos o tempo nós iluminamos a nossa
sombra o fogo na pele rebenta.
(p. 85)

Millett e Meulenbelt escrevem narrativas naturalistas sem problemas, e o verdadeiro eu


que finalmente emerge das folhas é apresentado como uma personagem honesta, como
alguém que conhecem bem num romance. Mas a ficção é um jogo de máscaras. A
diferença entre o escritor e o narrador ou a perspectiva da narrativa, é insegura e está
sempre a mudar. Stefan rompe o pacto autobiográfico, a promessa de que o escritor e o
narrador estão a falar a uma só voz. O seu texto usa a tática da ficção, a retórica da
polémica política, a lírica da confissão íntima. A sua vida e experiência não são tanto a
substância da confissão, mas a matéria prima para ser analisada. Numa ocasião, ela
escreve duas versões de uma experiência desagradável com o seu amante, depois da
qual acabou com uma infecção na bexiga. Uma versão é escrita na linguagem do cliché
amoroso, em que a mulher complacente permite e goza – “no caminho decidimos que
gostaríamos de ir para a cama um com o outro...” – a outra versão torna claro que ela é
intimidada para ir para a cama: “no caminho ele continua a olhar para os meus joelhos
nus, finalmente estica-se, toca-lhes e pergunta se eu gostaria de ir para casa com ele?”
(p. 20). Ela coloca os dois relatos lado a lado. Em seguida, ela tira a sua própria
conclusão política: “O amor pode ser um meio de camuflar a brutalidade por algum
tempo” (p. 21).
Shedding é um catálogo de perguntas e dúvidas, outra história de processo, mas uma
que leva à solidão em vez de luta coletiva. A corporalidade e a recuperação da
experiência corporal são o tema central. “Embora ocasionalmente eu tenha a sensação
que poderia ocupar o meu corpo todo, eu fui, no entanto, expulsa dele pedaço por
pedaço” (p. 6). A secção final, “Mulher Cabaça”, que é escrito na terceira pessoa,
descreve a mulher que, no fim, tomou posse do seu corpo e, portanto, de si mesma: “Eu
sou minha própria mulher” (p. 118). Esta, finalmente, é a mulher que controla a sua
própria realidade biológica e, portanto, psicológica. A liberdade, de acordo com Stefan,
começa no corpo solitário da mulher solitária. E, significativamente, ela está sozinha, a
falar, triunfantemente, apenas para si própria. O tema da corporalidade, penso eu,
deveria ser considerado mais amplamente do que Stefan sugere. Certamente, como
mulheres individuais, o direito de controlar os nossos próprios corpos é crucial; mas
temos, também, como mulheres, um corpo político coletivo e este corpo é explorado,
vendido, consumido, exibido em todos os lugares em público – em galerias de arte, em
outdoors, em livros e filmes. A liberdade do corpo é para as mulheres um caso público
assim como privado, e uma questão coletiva assim como também uma individual.
O livro por trás do de Stefan é A dialética do sexo (1970) de Shulamith Firestone, que o
seu atual amante se recusa a ler “‘Por que é que não me podes apenas dizer o que lá
69

está, que é tão importante?’ perguntou ele; ‘Não compreendo como é que podes apenas
Página

escrever um ou dois livros sobre todos os teus problemas e esperar que eu os leia!’” (p.
58). O texto de Stefan é sobre a transformação do que os homens veem como problemas
das mulheres em política feminina. A redefinição da sexualidade começa com uma
análise das formas como as mulheres deixam de ser humanas quando servem os
homens.

Uma delas beijou apaixonadamente, loucamente, tanto que eu senti dentes, somente
dentes – e eu beijei apaixonadamente, loucamente.
Outra beijou suavemente e não pensou em nada mais, adolescente e imatura e eu
beijei suavemente, madura. (p. 35)

Stefan examina cuidadosamente a qualidade da paixão entre as mulheres. Ela não ergue
a bandeira do sexo lésbico; em vez disso, faz mais perguntas. O erotismo torna-se um
mapa sem marcadores. “A imensidão do território inexplorado... uma nova linguagem
de palavras de pele” (pp. 74, 86). Isto é notavelmente semelhante à metáfora do “país
que não tem idioma/não tem leis” na sequência lírica de Adrienne Rich, “Vinte e um
poemas de amo”. Rich também faz perguntas em vez de resmungar com a leitora cheia
de certezas:

tudo o que fazemos juntos é pura invenção, os mapas que eles


nos deram estavam desatualizados há anos... estamos a conduzir
no
deserto perguntando-nos se a água se irá aguentar143

e ela persegue a metáfora geográfica noutro poema do mesmo volume, “Cartografias do


silêncio”. Tanto Rich como Stefan estão cientes de que o seu assunto não está escrito,
que não existem regras.
O texto de Stefan, como o de Millett e de Meulenbelt, localiza as raízes do movimento
de libertação das mulheres nas revoluções sexuais e políticas na década de 60. Ela
desleixa-se nas mesmas camas de esquerda e tem um amante negro que lhe dá para ler
Cleaver e Malcolm X, depois usa o seu corpo, diz ele, para “excitação e lubrificação”
(p. 29). Os comentários de Stefan ao complexo cruzamento entre racismo e sexismo são
selvagens e ocasionalmente ofensivos. O seu amante negro trata-a tão mal como os
homens brancos. Que os negros podem ser machistas não é surpresa, especialmente não
para as mulheres negras, mas o comportamento do seu amante negro, acho eu, tem um
significado político diferente, que Stefan não examina. Ela diz, “uma vítima de
repressão não trata necessariamente as outras vítimas de opressão mais humanamente”
(p. 28). Isso é certamente verdade; mas nós não nos podemos apropriar da dor como
Stefan faz quando escreve “as mulheres são os pretos de cada nação. Este foi o meu
grito de guerra quando expus o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir e o Manifesto de
Valerie Solanas debaixo do meu braço” (p. 32). Também argumenta que, para as
mulheres, “o seu sexo é a cor da sua pele” (p. 77). Ambos os comentários negam a
realidade do racismo contra as mulheres negras. O racismo e o sexismo partilham uma
estrutura ideológica insana semelhante à do preconceito; mas as mulheres brancas
simplesmente não sofrem racismo porque são brancas. Stefan escreveu em meados da
década de 70 antes de haver um movimento autónomo visível e vocal de mulheres
negras que desafiavam o movimento feminista branco, apontando que não partilhavam
nem prioridades feministas brancas nem os termos de referência feministas brancos.
Mas as atitudes de Stefan têm sido a moeda comum entre as mulheres brancas por
70
Página

143
Adrienne Rich, The Fact of a Doorframe: Poems Selected and New 1950-1984 (New York, Norton,
1984), p. 242.
muitos anos. Audre Lorde lembra o seu mal-estar aquando da negação da sua cor negra
pela sua amante branca: “Até mesmo Muriel parecia acreditar que como lésbicas,
éramos todas forasteiras e todas iguais na nossa comunidade estranha. ‘Somos todas
pretas’, costumava dizer e eu odiava ouvi-la dizer isso. Era uma doce ilusão baseada em
poucos factos, as formas nas quais era verdade definharam na sombra dessas muitas
maneiras em que sempre seriam falsas.”144 Lorde usa a sua experiência de racismo,
heterossexismo e homofobia para informar os outros. Sendo uma lésbica negra, é
marginal para a sua própria comunidade negra e é duplamente ostracizada por uma
sociedade branca que é racista e sexista. Mas Lorde usa esse estatuto cultural marginal
para analisar com clareza e vigor as estruturas que a colocaram lá. Nos seus
agradecimentos para Zami, Lorde agradeceu a “Barbara Smith pela sua coragem em
fazer a pergunta certa e pela sua fé em que ela teria resposta”. O que aconteceu foi:

Zami? Bem, você sabe como eu comecei a escrever este livro... a primeira vez que
conheci Barbara [Smith] foi... numa reunião da National Book Association. Eu tinha
ido lá, e esta bela mulher negra levantou-se e disse “Eu sou uma lésbica negra crítica
literária feminista, querendo saber se consigo viver para contar a história” e eu estou
sentada na plateia a pensar, não é querido?; o que é que ela quer dizer “Se consigo
viver para contar a história” Eu vivi isto!... E eu disse à Barbara, “Bem, eu vou contar
essas histórias.”145

A resposta de Lorde vai ao encontro de um pedido bastante específico da comunidade


de mulheres negras. No fim do seu ensaio Towards a Black Feminist Criticism, Barbara
Smith pede um livro que tenha raízes e que reflita a sua experiência. “Eu quero
expressar finalmente o quanto mais fácil seria tanto o meu acordar como as minhas
horas de sono, se houvesse um livro na existência que me dissesse algo específico sobre
a minha vida. Um livro baseado na experiência de lésbica negra e feminista negra,
ficção ou não-ficção... quando tal livro existir, então, cada uma de nós não só saberá
melhor como viver, mas também como sonhar.”146 Ela exige o livro por trás do qual não
existe outro livro. Então, Audre Lorde está a escrever, muito explicitamente, para
mulheres negras e lésbicas negras. Ela sabe que todas as pessoas oprimidas precisam de
mito e de história para nos dar continuidade e autoridade; um orgulho nos nossos atuais
“eus”. E assim ela dá à sua comunidade um novo mito – “Zami: Um nome das ilhas
Carriacou para as mulheres que trabalham juntas como amigas e amantes” 147 e,
portanto, uma nova maneira de se definir; um nome que tem origem na cultura negra
dos índios americanos, não na cultura dos brancos.
Lorde redefine confiantemente o triângulo freudiano de mãe, pai, filho, no
desdobramento da construção da sua identidade. As mulheres que lhe deram forma –
“todas as mulheres que eu sempre amei deixaram a sua impressão em mim” (p. 255) – e
são as mulheres da sua família, que lhe passam a herança: “senti o triângulo milenar de
mãe, pai e filho com o ‘eu’ na sua essência eterna, alongar e nivelar para fora na tríade
elegantemente forte da avó, mãe, filha... (p. 7). Este é o padrão aceite de criar os filhos
em muitas famílias índias; muitas vezes os laços mais próximos que as crianças irão
forjar será com a avó ou com mulheres mais velhas da casa. Curiosamente, eu tenho

144
Lorde, Zami, p. 205.
71

145
“No, we never go out of fashion ... for each other”, Audre Lorde entrevistada por Dorothea, Jackie Kay
e Uma, Spare Rib, no. 149 (November 1984), pp. 26-9.
Página

146
Barbara Smith, Towards a Black Feminist Criticism (1977; Trumansberg, NY, The Crossing Press,
Out and Out Books, Pamphlet no. 5, 1980).
147
Lorde, Zami, p. 255.
assistido a este padrão cultural que se está a reproduzir dentro da minha própria família.
Nós somos índios brancos, mas o padrão prevalece. A minha mãe vive agora muito
perto da sua nora e cuida das suas duas netas. Ela assumiu que era importante e natural
que ela devesse fazer isso. Na Jamaica muito poucas mulheres jamais esperariam educar
os seus filhos sozinhas.

A mãe de Lorde domina a sua infância e o processo de definição do que significa ser
uma mulher e do que significa ser negra começa com as experiências da sua mãe. Ser
negro não é apenas uma categoria política, uma definição de política orgulhosamente
escolhida, é também como se é visto por racistas brancos. Linda Lorde era pálida o
suficiente para passar por “espanhola”, mas o dono da casa de chá onde trabalha vê o
seu marido. “Quando o dono o viu, percebeu que a minha mãe era negra e demitiu-a
logo ali” (p. 9). Ser negro não descreve necessariamente apenas a cor da sua pele,
também está relacionado com a comunidade onde se habita. Linda Lorde não pode
proteger os seus filhos do racismo e a sua incapacidade de mudar essa condição de ser
significa que ela deve usar a única arma que tem. Ela simplesmente insiste em que isso
não acontece. “Tantas vezes abordou o mundo para mudar a realidade. Se você não
pode alterar a realidade, altere a percepção que tem dela” (p. 18). Para Audre Lorde ser
negra é um processo de se tornar: “eu cresci negra...” (p. 58) e um processo de
consciencialização gradual. Cada experiência de racismo deu-lhe um novo significado
do que é tornar-se negra. Na fábrica de fitas de Stamford “era procedimento padrão na
maioria das fábricas de ‘software’ contratar trabalhadores negros durante três semanas
e, em seguida, demiti-los antes que eles aderissem ao sindicato e contratar novos
trabalhadores” (p. 123). O racismo afeta todas as áreas da sua vida. E Lorde vem a
perceber que ser inteligente e aspirar a uma educação de branca significa que lhe foi
negada a sua própria história de negra. Ela nunca ouviu falar de Crispus Attucks. “Eu
tinha sido ensinada por alguns dos historiadores mais altamente considerados no país.
No entanto nem uma vez ouvi ser mencionado o nome do primeiro homem a cair na
Revolução Americana, nem mesmo me foi dito que ele era negro. O que é que isso quis
dizer sobre a história que eu tinha aprendido?” (p. 138).
Lorde foi uma mulher gay no período antes de Stonewall, uma lésbica muito antes do
feminismoo lésbico ser um movimento político.148 Isto faz a sua análise da sua própria
sexualidade um pedaço de história. A descrição do seu primeiro encontro sexual com
uma mulher é erótico e cómico, mas é, ela insiste, como um baile, “como se eu. . . me
fosse lembrando do corpo dela, em vez de o aprender profundamente pela primeira vez”
(p. 139). O lesbianismo, curiosamente, nem sempre é considerado uma ameaça, porque
na comunidade negra onde ela mora é inconcebível que uma mulher possa levar uma
vida inteira com outras mulheres. A mãe da sua primeira amante, Cora, não está
alarmada; simplesmente se recusa a levar o relacionamento a sério, e a estrutura de
poder entre homens e mulheres é tal que a atitude de Cora faz todo o sentido. “As
amigas são boas, mas o casamento é o casamento” (p. 142). Encontrei este ponto de
vista muitas vezes. Uma amiga minha muito jovem assumiu-se como lésbica. Eu fui à
festa do seu 18º aniversário que foi realizada na casa dos seus pais, com a sua mãe a

148
“É agora do conhecimento comum que o movimento de libertação gay começou em Nova Iorque em
junho de 1969, quando as “rainhas” no bar Stonewall lutaram contra a repressão policial, e pela primeira
72

vez na história os homossexuais começaram a manifestar-se numa escala maciça. O movimento espalhou-
se como um incêndio florestal, em primeiro lugar nos Estados Unidos, e logo a seguir no resto do mundo
Página

ocidental. Nesta intensa luta para o reconhecimento social da homossexualidade, formou.se uma certa
consciência gay.” Come Together: The Years of Gay Liberation 1970-73, organizado e prefaciado por
Aubrey Walter (London: Gay Men’s Press, 1980), p. 7.
cozinhar. Enquanto vimos dezenas de lésbicas a dançar na relva, a mãe dela disse-me:
“bem, pensamos que é uma ideia muito boa na fase em que está. As suas amigas não a
podem engravidar e não lhe vão bater, mas é claro que esperamos que…” Cora e mãe
da minha amiga fizeram uma separação absoluta entre a sexualidade erótica e o negócio
sério de casar por dinheiro, estatuto, poder, segurança e crianças. E ambas consideravam
o lesbianismo como um fenómeno de adolescentes.
A aventura de Lorde no México quando era uma jovem mulher é crucial para a sua
educação política e sexual. O México é, portanto, um espaço psíquico, tanto como outro
país qualquer. Aqui, ser negro é também ser bonito: “Foi no México que eu parei de me
sentir invisível” (p. 173). E é aqui que ela se torna amante de uma mulher muito mais
velha que tinha cancro da mama e que tinha sobrevivido a uma mastectomia radical e a
radioterapia. É Eudora, a Amazona, que é uma das professoras de amor de Lorde.
Eudora desempenha um papel profético na vida de Lorde. Anos mais tarde, ela regista a
sua própria experiência de cancro e da mastectomia:

Eudora Garrett não foi a primeira mulher com quem eu tinha partilhado o calor do
corpo e impetuosidade, mas foi a primeira mulher que me envolveu totalmente no
nosso amor. Lembro-me da hesitação e da ternura que senti quando toquei no local oco
cheio de cicatrizes profundas sob o ombro direito e sobre o seu peito, a noite em que
ela finalmente partilhou comigo a última dor da sua mastectomia no claro e intenso
calor da nossa primavera mexicana. Eu tinha 19 anos e ela tinha 47. Agora tenho 44 e
ela está morta.
Eudora surgiu no meu sono na noite antes da cirurgia naquele frio e minúsculo
quarto de hospital tão diferente do seu quarto brilhante, quente e em desalinho em
Cuernavaca, com o seu ego magro de boca-de-leão e o seu sorriso torto e intervalo
nos dentes e demos as mãos por um bocadinho.149

Lorde transforma as suas amantes em mitos: Eudora é a Amazona, Afrekete, a deusa


africana. O seu texto tenta criar uma nova linguagem do corpo que redefine a conjunção
convencional da sexualidade e dos alimentos. Ela e a sua amante negra, Afrekete,
transformam-se em todos os exóticos e sensuais frutos indianos do Oeste e fazem parte
da memória histórica de Lorde: taioba, mandioca, plátano, banana madura de dedo
vermelho, óleo de coco, pera abacate. Mas elas também se cobrem literalmente de
frutos, enquanto fazem amor. Como Lorde aponta nos seus tons mais prosaicos,
“Depois tivemos de nos levantar para reunir os caroços e as cascas das frutas e
colocamo-los dentro de sacos para deitar fora mais tarde no lixo, porque se os
deixássemos perto da cama por algum tempo, iriam atrair hordas de baratas...” 150 Esta é
uma grande força na escrita de Lorde: os níveis do metafórico e real são constantemente
fundidos. Afrekete, a erótica deusa negra é, também, Kitty de Atlanta, Geórgia, que tem
uma filha de sete anos e fuma Lucky Strike. E isto significa que ela homenageia sempre
a mulher em particular, mesmo quando a recria como uma figura mítica de poder e
autoridade.
A necessidade de Lorde de ter outras mulheres negras e a demonstração das formas em
que elas têm desempenhado um papel essencial na sua sobrevivência é eloquentemente
expressa. Ela não é de todo sentimental sobre o mundo homossexual nos anos
McCarthy, “ ... as lésbicas, viris como homens, odeiam as mulheres e a sua própria
73
Página

149
Audre Lorde, The Cancer Journals (San Francisco, Spinsters Ink, 1980), p. 35. As minhas referências
são a edição dos EUA, mas também há uma edição britânica publicada por Sheba.
150
Lorde, Zami, p. 251.
feminilidade com uma vingança...” (p. 225, itálico de Lorde). Mas o facto é que a
sobrevivência é uma luta: “já era bastante difícil ser negra, ser negra, mulher e
homossexual. . . ” (p. 224); e Lorde regista muitas das mulheres que não sobreviveram –
dá à sua narrativa uma sabedoria rara e generosidade de espírito. Lorde entende porque
tantas mulheres foram espancadas ou cometeram suicídio. Aqui ela explica o porquê.
“Todas nós que sobrevivemos os anos comuns tínhamos que ser um pouco estranhas.
Passámos grande parte da nossa jovem feminilidade tentando definir-nos como
mulheres – mulheres identificadas antes mesmo de sabermos que as palavras existiam”
(p. 225). Elas tinham uma comunidade, mas não tinham uma política consciente com a
qual se articularem a si mesmas, a sua dor e a sua esperança. Agora, possuindo essa
política, o feminismoo lésbico, Lorde relembra, lúcida, e ela recusa-se a impor essa
política de julgamento sobre a sua comunidade histórica de “meninas-gay” na década de
50.
A mãe de Lorde, que domina a sua infância, não aparece em nenhuma parte das secções
posteriores da sua narrativa, excepto para desaprovar. Ela não diz nada, “mas a minha
mãe poderia fazer ‘nenhum comentário’ mais alto e com a maior hostilidade do que
qualquer pessoa que conheço” (p. 216). No entanto, é dada à mãe a última linha do
livro. “Lá é dito que o desejo de se deitar com outras mulheres é um instinto do lado da
mãe” (p. 256). O seu amor pela mãe foi, em certo sentido, o seu primeiro caso de amor
infeliz. Sei que isto irá confirmar os maiores medos de muitas mães que ainda não
chegaram a termos com o seu antilesbianismo e também sei que existem muitas lésbicas
que barbaramente negariam que o seu amor pelas suas mães é a fonte do seu
lesbianismo, contudo não me parece misterioso que muitas lésbicas tenham ou se
lembrem das mães de poder, integridade e força, que deram às suas filhas uma imagem
de independência, criatividade e vigor, e um exemplo a seguir. A mãe de Lorde, apesar
da sua pobreza e vulnerabilidade e apesar do racismo que perpetuamente faz fronteira
com as suas vidas, dá uma segurança absoluta aos seus filhos através da sua dignidade e
orgulho. “Ninguém escreveu histórias sobre nós, mas ainda assim as pessoas sempre
pediram direções à minha mãe no meio da multidão. Foi isto que me fez decidir em
criança que devemos ser ricos” (p. 18).
Maureen Duffy, uma mulher da geração de Lorde, descreve-se como uma freudiana
bastante ortodoxa e como homossexual em vez de lésbica. Desde 1970 a de lésbicas
tornou-se numa categoria política: homossexual continua a ser uma descrição técnica,
até mesmo médica, da prática sexual. O romance autobiográfico That’s How It Was, de
Duffy é sobre a sua mãe.

Ela foi absolutamente incrível. Uma das coisas que eu peço no final desse livro é
como, tendo uma relação dessas nos seus primeiros catorze anos de vida, alguma vez
se pode recuperar? Quem será capaz de ficar naquele lugar? Como alterar as suas
emoções e a sua orientação? Existem certos padrões que aparecem demasiadas vezes
nas infâncias dos homossexuais para serem acidentais – estatisticamente, há
demasiadas mães importantes e pais sem importância.151

O livro estabelece de uma vez o equilíbrio exclusivamente lésbico do eu/ela; a mulher


como sujeito que percebe e como sujeito percebido. A memória de Paddy sobre a sua
mãe é de uma lutadora, uma sobrevivente, que lutou contra a tuberculose toda a sua
vida. Duffy apresenta duas infâncias da classe operária branca, a sua própria e a da sua
74
Página

151
“Maybe it’s because I’m a Londoner…”; Maureen Duffy entrevistada por Rachel Gould, The
Guardian, 5 de outubro de 1983.
mãe, através de uma perspectiva de mudança. Às vezes a criança questiona a sua mãe,
exigindo as histórias, lendas e mitologias da infância dela. Ela é uma criança solitária
em busca de irmãos e encontra-os no passado da sua mãe. Mas as duas infâncias
interligam-se de formas sinistras. Memórias sentimentais de travessuras engenhosas,
energia e inventividade criativa, superando a inércia da pobreza, da fome e da doença
podendo tornar-se seriamente qualificadas quando Paddy tenta recriar a vida da sua mãe
com os seus meios-irmãos, os três Willerton. Violência fortuita, roubo, mendicidade e
crime tornam-se na sua experiência diária. Paddy vê os rapazes como “animais”: eles
comem como “selvagens famintos”.152 Com o desprezo de uma recém-educada ela goza
com estes “bárbaros”. O efeito disto é pôr seriamente em questão o mito de infâncias da
classe operária britânica tal como a da sua mãe onde a pobreza, a ignorância e a dor são
mantidas à distância por uma forte consciência, solidariedade e alegria de classe.
Duffy escreve sobre o processo através do qual Paddy alcança a tão cobiçada
alfabetização cultural das classes médias para escrever a sua história. O livro tem como
público-alvo as classes médias. Isso tem sérias implicações para a sua política. A cena
no consultório de raios x torna-se uma metáfora assustadora no retrato da vida da classe
trabalhadora de Duffy.

Eu olhava fascinada. Eram mulheres de todas as idades, despojadas da cintura para


cima, as suas roupas penduradas desordenadamente sobre elas, cabelo torto.
Nenhuma delas se tinha coberto como nós. Sentaram-se com os seios caídos, os seus
rostos distorcidos com cavernas de sombra sob afloramentos destacados do nariz,
ossos da bochecha e mandíbula, como as fotos de prostitutas que aguardam nos
livros de grande arte de pintores franceses que tinha estudado na escola: as mesmas
posturas apáticas, os organismos irregulares que me deram um choque de horror
compassivo. Sentámos ao lado delas no final da fila.
Quando os seus nomes eram chamados elas iam para a frente, subiam para a máquina
e a placa baixava. Então quando a radiologista carregou num botão, olhámos para
dentro delas, caixa torácica negra, a coluna vertebral, os órgãos sombrios enchiam o
ecrã diante de nós. (p. 149).

O narrador, a sua mãe e os leitores, todos se tornaram voyeurs. As mulheres são


brutalmente observadas: descompostas, flácidas, distorcidas, apáticas. Só Paddy e a sua
mãe é que se cobriram. A nudez é sempre dolorosamente vulnerável, e o narrador
reforça isso pela oposição perpétua de “nós”/“elas” em toda a descrição. Assim, à parte,
bem vestidas, também nós espiamos aqueles corpos vulneráveis como conhecedoras.
Tornamo-nos os clientes, os consumidores, os homens que vêm as prostitutas à espera.
Nós somos o público da classe média, seguras na nossa apta compreensão da
comparação com as obras dos pintores franceses. Nós vemos os corpos destas mulheres
por dentro, mas não as vemos por inteiro, como indivíduos discretos com suas próprias
histórias.
A classe da qual vêm Paddy e a sua mãe é a crescente aristocracia da pobreza: são do
East End, Cockneys profundas, com intenção de fazer o bem. “Elas eram inteligentes e
mais pequenas, presas aos seus princípios e aos seus companheiros, trabalhando e
bebendo muito. Os filhos dos seus filhos são professores, enfermeiros e dramaturgos de
televisão” (p. 22). Os Willerton, por outro lado, são da classe operária rural de
Wortbridge: enormes, analfabetos e fisicamente repugnantes. Ted Willerton, o marido
75

da mãe, tem “dedos como pequenas salsichas” (p. 85) e “grandes calos esculpidos nas
Página

152
Maureen Duffy, That’s How It Was (1962; London, Virago, 1983), p. 107.
palmas das mãos, que pareciam crescer novamente durante a noite, como o fígado de
Prometeu” (p. 86). Não são só os calos crescentes que marcam o homem como
deformado aos olhos de Paddy; é também o facto de que ele mal sabe assinar o seu
próprio nome e nunca ter ouvido falar de Prometeu. As percepções de Paddy martelam-
no de volta para a rocha da sua ignorância e analfabetismo.
A tensão e a ambiguidade do tema de Duffy reside no facto de que ela está a fazer a sua
reputação literária longe do povo que ela tem desprezado e abandonado. E ela sabe
disso. “A frase ‘traidor da classe’ tem andado sempre presente à minha volta – o
conceito foi discutido, utilizado em conversa. Não era aplicado a mim, mas sinto-me de
certa forma divorciada. Não é apenas uma coisa pessoal, penso eu, mas uma camada de
experiência na nossa sociedade.”153 A própria Duffy sugere que devemos ler That’s
How It Was com suspeita. As lacunas, as ausências, os impactos do livro são
cuidadosamente colocados. Os motivos que levaram Louey a casar com Ted Willerton
não são completamente claros. Paddy, naturalmente, gostaria de pensar que ela tenha
feito isso inteiramente para o benefício da sua filha, mas nunca vemos o interior da
mente de Louey. A sua presença física frágil e o espírito inflexível dominam o livro.
Mas quem ela é, o que ela sente, e como foi para Louey Millar, Louey Mahoney, Louey
Willerton nunca é revelado. Ela é observada com paixão possessiva, mas nunca é
compreendida.
No seu prefácio à edição pela Virago de 1983, Duffy descreve a sua própria educação e
a sua ambição de se tornar uma escritora. O seu herói foi Keats. Ele também foi da
classe operária, lutou para se educar a si próprio, nutriu enormes ambições como poeta e
foi assombrado pelo espectro da tuberculose. A doença que a sua mãe evita, confronta,
ilude todos ao longo da infância de Paddy está sempre presente na vida da sua filha e no
seu desejo de escrever. Mas, ao contrário de Keats, Duffy enfrentou mais do que a
sombra da doença. Havia outras ameaças à sua ambição: “A pressão para se conformar,
para sair da escola e ir para o moinho ou para a fábrica, para arranjar um homem foi
constante, excepto quando eu estava na escola ou sozinha com minha mãe” (p. xi). O
primeiro caso amoroso de Paddy foi com a mãe. E as suas paixões infantis pelos seus
professores tomam a mesma forma de amour courtois que caracteriza a expressão do
seu amor pela sua mãe. “Ela era o castelo sob cerco e eu era a defensora desesperada a
ferver o óleo para mandar o atacante a uivar de dor de volta para se proteger” (p. 46). A
sua paixão por Miss Tyson é descrita em clichés cómicos. “Os seus olhos eram como
mares cinzentos, senti-me a afogar” (p. 182). Mas Paddy corteja ativamente outras
mulheres. Ela é a mulher que escolhe, a mulher que age; não é a mulher que espera.
Escolher mulheres foi escolher o ostracismo da sua classe e da norma cultural da sua
comunidade, mas também foi escolher educação, independência e liberdade. E o anseio
por liberdade vem diretamente da mãe que nunca decepciona um filho ou uma filha.
“Eu gostaria que fosses para a faculdade. É a única coisa que eles não te podem tirar, a
educação. Não vais ser empurrada como eu tenho sido” (p. 86). A educação transforma-
se em legítima defesa.
That’s How It Was é biografia e autobiografia. A mãe de Paddy molda o livro que
começa com a sua infância e termina com a sua morte. A personagem anónima da vida
de uma mulher da classe operária branca, a sua história, é transformada numa batalha
épica sobre uma heroína cujas antagonistas são as péssimas habitações, a pobreza, a
sujidade, a ignorância, a doença. Isto é o que Virginia Woolf descreve como “o país
escuro” da ficção. Escuro aqui, acho eu, significa sombrio e obscuro.
76
Página

153
Gould, “Maybe it’s because I'm a Londoner...”.
No início do século XIX, os romances femininos eram fortemente autobiográficos.
Um dos motivos que as levava a escrever era o desejo de expor o seu próprio
sofrimento, para defender a sua própria causa. Agora que este desejo não é tão
urgente, as mulheres estão a começar a explorar o seu próprio sexo, a escrever sobre
mulheres como as mulheres nunca antes foram escritas... as suas vidas são muito
menos testadas e examinadas pelos processos comuns da vida... A sua vida tem uma
personagem anónima que é desconcertante e intrigante ao extremo. Pela primeira vez
este país escuro está a começar a ser explorado na ficção.154

A psicanálise é uma teoria sobre a construção do “eu”; uma hipótese, um mapa possível
para este país escuro. É uma explicação sugerida de como podemos adquirir uma
identidade e assumir os nossos lugares nas categorias normativas: mãe, pai, mulher,
homem. A psicanálise forneceu a única teoria coerente da identidade psíquica; de como
é que nós nos interpretamos e de como é que nos tornamos quem somos. A maioria das
mulheres provavelmente concordaria com a conclusão de Freud de que “a feminilidade”
não é facilmente adquirida; e mirabile dictu, algumas de nós não conseguem adquiri-la
de todo. Agora dizer que uma teoria é coerente não é dizer que é precisa ou útil. As duas
objeções que reaparecem na maioria das vezes em ligação com o fascínio feminista pela
psicanálise são, primeiro, que o discurso em si cria uma elite teórica que fala uma língua
indecifrável, aprendida com os homens e, portanto, sob a sua influência maléfica, não
tomam parte em fornecer as suas bandeiras do poder feminino ou administrar a Linha de
Crise de Violação; segundo, que a teoria cai numa espécie de essencialismo psíquico:
nós resolvemos inexoravelmente as nossas dificuldades edipianas e acabamos, quer
queiramos quer não, mulheres e homens, feminino e masculino, com todas as nossas
fobias e horrores reprimidos devidamente adquiridos na infância intactos. Estas duas
críticas na verdade estão ligadas, as mulheres que estão empenhadas em recuperar os
discursos masculinos não são geralmente aquelas que optam por estar na linha da frente
da política de Apenas Mulheres. E, por conseguinte, é do seu interesse descobrir um
alicerce do determinismo psíquico que torna irresistível a masculinidade e a
feminilidade. Se a opressão das mulheres é realmente causada apenas pelo facto da
diferença sexual, então a agitação política, social e económica pode ser provada
completamente desnecessária. Tudo o que temos de fazer é dividir estas identidades
psíquicas, desconstruir a histórica, quase metafísica, oposição polar do masculino e
feminino, aplicando muitas de teorias complexas. Mas noto que ninguém se dá ao
trabalho de desconstruir a diferença psíquica entre negros e brancos, ou entre o
proletariado e a burguesia. Estas diferenças são questões de poder, político, social e
económico e só podem ser alteradas por uma luta confusa e pela redistribuição da
riqueza.
Eu percebo que estas objeções não fazem justiça à aventura do pensamento de Freud,
nem à originalidade e ao esforço especulativo de muita escrita psicanalítica; mas o caso
amoroso feminista com a teoria psicanalítica não desafiou ou transformou
substancialmente os termos em que, como mulheres, vivemos as nossas vidas.
Encontro-me em grande sintonia com a crítica inteligente de Lynne Segal sobre a teoria
psicanalítica e a sua conclusão: “Também não vejo razão porque uma noção mais
complexa do conflito psíquico, a fragmentação e a instabilidade na identidade sexual
precise enfraquecer ou negar uma oposição feminina consciente e coletiva a muitos dos
77
Página

154
Virginia Woolf, “Women and Fiction” (1929), in Women and Writing, seleção e introdução de
Michèle Barrett (London, Women’s Press, 1979), pp. 49-50.
locais do poder dos homens”.155 Acredito, também, que isso pode ser demonstrado pela
forma como as feministas têm transformado o género da autobiografia. A autobiografia
é central para a prática feminista. Como um género, a autobiografia é também sobre a
construção do “eu”; mas não está tão intimamente ligada à psicanálise como pode no
início parecer. A autobiografia feminista analisa a experiência pessoal, reavalia o trivial,
o normal, o anónimo e torna visível – como um processo – as forças de opressão, em
vez de simplesmente nomeá-las ou defini-las como formas estáticas. Assim, June
Levine em Sisters: The Personal Story of an Irish Feminist pode demonstrar a forma
como o seu marido tentou destruí-la, com um pequeno, mas brutal detalhe que ilumina
uma extensão da violência sexual dentro do casamento. A irmã de Levine, depois de a
visitar ao Canadá, relatou à sua família na Irlanda, “‘eles têm uma linda cozinha com
balcões de fórmica e ele foi cortar pão e ela pediu-lhe para usar a tábua. Ele
deliberadamente serra a fórmica. Eu própria teria espetado a faca nele.’” 156 O processo
de libertação e de transformação, com todas as suas contradições dolorosas, também
pode ser decretada: e isso afirma a possibilidade de uma mudança radical, uma
esperança que nunca podemos abandonar enquanto nos chamarmos feministas. O
problema da psicanálise reside na sua ligação histórica entre a ciência médica e a
alegação de que a análise por si só pode fornecer algum tipo de “cura” para os distúrbios
psíquicos. Porquê ao verbalizar o inconsciente – se realmente existe tal coisa, como eu
duvidei no início deste capítulo, pois a sua existência parece-me ser tão hipotética como

78

155
Lynne Segal, Is the Future Female? Troubled Thoughts on Contemporary Feminism (London, Virago,
Página

1987), p. 128.
156
June Levine, Sisters: The Personal Story of an Irish Feminist (Swords, Co. Dublin, Ward River Press,
1982), p. 63.
a da alma157 – faz necessariamente alguém se sentir melhor sobre qualquer coisa? E
porque é que o facto de às vezes proporcionar mudanças extraordinárias poderá não ser
mais do que uma feliz coincidência? Não poderia o confessionário ter o mesmo efeito
em alguns casos? Estou encantada por descobrir que o meu ceticismo é partilhado por
psicanalistas. Eis as dúvidas de Stuart Schneidermann:

Pode ser que não exista nada como uma cura quando estamos a falar da psique. O
conceito de cura em psicanálise pode voltar a uma crença de que a psique deve seguir
a soma, que podemos ter o mesmo grau de certeza numa coisa que pensamos que
podemos obter com a outra. A psicanálise tem que deixar de pensar em como as
pessoas vivem as suas vidas, em como elas se comportam.158

Eu acho que isto está certo, porque então todas as acusações contra a psicanálise como
uma terapia de normalização que tem como objetivo a domesticação do comportamento
antissocial para categorias aceitáveis de masculino e feminino tornar-se-ia
desnecessária. E ser não-convencional e rebelde, lésbica ou gay não iriam ser lidos
automaticamente como sinais de que o sujeito é doente, louco ou mau. June Levine
detestava ser dona de casa. O marido disse-lhe que era louca e entregou-a às profissões
médicas para ser analisada, drogada, levar choques, destruída. Ela não precisava de
análise. Ela precisava da sua liberdade. Uma amiga minha lésbica negra foi ser
analisada, acredito que pela sua própria vontade. O analista recusou o seu amor por
mulheres como uma fixação nos seios da sua mãe. Ela foi-se embora. Disse-me, “eu
sabia que ele estava errado.” As duas as mulheres eram consideradas doentes. A análise,
disseram os especialistas, iria curá-las. Ambas sobreviveram; mas algumas de nós
deitam-se no sofá a passar cheques, durante anos.
No entanto, as ideias especulativas da psicanálise, como uma teoria e não como uma
disciplina médica, foram utilizadas por algumas feministas como um instrumento para
dar sentido às suas vidas. Duas autobiografias relevantes aqui são Mirror Writing: An
Autobiography, de Elizabeth Wilson e Landscape of a Good Woman: A Story of Two
lives?159,de Carolyn Steedman. Ambas as escritoras usam a forma da autobiografia para
perturbar as nossas expectativas do género literário e para questionar as premissas
incorporadas nas crónicas feministas da década de 70. Ambas as mulheres ruminam
sobre as contradições da sexualidade, da identidade, do relacionamento e da memória,
que as suas vidas produziram. E as mulheres são académicas: o texto de Steedman tem
aparatos de notas de rodapé e bibliografia; Wilson tem uma modesta página de notas,
mas propõe reflexões demoradas e sábias sobre variados assuntos, incluindo Proust,
psicanálise e autobiografia feminista, dentro do texto. Ambos os livros são muito mais
inseguros na sua finalidade e no seu significado, do que as crónicas feministas da
década de 70, que tinham sempre Jerusalém firmemente definida e bem na mira. Wilson
e Steedman descobrem um pântano de dificuldades e contradições que parecem, para
elas, praticamente insolúvel.

157
“Psique” é, claro, a palavra grega para designar a alma. E a psique, como mente imaterial, e a alma
têm estado sempre ligadas. Mas muitas pessoas que duvidam da existência de uma, defendem a outra, e
atribuem-lhe grandes e influentes poderes. Isto é muito interessante.
79

158
Stuart Schneidermann, Jacques Lacan: The Death of an Intellectual Hero (Cambridge, Mass., Harvard
University Press, 1983), p. 57. Este livro é uma autobiografia do encontro de Schneidermann com Lacan
Página

e as suas ideias. Lacan era o seu mentor, ídolo e analista.


159
Elizabeth Wilson, Mirror Writing: An Autobiography (London, Virago, 1982); Carolyn Steedman,
Landscape for a Good Woman (London, Virago, 1986).
O tema de Wilson é o mistério da sua própria identidade. O seu texto tem a lógica da
memória ou dos sonhos. Ela recria momentos isolados, um período, uma atmosfera,
uma atitude, intensos e memoráveis. Quando se lembra da sua casa no pós-guerra, ela
diz da rua, “vivemos com vistas descamadas do estuque...” (p. 9) e da década de 60,
“sentávamo-nos no soalho, que estava pintado de creme e cheio de colchões e
almofadas. Os quartos tinham paredes castanhas escuras e candeeiros com muitas
franjas” (p. 216). A busca de Wilson por uma identidade é também uma busca de
autenticidade, continuidade e confiança. Não é tanto uma essência imutável como uma
certeza, uma afirmação: Sim, esta é quem eu sou. Ela descreve-se perpetuamente nos
termos de Sartre, como amorfa, viscosa e pegajosa. Um dos seus amantes tem o dom
mágico. “Uma vez, muito tempo depois, vi-o num café argelino em Paris. Ele não tinha
mudado. Ali estava alguém com identidade!... A sua identidade permaneceu
implacavelmente clara, impassível...” (p. 47).
Wilson questiona a ligação entre subjetividade e verdade que foi certamente assumida
pelas mulheres que escreveram os seus depoimentos feministas na década de 70. É a
identidade, de facto, contínua, um processo político, como Anja Meulenbelt afirmou
que era, ou terminamos e reformamos como seres diferentes? Wilson experimenta
identidades diferentes, como máscaras: como uma Coisa Jovem Brilhante em Oxford,
como uma Assistente Social Psiquiátrica Séria, como uma Escritora e como uma
Lésbica. Todas elas são problemáticas. Sendo uma escritora de repente levanta a
questão do género. Ela não é levada a sério. Ser assistente social psiquiátrica envolve
um terrível abismo entre um mundo público de respeitáveis normas burguesas e o papel
de femme damnée de ser lésbica. A identidade lésbica é particularmente repleta de
ansiedade, porque na década de 60 não era uma identidade política, coletivamente
afirmada, mas uma identidade sexual, muitas vezes definida por outros através de
desdém, de medo, de abuso ou das práticas sinistras da profissão médica. E ser lésbica
era ser condenada, maldita, de preferência morta. “Muitas lésbicas rejeitaram a ideia de
serem emparelhadas como masculino e feminino, mas de que outra forma poderíamos
ser definidas?” (p. 145, itálico de Wilson). Ela descreve uma intrigante confusão de
sentimentos e assinala que o problema dos papéis de machona e senhora não era tão
interessante para os homossexuais masculinos. “A expressão da sua sexualidade era o
que lhes interessava. As lésbicas (na década de sessenta, de qualquer forma) mal sabiam
o que sua sexualidade era” (p. 145, itálico de Wilson). Num breve e incisivo artigo,
Beatrix Campbell dá uma ideia de como este território incerto foi lavrado até pelos
debates sobre a prática sexual na década de 1970.

Em Myth of the Vaginal Orgasm, de Anna Koedt afirma-se que os homens foram
obstinadamente resistentes às reivindicações do clitóris, e a autora identificou a
penetração como uma importante fortificação na sexualidade patriarcal. Um dos
efeitos disso foi gerar um sentido de corpos femininos que poderiam aliar as
mulheres heterossexuais, homossexuais e celibatárias. Como já dissemos
anteriormente, o prazer das lésbicas estava na feminilidade, em vez de na recusa do
feminino – algo que heterossexualidade ainda não registou.160

Por trás da prosa cómica, em que o clitóris e a heterossexualidade se tornam agentes


conscientes na luta épica para o prazer sexual, esconde-se uma proposta subversiva: que
a sexualidade feminina e a sexualidade lésbica podem ser exatamente a mesma coisa.
80
Página

160
Beatrix Campbell, “Sex – A Family Affair”, in Lynne Segal (ed.), What is to be Done about the
Family? Crisis in the Eighties (London, Penguin, 1983), pp. 65-6.
Elizabeth Wilson era inquieta como mulher porque era lésbica, pois assume-se que
todas as pessoas são heterossexuais, a menos que se afirmem como gays, e em meados
da década de 60, ainda havia uma divisão absoluta entre ser “normal” e ser “pervertido”.
Portanto, Wilson apreendeu um momento de autêntica identidade enquanto fazia parte
da Frente de Libertação Gay, pois foi aqui que ela alcançou a fusão da identidade sexual
e política, “A Frente de Libertação Gay fundiu e uniu o impossível e declarou ao mesmo
tempo que a homossexualidade era ‘boa’ e que era ‘condenada’” (p. 123). O caso
amoroso de Wilson com a psicanálise estava ligado à sua mística religiosa, à promessa
do conhecimento secreto. E isso, acho eu, é também a base para a paixão do movimento
de libertação feminina por Freud, o conhecimento “que poderá levar à fonte e às origens
da subordinação feminina” (p. 135). A este respeito, os segredos de Freud assemelham-
se ao mito da idade de ouro matriarcal dos ritos das mulheres e dos direitos das
mulheres, a idade dos homens gentis que foram mantidos no seu lugar, um mito que tem
muitos convertidos e adeptos. O capítulo final de Wilson é uma reflexão sobre o
conteúdo da identidade e dos livros por trás do seu livro. É a identidade opaca, como é a
identidade de Gertrude Stein em A autobiografia de Alice B. Toklas (1933) – que é,
claro, versão de Stein de Stein, o “eu” visto de fora, o “eu” observado? Ou é
simplesmente uma máscara, uma memória, um segredo culpado? A autobiografia
feminista reivindica uma nova identidade, uma autenticidade política e sexual dentro da
comunidade feminina. O livro aqui, para Wilson, é The Shame is Over, de Anja
Meulenbelt. “Assim têm as mulheres tentado construir uma identidade coletiva através
de uma experiência partilhada de opressão coletiva.” O que se perde neste processo,
argumenta Wilson, é o “nosso sentido de individualidade e de um passado único, um
‘eu’ único” (p. 154). Não acho que isso seja verdade. A autobiografia feminista
certamente funciona como testemunho; e, como nas nossas sessões de
consciencialização, oferecemos as nossas vidas únicas, a nossa história de que é assim
que pensamos que aconteceu, não apenas para encontrar pontos de referência
partilhados numa experiência isolada e opressiva, sendo socialmente construída como
uma mulher, mas também para redeterminar a nossa vida particular, única, para nos
darmos uns aos outros. Porque se não valorizarmos a vida uns dos outros, como a vida
das mulheres, mais ninguém o fará. Isso faz parte do nosso trabalho como feministas. 161
Creio, porém, que há uma verdadeira dificuldade em estabelecer um equilíbrio entre as
percepções subjetivas e uma política coletiva. Por algum tempo, há alguns anos atrás,
vivi num mosteiro e fui seduzida pela ideia de me tornar freira beneditina
contemplativa. A irmã Anne, exasperada pela minha preocupação com a minha própria
identidade individual, finalmente repreendeu-me: “Olha, Patricia, Deus não nos salva
como indivíduos, Ele salva-nos como povo.” Esta é uma atitude muito católica. Mas o
que a irmã Anne quis dizer foi simplesmente isto: a identidade é construída na relação.
É o produto da comunidade. E eu acho que Wilson está certa quando defende que temos

161
E este trabalho está a ser feito. Veja-se, por exemplo, Shifra: A Jewish Feminist Magazine, números 3,
4 (Chanukkah 5747/December 1986), um relatório sobre o trabalho das mulheres judias no projeto de
história oral de Londres, que visa recuperar e revalidar as vidas de mulheres judias. Este é apenas um dos
numerosos projetos da história feminina na Grã-Bretanha.
Também começámos a construir um arquivo lésbico. O Arquivo Lésbico Britânico, sediado em Londres,
passou por um período particularmente difícil devido a problemas internos e conflitos depois da Escola de
Verão lésbica de julho de1988. Foram feitas acusações de todo o tipo contra duas trabalhadoras
81

assalariadas e a gerência coletiva. A situação foi resolvida temporariamente depois de uma reunião
pública que teve lugar em Londres em janeiro de 1989. Mas o insucesso de manter este projeto a andar
Página

suavemente torna o agradecimento de Caeia March ao Arquivo no seu romance The Hide and Seek Files
(London, Women's Press, 1989) ainda mais triste de ler. Se nós não defendermos e preservarmos a nossa
própria história, mais ninguém o fará.
de construir “uma pluralidade de imagens positivas para as mulheres” (p. 155). 162 Não
podemos ser todas Amazonas, e porque é que queremos ser?
Talvez a obsessão com a identidade, que Wilson descreve como parte da “bagagem sub-
freudiana da cultura ocidental” (p. 136), só se torna problemática quando já não
fazemos parte de uma comunidade fortemente definida? Quando vivia como parte de
uma família alargada eu era firmemente conhecida como a filha do Sr. Duncker. Esta
identidade, na qual eu estava totalmente segura, foi-me dada pelo patriarcado. A minha
insegurança subsequente tem sido saudável e politicamente inestimável. A liberdade
que reivindico como feminista é trabalhar com outras mulheres para criar a minha
própria comunidade. E ninguém nunca fingiu que isto seria fácil.
A última metáfora do Mirror Writing curiosamente muda os termos do interrogatório de
Wilson. Confrontada com espelhos que se refletem uns ao outros para a eternidade
numa exposição de arte, ela hesita. A sua amiga revolucionária Rosa, que passou anos
na prisão pela prática de uma política na qual presumivelmente acreditava, não tem
medo. Ela salta para o chão, a rir. Wilson percebe a sua identidade como um salto de fé,
“o triunfo do momentâneo e vulnerável ‘eu’” (p. 160). Mas não é certamente este o
caso. A identidade de Rosa não é momentânea nem vulnerável, ela sobreviveu à prisão.
A sua identidade é corporal, política, resistente, merecida e triunfante.
A análise de Carolyn Steedman da sua infância na década de 50 e do efeito da vida da
sua mãe sobre a sua é apresentada como um estudo de caso em vez de uma narrativa
pessoal. “Isto não é para dizer que este livro envolve uma busca de um passado ou do
que realmente aconteceu. É sobre como as pessoas usam o passado para contar as
histórias da sua vida.”163 O seu livro é uma desafiante subversão das sentimentais
autobiografias da classe operária, onde as pessoas da classe operária tem uma psicologia
simplificada e unificada e identificam-se fortemente uns com os outros como uma classe
oprimida. Freud e Marx aparecem na textura da sua prosa, mas o livro por trás do seu
livro é outra autobiografia feminista, Taking It Like a Woman, de Ann Oakley, que
nunca pode ser a sua história. “Eu... sinto o doloroso e familiar sentido de exclusão
destas autobiografias de classe média de meninice e feminilidade, inveja daquelas que
pertencem, que podem, como Ann Oakley, usar os contornos da ficção romântica
convencional para contar uma história de vida” (p. 17). O livro de Steedman é sobre a
maneira em que sua história é marginal para todos os discursos interpretativos
convencionalmente usados para descrever a sua vida, “Mesmo o drama psicanalítico foi
construído para descrever as mulheres de classe média” (p. 17). Steedman contrapõe a
sua história com a da menina de agrião do Mayhew e a de Dora de Freud; a criança da
classe operária que sabe o seu valor como trabalhador e traz para casa o dinheiro que
ganha em troca de amor e segurança e a histérica da classe média que sabe que seu sexo
é o seu valor de troca. Eu acho que Steedman tem a intenção de que nós devemos ver
um abismo absoluto entre estas duas histórias. Mas, na verdade, ambas as jovens
mulheres são presas e exploradas dentro das suas próprias situações. A diferença entre
eles é que Dora reclama o poder de sair dos negócios sexuais do seu pai e o negócio que
ele fechou com Freud. Mas depois de tudo isto, tudo o que ela pode fazer é continuar

162
Wilson é ela própria crítica de alguns aspectos do seu próprio texto. Num ensaio intrigante, “Tell It
Like It Is: Women and Confessional Writing”, in Susannah Radstone (ed.), Sweet Dreams: Sexuality,
Gender and Popular Fiction (London, Lawrence & Wishart, 1988), pp. 21-45, sobre Mirror Writing e o
82

seu romance, Prisons of Glass, afirma: “Mas pode ser que na simples rejeição de uma autenticidade
transparente secretamente reivindiquem a verdade ‘superior’ do fluxo pós-moderno de identidade e de
Página

desintegração da experiência. E isso também se pode tornar algo mais do que um imperativo da moda” (p.
42).
163
Steedman, Landscape for a Good Woman, p. 8.
com o seu negócio sexual noutro lugar, dificilmente uma grande liberdade. Quando
muito, a comparação de Steedman demonstra o facto de que a menina de agrião e Dora
são irmãs sob a pele, insistindo nas suas próprias realidades, integridades, dignidades e
grande persistência.
Alguns argumentos estranhos emergem do livro de Steedman. A pobreza da infância da
sua mãe e a sua própria está vinculada nem tanto com o dinheiro, como com as
expectativas, confiança, o sentido perpétuo de exclusão e de não pertença. A sua mãe
operou com uma política de inveja; era “uma conservadora da classe operária cuja
origem era o trabalho tradicional” (p. 8). E o que ela queria eram coisas. Steedman usa
as metáforas prescritivas dos contos de fadas, que, ela argumenta com razão,
fundamentam os mitos modernos de psicanálise, o mundo de príncipes que chegam e
pais que, como reis feudais, têm poder absoluto, para dar sentido aos desejos
insatisfeitos da sua mãe e para explicar a sua recusa de qualquer solidariedade com as
suas origens e o facto de que ela votou com a classe que a excluiu. Mas porque é
estranho que a sua mãe queira coisas? Estamos programados pelo capitalismo a desejar
bens materiais. E Steedman não gasta muito tempo a remoer sobre o facto de que é uma
mulher que o faz, nem especula explicitamente que a marginalidade da sua mãe para a
cultura da classe operária, como a mãe de dois filhos ilegítimos e como um exílio do
norte, poderão ter reforçado a sua decisão de adotar as atitudes da classe à qual podia
aspirar, mas na qual nunca poderia entrar. As preocupações das mulheres não definem
nem influenciam substancialmente os valores da classe operária.
A observação de Steedman sobre a impotência vulnerável do pai contra a autoridade
fora da sua casa, que representa a classe dominante, leva-a a argumentar que o que ele
fez não importa dentro do agregado familiar. O incidente de Édipo ocorreu quando ela
testemunhou um confronto com um guarda de parque de estacionamento que o multou
por ter tirado uma mão cheia de campainhas. Ela não se lembra bem como ele gritou.
“O facto de ele não se importar teve um efeito como este: não acredito no poder
masculino; de alguma forma o ferro do patriarcado não entra na minha alma. Eu aceito a
ideia do poder masculino intelectualmente, claro (e eu vou comer as minhas palavras no
dia em que for violada...) ” ( p . 19). Enquanto eu posso imaginar que deve ser
revigorante e útil não ter o ferro do patriarcado na alma de alguém, questiono esta
análise. Steedman vê o poder masculino em termos de conto de fadas, a ameaça da
violência sexual. Não subscrevo o mito do monólito patriarcal e o Pénis Gigante, mas
eu acho que a violência sexual é uma coluna central no edifício; mas mesmo assim não
é o único meio de exercer o poder. O resto da narrativa de Steedman conta como o seu
pai destruiu as suas vidas pela negação. A sua mãe esforçou-se para se casar com ele,
intimidou-o para terem filhos, exigiu coisas. Ele manteve os pagamentos de £1 por
semana, mas recusou-se ao resto. A sua mãe construiu toda a sua vida em torno do
desejo por um homem que nunca fez o que foi esperado dele nem conferiu a ela o
estatuto de esposa. E apesar disso a filha nega o poder do homem, que ele exerce
incansavelmente ao longo da sua infância. A filha é forçada a ser defensora da mãe
contra o pai, mas “ele nunca capitulou” (p. 60). A saudade da mãe é passada para a
filha. “Quando ele morreu passei dias tolamente à espera que houvesse algo para mim”
(p. 61). O poder do pai reside em que ele detém. A negação de Steedman da realidade
do poder masculino na sua própria vida é, receio eu, esperança vã.
A recusa da mãe de Steedman em dar amor maternal é examinada a fundo. Ela fez as
suas filhas sentirem que elas eram uma parte crucial do seu fardo; que elas contribuíram
83

para o seu “sentido de injustiça, a sua crença de que lhe tinha sido vedada a entrada no
Página

seu lugar no mundo” (p. 112). Acho que é verdade que a política de inveja é sempre
julgada em termos morais, como maldosa e tacanha, desprezada como trivial e
traiçoeira. Suspeito que esta desonestidade decorra do facto de que é quem tem, e não os
que não têm, que escrevem a teoria, as análises, mesmo a ficção, que negam qualquer
validade psicológica aos desejos da sua mãe. Steedman tenta dar um sentido à maneira
em que o desejo insatisfeito da sua mãe devastou as vidas dos seus filhos. A raiva e a
amargura na sua narrativa são detetáveis, mas reprimidas por trás dos dentes cerrados da
sua prosa académica. A defesa da bolsa de estudo e da aprendizagem erigida em torno
da sua história é, penso eu, uma estratégia contra o preconceito de que iria demitir a
história da sua mãe como a voz servil de inveja e negar a sua própria inquietação
dolorosa como insignificante. Isso é compreensível, mas suspeito que a raiva
desencadeada teria sido ainda mais impressionante.
Steedman mantém-se à distância da sua própria história, que ela apresenta como pouco
romântica, dolorosa, comum e anónima. Ann Oakley, no livro com o qual Steedman
ficou ressentida, Taking It Like a Woman, divide a sua narrativa em duas partes: uma é a
história da sua vida como esposa, mãe e socióloga profissional; a outra é o progresso do
seu romântico caso amoroso com um homem sem nome, consumado em vários quartos
de hotel continentais. A primeira narrativa é na primeira pessoa, que necessariamente
lhe dá autoridade e força; o segundo é na terceira pessoa e escrito quase inteiramente na
linguagem do cliché sem fôlego. À primeira vista, In My Own Name: An
Autobiography, de Sharan-Jeet Shan, não poderia ser uma vida mais diferente.164
Oakley é uma feminista empenhada, branca, casada, de classe média, educada em
Oxford, filha privilegiada de um homem público. Sharan-Jeet Shan é uma sique, nascida
em Punjab, é uma mulher ambiciosa e inteligente, cuja carreira médica foi destruída
pelo pai quando descobriu que ela amava um colega muçulmano. Ele obrigou-a a casar-
se com um sique, que já tinha emigrado para a Inglaterra. Shan teve de abandonar a sua
casa, o país, a família, as ambições, e viver num país que não tinha escolhido e que
nunca tinha visto com um homem que era um estranho. O contexto é de facto
radicalmente diferente: mas ambas as mulheres são apanhadas na tensão e na
ambiguidade entre duas ideologias opostas, casamento obediente e amor romântico.
Como os dois polos, a masculinidade e a feminilidade, o casamento e a paixão
romântica precisam um do outro para definir o seu significado, pois um tem de ser tudo
o que o outro não é. E para ambas as mulheres, a paixão heterossexual consumada está
no centro do amor romântico. Shan nunca descreve o sexo diretamente, mas deixa claro
que sabe do que está a falar e deixa o resto para nós. “Como homem, como ser humano,
ele era simplesmente lindo. Na nossa expressão de amor um pelo outro, fomos
igualmente intensos, apaixonados e sinceros. O que quer que fosse que o futuro
trouxesse, as nossas mentes, corpos e almas tinham sido arrebatadas por esse sentimento
glorioso chamado ‘amor’” (p. 32). Mas a atmosfera de apreensão nunca a deixa. Em
1965 casou-se com Aziz num tribunal indiano, mas “Na Índia nenhum tribunal teria
contestado uma questão tão explosiva, a de uma aliança conjugal entre uma sique e um
muçulmano... aos olhos da ‘tradição’ o meu casamento ainda não existia” (p. 32). Shan
é confrontada com os tabus da sua cultura e a ira do seu pai. Oakley e o seu amante
deparam-se com seu sentido de responsabilidade para com as suas famílias existentes.
Eles respondem apenas perante as suas consciências. Shan é confrontada com a força
bruta.
O caso romântico de Oakley é conduzido na cama. Estas passagens, escritas numa teia
de clichés, são o mais inquietante no livro. Em certa medida os clichés devem
certamente ser deliberados. Oakley quer que as suas leitoras estejam cientes das
84

contradições envolvidas quando uma forte feminista independente simplesmente anseia


Página

164
Sharan-Jeet Shan, In My Own Name: An Autobiography (London, Women’s Press, 1985).
por se afogar na paixão por um homem cuja vida amorosa está elevada em termos de
domínio sexual. Eis uma passagem típica.

Com autoridade, ele exige que ela dispa a sua roupa interior para que suas mãos
possam ter um momento interessante sob a engomada toalha de mesa branca... Os
dedos dele são órgãos sexuais... Ela realmente sente que perdeu a sua identidade.
Realmente sente-se como se ela não pudesse, não quisesse, existir para além dele...
Se dependesse dela, ele até poderia ser o saqueador viking original... Este é o êxtase
espontâneo... o pico que se eleva acima da planície, a força que alimenta as ondas, o
vento, os fluxos de lava e as estrelas brilhantes frias. (pp. 50-1)

Aqui, o sexo heterossexual torna-se força natural universal. O amor romântico não pode
sobreviver ao dia a dia; deve ser fugaz e esmagador, e, dentro dos códigos da Grande
Paixão, outra pessoa deve ser injustiçada.
Oakley rejeita o conflito entre amor e família, prazer e ética, responsabilidade e desejo.
Ela passa uma noite sozinha, sem o seu amante, sem o marido e os filhos. E chega à
conclusão de que “ela só tem a certeza de que a maternidade vale a pena. O trabalho, a
sexualidade, o feminismoo, os poemas, as festas, são só ficções” (p. 103). Parece-me é
uma conclusão alarmante. Pois os filhos têm a relação mais profundamente desigual
com os seus pais. Nós temos o poder absoluto, como pais, de nutrir ou de destruir. Nós
podemos fingir ser Deus. A maternidade, na família de Sharan-Jeet Shan, é “apenas um
pretexto para tiranizar quando pode ser feito com impunidade, pois apenas os homens
bons e sábios ficam contentes com o respeito que sustenta a discussão”. 165 E os pais
bons e sábios, como Shan e Mary Wollstonecraft (a quem devo o comentário acima)
bem sabem, são muito poucos.
As feministas brancas ocidentais, cujo contexto dominante é a família nuclear, têm a
tendência de romantizar a família, a tribo, que é a base das diferentes estruturas de
parentesco em muitas outras partes do mundo. A celebração lírica de Germaine Greer de
uma comunidade pobre italiana da Calábria conclui: “O único amor perfeito a ser
encontrado na terra não é o amor sexual, que é cheio de dúvidas e inseguranças, mas o
compromisso sem palavras das famílias, que toma como seu modelo o amor

85
Página

165
Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Woman, ed. Miriam Brody Kramnic (1792;
London, Pelican, 1975), p. 264.
maternal.”166 A família, sob qualquer forma, nunca é por si só uma estrutura neutra ou
benevolente. Nem o sentimentalismo, nem a denúncia racista sem tacto é uma resposta
adequada; são ambas perigosas. As feministas brancas têm caído na armadilha de medir
a experiência feminina negra pela sua própria, rotulando-a como se de alguma forma
faltasse e, em seguida, à procura de formas em que é possível aproveitar a experiência
feminina negra para a sua própria.167 E as feministas brancas, inclusive eu, não podem
dizer que não foram avisadas. Sharan-Jeet Shan, ela mesma nega que sua autobiografia
seja um caso contra o casamento arranjado. Ela argumenta que, se todas as partes forem
cuidadosas e sensíveis, um casamento arranjado tem tão boas hipóteses, se não
melhores, de dar certo como um casamento por amor. Apenas uma mulher que conheci
bem, uma cipriota grega, foi mesmo para casa examinar o homem que a mãe tinha
escolhido para ela. Naquela altura, há doze anos atrás, eu tinha ficado escandalizada.
“Porquê?”, respondeu. “Do que é que te estás a queixar? A minha família conhece-me.
Eles não iriam escolher alguém inadequado. Vai ser alguém de quem eu já ouvi falar, se
é que já não o conheço. Eu iria ver qualquer um que eles sugerissem. E mesmo assim
eles não me iriam forçar se eu não gostasse dele.” E é aí que reside o segredo da relação
de confiança da minha amiga com os seus pais: ela sabia que nunca iria ser forçada a
casar-se contra a sua vontade.
Sharan-Jeet Shan foi forçada pelo pai a casar com um homem que ela não conhecia nem
amava e a trair a sua promessa a um homem que ama, em nome da honra da família. Se
aceitarmos o casamento como uma instituição necessária, e devo confessar que eu não

86

166
Germaine Greer, The Madwoman’s Underclothes: Essays and Occasional Writings 1968-1985
Página

(London, Picador, 1986), introduction, p. xxvi.


167
Valerie Amos & Pratibha Parmer, “Challenging Imperial Feminism”, in Many Voices, One Chant:
Black Feminist Perspectives, edição especial negra de Feminist Review, no. 17 (Autumn 1984), p. 11.
aceito, o problema não é o casamento arranjado, mas sim o abuso de poder e de
confiança no seio da família. E é, receio eu, geralmente verdade que as culturas cuja
prática normal é arranjar casamentos são menos propensas a aceitar uma mulher que se
recusa a casar-se de todo. Uma outra amiga, ela mesma uma sique, disse-me que estava
à procura de um marido para a sua filha. Discutimos sobre o tipo de homem que seria
melhor. Sur-Jeet, que é uma mulher muito religiosa, estava encantada por a sua filha lhe
ter dito explicitamente que queria casar-se com um homem que usasse turbante. “Mas
Sur-Jeet,” sugeri cautelosamente, “e se ela decidir que não se quer casar?” “Ela tem
vinte e três anos!” disse Sur-Jeet indignada, “por isso, é mais que tempo.” Permanecer
solteira era simplesmente impensável.
A relação de uma mulher negra ou asiática com a sua família e a sua comunidade dentro
de um estado racista é problemática, pois o seu apoio, ajuda, solidariedade e segurança
financeira vêm, muitas vezes, das mesmas estruturas e instituições que ela pode querer
desafiar. A situação para as mulheres brancas geralmente não é tão crítica, pois o mundo
fora da família pode muito bem proporcionar-lhes a oportunidade de se libertarem. Nós
vamos ser alvo de discriminação porque somos mulheres, mas não por motivos raciais.
Para uma mulher negra ou asiática que seja lésbica pode ser muito mais difícil assumir-
se perante a sua família ou a comunidade.

A família! A família é muito contraditória para nós. Há envolvimento emocional,


existem laços, as raízes que ela representa para todos nós como indivíduos numa
sociedade fundamentalmente racista/sexista. É por isso que as negras podem decidir
não se assumirem como lésbicas ou homossexuais por medo de serem rejeitadas por
um grupo de pessoas que não só amam, mas que também representam uma fonte real
de segurança, de apoio. Essa é uma escolha que tem de ser respeitada como uma
escolha política, não apenas de um indivíduo.168

O mais fundo comovente, e, com efeito, mais devastador da narrativa de Shan é o seu
desejo contínuo, o apelo para a sua família, a sua cultura e a sua religião, para aceitar,
para honrar as suas perspectivas, para compreender a sua coragem e os seus medos. Ela
alcança as contradições da sua própria religião que lhe podiam ter dado a liberdade de
amar onde quisesse. “Se os muçulmanos eram tão maus para os siques porque foram
incluídos ensinamentos dos santos muçulmanos no livro sagrado, o Granth?” (p. 35).
Mas não há discussões nem alternativas. Ela é presa e espancada até à submissão pelo
pai. As mulheres defendem-na, mas são insultadas e demitidas. As mulheres podem ser
muito influentes e poderosas no seio da família, mas o seu poder depende sempre das
circunstâncias e das personalidades. Dentro da estrutura da própria instituição, quer seja
a versão alargada ou a versão nuclear, elas não têm nenhum poder absoluto que não
possa ser posto de lado pelos homens. A mãe de Shan só pode recomendar as
consolações da religião.
Shan é uma lutadora, uma mulher corajosa cujo orgulho e autoestima salvam a sua vida.
O seu desastroso casamento arranjado termina em violência e crueldade. “Apenas com a
maternidade houve uma rota de fuga para a autorrealização e para a expressão” (p. 87).
Shan não o diz explicitamente, mas o facto é que somente a maternidade fá-la ter
qualquer poder ou influência sobre qualquer outra pessoa. Na verdade, Shan continua a
apoiar e defender o ideal de vida da família alargada que abalou as suas próprias
ambições e desejos. “...Achei muito difícil ficar longe dos pensamentos da Índia, dos
87
Página

168
“Becoming Visible: Black Lesbian Discussions: Carmen, Gail, Shaila and Pratibha”, in Many Voices,
One Chant, p. 54.
avós para os netos, de ocasiões festivas familiares e da posição muito especial que os
filhos teriam numa família alargada” (p. 95). Perversamente, ela duplica o privilégio e a
liberdade do seu irmão, uma liberdade que foi concedida a ele, à sua custa, pela forma
como ela educa os seus dois filhos. Ela perpetua as contradições que quase destruíram a
sua vida. Mas esta nostalgia apaixonada é fácil de entender, ninguém que nunca tenha
vivido dentro de uma comunidade próxima, na qual o seu lugar é garantido e seguro, e
agora falo por experiência própria, jamais pode reconciliar-se completamente com o
exílio. E ainda, tendo vivido numa família alargada e numa nuclear, agora defendo
ferozmente o meu direito a viver fora das duas e nunca ser afligida pela minha própria
família.
Para Oakley e Shan, os homens são a fonte da agonia e do êxtase. Não existem outras
mulheres cuja importância seja fundamental para as suas histórias. Shan dedica o seu
livro ao seu amante muçulmano e aos seus dois filhos. Oakley, escreve, “muito deste
livro foi sobre os homens. Não é em si uma contradição bem censurável? Acho que
sim” (p. 197). Na verdade, ela é surpreendentemente honesta quanto às suas
contradições censuráveis. Elas são, na verdade, o assunto do seu livro. Oakley sabe que
a sua ruína é a capacidade da mulher para o amor altruísta. “A cultura de domínio
masculino designou como femininos todos os trabalhos de ligação emocional... Assim,
se não é no amor que as mulheres estão perdidas, é na família. A tensão entre os
interesses da família e os interesses das mulheres como indivíduos têm vindo a
aumentar há cerca de dois séculos para cá. Não é possível que esses interesses se
reconciliem” (p. 201). No entanto, Shan e Oakley dão uma parte fundamental da sua
energia a outras mulheres; Oakley no seu trabalho de pesquisa e escrita sobre questões
perinatais, Shan no ensino do inglês a mulheres asiáticas, já que ela é especialmente
capaz de “ajudar as minhas irmãs asiáticas a reduzir essa distância, não só entre si e os
sistemas indígenas de educação e emprego, mas também para se aproximarem dos seus
filhos” (p. 100). Shan nunca foi uma advogada masoquista de autossacrifício e negação,
mas os seus últimos comentários indicam uma nova autoconsciência do seu direito à
felicidade como mulher. “ Eu... Estou a começar a saborear a alegria da liberdade... Eu
quero viver um pouco para mim agora” (p. 174).
Ann Oakley tinha uma rara mas perigosa forma de cancro. O conhecimento inteligente
de que não viveria para sempre foi o impulso por trás da sua autobiografia. Queria
aceitar a mulher que pode deixar de existir, ela mesma. A morte é também a sombra no
limite da página para Rigoberta Menchu, mas no seu caso é a ameaça de assassinato
pelo exército ou pela polícia repressiva do estado da Guatemala. A narrativa de Menchu
é um testemunho de um povo em luta: o seu povo, os índios de Quiche. Tal como
Sharan-Jeet Shan compreende a necessidade de um povo oprimido possuir “o
implementar poderoso da linguagem”, (p. 100) o mesmo faz Menchu. Ela aprendeu o
espanhol, o idioma dos seus opressores, a fim de organizar-se contra eles. A sua
autobiografia, Rigoberta Menchu.[verif titulo edição orginal- agradecimentos]..,
deveria ser leitura obrigatória no Vaticano.169 É uma história clássica da rebelião e da
dignidade absoluta dos miseráveis. A religião de Shan foi usada para a esmagar,
Menchu e o seu povo pegaram na mensagem radical do cristianismo, que tem sido
sufocada com êxito pela Igreja, para libertar seu povo. O poder transformador radical do
siquismo na vida de Shan nunca teve a possibilidade de florescer.
Menchu contou a sua história a Elisabeth Burgos-Debray, que transcreveu o texto,
editando a original e aterradora simplicidade da voz de Menchu o menos possível. O
88

livro é uma celebração do seu povo, da sua comunidade, das suas tradições e da sua luta
Página

169
Rigoberta Menchu, I, Rigoberta Menchu . . . (London, Verso, 1984).
para sobreviver. Os índios quiche baseiam a sua religião e cultura em ciclos da terra: o
poder sagrado da água, a terra, o milho do qual eles vivem e o sol. Uma vez e outra,
Menchu salienta a importância dos antepassados e da adesão às suas tradições
ancestrais. É uma cultura alicerçada no respeito pelo passado. Geralmente, uma
sociedade ou fé baseada em tradições cuidadosamente preservadas tende a ser
reacionária e opressiva para as mulheres, mas para os índios quiche, a sua lealdade para
com os seus antigos costumes tem assegurado a sua sobrevivência física e moldado a
sua identidade política. E a sua reverência pela natureza leva a algumas atitudes
surpreendentemente lógicas. “O nosso povo não discrimina entre as pessoas que são
homossexuais e as que não são, isso só acontece quando saímos da nossa comunidade.
Não temos a rejeição da homossexualidade que os ladinos têm: eles realmente não
podem suportar. O que é bom sobre o nosso modo de vida é que tudo é considerado
parte da natureza” (p. 60). A ideia de que a homossexualidade pode ser natural é
original para qualquer mulher que tenha uma herança cristã ou que tenha lido São
Paulo; por outro lado, os quiches tem um machismo natural. Menchu diz, “Não é que o
machismo não exista entre o nosso povo, mas ele não representa um problema para a
comunidade, porque é uma parte importante do nosso modo de vida” (p. 14). Noutras
passagens Menchu descreve o machismo como uma doença. Ela nem sempre liga as
suas próprias observações. A mentalidade racista dos ladinos, que ela acha tão dolorosa,
tem a sua contrapartida na veneração dos meninos dentro de sua comunidade: “A
Comunidade fica sempre mais feliz quando nasce uma criança do sexo masculino e os
homens sentem-se muito mais orgulhosos” (p. 14). Tenho certeza que sim.
Menchu não é uma mulher índia típica, de modo nenhum. O seu papel crucial como
líder nacional na sua luta revolucionária dá-lhe liberdade e autoridade, mas mesmo em
criança, como a sua própria narrativa deixa claro, evitou os rígidos papéis do sexo do
seu povo. Ela era muito a menina do papá. “Eu quase nunca lutei com nenhum dos
rapazes na minha aldeia, porque tenho mais ou menos as mesmas atitudes que eles têm”
(p. 194). Para as mulheres empenhadas numa luta revolucionária de libertação, a
consciência política é um processo moldado por conveniência e pela emergência diária
da vida. Menchu declara-se firmemente contra a política separatista da mulher nesta
fase da luta, embora se recuse explicitamente a excluir a possibilidade de organizações
femininas no futuro. Ela é totalmente inflexível na sua posição contra o machismo dos
homens que tentam negar a participação das mulheres na revolução.

Deparei-me com companheiros revolucionários que tinham muitas ideias sobre como
fazer uma revolução, mas que tinham dificuldade em aceitar que uma mulher
pudesse participar na luta não só em coisas superficiais, mas em coisas fundamentais.
Também tive que punir muitos companheiros que tentaram impedir que as suas
mulheres participassem na luta ou realizassem qualquer tarefa... Temos de lutar
como iguais, (pp. 221-2)170 – transcrever texto

As mudanças radicais dissolvem frequentemente o preconceito impraticável e irracional


e levantam contradições extraordinárias. O catolicismo, imposto aos índios pelos seus
opressores, torna-se outra arma da revolução. Os católicos, em geral, leem a Bíblia com
cuidado. Lá, os índios quiche, descobriram o que muitos negros encontraram, histórias
de escravidão, rebelião e fuga e a articulação de um Deus que está irrevogavelmente do
lado os sofredores e oprimidos. Eles leem a Bíblia através da sua percepção da
89

realidade. O Reino de Deus “vai existir somente quando todos tivermos o suficiente
Página

170
NT – No original:
para comer, enquanto os nossos filhos, irmãos, pais não tiverem que morrer de fome e
subnutrição. Essa será a ‘Glória’, um Reino para nós que nunca o conhecemos” (p. 134).
A Bíblia tornou-se a sua autoridade escrita, para homens e mulheres. “Temos o exemplo
de Judite... ela lutou muito pelo seu povo e lançou muitos ataques contra o rei que
tinham na altura, até conseguir finalmente a sua cabeça. Segurou a vitória na sua mão, a
cabeça do rei. Isso deu-nos uma visão, uma ideia mais forte de como nós cristãos nos
devemos defender” (pp. 131-2). A história da vitória de Judite sobre Holofernes tem
sido uma inspiração para as negras, cristãs e judias feministas. A história bíblica alcança
a sua realização e continuidade na teologia da libertação na América do Sul e nos
movimentos revolucionários que essa teologia apoia e inspira.
Menchu insiste que a sua terrível história de pobreza, fome e violência não é só dela –
“é o sofrimento de um povo inteiro” (p. 236) – e ainda assim, cada vida é única,
preciosa e diferente. A insistência de que a sua experiência e sofrimento são partilhadas
tem um valor político. A sua vida e a da sua comunidade estão ligadas. A sua história
não é a de uma vida interior, o crescimento de uma alma única, mas a da vida, dos
costumes e das tradições de um povo. É a história, não de como vi o mundo, mas de
como me organizei, como lutámos, como demos valor uns aos outros, como morremos
uns para os outros, como sobrevivemos. E para a política revolucionária feminista e a
autobiografia feminista, acho que esta mudança é crucial: o movimento da perspectiva
única para a base de uma política coletiva, a mudança de “eu” para “nós”. Partimos de
onde estamos, não podemos fazê-lo de outra forma, mas não é suficiente moldar cada
identidade única como uma pessoa oprimida e deixá-la por isso mesmo. Nem o é para
aqueles de nós que têm o suficiente para comer e um colchão para passar a noite para
nos preocuparmos apenas com a procura de um emprego melhor, convencermos os
nossos maridos a limpar a sanita ou os nossos filhos a lavarem-se. Não existem vidas
únicas que possam ser vividas sem referência aos outros. Não existem problemas
simples. Outras mulheres no mundo morrem de fome para que as ricas do ocidente
possam comer bem. As pessoas não são livres, enquanto as mulheres, todas as mulheres,
não forem livres. O velho slogan, que vi pela primeira vez na década de 70, continua a
ser verdade. E o processo da consciência feminista é a constatação de que não estamos
sozinhas, e que não precisamos lutar sozinhas. Mas temos de lutar como iguais.

90
Página
4
A ficção de género
Não é que tenha confundido as heroínas ficcionais com as mulheres reais; as
situações que me afetaram mais são as que mais se pareciam com o que teria
acontecido na vida real.
Anna Livia, Gossip, no. 5

Quando o livro acaba, exatamente como previste e simplesmente como esperaste, a


satisfação e o prazer que tu, leitor ou leitora, desejaste e experimentaste é tão erótico
como o primeiro beijo antecipado e reconfortante como um prurido coçado. Mas para ti,
escritora que escolhes um género que é fortemente marcado por um conjunto tradicional
de motivos necessários, personagens, enredos, situações e emoções, as convenções
acabam por ser um espartilho que ao mesmo tempo dá apoio e limita. A escritora de
ficção de género tem que atender às expectativas da leitora – satisfazendo-as ou
subvertendo-as. Claro que a melhor escrita dentro de uma qualquer forma convencional,
thriller, aventura de ficção científica, livros de terror ou romance, faz as duas coisas.
Acerca do género surge a questão dos códigos e dos padrões; padrões de enredo,
sentimentos, personagens. Para que a escrita seja bem-sucedida, o padrão deve ser
sugerido, mesmo que depois deva ser destruído. Que preço, então, podíamos dar à
originalidade, nesse contexto? Uma escrita original decerto irá criar o gesto
convencional, abrir as danças, convencendo-nos de que não iremos ficar desapontados,
para onde quer que sejamos conduzidos ao longo da viagem durante a nossa leitura. A
originalidade consistirá num uso experiente da forma, mais do que um abandono, uma
explosão da própria forma.
Mas surgem logo algumas questões complicadas. A padronização necessária dentro da
forma determina o que o texto deverá significar no final? O thriller ou a história policial
estão obstinadamente destinados a responder a todas as perguntas levantadas pelo
enredo – quem fez isso e porquê – inerentemente conservador? Um romance
sentimental em que a mulher por fim afunda no peito de um casaco de tweed, forrado de
peles ou de pele tensa de um homem mais alto, mais velho e mais rico, pode ser outra
coisa além da capitulação das estruturas que as mulheres feministas estabeleceram para
desafiar e subverter – e que para as mulheres lésbicas constitui nada menos que uma
negação total de identidade? Porém, eis o facto mais curioso: as mulheres escrevem
ficção de género. Realmente, elas têm muito êxito nisso. Os primeiros romances góticos
do século XVIII foram escritos predominantemente por mulheres. O público também
era predominantemente feminino. O mito mais duradouro de todos na ficção científica
foi um mito de uma mulher, Frankenstein de Mary Shelley (1818). O romance é
evidentemente uma forma da mulher, escrita de mulheres para mulheres: Georgette
Heyer, Catherine Cookson, Mary Stewart, Barbara Cartland e uma florida fileira de
autoras que escrevem para Mills and Boon estão todas no negócio de construir homens
91

como objetos do desejo feminino. O crime também é uma profissão feminina: Agatha
Christie, Dorothy L. Sayers, Patricia Highsmith, P. D. James tornaram-na muito
Página

lucrativa.
A ficção científica, uma forma tradicionalmente dominada pelos homens, é
particularmente vulnerável a infiltrações e expropriações femininas, por razões
inerentes à forma. Sarah Lefanu mostra que “Ao contrário de outras formas da escrita
de género, tais como as histórias policiais e as histórias de amor, que procuram o
restabelecimento da ordem e portanto podem ser descritas como textos ‘fechados’, a
ficção científica é interrogativa por natureza, aberta. O feminismoo questiona uma dada
ordem em termos políticos, enquanto a ficção científica questiona-a em termos
imaginativos”171. Concordo, o potencial está aí, certamente.
O primeiro thriller, de facto, talvez a primeira narrativa psicológica, é o Édipo Rei de
Sófocles, a história de um homem que mata o pai e casa com a mãe172. Édipo é quer o
assassino quer o detetive dentro duma ação que está fora do seu controle e que foi
determinada pelos deuses. Tebas não conseguirá livrar-se da peste enquanto o assassino
do Rei Laio não for levado à justiça. O público já sabe, obviamente, que é mesmo o rei
Édipo a praga e a contaminação da cidade; portanto, o suspense do drama está
inteiramente centrado no inevitável desvendamento do próprio crime por parte do
próprio criminoso. E a sua ação mantém-se como crime apesar de ser cometida
inconscientemente. Édipo é também o juiz de si mesmo. Escolhe a cegueira e o exílio.
Jocasta, sua mãe e esposa, enforca-se. Note-se que é a mulher a acabar morta. Édipo
vive para se transformar num santo arrependido numa peça posterior, Édipo em Colono,
capaz de oferecer reflexões interessantes sobre a justiça e os deuses. A fraqueza nos
romances policiais normalmente é o assunto. No Édipo Rei não há assunto. O assassínio
e o consequente incesto foram ambos um erro terrível e o castigo que se segue põe em
questão a ordem metafísica de um mundo em que os deuses nos matam por diversão.
Há pois uma dimensão teológica na peça – e na história de Édipo – que interessa o fado,
a justiça e a possibilidade do livre arbítrio. Mas essas discussões e debates, disputados
pelo coro, estão envolvidos na dinâmica do enredo. O oráculo determinou o destino dos
atores principais: nós simplesmente olhamos para a vontade impessoal dos deuses
executada na destruição. Os deuses é que escreveram o enredo.
Ora, as histórias policiais não são narrativas realísticas sobre crimes. São quebra-
cabeças geométricos que o leitor foi desafiado a resolver. São textos que escondem
indícios, significados disfarçados, enganadores e desnorteadores. Ninguém num bom
thriller policial deveria revelar-se parecido com quem é. A autoridade, na forma da
polícia, é frequente e deliberadamente posta de lado. Raramente a lei aparece antes que
seja feita justiça. Os melhores detetives são normalmente amadores. Mas têm que ser
honestos.173 Raymond Chandler, num ensaio sobre a sua própria profissão, descreve o

171
Sarah Lefanu, In the Chinks of the World Machine: Feminism and Science Fiction (London, Women’s
Press, 1988), p. 100. Lefanu defende uma boa causa ao ver a ficção científica como propícia às
feministas. Posso discordar com algumas das suas leituras, mas não com as suas conclusões gerais. Para
uma análise mais detalhada das questões levantadas pelo uso do género por parte das escritoras
feministas, veja-se também Anne Cranny-Francis, Feminist Fiction: Feminist Uses of Generic Fiction
(Cambridge, Polity, 1990). Cranny-Francis é mais otimista do que eu a respeito do potencial subversivo
das ideias e dos discursos feministas na ficção de género; mas partilhamos algumas apreensões.
172
A história de Édipo exerce uma influência enorme e perniciosa na nossa cultura. “Recentemente, a
crítica, na esteira de Roland Barthes, defendeu plausivelmente que a mais popular das histórias ‘clássicas’
dá uma nova interpretação da crise edipiana masculina. Não é preciso registar aqui o monótono catálogo
de dispositivos usados no texto masculino para incapacitar a mulher e logo afirmar a superioridade
masculina... No fim da maior parte das histórias populares a mulher é desfigurada, morta, ou no mínimo
92

domesticada.” Vide Tania Modleski, Loving with a Vengeance: Mass-Produced Fantasies for Women
(1982; London, Methuen, 1984), p. 12.
Página

173
Para uma breve e penetrante análise das características centrais da ficção policial britânica veja-se
Robert Graves & Alan Hodge, The Long Week-End: A Social History of Great Britain 1918-1939 (1940;
London, Faber, 1950), pp. 300-3.
detetive como um homem de honra. “Mas por estas ruas com um aspeto pobre é
obrigado a andar um homem que não é ele mesmo pobre… Tenho bem a certeza que
não espoliaria a Virgem Maria”.174 A sério? Mas o que é que acontece quando o
detetive é uma mulher? O debate metafísico sobre o destino dos seres humanos e a
justiça dos deuses é a temática principal no Édipo Rei. Uma ideia abstrata governa o
enredo. Mas normalmente não é esse o caso do romance policial ou do thriller de
espionagem. As mecânicas do enredo são cruciais. Continuamos com a leitura para ver
como, mais do que porquê, a narração se desenvolve. Um drama complexo de ideias
normalmente não é essencial para a estrutura da narração.
Muitos escritores de policiais fazem reivindicações intelectuais empregando uma
personagem como um cabide para as suas reflexões relativas a qualquer coisa, da
filosofia à comida. Dorothy L. Sayers transformou Lord Peter Wimsey num veículo
para as suas “dissertações incidentais”.175 O chefe dos serviços de espionagem de John
le Carre, George Smiley, tem uma paixão pela poesia romântica alemã. Adam Dalgliesh
de P.D. James na realidade é um poeta famoso, e todas as pessoas sobre as quais ele
investigou já ouviram falar dele.176 Mas em todos esses casos é uma personagem
específica, mais do que a forma, a carregar o fardo das ideias. As escritoras feministas
estão a tentar recriar e rescrever o thriller policial como uma forma dentro da qual
discutir política e ideias, mesmo que não exatamente à maneira de Sófocles.
Os códigos da ficção policial costumam ser conservadores e seguros. Estamos à espera
que alguém nos diga quem era o bom e quem o mau. O mau e o culpado podiam safar-
se; mas sabemos quem são. Barbara Wilson em Murder in the Collective usa a narrativa
policial tradicional como meio para a sua discussão de dois assuntos contemporâneos: o
imperialismo americano nas Filipinas durante o regime dos Marcos e a divisão entre a
esquerda mista e o movimento autónomo lésbico.177 O ritmo do conto, as reviravoltas
do enredo, o necessário dedo seletor do suspeito, são realizados de forma tradicional,
com energia e verve. Os objetos são importantes: brincos, chaves do carro, lentes de
contacto. As trocas de identidades são significativas. Mas surge um conjunto peculiar
de dificuldades. No livro descrevem-se duas tipologias de assassinato. Primeiro há o
típico cadáver, encontrado logo no início, um membro da cooperativa tipográfica da
esquerda mista, descoberto elegantemente assassinado na câmara escura. Este é um
assassinato individual praticado em segredo por um ou alguns desconhecidos.
Secundariamente, há outros assassinatos, acompanhados de tortura, humiliação,
castração, praticadas abertamente pelo antigo governo totalitário das Filipinas.178 Este é
um assassinato sancionado pelo estado. O primeiro desenvolve-se nos códigos próprios
do género literário; o outro destaca-se, brutal e não perdoado. “Foi torturado, o corpo
foi encontrado... não, é horrível. O Benny não conseguia acreditar. Andava às voltas
como um louco, queria ir lá e assassinar Marcos pessoalmente. Que desolação, Pam,
pensar no Amado morto como um cão e atirado para uma pilha” (p. 92). Marcos era um
verdadeiro ditador, que se livrou dos seus opositores. O assunto de Wilson é claro. Fora
da ficção há um crime real – tal como o de Amado – num mundo real. Mas poucos

174
Raymond Chandler, “The Simple Art of Murder”, in The Chandler Collection, vol. 3 (London, Pan,
1984), p. 191.
175
Graves e Hodge, The Long Week-End, p. 303.
176
Há uma interessante entrevista/perfil de P.D. James e a sua obra realizada por Polly Toynbee: “More
93

Deadly than the Male”, The Guardian, 2 de junho de 1986.


177
Barbara Wilson, Murder in the Collective (London, Women’s Press, 1984).
Página

178
Depois de Wilson escrever o livro o regime de Marcos caiu o regime. Isso é motivo de celebração; mas
a ditadura é um mal rastejante, e demasiadas vezes fundada sobre a supressão de qualquer oposição. A
tese central do livro de Wilson infelizmente continua a ser muito relevante.
géneros poderiam ser menos realísticos do que o romance policial. Assim, Barbara
Wilson no final do romance acrescenta uma bibliografia de informações sobre a luta de
libertação das Filipinas. Analisou um caso político; sugere para pousarmos o livro que,
no momento em que o tivermos terminado, deveria ter deixado de ser ficção
confortável, e para lermos a verdade sobre a política do imperialismo e da tortura. O seu
texto está subordinado a outros textos – e à ação política.
Não tenho objeções contra essa estratégia; mas é surpreendente que não tenha levado a
autora a alcançar um olhar crítico sobre a política do texto ficcional: especialmente se
as questões chave são tão delicadas como o racismo ou o separatismo lésbico. Dois
membros dos coletivos mistos são mulheres de cor. “June era negra, tinha 23 anos,
viúva com duas crianças...” (p. 8). Estas são, no início, as únicas informações que
temos sobre June. Depois ela é detida enquanto suspeita de homicídio e também
ficamos a saber algo que antes tinha sido ocultado quer pela escritora quer pela voz
narradora. “Cresceu em Seattle, andou na Garfield High e casou logo a seguir. Com um
rapaz simpático, suponho, um rapaz muito simpático. Mas foi atingido por uma bala,
num desses acidentes misteriosos. June diz que um bando deles andava a brincar, ainda
eram adolescentes, alguém tinha uma pistola ‘sem carga’ e de alguma forma disparou.
Acho que June estava a segurá-la, embora nunca tenha sido capaz de o dizer” (p. 48). O
racismo branco constrói as mulheres negras como apaixonadas; quando necessário,
assassinas. Todas sabemos disso e June sublinha-o. “Deram-me um polícia negro,
imagina. Para arrancar de mim a verdade. Alguém da minha ‘cultura’, sabe dos
instintos assassinos das raparigas negras” (p. 65). Mas o problema é que no texto de
Barbara Wilson as duas mulheres brancas são essenciais, elas são as detetives e as
mulheres negras são as assassinas. Os estereótipos são expostos a inspeção, e depois
confirmados. Há dois crimes ficcionais entrelaçados, o assassinato de um homem e a
destruição de uma tipografia. As mulheres acusadas são as responsáveis: as mulheres
negras e as lésbicas.
Quando as lésbicas conseguem abrir caminho à força no livro, elas são enormes, roucas
e peludas. “Fran... em cada centímetro parecia uma clássica fufa, com as mangas de
flanela arregaçadas, o peito grande, solto e apoiado ao estômago grande... tinha uma
gotícula de cerveja no ligeiro buço escuro por cima dos lábios carnosos bem
delineados” (p. 32). Fran é alcoólatra. Estatisticamente é plausível. Os números do
alcoolismo entre as lésbicas são incríveis: “as estatísticas são: 38% alcoólicas, 30%
com problemas com a bebida. Entre as lésbicas isso significa que ou és uma delas, ou
amas uma delas”.179 Mas há boas e tristes razões pelas quais uma mulher que tenta
viver como lésbica numa sociedade heterossexista, que nas melhores das hipóteses as
trata como pervertidas inaturais e nas piores defende a sua liquidação, devia agarrar a
garrafa. E Barbara Wilson nunca analisa porquê Fran bebe.
A nossa heroína, Pam, tem uma paixoneta pela fufa texana de membros compridos que
é forte, silenciosa, alta como um homem e adepta de softball. Tem até um nome
andrógino, Hadley. “Era só pernas, quase sem anca, com ombros muito largos e
clavículas elegantes...” (p. 27). E a sedução na pista de dança da discoteca é posta em
ato através dos códigos do romantismo heterossexual. “Inclinou a cabeça de modo que o
seu hálito tocou na minha orelha, mas não disse nada. Os meus joelhos iam ceder um
pouco...” (p. 101). Hadley é a cara aceitável do lesbianismo, o equivalente mais
94
Página

179
Jean Swallow (ed.), Out From Under: Sober Dykes and Our Friends (San Francisco, Spinsters, Ink,
1983), p. ix. Este é um livro animador; muito americano no estilo. Como revela o título, é sobre tornar-se
e manter-se comedidas, com muita ajuda das nossas amigas.
próximo do príncipe encantado sem pénis: mais velho, com mais experiência, ossudo e
com pés enormes.
Há uma rajada de golpes anti lésbicos até o final do livro. Barbara Wilson utiliza uma
das suas lésbicas como sua porta-voz.

Mas vou-te dizer, Pam, vi mais mulheres fodidas que são lésbicas e ainda mais que
são feministas lésbicas. São ciumentas, coscuvilham e mentem, são promíscuas,
bebem, batem, magoam as pessoas, não vivem de acordo com nenhum ideal
feminista nas suas próprias vidas, acham que podem julgar seja quem for exceto
que a si mesmas. São apenas malditas putas hipócritas... (p. 162).

…e assim por diante. Em várias páginas as lésbicas são denunciadas com zelo
profético. As feministas lésbicas, ao que parece, evidentemente seriam mais prudentes
se esquecessem tudo disso, arranjando um bom rapaz que lhes segure a mão e
assentando. Mas essa é uma das clássicas táticas sexistas da escrita dos homens –
mostrar as mulheres que se orgulham do ódio por si mesmas; escrever as nossas
mentes, vozes, corpos, num discurso que confirma o venenoso cliché sempre usado
contra nós. Wilson está a escrever as lésbicas num discurso heterossexual que tem uma
antiga tradição de pervertidas doentes e arrependidas, lamentação, ciúme, violência e
autorrecriminação. E, por ser esse o discurso dominante, o excerto acima não pode ser
lido de maneira irónica, mesmo que o pretendesse.
Curiosamente, Fran, a alcoólatra, surpreende-nos tornando-se na imagem da
respeitabilidade da classe média. A descrição do apartamento da Fran livra-a da suspeita
de homicídio. “Um antigo tapete persa por cima do soalho encerado; uma aparelhagem
de som enorme, fotografias emolduradas e várias pinturas originais; flores frescas em
cima da mesa. Estava à espera de confusão; mas não vi nenhuma; tinha a certeza que
encontraria uma reveladora falta de gosto – plástico, veludo, kitsch lésbico. Nada disso”
(p. 169). Mas o que revelou todo esse gosto requintado? Nenhuma mulher que tem um
tapete persa e que encera soalhos poderá ser uma assassina? Elena, por sua vez, mora
numa casa “em ruínas” – “as ripas de madeira que pareciam de alcatrão estavam a
descascar as paredes exteriores a uma grande velocidade, o alpendre estava a apodrecer
e a porta tinha sinistras chamuscadelas negras num dos lados” (p. 75) – claro que
poderia ser violenta. No fim, tropeça na sua “cadeira de plástico da cozinha” (p. 76), e o
plástico parece ser um material significativo de forma conclusiva.180 A mensagem
codificada pela decoração é clara: se nós brancas, lésbicas ou não, nos afastamos dos
padrões da classe média quase tudo é possível. Mas não assassinato; deixamos isso às
mulheres negras.
As duas mulheres negras na narração estão ambas envolvidas com o homem que é
assassinado. Numa incursão pela calada da noite no apartamento dele, as nossas
heroínas detetives, Pam e Hadley, descobrem montes de pornografia debaixo da cama.
Nenhuma mulher choraria pela perda. Mas o outro homem do coletivo sim: o choro é
um motivo de mérito para ele, embora o objeto de sofrimento não mereça. Mas os
factos verdadeiros da iniquidade de Jeremy deixam as mulheres negras estranhamente
expostas. Elas não foram suficientemente perspicazes para ver dentro dele? Como
Hadley comenta com comiseração: “Coitada da June”. Tudo isso resulta numa espécie
de falta de tato textual. Não faz muito sentido e não é uma boa política apresentar as
mulheres negras como homicidas e as lésbicas como monstros alcoólicos num mundo
95
Página

180
O meu agradecimento por esta observação sobre instalações e equipamentos a Nicola Bourdillon.
que presume que somos assim de qualquer maneira. Mas pelo menos na maioria dos
thrillers feministas, ao contrário do Édipo Rei, são os homens a morrer.
É um crime para uma mulher matar um homem por autodefesa quando o mundo que
habitamos transformou a violência contra as mulheres numa instituição ordinária?
Murder in the English Department de Valerie Miner aborda essa questão dentro das
convenções do romance universitário.181 O romance universitário ou “de campus” é um
fenómeno muito interessante. Desenvolve-se numa comunidade pequena, fechada e
preocupada só consigo mesma e normalmente está pontilhada com referências literárias
ou filosóficas, personagens académicas de capelinha, políticas de faculdade e piadas
para entendidos. O género dirige-se ao público que descreve. Os profissionais
britânicos mais conhecidos são homens – David Lodge (Changing Places, 1975) e
Malcolm Bradbury (The History Man, também de 1975) – e a sedução e a exploração
das estudantes femininas por parte dos académicos é um elemento crítico dos enredos.
A personagem central em Miner é uma professora envolvida numa campanha contra o
assédio sexual. Nan econtra-se em oposição com cada espaço que habita: no mundo
académico, com a família, até sozinha no seu carro. “Às vezes Nan preocupava-se por
este hábito de falar ao carro... E se um polícia a mandasse encostar? Bem, sempre podia
dizer que estava a gravar uma aula com o gravador de cassetes. Nan já tinha imaginado
tudo...” (p. 2). Este não é o pensamento de uma paranoica obsessiva; Nan está
criticamente em risco. Ela concorre para efetiva e a sua política sexual é olhada com
suspeita pelos colegas. É constantemente intimidada pelo mau Angus Murchie, o mais
conhecido misógino no seu departamento. Ela aparece muito cedo nas reuniões: “Outra
tática de sobrevivência: ser a primeira a chegar lá e ver o adversário entrar” (p. 67). E é
este o assunto principal: a sobrevivência.
As duas outras comunidades no livro são a universidade e a família. Ambas são
instituições patriarcais. O lar pequeno-burguês da classe média baixa de Nan, Hyward,
para onde ela regressa constantemente, é um mundo de pesadelo de casas de rancho
amarelas como gomas de açúcar, bolo de abóbora, fibras sintéticas e gemada.182 As suas
familiares estão obcecadas “com a sua decoração de interiores e os seus planos para as
crianças” (p. 15). Quer Nan quer a leitora são construídas como pertencentes à classe
média. É suposto percebermos e compartilharmos o desconforto de Nan quando
confrontados com todo este mau gosto. É suposto apreciarmos todas as referências
literárias. As políticas de classe tomam um rumo desconcertante no momento em que o
assédio sexual no campus e a luta sexista na família acontecem ao mesmo tempo,
porque o choque expõe a irmã de Nan, Shirley, e o aterrador marido Joe como
intolerantes, imprudentes e parvos. Lisa, a filha deles, é aguerrida e luta para sair dos
papéis convencionais e das expectativas que lhe são impostas. A sua única esperança é
seguir o exemplo de Nan e educar-se a si mesma. Contrai uma doença misteriosa, pois o
seu corpo regista o protesto. O seu pai ordena-lhe para ficar em casa. “‘Mas o que vou
fazer, pai, sentada em casa o dia todo?” “Vais estar com a tua família,” respondeu ele,
“onde podemos ficar de olho em ti. Não te lembras que um homem foi assassinado no

181
Valerie Miner, Murder in the English Department (London, Women’s Press, 1982).
182
O sistema de classes dos EUA não representa bem o britânico. As nuances de classe são difíceis de ler
em outras culturas, mas isso não significa, como alguns americanos me disseram, que não haja um
sistema de classe nos Estados Unidos. Na Grã-Bretanha, a classe é de onde se vem; na América a classe é
96

onde se chega. Assim, um professor universitário de Oxford meu conhecido, bem inserido na hierarquia
do colégio universitário e na sua profissão, poderia declarar-se da classe trabalhadora. Imagino que se ele
Página

não estivesse tão firmemente incorporado na classe média alta, ele não o teria mencionado. Por outro
lado, conheço americanos que se gabam com orgulho das suas origens humildes enquanto passam
cheques enormes para demonstrar a sua proeza em levantar-se dos escombros.
mesmo andar onde a coitada da tua tia tinha que trabalhar? Esse lugar é perigoso, Lisa,
especialmente para uma miúda delicada” (p. 95). Mas outra miúda aparentemente
delicada esfaqueou um professor que estava a tentar violá-la. Para as mulheres, a
família e a universidade são igualmente perigosas. Joe molesta a cunhada com
impunidade. “Joe conseguiu dar uma apalpadela nas costas de Nan para determinar se
tinha o sutiã vestido. Uma velha brincadeira dele” (p. 17). A filha dele, engaiolada,
frustrada, adoece gravemente. As três mulheres, centrais no texto, são
significativamente diferentes. Nan é uma arrivista da classe baixa, que subiu na vida e
ensina escrita feminina como professora universitária. Shirley continua como dona de
casa em Hayward. Marjorie, a assassina, é uma princesa rica, uma intelectual da alta
burguesia, uma intérprete que toca dissimuladamente. Sente-se em casa da mesma
maneira num qualquer dos seus conjuntos de roupa. Mas as três mulheres são forçadas a
interpretar papéis, como as mulheres que se conformam às regras do patriarcado de
alguma forma são sempre forçadas a fazer. Os trajes da Marjorie apenas tornam
completamente explícito o jogo dos papéis.
Em contrasto com a maioria dos thrillers, aqui conhecemos quer o assassino quer o
motivo. O ponto em causa é uma questão de silêncio: o de Nan. Ela sabe porque
Marjorie matou Angus Murchie; a violência dela foi uma resposta a uma tentativa de
violação. Ao compreender isso, Nan torna-se sua cúmplice e recusa-se a falar. A
estrutura política do romance de Miner é surpreendentemente parecida com o filme de
Marlene Gorres, A question of silence, embora gorre torne central a questão do motivo.
As testemunhas do homicídio de um homem, as outras mulheres numa loja, recusam-se
a comparecer. Nan protege Marjorie simplesmente porque é outra mulher, e todas as
mulheres vivem com violações e ameaças de violação. O seu silêncio é heroico. O
silêncio de Marjorie não é julgado. Este é um silêncio de aprendizagem. Ela não era
uma feminista. Ela recusou-se a apoiar a campanha contra o assédio sexual em terrenos
onde “uma rapariga [sic] aprende a evitar certas situações... Apesar disso, em certos
casos a ‘vítima’ poderia ser o professor acusado injustamente” (p. 20).183
Essa calma asserção disfarça um abismo de ódio por si mesma. Quem é que manipula e
cria as situações que devíamos aprender a recusar? Essas situações não são “ligadas”
com deliberada intimidação das mulheres por parte dos homens? Por parte de homens
que se arriscam a perder poder, posição, autoridade e estatuto se as mulheres se
moverem livremente no mundo público, se definirem a sua própria sexualidade e se
ganharem os seus próprios (justos) salários? O assédio sexual é um dos fins duma
escala móvel de violência contra as mulheres que começa com piadas picantes,
comentários sobre a roupa e olhares maliciosos e que acaba com uma violação. As
campanhas contra o assédio sexual implicam a redefinição da sexualidade masculina e
das trocas heterossexuais. No caso dos professores com as estudantes as ameaças
sexuais são um abuso violento de poder e uma quebra de confiança, por mais
lisonjeadas e bem-dispostas possam ter parecido as estudantes. As políticas sexuais de

183
Discussões úteis sobre a questão do assédio harassment no âmbito universitário são: Deborah
Cameron, “Sex with your Tutor? It’s his Fringe Benefit”, publicado pela primeira vez em Spare Rib, no.
99 (November 1980) e reimpresso (um pouco revisto) em Marsha Rowe (ed.), Spare Rib Reader
(London, Penguin, 1982); “T'he Ones who Just Patronise seem Genial by Comparison…”: An Enquiry
97

into Sexual Harassment of Women in Oxford University, um inquérito publicado pelo Oxford University
Student Union Women’s Committee, em abril de 1984; e um artigo particularmente bom de Melissa
Página

Benn, “Isn’t Sexual Harassment Really about Masculinity?”, Spare Rib, no. 156 (July 1985), pp. 6-8.
Também há um interessante estudo de caso de Riva Krut e Elaine Otto, “Danger! Male Bonding at
Work”, Trouble and Strife, no. 4 (Winter 1984), pp. 41-7.
Murder in the English Department são bastante explícitas. Marjorie Adams aprendeu
isso à sua própria custa.
Angus Murchie não vive para aprender e torna-se num cadáver repugnante. “Pela
primeira vez, ela apercebeu-se de que as calças dele estavam caídas à altura das coxas.
O pénis parecia um marcador púrpura... Por um momento refletiu se o assassinato seria
o clímax perfeito para todas as violações” (p. 45). A maravilhosa reflexão da Nan
ilumina o momento; na pornografia violenta o estupro e o assassinato da mulher
formam conjuntamente o clímax. Aqui o homem, morto pela mulher, está deitado morto
aos pés dela.
Mas o género textual do crime misterioso pode conter este material perigoso? Bom, não
de todo. Nan protege Marjorie e vai presa; a resolução chega durante a cena do
julgamento, quando Marjorie reaparece e confessa, não à corte patriarcal, mas
diretamente a Nan. “Matei Angus Murchie,” Marjorie dirige-se diretamente a Nan,
“enquanto ele estava a tentar violar-me”. As cenas do julgamento são necessariamente
conflituosas e intrinsecamente dramáticas. Costumam funcionar de uma forma entre
duas possíveis. Ou não entendemos todas as provas que estão a ser apresentadas no
texto, portanto vagueamos ao lado de detetives, júri, advogados e juízes, sabendo que
quando resolvermos o enredo do romance também teremos o mistério resolvido. Neste
caso o escritor/narrador e o leitor estão de dois lados diferentes. A escritora tem
informações que ela oculta. Ou, como em Murder in the English Department, nós
somos cúmplices do assassino, junto com o narrador. Isso transforma completamente a
natureza da nossa relação, enquanto leitoras, com a justiça social, a polícia, a
autoridade, a prisão. Nós também estamos fora da lei.
Quer Murder in the English Department quer Murder in the Collective tratam as
estruturas sociais da autoridade com cinismo e suspeito. A prisão no romance de Miner
está cheio de negros e chicanas. Contra essa avaliação realística da justiça branca racista
a conclusão do livro é preocupantemente utópica. “A juíza Marie Wong estabeleceu que
a violação é um ato de violência física tal que implica um substancial uso da força na
autodefesa” (p. 166). O juiz é uma mulher, uma mulher de cor e toma o partido de
outras mulheres: Marjorie é libertada; Nan deixa de se preocupar com a sua passagem a
efetiva e foge ao amanhecer. Mas quem achava que a ficção policial não era fantástica?
O que é realmente radical neste romance é a maneira em que as mulheres se mantêm
unidas, apesar das suas divisões. Judy Milligan a puta e Nan Weaver a professora
partilham a mesma cela e tornam-se amigas. A família da Nan, guiada pela irmã desta,
confia nela incondicionalmente. E a razão porque Nan protege a sua aluna é de uma
simplicidade subversiva em si. “Era outra mulher... precisava de ajuda. Deveriam
compreender isso” (p. 148). Bem, sim, eu compreendo, porque ela fala do coração do
feminismoo radical.
Ambos os livros referem-se ao género dentro do qual são escritos com cautelosa
autoconsciência. Hadley, no final de Murder in the Collective, comenta: “De alguma
forma sempre soube que a solução do caso dependia de ti e de Penny por serem
gémeas... Isso nunca veio à tona sequer” (p. 179). A sobrinha da Nan, Lisa, apercebe-se
de que Marjorie deve ser a peça que falta na história ouvindo quer os silêncios da Nan
quer os silêncios no texto.

“Nan, costumavas falar dela o tempo todo.”


“Costumava?”
98

“Claro, falavas sempre dos vestidos dela e de como ela era inteligente. Acho que eu
até tinha alguns ciúmes.”
Página

“Ó, Lisa.”
“E depois de repente deixaste de falar dela. Logo depois do homicídio.”
“Sherlock Holmes,” disse Nan.
“Não. Agatha Christie,” disse Lisa. “Li dez dos seus romances quando estava em
casa...” (p. 155).

E o outro segmento não dito no texto, o silêncio lésbico, é obviamente o apego de Nan
a Marjorie, do qual até Nan não tem absolutamente consciência.
A ficção policial está, em geral, escrita dentro de um estilo naturalístico, apesar dos
enredos fantasiosos. Isso tem implicações para uma autora que descreve a violência
contra as mulheres, e pode explicar a conclusão implausivelmente otimística de Miner.
Miner não quer reforçar o estatuto das mulheres como vítimas, tanto de violência
individual por parte de homens como a da violência institucional do estado patriarcal,
escrevendo mais um livro através do qual as inspirações e a energia das mulheres são
esmagadas pela força. Mas é extremamente improvável, embora faça sentido matar um
homem por autodefesa,184 que Marjorie Adams pudesse ser ilibada e libertada.
Violência de algum tipo deve haver nesta ficção. O cadáver é crucial. Os enredos podem
ser improváveis, os cenários social e físico são certamente. Dois thrillers que exibem
mulheres detetives e usam os cenários veristas da década de 80, as trevas da recessão,
cortes, racismo, agitações políticas e miséria urbana deteriorada como uma presença na
ficção são She came too late de Mary Wings, passado na Boston de Reagan, e Death by
Analysis, passado na Londres de 1981, no ano do casamento real e dos tumultos
internos da cidade.185 O romance de Wings aborda diretamente as políticas da
comunidade das mulheres. A nossa situação atual é sombria e piora rapidamente. “A
nossa cidade é um navio que afunda, e as mulheres e as crianças são os primeiros” (p.
4). As mulheres vão agora fazer mais ou menos qualquer coisa, até matar outras
mulheres, para continuar com os fundos. O romance de Wings aborda a política da
comunidade das mulheres de forma direta. A autora contorna o problema das diferenças
de poder e da violência contra as mulheres, tornando qualquer pessoa em lésbica: dois
dos cadáveres, a assassina e a detetive da investigação. O livro está no molde dos
policiais com estradas de aspeto pobre e tipos que falam rudemente: narração na
primeira pessoa, frases curtas e abundância de verbos fortes. Alguns comentários
irónicos são notáveis: “Dizia-se que era celibatária, mas a sua formação no convento
deixou-me desconfiada a esse respeito” (p. 5). “A realidade das fufas promete paraíso
entre os lençóis e luta nas ruas” (p. 39). Wings é cortante em relação racismo
institucional da ficção. Ela descreve uma mulher como branca, porque se supõe que
somos todas brancas, a não ser que haja uma descrição diferente, e ela oculta o facto de
a melhor amiga da heroína detetive ser preta até à última vez em que a encontramos:
“Jonell é a pessoa negra mais escura que conheço. Fico sempre chocada por como a
minha pele parece branca e sem vida perto da dela” (p. 168). As questões políticas
centrais, críticas para o enredo, são as novas tecnologias reprodutivas; o triunfo
ficcional é a partenogénese, ou, como a amante da heroína sugere, numa felicidade
bêbada, “Lesbian frogs” (p. 186)[verificar: Verificar rãs ou bêbadas?-
franceses????]. Mas Wings não tenta usar a forma da ficção policial de forma
inovadora. E, como sempre, o motivo é a fraqueza. A ambição pessoal nunca me parece
um motivo suficiente para cometer um homicídio. Mas provavelmente estou a ser muito
ingénua.
99

184
Ver – ou, aliás, ouvir – a canção de Ova sobre este tema, “Some day I’m gonna kill a man in self-
Página

defence/it makes sense.”


185
Mary Wings, She Came Too Late (London, Women’s Press, 1986); Gillian Slovo, Death by Analysis
(London, Women’s Press, 1986).
Há uma oportunidade perdida à espreita em Death by Analysis de Slovo. O tema da
psicanálise é importante na teoria feminista; Édipo fornece a ligação, pois resolver um
mistério na forma de ficção policial é precisamente aquilo de que trata a psicanálise. Os
casos de estudo de Freud são leituras parecidas com os romances policiais. Descobrir
quem fez isso e a quem implica colocar perguntas difíceis e inevitáveis, estabelecendo
um motivo ou motivos, desenterrando muita áspera emoção que os protagonistas
prefeririam manter enterrada, e topar com uma revelação que é também uma resolução.
A política negra é fundamental no livro. E a comunidade negra das Índias Ocidentais é
toda tão firmemente agarrada à luta de classe que não se preocupa absolutamente com
terapeutas. Só os brancos ficam a contemplar as suas infâncias e as suas fobias, os
negros estão demasiado ocupados em enfrentar a polícia e em lutar para sobreviver na
Grã-Bretanha racista. São-nos dadas algumas sessões envolventes com o terapeuta que
faz as relações de poder inerentes a estes encontros terrivelmente explícitos. Emergi
dessas passagens convicta de que a ação política era a resposta à terapia186. Mas Slovo
não explora a metáfora potencial da psicanálise e da ficção policial. Ao contrário, o
verdadeiro tema do romance, que vem à superfície de forma intermitente como um fio
fantasmagórico, é o contraste entre as décadas de 60 e 80. O movimento de libertação
das mulheres está estranhamente ausente e é implicitamente rejeitado. O que se passou
com as revolucionárias de 1968? Ora bem, a maioria delas jogou pelo seguro e aderiu
às certezas da classe média. Mas uma delas trabalha num abrigo para mulheres. É uma
“casa gigante” bonita, limpa, pintada de fresco, e, surpreendentemente, é apresentada
como uma opção fácil.

“...Eu gosto, viver com mulheres e crianças, partilhar as experiências uma da


outra.”
“É mesmo suficiente,” perguntei, “restrito ao teu pequeno nicho?”
“É o que tenho,” respondeu ela. “Às vezes o mundo torna-se muito grande. Até
estar satisfeita é uma proeza.” (p. 120)

Agora, o movimento das mulheres fez mudar o mundo, mas não pelas linhas prescritas
por uma definição da política que inclui apenas a luta de classe e a revolução violenta.
O abrigo para mulheres de Slovo parece-se com uma casa de férias de ricos com adição
de sol, crianças alegres e saladas saudáveis. Talvez eu frequente os círculos errados,
mas o único tipo de abrigo para mulheres que já encontrei estava superlotado, sem
financiamentos e procurado por homens assassinos. Ninguém jamais pensou que este
era o lado suave da política. Parecia o limite brutal mais sangrento. O feminismoo teve
um efeito, no entanto. Os homens estão menos confiantes. “As mudanças que o
feminismoo produziu limitaram-se a agudizar ainda mais as suas inseguranças. Há dez
anos ter-se-iam sentido seguros pelo menos nas suas casas. Agora até a sua conduta
pessoal era alvo de examinação” (p. 95). Há outro pormenor animador. A heroína é tão
absorvida pelo seu trabalho de detetive que o seu caso amoroso desmorona-se. É o seu
amante Sam que está preocupado com a relação e com a construção de um ninho. Há
pelo menos esperança para o seu futuro como feminista.
O atual florescimento da literatura de crime escrita por mulheres tem produzido algumas
boas histórias, mas elas não são necessariamente feministas na intenção ou na execução.
The Price You Pay de Hannah Wakefield é uma apaixonante escapada política, mas
100

186
Não só a única a ter esta opinião. Vide Sara Scott & Tracey Payne, “Underneath We’re All Lovable”,
Página

Trouble and Strife, no 3 (Summer 1984), pp. 21-4; também a ponderada resposta de Lorraine Davies a
esse artigo na secção de cartas das leitoras do número seguinte: Trouble and Strife, no. 4 (Winter 1984),
pp. 9-10.
algumas referências ao sexismo, às questões das mulheres, uma detetive forte e um
comentário sobre o movimento das mulheres não perfazem um romance feminista.

“...E deixaram-me tratar as questões das mulheres.” Ela sorriu. “No sistema delas –
que tenho vergonha em dizer que também era o meu quando comecei – o
movimento das mulheres não é ‘político’. É classificado como ‘interesse humano’
e é considerado como uma ameaça insignificante para a ordem estabelecida. Não é
pomposo? Acreditas?”187

Ora, lendo Hannah Wakefield receio que sim. The Price You Pay é um excelente thriller
convencional que reproduz todo o conservadorismo inato da forma. Como esquerdista
residual gostei que me dissessem que os EUA eram mais ou menos geridos pela CIA;
que Castro e Allende foram gajos bons e que, se os tivessem deixado seguir em frente,
teriam tornado Cuba e o Chile, respetivamente, num paraíso socialista. As simplicidades
da literatura de crime trabalham sempre contra as complexidades do feminismoo. A
mulher, dentro de sistemas de signos patriarcais, representa duplicidade, deslealdade,
traição e instabilidade emocional. E é o que ela faz em The Price You Pay. A mulher,
que acaba por ser um dos cadáveres, é convencida com engano pela CIA a tornar-se um
dos seus agentes, mas é constantemente dilacerada nas reações dos seus intestinos cada
vez se confronta com excelentes, honestos e honrados socialistas. Ela muda de lado,
escolhe bondade, justiça e dissidência e logo é salva pouco antes de acabar morta. Na
ficção de crime convencional o preço do pecado é sempre a morte. Em The Price You
Pay a advogada-detetiveProcurar texto, verif se detective é homem ou mulher tem um
escritório de advocacia só para mulheres; mas esse é apenas um detalhe incidental que
podemos esquecer. Voltamos à autoestrada dos discursos e das formas patriarcais; as
pistas feministas não levam para lugar nenhum.
Todas as tipografias de mulheres, nos finais da década de 80 e no início dos anos 90,
estiveram empenhadas na promoção do género da ficção feminina porque a combinação
de ruídos textuais feministas e uma rápida leitura escapista vende extremamente bem. É
claro do que escrevi aqui que não me converti a este tipo de escrita, apesar de respeitar o
empreendimento de mulheres que desejam subverter e destruir o género da ficção188. A
ficção policial lésbica é, necessariamente, mais subversiva, porque a inserção de
significados lésbicos em qualquer tipo de ficção de género interrompe os códigos
heterossexistas do desejo. No seu segundo thriller com Pam Nilson, Sisters of the Road,
Barbara Wilson desafia a autoridade e o poder da detetive em relação às vítimas de
crime, que geralmente são ingénuos, ignorantes ou estão mortos189. A cena final, onde a
detetive é brutalmente violada pelo assassino, tem sido criticada por reinscrever a
vulnerabilidade das mulheres à violência masculina em formas ficcionais, e, assim,
interromper o prazer da leitura utópica sobre detetives super-mulheres. A cena é
chocante. Pretende ser. E no fim é a jovem prostituta, supostamente a vítima, quem

187
Hannah Wakefield, The Price You Pay (London, Women’s Press, 1987), p. 232.
188
Fui influenciada por dois ensaios sobre a ficção policial lésbica dos quais discordo: Sally Munt, “The Investigators:
Lesbian Crime Fiction”, in Susannah Radstone (ed.), Sweet Dreams: Sexuality, Gender and Popular Fiction (London:
Lawrence & Wishart, 1988), pp. 91-119, e Paulina Palmer, “The Lesbian Feminist Thriller and Detective Novel”, in Elaine
Hobby & Chris White (eds), What Lesbians Do in Books (London, Women’s Press, 1991). Estas duas escritoras estão
interessadas nas interpretações psicanalíticas da ficção; Palmer tem uma secção especialmente interessante sobre a tensão
101

entre o individualismo do/da detetive e os ideais coletivistas da política feminista lésbica que a ele se opõe. Munt fala da
instável subjetividade sexual da heroína de Wings, Emma Victor, em She Came Too Late, dos temas sexuais explícitos;
ocasionalmente resvala numa prosa académica ilegível, como: “A ficção policial lésbica fornece um local de combate sobre
definições, colocando a lésbica no centro da disseminação de significado” (p. 109). Muitas vezes senti que a ingenuidade
Página

crítica académica tanto de Munt como de Palmer era muito mais sofisticada do que a ficção que analisam. Talvez venham
ambas a escrever thrillers. Espero que sim.
189
Barbara Wilson, Sisters of the Road (London, Women’s Press, 1987).
conforta a detetive. O equilíbrio de poder muda. A forma do género desmorona-se. E
estamos a ler um novo tipo de ficção política: a ficção feminista – onde tudo continua
por dizer190. Wilson foi uma das mulheres a dizê-lo. O seu trabalho mais recente, The
Dog Collar Murders e Cows and Horses, continua este desenvolvimento. The Dog
Collar Murders tem um mistério crime do esqueleto que se dissolve numa discussão
feminista detalhada. Algumas leitoras não gostam disso: eu gosto. Cows and Horses é
uma ficção menos polémica, um regresso à maneira realista de pequena escala que lida
com trabalho, sexo, amor e amizade num cenário invernal elegantemente escrito.
Discreto e atencioso na prosa e nas personagens, o livro foi acusado de ser um texto em
que nada acontece pelo recenseador de Gay Scotland. A ficção lésbica deve ter ação?
Talvez tenhamos perdido o interesse na ficção onde as mulheres sentem mais do que
fazem.
Imagine um mundo onde uma mulher pode dar “um passeio à noite sob as estrelas.
Imaginou-se a andar tranquilamente por uma estrada de campo, sentindo só uma ténue
curiosidade ao ver três homens que vinham na sua direção. Imaginou pedir boleia a
alguém que lha quisesse dar. Imaginou responder à porta sem medo, para ver se alguém
precisava de ajuda...”191. A sonhadora de Marge Piercy, Connie Ramos, a Woman on the
Edge of Time, imagina Utopia, um mundo onde as mulheres viveriam livres da violência
dos homens. Utopia – o mundo imaginário de Thomas More, que deu o seu nome a todo
um género de escrita – veio à luz como uma piada grega. O nome significa tanto um
lugar bom, Ɛʋ / τόπος, ou mundo ideal, e ou ʋ /τόπος topos, pagina 99 livro PD
incluir caracteres gregos em nenhum lugar; ele não existe. As versões do século XX de
futuros imaginários ou de outros mundos, escritos por homens, tiveram a substância de
um pesadelo: Lord of the Flies de Golding, 1984 de Orwell e Brave New World de
Huxley192. Em todos esses casos, a natureza do homem (sic), revela-se gananciosa de
mais, obcecada pelo poder e violenta para reconstruir o paraíso. Uma visão utópica é um
elemento necessário em todo o pensamento feminista. O profundo desejo do
feminismoo, na voz de Mary Wollstonecraft, de ver a distinção entre sexos banida aa
sociedade, é necessariamente utópico. E há um impulso fortemente utópico por trás dos
argumentos e das possibilidades sugeridos para a mudança na teoria feminista. Imaginar
um mundo radicalmente diferente para as mulheres é imaginar um mundo radicalmente
diferente.
The Dialect of Sex de Shulamith Firestone oferece algumas propostas concretas
“perigosamente utópicas” para uma sociedade que já não se baseia na reprodução da
força de trabalho através da família nuclear. Mas, ela reclama: “Não temos sequer a
imagem literária desta sociedade futura.”193 Firestone continua a postular alternativas ao
amor e ao casamento, famílias alternativas e regras básicas para a política pessoal que
promoveria inevitavelmente a perspetiva de uma mudança social radical. Os cuidados
maternais surgem como questão crítica, tanto na prosa imaginativa como na discursiva
que defende uma nova maneira de viver e um novo mundo, simplesmente porque a
nossa capacidade reprodutiva como mulheres sempre foi a base da nossa exclusão e
opressão num mundo que vê a paternidade de uma criança como o ato de um instante e
o imperativo de criar uma criança como uma vida inteira de compromisso e dedicação,
102

190
Veja-se o terceiro romance de Wilson na sua série de Pam Nilsen, The Dog Collar Murders (London, Virago, 1989);
também Cows and Horses (London, Virago, 1989). Para um comentário sobre mulheres e ficção policial, vide Linda
Semple, A Suitable job for a Woman: A History of Women Crime Writers (London, Pandora, 1988) e para a situação real
Barney Bardsley, Flowers in Hell: An Investigation into Women and Crime (London, Pandora, 1987).
Página

191
Marge Piercy, Woman on the Edge of Time (London, Women’s Press, 1979), p. 207.
192
Vide Francis Mulhern, “Writing for the Future: The Politics of Literature”, Nerv Statesman, 22 March 1985, pp. 24-6.
193
Shulamith Firestone, The Dialectic of Sex (1970; London, Women’s Press, 1979), p. 211.
uma profissão de vocação social.194 A maternidade está no centro de um dos primeiros
textos de Charlotte Perkins Gilman, o utópico Herland, onde qualquer mulher é mãe de
qualquer criança; para Piercy o processo de nascimento é entregue nas mãos da
tecnologia, e a maternidade, incluindo a amamentação, é compartilhada entre homens e
mulheres; em The Wanderground: Stories of the Hill Women de Sally Miller Gearhart
todas as crianças têm sete mães.195

As utopias refletem sempre a sociedade que as produziu, e contra a qual estão escritas,
de formas interessantes e significativas. O segredo da felicidade numa sociedade ideal é
a chave para o sentido político da ficção. Para News from Nowhere (1890) de William
Morris o segredo é o socialismo. Para Perkins Gilman, que escreveu durante a Grande
Guerra, a resposta é a própria maternidade “O poder do amor da mãe, esse instinto
maternal que elogiamos tanto, pertencia-lhes obviamente, elevado à maior potência; e
um amor de irmã a que... achámos difícil dar crédito” (pp. 57-8). A noção de mães de
Perkins Gilman é apenas para mulheres; elas reproduzem-se por partenogénese,
representada como um esmagador desejo espontâneo de ter um filho. “Herland” é
percebida através da consciência alienígena de três homens que a visitam. Eles são
estranhos em todos os sentidos, quer como homens numa sociedade de mulheres quer
como forasteiros do Mundo Antigo em utopia. A romancista joga com as expectativas
deles e da leitora. Mas também polariza os sues leitores com a divisão sexual. Uma
leitora vê para além dos ombros dos homens. Ela tem uma apreciação imediata da
perspetiva utópica; a escritora está ao seu lado. O texto é uma piada que exclui os
homens. Eles imaginam uma utopia amazónica de jovens mulheres encantadoras. E de
facto as primeiras três que eles veem são jovens e lindas; as amazonas do cliché
patriarcal. Mas as mulheres que lidam com os intrusos são velhas.

Em todas as nossas discussões e conjecturas sempre assumimos inconscientemente


que as mulheres, fossem o que fossem, seriam jovens. A maioria dos homens
pensam assim, imagino.
As “mulheres” em abstrato são jovens e presumimos que charmosas. À medida que
ganham idade saem do palco, de alguma forma, principalmente para uma
propriedade privada, ou também saem dela. Mas estas boas senhoras estavam no
palco, mesmo que todas elas pudessem ser avós. (p. 20)

Em todas as obras feministas utópicas as mulheres envelhecem, mas sempre com


imensa força e dignidade. Nenhuma se torna objectável, fedorenta e incontinente.
Nenhuma baba.
Woman on the Edge of Time de Marge Piercy apresenta um mundo futuro de sexos
mistos, pequenas comunas, onde o poder de dar à luz foi abandonado pelas mulheres em
troca de igualdade com os homens. Os bebés são produzidos por um útero tecnológico,
uma incubadora. Em Mattapoissett até os homens são mães. Mas Piercy fala do poder a
que as mulheres têm de renunciar; ela não nos diz os privilégios que os homens
cederam. A maternidade parece tornar-se uma profissão honrosa, mal se abre aos
homens.
A estrutura do livro de Piercy é interessante. Ela move-se entre o hospício onde a sua
heroína, Connie, está encarcerada e Mattapoisett; mantém o equilíbrio entre o
103

194
Página

Para uma extensa e iluminante exposição feminista sobre o assunto, veja-se Adrienne Rich, Of Woman Born:
Motherhood as Experience and Institution (1976; London, Virago, 1981).
195
Charlotte Perkins Gilman, Herland (1915; London, Women’s Press, 1979); Sally Miller Gearhart, The Wanderground:
Stories of the Hill Women (1979; London, Women’s Press, 1985).
naturalismo e a fantasia da ficção científica, e faz com que isso divida o espaço entre o
mundo presente e a utopia. Assim, todas as personagens no hospício, a configuração
apropriada para o nosso mundo, e na Mattapoissett utópica, são equivalentes entre si.
Há aqui implicações radicais, porque a imaginação de Connie é a sua fonte mais potente
de liberdade e vingança. Ela, como todas as outras mulheres presas, pode imaginar um
mundo melhor. E é precisamente este poder, o poder de pensar-se livres, o que os
médicos brancos tentam controlar e destruir. Mas ela foge deles e imagina Utopia. O
problema com a ficção de Piercy é a disjunção entre a política da secção de
enquadramento, pesadelo de Connie como cobaia num hospício, e as políticas da Utopia
ideal. Deixem-me explicar. A mensagem de Piercy é terrivelmente simples: o futuro
depende de nós, de todos nós, agora. Ela tem como seu foco central da consciência uma
mulher que está no fundo do poço, uma chicana pobre num mundo branco rico. Connie
é sistematicamente subjugada; perde a casa, a liberdade, a família, o respeito de si
mesma, e é como a mais impotente e vulnerável das pessoas que ela encontra a sua
força. O texto de Piercy não rejeita a violência como meio para alcançar uma mudança
radical. Na verdade, ela argumenta que a violência é o contexto dentro do qual todas as
mulheres são forçadas a viver. A violência doméstica abre o livro, e de lá vemos Connie
lançada na violência institucional da prisão do hospital. O primeiro e o último ato de
Connie no livro são violentos, e ambos são golpes desferidos contra os homens; os
homens que são identificados firmemente e sem hesitação como as fontes de coerção e
opressão. A heroína de Piercy não é nem uma santa nem uma feminista. Ela sobrevive,
em vez de viver. Mas tem a raiva de uma mulher, que se torna produtiva e libertadora
quando é voltada para fora, contra os homens, e não para dentro, sobre si mesma.
“Vivendo numa contemplação forçada, descobriu que aquela raiva pura ainda brilhava
nela. Odiava Geraldo e para ela estava certo odiá-lo... Não se tinha debatido contra si
mesma, não contra si noutra pessoa, mas contra Geraldo, o inimigo” (pp. 19-20). O ato
homicida final de Connie é justificado e apoiado por qualquer pessoa envolvida na sua
conspiração: a escritora, a leitora, o texto.
A alternativa à resistência de Connie é incorporada pela sua sobrinha, Dolly, que
percebe o seu poder reprodutivo como o seu único poder manipulador. Ela fica grávida
para chantagear o seu chulo e forçá-lo a casar com ela. A intriga falha e ele obriga-a a
abortar. Dolly é uma mulher identificada como homem presa numa armadilha
económica. Geraldo obriga-a a trabalhar como prostituta, ela precisa dele para que a
proteja das fraydes. E assim ela aceita o status quo sexual. As mulheres existem para
serem usadas por homens. “Ele é o meu homem... O que posso fazer?” (p. 24). A
realidade da sua vida, das vidas de todas as mulheres, é o encarceramento; dentro de
prisões económicas e sexuais. Assim, o hospício torna-se numa metáfora de um estado
de ser. Dados os termos destas condições, as mulheres traem-se uma à outra. Dolly trai
Connie porque tem medo de dizer a verdade com o seu homem presente, temendo
justamente as consequências. A língua também aprisiona Connie. Ela não é capaz de se
definir contra o resto do mundo; portanto o seu amante cego, Claude, torna-se “um
carteirista deficiente negro” e a sua filha torna-se “a criança abusada e negligenciada”
(p. 26). Mas, sem qualquer teoria ou análise, e com pouco apoio precioso, Connie
esboça as suas próprias conclusões a partir da sua própria experiência corpórea, e
resiste. A narrativa que se desenvolve representa as realidades das nossas vidas com
toda a clareza enfurecida dum tratado feminista radical.
104

O futuro utópico de Piercy, por outro lado, é um empreendimento de pouca


envergadura, cooperativo e socialista, em que todos nós já aprendemos a trabalhar
Página

juntos. Mattapoissett redefine a família como tribo. É uma sociedade baseada em rituais,
em que as emoções são naturais e incentivadas, a loucura é uma forma aceitável para
descobrir-se a si mesmo, a automação significa libertação e o trabalho é determinado
pelos ciclos naturais da terra. O processo exaustivo consultivo da democracia completa
é descrito com realismo otimista. Ninguém possui ninguém; a adolescência foi
totalmente abolida. Todos têm uma consciência ecológica magnífica, o racismo não
existe, e uma unidade completa de propósitos tornou obsoleta a diversidade cultural.
Diferentes culturas são, de qualquer maneira, mantidas artificialmente como uma
herança nacional pitoresca.
Até aqui, tudo bem. As gretas mostram-se – e de facto, é aqui que eles costumam
mostrar-se – quando Piercy analisa a sua política sexual utópica. Os homens, que na
elaboração narrativa são, no conjunto, os monstros assassinos egoístas, agora são
companheiros atenciosos, aceitáveis. São mesmo? Jackrabbit parece estar em um
perpétuo estado de ereção. E o seu comportamento em relação a Connie lê-se como a
mais cruel forma de assédio sexual. O duplo e guia utópica de Connie, Luciente,
assegura tanto Connie como a leitora de que a sexualidade foi reduzida ao seu devido
espaço; mas a forma civilizada do amor livre, que é a prática habitual nesta utopia,
torna-se fundamental dentro da narração. Para Piercy, que escrevia em 1976, a
revolução ainda significa realmente revolução sexual, e se muitos outros problemas
económicos e sociais têm sido resolvidos, o sexo ainda estraga o sistema. O “holi” de
Jackrabbit e Bolívar – uma espécie de espetáculo de luz holográfica com imagens
visuais (que, diga-se de passagem, devem ser horríveis de ver) – é justamente criticado
por Luciente. Ela vê as figuras feminina e masculina que lutam que se dissolvem em
andróginos como uma análise inadequada da luta destrutiva da história. “Não consigo
ver o homem e a mulher como igualmente de deplorar, porque um tem poder e a outra
era uma propriedade. Nada do que fizeste fala disso” (p. 211). E curiosamente, este é o
único momento nas secções do livro dedicadas a Mattapoissett onde se permite que uma
análise feminista radical, tão convincentemente confutada em outros lugares, desafie o
sistema sexual.
Na utopia os homens já não dissimulam e abusam das mulheres abertamente. Mas eles
continuam a exercer as táticas de sexismo liberal: ignorar, omitir, suprimir. O
desequilíbrio de poder entre os sexos ainda não foi destruído. Isso é particularmente
evidente quando Bee dá a Connie uma noite de felicidade. A linguagem do ato sexual
heterossexual, e de facto do ato em si, é, como Piercy assegura maliciosamente,
“constante em qualquer momento” (p. 187). Isso obviamente é falso. O significado e a
prática da sexualidade diferem entre as culturas e ao longo da história. E cada feminista
heterossexual certamente ficará perturbada ao descobrir que mesmo na utopia o homem
continua implacavelmente no comando. Connie está certamente bem-disposta, mas o
sexo é ainda algo que o homem lhe faz para. A linguagem do erotismo revela o jogo. O
homem conduz, a mulher sucumbe: “...estava a conduzi-la... fê-la baixar ... A cabeça
dela desabou (sic)... ele foi para cima dela e entrou nela... ele montou nela.” Bee chega a
recriar o corpo de Connie “Ele lentamente começou a construir o corpo dela tirando-o
da escuridão” (p. 188). O sexo penetrativo heterossexual tem um significado
potencialmente desagradável na história das relações sexuais contemporâneas, pois não
é um ato realizado entre iguais. A análise feminista radical que liga a penetração à
violação não é, obviamente, a que Piercy aceitaria; o encontro entre Bee e Connie é
oferecido como paraíso recuperado. Isso pode muito bem ser verdade, mas é descrito
numa linguagem cheia de clichés que justamente foram criticados por apoiarem a
105

sujeição sexual das mulheres.


Os clichés que rodeiam os prazeres da heterossexualidade são igualados pelo
Página

antilesbianismo irracional. As lésbicas são definidas, no texto de Piercy, como seres


essencialmente sexuais, nada mais. “O hospital tratou Sybil como uma lésbica. Na
verdade ela não tinha vida sexual” (p. 85). E a contrapartida de Sybil em Mattapoissett,
a Diana mística, acaba por ser uma parceira sexual de risco. Luciente lembra, “ … era
uma ligação, sabes, nós obcecadas. Não é bom para o crescimento” (p. 64). O
lesbianismo utópico, aparentemente, tem o efeito de reduzir as mulheres a um estado de
adolescência detida. Mas a homossexualidade masculina tampouco recebe uma boa
divulgação; Bolívar e Jackrabbit também causam problemas pela sua intensidade.
Piercy não está preocupada com o processo de redefinição imaginativa da diferença
sexual. Será que ela perde a coragem? Pode muito bem ser o caso, pois Luciente
aparece pela primeira vez no texto introduzido como um homem. Connie teme que seja
um assaltante e um lunático, um medo que desaparece quando Luciente indignadamente
afirma o triunfo da biologia. “É claro que sou uma mulher” (p. 67). Esta revelação
provoca uma mudança genuína de percepção na compreensão do leitor sobre a maneira
como lemos a inscrição do sexo no texto; mas isto não volta a acontecer. As pessoas
andróginas de Mattapoissett são realmente homens e mulheres por dentro. Os absolutos
sexuais permanecem incontestados.
Piercy dá-nos um breve olhar sobre uma distopia de pesadelo onde as mulheres são
fisicamente construídas como grotescos objetos sexuais, “uma caricatura de
feminilidade” (p. 288). O inferno alternativo é urbano, centralmente possuído e
pornográfico. Mas esse não é o nosso futuro inevitável. Podemos escolher, mesmo a
mulher aparentemente mais impotente pode escolher; e essa é a verdade mais
subversivamente radical em Woman on the Edge of Time. “O poderoso não faz
revoluções” (p. 198).
É a própria terra que se revolta em The Wanderground de Sally Miller Gearhart e a sua
é uma revolta contra a violência e a força masculinas. A sociedade contra a qual as
“mulheres da colina” se revoltam é assombrosamente parecida com a distopia de
Piercy, um inferno urbano onde as mulheres oscilam tão provocativamente de saltos
altos como putas, ou se tornam “reprodutoras”: “...uma mulher tinha poucas opções no
caso de colaborar. Podia conservar os seus sentidos e ser uma puta ou uma esposa ou
podia levar um pequeno conserto no cérebro e ser uma puta ou uma esposa na mesma.
Se o seu corpo era demasiado feio ou demasiado velho podiam usá-la para trabalho de
manutenção” (p. 165). Se isso soa desagradavelmente próximo ao atual estado de
coisas, acredito que é a intenção de Miller Gearhart. Pois na sua ficção o sonho de uma
linguagem comum acaba, os homens são irrevogavelmente o inimigo e a única
esperança de sobrevivência para as mulheres é a de ir para as montanhas. Aqui, as
mulheres descobrem uma “conexão” nova com a Natureza e a Terra, que são,
convenientemente, as duas do sexo feminino. Elas desenvolvem novos conceitos para
descrever este processo de conexão, tanto com a terra como as umas com as outras: eu
forte, eu brando, desprendimento, toque de raiz, cavalgar o vento, revelações
primordiais. Miller Gearhart não nos dá um glossário, ela simplesmente permite que os
significados evoluam a partir do texto. A sociedade das mulheres da colina é percebida
no seu dia a dia; é uma comunidade de mulheres, baseada no consenso, não na força, e
todas as coisas vivas ou naturais fazem parte dessa comunidade. Alaka numa viagem
recebe o incentivo de uma flotilha de peixes e os seus pés são aquecidos por uma
árvore útil. Manaje só pode ter um gatinho com o consentimento do animal. “Disseram-
me para te dizer que Terpsichore trouxe sete gatinhos. Um todo preto ficará ao teu
cuidado especial se se escolherem um à outra” (p. 146). O mito no centro da ética das
106

mulheres da colina é a história no centro dos antigos mistérios de Elêusis, o mito do


ciclo das estações, o mito de Perséfone e Demetra. Esta é, naturalmente, uma história
Página

de violação em que a força masculina é equiparada com a morte, e a união de duas


mulheres, mãe e filha, é a chave para a ressurreição e a cura da terra. Na versão de
Miller Gearhart o refrão crítico enfatiza a liberdade essencial da mulher de escolher.
“Muitas vezes hei de perguntar-lhe, mas jamais poderei levá-la se ela não escolher ir”
(p. 80).
The Wanderground não é uma narração contínua, mas uma espiral de histórias
interligadas, cada uma das quais foca na experiência de uma mulher, mas que a
relaciona com a comunidade das mulheres. O efeito portanto é cumulativo,
apresentando os costumes, a ética e as práticas de uma sociedade de mulheres de uma
forma que insiste numa percepção e presença coletiva em vez de isolar as mulheres
individualmente como heroínas da narração. Até as memórias das mulheres são
coletivas: elas vivem nas experiências das outras na sala da memória. O romance, como
uma narração linear de eventos construídos até um clímax e uma resolução, bem
poderia ser considerado como uma forma predominantemente fálica, com um conjunto
de personagens e eventos privilegiados face a outro. As histórias interligadas de Miller
Gearhart destroem esta parábola, oferecendo pelo contrário um turbilhão de
perspectivas de espelhamento.
A maternidade no Wanderground é um empreendimento coletivo tal como na narração
de Piercy e em Herland de Perkins Oilman; mas a gravidez ainda acontece nos ventres
individuais. A irmandade mais do que a maternidade é o ponto essencial entre as
mulheres. Não somos desumanamente idealizadas; de facto, o texto abre-se com raiva –
“duas irmãs mais velhas que muito se visitaram reciprocamente” estão ocupadas a
discutir – mas na lésbica do Wanderground o sexo não parece apresentar qualquer tipo
de dificuldade. A paixão ou o desejo de ninguém revela-se incontrolável, ninguém fica
com ciúmes. Na verdade, o erótico torna-se interessantemente presente. O encontro de
Clana com a cobra é uma comunhão orgásmica. Blase, Huntsblood, o gato grande e o
pinheiro acabam por cantar na língua do amor sensual completo. “O canto dilui-se
suavemente em ritmos. Os ritmos pareceram ecoar durante uma longa despedida…
havia duas figuras, uma muito mais larga do que a outra, mas ambas envolvidas num
abraço circular de pinheiro que oscila brandamente.” (pp. 81-2).
Wanderground é uma sociedade de mulheres que não estão em paz, mas ainda no
processo de tornar-se em si mesmas. As mulheres vivem sob a ameaça dos homens que
ainda dominam as cidades, assim como a Mattapoissett de Piercy é ameaçada por um
futuro potencial que poderia roubar as suas existências imaginadas. Ambas as
narrativas descrevem, como avisos, as sociedades contra as quais os seus mundos ideais
são criados pela escrita. Ambas as utopias são de pouca envergadura, comunidades
agrárias, com base em rituais tribais e ciclos naturais. As mulheres da colina de Miller
Gearhart moram perto da terra, sem tecnologias elaboradas, por escolha. “Podemos
fazer tudo o que podiam fazer as velhas máquinas. E com muito menos esforço” (p.
156). Elas têm, potencialmente, um enorme poder: “Todas elas estavam a preparar-se
para o tempo em que seria possível juntar o seu poder, direcioná-lo, e confrontar
qualquer violência assassina que ameaçasse a terra” (p. 133). A fonte inevitável
daquela violência seriam os homens; Gearhart Miller apresenta-no-los como violadores
indiferentes, assassinos brutais, abomináveis – não por áspera caricatura, mas
simplesmente por apresentar os jogos de política sexual e a distopia ficcional
inteiramente do ponto de vista de uma mulher. Numa das narrativas escapistas uma
mulher joga para ganhar tempo sabendo que não pode manter os homens à distância
por muito tempo, “... percorrendo aquela linha subtil entre vai-ao-diabo e vem-para-a-
107

cama... Exatamente a proporção certa de justa indignação, autocontrole altivo, amável


rejeição e implícita familiaridade” (p. 95). O engano é a arma necessária de quem não
Página

tem poder. Nenhuma mulher que anda por essa linha subtil pode sempre ganhar no
longo prazo. Os homens não têm acesso à mente das mulheres, assim como o amo não
tem acesso ao do escravo. Mas o resultado de cada encontro, em última análise,
depende de quem tem o chicote.
Num artigo sobre o feminismoo e ficção científica, Gwyneth Jones critica a escrita
profética futurista que prevê as consequências lógicas de opressão masculina,
“...demasiadas páginas demorando-se amavelmente sobre os homens sórdidos e
poderosos e as pobres mulheres indefesas. Isso é catártico mas perigoso. É uma magia
má; que reforça os modelos de derrota.”196 Esta é, substancialmente, a sua objeção a
The Wanderground. Decerto as declamações das nossas opressões como um rosário
masoquista não fazem progredir A Causa. Por outro lado, nem todas as mulheres
aceitam que a situação esteja tão má como está, para não dizer como Miller Gearhart
imagina que possa vir a ser. Fechamos os olhos; é demasiado horripilante abri-los. A
ficção feminista alcança um público mais vasto do que a teoria feminista. Mulheres
que podem não abordar Gyn/Ecology de Mary Daly, bem podem ler The
Wanderground. De facto, acho que a visão da atrocidade de Miller Gearhart é
sabiamente exposta. Qualquer mulher reconhecerá o desconforto de Evona no bar da
cidade: “Os homens estavam a vangloriar-se, as mulheres estavam a ouvir, as
empregadas estavam a andar depressa” (p. 123). Ou as limitações sobre o vestuário.
Numa entrevista para um emprego o meu futuro empregador informou-me: “Menina
Duncker, nós não usamos calças”. Não usávamos. Consegui o trabalho. Nalguns
lugares do mundo o vestuário feminino é prescrito por uma lei do estado. Quanto
poderia demorar o aviso da polícia para que as mulheres ficassem em casa à noite ou
saíssem somente com um acompanhante masculino, como no Norte da Inglaterra
durante a última década quando o Estripador do Yorkshire estava livre e a polícia
estava a demonstrar-se significativamente incapaz de o capturar, a tornar-se num
recolher obrigatório contra as mulheres que saem à noite? A violação, e a ameaça de
violação, já é uma forma de controlo social. Peter Sutcliffe tornou-se numa estrela dos
média não só porque se conformou com o estereótipo do animal-do-sexo-à-solta-na-
escuridão, mas também porque desenvolveu um ódio contra as mulheres que a nossa
sociedade de facto não condena197. Geralmente, não somos maltratadas e atacadas por
pessoas desconhecidas na noite, mas pelos homens que amamos. A maioria das mulheres
atacadas e violadas foram assaltadas por homens que conheciam. Eis Miller Gearhart: “...as leis
do estado estão a ser revistas para exigir que todas as mulheres sejam casadas... o recolher
obrigatório para as mulheres entrou logo em vigor. Uma mulher apanhada a usar calças foi para
uma unidade de modificação comportamental; apareceu com um vestido e um sorriso vago
muito assustado” (p. 165). Ela limitou-se a empurrar a realidade presente um passo em frente
no seu caminho. A sua estratégia é simples. Imaginando o que poderia acontecer, obriga-nos a
reconhecer o que está a acontecer. Esta não é uma litania do horror autoindulgente mas uma
análise política e uma polémica feminista, uma simples libertação da imaginação radical.
As políticas do texto de Miller Gearhart são as do feminismoo lésbico ecológico radical; a força
das mulheres reside no “seu conhecimento comum” (p. 133). Os homens, ainda mais os que não
têm chicotes (chamados os “Gentles”, ou seja os “Brandos”), estão fora desta consciência e
invariavelmente estranhos. Não é explicitamente declarado que os Brandos representem os

196
Vide Gwyneth Jones, “Imagining Things Differently”, Women’s Review, no. 3 (January 1986), pp. 10-
11. Fornece uma bibliografia útil da ficção científica feminista.
197
Para uma análise especulativa original embora algo autoindulgente da tentativa de Peter Sutcliffe veja-se Nicole Ward
Jouve, The Streetcleaner: The Yorkshire Ripper Case on Trial (London, Marion Boyars, 1986). Para uma avaliação séria e
108

realística das questões em causa vide The London Rape Crisis Centre, Sexual Violence: The Reality for Women (London,
Women’s Press, 1984); Dusty Rhodes & Sandra McNeill (eds), Women Against Violence Against Women (London,
Onlywomen, 1985); Jalna Hanmer & Sheila Saunders, Well-founded Fear: A Community Study of Violence to Women
(London, Hutchinson, 1984); e para uma perspetiva americana, Andrea Dworkin, “The Rape Atrocity and the Boy Next
Página

Door”, in Our Blood: Prophecies and Discourses on Sexual Politics (1976; London, Women’s Press, 1982), pp. 22-49.
Veja-se ainda Deborah Cameron & Elizabeth Frazer, The Lust to Kill: A Feminist Investigation of Sexual Murder
(Cambridge, Polity, 1987).
homens gay; mas são homens que se recusaram a violar e a oprimir as mulheres e que lutam
para se aproximarem uns dos outros. Isso não é fácil. “De qualquer maneira homens – embora
Brandos – acharam difícil ou impossível partilhar realmente o poder” (p. 124) Nesse tempo sem
os Brandos seria impossível para as mulheres manter o seu controlo nas cidades. Na secção
chamada “Meeting the Gentles” são as políticas de separatismo e de cooperação as que estão em
causa. Esta história no livro torna a leitura dolorosa e interessante. O enfrentamento ocorre
numa sala de tribunal. As duas partes, as mulheres e os Brandos, discutem a sua causa; a leitora
é o juiz. Nós escolhemos. Os “Gentles” conseguem comunicar telepaticamente uns com os
outros só quando se dispõem numa linha fálica. Eles não podem envolver ou aceitar outros
seres, apenas podem forçar-se invasoramente para fora. A sua linguagem de esperançosa
conquista e capitalismo especulativo revela-os: “Se conseguirmos desenvolvê-lo...” (p. 193).
Não obstante a ansiedade e o medo das mulheres, os homens ainda falam a língua da cavalaria e
da força. “Tem que confiar em nós, minha senhora. Pode ficar aborrecida pensando nisso, mas
não tem escolha” (p. 195). A segurança precária das mulheres da colina demonstra-se frágil,
constantemente ameaçada. De facto, homens e mulheres estão assustadoramente polarizados
neste texto.
A sugestão de que as mulheres da colina têm poderes naturais de conexão uma com a outra e
com a terra é problemática. As mulheres, na ficção de Miller Gearhart, representam os
sentimentos espontâneos, a compaixão; os homens representam a ordem, a disciplina, o
controlo. “Evona sentiu por trás dos seus olhinhos escuros uma abertura que era aplicada e
disciplinada – não um dom da natureza, mas o produto de um crescimento doloroso” (p. 184).
Não estou confortável com as noções da superioridade natural das mulheres e da brutalidade
inata dos homens. Concordaria que os homens são de vez em quando tão brutais como ela diz;
mas eles são monstros porque beneficiam em serem assim e porque escolhem ser assim.
Poderiam escolher ser de outro modo. Se aceitarmos a realidade possível da tese de The
Wanderground de Miller Gearhart, “...as mulheres e os homem ainda não podem e podem nunca
vir a amar-se sem violência; deixaram de ser da mesma espécie” (p. 125), então estamos todos
condenados. Pois as mulheres não estão naturalmente em contacto umas com as outras, como
demonstra o seu próprio texto; a prostituta da cidade corre gritando desalmadamente quando
reconhece a mulher da colina, clamando, “Uma fufa! Uma fufa!” (p. 70). A luta para construir
uma consciência política comum é, na minha experiência, precisamente isso, uma luta. Não
podemos esperar um natural esforço mental comum. Precisamos, em lugar disso, de um
feminismoo inflexível que põe as mulheres em primeiro lugar. E que é também sempre “o
produto de um crescimento doloroso”198.

198
Penso que há diferenças políticas substanciais entre as versões britânica e americana do feminismo radical. As atitudes
desenvolvidas na ficção de Miller Gearhart são muito mais próximas das atitudes das mulheres de Greenham que
sustentaram a conexão natural entre as mulheres e a terra. O feminismo radical britânico teve sempre uma base urbana,
sendo mais materialístico do que místico na sua análise da opressão das mulheres, e insolentemente, maravilhosamente
conflituoso face ao poder masculino. É mais provável reduzirmos a cinzas uma sex shop do que conectarmo-nos com a terra
para uma harmonização. A escritora americana de ficção científica Joanna Russ defende uma versão de feminismo radical
que é mais próxima das políticas britânicas. Veja-se Ruth Wallsgrove's review, “The Four Lives of Joanna”, Trouble and
Strife, no. 5 (Spring 1985), pp. 30-3, onde apresenta The Female Man (1975; London, Women’s Press, 1988) como “um
romance completamente feminista radical”. Aqui não tratei a obra de Russ, por duas razões. Primeiro, a sua obra foi
atentamente analisada por Sarah Lefanu em In the Chinks of the World Machine – veja-se o último capítulo, “The Reader as
Subject: Joanna Russ”, em que defende brilhantemente a exploração do feminismo e do modernismo por parte de Russ. Mas
a segunda razão é a verdadeira: não gosto muito do trabalho dela. Aborreço-me. O porquê é esse. As formas da ficção
científica podem ser um jogo. Joanna Russ é uma das escritoras feministas americanas que joga com as formas. O seu
Extra(Ordinary) People (1984; London, Women’s Press, 1985) é uma sequência de histórias que compõem uma mediação
sobre as possibilidades do género, os jogos da imaginação. Contudo o seu trabalho, irónico, autorreflexivo, não deixa de
expor os limites do género. As mulheres aventuram-se no espaço, conquistam a tecnologia; a sua heroína, Irene, em The Two
of Them (1978; London, Women’s Press, 1986) trava uma batalha intelectual épica com o computador da nave espacial.
Russ escreve fantasia futurística, parábolas do espaço terrestre e intergaláctico; mas os seus temas constantes e mais
109

interessantes são as expectativas depositadas no género e nas formas da sexualidade. “The Mystery of the Young
Gentleman” em Extra(Ordinary) People não tem marcas de género. Durante boa parte da história ficamos na incerteza
textual se o herói é um homem heterossexual, um homem homossexual, uma mulher heterossexual, ou uma lésbica vestida
Página

de homem. A insegurança gerada no leitor ou na leitora é genuína e perturbadoramente erótica. O nosso interesse e desejo
confundem-se completamente. Enquanto um “jovem cavalheiro” passa pelas cenas clássicas de um filme western, a
superfície da ação é encrespada pela voz narradora, irónica e ambígua. “... Porque será que os atos da masculinidade
implicam sempre uma danificação da mobília? – que é, como deve compreender, algo que uma mulher não pode fazer. É
Que a Terra tenha que intervir no nosso interesse e na luta pelas mulheres é, contudo, a ideia
mais atraente. Mas não deveríamos presumir que Gaia é um espírito lésbico. Na comédia de
ficção científica de Jane Palmer The Planet Dweller, um erótico planeta sensual chamado
Moosevan, coberto por uma vegetação extravagantemente sedutora, apaixona-se por um
cientista russo amalucado. Moosenvan encarna uma avalanche de ondulantes clichés
heterossexuais; ela é uma “criatura problemática, temperamental”, sensível aos humores 199. Ela
induz o enfeitiçado Yuri a fugir da sua esposa cientista, uma megera autocrática e de
temperamento ruim, e a todo tipo de especulações pornográficas. “Talvez Moosevan fosse como
o mar, fluido e que ganha novas formas. Talvez ela seja como a areia sobre a qual ele está
deitado, macia, quente e moldável”. Moosevan é conivente com a fantasia masculina. “‘Gosto
do teu toque...’ murmurou Moosevan, “Não te pareces com nada que tenha tocado antes’” (p.
92). E ela também não gosta muito das outras mulheres. Quando Diana, que ao mesmo tempo
está a tentar salvar da extinção o melancólico planeta, chega à superfície, Moosevan faz cair
malhas das suas meias em três pontos diferentes. “Nenhum manto perfumado de ardor para ela,
apenas um arrebatamento eficiente no vazio e um sobressalto improviso quando aterrava” (p.
95). O texto da Palmer é, certamente, uma brincadeira. As mulheres reais são independentes,
impassíveis e de meia-idade. Se os homens têm fantasias eróticas de mulheres que se rendem
infinitamente, têm que viajar ao espaço.
A ficção científica, largamente interpretada como um género que inclui tudo, até os
extraterrestres a desembarcarem no jardim das traseiras, as fantasias de futuros tecnológicos, as
histórias de mundos depois do holocausto nuclear e os contos “e se...”, está a gozar de uma
espécie de renascença na escrita feminista em todas estas variações. Alguns dos problemas que
emergem neste tipo de escrita são evidentes em The Planet Dweller de Palmer. A escrita das
mulheres parece incapaz de considerar uma perceção subjetiva não individual ou emoções não
humanas. O resultado é uma construção imaginativa de mundos estranhos tipicamente
conservadora. Todos os alienígenas da Palmer são de facto indivíduos burgueses, com os sete
pecados capitais, especialmente o da gula e o da cobiça, todos saudáveis e ilesos. Os dedos dos
pés, os dentes caninos, os largos pés e as caudas vestidos pelos extraterrestres são fatos de
carnaval, facilmente mudados conforma a vontade da autora 200. Em The Planet Dweller muitas
das antigas oposições tornam-se inquestionáveis – por exemplo, a fratura entre Natureza e
Tecnologia. “Muitas delas mais tarde ou mais cedo recorreram à engenharia genética para
preservar-se da extinção e os seus esforços produziram resultados muito menos encantadores do
que os da Natureza” (p. 27). A Natureza (fêmea) é espontânea, linda e agradável. A Tecnologia
(masculina) jamais a alcançou. De facto, o estilo naturalista da Palmer é realmente fonte de
risos. As criaturas do além são descritas exatamente nos mesmos tons da cómica aldeia inglesa.
As hierarquias em ambas as dimensões refletem-se uma às outra: o malvado senhorio
aristocrático, que adora caçar e matar, é a Sr.a Daphne Trotter; o seu equivalente no espaço
aberto é a Mott, “a criatura de múltiplos pés com o problema dental”” (p. 50).
Mas esta piada definha quando aparece de novo e os Olumke são descritos como “três
indivíduos com um problema com a cor da pele” (p. 102). Comecei a perguntar-me se imaginar
alienígenas desde o espaço intergaláctico não fora sempre racista, pois na maior parte da ficção

um credo. Volto a dizer: o que uma mulher não pode fazer” (p. 88; itálico da autora). “Souls”, a história central em
Extra(Ordinary) People, passa-se numa abadia medieval. É uma reflexão sobre o poder: o poder das mulheres, o poder da
imaginação, e o poder dos desarmados. O desfecho da história exemplifica a dificuldade endémica na forma. A astuta
abadessa camponesa, Radegunde, quase engana os escandinavos que vêm – como fazem em todas as histórias vikings – para
fazer algumas violações e pilhagem ao longo da costa toda. Mas no fim Radegunde torna-se numa santa mágica escolhida,
uma Criatura do Além, não muito humana, afinal; mas uma extraterrestre que desaparece entre as árvores com o seu notável
coletivo. O poder que no começo lemos como humano deixa de o ser, e os mortais que ela abandona – e, incidentalmente, o
leitor demasiado humano– tornam-se menos que humanos, rebaixados, diminuídos. O tema mais obsidiante e infinito para a
110

ficção científica continuam a ser, curiosamente, as paixões humanas, as ações humanas, uma nostalgia sem remorsos do
coração humano.
199
Jane Palmer, The Planet Dweller (London, Women’s Press, 1985), p. 108.
200
A utopia amazónica de Monique Wittig Les Guérillères (1969) de facto tenta apresentar “as Mulheres” como um sujeito
Página

coletivo – tal como fazem, de certa forma, Charlotte Perkins Oilman e Sally Miller Gearhart. Veja-se também a leitura de
Sarah Lefanu de The Wandergronnd como “um retrato da cultura mais do que de indivíduos” (In the Chinks of the World
Machine, pp. 64-70).
científica, mesmo a ficção científica feminista, O Outro Do Além é sempre bom ou mau,
malicioso ou benevolente – nunca simplesmente diferente. A ficção científica, como a escrita
utópica, dirige-se sempre a um mundo contemporâneo, numa modalidade ficcional oblíqua mais
do que direta. As narrativas do espaço intergaláctico e os encontros com outras culturas,
planetas e raças viram perigosamente para as metáforas do imperialismo; pois a língua das
viagens, aventuras, lutas e conquistas desliza facilmente numa língua ficcional que apoia as
formas mais cruéis de racismo colonial. No seu conjunto, a ficção científica especulativa na qual
o presente é brutalmente julgado, provou ser uma fonte mais frutífera de escrita feminista
radical. Há uma separação tradicional de utopia/distopia que separa o campo da cidade. Há em
1984 de George Orwell (1948). Londres é o inferno; o campo é o Paraíso Relembrado. Miller
Gearhart coloca a utopia no campo; uma cultura não industrial de baixa tecnologia na floresta.
As comunidades rurais descentralizadas de Pierce dramatizam a mesma divisão: Nova Iorque é
o inferno. Essa fácil separação entre a cidade e a terra incontaminada 201 torna-se mais
complicada no primeiro romance de ficção científica de Anna Livia, Bulldozer Rising. A
corajosa banda de mulheres idosas e de jovens homens escolhidos são autorizados a precipitar-
se para o interior enquanto a cidade explode atrás deles. Têm emoções confusas. “Karlin
adorava a cidade de vidro e água, a beleza das skateboards e do trânsito; não a teria deixado
facilmente pelo esplendor de salada do campo”202. O esplendor verde é a segunda escolha e uma
alternativa. Bulldozer Rising articula uma antiga estrutura de romance: a da Demanda do Graal.
Três jovens mulheres, cada uma simbolizante uma aspeto crucial da cultura de alta velocidade
da cidade, partem para a terra incontaminada numa missão. Elas são: Ithaca, a nossa heroína, a
ideóloga da cidade, que estabelece as razões das estruturas sociais opressoras; Zay, a sua ex-
amante, uma artista da alta velocidade em patins; e Scimitel, uma polegarzinha203 muito
pequenina, isto é, uma mulher treinada para prestar serviços sexuais a homens, que Mary Daly
não hesita em identificar como uma mulher robótica. A viagem é obviamente uma prova
psicológica; uma noite escura da alma. Contém alguns dos escritos mais bruscamente visuais de
Livia. A paisagem em redor das mulheres é animada, à espera de ser percebida. Aqui, as
mulheres idosas transformaram-se em mulheres de pedra, antigas, eternas, perpetuamente em
processo de se transformarem em rocha. “As três jovens mulheres eram circundadas por rocha.
Os narizes aduncos, os olhos cavernosos e a pele enrugada eram mais proeminentes uma vez
que Simitel tinha crescido habituada a olhar para elas” (p. 121). Neste romance, a idade
converte-se num ponto de referência do valor; as categorias mais marginais, as mulheres velhas,
gordas, cegas, tornam-se as mais importantes – eternas, radicais, as verdadeiras revolucionárias.
A ficção de Anna Livia trata diretamente as questões que eram discutidas durante a altura em
que ela escreveu o livro: a idade, o envelhecimento, o idadismo e as políticas da invalidez. Ela
utiliza estas perguntas – O que acontece às mulheres idosas? Quem cuida de nós quando somos
velhos? Uma pessoa cega é impotente, dependente? A gordura é bonita? Um corpo velho é
desejável? – para interrogar as opiniões aceites sobre estas questões204. As mulheres envolvidas
na Demanda são jovens, ágeis e encantadoras; mas são as mulheres idosas as que possuem as
respostas políticas. A consciência de estar a escrever contra os clichés correntes sobre a velhice
marca o texto de Livia como um livro branco ocidental. Em muitas outras sociedades, não
ocidentais, a idade é respeitada, honrada, estimada. E isso tem os seus perigos; no texto de Livia
as mulheres idosas são as responsáveis pela revolução, mas em outras sociedades os idosos têm
mão de ferro sobre as mudanças, e o poder de reforçar a subordinação e opressão das mulheres.
A construção da ficção de Livia funciona melhor quando as palavras novas não correspondem
simplesmente a alguns aspetos do nosso mundo – como fazem os tapetes rolantes, os Quantums

201
Para a análise mais inteligente que li da divisão na nossa cultura, vide Raymond Williams, The Country and the City
(1973; London, Paladin, 1975).
202
111

Anna Livia, Bulldozer Rising (London, Onlywomen, 1988), p. 181.


203
N.T. – No original a autora refere “ a tiny little nelly” reportando-se a uma criança católica muito devota, Nelly Organ
(1903-1908), cuja breve vida deu origem a alguns contos e poemas infantis cuja personagem se chama Nelly.
204
Vejam-se Susan Hemmings, A Wealth of Experience: The Lives of Older Women (London, Pandora,
Página

1985) e Barbara Macdonald com Cynthia Rich, Look Me in the Eye (London, Women’s Press, 1984).
Veja-se ainda a reportage de Carol Anne Douglas sobre uma conferência realizada em Washington, DC,
em janeiro de 1988: “Passages: Lesbians Aging”, in Off Our Backs, vol. 18, no. 4 (April 1988).
e as autoestradas do norte – mas na realidade transformam e iluminam a nossa realidade
presente. As divisões na cidade de Livia, as ideologias de divisão, renomeadas e redefinidas, na
verdade tiveram o efeito de modificar a minha consciência das estruturas. Os Tramontanes,
alheios à floresta, na cidade são tratados como uma classe baixa de trabalhadores. Alguns
esperam ser assimilados na cidade, outros defendem a sua diferença. Através da deslocação de
visão oferecida por Livia, o impulso inicial a dividir e distinguir aparece então exatamente por
aquilo que é: uma tirania arbitrária. Sapadores e polegarzinhas205 ; jovens rapazes e meninas;
estas são novas palavras que se carregam de significados, dados pelas envolventes estruturas da
cidade de Livia. E tenho que dizer que espero que peguem.
A grande vantagem da ficção científica é, certamente, que algumas coisas – no caso de Livia, a
conexão passional e erótica entre mulheres – podem ser simplesmente um dado adquirido. Que
o lesbianismo deveria ser primário não é questionado e nem forçado pela realidade. Assim, o
foco pode concentrar-se inteiramente nos conflitos e sucessos entre mulheres. Livia é
melancolicamente pessimista em relação a uma possibilidade de cooperação entre grupos de
mulheres com interesses conflituais. A secção “Twenty-fourth Sighting: Songs and Civic Pride”
deu uma leitura muito penosa. Estes são os mecanismos da política feminista no processo de
desintegração: “‘Não se pode reduzir a política a um pequeno grupo de amigos’ objeta Desde.
‘Tenho mais fé na durabilidade da amizade do que numa multidão amorfa mantida unida por
slogans,’ respondeu Soren” (p. 159). No fim, as políticas de sobrevivência requerem
precisamente isso – um pequeno grupo de amigos, uma minúscula célula num mundo hostil.
Isso, na minha opinião, reflete o que aconteceu a muitas mulheres que eram radicais nos anos 60
e 70 e que recusaram vender-se, desistir ou reconciliar-se com o patriarcado. Por outro lado,
hoje há muitas mulheres que chegam ao feminismoo radical pela primeira vez, e o seu primeiro
contacto com estas ideias poderia muito bem ocorrer através da leitura de livros. Por isso, aceito
bem a descrição bastante devastadora e aterrorizante da casa de banho no texto de Livia. Esta é
uma versão de ficção científica de uma enfermaria geriátrica de mulheres, não distante do
realismo contemporâneo. Espero que um número significativo de polegarzinhas206 e sapadores a
leia.
Escritoras de ficção científica, também as que não se definem especificamente como feministas,
trataram dos problemas das políticas sexuais. Em The Left Hand of Darkness, Ursula Le Guin
imagina um mundo ártico em que os membros da espécie dos indígenas humanoides, os
Gethenians, são “cinco sextos do tempo hermafroditas de sexo indefinido”207. Uma vez por mês,
ecoando o ciclo menstrual da mulher, passam a um estado chamado “kemmer” e tornam-se
incontrolavelmente sensuais. Então cada um se transforma na metade dum casal heterossexual.
Todos têm a oportunidade de ser quer homem quer mulher, para conceber ou gerar um filho.
Mas tudo isso não é tão revolucionário como parece; e a prisão do género nunca foi mais
terrivelmente visível, inscrita na nossa perceção psíquica uns dos outros. As regras e as
características sexuais convencionais nunca desaparecem, nem mudam os valores a elas ligados.
O alienígena visitante, Genly Ai, a nossa consciência percetiva, é um homem, e aliás um
homem sexista. Ele vê a sua “senhoria” como uma criatura com “um rabo gordo que balançava
quando estava a andar e uma cara gorda e mole e uma natureza curiosa, de espia, ignóbil e
afável... Ele era tão feminino no aspeto e nos modos que uma vez lhe perguntei quantos filhos
tinha” (pp. 46-7). Saber se um ser humano é construído como “ele” ou “ela” é essencial para a
nossa compreensão de quem são e de como deveríamos tratá-los. Isso não é menos verdadeiro
para um signo humano, uma personagem, construída num texto. Nós lemo-los de acordo com os
códigos sexuais, Le Guin revela completamente o seu jogo quando argumenta, através da voz do
seu extraterrestre visitante, que “Como em Karhidish falta um “pronome humano” usado para as

205
Id.
112

206
Id.
207
Ursula Le Guin, The Left Hand of Darkness (1969; London, Futura, 1981, reimpr. 1983), p. 47. Mas
veja-se a mudança política da própria Le Guin sobre este aspeto no seu ensaio “Is Gender Necessary?”
Página

(1976) e os comentários em “Redux” (1988), ambos em The Language of the Night: Essays on Fantasy
and Science Fiction (1979; ed. rev. London, Women’s Press, 1989), pp. 135-47. Le Guin agora concorda
com o eu disse aqui. Mudou de ideias. Está de parabéns.
pessoas em somer, tenho que dizer “ele” pelas mesmas razões que usamos o pronome masculino
ao referirmo-nos a um deus transcendente: é menos definido, menos específico, do que o neutro
ou o feminino” (p. 85). Infelizmente, o masculino revela-se bastante específico e definido,
sexual e textualmente; há “kemmer-houses” – bordéis, para orgias – e “vowing kemmerin”', que
é para todos os efeitos um casamento monógamo. A homossexualidade não é desconhecida, mas
“Se há exceções, resultantes em parceiros kemmer do mesmo sexo, elas são tão raras que são
ignoradas” (p. 82). A única outra referência à homossexualidade está relacionada com o
Perverso; um ser humano permanentemente fixo no papel masculino. “Não são excluídos da
sociedade, mas são tolerados com algum desdém, como são os homossexuais em muitas
sociedades bissexuais. O termo karhidish para eles, em calão, é meio-mortos. Eles são estéreis!”
(pp. 59-60). Não é uma coincidência que os homossexuais estejam ligados a infelizes que são
meio mortos e “estéreis”, mas é sintomático da política sexual do texto.
Os homens apropriam-se imaginativamente da experiência das mulheres; a dada altura o Rei de
Kerhide fica grávido, mas é logo marginalizado. Nunca vemos ninguém a cuidar de crianças.
Em vez disso, torna-se central uma noção masculina da política. As polaridades dentro do texto
não são os dois sexos mas os dois estados, Karhide e Orgoreyn; um é uma instável monarquia
feudal e o outro é “uma burocracia autêntica e genuína” (p. 125) governada por uma comissão e
controlada pela SARF, a polícia segreda. Mas exclamações como “Pelas tetas de Meshe” não
me soam tão extraterrestres, e reforçam a noção de que estamos a tratar com uma raça de
homens. De facto, a ambientação do livro, uma aventurosa fuga pelas paisagens setentrionais de
vulcões, glaciares e correntes gélidas, lembra a iconografia das sagas de Norse, onde dois
homens se apaixonam pela coragem e resistência um do outro. É uma viagem existencial, e uma
obra descritiva bem sustentada; mas os dois homens, viajando um em direção do outro, formam
uma irmandade no gelo. Nós, as mulheres, ficámos excluídas do texto.
The Left Hand of Darkness demonstra a necessidade de uma política feminista na escrita da
ficção científica. Nós estamos lá agora, com as mulheres envolvidas na escrita, com as mulheres
de volta para a página. As comunidades de mulheres e a política de separatismo lésbico passam
informações à ficção futurista de muitas escritoras lésbicas. Em “The Reach” de Anna Wilson,
história que dá o título a The Reach and other Stories: Lesbian Feminist Fiction, o mundo
extraterrestre é a Inglaterra rural, e a lésbica é o Outro, a invasor do espaço, tão peculiar como
um ser que vem de além das estrelas “num desses lugares no campo afastados de tudo, onde não
podes relaxar diante da tua bebida por medo que algum campónio enlouquecido entre pela porta
dentro brandindo um machado artesanal” 208. A narração arrisca-se de uma forma interessante; a
voz é a da comédia fácil, o estereótipo da lésbica de blusão de pele preta, calças de bombazina e
cigarros Player’s sem filtro, uma fufa bissexual que os heterossexuais consideram um homem
em tudo exceto numa coisa, anima a página à nossa frente. E este é o seu disfarce para
“alcançar” as outras mulheres. E é um jogo elaborado. É uma narração escrita por lésbicas; por
uma vez, os heterossexuais leem por cima do ombro da das lésbicas. A comunidade lésbica é
um espaço físico, o sujeito do texto ficcional, mas é também criado pela própria perspetiva
textual e pela apresentação física do livro como “ficção lésbica feminista”. “The Reach”
apresenta e cria a própria comunidade que descreve. Wilson alude elegantemente aos teóricos
das políticas lésbicas que sustentam este “alcance” imaginativo. “Sabia muito pouco do ramo da
existência lésbica na escola de equitação [Adrienne Rich, Compulsory Heterosexuality and
Lesbian Existence]... Nunca me tinha parecido que limpar estábulos com as classes altas fosse
capaz de produzir o género de nação lésbica com que eu queria ter alguma coisa a ver... [Jill
Johnston, Lesbian nation: The Feminist Solution]” (p. 14). A insegurança radical de todos os
espaços “exclusivamente de mulheres” emerge na voz da mulher idosa: “Conseguir é sempre
um negócio perigoso... Mas estamos construídas sobre o risco... Temos que correr riscos para
sobreviver” (p. 18). O alcance faz correr o risco de traição. Curiosamente, como em Bulldozer
Rising de Anna Livia, as mulheres idosas, as velhas bruxas, são tornadas centrais pela
113

comunidade lésbica – pelo menos na sua forma ficcional mais especulativa – que torna as
Página

208
Anna Wilson, “The Reach”, in Lilian Mohin & Sheila Shulman (eds), The Reach and Other Stories:
Lesbian Feminist Fiction (London, Onlywomen, 1984), p. 9.
mulheres idosas a fonte da autoridade, do poder e do respeito. “Quando vais a casa da velha?”
pergunta a narrador cautelosamente. E a resposta esclarece que a casa da velha ressequida não é
a lixeira das velhas fufas: “Quando as outras acharem que vale a pena falar contigo” (p. 21).
A narrativa breve de Caroline Forbes, uma das histórias centrais na sua coletânea The Needle on
Full: Lesbian Feminist Science Fiction, abre-se com uma mulher idosas a relembrar, e ela
também tem um lugar respeitado, central, no Novo Mundo de Mulheres 209. Como em Herland
de Perkins Gilman, os homens foram eliminados, não por um holocausto nuclear seletivo, ou
por uma avalanche, mas pela Morte. As crianças simplesmente “definharam e morreram… Uma
insidiosa mistura de venenos tinha causado uma mutação do cromossoma Y que tinha sido
irreversível. A combinação XX era de facto vencedora, mas para o género humano foi o fim” (p.
82). A humanidade afinal é utilizada para significar precisamente o que significa: homens.
A prosa simples de Forbes pode ser comicamente incorreta de um ponto de vista gramatical:
“Ela estava no meio de lavar a louça quando aterraram no jardim das traseiras” (p. 64).
Poderíamos de facto estar a lidar com discos voadores. Mas o seu método naturalista e a
precisão da sua geografia urbana criam uma paisagem poderosa e inquietante numa Londres em
ruínas. A cidade abandonada, sendo lentamente retomada pelas mulheres, é um espaço
conhecido que já é tornado estranho pela ausência dos mestres mortos. A metáfora central do
conto é o desmantelamento de um dos blocos de torres que no presente deterioram o horizonte
da East London. As mulheres estão a desmontar os produtos do patriarcado, tijolo por tijolo. Os
homens são, ou foram, na ficção de Forbes, inequivocamente o Inimigo. “Então fugiu para o
campo para subtrair-se à vingança dos últimos poucos homens, que vigiariam as mulheres
grávidas e matariam aquelas que estivessem à espera de meninas saudáveis, tanto era o seu ódio
mortal” (p. 91). Isso já está claramente a acontecer. O ensaio de Madhu Kishwar sobre “The
Continuing Deficit of Women in India and the Impact of Amniocentesis”[O crescente défice de
mulheres na India e o impacto da amniocentese] esclarece que a ficção futurista de Forbes há
muito que é uma realidade. “A marcada preferência por filhos varões e ver o nascimento de
meninas como uma praga têm uma longa história na Índia... Uma investigação mais atenta em
certas áreas que mostravam diferenças de população entre os sexos especialmente dramáticas
revelou que, nalguns casos, a baixa taxa de mulheres estava relacionada, além do mais, com o
infanticídio feminino”210. O nascimento de uma filha era considerado uma maldição mesmo na
Europa ocidental. E frequentemente, no momento em que escrevo, muitas mulheres são levadas
pelo terror a assassinar quer as suas filhas quer a si mesmas.
Uma das mulheres sobreviventes é Julie, escritora e historiadora da Morte. “Escreveu acerca das
violações de massa e o começo da resistência organizada das mulheres” (p. 92). Portanto, a
própria autora é privilegiada e legitimada como o anjo da guarda, cronista da destruição do
antigo mundo. As atrocidades cometidas pelos homens não são descritas nos pormenores –
Julia, e Forbes, apenas aludem a elas – mas os homens emergem como uma “raça maluca”, uma
raça à parte das mulheres. Forbes não põe em discussão que as mulheres sejam superiores em
qualquer sentido: a questão é com o poder, não com os genes. A questão crítica, tanto para o
feminismoo contemporâneo como para o mundo futurista, é o direito a controlar os nossos
próprios corpos e a nossa própria fertilidade. As Sete Reivindicações do centro do movimento
de libertação das mulheres britânicas centram-se nestas questões: o nosso direito a viver sem o
medo da violação, a definir a nossa sexualidade e a controlar o nosso próprio poder reprodutivo.
A polémica de “London Fields” não é dirigida às feministas lésbicas, mas às antifeministas. É
uma ameaça ficcional.

As que podiam lembrar-se dos homens, homens saudáveis, homens que pensavam
amar, com quem partilhavam a vida e cujos filhos carregaram de bom grado. Todas
elas e mais sentiram uma culpa incrível. Uma culpa de que tinha sido a sua inação
durante tanto tempo a provocar a catástrofe da Morte. Elas viram-se a si mesmas
114

como as que tinham apoiado as regras de homens que tinham conduzido a uma tal
Página

209
Caroline Forbes, The Needle on Full: Lesbian Feminist Science Fiction (London, Onlywomen, 1985).
210
Madhu Kishwar, “The Continuing Deficit of Women in India and the Impact of Amniocentesis”, in G. Corea et al.,
Man-Made Women: How New Reproductive Technologies Affect Women (London, Century Hutchinson, 1985), p. 31.
destruição. Entre todas nós há mulheres que são casadas com homens de poder, que
poderiam ter feito algo mas não fizeram, uma herança de inação por tantos anos.
Tanto medo por tanto tempo (p. 128).

O feminismoo britânico produziu uma forma apocalíptica de ficção científica antinuclear que
surgiu da lama de Greenham Common. E é uma ficção que apresenta precisamente a escolha de
“London Fields”: de que lado estás?

Estás do lado dos homens que batem nas suas mulheres?


Estás do lado da morte ou da vida?
De que lado estás?211

As canções de Greenham insistem sempre em que nós podemos de facto fazer aquela escolha,
vejamo-nos ou não como criaturas políticas. Nós estamos todos envolvidos. As canções também
reafirmam a visão da solidariedade das mulheres dentro do contexto da luta política.

Levantem-se mulheres; as mulheres fazem uma escolha


Criem um mundo sem morte nuclear
Agora juntas somos mais fortes
Para romper a cadeia nuclear 212

O desafio da escolha é uma presença permanente.


Não surpreende que Greenham se tenha tornado num lugar simbólico de onde contemplar o
futuro, porque muitas mulheres sentiram que o presente poderia terminar ali. O significado
político de Greenham foi um foco para o debate dentro do movimento das mulheres britânicas.
Numa discussão sobre o feminismoo e a classe política, Beatrix Campbell argumentou a favor
duma leitura generosa do fenómeno de Greenham.

Numa altura em que era difícil imaginar formas de política fora das instituições,
revitalizou as tradições radicais da ação direta que tinham desaparecido da agenda
das políticas de esquerda durante os anos 70. Greenham era algo de completamente
diferente – habitar um pedaço de espaço permanentemente, discutir o direito da
oposição a possui-lo, dizer que vamos a ficar e que vamos observar qualquer
movimento teu. E baseou-se uma cultura de feminilidade e radicalizou-a.
Inicialmente, muitas pessoas tinham um problema com toda a conversa do
bordado, colando coisas na cerca, com as velhinhas a vir também; pensando no
futuro que queriam para os seus filhos. Contudo, isso criou uma atmosfera em que
era possível falar da tua preocupação pelo planeta e pelos que vivem nele, ideias
que não fazem sempre parte do vocabulário da esquerda 213.

Greenham não é simplesmente um lugar, ou até só uma base da Força Aérea dos EUA no
Berkshire. É uma rede de valores; uma atitude política que torna mitológica a cultura das
mulheres como base para um mundo alternativo. O símbolo central de Greenham é a rede. A
ação do fim de semana de 13-14 de dezembro de 1985 foi chamada “Widening the Web”
(“alargar a rede”). A rede espalha-se sobre um vasto espetro de questões ecológicas e de
115

211
N. T. - No original – “Are you on the side that beats your wife? / Are you on the side os death or life? / Which side are
you?”
Página

212
N. T. – No original – “Stand up women; women make a choice / Create a world without nuclear death /Now together we
are strong / To break the nuclear chain.”
213
Beatrix Campbell, “Feminism and Class Polities”, Feminist Review, no. 23 (Summer 1986), p. 16.
movimentos de libertação. A ênfase recorrente, todavia, é colocada na conexão especial –
presumida, não discutida – entre as mulheres e a terra.

Todas as mulheres são fiandeiras


Fiamos redes nas cercas.
Fiamos histórias do nosso amor pela terra.
Tecemos as memórias em cercas. 214215

Esta proposta é tanto desafiada como apoiada pela ficção científica de Greenham.
“Spinning the Green” de Margaret Elphinstone é um conto de fadas alternativo na coletânea
Despatches from the Frontiers of the Female Mind 216. A narração segue um padrão familiar, que
é o do conto de fadas, A Bela e o Monstro (um comerciante com três filhas durante viagem de
negócios perde-se na floresta), e o da ficção científica (um extraterrestre depara-se com numa
comunidade de mulheres). Com efeito, “Spinning the Green” inspira-se numa série de
instituições britânicas. As mulheres de Elphinstone descendem de Robin Hood, preocupadas
com a redistribuição da riqueza, armadas de arcos e flechas, vestidas de verde Lincoln. As duas
irmãs mais velhas que escolhem o casamento e a vida burguesa em oposição à comunidade de
mulheres embatem-se no Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare, onde a floresta é o
mundo inconsciente da confusão sexual e das identidades desfocadas. Preferem casar-se com
dois homens idênticos, Lysander e Demetrius, do que ficar cara a cara com o desconhecido e o
impensável. O padrão do conto de fadas é invertido; normalmente é a irmã mais nova quem
vence o prémio e casa-se com o príncipe, mas o casamento é o destino das Irmãs Feias, a
armadilha. A natureza inverte a oposição tradicional; a escolha é entre o casamento ou a floresta
aberta, o dever ou a liberdade. E “Irmã, a escolha é tua” (p. 26).
São as mulheres que fiam o verde do mundo, a rede da vida. “Do outro lado da fogueira viu que
elas estavam a fiar, a fiar fios verdes que se entrelaçavam, fusos que cresciam pesados com o
verde. Ele observou dedos limpos que torciam o fio e depois, tecendo-o, um tecido de rede
verde, o círculo de fiandeiras tornou-se num círculo de tecelãs” (p. 18). O Monstro do conto de
fadas é a mentalidade que apoia a destruição da natureza: a mente que cria “um lugar que o pai
dela tinha onde o vento rente ao solo dilacerado até se ver a rocha vermelha, onde antigamente
se erguia uma floresta” (p. 24). O Monstro está na cabeça dos homens – e, aliás, alojava no
Berkshire, cercado por nove milhas de arame farpado e holofotes. Mas a questão é que a escolha
é oferecida só às mulheres; somente as mulheres podem fiar o verde. Como em The
Wanderground, as polaridades tornaram-se tão fixas que os homens não são obrigados a mudar.
O abismo torna-se absoluto.
Em “Relics” de Zoe Fairbairns, uma narrativa dentro da mesma coletânea de “Spinning the
Green”, é sobre Greenham e o feminismoo nos anos 80; a tentativa de silenciar o movimento de
mulheres transformando o feminismoo numa mercadoria comerciável em vez de uma paixão
independente pela mudança revolucionária. A narradora é a voz do compromisso consolador, a
feminista que ainda fala com os homens e até seduz alegremente os que lhe oferecem a
oportunidade de vender as suas irmãs. A narração começa e termina com os homens a fazerem
ofertas, “...e o facto de estarmos a ter esta conversa deveria provar-te que podes parar de lutar
porque ganhámos” (pp. 177, 188). Greenham é o lugar onde é preciso escolher, escolher entre
mulheres ou homens, o patriarcado e a liberdade. O narrador visita a base por ocasião do Fire
Dragon Festival, a 25 de junho de 1983, que consistiu em costurar um enorme dragão de
retalhos para cercar a base. Eu também estava lá naquele dia, e tive a mesma experiência bizarra
que ela descreve: a da mulher que se recusou a aprender a costurar na escola para depois
encontrar-me “rodeada de mulheres com lindas tapeçarias, mantas, xailes e toalhas de mesa
feitas em casa” (p. 178). O facto de as mulheres terem que aprender a costurar é um imperativo
116

214
N.T. – No original – “All women are spinners / We spin on the fences. / We spin stories of our love for the earth/ We
weave our memories into the fences.”
Página

215
Juliet Lamont, “Many of Those Burned as Witches were Weavers”, Women for Life on Earth, no. 14 (Summer 1986), p.
17
216
Jen Green & Sarah Lefanu (eds), Despatches from the Frontiers of the Female Mind (London, Women’s Press, 1985).
patriarcal; para algumas de nós nunca fez parte da nossa cultura, era uma das coisas que nos
recusávamos a fazer. E “Relics” é sobre a recusa, a recusa a conformar-se, a adaptar-se, às
danças e às músicas dos homens.
Greenham alicerça-se no ritual. As metáforas católicas de Fairbairn fornecem informações sobre
a narrativa: as mulheres pacíficas tornam-se relíquias num mundo pós-nuclear, congeladas como
santos católicos nos nossos abrigos nucleares; mas ao contrário dos santos nós recusamo-nos a
suportar os nossos mestres eclesiásticos. A voz da Irmã St. Laur, a freira que falhou em ensinar
à narradora a costurar, é a voz da mulher que re recusa. “Vai à merda... Temos todas as opções
do mundo” (p. 185). As relíquias sagradas mantêm toda a sua paixão pela rebelião autónoma.
Cry Wolf de Aileen La Tourette é uma narrativa pós-nuclear. A ficção é toda ambientada no
futuro, quer no futuro próximo, quer no mundo sem estações após a bomba. Só o facto que
haverá um mundo depois da bomba é em si pura ficção científica. Cry Wolf é uma parábola que
cambaleia, não sem dificuldade, dentro de um discurso sobre escrever ficção e contar histórias,
uma reflexão sobre a imaginação e a memória. A voz da narração é a de Curie, a último
sobrevivente do Mundo Antigo, a guardiã da sabedoria, que conta as histórias aos inocentes. O
perigo na descrição do novo mundo, e até do Mundo Antigo, na perspetiva de um futuro pós-
nuclear, é a tentação de escrever a sabedoria sentenciosa da retrospetiva. Eis alguns exemplos.

Toda a aprendizagem é aprender a prestar atenção.


Viver perto da terra era viver à beira da morte.
Qualquer história é coscuvilhice.
A imaginação é um lobo que chora como uma criança... A causa da morte é a falta
de imaginação.
Temos de meditar, temos de descobrir a relação entre a mente e o mundo.217

A maior parte destas afirmações são, decerto, uma verdade incontestável; mas ela é entregue
com pomposo desconforto, como se a narrativa não tivesse a certeza dos seus próprios fins
didáticos. Como outras feministas que escrevem o futuro, La Tourette torna a maternidade
central. Mas neste caso, “eram todas M-others (Mães-outras), três sílabas num fôlego, macho e
fêmea, jovem e velho. Tinham nascido maternalmente responsáveis por si mesmas e pelo seu
planeta. Era o único título que existia nos Deuses do Corpo, a única forma de dirigir-se que
conheciam. Cobria qualquer coisa” (p. 12). “M-other” (“Mother” como mãe, “other” como
outra) é o núcleo criado e o outro eu; o eu e o outro ligam-se um ao outro em “M-other”, de
modo que a separação é reconhecida e contida. E o livro é verdadeiramente sobre mães e outras.
O fio mais obsessivo no romance é a dor e a raiva do narrador contra a mãe falecida, Bee
Fairchild, que foi morta a tiros enquanto subia a cerca de Greenham Common. Curie, a filha,
sente ter sido sacrificada ao desejo político da mãe de salvar o mundo, enquanto esse mundo vê
a mãe como uma mártir, a mulher que sacrifica a sua vida pela filha. Curie continua a missão da
mãe mas falha, como fizera a sua mãe. Os homens destroem o mundo.
Mas supostamente, são os valores das mulheres, a iniciativa coletiva de uma comunidade
feminina, e as próprias mulheres, a repensar, refazer, reconstruir e reimaginar o mundo. Estão
todas de acordo que a religião e o ritual devem ser os elos de ligação essenciais no novo mundo.
Este é o desejo comum que leva as “M-others” fundadoras a unir-se no Novo Mundo, “Todas
chegámos a uma espécie de impasse ou de tédio espiritual...” (p. 73), e é a sua invenção central
no Novo Mundo. “Decidiram que a religião, o vínculo da religião, a sua censura do homicídio,
deviam ser as pedras angulares ... Uma sem deuses… As pessoas sempre precisaram de ícones,
de ídolos” (p. 24). A função principal da religião, agora e no futuro pós-nuclear de La Tourette,
é o controlo social. As “M-others” fundadoras inventam uma religião baseada no corpo, em que
a morte e a desmistificação da morte têm um lugar central. Parece horrível; uma espécie de casa
de dissecação de cultos em que o corpo é venerado e celebrado em pedaços. O festival anual da
117

fertilidade culmina com um orgasmo de massa no rio. O problema aqui é que a religião,
Página

217
Aileen La Tourette, Crji Wolf (London, Virago, 1986). Sabeduria sentenciosa por ordem de
aparecimento: pp. 10, 27, 73, 174, 191.
qualquer religião, raramente é uma força de coesão dentro de um corpo político. A religião gera
divisão, hostilidade, inimizade, homicídio. E para além das M-others, existem também os
Potters (Oleiros), uma raça separada, mutantes que sobraram do Mundo Antigo, que agora se
parecem suspeitosamente com a visão de classe média das classes trabalhadoras. Os seus corpos
são diferentes daqueles das M-others; não fazem todos parte do mesmo corpo espiritual. Não
surpreende que as mulheres tenham sido as guardiãs da religião. As religiões, as religiões
patriarcais, normalmente estão na base das políticas que nos controlam, como mulheres. La
Tourette tem bastante razão em perceber que as estruturas metafísicas que escolhemos como
nossos meios de aprender e dar sentido ao mundo vão governar o nosso modo de tratar os
outros. Mas estou preocupada com todas as políticas que ligam naturalmente as mulheres à
religião, ao corpo, à terra. E “Gods of the Body” misteriosamente reproduz os mesmos
esquemas de autorrepresentação e resposta que desenvolvemos ao longo de centenas de anos.
“Tinham desenhado uma sociedade sem história, portanto. Mas talvez algumas memórias, como
algumas palavras, como algumas ideias, tivessem sido transportadas no próprio corpo, o corpo
cuja palavra era a lei” (p. 28). Eu resistiria ao determinismo escondido sob esta noção do corpo
como lei; nem a religião nem o corpo, ou a nossa interpretação do significado do corpo, são
naturais ou constantes; ambos são o produto da história.
E a história prova o inevitável. A conspiração das mulheres para salvar o mundo contando
histórias aos homens com o dedo a mexer no botão, falha. As histórias são contos humorísticos
espirituosos, muitas vezes bíblicos. Sodoma e Gomorra tornam-se na “Terra Prometida da
comunidade gay” (p. 128); mas não conseguem evitar o holocausto nuclear. Nem os romances,
nem as histórias, nem sequer os livros de crítica política, conseguiram substituir a ação direta.
As palavras não podem deter as bombas distantes. Nem pôde a protesta no Greenham Common
evitar Cruise: mas não conheço nenhuma mulher que tenha vivido na lama em Greenham sem
sair dela, enfurecida e fortalecida, com o desejo de transformar o nosso mundo.
O separatismo das políticas de Greenham era facilmente o aspeto mais controvertido do
acampamento; e a estrutura da protesta anarquista exclusivamente de mulheres foi triste e
irrefutavelmente legitimada pelos eventos em Molesworth, que é um acampamento misto pela
paz. Entre o outono de 1985 e julho de 1986, três mulheres foram violadas por homens que
viviam no acampamento. Quando as mulheres denunciaram o sucedido, foram censuradas. “O
movimento pela paz nunca se familiarizou com a ideia de Greenham ou com o protesto das
mulheres. Por magia, Molesworth era supostamente um equivalente misto de Greenham – uma
tal coisa não existe”218. O separatismo feminista reconhece os homens como sendo o problema,
se não o inimigo. Em Native Tongue de Suzette Haden Elgin, a argumentação separatista é
devastadoramente simples219. As mulheres podem dar forma à sua liberdade, de facto, podem
simplesmente pensar-se livres dos homens mediante a invenção duma nova língua. Esta
proposta é defendida com entusiasmo em alguns setores do movimento das mulheres. O ensaio
de Nelly Fuman, “The Politics of Language: Beyond the Gender Principle?”, expõe o caso
sucintamente; “Somos moldados em sujeitos falantes pela língua e essa língua molda o nosso
mundo percetivo”220. A nossa língua, portanto, determina o que pensamos; e, segundo Furman,
o que somos capazes de sentir. “Não só nascemos numa língua que nos molda, mas qualquer

218
Veja-se o artigo de Barbara Norden e a entrevista com “Julia”, uma das mulheres que foi violada: “Utopia is Dead”,
Spare Rib, no. 174 (January 1987), pp. 40-3. Também são importantes os artigos em Peace News, no. 2276 (5 September
1986), pp. 14-15. O número tinha um título de capa forte, “RAPE IS AN ACT OF WAR” (“A violação é um ato de guerra”)
e relacionou firmemente o militarismo e a violência masculina contra as mulheres. A correspondência que se seguiu nos
números 2277 (19 de setembro de 1986) e 2278 (3 de outubro 1986) dá uma ideia terrificante do sexismo, da estreiteza de
espírito e da absoluta hipocrisia de alguns setores do movimento misto pela paz.
É preciso procurar estes números de Peace News nos arquivos de uma biblioteca: a revista interrompeu a publicação pouco
depois da publicação das violações de Molesworth. Sem dúvida, a crise de Peace News faz parte da calma geral do suporte
118

ativista ao movimento pela paz. As iniciativas de Gorbachov pareceram amortecer o protesto; mas tenho a certeza que o
declínio da revista também se deveu à sua posição franca nas questões de política sexual, que não era suportada pelos
leitores “tradicionais” – ou seja, leitores sexistas e antilésbicos/antigay. A 26 de maio de 1989, uma sexta-feira, saiu o
Página

primeiro número do ressuscitado Peace News. Boa sorte à equipa.


219
Suzette Haden Elgin, Native Tongue (1984; London, Women’s Press, 1985).
220
Nelly Furman in Gayle Greene & Coppelia Kahn (eds), Making a Difference: Feminist Literary Criticism (London,
Methuen, 1985), p. 69.
conhecimento do mundo que experienciamos também é articulado pela língua”. Haden Elgin é
uma linguista, e uma especialista nas línguas (índias) dos nativos americanos. A classe
privilegiada no seu mundo futuro são os linguistas, uma espécie de serviço cívico de elite, que
se especializa nas línguas alienígenas, cuidando dos contactos do mundo com o resto do
universo. Nesta distopia, as mulheres estão completamente sujeitadas às leis dos homens, e as
mulheres dos linguistas não são uma exceção. Mas o elemento mais intrigante do texto de
Haden Elgin é a maneira como rejeita as propostas de Furman. Michaela é, sem dúvida, a
heroína do texto. Não é uma linguista, mas a mulher de um homem comum. O capítulo que
descreve o seu casamento, o capítulo 3, é um dos mais devastadores do livro, simplesmente
porque retrata um casamento totalmente normal, descrito do ponto de vista dum homem. Ned
Landy é um monstro de presunção, sadismo banal, uma manifestação do ego masculino.
Michaela é um espaço em branco. E a qualidade pela qual ele a preza é a exigida por todos os
tiranos da sua escrava lisonjeira; ela escuta. Virgina Woolf tem a dizer sobre as mulheres e o
narcisismo masculino:

As mulheres serviram estes séculos todos como espelhos que possuíam o poder
mágico e delicioso de refletir a figura do homem no dobro do seu tamanho
natural... Isso serve para explicar em parte a necessidade que tantas vezes os
homens têm das mulheres. E serve para explicar porque ficam tão inquietos sob a
crítica da mulher;... porque se ela começa a dizer a verdade, a figura no espelho
encolhe.221

Michaela nunca aprendeu uma língua diferente da sua língua nativa nem nunca vai aprender. Ela
constrói um outro tipo de mundo percetivo, diferente do que lhe foi ensinado na “fábrica de
esposas”, diretamente da sua própria experiência. Quando lhe tiram a criança e esta é
brutalmente morta, ela transforma-se em pura raiva; ela torna-se na mulher que se vê como
sujeito autónomo, não uma mulher robótica, a mulher que existe só em relação aos homens. Ela
vê os homens nitidamente, como egoístas e assassinos. E desenvolve a sua própria consciência;
astuta, precisa, mortífera, e resolve matá-los. Nazareth, sua homóloga na família dos linguistas,
é curada quer do amor romântico quer de qualquer sentimento humano pelos através da
humilhação sistemática que recebe pelas mãos dos homens que a possuem: o marido e o pai;
“Nazareth nunca mais havia de sentir o menor sinal de apego ou mesmo de interesse por
qualquer homem que tivesse deixado de gatinhar. Nem sequer pelos seus próprios filhos” (p.
202). Os sentimentos, não a língua, são o núcleo das experiências destas mulheres. E ambas
confiam no que sentem. A opressão e a dor delas não são experimentadas na linguagem, mas na
carne. Articular uma experiência numa língua quer dizer analisar, teorizar, dar um significado
conceptual a essa experiência. Michaela muito simplesmente assassina o marido; e esse gesto,
essa ação de autoafirmação, autolibertação, dificilmente é linguístico. Não é dito, mas é feito.
A língua das mulheres é desenvolvida nas casas Barren, as famílias separatistas, onde os
redundantes, os desdenhados, os desprezados, planejam a sua liberdade. Quando Nazareth volta
para a casa Barren e vive entre as mulheres pela primeira vez, “apercebeu-se que era como
alguém que vai para casa depois de uma vida no exílio” (p. 243). As mulheres já têm uma
experiência partilhada da dor; a sua língua é simplesmente um instrumento, uma raiz, a partir da
qual criam as suas próprias vidas. Não é a língua em si que provoca uma revolução na perceção;
é a utilização que dela se pode fazer. Os ouvidos silenciosos de Michaela tornam-se os da espia
no acampamento dos homens. Ela ouve enquanto eles derramam os seus segredos. O seu gesto
revolucionário não é o de aprender a sua própria língua, mas entender a deles.
O debate sobre muda-a-tua-língua-e-mudarás-a-tua-realidade é lançado em Native Tongue, mas
também é dada a necessária atenção à alternativa radical, a fuga no deserto para escapar do
poder dos homens. “O que resolveria verdadeiramente o problema de vez é uma colónia por
119

nossa conta. Uma colónia só para mulheres. Algures bem longe, e tão desprovida de qualquer
coisa que valha dinheiro, que os homens nunca tivessem interesse em tirar-no-la” (p. 268).
Página

221
Virginia Woolf, A Room of One’s Own (1928; London, Penguin, 1972), p. 37. Veja-se também Sally Cline and Dale
Spender, Reflecting Men at Twice Their Natural Size (1987; London, Fontana, 1988).
Algumas mulheres realmente tentam esta solução, na sequela de Native Tongue, intitulada The
Judas Rose222. Esta sequela demonstra que existem pouquíssimas ideias ficcionais
suficientemente fortes para uma reescrita e que, em geral, as sequelas não são aconselháveis. O
próprio enredo é virado do avesso. Em lugar de Michaela na veste de uma mulher comum espia
no acampamento de linguistas masculino, temos uma espia nascida linguista, disfarçada de
freira, num acampamento de homens comuns. Ela difunde a língua das mulheres, o Laadan,
traduzindo a Bíblia, literalmente espalhando o Verbo. Mas, se por um lado vemos dentro da
mente de Michaela e observamos o seu desenvolvimento e a sua mudança, por outro nunca
vemos as cogitações interiores da Irmã Miriam Rose. Ela é um modesto espaço em branco, quer
para os homens quer para a leitora, que aguarda autorização para falar durante intermináveis
reuniões de homens. De facto, todo o romance é largamente ocupado por reuniões de homens:
homens se enganam, que se convocam para discutir, jogos de poder, acessos de ira, numa série
de cabeças pensantes. As linguistas sabem que os seus homens, e decerto, todos os homens, são
egoístas, crianças perigosas, que trazem armas carregadas, e por 360 páginas o leitor observa
como este facto é provado.
O cristianismo fundamentalista, que deve ocupar um grande espaço na experiência das
escritoras americanas, é a base de tanta idiotice e sadismo nas mentes dos homens de poder de
Haden Elgin, sobretudo na de Hykus Clete. Esta interpretação medieval da fé, lado a lado com a
ficção científica, foi interessante, desconcertante e instrutiva. O imperialismo construído como
uma propagação evangélica, uma cristandade evangélica – um problema inerente a toda a ficção
científica envolvida com os extraterrestres e os viajantes – é bastante explícito. Os desordeiros
Terran (a terra, com certeza), presumidamente os comunistas, os judeus, os ciganos, os hippies,
os homossexuais e os deficientes mentais, são enviados para as colónias. Mas a políticas sexual
do livro, tão bem imaginada em Native Tongue, torna-se menos eminente. É como se Haden
Elgin não estivesse interessada no que poderia haver nas Casas das Mulheres e nos conventos,
espaços em que podem entrar só mulheres. Os momentos de conflito e de confronto são
deixados aos homens. Em três oportunidades a dinâmica problemática entre o poder dos homens
e a resistência das mulheres emerge fortemente, perturbando a banalidade de maior parte da
escrita. O capítulo 6 descreve a reunião habitual entre homens com relatórios, mas o conteúdo
do relatório desafia a gradual aproximação da mudança do mundo adotada pelas mulheres da
família de linguistas. Eis a alternativa separatista amazónica. Um pequeno grupo de mulheres
assassina os seus maridos e tenta construir o Wanderground noutro asteroide. O que querem as
mulheres? A eterna pergunta masculina recebe aqui a sua resposta. Liberdade. “Livres de morrer
de fome. Livres de morrer de exposição. Livres de engasgar-nos com o nosso ar viciado. Livres
de doenças que nenhum médico viu num século. Livres de sofrer de maneira indizível. Elas
querem ser livres, para fazer tudo isso?” (p. 90). Este é o eco do Selvagem do Brave New World
(1932) de Huxley, exigindo o direito a fazer experiência da sua própria vida, seja qual for o
custo. Mas o sentido da liberdade, curiosamente, é diferente para aquelas mulheres que nunca se
definiram em termos diferentes dos da carne. Escusado será dizer que os homens de The Judas
Rose não podem entender o que correu mal.
O desejo das lésbicas, supostamente, também foi translado para o asteroide, pois nunca aparece
no texto de Haden Elgin. Assistimos a uma cena devastadoramente horrível de
heterossexualidade masculina, todo o capítulo 23, em que Belle-Sharon massacra o seu próprio
desejo sexual na consciência certa e precisa de que o seu marido nunca se preocupará com
satisfazê-la, pela razão mais pessimista. “Mas a realidade, querida Belle-Sharon, é que os
homens contentam-se perfeitamente com aquilo que estão a fazer. Porque deveriam mudar isso,
quando lhes assenta tão bem?” (p. 299). É assim. O que faz parecer mais racional a tentativa
desesperada de fuga das mulheres que fugiram para as estrelas. Eu agarrei-me ao capítulo 20,
que foi o único capítulo verdadeiramente otimista do romance. Aqui temos um jantar
intergaláctico heterossexual. É mesmo como os do século XXI, só que tem mesas voadoras e
120

portas que falam. Haden Elgin da forma à baixaria e à competição entre as mulheres, cujas
cabeças estão cheias de vestidos, comida, decorações de interiores e de maledicências sobre as
Página

222
Suzette Haden Elgin, The Judas Rose (1987; London, Women’s Press, 1988).
outras mulheres. Chega uma das mulheres de Lingoe, vestida de forma simples, com o cabelo
penteado, natural, honesta, afetuosa, aparentemente em harmonia com o seu marido – e ela
convida as outras mulheres a ficar ao lado dela, “Minhas queridas, não querem vir jogar
connosco?” (p. 270). Esta é uma mulher que tem o controlo, e o seu primeiro gesto é de
solidariedade com as outras mulheres. Haden Elgin argumenta que deveríamos ser as guardas
das nossas irmãs.
A simpatia entre mulheres é a razão do sacrifício por parte de Michaela da sua vida e liberdade
em prol das linguistas e da sua língua no final de Native Tongue. Ela nunca percebe as
implicações políticas, filosóficas ou metafísicas. Ela fá-lo por Nazareth, pelo amor de outra
mulher: “se Natareth tivesse sabido disso, teria ficado agradecida... Era um presente apropriado
para ela” (p. 282). A solidariedade das mulheres torna-se inevitável simplesmente porque Hadan
Elgin insiste na verdade da perceção pouco clara de Michaela, uma perceção não baseada na
linguagem ou teoria mas no sentido que ela tem de si mesma como mulher, na sua dignidade de
mulher e no seu amor de mulher. “Amar alguém que te vê apenas um milímetro acima de um
animal doméstico inteligentemente treinado e não faz segredo disso – ou seja, amar um homem
adulto – não era possível para ela. Seria uma perversão amar os teus amos enquanto as suas
botas pressionam o teu pescoço, e ela era uma mulher de mente sã” (p. 258).
Os romances sentimentais tratam de aprender precisamente isso, aprender a amar a bota no teu
pescoço. Tania Modleski, no seu estudo Loving With a Vengeance: Mass Produced Fantasies for
Women, defende que “a fórmula raramente varia: uma jovem mulher inexperiente e pobre a
moderadamente remediada encontra e envolve-se com um homem bonito, forte, experiente e
abastado, com dez a quinze anos mais do que ela”. 223 A leitura que Modleski faz da política do
romance dá mais peso do que me parece plausível à raiva e ao anseio de vingança que as
mulheres sentem em relação aos homens que se riem delas, as ignoram, as aterrorizam, as
importunam, e finalmente casam com elas. A verdade franca é que, como ela admite: “Os
romances perpetuam a confusão ideológica sobre a sexualidade e a violência masculina,
enquanto insistem que não há problema” (pp. 42-3). E quem lê o romance? Pois, nós. Segundo
os sociólogos da Universidade de Sheffield, os 30% das mulheres que leem um livro, quase
sempre estão a ler um romance. Este é um pensamento aterrorizante. A fórmula que Modleski
delineia é, acho eu, bastante irreversível, porque o erótico no romance prende-se
intrinsecamente com um desequilíbrio de poder inalterável. O homem é mais velho, mais rico,
dominante. A mulher está submetida; ela nunca ganha. Até a parábola romântica de Jane Eyre
conclui-se com “a triste – não triunfante – admissão que uma mulher só consegue a igualdade
não dominando os homens que de alguma forma são incapacitados” (p. 46). A castração
simbólica de Rochester, a sua cegueira, é também mutilação. Ele não pode mais dominar sobre
Jane porque precisa que ela seja os seus olhos. Jane Eyre revela de muitas formas quer o objeto
do desejo no romance convencional, quer o desespero da sua conquista. Portanto, se o romance
heterossexual apresenta um dilema impossível numa perspetiva feminista, o romance lésbico
consegue resolver o problema ou apresentar um novo conjunto de dificuldades?
Que duas lésbicas, ou dois gays, possam viver felizes para sempre neste mundo parece uma
fantasia romântica. Que o possam ter feito na história, sem uma qualquer consciência política ou
comunidade lésbica, exige um verdadeiro voo de imaginação. Duas ficções românticas lésbicas
históricas do movimento feminista são Patience and Sarah de Isabel Miller, passado no início do
século XIX, e Moll Cutpurse: Her True History de Ellen Galford, que pretende ser a verdadeira
história da “Roaring Girl” de Middleton e Decker e é apresentado, de um forma pouco
promissora, como “As aventuras de uma heroína lésbica fanfarrona no mundo colorido e
fervilhante da Londres de Shakespeare”224. (Não diz nada em relação do que a Londres de
Shakespeare deveria “fervilhar”.)
121

223
Modleski, Loving with a Vengeance, p. 36. Horrível mas útil foi a recensão de Polly Toynbee sobre o
livro de Mary Wibberley, To Writers with Love: On Writing Romantic Novels (Buchan & Enright, 1985),
Página

in The Guardian, 22 July 1985.


224
Isabel Miller, Patience and Sarah (London, Women’s Press, 1979); Ellen Galford, Moll Cutpurse: Her True History
(Edinburgh, Stramullion, 1984).
Um dos problemas que Isabel Miller enfrenta é o de imaginar uma história de amor lésbico
muito antes que a categoria das lésbicas – que é, afinal, uma categoria médica, clínica, de
datação recente – fosse inventada. Miller volta a colocar o sexo na categoria da amizade
romântica225. Algo do debate “fizeram ou não?” enfurece-se em relação ao fenómeno histórico
da amizade romântica. Por um lado temos Lillian Faderman, cujos Surpassing the Love of Men
e Scotch Verdict são ensaios dentro da história lésbica, recusando-se ambos a impor uma
moderna consciência lésbica a mulheres cuja sexualidade foi com certeza percebida em termos
muito diferentes, quer por elas mesmas quer pelas pessoas ao seu redor 226. Por outro lado, a
considerável resposta “Tem importância se o fizeram?” de Sheila Jeffrey em Trouble and Strife
especifica sensivelmente que, se excluirmos as mulheres cuja relação passional foi com outras
mulheres simplesmente porque não se definem a si mesmas como lésbicas, estamos em risco de
perder toda a história lésbica que temos227. Além disso, no interesse de quem deveríamos insistir
no facto que o lesbianismo é simplesmente uma prática sexual? O lesbianismo torna-se então
parte de uma lista de livros de sexologia juntamente com o bestialismo, e a pedofilia”. Mas o
lesbianismo como “um compromisso apaixonado com as mulheres, uma cultura, uma alternativa
política” (p. 27) é e sempre foi uma ameaça para as instituições da supremacia heterossexual e
masculina. Uma solução mais simples a este debate animado poderia ser o “Como sabemos que
não o fizeram?”. Ainda não o vi discutido.
Quer Miller quer Galford imaginam as mulheres lésbicas que se desejavam e amavam uma à
outra da maneira em que o fazemos hoje. Mas estas mulheres são amantes isoladas, solitárias,
estranhas num mundo heterossexual, as únicas do seu tipo. Uma amante de cada casal veste-se e
comporta-se como um homem. Eis a heroína de Miller: “Era uma mulher ou um rapaz?”
perguntei… mas era Sarah Dowling, vestida exatamente como a sua reputação pretendia, com
botas, calções, justilho, luvas com pelo, chapéu com pelo com um cachecol a tapar as orelhas”
(pp. 12, 15). E a de Galford: “‘Torna-me homem,” foi tudo o que ela disse. Tinha uma altura
média, forte e atarracada, com o cabelo curto amarelado que parecia ter sido atingido no
desespero por uma faca afiada. Tinha um justilho áspero e calções, e trazia cachimbo. Se não a
tivesse ouvido falar podia tê-la confundido com um rapaz” (pp. 14-15). A Moll Cutpurse de
Galford apresenta-se como uma pessoa esquisita. O seu rabo e as sua proezas são puro
exibicionismo. As mulheres que se vestem como homens, ou “mulheres acidentais”, isto é,
mulheres que vivem disfarçadas de homens, sempre existiram. A sua rejeição do género
feminino não deve necessariamente ser atribuída ao lesbianismo, embora, visto muitas
“mulheres acidentais” de quem temos notícias de facto terem casado com outras mulheres, acho
que podemos tranquilamente supor que estas mulheres eram lésbicas. “As mulheres que se
vestiam como homens tinham, sobretudo, acesso aos empregos que se destinavam aos homens.
Tinham mais liberdade de movimento, menos medo de ataques sexuais, melhores perspetivas de
trabalho, com um salário melhor. Também eram livres de ter relações sexuais com outras
mulheres ou evitar ter sexo com homens” 228. Mas o castigo por ter transgredido as fronteiras do

225
A este respeito são relevantes as senhoras de Llangollen, Eleanor Butler e Sarah Ponsonby, que chegaram à notoriedade e
suscitaram alguma admiração pelo seu estilo de vida. Veja-se a biografia de Elizabeth Mavor, The Ladies of Llangollen: A
Study in Romantic Friendship (1971; London, Penguin, 1973). Mavor na sua introdução tenta evitar a palavra “lésbica” e
rejeitar qualquer tipo de interpretação freudiana. Vejo que “The Lesbians of Llangollen” de alguma forma seria um título
mais tendencioso, mas as ansiedades de Mavor sobre o assunto chegam a produzir uma afirmação como esta: “De facto,
muito do que hoje associaríamos exclusivamente a um apego sexual estava implicado numa amizade romântica: ternura,
lealdade, sensibilidade, camas partilhadas, gostos comuna, coqueteria, até paixão” (p. xvii). Ora, francamente, não consigo
apontar a diferença entre esta interpretação da amizade romântica e o lesbianismo contemporâneo, e estaria tentada a atribuir
a delicadeza de Elizabeth Mavor a uma homofobia rastejante.
226
Lillian Faderman, Surpassing the Love of Men: Romantic Friendship and Love Between Women from the Renaissance to
the Present (1981; London, Women’s Press, 1985), e Scotch Verdict (New York, Quill, 1983).
227
Sheila Jeffreys, “Does It Matter If They Did It?”, Trouble and Strife, no. 3 (Summer 1984), pp. 25-9.
122

228
Lynne Friedli, “Women Who Dressed as Men”, Trouble and Strife, no. 6 (Summer), p. 27. Este breve
artigo baseia-se na tese de doutorado de Friedli (University of Essex) e dá algumas referências
interessantes de fontes. Sobre a teoria do travestismo veja-se também Annette Kuhn, “Sexual Disguise
Página

and Cinema”, na sua coletânea The Power of the Image: Essays on Representation and Sexuality
(London, Routledge & Kegan Paul, 1985). Veja-se também: Julia Wheelwright, Amazons and Military
Maids: Women Who Dressed as Men in Pursuit of Life, Liberty and Happiness (London: Pandora, 1989)
género frequentemente era o aprisionamento, a tortura, a morte. Esta ameaça está sempre
presente mesmo no género do romance. A heroína arrapazada de Miller é espancada pelo pai
quando este ouve que ela ama uma outra mulher. E todas as vezes que o disfarce é descoberto
ou violado, a prisão do género fecha-se em torno da heroína. Os homens deixam de ser seus
camaradas, ou seus iguais. Assim escreve Miller: “Não podias pensar que uma palavra só
pudesse mudar uma amizade como essa. Não me tornei frágil e feminina. Não aconteceu mais
que uma palavra. Mas não conseguimos ultrapassá-la.” (p. 83). E Galford: “Estava furiosa
naquela noite, quando me fizeram dormir sozinha num quarto separado, como se as semanas
que os tinha servido e tinha sido sua companheira não tivessem acontecido. Sabia que de manhã
todos eles, exceto Tom, me tratariam de uma maneira diferente de antes, e eu não o suportaria”
(p. 33).
Curiosamente, ambas as mulheres são abordadas por homens que insistem que “os homens têm-
se amado e abraçado desde o começo dos tempos” (Patience and Sarah, p. 81). A
homossexualidade está muito longe de ser impensável; os homens movem-se facilmente em
companhia de outros homens e podem viver independentemente das mulheres, se o quiserem.
Para as mulheres não é tão simples. Na vida como nas páginas da ficção, a liberdade económica
e sexual é muito complicada. As amantes de Miller são capazes de fugir com a ajuda de um
legado passado de um pai iluminado; a Moll de Galford vive como uma ladra, a sua amante
Bridget herda do pai uma farmácia e aprende este ofício. Ambas são, intencionalmente,
embusteiras de confiança.
Esta é uma maneira divertida e sagaz, para todas as lésbicas, em qualquer tempo, de utilizar um
disfarce. O lesbianismo torna-se no segredo melhor guardado da pantomima da Inglaterra
isabelina de Galford. “É sabido que o toque das mulheres é mais suave... Não é preciso muito
para perceber que as alegrias das mulheres estão mais seguras se mantidas em segredo” (p. 59).
E dado que esta é uma história de amor, Galford não perde muito tempo para explicar porque as
alegrias das mulheres são os segredos melhor guardados, até (ou sobretudo) na Inglaterra
isabelina isso poderia causar discussões desagradáveis sobre a política sexual.
Em ambos os romances uma das mulheres, e em ambos os casos a amante mais
convencionalmente feminina, conhece a sexualidade lésbica. A Patience de Miller, que usa
saias, defende que “é melhor ser uma mulher real do que uma imitação do homem, e que
quando alguém escolhe uma mulher para ir embora é porque prefere uma mulher” (p. 23). A
pergunta sobre o que é uma “verdadeira mulher” na ficção romântica não constitui o problema
que representa na teoria lésbica. A farmacêutica de Galford fala como uma feminista lésbica
radical. “Tens-te misturado muito com os homens. O mundo está cheio de mulheres corajosas e
fortes. Se és demasiado parva para as veres, tu é que ficas a perder, não eu... se olhasses para
além da ponta do teu nariz, descobririas uma quantidade de nós disponíveis. Prometo-te, Moll,
podes ser tão ousada e forte e livre como és agora, e mesmo assim ser uma mulher, e a mais
sábia das tuas irmãs amar-te-á por isso” (p. 23). Quer Miller quer Galford dividem as narrativas
entre as suas heroínas. Este simples dispositivo significa que cada amante nos comunica a sua
própria história como uma narração confessional na primeira pessoa. Todas as amantes são
egoístas; e no romance lésbico igualitário a agonia e a êxtase compensam-se equilibradamente
entre as duas mulheres. No romance heterossexual a narrativa é dominada pela perspetiva da
mulher – e por conseguinte, por aquela da leitora. O homem, as suas intenções e desejos,
permanecem em branco. É só quando ele se rende à solução banal, a do amor e do casamento,
que o seu comportamento é explicado. E mesmo então, não o é inteiramente.
As mulheres que escrevem romances raramente são historiadoras, isso quer dizer que recebemos
uma versão muito frágil da história. No picaresco cómica de Galford, todos os clichés têm
papéis secundários, como os puritanos desmancha-prazeres e os fascinantes dramaturgos
grandes bebedores. Os verdadeiros pontos de referência são as fantasias de outras mulheres.
Judith, a irmã de Shakespeare, cujos direitos autorais são de Virgina Wolf em A Room of One’s
123

Own, aparece e conta-nos a sua própria história: a história da opressão, da miséria e da


Página

e Rudolf M. Dekker & Lotte C. van de Pol, The Tradition of Female Transvestism in Early Modern
Europe (Basingstoke, Macmillan, 1989).
duplicidade sexual dos homens229. A criação de Virginia Woolf mata-se; mas Galford termina o
seu conto com uma espécie de triunfo enquanto Judith escreve e vende as sua baladas e os seus
panfletos. “A minha humilde mercadoria é um longo grito da nobre Arcádia de Sidney ou dos
versos ricamente trabalhados da Faerie Queene, mas deixa que zombe quem quiser porque eu
faço o que decidi fazer para ganhar o meu pão com a poesia” (p. 163). Galford e Miller estão
comprometidas, pois são escritoras de novelas sentimentais, com os finais felizes, mesmo para
as personagens menores. As amantes de Miller, que se reencontram depois da tribulação
necessária, tornam-se pioneiras sexuais e territoriais. “Estávamos livres de lembrar e inventar
com mais ninguém a dizer que o nosso caminho nunca funcionaria. Por vezes, de facto, os
nossos caminhos falharam. Mas muitas vezes não.” (Patience and Sarah, p. 188). As lésbicas
têm que ser criativas, simplesmente porque não há regras para como deveríamos viver. A
memória e a imaginação são as qualidades necessárias para sobreviver, e a base da ordem
triunfante e inspiradora de Monique Witting, “Faz um esforço para lembrar, e se não
conseguires, inventa”230.
Inventar a história foi sempre uma prerrogativa dos escritores. Schiller inventou a maior parte
da história em Don Carlos e em Die jungfrau von Orleans fez morrer Joana d’Arc no campo de
batalha porque o seu fim real não se adaptava aos seus propósitos dramáticos. Rescrever a
história para sermos nós também efetivamente dramatis personae tem sido um dos projetos do
feminismoo contemporâneo. A editora Virago nasceu desta iniciativa, republicando as obras de
mulheres que tinham sido descartadas, ignoradas e suprimidas. Portanto era perfeitamente
apropriado que fosse a editora de um livro quem conjugada a ficção e a história feminista. Zoe
Fairbairns e as editoras do Virago conceberam o projeto juntas. Tinha que ser “a saga de uma
grande família cheia de história feminista” 231. O produto Stand We At Last combina dois tipos
de ficção popular reconhecíveis, altamente comercializáveis: a saga doméstica familiar e a
novela sentimental232. Stand We At Last começa em 1855, o apogeu das romancistas femininas e
a época do crescente debate público sobre a “Questão das Mulheres”, e termina no começo dos
anos 70 com o advento do movimento feminista contemporâneo. Fairbairns utiliza a fórmula
das duas irmãs, que fazem escolhas diferentes, para gerar duas narrativas contrastantes
radicalmente diferentes. Uma mulher casa-se com um homem convencional, apropriado; a outra
emigra para a Austrália. Exatamente a mesma fórmula é utilizada para chegar ao mesmo efeito
por Arnold Bennett, no seu Old Wives’ Tale (1908), um romance histórico que cobre a primeira
metade do mesmo período. O problema de Fairbairns tem a ver com a psicologia e o diálogo. O
livro é uma reconstrução da história e da época vitorianas por parte das feministas dos anos 80,
ou a autora está a escrever uma versão de meados do século XIX que é construída e interpretada
pelas escritoras que viviam naquele tempo? Cada secção tem a ver com a “questão das
mulheres”, considerada um importante marco pelas nossas próprias historiadoras feministas: o
abuso médico e sexual das mulheres, as leis sobre a prostituição, o destino dos filhos ilegítimos,
a luta pelo voto, o destino das mulheres no trabalho, as mulheres e a guerra, o Fim do Império, e
o aparecimento do atual movimento de libertação das mulheres a partir dos movimentos
políticos dos estudantes radicais nos anos 60. O foco da narração não é, contudo, a condição da
mulher, mas a condição das mulheres independentes. O enredo portanto tende a forçar todas as
mulheres para que representem um comportamento ou um problema. A história é geralmente
percebida do ponto de vista dos indivíduos; o movimento das sufragistas irrompe na novela,
aparentemente do nada, na forma de um autocarro cheio de mulheres que vai buscar a Tia Sarah,
a única verdadeira mulher radical no livro (e, significativamente, a mulher que não deixa filhos

229
“ …assim me parece, ao ver a história da irmã de Shakespeare, como eu fiz, [é] que uma mulher nascida com um grande
dom no século XVI teria certamente enlouquecido, ter-se-ia suicidado com um tiro, ou acabado os seus dias numa pequena
casa de campo solitária …” (Virginia Woolf, A Room of One’s Own, p. 51.) Virginia Woolf podia estar a descrever o que
124

aconteceu com ela, nascida com um grande dom no fim do século XIX e a viver no século XX, em que enlouqueceu
completamente e no fim suicidou-se. Pelo menos viveu para escrever os seus livros.
230
Jo Jones usa a epígrafe de Wittig como introdução para a última secção do romance Come Come (London, Sheba, 1983).
Há um número especial sobre a obra de Wittig de Vlasta: Fictions, utopies, amazoniennes, no 4, disponibilizado por
Página

Collectif Memoires/Utopies B.P. 130, 75663 Paris, Cedex 14.


231
Da avaliação de Fairbairns da sua carreira, “I Was a Teenage Novelist”, Women’s Review, no. 8 (June 1986), pp. 8-11.
232
Zoe Fairbairns, Stand We At Last (London, Virago, 1983; Pan, 1984).
ou herdeiros atrás dela). Não existe sentido para qualquer outro movimento de sufrágio mais
amplo. A política, a mudança social, as crises, limitam-se a atingir as personagens com toda a
força do autocarro que passa. A personagem nunca é moldada pela história. Os outros
indivíduos são esmagados pelos eventos. O Titanic afunda – como de facto fez – com a Tia
Sarah a bordo.
A política sexual do livro é peculiar. Fairbairns torna central a experiência da opressão das
mulheres, mas reforça a tradição de forma estranha. Todas as mulheres, inclusivamente Jackie, a
última filha da família cujo destino é relatado, são vítimas sexuais. Experimentam o sexo
heterossexual como uma coisa inevitável, desagradável e grotesca, com consequências
horríveis: gravidezes indesejadas e doenças venéreas. Também a formidável Tia Sarah vive um
aborto sangrento na fábrica de laticínios australiana.
Estas são as reflexões de Helena sobre o casamento: “Ele enlouqueceu? Foi afetado por uma
doença súbita enquanto estava fora? Ou sempre tinha querido que fosse assim… esperar que
passasse o primeiro mês de casamento antes de revelar-se, levando-lhe uma linda camisa de
dormir para a consolar do que ele lhe faria passar enquanto a tinha vestida?” (p. 34). Todas as
mulheres da classe média vitoriana “suportam” o sexo, aparentemente. “Surpreender-te-ia saber
que a Pearl tem uma repulsão e um medo profundo por tudo o que tenha a ver com homens ou
casamento?” (p. 181). Ora não, não surpreenderia; dada a descoberta da Tia Sarah de que “…a
gonorreia não detetada é uma das causas principais de esterilidade e problemas de saúde entre as
mulheres casadas virtuosas” (p. 161). Ruby “conhece a paixão” uma vez no chão da sala de
desenho com o seu amante, “…mas o marido era uma amarga desilusão para ela em modos que
ela podia só desejar não saber. Ele tinha pouca paixão e ainda menos delicadeza… Agora ele
tinha uma performance pomposa e trémula uma vez por semana” (p. 348). E quando chegamos
aos anos 60 todas as meninas tomam a pílula, ou deveriam, para que os homens fodam. Esta é a
experiência de Jackie. “Casualmente, uma vez no rescaldo, ele disse, suponho que estás a tomar
a pílula, miúda? E eu disse que sim, com ar sonhador... E quando contei ao Calvin o que tinha
acontecido, ele disse, não pode ser meu, miúda, estavas a tomar aquelas pílulas quando estiveste
comigo” (p. 448). O lesbianismo permanece totalmente invisível no texto de Fairbain; bem
como nos trabalhos das historiadoras feministas mais heterossexuais. Nem há sequer uma
ocasional e casta amizade romântica.
A própria Fairbain reconhece que o livro não é um êxito; “há um excesso de confiança no lugar-
comum”233. E os clichés são sinistros no que toca à sexualidade, pois Fairbairns limita-se a
reproduzir os valores sexuais da ficção romântica, que são tudo menos feministas. “Ruby ficou
um pouco chocada com a violência da paixão, mas a paz que se seguiu compensou-a, a paz que
se estende do corpo dele para o dela” (p. 315). O sexo ainda é uma coisa que os homens fazem
às mulheres, e o entrelaçamento entre a paixão e a violência, que decerto parecem estar ligadas
na mente dos homens, é, julgo eu, algo que todos deveríamos querer desafiar.
As razões que estão por trás das incertezas políticas e textuais em Stand We At Last são
interessantes. A Virago encomendou o livro, mas queria influenciar a escrita mais do que
Fairbairns esperava. Queriam um texto que se encaixasse com a sua estratégia publicitária.
Todas as ficções de género são escritas com um mercado em mente; todas as ficções de género
têm que funcionar dentro das expectativas textuais que são certamente clichés. Escrever bem
dentro de um género particular sem perturbar ou subverter a forma é, a meu ver, impossível. A
maior parte dos consumidores da ficção de género comem os romances como comem a sua
comida preferida. Querem saber o que estão a comprar, mesmo quando é uma porcaria. O
feminismoo, por outro lado, deveria sempre ser perturbador, inquietante. E esta moléstia é
sintomática do ar de transformação que uma leitora feminista vai querer. É a sua insatisfação
com os mistérios dos homicídios que depende das loiras mortas com peitos grandes,
horrivelmente assassinadas, que leva a leitora a desejar o prazer da ficção onde a mulher não é
sempre, automaticamente, a vítima. E uma saga histórica de uma família que atravessa a época
125

de duas revoluções de mulheres, uma época dentro da qual todas as condições das mulheres se
Página

233
Fairbairns, “I Was a Teenage Novelist”, p. 10.
alteraram profundamente, precisa de imaginar essa mudança através de uma leitura radical da
história, e não de uma acumulação empilhada de problemas isolados.
O título de Fairbairns vem da letra de Cicily Hamilton, criada para a música de Ethyl Smyth,
“The March of the Women”: “Strong, strong, stand we at last” (“Fortes, fortes, erguemo-nos
finalmente”). Palavras comovedoras. Smyth e Hamilton foram ambas solteiras radicais do
movimento de sufragistas; mas o seu espírito não habita o texto de Stand We At Last. Não nos
erguemos no final do livro. Ainda estamos a segurar a criança e ainda estamos deitadas de
costas. Contudo, considero o último agrupamento só de mulheres do romance um gesto
positivo, embora desesperado. “Tive que sair de casa. Estou com uma mulher de idade e uma
criança que está a aprender a andar e sem dinheiro. E não sei o que fazer” (p. 510). Mas pelo
menos – e finalmente – a nossa heroína está a pedir ajuda a outra mulher; sabendo que a mulher
do outro lado do telefone está politicamente comprometida com o feminismoo, e com as outras
mulheres.

5
Fábulas, mitos e mitologias
Um porta-voz da polícia do distrito de Neru, Nkubu, disse que, após uma discussão
com a sua mulher, o Sr. Ndola Kianyaga deu o jantar que esta tinha cozinhado
para ele ao cão, após o que a Srª Kianyaga foi buscar um machado à cozinha e
cortou-lhe a cabeça.
126

The Nation, Nairobi, 18 de Agosto de 1988


Página

Draupadi é uma das heroínas do épico Indiano, o Mahabharata. Ela é casada com os
cinco filhos de Pandu. O seu marido mais velho está em vias de a perder num jogo de dados. Eis
o que acontece.
“As Escrituras prescreviam um marido para uma mulher; Draupadi está dependente de muitos maridos;
portanto ela pode ser designada de prostituta. Não há nada de impróprio em trazê-la, vestida ou despida
perante a assembleia.' (Mahabharata 65:35-36.) O chefe inimigo começa a puxar o sari de Draupadi.
Draupadi reza silenciosamente a Krishna incarnada. A Ideia de Manter a Lei (Dharma) materializa-se no
vestuário, e à medida que o rei puxa e puxa pelo seu sari parece haver cada vez mais tecido. Draupadi
está infinitamente vestida e não pode ser publicamente despida. É um dos milagres de Krishna. 234

A assembleia é a companhia de homens. O corpo de Draupadi é propriedade privada, a


propriedade de homens. Tal como toda a propriedade, ela ode ser comprada, vendida, trocada.
Ela é a mercadoria a ser vistoriada. Eu reparei que o gesto de Krishna não altera o seu estatuto;
mas vem pôr m causa os motivos dos homens: os compradores, a audiência, os pornógrafos. A
história de Mahasweta Devi “Draupadi” coloca o mito contra a história. A sua narrativa inverte
os acontecimentos do mito em circunstâncias particulares num momento particular da história
da Índia.235 Mas será que a narrativa apoia ou transforma os significados originais do milagre de
Krishna e a história de Draupadi? E qual era, de qualquer forma, o significado original? Como
poderá alguma vez ser recuperado, dado que a criação de significado é sempre um contrato,
ainda que informal, entre o leitor e o texto?
A história de Mahasweta Devi decorre em 1971, no meio das ações do exército Indiano
contra os revolucionários tribais Santal na Bengala Ocidental. O texto foi escrito em Bengali,
com umas poucas palavras reveladoras em Inglês. Todo o vocabulário técnico do exército está
escrito em Inglês. Gayatri Spivak, o tradutor, indica quais são essas palavras deixando-as em
itálico na sua tradução para que se possam destacar no texto. Draupadi, ou Dopdi, tal como ela é
também conhecida, é uma revolucionária. Ela vive e trabalha ao lado do seu marido e
camaradas como uma igual. A narradora insiste na sua responsabilidade, liberdade e resolução
política. O outro aspeto de Dopdi que Mahasweta Devi enfatiza é a sua identidade como uma
tribal; a sua língua estranha, partilhada com o seu povo, e a sua pele negra, negra. Os
revolucionários exploram o racismo das forças especiais para se protegerem. Dopdi pode
desaparecer entre o seu povo simplesmente ao tomar outro nome: “… não só apenas os Santals
mas todos os tribais das tribos Austro-Asiáticas parecem ser os mesmos para as Forças
Especiais.”236 Esta é uma caraterística clássica do racismo - aos olhos do racista, todos parecem
iguais. O indivíduo não existe. As pessoas são objetos.
No Mahabharata a mulher é uma propriedade, para ser trocada entre homens. Ela é capturada e
presa pelo olhar masculino; a sua nudez seria a sua vergonha, um facto testemunhado pelo
milagre de Krishna, que a veste para defendê-la. A vergonha é a ameaça do homem contra as
mulheres: uma mulher sem vergonha é uma mulher sem valor, uma desavergonhada. Não é
surpreendente que tenha sido esta uma das primeiras ameaças que trouxemos à luz do dia nos
primeiros tempos do movimento contemporâneo para a libertação das mulheres. A vergonha já
não nos podia conter se recusássemos as definições dos homens daquilo que era vergonhoso.
Anja Meulenbelt entitulou deliberadamente a sua magnificamente descarada autobiografia de
The Shame is Over,237 Pois o que acontece ao poder do homem para intimidar, para subjugar e
destruir, se uma mulher se recusa a deixar-se envergonhar? A heroína de Mahasweta Devi é
reconhecida, traída e brutalmente violada pelas Forças Especiais sob as ordens do seu
comandante Senanayak. Senanayak considera-se um conhecedor do pensamento revolucionário.
Ele tem de ler todos os livros. Curiosamente, isso resulta. A sua filosofia, “Para destruir o

234
Eu li a história de Mahasweta Devi através da tradução do original em Bengali de Gayatri Chakravorty Spivak – com o
meticuloso prefácio, interpretação e explicação de Spivak. Apesar de toda a sua culta exegese, eu li a história de forma
bastante diferente. Consultar Spivak, In Other Worlds: Essays in Cidtural Politics (Londres, Methuen, 1987), p. 179—96. Esta
citação é da página 183.
127

235
Ver o prefácio de Spivak em In Other Worlds.
236
Spivak, In Other Worlds, p. 187.
Página

237
Ver capítulo 3 acima. Para uma visão masculina moderna ver Salman Rushdie, Shame (Londres, Cape, 1983).
inimigo, torna-te num”238 permite-lhe capturar Dopdi. Mas a única coisa sobre a qual ele é
incapaz de se informar é sobre o significado que uam mulher constroi e sobre o qual se coloca a
ela própria e ao seu corpo quando esta recusa os significados dos homens. Não era algo que ele
pudesse estudar anteriormente porque só agora estamos a escrever os livros. Quando Dopdi é
libertada dos postes onde a tinham atado, de pernas abertas e repetidamente violada por muitos
soldados, ela recusa-se a cobrir o seu corpo mutilado e a sangrar e – recusando-se a sentir-se
envergonhada– ela marcha em diretamente para Senanayak. “Não há aqui um único homem de
que eu me envergonhe. Eu não vou permitir que me ponha uma peça de roupa que seja. O que
mais me podes fazer?” (p. 196). Dopdi recusa o milagre de Krishna, porque ela recusa-se a
reconhecer a autoridade dos homens.
Todos os mitos são culturalmente específicos. Estes legitimam as estruturas de poder, apoiam e
justificam os acordos sociais existentes. Estes explicam a política através de símbolos e
metáforas. Oferecem a verdade, condimentada com eternidade. As histórias mais improváveis
serão aceites calorosamente e credíveis como se de revelações de tratassem. O Mahabharata
não foi um dos textos míticos que eu conheci na minha infância. Eu nunca tinha ouvido de
Draupadi até eu ter lido a história de Mahasweta Devi; e assim, ao reescrever o mito, sobre o
qual o impacto da sua narrativa depende, este não carrega qualquer ressoância emocional para
mim. Não houve uma súbita alteração de consciência ou perceção na minha mente. O sari de
Draupadi já era simplesmente um signo, algo para apreender intelectualmente. Mas o que eu
realmente vi, uma imagem que teve uma força enorme, foi uma mulher, uma mulher em
específico, Dopdi Mejhen, sem vergonha do seu corpo violado, rasgado, e a sangrar a enfrentar
o seu inimigo. Eu vi-a “a caminhar na sua direção sob a brilhante luz do sol com a sua cabeça
erguida”. E reparei que quando a mulher se recusa a se deixar envergonhar pelo seu captor é
obrigada a não se sentir moralmente culpada, mas “terrivelmente assustada” (p. 196). Ela
recusou-se a apoiar os sistemas de valor dos homens. Ela recusou os significados que ele
colocou sobre o seu corpo. Ela recusou-se a se curvar, a ceder, a se entregar. Ele pode matá-la –
ela exige que ele o faça, ameaçando-o com o seu corpo despido. Ele pode matá-la; mas o poder
dela, o seu espírito nunca poderá ser quebrado.
O mito original de Mahabharata não teve qualquer autoridade sobre mim enquanto leitora-
mulher, mas a ideia na história de'Draupadi', que o corpo despido de uma mulher é um objeto do
qual se sente vergonha, certamente que teve. A minha religião, o Cristianismo Católico, e o
texto-mestre que tem poder sobre a minha vida e as minha perceções, a Bíblia, estão ambos
saturados de exatamente o mesmo nexo de ideias: mulheres como objetos sexuais, a sexualidade
como um pecado, e os salários do pecado como sendo a vergonha e a morte. A influência e a
autoridade da Bíblia na minha cultura e na minha linguagem, e especialmente na cultura
Britância, é ao mesmo tempo assustadora e imensa. 239 Pois os mitos, assim que são traduzidos
para a teologia, deixam de ser especultivos para se tornarem prescritivos. Eles transformam o
político e aquilo que é passível de mudança no metafísico, e portanto em estruturas
supostamente imutáveis. Enquanto mulheres, nós estamos inscritas no mito bíblico. A nossa
natureza, enquanto mulheres, é imaginada e definida pelos homens; e então, subsequentemente,
imposta sobre nós. O facto do Cristianismo ter sido a religião imperial da Grã-Bretanhan, e na
verdade, uma das ferramentas usadas para justificar o empreendimento imperial, quer dizer que
uma boa parte da população mundial foi sujeita aos pressupostos e instituições cristãos. Um dos
pontos fortes peculiares da Sagrada Escritura é a frequente ausência de um autor. Os textos-
mestre, os Livros da Patriarquia, por conseguinte, existem pela dádiva de Deus, pela voz de
Deus, pela Palavra Sagrada.
Mas é claro que, tal como todos os trabalhos dos homens, a Bíblia está fraturada pelas
contradições, pelos espaços em branco e pelos silêncios. O desafio feminista à Bíblia tem sido
consistente ao longo dos séculos; nós indicámos as mesmas contradições, até os mesmos textos
128

238
Spivak, In Other Worlds, p. 189.
239
Página

Num simpósio do New York Times a 4 de Dezembro de 1988, perguntou-se a vários autores sem qual dos clássicos
poderiam viver. Angela Carter, ela própria uma criadora de mitos de mulheres, disse 'a Bíblia perturba-me; é uma grande
obra literária mas causou muita dor na sua época'. Amén, amén.
são citados, repetidos até à exaustão como burros à beira-mar. Por vezes as mulheres citam texto
atrás de texto contra texto em nossa defesa, tal como Rachel Speght fez na sua resposta ao
ataque de Joseph Swetnam às mulhers. O seu oanfleto, A Mouzellfor Melastomus (1617), é uma
defesa montada apenas na autoridade da citação bíblica. 240 O The Women's Bible (1895-8) de
Elizabeth Cady Stanton argumentava, apaixonadamente e racionalmente, que tinha chegado a
altura de ler a Bíblia como um livro, em vez de a adorar como um 'fetich', e para além disso, lê-
la como um livro que 'não está acima da aplicação da razão e do senso comum'.241 No
nascimento mais recente do movimento para a libertação das mulheres, tanto as mulheres Judias
como as Cristãs tentaram construir uma teologia das mulheres. Nós relemos a Bíblia de uma
perspetiva feminista e, até mesmo mais radicalmente, começámos a recontar as histórias e a
reescrever os textos. Muitas vezes, as mesmas mulheres levaram a cabo tanto o trabalho erudito
como o imaginativo de repensar o Cristianismo. Sara Maitland escreveu um dos primeiros
relatos Britânicos do movimento para a libertação das mulheres nas igrejas Anglicana e Católica
branca ocidental: A Map of the New Country: Women and Christianity. Ela co-editou, com Jo
Garcia, uma anthologia de escritos de mulheres sobre a espiritualidade, Walking on the Water, e
no mesmo ano publicou um volume de contos, Telling Tales, muitos dos quais são mitos
Judaico-Christãos e Cássicos Gregos reescritos.242
A tentação de desafiar os mitos ao recontá-los, para mudar as suas formas e ênfase, é óbvia. Jan
Montefiore explica. 'Pois o encanto de tal material tradicional como o mito e o conto de fadas,
especialmente para as feministas, assenta não apenas no seu prestígio arcaico, mas nas suas
fortes ligações com a subjetividade humana, de forma que utilizar este material parece ser uma
maneira de escaper às hierarquias constritivas da tradição e de ganhar acesso ao poder da
definição.'243 As escritoras feministas tomaram partido desta liberdade imaginativa. Nada, nem
mesmo a Palavra de Deus, mantém-se intacta. A reescrita e o recontar feminista da Bíblia
revelou-me duas coisas: primeiro, que a Palavra de Deus é, indubitável e irrefutavelmente, a
palavra dos homens; e segundo, que as palavras das mulheres não não provêm de um qualquer
espaço sagrado, à-parte, feminino. Recriar significados é um projeto ao mesmo tempo
individual e coletivo. Não pode ser levado a cabo apenas por uma mulher. Não pode ser
realizado de uma vez por todas. As velhas histórias não devem apenas ser continuamente
desafiadas e recontadas; por vezes elas devem ser simplesmente ridicularizadas e abandonadas.
Nós precisamos de inventar as nossas próprias novas histórias. Deixem-me explicar.
O grupo de escritoras feministas dos anos 70 que publicaram pela primeira vez Tales I Tell My
Mother em 1978 era um grupo de cinco: Miche le ne Wandor, Sara Maitland, Zoë Fairbairns,
Valerie Miner e Michèle Roberts.244 Elas agora encontraram uma casa na editora Methuen,
apesar delas terem publicado a sua edição especial de aniversário do More Tales I Tell My
Mother com a Journeyman Press em 1987. Três destas mulheres, Maitland, Wandor and
Roberts, publicaram trabalhos que lidavam explicitamente com o mito religioso e o seu poder na
estruturação das vidas das mulheres e da cultura ocidental. A sequência do poema de Wandor,
Gardens of Eden, usa o mito Judaico, as vozes de Lilith e de Eva como se se tratassem de
mulheres Judaicas a falar de sexo, de Deus, de culinária e da vida familiar, e acima de tudo,
voltando a se interrogar sobre as velhas histórias. A uma determinada altura, Eva faz uma
viagem pelo mito da antiguidade grega, e levanta algumas questões difíceis. Michèle Roberts,
que teve uma educação Católicac, trabalhou temas Católicos, o mito Cristão e a teologia Cristã

240
Toda a controvérsia foi proveitosamente reeditada: Simon Shepherd (ed.), The Women's Sharp Revenge: Five Women's
Pamphlets from the Renaissance (Londres, Fourth Estate, 1985).
241
Também reeditada: Elizabeth Cady Stanton, The Women's Bible, introduzida por Dale Spender (Edinburgo, Polygon,
1985), p. 112.
129

242
Sara Maitland, A Map of the New Country: Women and Christianity (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1983); com Jo
Garcia (eds), Walking on the Water (Londres, Virago, 1983); Telling Tales (Londres, Journeyman, 1983).
243
Página

Jan Montefiore, Feminism and Poetry (Londres, Pandora, 1987), p. 56.


244
Ver capítulo 1 acima para um olhar crítico da criatividade coletiva.
em toda a sua ficção, e chegou mesmo a usar The Visitation como título do seu segundo
romance. O seu terceiro romance, The Wild Girl, é um quinto evangelho, o envagelho das
mulheres de Maria Madalena; e ela tornou a Bíblia e o mito grego partes centrais da sua ficção
The Book of Mrs Noah245 Sara Maitland é a esposa de um padre Anglicano; ela está envolvida
na igreja de todas as formas, pessoal e politicamente. Este é o tema da sua ficção. Eu pretend
escrever sobre este trabalho porque é crucial para se estabelecer a ligação entre o feminismo e o
Cristianismo e porque será sempre impossível resolver a discussão entre as mulheres livres e a
Igreja.
O primeiro conto de Maitland no Telling Tales é 'Of Deborah and Jael', um reconto da história
narrada no Juízes 4 e 5. Esta narrativa é crucial para qualquer reconstrução feminista da Bíblia.
A canção de Deborah para Jael é um dos textos mais antigos que possuimos. Deborah julgou
Israel. Ela é uma profetisa, uma mulher de poder e decisão: uma mulher que fala em nome de
Deus e que convive com Deus. Ela diz aos filhos de Israel que o Senhor entregará o seu inimigo
Sísera nas mãos de uma mulher. Barak, o líder do exército de Israel, não irá para a batalha sem
ela. Sísera, o seu exército devidamente derrotado, foge para a tenda de Héber, o queneu,
presumindo que lá,uma vez que reina a paz entre as duas tribos, ele estará seguro. Jael, a mulher
de Héber, atrai-o para a sua tenda, oferece-lhe leite para beber, e insiste para que ele descanse.
Enquanto ele dorme, ela martela uma das estacas da tenda nas suas têmporas.
Abençoada seja acima das mulheres, Jael, mulher de Héber, o quenita, abençoada seja ela acima
das mulheres na tenda.

Ele pediu água, e ela deu-lhe leite; ela ofereceu manteiga numa taça digna de um príncipe Ela pôs a mão no
prego, e a sua mão direita no martelo e com o martelo ela matou Sísera. Ela rachou-lhe a cabeça, furando e
trespassando-lhe as têmporas.246

Comentadores/críticos masculinos, Judeus e Cristãos igualmente, adotaram uma postura


previsivelmente negativa perante as mulheres assassinas na Bíblia. Eles mostram-se satisfeitos
por elogiar Moisés, mas quando se trata da decapitação de Holofernes às mãos de Judite
mostram-se desconfortáveis, de tal forma que ela não faz parte da versão oficial. E da mesma
forma se reportam à história de Jael: salientam que as regras da hospitalidade no deserto se
aplicam necessariamente a amigos e inimigos. Argumentam que o facto de se ser convidado é
sagrado. Jael assassina um convidado enquanto este dorme. A sua manipulação sexual é
considerada covarde e desonrosa. As feministas fazem uma leitura diferente da história.
A ironia da situação de Jael é explicitada na canção de Deborah, que celebra a sua vitória por
Israel. A realidade da guerra – de todas as guerras – para as mulheres, é a de que nós somos os
espólios. Os homens são mortos, as mulheres são violadas.

Eles não se apressaram? Não dividiram a presa? Para cada homem uma donzela ou duas. 247

Esta passagem do texto Hebraico é literal e chocante. A rendição gentil da Versão


Autorizada - 'Para cada homem uma donzela ou duas' – pode ser melhor traduzida como 'uma
rata ou duas por piça'. Aqui mulher é escrita como 'rachamata'im', o que significa ventre; 'rosh' é
a cabeça de um homem, mas também significa piça. Jael sabe, tal como qualquer mulher, que
nós nunca podemos ganhar os homens em combate. Eles são fisicamente mais fortes do que nós.
As armas das mulheres são, e sempre foram, a astúcia, o ardil e o engano.

245
Michelene Wandor, Gardens of Eden (Londres, Journeyman, 1984); Michèle Roberts, The Visitation (Londres, Women's
Press, 1983), The Wild Girl (Londres, Methuen, 1984), The Book of Mrs Noah (Londres, Methuen, 1987).
246
Juízes 5:24-30, Versão Autorizada. Eu cito a Versão Autorizada não apenas pela sua autoridade
130

linguística como um texto na nossa cultura, mas porque, depois de trabalhar no Isaiah 1-7 com eruditos
Cristãos e Judeus na Bendorf Bible Week (1987), eu fiquei bastante impressionada pela exatidão da
tradução.
Página

247
Juízes 5:30.
Na história de Maitland sobre Deborah e Jael, uma mulher cumpre a profecia da outra;
uma mulher honra a outra numa canção. Deborah canta a vitória de Jael com a “sua autoridade
pública”;248 ela celebra a solidariedade no massacre entre as duas mulheres. Barak não é capaz
de olhar para a desordem sangrenta na tenda de Jael, nem para “aquela pequena mulher maluca”
(p. 3). No entanto, as mulheres 'olham uma para a outra, sorriem uma para a outra – elas são
amigas . . . Elas estendem as mãos, em silêncio, quase tímidas no seu entusiasmo, e tocam-se
muito suavemente. Elas sabem que os seus maridos nunca mais vão querer tocá-las. Elas sabem
quem é o inimigo' (p. 4). Maitland não diz explicitamente quem é o inimigo; mas o que a sua
narrativa faz é transformar a vitória bíblica de Israel sobre os Cananeus numa violenta vitória
sexual das mulheres sobre os homens. Ela descreve o assassinato de Sísera às mãos de Jael
como um assassinato cuidadoso, e politicamente a sangue-frio, mas como uma expressão da
sexualidade orgásmica, sádica. O assassinato de Sísera às suas mãos é o reverso violento de um
homem a violar uma mulher, um assassinato sexual. A estaca da tenda transforma-se no seu
pénis, “o pau pontiagudo não mais alienígena mas uma parte da sua pessoa”, a sua arma de
penetração. Ela entra no cérebro de Sísera num frenezim, “perde o controlo, e muito depois de
ser necessário, bang, bang, bang, ela continuou a bater ritmica e vigorosamente”. Quando ela
termina, Jael desfalece exausta, “esgotada pelo seu próprio entusiasmo” (p. 2).
Existe de facto alguma evidência no texto original desta interpretação do ato de Jael como um
assassinato sexual. A mulher rabino Sheila Shulman faz uma leitura dos Juízes 5:27 como uma
inversão do nascimento e da violação. Aqui fica o verso.

Aos seus pés ele se curvou, ele tombou: onde se curvou, ele caiu morto. 249

A estrutura do verso, tal como nas repetições de uma balada, colocada a preponderância
na última palavra, 'morto'. Traduzido à letra, a palavra significa 'destruido'. No seu ensaio sobre
Deborah e Jael, 'Versions of a Story'[Versões de uma história], Shulman tem a dizer o seguinte
sobre esse verso:

Existe, aqui, um sentido de extrema violência e depois, se é que lhe podemos chamar assim, de libertação,
cuidadosamente erigida através da estrutura. Estes mesmos elementos estão presents em outras duas
experiências humanas; as avassaladoras imagens visuais transformam-se, aqui, por um lado numa paródia
do nascimento, à medida que Sísera cai entre os pés de Jael, e um reverso triunfante da violação. Mais uma
vez, a imagem é hierática, assombrosa. 250

O que este assassinato faz na história de Maitland é libertar tanto os significados femininos
como os masculinos. Deborah,que Maitland imagina ser 'uma mulher feia; ela chorara por causa
disso ao longo da sua juventude', é libertada das expectativas masculinas de beleza. 'Em vez
disso, as suas palavras são fortes e belas: ela entregara o poderoso Sísera nas mãos de uma
mulher' (p. 3). O assassinato sexual murder é um género de crime que é – no momento -
peculiar ao macho da espécie humana. 251 Todavia ambas as mulheres regozijam-se no
assassinato sangrento dos homens, 'respirando o fedor inebriante do medo que lhes chega às
narinas' (p. 4).
Maitland está interessada em escrever sobre experiências e perceções que são, ou foram,
sexualmente inaceitáveis. Por vezes, a sua escrita está demasiado expressamente saturada de
clichés peculiares ao erotismo sado-masoquista, que simplesmente reproduz o que os homens

248
Maitland, 'Of Deborah and Jael', Telling Tales, p. 1.
249
NT. No original “At her feet he bowed, he fell: where he bowed there he fel down dead.”
250
Para a minha discussão da história de Débora e Jael, eu estou infinitamente em dívida para com a mulher rabino Sheila
Shulman, sem a qual o texto hebraico permanece – pelo menos para mim – um mistério impenetrável de signos. Ela deu-me
131

autorização para citá-la no seu artigo ainda por publicar 'Versions of a Story', submetido a Leo Baeck College, 1988, como
parte dos seus estudos rabínicos.
251
Página

Para explicações, definições e exemplos horrosos, por favor ver Deborah Cameron e Elizabeth Frazer, The Lust to Kill: A
Feminist Investigation of Sexual Murder (Cambridge, Polity, 1987) e Jane Caputi, The Age of Sex Crime (Londres, Women's
Press, 1988).
sempre disseram sobre as mulheres. Mas aqui, penso eu, o seu método funciona. 'Of Deborah
and Jael' é obscuramente chocante; quatro páginas breves que precisam de ser repensadas,
relidas. Eu não julgo que o facto dela nos recontar a história bíblica nos diga de uma forma
definitiva o que as mulheres são ou como elas poderiam ser. Mas o que ela nos diz de facto é do
que os homens têm medo. Eles temem que nós sejamos capazes de matá-los de forma tão
audaciosa, sangrenta e cruel como eles nos matam. Eles sabem, e nós sabemos, que nós temos
razões mais do que suficientes para fazê-lo. Mas o que é estranho, e vagamente sinistro na
história de Maitland, é que ela sugira que as mulheres possam achar o assassinato sexual
eroticamente gratificante. A ideia está certamente presente no Juízes 5. Mas então, quem
escreveu essa versão da história?
Os mitos que não criámos e que não nos pertencem funcionam sempre como referência dos
significados construidos pelo homem. É por isso mais frutífero para nós desconstruir e
reescrever os mitos patriarcais que já contêm fendas, fissuras e contradições; ou aqueles em que
as mulheres têm um papel dominante e subversivo. As mulheres pintoras, a trabalhar no género
épico histórico ou na pintura bíblica, têm muitas vezes escolhido trabalhar com estes temas -
como, por exemplo, no retrato dramático de Artemesia Gentileschi da decapitação de
Holofernes às mãos de Judite.252 As escritoras feministas têm-se sentido atraídas pelas histórias
onde estamos presentes, mas em silêncio; foram-lhes dadas vozes, motivos, sentimentos, mas
acima de tudo, significados femininos.
Os textos sagrados de qualquer cultura, tal como eu já indiquei, representam o maior desafio
para as mulheres. Na cultura occidental branca nós temos uma estrutura política, metafísica e
social que vai buscar os conceitos bíblicos cristãos para prescrever e justicar a subordinação das
mulheres. Nós, as mulheres, estivemos obviamente na construção da história. Mas na escrita
aparecemos apenas em breves passagens, fragmentos. Somos sempre alvo de interpretação.
Raramente somos nós a interpretarmo-nos.
O Segundo livro de contos de Maitland, A Book of Spells continua e desenvolve os seus
temas iniciais: narrativas bíblicas, contos de fadas, fábulas modernas, magia, metamorphoses e
sentimentos sexuais ambiguous e desagradáveis. 253 O seu trabalho mais arrojado é o seu
“Triptíco”, uma interpretação do Génesis 12-21, a história de Agar, Sara e Abraão. Aqui não
existem lições de moral simples. Nenhum dos pregadores que eu já ouvi utilizar esta história
alguma vez chegaram à moralidade das mães de aluguer com cuidado extremo. A mulher de
Abraão é estéril. Agar, Hagar,a serva carrega o filho de Abraão para que ele possa ter um
herdeiro. Abraão nunca é denunciado. Em vez disso, eu tenho ouvido a longas admoestações
para que esperemos pacientemente até que Deus considere oportuno nos entregar filhos na nossa
velhice, e para fazer sentir os convidados masculinos benvindo para o caso deles virem a ser na
realidade anjos.
Um tríptico é normalmente um retábulo com três pinturas de tamanho e importância desigual. O
acontecimento mais importante, habitualmente o Nascimento ou a Crucificação, estará no meio
e será o maior; duas personagens menores estão de cada lado. Por vezes o Nascimento tem a
Virgem de um lado, o Anjo Gabriel do outro. Por vezes, o patrono que pagara a pintura está lá
presente com o seu santo patrono. Maitland pega nas suas três personagens e faz da mulher que
tem menos poder, a mulher abusada e traída, a estrangeira, a serva, a escrava, a figura central no
tríptico. São as perceções de Agar e a história de Agar que se torna central. Nós interpretamos
Sara e Abraão, todas as suas ações e motivos, através da sua inteligência e juízos de valor. Mas
Maitland faz uma única coisa que transforma e eletrifica a história, e sobredetermina os
significados políticos inerentes. Ela descreve Agar como sendo negra. No Génesis, Agar é
descrita como Agar a Egípcia, como a escrava, uma serva, a serva de Sara; nunca como sendo
negra.
132

252
Ver Germaine Greer, The Obstacle Race: The Foraines of Women Painters and Their Work (Londres,
Seeker & Warburg, 1979), cap. 10, esp. p. 191.
Página

253
Sara Maitland, A Book of Spells (1987; Londres, Methuen, 1988).
Na Bíblia é Sara que convence Abraão a encontrar o remédio para a sua esterilidade, dormindo
com Agar.

E Sara disse a Abraão, Eis que agora o Senhor não me permitiu ter filhos: Eu rogo-te, vai ter com a
minha serva; poderá que ser que venha a ter filhos através dela. 254

Na Bíblia, é Sara que convence Abraão a banir Agar e o seu filho Ismael para o deserto.

Pelo que ela disse a Abraão, Expulsa esta serva e o seu filho: pois o filho desta serva não pode ser
herdeiro como o meu filho, mesmo com Isaac. 255

No “Triptíco” [Triptych] de Maitland, é Abraão que seduz Agar, e Sara que diz, “Oh
fá-lo, Agar, por Amor de Deus. Tira o bode velho das nossas costas” (p. 106). Sara e Agar
mantêm uma relação lésbica, apesar da grande diferença de idade. Para Agar, Sara é tudo: mãe,
irmã, amante, amiga. E é então que a sua verdadeira relação na história, a de senhora e escrava,
se torna visível entre elas, que o elo se quebra para sempre. No 'Triptych' de Maitland é Abraão
que expulsa Agar para o deserto e para a morte certa. Abraão é um louco, um lascivo, um rufia,
um covarde, um fanático: um homem que leva a sua mulher à submissão pela pancada e que
insiste que a escrava negra e o seu filho, o filho dele, sejam expulsos. A cor negra de Agar é o
símbolo da sua diferença. É claro que, é a sua cor que provoca a luxúria de Abraão. 'Abraão,
naquela semana em que tinham estado juntos, tinha venerado a negrura púrpura dos seus seios.
(pp. 108-9). E é a sua cor negra que Sara acha bela. “Essa Sara, que a tinha levado da terra do
Faraó e que lhe tinha dito que era adorável, que tinha tocado na sua pele negra e que a tinha
achado encantadora, que tinha encontrado nela a fonte e o poder da resistência e que tinha
devolvido a Agar a força que ela tinha retirado dela…” (p. 110). O orgulho negro e o poder
negro são os poderes que as mulheres negras oferecem a si próprias e umas às outras. Nenhuma
mulher que não seja negra poderia oferecer isso à sua amante negra. Sara, a narrativa de
Maitland dá a entendê-lo, não é negra. Ela é a amante branca de Agar. E assim Agar é uma
vítima - uma vítima orgulhosa, mas de todos os modos uma vítima. Se Deus não tivesse
intervindo em sua defesa – e Ele fê-lo, de acordo com a história – ela e o seu filho ter-se-iam
perdido para sempre.
A narrativa de Maitland mantém as linhas gerais do Génesis. Ela atribui todas as ações
maldosas a Abraão. Mas será que havia algum rumor entre o povo de Abraão sobre a sua
violência e injustiça? Ou eles ficaram satisfeitos por verem Agar pelas costas, a favorita de
Sara? Havia outras pessoas negras no acampamento? Eu posso fazer estas perguntas porque
Maitland oferece soluções alternativas, outros finais, e porque ela está a reimaginar um texto
mestre, a desmantelar a sua autoridade. O que eu quero dizer aqui é que a conjunção de negra
/mulher /escrava /proscrita /desprovida de poder é uma conjunção pouco sensata. Maitland está
a inserir o racismo numa história onde o mesmo não é sugerido. Abraão e Sara provavelmente
brancos, e não foram apenas os negros que foram escravos: os próprios Israelitas foram
escravizados no Egito.
Mas também existem aqui coisas boas. Agar vê Deus e sobrevive. E a visão de Deus é
de uma mulher negra; Deus como um negro, poder feminino. E é extraordinário e maravilhoso
imaginar “o grandioso sorriso negro de Deus” (p. 111). A visão de Agar a dançar, e a sagrada
cor negra de Deus, estão escritas lindamente; mas, mas, mas. . . Porque era assim tão impossível
imaginar Agar a fomentar uma revolta dos escravos? A única contribuição que Agar pode ter é
aquela autorizada pela história da Bíblia. Agar e Ismael são salvos e abençoados por Deus.
Alguns acreditam que “a grandiosa nação” que Ismael fundou foi a do povo da fé Islâmica. No
Corão, Sura II: 127, está escrito:
133

254
Génesis 16:2.
Página

255
Génesis 21:10.
E lembrem Abraão
E Isma’il ergueu
Os alicerces da Casa.

Ismael/Isma'il é aqui colocado perante Isaac. Os muçulmanos veneram Abraão como um


dos seus antepassados espirituais, tal como os Judeus e os Cristãos. Portanto, a narrativa no
Génesis tem implicações para as mulheres nos três credos – apesar de Alá ter inspirado Maomé,
sensatamente eu suspeito, a deixar de fora os elementos incendiários da história, a história de
Agar e Sara. Agar é impotente sem Deus. Ela vai para o deserto para morrer. Deus recompensa
a sua dócil submissão ao seu destino. 'Bem-aventurados os mansos, pois eles herdarão a terra'
(Mateus 5:5). Este é um texto deveras malicioso. Eu sou contra a docilidade nas mulheres. Nós
nunca herdámos a terra. E a docilidade não é uma qualidade que nos permitiria fazê-lo. A
terceira figura no 'Triptych' de Maitland é o próprio Abraão. Maitland recusa-se a ver o seu lado
da história com resoluto mau humor e teimosia. Ela desloca Abraão usando a sua própria voz, a
da escritora. A mulher fala e silencia o homem. Se quiseres conhecer a sua versão, diz ela, lê o
Génesis. Maitland recusa-se a produzir o que ela descreve, muito criticamente, ser a sua 'prosa
exagerada'. Em vez disso, ela oferece-nos um comentário bíblico furioso sobre o texto que é, tal
como ela o descreve, 'afiado, irritadiço, cínico' (p. 119) - e, para mim, delicioso. Ela quebra a
ilusão, recusa-se a escrever com beleza. Ela apresenta-se como uma feminista furiosa: uma
escritora, que se posiciona em relação à igreja e às Sagradas Escrituras como Agar perante o
acampamento de Abraão. Elas são ambas expulsas, desprezadas; as proscritas, as estranahas,
cheias de uma fúria que é justa. Maitland finalmente posiciona o seu texto contra o Génesis, e
diz, tal como Agar deveria ter feito, 'Eu não posso perdoar' (p. 119). Bravo.
Tocar nos textos sagrados resulta na violência mais chocante daqueles cujo interesse
manifesto é assim posto em causa. Eu preguei um sermão no Cuddesdon Theological College
perto de Oxford no dia 1 de Março de 1985. O meu tema era a controversa temática do Amor. A
amiga que leu a passagem do Novo Testamento era uma feminista revolucionária e uma
Católica. A primeira Epístola de São João, capítulo 3, a começar no versículo treze: 'Meus
irmãos, não vos admireis se o mundo vos odeia.' De pé perante a Assembleia, ela transformou o
texto, para que este se dirigisse às mulheres. 'Não vos admireis, minhas irmãs e irmãos, se o
mundo vos odeia. Nós sabemos que fizemos a passage da morte para a vida, poruqe nós
amamos as irmãs e os irmãos. Aquele ou aquela que não amar a sua irmã ou o seu irmão
permanece na morte.' Posteriormente ele foi publicamente insultada e maltratada por um padro
que se sentou à sua frente ao jantar, porque ela se atrevera a tocar no texto. As suas vozes
elevaram-se em fúria; a mesa escolheu os seus lados. Ela recusou-se a fazer a sua refeição com
ele. O Reitor da Universidade tocou o alarme de incêndio e nós pousamos os talheres e fugimos.
Nunca mais fomos convidadas para o Cuddesdon.
Em 1984, Michèle Roberts publicou a sua versão do texto sagrado: o seu quinto
Evangelho, O Envangelho segundo Maria Madalena, entitulado The Wild Girl. Ela decidiu
reimaginar os acontecimentos das narrativas do Evangelho da perspetiva marginal de uma
mulher que era ao mesmo tempo amante de Jesus da Nazaré e prostituta. Recusando as
complexidades da erudição bíblica, ou certamente da história, Roberts decidiu se reapoderar do
mito. Ela aceita o ensinamento tradicional da Igreja que combina as três mulheres, Maria
Madalena, Maria de Betânia e a mulher desconhecida de São Marcus que unge Jesus. 'Eu queria
dissecar um mito; eu acabei por também recreá-lo.'256 Reimaginar os Evangelhos é um projeto
que já foi levado a cabo por homens, tanto nos interesses do agnosticismo (tal como no Das
Lebenjfesu de Strauss, que George Eliot traduziu) ou para promover as suas doutrinas quase
religiosas. Dois exemplos disso mesmo do século vinte são Robert Graves, nos seus inúmeros
estudos e ficções, e D. H. Lawrence. No 'The Man Who Died' (1928) Lawrence descrevia a
ressurreição sexual absurda envolvendo sacerdotisas pagãs e ritos eróticos que constituiam uma
134

leitura arrepiantemente tintilante quando eu tinha cerca de dezasseis anos. O processo da


recriação do mito Cristão continua no media mais popular do século vinte, o cinema. O
Página

256
Roberts, The Wild Girl, nota do autor, p. 9.
visionamento do filme de Martin Scorsese The Last Temptation of Christ foi recebido com
violentas denúncias em 1988. Os Fundamentalistas Cristãos mantiveram uma vigília de oração
perto da bilheteira em Paris e um grupo Católico da extrema-direita atacou e incendiou o cinema
onde o filme estava a ser projetado. Reconstruções reverentes como o fabuloso filme de Cecil B.
de Mille The Ten Commandments escapou dessa receção por apresentar uma versão puramente
Hollywoodesca, por detrás de uma grande mascarada de consultores rabínicos e exegéticos nos
seus créditos; mas versões que sugerem que Jesus da Nazaré era humano e poderia ter gostado
de 'raparigas' obteve uma reação diferente.
Outras religiões e culturas responderam de forma semelhante quando os seus profetas e gurus
são apresentados como homens normais. Um dos meus professores, um Indiano e Hindu, que
tinha chegado a conhecer Gandhi em criança, contou-me que alguém tinha exigido que o filme
de Richard Attenborough Gandhi não deveria representar o seu líder espiritual em carne e osso,
mas numa espécie de luz em movimento com uma voz. Mais recentemente, Muçulmanos na
Grã-Bretanha queimaram publicamente o livro de Salman Rushdie, Os Versos satânicos porque
continha aquilo que eles argumentavam ser um retrato insultuoso de Maomé.257 'Porque o filho
de uma família Muçulmana Indiana educado com Rugby escreve um romance generosamente
literário e denso a sugerir que o Profeta era humano e que a distinção entre o bem e o mal não é
sempre cristalina, o seu livro não é só banido na Índia, Egito e Arábia Saudita, mas também
queimado nas ruas de Bradford, e retirado das prateleiras das livrarias de W. H. Smith que lá se
encontram.”258 As emoções provocadas pelo caso Rushdie sugerem-me que precisamos de um
maior número e de diferentes versões do Profeta: e de mais discussões abertas entre mulheres
Cristãs, Judias e Muçulmanas. Afinal de contas, nós não temos muito a perder.
Todas as revisões da vida de Cristo têm uma coisa em comum; elas todas identificam a
(heteros)sexualidade como o elemento em falta nos Evangelhos. 259 O Cristianismo não regista
bons resultados no que se reporta ao sexo. A visão aceite tem sido que é preferível casar do que
arder – por pouco – e que todas as formas de homossexualidade são uma abominação. Qualquer
outra coisa que não seja o sagrado matrimónio abria o portal para o pecado mortal, e nós, as
mulheres, éramos o portal. Roberts reescreve de forma radical a história do Evangelho ao
colocar o debate sobre a política firmemente no centro do movimento de Jesus. O projeto da sua
criação mítica não é apenas recuperar Jesus para o feminismoo – uma tarefa nada fácil – mas
também reescrever o debate, o que realmente teve lugar, entre os Gnósticos e a facção ortodoxa,
conduzida por São Pedro, que se veio a tornar eventualmente na Igreja Cristã. Este é um
trabalho crucial para se levar a cabo porque foram os homens Cristãos que inventaram as
mulheres ou como virgens assexuadas ou como a personificação do impulso sexual voraz, ou
como virgem ou como prostituta; Maria, mãe de Deus, ou Maria, a pecadora perdoada. Roberts
manifesta-se contra as contradições nos textos e no tecido das histórias da tradição. Ela faz
aquilo que as escritoras feministas sempre fizeram e continuam a fazer: ela articula silêncios,
ausências, espaços em branco, imagina as mulheres a conversar sobre os assuntos. No entanto,
não é simples tornar a perceção da mulher central. Nós temos sido escritas, imaginadas e
reescritas há demasiados séculos pelos homens. E a figura de Maria Madalena tem sido sempre
pintada nos mesmos moldes, redesenhada vezes sem fim, como freira, como prostituta.

257
Salman Rushdie, Os Versos Satânicos (Londres, Viking Penguin, 1988).
258
W. L. Webb, 'Judgement on Salman', The Guardian, 18 de Janeiro 1989. Ver também Rana Kabbani,
Letter to Christendom (Londres, Virago, 1989) para um retrato sustentado e interessante de como é ser
uma mulher muçulmana a viver no Ocidente. Eu presumo que Kabbani é uma muçulmana Sunni, apesar
dela não o dizer. Ela não dá qualquer indicação que o Islão seja tão variado como o Cristianismo no que
respeita a seitas e perspetivas políticas. Outras mulheres muçulmanas terão certamente reações bastante
135

diferentes ao romance de Rushdie. Eu recomendo Letter to Christendom – mas com cautela.


259
Eu nunca fui capaz de ler o poema de James Kirkup sobre o desejo homossexual, endereçada à figura
Página

crucificada de Jesus da Nazaré. Gay News foi processado, sob a acusação de blasfémia, ao publicar o
poema em 1977.
O Cristianismo funciona através da construção de opostos e um casamento subsequente
entre os dois, no qual a escuridão é redimida pela luz. Observem:
A Igreja Cristo
Terra Céu
Escuridão Luz
Carne Espírito
Mulher Homem
Prostitura Virgem
Natureza Deus

Os exponentes da teologia cristã descartam o problema da reunião dos opostos


irreconciliáveis. Portanto, assim reza a história, Deus entra na Natureza como Jesus de Nazaré, o
mestre torna-se no escravo, o céu desce à terra, o primeiro torna-se no último, a luz brilha na
escuridão, e Cristo salva a Igreja. Para que a Morte se torne Vida, temos de representar o drama
da Crucifixão e da Ressurreição. Para os ateístas nos tempos pós-cristãos, este cenário – o
espetáculo do sofrimento brutal, sentido voluntariamente pela vítima, que o apresenta como
uma espécie de sacrifício necessário em nome do torturador – parecerá desconcertantemente
familiar. Tem sido inúmeras vezes reproduzido na filosofia e na fantasia do Marquês de Sade.
Não é uma coincidência que os teóricos mais sofisticados de Sade nos seus elaborados cenários
sexuais sejam clérigos poderosos. O cristianismo é a fonte de Sade, a sua estrutura, a metafísica
do seu trabalho. O cenário no qual a vítima escolhe sofrer voluntariamente, na realidade, torna-
se eroticamente envolvido no orgasmo da morte, é simplesmente a versão libertina do primeiro
cenário, no qual a vítima é forçada. A teologia da Crucifixão, assim, transforma a versão na qual
a vítima capitula sob pressão num abraçar jubiloso da destruição absoluta. 260 É tudo muito
desagradável.
O pensamento teológico de Roberts avança pelas linhas das dualidades. A uma
determinada altura no seu texto, Jesus prega um longo sermão sobre a necessidade de unir o
macho e a fêmea, o casamento na alma. 'Devem lembrar-se que só poderão conhecer Deus
apenas quando conhecerem ambas as partes que vos constituem e permitir que elas se unam, a
luz do Pai casou com a escuridão da Mãe…” 261 e assim por diante. O movimento de Jesus é
representado no texto de Roberts – de forma muito realista – como um grupo de viajantes
poeirentos, 'unidos na sua angustiada insatisfação com este mundo' (p. 56). Até mesmo a
homossexualidade é alegremente aceite desde que as mulheres e os homens em questão se
ocuparem em unir o homem e a mulher num plano metafísico. 'Existem homens e mulheres na
nossa companhia que amam apenas os membros do seu próprio sexo. Eles devem continuar a
deixar que o casamento aconteça nas suas almas.' (p. 63). Só quando isto acontece é que
podemos conhecer a 'plenitude' de Deus e tornarmo-nos 'completos'. Ora, isto é aquilo que a
mulher rabino Sheila Shulman descreve como A Teoria do Fecho de Correr da Política Sexual:
as polaridades são todas estabelecidas, depois corre-se o fecho. Mas estas polaridades são, em
todos os sentidos, criadas pelo homem. Elas existem através da representação cultural e da força
política. Os homens inventaram a Virgem e a Prostituta; os homens tornaram-se eles próprios
sujeitos culturais e as mulheres o outro-objeto. Por isso não adianta aceitar os termos de
referência criados pelo homem, aceitá-las como se fossem naturais, ou mesmo como se
existissem em sentido absoluto, e depois argumentar pela sua destruição num casamento de
opostos. Eu sou da opinião, a qual Roberts também explicita no seu texto, que Maria Madalena
e São Pedro são mais semelhantes do que diferentes, que o cisma entre o masculino e o
feminino é mais ideológico do que biológico, e que a natureza dispersa e fragmentada da nossa

260
Na discussão que se segue, eu estou profundamente em dívida para com o extraordinário livro de
136

Suzanne Kappeler The Pornography of Representation (Cambridge, Polity, 1986).


261
Roberts, The Wild Girl, p. 63. Todas estas ideias são verdadeiramente Gnósticas. Para mais
Página

informações sobre os Gnósticos na história, ver Elaine Pagels, The Gnostic Gospels (1979; Nova Iorque,
Vintage, 1981), onde toda a história é recontada de uma forma fascinante.
consciência, seja qual for o sexo que tivermos, é um aspeto do ser humano. É Por isso que
criamos arte, tememos a morte e refletimos sobre a nossa própria condição para nos
transformarmos a nós próprios.
O mito da plenitude, aliás, a busca pela plenitude, é uma ideia que advém da aceitação
da polaridade e da divisão, e da doutrina Cristã da Queda, onde a nossa união com a Natureza e
com Deus, seja qual ou quem forem, foi originalmente perdida. Roberts está absolutamente
certa em se dedicar a estas contradições e dualidades: se nós somos os produtos de séculos de
Cristandade Católica, então não temos escolha se não fazê-lo. Podemos, todavia, pelo menos
repensar os termos do debate. Roberts segue a teologia Gnóstica da inspiração. A sua Madalena
ouve vozes. 'Como é que eu sei? Sussurrei à mãe do Salvador: se as vozes que falam dentro de
mim e que me fazem cantar, vêm de Deus? Terei blasfemado quando invoquei o poder da Mãe?
Ela virou-se, e olhou para mim. – Confia na voz, filha, ela disse: tal como nós confiamos em ti'
(p. 65). Aqui, Roberts e eu separamo-nos. Ela apoia claramente as vozes de Madalena. As
visões de Maria formam a substância filosófica do The Wild Girl. Mas toda a minha vida
desconfiei das vozes e das pessoas que diziam ouvi-las. Joana D’ Arc seguiu as suas vozes,
bemcomo Peter Sutcliffe. Uma chacinou homens honradamente enquanto soldado, o outro
matou mulheres enquanto assassino sexual. Ambos deixaram um rasto de sangue. No seu todo,
a Bíblia sugere que essas vozes provindas de Deus te pedirão para agir irracionalmente: matar o
teu filho, partir e ordenar que cidades inteiras se arrependam, casar com mulheres grávidas em
desgraça, passar tempo a jejuar no deserto. O que há de maravilhoso nas vozes e visões, como
os Gnósticos vieram a descobrir, é que ninguém pode desmentir as tuas revelações. Tu possuis o
acesso à autoridade divina; tu és a tua própria autoridade, a tua própria testemunha. A Madalena
de Roberts imagina as polaridades a tornarem-se fundidas num casamento místico. Esta é a
teologia central de The Wild Girl. E nenhuma estrutura mítica na cultura occidental que possa
emprestar peso a este argument é deixado de parte. Após a morte de Jesus, Maria entra num
longo tranze semelhante à morte no qual ela volta a representar o mito de Cupido e de Psyche.
Quase todos estes mitos de amantes místicos vêm reforçar as estruturas heterossexuais vigentes.
Os homens descendem de Deus; nós, as mulheres, as mortais, esperamos passivamente para
recebê-los. A união heterossexual é o desejo da morte. 'Eu segui os teus mistérios, sussurrei: eu
sou uma iniciada. Eu comunguei do drama sgrado da sexualidade e da morte' (p. 125). Salomé,
a parteira, transforma-se na Deus Tripla, Donzela/Mãe/Anciã, uma estrutura útil adotada pela
Igreja e renomeada de Trindade. 'Recebam a minha benção, ela disse: da virgem e da mãe e da
anciã' (p. 144). O problema com a Deusa Tripla é que ela apoia uma interpretação da vida de
uma mulher que se baseia na sua relação com os homens: a virgem, mulher enquanto menina
pré-púbera, aguardando o amante místico; a mãe, mulher enquanto veículo reprodutor; anciã,
mulher após a menstruação, perdida a capacidade de gerar filhos. Não chega sequer a haver a
necessidade de considerar a virgindade de uma mulher como uma fase da sua vida a não ser que
haja um valor colocado no seu hímen por romper.
No todo, as visões simbólicas de Maria Madalena são muito menos convincentes do que
a Visão Padronizada Revista do Cristianismo elaborada por Jesus à volta dos fogos de
acampamento ou de jarro de vinho. As visões de Maria estão demasiado carregadas de
significados óbvios - por exemplo, Ignorância = Homens Fálicos que recusam o Casamento
Místico. Mas na sua reescrita do Génesis, na qual os filhos da Ignorância, inclinados para o
poder masculino, atiram Adão e Eva do Paraíso, Roberts é imaginativa de uma forma
interessante. O Génesis tem sido sempreinterpretado como um mito apenas para brancos, dado
apartheid da teologia convencional. Mas Roberts deixa claro que Adão e Eva eram negros.
'Ambos eram muito belos, com uma pele negra que brilhava como o mais precioso azeviche ou
ébano e significava o casamento da luz e da escuridão dentro si' (p. 80). Eu devo confessar que,
dadas as minhas razões políticas para argumentar contra as polaridades culturais e a metáfora do
casamento, místico ou de outra natureza, é pouco provável que eu alguma vez me convertesse
137

aos pontos de vista de Roberts. Mesmo assim, ela tenta escrever uma versão do Cristianismo
que não alienia as mulheres, e que vale a pena ser feita. O próprio Jesus, contudo, continua a ser
um guru e um imortal, não apenas um profeta vagueante ou um homem de ideias. Maria
Página

pergunta-lhe o que ele pensa que as suas visões querem dizer e aceita docilmente as suas
explicações. Após a Crucifixação, o túmulo permance inexplicavelmente vazio. Assim, Jesus
nunca é apenas um homem. Não exatamente.
O Cristianismo não é muitas vezes apresentado como cómico e a narrativa do Novo
Testamento não é uma história engrançada. Mas para os cristãos ou os ex-cristão como eu, que
conhecem bem a Bíblia, existem algumas linhas irresistivelmente cómicas. Roberts e a sua
predecessora, D. H. Lawrence, descobriram que vvoltar a integrar o sexo no texto não era de
todo fácil; porque o sexo é muitas vezes cómico, e Roberts e Lawrence eram impiedosamente
sérios. O Man Who Died de Lawrence olha para o seu falo ereto com admiração sagrada. 'Ele
agachou-se perante ela, e sentiu a chama da sua masculinidade e o seu poder a elevar-se nos
seus lombos, magnífico. "Eu ressuscitei!" 262 Roberts é mais lírica, mas a tese é a mesma. Aqui
fica o orgasmo de Maria Madalena. 'Eu ergui-me, perfurei a barreira da sombra, e já não era um
eu mas parte de um grande rodopio de luz quepulsava e tinia com música – por um momento,
até que fui puxada de volta pelo som da minha própria voz que sussurrava palavras que eu não
compreendia: esta é a ressurreição e a vida' (p. 67). Receio ter rido às gargalhadas enquanto lia
estas passagens. Colocar uma ênfase tão avassaladora no sexo (hetero)ssexual como se de uma
experiência mística se tratasse, dá a Roberts um lugar na história. Nos finais do século vinte, nós
colocámos o sexo numa posição estraordinariamente elevada como se fosse o problema e a
solução das nossas vidas. O sexo não foi sempre tão relevante.
Mas também existem alguns bons pontos políticos. Ao lhe ser ditto para esquecer o
trabalho doméstico, Marta responde a Jesus: 'Para ti não há problema, ela surpreendeu-nos a
todos ao cuspir, pois sou eu que terei de fazer tudo mais tarde, quando estiveres a dormir' (p.
35). E assim, o Jesus de Roberts e os seus discípulos lavam a loiça. Amén, irmã, Amén. O mais
maravilhoso de tudo é a versão do milagre da comida para cinco mil pessoas de Roberts. Este
torna-se no milagre de Marta. 'Mais tarde, as pessoas chamaram-lhe de milagre. Eu chamei-lhe
de dom para o trabalho doméstico. Atrevo-me a dizer que se trata da mesma coisa. Em minutos,
Marta organizou os discípulos . ..' (p. 76). Este milagre é apresentado por Christina Roche de
uma forma mais cáustica no i'm not a feminist but. . . (consultar figura 5).263
Não obstante, a ideia teológica mais valiosa que se ergue da ficção de Roberts não é
inovadora, mas o velho conceito Judeu de tikkun olam, o de consertar o mundo. A relevância
desta ideia para a espiritualidade feminist é elaborada pela mulher rabino Sheila Shulman:

… tikkun olam refere-se habitualmente a duas noções, sendo que ambas são aqui importantes. Uma é a de que
existe uma espécie de fenda no mundo, um sentiment de que falta ao mundo integridade (que eu devo lembrar
que é o significado basilar de shalom) porque as pessoas teimam em não seguir o caminho de Deus . . . A
outra noção tem uma dimensão mais cósmica ... A de que tikkun olam é o trabalho humano numa criação que
ainda não está terminada. Nós, humanos, somos parceiros no trabalho da criação. 264

Este não é tanto uma parceria entre mulher e homem, mas dos seres humanos e de Deus.
Roberts escreve o mesmo pensamento. 'Os teus sonhos falam-nos como a criação não aconteceu
toda ao mesmo tempo, mas ao longo dos tempos, de como a criação tem de continuar, e deve ser
renovada' (p. 82). Roberts insiste que nós estamos neste mundo e que somos deste mundo. As
nossas visões informam o mundo. Nós devemos viver plenamente, na carne e através da carne.
O final do apocalypse do The Wild Girl afirma este mundanismo; o amor entre mãe e filha, e
das mulheres em grupo. Finalmenete, Roberts adota outro mito católico, o das quarto Marias
que dão à costa perto de Marselha no Sul da França, em Saintes-Maries-de-la-Mer, onde elas
construiram a sua visão de uma comunidade dirigida por mulheres, vivendo em harmonia com a
terra e umas com as outras, e em paz. O quinto evangelho,o texto de Roberts, tem uma missão:

262
D. H. Lawrence, 'The Man Who Died', The Short Novels, vol. 2 (Londres, Heinemann, 1972), p. 43.
138

263
Christina Roche, i'm not a feminist, but. . . (Londres, Virago, 1985). As caricaturas agressivas de Ms
Roche lidam vigorosamente com muita matéria académica.
Página

264
Sheila Shulman, 'Some Thoughts on Biblical Prophecy and Feminist Vision', Gossip: A Journal of
Lesbian Feminist Ethics, no. 6 (1988), p. 68-79: p. 75.
'alertar para a Ignorância e pregar uma Ideia' (p. 130). Essa Ideia relaciona-se com o valor das
mulheres. E porque ela tem um sentido firmed a preciosidade de cada mulher, Roberts recusa o
sado-masoquismo endémico do Cristianismo. A crucifixão é simplesmente horrível. Não há
êxtase na dor, e não há salvação. Não existe virtude na negação, nem no sofrimento. Aqui fica o
que Roberts tem a dizer sobre Jesus ressuscitado. 'Nós fazemos parte da natureza, e, nesse
abraço apertado, devemos celebrar a ação do espírito e da material em nós próprios, dançado e
cantando, partilhando refeições, conversando. Estes atos do quotidiano tornam-se sagrados, e
transformam-se nos nossos sacramentos, na forma como nos encontramos com Deus dentro de
nós e em cada um de nós' (p. 109). Roberts nega o outro-mundo do cristianismo, mas
permanence ambígua sobre a vida que há-de vir; nunca nos foi dito o que aconteceu a Jesus.
Mesmo no seu papel de viajante que regressa, ele mantém-se maravilhosamente silencioso sobre
o outro lado. Mas com a autoridade daquele que se levantou dos mortos, ainda que visto com
olhos de visionário, ele senta-se na relva e diz a Maria Madalena que devemos prosseguir com o
'casamento místico 'nesta vida' (o uso do itálico é de Roberts). 'Aqueles que estão unidos no
matrimónio, nunca mais serão separados. Esta é a restauração. Esta é a ressurreição. Existem
aqueles que dirão que eu primeiro morri e depois levantei-me, mas eles estão errados, pois
primeiro eu ressuscitei e depois morri. Se vós não obtiverdes primeiro a ressurreição,então as
vossas almas murcharão e acabarão por morrer' (p. 111). Esta ameaça gravosa contra a alma não
confronta o facto de que não interessa quanto nós nos esforçarmos para unir material e espírito,
a mulher interior e o homem interior, escuridão e luz, Deus e natureza, quando morremos, nós
separamo-nos e dissolvemo-nos. Deixamos de existir tal como fôramos; e embora tentemos
imaginar este processo de outra forma, num qualquer sentido absoluto, deixamos de existir.
Trata-se de um poder do cristianismo, tal como em todas as religiões misteriosas, que a fé
controla esta perda absoluta frontalmente, e conclui pela reversão do desenlace do enredo
humano. 'Morte, tu perecerás.' A negação do mundo, da carne, do diabo e de todas as suas obras,
é a tradicional solução cristã. Mas nós, as mulheres, estamos inextricavelmente atadas às três na
estrutura cristã da metafísica. Nós damos à luz o mundo, nos somos a carne e o portal do diabo.
O Cristianismo nunca foi uma religião de mulheres. E é apenas pela negação da centralidade da
morte no mistério cristão e argumentando a favor da ressurreição que Roberts pode defender
que temos em Jesus um amigo.
As ações das mulheres são centrais nos mitos do cristianismo: Maria da Nazaré a cantar
the Magnificat, a mulher no poço de Samaria a dizer a verdade, o amor extravagante de
Madalena, o facto de que somos as últimas na cruz e as primeiras no túmulo. Apesar das
tentativas dos homens em controlar a interpretação e significado atribuído a estas ações, as
históriaqs do Evangelho fazem das mulheres uma parte central e crucial.265 Até mesmo um livro
tão odioso como The Lion, The Witch and the Wardrobe 266 de C. S. Lewis terá de reconhecer a
nossa lealdade e persistência. A teologia controversa de Roberts, apesar de eu ter algumas
reservas sobre ela, é mais do que válida; ela é necessária. Estes são os mitos principais da
cultura branca ocidental; eles devem ser reescritos, reimaginados, reconstruidos, ou deitados
fora, uma e outra e outra vez. Contrariamente a muitas das minhas irmãs e colegas no
movimento dpela libertação das mulheres, eu não acredito que a religião – qualquer religião,
Cristianismo, Islamismo, Judaismo, Sikismo, Hinduismo, Budismo ou seja o que for –
desaparecerá se for ignorada, ou provará ser irracional, louca e injusta. Os mitos religiosos estão
nas raízes das nossas estruturas políticas e sociais, o núcleo da filosofia branca masculine
ocidental, a fonte de muitas ambiguidades que persistem no nosso próprio pensamento. 267 A não

265
Esta curiosidade na religião é utilizada e desenvolvida por feministas e teólogas cristãs. Ver
especialmente Elizabeth Schiissler Fiorenza, In Memory Of Her (Londres, SCM, 1983).
139

266
Publicado pela primeira vez em 1950 e é ainda, lamento informar, um best-seller para crianças.
Página

267
Uma grande parte da linguagem do sado-masoquismo deriva do cristianismo – especialmente a noção
do consentimento da vítima voluntária para ser torturada. Para uma discussão particularmente iluminada
ver o artigo de Sara Maitland 'Passionate Prayer: Masochistic Images in Women's Experience', no Sex
ser que estes sejam discutidos ativamente, desmantelados e remodelados, nunca poderão ser
combatidos e resistidos.
A própria Roberts poderá ter sentido as limitações de recontar diretamente um mito
cristão. Pois tal só pode ser feito ao recordar uma e outra vez os mitos patriarcais sobre os quais
a narrativa é baseada. No seu romance seguinte, The Book of Mrs Noah, ela assume a reescrita
do mito, tanto a história como o processo, como o seu tema. Aqui, a Bíblia transforma-se no
texto mestre, o livro por detrás do Livro; mas o autor, a voz de Deus, é forçado a fazer uma
aparição cómica e a justificar a Sua versão a um grupo de mulheres escritoras de sibilas em
desacordo, todas as quais representam estereótipos razoavelmente reconhecíveis de feministas
brancas. Esta é fantasia fantástica e a Arca da Senhora Noé é a Arca das Histórias. Portanto, este
é o livro sobre a escrita do Livro; a raiz da questão, criar mitos, e contar as histórias que tinham
sido deixadas de fora do texto principal.
E então a estrutura do livro prossegue, revelando, absorvendo, com a narração de uma
história por cada uma das cinco sibilas; a história mítica das mulheres que ficou por escrever.
Pois a Arca é também o Arquivo, a biblioteca, o útero, the psychicncipal. Este é o ritmo do The
Book of Mrs Noah; as histórias alternam com as discussões da escrita feminista das sibilas e as
aventuras da Senhora Noé nas ameaçadoras e surreais ilhas Italianas. Estas aventuras dão ao
texto uma coerência e urgência, o que ainda bem que assimé: eu ficava perpetuamente
desapontada e frustrada que nenhuma das histórias das sibilas era resolvida ou desenvolvida.
Este texto é também uma ficção de classe-média com uma vingança. O marido da Senhora Noé
tem o tipo de trabalho que lhe permite pagar umas pensiones em Veneza, e a maioria das sibilas
têm casa, marido, filhos, carro, caso de banho privada. A Sibila Tagarela tem uma família de
sogros que frequentam a igreja: 'Percorrendo o caminho até o carro numa profusão de lenços de
cabeça de seda, malas de mão de cabedal, bengalas, meias brancas, eles exclamam como é bom
que ela fique em casa a fazer o almoço . . .' (p. 27). Apenas a Sibila Esquecida descobriu o
lesbianismo. Ninguém é apontado como sendo negro e isso não é uma questão.
O que isto significa é que, apesar da fragmentação da forma, a densidade da prosa, a candura da
análise contínua de Roberts do processo de escrita, apesar da sua indignação em nome de todas
as mulheres, o que não é uma característica da ficção de qualquer homem, tudo parece continuar
a parecer um assunto familiar bem escrito. As seis histórias, a maioria narrativas na primeira
pessoa, são todas perturbadoras e muitas vezes sobre sexo. As primeiras duas lidam diretamente
com questões da teologia e espiritualidade. A primeira história, por uma anónima Senhora Noé,
conta a história do Dilúvio e assume a teologia do The Wild Girl e o velho argument de Deus-
Imanente ou de Deus-Transcendente.
Eu saio de mim mesma e torno-me panela, lombo, peixe, terra, folha. Eu adiro a criação
do mundo dia a dia ao permitir-me fazer parte dele, através do meu trabalho. Deus está nas
minhas mãos enquanto elas esfregam, torcem, amassam, esquadrinham, acariciam, cozem,
entalham. Eu ajo, eu crio, e Deus flui através de mim . . . Para o Jack Deus é diferente. Ele é um
pai poderoso no céu, que nos castiga quando erramos, (p. 72)
O Deus transcendente é malvado, 'preparado para lançar os seus raios'. O Deus -
Imanente é a versão feminista. No entanto, ambos os Deuses são um aspeto da alma, o ser, uma
fé no Ser, o Deus no interior. A Senhora Noé do mito bíblico de Roberts deixa de ser a boa
esposa e a boa mãe. Ela vai viver sozinha como rsultado das suas reflexes sobre os casais de
animais que entram na Arca. 'Que forma estranha de viver, penso eu de repente: casais casais
casais. Eu quero viver sozinha' (p. 78). Ela assenta em Ararat para sempre, inventa a escrita e dá
outro nome ao mundo. Dar um nome ao mundo e criar o mundo torna-se numa coisa só. A
inadequação da nossa lingual pública partilhada, os nossos conceitos partilhados, a
impossibilidade de expresser as ideias das mulheres, os mitos das mulheres – esta é uma das
obsessões de Roberts. A linguagem pública está na posse dos homens. Mas Roberts worries
140
Página

and God: Some Varieties of Women's Religious Experience (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1987), p.
125-40.
away at as contradições. O Dicionário Estatal é interrogado todas as vezes que a Senhora Noé
consulta o livro de adivinhas. Quase todas as palavras estão ligadas ao parto.

p. 63. Quando é que um parto. . . não é uma prisão?


p. 97. Querer também quer dizer querer?
p. 132. Vida. Sentença. Prisão perpétua?
p. 183. Carregar também significa suportar?
p. 211. Então porque é que. . . conceber também quer dizer conceber?

A Arca é também o Arquivo, uma biblioteca de referência, na qual a Senhora Noé é a


bibliotecária. Os livros e os úteros estão ligados de uma forma sinistra nos textos de Roberts.
Mas mesmo o desejo da Senhora Noé por um filho torna-se ambíguo à medida que os
significados públicos deslizam através das palavras. Roberts adere a uma linha de pensamento
mais vezes encontrada feminismoo radical Americano; especialmente no trabalho linguístico de
Mary Daly. Inventar novas palavras e dar outro nome ao mundo é supostamente uma fonte de
poder. 'Nomear é poder: o mundo escondido entrega os seus segredos quando ligamos os nomes
certos e a natureza, quando encontra a correspondência, esticada como uma linha de pesca, entre
estrela, erva, estação, humor e animal' (p. 109). Eu discordo. Nomear não é um poder em si
próprio: é identificar o mundo que não foi feito à nossa imagem. Mas nomeá-lo usando as
nossas próprias palavras pode apenas ser um prelúdio para mudá-lo – o que é algo que nós
precisamos de trabalhar para saber como fazê-lo.
A segunda história no The Book of Mrs Noah confronta diretamente o sadomasoquismo
do Cristianismo; este êxtase peculiar da carne associado à sensibilidade cristã. Aqui a narradora
de Roberts é uma freira medieval cujo desejo sexual reprimido encontra a sua expressão
orgásmica na flagelação.

Já me foi ensinado a meditar sobre a paixão, as feridas e o sangue sagrado do nosso Salvador, o Senhor
Jesus Cristo. Eu passei horas na igreja ajoelhada sob o enorme crucifixo, olhando para os grossos pregos
enterrados nas sias mãos e pés, os golpes rasgados na sua tenra carne. Eu aprendi a entrar no seu
sofrimento, a partilhá-lo. Por isso não me parece estranho que os meus novos irmãos me mostrem como ir
mais longe.
A princípio os seus chicotes apenas me faziam cócegas . .. (p. I l l )

Meditar sobre a Paixão tem claramente os seus perigos quando combinada com o
tradicional ódio cristão do corpo, da matéria, da natureza, das mulheres. Na narrativa de
Roberts, a tortura e o êxtase da carne estão firmemente ligados com a pintura medieval do Juízo
Final nas paredes da igreja paroquial. 'Uma destas senhoras é agarrada por dois demónios
vermelhos, enquanto um terceiro lhe arranca os seios com umas pinças em brasa. À outra
senhora, atada a uma grelha, estão a arrancar-lhe os olhos, e tem um ferro em brasa entre as suas
pernas' (p. 105). As mulheres são as condenadas. E a nossa condenação está ligada à definição
da nossa carne que é pecado e os significados cristãos ortodoxos impostos sobre os nossos
corpos. A teologia ficcional de Roberts torna isto visível e explícito. Assim, a ideologia pública
e a experiência privada apoiam-se e afirmam-se uma à outra. Os homens odeiam as mulheres.
As mulheres odeiam-se a si próprias. Os homens pintam os Últimos Juízos das mulheres a
serem chacinadas. As mulheres chacinam-se a si próprias, com as suas próprias mãos.
Mas como podem estes significados públicos ficarem por escrever, desfeitos? A
verdadeira energia de O Livro da Senhora Noé [The Book of Mrs Noah] não está nas histórias
contadas pelas sibilas. Estas são, de qualquer forma, simplesmente um meio galope histórico
pastiche da bíblica Senhora Noé da Idade Média, através da Renascença e do século dezoito, até
ao conto de fadas modern sobreos heterossexuais de classe-média até os cenários sado-
masoquistas e um futuro de ficção científica do espaço interior sobre dois rapazes de rua, que,
miraculosamente, e contra todas as estatísticas, optarem por ser maternais em vez de abusarem
141

de meninas. A principal eletricidade do Livro é gerada pela discussão da escrita de toda e


qualquer crítica e acusação desdenhosa que silenciam as mulheres – e que as mulheres utilizam
para se silenciarem umas às outras. No capítulo 25, a Sibila Correta responde aos críticos,
Página

vestida de forma cativante como os Sete Pecados Mortais para as mulheres escritoras: a
Preguiça, a Intensidade, a Falta de Garra Política, a Arrogância, o Comportamento Pouco
Fraternal para com as Irmãs, a Falta de Originalidade Avant-Garde, a Falta de Verdadeira
Mestria. Estes aparecem como diferentes personagens ao espelho; mas são inventados pela
própria sibila. Eles acusam-nos de não sermos capazes de satisfazer os seus preconceitos; todos
eles exigem diferentes tipos de escrita, palavras diferentes. É claro que, não existe um leitor
ideal. Não existe ninguém que concorde com tudo o que temos a dizer. Mas isso não quer dizer
que se recusarão a nos ouvir. 'Um dos prazeres de ser escritor é que retiramos poder, agradamos
a nós próprios e a mais ninguém, escolhemos as nossas próprias palavras' (p. 181).
E no entanto, tudo isto parece uma escrita em grupo. A única mulher da classe
trabalhadora no The Book of Mrs Noah é Meg, a heroína da história do século dezoito. Ela é
seduzida e abusada pelos homens que são os narradores da sua história; a sua história é
apropriada, interpretada, recontada por um homem, porque ela não sabe nem ler nem escrever.
Mas é óbvio que os significados aqui são escorregadios. Pois é Roberts, a mão de uma mulher,
que cria os narradores masculinos que criam a Meg na sua escrita. Então, qual é o significado de
Meg? Segue Pamela de Richardsos, minha cara. Ou melhor ainda, Jane Eyre de Bronte.
Aprende a ler e a escrever para que possas casar com o patrão, e não assassiná-lo. As sibilas do
mundo exterior à Europa Ocidental, que fazem parte do final de Roberts, o Jantar das Escritoras
– uma maravilhosa peça de balbúrdia cómica – não faziam parte do coletivo original de
escritoras. Eu gosto de pensar que a Sibila Guatemaleca poderá ter sido Rigoberta Menchu.
Teria ela se preocupado com qualquer um daqueles Pecados Mortais? Preguiça, Intensidade,
Arrogância, Comportamento Pouco Fraternal para com as Irmãs, Falta de Originalidade Avant-
Garde, Falta de Verdadeira Mestria? Ninguém a poderá alguma vez acusar de Falta de Farpa
Política. O que eu quero dizer aqui é que até mesmo as preocupações críticas de Roberts tocam
numa banda muito estreita de escrita, criando mulheres. Mas a sua reescrita do mito cristão toca
todas as mulheres que foram esbofeteadas alguma vez pelo cristianismo. Existem Sete Outros
Pecados Mortais, à espera para serem reescritos.
O argumento de Roberts acerca da leitura da escrita das mulheres é firmemente não-
separatista. Nós temos de ler e ser lidas tal como os homens. O jantar cómico ao estilo de Judy
Chicago assiste a cada escritora a argumentar o seu lado do caso, e a argumentar pelo direito de
ser pertencerem ao meio, e de não serem excluídas.

São precisos dois para fazer um bebé, murmura Ahkmatova, inclinando-se para a frente: porque é que as
pessoas dizem que a literatura não tem sexo? Quer dizer, só um? Mantém-me isolada dos poetas masculinos
da minha geração e tu nunca irás compreender a minha contribuição para a poesia Russa.
- Nega a minha amizade com Dickens, observa a Senhora Gaskell: e tu nunca saberás o que ele aprendeu
comigo. (p. 272)

Eu concordo com a Senhora Gaskell. É claro que ela tem razão. Mas os historiadores
literários masculinos têm muito maior possibilidade de notar a sua amizade com Dickens do que
com Charlotte Bronte – ou com as suas filhas. E já não é preciso dois para fazer um bebé.
Na mesma ligação entre fazer bebés e fazer livros, Roberts avança para um campo
ideológico para onde eu não a posso seguir. 'Escritora. Mãe. Duas palavras que eu liguei através
desta viagem na Arca, esta arca de histórias, uma distância de tantas noites, tal anseio' (p. 275).
A Arca acaba por ser a mente inconsciente bem como o útero: o armazém da linguagem. E
então a Senhora Noé marcha de volta para Veneza e para a consciência da luz do dia, grávida e
preparada para começar o Livro. Para escrever. Para dar à luz. Os homens sempre usaram a
capacidade reprodutiva das mulheres para negar a sua capacidade criativa em qualquer outra
esfera. Os homens têm sido sempre desprezado e abusado das mulheres estéreis. Os homens
nunca são estéreis. As mulheres são mães. As mulheres criam bebés. Os homens criam Arte.
Roberts começa por desenlaçar estes mitos. Mas apenas ao dizer que nós podemos fazer tudo,
ter tudo, ser tudo. Nós podemos dar à luz filhas (ela normalmente não arrisca filhos) e livros.
Eu julgo que o meu problema com a metáfora mulher/escritora/mãe está ligada ao facto
142

desse nascimento ser um processo natural; o que quer dizer que o útero enquanto armazém de
linguagem é uma espécie de escuridão orgânica a partir da qual nós criamos palavras. Tudo isto
está demasiado próximo da noção da escrita como uma espécie de inspiração recuperada; ou da
Página

religião da psicoanálise onde as imagens se erguem da mente inconsciente. Nós ultrapassámosos


limites para uma espécie de loucura mística se as palavras nos escolherem. Pelo menos Roberts
continua a escolher as suas palavras. Mas por pouco. A escrita não é, e nunca poderá ser, um
processo natural. Quando pensamos do coração e do sangue, tal como D. H. Lawrence nos
levaria a fazer, nós estamos habitualmente a dar voz aos preconceitos dos nossos avós. A escrita
tem a ver com o pensamento,com o fazer, com o julgar: muitas vezes escolhendo contra a
natureza, contra o instinto – mesmo contra a ideia recebida do que é belo ou constitui uma
escrita de qualidade. Não é fácil nem se trata de uma prerrogativa dos brancos, educados em
Oxbridge, mulheres da classe-média Britânica como Michèle Roberts, Sara Maitland ou eu
própria. Nem todas as mulheres podem dar à luz – ou querem dar à luz - metafisicamente,
metaforicamente ou literalmente. Nem todas as mulheres sabem escrever.
Roberts é uma das que sabem. Ela não só reescreve mitos bívlicos e clássicos; ela
também olha atentamente para os contos de fadas. Na história da sibila sobre 'comida e castigo',
uma jornalista da classe-média e o seu marido com tendências sado-masoquistas estão perdidos
nos Alpes. Roberts pega no modelo do conto de fadas de Hansel e Gretel que encontram a casa
da bruxa. O reconto feminista de contos de fadas tem tido a tendência para se concentrar na
relação entre a mulher má e a boa menina; isto é, a bruxa e a princesa. A mulher má de Roberts
acaba por ser um homem idoso disfarçado, que é assassinado como parte de um ritual de Ano
Novo. Comida e sexo espalham-se pelas páginas; mas a narrative permance simplesmente
sinistra, sem consequências ou conclusões. Mais revelador sobre o assunto do sado-masoquismo
é a história da Cinderela e da sua madrasta no A Book of Spells de Sara Maitland. No 'The Wicked
Stepmother's Lament', Maitland faz uma análise psicológica do sadism calculista; a relação
entre a vítima e o torturador como uma espécie de cumplicidade, um abraço chocante.
Contrariamente aos escritores que emprestam a este abraço uma emoção erótica, Maitland
aponta o tédio da perseguição, que, à medida que a dor infligida na outra mulher se intensifica,
deixa, na realidade, de ser interessante. Eu teria pensado que um sadismo e malícia diários
exigindo um esforço imaginativo considerável para se manter, realmente acabaria por deixar de
ser prazeiroso para o torturador. No entanto, nem os contos de fadas nem a minha (até agora
considerável) experiência da humanidade para confirmar a tese de Maitland. A maioria das
pessoas que perseguem os outros, adoram fazê-lo, e seja como for, o seu prazer aumenta à
medida que os anos vão passando. E as pessoas que as mulheres perseguem são normalmente os
seus filhos.
Um dos aspetos das relações entre as mulheres que os contos de fadas nos permitem
examinar e recriar é a crueldade, a brutalidade e o ódio da mulher contra a mulher. Os contos de
fadas são realmente matéria do pesadelo Freudiano. Eles são sobre as relações na família
arquétipa, mães, pais, irmãs, irmãos, maridos, e como todos nós nos odiamos e nos amamos uns
aos outros.268 Os contos de fadas são frequentemente as primeiras histórias que ouvimos; a
sabedoria tradicional, contada pela experiência à inocência. Estes são os contos de iniciação,
contemplando a transição da puberdade, da infância à idade adulta; e eles ensinam as lições da
sexualidade. A beleza traduz-se em poder feminine nos contos de fadas, pois é através da beleza
que se ganha a devoção e a aprovação masculinas. A madrasta da Branca de Neve pergunta ao
espelho 'Quem é a mais bela de todas?' não por pura vaidade, mas porque é uma questão de
sobrevivência. Quando ela é suplantada pela sua filha, ela é forçada a dançar com sapatos
vermelhos até à morte. O castigo por não ser a mais bela, é a morte. A maldição dos contos de
fadas é a fealdade, porque a beleza é a condição do desejo masculino. E não é suficiente ser
simplesmente bela. Nós temos de ser a mulher mais bela, superando todas as outras. Tal como
diz o espelho:

268
Eu já escrevi algures sobre os padrões contos de fadas, com uma referência específica ao The Bloody
Chamber and Other Stories de Angela Carter (1979). Ver Patricia Duncker, 'Re-imagining the Fairy
Tales: Angela Carter's Bloody Chambers', in Peter Humm, Paul Stigant e Peter Widdowson (eds),
143

Popular Fictions: Essays in Literature and History (Londres, Methuen, 1986). Algum do material aqui
apareceu pela primeira vez no artigo 'The Sexual Politics of Fairy Tales', Lilith: Oxford Women's Paper,
no. 14 (Janeiro 1984), p. 4-5 - e, eu tenho prazer em acrescentar, na coluna WIMMIN do Private Eye,
Página

onde algumas das minhas frases aprecerem sob a rubrica de 'Disparates Lunáticos Feministas'. Como eu
já disse, eu estou encantada.
Rainha, vós sois de uma beleza rara,
Mas Branca de Neve que vive no vale
Com os sete anões,
É mil vezes mais bela.

As relações entre mulheres nos contos baseiam-se sempre na rivalidade e na competição. E


assim as Irmãs Feias abusam da Cinderela, Branca de Neve é envenenada, e é a Mãe no Hansel
e Gretel que sugere que as crianças devem ser abandonadas na floresta para solucionar a falta de
comida em casa. A mulher solitária na casa de pão de gengibre não é apenas uma bruxa, mas
uma ogre que come crianças. A donzela Rapunzel, capturada por uma velha feiticeira – as
mulheres idosas são sempre anciãs perversas nos padrões dos contos de fadas – e aprisionada na
torre, transgride todas as leis do conto de fadas quando faz amor com o Príncipe. O seu castigo,
entregue pela feiticeira, é o desterro para o deserto; quanto ao Príncipe, ele é cegado, o gesto
simbólico da castração.
Sempre que uma mãe trai o seu filho nos contos de fadas, a vida desse filho está em perigo.
O único sentimento possível entre irmãs é a inveja. Assim, a mensagem intransigente de conto
atrás de conto é que as mulheres têm de ter cuidado com as mulheres, na medida em que uma
mulher atrás da outra planeia a destruição da sua rival. As heroínas – as boas meninas, as
princesas – não podem iniciar a ação; elas não podem reclamar qualquer sexualidade autónoma.
Os princípes agem, as princesas reagem. De facto, tudo o que podemos fazer enquanto nos
vestem de princesas é sentarmo-nos e esperar serenamente. A penalidade por seguir o desejo, e
não ordens, é a morte. O lobo do Capuchinho Vermelho é claramente a encarnação da
sexualidade predadora masculina; mas a rapariga não pode ser salva nem por sua iniciativa nem
pela aliança com a sua avó. Ela só pode ser salva pelo atraente Caçador, o representante da
sexualidade matrimonial respeitável. Em algumas versões, ela nem chega a ser salva. Ela é
devorada; sexualmente possuída. E, assim, os contos de fadas sugerem claramente, é bem-feito
para ela para aprender a não falar com lobos estranhos nas florestas.
A quarta mulher do Barba Azul, dominada pela curiosidade, deseja saber com que tipo de
homem ela casara. No seu quarto secreto, ela descobre os três cadáveres torturados das suas
esposas anteriores. O Socorro chega, não através da esposa impotente, ou da sua irmã Anne,
mas dos seus irmãos galopantes, que aparecem na colina como se da cavalaria se tratasse,
mesmo antes de ela descer o pátio para ser decapitada. O Barba Azul é o homem que consome
os corpos das mulheres. Casar com ele significa a morte certa. O Barba Azul é um marido. O
desarmar da sexualidade masculina- implicitamente, sempre violenat e bestial, exceto no caso
dos príncipes muito refinados – é uma tarefa para a virtude feminina e para a submissão. 'O
Príncipe Sapo' e 'A Bela e o Monstro' contam a mesma história. O consentimento da mulher da
monstruosidade inaceitável do desejo masculino é o que transforma os monstros em homens.
Mas o desejo das mulheres é visto apenas como uma resposta e aquiescência passiva à exigência
sexual masculina. Que a mulher deva possuir a sua própria sexualidade não é de todo permitido
mencionar, de facto, é impensável. Branca de Neve jaz morta no seu caixão de vidro, quando
um Príncipe que estava a passar, decide encantar-se por ela. A Bela Adormecida está estendida,
quase tão morta como o seu castelo encantado. As mulheres dos contos de fadas são ao mesmo
tempo impotentes e estúpidas. Cada uma das mulheres do Barba Azul – todas sem nome, pois
não eram mais do que cadáveres no seu Quarto Sangrento – tinha-lhe sido entregue em
casamento pelos seus pais. Rapunzel foi enganada a deitar as suas tranças para o Príncipe: mas
ela acreditou na sua história. O Capuchinho Vermelho, apesar dos avisos, supostamente pensou
que ela só estava a conversar com um lobo amigável.
Os contos de fadas são perigosos. A identidade é definida pelo seu papel. São-nos oferecidos
padrões de comportamento a seguir, ameaças se transgredirmos. As divisões entre mães e filhas,
entre irmãs, entre todas as mulheres, são as pedras angulares da patriarquia, e os contos de fadas
144

apoiam estas divisões com sinistra previsibilidade. Existem, obviamente, contos de fadas
especialmente dirigidos para os rapazes. 'O Polegarzinho', 'O Gato das Botas', 'João e o Pé de
Feijão' são disso exemplos. O pai, como ogre, tem de ser morto. Astúcia, coragem e engano são
Página

altamente recomendados aos rapazes, porque estes são os contos da coragem e da diligência
legítimas. O filho toma posse da riqueza e do poder do ogre/gigante e assim torna-se na sua
própria herança. O Pai nunca é morto pelo nome nos contos de fadas; ele aparece sempre como
um opressor malvado noutra forma. A mulher, ou a mãe, pode ser nomeada. E depois
assassinada.
Por isso as mensagens são claras. Os rapazes devem ir pelo mundo fora, lutar com
giantes, conquistar riqueza e poder, possuir mulheres e tornarem-se reis. Para as raparigas, a
metamorfose crítica para a idade adulta é sexual. O dedo a sangrar da Bela Adormecida é o sinal
da menstruação e da maturidade sexual. Da menstruação ela prossegue para o casamento: toda a
sua vida é um longo sono. Tal como eu digo, tudo o que temos que faazer é deitarmo-nos sem
nos mexermos e esperar.
Uma das coleções modernas dos contos de fadas feministas tem o seguinte título
promissor Don't Bet on the Prince [Não apostes no princípe]. De facto, os novos títulos falam
por si: The Clever Princess, Rapunzel's Revenge, Ms [,«V] Mnffet and Others, Mad and Bad
Faeries, Sweeping Beauties; estas últimas quarto coleções de um grupo de feministas
Irlandesas.269 Mas nenhuma ideologia, por mais restritiva que seja, sexista e injusta, é sempre
monolítica. E as contradições estão lá nos contos de fadas. Quem é a Fada Madrinha? Ou a
bruxa que luta do lado da Princesa Oprimida? A mulher sem nome do Barba Azul tem uma
irmã, Anne, que é a voz que avisa do topo da torre.
O que é que ela está lá a fazer? A filha do moleiro consegue enganar Rumpelstiltskin e ficar
com o seu filho. É Gretel, não Hansel, que os salva a ambos pela sua coragem e astúcia.
A coragem das mulheres, a astúcia das mulheres, são ambas qualidades de sobrevivência, e são
estas virtudes que são celebradas nos contos de fadas feministas. Existem muitas histórias
invertidas, tal como The Clever Princess de Diana Coles, na qual todos os elementos
tradicionais aparecem: um pai tirano e ganancioso que vende a sua filha a um feiticeiro, três
tarefas que a princesa tem de completar, falar com animais, uma bruxa aliada e uma fada
madrinha que cozinha. O que é interessante na narrativa de Coles é que a princesa realize as suas
tarefas utilizando o senso comum, esperteza e paciência; ela não usa poderes mágicos. E
também não acaba com um apropriado príncipe anti-sexista. Em vez disso, ela decide fazer uma
pausa do seu estatuto de princesa e viajar. Os contos de fadas são sempre didáticos; o
feminismoo também. O meio é ideal.
Já o material, não. E é claro que o problema com as histórias invertidas, que são normalmente
sobre Cinderelas agressivas, Brancas de Neve abusadoras, e Capuchinhos Vermelhos
predadoras, é que eles relembram persistentemente as primeiras versões patriarcais, e dependem
do seu efeito sobre o choque total do invertido. Isto é especialmente verdade nas histórias como
o 'The Princess Who Stood on Her Own Two Feet' de Jeanne Desy (1982). 270 A princesa de
Desy é demasiado alta, demasiado esperta, demasiado argumentativa e demasiado apreciadora
de montar com uma perna de cada lado para agradar ao príncipe. Ela encontra um príncipe
melhor; mas a mensagem de Mirabelle, o seu gato falante, vale a pena ouvir -'. .. por vezes
devemos recusar sacrificarmo-nos' (p. 47). O efeito desta história depende do pressuposto do
leitor de que a maioria das princesas são silenciosas, indefesas e perseguidas. 'The Plastic
Princess' de Anne Claffey é mais radical. 271 A sua princesa começa a vida 'num ambiente que
era feliz, frugal e feminino' (p. 23), mas ela é desafortunadamente amaldiçoada à nascença com
a felicidade convencional por uma fada madrinha antiga e conservadora. Todas as fadas
modernas distribuem presentes feministas como a assertividade, uma boa cabeça para o negócio
e um talento para a matemática. A fórmula para a felicidade patriarcal nos contos de fadas
convencionais transforma-se numa maldição. 'O meu presente para a princesa é que quando ela

269
Jack Zipes (ed.), Don't Bet on the Prince (Aldershot, Gower, 1986); Diana Coles, The Clever Princess
(Londres, Sheba, 1983); 'Fairy Tales for Feminists': Rapunzel's Revenge (Dublin, Attic, 1985), Ms [HC]
Muffet and Others (Dublin, Attic, 1986), Mad and Bad Faeries (Dublin, Attic, 1987), Sweeping Beauties
145

(Dublin, Attic, 1989).


270
Incluído em Zipes, Don't Bet on the Prince, pp. 39-47.
Página

271
Incluído em Rapunzel's Revenge, pp. 21-6.
atingir as quinze primaveras, ela se apaixonará por um belo príncipe e viver feliz para sempre'
(p. 22). Este conto de fadas aborda o problema do feminismoo contemporâneo após vinte anos
de repensar o mundo. Por agora, existe uma geração de jovens mulheres para quem o
feminismoo é um conjunto de disparates antiquados que é anti-sexo e com pouco estilo. Elas
gostariam de usar verniz de unhas, mini-saias e sair com príncipes. A princesa de Claffey
preenche esse papel por um tempo, até que 'novos rumores sugerem que a aparência serena da
Princesa poderá dever-se mais aos calmantes do que à sua calma' (p. 26). Por fim, ela foge com
uma das suas aias para 'se juntarem a uma comuna de mulheres num país vizinho'. O ideal da
ação coletiva política é reafirmado, e a princesa regressa à posição da qual ela tinha começado
antes de ter sido amaldiçoada com a felicidade convencional. O que Claffey faz é radicalizar o
espaço das mulheres; o espaço que está sempre presente, e é sempre regeitado e desprezado, nos
contos de fadas tradicionais. É isto o que separa a sua escrita da reescrita mais liberal dos contos
de fadas onde a princesa tem tudo a seu favor: inteligência, posição, beleza, riqueza e -
normalmente – um príncipe a quem se pode mandar calar e ouvir.
Sylvia Townsend Warner usava muitas vezes as estruturas do conto de fadas para discutir as
condições políticas modernas. Comentando sobre o seu uso do conto de fadas, ou da fábula,
Wendy Mulford diz o seguinte: 'A fábula distancia e despersonaliza; permite que o artista
trabalhe a partir das formas tradicionais da impersonalidade, distanciada da personagem, do
cenário e do incidente supérfulo. Todos os elementos do relato de histórias foram reduzidos na
fábula à sua essência.'272 Os contos de fadas reduzem a personagem e a identidade ao papel. Aí
residem as suas forças e os seus perigos. Pois as identidades das mulheres estão normalmente
confinadas a um papel. Eu aprendi isto repentinamente de uma estudante Madura numa das
minhas turmas universitárias. Ela olhava sempre para cima com um sorriso radiante sempre que
eu chamava o seu nome, Marcia, e pedia a sua opinião. No final do ano, eu descobri porquê. Era
pelo facto de ouvir o seu nome. Ela tinha sido Mamã, Mãe, querida, minha esposa, minha mãe,
minha cunhada, durante anos. E não é coincidência que muitos contos de fadas feministas têm
heroínas em particular, em circunstâncias particulares, com personagens fortes. Mesmo quando
os seus nomes são tradicionais, a fusão entre a identidade e o papel é quebrada. Rapunzel
Murphy do Rapunzel's Revenge tem uma amiga em particular, Pauline, que a salva do Príncipe
Rory, gerente de marketing de um champú letal para crescimento capilar chamado New
Improved Sunsoft. Esta é uma Rapunzel particular, cujo nome tem um eco, mas não um
significado fixo. A Branca de Neve de Mary Maher foi assim chamada porque ela nascera durante
uma tempestade de neve: o seu nome verdadeiro é Margaret. No conto de Maher, ‘Hi Ho Para
Greve Agora Eu Vou’, Branca de Neve organiza os sete anões num sindicato para obterem
melhores salários da Companhia de Jóias Preciosas do Príncipe. Isto é de facto uma pequena
fábula engenhosa sobre o capitalismo e o movimento sindical. 'Ela inicia a negociação com os
chefes, ogres e príncipes, sobre uma grande variedade de benefícios.' 273 Eu julgo que a maioria
de nós trabalha para ogres. No conto de Maher é o Senhor Príncipe que se engasga numa maçã;
e a malvada madrasta torna-se na verdadeira mãe de Branca de Neve, uma mulher sensata e
mordaz que consegue ver através das intrujices do seu marido com outras mulheres –
produzindo Espelhos Mágicos, que nos dão uma visão falsa do mundo e de nós próprias.
Uma das contradições interessantes nos contos de fadas tradicionais era a genuína instabilidade
da sociedade refletida no interior destes contos. Os sapos podiam ser príncipes, os filhos do
moleiro podiam tornar-se reis. A única coisa que não podia mudar e não mudou era a
subordinação das mulheres aos homens. Se as mulheres ficavam ricas era através do casamento,
não da sua inteligência. Ao transformar as definições das mulheres de si próprias, os contos de
fadas, de uma só vez, completa um padrão de subversão implícita nas velhas histórias. A
Cinderela de Maeve Binchy no 'Cinderella Reexamined' dá conversa ao velho rei em vez do
príncipe, este último um alcoólico com um fetiche por pés, e assim acaba por se tornar na
146

272
Wendy Mulford, This Narrow Place: Sylvia Townsend Warner and Valentine Ack- land - Life, Letters
and Politics 1930-1951 (Londres, Pandora, 1988), p. 124.
Página

273
Mary Maher, 'Hi Ho It's Off to Strike We Go', Rapunzel's Revenge, p. 33-4.
Diretora Executiva das Empresas do Palácio, cunhando dinheiro.274 Tudo feito através da
inteligência em vez do casamento.
As escritoras Irlandesas que produziram Rapunzel's Revenge, Ms Mujfet and Others, Mad and
Bad Faeries e Sweeping Beauties (e outras coleções futuras, eu espero) também traduzem as
personagens dos contos de fadas em cenários contemporaneous para comentar sobre os
problemas contemporâneos – incluindo a corrupção no uso dos fundos da Comunidade
Europeia, que acaba por ser resolvida pela versátil Rapunzel Murphy. O Treinador Cansado de
Hamelin retira todos os homens da cidade, o que leva a especulações interessantes sobre quem
são os verdadeiros ratos. Estas fábulas fundem os contos de fadas e o comentário político. Elas
são histórias de 'E se. . . ' e 'imagina se .. .' – tal como todas as utopias políticas – pois o conto de
fadas autoriza a imaginação a mudar e traduzir acordos sociais. Os aparentemente indefesos
provam não o ser. Os ogres e os gigantes ascendem socialmente.
E no entanto, não surpreendentemente, as histórias mais contadas de todas são aquelas que usam
a forma do conto de fadas para reimaginar/ recriar, de formas literárias radicais, personagens e
temas que já são preocupações centrais nas histórias tradicionais. Mais uma vez, faz-se com que
as mulheres falem de assuntos no território que já ocupámos. Mas agora o espelho foi
novamente mudado; nós vemos as nossas próprias faces de um ângulo diferente, e nós estamos
a falar, a pensar, a lembrar de nós próprias de formas diferentes. Tanith Lee repensa o
Capuchinho Vermelho no 'Wolfland'; Margaret Atwood reescreve o Barba Azul e a sua mulher
sem nome no 'Bluebeard's Egg'.275 Nenhuma destas narrativas é uma história inversa. Tanith Lee
assume o Gótico e a relação triangular do homem, da donzela e da anciã: isto é, o Capuchinho
Vermelho, a avó e o lobo. O conto de Atwood é uma fábula moderna inibida, colocando as
personagens do Barba Azul nos subúrbios de classse média da América Norte Americana
branca. Os dois contos são acerca da sexualidade masculina e a impotência das mulheres – tal
como as histórias originais.
A sexualidade masculina é socialmente construida como insaciável, imparável, desconhecida,
predatória, sinistra e perigosa. O Barba Azul é um dos contos de fadas que contribui para o
mito. A luxúria masculina é retratada como a eventual luxúria para matar. Os homens
consomem as mulheres; e a posse mais completa da identidade de uma mulher, corpo e alma, é
alcançada através do assassínio sexual. O grande prazer do Barba Azul não é apenas matar, mas
estripar os corpos das mulheres. E é a curiosidade da mulher, o desejo de conhecer os segredos
mais íntimos do homem com quem ela casou, que conduz diretamente ao quarto sangrento. Este
é o desejo pelo conhecimento, o pecado de Eva, e a punição é a morte. Atwood dá ao Barba
Azul e à sua mulher um contexto social e um nome. Sally é o que os leitores de Gyn/Ecolog)i de
Mary Daly reconheceriam imediatamente como uma fembot: uma melhor feita à imagem dos
homens, uma mulher que tenta ansiosamente agradar, e cuja identidade é determinada pela
impressão de gentileza que ela deixar nas outras pessoas. Ed, o marido, o cirurgião cardíaco, o
Barba Azul, é um vazio. E o que é mais intrigante nesta narrativa é a ameaça sexual não
declarada de Ed, por baixo da sua estudada normalidade quotidiana. O Barba Azul tem sempre
um segredo. O Barba Azul está sempre mascarado. 'O Ed é uma superfície. Uma superfície
através da qual ela tem dificuldade de passar' (p. 173). Atwood começa então a dar pistas ao
leitor para que ela, com a Sally, possa começar a adivinhar a identidade de Ed. Ele é o terceiro
filho, o filho amigável, desastrado e sortudo. Ele é atraente, e aparentemente parece nunca
reparar nas paixonetas que as outras mulheres têm por ele. Ele é sinistramente normal, mediano,
ordinário. Já fora casado duas vezes, e não faz ideia (os homens nunca fazem ideia) do que
correu mal. A pista mais perturbadora é dada por outra mulher na história; a mulher que é
divorciada, independente e que é auto-suficiente. Marylynn é a bruxa. E ela diz o seguinte de

274
Rapunzel's Revenge, pp. 57-64.
147

275
Ambos incluidos no Zipes, Don't Bet on the Prince, p. 122-47 and 160-82. Para um excelente ensaio
sobre o trabalho de Tanith Lee, ver Sarah Lefanu, 'Robots and Romance: The Science Fiction and Fantasy
Página

of Tanith Lee', in Susannah Radstone (ed.), Sweet Dreams: Sexuality, Gender and Popular Fiction
(Londres, Lawrence & Wishart, 1988), p. 121-36.
Ed, 'Se ele fosse meu, cobria-o de bronze e colocava-o por cima da lareira' (p. 164). Por outras
palavras, preso, capturado, controlado. O novo scanner cardíaco de Ed está situado no seu
quarto sangrento, o hospital onde ele anatomiza os corações das mulheres. Sally insiste em
tentar; e é nesse momento que ela pressente que o poder sexual de Ed é assustador. 'Esta
transação, todo este quarto, era sexual de uma forma que ela não conseguia compreender; era
claramente um lugar perigoso. Era como um salão de massagens, só que para mulheres' (p. 170).
Mas é o conto de fadas em si mesmo, numa versão mais antiga, que dá a Sally os seus
significados. Tal como todas as esposas entediadas, Sally começa a ter aulas à noite. Ela
esforçara-se por passar em Culinária e em Folclore Comparado e está no momento a fazer
Formas da Ficção Narrativa. Existem vantagens na educação casual. Sally descobre que a chave
para o Barba Azul, para o Ed, é o ovo. Na versão mais antiga do conto popular, não é a chave
que fica manchade de sangue, mas o ovo do Barba Azul. Quem é o ovo? Pedem à Sally que
reescreva a história de outro ponto de vista, como um trabalho escolar. 'Mas como pode haver
uma história do ponto de vista do ovo, se o ovo é tão fechado e inconsciente?' (p. 178). Num
jantar, Sally percebe de repente que a sua versão de Ed é completamente inventada. O seu
marido é um desconhecido, assustador. 'Sally enganara-se a respeito de Ed, durante anos, desde
sempre. A sua visão de Ed não é algo que ela tenha percecionado mas algo que tinha sido
perpretado contra ela, pelo próprio Ed, por razões que só ele conhece' (p. 181). A própria Sally é
o ovo manchado de sangue, a mulher finalmente viva para a realidade do seu marido; a mulher
que finalmente enfrenta a possibilidade de outra vida e outros sentimentos. 'Isto é algo que a
história deicou de parte, Sally pensa: o ovo está vivo e um dia irá eclodir. Mas o que de lá
sairá?' (p. 182). A narrativa de Atwood descreve estilos de vida confortáveis, mas sugere o
indizível – e mantém o fim em aberto.
'Wolfland'deTanith Lee move-se deliberadamente dentro do mundo fechado do Gótico.276 Todos
os elementos estão lá: o château isolado na floresta; a jovem ingénua, seduzida para fora do seu
ambiente seguro, a viajar sozinha; a carruagem sinistra, os cavalos à espera na penumbra, o
terrível segredo do castelo. Lee usa o Gótico para discutir o tema tradicional do género: o
aprisionamento ritual e a perseguição das mulheres pelos homens. Mas ela recusa-se a inscrever
as mulheres como vítimas no seu texto. A história de sadismo brutal é contada por Anna, a
Matriarca (a avó) a Lisel, sua neta (o Capuchinho Vermelho). O texto original é sobre o perigo
sexual, o perigo que a sexualidade masculina representa para as mulheres. Os homens são os
lobos com as grandes mandíbulas, para nos comer melhor. E esta é a sabedoria convencional
oferecida a Lisel pela magnífica Anna.

Eu estou a contar-te isto, Lisel, porque muito em breve o teu pai irá sugerir-te que está na
altura de te casares, E por mais belo ou gracioso que o jovem te possa parecer, que tu
escolhas ou que seja escolhido por ti, por mais nobre ou maravilhoso ou mesmo dócil que ele
possa parecer, não há forma de ter a certeza de que ele não acabe por ser como o teu amado
avô . . . Tu vês o que é ser mulher, Lisel. É isso o que tu queres? O voto irrevogável do
casamento que te prende para sempre a um monstro? E mesmo que ele seja um homem bom,
o que é um animal deveras raro, tu podes vir a morrer de uma morte agonizante durante o
parto, tal como aconteceu à tua mãe. (p. 131)

276
Aqui eu uso 'Gótico' para me referir a um género de ficção, extremamente em voga no final do século
dezoito e desde então nunca mais completamente fora de moda. A iconografia do Gótico nunca muda:
castelos, donzelas, salteadores, fantasmas, sexo ilícito e incestuoso, violência masculina contra as
mulheres, loucurra, humidade, narrativas confessionais na primeira pessoa. É uma literature que enfatisa o
sadism e a paranóia. O seu praticante mais respeitável é Ann Radcliffe (por exemplo The Mysteries
148

ofUdolpho); mais conhecido por transportar as implicações da forma até às suas conclusões lógicas é o
Marquês de Sade. Para uma boa introdução a Ann Radcliffe ver Janet Todd, The Sign of Angelica:
Women, Writing arid Fiction 1660-1800 (Londres, Virago, 1989). Para um comentário pugilístico sobre o
Página

Marquês de Sade, recomendo Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women (Londres,
Women's Press, 1981), cap 3.
Deve ter havido, e ainda deve haver, muitas mulheres casadas que gostassem que outra mulher
tivesse falado tão honestamente com elas. O Gótico e o conto de fadas são mundos governados
por absolutos e extremos: por isso o voto matrimonial é irrevogável, os homens são sempre
monstros, viciados em 'expolsões de luxúria e selvajaria perversas' (p. 124). Os châteaux são
sempre misteriosamente imensos, o frio insuportável. O marido de Anna era um bruto nos
moldes de Sade cujo prazer é perseguir, atormentar, destruir. Levada pelo desespero porque ela
não é dada ao masoquismo, Anna procura os segredos de Wolfland. Aí ela encontra o poder do
'espírito, as mulheres-lobo, ou talvez ela seja uma deusa, uma deusa antiga que sobra do início
de tudo, antes de Cristo ter vindo nos salvar a todos' (p. 142). A ironia dessa situação está
impregnada no texto, pois seja quem for que Cristo veio salvar, não foi a Anna. Ela invoca a
deusa de Wolfland para se salvar. Apanhando o seu marido sozinho quando ele está a voltar
através da floresta para a torturer a seu bel-prazer, Anna transforma-se num lobo e rasga-lhe a
garganta.
A narrative centra-se nas mulheres de uma forma que o Gótico nunca faz; Lee enfatiza a magia
das mulheres, a astúcia das mulheres, o poder das mulheres. Este poder é o poder do lobo
herdado, que passa da avó para o Capuchinho Vermelho. Agora as mulheres possuem o lobo. O
uso do Gótico e do conto de fadas para apresentar material feminista revolucionário está
espantosamente oposto à escrita convencional. Aqui fica a justificação factual que Anna
apresenta para as suas ações. 'Se eu o tivesse deixado, ele ter-me-ia encontrado, tal como ele fez
à criança. A lei não apoia uma esposa. Só me restava matá-lo' (p. 145). For a do Gótico, este
continua a ser o último recurso que resta às mulheres que enfrentam homens violentos. Lee não
altera o tema ou a ação do conto de fadas tradicional; em vez disso, ela altera a balança do poder
dentro do mesmo e reescreve o final. Ela é muito honesta no que respeita ao tema da violência
masculina. Mas o marido de Anna não tinha de se transformer num lobisomem para torturer e
matar, enquanto a violência das mulheres tem de ser mágica, o poder vingativo do regresso da
deusa. Cabe-nos a nós encontrar uma forma prática de nos transformarmos em lobos e rasgar as
suas gargantas.
Eu procurei por outras versões da sexualidade masculine e o mito do lobo noutras culturas que
não a minha. O mais interessante que encontrei foi um conto popular Chinês chamado 'As Sete
Irmãs'. Este começa assim: 'Numa noite estrelada e sem lua, sete lobos transformaram-se em
sete jovens e desceram a encosta da montanha em busca de comida. Na encosta da montanha a
fiar. Os sete lobos viram a s sete raparigas através de uma fenda e bateram na porta da sua casa .
. . '277 O lobos vão sendo descobertos gradualmente quando as donzelas reparam nos seus pés
peludos e garras letais. As primeiras três irmãs fogem aterrorizadas, abandonando as quatro
irmãs mais novas ao seu destino. As irmãs que ficam para trás estão apavoradas, mas debaixo
do abrigo das suas rodopiantes rodas de fiar, elas planeiam atrair os lobos, um a um, para o seu
destino no topo da casa, onde as irmãs abrem as cabeças dos lobos com um cacete de carvalho
nodoso. Os três últimos lobos escapam para o quintal e ficam trancados do lado de fora. 'A roda
de fiar estava a zumbir novamente, mas desta vez parecia ser uma risadinha de satisfação' (p.
37). Os últimos três lobos descobrem as três irmãs mais velhas escondidas no quintal e mordem-
nas à vez. 'Assim, as três irmãs mais velhas, porque foram tímidas e egoístas, pagaram um preço
elevado pela sua insensatez. As quarta, quinta, sexta e sétima irmãs, porque tinham trabalhado
em equipa, foram capazes de pensar numa forma de matar os lobos. E para além disso, cada
uma delas foi capaz de juntar uma pele de qualidade ao seu dote' (p. 38). A ação coletiva das
mulheres é veementemente apoiada; mas qualquer outra interpretação feminista é travada pela
última linha. Pois esta é uma das mistificações centrais da patriarquia: aquela de que há homens
maus que violam e matam e homens bons com quem casamos. A maioria das mulheres tem de
levar a sua vida apoiando-se nesta hipótese. As feministas radicais argumentam de outra forma.
Não há homens bons e homens maus. Há apenas homens; homens que têm poder sobre as
mulheres, um poder que é estrutural e endémico nas experimentadas instituições do casamento,
149

da heterossexualidade e da patriarquia. Não há forma de distinguir um homem de um lobo.


Página

277
The Seven Sisters: Selected Chinese Folk Stories (Pequim, Foreign Languages Press, 1965), p. 32.
Este é o ponto de partida de Suniti Namjoshi nas suas Feminist Fables. Aqui fica a sua versão
satírica do Capuchinho Vermelho.

História Clínica
Após o evento O Capuchinho V. traumatizado. Lobo não foi morto. O guarda florestal é um
lobo. De que outra forma poderia ele ter estado lá exatamente naquela altura? Explicar isto
à mãe. A mãe não está feliz. Pensa que o guarda florestal é extremamente amável. Avó
morta. O lobo não está morto. O lobo casa com a mãe. V. não está feliz. V. é uma criança. A
mãe pensa que o lobo é extremamente amável. Satisfeita por consultar um psiquiatra. O
psiquiatra deixará claro que os lobos no geral são extremamente amáveis. V. percebe isso.
Ser lobo é OK. A mamã é um lobo. Ela é um lobo. Psiquiatra é um lobo. A mamã e o
psiquiatra e o guarda florestal também, extremamente nervosos/uptight.278

Namjoshi escolhe a identidade ambígua do lobo. O guarda florestal é ao mesmo tempo


um homem amável e um lobo. As mulheres enfrentam um mundo de lobos. Namjoshi é Indiana,
agora a viver e a trabalhar no ocidente. A sua poesia inicial foi publicada na Índia; a sua ficção,
Feminist Fables, The Conversations of Com, The Blue Donkey Fables e The Mothers of Maya
Diip foram todas publicadas na Grã-Bretanha. A escrita central de Namjoshi é a poesia, e as
suas fábulas leem-se como poemas em prosa: a narração de histórias de dentes afiados,
condensada, reduzida à sua essência.279 Paradoxais, espinhosas, irónicas, as histórias são lidas
como uma sequência de stilettoes/lâminas. Namjoshi saqueia a cultura occidental e oriental à
procura de narrativas, temas, personagens e, acima de tudo, de metamorfoses. Ela tem animais
falantes sábios e tolos, princesas persistentes; parábolas modernas abordando as contradições da
teoria lésbica e feminista. Os contos de Namjoshi refletem-se nas suas próprias fontes e nos seus
próprios criadores. Os patos de Hans Christian Andersen enviam uma delegação ao seu autor a
exigir o seu acordo para a sua preferência pelo seu próprio género.

Final Feliz
. . . Quanto aos patos, eles também enviaram uma delegação, e a partir de então foi-lhes permitido
gostar uns dos outros.280

Nas fábulas democráticas de Namjoshi, os animais – e as bruxas – têm uma oportunidade de


responder. Os debates sexuais no seio do feminismoo são distanciados pelas metamorphoses em
animais, de forma que uma fábula alegórica como 'O Cisne Fêmea', no qual o Patinho Feio
nunca se transforma num cisne mas é recompensada por um papel 'que declarava que a partir de
então ela seria um Cisne Honorário' (p. 18), ganha o seu ponto ao se tornar irrefutável. As
mulheres podem agir como homens, podem exercer poder como os homens, estudar para pensar
como homens, mas não podem ser homens: tal como os patos não podem nunca ser cisnes. Eles
não são da mesma espécie. Assim, a história e lieratura dos cisnes, o crescimento até ao estado
de cisne, são para sempre desconhecidos para os patos. O argumento a favor do reconhecimento
da diferença absoluta é feito através de um truque de magia. O que nós fazemos com 'a natureza
dos patos e o valor dos cisnes' fica ao nosso critério. As fábulas argumentam uma política
coerente, mesmo abordando diretamente assuntos particulares, ainda que mudando os termos do
argumento. Se a própria Namjoshi julga que as mulheres e os homens são species diferentes, ou

278
Suniti Namjoshi, Feminist Fables (Londres, Sheba, 1981), p. 3.
279
The Conversations of Cow (1985), The Blue Donkey Fables (1989) e The Mothers of Maya Diip
(1989), todos publicados pela The Women's Press. A poesia publicada de Namjoshi inclui sete coleções
individuais e uma coleção conjunta com Gillian Hanscombe, Flesh and Paper (Seaton, Devon, Jezebel,
150

1986). Os seus poemas selecionados e fábulas Because of India foram publicados pela Onlywomen Press
em 1989. Aqui, eu estou preocupada em primeiro lugar com as suas fábulas e a forma como ela usa as
suas formas de fábula em relação com a sua poesia.
Página

280
Namjoshi, Feminist Fables, p. 13.
que os negros e os brancos estão irrevogavelmente separados – pois a fábula seria igualmente
aplicável a uma análise do racismo – é irrelevante. A fábula é sobre a diferença; contada através
do meio tradicional das fábulas e dos contos de fadas, onde as bestas podem ensinar-nos como
ser humanos.
Tomar liberdades feministas radicais com temas tradicionais, Namjoshi explode os clichés do
género. No 'A Moral Tale' - 'A Bela eo Monstro' – ela simplesmente muda o sexo da besta.
A Besta não era um nobre. A Besta era uma mulher. Por isso é que o seu amor por Bela era tão
monstruoso. Em criança, a Besta tinha tido pais que eram ambos bondosos e liberais, não é que
nós reprovemos os homossexuais e afins, mas as pessoas reprovam-nos e é por isso que
lamentamos quando tu pensas que és uma. Nós queremos que sejas feliz, e os homossexuais não
são felizes, e essa é a verdade.' (p. 21)
Este pensamento circular não precisa de ser lido tão brutalmente cruel como parece. A maioria
dos pais são vítimas da sua própria crença no mito público/privado, e nunca compreendem que
eles são a sociedade. A sociedade começa na cozinha e no quarto de dormir da nossa própria
casa. Confrontadas pelas estruturas sexuais da maioria dos contos de fadas ocidentais, as jovens
lésbicas e feministas podem muito bem pensar em si próprias ou como bruxas ou Bestas. E aqui
a crítica do humanismo de Namjoshi é inestimável – tal como a sua perspetiva Indiana. Nos
ensaios em prosa que ligam a sua seleção de poemas Because of India, escritos durante mais de
vinte e cinco anos e em três continentes, Namjoshi tem o seguinte a dizer acerca das mulheres e
do Monstro.
Para mim uma besta não era 'bestial' no sentido ocidental. Para mim, um pássaro ou uma besta
era uma criatura como outra qualquer. O Hinduismo é, afinal de contas, panteista; e a noção
popular da reencarnação atribui uma alma a todos. Isto pode parecer estranho para os ouvidos
ocidentais, mas para mim, era tão familiar como inconsciente. ... num universo humanista, que
tem sido historicamente centrado no homem, as mulheres são 'o outro', juntamente com os
pássaros e as bestas e o resto da criação ... Eu não quero ser separada dos pássaros e das bestas,
nem quero 'humanizá-los' particularmente. 281
A Besta e as Mulheres são portanto aliados naturais – e devem ter muito a dizer umas às outras.
As personagens animalescas de Namjoshi continuam de livro para livro, passando a fazer parte
da sua mitologia literária particular. Há mesmo uma personagem chamada Suniti, a máscara da
escritora. A macaca de um só olho, que aparece no Feminist Fables, reaparece na sua ficção
infantil e no The Blue Donkey Fables. A macaca perde o olho na fábula 'The Monkey and the
Crocodiles', um conto que pode ser lido de variadas formas. Os amigos da macaca são dois
crocodilos que a protegem. Quando ela parte para a sua viagem, eles avisam-na para ter cuidado
com outros animais não especificado que eram 'longos e estreitos e com lombos escamosos e
mandíbulas poderosas'. Quando a macaca regressa ela tinha 'perdido a sua cauda, seis dos seus
dentes e um olho'. ' "Encontraste as bestas?" "Sim," disse a macaca. "Como é que eles eram?"
"Pareciam-se com vocês," ela responder vagarosamente. "Quando vocês me avisaram há tanto
tempo atrás, sabiam disso?" "Sim," disseram os seus amigos e evitaram o seu olhar.' 282 O foco
da fábula não é colocado sobre as aventuras da macaca, mas nas suas relações com os
crocodilos. Todas nós temos amigos entre Os Outros; nós somos mulheres negras, com amigas
brancas, lésbicas com amigas heterossexuais; nós somos mulheres que confiam nos homens,
mesmo quando a sua espécie não está do nosso lado. A narrativa – isto é característico de
Namjoshi – permanece com o fim em aberto. Os crocodilos sabiam que a macaca tinha tudo
para ter medo deles. O seu poder e privilégio, que de facto ascende ao poder da vida e da morte,
estão mascarados pela sua amabilidade. Eles deixam de ser amigáveis a qualquer altura da sua
escolha. E é por isso que eles evitam o seu olhar. Mas eles continuam, contudo, a falar no
próximo livro.
A primeira novella de Namjoshi, The Conversations of Com, é sobre o encontro entre culturas;
sobre o que é ser Indiana na América do Norte. É também um livro sobre a metamorfose
151

281
Namjoshi, Because of India, p. 28.
Página

282
Namjoshi, Feminist Fables, p. 26.
cultural, e alcança a sua perturbação através da disjunção entre as perceções lésbicas Indianas e
os clichés diários comuns/ordinários/habituais do ocidente branco. Bhadravati é uma deusa
Brahmini e uma vaca lésbica. Ela é também outra parte da escritora Suniti, e assume um papel
pedagógico na sua vida. A narrativa é hilariante, ridícula, porque é completamente direta. A
insegurança da metamorfose constante, o fluxo por detrás das máscaras, é o tema e parte do
jogo. The Conversations of Cow segue as regras tradicionais que indicam a presença do
sobrenatural. Tudo é normal e toda a gente se comporta normalmente. Apenas um elemento na
aparência ficcional da realidade é diferente. Bhadravati é uma vaca. Isto torna-se cómico e
surpreendente na cena do jantar onde Suniti apresentaa a Vaca aos seus amigos.

É uma pequena festa. Convidei três dos meus colegas. Eles são quase todos brancos – a cor não
tem importância para mim – e completamente liberais, disso eu tenho a certeza.
. . . Eles falam solenamente sobre as alegrias do campo, os prazeres do pastoril. B. ocupa todo o
sofá. Ela colocara uma estola Benarasi turquesa e dourada sobre os ombros. Ela está magnífica…
. . . Será que eles não percebem que a Vaca é um animal? As palmas das minhas mãos estão
húmidas. Sinto-me um pouco enjoada.
. . . Por fim eles vão embora, eu aceno debilmente. A Vaca foi um grande sucesso. Os meus nervos
estão em farrapos, (pp. 38-40)

Aqui o tema é a colisão de culturas e de grupos opostos. O signo 'Lésbica' - ou 'Negra' – é


alterado pelo signo 'Vaca'. Namjoshi simplesmente manipula os contras da ficção. A tensão da
cena consiste nisto: poderá a superfície liberal de harmonia e os pressupostos comuns serem
preservados do abismo da diferença que lhes subjaz? Pois é a vida quotidiana dos Outros que
são um anátema para Nós. Um dos convidados narra à Vaca o acidente com o seu frigorífico a
transbordar de costoletas. A Vaca, que poderia ela própria ser familiar de uma das costoletas,
decide, para o alívio de Suniti, ser graciosa em vez de ficar furiosa. As aparências são salvas;
mas por pouco.
A viagem de Bhadravati é obviamente a viagem para o interior dos aspetos diferentes do ser,
onde a identidade é fluida, dependente do contexto social e do desejo individual.
Diiauravau transforma-se num homem, uma vaca, uma Lésbica Asiática à conquista, ensinando
o significado da diferença e de como gerir a nossa diferença num mundo branco e estranho. O
tema do racismo e todas as suas convoluções emocionais são lidadas diretamente no The Blue
Donkey Fables. Aí, dá-se pouca importância às enxurradas de culpa da burra cinzenta no conto
'The Sinner'.

Numa tarde, enquanto a Burra Azul estava a recitar alguns versos qualquer perante uma audiência,
uma burra cinzenta normal caminhou apressadamente na sua direção, caiu aos seus pés e gritou
bem alto, 'Irmã, eu pequei! Eu procuro a absolvição.' A Burra Azul ficou muito embaraçada.. . . A
burra aos seus pés recusava-se a mexer-se. 'Eu fui ranhosa e snobe e muitas vezes pensei para mim
mesma que eu desprezava os brurros azuis e nunca me aproximaria de um ou faria um amigo entre
eles.' (p. 36)

A resposta da Burra Azul é brutal e apropriada. 'Cai aos pés dos outros burros aqui presents e
explica-lhes – como fizeste comigo – que tu perdoas a sua cor cinzenta' (p. 36). Novamente os
signos da cor são alterados. A burra cinzenta, como muitas mulheres brancas inclinavam-se para
bater no peito, coloca-se no centro do palco. Mas não existem burros azuis na audiência. Só
existe um Burro Azul que está a no palco e é a sua cor azul que a faz especial. Ela tem bastante
sucesso pelo facto de ser Azul e porque nunca se vê nenhum outro burro azul, nunca precisa de
lutar para por um fim na discriminação contra os burros azuis no geral.
A ficção de Namjoshi está repleta de gurus e dos seus discípulos, uma forma muito Indiana de
ensino. E ela usa o Inglês como se fosse uma língua indiana, ela cria a India no ritmo da sua
152

prosa. Mesmo o enfático 'como qualquer coisa' – uma expressão idiomática que é encontrada em
diferentes línguas indianas – transforma a forma da sua escrita descritiva. 'Era Inverno. O sol
estava a brilhar como qualquer coisa. Era agradável, era frio. Estavam cerca de 70 graus.'283
Página

283
Namjoshi,The Blue Donkey Fables, p. 9
Minimizado, hilariante, o texto destroi as expetativas ocidentais. E, apropriadamente, o tema
central do The Blue Donkey Fables é a criação da escrita e do cenário da poesia; tanto a alegria
privada como os aspetos brutalmente comerciais que daí advêm. As editoras perdem
manuscritos e são zumbados animadamente. Os críticos são eliminados efetivamente: pelos
instintos criativos. Os leitores são persuadidos.

Querido leitor
Eu tenho o poder? Eu defino? E eu
controlo? Mas são necessários dois corpos vivos, um
a escrever e outro a ler, para gerar um céu,
um planeta habitável e um sol a funcionar. (p. 51)

Deveras. Os leitores não são destituídos de poder. Eles podem sempre discordar: ou
baixar o livro. Mas na ficção de Namjoshi nós somos convidados, abordados, cortejados, é-nos
dado espaço para contestar. A relação amaorosa com a escrita, e acima de tudo com a poesia, é
precisamente isso no trabalho de Namjoshi – um caso amoroso lésbico, uma relação erótica. É o
tema da melhor sequência do The Blue Donkey Fables, o 'Three Angel Poems.
Aqui, no seu domínio sobre as suas vozes, Namjoshi, liga os seus temas: poeta e musa,
humano e animal, Suniti e o seu Anjo. O primeiro poema, 'Familiar Angel'[Anjo Familiar], é o
diálogo na poesia entre a musa recalcitrante e a sua pouco disponível poetisa. Angel tem todo o
poder, todas as últimas palavras e as melhores palavras. Angel zomba da sua poetisa, mas nunca
a deixa ir. No 'Visiting Angel' Namjoshi volta à forma da fábula. Angel e a poetisa vão visitar o
mundo; um mundo onde não há palavras para acolher anjos, ou amantes lésbicas, ou mulheres
negras. 'Mas nós vamos ter de explicar quando conhecermos outras pessoas que eu sou eu e nós
somos nós. "Que bom" elas dirão. "Por favor venha e traga o seu pássaro" ' (p. 14). Finalmente,
no 'Unfallen Angel', Namjoshi usa o soneto Shakespeariano, três quadras e o dístico agressivo
no final, para celebrar a seu Angel. Desta vez, apesar da aparência e comportamento
impossíveis de Angel, Suniti e Angel estão do mesmo lado, defendendo-se uma a outra contra a
propriedade, respeitabilidade e os valores exigidos. Shakespeare defendeu a sua Dark Lady e a
sua beleza improvável contra todos os que chegavam.

Mas juro que esse amor me é mais caro


Que qualquer outra à qual eu a comparo.

E Namjoshi defende a sua arrogante e não caída, Angel.

E no entanto, pelos céus, ainda que Angel se pavoneie e Angel sorria, ela continua a ser
Angel. Então quem poderá dizer que Angel peca? (p. 14)

Esta é uma poesia que é irreverente, por vezes deliberadamente desagradável. 'Angel, corvo,
pardal, sentados no meu ombro e cagando quando lhes apetece, quem és tu Pássaro?' (p. 14). Na
dança da mulher, pássaro e besta, nem Angel nem Suniti Namjoshi são honestas, dando
respostas fáceis. Mas dentro do meio, paradox, contradição, indecisão de Namjoshi, nunca se
encontra o oposto da clareza. A difculdade é contida e examinada dentro da forma.

Angel canta. Angel sorri. Angel endireita as suas penas e limpa-se.


E uma voz declara, 'Jogo e set e partida para Angel.'
Angel vence. (p. 13)

Só assim. Angel dita o verso. Três passos lógicos: diálogo, fábula, soneto; três movimentos
perfeitos num jogo ganho por Suniti Namjoshi – e da sua Angel.
153
Página
6
A Escrita Lésbica
E no entanto, eu continuo a ser outra coisa que não Mulher; existe uma distinção entre aquilo
que o mundo espera do ponto de vista de uma mulher – e aquilo que eu vejo.. . Se parece
importante reter o meu sentido de diferença, guardar o ângulo oblíquo do qual eu perceciono o
mundo, o que significará o facto de eu escrever enquanto lésbica?
Anna Wilson, Ser uma escritora lésbica ['On Being a Lesbian Writer']

Subah significa manhã. É o título de um filme Indiano feministaa - e radical -


onde a protagonista é Smita Patel, uma extraordinária atriz sul asiática que morreu
jovem. O filme passa-se numa prisão para mulheres - uma metáfora para a posição das
mulheres na Índia. No Subah, Smita Patel representa o papel de uma jovem licenciada de
classe-média que, após um período em que deseja ser entediada e casada, aceita a
posição de superintendente na prisão. A narrativa inclui as histórias das mulheres que
estão lá presas. É um filme assustador. Eu vi-o enquanto estava a tirar um curso
intensivo informal sobre a cultura sul Asiática dinamizado por uma amiga, ela própria
uma Asiática Afro Oriental e Lésbica. Eu estava a ver um vídeo quando ela disse,
“Presta atenção. A seguir vem a única cena lésbica de toda a indústria cinematográfica
Indiana. É melhor concentrares-te e nem piscar os olhos ou podes nem chegar a vê-la.”
Duas mulheres, completamente vestidas com os seus saris, são invadidas pela agressiva
luz de lanternas, afastando-se rapidamente do abraço que partilhavam. O veneno das
outras mulheres na prisão é maldoso e perturbador. O Presidente do Conselho quer
separá-las e enviá-las para prisões diferentes. A jovem superintendente defende-as; mas
o seu apoio não é esclarecido ou radical. Elas precisam de ser ajudadas, ela afirma,
serem vistas por umpsiquiatra, curadas da sua doença. Os seus argumentos, no âmbito
dos termos da política do filme, são apresentados como uma posição corajosa. Ambos
os lados concordam que as duas jovens ou devem ser suprimidas ou destruídas. O
método é que difere.
A lingua da mãe da minha amiga é o Katchi. Eu perguntei, “Qual é a palavra que
designa Lésbica na sua língua?” Ela respondeu, “Não existe. Só há palavras feias. A
mesma palavra que vocês usam para prostituta, puta.” Assim a experiência do
154

Lesbianismoo apenas existe camufladamente; não pode ser proferida em público, sem a
palavra.
As narrativas pessoais, Bildungsromane, as histórias de vida são não só importantes como
Página

frequentes na escrita Lésbica. Elas representam a procura de definição, e a busca por


uma forma de articular e habitar a palavra “Lésbica”. No seio da cultura Britânica, no
início deste século, Lésbica era uma palavra proibida, e uma palavra definida pelos
homens.284 E a mulher que tentou recriar e refazer essa palavra, Radclyffe Hall, foi
processada por obscenidade pelo governo Britânico. The Well of Loneliness (1928)
continua a ser o romance Lésbico por excelência, tal como uma breve pesquisa de
campo em diversas livrarias de estudos femininos em Londres revelou. Uma das lojas
vendia pelo menos duas cópias por semana. Inquiri noutra livraria. A mulher ao balcão,
ela também uma lésbica, lançou as mãos ao alto. “Oh, meu Deus. Devemos vender pelo
menos vinte cópias por semana.” O que na realidade queria dizer entre quatro a seis. Ela
explicou, “Muitas vezes é a primeira coisa que as jovens leem. Eu detesto dar-lhes o
livro.” Outra lésbica que eu conheço, enquanto se ocupava a censurar as suas estantes
com livros antes da chegada da mãe, descobriu que este era o único romance que
precisava de retirar. É um texto marcado, reconhecido, conhecido, um símbolo público.
Esther Newton, na sua inteligente análise à ficção de Hall, salient que 'a lésbica
masculinizada, da qual Stephen Gordon (a heroína de Hall) é o protótipo mais
conhecido, simboliza o stigma do lesbianismoo e assim continua a mover um vasta
gama de lésbicas'. 285 Mas a reação da mulher ao balcão da livraria foi também típica:
'Eu detesto dar-lhes o livro.' Tal como Newton argumenta, 'A visão sobre o lesbianismo
de Hall enquanto diferença sexual e enquanto masculinidade é hostil para com a
ideologia feministaa lésbica' (pp. 23-4). As feministaas lésbicas são contra a insistência
de Hall na diferença absoluta entre as lésbicas e as outras mulheres 'normais'; e contra o
seu pressuposto de que a única expressão possível do lesbianismoo era a de uma mulher
gingona, sem filhos e masculina. Hall também pressuponha que a amante da sua
heroína, a mulher feminina, era na verdade heterossexual. O lesbianismoo é portanto
inato, biologicamente determinado de uma qualquer forma obscura, que se manifesta
em ombros musculados, ancas estreitas e seios pequenos e compactos. Apesar de ser
claramente um disparate se o levarmos à letra – muitas lésbicas ou são
extraordinariamente grandes ou extraordinariamente pouco musculadas – temos de nos
lembrar que a tentativa de Hall para definir a identidade da sua heroína e a sua própria
identidade enquanto lésbica implicava apropriar-se do único discurso disponível do
lesbianismoo e apresentar-se nesses termos. E esse discurso era determinado pelos
sexólogos médicos: Havelock Ellis, Krafft-Ebing e Freud.286 As feministaas lésbicas
dedicam-se a definir os nossos próprios termos; o Lesbianismoo já não é matéria da
biologia, mas da política.
O romance de Raclyffe Hall é, corajosamente e de forma inabalável – não obstante
podermos considerar deplorável a sua capitulação perante o discurso dos sexólogos ao
inverso – sobre o amor sexual entre mulheres. Na Gay Studies Newsletter Judith Fetterley
escreve; “o que há de maravilhoso no The Well of Loneliness [O poço da solidão] é que se
trata de um texto que se assume como lésbico. Poderemos até detestar a política por

284
Para uma análise dos significados de'Lésbica' no período de 1880-1930 consulte-se A solteirona e os seus inimigos:
Feminismo e Sexualidade 1880-1930 [The Spinster and Her Enemies: Feminism and Sexuality 1880-1930] de Sheila
Jeffreys (Londres, Pandora, 1985), especialmente, capítulo 6. Em França, está a ser realizado muitos trabalhos sobre este
period por lésbicas e gays. Eu participei num seminário internacional sobre a homossexualidade e o Lesbianismo na
Sorbonne nos dias 1 e 2 Dezembro de 1989 e tive a oportunidade de lá ouvir um artigo especialmente interessante de
Brigitte Lhomond, uma investigadora da CNRS em Lyon. Ela debruça-se sobre as formas como as lésbicas e os Gay
compreendem as suas identidades no início do século vinte.
155

285
Esther Newton, 'The Mythic Mannish Lesbian: Radclyffe Hall and the New Woman', in Estelle B. Freedman et al. (eds),
The Lesbian Issue: Essays from Signs (Chicago, University of Chicago Press, 1985), pp. 7-25: p. 10.
286
Ver os comentários breves mas bastante úteis de Newton. A vantagem da teoria da biologia inata é, obviamente, que
Página

ninguém pode ser moralmente responsabilizado por ter nascido diferente. Consultar também Celia Kitzinger, The Social
Construction of Lesbianism (Londres, Sage, 1987). Sobre Radclyffe Hall e inúmeras teorias da inversão, ver Michael Baker,
Our Three Selves: The Life of Radclyffe Hall (Londres, Hamish Hamilton, 1985) e Rebecca O'Rourke, Reflecting on The
Well of Loneliness (Londres, Routledge & Kegan Paul, 1989)
detrás do texto de Hall ou a sua prosa, mas pelo menos oferece-nos um livro que é
claramente sobre lésbicas. É um texto verdadeiramente butch/bulldagger. E este é o tipo
de texto que eu espero encontrar com maior frequência.'287 Mas se The Well of Loneliness
é um texto assumidamente lésbico, isso quer dizer que também existem textos
camufladamente lésbicos? E haverá uma clara distinção entre a escrita lésbica e a escrita
feministaa lésbica? E o que caracteriza um texto como lésbico? O conteúdo? A forma?
O estilo? A gramática? Fetterley defende que A Cor Púrpura de Alice Walker, apesar do
seu tema lésbico, não se trata de um romance lésbico, e sim “negro numa série de
aspetos, talvez principalmente por esta ter resolvido escrever a parte mais importante
em Inglês negro”.288 Mas há muitos americanos negros que não falam nem pensam
como a Celie em A Cor Púrpura e que nunca o fizeram. Será que o reconhecem como um
texto negro no geral ou como um romance negro sulista? O lesbianismoo assume um
significado diferente nas comunidades negras, tem uma história diferente. Eu
certamente não considero A Cor Púrpura um romance lésbico; mas talvez uma lésbica
negra o considerasse de forma diferente. E então resta-nos um conjunto de questões
controversas. O que é um romance lésbico exatamente? Um trabalho de ficção de
autoria de uma mulher assumidamente lésbica, tal como The Well of Loneliness? M que
todos os outros romances de Hall, mesmo naqueles textos onde não há sequer uma fufa,
sejam romances lésbicos? Ou serão os textos que tratam da experiência lésbica os
genuínos? Se assim for, poderá uma mulher heterossexual escrever um romance
lésbico? E um homem?
Catharine R. Stimpson oferece-nos clareza, austeridade e absolutismo no meio desta
confusão.
A minha definição de lésbica – enquanto escritora, personagem, e leitora – será
conservadora e rigidamente literal. Ela é uma mulher que considera outras mulheres
eroticamente atraentes e gratificantes. É óbvio que uma lésbica é mais do que apenas o
seu corpo, mais do que a sua carne, mas o lesbianismoo partilha o corpo, partilha a
carne. Essa carnalidade distingue-a dos gestos de compaixão política para com os
homossexuais e das amizades afetuosas nas quais as mulheres apreciam a companhia
uma da outra, apoiam-se e compartilham um sentido de identidade e bem-estar. O
lesbianismoo representa um compromisso de pele, sangue, seio e osso. 289
O que este literalismo pressupõe é que a experiência física e social do lesbianismoo
será, de alguma forma, necessariamente expressa na escrita. Stimpson vai mais longe:
'Porque o jugo violento da homossexualidade e do desvio à norma tem sido tão
difundido no período moderno, que pouca ou nenhuma escrita sobre o tema é capaz de
ignorar essa conjunção' (p. 244). A narrativa lésbica, portanto, torna-se ou 'numa
narrativa de condenação’ ou numa 'que permita a fuga'. E eu penso que estas categorias
alargadas, quando estamos a discutir textos de autoria de lésbicas assumidas, são úteis e
válidas. Mas e quanto aos textos que o escondem? Não são romances lésbicos

287
Judith Fetterly, Gay Studies Newsletter, Vol. 14, nº 1 (Março 1987). O texto integral do seu discurso “Writes on
Passing” está reeditado na revista Gossip: A Journal of Lesbian Feminist Ethics, no. 5 (Outono de 1987); esta citação
aparece na página 25. A Gay Studies Newsletter está disponível subscrevendo-a ao Department of English, 7 Kings College
Circle, University of Toronto, Toronto, Ontario, Canada M5S 1A1; Gossip está disponível na Onlywomen Press, 38 Mount
156

Pleasant, London WC1X OAP. Uma rede Académica Gay e Lésbica está apenas a começar na Grã-Bretanha. Para mais
informações escrever para: Ford Hickson, Department of Social Science, South Bank Polytechnic, London Road, London
SE1 OAA. O primeiro número da Newsletter saiu em Abril de 1991.
288
Fetterley, Gossip, no. 5, p. 25.
Página

289
Catharine R. Stimpson, 'Zero Degree Deviancy: The Lesbian Novel in English', in E. Abel (ed.), Writing and Sexual
Difference (Brighton, Harvester, 1982), pp. 243-59: p. 244.
simplesmente porque foram escritos antes dos anos 70, num clima social que
considerava o lesbianismoo uma obscenidade?
Algumas mulheres refugiavam-se em códigos obscuros. Gertrude Stein viveu como uma
lésbica assumida em Paris numa altura em que não era certamente difícil fazê-lo se se
tivesse dinheiro; mas em que continuava a ser difícil escrever como lésbica . Lillian
Faderman salienta: 'Se ela é difícil e muitas vezes impossível de ler é porque ela sentia
que não poderia escrever claramente sobre a homossexualidade e ter expetativas de
publicarem os seus trabalhos.'290 Stein escreveu mesmo sobre o amor lésbico e o sexo
lésbico; ela mudou o género das suas personagens tais como os autores que não se
assumem normalmente o fazem, mas ela foi capaz de ser indecente, explícita e – mesmo
no estilo mais descarado - ternurenta.
Eu estou a ser levada Eu estou a ser levada Eu estou a ser delicadamente levada
para a cama.291
O problema com os textos que não se assumem não é tanto a obscuridade, mas a
ambiguidade. Num Grupo de Ficção Moderna que cheguei a frequenter nós estávamos a
ler Memoirs of Hadrian de Marguerite Yourcenar.292 Uma de nós tinha lido o texto em
Francês. Trata-se de uma façanha extraordinária, abarcar o amor, a morte, o poder e o
Significado da Vida. Asssim que começámos a discutir o livro, tivémos de levanter a
questão da homossexualidade, uma vez que o núcleo emocional da história é a paixão
do Imperador Adriano pelo seu jovem amante Antínoo. De repente, um dos homens do
grupo disse: 'Não se trata de amantes do sexo masculino. Trata-se de uma relação
lésbica.' Ficámos todos chocados sem saber bem porquê e imediatamente começamos a
procurar indícios biográficos em vez de indícios textuais. As notas de autor da nossa
edição referiam-se à 'sua grande amiga, Grace Frick', e afirmava que as suas cartas e
diários, incluindo a correspondência entre elas, deveriam permancer seladas por um
períodode 50 anos após as suas mortes. Isto, seguramente, se tratava do código do
armário. No entanto, abandonámos a nossa especulação infundada por ser criticamente
irrelevante e exigimos que o homem cuja pretensão era de que esta obra se tratava de
um romance lésbico não assumido se explicasse, e, de preferência, que indicasse as
páginas nas quais isso se tornava claro. Ele não foi capaz de o fazer. Restava-nos o
problema exasperante da intenção da autora. Finalmente, ele foi capaz de opinar de que
se tratava de uma questão de atenção, que os homens não observam ou notam noutros
homens, mesmo os seus amantes, com esse tipo de atenção. Não ficámos convencidos.
E no entanto as escritoras lésbicas realmente escrevem sobre o amor entre dois homens,
uma ligação que tem sido sempre historicamente mais fácil de expressar e de celebrar
mais abertamente. Trata-se de um artifício lésbico convencionado. Um exemplo é o da
romancista histórica Mary Renault. Mas a questão da atenção é mais complexa. A
filósofa Americana feminista lésbica, Marilyn Frye, diz o seguinte:
A atenção é uma espécie de paixão. Quando focamos a nossa atenção em alguma coisa,
apresentamo-nos de certa forma perante essa coisa. Essa presence é, entre outras coisas,
um elemento de presença erótica. A orientação da nossa atenção é também o que define
e direciona a aplicação do nosso trabalho físico e emocional.293

290
Lillian Faderman, Surpassing the Love of Men: Romantic Friendship and Love Between Women from the Renaissance
to the Present (1981; London, Women's Press, 1985), p. 400.
157

291
Gertrude Stein, citada por Faderman, Surpassing the Lcme of Men, p. 405. E ver Stein num poema pouco conhecido e
muito erótico Lifting Belly, ed. Rebecca Mark (Tallahassee, Fla, Naiad, 1989).
292
Marguerite Yourcenar, Memoirs of Hadrian (1951; Londres, Penguin, 1982).
Página

293
Marilyn Frye, 'To Be and Be Seen: The Politics of Reality': o ensaio titular na sua excelente coleção de ensaios
filosóficos e políticos, The Politics of Reality: Essays in Feminist Theory (Trumansberg, NY, Crossing Press, 1983). Citação
retirada da p. 172.
Assim, mesmo que a sexualidade lésbica não fosse o tópico imediato que uma escritora
lésbica tivesse escolhido, a orientação da sua atenção seria percetível no seu tratamento
de qualquer assunto que ela escolhesse. Muitos anos após ter terminado Memoirs of
Hadrian, Yourcenar discutiu o seu trabalho numa entrevista literária.
'Tudo o que viveu uma vida humana sou eu,' ela escrevia no final de 'Hadrian'. É uma
observação que ela gosta de citar. 'É claro que todas as pessoas possuem uma massa de
memória que faz delas um importante recetáculo de toda a vida . . . Tudo nos perpassa a
todo o momento, uma série de vibrações ... no geral eu considerar-me-ia uma escritora
bastante subversiva. Hadrian é essencialmente subversivo.'294
Yourcenar nada revela. Ela apenas se identifica com Adriano na mesma medida em que
a camuflagem camaleónica do escritor permite-lhe entrar na pele e no espírito de outros
seres. Mas subversivo é uma palavra forte, carregada, sinistra. Os subversivos
normalmente procuram a aparência da respetibilidade mas nunca são exatamente o que
parecem. As perceções lésbicas são muitas vezes ocultadas, deliberadamente
codificadas, sussurradas, disfarçadas, para que a especulação crítica seja considerada
irrelevante.
Eu já tinha ditto anteriormente que as narrativas, confissões e testemunhos pessoais
eram particularmente importantes para as ecritoras lésbicas. Geralmente, estas
narrativas acabam por assumir uma audiência mista homossexual e heterossexual. São
muitas vezes um caso de um pedido especial, uma explicação da forma como a
sexualidade do escritor foi formada, articulada e expressa. Elas são, na maior parte dos
casos, uma busca para uma primeira causa. Não é necessário alguém explicar como se
tornou heterossexual, ainda que fosse umbom exercício para alguém seriamente
perturbado pela sua própria homofobia. No que respeita a escrita, eu creio que deverá
continuar a ser irrelevante para o leitor saber se autora vive como uma lésbica,
comprometida pelo 'sangue, seio e osso' com outras mulheres.Deve ser a escrita por si
própria a revelar ou esconder, ser bem sucedida ou não, nos seus próprios termos. Pois a
escrita tem as suas próprias regras, e podem ser distanciadas da vida do escritor, uma
vida vivida em termos diferentes e de formas diferentes. Muitas vezes tive a experiência
de conhecer mulheres cuja escrita é sábia, generosa e crítica e depois ficar amargamente
dececionada com a autora, que é tacanha, egoista. Trata-se de ingenuidade da minha
parte, pois embora possa parecer óbvio dizê-lo, vale talvez a pena lembrar que a
imaginação pode ser poderosa e sem restrições; e essa escrita baseia-se na mestria, e não
na experiência. No prefácio de 1911 deste romance de 1908, The Old Wives ' Tale, Arnold
Bennett esboça a resposta à sua descrição de uma execução pública francesa.
O Sr. Frank Harris, ao discutir o meu livro na Vanity Fair, dizia que era evidente que eu
não tinha assistido à execuçãp (ou por palavras semelhantes), e prosseguia
providenciando a sua descrição de uma execução. Foi um texto breve mas terrivelmente
convincente... Eu escrevi ao Sr. Frank Harris, lamentando que a sua descrição não
tivesse sido publicada antes de eu ter escrito a minha, pois assim eu a teria utilizado
com certeza e, é claro, eu admiti que nunca tinha testemunhado uma execução. Ele
simplesmente responder: 'Eu também não'. Vale a pena guardar este detalhe, pois trata-
se de uma repreensão que um grande número de leitores, que, quando um romancista já
lhes transmitira uma convicção, estes logo dizem: 'Ah, isto deve ser autobiográfico!' 295
E no entanto, e no entanto… devemos recorder que, tal como Catharine Stimpson
salienta, 'Tal como a masturbação e a orgia, a homossexualidade tem se tornado uma
158
Página

294
Marguerite Yourcenar entrevistada por Ronald Hayman, The Observer, 29 de Abril, 1984.
295
Arnold Bennett, The Old Wives' Tale (1908; Londres, Pan, 1964, 1975), prefácio, p. 24.
frente no jogo da escrita erótica.'296 Antes do movimento para a libertação das mulheres
se tornar visível, articulado e com publicações, muitas vezes o único material lésbico
disponível era produzido e vendido como pornografia para homens. E há muitas autoras
no seio do movimento das mulheres que usam material lésbico para apimentar as suas
narrativas, tendo muito cuidado em fazer referência aos seus maridos e filhos nas suas
observações. Virgin Territory de Sara Maitland usa precisamente essas táticas textuais. O
humor ambíguo da narrativa, tortuoso, sobreescrito, encharcado de símbolos e
portentoso, centra-se no despertar sexual - ou a asfixia – de uma freira americana, Anna,
que encontra uma 'feministaa gay', Karen, na British Library. Será que elas irão ou não
para a cama? A tensão gratuita do livro inteiro centra-se no desejo lésbico; reprimido,
inconfessado ou pervertido. As duas mulheres juntam-se a propósito de uma tradução de
um depoimento da Rosa de Lima: '... era um relatório das investigações eclesiásticas
sobre a ventualidade dos sacrifícios e mortificações auto-inflingidas da Rosa poderiam
mesmo ter provindo de Deus, tão extremas e bizarras elas eram. Espancamentos, estar
amarrada e jejuns e flagelações. . . '297 Torturas, sacrifícos, êxtase sexual; o sado-
masoquismo inerente no Cristianismo patriarchal forma a substância do texto de
Maitland, que junta 'a doçura do orgasmo e a violência da auto-repugnância' (p. 169).
Este material é difícil e complicado, mas foi corajosamente confrontado tanto pelas
mulheres que se descreviam como feministaas cristãs e as mulheres que descartam as
estruturas do cristianismo para abraçar diferentes formas de espiritualidade - Wicca,
paganismo e Feitiçaria.298 A ficção de Maitland renova e afirma alguns clichés antigos
mas perigosos: que muitas freiras são lésbicas frustadas, reprimidas, e que as fufas
assumidas passam grande parte do seu tempo a maquinarem estratégias para levar outras
mulheres para a cama. Neste contexto, algumas das reflexões de Maitland sobre o
desejo lésbico começa a soar alarmante. 'Ela rondava, predatoriamente a Anna . . .' (p.
99); 'Eu sou uma brilhante feministaa lésbica e posso dormir com quem eu quero . . .' (p.
153); 'Eu nunca te vi a passar tanto tempo sem ninguém. Pelo amor de Deus, mulher,
vai à luta e dá uma queca' (p. 161); 'E ela sabia que era fisicamente mais forte que a
Anna e isso agradava alguma parte dela' (p. 166). O desejo, mútuo ou não, é
apresentado como predatório, irracional, potencialmente violento, 'o lado escuro da lua'
(p. 106). O desejo tem a ver com poder e força.
É certamente verdade que o desejo sexual de qualquer tipo toma precisamente esta
forma; e podemos discutir se se trata de algo bom. Mas dado que as nossas respostas
sexuais, tal como outra resposta dita natural – o amor materno, a passividade da mulher,
o homem como assassino, e por aí adiante – são construídas pela sociedade que criamos
e em que vivemos, é politicamente polémico escrever como se houvesse algo de mítico
e inevitável, que nós não podemos desafiar ou alterar. A apresentação de Maitland do

296
Stimpson, 'Zero Degree Deviancy', p. 254.
297
Sara Maitland, Virgin Territory (Londres, Michael Joseph, 1984), p. 106.
298
O trabalho pioneiro de Mary Daly tem sido uma grande influência enquanto uma crítica feminist da teologia Cristã
tradicional; consultar a sua The Church and the Second Sex (1968; Boston, Beacon, 1985); Beyond God the Father:
Towards a Philosophy of Women's Liberation (1973; Boston, Beacon, 1974); Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical
Feminism (1978; Londres, Women's Press, 1979) e Pure Lust: Elemental Feminist Philosophy (Londres, Women's Press,
1984). Para as mulheres ainda na Igreja existe a própria Maitland: A Map of the New Country: Women and Christianity
(Londres, Routledge & Kegan Paul, 1983; o título pode induzir um pouco em erro – o livro é sobre as intervenções
reformistas feministas na igreja ocidental). Sobre as origens Cristãs, recomendo Elizabeth Schiissler Fiorenza, In Memory of
159

Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins (Londres, SCM, 1983) e Letty M. Russell (ed.), Feminist
Interpretation of the Bible (Oxford, Blackwell, 1985). Tudo isto é indicador de uma vasta bibliografia para leituras
adicionais. Do outro lado da barricada, tenho estado bastante interessada por Luisah Teish's Jambalaya: The Natural
Woman's Book of Personal Charms and Practical Rituals (São Francisco, Harper & Row, 1985)-mas estes são apenas
Página

pontos de partida, e a lista é potencialmente interminável. A espiritualidade das mulheres e as críticas dos sistemas religiosos
patriarcais dedicaram uma grande quantidade de energia feminista nos últimos anos.
desejo lésbico está enquadrado num contexto mítico de violência masculina. O romance
começa com a violação de uma freira virgem, que é assim descrita: 'A violação, tal
como todas as violações, não foi um ataque sexual, mas político' (p. 6). A violação ecoa
pelo livro. A separação do sexual e do politico é estranha, pois a violação conta-nos,
penso eu, algo desprezível sobre a sexualidade masculina. Todas as freiras reagem com
lascívia e horror. 'Foi penetrando a carne, a realidade cruel da violação . . . todas as
manhãs elas olhavam-se à mesa do pequeno-almoço – com pouca vontade de contar os
seus sonhos, de expor as suas imagens profanas . . . descobrindo em si mesmas coisas
novas e obscenas' (p. 4). Supostamente a violação desencadeia fantasias descontroláveis
de desejo; a violação eo desejo desabrocham um do outro nas palavras de Maitland.
'Havia o local de passividade da Anna, de negação, o local onde Perséfone foi violada
pelo Deus do Inferno e depois deseja ficar com ele na escuridão durante um longo
período de tempo' (p. 106; o uso do itálico é da minha responsabilidade). O erotismo e o
assassínio têm a mesma raiz. Uma das freiras, a radical Irmã Kate, deixa a sua ordem,
junta-se a um grupo revolucionário e leva um tiro. Anna, sua amiga e alter ego, imagina
o assassínio de Kater: 'O chifre do unicórnio tinha rasgado a sua barriga, procurando o
seu útero, o seu ventre' (p. 152). É a violência peniana que rodeia e desperta o desejo
lésbico.
A violação das mulheres está ligada, no simbolismo cristão dolivro, com a suposta
penetração do Corpo de Cristo. A freira violada tenta perdoar os seus violadores; 'Ela
tem algo em comum com todas as mulheres em qualquer lugar e algo em comum com a
sua amiga e o seu irmão na cruz' (p. 209). Esta é uma ideia peculiar, ofensiva. Jesus de
Nazaré foi brutalmente assassinado, mas não foi violado. E, assim reza a história, ele
escolheu morrer. O peso simbólico do Virgin Territory é suportado pelos discursos
mitológicos da virgindade e heterossexualidade penetrativa sado-masoquista; as lésbicas
são ingredientes necessários nesta lógica como as potenciais Amazonas, as guerreiras
virgens. Mas também ali estão presentes como simples tentações eróticas.
Eu não estou a defender que a experiência lésbica deva ser uma area proibida às
escritoras que não sejam elas próprias lésbicas. Se levarmos esse argumento à sua
conclusão descabida, as mulheres não poderiam escrever sobre homens, ou os brancos
sobre os negros; e de qualquer forma, a maioria das pessoas normalmente já teve algum
tipo de experiência homossexual. Mas nem toda a gente fala com igual autoridade nesta
cultura. Os homens têm determinado os significados disponíveis às mulheres, tal como
os heterossexuais o têm feito para os Gays, e os escritores brancos têm escrito através da
experiência negra. O argumento é, como sempre, sobre a política e o estilo. A questão
não é o que descrevemos ou imaginamos, mas como construimos as nossas
representações. A política e o estilo nunca podem ser completamente separados. A
atitude do escritor perante a homossexualidade será sempre revelada no texto. E isto
quer dizer que a escrita que explora o lesbianismoo de uma forma voyeurística, mesmo
se a própria escritora for lésbica, comprometida em sangue, seio e osso com outras
mulheres, será sempre lida como pornográfica e perniciosa.
No que se refere à pornografia, o contexto é tudo. Existem lésbicas interessadas em
escrever pornografia, isto é, material sexual explícito cujo objetivo é o de excitar,
direcionado para outras lésbicas. Mary Wings, a autora dos thrillers de Emma Victor,
afirmou estar interessada precisamente nisso; e o seu primeiro romance She Came Too
Late foi descrito por uma amiga heterosexual como 'digno de arrepiar o pelo púbico', por
160

isso deve ser considerado um sucesso.299 A linguagem do erotismo lésbico continua a


ser problemática em parte porque as imagens do sexo lésbico têm sido usadas de forma
Página

299
Mary Wings, She Came Too Late (Londres, Women's Press, 1986).
abusiva no seio da pornografia masculina, e em parte porque, simplesmente, não há
palavras. No Shedding, Verena Stefan salienta que o nomear dos nossos corpos é
estranha à nossa experiência dos mesmos. 'O clítoris não tem nada em comum com esta
parte do meu corpo que se chama clítoris. Para encontrar palavras novas, terei de viver
de forma diferente pelo mesmo número de anos em que vivi a creditando no significado
desses termos.'300 O tempo lésbico transforma igualmente a natureza da sexualidade de
Stefan. 'O tempo que levámos a trocar um simples beijo, no passado, eu já teria tido
relações sexuais e estaria completamente vestida e pronta para ir embora' (p. 93). A
expressão da sexualidade lésbica torna-se sempre problemática na análise feministaa. É
muito mais difícil para as mulheres recusar as estruturas e instituições da
heterossexualidade do que para os homens, simplesmente porque existem imperativos
económicos arrepiantes que nos forçam ou ao casamento ou a alianças com homens. A
maioria das lésbicas, portanto, são ou já foram casadas. A desisão de viver como lésbica
é completamente diferente da decisão de usufruir de uma relação erótica com outra
mulher. O feminismooo lésbico articula acima de tudo a análise política que atribui
sentido a essas decisões, e especifica todas as suas implicações.
Os romances sobre a experiência lésbica que reproduzem os clichés do anti-
lesbianismoo, tal como o Virgin Territory de Maitland, lidam normalmente com
interiores psicológicos sobreescritos, carregados da retórica da psicanálise e do sado-
masoquismo. A razão para tal é que se os escritores fossem a lidar com o lesbianismoo
no âmbito de um contexto social e público seriam forçados a confrontar a política sexual
da patriarquia; e o amor lésbico já não pode ser reduzido a uma forma de sexo exótico.
Os seus livros teriam de abordar um grupo de questões edipianas menos místicas e mais
violentamente obscenas sobre a liberdade das mulheres para definir a sua própria
sexualidade e para viver como desejarem.
Um exemplo elegante de um discurso edipiano místico é Letters to Marina [Cartas a
Marina] de Dacia Maraini. Maraini evita cuidadosamente quaisquer dificuldades
políticas na descrição da sexualidade 'desviante' ao manter o desejo da sua narradora
pelo pénis (a expressão é sua, não minha) firmemente evidente perante o leitor em cada
página.301 A amada Marina das cartas nunca aparece em pessoa. Ela é lembrada,
reportada, narrada, descrita. A paixão de Bianca por Marina é portanto rodeada pelas
descrições dos seus casos com homens. De facto, o livro está repleto de todos os tipos
peculiares de sexualidade, um infindável desfiar de desejo casual e incontrolável. Uma
potencial relação amorosa que nunca é descrita, contudo, é o amor igual e mútuo entre
duas mulheres. O amor de Marina apenas faz surgir a comparação do amor por uma mãe
ou uma filha. Nunca há referência ao amor entre irmãs. 'Se estou com ciúmes? Sim,
estou: de como te aconchegas junto a ela, de como a fazes sentir, ela é tua mãe e tua
filha, de como a devoras no fogo do teu ardente amor . . .' (p. 155). A vizinha de Bianca,
Basilia, vem massajar-lhe as costas e contar-lhe as suas bizarras histórias de terror. Os
contos de fadas que emergem na textura da narrativa são oferecidos como repositórios
de sabedoria sexual. Mas a única história de terror de um crime que volta a ser contada
em detalhe é uma torrente de ideologia anti-lésbica que consegue dramatizar todos os
clichés quase num sopro. Esta é a história. Sabina e Aminta são supostamente tia e

300
Verena Stefan, Shedding (1975; Londres, Women's Press, 1979), p. 25.
161

301
Dacia Maraini, Letters to Marina (1981; Edição em Inglês, traduzida do Italiano por Dick Kitto e Elspeth Spottiswood,
Londres, Camden, 1987), p. 25. A paixão pelos homens advém, de acordo com Maraini, do anseio pelos nossos pais e pelos
Página

nossos filhos. 'Em primeiro lugar o meu desgosto amoroso e amor indefeso pelo meu pai, atleta de cabelos louros e de traços
oblíquos que me rejeitou e que eu persegui sobre a terra e sobre o mar em detrimento de mim própria, da minha mãe e das
minhas irmãs. Depois o meu amor desgastante pelos filhos da minha amante.'
sobrinha. Elas são também as bruxas da localidade. A mulher mais velha, Aminta, é
encontrada brutalmente cortada aos bocados. Gradualmente vai se revelando que Sabina
estava a ser perseguida pela mulher mais velha, uma lésbica, e sexualmente abusada por
ela – sendo que a existência de um desejo mútuo entre as duas mulheres seria
impensável. Sabina, obviamente, deseja, na verdade, homens. Ela fica grávida. A
malvada tia lésbica descobre e afasta o homem dela. Ela chacina o bebé ainda no ventre.
A criança é um macho, para deixar claro que o lesbianismoo odeia de tal forma os
homens ao ponto de conduzir ao assassínio. E por todos estes feitos Aminta recebe a
implacável mas justa retaliação às mãos da sua companheira vítima de abuso. Esta
história desagradável confirma todos os clichés que normalmente encontramos na
imaginação do público e na imprensa popular: que as lésbicas são bruxas predatórias,
ludibriando e molestando mulheres mais jovens, assassinando bebés e enfeitiçando os
homens. Os contos anti-Lésbicos terminam sempre com morte e vingança; as lésbicas
ou se matam uma à outra ou suicidam-se. Faz-se justiça. A frase chave que mostra o
jogo é a que se segue: 'Então Sabina contou a história toda ao sargento-como a sua tia a
desejara como a um homem .. .' (p. 16; o uso do italico é da minha responsabilidade). Esta
é a essência da transgressão lésbica: desejar uma mulher é usurpar a prerrogativa de um
homem. O amor lésbico não tem, obviamente, nada a ver com os homens.
Maraini apresenta esta pequena história sem qualquer comentário – exceto para
descrever estatisticamente a amada Marina, três páginas depois, desta forma ' .. . e é
claro o teu corpo gracioso conjugado tão firmemente nessas tuas pernas robustas que
hoje à noite com certeza sobrevoarão os telhados de Roma numa vassoura'; e para
contar outra história de uma bruxa torturada e assassinada pela Igreja. Nesta versão a
mulher é uma vítima heroica das atrocidades masculinas; mas uma vítima, não obstante.
A mensagem é clara: ser uma lésbica ou uma bruxa é estar condenada à partida.
Identidade é sinónimo de destino.
E sim, os homens são monstros; Maraini descreve a galeria selvagem de exploradores,
sádicos,molestadores de crianças e loucos enganadores, que se consideram uma dádiva
de Deus para as mulheres. Maraini deixa claro que, apesar da sua sensatez, Bianca, a
narradora, e todas as mulheres do seu grupo também pensam assim. Todas nós
sentíamo-nos culpadas com a nossa dependência aos cordões umbilicais que nos unem
de umbigo para umbigo aos nossos amantes, aos nossos pais, aos nossos maridos, aos
nossos filhos.' (p. 148). A traição começa no ventre. Para Bianca é o seu desejo
descontrolado, indiscutível, e não irónico de ter um filho. E assim a biologia, esse velho
cavalo de guerra, avança, intacto e triunfante. E assim também continua a Long March
of the Phallus [A Longa Marcha do Falo]. Pois o coup de grâce vem nas páginas finais.
'Esta manhã fui acordada por uma chamada de Giorgia com as últimas novidades. Ela
contou-me que tinha começado um caso com um "aluno de Pádua chamado Gerado". Eu
saltei da cama. Que Gerado? E a Guiomar? E todas as tuas teorias sobre o falo – o
inimigo natural?' (p. 200). Mesmo para a magnífica Marina, o falo mostra-se um bom
amigo. E quanto aos contínuos espancamentos, traições e deserções que as mulheres
têm de suportar? Bem, faz tudo parte do custo de se ser mulher, e os filhos são a sua
recompensa.
Este tipo de livro não é inofensivo. Esta é uma versão do lesbianismoo domesticado e
embalado; tornado seguro para os homens. Existe de facto um grande criticismo
implícito à prática sexual dos homens e à instituição da heterossexualidade; mas
162

também existe uma resignação conhecedora. O criticismo nunca se torna uma crítica, a
irritação nunca se torna fúria. Os homens são perdoados; porque eles são os nossos
Página

maridos, os nossos amantes, os nossos filhos. 'Ele era o outro: diferente de mim. Ele
continha todo o mistério do universo [sic]. Ele não era como o meu reflexo ao espelho.
Ele era o começo de uma viagem pelos caminhos espinhosos do mundo em busca da
maçã dourada' (p. 134). Aqui encontramos o habitual ramalhete de pareceres : a diferença
sexual, como necessariamente erótica e misteriosa, a mentira do androginismo – isto é,
que apenas uma mulher e um homem fazem um todo perfeito, tudo o resto é pervertido
e incompleto – e a estrutura mítica do desejo com o Outro sexual enquanto objetivo da
busca. Maraini escreve lindamente; mas é incapaz de ir para além da hegemonia que
impera na sua pena e no resto do mundo.
Há uma nota de rodapé para tudo isto. Quando o livro de Maraini foi publicado em
Inglês, ela fez uma leitura na Sisterwrite Women's Bookshop em Londres, a 3 de Junho
de 1987. Eu não pude assistir, por isso eu pedi a Florence Hamilton, uma das mulheres
que trabalhava na livraria, para me contar o que se passara. Michèle Roberts presidiu ao
evento, no qual estavam presentes 40 mulheres nessa noite. A ocasião havia sido
indicada como sendo uma leitura seguida de discussão do romance lésbico erótico.
Roberts disse que como nem ela nem a autora eram lésbicas, elas iriam deixar de parte
esse aspeto da discussão. Perguntaram a Maraini diretamente porque ela não se assumia
como lésbica. A sua resposta: se eu identifico como uma mulher escritora, é
suficiente.'O seu Inglês era fluente, portanto não havia hipótese de ela não ter
compreendido a pergunta. Florence disse-me que muitas das mulheres presentes
sentiram-se um tanto enganadas e foram da opinião que se Maraini sentia que o seu
livro era sobre o lesbianismoo, e endereçado a lésbicas, então o mínimo que ela podia
fazer era mostrar um pouco de solidariedade. De facto, eu julgo que Maraini estava a
evitar de forma sensata uma desagradável fonte de problemas: a questão do que
constitui a identidade lésbica. Não há um único sentido para a palavra lésbica; o que não
quer dizer qualquer mulher que tenha tido um caso com outra mulher. Maraini queria
que comprássemos e lêssemos o seu livro. É tudo. Ela não tinha mais nada a dizer. A
escrita fala por si. Eu já indiquei aqui o que a sua escrita me disse. E a Florence vendeu
mais de £60 de livros após a leitura.
Pensar de forma diferente sobre a sexualidade não necessita de uma linha partidária
formulada noutro lugar qualquer. La Bâtarde de Violette Leduc foi publicada muito
antes do advent do movimento para a libertação das mulheres contemporâneo. 302 Leduc
tinha provavelmente lido The Second Sex [O Segundo Sexo] de Beauvoir, mas nos finais
dos anos 40 Simone de Beauvoir era uma espécie de voz a pregar no deserto, e eu
suspeito que Leduc não se teria interessado por uma análise política coerente tanto do
lesbianismoo como da patriarquia, mesmo que tivesse sido possível para ela tornar-se
parte de um movimento de mulheres de massas. La Bâtarde é um imenso livro de
memória sensual; e é sobre nos vermos como algo de especial e extraordinário. Leduc
demonstra que o seu lesbianismoo está enraizado na sua paixão pela sua mãe, o seu
medo da rejeição e a sua necessidade infindável pelo amor de uma mulher. Ela nunca se
deixa levar pela culpa edipiana, apenas pelo desejo sem fim. O que também fica claro
através da sua história é que a orientação sexual e a sua expressão não são
necessariamente uma constante no seio da vida individual; nem um facto biológico
inalterável, tal como Radclyffe Hall sugere na sua análise da inversão congénita. A
nossa sexualidade é algo que nós inventamos, ou re-inventamos, dia após dia, de acordo
com as nossas circunstâncias e as pressões políticas e sexuais de que somos alvo. Em
suma, as lésbicas fazem-se, não nascem assim. Para Leduc é a sua ilegitimidade mais do
que o lesbianismo que é a marca de Caim, o sinal da sua exclusão, marginalidade e
163

diferença. 'Um bastardo tem de mentir, um bastardo é o fruto da evasão e das mentiras,
Página

302
Violette Leduc, La Bâtarde (1964; Londres, Virago, 1985).
um bastardo é uma transgressão de todas as regras' (p. 56). Os seus primeiros lares
foram casas de mulheres. Ela adorava a sua mãe e avó, e a sua ligação é sempre
expressa na linguagem explícita dos amantes. 'Eu choro com a paixão de uma mulher
arrancada dos braços da sua amante. Fidéline, minha avó, tu serás sempre a minha
prometida na sua cama de mogno com os seus pulmões doentes' (p. 35). A sua mãe fora
a criada seduzida pelo filho da casa. É compreensível que ela dê má publicidade aos
homens.
Todas as manhãs, ela fazia-me uma oferta terrível: a oferta da suspeição e da desconfiança,
todos os homens eram porcos, os homens não têm coração. Ela olhava-me com tal intensidade
ao proferir semelhantes afirmações que me fazia pensar se eu própria não seria um homem.
Não havia um único entre eles que pudesse redimir a raça no seu todo. Aproveitarem-se de ti
era o seu objetivo. Eu tinha que memorizar isso e nunca me esquecer. Porcos. Todos uns
porcos, (pp. 39-40)

Leduc nunca se apresenta como lésbica no sentido de uma identidade sexual que é
também uma categoria assinalada. A sua primeira amante é uma das suas colegas de
escola, e o seu desejo mútuo não é ensinado, não problemático, celebrado. A descrição
de Leduc do ato lésbico de fazer amor é um excerto de escrita erotica extraordinário, o
que é eficiente porque ela mistura o lirismo da metáfora pura com as palavras práticas
sussurradas que as raparigas partilham. A linguagem de Leduc, portanto, nunca é clínica
ou analítica; é puramente sensual, descritiva. Ela transmite o infinito erotismo que é
possível entre as mulheres, o dilúvio de sensações acumuladas. E no entanto ela deixa
perfeitamente claro, mesmo através da torrente de metáforas, o que está realmente a
acontecer. “Os dedos de Isabelle abriram-se, fecharam-se novamente como o botão de
uma margarida e trouxe os meus seios através de névoas rosa do seu limbo. Eu estava a
despertar para a primavera com um balbúcio de lilazes por baixo da minha pele.
"Mais,"disse eu”” (p. 86). Leduc apresenta-se como uma gárgula, uma figura grotesca
com um nariz enorme, uma trapalhada, um fracasso. Ela muito raramente oferece uma
razão para aquilo que ela é ou para aquilo que ela faz. Ela insiste no seu próprio vácuo
intelectual, na sua incapacidade para ler filosofia, para compreender a 'causa adequada'
O que ela oferece em vez disso são sensações, perceções e texturas. 'Rápido, leitor,
rápido, para que eu te possa dar mais das coisas velhas e familiares: o oceano suave do
capo aberto, o feno acabado de ceifar, as ondas em repouso com as grandes distências
entre elas' (p. 466). A memória, imagem, sensação lembrada e recriada é a coisa em si
mesma, sem causa. Aquilo que é percecionado e sentido é aquilo que é.
Este método de escrita é opositora[inimical] da análise auto-crítica. Leduc é uma mulher
obsecada. Cada uma das pessoas, mulher ou homem, com quem ela se envolve recebe
as mesmas paixões e perseguições desesperadas. Quando a sua amante de nove anos,
Hermine, finalmente desiste e foge, a sua mãe diz-lhe de forma implacável, 'Eu sabia
que isso ia acontecer já há algum tempo. Ela estava farta' (p. 244). Quando Leduc chega
a dar razões para o seu comportamento, elas são extraordinárias, bizarras. Ela casa com
Gabriel pelas razões convencionais; o medo de ser uma solteirona, uma lésbica feia. E
no entanto ela continua a usar o seu nome de solteira, continua a fazer de conta que é
uma mulher solteira. A sua sexualidade, sobre a qual ela é inflexivelmente explícita,
aparentemente nunca a perturba. Ela é obcecada pela homossexualidade. A sua ligação
com Maurice Sachs representa um desejo que é mais frustrado do que lascivo. Ela deseja
ser um rapaz para que ele a deseje. Isto traduz-se no seu desejo de que o marido a
164

sodomize. 'Então pedi ao Gabriel para fazer amor comigo como um homem faz amor
com outro homem . . . Mas a verdade, pensando agora nisso trinta anos depois, é mais
Página

profunda. A verdade profunda era o meu desejo de ter dois homossexuais na minha
cama' (p. 289).
A mãe de Leduc compreende perfeitamente as obsessões auto-dramatizantes da sua
filha e nunca a rejeita; o que talvez explique porque Leduc vê o seu amor por mulheres
como um abrigo. 'Eu tinha ido ao encontro das mulheres como um camponês solitário,
que isolada numa noite de nevão, vai bater a um curral' (p. 276). Leduc sente-se
perpetuamente desconfortável com o facto de ser mulher; mas não é possível julgar se o
seu lesbianismo é a causa ou o efeito desse desconforto. Sobre Gabriel ela escreve: 'Eu
era o seu homem, ele era a minha mulher na nossa amizade, no nosso braço de ferro. Ele
voltou a aparecer. Mas vinha ver-nos cada vez menos frequentemente. Hermine estava a
transformar-me numa mulher, e isso infurecia-o' (p. 188) Hermine e a sua mãe estão a
tentar convencê-la a usar roupas mais femininas, a disfarçá-la por detrás da máscara
convencional do género. Num extraordinário episódio, Leduc rouba roupa interior de
mulher, maquilhagem e joalharia de uma grande loja em Paris. 'Eu estava a fazer a
colheita de cuecas ... Eu também estava a roubar para tirar às outras mulheres as coisas
que as faziam ser femininas' (p. 179). O comportamento aparentemente perverso de
Leduc é – e ela está consciente disso - uma complicada recusa do seu género. Ela aborta
do filho do seu marido aos cinco meses, força Hermine a fazer amor num bordel perante
um homem por dinheiro, e alimenta a sua obsessão pela Sachs até ao ponto de se tornar
'uma insanidade luxuosa'. Sensações, e a liberdade para satisfazer as suas obsessões são
tudo o que lhe importa.
Finalmente, para Leduc, o sentido do próprio poder e sucesso não advém da sua carreira
enquanto escritora – ela conduz-nos até ao fim da guerra na La Bâtarde, antes da
publicação de L'Asphyxie – mas do seu sucesso como especulador durante a guerra.
'Olhei-me ao espelho, e vi o rosto de uma mulher que começava a ser bem-sucedida' (p.
428). Ela geria um Mercado negro de comida das aldeias da Normandia. Esta parte da
sua narrativa é, estranhamente, tão sensual como as passagens eróticas explícitas.
Mesmo a comida é animada. 'Os meus olhos arregalaram-se quando ele me ofereceu
uma longa enfiada de salchichas, fatias grossas de paté de porco,rolos de black pudding,
fatias grossas de banha. Os patés dormitavam por baixo dos seus véus de gordura' (p.
430). Mas por baixo da vida perigosa e glamorosa, dos amantes (masculinos),as
paixões, do contrabando que a enriquece, há um mal que se revela lentamente: o
transporte de Judeus. Uma família judia no seu bloco de apartamentos em Paris vai
desaparecendo um a um; ela encontra o comentário de Sachs na Bíblia. 'Eu folheei o
Velho Testamento e descobri que Maurice tinha sublinhado todas as passagens que se
poderiam relacionar com a deportação dos Judeus e a sua exterminação' (p. 412). Mas
Leduc não faz mais comentários; ela observa, ela aceita. De facto, as confusões forçada
de Leduc e a recusa deliberada de nunca ficar satisfeita ('Eu vim a este mundo e prometi
alimentar uma paixão pelo impossível . . . ' (p. 468)) são a fonte e o sujeito da sua
escrita. Ela deseja possuir tudo; e a escrita dá-lhe poder total sobre tudo o que ela
imagina. 'Eu podia ter tudo o que eu quisesse, bastava-me imaginar' (p. 316). O facto de
os seus amantes serem tanto homens como mulheres, e do seu entendimento da
sexualidade ser mais individualista do que política, significa que cada encontro tem
lugar num vazio moral. Tal como Simone de Beauvoir salienta no seu prefácio da La
Bâtarde, 'Onde quer que ela tenha a oportunidade de os conhecer, ela interessa-se
sempre por aqueles que reinventaram a sexualidade para seu póprio proveito.'303 A pena
de Leduc não serve nenhuma causa senão a da autora. A sua escrita, a sua sensualidade,
o seu desejo é um fim em si mesmo. Ela é uma radical, livre de convenções e tabus; mas
165

ela é também um anjo amoral da prosa de qualidade. Ela regista, mas nunca julga.
Página

303
Simone de Beauvoir, prefácio de La Bâtarde, p. xxi.
Leduc pode ser uma radical sexual, mas ela não é certamente uma feministaa. Todavia o
seu trabalho tem influenciado a escrita das feministaas e das feministaas lésbicas nos
nossos dias. La Bâtarde foi novamente publicada nos anos 80 e tem sido muito lida; Jo
Jones dedicou o seu primeiro romance Come Come a Violette Leduc.304 E o feminismoo
lésbico não estabelece certamente os termos para todo o tipo de escrita lésbica, mesmo
no seio do movimento contemporâneo para a libertação das mulheres. Um romance
narrativo pessoal, o que de facto ganhou prémios patriarcais apesar do seu tema, é a
parábola de Jeanette Winterson As Laranjas não São o Único Fruto [Oranges Are Not the
305
Only Fruit ] Este romance, apresentado como uma autobiografia, conta a história da
Mighty Struggle entre as Paixões Contra Natura e O Medo do Senhor num turbulhão de
Pecados Capitais Cómicos. Por um lado este método é perfeitamente adequado, dado
que os evangélicos pentecostais tendem a viver num mundo que é enfaticamente
punctuated; mas por outro lado, é uma ironia fácil contra um alvo fácil. Os detentores de
mentes literais parecem sempre ridículos para aqueles que têm um firme alcance crítico
da metáfora. A 'Jeanette' de Winterson sempre se sentiu Escolhida e Diferente. Ser
lésbica torna-se simplesmente noutra forma de ser Escolhida. Ela é escolhida pelos
demónios satânicos, carregando laranjas. Este é um instrumento literal, da voz interior
da auto-preservação. Assim, a luta contra Família de Deus é apresentada nos seus
termos, em vez de ser apresentada nos termos da consciência de uma feministaa lésbica.
A história representa uma reviravolta da fé evangélica negra e branca para o mundo
pardo da relatividade e da incerteza.
Não há nada de problemático na cabeça de “Jeanette” em relação ao facto de ser uma
lésbica ou em relação à sexualidade lésbica. Um dia vemos uma mulher, apaixonamo-
nos por ela e aqui estamos. É importante para a estrutura da sua parábola que a visão
patológica do lesbianismo que involve sofrimento, desgosto, vergonha e medo seja
claramente mostrada nas mentes das Outras Pessoas. O único problema deste
pressuposto é que na maioria das vezes isto não acontece; também está nas nossas
mentes. Mas esta é uma narrativa que funciona em termos de opostos, os termos
impostos pela sua heroína e o sujeito real, a mãe de 'Jeanette'. 'Ela nunca ouviu falar de
sentimentos contraditórios. Havia amigos e havia inimigos' (p. 3). Winterson comenta a
sua própria narrativa ao incluir uma sequência de metáforas de contos de fada,
adaptações de mitos. Ela reescreve as narrativas dos cavaleiros do Graal e as histórias
populares de feiticeiras e princesas. Eu não achei estas excursões particularmente
convincentes ou úteis, simplesmente porque não eram necessárias. Fica claro que a
narrativa central funciona eficazmente como um conto de fadas, a história de como a
princesa encantada escapa da bruxa malvada. É claro que a bruxa é a mãe de “Jeanette”:
a mulher que não só é perniciosa, mas também impiedosamente cómica, odiada e
amada.
O que é excecionalmente bem conseguido no livro é a análise do que constitui a traição;
e é isso que impede o romance de ser presunçoso ou complacente. Há diferentes tipos de
infidelidade, mas a traição é traição onde quer que a encontremos. O que quero dizer
com traição é prometer ficar do nosso lado e depois estar ao lado de outra pessoa
qualquer' (p. 171). A mãe de 'Jeanette' trai a sua confiança de formas imperdoáveis,
entrega-a ao Pastor e aos justos da sua igreja, queima todos os esboços escritos da sua
vida amorosa. Tudo isto está emocionalmente muito bem escrito; e o mundo está repleto
166

304
Jo Jones, Come Come (Londres, Sheba, 1983).
305
Página

Jeanette Winterson, Oranges Are Not the Only Fruit (Londres, Pandora, 1985). A ascensão de Miss Winterson tem sido
agradavelmente meteórica. No Oranges ela deixa bem claro que ela era uma Estrela desde o início. O livro foi agora
transformado num filme em três partes para a televisão.
de mulheres cujas vidas forma destruídas por outra pessoa que lhes disse quer era para o
seu próprio bem.
O outro aspeto do livro As Laranjas não São o Único Fruto [Oranges Are Not the Only
Fruit] que é verdadeiramente fascinante é a forma como a fé absolutista de 'Jeanette'
contribui tão claramente para a sua formação enquanto lésbica. As igrejas protestantes
radicais em que existe uma grande ênfase no Espírito são muitas vezes dominadas por
mulheres. Pois o Espírito de Deus, se abordado corretamente, não respeita a diferença
sexual e poderá iluminar-se sobre quem ela desejar. Isto torna-se perfeitamente evidente
quando a mãe de 'Jeanette' parte para Wigan. 'O meu pai estava a trabalhar na altura, por
isso ela deixou-lhe a morada e um recado que dizia: "Eu estou ocupada com o Senhor
em Wigan." Ela só voltou ao fim de três semanas' (p. 56). As mulheres operam sob as
instruções da Autoridade Suprema. O Senhor pede-lhes para pregar, viajar, dizer o que
pensam, comportar-se de modo extraordinário. 'As mulhers da nossa igreja eram fortes e
organizadas. Se quiserem falar em termos de poder, eu tinha o suficiente para manter
Mussolini satisfeito' (p. 124).A Paixão Contra Natura de 'Jeanette' por outras mulheres
é usada para reafirmar o poder masculino na igreja.

O verdadeiro problema, ao que parecia, era ir contra os ensinamentos de S. Paulo, e permitir


que as mulheres tivessem poder na igreja. O nosso ramo da igreja nunca tinha pensado sobre
isso, nós sempre tínhamos tido mulheres fortes, e as mulheres organizavam tudo . . . Ela
acabou por dizer que ao assumir o mundo de um homem de outras formas, eu tinha ignorado a
lei de Deus e tinha tentado fazê-lo sexualmente ... (p. 133)

E é assim que o lesbianismoo é muitas vezes julgado, especialmente entre os devotos


que têm S. Paulo a defendê-los. O lesbianismo não é natural porque as mulheres não só
foram criadas para ser submissas ao homem, como também reservadas sexualmente
para os homens. É o que diz a Bíblia.
O argumento ficcional de Winterson equipara o lesbianismo à liberdade intelectual e
sexual. A combinação da heterossexualidade e da maternidade é vista como uma
espécie de morte cerebral. Este é o destino da primeira amante de “Jeanette”. 'Se já
antes ela era serena ao ponto de ser bovina, ela era agora quase um vegetal' (p. 171). So
much for that. Mas aquilo de que 'Jeanette' realmente sente a falta, e Ele parece fazer
parte da embalagem heterossexual, é de Deus. Ele era o Dilecto Amigo cujo amor é
mais forte do que a morte e que nunca trai os Seus. Ela também sente a falta da imensa
segurança da certeza, que a poupava da dor do pensamento. E ela nunca se consegue
libertar da sua mãe dinâmica e lunática cujo sinal de chamada CB é 'Kindly Light'. O
texto deste hino não é relevante.

Guia-me Gentil Luz, por entre o brilho envolvente,


Guia-me sempre em frente.
A noite é de breu e estou longe do lar, Guia-me sempre em frente. 306

A fuga de 'Jeanette' é também uma Queda de um paraíso de solidariedade que a teria


apoiado, caso ela tivesse aceitado as suas condições. Mas ninguém em seu perfeito juízo
o teria feito.
Um dos primeiros textos feministaas lésbicos, e outro romance narrativo pessoal que
resultou do movimento de libertação das mulhers nos Estados Unidos, foi Rubyfruit
167

Jungle, a autobiografia ficcional de Rita Mae Brown de Molly Bolt que tem sido um
Página

306
N.T. – No original “Lead Kindly Light, amid the encircling gloom, / Lead Thou me on./ The night is dark and I am far
from home,/ Lead Thou me on.”
best-seller em ambos os lados do Atlântico.307 Trata-se de uma aventura pituresca
sulista que, tal como La Bâtarde, conta a história de uma bastarda e uma lésbica. Mas a
comparação acaba aqui. Leduc cantava os seus fracassos; Molly Bolt consegue fazer do
facto de ser gay algo digno de um feito americano. Rita Mae Brown rotula a sua heroína
de 'diferente'; uma filha que procura aprovação e sucesso, mas que guarda ferozmente o
seu sentido de identidade. 'Eu não me importo que gostam de mim ou não. Toda a gente
é estúpida, é o que eu penso. Eu importo-me em gostar de mim, isso é o que realmente
me interessa' (p. 36). Esta é a versão moderna do enfático credo de Jane Eyre, 'Eu gosto
de mim.' E tal como Jane Eyre, Rubyfruit Jungle é uma parábola ao patinho feio que se
transforma num cisne da rapariga que atinge o sucesso pelos seus próprios esforços. A
opção de casar com o chefe é, contudo, impossível para a Molly; por isso a narrativa
deixa o fim em aberto. Ela ainda não tinha sucedido no mundo do homem; mas estava
determinada a fazê-lo: 'Por isso, atenção Mundo que eu vou ser a cinquentona mais
escaldante deste lado do Mississippi' (p. 246). Mas a moral da sua história é: eu cheguei
lá à minha maneira – com uma pequena ajuda dos meus amigos. 'Eu queria seguir o meu
caminho. Eu penso que foi o que eu sempre quis, seguir o meu caminho e talvez
encontrar amor aqui e ali' (p. 88). Esta é a sensibilidade Gay ao ataque, assumindo os
clichés da boa vida americana – a família, as rainhas do baile, as repúblicas
universitárias, a psicoterapia, o mundo de imagens dos filmes – e olhando para eles da
perspetiva que é mais agressiva e radicalmente diferente do que excluída.
Rita Mae Brown oferece uma análise cómica e descomprometida da heterossexualidade
da perspetiva lésbica. Não são apenas as lésbicas que transgridem as delimitações
burguesas. O Sr Beers e a Srª Silver, 'o nosso estimado director ea nossa respeitada
reitora das mulheres', são apanhados in flagrante delicto num semáforo. Aqui, o poder da
censura trabalha a favor das raparigas do Liceu, não somos nós que temos de nos
preocupar em enfrentá-los, são eles que tem de se preocupar em nos enfrentar' (p. 83). A
narrativa de Rita Mae Brown demonstra as formas em que a heterossexualidade mantém
as suas superfícies normativas, disfarçando a hipocrisia subjacente. As mecânicas do
sexo heterossexual são também discutidas extensivamente e despojadas do mistério e
das mentiras do romance.
Por cima de ovos que pareciam ter sido rejeitados pela galinha, ela começou, é sempre
assim tão sujo? Sabes, quando me levantei e aquela coisa começou a escorrer pela
minha perna abaixo. O Larry disse que era esperma. Era tão nojento que eu quase
vomitei . . . Arg. E outra coisa – o que é suposto eu fazer enquanto aquilo dura, ficar ali
deitada? Quer dizer, o que se deve mesmo fazer? Ali estão eles em cima de ti a suar e a
grunhir e não é de todo como eu pensava que seria, (p. 100)
Violette Leduc tentou fazer amor com o seu marido Gabriel tal como as suas amantes
tinham feito amor com ela. Ele continuou completamente desinteressado. A Molly Bolt
de Rita Mae Brown afirma simplesmente que enquanto parceiras eróticas, as mulheres
são imbatíveis. Este é o mordaz orgulho Lésbico da libertação gay após Stonewall.
“Aposto que já dormi com mais homens do que tu, e todos têm o mesmo repertório.
Alguns são melhores a fazê-lo do que outros mas torna-se aborrecido a partir do
momento em que sabes como é que as mulheres fazem” (p. 198). Uma das amantes de
Molly Bolt, Polina Bellantoni, autora de um tratado académico satiricamente intitulado
de O Espírito Criativo da Idade Média [The Creative Spirit of the Middle Ages],
demonstra ser, numa primeira leitura, o 'clássico intolerante heterossexual', que para
168

além de todos os preconceitos “ … tu pareces igual aos outros. . . não sejas tola; tu não
podes ser lésbica” (p. 194) também possui todo o voyeurismo e curiosidade do
Página

307
Rita Mae Brown, Rubyfruit Jungle (1973; Nova Iorque, Bantam, 1977; reeditado nove vezes até 1983).
hipócrita. Mesmo a diretora da escola de Leduc queria primeiro ler as suas cartas e
depois expulsá-la. Mas Polina acaba por acalentar as mesmas fantasias que Leduc. Ela
quer imaginar dois homens homossexuais na sua cama e só consegue atingir um
orgasmo se a sua parceira lhe disser que está a tocar na sua piça grande e saborosa. As
experiências de Molly com o amante masculino de Polina, levadas a cabo com espírito
de pesquisa, revelam que ele só consegue atingir o orgasmo quando finge ser uma
mulher. A mulher e o homem tem de imaginar que têm o mesmo sexo que o seu
parceiro para experimentar desejo verdadeiro. São os heterossexuais que são peculiares,
e o desejo é portanto Gay. A hostilidade sarcástica de Rita Mae Brown para com os
heterossexuais corresponde a uma igual irreverência para com a convenção dos bares
para lésbicas machões/femininas e as encenações das fufas heterossexuais, uma
expressão que sempre considerei uma interessante contradição de termos. A sua
perspetiva é a do feminismooo lésbico. 'Para quê ser uma lésbica se a mulher tiver de
ser a imitação de um homem?' (p. 147). Nada permanence sagrado.
A perspetiva anti-racista de Rubyfruit Jungle é importante e explícita. As primeiras duas
pessoas que ajudaram a Molly a erguer-se são negras e Gay. Elas são também
eloquentes, urbanas e politicamente conscientes. A sua solidariedade de raiz é para com
outros homossexuais. Calvin, o prostituto negro de rua, ouve as histórias de terror de
Molly e reflete, 'Parece que ninguém quer os seus bichas, nem os brancos, nem os
negros. Eu aposto que nem os chineses querem os seus bichas' (p. 151). E eu aposto que
ele tem razão. O raio dos bichas’ (p. 128) também não recebem uma boa publicidade. É
característico de Molly Bolt ela nunca fingir ser uma coisa que ela não é. Todas as
precauções sensatas dão normalmente lugar a um diálogo franco em cada um dos seus
confrontos. E é esta honestidade escaldante que expõe as instituições coercivas da
heterossexualidade pelo que elas realmente são. A experiência psiquiátrica é deveras
reveladora. Molly é entregue aos médicos para ser curada do seu lesbianismoo e da sua
agressão. Ela consegue fugir porque cumpre as regras do seu jogo. 'Também é muito
importante inventar sonhos. Eles adoram sonhos. Eu costumava ficar acordada à noite a
pensar nos sonhos que ia contar. Era esgotante' (p. 129).
Molly Bolt sobrevive graças a um misto de coragem e astúcia. A narrativa transporta-
nos para o momento em que a libertação das mulheres e a libertação Gay começava a
transformar a consciência política radical dos finais dos anos 60 e início dos anos 70. A
reviravolta na história é a sua reconciliação com a mulher que a adotou: Carrie, uma
racista convicta e homófoba. Molly presta um tributo num filme à sua mãe adotiva.
Apesar do sentimentalismo pouco plausível do dá e tira e do caudal de amor improvável
que Molly sente pela mulher que sempre a tratou com nada mais do que cruel
brutalidade, a mensagem política é perfeitamente explícita. A história de infelicidade e
traição de Carrie é equivalente à história de Molly. As mulheres têm mais em comum
uma com a outra do que com qualquer homem. E todas as mulheres podiam ser lésbicas.
Molly Bolt é a vigarista, a louca; e também aí ela é, reconhecidamente, o pícaro, a
desordeira que sobrevive às suas aventuras. Ela é a mulher que não pode ser comprada.
Num mundo em que todos os outros têm um preço e se vendem, Molly mantém-se
ferozmente 'orgulhosa mas pobre'. E é esta insistência selvagem em fazer as coisas à sua
maneira que ela herdou de Carrie.
A atitude conflituosa de Rita Mae Brown - 'Eu não quero saber o que tu fazes...' (p. 67)
– indica que ela pressupõe estar a escrever para leitores Gay e heterossexuais. Mas é
169

uma característica da ficção feministaa lésbica escrita nos finais dos anos 70 e 80, em
que os escritores pressupõem a existência de uma leitora lésbica. Rubyfruit Jungle é
Página

dirigido ao mundo inteiro, uma reinvindicação desafiante de ser uma verdadeira bicha
americana; agora o mundo heterossexual lê por cima do ombro lésbico. Leduc escreveu
de forma extravagante para si própria e para a sua amada, solitária, e desconhecida
leitora. As novas escritoras feministaas lésbicas, consciente ou inconscientemente,
servem uma causa. Enquanto que Leduc e as suas amantes estão extremamente isoladas,
as escritoras feministaas lésbicas da atualidade apresentam a comunidade de mulheres,
tanto como o sujeito descrito como o sujeito a que se dirige. Mas as velhas questões, as
velhas inseguranças, os velhos medos ainda assombram a escrita lésbica, mesmo a
escrita produzida no seio do movimento feministaa. E o medo central é este: o que irá
acontecer a todas nós se o movimento desaparece, é suprimido, menosprezado, negado?
O que irá acontecer quando os bares, os clubes, as livrarias e as editoras desaparecerem
ou deixarem de existir? O que nos irá acontecer quando envelhecermos?
O testamento de Barbara Deming Humming Under My Feet: A Book of Travail é dedicado a
'todas as minhas irmãs lésbicas que lutam tal como eu lutei neste livro – com a diferença
de que lutamos agora menos isoladas – para acreditar no nosso direito em oferecer este
tipo de amor. Um "direito"estranho que tenhamos de lutar para reinvindicar – o direito
de ser aquilo que somos.'308 O deserto que influencia e assombra a escrita lésbica
recente são os anos imediatamente após a guerra, os anos 50; o período da Família
Polvo, dos manuais de puericultura, da culinária perfeita, dos lares perfeitos e da polida
prosperidade burguesa. Estes anos entorpecidos, repletos de propaganda a favor do
consumismo, do sexismo e da heterossexualidade, são o background da narrativa
autobiográfica de Deming. No início dos anos 50, Deming, que era uma Americana,
viajou pela Europa pela primeira vez e apaixonou-se por uma pintora, outra Americana,
que vivia em Itália. Deming reconheceu a importância dessa experiência e começou a
escrever o seu livro em 1952. Foi dissuadida de continuar por amigos que 'sentiam
vergonha por mim' (p. vii). Passaram-se vinte anos até que voltei a pegar nesse material;
o livro foi finalmente terminado em 1984, pouco antes da morte de Deming. A sua
companheira, Jane Gapen, diz o seguinte sobre A Humming Under My Feet, 'Uma vez que
a escrita foi adiada por vinte anos, podemos usufruir da vantagem da perspetiva
posterior de Deming sobre este material – mostrando-nos uma jovem mulher no
processo da sua radicalização, antes desta conhecer a teoria ... um épico feminino para a
nossa era de consciência.'309
A crise latente por detrás da narrativa de Barbara Deming é a perda da sua amante Nell,
que casa com o seu irmão. Esta foi uma solução profundamente desonesta e típica do
século dezanove. A mulher Emily Dickinson tinha amado e também casado com o seu
irmão, Austen Dickinson. Mas esta desonestidade era também um produto da época.
Deming é perturbadoramente sincera acerca da forma como a sua consciência foi
influenciada pelas ideologias dos anos 50. 'Nessa altura, a ideia de casamento ainda me
inspirava uma espécie de fascínio. Ele poderia oferecer-lhe casamento; eu não –eu só
lho poderia oferecer através dele, o meu irmão gémeo. Noutra parte da minha alma é
claro que eu sentia que tudo tinha corrido mal' (p. 16; o uso do itálico é de Deming).
Nos desperdícios sexuais dos anos 50 e nas narrativas lésbicas que descrevem esses
anos, a heterossexualidade é o contexto no seio do qual e contra o qual as lésbicas
tentam encontrar o seu sentido. A amada de Deming, Carlotta, produz a razão mais
peculiar para se recusar a viver com ela e para ser sua amante, é demasiado fácil. Eu
penso que tem de haver mais luta entre duas pessoas que vivem juntas' (p. 142). Depois
ela insiste para que Deming a leve para a cama, mas é ela que toma a iniciativa da
170

308
Barbara Deming, A Humming Under My Feet: A Book of Travail (Londres, Women's Press, 1985), p. viii.
Página

309
Jane Gapen, do prefácio introdutório à secção 'A Book of Travail - and of a Humming under My Feet', in Margaret
Cruikshank (ed.), New Lesbian Writing: An Anthology (São Francisco, Grey Fox Press, 1984), p. 161.
sedução, Eu julgo que foste tu que me beijaste. Eu deito-me fascinada por ti ... no final
da noite voltas à minha cama. Para dizer adeus. Eu não sabia como dizê-lo. Mas tu
sabias. As tuas mãos falaram comigo. Para minha confusão elas pareciam não estar a
dizer adeus mas a descobrir-me e a cumprimentar-me' (pp. 143, 153). Carlotta diz
mentiras, e o seu corpo diz a verdade. O erotismo, no caso particular desta narrativa,
prova a ser a forma mais fácil para expressar a ligação lésbica; a dificuldade reside em
ultrapassar os obstáculos colocados pelo mundo. Carlotta, tal como qualquer outra
mulher a viver no seio de uma patriarquia, sabe disso; e casa imediatamente com o
primeiro homem que lhe aparece. A sua desonestidade é-lhe imposta. É Deming quem
tem a coragem para pensar – e viver – de forma diferente. No entanto, o clímax, e a
resolução do seu book of travail, não é política mas religiosa, ou, num sentido mais
profundo, espiritual. Passeando por um campo na Grécia, Deming encontra um
fragmento de mármore de um corpo de mulher.

Teria eu a coragem para ser o eu sexual que eu era? Para desempenhar verdadeiramente esse
papel para o qual parece não haver uma peça teatral escrita?... Era um fragmento de uma
estátua caída – o tronco de uma mulher .. . Os seios de pedra brilhavam entre as ervas atiradas.
'Sim eu sou, Eu sou este eu sexual,' eu disse. E ergui-me, tremendo, e fui até lá e ajoelhei-me
colocando as mãos contra os anciãos seios brilhantes. E disse: eu sou este eu que eu sou . . . E
eu não terei vergonha.' Os seios de pedra estavam frios sob as minhas mãos, como a frescura da
água que encontramos numa nascente, vivificante. Eu senti o espírito da pedra entrar nas
minhas mãos com esta frescura e entrar na minha alma. (p. 221)

Este momento existencial marca a sua decisão para ser autora de si própria. EU SOU O
QUE SOU é, obviamente, a declaração de Deus da sarça ardente. Deming resusa as
definições impostas pelas religiões patriarcais, nas quais a vergonha é o destinocomum
para as mulheres. Os anciãos seios brilhantes da deusa enraizam-na, por isso ela acredita
num passado mais antigo. 'Tinha havido um tempo em que eu tinha sido mais livre para
ser o que sou . . . e senti alegria por aqui no momento presente poder ser possível
inventar um mundo diferente daquele em que vivemos' (p. 207). Eu devo confessar que
me mantenho cética quanto a um já ido passado matriarchal no qual as lésbicas eram
sacerdotisas veneradas Eleusis; mas a Era do Poder das Mulheres, apesar de mítico, tem
sido uma fonte assombrosa de inspiração para muitas mulheres feministaas lésbicas. E a
necessidade de inventar o nosso próprio mundo, a peça teatral não escrita, é claramente
crítica e necessária. Sheila Shulman, como parte da sua contribuição para a afirmação
coletiva no final de Lave Your Enemy? The Debate between Heterosexual Feminismoo and
Political Lesbianismo, frisava exatamente esse aspeto. Ela indica igualmente a dificuldade
na tentiva de viver sem contexto ou história.

Pareceu-me que eu estava a tentar viver num mundo que ainda não existia, que eu teria de o criar, do nada e dos
bocados enterrados e silencioso do passado. Eu não o poderia fazer sozinha mas apenas com outras mulheres
que se tivessem lançado do mesmo precipício com nada mais do que o seu eu despido e ainda por conhecer.
Para empreender este esforço, os homens, à exceção de se apresentarem como um obstáculo, foram e são
irrelevantes.310

Uma grande parte da Odisseia Europeia de Deming é passda a combater homens


incrédulos, que simplesmente eram incapazes de compreender que ela preferia estar
sozinha. Mas a viagem mais difícil e mais solitária é a viagem dentro de si mesma. Que
ela possa vir a assumer esse eu com orgulho é a sua vitória. O seu book of travail tem
171

um final feliz. Mas, num modo geral, os finais felizes lésbicos não eram possíveis nos
Página

310
Sheila Shulman, in Love Your Enemy: The Debate between Heterosexual Feminism
and Political Lesbianism (Londres, Onlywomen, 1981), p. 65.
anos 50. Uma exceção Americana, reeditada e calorosamente recebida nos anos 80, foi
The Price of Salt de Claire Morgan. Morgan, no seu posfácio a esta nova edição, conta-
nos que após a primeira edição do livro de bolso em 1953, ela recebeu milhares de
cartas de lésbicas e gays a agradecer por haver alguém que se atrevera a contar uma
história 'sobre duas pessoas do mesmo sexo apaixonadas, que chegavam ao final do
livro vivas e com esperança de um futuro feliz'. 311 Mas The Price of Salt é, de algumas
formas uma história dolorosa. Uma das amantes, Carol, tinha sido casada. A sua
tentative de fugir com a sua jovem amanter, Therese, para umas ferias na América
Ocidental, torna-se numa viagem de pesadelo quando elas percebem que são
perseguidas pelos detectives contratados pelo seu marido, ansiosos por provar que Carol
é uma pervertida e depravada; uma mulher que devia claramente perder a custódia da
sua filha. As suas noites de amor em quartos sob escuta, as cenas de chantagem, as
separações horríveis e os processos de tribunal são todos reveladores da realidade
torturada da existência lésbica contra aquilo que agora parece ser um background
bizarro de bares, lenços e malas de mão a condizer. Therese tinha um namorado, e é-lhe
oferecido todos os clichés ou fanatismo anti-Lésbico para regurgitar. ' "Esta relação que
eu estou certo de que se tornou sórdida e patológica .. . mete-me nojo. Eu sei que não
vai durar, como eu sempre disse. . . É desenraizada e infantil, é como estar a viver de
rebentos de lótus ou de um doce nauseante em vez de pão e da carne da vida" ' (p. 239).
Isto representa a visão convencional – e presumivelmente, nos anos 50, amplamente
universal – que amar uma mulher é estar desfasada da realidade e na verdade prejudicial
para o estômago. A heterossexualidade é o pão e a carne, a verdadeira comida, comida
de adultos; o lesbianismoo é uma forma infantil de gratificação, com doces. O
namorado pensa que a mulher que o deixa podia ter sido 'salva' e que a sua paixão é
uma condição médica, uma doença. Chega mesmo a haver uma sugestão psicanalítica
de bloqueio de desenvolvimento no termo 'infantil'. Therese é ainda, ele supõe, uma
perversa polimórfica. Mas as amantes de Morgan escolhem-se uma à outra, em vez de
escolherem maridos, lares, dinheiro, filhos e a prisão heterossexual. Se elas se vão
manter desenraizadas ou não, dependerá delas.
O primeiro romance de Anna Wilson, Cactus, abarca o período entre os anos 50 e os
anos 80. O enredo, tal como se apresenta, gira à volta de dois casais lésbicos e de duas
histórias: o amor lésbico, antigo e moderno. As mulheres que se juntaram nos anos 50
são forçadas a se separar quando uma delas abandona a sua amante pelo marido, casa,
dinheiro, filhos e prisão heterossexual. A falta de qualquer context ou comunidade faz
com que seja completamente impossível de viverem juntas. 'Não se consegue sequer
tentar explicar a outra pessoa; e depois percebemos que realmente não há forma de o
explicar – que é tão totalmente inexplicável para o resto do mundo, que não existe. Não
podemos vivê-lo. Tudo o que fazemos lá fora desmente-o. Tudo.'312 O lesbianismoo nos
anos 50 estava fechado no armário da existência privada. Despojadas de contexto
público ou social, as mulheres eram simplesmentemente apagadas. A batalha de
Stonewall em Junho de 1969 defendia o direito, que a obra Cactus argumenta ser
necessário para a sobrevivência, de juntar as pessoas Gay, o direito a um contexto
público. Wilson escolhe não a representação dramática, mas o detalhe, o detalhe do
eufemismo. O seu texto é construído com os tijolod do naturalismo: conversas,
observações, os gestos do quotidiano. Eleanor, a mulher mais velha que nunca chega a
casar, mas que em vez disso escolhe viver sozinha e gerir a sua mercearia faz a seguinte
172

reflexão sobre a suposta ordem natural das coisas.


Página

311
Claire Morgan, The Price of Salt (1952; Tallahassee, Fla, Naiad, 1984), p. 278.
312
Anna Wilson, Cactus (Londres, Onlywomen, 1980), p. 11.
Os gritos das crianças pareciam-lhe mais altos e mais penetrantes, as mulheres com bebés ao
colo um pouco mais cansadas ao sol. Porque haveria ela de se preocupar com o facto de estar
separada da Bea, antinatural? Este era o mundo natural, ela pensou, no qual ela teria de ter o
seu lugar, estas pessoas cansadas a passar os seus breves domingos de verão no parque, entre
as rosas atadas, (p. 35).

O método textual de Wilson, e na verdade toda a perceção lésbica, é sempre oblíqua,


porque o nosso discurso assenta fora do argumento do mundo. O efeito desses dois
particípios passados usados como adjetivos, 'cansadas' e 'atadas', iluminam a sua
perceção da limitação angustiante; um juízo abafado mas revelador. E a maioria do
comentário de Wilson é desenvolvido desta forma, através da reflexão interna e do
monólogo. Cactus é de muitas maneiras um romance de costumes do século dezanove,
que tanto olha 'para fora' no mundo heterossexual que ocupa o espaço público e para
dentro para a comunidade lésbica; para as mulheres que estão isoladas, fechadas, tal
como Eleanor na sua loja, ou para a nova geração de feministaas lésbicas, Ann and Dee,
que se retiraram para o campo para descobrir o tipo de compromisso que podem ter. O
encontro central do romance é entre os dois casais e as duas atitudes. Eleanor está à
margem da vida de toda a gente, da sua aldeia, da sociedade. Ela pensa das lésbicas
usando 'elas' – e certamente como não fazendo parte de si própria: 'Ela pensava que elas
viviam em Londres, nas cidades, à vista de todos, assumindo declaradamente a sua
homossexualidade' (p. 59). Dee e Ann tendo se afastado da sua comunidade, 'refugiadas
do gueto' (p. 69). E elas também se tinham começado a cansar da realização do seu
pouco significado no mundo. Elas vêm de 'um grupo de mulheres alienadas da sua
cultura, tão alienadas que estamos sempre a tentar identificar novos pressupostos que
daí advenham, a extirpá-las. Mas isso é algo que só faz sentido o experienciando...' (p.
70). O que as mulheres têm em comum são as capacidades do cacto do título do
romance, qualidades que o texto demonstra: 'Deixa crescer uma pele grossa para
suportar o calor e o ambiente hostil, senta-te no deserto por um ano a beber poucos
líquidos' (p. 26). Nesse contexto, é assim que Eleanor vive, ela é muito
reconhecidamente uma lésbica, era como se a Eleanor não tivesse um espaço público à
sua volta onde estranhos podem se aproximar sem perigo. Não era de todo neutro mas
irado, fortificado com barreiras e defesas' (p. 40). Se não tens poder, visibilidade no
mundo público, então todos os espaços exteriores a ti própria têm de ser encontrados
com agressão, hostilidade muda ou auto-afirmação. O efeito de se estar à margem de
uma cultura na qual se encontra uma repudiação diária e perpétua da nossa existência é
deixar-nos a pele ferida. Quase todas as conversas no romance são antagonistas, mesmo
quando são sobre assuntos do dia-a-dia e aparentemente incontroversos. Pois este é um
romance de pequenos gestos, símbolos subestimados dos momentos mais eloquentes,
característica do método de Wilson's method, é a sua descrição da Bea, uma mulher que
abandona a sua amante para se casar, que olha para o desperdício que foi a sua vida
após a saída as suas filhas sairem de casa. 'Bea permaneceu de pé junto à janela do
quarto da Nell olhando para o olmo apodrecido que se balançava ao sabor do vento . . .
Outrora tinha havido uma fila de olmos, grandes e vivos e verdes, onde estava agora
aquele tronco apodrecido. A vista da janela do quarto da Nell tinha mudado com os
sentimentos delas: agora podiam ver mais longe, para além de mais campos cercados e
sem sebes' (p. 97). Wilson usa a paisagem claustrofóbica da Inglaterra rural do sul com
173

extraordinária economia; transforma-se numa paisagem psicológica, num casamento já


velho, nos filhos já crescidos e fora de casa, numa fila de olmos apodrecidos.
Página

O romance evidencia a sua política. Todos os clichés da vida feministaa lésbica


desfilam alegremente pelas línguas de Ann e Dee; expresses como 'tomando a energia'
(p. 26), 'um necessário sistema de apoio', no gueto feministaa lésbico ... a ideia atual é
que as múltiplas relações fazem parte do estilo de vida' (p. 71). Mas os, tão irrelevantes
para a vida da Eleanor, são também postos em causa. Nada é tomado como garantido,
exceto a necessária ligação entre mulheres, sejam quais forem as decisões de caráter
sexual que venham a tomar e seja de que forma for que decidam utilizar para se trairem
umas à outra ou a si próprias.
Os anos 50 são o período no qual a escritora lésbica americana Jane Rule contextualiza
os seus dois primeiros romance, Desert of the Heart e This Is Not For You.313 O seu
primeiro livro tornou-se notório através da versão em filme de Donna Deitch Desert
Hearts (1985). Na 'Introdução Pessoal' ao seu estudo das escritoras lésbicas do século
vinte, Rule descreve a receção hostil da crítica ao Desert of the Heart em 1964.314 As
objeções eram, muito simplesmente, que as lésbicas não deveriam existir e que era de
mau gosto escrever sobre elas. A versão em filme é de um extreme bom gosto. Trata-se
do lesbianismoo comercializado num pacote heterosexual, aceitável. Quando mostrei
algumas fotografias do filme a duas francesas Lesbiennes radicales, elas olharam
tristemente para os esbeltos troncos estereotipos da Beleza Feminina Aceitável de
Hollywood Female Beauty e disseram, 'Ahhh. .. Hetero-de- L u x e … ' o artigo
comparative de Sibyl Grundberg sobre o livro e o filme na Gossip argument umcaso
semelhante dissidente. O romance de Rule é sobre duas mulheres mentalmente
idependentes que se apaixonam e um homem abandonado que as tenta impedir; O filme
de Deitch é sobre duas mulheres que vão para a cama e os insultos vociferados de uma
mulher alcoólica, cruel e perversa das linhas laterais. Cenas de filmes positivas de
lésbicas são um fenómeno relativamente recente e muitas lésbicas, que tal como as
mulheres que escreveram a Claire Morgan a agradecer, ficam simplesmente aliavadas
por ver uma narrativa onde as amantes não são condenadas, amaldiçoadas e mortas.
Mas Grundberg tece a seguinte consideração: 'Os heterossexuais podem ver com os seus
próprios olhos as suas relaçõessão retratadas criticamente no filme sem se sentirem
pessoalmente ameaçados; enquanto o mesmo não se passa com as lésbicas.' 315 E em
certa medida, especialmente no início dos anos 70, isto também se aplicava à ficção
lésbica.
Quando Rule começou a escrever, tanto ela como as suas personagens ficcionais não
tinham um contexto político ou uma comunidade visível. O que ela estava a representar
realmente eram os corações apaixonados num deserto social. Mas Rule representa as
lésbicas de forma consistente como parte de um um mundo heterossexual – enquanto
estratégia literária. 'Em todos os meus romances, as minhas personagens gay movem-se
num mundo essencialmente heterossexual tal como a maioria dos gays na vida real.'
Rule toma a posição de 'contar as coisas como elas são': 'Eu decidi ser uma escritora . . .
porque eu queria contar a verdade tal como eu a via.'316 E parte da minha versão da
verdade é o contexto heterossexual na homossexualidade.Os heterossexuais tanto
podem ajudar ou atrapalhar; na ficção de Rule assumem essas duas posições. E porque
as pessoas que ela representa nunca viveram em guetos lésbicos, as lésbicas estão
sempre significativamente em menor número. Mas nos anos 50, não existia um gueto
visivelmente político para habitar.
Rule mostra-se bastante sensível perante a crítica feministaa lésbica ao seu trabalho.Na
sua introdução ao Lesbian Images ela também explica que 'o advento da libertação das
174

313
Jane Rule, Desert of the Heart (1964; Londres, Pandora, 1986); This Is Not For You (1970; Londres, Pandora, 1987).
314
Página

Jane Rule, Lesbian Images (1976; Trumansberg, Nova Iorque, Crossing Press, 1982).
315
Sibyl Grundberg, 'Deserted Hearts: Lesbians Making it in the Movies', Gossip: A Journal of Lesbian Feminist Ethics, no.
4 (1987), pp. 27-39: p. 37.
316
Jane Rule, 'Lesbian and Writer: Making the Real Visible', in Cruikshank, New Lesbian Writing, pp. 98, 97.
mulheres . . . a independência das lésbicas tornou-se um símbolo para uma nova
identidade política para as mulheres' (p. 9). Tal mostrou vir a ser um problema para
Rule e para a sua escrita. Até então ela tinha estado corajosa e tranquilamente a insistir,
numa prosa eufemística, que as lésbicas eram seres humanos e que a sua forma de amar
era simplesmente diferente, que deveria ser aceite e respeitada por todos os liberais que
se prezem. Entretanto, o desafio feministaa inicial à heterossexualidade deu lugar a uma
crítica muito mais mordaz. 'Essas jovens mulheres inseguras tinham agora sido
substituídas por lésbicas militantes que me acusam de me ter vendido politicamente, de
ser uma vendida da pior espécie, a viver sob a proteção do dinheiro e da classe, e a
escrever livros que não sugerem que o modo lésbico de vida é sempre o melhor modo
de vida para toda a gente sejam quais forem as suas circunstâncias' (p. 10). Por detrás
deste tom ferido assenta a recusa em verificar que o sexual é realmente o político; de
que não pode haver um pressuposto simples de que algumas pessoas escolhem ser
heterossexuais, e outras simplesmente escolhem ser lésbicas. Eu sempre considerei a
noção de escolha, com os seus pressupostos embutidos consumistas, particularmente
ofensiva. É como se nos mostrassem um bolo sexual, no qual todas as fatias eram da
mesma forma e tamanho, e o preço de cada fatia exatamente o mesmo. Este não é o
caso. E compreender que as coisas não são assim é a base dos debates feministaas sobre
as questões da sexualidade e da expressão sexual.
Rule faz o habitual apelo à ARTE. 'Nem a minha vida nem o meu trabalho podem ser
uma simples propaganda' (p. 11). Bem, a propaganda é muito raramente simples, e
todos os escritores e críticos defendem uma causa. A causa de Rule foi desafiada e ela
está na defensiva. É tudo. Mas qualquer feministaa lésbica que decida considerar o
trabalho de Rule irrelevante para A Luta deveria reconsiderar. This Is Not For You marca
uma parte da nossa história. Todo o texto é sobre desperdício; sobre um amor que não é
dado e uma vida que não é vivida. Pretende-se certamente que o leitor olhe para a
representação que a narradora faz de si própria como uma defesa do martírio masculino
com uma ironia cética, mas no todo a expressão do lesbianismoo nesse período, nos
anos 50, é descrito de um ponto de vista que não faz juizos de valor. Nós temos um
jantar de fufas macho e fêmeas de 1953, onde as mulheres femininas vão investigar a
cozinha enquanto as mulheres masculinas acendem o cigarro umas das outras. As
mulheres são referidas de forma consistente como as raparigas. Os homens
desempenham um papel importante na narrativa e são habitualmente os vilões. O drama
emocional principal é entre as mulheres; mas os homens estão sempre presentes na orla,
à espera de ter sexo com quem quer que os permita entrar na ação do romance. Até há
mesmo uma personagem completamente emblemática: Christopher Marlowe Smith, que
prega uam moralidade criativa, esfrega as suas mãos e rouba. Esther, a amada desejada
da narradora, torna-se sua amante. Em quatro páginas ela está a falar exatamente como
ele. Isto é bem observado. As mulheres que querem agradar os homens, ou se tornam
exatamente como eles ousam, ou dão voz às opiniões deles. A over as personagens
heterossexuais de uma perspetiva lésbica, Rule pode facilmente desafiar e criticar,
evitando uma polémica explícita. O que se torna evidente no método de Rule, a
narrativa confessional na primeira pessoa (acerca da qual ela nos encoraja a ser
desconfiadas), é que o sadismo suprimido pode facilmente passar por uma grande
escolha moral. A amada Esther acaba por casar com um louco, que a tenta estrangular
todas as vezes que ela tenta ter sexo com ele, por isso ela deixa de ter esperança de
175

conquistar Kate, a narradora-heroína, e em vez disso escolhe Deus. A sua vida é


destruida, frustrada, reprimida; porque a Kate nunca reconhece e portanto nunca retribui
Página

o seu amor. Eu pergunto-me, contudo, se um leitor heterosexual compreenderia este


drama de forma diferente e veria a negação de Kate como um nobre sacrifício e uma
grande escolha moral. Eu ouvi uma mulher casada a comentar o destino de um seu
colega Gay que se tinha assumido a ela num ataque de profunda tristeza,dizendo que ele
era fantástico por estar a lutar contra os seus desejos e a tentar reprimi-los. No que ao
mundo heterossexual diz respeito, é mais eficaz nos reprimirmos e nos pouparmos à
maçada.
O mundo de Rule é populado por mulheres profissionais bem-sucedidas, que vivem
sozinhas ou com maridos que elas conseguem controlar. Todas as amigas da narradora
parecem aceitar a sua bissexualidade, ou a sua preferência por mulheres, bastante
alegremente. Elas organizam-lhe jantares e vão despedir-se dela ao aeroporto. Outras
mulheres apaixonam-se por ela imediatamente. Por isso torna-se difícil de perceber do
que a Kate pensava estar a salvar a Esther.
Pior ainda é que a Kate decide que a Esther nunca deveria viver como uma lésbica por
causa dela; a própria Esther não tem muita escolha sobre a matéria. Ela é completa e
cuidadosamente policiada. 'Eu observei-te, pensando, tu não ted eves gastar numa
Sandra Mentchen. Eu não te salvei de mim para isso' (p. 43). 'Deixa-a em paz . . .
Simplesmente não é o seu mundo, não é o seu tipo de coisa' (p. 52). Há muito boas
razões porque viver como uma lésbica nos anos 50 era uma tarefa traiçoeira; mas Rule
não se alonga muito nelas. Foi preciso uma escritora feministaa lésbica, Anna
Wilson,para defender essa causa, numa prosa tão subtil e eufemística como a da própria
Jane Rule. Mas não é preciso discutir as questões de forma explícita, página a página,
que o amor lésbico pode não só ser libertador como poderosa, ou que uma decisão
política sobre a nossa sexualidade está envolvida na forma como vivemos aa nossas
vidas. Se essa for a perspetiva da escritora, então o seu ponto de vista iluminará o seu
material. Rule sofria duma visão de militante lésbica, tocando os simplistas tambores
autoritários e perturbando o silencioso Reino da Arte. Mas há alguns aspetos dos quais
ela nem se recusa nem recua. 'Enquanto lésbica, eu acredito que é importante assumir as
minhas responsabilidades, insistir na dignidade e alegria de amar outra mulher. Se isso
impedir as pessoas de ler os meus livros, I have finally to see que o problema é deles e
não meu.'317
A recusa de Jane Rule em escrever para A Causa é, até certo ponto, condicionada pela
política sexual politics da sua geração. Rosemary Manning, também uma lésbica desde
sempre, que só se pode assumer no contexto do feminismoo contemporâneo e da
libertação Gay, recusava-se terminantemente a escrever para A Causa.
Eu não me podia juntar a um exército de Joanas D’Arc lébicas agarrando numa mão
uma chave inglesa e noutra uma cópia The Ladder. Eu fui impelida a brandir a minha
pena em defesa da causa. Eu recusei . . . As mulheres . . . sentiam uma insegurança que
se tornava imperativo para elas usar um uniforme, construir um regimento, falar uma
lingual privada, adotar um comportamento ritual que lhe desse coerência e força contra
o mundo heterossexual que elas fingiam desprezar.318
Isto é correto, mas insensível. A própria insegurança de Manning era masoquista e auto-
destrutiva. Ela voltou a fúria e o desespero que tinham tornado a sua vida insuportável
contra si mesma, não para fora contra o mundo heterossexual que era, e é, a causa
fundamental dos sentimentos. O desprezo que ela expressa, e os seus termos militares -
'um uniforme,' 'um regimento', 'uma linguagem privada', 'comportamento ritual' –
sugerem conformidade, introversão, a sociedade secreta do gueto. Mas a escrita lésbica,
mesmo a escrita feministaa lésbica, nunca refletiu um mundo tacanho, enclave. O limite
176

perturbador radical do feminismoo lésbico tem sido a insistência na comunidade de


Página

317
Rule, 'Lesbian and Writer', p. 99.
318
Rosemary Manning, A Time and a Time (1971; Londres, Marion Boyars, 1986), p. 137.
mulheres, todas as mulheres, e a sua recusa em aceitar uma divisão entre as mulheres do
gueto e as mulheres do mundo heterossexual. É por isto que a escrita feministaa lésbica
tem sido habitualmente confrontacional, contraditória, e reveladora de uma visão
espirituosa do bizarro.
A ficção de Anna Livia derruba os pressupostos de Manning sobreasp a necessidade do
'espírito de cruzada' inerente no trabalho das mulheres que escrevem para a Causa. Pois
'o espírito de cruzada' implica uma marcha em frente sem hesitações para o paraíso, por
retas e estradas desempedidas por cima do cadáver de outra pessoa. O diálogo de Livia
com a política feministaa e lésbica mostra que a estrada é tudo menos reta. Ela é típica
de um fenómeno no seio da escrita feministaa e feministaa lésbica: o regresso da
escritora que insiste na relevância da sua experiência pessoal. Os romances que se
desenvolveram sobre os valores literários tradicionais e masculinos acabaram por vir a
ser cada vezmais produzidos por académicos. Estes são também frequentemente sobre
teoria. O trabalho literário é agora frequentemente descrito como 'bem-documentado'. O
romance literário histórico está a voltar em força. As observações biográficas não
inteiramente sérias de Livia contam-nos que ela viveu em África, conduziu o autocarro
41, foi professora, frequentou a universidade, viveu em Stockwell. A escrita feministaa
recuperou o romance social; o romance de protesto, processo político e comunidade.
Frequentar a universidade é apenas uma das coisas que Livia fez na vida, e não é
necessariamente a mais importante.
O primeiro romance de Livia, Relatively Norma, é uma novela feministaa australiana,
uma história de como se assumiu a homossexualidade.319 Essas histórias são sempre
sobre o que é ser lésbica num mundo heterossexual. São frequentemente dramas
familiares. A narrativa de Livia não é exceção. Mas é também sobre o compromisso e a
crueldade nas vidas de mulheres muito diferentes; sobre como qualquer mulher se pode
recusar a jogar o jogo. É de facto um álbum de família feministaa. Todos os homens são
John; John T., John Boyfriend, John Johnson, John Husband, Johnny François. A leitora
só gradualmente é que se apercebe de que é deliberado. Tal enfantiza o facto de que
todos os homens são teoreticamente permutáveis mais habilmente do que qualquer
polémica acalorada seria capaz de o fazer. E há um toque australiano, na medida em que
os homens lançam a isca às mulheres descrevendo-nas ou como Gins ou Sheilas, de
acordo com a sua cor. As mulheres do livro estabelecem os seus próprios destinos, com
ou sem homens. A heroína Minnie, e a sua irmã adotiva, lê a maioria dos livros por trás
do livro no decurso do romance. Estes são todos livros lésbicos, livros que apresentam
versões radicalmente diferentes do lesbianismoo. Há as 'mulheres feias e masoquistas
que não conseguiam arranjar um homem, tal como aquela Violette naquele sujo livro de
bolso que era passado pelas mãos de todos na casa' (p. 59)-que é, obviamente, La
Bâtarde de Violette Leduc -, Le Corps lesbien da autoria de Monique Wittig, que é o
erotismo lésbico francês de uma natureza muito sensual e intelectual; e Cactus de Anna
Wilson, o romance que a Minnie leva para ler no avião de regresso a casa.
Não são apenas os livros, mas também a representação de lésbicas nos filmes que são os
pontos de referência para Livia. A personagem da Nora no Prisoner é mencionada várias
vezes como a versão masculina de uma lésbica predatória. E há uma cena importante
onde uma família inteira assiste a uma adaptação do livro de D. H. Lawrence, The Fox.
Lawrence sentia-se de tal forma ameaçado pelo que ele descrevia como 'mulheres
clitoriais' que ele tinha de as despachar cortando as árvores. Moira, uma das jovens
177

mulheres a assistir, mostra-se 'anxiosa por mostrar ao Namorado a sua ortodoxia . .. ' e
grita, 'Oh é horrível, é nojento'! Duas mulheres a beijarem-se, eu nem consigo olhar ... '
Página

319
Anna Livia, Relatively Norma (Londres, Onlywomen, 1982).
(p. 20), reduzindo deste modo a Minnie, sentada ali, sem se assumir, a um tremor de
fúria. Livia dedica-se a dazer da homofobia e do ataque aos Gay penosamente visível.
Ela também salienta o silêncio embaraçoso que surge imediatamente após qualquer uma
das objeções indignadas da Minnie. 'A maioria deles reparava no tom usado pela Minnie
mas preferiam não o comentar' (p. 21). Mariana Valverde faz um comentário sobre este
stresse constante e irritatante que a maioria das lésbicas, assumidas ou não, tem de
suportar todos os dias da sua vida. 'Para as lésbicas, o acontecimento diário mais trivial
pode originar um dilema sempre presente da fúria silenciosa contra a confrontação
pública, a auto-negação contra o risco.'320
A narrativa de Livia combina o naturalismo com a variedade dos instrumentos
perturbadores da alienação. O narrador invisível torna-se repentinamente visível como
numa paródia do século dezanove. 'Um observador próximo teria reparado . .. Todavia,
não havia um tal observador presente,apenas eu, e eu não estava a reparar. Fazendo uma
estimativa aproximada, eu deveria dizer que a ontologia de Laura (qual é o problema?
Eu também tive de ir procurar o significado) . ..' (p. 58). O comentário entre parêntesis
zomba animadamente do traço anti-intelectual no seio do feminismooo radical. A
exigência perfeitamente legítima de que os escritores não devem nem ser elitistas nem
intimidar deliberadamente os seus leitores com uma terminologia inacessível,
transforma-se por vezes simplesmente em medo, disfarçado pela agressão ou, pior, o
pressuposto condescendente de que as lésbicas não possuem curiosidade intelectual.
Mas esta ténue linha a trilhar, tanto na escrita teórica como na escrita ficcional. Livia
utiliza o poder que todo o autor detém, o de libertar retaliações bizarras sobre as suas
personagens. John Boyfriend é reduzido a uma 'massa despolpada e patética' por um
grupo de bicicletas voadoras e um 'ato de deusa' (p. 61). O destino mostra ser
feministaa, pois, como o ofensivo John se gaba de todas as mulheres com quem dormiu,
Gins ou Sheilas, voluntariamente ou não, as mulheres são vingadas. 'Uma mão limpa e
castanha apareceu vinda do céu, empunhando um garfo de tostar limpo e lançou um raio
na direção da figura asquerosa' (p. 64). Não obstante, estes efeitos alienados nem
sempre resultam porque não estão de todo integrados no enquadramento naturalista da
narrativa. Livia não cria um discurso insegura no qual qualquer coisa pode acontecer e
acontece mesmo. Em vez disso, os acontecimentos perturbadores surgem como fissuras
repentinas no texto realista. Mas um momento perfeitamente bem-conseguido é a
partida de Beryl, a mãe que abandona a sua família. Beryl é facilmente a mulher mais
envolvente do livro. Ela faz um discurso public final a exigir a libertação da mãe – que
é, no meu entender, o clímax do enredo – e depois navega para além do azul. Noutro
nível textual, ela simplesmente parte com o John Marido Atual, para visitor todas as
zonas da Austrália que ela nunca vira, deixando as filhas resolverem as suas vidas por si
mesmas. O facto de Minnie se assumir é bastante irrelevante para a mulher que ela
esperava chocar e alienar, a sua mãe, e crucial para a sua irmã adotiva, Laura e para a
sua irmã mais nova, Ingrid. As duas jovens mulheres, ao conhecerem a Minnie e,
através dela, o feminismooo lésbico australiano, começam a tomar os primeiros passos
para a sua libertação. Mas nem todas as mulheres, de acordo com Relatively Norma, têm
de ser lésbicas para serem livres.
O tom muda no segundo romance de Livia , Accommodation Offered 321' Este é um
romance especificamente sobre lésbicas que vivem for a das suas famílias. Livia junta
três mulheres muito diferentes, de classes sociais e contextos sociais radicalmente
178

diferentes. Este é um romance lésbico e não um romance feministaa lésbico, que vem
Página

320
Mariana Valverde, Sex, Power and Pleasure (Toronto, Women's Press, 1986), p. 92.
321
Anna Livia, Accommodation Offered (Londres, Women's Press, 1985).
demonstrar a irrelevância da comunidade feministaa, tal como praticado ritualmente,
para as vidas de muitas lésbicas. Kim, uma motorist de autocarro, tem uma breve
experiência com o Centro para Mulheres. 'Diz-se na newsletter que não é permitido
fazer propaganda para os corações solitários, mas não referiam que a forma correta para
o fazer era o de dizer que se queria iniciar um grupo de discussão' (p. 92). E sim, é claro
que o rosto público do feminismooo se altera; mas no Accommodation Offered, a mudança
torna-se decadência. 'Os triângulos cor de rosa tinham-se tornado duplos símbolos para
as mulheres; as manifestações a favor do aborto já não eram um must, mas uma
concessão' (p. 92). A cena de sexo lésbico no Relatively Norma é retardada
indefinidamente e de forma cómica. De facto, nunca chega a acontecer de todo dentro
do texto, exigindo assim implicitamente que o leitor compreenda que essa não é a
história toda, de modo algum, de modo algum. Relatively Norma assume uma audiência
mista, lésbica e heterossexual, e insistia que o lesbianismoo era importante para todas as
mulheres e que a maternidade, e as expetativas opressivas que todas as crianças têm das
suas mães, são problemas para as lésbicas. Mas Accommodation Offered é escrita no
território lésbico. Existem cenas explicitamente sexuais eróticas, narradas com um
candor factual. Vem substituir os clichés líricos das narrativas em que os gays se
assumem dos anos 70.

Eu coloquei a minha mão no seu seio, no seu estômago e tudo o resto mas tudo o que me
ocorria era 'meu deus, então é isto que se sente do lado de fora'. Eu não sentia nada por dentro,
apenas uma espécie de interesse. Quer dizer, eu não pensei nada do tipo finalmente cheguei a
casa . . . Só então me comecei a preocupar como se dizia aquela palavra 'clítoris'. Did it rhyme
with 'liquorice' or 'walrus'? (p. 17)

A paixão, a confusão e a dificuldade nunca se afastam muito nas narrativas de Livia.


As suas referências literárias sãohábeis e não forçadas. Polly e Sadie, dois elementos da
casa no Acconnnodation Offered, passeiam pelo Kew Gardens e depois recitam The Waves
de Virginia Woolf, num diálogo de surdos que as personagens nos romances
modernistas tendem a fazer. Mas este é um momento na ficção onde é imperativo que as
duas mulheres se entendam. O modernismo alienado torna-se ao mesmo tempo cómico
e sinistro. O outro livro por trás do livro é Homosexuality for nurses de D. J. West, que
soa a um travesti da homofobia heterossexual demasiado desagradável para ser
inventado. Relatively Norma nunca foge dos assuntos mais negros como o incesto e a
violência sexual, mas o impulso por detrás é sempre agerridamente otimista.
Accommodation Offered descreve um mundo mais sombrio.
Os romances de Livia dão-nos uma bela sequência de homens detestáveis, violentos e
sexistas. O seu retrato de Gerard, o falso socialista, marido da Polly no Accommodation
Offered, é verdadeiramente perturbador. A sua violência, que rompe a superfície do
discurso de classe-média, emerge, apropriadamente, num casamento. A forma obscena
de como ele atrai a sua mulher e a sua amante pressupõe a leitora lésbica: os
heterossexuais podem muito bem achá-lo demasiado comum para ser perturbador.Os
verbos usados por Livia - ieer', 'forçar', agarrar', indicam que a sua agressão escala para
além de uma simples troca de palavras mais acesas apesar das palavras nunca chegarem
a dar lugar a golpes físicos. A cena em que a lésbica é atraída para uma armadilha no
179

Relatively Norma acontece na sala de espera de um hospital onde os clichés 'pareciam


saídos de um manual para aqueles que atacam os poofta' (p. 86). No Accommodation
Offered, os clichés da violência masculine tornam-se mais sinistros, manipulativos,
Página

obliquamente pornográficos. As lésbicas são agora mulheres cercadas, na defensiva. É


um livro assustador.
Livia tenta aligeirar a mistura através de uma extraordinária fantasia de pure play: o dei
ex machina. Estes são The Liberty Boddesses of Hortus que se podem metamorfosear em
plantas, ter encontros com paródias dos coletivos feministaas com uma correção
assustadora e intervir diretamente quando os problemas no enredo realista se tornam
quase insuperáveis. Eu devo admitir uma dificuldade pessoal crítica neste aspeto.
Existem alguns jogos ficcionais que mina a seriedade da narrativa, e reduzem a escrita à
The House at Pooh Corner. The
Liberty Boddessess encheu-me de uma espécie de terror cloying. Não tanto o sorriso
mágico e apocalítico de Sadie, que transforma os temmas sombrios do livro num final
feliz. 'E foi possível para a Polly terminar a sua tese, para a Sadie pintar o seu quarto e
para a Kim decidir o que o feminismooo significava agora que os homens eram o
inimigo . .. E agora era possível falar das coisas terríveis que nos tinham feito, e chorar
e continuar a falar' (p. 182). A casa mantem-se unida, e continua a lutar. A solidariedade
lésbica é profunda, enternecedora e que não é idealizada. Mas continuei assombrada por
um momento mais subversivamente radical na sala de espera do hospital do Relatively
Norma. Aqui, uma mulher negra, uma Gin, que também tinha sido atormentada e
ameaçada pela nata bêbesa da juventude australiana, salva as Sheilas lésbicas de serem
espancadas. A solidariedade potencial entre todas as mulheres independentemente da
sua classe, raça e expressão sexual permanece a tenet política central do feminismooo
radical. É bom de se ler e pelo qual vale a pena lutar.
Se é verdade – eu receio – que qualquer ficção que não represente as mulheres lésbicas
como umas pervertidas frustradas, predatórias, suicidas e obcecadas por sexo
simplesmente porque são lésbicas, servirá sempre A Causa. Há uma escola que emerge
de escrita lésbica fantástica e não-naturalista que não representa as mulheres lésbicas no
mundo tal como ele é; uma estratégia textual que envolve sempre o reconhecimento da
nossa marginalidade. Em vez disso, nós apresentamo-nos ou como parte central num
contexto predominantemente lésbico, ou como personagens tranquilamente tomadas
como garantidas pelas nossas colegas ficcioanais. O romance de Alison Ward - ou
novela, pois compreende noventa e duas páginas por excedente, bem-orientada- The
322
Glass Boat é um desses textos. O livro representa um confronto entre o resíduo dos
anos 60 e o consumismo individualista dos anos 80. A nossa heroína é uma arquiteta
bem-sucedida da cidade, a mulher que alcançou o sucesso num mundo de homens, da
forma que as mulheres normalmente usam – indo para a cama com o Homem do Livro
de Cheques. Ela encontra um grupo de intrusos imaginativos, que ainda não estão
demasiado influenciados pelas drogas para fazerem sentido, num cais assombrado e
mágico, onde levam um Extraordinário Estilo de Vida. Ward constrói um argumento
textual entre estes dois grupos de pessoas, entre duas interpretações do mundo que que
são mutualmente exclusivas. Uma delas deve estar errada; e Stéphane, a heroína, tem de
escolher entre elas. A amante mágica que ela deseja é a andrógena Dasha, estrela da
Honourable Nancy's Rich Hippy Videodramas. Mas o lesbianismoo aparece como um
conceito apenas na mente dos homens. Aqui fica o parceiro de negócios da Stéphane, a
especular sobre a sua sexualidade.

Ela passava demasiado tempo sob a luz artificial de salas de conferência, e, tal como ele
suspeitava, em caves cintilantes onde as mulheres têm casos fugazes umas com as outras,
lançando olhares através de espelhos sombrios, representando uma espécie de fragmento suave
180

e uma triste simulação do que é o amor. Ele sabia de tudo isso porque ele tinha lido sobre isso
nos livros de bolso das bancas do aeroporto. Ele perguntava-se se o Martin sabia o que a
Página

322
Alison Ward, The Glass Boat (Londres, Brilliance, 1983).
Stéphane andava a fazer. Provavelmente sabia, mas desde que ele tivesse controlo, ele não via
mal nisso. (p. 10)

Isto é o lesbianismo definido, interpretado e encenado pelos homens; a fantasia na


mente dos homens. E a palavra lésbica aparece apenas como um insulto na boca do
Livro de Cheques Abandonado. A nossa heroína não hesita.
Ele acusou-a então, num tom de voz muito calmo, de ser uma lésbica.
Não, ela não aceitava isso.
Ele não ficou surpreendido. Era uma palavra feia. Qualquer pessoa ficaria envergonhada de ser
chamada assim.
'Eu não tenho vergonha, Martin. Não é uma palavra feia, trata-se apenas de um facto
irrelevante.'. . .
'Sim, eu amo aquela mulher do cais. Mas é um ponto de vista completamente diferente do teu.
Eu não vou arrendondá-lo com uma palavra,para que a possas escrever.' (p. 82)

Esta é uma recusa das definições masculinas; mas é igualmente um rodear do assunto.
The Glass Boat é uma parabola muito bem escrita, que erege dois lados que se opõem
numa luta abstrata por um significado: por um lado, a heterossexualidade, o dinheiro,
BMWs, trabalho com salário certo, o sexismo malicioso, o DHSS e uma prisão da
cobiça capitalista; por outro lado, o cais, um mundo do imaginário, as drogas
recreativas, ambiguidade sexual, a perceção cósmica e a liberdade. Este não é um
romance naturalista; é um jogo, um debate. E a Liberdade é o prémio, pois é isso que se
consegue ver do barco de vidro turístico por baixo das pontes de Paris, a pequena
réplica da Estátua da Liberdade.
O Barco de Vidro [The Glass Boat] é também um ensaio sobre a nostalgia, dado que a
liberdade é apresentada como a imaginação política anárquica dos anos 60, arrastando-
se para os anos 70. Já devem ter passado uns vinte anos desde que me recostei
envolvida numa tontura induzida pelas drogas e declarei, 'O mundo não existe.' Mas o
idealismo político anarquista não deixa de ser relevante como uma política alternativa
quando os tempos mudam, simplesmente deixa de estar em voga. E no entanto a
imaginação continua a ter de ser paga por alguém. Neste caso a DHSS paga parte da
conta para as personagens fantásticas que habitam o cais; the Honourable Nancy, que
produz a Cosmic Videodrama of Xanadu, vive na riqueza que herdou. E Dasha deve
receber o suficiente da sua fotografia em Paris para pagar as passagens aéreas. Até
mesmo a nossa heroína tem um chalet da família no Tirol para onde ela se pode retirar
no final do romance para se encontrar. A base económica de qualquer ficção assombra-
me sempre como sendo crucial simplesmente porque a liberdade não tem preço e é mais
mesmo tempo tão dispendiosa. A liberdade e o dinheiro, as duas coisas que as mulheres
não têm, estão obviamente intimamente relacionadas. O Barco de Vidro [The Glass Boat]
anseia por um mundo em que os duros antagonismos entre mulheres e homens, o poder
e a pobreza facilmente se dissolvem perante a originalidade e audacidade. O educador
de Stephane não é a sua amante lésbica, mas o personagem fantástico Gay, Asmodus. E
ainda que seja maravilhoso ouvir 'um ataque brilhante a uma dualidade de conceitos
fora de moda: paz e guerra, liberdade e igualdade, homens e mulheres, todo aquele lixo
gasto' e ser-nos dito, foi uma completa perda de tempo criar opostos para depois tentar
reconciliá-los. Tínhamos de transcendê-los, e então eles não existiriam' (p. 51), o livro
demonstra a destruição avassaladora que um dos opostos exerce sobre o outro. O poder
181

patriarcal chega para desenvolver o cais e despejar a imaginação, que se evade


numbarco, retrocedendo, mas não derrotada.
A imaginação das mulheres e a womynmagic estão vitoriosos na revista fantástica de
Página

Ellen Galford numa ilha escocesa não tão imaginária quanto isso. Galford retira da cena
os problemas da heterossexualidade tanto quanto possível ao criar as personagens
centrais lésbicas poderosas e carismáticas. The Fires of Bride é um fio na tradição da ilha
mágica.323 Os problemas deste mundo são transportados para outro mundo onde o
equilíbrio do poder pende a nosso favor, de maneira que o salvos patriarcais podem ser
colhido um a um. O inimigo é o Reverendo Murdo MacNeish da Second Schismatic
Independent Church of the Outer Isles. Mas este é um texto que tranquiliza os seus
leitores que as mulheres, com a Deusa do seu lado, irão sempre ser vencedoras. Mesmo
os americanos, na forma de um explorador multinacional, Scotty McCrumb, pode ser
subornado pela política radical se se mostrar um negócio lucrativo. Esta é uma ficção
lésbica mágica e e amiga do consumidor que inclui um divertido carrocel sexual de
mulheres profissionais bem-sucedidas e independenetes: médica, artista, arqueóloga. É a
ficção que atiça divertimento à hipocrisia, intolerância religiosa e à política patriarcal.
Não existem cenas de sexo problemáticas e explícitas e ninguém se torna realmente
maldoso como acontece muitas vezes nas comunidades pequenas e viradas para si
mesmas. São as fufas que têm as cartas mais altas e as melhores falas.
'Murdo,' diz Catriona agradavelmente, enquanto se sentam no Cailleach Hall à espera
que a reunião do Community Council comece, 'já alguma vez te ocorreu que o
Cristianismo tal como o conhecemos se possa basear num erro tipográfico? . . . com a
simples mudança de uma letra no texto original,' ela continua animadamente, 'o Filho de
Deus poderia, ter sido na verdade uma filha.' (pp. 197-8)
Este é, de facto, um pensamento maravilhoso, tal como no texto ficcional “Livro da
Noiva” ['Book of Bride'].324 O texto de Galford é uma fantasia lésbica feminista para
nos fazer sentir bem; é mais ou menos como comer um chocolate alfarroba ou comida
rápida saudável. Este tipo de ficção tem uma função; o conteúdo pode não seguir uma
fórmula, mas o modo sim. É a ficção onde as Boas Raparigas Ganham Sempre. Eu
tenho de assumir o meu particular interesse aqui: eu não sou uma adepta da fantasia
escapista e nunca levei para a cama thrillers, ou ficção científica previsível ou romance
pulp. Eu prefiro a ficção que defronta diretamente a dificuldade em vez daquela que
foge da mesma, e normalmente leio-a sentada de costas bem-direitas. A fantasia nunca é
inofensiva, nem completamente desligada da realidade. Cailleach, a ilha mágica, não
existe, por mais que o desejássemos; o Deus patriarcal continua seguro nas mãos dos
padres; e nem todas as fufas têm uma resposta rápida ou um trunfo à mão quando os
clérigos ou os vizinhos se tornam maldosos. Há também o perigo que esta fantasia
tranquilizante deixe os leitores heterossexuais com a impressão que toda a espécie de
coisa correrá bem na vida das lésbicas, e de que elas já não precisam de colocar a elas
mesmas mais nenhuma pergunta difícil ou embaraçosa. Por outro lado, nunca é bom
para a moral de qualquer pessoa ser representada como uma perpétua vítima ou uma
proscrita social. Mas existe um mundo real onde as mulheres fazem as suas vidas por si
próprias; e há vitórias reais para serem celebradas. A comédia alegre, zombeteira
levanta sempre a moral do perdedor, mas nem sempre reduz a escala da ameaça; e muito
poucas lésbicas são recebidas pelo mundo com uma tolerância acolhedora, liberal e
sentimental.
Eu deduzo que o meu desconforto perante as fantasias otimistas é partilhada com Maud
Suiter, que, ao escrever sobre a representação – ou melhor, a representação deturpada –
das lésbicas negras nos filmes, diz o seguinte sobre a fantasia revolucionária de Lizzie
Borden, Bom in Flames, na qual mulheres de todas as cores trabalham juntas. 'As
182

323
Ellen Galford, The Fires of Bride (Londres, Women's Press, 1986).
324
Página

As mulheres nunca tiveram a oportunidade para imaginar a nossa própria religião. A ficção é o lugar ideal para faze-lo.
Mas que o The Fires of Bride é uma fantasia para nos fazer sentir bem, é uma opinião do seu próprio trabalho que Galford
aceita. Entrevistada no 'SATISFICTION: The Second Symposium of Lesbian and Gay Writers living in Europe' (Roterdão,
17-22 Outubro de 1988), ela disse o seguinte: 'É claro que é uma fantasia. Porque as mulheres são as vencedoras.'
mulheres negras são abatidas, violadas e assassinadas na Grã-Bretanha dos nossos dias.
Eu não tenho assistido a estas vagas espontâneas de mulheres brancas a se revoltarem
contra isso. A luta não é assim tão fácil, e fazer de conta que é fácil não faz com que ela
aconteça mais rápido. De facto, poderíamos dizer que a dificulta.' 325 Eu concordo. E ao
considerar a escrita lésbica,eu também tenho em consideração que viver como uma
lésbica não é uma opção igualmente aberta a todos os grupos de mulheres. Os casais
lésbicos ou coteries que pudemos celebrar na história eram quase sempre abastados. As
mulheres que viviam em Paris durante a primeira parte do século vinte - Natalie Barney,
Romaine Brooks, René Vivien e companhia – tinham o dinheiro suficiente para lhes
permitir viver como quisessem e dormir com quem desejassem.326 Eram todas brancas e
de classe alta. Para as mulheres negras e as mulheres da classe trabalhadora na cultura
europeia, a experiência e a história dessa experiência serão completamente diferentes.
A coleção de histórias de Barbara Burford que inclui a sua longa novela com o mesmo
título, The Threshing Floor, articula alguns aspetos dessa experiência.327 Até à data não
existem outros textos que nos passam falar de como é ser negra no sudoeste de
Inglaterra onde a grande maioria dos habitantes são Conservadores e passeam com os
seus labradores, brandindo as suas cópias do Daily Telegraph. Hannah é uma mulher
negra que viveu com a sua amante branca durante doze anos numa parte rural de Kent.
A amante é uma poetisa genial que more de um tipo interessante (não especificado) de
cancro. A novela é sobre o desgosto, a recuperação eventual de Hannah, e a descoberta
de uma nova amante, Marah, outra mulher negra.
Cada mulher na história é estraordinariamente criativa. Burford descreve um mundo
pseudo-medieval de ofícios antigos: poesia, vidraria pela técnica de sopro, tecelagem,
música, a partir dos quais toda a gente vive desafogadamente. Eu não posso dizer que
tenha achado isso muito convincente. Hannah é uma sopradora de vidro, e a melhor
secção da novela é sem dúvida a sequência em que se demonstra o fabrico do vidro que
é reveladora do que a novela é capaz de fazer: transmitir informação de uma forma que
é dinâmica e absorvente. Trata-se, em qualquer caso, de um momento de Aleluia na
narrativa, quando a heroína volta a ganhar o seu poder artístico, e o detalhe cumulativo
é ainda mais comovente porque é feito através de uma descrição técnica, desprovida de
emoção e exata. A retórica que insiste na mestria e na arte tem mais peso do que os
clichés que descrevem 'a fonte da sua criatividade' (p. 142). A análise do racismo
institucional é atirada para o alto pela mesma situação descrita na história: uma mulher
negra e a sua amante branca assentam na Inglaterra rural branca. As gentes locais
referem-se à 'Jenny Harrison e à sua mulher escurinha' (p. 109). O anti-lesbianismoo é
mais complicado de articular do que o racismo, porque a homossexualidade é por vezes
invisível quando as mulheres o podem esconder, ou quando se querem fazer passar por
heterossexuais; e o anti-lesbianismoo implica admitir que as lésbicas existem, algo que
qualquer cultura à face da terra acha difícil de fazer. Mas no caso da Hannah e da Jenny
o racismo pode, rápida e efetivamente, negar a sua realidade de vida em conjunto. Aos
olhos dos racistas brancos, a sua existência partilhada como 'iguais . . . que se tinham
tornado' (p. 109) nas suas vidas privadas é repudiada pela redução de Hannah ao
estatuto de suplemento sem nome. Jenny Harrison é o sujeito, a sua 'mulher escurinha'
torna-se na sombra; e esta é uma aldeia onde toda a gente deveria saber o seu nome. A
183

325
Maud Suiter, 'Black Codes: The Misrepresentation of Black Lesbians in Film', Gossip: A Journal of Lesbian Feminist
Ethics, no. 5 (1987), pp. 29-36: p. 31.
326
Página

Para mais informação sobre o lesbianismo e o modernismo consultar Gillian Hanscombe e Virginia L. Smyers, Writing
for their Lives: The Modernist Women 1910-1940 (Londres, Women's Press, 1987) e Shari Benstock, Women of the Left
Bank: Paris 1900-1940 (Londres, Virago, 1987).
327
Barbara Burford, The Threshing Floor (Londres, Sheba, 1986).
rejeição é brutalmente dolorosa e enraiza-se nelas, 'agarrando-se como lama nas suas
mentes' (p. 109).
Judith, a mãe de Jenny, usa o racismo explícito como arma contra Hannah. O seu
motivo é simplesmente o ciúme, mas o discurso racista anti-negro escapa-se facilmente
da sua boca porque pode ser integrado numa conversa normal entre broncos sem uma
brecha seuqer nas suas boas maneiras. Eu fiquei muito chocada com o caráter Inglês
desta crueldade complacente; um encontro que começa com, ' "Hannah, minha querida .
. . porque não vens tomar o pequeno-almoço conosco? Nós quase não nos temos visto
ultimamente" ' (p. 110) acaba com um comentário sobre um par de collants pretos,
emprestados para o funeral da Jenny: ' "Parecia que não estavas a usar collants, quanto
mais pretos. Mas também não me parece que precises, pois não? Com esse bronzeado o
ano todo." Judith sorriu docemente para a Hannah' (p. 111). Intolerância, crueldade e
veneno são normalmente embalados impecavelmente pelas classes médias brancas
Britânicas. As boas maneiras, as mesmas formas pelas quais o contexto social contexto
é manipulado de forma a que, se a vítima protestar, é a única a provocar uma cena,
gritar, e se comportar de forma inapropriada – tudo isto funciona como um meio de
controlo social racista. Para que seja eficaz, o racismo – e o sexismo, anti-lesbianismoo,
e todo esse tipo de preconceitos – tem de parecer habitual, normal, parte integrante da
ordem natural. E os insultos devem ser proferidos com um sorriso.
O racismo não é um problema tão central no âmbito do colectivo dos artífices de vidro
de Hannah, quanto as confusões emocionais e o desejo sexual. Quando a Hannah
regressa ao trabalho, desenvolvera-se uma barrage de dificuldades eróticas. Burford
escreve percetivamente e bem sobre os medos, a fúria e os ressentimentos descabidos
que são libertados pela morte de alguém. O seu retrato de Hannah enquanto uma mulher
que é capaz, poderosa, comercialmente bem-sucedida, artisticamente talentosa e objeto
do desejo sexual emerge no texto não através do comentáro autorial direto, mas através
das respostas das outras mulheres na ficção. A proximidade entre as mulheres negras no
trabalho, Hannah e Caro, transforma-se numa cumplicidade interessante. Hannah
conhece as mulheres brancas há mais tempo mas é para Caro que ela se vira, e para
quem ela sente sempre um sentido de responsabilidade. 'Caro tinha o direito de estar
zangada. Eu fui insensível e egoísta – todas nós – mas devia ter sido pior tendo vindo de
mim. Ela tinha o direito de esperar apoio da minha parte, não o mesmo tipo de
negligência que os outros lhe dão' (p. 174). E é para com as outras mulheres negras que
Hannah compromete o seu futuro. A habitual rede de emoções - ciúme, dor, anti-
lesbianismoo e amor poderoso – surge da sua ligação. Burford não idealiza as relações
entre as mulheres da sua comunidade, mas ela insiste na solidariedade que nunca seria
tão evidente agora entre as mulheres brancas. Pois as mulheres brancas não estão tão
radicalmente em discordância com a Grã-Bretanha racista: e não há mais lugar para se
esconder. Uma mulher negra é sempre visível e invisível, ao mesmo tempo, entre os
brancos. Apenas entre as outras mulheres negras é que ele pode ser confortavelmente
reconhecida e sentir-se em casa.
A nova amante de Hannah, Marah, é uma tecelã. O seu talento é o de uma mulher,
passado entre as mulheres da sua família: 'A minha avó ensinou-me . . . eu espero que
ela e a minha mãe venham para ver a exposição' (p. 177). E aqui está o triângulo negro,
que Audre Lorde descreveu de forma tão triunfante no Zarni, o triângulo de mulheres
negras da avó, mãe, filha, que se reproduz num continuum. 'Eu senti o triângulo secular
184

da mãe pai e filho, com o "eu" no seu núcleo eterno, elítico e nivelado numa tríade
elegantemente forte de avó mãe filha, com o "eu" movimentando-se para trás e para a
Página
frente na mesma direção ou em ambas as direções conforme necessário.'328 A
comunidade de mulheres negras na escrita de Burford dá resposta a uma necessidade
física. 'Quando eu me mudei, eu costumava ir a Londres de vez em quando, só para ver
e estar com outras mulheres negras' (p. 153). Num dos seus contos no mesmo volume
que “O campo da Debulha” ['The Threshing Floor]', uma história subtil e engraçada
chamada “O verão Listrado” ['The Pinstripe Summer'], é sobre a chegada de uma
mulher negra chamada de Willoughby, contas no cabelo tilintando como aqueles
guerreiros Zulu, que inspira Dorothy a realizar o seu sonho. O poder e a ligação entre as
mulheres é uma realidade que inclui, mas que não é limitada pela palavra lésbica. A
escrita de Burford põe a descoberto a declaração de Lorde de que 'sempre houve fufas
negras por aí – no sentido de mulheres poderosas e apreciadoras de mulheres – que
teriam preferido morrer do que usarem essse nome para se referirem a si próprias. E isso
inclui a minha mãe' (p. 15).
As mulheres no Three Ply Yam de Caeia March descobrem isso mesmo, que antes do seu
casamento, a sua mãe tinha tido uma amante, cujas cartas ela tinha guardado. ' "Mas
porquê mantê-las se ela sabia que nós as encontraríamos?" "É uma mensagem," eu disse
baixinho.'329 Para uma mulher da classe trabalhadora, negra ou branca, os obstáculos
para deixar uma mensagem, quanto mais uma marca na cultura Britânica, são enormes.

É razoável querer que as pessoas leiam o que escrevemos; mas mesmo que sejamos capazes de o escrever (e não
deveria ser necessário alongar-se sobre os obstáculos materiais do tempo, sobrelotação, fatiga, anxiedade e
outras prioridades; também o problema cultural de se menosprezar; a falta de aceitação do que somos capazes
ou do que queremos escrever, o snobismo da lingaguagem e a opressão mais séria da nossa linguagem e
pensamento; a incredulidade dos guardiãos da cultura publicada; a abordagem turística da pobreza e da vida da
classe trabalhadora) que hipótese haverá de encontrarmos alguém a quem possamos mostrar o nosso trabalho na
expetativa de que irá ser lido, compreendido, apoiado, respondido, propagado e integrado na cultura, sem sem
em certa medida roubado de nós e do mundo do qual surgiu?330

No livro O fio de três dobras [Three Ply Yarn] a 'verdade que não é ouvida' da experiência
lésbica da classe trabalhadora é construída através de modos privados de escrita - cartas,
diários – e sobre o mecanismo da história oral ficcional. A experiência lésbica e a
experiência da classe trabalhadora são sujeitas a censura no discurso público comum.
Não se pode escrever sobre ou descrever as nossas vidas enquanto lésbicas e enquanto
mulheres da classe trabalhadora sem quebrar todas as normas culturais. É por isso que
uma grande parte da escrita da classe trabalhadora e dos primeiros trabalhos escritos
feministaas ou lésbicos é autobiográfico, quebrando o silêncio absoluto imposto sobre
uma vida vivida. March oferece-nos história social, seguindo as vidas de três
personagens e das suas amigas durante o período pós-guerra. Duas das narrativas
confessionais na primeira pessoa, aquelas de Dee e de Lotte, são supostamente faladas,
gravadas e transcritas, para que sejam escritas na ilusão da voz falada. A terceira
narradora, Essie, usa os seus diários e constrói a ficção. Isto, então, é ficção enquanto
testemunho; as mulheres falam como testemunhas da história. Não existe, obviamente,
nenhuma cultura comum da classe trabalhadora, tal como também não há uma única
'experiência das mulheres'; mas não há ligações, pontes, perceções partilhadas, e é com
esses elos que March está preocupada.
A narrativa mais facilmente distinta e intrigante de entre as três vozes é a de Lotte, a
mulher de classe trabalhadora a subir na vida. Ela rompe com as suas origens vendendo
a única coisa que ela tem para vender, o seu corpo. Ela casa fora, nas classes médias;
185

328
Audre Lorde, Zami:A New Spelling of My Name (1982; Londres, Sheba, 1984), p. 7.
329
Página

Caeia March, Three Ply Yarn (Londres, Women's Press, 1986), p. 226.
330
Dave Morley e Ken Worpole (eds), The Republic of Letters: Working Class Writing and Local Publishing (Londres,
Comedia, 1982), p. 11. Também muito relevante aqui é o Silences de Tillie Olsen (Londres, Virago, 1981). Consultar
também June Burnett et al. (eds) The Common Thread: Writings by Working Class Women (Londres: Mandarin, 1989).
mas nunca perde as suas perceções das formas de como a classe funciona. Ela sabe que
a classe não é apenas onde nascemos, mas também o dinheiro, os modos e o previlégio.
E ela joga para ganhar. 'As filas de soldados de prata já não eram uma ameaça para mim
e por essa altura eu já me tinha habituado a chamar uma tarte de bacon e ovo quiche
lorraine. Eu descobri que manter o meu sotaque estava a resultar. Toda a gente gostava
de mim. Eu era um pouco diferente' (p. 77). A história de Lotte, escrita com uma
sinceridade desarmante, demonstra o processo de tomada de consciência. Ela vai
trabalhando cada ideologia sexista com convicção e candura. A sociedade dita que ela
deve desejar ter filhos; por isso ela tem-nos. 'Os desejos iam surgindo de forma muito
intensa. Eu não podia continuar a ignorar o meu corpo' (p. 79). A infantilização das
mulheres na heterossexualidade é também habilmente descrita. O Marido James
humilhava-a ao não dar importância às suas opiniões, sob uma máscara de diminutivos
carinhosos. E isto tem o efeito desejado. 'Eu não tinha o mesmo nível de confiança em
mim mesma que tinha antes de conhecer o James' (p. 80). Uma das grandes mentiras do
feminismooo liberal é que os homens são incapazes de expressar as suas emoções. Este
não é o caso. É que simplesmente o leque reduzido de emoções que os homens
escolhem para se expressar é pouco útil para a causa da libertação das mulheres. March
sabe disso. Aqui fica o que acontece quando a Lotte consegue arranjar um emprego. 'Há
uma primeira vez para tudo, não é? James Junior andou à pancada comigo de um lado
do quarto para o outro quando ele descobriu… James mostrou muitas emoções, desde
fúria por eu ter feito tudo nas suas costas, a chorar dizendo que eu não o amava' (pp. 87-
8). Este casamento, como a maioria dos casamentos, é sobre o poder e o controlo. James
casou com uma mulher da classe trabalhadora, partindo do princípio que a poderia
controlar e ser condescendente – e de que ela não se importaria de ler a pornografia que
ele lhe dava para ler. O feminismoo não é uma opção que Lotte considere. Numa dada
altura ela lê O eunuco Fêmea [The Female Eunuch].” Mas eu não queria ser uma
revolucionária ou solteira, e eu não queria viver sozinha, de maneira alguma” (p. 84).
A conversão de Lotte ao lesbianismo é, infelizmente, o momento menos convincente da
sua narrativa. Ela conhece a Dee, a estonteante fufa mais velha, que, numa comoção de
clichés românticos, se parece um pouco com um cavalo de corridas, “elegante, com uma
graça e beleza profundamente a seus olhos' (p. 115). Elas caem nos braços uma da
outra, e mais uma vez – lá estamos nós. E no entanto, quando eu refletia acerca deste
encontro improvável, compreendi que havia uma verdade enterrada aqui; uma pessoa
cujas emoções foram trabalhadas através de todos os clichés sexuais conhecidos poderia
perfeitamente vir a apaixonar-se precisamente desta maneira. E só poderia apaixonar-se
por uma mulher mais velha.
Nem Dee nem Lotte se considerariam particularmente criativas ou
estruturadas/definidas/articuladas. March constrói as suas narrativas como se se
tratassem de discurso falado; frases curtas, com liberdade gramatical e as interjeições
casuais da narrativa oral. Essie, a rapariga de liceu é mais literária mas menos
convincente que Lotte. Todavia, ela é também um fenómeno da história social do pós-
guerra: a mulher da classe trabalhadora que é desenraizada da sua comunidade. 'Encher
a tua cabeça com essas ideias artísticas da treta, e afastar-te da tua gente aqui, vivendo
como vivemos' (p. 104). O 'swot-rot'/estudo forçado em decadência que assola Essie
transforma-se na doença do pensamento que a conduz por fim ao feminismooo. Um dos
livros por trás deste livro é Mulher no Limiar do Tempo [Woman on the Edge of Time] de
186

Marge Piercy, que inspira os sonhos utópicos de Essie.331 “Os meus sonhos
transformaram-se numa confusão de esperanças e medos sobre mulheres, hospitais
Página

331
Ver a minha reflexão sobre o romance de Piercy no capítulo 4 acima, “A Ficção de Género”.
psiquiátricos e sexualidade” (p. 178). Mas ao contrário de Piercy, a personagem de
March sonha com uma comunidade separatista de mulheres. O debate explícito, com
duas vozes que se opõem na ficção, é uma característica recorrente na escrita
feministaa. A amante de Essie, Chris, é uma médica que quer ser psiquiatra. Chris é
também da classe trabalhadora e lutou com as suas próprias mãos para integrar a sua
profissão. Ela recusa-se a desafiar as fundações da carreira que ela batalhou para ser
bem-sucedida. Essie é uma professora, e ocupa-se a fazer todas as perguntas
desagradáveis. Elas têm uma discussão claustrofóbica e muito interessante sobre Freud
numa casa de campo em Essex. Mas quando o relacionamento termina, March atribui
uma reflexão muito sábia a Essie. 'Eu sinto como se os seus métodos de sobrevivência
são simplesmente muito diferentes dos meus. Eu continuo a achar que ela não percebia
muito de Freud e da psiquiatria masculina… As nossas traições eram mútuas e
complicadas. Só porque ela é uma sobrevivente num mundo de homens não a torna má'
(p. 184). Bem, não a torna má, mas quer dizer que ela está implicada, por aquilo que
seja que ela faz no seio da província da psiquiatria masculina, no mal que essa profissão
faz chegar às outras mulheres, especialmente outras lésbicas. As consequências disto
são especificadas no livro. Dora, a primeira amante de Dee, passa anos num hospital
psiquiátrico.
Ela tinha sido uma das suas pacientes experimentais de nova medicação durante quase sete
anos. Tanto quanto sei, não lhe arrancaram a verdade acerca da sua homossexualidade. Esta
estava escondida da própria Dora, e na minha opinião foi a medicação que acabou com esse
disfarce… A causa oficial da morte de Dora foi a de insuficiência cardíaca. Eu sei que ela
morreu de medo quando os homens vinham até ela com os seus cabos e elétrodos, (pp. 52-3)

Até que ponto qualquer mulher está preparada para se comprometer com as instituições
da patriarquia irá depender da sua análise política da sua posição enquanto mulher, e do
seu acesso a essas instituições em primeiro lugar. Mas o fator decisivo sera se ela
considera a situação como sendo inaceitável ou simplesmente fruto do infortúnio; e isso
irá depender da sua experiência às mãos dos homens.
Este é um argumento importante no âmago do movimento revolucionário: infiltrar o
poder estabelecido e empurrar de dentro, ou aceitar a confrontação de fora, desfazer
assim a casa do amo com as nossas próprias ferramentas. Eu não acho que possa alguma
vez haver um mandamento absoluto sobre qual será o melhor a fazer, mas não é uma
luta na qual qualquer um possa afirmar ter as suas mãos limpas .
O interesse pelas questões dos negros, o racism e a liberdade dos países pós-imperial é
crucial na ficção de March. A amiga mais querida da infância de Essie é uma mulher
negra chamada Laura. Dee cria a filha negra da sua primeira amante. March escreve
sempre do ponto de vista de uma branca e nunca presume invadir o íntimo da
experiência do povo negro. O racismo é um problema branco; e March deixa isso bem
claro. Quando a Dee conta à sua velha amiga Nell que a filha da sua amante é negra, ela
enfrenta uma torrente de racismo.
'Eu quero dizer, castanha. É isso. Tu não devias ter ficado com isso. Devias ter mandado
isso de volta. De volta de onde veio.'
Isso. Como é que ela foi capaz de dizer 'isso'? Isso tinha um sexo. Isso tinha um nome.
Como é que ela se atrevia a chamar a Izzie de isso. Porque a Izzie era castanha. Ela não
a teria chamado de ‘isso’ se a Izzie fosse branca.
187

(p. 34)
Este é o padrão clássico do racismo: rejeitar a sua comunidade ou a ligação com a
pessoa em questão, transformá-la num objeto, e depois rejeitar e desprezar a sua
Página

realidade.
March mostra-nos personagens que aprendem e desaprendem os seus medos; sobre as
outras pessoas, sobre si próprias. Laura, a mulher negra, torna-se politicamente
envolvida no trabalho da juventude negra e acaba por casar com um homem negro. Ela
dá um bom conselho a Essie. 'Não te deixes confundir pela culpa Essie. Continua a
trabalhar, ok' (p. 142). É um conselho que todas as mulheres brancas deveriam aceitar.
A culpa tem sempre o efeito de fazer a pessoa que sente culpa o centro uma vez mais.
Elas podem então ficar paralisadas pela sua própria inadequação, e politicamente
inúteis. A exigência de Laura em relação à Essie é para que trabalhe, leia, pense, mude.
Laura por sua vez tem de repensar as suas atitudes em relação ao lesbianismoo. Quando
ela é confrontada pelas declarações de Essie, a sua primeira resposta é uma do Grande
Reportário Clássico Contra as Lésbicas: 'Afasta-te das minhas filhas.' Ela diz o
seguinte,' "Não é uma possibilidade nas suas vidas ... eu pensei sobre isso, Essie. Esta
não é simplesmente a minha reação instintiva. Trata-se do que o Joseph e eu sentimos, e
é sobre o que queremos para a Melody e a sua Sophie e para o seu futuro" ' (p. 142).
Impor-se em relação à vida das suas filhas já é algo que os pais fazem naturalmente.
Felizmente, os filhos muito raramente cumprem as exigências e expetivas dos seus pais.
O argumento de March é que o lesbianismo é uma possibilidade na vida de qualquer
mulher; o tema central do seu romance é o de se revelar, e o efeito que tal ato tem sobre
os outros; e por isso há muita gritaria, transtorno, e lágrimas.
As fufas normais, desempregadas da classe trabalhadora nos anos 80 em Londres
tornam-se as heroínas no Jumping the Cracks de Rebecca O'Rourke.332 O livro é
publicitado pelos editores como um thriller. Linda Semple, num artigo sobre as lésbicas
e a ficção criminal, tem o seguinte a dizer sobre o assunto. 'A sua heroína é uma fufa
normal que é envolvida num assassinato que se sente mais ou menos importente, tal
como qualquer um de nós se sentiria numa situação semelhante. O que muitos
consideravam uma solução banal e insatisfatória, é, eu suspeito, simplesmente a forma
como as coisas acabariam por ser para qualquer um de nós na vida real.' 333 Mas os bons
thrillers nunca representam 'a vida real', seja o que isso for, em termos da ficção escrita;
os detalhesverismo deveriam fornecer cor e cor local e cenário de fundo – e nunca
deveria interferir com o enredo. A intriga do assassinato em Jumping the Cracks é de
facto bastante mau. O vilão de serviço no seu Rolls-Royce é chamado à semelhança de
vários mísseis de médio alcance norte-americanos (agora trancados num armário à
espera da próxima Guerra Fria) e usa um sotaque americano, só para o caso de não
termos percebido a ideia. Mas o que o livro apresenta muito bem, usando de um detalhe
mórbido e triste, é o efeito que a marginalização, a rejeição e o desemprego têm sobre a
moral de uma mulher. É um livro sobre o extâse e o despertar gradual. Os thrillers,
mesmo os thrillers psicológicos, precisam de ação, reviravoltas e mudança. Rats, a
heroína, interiorizou profundamente um sentido da sua própria importência, que
encontra o seu símbolo externo na decadência da cidade. Ela fica na cama durante dias,
embebeda-se 'até ao torpor, até ao subsídio de desemprego acabar' (p. 5). Rats acaba por
procurar apoio na vida lésbica de Londres e não o consegue encontrar.'Normalmente ela
passava a noite encostada à parede, demasiado tímida e sentindo-se intimidada pelas
outras mulheres que pareciam conhecer-se a todas, para fazer dar qualquer tipo de passo
em relação a ela' (p. 51).
Rats é originária de Hull, de uma família católica de classe trabalhadora que a expulsam
de casa quando descobrem que é lésbica. 'Ela tinha pecado contra a Virgem Santa Maria
188

e todos os santos e mártires da Igreja Católica. Mas o seu maior pecado tinha sido
Página

332
Rebecca O'Rourke, Jumping the Cracks (Londres, Virago, 1987).
333
Linda Semple, 'Lesbians in Detective Fiction', Gossip: A Journal of Lesbian Feminist Ethics, no. 5 (1987), pp. 47-52: p.
51.
contra a família, a Sagrada Família e a sua própria família' (p. 79). O livro trata das
estruturas, instituições e indivíduos que rejeitam e excluem a Rats e mesmo assim
continuam a conseguir controlar a sua existência. Onde ela encontra apoio é na caridade
anónima da cultura do pub que ela normalmente frequenta. 'O pub continuava a beber,
fervilhando com o peso da semana de trabalho que se ia deixando para trás (p. 131).
Aqui, ninguém está a tentar mudar o mundo, e pode se descrever um homem a viver 'no
cemitério ou na soleira de uma porta, numa das casas abandonadas de Manor Road' (p.
134), constatanto o facto, sem ser alvo de horror, e julgamentos justos ou afronta moral.
A amante de Rats, Helen, eriça-se com dinamismo inteligente e envolve-se em várias
campanhas de alojamento. O texto deixa claro que a negatividade de Rats é causada não
apenas pela sua situação demarginalizada mas também pelas suas atitudes derrotistas.

Ela compreendia as relações de poder instintivamente. Para Rats, conhecer esse poder era
conhecer os seus efeitos na nossa vida, a sua capacidade para estruturar e controlar, intimidar.
Para Helen, era um desafio. Conhecer o poder era conhecer as suas fragilidades bem como os
seus pontos fortes. Onde não nos conseguia controlar tão bem como nos outros aspetos em que
o conseguia. Helen via a possibilidade de mudança. Rats apenas via a acomodação, (p. 146)

Estas são duas respostas políticas diferentes à impotência. Devo dizer desde já que
O'Rourke não está aconselhar as lésbicas desempregadas a se preparem, a montarem as
suas bibicletas e a construirem um futuro melhor para a Grã-Bretanha. A experiência
diária de viver como uma lésbica da classe trabalhadora não é tão demonstrativa de um
trauma catastrófico atrás do outro – apesar de estes realmente acontecerem – tanto
quanto apresentar um desfiar contínuo, desmoralizante e irritante de dificuldades que
advêm da recusa de se encaixar nas categorias rígidas do mundo do homem branco.
Existem algumas passagens no Jumping the Cracks que são genuinamente devastadoras
na sua economia e clareza pouco dramática. A rutura entre Rats e a sua família é
aterradora de se ler.

Essa última tareia não tinha sido testemunhada e não tinha sido contida… A cozinha era
demasiado pequena para fugir dele por muito tempo, a sua fúria demasiado poderosa para ela
resistir. E em vez de um sucinto, 'Tu és uma grande desilusão para a tua mãe e para mim,
Geraldine, uma grande desilusão,' tinha sido um desfiar de pragas que ecoaram por todos os
bares das docas em que o seu pai se tinha embebedado… Rats teve de faltar ao trabalho até que
as nódoas negras tivessem desaparecido. Ela perdeu o emprego. (p. 80)

A última frase concisa marca calmamente a concretização cumprimento do ódio


do seu pai pelo resto do mundo. Mas a escrita não é consistentemente mordaz. Também
somos alvo de uma sucessão de clichés floridos, 'o novo hospital', por exemplo,
'lançando uma sombra lúgubre de má-sorte sobre as ruas cruéis no meio das quais se
eregia' (p. 73), o que faz com que o hospital parece ser como o castelo do Drácula. Por
vezes, também, a cultura da classe trabalhadora começa a soar acolhedora de forma
pouco plausível. 'Al's era o centro sensato e fumegante da cordialidade .. . homens de
todas as idades nas suas roupas serviçais insípidas de trabalho duro. Um manto de fumo
repousava no vapor da urna e passavam-se em redor as latas tão facilmente como se
fossem jornais’ (p. 74). O problema levanta-se dos padrões dos dois adjetivos - 'sensato,
fumegante', 'insípidos, serviçais' – que tornam a prosa pesada e arruina o livro como
189

sendo um thriller, para além da pobreza do enredo. Os bons autores de thrillers usam
adjetivos como balas, de forma mordaz, rápida e economicamente; em vez disso a sua
Página

força vinha da utilização de verbos fortes.


É a experiência de ver um cadáver no banco traseiro de um Rolls-Royce e a iniciativa de
fazer uma ou outra pergunta sobre como tal veio a acontecer que vem a fortalecer a
auto-estima de Rats. Isto porque é ela que questiona e age; ela já não é agredida por
mais ninguém. Por fim, ela é capaz de assumir o controlo da sua vidae tomar as suas
próprias decisões. 'Ela já não sentia à mercê do mundo' (p. 149).

A grande imprensa faz agora uma transição para o mercado lésbico – e um grande número de
escritoras que começaram a suas carreiras como feministaas estão a contribuir para a imprensa
dominante. Nicci Gerrard pensa que isto é positivo.
A literatura mais triunfantemente feministaa da última década é aquela que se tem ocupado do
e não se tem preocupado com o feminismooo; moldado e permeado por uma consciência
feministaa, em vez de aprisionado na estrutura feministaa herdada do passado ... são várias as
escritoras que acolhem o adjetivo 'feministaa' nas suas vidas pessoais, que reagem com uma
espécie de horror à sugestão de que elas escrevam de facto 'romances feministaas'. 334

Poderíamos pensar que o lesbianismoo era realmente mais difícil de assimilar no mundo
conservador da publicação comercial. Não é tanto assim, ao que parece, desde que os
termos políticos sejam cuidadosamente policiados, e atribuído ao produto sexual uma
nova embalagem mais elegante. Mães e Amantes [ Mothers and Lovers] de Elizabeth
Wood foi habilmente publicado e embalado numa edição de capa dura pela
Bloomsbury. Wood é uma australiana a viver atualmente em Nova Iorque e o seu livro é
um Bildungsroman lésbico do tipo de Como-Eu-Cheguei- a- Ser- o- que-Sou, escrita
numa narrativa confessional realista na primeira pessoa. Trata-se de um livro sem
espinha dorsal; a primeira parte, que é excelente e muito bem escrita, debruça-se sobre a
infância e a adolescência dá repentinamente lugar a uma história muitas vezes contada
de casamentos de classe-média dissolvendo-se nos subúrbios.335 Senti que o romance
morria na página simplesmente porque os silêncios no texto se escancaravam como
feridas abertas. É-nos apresentada uma cena terrível de violação e de abuso heterosexual
sob hipnose. Mas quando se trata de sexo lésbico, contudo, é descretamente camuflado,
à exceção de uma voyeur casada que traz uma cópia da Playboy.

É isto que tu e a Jenny Murphy fazem?' ela sorriu de lado.


Elas usavam as habituais vestimentas pornográficas – cabedal e chicotes e reduzida lingerie de
renda, com beicinhos lascícios de bonecas e olhos em que se pode afundar – e eu mudei
abruptamente de assunto. Eu fiquei furiosa com a, (p. 192).

Dizem-nos que a heroína se torna feministaa. Nós nunca assistimos a isso. Dizem-nos
que ela produz uma crítica teatral feministaa que não se compara a qualquer outra
experiência teatral antes vista' (p. 197). Mas nunca vimos isso a acontecer. O
feminismoo é narrado; o assunto real é o casamento e a maternidade. Mas mesmo aqui,
existem espaços em branco. O espaço em branco mais perturbador é o marido da
heroína. Ela é atraída para ele porque ele é opaco, e opaco ele permanece. 'Eu não posso
fazer perguntas. Eu não tenho respostas. O Duncan está em falta no meu texto. Eu não o
reconheço em lugar nenhum' (p. 259). Eu também não. Existe uma fatia forte,
desagradável, silenciosa e cabeluda de carne masculina a movimentar-se pelo romance;

334
Nicci Gerrard, Into the Mainstream: How Feminism has Changed Women's Writing (Londres, Pandora, 1989), p. 106. Eu
190

discord da maioria do que Gerrard tem a dizer. O seu conhecimento da indústria da publicação é claramente de um
conhecedor. O seu relato confirmou o meu receio de que as piores coisas que eu oiço são todas verdadeiras.
335
Página

Elizabeth Wood, Mothers and Lovers (Londres, Bloomsbury, 1988). Mas consulte a crítica de Linda Semple' no Silver
Moon's quarterly bookshop review, no. 6 (Primavera 1988): 'Esta parte do romance é extremamente convincente; o lento
colapso e eventual esgotamento do casamento deMorgan, e o seu entendimento ao conhecer e se apaixonar por outra lésbica,
são escritos de forma inteligente.'
mas o signo - marido – permanence consideravelmente em branco. E este não é um
silêncio sinistro e eloquente, mas simplesmente um fracasso na análise da
masculinidade – o que seria, penso eu, um elemento importante num texto que se
propunha descrever as instituições heterossexuais. Surpreendentemente, Mães e
Amantes [ Mothers and Lovers], na última secção, ergue-se repentinamente da página e
liberta-se do torpor cinzento do cliché para se tornar num thriller quando a nossa
heroína luta por um caso de custódia lésbica. Tal como eu já afirmei anteriormente, a
ficção de tribunal é sempre intrinsecamente dramática. A narrativa é tensa, reveladora,
dolorosa e desesperante. E contudo, e contudo. . . 'Lésbica. Porque é que eu sinto que
ninguém tratou realmente deste assunto ? . . . é o único assunto que toda a gente rodeia e
espera guarder na prateleira' (p. 296). Ela é que o disse, irmãs, não foi eu. Mas eu tenho
as minhas suspeitas de que se Woods tivesse tratado do lesbianismoo de outra forma
que não uma preferência sexual não convencional, a imprensa heterossexual nunca teria
publicado este livro. Na excelente secção introdutória, duas fufas chamadas Winnie e
Gayle declaram Guerra à sociedade e saem do romance. ' "Guerra!" Winnie gritou para
o topo das árvores. "Guerra, camaradas, irmãs, para a batalha contra a sociedade." Ela
deu o braço a Gayle e começou a marchar pela rua abaixo' (p. 75). A política da
sexualidade parte com a Winnie e a Gayle. Eu julgo que os dois silêncios substanciais
que rodeiam o signo MARIDO e o signo LÉSBICA refletem-se um no outro. O tema
real de Woods era o casamento e a política da heterossexualidade. O lesbianismoo era
acessório. E no entanto Mothers and Lovers nem chega a abordar as alavancas e
braçadeiras do poder masculino no casamento. Porque é que ela casou com ele? Alguns
mistérios são universais. Poucas mulheres chegam realmente a saber porque é que
casaram, ou porque casaram com aquele homem em particular.
A questão da identidade lésbica permanece controverso - e plural. Há muitas formas de
expressar o significado de lésbica. Mesmo os parâmetros exteriores às nossas vidas
estão a mudar.

Quem é que pode imaginar, a sua mente meia fechada, como é que será uma
lésbica num ambiente não-hostil – sabemos tanto sobre isso como sobre o
efeito da ausência de gravidade nas plantas.
Estamos todas em retrocesso, a tentar nos confundir com o meio que nos
rodeia, arranjar emprego, não dizer nada. O perigo distrai-nos do pensamento
abstrato. Eu tenho de continuar a pensar. Atrever-me-ei a escrever outro
romance lésbico? Como irei subsistir se o fizer? 336

As condições sobre as quais uma mulher decide viver como uma lésbica, ou escrever
como uma lésbica, mudaram imenso no período de sessenta anos após o The Well of
Loneliness ter sido processado por obscenidade. Mas mesmo agora, à medida que
escrevo, tenho consciência de que cada vitória frágil pode ser-nos arrancada das mãos.
Já assisti a muito do que lutámos nos anos 70 a ser levado de volta por uma sociedade
minada pelo ódio por tudo e todos que desafiem as estruturas do poder establecido.
A segunda autobiografia de Rosemary Manning, Um Corredor de Espelhos [A Corridor of
Mirrors], abrange aproximadamente esses sessenta anos. Manning escreve sobre os seus
anos na penumbra/ armário – ela assumiu-se aos setenta em 1980 – como sendo 'os anos
da desonestidade' e 'o hábito do sigilo'. 337 A máscara das mentiras e o mundo que a
191
Página

336
Anna Wilson, 'On Being a Lesbian Writer: Writing Your Way Out of the Paper Bag', in Lesley Saunders (ed.), Glancing
Fires: An Investigation into Women's Creativity (Londres, Women's Press, 1987), p. 145.
337
Rosemary Manning, A Corridor of Mirrors (Londres, Women's Press, 1987), p. 3.
forçou a viver escondida quase destruiram a sua vida. A Corridor of Mirrors parece
muitas vezes ser um sermão de final de período escolar, indicando onde as raparigas
estiveram bem, e onde não estiveram à altura das expetativas. Infelizmente, não existe
um um período seguinte no qual se possa fazer melhor. Eu acredito piamente, tal como
Manning, que esta vida é tudo o que temos. E a vida dela, com a sua dor, desespero,
infelicidade suicida, resulta numa leitura pungente. Ela não se apressa a culpar a sua
infelicidade no mundo exterior; no entanto a sua própria história força-a a fazê-lo. 'A
necessidade de manter o silêncio em público sobre o facto de se ser gay exerce uma
pressão sobre mim que os jovens gays de hoje não têm noção ' (p. 162). E é também
dolorosamente claro que, para ela, assumir-se aos setenta foi a afirmação da liberdade,
que é 'apenas outro nome para nada mais a perder'.
A atitude de Manning perante a escrita é muito semelhante à velha escola, baseada na
inspiração e na creatividade. Ela também sustenta que o seu hábito imposto de sigilo
sobre a sua sexualidade não afetou a sua escrita. Ela escreve, não é necessário escrever
sobre os gays só porque tu és gay, tal como te sentirias compelida a escrever sobre
corcundas porque tens alguma deformidade' (p. 167). Até mesmo essa frase é um
emaranhado de ódio por si própria; porquê igualar o Lesbianismoo a uma deformidade?
Ou de facto, ter uma corcunda com uma deformidade? E ela continua a justificar-se: 'Eu
estou muito simplesmente interessada nas pessoas e nos seus motivos, e nas
circunstâncias que as fazem ser o que são . . .' (p. 167). Esta é também uma attitude da
velha escola do previlégio; a falácia do liberalismo que supõe que nós podemos
simplesmente estar interessados nas pessoas quer sejam mulheres ou homens, Negros
ou brancos, heterossexuais ou Gay, como se estas coisas não estruturassem, de uma
forma fundamental, as suas vidas. Então ser uma 'pessoa' torna-se estranho, desligado,
eterno, uma dimensão extra. Até mesmo ser humano não pode reinvindicar com igual
convicção por cada um de nós, quando as mulheres e os negros têm sido tratados muitas
vezes de uma maneira sub-humana há séculos. As lésbicas sãolésbicas vinte e quatro
horas por dia. E toda a vida comovente de Manning dá testemunho que o facto dela ter
Escondido a sua sexualidade – à qual ela frequentemente se refere como as suas
inclinações, ou as suas predileções, como se as mulheres fossem chocolates – marcaram
toda a sua existência e quase a destruiu.
O sexo, a sexualidade, o racismo; estas são questões políticas, e devemos confrontá-las
na nossa escrita com uma consciência política aberta e informada. Janice Raymond,
entrevistada pela revista feministaa radical Trouble and Strife, insiste no preço a pagar
por viver enquanto lésbica. 'Pagamos um preço por ser lésbica, um preço político. E
numa dada altura, politicamente falando, eu penso que escolhemos ser lésbica. Apesar
de eu nunca ter sido outra coisa que não lésbica, eu continuo a pensar que numa dada
altura eu tomei uma opção muito consciente . .. '338 E é claro que, o quê e quem uma
lésbica realmente é, continua a ser material de debate, uma vez que, especialmente no
seio do movimento das mulheres, existem mulheres que irão escrever alegre e
sinceramente, 'Eu acredito no sexo e fui habilitada pelo sexo tanto com homens como
com mulheres . .. '339 Um interesse recente nos papéis de macho/feminino e até mesmo
no Grande Debate Sado-Masoquista Lésbico prende-se, eu creio, com o afastamento do
feminismoo em muitas comunidades lésbicas.340 Mas há também lésbicas radicais como
192

338
'The Politics of Passion: Janice Raymond talks with Suzanne Kappeler, Liz Kelly and Kathy Parker', Trouble and Strife,
no. 11 (Verão 1987), p. 40.
339
Pat Gowans, 'Womb Oppression and Sex as Power', Off Our Backs, vol. 17, no. 8 (Agosto-Setembro 1987), p. 24.
Página

340
Dois artigos relevantes no Gossip: A Journal of Lesbian Feminist Ethics, no. 5 (1987) são Anna Livia,' "Eu preferia
estar morta do que ter desaparecido para sempre": Butch and Femme as Responses to Patriarchy', e Sheila Jeffreys, 'Butch
and Femme: Now and Then'.
Julia Penelope, que deixaram de se chamar feministaas porque para elas a palavra
dissolveu-se numa lavagem de humanismo reformista liberal.
Mas será que o preço político a pagar por viver como uma lésbica envolve
necessariamente qualquer tipo de compromisso com outras mulheres que decidiram que
não são lésbicas e preferiram correr os seus riscos com homens? Talvez apenas para as
mulheres que se chamam feministaas e usam a palavra com toda a sua fúria original.
Obtemos uma resposta ficcional em Altogether Elsewhere de Anna Wilson. Este romance é
um retrato de um grupo de mulheres em guerra; mulheres cuja solidariedade se prolonga
através da raça, da classe e da sexualidade. A sua energia é dirigida para fora, contra o
seu inimigo; elas defendem as outras mulheres, todas as outras mulheres, contra a
violência dos homens. As lésbicas são tão vulneráveis a esta violência endémica como
qualquer outra mulher; por vezes ainda mais vulneráveis se não forem capazes ou se se
recusarem a se fazerem passar por heterossexuais. A prosa sucinta, elegante e
assustadora de Wilson descreve uma violência que não é pessoal, que é em si própria o
sistema do ódio à mulher, uma intensificação das condições nas quais todas nós
vivemos. 'Há uma certa qualidade de afastamento nas suas ações quando a colocam
contra a parede. . . Ele encontra-se tão perto dela, quase a tocá-la, uma intimidade
deliberada de violência.'341 É o feminismooo lésbico radical que reconhece as mulheres,
todas as mulheres, como um povo em risco. A nossa esperança na mudança assenta
portanto em alianças necessárias e na ação coletiva. E tal implica mesmo uma análise
política que compreenda o lesbianismoo como mais do que uma preferência pessoal. A
escrita lésbica torna-se pois numa posição a adotar e a partir da qual se compreende o
mundo. E para todas nós, eu desejo o final maravilhoso, inesperado e digno de aleluia
de Rosemary Manning: ' .. . As minhas amigas e eu, num ultimo gesto, brindamos aos
nossos amores e atiramos as rolhas do champanhe ao rio que corre aos nossos pés.'342

193
Página

341
Anna Wilson, Altogether Elsewhere (Londres, Onlywomen, 1985), p. 108.
342
Manning, A Corridor of Mirrors, p. 234
7
Escrita Anti- Racista
Sobre a mágoa

Magoada?
Quem, eu?
Magoada?

Não te iludas.
Não estou magoada.
Apenas furiosa
com a tua irritante
presunção de classe média.

In Meiling Jin, Watchers & Seekers

Ao longo deste livro, a autobiografia das minhas leituras, recusei-me a escrever seguindo a convencional
divisão entre o “eu” enquanto escritor e o meu assunto – as minhas leituras. Não me apresentei como um
elemento externo que observa, comenta e se mantém afastado. Eu faço parte da minha narrativa. Usei
sempre Eu/Nós. Mas aqui escrevo como alguém que está de fora. Li enquanto mulher branca procurando
o cerne de um conhecimento e de uma experiência que eu apenas me posso esforçar por imaginar mas que
nunca posso ter sentido na minha pele: aquela vivência de ser Negro. E eu estou ciente que as minhas
leituras do trabalho de mulheres Afro-Caribianas e Asiáticas que viveram na Grã Bretanha, ou que
fizeram parte das inúmeras migrações dos povos de raça negra, impostas pelo capital branco, foram feitas
de forma diferente daquelas em que eu li ficção da autoria de feministas de raça branca ou mulheres
brancas. Não se trata de uma questão de deter padrões de exigência menores em relação àqueles que
utilizo para comentar a escrita das mulheres brancas, nem mesmo de padrões necessariamente diferentes.
Ambas seriam tanto condescendentes quanto racistas. Em vez disso, trata-se de uma questão de leitura no
seio de diferentes tradições: tradições que não são brancas, que têm diferentes prioridades, diferentes
antepassados literários, diferentes reminiscências masculinas, diferentes ritmos - e, acima de tudo, uma
relação diferente com a tradição oral. Por vezes, a escrita branca occidental encontra alguma hostilidade
na escrita de mulheres negras, de acordo com a sua perspeciva : pois as ligações ou confrontos da mulher
negra com as palavras da mulher branca ou homem branco será diferente daquelas de uma mulher branca.
O mais importante a fazer para mim, enquanto leitor, é escutar essas diferenças.
Uma grande parte das supostamente más interpretações criativas da escrita negra e asiática por parte
das mulheres brancas são simplesmente resultantes da ignorância, arrogância e preconceito. Barbara
Burford, num artigo sobre a leitura e escrita das mulheres negras na Grã-Bretanha, previne contra o
perigo das vozes brancas 'que procuram nos descrever'. Ela salienta: 'Nós verificaremos que qualquer voz
branca que procure nos descrever, estará a descrever as suas próprias necessidades e desejos.' 343 De facto,
toda a leitura política crítica reflitirá - necessariamente – os desejos do leitor em vez dos do escritor. E os
escritores não controlam sempre os seus próprios significados. Eu sou, no entanto, da escola de escritores
e leitores que acredita que algumas leituras são mais apropriadas e inteligentes do que outras.Eu
compreendo perfeitamente Amryl Johnson quando ela escreve dos críticos: “O que deixam transparecer
na maioria das vezes, é que nem entendem o que estão a tentar dizer. Isto é o mais irritante. Em alguns
casos, nem chegam perto de entender.” 344Eu estou certa de que ela tem razão. No caso de uma mulher
branca ler uma peça escrita negra e asiática, as consequências dessa não compreensão pode ser a
reprodução dos clichés do racismo branco. O título deste capítulo, portanto, “Escrita Contra o Racismo”,
não descreve apenas a intenção ou efeito político do trabalho que eu li mas é também um desafio e uma
lembrança a mim mesma como escritora. A escrita, toda a escrita, pode ser uma arma para a mudança; de
igual forma, pode reforçar o status quo. Muito bem então, eu fui avisada. E levei-o a sério.
194

343
Página

Barbara Burford, 'The Landscapes Painted on the Inside of My Skin', Spare Rib, no. 179 Qune 1987), pp. 36-8.
344
Amryl Johnson, in Lauretta Ngcobo (ed.), Let It Be Told: Black Women Writers in Britain (Londres, Pluto, 1987), p. 44.
Toda a leitura, a minha incluida,é uma sequência de encontros: com um texto, com outra mente, com
uma forma diferente de ver as coisas. Alguns destes encontros resultam num sentimento de pesaroso
reconhecimento; algum medo, choque, alarme, fúria, ou o reconhecer de uma Outra coisa que eu nunca
toquei antes e com a qual eu só posso aprender. Não há uma forma correta de ler. Nenhuma leitura é
inocente. Através deste ensaio, eu comprometi-me a uma política anti-racista de leitura. Mas eu faço parte
de uma audiência mais alargada para a escrita negra, uma leitora acidental. A maioria destes livros não
foram escritos para mim, mas para outras mulheres negras; e isto manter-se-ia assim, mesmo se a maioria
do público leitor fosse branco.
A experiência da 'não-pertença' é traçada eloquentemente pelos escritores negros Britânicos de ficção e
poesia, e é o título do primeiro romance de Joan Riley, The Unbelonging345 A não-pertença pode ser um
nome abstrato, que descreve um estado ou condição, e também pode ser um sujeito concreto, uma pessoa
que não tem estado, desenraizada, alienada. Adjoa Andoh agradece a Riley pelas suas palavras e conta em
verso, outra versão do mesmo título.

eu não tenho a pronúncia certa nem para pronunciar o meu próprio


nome corretamente, não – não em Inglês do Gana?
olha para mim, sou negra, não sou branca,
não me digas que sou inglesa, eu já ouvi demasiados wogs e
pretos e volta para o lugar de onde vieste,
onde está o meu legado?
não é que tu o possas apanhar onde calha, tu cresces com ele,
tu absorve-lo,
eu absorvi a terra de ninguém. 346

Uma e outra vez, a escrita negra e asiática reflete a experiência excecional, esgotante de ser ao mesmo
tempo visível e invisível, aomesmo tempo presente e ausente, incomodada e ignorada, perpetuamente
insegura na Grã-Bretanha branca e racista. As lésbicas brancas, se quiserem ou forem capazes de se fazer
passer por heterossexuais, podem desaparecer numa categoria social previlegiada para escapar à censura,
violência ou discriminação. As mulheres negras e asiáticas nunca o podem fazer. A eterna pergunta
branca, 'De onde vens?' seguida de, 'Eu quero dizer de onde é que realmente vens?' insisteno facto da não-
pertença. Mas da análise negra da não-pertença vêm os significados poderosos negros – de identidade e
comunidade.
Mas é claro que não existe semelhante coisa de 'Escrita das mulheres negras': nenhum bloco de
trabalho homogéneo que tenha necessariamente as mesmas preocupções, obsessões, pressupostos, formas.
Existem as mulheres negras que vivem, trabalham e escrevem na Grã-Bretanha, algumas das quais se
descreveriam como Britânicas e outras que não. A escrita das mulheres da Índia, bem como a escrita das
negras Afro-americanas, foi e continua a ser uma inspiração para as mulheres negras na Grã-Bretanha.
'Elas agiram como um catalizador para a discussão, e reafirmaram que estavam a ser explorados
semelhantes tipos de consciências. Sempre com a apreciação de que "apesar de de falar diretamente à
nossa experiência, não fala diretamente da nossa experiência.”347 A primeira conferência para mulheres
negras na Grã-Bretanha, para mulheres que se definem como feministas negras, realizou-se em 1984; as
mulheres entitularem a conferência significativamente 'We Are Here' (Nós estamos aqui). Esta auto-
definição orgulhosa e desafiante indica que as mulheres negras não estão apenas aqui, presentes na Grã-
Bretanha, mas também visíveis como um movimento autónomo de mulheres negras – estão aqui para se
ajudarem umas às outras. Tem havido, obviamente, uma presence negra na Grã-Bretanha há pelo menos
400 anos. “Nós estamos aqui, temos estado aqui há muito tempo e estamos aqui para ficar. No entanto, as
nossas vozes e histórias são suprimidas para manter a mentira de que nós vamos embora ou que seremos
enviadas de volta.”348

345
Joan Riley, The Unbelonging [A não pertença](Londres, Women's Press, 1985).
346
Adjoa Andoh, 'I'd Also Like To Say .. .', in Black Womantalk (ed.), Black Women Talk Poetry (Londres, Black
195

Womantalk Ltd, 1987), p. 31.


347
Dorothea Smartt and Val Mason-John, 'Blackfeminists Organising on Both Sides of the Atlantic', Spare Rib, no. 171
(Outubro 1986), pp. 20-4.
Página

348
Maud Suiter in Ngcobo, Let It Be Told, p. 64.
Em 1987, o primeiro grupo editorial de mulheres negras, Black Womantalk, publicou a sua primeira
antologia, Black Women Talk Poetry. A orientação editorial coletiva no seu texto esboça a sua luta para
aparecer na imprensa apesar de todas as contrariedades. E as contrariedades - económicas, emocionais,
políticas – eram enormes. Elas tinham a certeza de que o trabalho estava a ser feito, mas sabiam que
tinham de ir à procura dele. 'As mulheres negras não estão habituadas à sua escrita ser levada a sério, e
nós compreendemos muito cedo que não seria uma simples questão de publicitar que procurávamos
poemas! Nós organizamos várias leituras públicas para mulheres negras e lentamente elas foram
persuadidas a entregar os seus escritos.'349 Os membros da Black Womantalk Collective provêm de
diferentes contextos étnicos. Um deles provém da comunidade chinesa. Algumas ativistas negras
preferem usar o termo 'Negra' apenas para se referirem às mulheres de origens Africanas – e há
certamente vastas diferenças culturais entre as duas maiores comunidades não-brancas na Grã-Bretanha:
as mulheres sul asiáticas e aquelas provenientes de culturas Afro-Caribenhas. Por outro lado, existem
mulheres que vêem o 'Negro' como um termo político, como uma força unificante. Savitri Hensman
escreve no seu poema 'Black is Not a Skin Colour'
,
Negro
Não é uma cor de pele
O negro não pode conduzir carros chiques
Ou olhar com desprezo para os pobres
A mão que maneja a machete é negra
Cortando o açúcar para que outros enriqueçam…
O negro agarra as armas e as facas
Para derrubar os ricos e poderosos
Negro é a cor de um coração350

196

349
Black Womantalk, Black Women Talk Poetry, p. 8.

350
Página

Savitri Hensman, Flood at the Door (Londres, Centerprise Trust, 1979), p. 4. Mas ver a meditação de Audre Lorde
sobre este assunto no A Burst of Light (Ithaca, NY, Firebrand, 1988), p. 67. 'Eu vejo certas armadilhas ao definer o negro
como uma posição política. É necessária uma identidade cultural de um grupo alargado mas definido e transformá-la uma
identidade genérica para povos culturalmente muito diversos, todos com uma base de opressão partilhada. Ao faze-lo, corre-
e educada em Londres. A escritora Jamaicana Elean Thomas toma uma posição semelhante no 'Of
Colours and Countries' [De Cores e Países]:

O branco não é uma cor


É uma atitude
Um certo comportamento

O negro não é uma cor


É uma afirmação
de um passado partilhado
uma realidade presente
uma intenção futura351
As migrações e a deslocação de populações durante o período colonial uniram os povos das
Antilhas, África e o sub-continente Indiano. Muitos dos Asiáticos que agora vivem na Grã-Bretanha vêm
da áfrica Oriental - Tanzânia, Quénia, Uganda – e não conheciam outro país que não África. A sua
experiência de África tem sido aquela de uma comunidade imigrante, tal como a sua experiência da Grã-
Bretanha. As migrações causadas pelo colonialismo Britânico também criaram comunidades asiáticas nas
Antilhas. O negro, na escrita de muitas mulheres, portanto torna-se uma categoria política – e uma
afirmação da orgulhosa resistência ao racismo branco. Pois os racistas Britânicos não têm o hábito de
fazer muito específicas no que respeita às tradições e realidades históricas. O racismo, em todas as suas
formas, subtil ou brutal, é endémico a todas as estruturas desta sociedade, e afeta ambos os grupos de
mulheres. Assim, o racismo é um prâmetro da existência dos negros. Mumtaz Karimjee, a fotógrafa
asiática negra, escreve no Mukti: 'Numa última análise, eu sinto que é esta sociedade racista e a sua
hostilidade para com a minha existência e a existência de todo o povo negro que nos força a questionar
continuamente quem nós somos, onde pertencemos e porquê. Nunca nos permite a segurança de nos
simplesmente reclinarmos e sermos quem nós somos sem justificarmos a nossa existência.' 352 E é claro
que haverá tensões entre os povos Afro-Caribenhos e os asiáticos a viver na Grã-Bretanha. 353 Buchi
Emecheta, na sua autobiografia de sobrevivência, Head Above Water, deixa claro que 'nós,os negros' quer
dizer Africanos e Afro-Caribenhos. No seu trabalho de professora numa grande escola de Londres, ela
tem um encontro 'com alguém de origem asiática, uma certa Sra Patel.'

No início ela sentava-se-se connosco, os negros, e conversávamos acerca do nosso


trabalho, das nossas origens, das nossas famílias. Eu fiquei a conhecê-la muito bem e
pensava que ela era uma amiga. E de repente ela deixou de se sentar connosco, e nem
respondia qundo lhe desejava “Bom dia”. Eu ficava a olhar para ela, sem saber o que nós
tínhamos feito. Uns dias mais tarde, ela dirigiu-se a mim e ao Sr.Enenmoh e disse que se
queria estabelecer como professora/ assegurar a sua posição como professora e que ela
preferia ser vista a confraternizar com os professores brancos… Todas as pessoas do
grupo se riram e eu pessoalmente admirei a sua franqueza. 354

Neste caso é a Srª Patel, que se exclui. E, tal como nesta passagem, a tensão ou ressentimento entre
asiáticos, Afro-Caribenhos e Africanos deve ser sempre lido num contexto do racismo branco e da
história do imperialismo britânico. Dividir e governar tem sido sempre a política mais universal, e mais

se o risco de fornecer uma cobertura conveniente de aparente semelhança sobre a qual as nossas diferenças reais e
inaceitáveis possam ser distorcidas ou mal utilizadas.'
351
Da colectânea de Elean Thomas, Word Rhythms from the Life of a Woman, citada pela autora no seu artigo sobre as
Sistren, 'Lionhearted Women', Spare Rib, no. 172 (Novembro de 1986), pp. 14-19.
352
Mumtaz Karimjee, 'Black and Asian: Definitions and Redefinitions', Mukti, no. 6 (Primavera de 1987), edição especial
sobre o racismo e o preconceito.
197

353
As questões aqui são muito complexas. Ver, por exemplo, o artigo no 'Maids and Madams in the Natal Indian Community' de
Lorna, Mukti, no. 6 (Primavera de 1987), e a resposta por Najma Kazi para o debate à volta desta discussão controversa publicada
Página

com o artigo.
354
Buchi Emecheta, Head Above Water (Londres, Fontana, 1986), p. 179.
bem sucedida, usada pelos poderosos para manter a sua posição. Os brancos têm usado este método
contra as comunidades negras,os homens têm-na usado contra as mulheres. Não obstante, para contrariar
e derrotar o racism branco, é crucial analisar e compreender as diferentes heranças culturais, as diferentes
memórias históricas.
Existem contrastes religiosos entre as mulheres de descendência asiática ou Afro-Caribenha. As
mulheres asiáticas terão a tendência a dar mais preponderância ao sistema de casamento arranjado nas
suas narrativas e preocupações,355 enquanto a experiência da poligamia é importante na escrita africana,
tanto para as mulheres muçulmanas como para as mulheres a viver no seio das estruturas religiosas
africanas tradicionais onde a poligamia é praticada. (Não será assim para as mulheres Afro-Caribenhas a
viver na Grã-Bretanha.) Família, comunidade, maternidade; estas coisas serão modeladas e
experienciadas de formas diferentes. A segurança e o tormento encontrados nas instituições tradicionais
têm diferentes formas e implicações. No entanto, os maus-tratos às mulheres parecem ser notavelmente
constantes em todas as comunidades. Os mesmos padrões emergem: sexismo, violência masculina e a
perseguição das lésbicas. Ambas as comunidades tiveram a experiência histórica do imperialismo
Britânico ou europeu e a consequente perturbação ou destruição da cultura e dos valores, as migrações,
exploração, opressão; mas apenas os africanos negros e os seus descendentes tiveram a experiência da
escravatura.
Todas as mulheres negras são especializadas no racismo branco. 'Quanto a trabalhar neste país, as
pessoas têm sempre dúvida se uma mulher asiática a usar um sari é capaz de exercer um trabalho que
exija o uso da inteligência.'356 Questões de linguagem, vestuário, identidade, tradição tornam-se, portanto,
críticas no trabalho das mulheres Britânicas. Se, tal como a romancista Buchi Emecheta, tu fores uma
mulher negra a escrever não na tua lingual maternal mas na tua quarta língua, então a tua relação com
essa língua e a sua história será complicada e oblíqua. Muitas mulheres negras são originárias de culturas
que têm uma relação muito mais próxima com uma grande tradição oral da narração de histórias,
recitação e canção do que as escritoras brancas britânicas a trabalhar como Inglês. Emecheta dramatiza tal
facto no Head Above Water. A história do seu nascimento é-lhe contada pelas suas mães, e dentro do seu
próprio texto, a sua mãe mais velha, isto é, a irmã mais velha do seu pai, conta a história às crianças. 'Ela
tinha conseguido suscitar a nossa curiosidade e expetativa e ela estava consciente disso. Ela fechou os
seus olhos e deslizou lentamente para um dos seus trances de contadora de histórias. E quando ela abriu a
sua boca para falar, a voz que se ouviu era distante e hipnotizante…” (p. 8). Muitas mulheres negras a
trabalhar atualmente na Grã-Bretanha escrevem poesia e ficção. Barbara Burford, Merle Collins, Grace
Nichols e Amryl Johnson publicaram tanto poesia como ficção (ou prosa autobiográfica). A escrita negra
vai muitas vezes buscar inspiração aos ritmos da narrativa oral ou do discurso falado. Os testemunhos
das Sistren no Lionheart Gal: Life Stories of Jamaican Women estão maioritariamente escritas em Patoá
Jamaicano e, idealmente, deverá ser lido em voz alta. Muitas das narrativas foram originalmente gravadas
da voz falada.357 A poesia forma a maior parte do trabalho criativo das mulheres negras na Grã-Bretanha
que tem sido publicado: e aqui, o elo entre a canção e a tradição oral torna-se explícita. Na tarde de 'In
Aid of Azania/In Celebration of Audre Lorde' a 6 de Dezembro de 1987 no Teatro Shaw, em Londres,
Iyamide Hazeley declamou a sua poesia; o seu último poema transformou-se num cântico e numa canção.
Ela ensinou-nos o refrão e nós juntámos as nossas vozes à sua, criando assim a comunidade de perceções
partilhadas, de resistência partilhada à opressão. A poesia deu lugar a um espetáculo, e então/assim à
possibilidade de uma ação coletiva. Quando as mulheres negras estavam impossibilitadas de escrever,
elas continuaram a ripostar, elas continuaram a lutar – através da canção.

Os importantes papéis desempenhados pela música e pela dança na cultura negra foram historicamente influentes na
socialização sexual das jovens negras. Por tradição, a música - espirituais, gospel, blues e jazz – é uma presença
predominante nas vidas das comunidades negras. A matéria dos blues era retirada da realidade: não há forma de escapar das
duras e amargas labutas do dia a dia.
As cantoras de blues foram singulares ao registarem a história e as lutas das mulheres negras através da canção. 358

355
Ver a extraordinária autobiografia de Sharan-Jeet Shan In My Own Name (Londres, Women's Press, 1986), analisada em detalhe
no capítulo 3, 'Sobre autobiografia'.
356
Babli conversando com Amrit Wilson no seu escritório Finding a Voice: Asian Women in Britain (Londres, Virago, 1979,
1984), p. 133.
198

357
Ver a introdução de Honor Ford Smith à Sistren, Liotiheart Gal: Life Stories of Jamaican Women (Londres, Women's Press,
1986), pp. xxvi-xxxi.
Página

358
Gloria I. Joseph, 'Styling, Profiling and Pretending: The Games before the Fall', in Gloria I. Joseph and Jill Lewis, Common
Differences: Conflicts in Black and White Feminist Perspectives (Nova Iorque, Anchor/Doubleday, 1981), pp. 182-3.
Para muitas mulheres negras, tanto Afro-Caribenhas ou Americanas negras, a canção é a canção gospel
e a comunidade negra que a canta é a igreja. A igreja transforma-se numa personagem, numa presença, no
I Know Why The Caged Bird Sings de Maya Angelou.359 O significado do cristianismo, e particularmente
do protestantismo radical, é muito diferente para as comunidades negra e branca. Para um povo que tem
uma memória histórica da escravatura, a história do Êxodo transforma-se no conto da libertação de um
povo aprisionado, e o Deus que lutou ao lado dos oprimidos, o Senhor que os libertou. As versões reggae
do salmo 137, 'Waters of Babylon' são uma lembrança dramática das raízes que o desejo político tem na
Bíblia. A babilónia transforma-se nas sujas e irregulares ruas de terra batida de Town, Kingston – ou nas
ruas de Brixton; a canção continua, o sonho nunca é esquecido e a luta continua. A canção faz uma breve
aparição – numa festa de estudantes universitários num campus na Jamaica – no poema Angel [Anjo] de
Merle Collins. E quando o D.J. põe a tocar “Version”', o outro lado do disco “Babylon” [Babilónia],360

Traz de volta a Versão dos Macabeus


Ela pertence a - o homem negro!

Devolve a Versão do Rei Jaime


Essa pretence a - o homem branco!361

Angel grita ' "Anda! Vamos dançar!" ela puxou Edward para que se levante. "Nós não podemos ficar
sentados." Ouve a música outra vez das Bandas de Carnaval em Trinidade no livro Sequins for a Ragged
Hem de Amryl Johnson.362
Para muitas mulheres negras, quer sejam cristãs, muçulmanas, Hindu, Sikh ou Judias, a religião tem
sido uma força ambígua nas suas vidas, ou limitando a sua liberdade ou fornecendo os argumentos para a
sua auto-determinação. Tasneem, uma muçulmana Shia de Zanzibar, foi sortuda o suficiente para ter uma
avó feminista. 'Ela era uma mulher talentosa que tinha estudado muitos textos religiosos. Ela costumava
escrever artigos e poesia religiosa e muito so seu trabalho fora sobre os direitos das mulheres no Islão.
Muitas vezes ela não concordava com os homens na mesquita. Mas ela não podia desafiá-los diretamente,
por isso ela desafiava-os através dos seus artigos.'363 Quando Tasneem estava sob enorme pressão da sua
família para usar a Burkha (o véu muçulmano), a sua avó veio de visita. 'Ela não era daopinião que eu
devesse usar a Burkha. Ela tinha uma visão ortodoxa sobre o assunto. Ela disse, "Se tu a usares agora e
casares com um marido modern e ele te obrigar a tirá-la, então isso é mau." Por isso eu arranjei forma de
me livrar disso' (p. 150). A avó de Tasneem mostrou-lhe a sua forma de contra-argumentar, usando a
linguagem religiosa do Islão.
Eu descrevi a avó de Tasneem como uma feminista, e em todos os sentidos da palavra, ela era-o. Ela
defendia-se a si própria como mulher e ela defendia as outras mulheres. Mas muitas mulheres negras,
compreensivelmente, têm receado se afirmarem como feministas, pois têm encontrado tanto racismo da
parte das mulheres brancas no seio do movimento de libertação para as mulheres como hostilidade no
seio das suas próprias comunidades. E é claro, as prioridades das feministas brancas não são
necessariamente as mesmas das mulheres negras. 'O feminismoo é frequentemente percecionado como "
uma coisa das raparigas brancas". Uma coisa que é sinónima de lesbianismo. As feministas lésbicas
negras sofrem de outra opressão. Não só elas estão envolvidas numa coisa de mulheres brancas, como

359
Maya Angelou, I Know Why the Caged Bird Sings [Eu sei porque é que o pássaro engaiolado canta] (1969; Londres, Virago,
1984). Ver o seu hilariante mas muito amoroso capítulo 6.
360
N. do T. – A canção que a autora cita, refere o evangelho O Primeiro livro dos Macabeus que não foi incluído nas versões da
Bíblia hebraica e protestante, considerado por estas religiões como apócrifo, embora figure na compilação católica.
361
N. T. - No original “Bring back Macabee Version / It belong to – de black man! / Give back King James Version / Dat
199

belong to – the white man!”

362
Merle Collins, Angel (Londres, Women's Press, 1987), p. 141; Amryl Johnson, Sequins for a Ragged Hem (Londres, Virago,
1988), pp. 51-2. Para 'Waters of Babylon' ouvir a versão dos Melodians na banda sonora de The Harder They Come (Island Records,
Página

1972).

363
In Wilson, Finding a voice, p. 148
também apanharam a doença da mulher branca. 364 Então as mulheres negras escolheram outras palavras
para si. Algumas adotaram a proposição de Alice Walker, 'womanist'(mulherista) – uma palavra que tem
as suas raizes nas comunidades negras – ou a 'Zami' de Audre Lorde - um nome orgulhoso e guerreiro
para as lésbicas negras. Lorde e Walker são ambas Americanas, e a sua relação com o seu país é
radicalmente diferente da relação das mulheres negras a viver na Grã-Bretanha. 'Se as feministas negras
britânicas têm mais elos de ligação ao chamado "terceiro mundo" talvez isso se deva à nossa "história de
Commonwealth". Também o facto de algumas de nós sermos apenas uma primeira ou segunda geração
nesta "pátria". Nos Estados Unidos, as mulheres negras consideram-se uma parte firmemente enraizada e
integral da sociedade.'365 A experiência da deslocação literal para outro, e muito diferente, país, ou de ter
nascido no seio de uma cultura britânica com o sentimento dessa deslocação como a sua herança,
assombra a escrita das mulheres negras Afro-Caribenhas e asiáticas. Esta é uma ficção de pessoas
deslocadas, uma ficção enraizada na insegurança radical. As heroínas de Joan Riley mudam-se das índias
ocidentais para a Grã-Bretanha, do ocidente para o oriente; Sita, a interlocutora de The Scarlet Thread,
Sharan-Jeet Shan, e as mulheres dos romances de Bharati Mukherjee mudam-se da Índia para a Europa ou
para as Américas – do oriente para o ocidente.366 Buchi Emecheta veio da Nigéria para a Grã-Bretanha,
do sul para o norte; a heroina do extraordinário romance jfuletane de Myriam Warner-Vieyra viaja das
Caraíbas para Paris, depois da Europa para África. 367 A substância de muita desta escrita é a colisão de
culturas, a experiência repentina de se ser estrangeiro, diferente, Outro; de ser forçado a justificar e
explicar coisas que tomávamos por garantidas, de não ter uma língua em comum com as pessoas que te
rodeiam, de ser seriamente mal-interpretado. Tasneem descreve as suas primeiras dificuldades na Grã-
Bretanha.

Eu era suficientemente ingénua para pensar que os Britânicos eram homogéneos, que
falavam todos o mesmo tipo de linguagem. Fiquei surpreendida por não perceber a minha
senhoria, que era uma cockney. Quando eu falava com a minha senhoria, eu olhava para o
chão, eu nunca a olhava nos olhos . . . Nós discutimos tudo isso e eu contei-lhe que na
minha cultura nós não olhamos para ninguém, e principalmente as pessoas mais velhas,
nos olhos. Ela disse-me 'na nossa cultura, se não olhamos para as pessoas nos olhos, isso
quer dizer que estás a mentir…368

Pelo menos elas discutiram o assunto e puseram tudo em pratos limpos.


Para muitas mulheres negras, o encontro com a Grã-Bretanha pode ser a sua primeira experiência com
o racismo. Para as asiáticas provenientes de comunidades fechadas, o confronto com a cultura britânica
pode ser libertador, mas também pode levar a um sentido mais profundo de alienização e de
desenraizamento. Algumas mulheres decidem recusar as exigências da família – casamentos combinados,
tradições religiosas, maneiras, costumes, roupas. Mas outras ou recuam na defensiva ou retomam
orgulhosamente os seus customes e religiões numa afirmação da identidade Negra. Esta resposta
divergente à Grã-Bretanha pode causar conflitos no seio das comunidades. Surjeet, uma das pessoas que
prestam testemunho na obra Finding a Voice: Asian Women in Britain [Em busca de uma voz: Mulheres
Asiáticas na Grã Bretanha] de Amrit Wilson, fala do seu casamento combinado com um homem de uma
família Sikh menos liberal, numa assustadora narrativa de opressão e fuga. A sua primeira noite com o
marido, um completo estranho, resulta num violento ataque sexual. “Tudo o que sei dizer é que fui
atacada e que gritei. Primeiro, tentei repeli-lo, mas eu estava tão assustada que gritava, eu só gritava…”369
E também perante a lei Britânica, Surjeet não tem qualquer defesa, pois a violação no casamento nunca

364
Smartt and Mason-John, 'Blackfeminists Organising', p. 21.
365
Ibid.
366
Joan Riley, The Scarlet Thread (Londres, Virago, 1987); Shan, In My Own Name-, Bharati
Mukherjee, The Tiger's Daughter (1971; Londres, Penguin, 1987), Wife (1975; Londres,
Penguin, 1987).
367
200

Myriam Warner-Vieyra, Juletane (1982; Londres, Heinemann, 1987).

368
Wilson, Finding a voice, p. 151.
Página

369
Ibid. p. 159.
foi um crime na Grã-Bretanha: o corpo de uma mulher é propriedade do seu marido. Os pais de Surjeet
receberam-na de volta de braços abertos. Outras mulheres não têm tanta sorte. A sua infelicidade pode ser
considerada como uma vergonha para si mesmas e como uma afronta à honra da sua família. Amrit
Wilson, nos seus agradecimentos da obra Finding a Voice realça que dizer a verdade é pisar terreno
perigoso. A maioria das mulheres que me ajudaram, fizeram-no por sua própria conta e risco e os seus
nomes não podem ser mencionados' (p. viii). Ser uma mulher negra na Grã-Bretanha e transgredir os
limites colocados pela família e a comunidade é tornar-se duplamente vulnerável, pois para além desses
limites, apenas existe o estado racista branco. Sharan-Jeet Shan, ao entitular a sua autobiografia In My
Own Name [No meu próprio nome], é uma mulher deveras corajosa.
Permitam-me revelar aqui um interesse que talvez possa explicar as minhas formas de ler esta escrita.
Eu também passei pela experiência de vir para a Grã-Bretanha de outro país quando eu era uma jovem
adolescente. A minha perceção deste país, após uma infância passada numa ilha das Caraíbas, foi muito
semelhante à experiência de deslocação descrita e analisada na escrita de muitas mulheres negras. Mas
porque eu sou branca, eu podia, e pude, afadigar-me em tornar-me Britânica com todas as minhas forças.
A primeira coisa a desaparecer foi a minha pronúncia Jamaicana. Agora, quando me perguntam, 'De onde
vens?' Eu posso, e faço – se eu quiser evitar confissões verdadeiramente longas sobre a minha vida –
mentir facilmente e dizer 'de Londres', sabendo que nunca me irão perguntar aquela perniciosa segunda
pergunta. 'Mas de onde vens realmente?' Eu requeri a nacionalidade Britância após cinco anos de
residência: no entanto, a minha certidão de nascimento e o meu outro passaporte são os registos da
verdade da minha outra identidade, enquanto cidadã jamaicana. Dentro de mim, eu sei que não tenho
pátria. A escrita das mulheres negras, que recordam e revisionam as Antilhas, ou que articulam a narrativa
do exílio e da viagem, escrevem a memória que é, para mim como leitora, eletrizante na página. Não é,
nem nunca será, a minha história também. Mas é uma história com ecos peculiares, uma espécie de
obsessão, uma porta que se abre para o passado.
Uma grande parte do conhecimento intelectual ao longo dos últimos anos, tem sido utilizada para
desfazer a noção feminista da 'experiência das mulheres'. A escrita feminista representa a 'experiência das
mulheres'? E é possível representar a experiência autêntica no âmago das convenções e significados
determinados das estruturas literárias? De qualquer modo, o que é a experiência autêntica? As escritoras
negras invocam muitas vezes o conceito de experiência. 'Eu escrevo a partir de uma experiência
profundamente sentida,' diz Maud Suiter; e Amryl Johnson, no seu livro de memórias Sequins for a
Ragged Hem, explica que o seu trabalho 'não é um travelogue nem um guia para aqueles que desejam vir
de visita. Eu estou a escrever sobre as minhas próprias experiências na ilha. 370 O que aqui se pretende é
experimentar na carne, sangue, corpo, seio e osso – a palavra como um testemunho. Mas é claro que a
origem da palavra que consubstancia a experiência nunca é simples, tal como as escritoras feministas têm
argumentado uma e outra vez. Quem é proprietário das palavras e controla os seus significados é
infinitamente problemático, e uma área de luta em si mesma. Refazer a palavra é parte do projeto da
escrita das mulheres negras. Aqui fica word de Fyna Dowe:

A palavra
Negro é uma palavra política
Isto é agora overstand.
Se eu não uso a palavra,
Eu disse, se eu não usa a palavra . . . Negro!
Isso não me faz menos mulher do que eu sou.
Mas aproxima-me da minha Terra natal,
Mais perto da minha Terra Natal.
Afrika!
Afrika!
Afrika
Afrika!371

O poema de Merle Collins 'No Dialects Please', escrito em Crioulo da Granada, expõe o racismo e a
idiotice de uma competição de poesia cuja exigência é NO DIALECTS PLEASE como parte das regras
para participar
201

370
Suiter, in Ngcobo, Let It Be Told, p. 57; Johnson, Sequins for a Ragged Hem, p. 2.
Página

371
Fyna Dowe, 'The Word', in Watchers and Seekers: Creative Writing by Black Women de
Rhonda Cobham e Merle Collins (eds), (Londres, Women's Press, 1987), p. 112.
Well ah laugh till me boushet near drop Is not only dat ah tink of de dialect of de Normans and de Saxons
dat combine an reformulate to create a language-elect.. .
Make me ha to go
an start up a language o me own
dat ah would share widme people . . . 372
E então ela parte para refazer a palavra e o mundo. Apenas a sua língua, a sua palavra, pode contar a sua
experiência.
A lingua cria a comunidade. Aqui a lingua e a experiência juntam-se; pois as experiências das mulheres
negras desfazem muitas vezes os significados literários convencionais do Inglês padrão. O choque de
duas culturas e a experiência de uma mulher negra escancarando a língua estrangeira do imperialism pode
ser intrigante, e pode muitas vezes emergir subtilmente, rompendo a superfície de um texto. Buchi
Emecheta descreve os Recursos Humanos do British Museum a concordar com a sua licença de
maternidade por três meses: 'os pilares do poder estabelecido a acenar em concordância como lagartos'.373
A sua imagem africana, a observação dos lagartos ao sol, casada à expressão cliché 'os pilares do poder
estabelecido' aguça repentinamente a prosa. Instantaneamente, os Recursos Humanos tornam-se bizarros,
grotescos e idota.
Eu também já ouvi a argumentação pelos Indianos, que o Inglês deve ser considerado como uma
lingual Indiana, a ser usada na dança da escrita sempre que apetecesse às mulheres negras asiáticas. A
língua, pelo menos, não precisa que se determine o significado da experiência. Mas enquanto mulheres,
precisamos de lutar pelos nossos próprios significados: pois não pode haver uma experiência unitária,
nenhuma garantia de uma base definitiva de autencidade, nenhum significado único do que é ser mulher.
Mas existe aquilo que Dorothea Smartt chama de 'coletividade da nossa experiência'. 374 Muitas das
mulheres na antologia de escritoras negras radicadas na Grã-Bretanha Let It Be Told falam sobre a sua
escrita em termos intensamente físicos. Amryl Johnson, escrevendo sobre a composição do título do
poema para a sua coleção Long Road to Nowhere, tem o seguinte a dizer: 'Eu precisaria de reviver a
experiência, refazendo os meus passos. Eu tinha a ideia de uma forma muito mais simples, palavras
menos tórridas do que aquelas que surgiram. Elas vieram como se de vómito se tratasse, numa torrente
incontrolável de lágrimas. Sangue e lágrimas' (p. 45).
Marsha Prescod, autora da inesquecível poesia satírica Land of Rope and Tory, comenta, 'Acima de
tudo, eu tento não escrever coisas que não sinto...' (p. 112).375 Todas as mulheres negras nesta antologia
insistem numa perspetiva comum, sem em que forma de escrita for. Julie Pearn, comentando o trabalho
de Amryl Johnson, escreve, 'Esses sentimentos estão enraizados na verdadeira experiência do povo negro,
tanto histórica como contemporânea' (p. 46). Marsha Prescod diz do seu próprio sentido de
responsabilidade para com a comunidade negra, 'Quanto ao que pode ser chamado de compulsões morais
envolvidas na minha escrita ... [Eu] tento não me dececionar nem dececionar o povo negro ao escrever
qualquer coisa que seja sensacional de uma forma escandalosa, ou que distorça ou prejudique a nossa
experiência' (p. 107). Eu não creio que este seja umcaso de seguir a linha política determinada nouto lugar
qualquer, mas uma homenagem genuína de uma comunidade que está constantemente em perigo. E no
que se refere à 'coletividade da nossa experiência', Prescod argument que 'Nós verificaremos que certas
experiências moldam a nossa escrita quer queiramos ou não' (p. 108).
Sentimento profundo, vómito, sangue e lágrimas; esta ênfase no físico não é uma coincidência. Quando
as palavras de um povo forma silenciadas pela violência, pela censura ou pela ileteracia, então a sua
alegria, fúria, revolta e dor só podem ser expressas no corpo. Por isso a coletividade da experiência negra
é algo de físico; um facto que se manifestará, visivelmente tanto na escrita como na reflexão sobre esse
trabalho. Mas as mulheres negras não estão, na realidade, a recusar-se ser vítimas há tanto tempo em
sofrimento. Nem todas as mulheres são fortes, mas também nem todas as mulheres são um tapete que se
pode pisar. Grace Nichols, a poeta e romancista negra Guinense, a viver e a trabalhar na Grã-Bretanha,
declina firmemente os estereótipos e ideologias criados sobre as vidas das mulheres negras.

este poema talvez sirva para dizer


que eu gosto de ver-nos,

372
In Cobham and Collins, Watchers and Seekers pp. 118-19.
202

373
Emecheta, Head Above Water, p. 39.
Página

374
In NGcobo, Let it Be Told, p. 68.
375
Marsha Prescod, Land of Rope and Tory (Londres, Akira, 1985).
mulheres negras, cheias de auto-estima a caminhar…
esmagando
com cada passo de dança
a distorcida
história
de auto-negação
de que somos herdeiras.376

A escrita das mulheres negras expõe inevitavelmente os valores codificados na Grande Tradição da
literatura dos homens brancos. Quem e o quê que chega a ser publicado, ou não publicado, revela a
propensão hostil na cultura Britânica perante a escrita que recusa a abraçar esses valores. A excelente
análise de Lauretta Ngcobo de como o racismo funciona na Grã-Bretanha produz a seguinte perceção.

O seu poder para nos subordinar opera imediatamente por baixo da superfície das coisas.
Em geral, o parlamento está equilibrado. Nem o departamento legislativo nem o
executivo podem ser acusados de preconceito explícito, particularmente em comparação
com os extremos do apartheid Sul Africano. A exceção continua a ser os Commonwealth
Immigration Acts (1962-1983), nos quais muitas cláusulas foram concebidas claramente
contra o povo afro-caribenho e asiático.
. . . a operação desleal de discriminação fica para os indivíduos e corpos e instituições. A
culpa é de um banco em particular ou interesse privado, não da lei da banca; é do
advogado, não da lei judicial; é do professor, não da autoridade para a educação. No
entanto, sentimos distintivamente que não se trata de uma questão preconceito aleatório;
este parece ser sancionado oficalmente. 377

Este é o consenso invisível do racismo branco, o que Ngcobo descreve como 'uma sensação de separação
que permeia tudo' (p. 19)- o pressuposto que os negros e os asiáticos devem ser excluídos, bloqueados.
Muitas vezes não é preciso dizer nada; os brancos agem como uma única consciência. As mulheres
brancas que gostam de pensar que não são racistas raramente verão este processo em ação, a não ser que
tenham maridos negros, amantes negras, ou amigos negros. Uma das minhas amigas negras lésbicas
estava a contar à minha mãe como ela tinha sido insultada verbalmente como ’Lezzie' em Camden Town.
Nós ficámos justamente indignadas. Ela riu-se de nós e disse que tinha ficado bastante satisfeita.
Normalmente, ela disse, chamam-me de 'Paki'. E ela deixa bem claro que ela é asiática sempre que ela
responde a anúncios; par não perder o seu tempo a ouvir os broncos a arranjar desculpas ou razões pelas
quais ela não é adequada para eles.
A luta dos negros para voltar a tomar posse das suas línguas, da sua história e da alma das suas
próprias experiências torna-se num imperativo crucial no seio da sociedade hospedeira que continua
amplamente fechada contra eles. Nos anos 80 esta é uma rejeição orgulhosa, a qual Ngcobo chama 'da
política da assimilação'.
A comunidade negra não tem opção senão recuperar o que puder da sua identidade. A sociedade
hospedeira não tem diso sensível à necessidade urgent de uma identidade cultural enqunto componente
vital, um pré-requisito para o sucesso na educação de cada criança. Durante anos eles não compreenderam
que as políticas de assimilação estavam a minar o valor de cada criança e a reduzir a capacidade dessa
criança para aprender, (p. 22)
Rashda Sharif, remetendo-se ao tema do racismo britânico na 10ª Conferência para mulheres Judias/
Cristãs/Muçulmanas em Bendorf em Novembro de 1986, falava do seu desespero perante a situação de
Handsworth, Birmingham, onde ela trabalha como professora; um desespero mitigado apenas pela sua
perceção da forma pela qual os jovens asiáticos estavam a voltar com orgulho para as suas culturas,
línguas e religiões. Ela também relacionava o racism branco muito firmemente com a história do
imperialismo britânico. 'O colonialism britânico é ritualmente referido pelos politicos e outros como a era

376
Do seu poema 'OF COURSE WHEN THEY ASK FOR POEMS ABOUT THE "REALITIES" OF BLACK WOMEN', citado
pela in Ngcobo, Let It Be Told, p. 100. Para as feministas brancas discutindo sobre a questão da experiência das mulheres' ver Toril
203

Moi, Sexual/Textual Politics (Londres, Methuen, 1985), pp. 43—9, e uma análise ainda mais reveladora de Jan Montefiore,
Feminism and Poetry: Language, Experience, Identity in Women's Writing (Londres, Pandora, 1987), pp. 1-25. Montefiore desafia
os poetas feministas radicais pelo seu 'Romanticismo irreconhecido', o seu pressuposto que a experiência feminine é 'unitária' e que
Página

existe uma ligação descomplicada entre o poeta enquanto mulher e a poesia que ela produz. Ela também critica 'o ideal - ou fantasia
– da poesia enquanto experiência encontrada at white heat' (p. 12). Aqui ela discorda de Amryl Johnson. O debate continua.
377
Nogcobo, Let it be told, p. 19.
de ouro a ser recordada com nostalgia e como um modelo no qual basear o futuro. Para a população negra
britânica, esta "era de ouro" foi uma era da opressão, quando as suas terras foram ocupadas pelos poderes
estrangeiros.'378 Uma parte significativa da escrita das mulheres negras aborda essa história, escrevendo a
história que os brancos ignoraram, suprimiram ou distorceram. Os capítulos iniciais de The Heart of the
Race: Black Women's Lives in Britain, de autoria de Beverley Bryan, Stella Dadzie e Suzanne Scafe,
reescrevem essa história de exploração colonial da perspetiva negra. 379 A saga da história de Granada de
Merle Collins, Angel, conta a história da sua ilha através do seu povo e através da língua crioula, com
todas as particularidades intensas e trapalhadas/tropelias/peripécias. Pois a ficção nunca é pura polémica,
e pode portanto contar verdades perigosas.
Há sempre o perigo da Pátria, o país de origem lembrado, imaginado ou reconstruido - Africa, India ou
Caraíbas – se tornar num sonho ideal, intocada pela história, o conflito, a pobreza ou a corrupção. Este é
um dos temas do livro The Unbelonging de Joan Riley, onde a memória de Hyacinth Williams da sua
infância caribenha se transforma numa queda do paraíso que domina a sua vida. Riley tem a coragem de
dizer coisas difíceis e muitas vezes inaceitáveis. Quando Hyacinth regressa à Jamaica é para confrontar a
violência e a pobreza das favelas de Kingston. The Unbelonging tem sido criticado na comunidade negra
por lidar demasiado com a impotência das mulheres negras 'O livro está marcado pela ausência total de
protesto. Retrata vividamente a vitimização de uma jovem negra e expõe as devastações da violência
sexista na comunidade.'380 A violência sexista é um dos aspetos do poder masculino que existe dentro de
cada comunidade; entre os povos asiáticos e afro-caribenhos, bem como entre os homens brancos que não
são em sentido algum vítimas da injustiça social. Fingir que não é assim, é ser conivente com as mentiras
que mascaram esse facto e não é uma base para qualquer tipo de liberdade. Eu achei o The Unbelonging
um livro meticuloso, apaixonado e devastador, atravessado por um protesto não mesnos eficaz por ser
cuidadosamente argumentado e construido dentro dos termos do enredo em vez de uma polémica
explícita. Os amigos da universidade de Hyacinth, Perlence e as suas camaradas, são radiacais, negras
eloquentes, envolvidas no ativismo político. O seu fracasso doloroso em chegar até à Hyacinth no seu
isolamento e 'não-pertença' nunca põe as suas inteligências radicais ou o seu protesto empenhado em
questão. Os efeitos psicológicos do sexismo e do racismo branco sobre as mulheres negras são questões
centrais na ficção de Riley, e, enquanto escritora, ela nunca hesita ou recua o enfrentar uma dificuldade.
A colisão de duas culturas criam as comunidades daqueles que não pertencem. Muitas outras escritoras
negras abordam este tema. Esta é uma ficção de pessoas deslocadas, um tema que impossibilita uma
análise fácil das culturas e confunde o preconceito e expetativas superficiais. É igualmente um tema que
perturba as prioridades do feminismo branco. A estrutura de muitas campanhas iniciais de feministas
brancas sobre o aborto e a reprodução, por exemplo, alienavam as mulheres negras na Grã-Bretanha cuja
situação difícil era muito diferente. De facto, 'Abortion on Demand'/’O Aborto A Pedido’, para uma
mulher negra cujo direito de ter um filho negro é tantas vezes violado e negado, e para as mulheres negras
que até podem vir a ser vítimas de esterilização forçada no Serviço Social de Saúde, este é um slogan
particularmente ofensivo. É claro que, no chamado 'Terceiro Mundo' a situação sera outra vez diferente,
dependendo do país, os costumes culturais e os problemas das mulheres dentro dessa cultura. O bonito e
galardoado poema de Maud Suiter 'As A Black- woman', assume o argumento da maternidade, e de quem
tem direito a ter filhos.

Enquanto mulher negra


ter o meu filho´
é um ato político
Fui
montada enquanto me violavam
criada como gado
explorada pela minha fecundidade

378
Rashda Sharif, 'On British Racism', procedimentos por publicar da 10ª Conferência para Mulheres Judias Cristãs e Muçulmanas
do Bendorf, 18-25 Novembro 1986. Esta conferência é realizada anualmente no outono sub os auspícios da Hedwig Dransfeld Haus
e.v. no Bendorf-am-Rhein, Alemanha.
204

379
Beverley Bryan, Stella Dadzie e Suzanne Scafe, The Heart of the Race: Black Women's Lives in Britain (Londres, Virago,
1985).

380
Ngcobo, Let It Be Told, p. 9. Para as mesmas visões analisadas, ver "Wild Women Don't Get the Blues": Alice Walker in
Página

Conversation with Maud Suiter', in Shabnam Grewal et al. (eds), Charting the Journey: Writings by Black and Third World Women
(Londres, Sheba, 1988), pp. 100-10, esp. pp. 104-5.
Foi-me
Negado o aborto
negada a contraceção
negada a minha liberdade de escolha

Fui
obrigada ao aborto
injetada com contracetivos
esterilizada sem o meu consentimento 381

Aqui, Suiter toma o signo 'Mulher negra' para designar as mulheres negras que vivem no Ocidente, nas
Américas, em África, na Ásia. Ela expande a sua escrita através 'da coletividade da nossa experiência'; ela
cria através da escrita os elos de ligação.
Até mesmo as questões do sexismo, misogenia dos homens e do poder do homem negro terão de ser
abordadas de formas diferentes daquelas das feministas brancas, simplesmente porque o sexismo do
homem negro está articulado num contexto de uma sociedade desigual e racista. As feministas brancas
não podem esperar que o retrato ou análise de uma mulher negra do sexismo e violência masculina ou
mesmo o controlo social das mulheres no seio da família sejam feittos de forma semelhante à sua. De
facto, é apenas quando as particularidades das nossas diferenças culturais são tornadas visíveis, discutidas
e compreendidas, que seremos capazes de encontrar uma base comum. O separatismo, ferozmente
contestado entre as feministas brancas, assumirá uma complexidade diferente no context das políticas das
mulheres negras. 382 Algumas mulheres negras estão feroz e declaradamente zangadas com o sexismo dos
homens negros. O poema de Iyamide Hazeley 'Political Union' estabelece as suas condições de
concordância com o contrato entre as mulheres e os homens negros. 383 A história de Millie Murray 'The
Escape' narra a resistência e a luta de uma mãe negra contra a violência doméstica, com alguma ajuda das
suas amigas negras. A crítica explícita aos homens negros pelas mulheres negras por escrito tem
conduzido a algumas divergências públicas. Maya Angelou tem isto a dizer aos brancos: 'Eu tenho
sempre muito cuidado com esta temática pois faz-me lembrar da teoria de Maquievel, separate and rule/
separar para governar; divide and conquer/dividir para conquistar e eu recuso-me a ser um para gáudio
expresso das pessoas que se estão nas tintas para a minha vida – para a nossa vida.' Ela ela dirige-se assim
aos homens negros: 'Este tolo [referindo-se a um autor negro particularmente hostil] insinuou que A Cor
Púrpura destruiria completamente os Americanos negros. Mas é interessante que tenhamos sobrevivido à
violação, à escravatura, ao ridículo, ao abuso, à discriminação e você vem nos dizer que nós somos tão
fracos que um livro nos pode destruir. Por favor.'384 Maya Angelou questiona os motivos dos dois grupos
de pessoas, tanto os brancos como os negros ciumentos. Eu creio que ela tem razão ao fazê-lo; mas é da
responsabilidade das mulheres negras colocar essas questões.
Os problemas levantados pela tentativa de reproduzir a experiência da mulher negra da perspectiva do
branco estão inevitavelmente espelhados nos contos de Marion Molteno, A Language in Common [Uma
Linguagem em Comum]385. Molteno é uma sul africana branca, envolvida numa comunidade de trabalho
anti-racista em Croydon. Ela leciona Inglês como Língua Estrangeira (ESL) a mulheres Asiáticas. A
Women's Press quebrou a sua regra habitual de não publicar trabalhos de mulheres que escrevem sobre
mulheres de outra comunidade racial ou cultural community ao publicar este livro. A sua intenção é a de
estabelecer uma ponte de compreensão entre a consciência branca e a tradição Asiática, dando os
primeiros passos pela busca de uma língua cultural comum. O impulso por detrás do livro, o da
celebração, amizade e solidariedade, é obviamente bem-vindo. Mas o texto em si mesmo deixou-me

381
In Ngcobo, Let It Be Told, pp. 66-7.

382
Ver Valerie Amos e Pratibha Parmar, 'Challenging Imperial Feminism', Many Voices One Chant: Black Feminist Perspectives,
special black issue of Feminist Review, no. 17 (Outono 1984), pp. 3-19.
383
205

Publicada no Many Voices One Chant, pp. 76-7; ver também a sua coleção Ripples and
Jagged Edges (Londres, Zora, n.d.).
384
Maya Angelou em entrevista ao jornal The Guardian, 13 de Agosto 1987.
Página

385
Marion Molteno, A Language in Common (Londres, Women's Press, 1987).
pouco à-vontade, confusa e enraivecida. Pois Molteno cai na armadilha ravelrável que aguarda todos os
liberais de classe media bem-intencionados que tentam compreender e explicar outros grupos: entendendo
o Outro como estrangeiro. Os estudos de Wordsworth entre os pobres da Inglaterra rural dos finais do
século dezoito, registadas no Lyrical Ballads (1799, 1800), deu origem a precisamente os mesmos
problemas. 386 Nas histórias de Molteno, tal como nas baladas de Wordsworth, o escritor é o sujeito,
aquele que questiona, as mulheres Asiáticas são os objectos percecionados, por mais espirituosas,
individuais e únicas que possam parecer. As mesmas são narradas, descritas, confrontadas como o Outro,
e não como o Próprio. O que daí advém é condescendente e sentimental. Questões difíceis ficam por ser
colocadas e deixam de ser respondidas.
A primeira história, 'The Uses of Literacy', narra o encontro do narrador com o Senhor H. S.
Ramgarhia, 'Um idoso alto, imensamente solene, de ombros fortes' (p. 1). Ele surge como uma espécie de
santo, sensível para com as mulheres cuja classe ele insistiu em integrar. Para começar, a razão pela qual
a turma tem de ser exclusivamente feminina nunca é explicada ou analisada; a necessidade de uma turma
exclusivamente feminine é simplesmente assumida. Isto é perturbador porque destrói o objetivo da
história. Quando o nobre idoso Sikh more, os professores descobrem que a sua mulher, que nem fala nem
escreve Inglês, está escondida na sua casa. Por uma razão qualquer, sinistra ou de outra natureza, a sua
mulher nunca frequenta as aulas para mulheres enquanto ele era vivo. O senhor H. S. Ramgarhia é
eloquente, gracioso, impressionante. A sua velha esposa só aprende a copiar; ela pode até ser graciosa e
charmosa, mas ela nunca progride para além da leitura de um livro. A única frase que ela aprende é
aquela que proclama a sua identidade – a de esposa. Assim, a infantilidade de uma mulher idosa fica
completa. Eu, pessoalmente, não comungo do respeito tradicional que muitos Asiáticos mostram pelos
idosos. Tal como já referi noutro lado qualquer, uma vida inteira de experiência também pode ser uma
vida inteira de lavagem cerebral. A preocupação deMolteno para apresentar pequenos passos como
grandes conquistas minimiza o que se pode imaginar possível. Será reacista ou culturalmente normativo
querer liberdade de movimento e acesso a uma educação para todas as mulheres, tanto para as mulheres
negras Asiáticascomo para as mulheres brancas? Há uma grande diferença entre uma turma
exclusivamente de mulheres porque estas decidiram excluir os homens e uma turma que é exclusivamente
feminina porque se tal não fosse os homens não permitiriam que as suas esposas a frequentassem.
A Women's Press foi sempre uma imprensa feminista. As histórias de Molteno refletem uma
consciência feminista, mas não uma análise feminista. Isso fica claro no 'The Abyss', uma história
perturbadora, exasperante sobre a violência contra as mulheres. Farida, o objeto da preocupação da
narradora, está presa numa espiral descendente de pobreza e violência doméstica. Todas as contradições
habituais nas resspostas à violência masculina estão patentes na narrativa. Todas as desculpas e
explicações habituais são desenterradas para o senhor Malik, marido de Farida. Ele está desempregado; 'a
sua fúria era descarregada nas únicas pessoas sob o seu controlo' (p. 12). Há um parágrafo que apela para
'os momentos de medo físico' (p. 14) que todas as mulheres sentem, que nunca diz explicitamente que o
que as mulherem temem é a violência dos homens. Finalmente, Mumtaz, a colega asiática da narradora,
aconselha Farida a ficar com o marido porque 'ele é o pai do seu filho. O seu dever é para com ele ... Eu
disse-lhe queDeus lhe dará forças' (p. 16). E, justificadamente, a narrador enfurece-se e fica confusa. Aqui
o problema é simplesmente este: não é dado um context à crítica de Mumtaz que permanence implícita
nesta história, para que o efeito seja tanto racista como sentencioso. Nós temos uma mulher branca
'esclarecida' a ouvir um conselho inaceitável sobre a vergonha, dever e Deus, provindo de uma asiática
negra. Existem muitas mulheres brancas que podem tomar e seguem a mesma linha que Mumtaz quando
estão a falar com mulheres vítimas de violência: se um homem te ataca e te viola, a vergonha é tua e a
culpa é tua; se for o teu marido a te bater e a abusar de ti, é o teu dever continuar a amá-lo. A
desonestidade dúbia neste texto levanta-se das limitações na perspetiva política da narradora. Pois, sim, as
asiáticas enfrentam problemas quase insuperáveis na cultura britânica, mas muitas vezes elas não tinham
fugido de um paraíso banhado pelo sol. Molteno descreve a África oriental como um lugar 'que é quente
todo o ano e as crianças podem corer na rua e gritar e libertar a sua energia sem que aconteçam coisas
terríveis' (p. 17). Eu tinha a impressão que coisas deveras terríveis aconteciam na áfrica oriental e era por
causa disso quemuitos asiáticos vinham para a Grã-Bretanha. Mas de qualquer forma, esta é uma frase
arriscada de lançar num contexto onde existem muitos broncos anxiosos por enviar Farida e a sua
comunidade de volta para onde costumavam viver.
A dificuldade com esteslivros que descrevem o encontro entre duas comunidades da perspetiva da
comunidade mais poderosa é que o centro de consciência e mudança fica sempre do lado do narrador
206

386
Para uma análise das baladas de Wordsworth e das suas ambiguidades, ver Heather Glen,
Página

Vision and Disenchantment: Blake's Songs and Wordsworth's Lyrical Ballads (Cambridge,
Cambridge University Press, 1983).
branco. Na história 'Someone Else's Clothes', a narradora usa um sari pela primeira vez para dançar para
Navratri, as nove noites antes de Diwali. É tudo muito sensual e excitante quando a professor torna-se
numa parte da turma. Mas a próxima lição que ela tem a desaprender é a estereotipação do Sari. Ela desce
sem intenção a rua ainda a usar o sari. 'Eu evito o grupo de jovens nas redondezas da loja de apostas,
dolorosamente consciente de que eu não consigo correr, que nesta vestimenta eu não posso lhes dar uma
resposta com animada confiança se eles gracejarem – uma espécie de limite em mim é definido pela
roupa que eu visto' (p. 46). O sexism e o racismo confundem-se nesta passagem. As ruas são espaços
públicos, ainda controlados, na posse e policiados pelos homens. Nenhuma mulher é capaz de escapar ao
assédio sexual, aqui descrito como 'gracejos'. E sim, as negras asiáticas são mais vulneráveis àquilo que
seria agressão racista bem como sexista. Mas as mulheres que usam saris podem e dão luta. E é claro,
dadas as estruturas de poder existents na grã-bretanha, as mulheres educadas brancas de classe média
podem achar mais fácil mandar os rapazes dar uma curva, seja o que for que estejam a usar. Na segunda
parte da narrative, Molteno conta a história de Santosh, uma Indiana cujo marido lhe diz que ela tem de
começar a usar roupas ocidentais, e obedecendo, descobre que se sente muito confortável nelas. Ela
continua a usar o shalwar khameez em ocasiões especiais. 'Talvez seja a minha imaginação, mas parece
que elamove o seu corpo de forma diferente nesses dias; como se fosse mais fácil expressar a sua energia
natural; como se ela estivesse a falar a sua língua materna' (p. 49). Esta é uma sequência escrita de forma
muito bonita, e a metáfora de um corpo de mulher a falar através das suas roupas é pertinente e
impressionante. Pois as roupas são a nossa guarda avançada no mundo, elas falam por nós antes que o
façamos. Para a mulher branca europeia de classe-média, as calças foram uma firme declaração política
no iníco do século vinte; não agora. Para uma negra asiática, as calças podem enviar o sinal para a sua
comunidade de que ela se 'ocidentalizou'. Isto envolve alguma tolerância social dos britânicos, tolerância;
não aceitação. É também uma declaração para a sua comunidade, e pode, em alguns bairros, encontrar
uma resposta como 'Essas são roupas de homens' ou 'Isso não é modesto.'387 Mas não se consegue
estabelecer uma comparação fácil entre uma mulher branca a usar um sari e uma idiana a usar roupas
ocidentais. Esta não é uma plataforma comum e, quanto às calças e aos saris, não existe uma língua
comum. A experiência de Santosh, uma personagem ficcional, deve ser entendida como particular, e não
representativa. Pois não existe uma resposta geral universal que as mulheres asiáticas tenham ao usar
roupas ocidentais. As camisolas da Marks and Spencer poderão realmente mudar irremediavelmente
alguma coisas dentro de outra asiática. E as roupas ocidentais poderão também ser, em alguns casos,
libertadoras, não 'uma destruição de alguma área dentro de si mesma, uma aquisição dolorosa de novos
membros indesejáveis' (p. 48).
As narrativas de Molteno têm o efeito de fixar as diferenças culturais. Pois existem muitas negras
asiáticas que discutiriam com Mumtaz, desafiariam o poder masculine dentro da família alargada, e
tomariam o que querem da cultura ocidental, incluindo as calças. 388 Algumas mulheres negras
consideram-se britânicas, e vêm a sua cultura como sendo britânica. E a vida de qualquer mulher asiática
não revolve apenas à volta do seu marido, família, filhos, festivais religiosos, comida, a conta do gás ou
aprender inglês, que pode ser em alguns casos a sua língua materna. Algumas asiáticas têm carreiras
excelentes e independents, e ganham bom dinheiro. Algumas são ateístas, algumas são lésbicas; algumas
são feministas revolucionárias. Do retrato coletivo no livro de Molteno, isto parece impossível. De facto,
através destas histórias, uma e outra vez, a corrente que quebra a superfície está ausente, uma ausência
que é visível, o que não está lá, o que fica por perguntar, por responder, o que não é dito. Nós temos
muito pouca escrita publicada por asiáticas sobre as suas próprias experiências; e nós precisamos de as
ouvir delas primeiro.
É demasiado fácil para as mulheres brancas escaparem das armadilhas políticas preparadas pelo estado
racista branco. Eu muitas vezes ouvi feministas brancas a denunciar o sistema do casamento combinado.
Mas de facto, as asiáticas são muitas vezes forçadas a uma dependência legal dos homens pelas leis de
imigração britânicas. Parita Trivedi explica: 'Porque certa legislação da imigração permite que as
mulheres entrem na grã-bretanha apenas enquanto dependentes de um trabalhador masculino, a sua
dependência dos homens tem sido enraizada e perpetuada.'389 A proibição dos noivos masculinos
entrarem na Grã-Bretanha é uma máscara para a intenção verdadeira do racismo institucional britânico,

387
Estes comentários são genuínos. Pela informação, os meus agradecimentos para N. Kassam. Ela também diz que sente que as
coisas estão a mudar na sua comunidade e que existe agora uma atitude mais liberal em relação às calças.
207

388
Ver Yasmin Alibhai e Pragna Patel, 'Afterword' to Riley, The Scarlet Thread, pp. 143-51; também Shaila Sha, 'We Will Not
Mourn Their Deaths in Silence', in Grewal et al., Charting the Journey, pp. 281-91.
Página

389
Parita Trivedi, 'To Deny Our Fullness: Asian Women in the Making of History', Many
Voices One Chant, pp. 37-50: p. 45.
nomeadamente, excluir trabalhadores negros que procurem entrar no Reino Unido. Em vez de declararem
abertamente este objetivo, as autoridades difamam o sistema do casamento combinado e fazem de conta
que vêm em socorro das indefesas donzelas asiáticas. As redes familiares asiáticas podem muitas vezes
ser um sistema informal de segurança social, fornecendo emprego, fundos e cuidados para os mais velhos.
O negócio de transformar estas redes para que estas não sejam opressivas para as mulheres é parte de uma
luta histórica que já dura há séculos da parte das mulheres negras asiáticas. Mas são essas mesmas redes
que estão sob ataque pelo estado. Trivedi dá-nos uma clareza intransigente sobre este ponto.

Se algumas de nós cheguem sequer a decidir casar-se, quanto mais ter um casamento
combinado, é um assunto que nós definimos e sobre o qual agimos autonomamente do
governo. Nós não precisamos que o estado racista intervenha em nosso favor. Aliar-se e
pactuar com o estado racista numa luta pseudo-feminista seria grosseiro e errado. Este
tem sido um assunto sobre o qual nós tivemos que ser claros sobre como as duas areas de
opressão - racial e sexual - funcionam, (pp. 46-7)

Dada a atitude do estado britânico, a questão da audiência para a escrita negra que lida com a violência
sexual dentro da comunidade é particularmente sensível. Aqui as verdades das mulheres negras são
vulneráveis; podem ser aproveitadas e exploradas pelos racistas, que estão ansiosos por ignorar a mesma
violência nas comunidades brancas. Sita, a narradora de The Scarlet Thread, descreve, sem amargura, a
estrutura das relações sociais na sua aldeia natal. 'Esta fora sempre a forma de se fazer as coisas na aldeia;
não ser casada era impensável. Uma mulher sem um marido não era uma pessoa. E esta é a maneira como
até mesmo uma viúva é considerada. Para o resto da sua vida, após a morte do seu marido, ela é uma
pessoa sem importância' (p. 26). A história de violência marital e da eventual fuga de Sita é a história de
uma mulher que deixa de estar casada, defende-se a si própria e continua a ser uma pessoa de imensa
importância. Ela disse, 'Nenhuma mulher devia ser tratada como eu fui tratada e deixada para sofrer,
espancada, apavorada e sozinha' (p. 142). A audiência que ela aborda diretamente é o seu próprio povo,
não os brancos entre os quais ela vive; mas a sua história é a história de todas as mulheres, de todas as
raças e classes, que tenham sido espancadas e abusadas. A violência doméstica testemunha um dos
padrões universais do domínio masculino; mas isto não significa necessariamente que os homens dentro
de diferentes comunidades, coletivamente ou individualmente, possam ser desafiados e resistidos das
mesmas formas. As questões fundamentais que afetam e dão forma às vidas das mulheres negras e
mulheres negras são frequentemente as mesmas; mas o contexto cultural e histórico serão sempre
diferentes – e assim também serão a análise, estratégias e soluções apropriadas.
Por vezes, os mesmos espaços em branco, silêncios e preocupações que são visíveis no feminismoo
branco, emerge na escrita das mulheres negras. 390 O ensaio de Loretta Ngcobo sobre a escrita das
mulheres negras na grã-bretanha, que introduz os artigos no Let It Be Told, é ocasionalmente equívoco
sobre o tema da escrita das lésbicas negras. Ela diz que 'deve ter havido durante algum tempo entre nós
mulheres a tomar uma opção radical contra as relações tradicionais com homens . . . Estas mulheres
constituem uma pequena minoria, mas elas existem e os seus números estão a aumentar. O que é inegável
é que elas têm uma voz que não sera silenciada.'391 Eu reparei que Ngcobo descreve o Lesbianismo como
uma escolha negativa contra os homens, em vez de uma escolha positiva pelas mulheres. Mas nos seus
comentários sobre a coleção de Barbara Burford, The Threshing Floor, ela declara que o título novela é
'uma história universal de amor e dor', por isso 'o elemnto lésbico não é importante'. 392 Dada a angústia
que a heroína lésbica negra de Burford sofre às mãos da família da sua amante falecida, e o tratamento
ambíguo que ela sofre enquanto uma enlutada companheira mulher, eu teria pensado que 'o elemento
lésbico' era urgentemente relevante, na realidade, o tema da narrativa. Muitas vezes, quando uma lésbica
morre, a família que pode ter tolerado de má vontade a sua sexualidade enquanto ela era viva, torna-se
deveras maldosa assim que ela morre. Os mortos tornam-se santos. A mulher sobrevivente pode até ser

390
Ver 'Becoming Visible: Black Lesbian Discussions', Carmen, Gail, Shaila and Pratibha, in Many Voices One Chant, ' "Pushing
the Boundaries": Mo Ross talks with Jackie Kay and Pratibha Parmar', in Grewal et al., Charting the Journey, pp. 169-187, sobre a
maternidade das negras/lésbicas. Existe uma secção 'Being a Lesbian . . . ' no Black Womantalk, Black Women Talk Poetry, e
existem contribuidoras negraslésbicas para o (ed.), Beautiful Barbarians: Lesbian Feminist Poetry (Londres, Only- women, 1986)
208

de Lilian Mohin and Chris McEwan (ed.), Naming the Waves: Contemporary Lesbian Poetry (Londres, Virago, 1988). Tudo isto
apenas para principiantes – a escrita negra lésbica está, felizmente, a tornar-se cada vez mais disponível.
391
Ngcobo, Let It Be Told, p. 30.
Página

392
Ibid, p. 31.
acusada de ter desviado a sua amante morta do bom caminho. Ou então dizem-lhe, 'Tu podes ser uma
lésbica, mas ela não era.' Todas os seus bens em comum podem ser confiscados pelos familiares
vingativos. Na narrative de Burford, a Srª Harrison, a mãe e familiar vingativa em questão, começa a a
brandir as armas sobre a quem pertence a casa. A heroína de Burford mantém-se firme e encontra apoio
noutros elementos da família da sua amante falecida. Fora da ficção, isto nem sempre acontece. Uma
moral é: se tu és homossexual, faz um testamento feroz e impermeável. Aparentemente, a tolerância da
família pode muito bem estar a disfarçar um ressentimento amargo e submerso.
Ngcobo analisa o método de Burford para descentralizar a heterossexualidade e a família, e depois
declara que o texto 'é uma visão da vida através do monóculo lésbico' (p. 32). Esta é uma peça aberta de
anti-lesbianismo subreptício. As lésbicas vêem o mundo perfeitamente claro, e com ambos os olhos
abertos. De facto, visto da borda do círculo, as estruturas do poder podem habitualmente ser analisadas e
criticadas muito mais incisivamente do que do centro. Mas as lésbicas vêem um mundo diferente. Esta
não é a versão oficial. 393
Becky Birtha, uma escritora negra lésbica, pega no mesmo tema do amor e da perda como um dos
temas para uma das histórias na sua coleção Lover's Choice, mas retira a família por completo. A família
torna-se na comunidade lésbica. Jinx e Gracie têm estado 'na Vida' desdesempre. Elas são uma parelha de
lésbicas negras de machão/fêmea que tem tido o seu próprio ritmo, uma vida longa de trabalho árduo e de
amor verdadeiro. A voz narrative é a de Jinx, assombrada pelas memórias da sua amante morta,
afirmando a sua vida e a Vida. O tom é delicado, exatamente do lado direito do sentimental. A velha
negra lésbica observa as suas irmãs mais novas na Vida, mistificada pela sua versão da comunidade
lésbica como sendo política em vez de social. 'Quando eu ouvi falar deste clube onde ela vai pela
primeira vez, eu fiquei como que interessada. Mas acabei por descobrir que não era um clube social,
como o Cinnamon & Spice Club costumava ser. Yvonne chamava-o de coletivo. Elas nunca organizam
saídas ou festas ou piqueniques ou coisas do género – só reuniões. E projetos.'394 Eu ri às gargalhadas
quando li isto. O lesbianismo enquanto política pode muitas vezes parecer que nós estudamos mais do que
apreciamos a companhia umas das outras.
As histórias de Birtha formam os elos críticos entre as experiências de viver nos limites da existência
social, como negra/lésbica/mulher: ela argumenta a favor das conexões necessárias. Em muitas das
histórias, as negras mães lutam para compreender e envolver-se com os seus filhos. As melhores histórias
são monólogos dramáticos. Jinx, conversando com o gravador de Yvonne,também está a falar para nós,
contando-nos a sua versão da história das negras lésbicas, a sua história. Cecily Banks, conduzindo na
South Street Line; Leona Mae Moses, mantendo os seus filhos quentes e secos na Route 23; Johnnieruth,
vivendo uma precoce experiência formativa de duas mulheres a trocarem um beijo; todas as vozes exigem
atenção, compaixão, uma audiência. Leona Mae Moses fala com outra passageira bem como com os seus
filhos. Assim, a experiência negra é apresentada e representada diretamente, não analisada, explicada ou
revelada por uma narrador externo. O efeito político disto é o de insistir na centralidade da visão do
mundo de uma mulher negra;é a voz da mulher que decide o que é importante, o que importa. O sexismo,
e o anti-Lesbianismo dentro das comunidades negras, são inequivocamente descritos. Ninguém – nem os
homens negros nem as famílias negras – escapam.
Muitas das histórias de Birtha passam-se dentro da comunidade americana multi-racial e lésbica. 'Her
Ex-Lover' é uma das mais intrigantes dessas histórias, lidando como o faz, com as tensões particulars do
amor inter-racial. 395 A voz falante, Shirley, é uma negra cuja amante negra, Ernestine, mantém uma
relação ténue e desconfortável com 'Lisa. A sua amante anterior. A sua amante brancas' (p. 80). Estes dois
elementos – a amante anterior, a amante branca – são confundidas de formas interessantes pelo ciúme de
Shirley.
'Será que não vês,' eu insistiria, 'porque é que tu a amas, ou pensas que a amas? É pelo poder que tu estás
apaixonada. Previlégio. Tu não a queres. Tu queres ser ela.'
Uma vez ela interrompeu-me, perguntando'Shirley, se eu me sentisse assim, será que me preocuparia
contigo?' (p. 87).
Através destas breves trocas de palavras, Birtha pede-nos, não para desconfiar da voz falante, mas para
ouvi-la criticamente; para ouvir os espaços em branco, as omissões, os medos. O ciúme, a insegurança e a
perceção justa de uma mulher branca mudando o seu terreno estão interlegados. Lisa aprende uma lição,

393
209

Para uma análise desta versão muito diferente, ver 'Becoming Visible: Black Lesbian
Discussions'.
394
Becky Birtha, Lover's Choice (1987; Londres, Women's Press, 1988), p. 148.
Página

395
Ver também Ann Allen Shockley, Laving Her (1974; Tallahassee, Flórida, Naiad, 1987).
mas não a aprende de Shirley. Ela aprende da sua ex-amante. Eu discuti esta história com uma mulher
negra que tinha acabado de lê-la e que me perguntou o que eu tinha achado. Eu disse-lhe que tinha
adorado a forma como a história me fez arrepiar, e mexido comigo. Eu fiquei irritada pela afirmação do
narrador de que a música occidental era exclusivamente da 'cultura branca' quando eu tinha ouvido Jessye
Norman, Shirley Verret, Kathleen Battle, cantar dezenas de sopranos brancos diretamente do palco,
tomando assim orgulhosamente posse da musica clássica ocidental para si mesmos. Mas a questão de
Shirley era sobre o imperialism cultural, e a forma como Lisa tinha imposto os seus valores sobre
Ernestine. E eu reconheci-me na Lisa; a mulher branca que estuda a história negra, lê a escrita negra,
ansiosa por se educar. Eu perguntei à minha amiga o que ela pensava. E ela indicou o silêncio no centro
da história, Ernestine. Esta é a mulher negra que 'procura diligentemente por aquilo que gosta nas
pessoas, e não permite às coisas que ela não gosta de a levar a deixar de gostar delas' (p. 87). Então a
minha amiga disse, 'Eu aposto sempre na Ernestine.' Adequadamente, esta história foi publicada pela
primeira vez na antologia entitulada The Things That Divide Us.396 Deveria ser leitura obrigatória para
todas as lésbicas brancas.
Nenhuma das histórias de Birtha oferece respostas fáceis ou foge da dificuldade. As narrativas lidam
com rompimentos, separação, perda, pobreza, tentação sexual, o problema de manter compromissos
emocionais, defender os nossos filhos, manter os nossos empregos, a dificuldade de nos amarmosuns aos
outros.
A 19 de Novembro de 1987, the Polytechnic of North London's Centre for Caribbean Studies
organizou um Fórum para escritoras. No seu relato daquela noite, Jaqui Roach salienta, 'É importante
quando se pensa nas Caraíbas, lembrar que a história da região é vasta e diversa, replete de gente de
várias origens "étnicas".'397 Naquela mesma noite, haviam mulheres presentes de muitos países diferentes:
Granada, Guina rural, S. Vincente, bem como mulheres negras britânicas de descendência caribenha. As
Caraíbas não têm uma cultura homogénea, nem uma língua única. As ilhas foram ocupadas em períodos
diferentes e por diferentes poderes coloniais. Na sua odisseia caribenha, Amryl Johnson encara os
resultados da história.
Eu viria mais tarde a compreender a divisão entre os habitantes de S. Lúcia, Martinica, Dominica e
Guadalupe mais claramente. Eu já conhecia a longa e amarga batalha travada entre os britânicos e os
franceses pela posse destas ilhas. Santa Lucia e Dominica continuou com os britânicos. Martinica e
Guadalupe foram departmentos de França, o que tornou os seus habitants franceses. Eu não me tinha

210

396
Faith Conlon, Rachel da Silva e Barbara Wilson (eds), The Things That Divide Us (Seattle,
Seal Press, 1985).
Página

397
Spare Rib, no. 186 Janeiro 1988).
realmente consciencializado disso até chegar a S. Lucia e mais tarde a Dominica. Sempre pareceu
estranho ouvir referências aos martinicanos e guadalupianos como franceses. 398
As mulheres negras das caraíbas escreveram e escrevem tanto na lingua dessas culturas invasoras e a sua
própria língua – originalmente oral -. ' Angel de Merle Collins está escrita tanto em crioulo da Granada e
em inglês padrão. Lionheart Gal das Sistren está largamente escrito em patoá jamaicano. Myriam
Warner-Vieyra, que é da guadalupe, e viveu muitos anos no Senegal, escreve em Francês. Os seus
romances, Le Quimboiseur l'avait dit (1980) e jfuletane (1982) foram ambos traduzidos para o inglês. As
caraíbas não é apenas um lugar onde a cultura negra encontra e responde à cultura europeia, apropriando,
transformando e recriando as tradições literárias ocidentais; é também o lugar onde áfrica é a poderosa
força estrutural. África, na escrita caribenha, é história, mito e sonho. Num documentário da televisão
francesa,399 Aimé Cesaire, o poeta e dramaturgo da Martinica, disse que esta mente inconsciente, na sua
vida e na sua arte, era Africa. Assim, as caraíbas é muitas vezes o ponto de contacto entre as escritoras
negros afro-americanas, as mulheres que vivem e trabalham nas ilhas, e as mulheres negras que vêm as
caraíbas como a sua origem, a raiz cultutral nas suas vidas. Amryl Johnson observa, 'A ilha onde nasceste

211

398
Johnson, Sequins for a Ragged Hem, pp. 186-7.
Página

399
Océaniques, Outubro 1987.
este sempre contigo em espírito.'400 Isto é verdade para as mulheres afro-caribenhas britânicas e para as
afro-caribenhas americanas.
Na sua coleção Our Dead Behind Us, o poema de Lorde 'Equal Opportunity' desmascara a
desonestidade politica da 'Amerika' imperial, o estado que emprega as mulheres negras mas que ordena a
invasão da granada.
A assessora do secretário da defesa Americano para a Igualdade de Oportunidades e para a segurança é
uma rapariga da terra.
A cegueira reduz a nossa tapeçaria a retalhos.
O verde militar da sua roupa realça a sua cor
Ela diz 'quando eu me levanto para falar no meu uniforme
Podes crer que toda a gente presta atenção!'
A mancha de dioxina sobreposta em forma de caveira na decoração sobre os seus ombros quadrados
o fedor a napalm ao cultivar couves o sacolejar e a batida dos corsários no primeiro plano avança como
um blush na sua face rua acima nas estradas por pavimentar nos arredores de Grenville, Granada…401

A família de Lorde vem da Granada; a sua mãe é de Carriacou. Essa paisagem rural, as colheitas
destruidas, as pessoas aterrorizadas, aparece novamente no texto Angel de Merle Collins'. Collins, uma
poetisa da Granada, romancista e artista a viver e a trabalhar na Grã-Bretanha, descreve a invasão
americana nas últimas páginas do seu romance.
Angel é um Bildungsrotnan, a educação política, em vez da educação emocional de uma jovem da
Granada. É também um romance de mães e filhas; Ma Ettie e Doodsie, Doodsie e a sua filha Angel. A
ficção que estabelece os elos, não apenas entre gherações mas também entre movimentos políticos
específicos, atos da resistência negra ao imperialismo, é particularmente importante na escrita negra. Esta
é uma ficção que traça uma herança deixada invisível pela história branca; uma ficção que cria
continuidade e comunidade. A ficção e a história negra interpenetram-se. O New Jewel Movement na
Granada, que conduziu ao golpe de estado sem derramamento de sangue de 13 de Março de 1979,

212

400
Johnson, Sequins for a Ragged Hem, p. 211.
Página

401
Audre Lorde, Our Dead Behind Us (Londres, Sheba, 1986), p. 16.
terminou com o regime de vinte e nove anos de Sir Eric Gairy. Collins transpose uma história política em
particular para um padrão arquétipico. Os políticos representam em vez de personificar essa história. Este
facto altera o centro de interesse das personalidades para as ações, dos demagogos controladores para as
pessoas. Angel não é um livro de história negra, mas uma interpretação ficcional da história negra. E
necessariamente, quando a interpretação da história é especialmente controversa, haverá uma
discordância substancial entre os seus leitores sobre o significado dos acontecimentos, ou mesmo sobre os
acontecimentos em si mesmos. O entusiasmo de uma revolução do povo, a confusão e o medo que acabou
na invasão americana em outubro de 1983, são evocados e descritos cuidadosamenteare. A compaixão da
narrativa de Collins vai sempre o povo: defendendo a sua autonomia, representando as suas contradições.
Não existem simplicidades fáceis. 402
Collins usa as tradições orais da sua linguagem na sua escrita. Muita da ação é levada avante através de
formas de mulheres: cartas domésticas, visitas, intrigas, reminiscências, discussões familiares e conversas
familiares. As mulheres conversam, trocam ideias, informações, discutem e apoiam-se umas às outras. O
efeito disto é, primeiro, colocar uma valor poderoso naquilo que é habitualmente marginal na história e na
ficção literária: o dia-a-dia doméstico. Em segundo lugar, o método de Collins estabelece um continuum
das mulheres que é um continuum de mudança. Angel recusa-se a suportar o que a mãe dela sofreu com o
seu marido, o pai de Angel. Ela desafia-os constantemente. No meio de uma amarga discussão familiar, a
seguinte análise da situação económica de Doodsie surge naturalmente do meio da gritaria. Doodsie
argumenta, ' "Is the man house you know. When dey cut up de estate an dey sellin out to who want lan, is
he dat had money to buy piece wid house on it, not me!" (É o homem da casa, sabes. Quando eles querem
reduzir a propriedade e vendê-la a quem a quiser, ele é que tinha o dinheiro para comprar o terreno com a
casa, não eu! ') Ao que Angel responde,' "How you mean is the man house? You not livin in it? Is the
man sweat an blood alone that keepin this house goin? Mammie, for thing you tell me, ah don understan
you" ' (p. 188)(Como é que podes achar que a casa é do homem? Não estás a viver nela? É só o suor e o
sangue do homem que a mantém de pé? Mãe, eu não consigo entender as coisas que dizes). O estatuto de
subordinadação das mulheres e a mecânica brutal do poder masculino nunca deixam de ser desafiados
pelo texto de Collins. A própria Angel não tem pressa em se casar ou engravidar. A sua paixão é a
política. E a política “mulherista”/womanist é sempre vista dentro de um contexto de revolução social e
política. Doodsie luta contra a educação da sua filha, mas depois acha difícil questionar todos os seus
pressupostos. A mudança política dentro do romance, da aceitação para a resistência, é inevitável.
O livro começa com os trabalhadores expetantes a assistir à queima das propriedades dos proprietários
abastados. Mesmo depois da intervenção dos americanos na revolução de Granada nas últimas páginas,
Collins recusa-se a terminar a sua narrativa numa nota elegíaca. A sua narrativa, porque se encontra
enraizada na história, continuará para além do texto. Em vez disso, Angel acende uma vela pelos espíritos
do velho moinho de cana à beira do rio. 'She looked at the flame. She smiled as it remained steady in the
still cool morning . . . the spirits gone, you know. The candle not goin out. They either gone, or they
sympathetic. Nothing to fraid' (p. 291) ('Ela olhou para a chama. Ela sorriu pois esta permaneceu imóvel
na calma e fria manhã . . . sabes, os espíritos partiram. A chama não se apaga. Ou eles partiram, ou estão
do nosso lado..) Quando a narrativa se move momentaneamente para dentro da mente de Angel, a língua
crioula sobrepõe-se ao ingles padrão; 'Nothing to fraid' Não há nada a temer. Collins usa o crioulo para
representar o discurso direto, mas a língua da interpretação contextual language é o inglês padrão
literário. O efeito disto é o de manter a linguagem falado um pouco à distância, mas também ensiná-la ao
leitor.Uma grande parte do texto funciona na verdade como uma peça de teatro, à medida que ouvimos o
crioula na ação doméstica e política. Os títulos das secções dentro dos capítulos interpretam cada cena nas
breves expressões crioulas aguerridas ou reflexivas, usadas como provérbios tradicionais.

Don play de ooman wid me.


Vini ou kai vini, ou kai we. (We are coming, you will see)
We ha to hoi one another up.403

402
Os media do ocidente capitalista realmente lidam com simplicidades fáceis. Eu encontrei a atrocidade que se segue da autoria de
William Greaves no 'Postcard', The Observer Magazine, 10 de Janeiro 1988: ' .. . o dia em que as forças de libertação americanas
aterrou sem aviso prévio e expulsaram um odiado governo revolucionário que tinha aterrorizado estes ilhéus amigáveis e pacíficos
desde os finais dos anos 70'. Para uma visão muito diferente, ver Audre Lorde, 'Grenada Revisited: An Interim Report', in
213

Sister/Outsider: Essays and Speeches (Trumansberg, Nova Iorque, Crossing Press, 1984), pp. 176-90.

403
Ver o glossário no final do texto de Collins, onde tudo é explicado aos não iniciados. Uma grande parte da língua é-me familiar
Página

da minha infância e da poesia de escritores como James Berry e Louise (Miss Lou) Bennett. Mas o entusiasmo ao ver as línguas das
índias ocidentais usadas na ficção – da ficção major – é enorme. Para mais referências ver Morgan Delphis, Caribbean and African
Languages: Social History, Language, Literature and Education (Londres, Karia, 1985) e Hubert Devonish, Language and
Liberation: Creole Language Politics in the Caribbean (Londres, Karia, 1986).
Assim, os significados diretivos gerais – ou linhas de orientação para a nossa interpretação do texto – são
dadas em crioulo. E, num dado momento crítico no romance, quando Doodsie está a escrever para uma
amiga sua, Ezra, ela começa em 'school book ting' – isto é, inglês padrão: 'Dear Ezra, How are you? I
hope fine'(Querida Ezra, Como estás? Espero que bem) e então ela vira a página e recomeça: 'Dear Ezra
How's tings, girl?.. .' (p. 206). E assim, a lingua crioula é pensada, falada e escrita; finalmente, possuída
na totalidade e usada para celebrar uma comunidade e um povo. Nesta língua, as numerosas migrações
caribenhas, a procura de emprego, educação ou aventura, são refletidas na língua de mudança. Uma
palvra como 'hefe', que significa chefe, vem do espanhol 'jefe'. O glossário de Collins sugere que isto foi
provavelmente trazido para o Inglês pelos trabalhadores do Canal do panamá. Algumas palavras têm a
sua origem em áfrica. Algumas expressões, tais como 'gardé bèt-la' (regardez cette bête-là) têm
claramente as suas origens no francês.
Escusado sera dizer que, a língua crioula não foi ensinada, nem usada na escola. A educação absurd e
inapropriada de que Angel e os seus irmãso são alvo é habilmente criticada através dos diálogos de
Collins e das vozes das crianças.

'Angel, what is an apple?'


'Ent you know is de ting in de ABC card!'
'You could eat it?'
'Yes, is like a mango.'
'So A is for mango too?'
'No. A is for apple. If you want you could aks Mammie to buy an apple for you.'
'Ah aks her arready. She say it too dear.' (p. 64)
(Angel, o que é uma maçã?
Tu devias saber que é aquela coisa no cartão do ABC.
É de comer?
Sim é como um mango.
Então A também é de mango?
Não. A é para maçã. Se tu quiseres, podes pedir à mãe para te comprar uma maçã.
Já pedi. Ela diz que é muito caro.
Quando eu era criança, lembro-me de pensar porque é que o A não podia representar Akee, o fruto
nacional da Jamaica.
Angel tem de aprender todos os reis e rainhas de Inglaterra da história de Inglaterra para os seus
exames A-Levels. Ela chumba o seu exame de história da índia ocidental (' .. . an dose long slave reports
well borin! Who could study dat?' (p. 121)) (uma dose de relatórios de escravos bastante enfadonhos!
Quem é que é capaz de estudar aquilo?)mas depois deita mãos à obra na modelação da história do seu
país e do seu povo. Ela já não aprende a história de outros povos, ou a sua interpretação da sua própria
história; ela faz a história. Mas nem toda a cultura europeia é racista ou irrelevante tal como o amigo de
Angel, Kai vem a descobrir: 'Eu descobri que há facetas das pessoas como a Shelley que são realmente
excitantes e estimulantes, o que sem dúvida nenhuma foi a razão para nunca me terem sido apresentadas'
(p. 252). E obviamnete, ele tem razão. Elas também não são muitas vezes apresentadas às crianças nas
escolas britânicas. O texto de Collins põe a descoberto os aspetos mais problemáticos da política, da
literatura e da história. O historiador C. L. R. James tem argumentado sempre pela apropriação do
radicalismo europeu da parte dos ativistas negros. Eu vi uma sequência televisiva extraordinariamente
comovente de Michael Smith a recitar a 'Song to the Men of England' de Shelley no Poet's Corner na
Abadia de Westminster. E sim, os dissidentes radicais de todas as tradições falam umas da outras. Mas o
que é que Shelley poderia dizer a uma mulher negra radical? Ele era um aristocrata do século dezanove,
cuja política sexual não era, efetivamente, diferente daquela dos outros homens da sua classe. El epode ter
pregado o amor livre, mas de facto as consequências para estas mulheres eram completamente
convencionais: opressão, exploração, gravidez e dependência financeira.
O Angel de Collins deixa perfeitamente claro que a luta para tomarmos posse de nós como mulheres,
tal como as duplamente deserdadas sem as nossas comunidades, deve permancer no primeiro plano de
todas as lutas revolucionárias. A análise de uma mulher desafia sempre o socialismo radical quando se
prova que a liberdade, igualdade e fraternidade só se aplica aos homens. Tal como diz o velho slogan, o
povo não é livre enquanto as mulheres não forem livres. Para os povos negros das Caraíbas, essa luta
214

deve tomar lugar nas ruas, nos campos e nas cozinhas, na sala de aulas e na página. Os anjos são os
mensageiros de Deus. E Angel é um marcador, um caminho, a história dos desapropriados, de regresso
aos seus.
Página
A palavra da mulher negra como um testemunho 404 é a base do auto-retrato coletivo pelas by Sistren no
Lionheart Gal. As Sistren são um grupo misto de mulheres da classe media e trabalhadoras jamaicanas
que se juntaram num grupo teatral coletivo só para mulheres em 1977. As treze mulheres eram todas
originalmente do Impact Programme do governo de Manley, que era uma tentativa desesperada para
reduzir o desemprego. Desde então, as Sistren transformaram-se num companhia teatral internacional,
que faz tours pelo mundo inteiro, e que produz o seu próprio trabalho cultural: workshops, pinturas em
ecrãs de seda, uma revista. As histórias das suas vidas, que formam o texto de Lionheart Gal, não estão
assinadas individualmente. Assim o grupo, e não vozes singulares, toma a responsabilidade pela palavra.
Muitas destas histórias são narrativas que apelam à consciência; sobre como foi crescer, tornar-se
politicamente conscientes, aprendendo e desaprendendo a construção social da condição feminina da
mulher negra. A maioria das histórias dos membros da classe trabalhadora estão escritas em patoá
jamaicano. Estas foram transcritas de gravações. O patoá é tradicionalmente uma língua oral. A palavra
falada, como seu ritmo oral particular, é portanto primário. Honor Ford Smith, o director artistic das
Sistren e o editor do, descreve cuidadosamente o processo de criação do livro. Este foi, essencialmente, o
mesmo método que o grupo usa no desenvolvimento dos seus projetos teatrais, desde a ideia à sua
concretização. A discussão coletiva dá forma e desenvolve cada contribuição individual. O argumento
apaixonado de Ford Smith em defesa do patoá escrito é baseado na perceção que 'a língua é central a
todas as relações de poder' e que 'não acarinhar tal língua é retardar a imaginação e o poder do povo que a
criou.'405 É óbvio que, idealmente, o patoá deve ser soletrado foneticamente, para quebrar o elo imperial
com o inglês padrão. O livro inteiro foi lido e aprovado pelo coletivo. 'Através de reuniões prolongadas,
decidimos o título da coleção daqueles que haviam sido propostos, como seria resolvida a questão da
autoria e como o dinheiro ganho pelo livro seria usado no coletivo' (pp. xxiv-xxv). É este processo, o
controlo das Sistren sobre a produção e a riqueza gerada, que é democrático, cansativo, moroso e
feminista.
A violência, a violência masculina, a violência sexual, a violência parental, a violência política; a
violência em todas as formas de hidra é o tema central do Lionheart Gal. 'Rebel Pickney' faz a ligação
entre os pais que batem selvaticamente nos seus filhos e o tratamento exercido sobre os escravos negros
na história. 'Inna slavery dem use di murderation in di plantation and den our fore-parents, when dem lef
out a slavery dem believe di only solution is beating. Me no beat my pickney' (p. 17) (Durante a
escravatura, eles usavam o assassinato na plantação e então os nossos antepassados, quando eles deixaram
a escravatura, acreditavam que a única solução é bater. Eu não bato nos meus filhos) 'Veteran by Veteran'
fala da violência dos gangues políticos dos anos 70. 'Ava's Diary' é sobre a violência doméstica pela mão
dos homens e a ação coletiva das mulheres em sua própria defesa. 'Quando voltámos para a estação de
Cross Roads todas as Sistren estavam sentadas ou de pé fora da esquadra da polícia. Elas ficaram lá até
terem a certeza que ele ia passar a noite na cadeia' (p. 279). O homem de Ava, Bertie, torna-se violento
porque ele receia que o dinheiro que Ava ganha com as Sistren irá libertá-la dele. Ele exige o dinheiro
dela. Quando ela se recusa a dar-lho, ele bate-lhe. Este é o eterno argumento as mulheres enquanto
propriedade; a propriedade dos homens, tanto o nosso trabalho como os nossos corpos. Sempre que uma
mulher reinvindica a sua própria vida, o seu próprio salário do seu próprio trabalho e a sua própria
liberdade, a resposta masculina é a violência. Não que as mulheres de Lionheart Gal sejam tépidas nas
suas respostas. Este não é um livro sobre vítimas. A mãe de uma mulher casou com um homem chamado
Sr Jimmy. Quando ele abusou dela ' . . . she just tek di chair wid him and him felt hat and bend-mouth
walking stick, and throw him a gully. Him and di chair roll down deh and me madda not even look pon
him' (p. 45). E lá se foi o Sr. Jimmy.
O outro tema que se repete ao longo destas narrativas é o mal da ignorância sexual. A escritora/voz do
'Exodus a Run' realça implacavelmente ao conluio das mulheres na sua própria opressão ao se recusarem
contar a verdade explícita sobre o sexo e sobre os homens. 'Dem always a tell yuh seh baby drop out a
sky, and come inna plane and all dem someting deh' (p. 22). (Eles dizem sempre que os bebés caem do
céu e vêm de avião)Muitas destas mulheres engravidaram enquanto ainda andavam na escola. 'Mama
never really reason full wid me about sex ... A must coward lick me mek me get pregnant, for me never so
keen on di sex business' (p. 264). (A mãe nunca falou comigo sobre sexo…um covarde qualquer … e
engravidou-me, eu nunca estive muito virada para o sexo) Existe o habitual catálogo de infidelidade,
exploração e traiçãp que as mulheres, todas as mulheres, produzem sempre que escrevem sobre os
homens. 'Me did have one man friend dat was me good good friend till him go a England wid me eighty
215

404
Ver Honor Ford Smith, 'Sistren Women's Theatre, Organizing and Conscientization', in Pat
Ellis (ed.), Women of the Caribbean (Londres, Zed, 1986), pp. 122-8.
Página

405
Sistren, Lionheart Gal, p. xxix.
pounds . (Eu tinha um amigo homem que era um bom amigo até que ele fugiu para Inglaterra com as
minhas oitenta libras.) ..' (p. 82). Mas entre as fileiras cerradas de sedutores, parasitas, mentirosos e
abusadores, existe um ou dois sinais de esperança. Existe o Negus, um bonito irmão Rastafarian que
vende bolas de neve dum carrinho de mão. Negus arruma aquilo que desarruma e consegue se organizer
no que respeita a comida. 'Negus deixou claro que a comida é importante. Os outros irmãos preferiam
morrer à fome do que preparar alguma coisa para eles próprios . . . Negus foi o meu primeiro exemplo de
verdadeira irmandade aa classe trabalhadora' (p. 229). O meu também. Em nenhum dos meus dias de
revolucionária socialista, eu vi um dos irmãos a fazer as sandes.
As narrativas de Lionheart Gal articulam muitas vezes conflitos amargos entre mulheres de diferentes
gerações. Há as mães que atraiçoam, abandonam ou rejeitam as suas filhas. A avó no 'Grandma's Estate'
passa sessenta anos assombrada pelo suposto estigma da sua raça mestiça, e estatuto de bastarda. A
hierarquia da política da cor na Jamaica, outro legado do racismo branco, é descrito sem hesitações. Uma
mãe começa a gritar quando ela descobre que a sua filha está grávida de um homem negro. ' "Me tink seh
di gal would a look up off a di ground. Instead di gal not even raise up him head, him hold it down. A
black man! Wid rolly-polly black pepper head! Me no waan dat deh pickney. None at all. . . . OH MY
GAWD!" She definitely feel seh if yuh hair no straight, yuh nah gwan wid notten' (p. 52). (Eu pensava
que a rapariga iria olhar para cima. Em vez disso, a rapariga nem levanta a cabeça, mas olha para baixo.
Um homem negro! Com carapinha cor de pimenta! Eu não quero essa criança. De maneira
nenhuma…OH MEU DEUS!...) Mas nada disto fica por contestar. O pano de fundo social para estas
narrativas é a história social submerse da Jamaica desde a independência nos anos 70 e 80. A política é
vista do seu umbigo, do seu efeito na classe trabalhadora. Naturalmente, existe uma boa dose de cinismo.
'From me know myself, politician keep dem meeting and a tell we seh we fi vote fi dem, cause we need
new toilet and bathroom. Up to now, no new toilet no build' (p. 266). (Desde que me conheço que os
politicos pedem o voto e nós votamos neles porque precisamos que nos construam uma nova retrete e
casa de banho. Até agora, nenhuma retrete foi feita) Mas Lionheart Gal começa a redefinir a política da
perspetiva da mulher. Este é um dos textos mais penetrantemente radicais de autoria de mulheres negras
que eu já li, porque as Sistren perguntam cada uma das perguntas desagradáveis. Porque é que, realmente,
o reggae e as letras calypso que protestam tão veementemente contra a injustice feita ao povo negro e
exigem liberdade para os homens negros, continua a denegrir e a abusar das mulheres negras? 'Eu
perguntava-me como é que letras que eram tão originais e tão rápidas em proclamar um conjunto de
injustiças sociais poderia ser tão cego em relação a outras' (p. 190). 406 Precisamente. E as Sistren falam
por cada mulher que já se perguntou – e depois começou a agir de acordo com a sua análise dessa
contradição. Todas as narrativas são sobre mulheres em mudança, a crescer, a tomar controlo das suas
vidas e a viver de forma diferente.
Entre as indianas ocidentais da classe trabalhadora, o 'quintal' é normalmente a unidade social; o centro
da ação, o lugar onde a opinião é formada, as disputas resolvidas, as discussões negociadas, o apoio dado
ou retirado, as vinganças levadas a cabo. O quintal é normalmente o espaço das mulheres, dominado pelas
mulheres e os seus filhos. Durante a minha infãncia, o quintal era adjacent a três cozinhas separadas na
casa. Era o lugar seguro para jogar críquete. O quintal domina outra narrativa de uma infância caribenha,
publicada em meados dos anos 80; Whole of a Morning Sky de Grace Nichols. Este é um romance
centrado na mulher em vez de um romance feminista, mas, tal como muitos textos de mulheres negras, a
situaçãopolítica das mulheres forma o núcleo de uma análise social mais geral. O tema do romance de
Nichols é a memória; e a relação entre a memória e a imaginação. A sua narrativa realista elegante é
quebrada pelas passagens líricas onde a consciência sentimental de um adulto, reinvoca a consciência
ingénua de um mundo de criança. Estas passagens, sensuais, fantásticas nos seus detalhes, onde os
acontecimentos são inexplicáveis, repentinos, fora de proporção, são colocadas ao lado da narrativa na
terceira pessoa que analisa e explica. O seu material é político em termos convencionais, lidando com a
política racial do Guiana por altura da independência – outro legado complexe e perigoso do
imperialismo. Os conflitos raciais entre os negros e os indianos orientais- tal como os asiáticos são
habitualmente descritos nas caraíbas e nas américas – são contextualizados dentro de uma perspetiva
histórica e dentro da experiência diária de uma família. Os Walcotts são educados, de classe média, e
críticos de um discurso político incendiário. Recusam-se a abdicar de uma política ativa liberal que eles
partilham com os seus vizinhos da classe trabalhadora no quintal por detrás da sua casa. Eles são negros,
mas celebram o Deepavali (sic) com os seus vizinhos indianos orientais, e na noite em que a casa dos
Ramsammys é ameaçada pelo fogo, todo o quintal se vira em sua defesa, ainda que por interesse próprio.
216
Página

406
Ver também Elma Reyes, 'Women in Calypso', in Ellis, Women of the Caribbean, pp. 119-
21.
'Pois se os Ramsammys ardessem, toda a gente sabia que o quintal inteiro de casas de Madeira próximas
umas das outras, desapareceriam, especialmente com todo o rum e aguardante que por lá havia.' 407
A comunidade organiza-se à volta do quintal. As mulheres, no texto de Nichols, são definidas pelo seu
lugar na comunidade. Todavia, a suaexperiência é central para o texto. Ela celebra a inevitável compaixão
entre as mulheres, 'Clara sentia a falta de Rose ... a barriga ri-se, a plenitude da proximidade sempre que
ela e Rose estavam juntas. Não ter a visita de Rose quase todos os dias, ou poder ir vê-la do outro da rua
era como ter uma parte de si arrancada' (p. 85). Nenhuma das mulheres que Nichols representa são
vítimas. De uma forma ou de outra, elas são luta. 'A Srª Ramsammy, que esperava por uma nora
submissa, ficou amargamente desapontada. Sempre que o seu marido tentava bater-lhe, Zabeeda dava
luta, o seu corpo rijo agarrando e arranhando' (p. 124). Mas não há lugar para Zabeeda for a daquela casa
onde o seu marido tem o direito de lhe bater – sem sucesso. Nichols descreve um mundo onde os homens
batem nas suas mulheres, ficam com o seu dinheiro, humilham as suas mães e perseguem mulheres na rua
ameaçando violação e assassínio. Pois no mundo real é isso que os homens fazem. Mas ela nunca explica
ou analisa, ela simplesmente descreve. O feminismoo torna o mundo real, em todo o seu quotidiano,
imperdoável e intolerável; e isto perturbaria a superfície da narrativa lírica.
O que é realmente original no Whole of A Morning Sky de Nichols não é o método, nem o estilo, nem
as perspetivas implícitas da escritora, mas o próprio material. E este é um fator que surge uma outra vez
na escrita das mulheres negras asiáticas e afro-caribenhas. Esta história – muito simplesmente – nunca foi
contada. A mudança da descrição para a análise é a mudança da de uma preocupação com as mulheres
para a exigência feminista para uma mudança fundamental no mundo. Honor Ford Smith diz que o
trabalho de teatro das Sistren 'não é uma reflexão da vida mas uma desmistificação da mesma'. 408
Enquanto estivermos envolvidas neste processo de desmistificação, seremos inevitavelmente atacadas e
insultadas por todos aqueles que tiverem um interesse em manter os mistérios. Eu achei engraçado
constatar que os insultos abusivos dirigidos às Sistren – que elas são 'comunistas' e 'lésbicas' – são
exatamente os mesmos que são atirados às ativistas feministas na grã-bretanha. 409
Na rua nós fomos rotuladas de 'comunista' (uma palavra que gera sempre muita histeria apesar de poucos
saberem o que significa exatamente), ou de 'lésbica' (sendo o pressuposto que ao ser assim rotulada é ser
tão condenada que ninguém quererá ouvir as tuas ideias 'pervertidas', quanto mais levá-las a sério,
enquanto crítica social). Os estratos médios acusam-nos de promover 'raw chaw' e vulgaridade.
Finalmente e o pior de tudo, nós fracassamos no nosso trabalho de reconhecer a contribuição da classe
média para a nossa sociedade. . . Por essas razões, o nosso trabalho tem sido censorado pelos órgãos de
comunicação locais e os nossos espetáculos por vezes atacados violentemente.410
Mas elas continuaram com o seu trabalho, desmantelando outras opiniões recebidas. 'Existe um tipo de
preconceito que diz que porque elas trabalham arduamente, as mulheres da classe pobre trabalhadora não
têm imaginação. Nós queríamos mostrar que isto não só era uma mentira, mas também que, de facto, as
mulheres da classe pobre trabalhadora têm muitas vezes melhores imaginações e mais poesia do que os
atores burgueses.'411 Amén.
A diáspora que desarraiga tantas mulheres dos seus países e culturas de origem levou não só a que
classes como também culturas entrassem em colisão. O que é que significa ser indiano na Grã-Bretanha?
Como é que uma cultura se traduz para outro país, outra língua? Como é que a mudança na autoridade,
quando customes e tradições se recusam a enraizar numa terra estranha – ou adquirir formas diferentes –
afeta as mulheres da primera, segunda e terceira gerações? 'O que é que este país faz aos nossos
jovens?'412 Quem somos nós agora? E em que é que nos queremos tornar? Não existem livros por detrás
da experiência narrada na odisseia extraordinariamente social de Ravinder Randhawa, A Wicked Old
Woman, nenhum texto contra o qual escrever. E assim, no seu próprio texto, toda a gente escreve a sua
versão, como guião, peça de teatro, documentário social, análise sociológica. Anup está a escrever The

407
Grace Nichols, Whole of a Morning Sky (Londres, Virago, 1986), p. 140.
408
Ford Smith, 'Sistren Women's Theatre', p. 128.
409
Ver o cartoon de Steve Bell 'If. . . ' no The Guardian. Bell tinha uma piada durante anos
sobre as mulheres Greenham como 'Trotskistas lésbicas vagamente odiadas' – mas o Sr Bell
está, obviamente, do nosso lado.
217

410
Sistren, Lionheart Gal, p. xxvi.
411
Ford Smith, 'Sistren Women's Theatre', p. 124.
Página

412
Ravinder Randhawa, A Wicked Old Woman (Londres, Women's Press, 1987) p. 102.
Invisible Indian, 'os seus planos para um livro que registe a contribuição indiana para a economia e a
sociedade de Inglaterra' (p. 99). Satwant Singh está a tomar as suas 'notas sobre a Vida e as historias
"Britânicas" dos homens que vêm para esteclube. "Alguns destes homens viveram em três continentes,
Índia, África e agora a Europa" ' (p. 155). Sonia escreve o panfleto; Shazia publica toda a história no seu
boletim. As primeiras ideias de Maya são roubadas pela sua amante, que produz então uma farsa asiática,
Laying the Blame. Mas isso é o que de facto o text de A Wicked Old Woman faz – coloca a culpa nos
lugares certos, e depois deixa-a repousar. Eventualmente, Maya escreve o seu próprio peça, onde a
comunidade do romance se junta pra contar a sua história para o pequeno ecrã branco e para o leitor do
texto de Randhawa.
A Wicked Old Woman não é um texto social realista mas uma manta de retalhos de diálogos e vozes;
cenas de uma novela asiática com Kulwant como elo, que liga mulher a mulher e geração a geração.
Todos os estereotipos da vida asiática é invocado, examinado, alvo de zombaria ou afirmado criticamente.
Toda a variedade de respostas a Inglaterra são levantadas pelo padrão do texto composto de retalhos: os
casamentos que se desintegram, as raparigas que fogem de casa, a mistura racial, as amizades inter-
raciais, as ligações peculiares. Todos os cenários são visíveis no texto teatral, em todas as cidades
britânicas: as garagens, as lojas de legumes, as igrejas urbanas degradadas, as reuniões do Partido
Trabalhista. Randhawa argument em defesa da importância do que à primeira vista parecem ser ligações
improváveis: a amizade entre Shazia e a sua amiga negra Angie, uma perita em chamuças, a ligação entre
Ammi e as mulheres Greenham que intervêm nos seus sonhos, entre Anup e os velhos Sikh sentados no
muro ao lado da sua garagem, entre Kulwant e a sua amiga branca Caroline, entre Rani, a fugitiva, e todas
as personagens na ficção. Pois é o regress a casa de Rani que junta todas as mulheres na ficção. Muitos
dos nomes ficcionais de Randhawa são de origem Sikh; mas a religião, qualquer religião, enquanto
influência modeladora das vidas asiáticas, não está de todo presente no texto. A religião é habitualmente
uma fonte de divisão e tem sido terrível na história indiana. Os pesadelos no livro, muitas vezes os
pesadelos de Ammi, são sobre o isolamento, a separação, a divisão, a solidão. Um dos piores é a memória
da Repartição. 'Repartição: um povo despedaçado, famílias devastadas, casas destruidas, inimizade onde
dantes havia amizade, o ódio veio para ficar' (p. 164). Repartição, na Inglaterra cinzenta e deprimente, é
um mal que pode ser destruído, desfeito. O ódio pode ser expulso; as casas podem ser reconstruídas. A
aceitação de Kurshid e do seu filho, que são forasteiros, não-pessoas que desgraçaram a honra - izaat – da
família e da comunidade, é crucial para a recriação do passado e para o ímpeto por detrás da escrita de
Randhawa. Randhawa, mesmo ao pisar deliberadamente nas sensibilidades e preconceitos dos outros com
uma irreverência cómica, defende a unidade, a comunidade e a solidariedade. 'As pessoas são tão densas,
que eu por vezes desespero. Mesmo se só juntássemos os dedos mindinhos, poderíamos mudar o mundo'
(p. 197).413
O núcleo do romance, onde o tom descarado e abrasive da escritora muda completamente, é a cena
entitulada 'Tandoori Nights'. Esta secção descreve um ataque racista com gasolina a uma casa asiática.
Randhawa dá um contexto à família, problemas para resolver, um papel de parede extravagantemente
colorido que faz a sua felicidade e escreve a sua presença na sua casa. Mas ela não lhes dá nomes, pois
'poderia ter sido qualquer um de nós' (p. 134). Num dos extremos do espectro do racismo branco está a
Blonde Hair/Loura com a sua torrente de ignorância, insultos e abuso.
Kulwant estava estupefacta de tão fascinada. Já há muito tempo que não ouvia este tipo de conversa, na
verdade ela começara a se perguntar se o racism estava a definhar. Blonde Hair tinha restaurado a sua fé
na brutalidade da humanidade. 'Não sei porque estás a sorrir. 'Um dia alguém ainda faz de ti uma hari-kiri
curry...' (p. 125)414
E no espaço de cinco páginas, o elo sugerido é estabelecido e uma família asiática inteira é assassinada
por racistas brancos. É este acontecimento que sufoca a energia e esperança de Kuli. As palavras
transformam-se em chamas.
A força e poder de Kulwant voltam para ela quando ela volta a juntar a sua família. Aquela família é
imaginada na sua forma mais alargada; a comunidade asiática e apoiantes associados, erguendo-se em
defesa de uma das suas filhas. Randhawa recusa-se a sentimentalizar esse gesto quando Maya ralah com
Rani, uma fugitiva que está de volta:' "Não penses que é só por ti! . . . e não penses que és única . .. essa
tua pele faz com que todos nós estejamos no mesmo barco. Percebeste?" ' (p. 204). O que o livro imagina,
através de vozes muito diferentes, ouvidas por acaso e anotadas com precisão e energia, é ' a velha e gasta
218

413
Ver os comentários de Randhawa numa entrevista com Laxmi Jamidagni, Mukti, no. 7 (1987) , p. 20, sobre a questão da
integraçõ e amizade com a comunidade branca na Grã-bretanha. 'Nós temos de continuar a viver em Inglaterra e inevitavelmente,
haverá todo o tipo de relações entre a comunidade asiática e a comunidade branca ... desde que tenhamos confiança em nós próprios,
Página

e não tenhamos vergonha do que somos, e desde que as relações se baseiem no respeito mútuo...'

414
N.T – hara kiri – forma de suicídio japonês - Suicida caril
estrutura familiar, amigos e pressões sociais' (p. 63) ruindo e depois reagrupando-se. O tom de Randhawa
é hilariante e inesperado porque ela revela uma comunidade em transição. Nenhuma das mulheres que ela
descreve é doméstica, estática ou passiva. Mesmo quando são amantes de homens, elas são
independentes. O 'país gentil das relações exatas'415 é reconstruido em termos diferentes noutro país. As
conclusões de Randhawa são inflexíveis. Unam-se. Lutem.
As narrativas de migração negra e asiática, deslocação e dois tipos de colisão cultural: o desconforto de
uma comunidade desarraigada e a sua remodelação no ocidente; ou a narrative do regresso, as histórias
dos imigrantes que revisitam os seus países de origem ou exploram a sua herança pela primeira vez,
vendo a distância que os separa do passado dos seus pais ou avós. A ficção de Bharati Mukherjee aborda
estes dois territórios. A sua escrita é lúcida, agressiva e desprovida de sentimentalismos. A casta, a classe,
o racismo e o poder masculino –mesmo a contra-cultura dos anos 60- são todos anatomatizados com uma
acuidade sardónica e sem hesitações. A sátira de Mukherjee funciona nos dois sentidos: porque ela usa
cada cultura e cada conjunto de valores, ocidental e indiano, os preconceitos e expetativas de cada
comunidade, para dissecar a outra.
O seu primeiro romance, The Tiger's Daughter conta a história de Tara, que regressa a Calcutá após
sete anos na América, onde ela 'combinara o seu próprio casamento', tal como uma das suas amigas o
chama, com um americano branco.416 Tara torna-se na eterna estrangeira, uma forasteira em ambas as
culturas, capaz de entender a desintegração inevitável do mundo da sua infância, para ver os seus pais
como parte de uma classe em extinção. O livro desenvolve-se como uma viagem pituresca; cada cena
revela-se perante Tara, quando tanto a Índia e o Ocidente se tornam ininteligíveis e remotos. O meio que
Mukherjee toma como o seu ponto central de referência é o das classes altas de Bengal. Ela fica no
exterior da sua narrativa, uma voz sardónica e que questiona. A questão que este texto coloca uma e outra
vez é a mais simples e a mais difícil de responder de todas: 'Como é que o estrangeirismo do espírito
começa?' (p. 37). É a voz do narrador, omnipresente na escrita de Mukherjee, que avalia, julga e condena.
Essa voz, impiedosa contra a ignorância, That voice, merciless against ignorance, presunção e corrupção,
torna-se elegíaca, a voz da dor e da perda, quando descreve a alienação de Tara da sua religião no quarto
de orações da sua mãe. Abandonando a sua habitual ironia punitiva, Mukherjee descreve o ritual em
detalhe e com grande amor.
Quando a pasta de sandal tinha sido moída, Tara raspou-a da pegajosa tábua de pedra com os seus dedos e
verteu-a numa pequena taça de prata. Mas ela não se conseguia lembrar do passo seguinte do ritual. Não
se tratava de uma simples perda, Tara receava, este esquecimento de ações prescritas; era uma pequena
morte, um endurecimento do coração, um quebrar do eixo e do centro. Mas a sua mãe veio rapidamente
com o alívio das palavras.
'Se já acabaste de fazer isso, minha querida, porque não banhas Shiva.' (p. 51)
Esse esquecimento deveria ser um 'endurecimento do coração', uma recusa da compaixão e do passado,
significa que esquecer é também uma brecha entre as pessoas. O gesto de amor da mãe para com a sua
filha é feito subtilmente; não há desconforto nem embaraço, apenas delicadeza e graciosidade no seu
lembrete. Mas a perda não é simples, porque é um esquecimento eterno.
O que carateriza os ocidentais brancos na narrativa de Mukherjee não é só o seu racismo sem sentido,
mas também a sua falta de graciosidade. Mas não são apenas os broncos a causar o caos. Os dois
americanos que marcham desajeitadamente pelo livro são representativos da sua cultura. Um é negro:
Washington McDowell, um tipo remoto e frio, adepto do Black Power e das contas. Washington
McDowell chega ao aeroporto durante uma manifestação. 'O seu cabelo cresceu num halo de meio metro
à volta da sua face. Tara tentou sussurrar para o mundo "Afro," mas a família de Reena estava demasiado
estupefacta para ouvir' (p. 140). McDowell, acabado de chegar dos motins estudantis e manifestações do
Black Power na Califórnia, ignora as desculpas furiosas do seu anfitrião para o motim. Com a intrepidez
dos anos 60 revolucionários, a confiânça e coragem do Black Power, e ingenuidade maravilhosa, ele
desarma as barricadas.

. . . ele caminhou à volta do Fiat e apertou as mãos de toda a gente. 'Vocês têm que por isto a andar! Eu
quero ouvir mais barulho. Eu quero cânticos, meu. Vocês têm que pôr mais classe nos vossos motins ou
219

415
Gillian Hanscombe e Suniti Namjoshi, Flesh and Paper (Seaton, Devon, Jezebel, 1986), p. 57.

416
Bharati Mukherjee, The Tiger's Daughter (1971; Londres, Penguin, 1987). Para outra exploração do 'estrangeirismo do espírito'
Página

ver a narrativa de Leena Chingra de regresso à índia no seu romance Amritvela (Londres, Women's Press, 1988). Este é um romance
comovente, centrado na mulher, que se passa entre as classes altas de Delo. A memória da Repartição assombra o texto. Mas a sua
visão mais gentil, menos selvática e menos crítica do que a de Mukherjee.
então não chegam a lugar nenhum.' Ele ensinou-lhes a levanter os punhos fechados e a gritar 'O castanho
é bonito!' Ele leu-lhes piadas da sua sweatshirt e jeans e foi histericamente aplaudido.
'Right out!' os rapazes gritaram.
'OH, meu. OH,' disse McDowell, (pp. 142-3)

McDowell acaba por desaparecer na revolução urbana de Calcutá, mas não antes de causar caos entre os
indianos abastados de Carnac Street. Eles tentam recebê-lo como se ele fosse um deles – apesar dos
criados fugirem a gritar quando ele se aproximava. É a poítica da classe e da raça que estão em causa
neste encontro cómico e desastroso. A mãe de Reena está ansiosa por oferecer a McDowell um cocktail
frio; ele quer saber 'Será que as pessoas aqui não usam desodorizante?' (p. 148). Os dois estão
irremediével e impotentemente em desacordo. The Tiger's Daughter insiste na dor do cisma e da divisão
absoluta. É esta divisão que os Bengali amáveis, abastados, de coração-aberto e generosos acham difícil
de reconhecer. Existe um abismo intransponível entre as casas da favela, a 'bustee', que Tara visita e o
terraço do Catelli-Continental, onde os seus amigos se sentam a tomar café: tal como entre o oriente e o
ocidente. Tara tenta construir pontes; o seu país derrota-a. Pois a caraterística da índia de Mukherjee é a
obscuridão, e a confusão.417
O outro visitante Americano é a chocante Antonia Whitehead (um nome inteiramente simbólico), que
vem armada com a sua máquina fotográfica Instamatic. Ela chega trazendo o evangelho da libertação
sexual. Depois de uma visita a um mulher gurú local em Darjeeling, Antonia Whitehead declara que a
confusão é o inimigo. Mata Karanbala Devi, como muitos líderes religiosos e profetas, diz e faz muito
pouco, mas o que é importante são as emoções que ela inspira; a unidade e o amor entre os seus
seguidores. Esse amor une as pessoas, no meio da confusão. No entanto, Antonia Whitehead não tinha
ficado impressionad. Ela disse e bem alto que ela tinha assistido a um espetáculo deprimente. Do que a
índia precisava, ela exclamou, era menos entusiasmo religioso e mais mecanismos de controlo de
natalidade. Ela detestava confusão de assuntos, ela disse. Os indianos deviam ser mais perspicazes.
Deviam exigir reformas económicas e convulsões sociais .. .
'Tu estás a fazer pouco de nós,' Arati interrompeu 'O que é que tu sabes sobre os sentimentos bonitos
que eu tive naquele quarto . . .' (pp. 174—5)

O racismo autoritário e insultuoso de Antonia revela em que medida as duas culturas falam de coisas
diferentes, sem se entenderem. A sequência mais hilariante e extraordinária no livro é o Concurso de
Beleza do Sr Patel no Kinchen Ganga Hotel, onde Antonia exige que as mulheres abandonem os saris e a
modéstia pelo candor de fatos de banho reveladores – algo mais parecido com as tradições ocidentais. Os
juízes, incluindo Tara, são uma amostra representativa cómica das classes médias indianas. Antonia despe
o seu vestido, 'até ficar perante o mundo no seu body: uma coluna imensa de carne branca' (p. 188).
Mukherjee escreve parabolas em vez de prosa realista. A liberacionista sexual dos anos 60 torna-se
subitamente em carne feminina, crua e branca; como uma marca vazia e em branco numa situação onde
as tradições, códigos e os sentimentos registados são arrancados para a confusão e a complexidade. O
corpo Americano diz algo de impetuoso e simplista contra a névoa indiana de maneira, convenções e
mudança aceite de má vontade. Mukherjee põe a descoberto a trapalhada e confusão com uma precisão
implacável e sem hesitações; pois enquanto o Concurso de Beleza do Sr.Patel se desmorona à sua volta, a
banda continua a tocar. 'A banda, presa na beleza da sua própria música, permanecia completamente
calma perante tamanho ódio. Estava sentada como uma ilha tropical, sólida apesar de fustigada, e tocava
"I Feel Pretty" com uma imprudência comovente' (p. 187). O olhar do narrador está sempre for a da
confusão; mas nunca é mesquinho. A idiotice da banda transforma-se na sua coragem, a sua ignorância
um oásis de tranquilidade. A banda é ridícula e comovente, uma idiotice solene no meio do caos.
A violência que que está em lume brando no texto, e que é aceite como um facto da vida por todas as
dramatis personae, atinge o climax com a violação de Tara por um político corrupto e o motim à porta do
Catelli-Continental. Mukherjee pega em dois homens mais velhos como representantes de dois aspetos da
índia. Joyonto Roy Chowdhury tenta, cortês mas ineficazmente, proteger Tara. O seu entendimento da
Índia, interpretado através da cultura europeia, desintegra-se numa espécie de loucura. O homem novo é
Tuntunwala, empenhado em reformar a Índia. 'Nós podemos colocar uma televisão em todas as cabanas
se eu for eleito' (p. 195). Enquanto elemento exterior à cultura de Mukherje, eu sou incapaz de
compreender todo o peso e significância dos seus comentários sobre a capacidade de destruição da casta e
da classe no texto. Quando o Sr. Tuntunwala viola Tara, Mukherjee abandona o seu nome pessoal pelo
220

417
Neste aspeto ela faz lembrar os primeiros cronistas da Índia para os britânicos, E. M. Forster. A própria Mukherjee reconhece
Página

essa herança literária na sua introdução ao Darkness (Londres, Penguin, 1985), p. 3: 'O livro que eu sonho atualizar já não é A
Passage to India – é o Call It Sleep.' O romance de Forster foi um dos livros por detrás do livro de Mukherjee.
nome da sua tribo. 'O Marwari sentou-se no braço do sofa onde Tara estava sentada, parecendo muito
infeliz. Então, lentamente, a deceção deu lugar a uma fúria pardacenta' (p. 98). Eu consigo ouvir a
mudança no significado, mas não sou capaz de medir a intenção da escritora. 'Numa terra onde um sorriso
amigável, um toque accidental de dedos, pode incendiar rumores – até mesmo processos de tribunal -,
como se pode falar da violência do Sr. Tuntunwala?' (p. 199). Tara é silenciada. E Mukherjee não faz
mais comentários; o seu método como escritora é o de pôr a descoberto, não o de argumentar e explicar.
O seu texto não consegue sequer responder a todas as suas perguntas. A formalidade da abordagem, o uso
impessoal de 'alguém' naquela última frase, conduz a questão para além da terrível situação de Tara. A
violência insidiosa dos homens contra as mulheres jaz escondida atrás das boas maneiras e propriedades
elaboradas; não pode ser falada, deixando assim a mulher com a sua 'amargura impiedosa' (p. 199).
Joyonto Roy Chowdhury, agora bastante demente, mas dizendo verdades fragmentadas, tenta salvar
Tara dos desordeiros. O seu discurso, da entrada do Catelli-Continental, é feito dos textos já fragmentados
de Gerontion e The Waste Land de T. S. Eliot. Por fim, 'The Thunder Speaks'. O oriente e o ocidente
juntam-se no apocalipse. Tuntunwala explode. 'Eu acredito verdadeiramente que ele foi enviado pelo
outro lado' (p. 209). E num certo sentido, foi mesmo. Pois Joyonto Roy Chowdhury tem a visão
incoerente da santidade, a união do ocidente e do oriente como ruína e colapso, que ele tem tentado passar
para a mulher que se posiciona entre duas culturas, passando da velha índia para o mundo moderno.
O Segundo romance de Mukherjee, Wife, responde a algumas das perguntas insanas de joyonto
retiradas do Gerontion de Eliot - 'Depois desse conhecimento, como perdoar?' É igualmente um estudo
extraordnário, tanto da comunidade Bengali na américa como do casamento. Dimple Dasgupta acredita –
tal como muitas mulheres em muitas culturas radicalemnte diferentes têm feito, fazem e farão – que a
existência pré-marital é uma espécie de ensaio para a vida real. Dimple reune toda a sua informação e
recursos imaginativos para se transformer na esposa moderna dos filmes indianos, das revistas femininas
e o ideal de Sita na lenda de Flindu, 'que tinha caminhado pelo fogo a pedido do seu marido. Tal dor, tal
lealdade pareciam reservadas para as mulheres casadas.'418 Poucas mulheres determinadas a casar olam
com atenção para o casamento debaixo dos seus narizes, o dos seus pais. A mãe de Dimple, a Srª
Dasgupta . . . tinha sido trazida do seu leito de doença para a sua cerimónia ortodoxa, e tinha voltado
prontamente para ela após a provação ter terminado' (p. 6). Dimple, no entanto,'. . . estava certa que o
amor se revelaria lúcido como que por magia no dis do seu casamento' (p. 9). Dimple Dasgupta é uma
Madame Bovary Bengali, com menos espaço para a maldade e muito mais para uma avaliação astute de
como a sua vida abreviada e ela própria reducida a um estado de insanidade alienada.
Como um leitmotiv, através de todo o livro, encontramos as mulheres queimadas. Quando Dimple está
no hospital, ela ouve os gritos.' "Uma torcha humana!" a enfermeira disse. "Dá para acreditar, ela ateou
fogo a si própria!" ' (p. 6). Elas seguem-na através da ficção. Abandonada em Nova Iorque, ela ouve falar
de outra morte. 'Deitar fogo a um sari tinha sido um dos sete tipos de suicídio que Dimple tinha planeado
recentemente' (p. 115). O facto de outras pessoas – maridos, famílias – poderem ser implicadas nas
mortes dessas mulheres nunca é explicitamente afirmado. O marido de Dimple, Amit Basu, recusa-se a
olhar para a realidade do desespero das mulheres ou da destruição das mulheres. Ele tem o seguinte a
dizer: ' "Regra número um," Amit gritou da sala de estar .. . "Nunca usar outra coisa que não saris de
algodão quando estiverem a cozinhar. As fibras sintéticas são perigosas " ' (p. 116).
A carta que se segue foi publicada no Manushi em 1988.

No dia 26 de Maio, Vanita Khera, uma advogada Gujarati, de 31 anos, morreu com 95 por cento de
queimaduras na casa do seu marido. A polícia declarou a sua morte como acidental. Só depois de uma
campanha ser organizada pela comunidade Gujarati local, grupos de mulheres e advogados, é que a
polícia acusou de assassínio o seu marido Kishore Khera, cunhado, advogado Bharat Khera, sogra,
Shantabai e sogro, Harijiwan Khera. Aos acusados foi concedida fiança. . .
De acordo com os Kheras, Vanita queimou-se enquanto aquecia água para o seu banho num fogão a
querosene na casa de banho. Isto parece absurdo, dado que estávamos em pleno verão, e em segundo
lugar, os Kheras têm um fogão a gás na sua cozinha. Os Kheras são uma família influente de negócios, o
que provavelmente explica a polícia ter adiado a investigação por dois dias, dando-lhes tempo mais do
que suficiente para alterar as provas.
221
Página

418
Bharati Mukherjee, Wife (1975; Londres, Penguin, 1987), p. 6.
Ainda se está para ver que caminho tomará este caso. Mas pode-se dizer que a morte de Vanita é um
resultado direto da noção que a nossa sociedade tem de que a existência da mulher só se justifica se ela
for uma esposa.419
O marido de Dimple não é descrito como um monstro. Aos olhos do mundo, ele é um homem
responsável, um bom partido. Ele nunca bate na mulher, nem abusa dela abertamente. Ele apenas lhe vai
esmagando a energia vital, destruindo toda a razão da sua existência. E ele não o faz porque ele, Amit
Basu, tem alguma animosidade pessoal contra as mulheres. Ele fá-lo porque ele é um marido e ela é a sua
mulher. Mukherjee leva a cabo uma análise do que acontece às mulheres quando elas não têm identidade
para além do papel que elas não tiveram escolha senão aceitar.
Não é que ao libertarem-se e 'encontrarem-se na imemorial tradição do individualismo americano lhes
traga algum tipo de solução. Uma das esposas Bengali, Ina Mullick, junta-se ao movimento para a
libertação das mulheres e descobre porque é infeliz. Mas continua a sê-lo. Numa sequência hilariante,
bizarra e dolorosa, ela discute os seus problemas com a sua amiga, a temível Leni Anspach, em frente de
uma Dimple incapaz de compreender. A comédia negra de Mukherjee advém do choque absoluto de
valores, maneiras e pressupostos. Leni and Ina gritam insultos uma à outra, depois, incidentalemnte, a
Dimple. 'Mas Leni Anspach . .. gritou que Dimple era uma covarde, que ela não tinha o direito de se
preocupar com o tapete e com o trabalho doméstico quando ela, Leni, ponha a sua alma a descoberto para
a Ina' (p. 148). Leni é da Escola do Revelar Tudo e Que se Dane da Terapia Americana. Quando a Dimple
volta com o chá e a sua 'serenidade fingida' Leni está a denunciar a máscara artificial das forças sociais
sobre ela, através das suas dentaduras. 'O momento em que deixei de as usar em público, tornei-me numa
nova mulher' (p. 151). Então ela declara a Liberdade Universal das Dentaduras, e '. . . retirou duas filas de
dentes, que ela deixou cair com estrondo entre o açucareiro e o bule de chá no tabuleiro. ' "Aqui têm," ela
disse, revelando as suas gengivas . .. Então, depois de duas hesitações iniciais, Leni e Ina caíram nos
braços uma da outra' (p. 151-2). A cena inteira mostra como o pessoal e o político podem discordar numa
grande torrente de auto-indulgência teatral. O desespero incoerente de Dimple passa despercebido aos
dois grupos veteranos de mulheres.
O auto-conceito de Dimple está enraizado no desempenho; e portanto na aprovação que os outros
possam dar da sua apresentação. Conversas sobre 'sexismo e centros de dia' (p. 146) não têm significado
para ela. Ela deseja apenas agradar e estar segura de que o seu papel de anfitriã e esposa foi bem
executado. No entanto, apesar da sua personalidade quase completamente submerse e do seu catálogo de
métodos de suicídio, Dimple exterioriza a sua violência. Enquanto ela ainda está em Calcutá, à espera dos
documentos de imigração, ela fica grávida – e portanto propriedade pública. O seu corpo é pertença da
família de Basu. 'Eles viam o filho por nascer como uma propriedade comum e mostravam-se muito
solícitos para com a sua saúde. Eles estabeleceram regras .. .' (p. 33). O seu marido estava convencido '
"Vai ser um rapaz .. . Vai ser médico e amealhar dinheiro " ' (p. 33). Dimple revolta-se. Ela abandona 'a
sua fortaleza de boa educação' (p. 34). A sua fúria é assassina. A primeira vítima é um rato, a segunda um
peixe dourado. Depois ela começa a chacinar as baratas. 'Se a barata era lenta, ela batia-lhe com a
vassoura até ouvi-la estalar e o líquido esbranquiçado se espalhar' (p. 41). Por fim, ela mata o feto
provocando o seu próprio aborto. O sentido de si de Dimple volta através da violência. As mulheres
normalmente absorvem a violência de que são vítimas e voltam-na para si próprias. E apenas há,
geralmente, uma solução: a morte da mulher. Uma espécie de podridão interior resultante de uma
violação fá-lo para Clarissa Harlowe, Uma febre desesperante para Catherine Earnshaw, arsénico para
Emma Bovary, as linhas ferroviárias para Anna Karenina, o rio para Virginia Woolf, o forno a gás para
Sylvia Plath. Mukherjee propõe uma solução até então impensável.
De facto, o único aspeto simples da situação de Dimple é a sua solução. Mukherjee coloca
especificamente a experiência da alienação de uma esposa, a natureza do abuso que é descrito geralmente
no início da Wife pela editora da revista. 'As esposas vítimas de abusos, uma categoria que abarca talvez
vinte crore das mulheres neste país, precisam de poder político' (p. 28). Dimple não tem poder. E por isso
... 'Ela surpreendeu-o e escolheu um ponto, o seu ponto favorito logo por baixo do couro cabeludo . .. e
desenhou uma linha imaginária de beijos porque ela não queria que ele pensasse que ela era do tipo tolo e
impulsivo que agia como uma louca' (p. 212). Esta leitora está muito longe de pensar que Dimple age
como uma louca. De facto, não é verdadeiro que se diga que ela perdeu o contacto com a realidade: pois
não havia nada de são nos padrões de vida que Dimple tinha absorvido e desejado. Ela tinha aceite a vida
que lhe tinham prescrito, 'ela tinha dedicado a sua vida apenas a agradar os outros, e não a si mesma' (p.
222

419
Página

Carta que narra detalhes do caso de Vanita Khera, assinado por Susan Abraham e Nishtha Desai, Maharashtra, no Manushi: A
Journal about Women and Society, no. 47(1988), p. 23. Para ser assinante do jornal Manushi escrever para Manushi Trust, Manushi
C-l/2-2 Lajpat Nagar, New Delhi 110024, India.
211). Quando o texto de Mukherjee se move/encaminha para dentro da mente de Dimple é para
compreender, por fim, o verdadeiro significado da sua vida enquanto Srª Basu.

. . . a gaiola do pássaro estava lá e agora tinha uma pequena coisa suspensa da sua asa, uma coisa
cabeluda com uma cara de bebé; ela não podia ter a certeza de quem era a cara pois todas as caras de bebé
parecem iguais. Ela tinha de sair dali; ela tinha de se salvar. Não que fosse desconfortável: havia uma taça
com água e sementes para pássaro e o baloiço era mesmo divertido, se gostasses de te baloiçar, e la
conseguia recordar-se de ter sido feliz apesar da sombra às riscas das barras porque a felicidade tinha sido
na maioria um lugar sombrio e sono, (p. 210)

O casamento com Amit Basu é a gaiola dourada e confortável. E aqui novamente os 'morcegos com caras
de bebés' de T. S. Eliot. Mas desta vez, neste texto, eles não estão indefesos; eles têm dentes e facas nas
suas mãos. A dedicação de Mukherjee – para uma série de homens, um dos quais se pergunta sobre as
esposas Bengali – começa a parecer maravilhosamente sinistro.
Na introdução da sua primeira coleção de ficção curta/contos, Darkness, Mukherjee descreve a sua
própria viagem como uma das viajantes da diáspora indiana, tanto como escritora como pessoa privada.
Ela regista a mudança da condição de expatriada para o estatuto de imigrante. Ser idiano transforma-se
numa metáfora, numa perceção. Ela escreve, 'Em vez de ver o facto de ser Indiana como uma identidade
frágil a ser preservada da obliteração (ou pior, um 'desfiguramento visível para ser escondido), eu vejo-o
agora como um conjunto de identidades fluidas a ser celebradas.' 420 Mukherjee faz agora dos EUA a sua
casa, onde o dinheiro, pelo que me foi dito, consegue dar um brilho confortável ao racismo endémico. O
Canadá exibe mais portas fechadas e racism branco explícito. É um país predominantemente branco que
nunca teve um movimento forte, visível e indígeno dos direitos civis dos negros. 421 Em todos os contos de
Mukherjee, tanto aterradores como hilariantes, o imigrante vem de um mundo real onde a guerra, a
pobreza e a dor fazem com que a vida humana não tenha valor, onde as grandes questões metafísicas são
reduzidas a táticas de sobrevivência. Contra este pesadelo de dor, a américa do norte, o Canadá e os EUA,
surge como uma espécie de Disneilândia, dominados pela insanidade e pela trivialidade: uma terra onde
demasiada riqueza está concentrada nas mãos dos inocentes, dos arrogantes e dos cegos. Por vezes o
método de Mukherjee é amargo e cómico, a sua ironia uma faca na garganta do ocidente. 'A Srª Beamish
era corajosa, ela perguntou ao dentista sobre a sua família e terra natal. O dentista descreveu o oeste de
Beirute ao pormenor. A falta de pão e legumes, a queda dos morteiros, os bebés a sangrar.' 422 Por vezes o
seu comentário sobre a experiência dos imigrantes indianos na América tem um pathos obsessivo e
bizarro. 'O Dr Menzies não se interessa por basquetebol. . . As trivialidades, a loucura escapam-se-lhe.
Ele aborda o Novo Mundo com o seu estetoscópio em riste; ele ouve os seus gorgolejos assustadores.'423
Para as mulheres indianas, os EUA podem parecer ser a porta de saída da patriarquia indiana. Tanto a
mãe como a filha na sua história 'A Father' [Um Pai] começar a fugir ao seu domínio com a ajuda dos
Mastercards e dos serviços de doação de esperma AID. Não obstante, é através do fantasma da cultura
indiana, o culto de Kali-Mata, a deusa que eles negligenciam, que eles são sinistramente assaltados. A
filha, Balbi, decide ter um filho sozinha através do AID. ' "Quem é que precisa de um homem?" ela
sibilou, "O pai do meu bebé é uma garrafa e uma seringa. Os homens parasitam as nossa vidas. Eu só
quero um bebé ..." '424 A violência do pai surge quando ele vê o seu poder e paternidade desmembrados e
repudiados.
Muitas das histórias de Mukherjee descrevem estrangeiros ilegais, que sobrevivem como não-pessoas,
inaceitados, não registados, perseguidos, escondidos na orla da economia negra. O estatuto de estrangeiro
- legal ou illegal – torna-se numa metáfora para uma clandestinidade do outro na cultura ocidental.

420
Bharati Mukherjee, Darkness (Londres, Penguin, 1975), introdução, p. 3.
421
Esta generalização é apoiada por Mukherjee na sua introdução ao Darkness, onde ela escreve, 'NOs anos que eu passei no
canadá – de 1966 a 1980 – descobri que o país é hostil para os seus cidadãos que tinham nascido em continents quentes e húmidos
como a ásia; que o país gaba-se com orgulho da sua oposição atodo o conceito de assimilação cultural' (p. 2). Elementos indianos da
minha família que tiveram oportunidade de visitor o canadá e os estados unidos concordam com os pontos de Mukherjee.
Aparentemente, o insult racist é muito mais abertamente expresso no canadá, e tendência subjacente do desdém do racista branco
pelo povo negro é sentido mais fortemente.
223

422
Mukherjee, 'The Lady from Lucknow', Darkness, p. 27.

423
Mukherjee, 'Angela', Darkness, p. 17.
Página

424
Mukherjee, 'A Father', Darkness, p. 72.
Algumas das pessoas que ela descreve foram sempre refugiados, deslocados, estrangeiros permantes.
Uma das memórias recorrentes dentro da diáspora sciatica é obviamente a memória que também persegue
A Wicked Old Woman de Ravinder Randhawa: a memória da Repartição. No texto de Randhawa e nos
textos de Mukherjee, a divisão, a perda de casas, terras, vidas, a história da deslocação, é contada pela
geração mais velha aos mais novos. A história continua dentro da memória cultural. Na história de
Mukherjee 'The Imaginary Assassin', é o avô que conta à criança imigrante o conto de desespero,
destruição e assassínio; o conto que é, ainda que horrível, parte da sua herança.
Enquanto analista e observadora da cultura ocidental, Mukherjee é insuperável. Os insights mais claros
e mais aguçados de qualquercultura são muitas vezes produzidos por elementos experiores às mesmas
cujo estatuto dentro dessa cultura é ambíguo e subordinado. Os conquistadores muito raramente são
capazes de oferecer perceções justas dos locais que eles invadem. Eles estão demasiado ocupados a impor
os seus próprios valores, demasiado ansiosos por dominar e subjugar. O imigrante tem um estatuto
marginal, e uma reinvindicação inconstante sobre a sociedade que ela escolhe para habitar e compreender.
Ela vigia a cultura hospedeira cuidadosamente – porque é perigoso não o fazer. Mukherjee usa a posição
de observadora em seu benefício; está na raiz da sua prosa. 425 Todas as histórias de Mukherjee até à data
são sobre imigrantes recentes em vez das comunidades de imigrantes já estabelecidos – segundas e
terceiras gerações a crescer num país que continua a resistir e a negar a sua presença, os seus direitos, os
seus dons. Este é o território ficccional de Joan Riley. Riley, originalmente jamaicana, foi educada na
Grã-Bretanha e trabalha aqui agora. O seu tema tem sido a comunidade negra do pós-guerra na Grã-
Bretanha, a experiência de mudança dos imigrantes e dos seus filhospor mais de quatro décadas.
A questão recorrente de Riley ao longo dos seus três primeiros romances, The Unbelonging, Waiting in
the Twilight e Romance, é simplesmente esta: como podem as mulheres negras viver as suas vidas
sabendo a verdade quando essa verdade é impossível de suportar? A questão é uma questão de
sobrevivência, e um tema que une as mulheres caribenhas escritoras.426 O interesse de Riley é para com o
poder de destruiçãodas ilusões e do auto-ilusões. Todas as escritoras negras afro-caribenhas interessam-se
pela história, uma história que não é escrita, não é falada, é mascarada e negada.427 A história de Riley é a
história das mulheres que vieram para fazer as suas vidas na grã-bretanha. O The Unbelonging fala da
experiência das mulheres negras se tornarem estrangeiras em qualquer lugar, dentro da família, dentro da
sociedade, dentro da grã-bretanha, ao revisitar a Jamaica. Waiting in the Twilight é sobre a destruição da
esperança. Adella abandonaas suas ilusões sobre a Inglaterra, sobre os brancos, sobre a polícia, sobre o
Serviço Nacional de Saúde. A única esperança que ela não irá e não pode abandonar é a do amor do seu
marido. Aqui Riley empenha-se na remoção sem hesitações e sem remorsos da promessa confortável de
segurança no outro. Adella é despida psicologicamente. Existe uma clara continuidade do tema e do estilo
entre as escritoras negras afro-caribenas que eu já li. A secção jamaicana da narrativa de Riley, que
descreve a sedução de Adella por um polícia de falas doces, é um paralelo perfeito com as narrativas das
Sistren de adoração e traição. Riley usa o patoá no diálogo falado enquadrado por uma narrative escrita
no inglês britãnico literário padrão, tal como Collins faz no Angel. Mas as Sistren e Collins escrevem de
uma posição explicitamente política, empenhadas na transformação e na mudança. O território de Riley é
também as vidas das mulheres; mas as suas propostas de mudança são raramente explicitadas no seu
texto. Há sempre a voz de uma mulher na ficção de Riley que aconselha à rebelião, mesmo se essa voz
não é central nas decisões da heroína. Perlene no The Unbelonging: ' "Tira a tua cabeça do teu tubo de
ensaio e olha para o mundo real por uma vez que seja, Hyacinth . . . É bom que percebas que são
africanos como tu e eu que representam o future da jamaica . .. porque não admite o que tu és e te sentes
orgulhosa disso mesmo?' (p. 111). Lisa no Waiting in the Twilight.' "Yu haffe start stan up to ihm, show
ihm sey yu is no doormat. Yu haffe mek ihm gi yu more money. What ihm gi yu couldn't feed fly, let
alone five pickney and pay bank loan too"(Tu tens de fazer-lhe frente, mostrar-lhe que não és um
capacho. Tens de fazer com que ele te dê mais dinheiro. O que ele te dá não dá para alimentar uma
mosca, quanto mais cinco filhos e o empréstimo do banco) ' (p. 60). Mara no Romance: ' "Não me tentes

425
Ver a sua coleção de contos, The Middleman and Other Stories (Londres, Viking Penguin,
1988), que anda à volta da experiência do imigrante. Eu espero o seu terceiro romance a ser
publicado pela Virago com imenso interesse.
426
Joan Riley, The Unbelonging (Londres, Women's Press, 1985), Waiting in the Twilight
224

(Londres, Women's Press, 1987), Romance (Londres, Women's Press, 1988). Ver o artigo de
Merle Collins, 'Women Writers from the Caribbean', Spare Rib, no. 194 (Verão 1988), pp. 18-
22.
Página

427
Sobre a luta para documentar e interpreter essa história, ver Linda King e Jenny McKenzie,
'Unspoken Stories', Spare Rib, no. 196 (Novembro 1988), pp. 20-4.
intimidar, John," ela disse friamente. "Já lá vai o tempo em que eu me preocupava com o que homens
como tu e o Winston pensam " ' (p. 61). Mas, tal como eu disse, a assertividade revigorante das mulheres
rebeldes não é central na ficção de Riley, tanto na atmosfera como no tema. A depressão infiltra-se na
textura da prosa de Riley. A escuridão e o frio de Inglaterra torna-se numa metáfora para a pobreza de
oportunidade, degradação da vida, uma derrota do espírito. Aqui estão os adjetivos que rodeiam o
regresso a casa de Adella depois de um dia de trabalho normal, retirado de quatro parágrafos consecutivos
no Waiting in the Twilight.

The wind blew icily grey January day bad leg dragging crippled hand
yellow glow of artificial lights dense greyness
cracked, dirt-streaked uneven pavement mouldy
constant rain of winter big muddy gaps gloom of early afternoon last cold stretch gloomy street icy
fingers biting cold
cold seeping into her shoes plastic had split fingers stiff and numb crippled hand (pp. 5-6)

O problema com a escrita naturalística deste tipo é que é quase insuportavelemente dolorosa de ler. O
clima de escuridão, humidade, chuva, frio e miséria cumulativas torna-se frustrante e enfurecedor porque
está a ser usada, não apenas como um boletim metereológico, mas como uma metáfora para as vidas dos
negros, diminuida, abreviada e angustiada. A fúria de Riley está certamente lá: nós temos de recusar viver
a vida de Adella e temos de recusar permitir que outras mulheres negras se afundem por baixo desta
terrível pobreza da alma. Mas em nenhum ponto da ficção Adella se revolta. Ela também não aponta
claramente o dedo aos inimigos reais: o sexismo e a brutalidade masculinas – e o estado racista e branco.
No entanto, se Adella não reconhece o inimigo principal, Joan Riley fá-lo.
Mesmo que ela não consiga ou não queira se revoltar, Adella está pelo menos preparada para
reconhecer os factos feios do racismo branco: que ela não consegue comprar uma casa em qualquer área
que ela escolha, que a polícia não a defenderá, que ela é economicamente descartável, que ela irá receber
cuidados de saúde medíocres. Mas a única coisa que ela continua a fazer é concordar com os julgamentos
que os homens fazem das mulheres. Aos homens pode-se desculpar a crueldade, a infidelidade, a
brutalidade. Adella culpa as outras mulheres. O seu marido, Stanton, fugiu com a prima dela, Gladys.
'Stanton não podia saber que a outra mulher não prestava. Ela não podia culpá-lo pela fraqueza da carne.
Ela sabia que os homens eram sempre assim, eles não conseguiam evitá-lo. As mulheres é que sabem' (p.
61). Certamente, a Gladys encontrou o ponto fraco num homem estúpido que ela consegue manipular, e
ela não teve um sentido de solidariedade para com a sua prima. Mas a Gladys terá o seu inevitável final
infeliz, o destino cliché da tentadora. 'Ela tinha ouvido os rumores de que ele andava com outras
mulheres, que ele estava a ficar cansado da Gladys' (p. 134). No entanto, ser explorada, maltratada e
abusada pelos homens sempre for a o destino de Adella. Ela nunca percebe o padrãona vida das outras
mulheres, ou na sua, e ela morre agarrada à sua última ilusão, que o seu marido a ama. Riley especifica o
seu padrão para as suas leitoras; o que torna a recusa de Adella em enfrentar os factos ainda mais dolorosa
e frustrante de ler. Waiting in the Twilight sublinha as amargas auto-ilusões e mentiras endémicas no
amor das mulheres pelos homens.
A droga de Adella para esquecer é fornecida pelos ocidentais na televisão. Aí estão as histórias que não
nos deixam pensar; onde nós sabemos distinguir os tipos bons dos maus pela cor do seu chapéu (o tipo
mau usa sempre um chapéu preto) e onde os tipos bons ganham sempre no final. No terceiro romance de
Rileyl, Romance, Verona é viciada na ficção romântica branca de má qualidade do tipo Castle of Desire.
Essa é a sua droga para esquecer. A ilusão perniciosa destes textos é a sua mistificação da violência
masculina como erótica, enquanto a realidade para Verona tinha sido a violação pelo namorado da irmã
quando ela tinha treze anos. Riley não usa frequentemente os dois textos, formula a ficção das mulheres e
o seu próprio texto, o drama da família negra, como contrapontos. Mas quando ela o faz, os resultados são
interessantes. 'Talvez V. tivesse razão: talvez fosse melhor agarrar-me a um herói num livro. Pelo menos
nunca terias de lhe lavar as cuecas sujas, ou cerrar os dentes quando ele rolasse para cima de ti grunhindo
como um porco porque era assim que ele terminava a sua noitada' (p. 106). Riley está empenhada no
naturalismo. Romance é uma novela negra, um drama dméstico de uma fatia de vida de nascimento,
morte, casamentos em ruínas e das dores do processo de crescer. Ambos os romances iniciais de Riley
concentraram-se num drama psíquico interior das ilusões e mentiras auto-enganadoras com as quais nos
reconfortamos. No Romance ela coloca as suas personagens negras num context urbano branco que cria
225

visivelmente a maioria da agitação e dificuldade. O John é constantemente deixado de parte quando se


trata de promoções porque ele é negro. O filho de Mara,Jay, é levado pela polícia e acusado de roubo
simplesmente porque ele levava consigo o dinehiro que tinha poupado para comprar um blusão de
Página

cabedal. Verona é tramada e forçada a sair do seu emprego para que a empresa não seja forçada a lhe
pagar a indemnização por despedimento. Assim, a fúria criada pelo texto é virada para o exterior, contra o
inimigo principal: o mundo branco racista. Riley escreve para uma audiência negra; portanto a
comunidade negra é criticada com uma clareza intransigente. Numa reunião política horrível, que gera
muita conversa e inchaço do ego masculino, Verona explode:
'Pois, acham-se melhores do que eu, não é?' Verona zombou 'Mas isso é porque eu sou negra – vocês
estão sempre prontos a atacar os negros, especialmente aqueles que fazem realmente alguma coisa ou não
têm medo dos brancos. É por isso que estão sempre a brigar com toda a gente e a atacar os negros a vier a
sua vidinha. Se estão tão assustados que não fazem nada pelas crianças na rua, porque não o dizem?' (p.
128)
A análise de Verona da forma como a ação se perde na teoria é sonora e acertada; mas ela é lenta a
absorver as lições da sua própria experiência. O primeiro homem que abusou e a violou era um homem
negro; por isso ela so toma amantes brancos depois disso, homens que ela é capaz de imaginar como parte
dos padrões na sua ficção branca de má qualidade. E é claro que ela é eventualmente seduzida e traída,
espancada e abandonada grávida do filho de um homem branco.
Ele não era diferente daqueles brancos na National Front. Ele só a tinha querido porque estava a
experimentar algo de exótico ... Atravessou-lhe a mente que a única diferença entre ele e o Ronnie era que
o Steve era branco e que ele era mais velho. Não levou muito tempo para que ele mostrasse a sua
verdadeira face... 'Eu não quero nenhum bastardo negro a me chamar de pai,' ele tinha lhe dito com
franqueza cruel . . . (pp. 213-14)
A frase cliché - 'true colours' ganha repentinamente vida. Ronnie e Steve exploraram-na sexualmente
porque eles eram homens. A violência sexual de Steve torna-se racista porque ela é negra e ele é branco.
Eu perguntei a uma amiga negra sobre o antagonismo para com as relações inter-raciais dentro das
comunidades negras. Ela realçou que se uma mulher negra arranja problemas com um homem negro, a
comunidade pode lidar com isso; mas se, tal como na situação descrita no Romance, o homem é branco,
não há socorro possível.
Nos seus comentários críticos sobre o trabalho de Joan Riley, Merle Collins manifestou o seu
desagrado pelo retarto dos homens negros de Riley.
Porque são os homens retratados por Riley tão abusivos e insensíveis? Uma vez que eles refletem algum
aspeto da realidade da attitude do homem negro, sera esta a função da raça, ou da classe, ou de mabas,
dado que o capitalismo e o seu veículo, o colonialismo, fez do povo negro uma classe inferior? Se Riley
tinha essa intenção ou não, não podemos senão nos perguntar que papel desempenha a riqueza e o
conforto na manutenção da decência. 428
O único aspeto da attitude do homem negro para com a mulher negra que Collins não confronta é,
obviamente, o sexismo. A riqueza e o conforto fazem com que os homens se comportem decentemente
com as mulheres? Não necessariamente. Riley nunca deixa os homens escaparem. Aqui está Verona a
dizer à sua irmã uma série de duras verdades. ' "Tudo o que eu vejo é o John a fazer de ti um capacho, e tu
deixas-te ficar. Quero dizer. Eu não sou uma feminista ou coisa do género, mas o que eu não consigo
compreender é como tu aturas tanta da porcaria dele quando tu não aturas de mais ninguém " ' (p. 50).
Desiree dá as desculpas habituais - 'O John enfrenta muito racismo no trabalho' (p. 50) - e Verona retalia. '
"Pois, é mais fácil descarregar em cima de ti, não é? Deus, ainda se podia pensar que tu também não
enfrentas racismo na tua vida”; (p. 51). O ponto aqui é o mesmo que Verona realça na reunião política: é
mais fácil deitar abaixo o nosso próprio povo do que confrontar o verdadeiro inimigo. E aqui Riley
responde a Collins, mas a sua mensagem é para os homens negros. Unam esforços com as vossas
mulheres. Não as desfaçam.
A comunidade de mulheres negra no Romance abarca gerações, da Avó Ruby coma sua língu afiada e
honesta e a sua clareza pouco sentimental, a Mara, que luta por uma educação, diz ao seu marido onde
pode ir dar uma curva e ganha o seu próprio dinheiro. Elas são as agents de mudança das suas próprias
vidas. O livro descartado dentro do livro será o Castle of Desire. Verona agora tem outro livro para ler à
medida que ela aprende a se defender, 'um livro para crianças de um autor negro' (p. 229). Romance
mostra uma comunidade negra de mulheres afirmando-se a si próprias, apoiando as suas redes – um clube
negro que se junta para almoçar, um centro de direito negro – e a dar luta. Esta não é uma ficção de classe
média, onde as pessoas conduzem Volvos ou vão de férias para a Europa. As personagens de Riley
esperam pelo autocarro, fazem sinal, trabalham por turnos, contornam a paisagem urbana de um país
hostil. A força do naturalismo é precisamente esta: vidas que estão trancadas do lado de fora da cultura
branca são por fim visíveis, reconhecíveis, são por fim analisadas, celebradas e compreendidas.
226

428
Merle Collins, 'Two Writers from the Caribbean: Joan Riley and Jacob Ross', in Kwesi
Página

Osusu (ed.), Storms of the Heart: An Anthology of Black Arts and Culture (Londres, Camden,
1988), p. 159.
A história de um povo a viver no seio de uma cultura estrangeira é fulcral/central para a escrita das
mulheres asiáticas e afro-caribenhas da diáspora. O contar dessa história tem sempre duas faces: irá falar
de um povo em exílio, sobrevivendo, sofrendo, camuflando-se, construindo novas vidas, florescendo,
dando luta; e também irá sempre nos levar da cultura hospedeira, com uma clareza e ferocidade que são
únicas. Eu aprendi novas perceções da grã-bretanha e da américa do norte dos expatriados, imigrantes e
viajantes; novos ritmos na ficção em prosa, novos padrões de sentimento. E à medida que a primeira
geração dá lugar à segunda e terceira gerações, uma nova cultura é criada e uma nova literatura está a ser
feita. Para a escrita das mulheres afro-americanas agora, o projeto é diferente daquele das mulheres
negras a trabalhar na Europa.
Dois textos americanos que influenciaram o meu pensamento, deixarão este ponto bem claro: o
Meridian de Alice Walker e o Beloved de Toni Morrison. Os negros foram transportados para a América
como escravos ao mesmo tempo que os colonialistas europeus tomavam posse do continente. A América
moderna foi construida com o trabalho dos negros. É essa a história que é abordada na ficção política
destas escritoras negras: a história da escravatura, a luta pela liberdade e a grande mudança na consciência
conseguida através do movimento dos direitos civis. 'O legado da escravatura nos E.U. é o racismo. O
movimento dos Direitos Civis mudou alguma dessa história racista. Eu não me senti indefesa e eu não
desisti.'429 Mas a situação nos EUA é, obviamente, tão complicada como na grã-bretanha. Os índios
natives americanos tiveram de enfrentar muitos grupos broncos e não-brancos a habitar o seu país à
medida que ondas sucessivas de imigrantes iam chegando. O racism e o preconceito que estes grupos não-
brancos encontraram têm as suas origens na história da escravatura americana e do genocídio dos índios
nativos americanos. Meridian de Alice Walker é um livro da história negra; um romance cujos contornos
subtis e manta de retalhos difícil confronta toda a complexidade e o cruzamento da dor emocional do
racismo e do ódio às mulheres. 430 É um relato psicológico dos personagens dentro do movimento dos
direitos civis, escrito sobre o território inter-racial. Aqui, a mulher negra, Meridian, é a cruel, a norma, a
professora; a mulher que nunca cede e que nunca desiste. Ela é a guia para Trueman Held, o homem
negro que a ama e a rejeita, e para Lynne, a mulher branca judia que trabalha para os direitos civis negros.
O nome de Trueman Held - o True Man ( o homem verdadeiro), o Herói, que é o significado de Held em
alemão – é completamente irónico. Estas são pessoas com defeitos, mas as suas falhas são muitas vezes a
fonte do seu poder. A própria Walker descreve o romance como 'uma louca manta de retalhos', ou como
uma 'colagem'. É a própria Meridian que detém a chave do padrão. 'A luta de Meridian é neste sentido
simbólica. A sua luta é a luta que cada um de nós terá de assumir à nossa maneira. E Trueman terá
certamente de assumer a sua porque a sua vida tem sido tão cheia de ambivalência, hipocrisia e de
inconsciência das suas ações e das suas consequências.'431
Eu reti dois aspetos deste texto rico e difícil; dois aspetos que falam a todos os movimentos radicais,
tanto da luta do povo negro e do movimento para a libertação das mulheres. O primeiro é a questão da
integridade política. Quando o romance começa, Meridian conduz um pequeno grupo de crianças negras
através de uma praça quente do Sul profundopara ver o espetáculo de uma falsa dama morta no dia em
que eles escolheram ir e não no dia que fora marcado pelos racistas brancos da cidade que não se querem
misturar com os negros. A cidade reúne-se para impedi-los com um velho e ameaçador tanque,
comprador nos anos 60 'quando os habitantes da cidade que eram brancos se sentiram atacados pelos
"agitadores do exterior " – aqueles membros da comunidade negra com pensavam que os direitos iguais
para todos deviam ser estendidos aos negros' (p. 4). Apropriadamente, como um emblema do racismo
branco, eles pintam o tanque de branco. Meridian bate no nariz do tanque e leva as crianças a ver o
cadáver falso. Os anos 60 já passaram. A era das grandes marchas, a campanha de registo de eleitores, os
protestos, as manifestações pacíficas, a clandestinidade do negro revolucionário, is past and gone. No
período pós-revolucionário, muitos negros da classe média assentaram num território que eles tinham
ganho dos brancos. Meridian faz uma decisão política difícil. 'Eu vou voltar para o povo, viver entre eles,
tal como os trabalhadores dos Direitos Civis costumavam fazer' (p. 18). Meridian não é sentimental,
moralista ou presunçosa. Ela simplesmente escolhe viver de acordo com as suas crenças políticas, por

429
'C.G.', parte da declaração editorial, Heresies, no. 15, 'Racism is the Issue', 21 de Outubro 1982.
430
Alice Walker, Meridian (1976; Londres, Women's Press, 1982).
227

431
'Alice Walker: In Conversation with Claudia Tate', in Claudia Tate (ed.), Black Women Writers at Work (1983; Herts, Oldcasde,
1985), pp. 176, 180. Eu peço desculpa a Alice Walker por não oferecer aqui uma leitura detalhada e meticulosa de Meridian tal
como ela gostaria. Ela própria realça que 'As recensões que eu tenho visto, retiram pequenas partes do livro, sem nunca o tratar do
Página

seu todo' (Tate, 'Alice Walker: In Conversation', p. 177). Eu refiro o leitor deste texto a Barbara Christian, Black Women Novelists:
The Development of a Tradition, 1892-1976 (Westport, Conn, Greenwood, 1980).
mais difícil que isso prove ser e o preço a pagar, muito depois do comboio revolucionário passar. A sua
decisão é uma vitória perpétua no meio de uma defesa. E uma censura ao compromisso.
O Segundo aspeto de Meridian que é de um valor inestimável para mim é a recusa de Alice Walker em
fugir da complexidade. Os negros não foram e não são os únicos americanos a sofrer nas mãos dos
brancos. Alice Walker nunca esquece isto. Ela tem o seguinte a dizer sobre o seu livro. 'Outra das razões
por que eu acho que ninguém foi capaz de lidar com Meridian como um trabalho completo é a camada
que subjaz à consciência indiana,... eu tinha estado a trabalhar arduamente, mas não realmente
conscienciosamente, para me permitir interiorizar o que ser americano quer dizer, e para não excluir
qualquer parte disso.'432 Walker argumenta a favor das conexões entre os que nada têm, os índios nativos
americanos e os negros. Quando o pai de Meridian descobre que a sua horta está num cemitério índio, ele
insiste em devolver a terra aos seus proprietários legítimos. ' "Mas a terra já lhes pertencia," disse o seu
pai, "Eu só o estava a guardar. As filas das minhas couves e tomates corriam acima da dobra maior da
Serpente Sagrada.. . É claro que, uma vez que é um cemitério, nós nem deverias ser proprietários desse
terreno." '(p. 46). O pai de Meridian insiste que os americanos negros são parte do processo historico que
quase destruiu a cultura nativa Americana e que eles deviam ter consciência dessa história. Walker não
está a recomendar uma explosão de culpa da parte do povo negro, o que seria completamente
inapropriado. Os brancos foram e continuam a ser os responsáveis pelas atrocidades cometidas contra os
nativos amricanos. Mas Walker é contra a ignorância; a ignorância que se recusa a reconhecer a memória
histórica, e a responsabilidade aliada à lembrança.
Tal como as mulheres brancas no movimento para as mulheres têm vindo lentamente a aprender,
mesmo aquelas mais oprimidas entre nós, continuam a usufruir de previlégios que são consequência da
nossa cor.433 Walker insiste em examinar as complicadas interações entre o racismo e o sexismo. Um
homem negro pode pensar numa mulher, seja de que cor for, como um objeto, e desprezá-la em
conformidade. Num capítulo doloroso 'Of Wives and Bitches', Walker examina esse aspeto da
consciência do homem negro. Tommy Odds, terrivelmente debilitado pelo ódio do branco, começa a
corresponder a esse ódio, e deixa as suas visões bem claras a Trueman Held. 'Ele era capaz de ler a
mensagem que Tommy Odds não era capaz de o fazer, tal como o seu antigo amigo costumava dizer.
"Livra-te da tua vaca, meu." Era só isso. Livrar-se de uma vaca é simples, pois as vacas são dispensáveis.
Mas livrar-se de uma esposa?' (p. 133). Walker está interessada nesse processo da mente masculina,
quando as esposas se tornam vacas; e na forma como os homens negros vêem as mulheres brancas. 'Eles
nem a viam como um ser humano, mas como uma espécie de boneca grande e misteriosa. Uma coisa dos
filmes e da telivisão, dos cartazes de rua, de carros e comerciais' (p. 135). Trueman Held representa uma
attitude para com as mulheres brancas quando ele casa com Lynne, a sua esposa e a sua vaca. Mas quando
o vento politico muda e passa a ser moda colecionar uma 'esposa negra novinha em folha' (p. 134), ele vai
em busca de Meridian. A coragem para enfrentar a complexidade, para rejeitar a simplicidade segura dos
slogans, é a base para toda a excelente escrita política. Mas o verdadeiro feito, na política e na arte, advém
da recusa em se deixar confundir ou de se compromoter pela complexidade, para decidir quais as
prioridades políticas, para agir e escrever com base nessa decisão. Walker vê o separatism negro como
uma parte inevitável de um processo, o difícil processo de reconhecer e conhecer o inimigo.
Beloved de Toni Morrison é também um livro sobre a consciência negra e sobre conhecer o inimigo. 434
O tema de Morrison é a escravatura; não apenas a experiência da escravatura, mas o significado dessa
experiência e as suas consequências políticas para os americanos negros. Morrison pega no inenarrável e
articula-o com precisão, e no entanto ainda deixa o leitor com a sensação de que é precisamente isso -
inenarrável. A compreensão da escravatura desenvolvida pelos escritores e pensadores negros modernos
é, no texto de Morrison, devolvida às pessoas que sofreram, que deram luta à brutalidade branca e que
sobreviveram. Existe novamente aqui um elo direto e imediato com a escrita das mulheres afro-
caribenhas e afro-americanas. A análise da escravatura de Grace Nichols na sequência do seu poema i is a
long-memoried woman usa as mesmas personagens que aparecem no Beloved. A voz no 'I coming back' é
a voz da própria Beloved, a mulher negra chacinada, vingativa e regressada.

432
Tate, 'Alice Walker: In Conversation', p. 178.
228

433
Para desenvolvimentos/ estudos que instigam o contrário encorajadores do contrário, ver o trabalho do grupo americano
'Women Against Racism': 'Papusa Molina: Building Alliances Against Racism. An Interview by Becky Thompson',
Sojourner: The Women's Forum, vol. 14, no. 3 (Novembro 1988), pp. 16-18. Sojourner está disponívelno 380, Green Street,
Página

Cambridge, Mass, 02139, USA.


434
Toni Morrison, Beloved (Londres, Chatto & Windus, 1987).
Eu estou de volta Massa’ Eu estou de volta
Senhora do submundo eu estou de volta
cor e forma de tudo o que é maligno eu estou de volta435

Baby Suggs (sagrada), a anciã sábia do romance de Morrison surge no poema ' .. . Like
Clamouring Ghosts', até ao detalhe da sua anca torcida.
I see the old dry-head woman leaning on her hoe twist-up and shaky like a cripple insect
I see her ravaged skin, the stripes of mold where the whip fall hard
I see her missing toe, her jut-out hipbone from way back time when she had a fall (p.
42)

(Eu vejo a cabeça seca da anciã inclinada sobre a sua enxada e a tremer como um inseto
aleijado
Eu vejo a sua pele devastada, os vergões da forma onde o chicote bateu com força
Eu vejo o seu dedo do pé em falta, o osso da sua anca espetado desde a queda que ela
tinha dado

Aqui fica o texto de Morrison:

Descansando sobre a pega da enxada, ela concentrou-se . . . Quando ela se magoou na


anca na Carolina ela era um bom negócio .. . Por causa da anca, ela cambaleava como
um cão de três pernas quando andava, (p. 139).

A heroína de Morrison, Sethe, aparece no poema de Nichols 'Ala'. Ala é a mulher


rebelde,
Que com um alfinete espeta o molde mole da cabeça da seu próprio filho
Mandando a alma do pequeno recém-nascido de volta para Africa - livre
Eles chamam-nos para ver o destino de todas nós, as mulheres rebeldes (p. 23)436

Ala pode não ter tido outra escolha senão assassinar o seu filho; Morrison sugere que
Sethe pode escolher e finalmente escolhe não o fazer. A personagem prova não ter um
destino pré-estabelecido.
A relação entre o romance de Morrison e a sequência do poema de Nichols não é uma
simples questão de influência. As escritoras negras criam uma comunidade através da
sua escrita; estas são as personagens de uma memória coletiva negra. As suas histórias
são parte de uma rede interconexa; uma manta de retalhos da história.
Beloved é uma criança perdida; a mulher perdida na devastação psíquica e física da
escravatura. Ela volta para a mãe que a assassinou como uma assombração, uma
realidade textual e psicológica na ficção de Morrison. 'Mas em que sentido está Beloved

435
Grace Nichols, 'I coming back' in i is a long-memoried woman (Londres, Karnak House,
1983), p. 43. Ver também o filme em video e a peça radiofónica baseada nos poemas, realizado
por Frances-Anne Solomon, revisto por Claudette Williams, Spare Rib, no. 218 (Novembro
1990), pp. 20-2. N.T. – No original “I coming back 'Massa' I coming back / mistress of the
229

underworld I coming back / colour and shape of all that is evil I coming back”.

436
Uma narrativa importante de uma mulher negra sobre a escravatura foi reeditada: Mary
Página

Prince, The History of Mary Prince, ed. Moira Ferguson (1831; Londres, Pandora, 1987). Prince
conta a sua própria história de crueldade e fuga.
realmente lá?' perguntou alguém da minha família que tinha acabado de ler o romance,
fascinado. A minha visão é que Morrison estava a usar os diferentes níveis das
estruturas ficcionais – a feitiçaria da imaginação – para sugerir as formas através das
quais os nossos mortos assombram a nossa consciência; e para indicar as formas em que
o sofrimento da escravatura permanece nos negros afro-americanos. Existem referências
textuais suficientes para explicar Beloved como um signo natural, em vez de
fantasmagórico, na ficção. Mas Morrison está a usar um código natural e sobrenaturalna
sua construção de Beloved. Beloved é uma voz, um eco, uma memória. Pois o cerne da
narrativa é, de qualquer forma, não a presença ou ausência de Beloved, mas o ato de
violência de Sethe; a sua tentative de assassinato de todos os seus filhos e a chacina
sangrenta da seu bebé que já gatinhava. O romance de Morrison tem uma mensagem
intransigente, sem hesitações e combativa. Que é simplesmente esta: é sempre mais fácil
para um povo degradado, humilhado e despedaçado virar a sua fúria, não para o
exterior, contra o seu inimigo, mas para dentro, contra si mesmos. Conhece o teu
inimigo e ataca em tua defesa.
Sethe não atacou a professora branca, o sobrinho branco, o caçador de escravos
branco e o xerife branco, que, como os quatro cavaleiros do Apocalipse, vêm para levá-
la e os seus filhos. Em vez disso, ela ataca o que tem de melhor, os seus filhos negros.
Reconhecer Beloved, no amor e na dor, significa saber quem é o verdadeiro causador da
sua morte: o homem branco que está a chegar. Não há escapatória no texto de Morrison
para os broncos liberais, mesmo aqueles do tipo Sweet Home, proprietários de escravos
com uma cara humana. O seu tipo de escravatura, que faz de Sweet Home um sabtuário
e ao mesmo tempo uma jaula amolfadada, continua a ser escravatura. Mesmo quando
Baby Suggs responde ao catecismo de Garner: Ela alguma vez passou fome ou frio? Ela
alguma vez foi maltratada? Recusaram ao seu filho a possibilidade de comprar a sua
liberdade? Com uma sequência de obedientes não, senhor,ela pensa 'Mas vocês têm o
meu filho e eu estou despedaçada. Vocês vão alugá-lo para que ele pague por mim
mesmo depois de eu ter morrido' (p. 146). Os brancos são o inimigo; a ameaça na orla
deste livro. Mas, como Walker, Morrison insiste numa análise complicada da pirâmide
do poder. Ela vê onde as mulheres brancas estão por vezes no sistema. Ela celebra Amy
Denver, a branca pobre, também ela uma fugitiva da opressão, que ajuda Sethe a fugir.
Ela honra os índios Cherokee que ajudam o Paul D and e dizem-lhe para seguir as flores
na sua fuga para o norte.
Beloved é, acima de tudo, um livro centrado na mulher. Aqui está novamente o
triângulo de avó (Baby Suggs), mãe (Sethe), e filhas (Denver and Beloved) Audre
Lorde. Elas só se podem amar em liberdade. 'Toda a gente que Baby Suggs conhecia,
quanto mais, amava, que não tinha fugido ou sido enforcado, era alugado, emprestado,
comprado, trazido de volta, armazenado, hipotecado, ganho, roubado ou capturado' (p.
23). No entanto, o facto de Denver e Sethe recriarem Beloved, a criança desejada e irmã
perdida, entre eles, é claramente entendido por Morrison como um sinal pouco saudável
e aterrador da sua alienação e isolamento do resto da comunidade negra. Paul D
representa o equilíbrio necessário. Noutro lugar, Morrison chama a atenção das
mulheres contra 'a ausência dos homens de uma forma nutritiva .. . Essa é a
incapacidade contra a qual nos temos de acautelar no futuro – uma mulher que reproduz
uma mulher que reproduz uma mulher.' Morrison subscreve o equilíbrio entre as
mulheres e os homens em 'relações enriquecedoras'. 437 Para mim, este foi um dos
230
Página

437
Toni Morrison, 'Rootedness: the Ancestor as Foundation', in Mari Evans (ed.), Black Women
Writers: 1950-1980 (1984; Londres, Pluto, 1985), p. 344.
aspetos mais promissores da sua ficção Beloved; a maneira como Paul D cuida de Sethe,
e todo o sofrimento partilhado e o amor entre eles. Mas o que continua a ser um facto é
que os homens, no seu todo ou como um grupo, não cuidam da suas mulheres.São as
mulheres que cuidam e apoiam os homens. Na sua defesa dos homens atenciosos,
Morrison está a ser utópica em vez de histórica. Paul D é um modelo diferente para os
homens, uma interpretação diferente da masculinidade. E eu espero que todos os
homens o leiam dessa forma. Nem eu nem qualquer uma das mulheres que eu conheço,
negra e branca, lésbica e heterossexual, chegaram a conhecê-lo em carne e osso.
A religião é muitas vezes uma fonte de identidade ponderosa e uma energia na escrita
negra e nas vidas dos negros. Para Baby Suggs (sagrada), a sábia do texto de Morrison,
a religião é apenas a afirmação da bondade e beleza da carne negra. A escravatura é a
negação do valor humano e do amor humano. Amar Deus é amar-se a si próprio e amar
o próximo.
'Aqui,' ela disse, 'neste lugar, nós carne; carne que chora, ri; carne que dança de pés
descalços na relva. Ama-a. Ama-a profundamente. Além eles não amam a nossa pele.
Eles desprezam-na. Eles não amam os teus olhos; eles mais depressa os arrancariam.
Nem ama a pele das tuas costas. Além eles chicoteiam-na. E, Oh meu povo, eles não
amam as tuas mãos. Essas eles apenas as usam, amarram, prendem, cortam e deixam-
nas vazias. Ama as tuas mãos! Ama-as. Ergue-as e beija-as. Toca os outros com elas,
bate-as uma na outra, afaga a tua face com elas porque eles também não a amam. Tu
tens de a amar, tu (p. 88)
A exigência de Beloved é a de ser aceite, amada, vingada. Quando Sethe defende por
fim o seu amado fantasma contra os homens de branco que estão para chegar, Beloved
parte para sempre.
Existe uma conclusão triunfante para este livro. Sethe não só aprende a enfrentar o
inimigo real, mas a comunidade de mulheres negras, que a tinham traído e abandonado,
volta para reconhecê-la como uma deles. Ao faz-lo, eles reconhecem a sua própria
responsabilidade por todos os outros. Por fim, a necessidade é reconhecida, respondida.
Sethe está novamente em segurança do seu passado e do seu fantasma, livre para refazer
a sua vida. E aqui Paul D reitera a mensagem visionária de Baby Suggs para o povo
negro, quando ele diz a Sethe, 'tu és a melhor coisa que tu tens' (p. 273). Ama-te a ti
própria. Amem-se uns aos outros.
Beloved partiu. Mas ela não está em paz. Ela é a solidão que vagueia. Pois,
obviamente, o facto da escravatura continua e, também por isso, a pessoa 'que não é
recordada e que não é tida em conta. . . Apesar dela ter direito, ela não é reclamada. . .
Beloved/Amada' (pp. 275-6). A história pode ser enfrentada, reconhecida, lembrada,
compreendida na página e na carne. Mas não pode ser desfeita. As mulheres negras,
enquanto escritoras, ativistas, políticas, artistas, comentadoras, criadoreas de políticas e
agents de mudança, estão por fim a forçar a sua entrada na sociedade britânica – e
americana -. As negras britânicas trazem consigo 'as contradições e os legados do
passado da grã-bretanha',438 mas elas continuam a criar um futuro novo e diferente.
O feminismo enquanto consciência política, e o movimento para as mulheres como
um todo, está a ser transformado de dentro pela política das mulheres negras. Mas a
história não é um processo irresistível que nos arrasta, tal como alguns marxistas
antiquadas que queriam fazer crer. A história é feita com os nossos corpos, as nossas
mãos e os nossos miolos. Mesmo sendo as resistentes, existem aqueles, mulheres e
231

438
Página

Owusu, Storms of the Heart, introdução, p. 2. Ver especialmente as contribuidoras para esta antalogia. Eu reparei que as
mulheres e os homens não estão representados de todo de forma numericamente semelhante, mesmo neste texto radical.
Ainda existe trabalho a ser feito.
homens, que nos resistem. As mulheres negras foram censuradas, silenciadas,
ignoradas; as reprimidas na história, mesmo na história feminista branca. A escrita das
mulheres negras – e o discurso – muda os termos da discussão. Mas, tal como
argumentei anteriormente, o silêncio não é ausência; o silêncio não é consentimento. A
última palavra sobre o assunto do silêncio negro vem de Marsha Prescod.

Todos os patrões estavam naturalmente preocupados,


Porque é que estes escurinhos são tão malvados? Eles gritam
Nós tratámo-los tão bem durante quatrocentos anos,
E eles continuam a morrer egoistamente.
Os milhões de mortos negros não respondem. Bem, eles não podem, através
das suas grilhetas e correntes, mas os seus filhos e netos afadigam-se, com as
suas habilidades e armas… e com os seus miolos. .439 e 440

232

439
Marsha Prescod, 'Death by Self-Neglect', do Land of Rope and Tory, citado no Ngcobo, Let It Be Told, p. 117.
Página

440
N. T. – No original “All de big shots were nat'rally upset, /'Why dese darkies so wicked?' dey cry/ 'We've tried so much
good kindness for four hundred years, / An dey still go an selfishly die.' /De millions of black dead don't answer, Well, dey
can't, tru der shackles an chains, But dey chil'ren an gran' children busy, Wid dey skills an dey guns ... an dey brains.”
Posfácio
Uma Política Antiquada

Leva esta bagunça embora, querida, e traz-nos mais vinho.


Anna Livia, Relatively Norma

Estou bem ciente que este livro está desajustado dos tempos em que vivemos. Para muitas
pessoas, Irmãs e Estranhas [Sisters and Strangers] vai ser lido como um livro antiquado. Eu
escrevi sobre mulheres e homens, não sobre feminilidade e masculinidade, sobre política sexual,
e não teoria do género, sobre o previlégio masculino, não sobre a diferença sexual. E questionei
a verdadeira prática sexual, não celebrei um desejo abstrato. Quando escrevi sobre o poder, não
descrevi um nevoeiro a flutuar no ar, que poderia descer sobre qualquer um. A ficção
normalmente revela em que mãos ele assenta; poder sexual, legal, educacional, retórico. Tentei
escrever como se vivêssemos em cozinhas, quartos de dormir, fábricas e campos abertos, não
em seminários. Eu não assumo a visão que quanto mais nós sofremos, mais puras são as nossas
ideias, mas eu realmente acredito que a libertação das mulheres tem a ver com tentarmos não só
pensar de forma diferente, mas também de viver de forma diferente. Ter uma licenciatura em
Estudos das Mulheres não significa necessariamente ser uma feminista. O objetivo da luta não é
simplesmente perceber a nossa opressão enquanto mulheres, mas acabar com ela; e isso só pode
ser conseguido por um movimento para as mulheres forte e autónomo.
São tempos da memória entre as historiógrafas auto-nomeadas do movimento para as mulheres.
Várias coleções retrospetivas de ensaios e memórias começaram a aparecer, registando as nossa
preocupações, prioridades e entusiasmos inconstantes. O livro Segundas Intenções: Teoria,
233

Política e Experiência no movimento feminista [Hidden Agendas: Theory, Politics and


Experience in the Women's Movement] de Elizabeth Wilson poderia muito bem ser intitulado de
'O triunfo e a queda do feminismo socialista'. O seu romance Prisões de Vidro [Prisons of
Página

Glass], que conta o mesmo conto na ficção, está saturado com os tons elegíacos de despedida de
uma última despedida. Esta era a forma como nós éramos e como somos agora. 'Tu sabes, eu
pensei, não é só sobre a vida das mulheres exatamente, e também não é realmente sobre o
feminismo – é realmente sobre o Movimento, não é? O que era. Como nós o experienciámos. . .
Nós estávamos todas juntas no movimento. Estávamos nisso juntas"441 Mais libertária e
energética no estilo, A Roupa Interior da Doidivanas: Ensaios e Escritos Ocasionais 1968-
1985 [The Madwoman's Underclothes: Essays and Occasional Writings 1968-1985] de
Germaine Greer conta uma história ligeiramente diferente. Greer foi uma das radicais
anarquistas sexuais da clandestinidade dos anos 60. O ar fesco que entrou pelos orifícios dos
tabus ainda assobia através da sua prosa.

As mulheres revolucionárias podem juntar-se aos grupos para a Libertação das Mulheres e
amaldiçoar e gritar e lutar com os polícias, mas já ouviram falar de alguma a marchar pela praça
pública com a sua mini saia a gritar 'Conseguem perceber? A Rata é bonita!' O jardim murado
do éden era RATA. A mandala dos santos belos era RATA. A rosa mística é RATA. A Arca de
Ouro, o Portão do Céu . . . Assim que uma mulher passa uma perna por cima do seu amante, ela
aceita a responsabilidade pela sua própria sexualidade e reconhece-a como parte integral da sua
personalidade e da sua inteligência, e não apenas uma função da carne. Assim que ela se
posiciona por cima do seu amante, homem ou mulher, ela está prestes não apenas a reinvindicar
o direito ao orgasmo mas também a abraçar a doce responsabilidade de dar prazer. 442

A sexualidade ainda está muito na agenda do movimento para as mulheres mas o que é
particularmente refrescante em Germaine Greer é que ela insiste que as mulheres se amem-se a
si próprias, se sintam bem no seu sexo e com elas mesmas. Numa sociedade onde o ódio à
mulher é a podridão dentro de cada estrutura, ainda é bom ouvir que 'A rata é bela!' Greer e
Wilson escrevem respetivamente histórias diferentes do feminismo. Tal não é surpreendente
nem perturbador. Pois a escrita da história é sempre uma questão partidária. Nós tomamos
partidos. De facto, nós devemos fazê-lo, porque na forma como construimos o nosso passado,
nós tentamos controlar o nosso presente e os nossos futuros.
Greer sempre andou à boleia do movimento para a libertação das mulheres. Ela não é uma
participante e nunca se importou com projetos coletivos ou com linhas do partido. A sua
escandalosidade e irreverência inestimáveis sempre criaram uma controvérsia bastante útil. O
seu trabalho sempre abriu novos campos de batalha. The Obstacle Race: The Fortunes of
Women Painters and their Work foi o primeiro numa bateria de livros sobre as mulheres e a
arte.443 Nos anos 80, Greer, como sempre na vanguarda, produziu Sexo e Destino: A Política da
Fertilidade Humana [Sex and Destiny: The Politics of Human Fertility], um texto marcado pela
admiração romântica da família alargada.

Agora, ao desenvolver a noção da Família com um F maiúsculo, eu luto por uma descrição de
uma estrutura orgânica que pode ser mostrada na lei, no exame genético, nos padrões de
propriedade de terra e nos registos paroquiais, mas que tem o seu reino principalmente nos
corações e mentes... é precisamente nos tipo de consciência, padrões de sentimento, conceitos

441
Elizabeth Wilson, Prisons of Glass (London, Methuen, 1986), pp. 250-1. Hidden Agendas: Theory, Politics and
Experience in the Women's Movement (London, Tavistock, 1986). Para uma análise do feminism britânico desde os anos 60,
ver Sheila Rowbottom, The Past is Before Us (1989; London, Penguin, 1990). Para a versão feminist radical americanade
como era, ver Andrea Dworkin, Letters from a War Zone: Writings 1976-1988 (London, Seeker & Warburg, 1988).
442
Germaine Greer, 'The Politics of Sexuality', The Madwoman's Underclothes: Essays and Occasional Writings 1968-1985
(London, Picador, 1986), pp. 37, 40 (publicada pela primeira vez em Oz, Maio 1970.
443
Germaine Greer, The Obstacle Race: The Fortunes of Women Painters and Their Work (London, Seeker & Warburg,
1979. Aqui ficam algumas sugestões iniciaispara outras: R. Parker and G. Pollock, Old Mistresses: Women, Art and
Ideology (London, Routledge & Kegan Paul, 1981); Roszika Parker, The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of
234

the Feminine (London, Women's Press, 1984); Pamela Gerrish Nunn, Victorian Women Artists (London, Women's Press,
1987) – ver também a sua coleção dos seus escritos, Canvassing (London, Camden, 1986); Jan Marsh, The Pre-Raphaelite
Sisterhood (New York, St Martin's, 1985); Hilary Robinson (ed.), Visibly Female: Feminism and Art. An Anthology
Página

(London, Camden, 1987). Camden Press publica agora a série 'Women on Art': escreva para Camden Press Ltd, 43 Camden
Passage, London N1 8EB para obter o seu catálogo. Eu creio que eles ainda estão a funcionar, mas em qualquer caso eles
ainda devem ter stock.
de si próprio, que a Família encontra a sua existência Onde a Família é forte, os indivíduos
levam em primeiro lugar para dentro da sua esfera de influência os seus amigos, e depois os
seus amantes.444

No início, identificámos a família - e, de facto, a Família – como a estrutura cultural, económica


e psicológica, onde a opressão das mulheres era reproduzida e imposta. A Família era, e é, uma
das instituições mais eficazes no policiamento das mulheres. Dentro da Família, o papel, a
identidade e a função tornam-se num só. Na sua crítica do'feminismo pró-família', Judith Stacey
tem a dizer o que se segue.

Um ataque à política sexual é um ataque ao núcleo radical do pensamento e da prática


feministas – o reconhecimento que a subordinação das mulheres pelos homens é sistémico e
estrutural. Friedan, Elshtain, e Greerprocuram evitar lutas diretas para acabar com esta
subordinação. . . Nenhuma delas apoia os esforços diretos para confrontar o domínio das
mulheres pelos homens. 445

Acho que ela tem razão. No final dos anos 60, a prática sexual – e os esforços diretos para
confrontar o domínio das mulheres pelos homens – para feministas britânicas como eu que
foram consequência dos anos de libertação sexual, foram o início. Este foi o ponto de partida
para uma análise mais aprofundada da divisão do trabalho em casa e no local de trabalho, no
campo da representação, cultura, ideologia. Nós não podíamos deixar uma pedra por levantar,
fosse o que fosse que estivesse por baixo. E o levantar implicava sempre ver quem estava
sentado em cima da pedra agarrado aos seus interesses e ao seu status quo. Essa análise tornou-
se ainda mais penetrante e, eu espero, mais auto-crítica. O movimento das mulheres negras e as
perspetivas internacionais do feminismo transformaram a ênfase e as direções do movimento
para as mulheres. Nós ainda temos tudo para lutar, tudo para ganhar.446
Todas nós, dentro do movimento para a libertação das mulheres, e aquelas de nós que estão
envolvidas no projeto feminista da mudança da sociedade temos um compromisso para com a
história e para com o mundo com o qual que lutamos pela transformação.

…Hoje em dia, ao longo de mais de vinte anos de vigência de uma geração de jovens
mulheres para quem o feminismo é um discurso normativo, uma ideologia moral cheia de
'deves', 'tens de', 'não faças' e 'não podes' acho que as feministas estão sob a suspeita de serem
contra a fornicação, o prazer – o que quer que isso queira dizer – piadas sexy e roupas
reveladoras. Pressupõe-se que o que dizemos é previsível. Na Conferência 'Homossexualidade,
Qual Homossexualidade?' em Amsterdão em Dezembro de 1987, Celia Kitzinger fez um breve
ams inflamado discurso da plataforme sobre o tema do essencialismo versus o construtivismo na
identidade sexual.447 Ela sugeria que a tarefa mais urgente era a desconstrução do sistema
patriarcal e heterossexual. Ela declarava que o seu entendimento do seu lesbianismo era
inseparável do seu feminismo. Ela foi aplaudida calorosamente. Mas uma das primeiras
intervenientes na sala de conferências prefaciou assim os seus comentários, 'Eu sei o que a
feminista diria sobre isto.. .' Ela pressupôs saber o que Celia Kitzinger responderia quando de

444
Germaine Greer, Sex and Destiny (1984; London, Pan, 1985), pp. 223.
445
Judith Stacey, 'Are Feminists Afraid to Leave Home? The Challenge of Conservative Pro-Family Feminism', in Juliet
Mitchell and Ann Oakley (eds), What Is Feminism! A Re-examination (Oxford, Blackwell, 1986), pp. 208-37, 221. Ver
também outros pensamentos de Stacey: Deborah Rosenfelt e Judith Stacey, 'Review Essay: Second Thoughts on the Second
Wave', Feminist Review, no. 27 (Outono 1987), pp. 77-95.
235

446
Dois pontos de partida úteis sobre o o feminismo fora da Grã-Bretanha e do Ocidente são Kimari Jayawardena,
Feminismo e Nacionalismo no Terceiro Mundo [Feminism and Nationalism in the Third World] (London, Zed, 1986) e
Third World/Second Sex, compiled by Miranda Davies, vol. 2 (London, Zed, 1987; vol. 1 foi publicado em 1983). Ambas
Página

têm excelentes bibliografias para ulteriores leituras.


447
Consultar Celia Kitzinger, The Social Construction of Lesbianism (London, Sage, 1987).
facto ele não sabia. Sempre que pressupomos o que alguém irá dizer, deixamos de estar a falar
com essa pessoa ou a interagir com os seus argumentos. Podemos deixá-los de parte à partida.
O problema aqui é a maneira como o movimento para a libertação das mulheres construiu a
MULHER, pelo menos na mente popular) como uma categoria descomplicada e unificada. As
mulheres negras expuseram triunfantemente a falácia cravada neste pressuposto. Nem todas nós
nos definimos e àquilo que significa ser mulher da mesma maneira. Como o poderíamos fazer?
Algumas de nós olhamos para nós como mães, outras não. Algumas de nós definimo-nos como
lésbicas e portanto como outra coisa que não mulher. Tal como a própria mulher é uma
identidade fraturada, também o feminismo é uma política fracturada. Mas o poder masculino
também tem muitas faces. O feminismo adquiriu uma face pública rígida e dogmática. Não
obstante, a minha questão não é 'É este realmente o caso?' mas 'De quem serão os interesses se
isto acabar por ser verdadeiro?' Não são boas notícias para nós, mas sim para os nossos ditos
mestres. Nós precisamos de ser virgens sábias, flexíveis nas nossas estratégias, mais
imaginativas do que a oposição. Nós temos muito trabalho para fazer.
O nosso objetivo original foi sempre o de transformar o mundo para que o acidente do sexo
não fosse opressivo para as mulheres. Assim, o nosso propósito não era mais do que a
destruição do sistema do género que mantinha o poder dos homens sobre nós. Todas nós
sabemos que não estamos seguras neste mundo; não nos dão valor; passamos fome, somos mal
remuneradas, as nossas vidas valem pouco e estão em risco. Os corpos no fundo da pirâmide do
poder serão sempre os corpos das mulheres. E por isso nós devemos insistir nos nossos direitos
e necessidades, como mulheres; mesmo quando a obliteração da injustiça da diferença sexual e
todos os seus meandros está no cerne das nossas políticas. O impulse utópico no seio do
movimento para a libertaçaõ das mulheres deve ser sempre o desejo impossíve/selvageml do
feminismo de Mary Wollstonecraft. 'Um desejo selvage acabou de voar do meu coração para a
minha cabeça, e eu não vou sufocá-lo, ainda que provoque um horse-laugh. Eu desejo
seriamente assistir de facto à confusão do sexo na sociedade…”448 Mas um desejo político não é
uma crença. Não há um núcleo de crenças feministas. Essa é a descida para a fé. O feminismo
não é uma moralidade, mas uma política; não é um credo, mas uma análise.
Qual tem sido o lugar da ficção feminista no feminismo? Bem, tem sido aí que temos mantido
uma preocupação contínua em relação às contradições, imaginado as nossas soluções radicais,
testado a teoria contra a prática, passado as nossas vidas em revista. É o lugar onde nós temos
falado umas com as outras, revelado as nossas dúvidas e escrito os nossos avisos mais
perturbadores. Um dos livros mais assustadores que eu já li, The Handmaid's Tale de Margaret
Atwood, imagina uma distopia religiosa após o fracasso do feminismo. As mulheres são a
propriedade absoluta dos homens e do estado. Na república fundamentalist cristã de Gilead, a
capacidade reprodutiva das Srvas do Senhor, é o seu único valor. As hieraquias e as divisões
entre as mulheres, já tão organizadas e no seu devido lugar nos nossos dias, foram agora
sistematizadas. A identidade e o papel estão fundidos; nós somos Tias, Esposas, Marthas,
Servas, Prostitutas. As mulheres são abusadas e assassinadas não apenas pelos homens
individuais como também pelo Estado. 'As mulheres então não eram protegidas . . . Existe mais
do que um tipo de liberdade, disse a Tia Lydia. Liberdade para e liberdade de. Nos dias da
anarquia, era a liberdade para. Agora está a vos ser dada a liberdade de. Não a subestimes.'449
Mas é claro que, nós as mulheres, todas as mulheres, nunca fomos livres. Talvez algumas de nós
'tenham parecido ser capazes de escolher' (p. 35). E, tal como em todas as fábulas distópicas, os
aspetos mais assustadores do The Handmaid's Tale são os detalhes que já são uma verdade.
O equilíbrio do poder sexual entre as mulheres e os homens é medido cuidadosamente.

Ser um homem, vigiado pelas mulheres. Deve ser completamente estranho. Tê-las a vigiá-lo a
toda a hora. Tê-las a pensar, O que é que ele vai fazer a seguir?
236

448
Mary Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Woman, ed. Miriam Brody Kramnick (1792; London, Penguin,
Página

1975), p. 147.
449
Margaret Atwood, The Handmaid's Tale (1985; London, Virago, 1987), p. 34.
Tê-las a recuar quando ele se mexe, mesmo se for um movimento inofensivo, para ir buscar um
cinzeiro talvez. . .
Deve ser bom.
Deve ser um inferno.
Deve ser muito silencioso, (pp. 98, 99)

Este livro começou com as minhas reflexões sobre o silêncio das mulheres. São os homens
que impõem esse silêncio e as mulheres que se perguntam e vigiam. Será que os homens
reparam que as mulheres vigiam, furiosas, indiferentes, com medo? Mais importante ainda, será
que as mulheres sabem que vigiam – e porquê? Atwood escreve contra o poder masculino e
contra a teocracia. Ela assume o desafio imaginativo do que acontece às mulheres num estado
religioso extremista. O reforço da patriarquia é conseguido ao reverter a história. Nós lutámos
pelo direito de ter propriedade, de deixarmos de ser propriedade. Na República de Gilead, todos
os cartões eletrónicos das mulheres são cancelados, todas as mulheres perdem o seu emprego.
Elas tornam-se outra vez propriedade dos homens. Quando eu ouvi Atwood falar acerca do seu
livro em 1986, ela deu a saber como tinha sido feito, sorriu para nós tristemente e disse:
'Resistam à computadorização do dinheiro.' No texto de Atwood, existem homens que não
apoiam o estado. Estes são os dissidentes que ajudam as mulheres na revolta a escapar. Haverá
sempre alguns membros de uma classe opressora a tomar o partido dos oprimidos; tal como
existem homens agora que dizem que são apoiantes da libertação das mulheres; tal como
existiram brancos que trabalharam com os ativistas dos direitos civis negros e que diziam que
apoiavam o Poder Negro [Black Power]. Mas permanece a questão: como podemos confiar
neles?
Talvez nenhum de nós possa ser de confiança em todas as ocasiões. Na quinta página da sua
defesa espirituosa e inteligente da história literária feminista, um projeto com o qual eu me
simpatizo totalmente, Janet Todd sold the pass to the enemy. Ela afirmou, 'Eu começarei com os
primeiros dias dos anos 70, concentrando-me frequentemente na Elaine Showalter ... Ao fazê-lo,
estou ciente que estou a omitir muitas outras linhas de desenvolvimento, especialmente as linhas
de desenvolvimento das críticas negras e lésbicas cujo trabalho está de momento entre os mais
ricos e mais provocadores no modo sócio-histórico.'450 De facto, enquanto eu lia o seu livro,
deixei-o passar. Eu disse para mim mesma - bem, ela não pode escrever sobre tudo, mesmo se,
tal como ela própria admitiu, o seu livro ficasse mais rico e também mais provocador, se ela
tivesse incluído o trabalho das críticas negras e lésbicas. Mas à medida que eu avançava na
leitura, eu percebi que não se tratava de poupar espaço, mas de racismo e anti lesbianismo
explícito. Ao comentar as primeiras críticas feministas americanas, Todd diz o seguinte em sua
própria defesa. 'Não obstante, o criticismo a retalho parece excessivo. Showalter, Moers,
Spacks, Gilbert e Gubar podem ter tido falta de visão ou serem parcialmente cegas – elas assim
o foram claramente de tantas formas diferentes - mas "homofóbicas" e "racistas" não parecem
ser adjetivos proveitosos ou apropriados para elas' (p. 37). Quem não quer enfrentar as
implicações de uma acusação, ainda que reconhecendo a sua justiça, pode chamá-la de qualquer
coisa diferente. Assim, as críticas racistas e anti lésbicas transformam-se em 'falhas de visão' ou
'parcialmente cegas'. Será desnecessário dizer que eu procurei em vão na bibliografia de Janet
Todd por Meena Alexander, Barbara Christian, Gloria Joseph, Audre Lorde, Lauretta Ngcobo,
Dorothea Smartt, Barbara Smith, Maud Suiter, Alice Walker. Alice Walker aparece numa nota
de rodapé, onde ela é acusada de 'insulto' e 'coação tentada' por sublinhar que, ao recusar
considerar a escrita negra e a experiência negra, a sua colega Patricia Spacks estava a ser racista.
Aparentemente, é 'insultuoso' e 'coercivo' enfurecer-se por se ser apagada da história, silenciada
e ignorada. A verdade amarga do assunto é que, se Todd tivesse considerado o trabalho das
mulheres negras, lésbicas e lésbicas negras, ter-lhe-ia sido quase impossível escrever o livro
como ela o fez. Toda a sua ênfase e termos de referência teriam sido diferentes.
237

Nas ruas de Londres, encontrei uma jovem que eu tinha conhecido num grupo feminista da
universidade. Ela estava muito elegante. Estava então a trabalhar para um grande grupo
Página

450
Janet Todd, Feminist Literary History: A Defence (Cambridge, Polity, 1988), p. 5.
editorial. Nós conversámos um pouco: 'Ainda és uma feminista?' perguntei cautelosamente. Ela
olhou para mim estupefacta. 'Tu não podes deixar de ver as coisas,' disse ela. 'Tu não podes
voltar atrás. Tu só podes avançar.' E ela falou-me do seu trabalho num centro para mulheres da
localidade, da mudança na sua vida. Mas o que ela disse não é verdade. Tu podes 'deixar de ver
as coisas'. E - c o m o e u d i g o – tu podes chamar-lhes de outra coisa. Por isso nós podemos,
seguramente, andar para trás. Michèle Roberts, numa entrevista para o The Guardian, disse o
seguinte:

… À medida que ficas mais velha, tu aprendes a receber. Para mim, a palavra passiva
costumava ter conotações muito negativas; associações ao masoquismo feminino. Agora eu
chamo-lhe ser recetiva. Tu podes ser assim, e noutras ocasiões podes ser muito dada. O
feminismo fez muito por mim. Toda a minha força vem daí. Através dele eu reivindiquei a
minha feminilidade após vários anos de cabelo à escovinha e de botifarras.451

Eu não teria pensado que ser 'passiva' ou 'feminina' tivesse mudado os seus significados
politicos num context da nossa cultura ainda obstinadamente patriarcal, no entanto nós
escolhemos nos iludir a nós próprios. A noção de 'consciência falsa' está agora bastante for a de
moda nos círculos da ala esquerda e feminista.
A noção de “falsa consciência” hoje em dia está completamente fora de moda nos círculos
feministas e nos círculos de esquerda. A colectânea de ensaios críticos de Andrea Dworkin
Mulheres de Direita: A Política das Fêmeas Domesticadas [Right-Wing Women: The Politics of
Domesticated Females] estabelece, na sua raiz, uma conexão política brilhante entre as
feministas radicais e as mulheres domesticadas. Os dois grupos de mulheres partilham a mesma
análise dos homens e da patriarquia. Um dos grupos escolhe fazer o melhor acordo que puder
através do conformismo e da lisonja; o outro grupo escolhe o desconforto em bruto da
liberdade. Ambos os grupos estão plenamente conscientes do que estão a fazer. Ambos os
grupos de mulheres vivem em risco.

As mulheres de direita veem que no interior do sistema no qual elas vivem, não podem fazer do
seu corpo sua propriedade, mas podem concordar com a privatização da propriedade masculina:
keep it one-on-one, as it were. Elas sabem que são valorizadas pelo seu sexo – os seus orgãos
sexuais e a sua capacidade reprodutiva – e por isso elas tentam subir o seu valor: através da
cooperação, manipulação, conformidade; através de manifestações de carinho ou de tentativas
de amizades; através da submissão e da obediência; e especialmente através do uso do
eufemismo - 'feminilidade,' 'mulher completa,' 'bom,' 'instinto maternal,' 'amor materno.' 452

Certamente que encontrei mulheres domesticadas cujo cinismo é deveras surpreendente. Mas
não creio que seja sempre esse o caso. Muitas mulheres foram alvo de demasiada lavagem
cerebral, têm o ânimo demasiado derrotado, estão demasiado esfomeadas e humilhadas para
poderem agir em sua defesa. Outras acreditam sinceramente que a sua opressão foi escolhida
alegremente. Muitas mais afadigam-se a contarem a si próprias mentiras piedosas, para serem
poupadas à dor de refletir. Estou quase segura de que numa ou noutra altura pertenci a todas
essas categorias. Pois estas são as realidades da opressão e do poder; é assim que a opressão e a
supressão funcionam dentro de cada um dos grupos em questão.
Não creio que a nossa análise do controlo económico que os homens exercem sobre as mulheres
deva ser alguma vez separada da nossa análise do sistema heterossexual. As mulheres nunca
podem escolher ou definir a sua relação com os homens a não ser que sejam economicamente
independentes. Não estou a negar a existência de outras pressões e constrangimentos que
possam tornar até mesmo uma mulher rica e financeiramente autónoma subserviente aos
homens. Mas sem um acesso direto e controlo sobre a sua riqueza, nenhuma mulher tem
238

qualquer opção de escolha real. E enquanto os homens governarem as mulheres nunca poderão
Página

451
Michèle Roberts, em entrevista ao jornal The Guardian, 27 de Maio 1987.
452
Andrea Dworkin, Right- Wing Women: The Politics of Domesticated Females (London, Women's Press, 1983), p. 69.
ser economicamente livres. Enquanto não formos nós a controlar a nossa riqueza, ou justamente
pagas pelo nosso trabalho, nós nunca estaremos livres do domínio masculino. O círculo está
completo. '”As feministas parecem pensar que a igualdade de remuneração é algo da ala direita,
quando na verdade não é nada disso. As feministas recusaram-se a encarar o facto de que a
igualdade de salários é impossível enquanto os homens continuarem a comandar as mulheres, e
as mulheres de direita recusaram-se a esquecê-lo.”453 Dworkin tem razão. As mulheres
feministas e as mulheres da ala direita estão divididas, não pela sua análise do sistema
heterossexual, mas pelos seus métodos de sobrevivência num mundo governado pelos homens
no qual as mulheres são exploradas, brutalizadas e vítimas de abuso. Este não é um conselho de
desespero. Como poderia sê-lo? Nós analisámos as nossas situações, nomeámos os nossos
antagonistas, começámos a nossa longa revolução. Mas temos de continuar a nossa luta em prol
de ver claramente, falar honestamente e viver de forma diferente.
Recentemente tive uma discussão com uma mulher casada, uma feminista, que compreende
plenamente os significados políticos do comportamento repreensível do seu marido. 'Mas,' disse
ela, como se essa fosse a rocha sobre a qual a nossa conversa se deveria firmar
irrevogavelmente, “eu amo-o.”
Os parâmetros da nossa discussão tinham sido delimitados pela minha amiga para que a
minha próxima questão ficasse fora de jogo. 'Como podes amá-lo? Se ele se comporta dessa
maneira e não muda, porque não o deixas?' Eu estava a ser racional. Ela estava a falar dos seus
sentimentos. Eu estava a falar da sua dignidade como ser humano. Ela estava a falar dos seus
prospetos económicos num mundo cruel. E então o que fazemos quando chegamos ao fim da
luta amorosa com os homens nas nossas vidas?? Quer seja no trabalho, na cozinha, ou na cama?
O que fazemos quando continuar significa ceder?
O amor das mulheres sempre quis dizer dar lugar, desistir, ceder – na ficção e nas nossas
vidas. Nós precisamos de uma nova visão do amor que envolva dizer e viver um não que
significa não e não sim, que é falado de uma posição de força e de certeza – um consentimento
que não seja coagido, nem pela pobreza, nem pela manipulação, nem pelo medo. Nós somos o
único grupo oprimido que é obrigado a amar os seus opressores. Nós somos o único grupo a que
se exige que convide e aprecie a agressão. A única ligação aparentemente natural entre o prazer
e a dor, que é a marca do amor romântico, é também a base para a construção sado-masoquista
da heterossexualidade, os significados sádicos da masculinidade, e os significados masoquistas
da feminilidade.454 Prazer, dor e amor – no sentido mais lato, que inclui o sexual – são e sempre
foram o território clássico da ficção feminista. Podemos imaginar um mundo sem força? Um
mundo baseado no consentimento mútuo?

453
Ibid., p. 67.
454
Eu não me envolvi com todo o debate exaustivo sobre o sadomasoquismo lésbico. Sendo de certa forma literal uma crente em ler
os dois lado de um argumento, eu sentei-me com SAMOIS (ed.), Coming to Power: Writing and Graphics on Lesbian S/M (Boston,
Mass., Alyson, 1981, 1982) e Robin Ruth Linden (ed.), Against Sadomasochism: A Radical Feminist Analysis (California, Frog in
the Well, 1982). Mais perto de casa está o debate sobre o London Lesbian and Gay Centre em Londres. Deveriam os grupos de S/M
ser autorizados a frequenter o centro – ou deveriam ser banidos? Ver Susan Ardill e Sue O'Sullivan, 'Upsetting an Applecart:
Difference, Desire and Lesbian Sadomasochism', Feminist Review, no. 23 (Verão 1986), edição especial, 'Social Feminism: Out of
the Blue', pp. 31-57. Eu já falei muito sobre a questão com várias lésbicas, algumas das quais são totalmente a favor do S/M e outras
completamente contra. Parece-me que o que o S/M faz é criar um 'teatro sexual' onde podemos representar papéis, realizar fantasias
sem perguntar de onde os papéis e as fantasias realmente vêm. E eu nunca poderia fazer parte de um espetáculo onde outra pessoa
escreveu o guião. Em suma, eu dou por mim a concordar com Ardill e O'Sullivan quando elas dizem:

O que nós sentimos como mulheres de milhares de diferentes realidades, como oprimidas e opressoras, ator e objeto, é
uma parte vitaldo que vai para a nossa análise política enquanto feministas. . . Mas nós não baseamos a nossa
compreensão da opressão e exploração continuadas das mulheres nisso mesmo. . . Qualquer um de nós deve ser
capaz de desenvolver políticas que nos tornem sensíveis e abertos para aprender com a experiênciade outros e que nos
forneça as ferramentas e a estrutura para avaliar criticamente as análises teóricas e a vida política diária. (p. 56)
239

Uma análise menos tolerante mas não menos convincente e persuasive das implicações do S/M pode ser encontrada no ultimo
capítulo, 'The Murderer as Misogynist?' do estudo de Deborah Cameron e Elizabeth Frazersobre o crime sexual murder, The Lust to
Kill: A Feminist Investigation of Sexual Murder (Cambridge, Polity, 1987). Para aquelas de nós que emergiram dos anos 60 com as
nossa dúvidas sobre a libertação sexual, o debate do S/M tem sido um replay em vez de um foreplay/preliminar. Nada sob o sol,
Página

como diria o pregador. Para uma análise brilhante, apaixonada e arguta dos debates à volta da construção da sexualidade em todas as
suas formas, consultar Sheila Jeffreys, Anticlimax: A Feminist Perspective on the Sexual Revolution (London, Women's Press,
1990).
Em tempos perigosos, quando a mioria de nós se mantém silenciosos ou a recuar dos nossos
propósitos mais radicais, eu vejo pouco espaço para o compromisso. Um dos sinais de perigo
que indica que alguém está prestes a começar a comprometer as suas políticas feministas, ou
que indica que eles nunca as tiveram, é o momento em que elas afirmam que estão a voltar a
reclamar alguma coisa: o casamento, a famíliay, o amor, a femininidade ou a religião
tradicional. Voltar a reinvindicat não é o mesmo que desafiar, transformer, confrontar; uma
empresa bem menos confortável. Pois or feminismo sera sempre desconfortável, impopular,
controverso e assustador. O feminism é realmente a política que toca as partes das nossas vidas
que nenhuma outra política alcançará. Esta malvada confusão de motives mistos, tristeza e
alegria, interesse próprio, auto-engano e compreensão libertadora é a matéria prima da política
sexual. Este tem sido, e continua a ser, o nosso assunto. Uma mulher mais velha que eu conheço
– ela está nos seus cinquentas – estava a contar-me uma história terrível de assédio sexual no
trabalho. Estávamos em pleno verão, e parámos as nossas bicicletas num campo de trigo
ceifado. De repente, ela acenou com os dois braços no ar, rindo. 'Nunca devemos baixar os
braços!' gritou ela. 'Também nunca devemos baixar as nossas canetas!' Eu gritei de volta. Mas
nós rimos e rimos, porque nós estávamos ambas do mesmo lado das barricadas. Nós tínhamos
falado durante horas; nós éramos mulheres muito diferentes; eu tinha-a compreendido, ela tinha-
me compreendido. Eu quero uma vida melhor para todas nós; boa prosa e mais vinho.

Bibliografia
Todos os livros, artigos, poemas – e até mesmo cartoons – aqui listados contribuiram para o
meu pensamento de formas substanciais, e portanto para a feitura deste livro. Referências
detalhadas e cotadas dos livros ou escrita citados no texto serão encontrados nas notas no final
de cada capítulo. Eu hesitei durante muito tempo antes de decidir deixar de parte os livros
escritos por homens juntamente com os livros escritos pelas mulheres nesta bibliografia.
Quando fui procurar livros escritos por mulheres nas bibliografias de homens, os números eram
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surpreendentemente escassos. Poderá verificar que a situação oposta se reflete nesta


bibliografia. Viver e pensar de forma diferente do mundo heteropatriarcal implica um grande
esforço emocional e intelectual; não existem muitos livros escritos por homens que deem algum
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tipo de ajuda. Aqueles que existem são ficcionais/poéticos. Mas isso é outra história.
Uma vez que a bibliografia no seu conjunto é bastante extensa, eu dividi-a em três secções: a
primeira que reúne livros ficcionais/poéticos, a segunda que reúne livros de uma natureza
crítica/teórica/ histórica e a terceira artigos, diários e newsletters.

Ficcional/Poética/Autobiográfica
Angelou, Maya, I Know Why the Caged Bird Sings (1969; London, Virago, 1984).
-----Gather Together in My Name (1974; London, Virago, 1985).
-----Singin' and Swingin' and Getting' Merry Like Christmas (1976, London, Virago,
1985).
----- The Heart of A Woman (1981; London, Virago, 1986).
---- All God's Children Need Travelling Shoes (1986; London, Virago, 1987).
Attic Press Fairytales for Feminists series, Rapunzel's Revenge (Dublin, Attic, 1985).
---- Ms [sic] Muffet and Others (Dublin, Attic, 1986).
---- Mad and Bad Fairies (Dublin, Attic, 1987).
-----Sweeping Beauties (Dublin, Attic, 1989).
Atwood, Margaret, The Handmaid's Tale (1985; London, Virago, 1987). Barton, Rachel (Sita),
The Scarlet Thread: An Indian Woman Speaks (London, Virago, 1987).
Bennett, Arnold, The Old Wives' Tale (1908; London, Pan, 1964, 1975). Birtha, Becky, Lover's
Choice (1987; London, Women's Press, 1988). Blackwomantalk (ed.), Black Women Talk
Poetry (London, Black Womantalk Ltd, 1987). Brown, Rita Mae, Ruby fruit Jungle (1973; New
York, Bantam, 1977). Burford, Barbara, The Threshing Floor (London, Sheba, 1986).a

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