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Boa Vista
Agosto 2019
Universidade Federal de Roraima
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Programa de Pós-Graduação em Letras
Boa Vista
Agosto de 2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Banca Examinadora:
À minha mãe, Eliane, que me deu a vida, com seu poder criativo, fértil,
guiou minha ancestralidade feminina, elementos tão importantes para mim e que
também conduziram meu olhar nesta pesquisa. Às minhas avós (Nancy e Eró), tias
(Marisa e Dora), à minha irmã (Flávia) e minhas primas (Glenda e Constance). Meu
muito obrigada às mulheres das famílias maternas e paternas por eu ser quem eu sou.
Aos homens também, por essa força centrífuga, por me darem o poder de expansão, de
projetar meu olhar para fora. Um obrigada especial aos meus dois pais Luiz e Fausto
(sim, sou sortuda).
Ao Roberto Mibielli, meu orientador, agradeço por confiar em minha
pesquisa quando eu mesma duvidava, pelos puxões de orelha por conta dos prazos, os
livros emprestados e o conhecimento compartilhado. Ao Pedro Russi, por aceitar se
juntar e coorientar essa pesquisa mesmo à distância, de Brasília, ou do Uruguai,
arrumando sempre um tempo para me indicar leituras valiosas e para me provocar a
pensar fora da caixinha, a não burocratizar meu pensamento. Aos dois, minha sincera
gratidão.
Ao Enderson, funcionário do PPGL, agradeço por todas as vezes que ele
acolheu minhas dúvidas, me ajudou com processos burocráticos na universidade, ou me
emprestou a chave da sala de estudos para os encontros semanais com Patri. Ao senhor
Oliveira, meu agradecimento e admiração pelo trabalho realizado no Clube do Livro,
sebinho de livros no terminal rodoviário que foi o local de acolhida para as aulas de
português às mulheres migrantes, onde tudo começou.
Às professoras France e Lisiane, agradeço as contribuições na banca de
qualificação e aos diálogos durante o processo de pesquisa. Ao Fabrício, obrigada pela
aula sobre biopoder e os livros da Butler. À Julia Camargo agradeço imensamente à
cumplicidade desde o início, no embrião desta tese, dos nossos trabalhos voluntários,
por todas as portas que se abriram com o Rede Acolher, inclusive o da nossa amizade.
Às barraqueiras do lavrado, obrigada por serem mulheres maravilhosas e
inspiradoras. Pati, Yare, Clarinha, Andreza, Manu, Ju, Evelyn tantas aventuras na nossa
jornada de luta contra a violência de gênero. À Ana Cláudia por ter sido a chefa amiga
mais querida, mulher poderosa e generosa. Agradeço também à Pati Rangel pelas
indicações de leituras feministas, foram super úteis.
Obrigada catinga do meu coração, queridos companheiros e
companheiras de Roraima, do luau com G7, das prosas no Dedinho, do incentivo pra
acabar logo essa dissertação. Yssy, Marina, Amanda, Marília, Vivi, Estevones, Hanna,
Inácio, Manu, Ana Maria, Renan, Kleper (maravilhoso das aulas de yoga que salvaram
minha sanidade mental e meu companheiro no projeto Ateliê Elas no Mundo). Ao
Lucas um agradecimento especial pelo incentivo a entrar no mestrado, pela leitura
crítica e primorosa revisão final, do começo ao fim presente. Ao Pedro Brandão,
Carolzinha, Paulo, Sarinha, M. Big, Maria, Stefy. Às minhas lobas queridas, às
tumitinhas, às amizades que carrego comigo pra sempre por onde estiver.
À Mila, pela cumplicidade do dia a dia, pelos risos, os vinhos, pelas
defumações e por esse portal espiritual que você me abriu. Obrigada, amiga,
compartilhar a casa com você é realmente um privilégio. Ao Dan, um haux pelo nosso
encontro, pela leveza de vida que você me traz, pelo companheirismo. Gratidão infinita.
Mas nada disso seria possível sem a confiança e amizade de Patri, que
compartilhou comigo seus cadernos e me confiou o enorme desafio de fazer jus à sua
poesia, à sua história de vida, nas páginas desta dissertação. Te admiro por sua força,
por sua resistência e te agradeço por tudo o que você me ensinou, pelo afilhado que
ganhei. Espero que suas palavras alcancem tantas outras pessoas e as convidem à um
profundo processo de rupturas e reconstruções, assim como foi para mim.
Resumo
Introdução ....................................................................................................................... 12
12
supermercados e nas praças, que despertou a minha atenção sobre um processo que
estava apenas começando a se intensificar.
Os primeiros a serem notados e noticiados foram os migrantes que
ficavam nas ruas. As ruas largas, limpas e floridas de Boa Vista. Aqueles cujos nossos
olhos conseguiam facilmente destacar da paisagem, os corpos que estavam ali, públicos.
Os indígenas da etnia Warao, principalmente as mulheres com seus coloridos vestidos e
seus filhos pequenos nos semáforos, e as mulheres do Passarão1, as trabalhadoras
sexuais que foram apelidadas pela população local como “ochenta”, valor comumente
cobrado pelo programa.
Como jornalista de formação e inquieta de criação, comecei a me
envolver com o tema da migração e refúgio. Foi quando passei a ser voluntária do
projeto de extensão da Universidade Federal de Roraima, Rede Acolher2. Os meus
primeiros trabalhos foram na área do audiovisual, dando aula de vídeo nos abrigos para
jovens Warao e captando depoimentos de migrantes para realizar um documentário. Por
cerca de seis meses também fui professora de português para as trabalhadoras sexuais
no Clube do Livro, sebo localizado no bairro Caimbé, um local de resistência e
militância coordenado pelo Sr. Oliveira, um personagem especial de toda essa história,
que há anos trabalha com pessoas vivendo com HIV, além de ser um defensor dos livros
e da leitura. Deste último grupo, fui tentando me aproximar cada vez mais. Esse
paradigma da mulher venezuelana me inquietava e eu não sabia, até aquele momento,
exatamente o porquê.
Eu já estava decidida a abordar no meu mestrado histórias de vida da
população migrante. Nesses meus percursos do audiovisual, tinha coletado muitos
depoimentos fortes e não conseguia me enxergar estudando qualquer outro tema que
1
Passarão é como ficou conhecida a região próxima a Feira do Passarão, no bairro Caimbé, zona oeste de
Boa Vista.
2
Criado em janeiro de 2017 por professores e alunos da Universidade Federal de Roraima, o Rede
Acolher é um projeto de extensão cujo lema é acolher, promover e cuidar. O projeto engloba ações
gratuitas e abertas em diversas áreas como: apoio jurídico; tradução e produção de curriculum vitae; ações
de combate à xenofobia; aulas de português; ações educativas e brincadeiras para crianças, oficinais de
artes visuais, aulas de yoga, meditação e capoeira, produção artística e audiovisual, além de campanhas de
sensibilização da opinião pública para acolhimento aos refugiados e migrantes em Roraima. A rede conta
com aproximadamente 60 voluntários e atende por volta de 300 a 400 pessoas.
13
não tivesse relação com o atual contexto migratório no Estado de Roraima. Meus
trabalhos como voluntária no contexto da migração, entretanto, me fizeram mudar não
somente os rumos desta pesquisa, mas a da minha própria vida. Em setembro de 2017,
ingressei em uma organização internacional que chegou em Roraima por conta do fluxo
de venezuelanos e venezuelanas no Brasil com a missão de prevenir e responder à
violência de gênero em contexto de emergência. O meu relacionamento anterior com as
trabalhadoras sexuais por conta das aulas de português, somado ao meu dia a dia imersa
nos desafios da migração para as mulheres e população LGBTI, me possibilitaram um
background e uma constância na construção do meu pensamento sobre o tema que se
refletem nos caminhos traçados ao longo desta pesquisa.
Fui então fechando aos poucos o recorte da minha investigação. De
histórias de vida geral, para histórias de vida de mulheres que, ao chegarem no Brasil,
foram levadas ao sexo para sobrevivência. Primeiro pensei que meu principal material
de sustentação da análise seriam entrevistas com duas mulheres que eram minhas alunas
e que eu tinha mais proximidade. Uma delas era uma mulher trans, outra era Patri3.
Cheguei a gravar alguns encontros com elas (as conversas eram individuais e não as
duas ao mesmo tempo). Em um deles, entretanto, Patri me levou o seu caderno, onde
fazia suas anotações e escrevia sobre os seus sentimentos diários. Este momento
coincidiu com o “sumiço” de minha outra aluna. Um desafio da pesquisa com elas é a
inconstância da permanência em um só lugar e a frequência com a qual mudam de
número de telefone, dificultando o contato. É muito comum que elas fiquem uma
“temporada” de aproximadamente três meses em Roraima, depois voltem para
Venezuela por mais outro curto período e retornem novamente para o Brasil. Dada esta
circunstância, e sabendo da riqueza daquele material escrito em minhas mãos, optei por
voltar a minha pesquisa para a análise do diário de Patri.
E o que tudo isso tem a ver com um estudo na área da literatura? Não
poderia deixar de trazer aqui uma referencia a Antônio Cândido, que como um grande
mestre, foi certeiro ao explicar o porquê é impossível dissociar literatura de sociedade.
3
Utilizarei em toda a pesquisa o apelido Patri como forma de preservar a sua identidade, apesar dela ter
falado que não via problema em colocar seu nome de registro. Também utilizarei G.S. para me referir ao
companheiro de Patri, pai de seu primeiro e único filho.
14
Só podemos nos arriscar a entender a identidade literária de um povo, se conhecermos
as suas circunstâncias históricas. Não é a toa que “A Mulher do Garimpo” (2012), de
Nenê Macaggi, é a obra mais conhecida de Roraima. Quem estuda a história do estado,
não tem dúvidas do papel central que o garimpo desempenhou não só para a sua
conformação econômica, mas como balizador das relações e estruturas sociais.
Compreender isso, entretanto, não é conferir uma relação mecânica e
determinista da sociedade sobre a literatura. Pelo contrário, texto e contexto devem ser
fundidos em uma “interpretação dialeticamente íntegra” (CÂNDIDO, 2006, p.13), em
que a essência de uma obra não se explica somente pela sua relação com fatores
externos, mas também não pretende afirmar que a estrutura é virtualmente independente
e a matéria inoperante para a compreensão de uma obra.
Neste sentido, creio que a migração pode ser lida no diário de Patri não
como contexto, ou como assunto inevitavelmente abordado por ela, mas como um
agente (no sentido de ação), que também pega no lápis para traçar os contornos e a
estética de seus escritos. Um conceito que utilizo como norteador de toda a pesquisa é o
de “fronteira”, de Gloria Anzaldúa (1999), que atravessa tanto o diário íntimo, como a
migração, a literatura e os estudos de gênero. Nos escritos de Patri, existe uma fronteira
entre o íntimo e o público, entre o moral e o imoral, entre a mãe e a prostituta, mas
também o próprio gênero diário enfrenta a fronteira entre a literatura e o desabafo. A
fronteira, entretanto, não assume uma dicotomia, não é um lugar que separa dois
universos, mas um espaço de intersecções das contradições. Dos opostos que não se
anulam, mas coabitam.
Para mim, refletir sobre o que Patri escreve em seu diário foi um
exercício não somente de entender a migração em Roraima, mas também de pensar o
poder patriarcal sobre o corpo das mulheres, sobre o que elas escrevem, o espaço que
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elas têm para caminhar no mundo. Mas o melhor foi pensar nessa escrita como um ato
de rebeldia, que rompe o muro construído para delimitar até onde uma mulher migrante
pode chegar. Ao se escrever, ela deixa de ser a “ochenta” anônima e genérica definida
pelos outros, para construir com suas próprias mãos o seu lugar no mundo.
Ao pegar os cadernos de Patri para analisá-los no mestrado, por vezes me
senti uma leitora “Sherlock Holmes”, como propõe Carlo Ginzburg (1989) ao falar
sobre o paradigma indiciário como método cuja origem está na análise das obras de
artes baseada na semiótica. “O conhecedor de arte é comparável ao detetive que
descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a
maioria” (GINZBURG, 1989, p. 145). A proposta é encontrar uma forma de interpretar
a partir de um olhar lançado sobre os resíduos, sobre os dados marginais. Ali estariam
as informações reveladoras. “O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de
dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não
experimentável diretamente” (GINZBURG, 1989, p. 152). É a partir desta perspectiva
que me proponho a ler sua narrativa: prestando atenção às frases inacabadas, ao que está
escrito de lado, nas margens, me interessando sobre as contradições de seu pensamento,
ao que é narrado sobre um cotidiano que passa desapercebido por sua normalização.
Ao fazer uma análise do discurso, por sua vez, levo em consideração o
que Mikhail Bakhtin (2002) reforça sobre a polifonia que existe em uma narrativa, com
os fios dialógicos que conectam várias outras vozes em um mesmo enunciado. Desta
forma, entendo como discurso não apenas o texto, mas também os sentidos que se
manifestam nos desenhos, na estética da escrita, nos silêncios. Para agregar à tal
paradigma da análise do discurso, também me valho da sociologia da imagem proposta
por Silvia Cusicanqui (2010), que propõe que o olho que analisa as imagens seja não
apenas curioso aos detalhes, mas que também esteja aberto ao exercício de se
descolonizar, já que também na visualidade estão as marcas da dominação.
Por fim, eu organizei a minha leitura dos diários em três principais
momentos. Primeiro eu tirei xerox dos dois cadernos e fiz uma leitura completa
marcando as partes que mais me chamavam a atenção e enumerando as páginas. Em um
segundo, fui passando o diário a limpo para o computador junto com Patri, tirando
dúvida dos trechos em que não entendia a caligrafia, ou que não compreendia o sentido
do que ela dizia. Fui anotando embaixo das páginas algumas explicações que ela ia me
16
dando neste processo. Para sistematizar nossa forma de trabalho, nos encontrávamos
pelo menos uma vez por semana, às vezes duas, na Universidade Federal de Roraima.
Em todos os nossos encontros o seu filho foi junto, pois ela não tinha com quem deixa-
lo. Reforço isso aqui, porque creio que não seja mera curiosidade, mas um fator
significativo da sua história e da forma de escrever, impactando também minha
compreensão. Agora eu entendi o porquê tinham vezes que ela não conseguia nem
mesmo terminar uma frase que começava,.cuidar de um bebê sozinha não é brincadeira.
Portanto, trabalhei não com a materialidade dos cadernos, mas também nas informações
e dados que tinha sobre ela e o seu processo a partir de uma convivência de quase dois
anos entre nós duas.
Dividi a dissertação em três capítulos, conforme a necessidade de
estruturar o pensamento em três principais eixos: migração, literatura e o feminino (este
último como transversal aos dois primeiros). O primeiro capítulo é onde introduzo um
conceito central que norteará toda a pesquisa: o conceito de fronteira. Começo pelo
significado mais lógico, ou habitual, para o termo que é pensa-lo a partir de sua
dimensão geográfica. Neste sentido, remonto um pouco da história das migrações para o
estado de Roraima, tomando como referencia livros de memorialistas regionais, mas
também um livro de literatura: A Mulher do Garimpo, de Nenê Macaggi (2012). Sempre
tive curiosidade de lê-lo, por ser uma das principais referencias da literatura de Roraima
e, quando eu assim fiz durante o processo de pesquisa, fiquei muito feliz por ver o
quanto sua narrativa dialogava com a proposta da minha análise.
Se trata de um romance histórico, escrito por uma mulher, cujo
personagem principal é uma mulher travestida de homem para fugir da violência. O
personagem, além disso, é migrante. Ele sai do Rio de Janeiro, sua cidade natal, rumo
ao desconhecido Norte do país, uma terra de oportunidades por conta do garimpo. Neste
percurso, vai conhecendo vários nordestinos que seguiam também para a Amazônia: em
busca da estabilidade, fugindo da miséria. Analisar o livro, desta forma, me permitiu
contextualizar as migrações para Roraima, pensando também na perspectiva de gênero e
resgatando a leva de nordestinos atraídos para o norte durante os ciclos da borracha e do
diamante. O interessante de perceber é que os nordestinos que aqui chegaram em grande
número nesta época também foram culpados, assim como os venezuelanos e
venezuelanas, pelas mazelas de Roraima. Eu finalizo o primeiro capítulo com um breve
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apanhado dos estudos de gênero na migração, abordando o conceito de feminização das
migrações e suas implicações sociais.
No segundo capítulo eu entro no campo dos estudos literários, trazendo
para a reflexão as diferenças entre diário, autobiografias e cadernos, mas tentando não
cair na armadilha de valorizar mais uma análise sobre a intenção do autor, ou da autora,
do que o processo da escrita de si. Levando em consideração que Patri escreveu dois
cadernos, um primeiro sem a intenção expressa de publicá-lo e um segundo já a partir
da nossa relação, com a vontade de escrever para ser ouvida por outras pessoas
estranhas a ela, poderia dizer que sua narrativa está também na fronteira entre diários e
autobiografia. Digo isto a partir das descrições de cada um desses gêneros traçadas por
Philippe Lejeune (2014). A pesquisa sobre cadernos de Ana Kiffer (2018) foi um
essencial diálogo para mim, pois trouxe elementos sobre o processo que se conectavam
também com o descrito por Gloria Anzaldúa ao escrever sua autohistória. A escrita
como um ato de resistência, em um processo por vezes precário enquanto situação
imposta à mulheres em estado de fronteira, é o caminho que escolhi na minha análise.
Por último, o meu terceiro capítulo é uma tentativa de juntar a análise
sobre migração e sobre literatura no diário de Patri, uma mulher venezuelana que vem
para o Brasil e mantém um diário sobre suas experiências. Para tanto, busco ler não
somente as palavras, ou o seu conteúdo, mas também os desenhos, a forma como a
caligrafia é posta de acordo com o seu humor, as colagens e também as páginas em
branco. O meu desafio aqui é conseguir fazer uma leitura não burocrática do seu diário,
tentando fazer da minha leitura, também um ato de resistência.
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1. Dois lados da mesma viagem
4
“Já é uma decisão tomada, sei que tem seus riscos, mas não posso ficar sem fazer nada, algum resultado
tem cada ato e eu o tomarei com maturidade, só peço ao meu senhor e a meu padre celestial que
acompanhe sempre. Estou mais uma vez fazendo as malas, mas sei que essa viagem é diferente, não é
porque eu quero, mas isso não me tira a ansiedade, ou o nervosismo, minhas irmãs de criação me
aconselharam e isso me faz me sentir feliz. Estou com duas conhecidas a espera do ônibus, que nos
deixou na metade do nosso destino final. Já chegou o ônibus e eu me sento em um dos primeiros lugares,
à janela, com minha cabeça cheia de curiosidade entre outras coisas, enfim, estou quase louca de tanto
pensar, chegamos a nosso destino logo depois de passar por um processo. (Senhor) estou no Brasil,
obrigada. Essas foram minhas primeiras palavras de agradecimento ao chegar. Minha ex-cunhada nos
recebeu e nos buscou um lugar para dormir, recordo que nosso acordo era pagá-la 50 reais semanais a
encarregada da vila” (tradução minha)
5 Os diários de C.R. Patri estão organizados em dois cadernos diferentes, as páginas foram enumeradas a
título de organização do material.
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parceiro do projeto de extensão da universidade do qual eu era voluntária, o Rede
Acolher. Expliquei qual era a proposta ali, no meio da rua, para ela e o pequeno grupo
que esperava por seus clientes na sombra de uma árvore. Naquela época, eu já era
mestranda de literatura na Universidade Federal de Roraima (UFRR) e queria me
voluntariar para dar aulas de português para migrantes6, mais especificamente para as
trabalhadoras sexuais, mulheres e população LGBTI em vulnerabilidade.
C.R.Patri tinha naquele momento 27 anos. Me lembro que ela me marcou
logo nos primeiros encontros. Apesar de nunca ter frequentado assiduamente as aulas de
português, era a primeira a comparecer aos grupos de mulheres e reuniões com as
agências das Nações Unidas para falar sobre os problemas enfrentados por elas nas ruas.
Patri tinha um quê (dois na verdade) de líder, falava com muita lucidez das feridas
abertas naquele processo de deslocamento forçado, do trabalho não desejado, da
violência jamais imaginada. Trocamos contato, número de Whatsapp e nos adicionamos
nas redes sociais. Lembro que lhe comentei do meu desejo de pesquisar histórias de
vida de mulheres migrantes no meu mestrado, perguntei se ela gostaria de participar.
Ela me disse que sim, mas não avançamos muito.
Não sei exatamente o porquê, nem quando, mas ficamos um tempo sem
nos comunicar. Eu parei de dar as aulas no Clube do Livro por falta de tempo (ele
sempre me atropelando) e a Patri parou de me mandar mensagens, ou postar nas redes
sociais. Meses depois, soube que ela voltou para Venezuela para tratar de uma doença e
rever a família. Quando já estava pela segunda vez no Brasil, grávida de um brasileiro
que havia sido o seu cliente e por ele violentada, Patri retomou o contato. Disse que
precisava me contar o que estava passando em sua vida e me confiou o seu diário
íntimo. Um caderno desses pequenos, de espiral, 200 folhas e muitos desabafos.
Lembro de sua voz: “Toma, és mi cuaderno”, no portunhol7 oficial de nossos diálogos e
6 A iniciativa repercutiu na imprensa local, as reportagens podem ser vistas por meio dos links:
https://folhabv.com.br/noticia/Projeto-ensina-portugues-para-quem-esta-em-situacao-de-refugio-e-
imigracao/31269.
https://folhabv.com.br/noticia/Aulas-de-portugues-sao-oferecidas-a-pessoas-em-condicao-de-
refugio/28943
7 Agora entendo o que Cândido diz sobre a grande questão da sociologia na literatura é quando o fator
social não fornece apenas a matéria para uma criação, mas se torna um elemento que atua na constituição
da obra, determinante para o seu valor estético. A mistura de línguas no diário íntimo de uma migrante
20
que, vez ou outra, aparece também no seu diário. Ali abríamos uma nova página desse
nosso encontro, ali nossa troca cresceu.
pode abrir a porta para várias interpretações, mas sobre isso falaremos com maior ênfase mais pra frente
21
feminização das migrações8, sobre auto percepção, auto representação, sobre violência
de gênero, sobre resistência.
A confiança que Patri depositou em mim ao me presentear com o seu
caderno foi a primeira semente para tatearmos os caminhos sinuosos dessas tantas
fronteiras a serem vividas, transpassadas e resignificadas: da relação de amizade, da
pesquisa, da sororidade entre mulheres, do compartilhamento de mundos que
extrapolam nacionalidades, classe social, ou raça. O convite da presente pesquisa,
portanto, é o de um mergulho no universo íntimo desta mulher, dessa venezuelana em
movimento, por meio da sua escrita, do seu diário. É pensar a feminização das
migrações a partir do subjetivo e entender a narrativa autobiográfica enquanto um ato de
resistência de uma mulher em estado de fronteira.
8
Quando falamos sobre feminização das migrações estamos nos referindo a dois campos de produção de
conhecimento científico: os estudos sobre gênero e os estudos migratórios (DUTRA, 2017).
9 Neste trecho, Patri narra uma conversa com sua irmã de criação na Venezuela dias antes de regressar
para o Brasil pela segunda vez. “Por esse motivo tomei a decisão de voltar ao Brasil e, dessa vez, não sei
até quando fico, ela com rosto de pena e tristeza me disse apenas ‘espero que você se cuide e que fique
bem’, depois disso fomos dormir cada uma em seu quarto. Dias depois eu estava pronta para ir
novamente. Ao chegar no Brasil, a primeira coisa que eu fiz foi procurar onde eu poderia ficar e trabalhar
para poder viver sem preocupação. Um mês depois de trabalhar na rua como garota de programa eu
consegui ganhar um dinheiro e guarda-lo” (tradução livre)
22
O diário de Patri nos fala de sua experiência enquanto mulher sul-
americana, latina, venezuelana mestiça, que cruza sozinha a fronteira rumo ao Brasil
quando a situação econômica e política da Venezuela apresenta uma piora significativa,
levando 4 milhões de pessoas a se deslocarem para outras regiões. Parte da sua narrativa
se passa em seu país natal, na região de Puerto Ordaz, e outra parte em Roraima, este
extremo norte do Brasil que virou a sua casa.
Eu vivo em Roraima, estado de tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela
e Guiana há mais de cinco anos. Essa é a minha segunda experiência mais intensa,
digamos assim, em territórios limites. A primeira que me tocou foi quando viajei de van
pela região entre o México e os Estados Unidos, circulando por terra entre os estados do
Texas e Nuevo León. Dessas duas vivencias digo: só quem vive a fronteira sente na
pele suas contradições. Penso que para poder traduzir minimamente o diário de Patri,
preciso falar um pouco do que entendo aqui sobre fronteira.
Encontrei nos pensamentos de Gloria Anzaldúa (1999), estudiosa norte-
americana de descendência mexicana, feminista e escritora, uma janela de compreensão
para aquilo que eu lia nos diários da Patri e para o que eu presenciei/presencio na pele
durante minhas incursões enquanto mulher caminhando entre as bordas, entre mundos.
Em seu livro autobiográfico Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, apesar dela
falar sobre a sua própria experiência em uma região especifica do mundo, a fronteira
entre o México e os Estados Unidos, Anzaldúa (1999) traz experiências ao nível do
sensível, em um texto que mistura prosa e poesia, que se conectam com mulheres de
outros lugares. Mulheres que assim, como ela, vivem em estado de fronteira.
Borders are set up to define the places that are safe and unsafe, to
distinguish us from them. A border is a dividing line, a narrow strip
along a steep edge. A borderland is a vague and undetermined place
created by the emotional residue of an unnatural boundary. It is in a
constant state of transition. The prohibited and forbidden are its
inhabitants. Los atravesados live here: the squint-eyed, the perverse,
the queer, the troublesome, the mongrel, the mulato, the half-breed,
the half dead/ in short, those who cross over, pass over, or go through
the confines of the “normal”10 (ANZALDÚA, 1999, pg. 25, grifo do
autor)
10
“Fronteiras são configuradas para definir os lugares que são seguros e os não seguros, para distinguir
23
Se pensarmos a fronteira não apenas na sua dimensão física, mas também
sensorial, ela pode ser entendida como um lugar de contradições, onde ódio, raiva e
exploração muitas vezes tornam-se características proeminentes desta paisagem. Apesar
de não confortável, para muitos esse ambiente é o único lar, ressalta Anzaldúa. Segundo
ela, a fronteira entre o México e os Estados Unidos é uma ferida aberta, onde o terceiro
mundo crítica o primeiro e sangra. É a alma de dois mundos se fundindo para formar
um terceiro país, uma cultura de fronteira.
Mesmo quem nunca chegou perto do muro que separa os Estados Unidos
do México consegue imaginar um ambiente tenso, afinal foram várias as notícias e
histórias vindas de uma das fronteiras mais famosas do mundo. Entretanto, alguns
podem se perguntar se não seria exagerada uma comparação com a realidade do Brasil.
Bom, acho que eu também acharia isso até uns anos atrás, quando o fluxo mais intenso
era, inclusive, o de brasileiros indo fazer compras em Santa Elena de Uiaren, cidade
venezuelana de fronteira, ou indo passar as férias na Ilha Margarita, um paraíso no mar
do Caribe facilmente acessível aos roraimenses e amazonenses.
É certo que não temos um muro enorme com fio de alta tensão elétrica e
câmeras de segurança dividindo o Brasil da Venezuela, ou da Guiana. É certo que à
nós, deles. Uma fronteira é uma linha divisória, uma faixa estreita ao longo de uma borda íngreme. Uma
região de fronteira é um lugar vago e indeterminado, criado pelo resíduo emocional de uma fronteira não
natural. É um constante estado de transição. Os proibidos e os esquecidos são os seus habitantes. Los
atravesados vivem aqui, os olhos esbugalhados, os perversos, o queer, o problemático, o mestiço, o
mulato, o meio morto, em resumo, aqueles que atravessam, passam por cima, ou vão pelos confins do
“normal” (tradução minha)
11
Não tente entrar, invasoras serão estupradas, mutiladas, estranguladas, envenenadas, baleadas. Os
únicos habitantes legítimos são aqueles com poder, os brancos, ou aqueles que se aliam aos brancos. A
tensão agarra os habitantes da fronteira como um vírus. Ambivalência e inquietação residem lá e a morte
não lhe é estranha (tradução minha)
24
primeira vista nossas fronteiras parecem porosas e facilmente transponíveis. Mas estes
são apenas os limites físicos, a fronteira cultural, de pertencimento, das relações, do
sensível, essas eu posso dizer que se revelaram para mim de outra maneira desde que o
fluxo de venezuelanos e venezuelanas para o Brasil se intensificou em 2016. E ressalto
que elas “se revelaram”, porque não acredito que elas tenham mudado radicalmente,
mas talvez tenham mostrado algo que sempre existiu e que estava meio maquiado, meio
adormecido.
Quando estes estranhos batem à nossa porta, para fazer uma referência ao
pensamento de Zygmunt Bauman (2017), eles passam a ser personificações do colapso
de uma ordem que perdeu a sua força, eles são os mensageiros de uma má notícia. “Não
se pode deixar de notar que o súbito e copioso aparecimento de estranhos em nossas
ruas não foi causado por nós nem está sob nosso controle. Ninguém nos consultou,
ninguém nos pediu nossa anuência” (BAUMAN, 2017, p. 20). E contra a nossa vontade,
essas pessoas nos lembram a nossa própria vulnerabilidade, as forças globais das quais
não temos controle, misteriosas e intangíveis.
Nos lembram que de repente nossa inflação econômica pode piorar, que
os empregos podem ser poucos para todos nós, que nosso sistema de saúde pode não
funcionar quando a gente mais precisa, ou que os nossos governantes podem tomar
decisões que nos afetam diretamente, só para citar alguns exemplos. Em um lugar como
Roraima, um estado novo e terra de oportunidades para pessoas vindas de todas as
partes do Brasil, os venezuelanos e venezuelanas mostram a “fragilidade do nosso bem-
estar arduamente conquistado”.
Apesar do momento político e econômico complexo no Brasil, com o
impeachment da presidenta Dilma em 2016, vários políticos e empresários presos (e
alguns seletos soltos) em decorrência das operações da Lava Jato, as instabilidades
constitucionais, aumento da inflação, dessa “Democracia em vertigem”, o Brasil ainda
é um país relativamente estável e economicamente atrativo para os nossos vizinhos. São
nessas partes do planeta, portanto, que tanto migrantes econômicos, como refugiados
buscam abrigo. Nesses locais, segundo Bauman (2017), os interesses empresariais dão
as boas-vindas ao influxo de mão de obra barata e de habilidades lucrativamente
promissoras, mas para a maioria das pessoas, já assustadas pela precariedade de sua
condição de vida e a sua própria fragilidade existencial, a chegada dessas pessoas
25
“sinaliza ainda mais competição pelo mercado de trabalho, uma incerteza mais profunda
e chances declinantes de melhoramento” (BAUMAN, 2017, p. 10)
Observando a reação de muitos moradores e moradoras de Roraima,
podemos claramente ver um paralelo no extremo norte do Brasil com o descrito por
Bauman (2017) e Anzaldúa (1999) sobre a situação de migrantes e refugiados na
Europa e nos Estados Unidos, respectivamente. O episódio mais emblemático da tensão
na fronteira brasileira certamente é o dia 18 de agosto de 2018, quando Pacaraima se
transformou em uma zona de conflito após moradores da cidade fronteiriça atearem
fogo nos pertences dos migrantes que estavam nas ruas da pequena, mas nada pacata
cidade. O conflito envolveu ataque com pedras, bombas de gás improvisadas, além da
incineração de barracas e demais pertences dos migrantes e refugiados. O fato ganhou
os noticiários12 internacionais e me lembrou a máxima pontuada por Anzaldúa: não
tente entrar, invasores serão queimados, linchados, encurralados.
Sete meses depois, no dia 11 de março de 2019, após a decisão do
governo venezuelano de fechar o acesso terrestre entre os dois países, um grupo de 60
empresários roraimenses e amazonenses entregou um oficio com abaixo-assinado
pedindo ao presidente venezuelano Nicolás Maduro para abrir a fronteira. Em
reportagem do portal de notícias G1, um empresário declara: “o prejuízo é generalizado.
Hoje, somos 48 sócios e mais ou menos 60 agregados que transportam para a Venezuela
(...) Todos em Pacaraima, no Amazonas e em Roraima estão muito prejudicados com o
fechamento da fronteira”13. Bom, aparentemente os comerciantes enxergam um
benefício na migração, pelo menos os seus bolsos agradecem os novos
consumidores/mão de obra barata.
26
A internet se tornou outro campo de batalha entre brasileiros e
venezuelanos, sendo que a tropa de avatares do lado de cá é infinitamente maior e mais
raivosa. Poderia dar inúmeros exemplos de um número igualmente grande de situações
em que o “pânico moral” reinou no mundo virtual, mas optei por trazer a postagem da
prefeita de Boa Vista, Teresa Surita (MDB), realizada no dia 15 de junho de 2019 sobre
o tema. Em suas redes sociais, a gestora publicou um vídeo onde era possível ver uma
extensa fila de pessoas migrantes e refugiadas esperando por acolhida em Boa Vista.
Abaixo, reproduzo a postagem e apenas alguns comentários ilustrativos, já que foram
mais de 150 comentários no Instagram e 250 no Facebook.
27
Figura 2: Postagem da prefeita de Boa Vista Teresa Surita no Facebook seguido dos comentários mais
relevantes
28
1.2 Roraima no Contexto das Migrações – a Terra Prometida
14
Makunaima é o nome do demiurgo da etnia Macuxi, a mais numerosa do estado de Roraima. No
movimento antropofágico do modernismo brasileiro, Mário de Andrade se apropria deste demiurgo para
criar o seu personagem Macunaíma. O termo é comumente utilizado para se referir à Roraima.
29
(MACAGGI, 2012, p. 46- 47)
15
Filha de pai italiano e mãe brasileira, Nenê Macaggi (1913-2003) nasceu em Paranaguá –PR e mudou-
se para Roraima na década de 1940.
30
2012, p.45). Para mim, este personagem é muito significativo porque traz consigo a
história de milhões de pessoas que, assim como ele, tiveram poucas oportunidades
desde criança e, sendo assim, se viram obrigadas a se movimentar, a caminhar muitas
vezes sozinhas para simplesmente sobreviver. E para além disso, ela traz a marca da
violência de gênero, da quase “assassinadazinha” Ádria, que desde pequena só lhe
restou ser José, como forma, novamente, de sobreviver, de existir.
Quando José Otávio fala sobre o Norte como “terra atrasada”, “vida
parasitária, sem ideais nem patriotismo” (MACAGGI, 2012, p.52), nos leva a refletir
sobre o imaginário amazônico, esse lugar tido como o inferno verde e o mundo perdido.
Se até hoje paira sobre a cabeça de muitas pessoas (brasileiras, ou estrangeiras), uma
imagem exótica sobre a região, imagina como era no começo dos anos 1970, quando o
livro foi publicado pela primeira vez e quando o fluxo migratório para a Amazônia
começou a se intensificar. Na parte intitulada “Livro Quarto” do seu romance, Maccagi
traz para a literatura um pouco da história de ocupação do vale do Rio Branco, desde a
chegada dos colonos portugueses, que foi acontecer apenas 200 anos depois que os
europeus pisaram pela primeira vez em solo brasileiro.
Em 1725 Frei Salvador, monge carmelita, a fim de concentrar os
índios para pacificá-los, fundou a Freguesia de Nossa Senhora do
Carmo do Rio Branco, hoje cidade de Boa Vista, construindo a
Igrejinha local onde se achava agora a Matriz, perto do rio.
Mais tarde, em 1774, Pereira Caldas, Governador do Grão-Pará,
mandou construir, na boca do Itacutu, o Forte de São Joaquim,
ampliando o povoamento do Vale e fazendo expulsar os espanhóis da
região. Depois, em 1766, houve um conflito com os holandeses, sendo
o famoso Ajuricaba, acusado de trair a Pátria.
Em 1789, o Coronel Lobo D’Almada, então Governador da Capitania
de São José do Rio Negro, trouxe as primeiras reses para os lavrados
do Rio Branco, fundando a fazenda de São Bento, no Uraricoera, perto
da embocadura do Itacutu, formador do Rio Branco. (MACAGGI,
2012, p.109)
31
território brasileiro pela Venezuela, bem como barrar os ingleses e holandeses, que
vinham pela Guiana e Suriname.
O projeto de trazer gado para a região do vale do Rio Branco foi uma das
primeiras estratégias que deu certo para fomentar o assentamento e ocupação do
território, já que a maioria dos aldeamentos fracassou após os indígenas se rebelarem
contra a exploração a que eram submetidos. O resultado da desastrosa política de
colonização dos portugueses foi a diminuição das aldeias, com os índios se recusando a
enviar trabalhadores para o Forte São Joaquim.
Freitas reforça que, por conta da dificuldade de comunicação com o
Amazonas, era natural que a proximidade dos indígenas fosse maior com os europeus
do lado da Venezuela e Guiana. Até 1977, a ligação entre Manaus e Boa Vista só
ocorria por via fluvial através do rio Branco que, por conta da seca, se apresentava
navegável apenas de 3 a 4 meses por ano. Para se ter uma ideia, antes do advento do
barco a motor, a comunicação entre as duas cidades era feita por barcos a remo, varejão,
vela, sirga, ou gancho e a aventura durava cerca de três meses16.
Macaggi segue com o histórico de Roraima se referindo às tradicionais
famílias, aos pioneiros que chegaram ao lavrado do extremo norte brasileiro, grande
parte atraída pelo projeto do gado e a facilidade de terras.
16
Com a motorização dos barcos, o mesmo trecho passou a ser percorrido em cinco ou seis dias. A
ligação rodoviária (BR-174) demorou para acontecer, entre idas e vindas, foi apenas em 1980 que se
iniciou o asfaltamento da estrada, que levou ainda mais oito anos para ser concluída, sendo finalizada
apenas em 1997.
32
de Roraima, acabam sendo porta-vozes das aspirações do segmento da sua elite, do
grupo ao qual pertencem. Como bem observa Santos (2016), ao publicarem seus livros,
estes autores “não só trabalhavam as memórias da região do Rio Branco, mas se
colocavam como defensores dos ‘valores locais’ e membros das famílias tradicionais”
(SANTOS, 2016, p.2)
17
“Aimberê Freitas, nasceu às margens do Igarapé do Caxangá, em Boa Vista em 3 de Outubro de 1946.
Seus pais vieram da Paraíba em 1945, no Exército da Borracha”. O trecho de apresentação do
memorialista foi retirado da orelha de seu livro, “Geografia e História de Roraima”. O destaque para a
paisagem do igarapé mostra a importância da valorização das coisas da terra.
33
civil contra um militar. Venceu o militar. Mas para o destino do Território tanto fazia
um quanto o outro, afinal, os dois eram estranhos ao Território e às suas tradições”
(FREITAS, 1996, p.84). Filho da terra, Freitas se lamenta porque as forças políticas
locais deixaram “pessoas de fora” chegarem para governar o Território.
Já que todos, exceto os indígenas que já estavam estabelecidos antes da
chegada dos portugueses, vieram de outros estados para Roraima, fica claro que o que
vale é a lógica de quem chega primeiro. Quem foi mais rápido (pioneiro), seria, por
justiça/mérito, mais dono dessas terras do que os que chegaram depois. Isso pode
explicar a reação local quando houve um boom migratório nordestino para Roraima. Os
medos e as críticas eram, inclusive, muito parecidos com o que podemos observar hoje
com relação aos migrantes e refugiados venezuelanos.
34
desbravadores, em pequenos agrupamentos perdidos na distância, cuja
unidade, por terra, era o quilômetro e por água, o dia, foram-se
radicando parcialmente à gleba. Porém, jamais conseguiram
conquistá-la inteiramente! (MACAGGI, 2012, p.53)
35
XII. doação de um conjunto mecanizado para beneficiamento da mandioca;
XIII. doação de 30 mil cruzeiros por colono, pelo prazo de 6 meses, após sua
chegada a título de auxilio alimentação
O autor não deixa muito claro a fonte histórica de onde retirou a lista,
mas é de conhecimento geral os incentivos que os governantes da época distribuíam
para facilitar a ocupação do norte do Brasil. A influência dos governadores com certeza
foi determinante neste processo, se levarmos em conta que dos 15 primeiros
governadores de Roraima, 60% eram nordestinos, fica explicado o porquê da
predileção. As migrações nesta época, portanto, obedeciam às levas: houve a época dos
paraibanos, dos piauienses, dos cearenses, dos pernambucanos, mas os maranhenses
foram sem dúvida os recordistas.
A maior explosão demográfica, entretanto, ocorreu nas décadas de 80/90,
período que marca a abertura dos garimpos de ouro na região das Surucucus, na atual
Terra Indígena Yanomami, fato que incentivou a vinda de um número expressivo de
garimpeiros, muitos deles sem a família. “Isto fez com que, no censo de 1991, Roraima
tenha sido a única unidade da Federação a apresentar, em sua população, mais homens
que mulheres: 120.197 (homens) e 97.386 (mulheres)” (FREITAS, 1996, p.37). A
presença predominantemente masculina, em uma atividade de exploração como é o
garimpo diz muito sobre a configuração social e as problemáticas de gênero, ainda mais
quando levamos em consideração os relatos de prostituição e violência nas áreas
garimpeiras. Abaixo segue a tabela apresentada pelo pesquisador evidenciando os saltos
populacionais desde 1940.
36
1993 241.009 Estimativa
1994 253.059 Estimativa
1995 262.200 Estimativa
Segundo Freitas (1996), estima-se que cerca de 65% dos migrantes que
chegaram em Roraima na década de 1980 eram oriundos do Maranhão. (FREITAS,
1996, p.107). Assim como acontece hoje com os venezuelanos e venezuelanas, as
pessoas que chegavam do Maranhão em grande número entre os anos 1980 e 1990
sofreram preconceito e resistência por parte dos pioneiros, das famílias tradicionais e
das pessoas que já estavam melhor estabelecidas e gozavam de poder e prestígio.
“Comumente os noticiários locais registram discussões, brigas que – em alguns casos –
culminaram com mortes, em razão de piadas, chacotas ou ofensas outras, cujo teor tinha
como objetivo ridicularizar o maranhense ou alguém a ele assemelhado” (DE
OLIVEIRA, 2012, pg.176). A autora ressalta ainda que expressões como “Tu é do
Maranhão?” ou “Só pode ser maranhense!”, tornaram-se comuns e eram usadas como
crítica.
Sobre o perfil socioeconômico da população, os resultados do Censo de
1991 mostraram que, do total de pessoas que viviam em Roraima naquela época, cerca
de 27,07% não sabiam ler, nem escrever. A renda per capita caracterizava-se como
baixa. A análise do quadro de rendimentos apresentado pelo chefe de família indica que
50,99% da população ganhava entre 1 salário mínimo (R$ 100,00) e 5 salários (R$
500,00), enquanto que 31,15% ou não possuíam rendimentos, ou ganhavam até 1 salário
mínimo. Ou seja, 82,14% da população ganhava menos que R$ 500 mensais. Freitas
(1996) acrescenta ainda que “as residências em Roraima apresentam-se, em sua maioria,
muito simples e oferecendo pouco ou insuficiente conforto aos seus moradores”
(FREITAS, 1996, p.63)
Creio ser importante retomar este histórico da migração para Roraima
para compreendermos as dinâmicas socioculturais dos dias de hoje. Olhando para o
passado, podemos ver que a década de 1980 e os primeiros anos de 1990 foram
marcantes para história do estado, face ao grande contingente de pessoas que migraram,
alguns atraídos pela corrida do ouro, vendo em Roraima o “novo” Eldorado e outros na
37
busca da possibilidade “real” de possuir um pedaço de terra, por meio dos
assentamentos dirigidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA. )
A grande diferença é que, neste período, os governantes queriam os
migrantes. Não só para ocupar o espaço, mas porque em 1988 o então Território de
Federal de Roraima passou a ser Estado com a promulgação da Constituição Federal.
Dessa forma, o governador deixava de ser escolhido pelo presidente da república e
precisaria ser eleito diretamente pela população. Nada seria mais oportuno do que um
curral eleitoral, de preferência formado pelos conterrâneos. O primeiro governador
eleito foi o pernambucano Ottomar de Sousa Pinto, conhecido por incentivar e facilitar
a migração nordestina para Roraima.
Até o período mais recente, com a chegada dos venezuelanos nos últimos
três anos, com certeza os nordestinos representavam o grupo com maior número de
migrantes que se deslocaram em “leva”, causando impactos locais e influenciando a
cultura regional. Encerro esta parte da pesquisa com os versos de Eliakin Rufino, poeta
roraimense e um dos integrantes do movimento Roraimeira, expressão cultural
amazônica considerada como um dos máximos expoentes da construção identitária da
região.
Neto do Nordeste
Eliakin Rufino18
Eu tenho um pé no ceará
O meu avô era de lá
Eu tenho um pé no maranhão
Eu tenho mais eu tenho a mão
Eu tenho um pé no piauí
Rio grande do norte passa por aqui
18
Eliakin Rufino é poeta, músico, filósofo roraimense e neto de cearense.
38
Eu tenho um pé em pernambuco
Tenho uma perna no setão
Eliakin Rufino, ele que é neto de cearenses, ao cantar e versar sobre as riquezas
naturais e culturais de Roraima, homenageia não somente os seus antepassados
nordestinos, mas os de tantos outros roraimenses cujas famílias migraram em busca de
oportunidades. Me pego agora ansiosa por novos versos de Eliakin, ou pela poesia que
ainda está por vir, criada por uma nova geração de mestiços, dos filhos e netos da
Venezuela em solo brasileiro, que cantarão a nossa história na entoada do “portunhol”.
39
A capital de Roraima, organizada, de ruas largas e praças
impecavelmente floridas, me lembravam mais Brasília, lugar em que cresci, do que uma
ideia de cidade amazônica que tinha em minha cabeça. O lavrado, vegetação típica
local, também se parecia muito mais com o cerrado do que com o imaginário de
Amazônia e suas florestas. Aos poucos, fui desvendando aquele novo lugar para mim.
Eu, mulher e migrante no meu próprio país, fui significando o novo espaço, conhecendo
minhas novas fronteiras.
Nos primeiros anos, me dediquei a cruzar linhas, fui várias vezes à
cidade de Santa Elena de Uiarén, na Venezuela. Gostava de ir às cachoeiras da Gran
Sabana, região que mais uma vez era muito familiar para mim. Parecia com a Chapada
dos Veadeiros. O destino se tornava ainda mais interessante quando chegava nos
mercados chineses da cidade e encontrava vinhos muito mais baratos do que em Boa
Vista. Gostava de comprar queijos, embutidos, e o famoso Pirulin, um biscoito em
formato de canudinho recheado de creme de avelã que é uma verdadeira febre entre os
roraimenses.
Mas me impressionava mesmo era a quantidade de brasileiros e
brasileiras na cidade. Escutava português por todos os lados, principalmente nas lojas.
Por conta dos preços muito mais baixos, era comum fazer as compras de mês no país
vizinho. Lembro do quanto meus colegas de trabalho falavam que o sabão em pó
venezuelano era de qualidade muito superior aos brasileiros: não mancha a roupa, deixa
mais cheirosa e é muito mais barato! Cachoeiras, mercado em conta e gasolina de
graça19! Venezuela era com certeza o melhor destino de final de semana.
Foi coisa de dois anos para o cenário começar a mudar. A partir de 2016,
o idioma espanhol tomou conta dos supermercados e das praças de Boa Vista. Eu e
meus colegas de trabalho já não íamos com tanta frequência a Santa Elena. A inflação
no país vizinho só aumentava20 e os mercados já começavam a não ter tanta opção.
19 A Venezuela tem a gasolina mais barata do mundo, apenas US$ 0,01 por litro. Encher o tanque sai
menos que R$ 2,00. Para turista, entretanto, o valor é um pouco diferente, mas mesmo assim muito mais
barato do que no Brasil. Matéria completa disponível no site do Uol Economia, pelo link:
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/05/25/preco-gasolina-brasil-alto-mundo.htm
20 Segundo o anunciado pela Assembleia Nacional da Venezuela no dia 10 de dezembro de 2018, os
preços ao consumidor no país subiram 1,3 milhão por cento em 12 meses.
40
Enquanto a quantidade de brasileiros ia diminuindo em progressão aritmética do lado de
lá, a de venezuelanos em Roraima estava mais próxima de uma progressão geométrica.
Essa percepção ganha corpo quando olhamos para as estatísticas da
Polícia Federal. De janeiro de 2017 até maio de 2018, entraram no Brasil pela fronteira
com Roraima 111,581 mil venezuelanos, e saíram do país 60,601 mil. Fazendo os
cálculos, 50,908 mil permaneceram. A média diária é de 500 venezuelanos e
venezuelanas entrando por dia. Roraima é o estado com o maior número de migrantes e
refugiados no Brasil. Segundo levantamento da Prefeitura de Boa Vista realizado em
junho de 2018, cerca de 25 mil estão na capital, sendo que as mulheres representam
cerca de 40% do total.
As várias pesquisas realizadas com os migrantes que aqui chegam, bem
como reportagens publicadas em jornais nacionais e internacionais, apontam uma
sucessão de violação de direitos fundamentais que acabaram por impulsionar o êxodo
venezuelano. A falta de alimentos, remédios, a precariedade do atendimento de saúde e
o crescimento da violência são citados como principais motivos. O poder de compra da
população foi diminuindo drasticamente com a hiperinflação.
De acordo com o Relatório 2017/2018 da Anistia Internacional, a cesta
básica para uma família de cinco pessoas custava 60 vezes mais do que o salário
mínimo em dezembro de 2017 (ANISTIA INTERNACIONAL, 2018, p. 252). Abaixo,
apresento um trecho do diário de Patri em que ela relata a conversa que teve com sua
irmã durante os dias que esteve visitando a família na Venezuela. A partir de um sonho
descrito em seu caderno, Patri nos convida a pensar como o desabastecimento
influenciou não só a saúde física, mas o bem-estar emocional da população, servindo
como um estopim para a migração.
41
no supe que hacer o que decir, me llene de angustia por ella, le
pregunte que estaba pasando y con la voz llena de miedo me conto
que en las noches el gobierno salía a las calle a matar a quien se
encontrase en la calle, que era imposible hablar mal del gobierno,
que la mayor parte del país se estaban muriendo de hambre y falta de
atención medica y que ni la radio la podían escuchar. (PATRI, 2017,
p.36-37)
Patri acrescenta que sua irmã escutou calada o seu relato. Quando
terminou, ao ver o rosto de preocupação da irmã, ela decide lhe contar que vai regressar
ao Brasil, pois sente medo que o seu sonho seja mais que um sonho e se torne realidade.
Faço um paralelo deste trecho do diário com o que se refere a pesquisadora Morelia
Morillo Ramos (2019) à “diáspora tricolor”21, com 4 milhões de venezuelanos
atualmente residindo fora do país22. Além de impressionar pelas cifras, essa dinâmica
migratória chama a atenção por ser incomum, pois rompe com a tradição da Venezuela
de país receptor de migrantes para país emissor. De país que abriu as portas para os
europeus fugidos das guerras, dos latino americanos escapando às ditaduras/ conflitos
armados e de pessoas de várias partes do mundo atraídas pela prosperidade do petróleo,
para país que agora tenta fechar suas portas para frear uma saída em massa de sua
população. Lembrei-me de Galeano (2004) quando disse que a riqueza natural da
Venezuela e outros países latino-americanos com petróleo no subsolo tornou-se o
principal instrumento de sua servidão política e de sua degradação social.
21 A autora resgata a imagem que se tornou comum para os roraimenses dos venezuelanos chegando com
a mochila amarela, azul e vermelha - cores da bandeira venezuelana - nas costas. Nessas mochilas,
entregues anualmente pelo governo venezuelano aos estudantes das escolas públicas, “os migrantes levam
o elementar para a sua nova vida” (RAMOS, 2019, p.20)
22 Dados da Organização Internacional para Migrações (OIM) mostram que o número de nacionais
venezuelanos no exterior subiu de 700.000 para mais de 1.600.000 entre 2015 e 2017, sendo Colômbia,
Estados Unidos e Espanha os principais destinos (OIM, 2018, p.2). Dados ainda mais recentes divulgados
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), dão conta de 4 milhões de
venezuelanos que já saíram do país. O Brasil é a quinta nação que mais recebeu refugiados: são 168 mil, o
que equivale a 4,2% do total. A projeção é que até o final de 2019 sejam 5 milhões de venezuelanos fora
do país, podendo chegar a 8 milhões em 2020.
42
uísque escocês. As reservas de petróleo, gás e ferro que seu subsolo
oferece à exploração imediata poderiam multiplicar por dez a riqueza
de cada um dos venezuelanos; em suas vastas terras virgens poderia
caber, inteira, a população da Alemanha ou da Inglaterra.
(GALEANO, 2004, p.180)
23 O valor do barril de petróleo venezuelano girava em torno de US$ 44,65 por barril, tendo atingido US$
35,15 em 2015. Isso em uma economia com inflação de 64,7% em 2014; 180,9% em 2015 e 274% em
2016, de acordo com informações retiradas do site do Banco Central da Venezuela, disponível no sítio:
www.bcv.org.ve Acesso em 30 de junho de 2019.
43
estão sempre presentes onde tem crise econômica, social e deslocamento forçado de
pessoas.
Vou me focar em tentar fazer um breve resumo do momento em que a
Venezuela passou a ser um país emissor de migrantes. De acordo com Ramos (2019), a
saída da população de média e alta classe começou em 1998 e se intensificou em 1999,
com a eleição à presidência de Hugo Chávez. Ela faz um apanhado desse histórico e cita
os estudos de Inês Guardia, que leva em consideração o aumento de 42 mil
venezuelanos vivendo nos Estados Unidos em 1990 para 107 mil no ano 2000; e 130
mil em terras norte-americanas no ano de 2005.
44
nacionais da Venezuela, portanto, a migração deixa de ser uma estratégia para melhorar
de vida e passa a ser uma estratégia de sobrevivência.
Em 2017, o Conselho Nacional de Imigração (CNIg), com apoio do
ACNUR e Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), publicou um estudo
sobre o perfil sociodemográfico e laboral dos imigrantes venezuelanos em Roraima.
Neste primeiro momento do fluxo migratório para o Brasil, a maioria das pessoas eram
homens (63%) e jovens (72% do total tinham entre 20 e 39 anos). De acordo com o
levantamento, a maioria dos migrantes veio de ônibus para o Brasil e levou uma média
de 1 a 2 dias para chegar em Pacaraima, no lado brasileiro da fronteira. 78% dos
migrantes tinham nível médio completo e 32% possuíam superior completo, ou pós-
graduação. Também percebeu-se um grande número de migrantes pendulares, seja pela
proximidade com a fronteira, seja pela necessidade de retornar para levar alimentos,
medicamentos e visitar parentes (SIMÕES, 2017)
No levantamento mais recente da OIM, realizado em outubro de 2018,
houve algumas mudanças no perfil desses migrantes que aqui chegam, apontando para
uma diminuição do grau de escolaridade (agora cerca de 15% possui superior completo
e 61% possui nível médio completo) e para o aumento da migração em família. A
pesquisa também mostrou que a maior parte dos entrevistados (59%) estavam
desempregados no Brasil.
A percepção atual é de que os migrantes que chegam desde o final de
2018 em Roraima são mais vulneráveis do que os que chegaram há três, quatro anos.
Eles acabam necessitando, portanto, de mais auxílios e demandam os serviços de
proteção e assistência social. O fluxo cada vez mais intenso de migrantes despertou
novamente em terras roraimenses o sentimento de “invasão” e intolerância outrora
vividos pelos maranhenses e nordestinos. A diferença, entretanto, é que ninguém
“convidou” os venezuelanos, os políticos locais em momento algum se empenharam em
campanhas para incentivar a vinda dos vizinhos latinos, como aconteceu com os
nordestinos até o final dos anos 1990. Aliás, muito pelo contrário.
Em junho de 2019, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da
Assembleia Legislativa de Roraima divulgou um relatório sobre os impactos da
migração venezuelana no estado. Tal documento é a imagem de um cenário de “pânico”
criado pelos políticos locais.
45
É bem verdade que nem todos ficam no Estado, contudo, é possível
afirmar que uma minoria apenas passa pelo processo de interiorização,
e Roraima abarca a maior parte dos Venezuelanos. Essa maioria que
aqui permanece causa impactos que se não forem remediados em
tempo pelo Governo Federal, transformará Roraima, em pouquíssimo
tempo, no pior Estado do Brasil em todos os aspectos, especialmente
na segurança e saúde.( FERREIRA, 2019, p. A4).
46
mas também pela grande extensão territorial e baixa densidade demográfica25. Além
disso ambos viveram processos de expansão da fronteira econômica de seus países,
“cujos programas oficiais de exploração de recursos naturais enfatizavam o caráter de
‘espaços vazios’, culminando com políticas de ocupação baseadas no conceito de
desenvolvimento vinculado à doutrina de Segurança Nacional” (RODRIGUES, 2006,
p.199).
Sendo assim, ambas regiões sempre foram e continuando sendo palcos de
constantes conflitos entre indígenas, garimpeiros, madeireiros, militares, fazendeiros e
políticos locais que disputam o controle dos recursos naturais e o direito à terra. Me
arrisco a dizer que Roraima ainda é um outro país dentro do Brasil. Assim como talvez
seja o Estado de Bolívar para a Venezuela. E essas pessoas que agora se juntam em
Roraima reconfiguram o cenário “da fome, com a vontade de comer”, em que aqueles
que buscam as terras ainda passíveis de serem exploradas e conquistadas encontram
pessoas à margem, em um desconcertante estado de fronteira. Nordestinos e
nordestinas; indígenas; venezuelanos e venezuelanas, mulheres do garimpo,
garimpeiros, fazendeiros, políticos, militares, concursados federais, comerciantes, todos
e todas tentando conquistar este território limite, esta última fronteira da existência. A
convergência, nesse contexto, cria uma cultura de choque, um terceiro país, um “país
fechado”, como descreve Anzaldúa (1999).
25
O Estado Bolívar possui uma área territorial de 238 mil quilômetros, e o Estado de Roraima, 225.116
quilômetros, representando 26,24% e 2,64% do território nacional, com densidade demográfica de 5,15%
e 0,19%, respectivamente. O Estado Bolívar possui onze municípios e o o Estado de Roraima quinze.
26
“Essa é a sua casa, essa ponta fina de arame farpado” (tradução nossa)
47
Se nos anos 1970, época em que Macaggi escreveu seu romance, a
estrutura social de Roraima estava marcada pelos migrantes, a maioria do interior do
Amazonas e Nordeste, que chegaram ainda nos anos 1920 em busca dos diamantes da
Serra do Tepequém, atualmente não há dúvidas que a migração venezuelana reconfigura
as relações em Roraima, ainda mais por se tratar de um fluxo proporcionalmente grande
para um estado pequeno. Entretanto, me arrisco a dizer que a mulher nordestina, a
amazonense e a venezuelana guardam uma proximidade, apesar de toda a distância
cultural. “As a refugee, she leaves the familiar and safe homeground to ventre into
unknown and possibly dangerous terrain”27 ( ANZALDÚA, 1999, p.35)
O simples fato de serem mulheres as coloca na mesma posição na
arquitetura da migração: trabalho doméstico, abuso e exploração sexual, informalidade
do trabalho, remuneração inferior à dos homens, violência. Seria trágico por si só se
essa realidade fosse exclusiva de contextos migratórios. O que arremata a dor que só
uma mulher28 pode sentir é constatar, como alerta Zygmunt Bauman, que esses e essas
nômades nos lembram “de modo irritante, exasperante e aterrador, a (incurável?)
vulnerabilidade da nossa própria posição” (BAUMAN, 2017). A bem da verdade, elas
são o reflexo de nossa sociedade, o espelho que reflete os nossos próprios problemas.
Elas somos nós. São as milhões de brasileiras que também sofrem violência, machismo,
e com as estruturas do patriarcado.
Com 515 mil habitantes, Roraima tem a maior taxa de homicídios contra
a mulher, segundo o Atlas da Violência 2017. A publicação, organizada pelo Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) é uma coletânea dos dados oficias mais atuais sobre segurança pública. Segundo
o documento, as taxas de homicídio de mulheres no estado cresceram 139% entre 2010
e 2015. Os dados são alarmantes: 11,4 mortes para cada 100 mil mulheres em 2015, a
27
Como refugiada, a mulher deixa seu terreno familiar e seguro para se aventurar em terrenos
desconhecidos e possivelmente perigosos (tradução minha)
28
Aqui prefiro levar em consideração uma identidade de gênero, consciente de que mulheres trans e
população LGBTI também sofrem exclusão e marginalização social.
48
média nacional é de 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres. A taxa é uma das mais
elevadas no mundo, de acordo com a organização Human Rights Watch (IPEA, 2017)
Voltando ao paralelo com Nenê Macaggi, historicamente, o garimpo é
um espaço social de conflito. Espaço clandestino, da disputa, do poder. Sem entrar em
na trincheira teórica travada entre as feministas abolicionistas e as regulamentaristas29
sobre a prostituição, é fato que as ruas também se expressam muitas vezes como um
local de violência, simbólica e física. Como fica então essa relação da mulher
venezuelana que agora chega no Brasil e, assim como Patri, acaba entrando no mundo
do “sexo para sobrevivência”30? Me questiono como este período vai se fundir à
literatura, história, produção acadêmica e estrutura social neste território limite. O novo
ciclo migratório em Roraima já deixa as suas marcas e essas histórias estão sendo
contadas, estão sendo testemunhadas pelas mulheres.
Hablo con las chicas me cuentan su vida solos escucho y pienso que
será si la situación de nuestro país fuera otra.
En fin esta es sin duda una experiencia totalmente inolvidable. Juro
que mi miente jamás olvidará nada por mas deseo que tenga de
hacerlo.
Aun no estando en mi país veo constantemente por las calles personas
con sus caras llenas de tristeza y angustias, basta pasar por un
semáforo y darte 2 minutos de tu vida para que veas aquella mujer
con bebe en brazos pidiendo ayuda sea laboral o con algunas
monedas (PATRI, 2018, p.8)
29
O movimento abolicionista considera a prostituição como uma escravatura dos corpos, colocando a
prostituta na situação de vítima que deve ser incentivada a deixar a atividade, ao invés de ser punida. Já as
regulamentaristas partem do suposto de que, se não se pode erradicar a prostituição, é preciso limitar os
danos sociais estabelecendo regras, a tornando uma profissão regulamentada.
30
Como explica J M Greene, S T Ennett e C L Ringwalt (2011), o termo vem da expressão em inglês
“survival sex” e se refere à situação em que a prostituição não é uma escolha, se não um atividade
realizada por extrema necessidade, como forma de conseguir necessidades básicas de subsistência. Está
relacionada a situações de vulnerabilidade social, sendo bastante presente na literatura de estudos de
mulheres migrantes.
49
academia, portanto, é também juntar-se aos esforços das feministas que, desde os anos
1970, desafiam os processos que invisibilizavam as mulheres nas ciências sociais.
Como ressalta a pesquisadora Elena Fiddian-Qasmiyeh (2014) em seu artigo Gender
and Forced Migration, mesmo quando as mulheres eram reconhecidas como membros
dos sistemas sociopolíticos em análise, existiam algumas barreiras conceituais e
metodológicas para a sua inclusão significativa nos estudos.
Por exemplo, ainda que houvessem um número grande de informações
sobre elas, frequentemente essas informações eram adquiridas por meio de perguntas
feitas aos homens sobre suas esposas, filhas e irmãs e não de relatos dados por elas
próprias. Dessa forma, a informação do homem é muitas vezes apresentada como a
realidade do grupo e não apenas como uma parte de um todo cultural. É comum que as
mulheres e seus papéis sejam encobertos, sub-analisados, ou ausente do todo, ficando
nas arestas, nas abas da descrição dos fatos sociais.
As feministas começaram então a advogar e a colocar as mulheres no
centro da pesquisa, como sujeito da investigação e como agentes ativos na coleta de
informações. Com isso, as experiências das mulheres foram se tornando visíveis e
revelando os preconceitos sexistas e as suposições tacitamente masculinas do
conhecimento tradicional. “Com o surgimento do campo interdisciplinar de estudos
sobre refúgio e deslocamentos forçados no começo dos anos 1980, vários acadêmicos
da área já estavam atentos às extensas críticas de mais de uma década das feministas
sobre o lugar da mulher nas ciências sociais” (FIDDIAN-QASMIYEH, 2014, p.313
tradução nossa). Entretanto, em um primeiro momento, os pesquisadores das migrações
forçadas identificavam as mulheres refugiadas como apolíticas e vítimas passivas,
colocando-as sempre na mesma categoria que as crianças, ambas enfraquecidas,
dependentes e vulneráveis.
Embora cada vez mais os estudos reconheçam que as experiências
femininas diferem das masculinas no processo de deslocamento forçado,
50
Fazendo brevemente um compilado sobre o tema, quando falamos sobre
feminização das migrações estamos nos referindo a dois campos de produção científica:
os estudos sobre gênero e os estudos migratórios (DUTRA, 2017, p.325). O termo
marca uma mudança nas análises sobre migrações nas últimas décadas do século XX,
período que começa a olhar com mais atenção para esse sujeito antes invisível, engolido
pelo “neutro” masculino, considerado legítimo para se referir a todos os migrantes. A
partir deste momento, surgem três principais correntes de interpretação: 1) feminização
como aumento numérico de mulheres migrantes; 2) como inclusão do enfoque de
gênero enquanto critério analítico e; 3) como transformação do perfil da mulher
migrante (DUTRA, 2017, p.326)
Ao estudar o deslocamento de mulheres na Amazônia, a pesquisadora
Márcia Maria de Oliveira (2014) faz um compilado das abordagens conceituais da
feminização enquanto categoria analítica importante nos estudos de gênero e nas teorias
migratórias. Ela reforça que, do ponto de vista qualitativo, o termo indica que a mulher
passou a ganhar maior evidência nas dinâmicas migratórias, não significando,
entretanto, que elas não migravam antes, mas que passaram a ser contabilizadas e
mensuradas pelos indicadores. Já do ponto de vista conceitual, a feminização pode
indicar um aumento do peso relativo do sexo feminino na composição de uma categoria
social, evidenciando as desigualdades de direitos entre homens e mulheres. Neste ponto,
a autora utiliza o exemplo da feminização da pobreza, que representa a ideia de que “as
mulheres vêm se tornando, ao longo do tempo, mais pobres que os homens”
(NOVELLINO, 2004, p. 76 apud OLIVEIRA, 2014, p. 167)
Enquanto conceito analítico, ele também é utilizado nas relações de
trabalho, para justificar a precariedade e para marcar a diferença das tarefas qualificadas
das não qualificadas. Para Comanne e Toussaint (1998, p.6) “a opressão das mulheres é
para os capitalistas um instrumento que permite gerir o conjunto da força de trabalho”.
Nesse sentido, a feminização do trabalho está diretamente relacionada à condição de
pobreza de boa parte das mulheres trabalhadoras. É como se então a feminização das
migrações fosse o somatório de todas essas situações. O resultado de enxergar as
mulheres na dinâmica do deslocamento e observar a mudança dos seus papéis sociais
neste contexto, onde elas passam a ocupar novos postos de trabalho em novos setores da
sociedade, principalmente em atividades informais e de tempo parcial, como “o trabalho
51
temporário na agricultura, a prestação de serviços sexuais e o trabalho na área dos
cuidados aos idosos e crianças” (OLIVEIRA, 2014, p. 168).
De acordo com o Relatório Domestic workers across the world: Global
and regional statistics and the extent of legal protection da Organização Internacional
do Trabalho, publicado em 2013, das mais de 52 milhões de pessoas no mundo que
estão no trabalho doméstico, 83% são mulheres e mais de 1/3 delas são migrantes (ILO,
2013, p.21). O documento reforça que, apesar de representar uma valiosa porta de
entrada para o mercado de trabalho para as mulheres, a desvantagem são as más
condições deste setor e a falta de proteção, que afeta desproporcionalmente as mulheres.
Além do trabalho doméstico, as mulheres migrantes também costumam se inserir nos
serviços de prestação de cuidados nos chamados setores invisíveis, onde muitas vezes
não estão protegidas pela legislação trabalhista no país de destino” (ILO, 2013). Este
torna-se, por consequência, um terreno favorável para exploração e abusos.
Creio que talvez uma das campeãs na matéria de exploração, abuso e
violência seja a indústria internacional do sexo que, assim como reforça Matei (2011), é
uma importante variável para compreender a feminização da migração, tendo em vista
que “a indústria do sexo promove e controla os lucros gerados pela exploração da
prostituição que ainda representa cerca de 68% dos produtos em circulação na referida
indústria, onde 83% das prostitutas são migrantes” (MATEI, 2011, p.25 apud
OLIVEIRA, 2014, p.188)
No caso específico da Amazônia, a história da migração de mulheres
para a região já carregava na memória as marcas do trabalho sexual muito antes da
chegada das “ochentas”31, apelido pelo qual as prostitutas venezuelanas são
preconceituosamente chamadas pela população local. Durante o ciclo da borracha, essa
dinâmica ficou evidente. Entre 1860 e 1910, mais de trezentos mil trabalhadores foram
recrutados do nordeste do Brasil para trabalhar nos seringais em regime de
confinamento, análogo à escravidão. Em um primeiro momento, recrutou-se os homens
e, em seguida, “começou o aliciamento de mulheres, que eram recrutadas em outras
31
O apelido se origina do valor comumente cobrado por programa falado em espanhol (R$ 80,00 –
oitenta reais)
52
regiões e submetidas à condição de prostituição com a finalidade de conter as tensões e
conflitos entre trabalhadores e patrões no interior dos seringais” (LOUREIRO, 1982
apud OLIVEIRA, 2014, p. 213).
De acordo com Oliveira (2014), a prática de captura de mulheres
indígenas também foi naturalizada no período, pois, enquanto selvagens, eram objetos
sem dono, achadas na floresta e, portanto, passíveis de serem exploradas. Tal prática,
entretanto, permaneceu no imaginário popular da região e contribuiu para a construção
do estereótipo da “permissividade à prostituição”. Diria que mais do que isso, talvez
tenha naturalizado à violência sexual e física contra as mulheres, que apesar de estarem
intimamente ligadas à prostituição, são duas coisas diferentes. Este pode ser um fator
que nos explique, por exemplo, o porquê das altas taxas de violência contra a mulher na
região amazônica.
Durante o levantamento realizado em diversas cidades do Norte, como
Rio Branco (AC), Tabatinga (AM) e Manaus (AM), Oliveira (2014) coletou relatos de
inserção no mercado do sexo por migrantes vindas de outros países, como a peruana
Gizela, de 19 anos, que deixou uma carta agradecendo a equipe da Pastoral em
Tabatinga pela acolhida, mas informando que estava indo para o Suriname para
trabalhar como prostituta no garimpo. Ou como Carla, também de 19 anos, migrante de
Borba, que contou para a pesquisadora sua trajetória chegando em Manaus: ela chegou
para morar com a tia, procurou trabalho, mas não conseguiu. Foi quando decidiu
trabalhar em uma boate como garota de programa (OLIVEIRA, 2014, p.217).
Em Roraima a lógica não é diferente desta dinâmica mundial da divisão
do trabalho para as mulheres migrantes. Com o aumento do fluxo de venezuelanos e
venezuelanas para o Brasil, cresceu também a prostituição. As mulheres se
concentraram em uma zona já ocupada anteriormente pelas trabalhadoras sexuais
brasileiras, causando, inclusive, disputa pelo território. São nas esquinas do bairro
Caimbé, próximo ao terminal rodoviário, que elas se concentram. Seus corpos são
públicos, expostos nas ruas. Elas não contam como uma casa de shows, cortiço, ou
qualquer pousada como referência, ou local de trabalho. De acordo com o que elas me
relataram, é cada uma por si, elas entram no carro do cliente e vão para onde eles
desejam levá-las. Algumas tentam fazer um grupo de apoio e compartilham as placas
dos carros como segurança. A falta de um estabelecimento comercial de referência,
53
entretanto, não quer dizer que não exista uma rede por trás. Muitas têm que pagar um
valor para homens que circulam pela área de moto dizendo que brindam proteção para
elas. Outra forma de lucro em cima das garotas de programa está nos preços abusivos
cobrados nos alugueis dos apartamentos em que elas se concentram. Às vezes um
mesmo quarto é compartilhado por até oito mulheres.
Na ocasião em que fui conversar com algumas delas, em uma
aproximação realizada informalmente nos bares, ruas e esquinas do bairro, a maioria me
relatou que não trabalhava com sexo na Venezuela. Muitas vinham sozinhas para o
Brasil, permaneciam de dois a três meses em Boa Vista, pela proximidade com a
fronteira, e voltavam para o seu país para levar dinheiro à família. Não foram raras as
vezes que ouvi que elas tinham deixado seus filhos e filhas na Venezuela e que suas
famílias não sabiam a verdadeira fonte de renda durante a permanência no Brasil.
Quando perguntei por curiosidade se elas tinham conhecimento sobre prostituição de
homens venezuelanos, elas me disseram que existia, mas que normalmente eles não
estavam nas ruas, combinavam o programa por meio de um aplicativo, ou sites. Ou seja,
existe uma diferença entre o corpo público da mulher e a privacidade do homem.
Neste trecho, Patri me fez relembrar a máxima de Karl Marx que marca
um dos pilares da economia, de que a quantidade da demanda determina a intensidade
da oferta e a manutenção da indústria em funcionamento. Ou seja, como diz, Patri, só
existem essas mulheres, as prostitutas venezuelanas, porque existe cliente para elas. A
mulher trabalhadora sexual ali se torna uma mercadoria que é, “antes de mais nada, um
objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas,
seja qual fora a natureza, a origem delas, provenham do estômago, ou da fantasia”
(MARX, 2008, p. 57).
54
Em seu diário, são várias as vezes que Patri reflete sobre a sua situação
como garota de programa. Em um dos trechos ela fala que não é segredo para ninguém
que a vê na rua a sua profissão. Quem passa por lá sabe o que ela está fazendo. E quem
quer o seu corpo, paga. “Pero aquel hombre, quien es? Que busca, que lo motiva? Se
supone que aquel hombre quizás tiene una vida mucho mejor que la que mi rodea”
(PATRI, 2018, p.6). Ela questiona, portanto, uma sociedade que a julga, mas que, no
fim, a quer consumir. Essa reflexão dialoga muito com uma charge publicada no jornal
local Roraima em Tempo logo depois do ocorrido em Pacaraima no dia 18 de agosto de
2018, quando a população ateou fogo nos pertences dos migrantes, levando vários a
fugirem e retornarem para Santa Elena, cidade venezuelana do outro lado da fronteira.
Figura 3: Charge publicada no jornal local Roraima em Tempo, um dia depois do conflito em Pacaraima
55
2. Escrevo, logo existo
32
A proposta de escrever este capítulo em forma de diário é revelar na estética e na metodologia da
presente dissertação, o processo da pesquisa, os caminhos percorridos do meu pensamento, do meu texto.
Será que a dissertação também pode ser um desabafo, ou um texto em estado de fronteira?
33
2014, Um sonho, Nação Zumbi
34
2015, Tô [I´m], Tom Zé
56
O paralelo entre os versos de Tom Zé e o texto dessas duas mulheres que
nos últimos meses permeiam meu universo diariamente vai muito além da forma da
escrita. Quando mulheres à margem, na fronteira da própria existência, resolvem
escrever a sua história, mesmo que de forma inacabada, nos cantos das folhas tomadas
por receitas, telefones, ou outras notas do único caderno disponível em casa, no tempo
que dá e do jeito de dá, toda vez que elas dão um passo, o mundo sai do lugar. Nos
confunde, nos atordoa o fato de uma favelada quase sem educação escolar ser a autora
do livro sucesso de vendas no Brasil e no exterior, traduzido para 13 idiomas.
Tendemos a dar o crédito do seu êxito à exoticidade da sua autora, não à sua capacidade
de exprimir com tamanha sensibilidade e poesia que a fome é amarela. E que, portanto,
amarelo é o seu mundo.
Quando uma Raquel Pacheco35 conta a vida de Bruna Surfistinha, o dia a
dia de uma garota de programa, seus sonhos, suas frustrações, quando ilumina esse
submundo renegado às profundezas da escuridão de nossa ética e moral cristã, nos cega
de maneira atordoadora. “Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes
como o da Bruna Surfistinha. Não dá”36, dirá o atual presidente do Brasil, Jair Messias
Bolsonaro. Não dá, não dá para aceitar a existência dessas mulheres, muito menos a sua
visibilidade, o seu sucesso. Mas é exatamente quando a existência é praticamente
negada, que muitas pulam o muro e, em um furor indisciplinado, falam: “No les
escribire historias de amor. Hola, soy C.R.Patri. Aqui el mundo les está hablando. Soy
la voz que nadie quiere escuchar” (PATRI, 2018, p. 4). Este é um trecho do diário de
Patri, a venezuelana anônima, autora dos escritos que guiam esta pesquisa. Seu desabafo
representa a voz de tantas outras mulheres em estado de fronteira, no entre-lugar do
mundo, no meio do caminho da aceitação: própria e dos outros.
Uma das principais qualidades dos diários e cadernos é que eles surgem
espontaneamente. Como uma necessidade visceral de colocar para fora o que por dentro
nos sufoca. Para escrever em um caderno pessoal você não precisa pedir licença a
35
Raquel Pacheco é o nome de batismo de Bruna Surfistinha. Quem assina o livro O Doce Veneno do
Escorpião (2005) é Bruna.
36
A frase foi proferida pelo presidente no dia 17 de julho de 2019, em solenidade de transferência do
Conselho Superior do Cinema (CSC) da estrutura do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. Jair
Bolsonaro se referia ao filme estrelado pela atriz Deborah Secco e baseado no livro de Rachel Pacheco.
57
ninguém, eu posso escrever, minha mãe, meu pai, minha avó, vizinhos, amigos.
Qualquer um pode escrever em um objeto que é seu, em um pedaço de papel disponível,
ou mesmo em páginas da internet como blogs, ou redes sociais. Obviamente que
publicar um livro já é um processo que envolve um mercado editorial, uma indústria e é
aí que a porta de entrada vai afunilando. Nesse universo nem todo mundo pode
ingressar.
Como bem observa a pesquisadora Ana Kiffer (2018), em seu artigo O
rascunho é a obra: o caso dos cadernos, o fato de todo mundo ter um caderno (e não
apenas escritores e artistas) fez com que esse objeto não alcançasse o valor ou a
qualificação necessária para que fosse levado em conta a sua singularidade. “Afinal
como aliar singularidade à banalidade ou ao uso comum? O pensamento ocidental ainda
atrela a noção de singularidade à noção de excepcionalidade.” (KIFFER, 2018, p. 104).
É neste ponto em que se trava a batalha epistemológica acerca das narrativas de si. As
tentativas de diferenciar conceitualmente diários, de cadernos, autobiografias,
autohistória, autoficção e as justificativas para conseguir encaixar os escritos de pessoas
banais, sobre o seu cotidiano, nos universos canônicos da literatura. Me parece que aqui
também temos que atravessar uma fronteira.
A seguir, pontuarei rapidamente alguns destes conceitos. Entretanto, mais
do que tentar enquadrar os escritos de Patri em uma, ou outra categoria, me debruço
sobre as histórias que ela traz e como ela resolve desvendar cada sentimento e situações
pelas quais passou e, por fim, como essa forma de escrita vai mudando ao longo do
tempo, como ela vai se esculpindo e dando contornos ao seu mundo nos múltiplos
percursos entre-territórios: físicos, sexuais, culturais e psicológicos. São várias as
motivações que levam alguém a abrir a caixa de pandora da própria vida, ou pelo menos
uma parte da caixa, aquela que conseguimos lidar e que queremos mostrar. O simples
fato de existir um diário com sete chaves37, revela o medo de que aquilo que foi escrito
no mais íntimo, de alguma forma se torne público.
37
Aqui me refiro tanto à comum expressão “guardado a sete chaves” como aqueles diários que se
tornaram febre quando eu era adolescente que literalmente vinham com sete cadeados.
58
Penso que às vezes o risco da descoberta é tão grande que é melhor nem
escrever. O que não queremos encarar, fica guardado, adormecido em algum lugar.
Acontece que a história mostra mesmo quando esconde e, inclusive, porque esconde
(KIFFER, 2018). Quando nos pomos a refletir sobre o silenciamento, se abre um
universo que se repete dia a após dia, talvez não porque não tenha aquela voz que fale,
mas por uma existência coletiva com pouca capacidade para ouvir. Patri não está
sozinha, existem outras vozes “marginais” que ninguém quer escutar.
Entretanto, a aproximação da literatura com zonas de contato como os
submundos, periferias, favelas, prisões, campos de refugiados, essas brechas no sistema,
acabaram por força-la a se abrir a um outro processo. “Pode-se dizer que desde 1950, a
literatura abriu-se às formas do inacabamento, às suspensões, aos lapsos e falhas
narrativas, ou mesmo ao investimento antinarrativo, nota-se que os procedimentos
processuais se inscreveram aliando-se à forma final da obra livro” (KIFFER, 2018,
p.114). Ou seja, o próprio processo da escrita e os seus objetos cotidianos passaram a
ser valorizados em sua singularidade, ou ao menos redefiniram os novos contornos da
literatura, revelando algo que ela antes relutava em mostrar: “Afinal como se escreve?”.
É nesse contexto que cadernos como o da Patri podem deixar de ser pensados
exclusivamente como rascunhos em direção à obra, mas lidos e pensados como um fim
em si mesmos.
I write the myths in me, the myths I am, the myths I want to become.
The word, the image and the feeling have a palpable energy, a kind of
power. Con imágenes domo mi miedo, cruzo los abismos que tengo
por dentro. Con palabras me hago piedra, pájaro, puente de
serpientes arrastrando a ras del suelo todo lo que soy, todo lo que
algún día seré38. (ANZALDÚA, 1999, p. 93)
Patri conta a sua história de vida para dar vida a sua própria história.
Neste sentido, ela se aproxima do conceito de Nahuatl de Anzaldúa, que se refere à sua
escrita como um ato de auto-criação. Escrever é visceral, como esculpir o osso, criar o
38
“Eu escrevo os mitos em mim, os mitos que eu sou, os mitos que eu quero me tornar. A palavra, a
imagem e o sentimento têm uma energia palpável, uma espécie de poder. Com imagens domo o meu
medo, cruzo os abismos que tenho dentro de mim. Com palavras me faço pedra, pássaro, ponte de
serpente arrastando pelo chão tudo o que sou, tudo o que um dia eu serei” (ANZALDÚA, 1999, p. 93,
tradução nossa)
59
próprio rosto, dar forma ao próprio coração. Em um movimento de refazer-se constante
e jogar luz à existência por meio do ato criativo. Dessa forma, enquanto pesquisadores,
podemos cair na armadilha de julgar o escrito dessas mulheres a partir da sua qualidade,
ou veracidade dos fatos, ou nos propor a ler o que elas têm a nos dizer como uma teoria
social, enxergando no próprio caderno, ou na intersecção entre diário e autobiografia,
um estado de fronteira não só das suas vidas, mas também da literatura.
15 de julho Vou abrir a geladeira de casa e leio em voz alta um dos ímãs da
Mafalda39 estampados na porta. Começo a pesquisar várias tirinhas da famosa
personagem de Quino na internet. Crianças são bem mais sabidas que os adultos, porque
elas questionam tudo. Não aceitam simplesmente o “porque sim, porque não”. As coisas
do dia a dia não são tão obvias assim que não mereçam serem questionadas. Não existe
o normal, o status quo é permanentemente posto em questão.
39
Mafalda é uma personagem criada pelo cartunista argentino Quino na década de 1960. Ela é marcada
por sua irreverência e senso crítico, uma menina capaz de questionar o mundo em que vive, preocupada
com a humanidade e a paz.
60
Figura 4: Foto da minha geladeira com os quadrinhos da Mafalda. Destaque de uma tirinha retirada da
internet.
Gosto muito de diários porque na minha vida sempre os usei para colocar
para fora aquilo que, por algum motivo, não conseguia falar diretamente para os outros.
Sentia que mesmo que estivesse escrevendo para mim mesma, aquilo não ficava
entalado na garganta. É como se o silêncio a que se refere Mafalda na tirinha acima
ganhasse finalmente um rumo, um lar. Tendo como base as definições de Leonor
Arfuch (2010), o gênero diário refere-se a um registro quase sempre manuscrito, de
duração irregular, sem destinatário ou preocupação com conteúdo e forma. Para
conceitua-lo, a autora o compara com outro gênero: a autobiografia.
61
frases inacabadas. Mas em meio aos registros que beiram a displicência tem também as
lembranças cuidadosamente coladas, objetos anexados para que não se percam daquela
história. O umbigo de seu filho, a licença maternidade, os vários exames de quando
estava internada esperando para ser mãe pela primeira vez.
Figura 5: Páginas dos diários de Patri com colagens e jogos para passar o tempo
62
Existe uma diferença entre falar de si para si e falar de si para os outros.
No primeiro caso, lidamos com uma série de lacunas e não ditos que não precisam ser
expostos justamente porque parte-se do suposto que a pessoa que escreve sabe da
própria vida, do que aconteceu, do que deseja falar e onde quer chegar. Entretanto,
quando você fala de si para os outros é preciso explicar os fatos que antecederam aquele
momento. É necessária uma introdução dos personagens, afinal, existe um leitor que
não tem conhecimento prévio de todos os detalhes da vida daquele
autor/narrador/personagem. E essa diferença, queira ou não, acaba por marcar o que se
diz e como se diz.
Um importante ponto levantado por Lejeune (2014) é que em toda
relação leitor e autor existe uma espécie de contrato de leitura. Quando nos propomos a
ler um livro de ficção sabemos que a intenção de seu autor é criar um mundo fantasioso.
Podemos até nos perguntar se, no fundo, aquela história não é realidade disfarçada de
ficção, mas até para contestar é preciso levar em conta a proposta inicial. O mesmo
acontece com as autobiografias, o pacto que temos de partida é que autor, narrador e
personagem são a mesma pessoa e esta, por sua vez, não apenas se compromete a dizer
a verdade sobre si, como também obriga o seu leitor a ser recíproco. “alguém pede para
ser amado, para ser julgado, e é você quem deverá fazê-lo” (LEJEUNE, 2014, p.98). Ao
questionar o leitor se este estaria pronto e disposto a fazer a mesma coisa, a simples
ideia da reciprocidade, segundo Lejeune, é algo que incomoda e coloca em estado de
alerta todas as defesas do leitor. Quando quem pede isso são mulheres à margem, penso
no tamanho desse arsenal de defesas ativadas.
Continuando ainda com as diferenças conceituais entre as narrativas de
si, o que se defende no campo epistemológico da literatura, acabando por afetar o
próprio contrato de leitura, é que, por meio da escrita autobiográfica, “toma-se
conhecimento de vidas documentadas, transcritas, renegociadas, encenadas e delineadas
pelas mãos de seus próprios autores” (PEREIRA, 2016, p.12). Ou seja, de alguma forma
pressupõe-se que, diferente do diário, na autobiografia é permitido investidas mais
inventivas, abrindo espaço para seu autor reinventar-se, fazer um ensaio memorialístico,
literário e experiencial. Em contrapartida, Philippe Lejeune confere oito funções ao
diário: conservar a memória, sobreviver, desabafar, conhecer-se, deliberar, resistir,
pensar e escrever (PEREIRA, 2016, p.38). Apesar de concordar que a intenção da
63
escrita muda a sua forma e o seu conteúdo, tendo a achar que a linha que divide a
consciência sobre o que e para quem se deseja falar é extremamente tênue. Além disso,
a escrita sobre si muitas vezes não é uma narrativa linear. Posso começar a escrever um
diário agora com uma intenção e depois de 1 mês, 1 ano, ou 10 anos, o meu foco ter
mudado.
Gosto de pensar no exemplo do Diário de Anne Frank (2018), livro que
ficou mundialmente famoso ao trazer os relatos de uma menina judia que, aos 4 anos de
idade, foi obrigada a sair da Alemanha, seu país natal, após a ascensão de Adolf Hitler
ao poder. No esconderijo em um sótão na Holanda, local em que ela e sua família
tiveram que morar por dois anos, o diário de Anne era o único instrumento de liberdade
que ela possuía e, nele, relatou a vida cotidiana naquele anexo secreto da casa. Se não
podia sair dali por conta da perseguição aos judeus, pelo menos as páginas de seu
caderno a poderiam permitir uma viagem, tanto para dentro, quanto para lugares
imaginados futuros, ou lembranças da sua casa no passado. Quando ela iniciou o diário,
estava apenas com 13 anos, seus primeiros escritos datam de 12 de junho de 1942 e seus
últimos relatos são de 01 de agosto de 1944.
No prefácio da 57ª edição que tenho em casa fico sabendo um pouco dos
percursos de sua escrita. A princípio, guardava-o para si mesma. Até que, certo dia de
1944, Gerrit Bolkestein, membro do governo holandês no exílio, declarou em
transmissão radiofônica que, depois da guerra, esperava recolher testemunhos oculares
do sofrimento do povo holandês sob ocupação alemã e que estes pudessem ser postos à
disposição do público. Referiu-se especificamente a cartas e diários.
64
é necessariamente um diário e vice-versa. Trago neste ponto a categorização de Kiffer40
(2018), que, de forma muito lúcida, ressalta que “a máscara que cai com o caderno não
é essa do segredo (sujo ou não), da revelação que os diários e as cartas temem ao
mesmo tempo que mostram, logo desejam, como boas senhoras histéricas” (KIFFER,
2018, p. 105).
Em O Doce Veneno do Escorpião: O diário de uma garota de programa,
Bruna Surfistinha (2005) conta como começou a sua vida não só como prostituta, mas
também como escritora, revelando um pouco deste processo que está longe de ser linear
e sem contradições. Em uma noite de tristeza, solidão e “baixo-astral”, Bruna conta que
tentou ligar para uma amiga na busca de companhia. Diante da indisponibilidade da
amiga, ela resolveu então escrever no blog tudo o que ela queria ter dito para ela
naquela noite. “Alguém ia ver. Quem sabe se minha família não veria? O que eu queria,
de verdade, era que qualquer pessoa viesse me socorrer, me salvar. Da minha vida, da
minha história. De mim” (SURFISTINHA, 2005, p.85)
Para dar um jeito naquela angústia, a autora escreveu no blog um
desabafo que, segundo ela, foi muito forte e falou de tudo. No seu diário eletrônico,
Bruna fez um resumo da sua vida, desde a infância até aquele momento e escreveu que
não valia a pena fazer programa. Se pudesse voltar no tempo, ela nunca teria escolhido
esse caminho. “Isso num blog de uma garota de programa. No dia seguinte, um pouco
melhor, resolvi deletar tudo. As pessoas iam pensar que, além de puta, eu era louca”
(SURFISTINHA, 2005, p.85), revela em um tom de brincadeira.
Tanto no site, quanto no livro, quem escreve não é Raquel Pacheco. É
Bruna Surfistinha. Quando ela resolve escrever diariamente a sua rotina, “em vez de
desabafar”, queria falar sobre a vida da garota de programa, dos clientes, fazer um
ranking de cada um que atendia. No momento em que seu site começou a fazer sucesso,
40
Ana Kiffer é doutora em letras e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Ela estuda os cadernos de Antonin Artaud, poeta francês preso em Dublin em 1937, acusado
de distúrbio da ordem pública. Após ter sido deportado para França, Artaud ficou dois anos desaparecido,
tendo sido localizado em 1939 em um asilo psiquiátrico em zona ocupada. Foi em meio aos tratamentos
de eletrochoques em hospital que ele começou a escrever, em 1943. Ao longo de cinco anos, Artaud
escreveu 503 cadernos.
65
com o próprio iBest 41a chamando para dizer que o seu blog estava em segundo lugar no
top link, ela conta que primeiro se assustou, mas depois descobriu que era isso que
queria. “É estranho imaginar que um monte de gente sabe da sua vida, como se
estivesse invadindo minha casa e revirando as gavetas. Ao mesmo tempo, descobri que
era isso exatamente o que eu queria: que as pessoas lessem sobre a minha vida”
(SURFISTINHA, 2005, p. 89-90). Ela ressalta, entretanto, que a vida a que se refere é a
pública. Não a da Raquel, mas a da Bruna Surfistinha. Enquanto muitos consideram a
vida sexual como íntima, para ela, a intimidade era justamente a vida de Raquel.
Se no site as pessoas só tinham acesso ao personagem Bruna, no livro o
leitor começa a conhecer a Raquel. Logo na introdução do seu diário publicado em livro
ela explica que guarda duas longas histórias: a sua pessoal e a da Bruna. “Sim, somos
duas. Com duas histórias diferentes numa mesma garota: eu” (SURFISTINHA, 2005,
p.11). Essa diferença também é marcada esteticamente no livro, na sua diagramação.
Quando a autora se refere à vida de Raquel, seu passado e suas memórias do período
pré-prostituição, ou mesmo os seus sentimentos e vida fora do trabalho, as letras são
menores, as margens laterais maiores e o trecho é separado do restante por um símbolo.
Apesar dos relatos da Bruna terem sido iniciados em um blog virtual (não em um
caderno) e depois terem sido publicados em livro, creio que as partes destacadas na
presente pesquisa nos ajudam a aprofundar na discussão sobre intencionalidade e
processo nas escritas de si.
A imagem de senhoras histéricas ironicamente utilizada por Kiffer para
se referir aos diários dialoga com a ideia de que o processo da escrita em um diário
muitas vezes já nasce de um segredo que se quer preservar e, ao mesmo tempo, almeja e
reivindica ser ouvido. E nesse sentido não consigo conceber uma ideia de mais absoluta
ignorância ao futuro. Muito menos a verdade cristalizada de que a autenticidade se
refere ao intocado, ao discurso não modificado. E se tudo for mesmo inventado, existe
algo mais autêntico do que aquilo que inventamos? Que nos custou uma leitura de
mundo, do nosso local neste mundo, que pediu nossa criatividade, pro-atividade e
resiliência para a ressignificação de nossas vidas e papéis sociais? Peço licença ao poeta
41
iBest é um provedor gratuito de internet onde o blog de Bruna Surfistinha estava hospedado.
66
Manoel de Barros para complementar a sua frase. “Tudo que não invento é falso”,
porque, em alguma medida, o que eu não invento nem mesmo existe no meu universo.
E mais, se é para enveredar nos caminhos da análise do discurso de
diários e autobiografias é necessário primeiramente definir a linha teórica utilizada para
tal. Se formos pensar a partir de uma perspectiva foucaultiana, então o termo não pode
se referir apenas a um conjunto de signos ligados a representações específicas, ou a
determinados conteúdos, mas a “práticas que formam sistematicamente os objetos de
que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que eles fazem é mais do
que utilizar esse signo para designar as coisas” (FOUCAULT, 1986, p. 56). Ou seja, o
discurso não fala sobre, ele é uma ação criadora.
Ainda neste ponto, faço uma referencia à teoria de Mikhail Bakhtin de
que, por traz de um discurso, existem milhares de fios dialógicos, “um complexo jogo
de claro-escuro que penetra o discurso, impregnando-se dele, limitando suas próprias
facetas semânticas e estilísticas” (BAKHTIN, 2002, p.86). Ou seja, enquanto prática
social, um discurso sempre tem origem em outro discurso, em um processo de mutua-
interação. Entre o que Bruna Surfistinha, ou Patri falam sobre suas vidas e elas próprias,
interpõe-se um meio flexível do que os outros pensam e falam sobre mulheres, ou mais,
sobre mulheres que prostituem-se, mulheres que migram sozinhas, entre outros aspectos
que perpassam as suas condições sociais, culturais e históricas. Neste sentido, não posso
deixar de olhar para tais narrativas sem uma perspectiva de gênero. Como pontua
Anzalduá (1999), o julgamento social ao qual as mulheres são submetidas à séculos
normalmente causa um sentimento de vergonha e autopunição “She has this fear that
she has no names, that she has many names, that she doesn’t know her names. She has
this fear (…) that she’s the dreamwork inside someone else’s skull”42 (ANZALDÚA,
1999, p. 65). De fato, essas mulheres têm vários nomes, apelidos que às vezes
desconhecem, uma existência que elas nem mesmo controlam, que está esculpida e
estereotipada a partir da cabeça de outra pessoa, do peso de uma cultura.
42
Ela tem esse medo que ela não tem nomes, que ela tem muitos nomes, que ela não conhece seus nomes.
Ela tem esse medo (...) que ela é o sonho dentro do crânio de outra pessoa” (tradução minha)
67
Aprofundando um pouco mais nas teorias de Bakhtin, ao pensar nos
diários, ou nas autobiografias, é possível atestar que todas as formas retóricas e
monológicas estão ajustadas no ouvinte e na sua resposta. Ou seja, a construção do
discurso leva em consideração a resposta e está indissoluvelmente ligado a ela. O autor
orienta o que vai falar de acordo com o seu círculo dominante, ele penetra nesse
universo alheio do seu ouvinte e constrói o seu enunciado naquele horizonte, de forma
tal que o outro compreenda e assimile. “A compreensão e a resposta estão fundidas
dialeticamente e reciprocamente condicionadas, sendo impossível uma sem a outra”
(BAKHTIN, 2002, p.90). Nesta perspectiva, nem mesmo o narrador de si é onisciente.
Muitos dos relatos do “eu” se originam nos outros, que são ao mesmo tempo o nosso
inferno e o nosso espelho. “Todo discurso é dialógico e polifônico, inclusive os
monólogos e os diários íntimos: sua natureza é sempre intersubjtetiva” (SIBILIA, 2008
pg. 32). Mesmo quando falo para mim, falo para um outro, um outro que existe em mim
e que permeia os meus pensamentos.
Antes de entrar na ideia da representação do eu na vida cotidiana,
fazendo aqui uma menção aos estudos de Erving Goffman, gostaria apenas de fechar o
raciocínio trazido por Kiffer de que a máscara que cai com os cadernos, portanto, não é
essa sobre a intenção do segredo, ou da revelação deste, mas justamente “aquela que
mostra o desmonte da relação entre singularidade e excepcionalidade, aquela que vai
reivindicar para si a precariedade dos processos subjetivos que envolvem a criação”
(KIFFER, 2018, p.105). Ou seja, o caderno desnuda o processo da escrita, não a sua
intenção. E mostra que, bastante distante de toda genialidade que imaginamos fazer
parte da escrita de uma obra, todos os processos de criação passam por
“constrangimentos no sentido mais físico e violento do termo”, desmistificando,
portanto, a figura do escritor e do artista.
O caderno de Patri, como ainda não foi publicado, me permite uma
leitura em consonância com essa ideia de processo. Na verdade, não somente o fato de
não ter virado um livro, no sentido editorial e mercadológico do termo, mas também a
nossa relação e aproximação me permite leituras outras do seu texto. Antes de eu
revelar para ela o meu interesse sobre escritas de mulheres migrantes, C.R.Patri já
escrevia. O primeiro caderno que ela me entregou foi adquirido por ela, as páginas
iniciais são verdadeiros desabafos, me lembram muito um hábito que eu também tenho
68
que é escrever quando estou chateada, ou triste. Patri fala sobre as brigas com o pai do
seu filho, a angústia de não ter um trabalho formal, conversa muito com Deus, pede a
todo momento que lhe tire dessa situação.
Figura 6: Páginas do diário de Patri que ilustram suas conversas frequentes com Deus
Já o seu segundo diário foi um presente que levei para ela quando ainda
estava internada no hospital, prestes a ter seu filho. Ela queria um caderno para poder
passar o tempo enquanto estava hospitalizada. Neste momento, ela já tinha me dado o
seu diário com os primeiros relatos e sabia da minha curiosidade sobre o que ela
escrevia. Era como se esse meu interesse fosse para Patri o mesmo que o anúncio de
Gerrit Bolkestein foi para Anne Frank e o que o iBest foi para Bruna Surfistinha. Não
consigo deixar de ver uma relação disso tudo com a mudança do tom e conteúdo da sua
escrita. Ela começa já estabelecendo o diálogo para um outro, se apresenta e deixa claro
que aquelas palavras não são para ficarem restritas à ela.
69
Soy de nacionalidad venezolana y les vengo hablar un poco sobre mi
vida, quizás muchos dirán: “hay, ahora tengo que escuchar a esta
mujer, yo tengo mis propios problemas y existe más en el mundo”.
Pues a esos les doy la razón, mas sé que para otros exista la
posibilidad de sentirse identificado con los que les vengo a expresar,
o mejor dicho a contar. Bueno, sin más nada que decir “o”.
(PATRI,2018, p.34)
70
Figura 7: Páginas do diário de Patri que marcam a mudança de endereçamento para um leitor externo
Patri conta sua história para garantir que seja reconhecida, para que por
meio de seus relatos, ela possa sobreviver em meio a uma sociedade que, segundo ela,
lhe trata como “escória”. “Para muchas personas no somos más que la basura”, escreve.
A persistência dos relatos em que ela revela seu medo, culpa, sentimento de abandono
71
pelo pai de seu filho, a vulnerabilidade enquanto mulher tanto na Venezuela, como no
Brasil, a violência que foi para ela se prostituir, a frequência com o que tudo isso se
repete nas páginas de seu caderno nos deixa pistas, como salientou Butler (1999), de
que a performatividade não é um ato singular, “mas uma repetição e um ritual, que
realiza seus efeitos através da sua naturalização no contexto no qual o corpo é
compreendido, em parte, como culturalmente sustentado na duração temporal”
(BUTLER, 1999, p.15)
O constrangimento no sentido físico do termo, a exclusão e a violência
do corpo e de sua linguagem é percebida também no texto de Anzaldúa (1999) ao falar
do processo de escrita do que chama de sua autohistória. “Daily, I battle the silence and
the red. Daily, I take my throat in my hands and squeeze until the cries pour out, my
larynx and soul sore from the constant struggle”43 (ANZALDÚA, 1999, p.94). A
batalha para romper o silêncio é diária, essa travessia, longe de ser confortável, deixa
marcas na laringe e na alma. É nesse sentido que podemos afirmar que a história de
Patri, contada por ela nas páginas do seu diário, dia após dia, nos fala sobre a
naturalização da violência contra a mulher, de um padrão de exclusão que se repete em
um contexto de migração, de uma maternidade solitária e cheia de culpas, da
estigmatização da prostituta. Da mesma forma, no diário de Carolina Maria de Jesus, é a
fome que aparece no texto “com uma frequência irritante. Personagem trágica,
inarredável”, como diria no prefácio da obra o jornalista Audálio Dantas, responsável
pela edição do livro.
“Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na
vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua
o dia todo. E estou sempre em falta. A Vera não tem sapatos. E ela não gosta de andar
descalça” (JESUS, 2014, p.12). A mulher favelada, mãe solteira (ela de novo), que
rotineiramente cata papel para colocar um pouco de comida e dignidade em casa
performatiza também uma mesma luta, só que a partir de um contexto diferente. As
histórias dessas mulheres, como a de tantas outras, estão encapsuladas no tempo, em um
43
“Diariamente combato o silêncio e o vermelho. Diariamente eu pego minha garganta com minhas mãos
e aperto até que os gritos saiam, minha laringe e minha alma doem nesta constante luta” (ANZALDÚA,
1999, p,94 - tradução nossa)
72
determinado contexto, época, país, e são encenadas cada vez que são lidas em voz alta,
ou sem silêncio. Seus textos, assim como suas vidas, não são objetos inertes e mortos,
presos na materialidade de um caderno não publicado, ou de um diário sucesso de
vendas. Como diria Anzaldúa (1999), essas obras carregam identidades que manifestam
as mesmas necessidades de uma pessoa, elas precisam ser alimentadas, banhadas e
vestidas constantemente.
As identidades dos próprios textos, por sua vez, são múltiplas, são
fronteiriças tais quais a existência de suas autoras. Quarto de Despejo não é somente um
diário sobre uma favelada, ou Doce Veneno do Escorpião, desabafos de uma garota de
programa. Me parece pertinente levar em consideração que esse “eu” que aparecem nas
narrativas autobiográficas, e que existe em cada um de nós é uma entidade complexa e
vacilante. “se o eu é uma ficção gramatical, um centro de gravidade narrativa, um eixo
móvel e instável onde convergem todos os relatos de si, também é inegável que se trata
de um tipo muito especial de ficção” (SIBILIA, 2008, p.31). Isso porque somos feitos
desses relatos, é por meio da linguagem que nossa existência vai ganhando consistência
e relevos singulares, texturas únicas.
“Eu”, “Bruna Surfistinha”, “Carolina Maria de Jesus”, ou mesmo “você”,
somos substâncias desse cruzamento de narrativas, desse jogo dialético a que se refere
Bakhtin (2012), que não deixa de ser uma performance, como afirma Butler (1999),
estando em um constante estado de fronteira, como propõe Anzaldúa (1999). Entretanto,
ao abrir o livro da sua vida, ao falar da experiência de si como um “eu” no mundo, a
escrita vira um ato e o escritor entra na condição de narrador do sujeito: “alguém que é
capaz de organizar sua experiência na primeira pessoa do singular” (SIBILIA, 2008,
p.31). Graças às palavras podemos criar universos e nossas subjetividades. Tal
empreitada, entretanto, exige uma travessia entre as esferas do público e do privado, do
que está dentro de mim e que necessita e quer desnudar-se. Este movimento não deixa
de ser fronteiriço: de mim para o mundo, do mundo para mim.
73
Querida dissertação, lembrei um dia desses que na minha adolescência
eu vivia escrevendo diários, eu e minhas amigas vez ou outra trocávamos os cadernos e
assim dividíamos confissões. Normalmente era aquela paixão adolescente que a gente
mantinha como um segredo aberto, que no final das contas, a turma inteira sabia. Claro
que eu sempre escutei que isso era coisa de menina. Depois, um dos primeiros livros
que ganhei da minha mãe foi o Diário de Anne Frank. Fui tomando gosto pela leitura de
autoras mulheres e admito que sempre gostei de saber das suas histórias pessoais. Ao
mesmo tempo, cresci ouvindo críticas sobre elas. Clarice Lispector, por exemplo, era
“muita chata, cheia dos problemas, dos dramas internos”, falavam os amigos e amigas.
Continuei a lê-las sem muito estardalhaço, enquanto me orgulhava em soprar aos quatro
ventos quando terminava um livro de Guimarães Rosa, ou de Fiódor Dostoiévski.
Fico pensando que se existe um tom confessional em várias dessas obras
femininas (e uma atração pessoal minha por essas narrativas) é porque o fato delas
estarem ali ecoando suas vozes é, de cara, uma ação subversiva, um pecado. O
interessante disso, que gostaria de ressaltar, é que a etimologia da palavra confissão traz
consigo um efeito da cristianização. Desde a Idade Média ela foi utilizada no Ocidente
pela Igreja e pelo sistema jurídico. A partir de 1215, com o IV Concílio de Latrão, foi
instaurado um tribunal permanente na igreja católica na qual os laicos deveriam
obrigatoriamente comparecer pelo menos uma vez ao ano, na Páscoa, e os clérigos
deveriam ir todos os meses, podendo ser todas as semanas, para pedir perdão aos seus
pecados (FOUCAULT, 2006 apud FRIEDERICHS, 2008 p.24). Ao longo dos séculos,
a confissão foi sendo reformulada e utilizada em uma série de relações, como a entre
pais e filhos e escritores e leitores.
A questão do espaço e da representação das mulheres na literatura nos
leva a uma discussão muito mais profunda. Como pontua Segato (2016), o gênero é a
configuração histórica mais arcaica e permanente de todo poder na espécie humana e,
portanto, de toda violência, “ya que todo poder es resultado de una expropriación
inevitablemente violenta” (SEGATO, 2016, p.19). Ela é antiga porque remonta à mitos
de várias partes do mundo, de diversas culturas. No relato bíblico de Génesis, por
exemplo, Adão e Eva foram expulsos do paraíso por um pecado de Eva, que ao comer a
maça, castigou ambos. Segato destaca ainda que, com os processos de conquista e
colonização da América, esse padrão hierárquico originário se exacerbou ainda mais.
74
Aquele homem com “h” minúsculo, que tinha seu espaço particular em
um mundo tribal e desempenhava suas tarefas a partir de uma divisão de trabalho com
as mulheres, se transformou no Homem com maiúscula, “sinónimo y paradigma de
Humanidad, de la esfera pública colonial-moderna” (SEGATO, 2016, p.20). A partir
desta curva histórica, tudo o que era político e de valor universal, era referente ao
sujeito masculino. O espaço das mulheres passou a ser relacionado à cena doméstica,
esvaziou-se todo o lado político e vínculos coorporativos desfrutados por elas em uma
vida em comunidade. Neste novo desenho, as mulheres foram marginalizadas e
afastadas da política. “El espacio doméstico adquiere así los predicados de íntimo y
privado, que antes no tenía, y es a partir de esa mutación que la vida de las mujeres
assume la fragilidad que le conocemos” (SEGATO, 2016, p.20). Essa vulnerabilidade
forjada, o esvaziamento do poder da mulher a partir da dominação do seu corpo e da sua
imposição à reclusão, acabou por se estabelecer e tornar-se cada dia mais intensa, em
um processo que começou lá atrás e permanece até os dias de hoje.
Sendo assim, em uma sociedade patriarcal, em que o local social das
mulheres foi por muito tempo restrito ao ambiente privado, enquanto mães, filhas e
esposas, me parece natural que o mito de origem das narrativas escritas por elas (por
nós) esteja fincado na introspecção, no íntimo que não se pode revelar. Tal conteúdo
quando sai do privado e ganha materialidade externa, mesmo que em um diário
guardado a sete chaves, precisa confessar-se. “Dios, perdona por favor por fallarte y
fallarme a mi misma, solo te pido que no te olvides de mi alma y de la fé en la que en ti
siempre tengo, cuidame de todo peligro, señor tu solo eres fiel testigo de mis actos y
mis sentimientos y sabes el motivo de mis pecados” (PATRI, 2017, p.25). Me lembro
das várias vezes em que Patri fala com Deus em seu diário, pedindo ajuda, se
desculpando, suplicando para que ele perdoe os seus pecados.
Entretanto, mesmo essa literatura considerada “de mulher”, não surgiu
com o feminino. Afinal, como aponta Virgínia Woolf (1985), o problema da exclusão
começa bem antes, com o próprio letramento tardio das mulheres. As poucas que
tinham o privilégio de serem alfabetizadas escreviam cartas, algumas escreviam mais,
aventuravam-se em poemas e romances, mas não compartilhavam e muito menos
publicavam seus escritos. Os pseudônimos masculinos também eram uma artimanha a
qual recorriam para poder serem lidas, é o caso de George Eliot, cujos escritos nunca
75
foram publicados com o nome verdadeiro de Mary Ann Evans. Por muito tempo, a
literatura não foi lugar de mulher. Na verdade, até hoje este é um território em disputa.
Em uma análise mais contemporânea, estudar os cadernos, diários e
autobiografias escritos por mulheres, mais do que nos dizer sobre os seus segredos
desvendados, continua nos interrogando acerca dos critérios que definem quem pode ser
considerado artista em um determinado contexto, época e geopolítica. Se a ideia de
escrita é atrelada à experiência “de um corpo docilizado”, inserido em padrões da
língua, sua estética e gramática, os cadernos entram no território da rejeição, justamente
por muitas vezes serem escritos nessa língua apátrida, em um falho processo de
alfabetização, por autores igualmente marginalizados (KIFFER, 2018, p.106). Mas
quando uma narrativa feminina aparece e nos toma assim, sem pedir licença, seria então
um indicativo de algum desarranjo, de uma falha da matrix incapaz de controlar o
processo de domesticação dessas vidas?
A purtuguesa perguntou-me:
- O que é que a senhora faz?
- Eu cato papel, ferro, e nas horas vagas escrevo.
Ela disse-me com a voz mais sensata que já ouvi até hoje:
- A senhora vai cuidar de sua vida! (JESUS, 2014, p. 105)
44
“Escrever produz ansiedade. Olhar para dentro de mim e para minha experiência, olhar para os meus
conflitos, gera ansiedade em mim. Ser uma escritora se parece muito com ser chicana, ou ser gay – são
vários contorcionismos, enfrentando todos os tipos de muros. Ou o seu oposto: nada definido e definitivo,
um estado ilimitado e flutuante de limbo onde eu chuto meus pés, me aninho, me infiltro, hiberno e
espero que algo aconteça” (ANZALDÚA, 1999, p. 94 – tradução nossa)
76
trancafiar-se, se recusam a desaparecer. Cada vez mais mulheres que chegam como
Carolina, desrespeitando o conselho de silenciar a realidade. Mesmo que a cautela seja
sempre necessária. Afinal, “nenhuma mudança pode ser brusca quando se trata de
pensar outramente. É preciso que a tradição se mantenha de pé. Que não se quebre nada.
A louça do pensamento é fina. Para efetuá-la é preciso que a louça passe através de
vocês, mas sem cortá-los.” (KIFFER, 2018, p. 96). Ou seja, mesmo que nos diários
dessas mulheres, em seus cadernos, a palavra venha a socorrer e possibilitar a existência
de corpos que negligenciamos, ou impedimos de viver, mesmo quando ali conseguimos
enxergar a subalternidade dos corpos que escrevem, mesmo assim, esse tecido não se
rompe em uma noite. Essa fronteira não se atravessa com apenas um passo.
Afinal, escrever é uma coisa, publicar, ser reconhecida por seu potencial
literário para além da exoticidade da sua própria existência, é outra. Uns fazem
literatura, outros escrevem testemunhos, ou diários: dirá o cânone literário. “Não,
espere. É preciso reordenar isso. Assim não vende, nem presta. Você balbucia, não
escreve. Faça isso legível, digerível. Não se trata exatamente de todo um corpo que se
ofereça para efetuar o sentido do texto. Basta um intestino” (KIFFER, 2018, p. 97). E
assim na literatura repetimos os muros, as fronteiras, julgamos como inferiores os
diários, coisas de menina. Afinal, o que está em jogo nos campos de batalha da
literatura, muito além de estilos ou conteúdo, é a possibilidade de dizer sobre si e sobre
o mundo, de se fazer visível dentro dele.
“Desde os tempos em que era entendida como instrumento de afirmação
da identidade nacional até agora, quando diferentes grupos sociais procuram se
apropriar de seus recursos, a literatura brasileira é um território contestado”
(DALCASTAGNÈ, s/d, p. 13). E nessa disputa45, cada vez mais vozes requisitam e
45
Uma série de pesquisas coordenadas pela professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina
Dalcastagnè, revelou a homogeneidade desse campo no Brasil: a literatura aqui é um lugar de homens,
brancos que vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em todos os principais prêmios literários
brasileiros entre os anos de 2006 e 2011, foram premiados 29 autores homens e apenas uma mulher, na
categoria estreante do Prêmio São Paulo de Literatura. De todos os romances publicados pelas principais
editoras brasileiras, no período de 1990 a 2004, 120 em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%. Além
disso, 93.9% dos autores são brancos (DALCASTAGNÈ, s/d, p.14). Ter noção destes números, desta
realidade, é importante para entender o contexto no qual Patri chega. Precisaria em outro momento me
aprofundar sobre a mesma questão na Venezuela, para compreender qual é o espaço das mulheres na
literatura venezuelana.
77
cavam espaço, as vezes mais tímidas, outras vezes gritando, essas vozes “não
autorizadas” vão chegando, ocupando discretamente o quarto de despejo, ou deitando
sem vergonha na cama do casal. Trago como ponto central de reflexão a literatura
brasileira, porque mesmo Patri sendo venezuelana, Roraima é a principal locação de sua
história. Porque muito do que ela escreve é para o Brasil, este território que a contesta,
que a repele mesmo tendo assinado a sua permissão para entrar, a colocado na lista das
milhares de solicitantes de refúgio.
A denúncia da opressão feminina, presente na literatura escrita por
mulheres nas últimas décadas, vincula-se diretamente aos estudos das relações de
gênero, iniciados nos anos de 1970. Esses estudos tinham como objetivo mostrar as
diferenças entre os sexos masculino e feminino como uma construção cultural: o papel
ocupado pela mulher na sociedade e a sua não valorização são produtos da construção
do olhar masculino sobre elas. Cabe lembrar que o termo gênero, cunhado por
estudiosas anglo-saxãs no início da década de 1970, designa a construção social do
sexo, edificada na cultura e na sociedade, através de relações de poder e processos de
significação. Esse conceito não trata exclusivamente das mulheres, mas dos jogos de
poder que se dão entre homens e mulheres e das diversas instâncias sociais, políticas e
culturais que instituem saberes sobre os corpos. Essa estrutura tão firmemente
sedimentada, fortalecida por séculos, nos leva a pensar que, enquanto não formos
capazes de desmontar o cimento patriarcal que funda as desigualdades e expropriações
de valor que formam a base do edifício dos poderes, nenhuma mudança relevante na
estrutura da sociedade será possível (SEGATO, 2016, p. 19-20). E essa base que
sustenta todos os poderes não é apenas econômica e política, ela também é intelectual e
artística.
Patri, assim como Carolina Maria de Jesus, escreve em meio a uma dupla
ou tripla jornada, nessa lógica que os dias impõem às mulheres, mães, trabalhadoras,
sonhadoras, escritoras, sem sobrenome, no anonimato. “Um número grande de lutos
hoje se somam às nossas lutas, às lutas das mulheres. Já não conseguimos escrever sem
tudo isso” (KIFFER, 2018, p. 95). O que Kiffer nos provoca a pensar é que essas
marcas ficaram impressas historicamente nos textos das mulheres e ainda hoje
permanecem como algo difícil de desassociar, pois “mesmo quando é dia e a luz tenta
invadir e clarear essas manchas imprudentes guardadas nos cadernos velhos, nos
78
armários esquecidos, de um ou de outro modo isso acaba por se inscrever” (KIFFER,
2018, p.95). Por séculos essas mulheres foram invisíveis, esconderam seus sentimentos,
guardaram suas verdades no fundo do armário, mas, de alguma forma, continuaram a
alimentar uma chama interior, brilhando em um silencio ensurdecedor.
Não foi de repente, mas em passos constantes, ainda que lentos, que elas
foram (se) escrevendo. As que conseguiram ser ouvidas, que conseguiram que seu
íntimo saísse do confinamento do privado, traziam consigo uma vontade quase que
missionária de falar por várias. “Queria que as pessoas soubessem por que precisamos
fugir e o que acontecia com as mulheres norte-coreanas quando eram vendidas na
China. “Se você não falar por elas, Yeonmi-ya, quem vai?”, disse. Minha irmã
concordou” (PARK, 2016, p.299 -300). O trecho é retirado do livro autobiográfico de
Yeonmi Park, uma jovem que relata a sua infância na Coreia do Norte, país conhecido
pela repressão, e o que teve de passar quando resolveu se refugiar com sua família na
Coreia do Sul, atravessando, para isso, a China até chegar ao seu destino.
O caso da Coreia do Norte é interessante porque muito pouco se sabe
sobre o que acontece nas terras de Kim Jon-un46 a não ser por meio do que nos contam
aqueles e aquelas que fogem do país. De acordo com Valéria Barbosa de Magalhães
(2018), pesquisadora da Universidade de São Paulo, atualmente existe um importante e
variado acervo de autobiografias e entrevistas de refugiados e refugiadas da Coreia do
Norte. Entretanto, suas histórias têm causado não apenas curiosidade, mas também
polêmicas por parte da mídia e do público acerca da sua “veracidade”. Como existe um
debate político bastante polarizado sobre o país, narrativas como a de Yeonmi entram
também no campo da disputa de poder entre os defensores e críticos do atual regime. Se
levarmos em consideração que ela, mais do que contar sobre um movimento de
deslocamento forçado, se propõe a falar sobre o que acontece com as mulheres que
fogem para a China e caem nas mãos de atravessadores e estupradores, então a disputa
da veracidade da narrativa ganha novos contornos. O conceito do embate de poder
politico se expande para englobar o controle sobre os corpos, estes corpos femininos
46
Kim Jon-un é o atual líder supremo da Coreia do Norte (posição que ocupa desde 2011) e general do
Exército do Povo Coreano.
79
que são a primeira colônia quando entra em jogo a disputa de poder entre territórios,
sejam eles físicos, ou ideológicos.
Escrever um livro sobre o tráfico de pessoas, a rede de exploração sexual
de mulheres, tudo isso em primeira pessoa, mesmo que esta autobiografia seja fruto de
memórias de um passado já vivido, mesmo que existam lacunas, ou fatos difíceis de
serem “provados”, o simples ato de narrar requer resistência e coragem. “Agora o
mundo inteiro ia conhecer a história. Valeria a pena expô-la? Eu tinha certeza de que
ninguém jamais me olharia do mesmo modo se soubesse o que tinha me acontecido e o
que eu havia feito para sobreviver” (PARK, 2016, p.299). A autobiografia de Yeonmi,
ou melhor, a contestação dela enquanto uma historia real vivida, entra na mesma lógica
da dificuldade de nossa sociedade em acreditar nas violências sofridas por milhares de
mulheres fora das páginas de um livro. Nós (e me incluo enquanto pesquisadora mulher
nisso) ainda precisamos nos esforçar, precisamos provar, passando por cima de uma
profunda dor, nos expondo ainda mais, para dizer que sim, fomos abusadas, violentadas
e exploradas. Yeonmi relata em seu livro que não conseguia imaginar um lugar para ela
quando sua história fosse revelada justamente porque sente na própria pele o peso da
opressão, do grito que ecoa sem que do outro lado tenha alguém disposto a ouvir.
A literatura escrita por mulheres à margem, em estado de fronteira como
a de Yeonmi Park, Bruna Surfistinha, Carolina Maria de Jesus e Patri são valorosas não
apenas pela narrativa em si, pela poesia de suas duras palavras, mas porque tiram da
normalização do nosso dia a dia essas tantas formas de violência e dominação dos
corpos femininos. Quando Carolina Maria de Jesus escreve, ela deixa de ser mais uma
favelada, que luta diariamente contra a fome, para se tornar uma figura ímpar. Mulheres
que lutam sozinhas para criar seus filhos em meio à pobreza, essas são muitas. Mas
mulheres que fazem tudo isso, vivem as mazelas do seu cotidiano e ainda escrevem
sobre, elas então se tornam exceção à esperada compatibilidade entre ambiente e
aparência e é por isso que são capazes de lançar luz ao que nos tornamos cegos para ver.
Roraima hoje recebe cerca de 600 migrantes e refugiados da Venezuela todos os dias,
de segunda a segunda. E a pergunta que fica é: nós estamos dispostos a ouvir essas
vozes que batem em nossa porta?
80
3. Migração e literatura: diário de uma venezuelana no Brasil
81
3.1 Para mi pequeño angel Geremias
Quem disse que a língua escreve? E se sim, por que com ela não
desenho uma letra bem grande capaz de roçar minha gengiva e fazer-
me sentir que uma palavra é mais do que aquilo que até ali vi ou ouvi?
Se perco meu paladar, quem me garante que não posso sentir o cheiro
de uma palavra e alimentar minha barriga vazia? Poesia se mastiga?
Com dentes capazes de sorver um novo corpo? Um corpo verbal-
literal? E como ouso não perceber que o som de uma letra irrompe
como que roendo a tessitura do texto e dos meus ouvidos, desfazendo
os contornos estáveis do sentido que com ela foge?” (KIFFER, 2018,
p.103)
Imagino que possa ter agora algum leitor curioso. Mas afinal, qual é a
cara do diário de Patri, sua cor, formato, textura, sua estética? A pergunta é importante
não apenas como mera curiosidade, mas porque as imagens também comunicam. Se me
propus aqui a estudar um manuscrito cheio de vida, desenhos, manchas e colagens não
posso acreditar que somente o que o texto me diz seja mais relevante do que todo esse
conjunto pode me revelar. E nesse sentido, o próprio desenho das letras, hora delineadas
com cuidado, outras vezes rabiscadas às pressas, são potenciais de interpretação,
desmistificação e contraponto da cultura letrada, no sentido mais elementar da
interpretação do texto.
Figura 8: Desenhos realizados por Patri na capa dos seus dois cadernos
82
Nos dois cadernos de Patri que analiso, a primeira página (ou a porta de
entrada para o seu infinito particular) traz desenhos com dedicatórias que servem como
um convite dela para o que vamos encontrar pela frente. “Para mi pequeño angel”, a
bíblia, o retrato de família, o urso de pelúcia, todo esse conjunto de palavras e desenhos
formam o título do diário, ou seja, uma síntese do seu texto. Estes títulos, por sua vez,
trabalham sob a lógica da intersecção de diversos sentidos que vão ficando mais
evidentes a medida que sua leitura é complementada nas páginas seguintes. Quando na
sequência narrativa nos deparamos com os relatos de violência, com o mundo
estigmatizado da prostituição, o porta-retratos de uma família feliz, abençoada por uma
égide cristã ganha novos contornos. Não diria que se contrapõe, nem que se justapõe,
mas traz novos elementos que passam a coexistir na leitura e, sendo assim, são
importantes para a compreensão daquele mundo.
A experiência de ler o diário de Patri é definitivamente sensorial e
heterogênea. É um misto de sentimentos que acompanham ritmicamente a mudança da
caneta vermelha, para a azul, seguindo no descompasso do grafite do lápis. Logo de
cara é possível perceber a estética um pouco “anárquica” da escrita. Páginas inteiras
com apenas uma frase. Sentenças que param pela metade. Saltos de páginas em branco,
tais quais as pausas do silêncio. A caligrafia varia conforme o humor. Quando está com
raiva, as letras vão aumentando paulatinamente, até chegar a ocupar três linhas do
caderno pautado. Sem virgulas, como que em um único suspiro, ela diz: “No quiero
estar más asi me quiero ir. No me gusta este lugar lo ódio siento morir y morir en el sin
forma de salir” (PATRI, 2017, p. 5). A infelicidade com o lugar em que está vivendo e
com o que está passando é contada de maneira visceral.
83
Figura 9: Desabafo de Patri que mostram a estética da sua escrita
84
momento vivido. “Um caderno tornando-se o único espaço de realização possível faz
com que tudo o que esteja à mão insurja em sua densa, e por vezes pouco notada,
materialidade” (KIFFER, 2018, p. 102). Ou seja, escrever em um quarto pequeno, sem
privacidade, com o homem chamando ao lado, em uma tripla jornada imposta às
mulheres, é esse limbo do processo de criação que a frase incompleta sugere.
Outro aspecto que chama a atenção da estética dos diários de Patri é a
angulação, que vai mudando em muitas partes do seu texto. É como se a base da linha
não desse conta de dar suporte aos seus sentimentos. Ler os seus cadernos é também um
exercício físico, “já que estes devem ser revirados, arrancando-os da possibilidade inerte
que o “livro” (e o corpo habituado a esse modo de visão) mais ou menos possui”
(KIFFER, 2018, p. 103). É preciso se mexer para de fato alcançar tudo o que Patri ali se
propõe a compartilhar, um leitor um pouco mais preguiçoso, ou indisposto, por assim
dizer, fará uma leitura incompleta daquela vida, justamente porque não acompanha a
dinâmica de uma existência fora do eixo, que corre pelas beiradas, que escreve de
cabeça para baixo e de ladinho.
85
Figura 10: Paginas do caderno com colagens, textos escritos nas beiradas, nas margens. Ler seu diário é
um exercício físico.
86
explícito o caráter imediato dos escritos nos cadernos, também nos confronta com a
experiência do ilegível. E quando não conseguimos ler (seja um texto, ou o próprio
mundo) nos questionamos sobre a tão almejada estabilização de sentidos, sobre os
pactos da compreensão que nos parece fundamental, tanto em uma obra literária, quanto
na vida. “É assim que esse profundo processo de instabilização das certezas por que
passa o escritor é devolvido a seus leitores” (KIFFER, 2018, p.102). Neste sentido,
gosto de pensar que a escrita e a leitura nos remetem a um estado de fronteira, a uma
relação baseada na instabilidade, multiplicidade, contradições e, que, por isso mesmo,
nos confunde e nos atordoa, nos levando, por vezes, a não aceitá-la e questioná-la.
Mas se a proposta for ler o diário de Patri com um olho intruso, é
possível ir um pouco além da análise do discurso, ou de narrativas e nos lançar também
em uma sociologia da imagem, tal como propõe Silvia Rivera Cusicanqui (2010).
Quando esse olho entra nas brechas, nos lugares escondidos, ao mesmo tempo em que
ele suspeita e revela as ausências, ele também faz questão de destacar suas alegorias,
reforçando as singularidades daquilo que vê. Este seria, portanto, um convite a
descolonizar o nosso olhar e a nossa própria consciência, um chamado para que o nosso
olhar seja parte de uma experiência completa e orgânica, reintegrada ao olfato, ao tato,
ao corpo todo. Quando conseguimos enxergar esse papel da visualidade na dominação,
podemos também encarar as imagens como uma forma de resistência.
O convite que fica para quem se aventurar a ler cadernos e manuscritos,
portanto, é o de realizar uma leitura não somente do texto, mas das imagens daquele
texto, enxergando nelas interpretações e narrativas sociais, que podem nos oferecer
perspectivas de compreensão crítica da realidade. Afinal, nem sempre as palavras dão
conta de acompanhar as práticas da vida. “Nos cuesta hablar, conectar nuestro lenguaje
público con el lenguaje privado. Nos cuesta decir lo que pensamos y hacernos
conscientes de este trasfondo pulsional, de conflictos y verguenzas inconscientes”
(CUSICANQUI, 2010, p.20). O que a autora defende é que esta particularidade das
palavras criam modos retóricos de nos comunicar, duplos sentidos, falas que escondem
uma série de subentendidos que orientam as práticas, ao mesmo tempo que causam o
divórcio do que se diz publicamente com a ação.
87
Aproveitando a provocação, trago agora um dos desenhos que mais me
chamou a atenção no segundo caderno de Patri. A ideia não é fornecer uma
interpretação fechada sobre ele, mas sim incluí-lo no exercício do olhar intruso.
88
Figura 11: Desenho realizado durante uma espécie de jogo entre Patri e G.S., em que cada um tinha que
desenhar algo na página, construindo uma história em conjunto. A ilustração encontra-se na página 22 do
seu segundo caderno não publicado.
A primeira vez que me deparei com o desenho acima, lembro que ele me
causou desconforto. A violência explícita, o sexo agressivo, misturado com submissão,
palavrão, junto com a imagem da criança, do cachorro, do gato. Era muita informação,
caótica, embaralhada. Fiquei tentando relacionar o desenho a tudo o que eu já sabia da
sua história, ou por meio do que li nos cadernos, ou pelo o que a gente frequentemente
conversava. Mas então fiz um exercício de tentar ler apenas o que estava ali naquela
página, antes de relacionar o desenho com os elementos fora da imagem.
Meu olho primeiro parou na cena da casa. Ali, naquele ambiente íntimo e
privado, um homem com o seu órgão sexual para fora, uma faca na mão, rindo de forma
sádica e falando para a mulher “chupa cabra”. A figura feminina, por sua vez, ajoelhada,
pede ajuda e diz “sim” e “não” ao mesmo tempo. Alguém bate a porta, “tok tok”. Nas
paredes da casa, um quadro e uma teia de aranha. Dentro do cômodo, uma poltrona. Em
cima do telhado, um gato. Fico sem saber agora se olho para o detalhe em baixo da casa,
ou se pulo para cena do canto esquerdo. Vou para baixo, de novo o homem armado. De
novo um “pet” atrás. Não consigo entender tudo o que ele fala. Seria “a gente quer
foder. Bora a casa”? A linguagem é bem coloquial, para não dizer marginal.
Sigo agora com a minha atenção para o topo da página. Novamente arma,
novamente o cachorro. O animal agora está grande e parece que veste uma capa de
super-herói. O bicho ganha voz, fala que veio para matar uma mulher. O homem de
novo com um sorriso, pergunta por Gabriel enquanto ameaça a mulher com algo em seu
pescoço. Ela não responde, somente exclama. Atrás, aparece uma criança. Em cima, um
morcego e um carro. A seta me direciona novamente para a parte de baixo da página.
Uma criança no balanço, o cachorro (sempre ele) ao lado. Interrogações em cima da
cabeça da criança e balões de diálogos que saem dela. “Humana. Hay mama! Fudeo”.
Quase que o lago do canto inferior direito passa desapercebido, junto com o jacaré, o
pato e os peixes.
Era 14 de junho de 2019, estávamos em nossos encontros semanais,
quando perguntei a Patri se ela se recordava do momento em que fez o desenho. Ela
respondeu que sim, que ele era fruto de uma brincadeira que ela tinha feito com G.S.,
89
assim como fazia com a sua mãe e irmã. Cada pessoa tinha que desenhar um elemento,
uma linha, ou uma figura, para que a história fosse construída coletivamente. Patri
começou fazendo a linha da casa, mas quando ele pegou a caneta, desenhou primeiro
uma pistola. “Eu fiz um lago e ele colocou um crocodilo. Colocou o gato no teto,
desenhou o cachorro. Pensei que íamos fazer uma casa e uma família”. Ela ia me
contando e eu ia escrevendo o que ela falava diretamente no meu rascunho, onde
mantenho as anotações sobre o seu diário. Quando perguntei o que tudo aquilo
significava, ela me respondeu que o desenho fala sobre o que ela viveu com G.S. Ele
havia desenhado um sequestrador de seu filho, porque já pensava em tirá-lo dela.
Entretanto, ela não comentou sobre as cenas de sexo e violência contra aquela figura
feminina representada nos desenhos. No momento deste nosso encontro para falar sobre
o seu diário, ela já morava em uma casa de proteção para mulheres que sofreram
violência e estava separada do pai de seu filho.
Não sei se sou capaz de dar uma interpretação para o desenho. Só sei
que, para quem não leu o texto do diário, ou desconhece a história de Patri, ver aquela
ilustração caprichada da capa, com um retrato de família, a sagrada bíblia, o jarro de
flores e o urso de pelúcia e em seguida se deparar com esta outra, perdida no meio do
caderno, é, no mínimo confuso. O desequilíbrio ao dispor os elementos na página, a
construção caótica, agressiva e de conteúdo antagônico com o título do diário deixa o
leitor desavisado perdido, sem um norte de compreensão. Mas passado o desconforto
inicial, se formos pensar fora dos impulsos de uma mente colonizadora, os desenhos nos
falam de uma história viva, submetida a um jogo de forças que constantemente a
atualiza. Retomo aqui o pensamento de Cusicanqui (2010), pesquisadora boliviana de
ascendência aymara e europeia. Apesar de seus estudos estarem relacionados à história
oral andina, acredito que o seu conceito Ch’ixi pode ser lido de maneira mais ampla,
englobando outras realidades e dialogando com a produção textual, iconográfica e
identitária de Patri.
Como explica a pesquisadora conhecida por sua sociologia da imagem,
Ch’ixi é uma palavra de origem indígena aymara que constitui em uma “imagen
poderosa para pensar la coexistencia de elementos heterogéneos que no aspiran a la
fusión y que tampoco producen un término nuevo, superador y englobante”
(CUSICANQUI, 2010, p. 7). Ou seja, um mundo ch’ixi não se refere a algo híbrido, em
90
que temos a fusão dos diferentes, mas se trata de conviver e habitar as contradições. É
uma forma andina de nomear os opostos que coexistem sem se misturar. É sobre não
negar uma parte nem a outra, nem buscar uma síntese, mas admitir a permanente luta
em nossa subjetividade. Apesar de ter sido criado para um contexto andino específico,
em que a autora contextualiza, assim como faz Gloria Anzaldúa, a figura do mestiço
(que não é nem índio, nem europeu, muito menos uma terceira figura híbrida estéril), o
termo trata sobre contradições, um estado que é universal.
É neste sentido que a referência pode nos trazer um caminho de leitura
para os desenhos e narrativas de Patri. As imagens reveladas em seu caderno seriam
capazes de criar uma teoria visual dos poderes aos quais este corpo feminino e refugiado
está submetido? Os conceitos de fronteira de Anzaldúa e ch’ixi de Cusicanqui me levam
a pensar que texto e imagem criam um universo dentro e fora do texto de rebeldia, que
ao mesmo tempo que expõem o fio de arame farpado no qual Patri tenta caminhar e se
equilibrar, revelam também a resistência deste corpo.
Para finalizar essa seção e passar para a próxima, ressalto a importância
de olhar para o caderno de Patri não desassociando conteúdo da forma. Afinal, o que
quis mostrar no início deste capítulo é que texto e desenho co-habitam o espaço das
páginas do diário de Patri sem hierarquias previamente pensadas entre um e outro,
sendo que os dois estão em permanente instabilidade. Como pontua Kiffer (2018), nos
cadernos existe uma rítmica que invade a escrita, “inclusive os traços que não formam
letras ou letras que não formam palavras, e essa explosão sonora acaba por encetar
novos contornos para uma poética-crítica que já não disserte sobre algo, mas o efetue”
(KIFFER, 2018, p.99). Tal fusão cria uma experiência corpo a corpo entre o escritor e
suas narrativas, entre as narrativas e o leitor, que geram espaços e conteúdos críticos,
permitindo que o pensamento não seja estático, ganhando ritmo e poeticidade.
91
louça, depois o chão, os pés, o sovaco, o corpo todo. Varri a casa com uma vassoura
fina. Fiz três preces, para afastar assombração, para afastar a solidão. Um bicho
apareceu para mim. Era um alebrije47 alado. Pacientemente naufrago. Estática. Observo
cada gota, cada centímetro de água que invade o meu navio. Naufragar é não partir.
Achei esses versos perdidos no meu caderno, me lembro do dia em que
os escrevi, momentos antes de encerrar uma parte importante da minha vida em
Roraima. Fiquei pensando em como é difícil nos movimentarmos, sair do nosso lugar e
ir rumo à um desconhecido. Lembro que senti muito medo, uma solidão absurda, mas
sabia que se eu não partisse, morreria afogada. Me pego agora tentando me colocar no
lugar da Patri, me abrindo para a sensação descrita por ela em seu caderno. Penso na
vida que ela deixou para trás, em tudo o que teve que enfrentar.
Tenho certeza que o medo aumenta nossa percepção de mundo. Qualquer
coisa que invada o nosso modo cotidiano, que cause uma ruptura nas nossas defesas e
resistência, que nos tire do aterramento habitual, abre esse portal das profundezas do
nosso interior e causam uma mudança na nossa alma. “The one possessing this
sensitivity is excruciatingly alive to the world”48 (ANZALDÚA, 1999, p. 60). Em meio
à solidão, ao receio de sair da Venezuela e seguir rumo ao desconhecido Brasil, Patri
inicia uma reflexão sobre si, traça os pontos no mapa de sua travessia e vai procurando
os seus lugares no mundo.
47
A crença popular mexicana diz que somente criaturas de outro mundo são capazes de espantar
pesadelos. Os alebrijes são essas criaturas, que surgiram de um sonho que o artesão Pedro Linares López
teve quando estava muito doente no final do século XX e viraram uma criação artesanal, sempre
representando algum animal fantástico.
48
“Aquele que possui essa sensibilidade está terrivelmente vivo para o mundo” (tradução minha)
92
situação de deslocamento forçado, como a vivida por Patri, essa resiliência é quase
imperativa para aqueles que desejam sobreviver no novo ambiente. A mudança na
percepção aprofunda o modo como conseguimos enxergar as pessoas e as
circunstâncias, nos permitindo um refinamento dos sentidos. À medida que
mergulhamos verticalmente, rompemos velhas estruturas e somos acompanhados por
uma nova visão, esse movimento “make us pay attention to the soul, and we are thus
carried into awareness – an experiencing of soul (Self)”49 (ANZALDÚA, 1999, p.61).
Cada incremento de consciência, cada passo dado nesta direção, não deixa de ser uma
travessia.
Essa “nova pessoa” que emerge instintivamente é fruto de uma vida que
se coloca em ação. E nesse movimento percorrido dentro de cada um, Anzaldúa pontua
que o primeiro passo a ser dado é a realização de um “inventário” da própria vida,
colocando a sua história em uma peneira e comunicando a ruptura com tradições
opressivas. Somente depois disso é possível moldar novos mitos para si (ANZALDÚA,
1999). Me parece que é exatamente esse inventário que Patri faz. A angústia, os relatos
de tristeza sobre o seu presente vivenciado no Brasil, a levam a mudar o rumo da sua
narrativa e começar a organizar quem ela é, de onde ela veio, suas lembranças do
passado, como se vê no presente e como se imagina no futuro. Essas histórias,
entretanto, não seguem uma ordem cronológica dos acontecimentos da sua vida.
Apesar de seus relatos não seguirem a linearidade de passado, presente,
futuro, organizo aqui alguns trechos que julguei mais significativos de seu diário com
esta separação cronológica para poder facilitar a compreensão da história de vida de
Patri. Reforço entretanto, que não são momentos dissociáveis, os tempos se mesclam e
coexistem nas suas narrativas e experiências. Passado e futuro estão contidos no
presente e “la regresión o la progresión, la repetición o la superación del passado están
en juego en cada coyuntura y dependen de nuestros actos más que de nuestras
palabras” (CUSICANQUI, 2010, p.55). Assim como no mundo indígena descrito pela
pesquisadora mestiça boliviana, o universo presente da vida de fronteira de Patri é uma
49
“nos faz prestar atenção à alma, e assim somos levados à consciência – uma experiência de alma (Eu)”
(tradução minha)
93
espiral cujo movimento é um continuum que se retroalimenta do passado sobre o futuro,
uma certa consciência que almeja, vislumbra e ao mesmo tempo realiza a
descolonização da sua vida e de seu corpo.
Patri nasceu em Puerto la Cruz, cidade venezuelana localizada no estado
de Anzoátegui, e passou a infância com sua mãe de criação (ou “de crianza” como ela
se refere), até o momento que voltou a viver com a sua mãe biológica, no início da
adolescência. No seu diário fica clara a marcação desses dois períodos. Enquanto o
primeiro suscita nela memórias felizes, o segundo tornou-se tão insustentável que ela
decidiu por fugir de casa aos 15 anos. “Recuerdo que la prioridad en las mañanas era ir
corriendo a comprar a la bodega de Luis una papeletica de leche la “campesina” para
“luego tomarnos esa rica tasita de café con leche con pan que nos preparaba mami”
(PATRI, 2017, p.43).
A lembrança do carinho e cuidado dentro de casa coincide também com
um período de economia estável na Venezuela. Mesmo para uma família humilde como
a dela, era possível alimentar-se bem. Da mesa de café da manhã ela destaca as arepas
com peixe, ou ovos com mortadela. A comida é um tema frequente em seu diário, seja
por meio de recordações do passado, ou da preocupação presente em não manter uma
dieta adequada para uma gestante, assim como as cenas presenciadas na Venezuela de
crianças buscando comida nos lixos.
Quando Patri rememora sua infância, de alguma forma ela sempre traça
um contraponto com os dias atuais. “Es cierto que a lo mejor no teníamos los mejores
lujos dentro de casa, pero gozábamos de tranquilidad y no veíamos o escuchábamos de
violencia” (PATRI, 2017, p.45). Ela não conta nos diários como e o porquê foi criada
por outra mulher. Também não deixa claro o momento em que voltou para a sua mãe de
nascimento, deixando o lar que lhe acolheu durantes seus primeiros anos, entretanto, a
diferença entre as duas é bem marcada na sua narrativa. Sua família de criação era
numerosa: 11 pessoas. Seu pai era pescador e sua mãe de criação trabalhava como
doméstica. À noite, enquanto as crianças jogavam nas ruas, em um tempo que não havia
violência, os adultos assistiam a um programa televisivo chamado “Cheverismo”, ou ao
programa “del chino de Táchira”, que, pelo o que entendi pelos seus relatos, era uma
espécie de Silvio Santos venezuelano.
94
Aos 10 anos de idade, Patri diz em seu diário que já sabia do que gostava,
aos 13 tinha em sua mente vários planos que até hoje não se concretizaram. Aos 15 anos
fugiu de casa porque não suportava a situação de sua vida nos poucos anos que
conviveu com sua mãe biológica e com o “su marido asqueroso y monstruoso” (PATRI,
2017, p. 47). Eis que Patri enfrenta o desafio de contar nas páginas de seu caderno
memórias difíceis sobre o seu padrasto, sobre o dia em que acabou a luz da casa e ele
aproveitou o momento para entrar no seu quarto e começar a tocá-la. “Comenzó a
tocarme mis partes mientras su asquerosa lengua la pasaba por mi oído, yo no
comprendía la verdad y mis expresiones para mi madre fue que el me había violado”
(PATRI, 2017, p.47). Sua mãe, entretanto, não tomou nenhuma atitude à respeito, o que
causou em Patri rancor, afetando sua estabilidade emocional, como ela mesma avalia.
Ela conta de uma inocência que ali foi perdida para dar lugar a uma jovem rebelde que
preferia dormir na rua. “Sólo Dios resguardó mis noches y coloco ángeles y quizás el
diablo, envió demonios. La cosa esta en que tuve que pasar miles de circunstancias,
tuve que aprender a tener real malicia, ya que aun era muy ingenua” (PATRI, 2017,
p.47).
Quando estava lendo o diário de Patri e me deparei com o relato do abuso
de seu padrasto, me lembrei na hora de um dos trechos do livro da norte-coreana
Yeonmi Park. Ao descrever a festa de ano novo em que ela e sua família observavam
em meio a penumbra da cidade de fronteira na Coreia do Norte os fogos de artifício e
luzes que iluminavam o outro lado, na China, Yeonmi fala que não imaginava naquele
momento que ir atrás daquela luz que ela tanto invejava custaria a sua inocência e, por
algum tempo, sua humanidade (PARK, 2016, p.128). Isso porque ela e sua mãe, ao
tentarem fugir para a China, caíram no mercado do tráfico humano para exploração
sexual. Depois de ter sido vendida para homens que buscavam comprar suas esposas, de
ter visto sua mãe ser estuprada na sua frente, Yeonmi, com apenas 13 anos, foi obrigada
a endurecer e sim, perdendo um quê de ternura.
Quando o homem que a comprou para ser sua esposa, cumpriu a
promessa de trazer seu pai que ainda estava na Coreia do Norte também para a China,
Yeonmi conta que umas das coisas que o marcou no reencontro foi perceber que sua
filha já não era mais uma menina, que sua infância havia sido privada. “Você perdeu
seu doce cheiro de bebê, Yeonmi-ya”, ele disse suavemente. “Eu tenho saudade de
95
como você cheirava quando criança” (PARK, 2016, p.184). Meninas como Patri e
Yeonmi, quando são submetidas a tamanha violência, entram em um caminho sem volta
de compreensão do mundo e da forma que encaram viver esse mundo.
Quando Patri migrou para o Brasil, ela já tinha perdido de alguma forma
a sua inocência. A violência sofrida na adolescência, a fuga de casa, estes eventos já
haviam catalisado a ruptura do seu tecido cotidiano. A vida se encarregou de leva-la
para um estado de fronteira antes mesmo dela sequer imaginar chegar a um novo país.
Longe de sua família, sozinha e se sentindo perdida com apenas 16 anos, ela foi
conhecendo a novas pessoas e lugares, escreve que teve amores, ilusões e decepções.
Ela chega a relatar alguns casos com homens sempre mais velhos e estrangeiros, um
árabe, outro colombiano, com quem chegou a se envolver por bastante tempo. E assim
foi seguindo a vida, segundo ela, “viviendo mi presente sin dejarme envolver tanto con
mi pasado asi fue transcurriendo el tiempo. Falta poco para mis 18 años y creo aver
vivido de todo, mas no es asi” (PATRI, 2017, p.47).
Os relatos da sua vida presente estão ligados à sua condição de mulher,
refugiada, vivendo no Brasil e grávida de um homem que ela conheceu na rua.
Normalmente se referem a momentos de angustia, raiva e preocupação, talvez porque
expressar o “agora” faça mais sentido para ela como uma forma de liberar tudo aquilo,
de escrever como terapia. Existe um descontentamento com a sua vida, um sentimento
de não pertencimento. “Aquí tu no tienes vida social, tu no tienes ese derecho, tus
50
“Nós perdemos algo neste modo de iniciação, algo é tirado de nós: nossa inocência, nossos modos
inconscientes, nossa ignorância segura e fácil. Há um preconceito e um medo do escuro, ctônico
(submundo), material como depressão, doença, morte e as violações que podem trazer essa ruptura.
Confrontar qualquer coisa que rasga o tecido do nosso modo cotidiano de consciência e nos empurra para
um sentido menos literal e mais psíquico da realidade aumenta a consciência e a capacidade e la
facultad” (tradução minha)
96
amistades serán tu elección, quieren confiar en alguien la cual siempre le tendrás
miedo a que te falle que es lo mas probable” (PATRI, 2018, p. 4). Na angústia, ela
conversa com Deus, pergunta se ele se esqueceu dela, afinal, a única coisa que deseja é
ter uma vida “normal”, ter uma vida social, coisa que ela não tem devido ao preconceito
dos brasileiros com os venezuelanos. Ela deixa expresso no seu caderno essa xenofobia
vivida diariamente pelos migrantes e refugiados em Roraima.
No seu caso, como mulher e trabalhadora sexual, essa discriminação é
ainda mais forte e também abordada em seu diário. Ela conta de um dia em que estava
na rua, enquanto esperava que algum cliente fosse atrás dos seus serviços, olhou para o
céu e se imaginou saindo daquele lugar, em outro trabalho ganhando o necessário para
nunca mais voltar para as ruas. “Miré al cielo le suplique a Dios que me ayudara a salir
de aquel lugar que solo me causaba dolor dentro de mi, recuerdo que pasaron três
carros y el único que se lograba escuchar salir dentro de aquellas ventanillas eran
palabras de ofensas ai a mi” (PATRI, 2018, p.10). Essa cena para mim é bastante
significante pela geografia desses corpos. O dela público, exposto nas ruas, sem nenhum
obstáculo dos olhos de quem julgava e da boca de quem xingava. Do outro lado, um
carro, uma janela e vozes, por trás do vidro, blindada por aquela propriedade privada, se
preserva a identidade de uma voz raivosa e opressora.
Outro detalhe desta mesma cena que merece ser destacado é o sonhar
constante com outra realidade que não seja a presente. Em vários momentos ela fala de
como gostaria que as coisas fossem diferentes. Neste contexto, uma das únicas saídas às
vezes é sonhar, mesmo que seja por alguns instantes. Esta é uma artimanha que observei
que se repete nos relatos autobiográficos das mulheres que li para a presente pesquisa.
Em Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus diz que cata papel, mas não gosta. E é
por isso que ela faz de conta que está sonhando.
97
Como propõe Anzaldúa (1999), de alguma forma, essas mulheres estão
presas em uma (auto) história que não as deixa partir. Fora da cena, elas podem ser as
diretoras do seu próprio filme, roteiristas, operadoras de câmera. Mas dentro do quadro,
no que se enxerga, são atrizes, personagens, as paisagens, os animais, desde o cachorro,
até o mosquito. Normalmente, essas narrativas são fruto de histórias representadas em
suas próprias cabeças durante períodos de privação sensorial. Essa sensação de estar
atuando no próprio filme é compartilhada também na autobiografia de Yeonmi Park.
“Mas eu só estava me obrigando a ficar viva enquanto me observava à distância, como
se estivesse fazendo um papel num filme que não terminava nunca” (PARK, 2016,
p.171). Fazendo uma referência à Goffman (2014), em certo sentido, todas as pessoas
estão sempre e em cada lugar, representando um papel, às vezes de forma mais
consciente, outras vezes, menos. E é nesse jogo de cena que nos conhecemos uns aos
outros e nos conhecemos as nós mesmos.
Os múltiplos papéis desempenhados por Patri enquanto mulher, que hora
tem que assumir as expectativas de mãe, outra de esposa, passando pela garota de
programa, tudo isso na pele de uma migrante em terras estrangeiras, serão abordados na
próxima sessão deste capítulo. Para finalizar a leitura do passado, presente e futuro
expressos nos cadernos de Patri, é preciso relembrar que cada um dos cadernos
analisados foi escrito em um momento diferente e isso acaba refletindo não só nos
relatos do “agora”, como nas projeções de futuro.
Quando Patri escreveu seu primeiro caderno, ela vivia na casa do pai de
seu filho e, apesar de todas as discussões e violência, era com ele que queria ficar e
fazia planos de futuro. Imaginava uma família feliz entre os três, se via trabalhando fora
das ruas, dava até rosto para o seu filho ainda na barriga: seria branco e de olhos claros
como o pai. Já no segundo caderno, a relação com G.S. vai se tornando cada vez pior e
ela vai ficando sozinha. Nos momentos em que teve de ser hospitalizada por conta de
complicações na gravidez, ele não a acompanhou. O desejo de uma família feliz e unida
vai perdendo espaço para súplicas mais genéricas, que só esperam que tudo saia bem.
Toda sua perspectiva de futuro se volta ao seu papel de mãe. Na última página do seu
segundo caderno, Patri faz uma lista das coisas que ela não pode se esquecer no futuro.
Elenca cada uma das frases que G.S. lhe falava constantemente, um contraditório
inventário do esquecimento, gravado para sempre em seu caderno.
98
Figura 12: Última folha do segundo caderno de Patri, onde ela organiza uma sequencia de frases de G.S.
faladas para ela.
99
3.3 Nos les escribiré historias de Amor
She_ writes while other people sleep. Something is trying to come out.
She fights the words, pushes them down, down, a woman with morning
sickness, in the middle of the night. How much easier it woul be to
carry a baby for nine months and then expel it permanently. These
continuous multiple pregnancies are going to kill her. She is the
battlefield for the pitched fight between the inner image and the words
trying to recreate it. La musa bruja has no manners.
Doesn't she know, nights are for sleeping?51 (ANZALDÚA, 1999,
p.95-96)
51
“Ela escreve enquanto outras pessoas dormem. Alguma coisa está tentando sair. Ela luta contra as
palavras, as empurra para baixo, uma mulher com enjoos matinais, no meio da noite. Quão mais fácil
seria carregar um bebê por nove meses e depois expulsá-lo permanentemente. Essas múltiplas gestações
continuas irão mata-la. Ela é o campo de batalha da luta entre a imagem interna e as palavras que tentam
recriá-la. A musa bruxa não tem boas maneiras. Ela não sabe que as noites são para dormir?” (tradução
minha)
100
(ANZALDÚA, 1999, p.39). Existe uma alta expectativa em relação ao seu filho: ela
quer ser admirada por ele, cria uma imagem de mulher ideal e o seu receio é não ser
reconhecida por todo esse esforço, humildade e altruísmo. O seu filho é colocado como
eixo central e a esperança de salvar o seu relacionamento com G.S. “Quiero que sé un
niño obediente y que cepas que tu papi te ama tanto como yo te amo, eres nuestra
fuerza y motivo de que los 2 continuemos juntos” (PATRI, 2018, p.29). Ela segue
conversando com o seu filho, dizendo o quanto deseja ficar com G.S. por muitos anos
para que o vejam crescer, sorrir, chorar, mostrar o mundo sempre juntos.
“Hoy me desperté con poco dolor, mi bebé hermoso me has hecho llorar,
me has hecho sentir miedo, ansiedad, preocupaciones, me has hecho sentir la felicidad
plena de sentirte dentro de mi, se que aun eres pequeño para comprender” (PATRI,
2018, p.26). Antes mesmo de ele nascer, Patri já pede perdão por tudo o que ela o fez
passar, seja por falta de maturidade, ou porque não conseguiu evitar. A mãe ainda em
gestação, ao conversar com o seu filho, conversa também com a sua menina, a sua
criança no passado, que ainda ecoa no presente. É como se ela não quisesse que o seu
filho passasse pela mesma coisa. A violência sexual durante a sua adolescência a
marcou profundamente e aparece no seu diário mais de uma vez.
Esto fue lo que logre obtener antes de mis 24 años. Recuerdo salir de
casa de mi madre cuando tan solo tenia 15 años de edad. Si hay miles
de niños en las calles, pero aun era muy jovencita para asumir la vida
que por cierto no es nada fácil, mas esa escolia o esa decisión era la
mejor que pude tomar de no ser asi, yo le hubiera dado las millones
de posibilidades al marido de mi madre de que abusaras sexualmente,
por que en si abusaba de mi en todos los sentidos, recuerdos aquellos
golpes que constancia días tras dia y sin motivo tenia que aguantar
por que mi madre jamas tuvo el coraje de enfrentarlo, recuerdo
aquella constante discusiones que la realidad para mi no tenían
ningún sentido, siempre tenia que estar escuchando aquel hombre
humillar a mi madre, golpearla, jamas olvidare las noches de terror
que tuve que pasar a causa de este tipo (…) (PATRI, 2018, p. 35)
101
que yo le ofrezco. Yo solo lloraba, escuchaba todas esas cosas y mi
mamá me tomaba fuertemente del brazo para que escuchara junto a
ella. (PATRI, 2018, p.36)
A violência a qual Patri e sua mãe foram submetidas, para além de uma
violência sexual, nos revela uma disputa de poder. De poder e posse sobre o seus
corpos, sobre as suas vidas. Mais do que uma desigualdade, o que se estabelece nesse
tipo de relação é a ideia da “refeudalização de territórios gigantescos” (SEGATO, 2016
p. 21). A perversidade desta lógica está no fato de que essa mesma cultura que domina,
também traz um acervo de enunciados que se pretendem preocupados com a proteção
das mulheres. Na refeudalização dos territórios, o espaço da mulher é delimitado sob o
discurso de um ilusório cuidado. “Mothers made sure we didn´t walk into a room of
brothers or fathers or uncles in nightgowns or shorts. We were never alone with men,
not even those o four own family” (ANZALDÚA, 1999, p. 40). Ao invés de educarmos
os homens a não abusarem, limitamos o espaço de circulação das meninas e assim a
sociedade acredita que as protege.
Mas acima da preocupação individual, Anzaldúa ressalta que existe um
direito coletivo, tribal, que está centrado no parentesco. Ou seja, o bem estar da família
e da comunidade é mais importante do que o bem estar do indivíduo. Qualquer pessoa
existe primeiro como parente (filha, mãe, sobrinha, pai) para depois existir como “eu”.
Isso explica o porquê do silenciamento das famílias frente à tantas violências que
acontecem dentro das quatro paredes de casa. Preservar aquela unidade, ainda que
tóxica, é o mais importante.
Se quando chegou ao Brasil Patri já carregava consigo essas tantas
marcas, ao entrar no universo do trabalho sexual em terras estrangeiras ela se torna
ainda mais estigmatizada. O seu relato sobre o tema é bem direto, ela começa com a
descrição do momento em que estava parada ali, na rua, à noite. Mas até então ela evita
nomear exatamente o que estava fazendo. Quando se refere ao seu cliente, fala, com
eufemismo, ser um homem cujo interesse era manter prazer.
102
A primeira tentativa lhe causou tanto mal estar que ela acabou por ficar
com febre. Existe um peso, uma culpa e um medo que acabam por se expressar também
em seu corpo. Ela conta que, ao chegar em casa, tomou uma ducha longa, enquanto
chorava embaixo do chuveiro, pedia para que toda a sujeira do seu corpo fosse embora
junto com aquela água fria. No outro dia, mesmo com febre, fez a segunda tentativa. “Y
asi termine de irme a colocarme en esa esquina y me llego un viejo no recuerdo muy
bien su rostro pero se que era asqueroso me oferece 30 y le digo que no! Si tienes 50 rs
si” (PATRI, 2017, p.25). Patri acabou cedendo a proposta e foi com ele por 30 reais.
Fala também que o velho logo a colocou na posição de quatro “mejor conocida como la
del perrito”. Em seu diário, ela revela que se sentia fraca, que quase desmaiava.
O homem então percebeu que ela se sentia mal e perguntou: “Você esta
bien?” Nessa parte ela mescla um pouco as palavras em português e em espanhol e logo
depois volta à língua materna para relatar não a sua resposta direta à ele, mas para dizer
como ela sentia no momento. “No la verdad no y quebre en llante del dolor que me abia
generado la posicion y la fuerza con la que el se dispuso para tener sexo conmigo”
(PATRI, 2017, p. 26-27) .Ela conta ainda que o velho ficou olhando para ela e fazendo
outras perguntas. Naquele momento o trabalho terminou, ao deixa-la, ele entregou 100
reais e lhe disse: “cuidate”. Em seguida ela conta que procurou uma “resien conocida”
para que a ajudasse a comprar os medicamentos que precisava. O texto é sobre a sua
perspectiva naquele momento, sem tentar fazer qualquer tipo de análise, ou julgamento
dos clientes. Isso pode ficar a cargo da interpretação de cada leitor.
Em a Representação do Eu na Vida Cotidiana, Ervin Goffman (2014)
afirma que o narrador pode ocultar seus próprios desejos por trás de afirmações que
apoiam valores aos quais o leitor é obrigado a absorver. Há geralmente uma espécie de
divisão no trabalho definicional. “Cada participante tem a permissão de estabelecer a
regulamentação oficial experimental relativa a assuntos que sejam vitais para ele, mas
que não sejam imediatamente importantes para outros: por exemplo, as racionalizações
e justificativas pelas quais explica sua atividade passada” (GOFFMAN, 2014, p.22).
Para chegar ao ponto de contar a sua vida como trabalhadora sexual, C.R.Patri elenca os
acontecimentos. Ela primeiro fala que não conseguiu um emprego, depois que ficou
103
doente e que, então, resolveu ir para a rua, pediu perdão a Deus e aceitou a proposta de
um velho asqueroso.
Em seu segundo caderno, Patri descreve o dia em que conheceu G.S. Ela
estava parada em uma esquina, esperando seus clientes em um dia rotineiro de trabalho,
quando passou um homem de bicicleta e parou para conversar com ela. Diferente dos
outros, ele a cumprimentou, perguntou como estava, pequenos gestos que para ela
impactaram por fugir ao que estava acostumada. “(...) este chico duro casi 20 minutos
hablando conmigo cosas que nada que ver con lo que hacia. Luego llegó otro hombre y
me llamo porque deseaba estar conmigo, me sentí avergonzada delante de el” (PATRI,
2018, p. 11). Depois de um silêncio constrangedor, o homem de bicicleta pergunta se
ela trabalha com “aquilo”. A pergunta lhe incomodou, porque lhe pareceu sem sentido,
já que ele a tinha visto parada naquele lugar conhecido por ser um ponto de prostituição.
104
Considerações Finais
52
BELCHIOR, 1976, Alucinação
105
Digo isso porque foram os seus escritos, a forma que ela lida com o seu
cotidiano, dando atenção a ele e o materializando nos seus cadernos, que me tiraram do
piloto automático que normatiza e normaliza as opressões. É o que Segato (2016)
ressalta ao fazer referencia a uma das célebres falas de Andy Wahrol: “the more you
look at the same exact thing, the more the meaning goes away, and the better and
emptier you fell”53 (SEGATO, 2016, p.21). Creio que essa frase se aplica a dois
diferentes contextos que nesta pesquisa se interseccionam: a falta de empatia com os
migrantes e as cristalizadas formas de poder sobre as mulheres.
Vivemos um gradual afastamento e dessensibilização das pessoas em
Roraima frente à vulnerabilidade dos venezuelanos e venezuelanas que chegam ao
Brasil. São tantos que batem à porta, são tantos os corpos expostos na rua sem terem
para onde ir, é como se a cena causasse tamanha estafa, que embaçasse a vista. Por
outro lado, o pacto do patriarcado, da masculinidade é tão legitimado que encobre todas
as outras formas de dominação e abuso. Por trás da violência sexual, o que temos é uma
violência cujo objetivo é o exercício do poder e não apenas a satisfação de uma
necessidade sexual isolada. Discutir esses dois pontos é importante para fazer uma
leitura do diário de Patri. Mais do que um diário íntimo, enxergo a sua narrativa como
uma proposta interpretativa de uma situação social, uma possibilidade de olhar o
cotidiano em seu aspecto político.
Tendo em vista o cenário na qual Patri, essa mulher venezuelana, vive no
Brasil, me faz pensar o significado de viver na fronteira, trazido por Anzaldúa. Mais do
que um lugar físico, a fronteira chama essas mulheres à ação a partir do momento que
elas se tornam cientes de suas múltiplas personalidades, contradições e ambiguidades.
Ao ganhar essa consciência, essa migrante, essa mestiça, não consegue mais permanecer
apenas dentro de si, ela é chamada à resistir.
53
Quanto mais você olha para exatamente a mesma coisa, mais o significado daquilo desaparece e melhor
e mais vazio você se sente (tradução minha)
106
borders)” and “be a crossroads” but to do so requires activism and
not simply being born a racialized, gendered mestizo in the
borderlands”54 (ANZALDÚA, 1999, p. 12)
Patri não teve acesso aos pensamentos de Anzaldúa. Não aos seus livros,
mas talvez muito mais do que eu, ela compreende e consegue adentrar nas profundezas
dessa reflexão descrita pela pesquisadora. Justamente porque ela compartilha a
consciência dos que sempre se equilibraram na ponta fina de arame farpado. Em suas
próprias palavras, “los que estamos de este lado quizás estamos más consientes de la
realidad de los que siempre están solo opinando sin motivo” (PATRI, 2018b, p.8). É
portanto por meio de seu diário que ela vai nos confrontar a enxerga-la não a partir das
dualidades às quais estamos acostumados. Seu dia a dia subverte essa lógica, pois
mostra uma mulher com múltiplas facetas, que transforma o seu medo, em força motriz.
Para expandir o conceito de fronteira, defendo que Carolina Maria de
Jesus (2014) e Bruna Surfistinha (2005), por exemplo, também são mulheres em estado
de fronteira. Não porque sejam migrantes, mas porque também vivem nas bordas, em
territórios de existência contestados. A primeira, uma favela, a segunda, uma garota de
programa. E as duas, contradizendo ao esperado para mulheres como elas, escrevem e
publicam livros. E apesar de as duas serem sucesso de venda, sua literatura é contestada,
sua qualidade posta em questão, o fato de serem diários já não teriam tanto valor, logo
de partida, como teria um romance. Estamos diante também de uma literatura em estado
de fronteira, tal qual suas autoras.
Ao me propor a realizar uma pesquisa sobre uma mulher que escreve,
que migra, entra na prostituição, sofre violência e engravida, escolho caminhar por cada
um desses aspectos trazendo comigo algumas palavras-chave: fronteira, poder,
cotidiano e resistência. No primeiro capítulo, contextualizo essa fronteira geográfica e
simbólica imposta à Patri no momento em que ela migra para o Brasil. Para tanto,
54
“A consciência da existência em estado de fronteira a estimula a “lutar duro” para resistir à estase, “ao
elixir de ouro acenando de dentro da garrafa”, bem como a continuar sua estratégia de resistência em
outra guerra onde o “cano da arma” e “a corda esmagando o vazio da sua garganta” ainda persistem.
Sobrevivência pode significar que “você deve viver sem fronteiras” e “ser uma encruzilhada”, mas fazer
isso requer ativismo e não simplesmente ter nascido como uma mestiça mulher e de raça nas fronteiras”
(tradução minha)
107
retomo o histórico das migrações em Roraima, desde o tempo dos nordestinos, até ao
fluxo mais recente de venezuelanos e venezuelanas. Em ambos os casos, a relação entre
os que chegam agora e os “cidadãos de direito”, habitantes anteriores destas terras, estão
calcadas no poder, em uma colonização do território e dos corpos que se tornam ainda
mais visíveis sobre as mulheres. Existir e resistir, dia após dia, neste novo território de
fronteira impõe a cada uma delas uma certa rebeldia.
Os diários e autobiografias, neste caso, podem ser enxergados como a
materialização da resistência. “Aquí en la soledad prospera su rebeldia. En la soledad
Ella prospera” (ANZALDÚA, 1999, p.45). Sair do seu país, chegar em um outro
território que a expurga, impõe uma solidão capaz de encontrar companhia apenas na
escrita. O cotidiano, quando compartilhado nas folhas de um caderno, liberta a sua
autora da prisão do íntimo. Diários são na verdade o contrário da introspecção, são o
vômito, o parto do que está dentro e deseja sair, ganhar o mundo. Mas enxergar as
narrativas de si desta forma, nos requer também uma rebeldia, nos pede para cruzar as
fronteiras do cânone literário que ainda contesta os escritos das mulheres, que
encaixotam os diários como testemunhos e questionam a veracidade das autobiografias.
Por fim, gostaria de deixar registrado que o processo de escrita da
presente dissertação me marcou como pesquisadora, porque me fez olhar também o meu
cotidiano, me obrigou a sair da minha zona de conforto, migrar o meu pensamento. E
isso somente foi possível por meio de meu encontro com Patri, de um caminhar
compartilhado. Ao valorizar o que ela escrevia, me interessando por sua história, Patri
escrevia cada vez mais, cada vez com mais reflexões sobre o seu mundo. Esse ânimo
dela também me alimentava, como pesquisadora e como mulher. Traçamos uma rotina
de trabalho, começamos a pensar na publicação dos seus diários.
Gostaria que Patri lesse essa dissertação, que participasse da defesa da
minha banca. Mas enquanto escrevo as considerações finais deste trabalho, tento ligar
para ela e não recebo retorno. Essa semana soube que ela saiu da casa de proteção onde
ficava, depois de brigar com uma das moradoras. Sua vida é assim como o seu texto: às
vezes some e deixa apenas os vazios das páginas. Depois regressa, com tantas histórias
que não cabem direito nesses lapsos de tempo materializados nas folhas em branco. E
foi exatamente assim, após minha defesa, que ela novamente apareceu. E agora,
enquanto reviso o meu texto final, tenho a alegria de afirmar que continuamos a pular
108
muros e cruzar fronteiras. Juntas fazemos parte de um coletivo, Ateliê Elas no Mundo.
Com mais 25 mulheres, com outros colegas artistas, estamos nos trabalhando, criando
nossas narrativas autobiográficas, queremos contar nossas histórias, esculpir nossas
vidas. Alô mundo, este ano não morreremos.
109
Referências Bibliográficas
Publicações
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Documentos
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