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Canções do Lar: A poesia de Emília Freitas na Literatura Cearense do Século XIX

Carla Pereira de Castro1

Resumo: A escritora Emília Freitas é reconhecida como a primeira mulher a escrever


um romance fantástico no Brasil publicado ainda em 1899, A Rainha do Ignoto.
Entretanto sua obra inaugural é o livro de poemas Canções do Lar, impresso em 1891.
Na obra a autora se dirige aos censores e pede aos leitores que sejam sensíveis pois
conforme o título seus poemas versarão sobre o seu quadro familiar. O artigo Canções
do Lar: A poesia de Emília Freitas na Literatura Cearense do Século XIX, se propõe a
apresentar a obra e a realizar uma análise dos poemas selecionados. Para fundamentar
nossas pesquisas utilizaremos os estudos de Constância Lima Duarte e Alcilene
Cavalcante, que se dedicam ao resgate de escritoras excluídas e silenciadas do cânone e
analisam o papel da mulher na Literatura e na Sociedade.

Palavras-chave: Poesia. Canções do Lar. Emília Freitas. Século XIX.

1
Mestre em Literatura Comparada pela UFC – Universidade Federal do Ceará
INTRODUÇÃO

A participação na Literatura Cearense do final do século XIX era praticamente


restrita aos intelectuais do sexo masculino que ao longo dos anos demarcaram seus
espaços na Política e na Literatura, amparados pela cultura do patriarcalismo onde as
mulheres deveriam se dedicar somente aos cuidados com o marido e o lar. Poucas foram
as mulheres que ousaram ingressar nessa seara.

No século XIX tivemos a participação de Francisca Clotilde Barbosa de Lima


(1862-1935) e de Anna Nogueira Baptista (1870-1967) nos principais periódicos da
época e participando de agremiações literárias, como a Padaria Espiritual e o Club
Literário. Algumas escritoras preferiram a utilização de pseudônimos como Maria
Rodrigues Peixe que assinava como Alba Valdez ((1874-1962) e Francisca Clotilde
Barbosa de Lima que preferiu assinar muitos dos seus textos apenas com suas iniciais
ou como Jane Davy. Essa era uma forma de ingressar na Literatura sem sofrer os
preconceitos vivenciados pelas mulheres que escreviam no final daquele século.

Emília Freitas (1855-1908) e Francisca Clotilde Barbosa de Lima foram as


únicas mulheres escritoras que publicaram obras aqui no Ceará no final do século XIX.
Em 1891 Emília Freitas publicou Canções do Lar e em 1899 A Rainha do Ignoto
(Romance psicológico). Francisca Clotilde publicou por sua vez em 1881 Noções de
Aritmética e em 1897 Coleção de Contos. Analisar essas obras é um trabalho
desafiador, pois ao longo dos séculos XIX e XX muitas escritoras ficaram silenciadas e
invisibilizadas pela crítica e pela história literária. Os estudos sobre a Literatura de
autoria feminina começam a partir da década de 1980 e resgatar a autora pressupõe um
exercício de resgate dos seus textos que encontram-se nos setores de obras raras de
bibliotecas, nas mãos de bibliófilos ou foram perdidas ou deteriorizadas pela ação do
tempo. Nesse artigo pretendo realizar a apresentação da obra Canções do Lar,
desconhecida pelo grande público e analisar alguns poemas.
Referencial Teórico

A historiografia que aborda a participação da mulher na sociedade e nas letras ao


longo da história da humanidade está sendo revista, tendo em vista que o seu
apagamento e a sua invisibilidade não poderiam permanecer eternamente no silêncio. É
notório que as mulheres tiveram participação nos movimentos sociais e nas artes,
entretanto seus nomes não ficaram registrados na literatura. A pesquisadora Constância
Lima Duarte nomeia esse apagamento com a terminologia Memoricídio, que ao pé da
letra significa a morte da memória ou o apagamento da memória. Em seu artigo
Arquivos de mulheres e mulheres anarquivadas: histórias de uma história mal
contada, Duarte lembra que no clássico estudo Um teto todo seu, de 1929, Virginia
Woolf, ao visitar bibliotecas à procura de obras escritas por mulheres, e constatar
o número quase insignificante dessa produção, atribuiu à profunda misoginia que não
cansava de afirmar a inferioridade mental, moral e física do gênero feminino, as
poucas chances que então eram dadas às mulheres. Felizmente Woof não foi a única
mulher, escritora, pesquisadora a constatar essa ausência, hoje somos muitas estudiosas
que se dedicam ao resgate das escritoras silenciadas e invisibilizadas ao longo dos
séculos.

Para confirmar a ausência do registro do nome de escritoras cearenses nascidas


no século XIX, nas obras que falam sobre a Literatura Cearense, tomamos como
exemplo alguns livros consultados para o estudo. Na obra Literatura Cearense de 1976
do professor Sânzio de Azevedo podemos verificar que foram estudados quase duzentos
escritores homens e apenas cinco mulheres, são elas: Cândida Galeno, Lúcia Fernandes
Martins, Margarida Sabóia de Carvalho, Marly Vasconcelos e Rachel de Queiroz,
autoras do século XX. Augusto Linhares em sua Coletânea de Poetas Cearenses de
1952 destaca mais de 80 autores homens e apenas 8 escritoras, são elas: Ana Nogueira
Batista, Fernanda Brito, Francisca Clotilde, Henriqueta Galeno, Jandira Carvalho, Maria
de Lourdes Vasconcelos Pinto, Stefania Rocha Bezerra e Úrsula Garcia. Em Poetas
Esquecidos de 1938 do estudioso Mario Linhares, temos mais de vinte poetas e apenas
três poetisas, Auta de Souza, Branca Bilhar e Carmen Cinira. Em Ceará Intellectual de
Joaquim da Costa Nogueira de 1910, observamos um número maior de escritoras nele
são apresentadas seis escritoras e 18 escritores. São elas: Adilia de Luna Freire, Anna
Facó, Francisca Clotilde, Francisca de M. Cesar Barcellos, Alba Valdez e Antonietta
Clotilde. Acrescentamos ainda o estudo de Mário Linhares História Literária do Ceará
de 1948, onde estão retratados quase duzentos escritores e apenas 12 mulheres, dentre
elas: Ana Nogueira Batista, Diva Câmara, Francisca Clotilde, Maria Duarte, Emília de
Freitas, as irmãs Galeno, as irmãs Sampaio, Ùrsula Garcia, Alba Valdez e Rachel de
Queiroz. O escritor acrescenta dois nomes que até o presente momento eram
desconhecidos do contexto literário cearense, Diva Câmara escritora e atriz e Maria
Duarte poetisa que viveu grande parte da sua vida no Rio de Janeiro, escrevendo para
imprensa e participando da vida intelectual da cidade.

Para conceituar escrita feminina é preciso observar algumas acepções acerca do


objeto. A escrita feminina é feita somente por mulheres? Para mulheres? Sobre as
mulheres? Defende ideologias feministas? Para a pesquisadora Cixou a escrita feminina
denomina-se feminina quando o discurso para de ser centrado no homem.

Ao utilizarem-se da escrita para expor os seus pensamentos e ideais as escritoras


romperam com a dominação patriarcal da época produzindo discursos próprios onde
defendiam seus ideais. Se em suas poesias não estão estampados discursos feministas
mas expressam a realidade e as concepções de uma época em que a mulher deveria ser
submissa ao homem e não tinha liberdade para falar. O apagamento do nomes de nossas
escritoras não se justifica, dada a importância de suas atuações nas agremiações
literárias e contribuições na imprensa cearense do século XIX, em jornais, revistas e nos
almanaques.

No século XIX nem todas as mulheres tinham acesso a educação, as famílias


mais abastadas providenciavam professoras particulares para promover a educação das
filhas, enquanto os filhos eram mandados para Recife, Rio de Janeiro ou para Europa.
Vania Vasconcelos na obra No Colo das Iabás, retrata um pouco da realidade
vivenciadas por nossas poetisas.

Se a informação era restrita, o espaço para publicações de textos de


autoria feminina não existia. Muito lentamente, esses espaços foram
surgindo em jornais e revistas ditos femininos por sua circulação e
temas limitados. Segundo Lajolo e Zilberman, após a independência, o
esforço de construir a nação faz crescer a militância em torno da
educação de mulheres, já que, argumentava-se então, essa era a
condição fundamental para estabilizar a vida familiar no país e torná-
lo apto ao progresso.Podemos denominar feministas aquelas militantes
pelo ensino das mulheres, visto que, mesmo sem pertencerem a um
movimento organizado, trabalhavam em iniciativas individuais que
construíam, os primeiros passos de alguma emancipação. A educação
foi uma conquista fundamental. O acesso à leitura mais diversificada e
a coragem de escrever e publicar ideias próprias foram etapas que
resultaram na posterior organização de mulheres em torno de outros
direitos.

(VASCONCELOS, 2015, p.32).

A pesquisadora Elódia Xavier em seu estudo Declínio do Patriarcado, assinala a


temática da família presente nos textos de autoria feminina.

Basta a leitura de vários textos de autoria feminina para se perceber a


recorrência do tema da família. Voltadas, sobretudo, para o espaço
doméstico, privado, as mulheres, ao construírem seu universo
ficcional, priorizam as relações familiares, “os laços de família”,
citando Clarice Lispector. Estes laços, protetores e constritivos, são,
frequentemente, elementos estruturantes dos conflitos narrados. A
família é, de fato, um tema que se impõe àqueles(as) que se interessam
pela problemática feminina, seja ela abordada pelos mais diferentes
campos do saber.

(XAVIER, 1998, Pág. 13)

Constatamos através da leitura dos poemas de Emília Freitas na obra Canções


do Lar a presença da temática familiar.

Emília Freitas, seu nome de batismo é Emília de Freitas Vieira nasceu na cidade
de Jaguaruana, distrito de Aracati em 11 de janeiro de 1855. A cidade de Jaguaruana só
deixa de ser distrito de Aracati a partir de 1865. Hoje seus conterrâneos defendem como
sendo Jaguaruana a sua naturalização e não Aracati. Filha do tenente coronel Antônio
José de Freitas e de Maria de Jesus Freitas. Seu pai faleceu em 1869 deixando sua mãe
viúva e com 12 filhos, dos quais quatro poucos anos depois, também faleceram. Na
época Emília Freitas estava com quatorze anos e sofreu muito a ausência do pai e as
dificuldades financeiras.

Após a morte do seu pai veio residir em Fortaleza onde se dedicou aos estudos
na Escola Normal, dentre eles o estudo das línguas estrangeiras do francês e inglês.
Exerceu o magistério em Fortaleza e em Manaus. Colaborou em vários periódicos
dentre eles: O Lírio, O Libertador, O Cearense, O Estado do Ceará, A Mocidade, A
Brisa, e a Província.
Sua presença era constantemente solicitada para participar de eventos culturais,
dentre eles os movimentos em prol da abolição dos escravos no Ceará, sendo convidada
para ser a oradora da solenidade de instalação da Sociedade das Cearenses Libertadoras,
em 1883.

Após o falecimento dos seus pais, e com os terríveis efeitos da grande seca do
final do século, Emília embarca em companhia do irmão Alfredo Freitas para Manaus.
Lá ela foi nomeada professora do Instituto Benjamin Constant, onde ensinou nos cursos
primário e secundário. No ano de 1900 Emília Freitas casa-se com o jornalista Arthunio
Vieira, na época o casal morava em Manaus e Emília lecionava no Ginásio
Amazonense, seus versos já eram publicados nos jornais, bem como apreciações sobre o
romance A Rainha do Ignoto. Em 1900, Emília e seu esposo o jornalista Arthúnio
Vieira retornam ao Ceará e vão morar em Maranguape, lá em 1901 fundam o jornal
espírita Luz e Fé, o primeiro periódico espiritista do Ceará que trazia o lema “Fere-me
mas ouve-me”, do qual podemos inferir as perseguições a que o casal foi submetido por
preconceito a doutrina espírita.

Emília Freitas volta para Manaus e falece no dia 18 de agosto de 1908, tendo o
seu falecimento noticiado por vários periódicos de Fortaleza e de Manaus, lamentando a
perda da escritora e professora dedicada ao ofício das letras.

O livro Canções do Lar é composto de 128 poemas, suas temáticas versam sobre
a libertação dos escravos, poemas dedicados aos amigos e aos familiares, poemas
sentimentais que expressam a vida de Emília Freitas e a perda precoce de seus pais e
irmãos, e poemas que abordam a sua religiosidade e a sua fé. A obra possui 310
páginas, uma extensa coletânea de poemas que confirmam a sua profícua produção.
Trata-se de uma obra rara e esgotada, pouca abordada nos estudos acadêmicos que se
dedicam com mais entusiasmo a obra A Rainha do Ignoto, pioneira na Literatura
Fantástica.

Para realizar a análise selecionamos cinco poemas de Emilia Freitas para


destacar as temáticas presentes em sua obra, são eles: A mãe escrava; III Quadro
(Minha mãe); Fé, esperança e caridade; O que é poesia; A Francisca Clotilde.
A MÃE ESCRAVA

N’uma tarde em que o sol brilha esplendido


No céo bello e azul do meu paiz,
Chegou pobre escrava onde eu me achava
E prostrada a meus pés, eis que me diz:

<<Sinhasinha, sou livre...meu senhor


Me deu minha carta...sim, agora...
- Si assim é, perguntei, o que lhe afflinge,
Porque treine a fallar, porque é que chora?!

Humilde como era ergueu a vista;


Seu olhar era triste que doía!
Faria a consciência de quem quer
Que podesse affrontar tanta agonia!

<<Roubaram meus filhos... estão a bordo...


Hoje mesmo o vapor levanta o ferro
Levando o meu Vicente... a minha Lucia
Eis porque hoje aqui chorando erro.

<<Sinhasinha por Deus antes queria


Como outr’ora captiva e maltratada
Têl os junto de mim, pois ora sinto
Qu’era assim muito menos desgraçada.

<<Estou velha e cançada, já não posso


Supportar d’este golpe, a crueldade!
Vou morrer de pezar...eu por tal preço
Não queria esta inútil liberdade...

E a triste chorando s’estorcia


Com a face no pó do pavimento!
Era a dor d’uma mãe. Quem não respeita
Esta flor immortal de sentimento?!

Mas d’aquella infeliz tantos soluços


Não tocou n’este mundo a mais ninguém,
Ah! só eu partilhei de sua dor...
E por vêl-a chorar, chorei também.

Desde então quando via n’uma praça


Os escravos marchando p’ra o mercado,
Minh’alma sentia em desespero
E solava de horror meu triste brado.

Fortaleza, - 1877
(Canções do lar, 1891, página 17-18)

Emília Freitas, reconhecida como a poetisa dos escravos foi a responsável por
proferir o discurso na solenidade de instalação da Sociedade das Cearenses
Libertadoras. A pesquisadora Alcilene Cavalcante em sua tese de doutorado Uma
escritora na Periferia do Império: Vida e Obra de Emília Freitas, destaca esse aspecto
da vida da escritora.

A POETISA DOS ESCRAVOS


No início dos anos de 1880, Emília Freitas já atingira um
reconhecimento da sociedade cearense, principalmente por sua
atuação em prol da abolição da escravatura. Ela integrava o
contingente reduzido, porém atuante, de mulheres que, naquela época,
em diferentes regiões, além de usarem de suas penas para condenar o
sistema escravista, colaboravam com jornais ou criavam uma
imprensa de orientação explicitamente abolicionista como foi o caso
de Ave Libertas em Pernambuco (Ferreira, 1990:137).
CAVALCANTE, 2008, Página 47-48.

No poema A Mãe Escrava a poetisa apresenta o drama de uma mãe que viu os
filhos serem vendidos e apartados do seu seio, chora e sofre pela separação imposta
simplesmente pela cor de sua pele. Os negros vendidos em mercados, exilados de suas
pátrias, de suas famílias, de suas mães, de suas irmãs, de seus filhos. A escritora durante
a sua vida participou ativamente das lutas contra a escravidão juntamente com outras
mulheres que percebiam qual violenta e desumana era essa violação contra o ser negro.
III QUADRO
MINHA MÃE
(Maria de Jesus Freitas)

Me lembro inda de vel-a em dias mais felizes


A casa governando em calma actividade,
Brilhava no labor uns restos de belleza
E graças que ficaram de sua mocidade.

No rosto ella mostrava a paz da rectidão.


A voz tinha tão doce!... o riso era sem par!
Nas trevas encantadas dos dias infantil
Os filhos caminhavam a luz de seu olhar.

A noute ella embalava ao collo o mais pequeno,


Nós outros rodiavam a rêde, onde ella estava,
Cantando uma canção, tão terna, tão saudosa
Que além de commover também m’impressionava.
Primeiro do que o sol, erguia-se bem cêdo,
Quer fosse no verão, quer fosse em frio inverno,
As plantas não perdiam um til de seus cuidados;
Viviam como nós também de amor materno.

Eu via o seu cabello tão longo e abundante


Ao sopro da manhã voando como um véo,
Emquanto ella vagava alegre pela horta,
Assim como uma estrella reluz em nosso céo.

Queria tomar parte comnosco nos brinquedos;


Havia no seu tato, clemência e mansidão;
Mas sempre em todo tempo sem zanga e sem rigor
Que zelo e que cuidado em nossa educação!

E os pobres infelizes achavam, no seu seio,


Abrigo confortável, remédio a sua dor;
Pois dando o que podia também dava conselhos,
Moral, que, repartia, tão franco, o seu amor.

Não tinha uma intriguinha: sua alma complacente


Chamava a sympathia de toda visinhança;
Seu nome repetido, talvez de bocca em bocca
Corria como um echo a léguas de distancia.

Depois pelos desgostos na triste viuvez


Perdeu a actividade assim como alegria,
Vivia tão nervosa... tão cheia de cuidados
Que a horta da modança também se ressentia.

Deixou todas as plantas em grande esquecimento


Nem mais uma florinha viveu em seus canteiros;
Um livro sempre aberto... só lendo distrahia...
Já nada lhe importava nos annos derradeiros.

E eu que possuil-a, julgava toda vida,


Achando ser incrível seus dias terem fim,
Sabia que a moléstia marchava com presteza
Mas, não podia crer em todos nem em mim.

Só deus calcula e peza as noutes que uma filha


Velando à cabeceira da mãe prestes à morte,
Recebe o seu olhar saudoso e penetrante.
Buscando não chorar mostrando uma alma forte.

Senti o coração partir-se no meu peito!


No dia em que perdida a ultima esperança,
Tirou o seu annel, sentou-se inda no leito
E deu-me sem falar a ultima lembrança!

Meu deus! Quando eu vi no leito mortuário


Cadáver já sem vida...gelada sem poder
Ao menos escutar o pranto que eu vertia
Na hora mais acerba que teve o meu soffrer!

Fiquei como suspensa! Gelada de terror!


N’aquella magua extrema! N’ aquella dor intensa!
Sabendo que ficavam no mundo tão vasio...
Olhei a vida e tudo com parva indifferença.

A custa dos pezares meus olhos se seccaram,


Meus dias se tornaram um longo anoutecer!
Já nada aqui me prende, eu vago entre os felizes
Cançada de chorar, cançada de viver.

(Canções do lar, 1891, página 60-62)

Emília Freitas, publica na obra Canções do Lar nove poemas com os títulos
QUADRO e nos seus subtítulos os oferecimentos. I QUADRO MEU AVÔ (Jacinto José
de Freitas), II QUADRO MEU PAI (Antonio José de Freitas), III QUADRO MINHA
MÃE (Maria de Jesus Freitas), IV QUADRO MEU IRMÃO (João Baptista de Freitas),
V QUADRO (Antonio Henrique de Freitas), VI QUADRO MEU IRMÃO (Carlos
Augusto de Freitas), VII QUADRO MEU IRMÃO (Cicero Cincinato de Freitas), VIII
QUADRO MINHA IRMÃ (Adelia Adelaide de Freitas), IX QUADRO BABACA,
(Barbara). Através desses quadros podemos comprovar a temática familiar presente em
seu livro. Em destaque o III Quadro dedicado a sua mãe onde está descrito com muita
sensibilidade a relação que ela tinha de respeito, de admiração e de cuidados com a sua
genitora, uma mulher muito educada e dedicada aos seus que vai adoecendo após a
partida de seu esposo. A viuvez a transformou e a levou com o passar dos dias,
deixando somente a dor e as lembranças.

A pesquisadora Alcilene Cavalcante faz uma breve apreciação do poema em


análise como podemos destacar.

No poema, intitulado III Quadro (minha mãe), o eu lírico remete às


lembranças que guardara da mãe durante sua infância. Recordava-se dela –
ativa, bela e moça – a brincar com os filhos, a cantar, a cuidar do jardim e a
aconselhar os “pobres infelizes”, sempre repartindo a alegria, a simpatia e o
franco amor. Contudo, após a morte do pai, o eu lírico aponta que a mãe se
ensimesmou e caiu enferma. É certo que esse poema foi composto depois da
morte de Maria de Jesus, em março de 1885, desvelando sinais
autobiográficos sobre como Emília reagiu ao passamento materno. Nele, há
marcas de que sofreu muito, sendo que o eu lírico explicita que passou a
viver com indiferença.
CAVALCANTE, 2008, Página 66.
FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE

Quando o pallido e frio sceptismo


Da crença de minh’alma turba a luz,
Desce um raio da lâmpada sagrada
E minh’alma que erra ao céo conduz;
- A Fé.

Eu soffro o martyrio de meu genio,


E’ triste o futuro que hoje vejo,
E no maior desalento meigo archanjo
Mostra-me ao longe algum lampejo;
- A esperança;

Se um rico Senhor volta com ira,


Ao humilde mendigo, a altiva face,
No meu coração um sentimento
Imprime as feições d’um bem que nasce:
- A Caridade.

Fortaleza-Junho – 1882
(Canções do lar, 1891, página 106)

Emília Freitas foi uma divulgadora da doutrina espírita no Ceará e no Pará. Em


Maranguape fundou o jornal Luz e Fé em 1901 e no Pará a Revista Sophia. O princípio
fundamental da doutrina espírita é fora da caridade não há salvação. No poema Fé,
Esperança e Caridade, a poeta destaca os princípios norteadores do espiritismo. Na
obra Memórias do Espiritismo no Ceará, o autor Luciano Klein Filho destaca o perfil de
Emília Freitas.

EMÍLIA DE FREITAS
Nasceu na cidade de Aracati, Ceará, a 11 de janeiro de 1855. Era filha
do tenente-coronel Antônio José de Freitas e Maria de Jesus Freitas.
Com o falecimento do pai, em 1869, mudou-se para Fortaleza onde se
dedicou a aprendizado de Geografia e das línguas inglesa e francesa.
Em 1885 estudou na Escola Normal.
Ente outubro de 1876 e abril de 1878 enfrentou provas acerbas com o
trespasse de quatro dos seus irmãos. “Parca cruel que quebras ferina já
o quarto fio do fraterno laço!”, é o grito de dor de Emília, ante o
fenômeno da morte que, ainda, não compreendia. Após a
desencarnação de sua mãe, seguiu para o Amazonas, em dezembro de
1892, na companhia de seu irmão Alfredo. Na capital amazonense
ensinou alunos do curso primário e secundário, no Instituto Benjamim
Constant.
Emília de Freitas foi uma das precursoras do movimento feminista
cearense. Numa época de intenso preconceito à ação das mulheres nos
diversos setores da vida social, fez-se poetisa, romancista, jornalista e
espírita. Escreveu nos jornais Libertador, O Cearense, O Lírio, A
Brisa e o Maranguapense, tornando-se conhecida por suas produções
literárias. Foi chamada talentosa jovem e mimosa poetisa. Fora do
Ceará, escreveu nos jornais Revolução e Amazonas Comercial.
Em 1883 engajou-se no movimento abolicionista, discursando
corajosamente, em janeiro desse ano, no “Clube Cearense”, para a
“Sociedade das Cearenses Libertadoras”, onde bradou: “É nosso dever
auxiliar os heróis na árdua empresa de remissão dos cativos”.
Retornando de Manaus na transição do século, organizou, em
Maranguape, com seu marido, jornalista Arthúnio Vieira, redator do
Maranguapense, o Grupo Espírita Verdade e Luz, através do qual
publicaram, em novembro 1901, o jornal “Luz e Fé”, o primeiro
periódico espiritista do Ceará. Neste periódico, distribuído
gratuitamente, ela assinava seus trabalhos com o nome Emília Freitas
Vieira.
Mulher de amplos conhecimentos, deixou publicadas as obras:
Canções do Lar (1891) e o célebre A Rainha do Ignoto (Romance
psicológico) escrito em 1899, livro em que se evidencia a influência
da Doutrina Espírita em suas elucubrações filosóficas.
Esta inesquecível Bandeirante do Espiritismo na Terra da Luz
retornou, no início do século, a Manaus, onde desencarnou aos 53
anos de idade, no dia 18 de outubro de 1908.
(KLEIN, 2000, Páginas 50-51)

O QUE É POESIA?

(A MINHA IRMÃ ADELIA)

Nem só é poeta quem sabe na Lyra


Soltar os seus cantos d’amarga paixão!
Poeta é quem ama, quem triste suspira,
Poeta é quem sente.. quem tem coração.
F.X.DE NOVAES

Quando fitas em mim teus meigos olhos


Leio bem atravez dos pensamentos
O desejo que tens de em Lyra d’ouro
Decantar os teus nobres sentimentos.
Sei que causa prazer ouvir um canto
Na linguagem que dicta o coração;
Mas tem mais encanto... é mais sublime,
D’ um mágico silencio, a expressão.

E nesta expressão quem não divisa


Reflexos da luz d’ uma alma pura,
Que só se alimenta d’esperança,
Nectar, que adoça a desventura?

Se scismar é deixar o pensamento


Vagar, lá pela etherea região...
Oh! n’’estes transportes quem não sente
Das filhas de Apollo a protecção?

Nas sombras da tarde há um mysterio,


Há um lance invisível de tristeza!
Quando o sol vai sumir-se no horizonte,
Não achas no céo tanta belleza?

Não prendes a vista à luz da lua?


Não ouves attenta uma harmonia?
Pois tudo quanto é bello nos commove,
E tudo que commove é – poesia.

Fortaleza- Agosto de 1878

Emília Freitas utiliza-se da metalinguagem para explicar o que é poesia. A


poesia que se diferencia do poema, o poema é o texto escrito e a poesia o sentimento, a
emoção que transborda do coração para o papel. O poema oferecido a irmã, explica em
seis estrofes o ofício do poeta e conclui com a definição, poesia – é tudo que commove.

Concordo com Emília Freitas e reproduzo essa mesma definição toda vez que
alguém me pergunta “o que é poesia”? Poesia é tudo que te faz emocionar. O escritor
Octávio Paz em sua obra O Arco e a Lira apresenta diversas definições para poesia.

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz


de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza;
exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia
revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito.
Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração,
respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a
ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam.

Paz. O Arco e a Lira. Página 21.

A FRANCISCA CLOTILDE

ANNIVERSARIO DA ILLUSTRE POETISA FRANCISCA


CLOTILDE BARBOSA LIMA

Não sei si um anno de mais


No triste curso da vida
Foi uma lucta vencida
Entre gemidos e cantos,
Nem se o dia natalício
Nos traz prazer ou supplicio,
Si pede risos ou prantos.

Mas sei que o mundo é um antro


Que encerra muitos horrorores!
Queixas, lamentos e dores!
Muitas tragédias sem nome!
Que desfazendo o prestigiom
Sem deixar menor vestígio,
O tempo passando some.

Foi n’um dia como este,


Rico d’encanto e de luz,
Que das odnas sobre a flux
Eu vi erguer-se uma imagem:
Trazia a fronte c’roada;
Mas tinha as mãos algemadas
A minha triste miragem.

O povo queimava insenso


A’mimosa apparição;
Mas arrastanto o grilhão
Ella seguiu soluçando:
<<- Bravo! Bravo! – em toda parte
Repetiram com que arte,
Vai esta louca cantando! >>

<<- Não são cantos, são soluços


Que de meu peito s’escapam;
Estas notas sempre matam
Quem lhes conhece o valor...
Ficai em vosso prazer,
Deixai-me ao menos viver
Proseguindo em minha dôr.

.........

Sabes quem era a visão?


Era Sapho, era Corina,
E todas da mesma sina,
Que hoje divagam na terra,
Dando concerto de prantos,
Que o povo intitula cantos
Ao som d’um grito de guerra.

O poema é dedicado a Francisca Clotilde, poetisa, dramaturga, romancista,


cronista, professora, como Emilia Freitas, exerceram o magistério e usaram a poesia
para expor suas ideologias para defender seus ideais, lutaram pela inserção da mulher na
Literatura e na Sociedade e contra a escravidão, pois as mulheres não poderiam ficar a
margem das discussões sociais e políticas. O poema fala sobre dores e lamentos o qual
eu associo a luta pela libertação dos escravos, luta essa em que o Ceará sai na frente e se
consagra ao libertar os seus cativos em 1884, através do empenho das sociedades
libertadoras e das campanhas abolicionistas realizadas para arrecadar dinheiro e alforriar
escravos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar a obra poética de Emília Freitas é um desafio que pretendo desenvolver


durante os próximos anos, esse artigo é o primeiro passo de um longo trabalho a ser
detalhado.

Deixo os meus agradecimentos a professora Constância Lima Duarte que me


confiou um exemplar de sua propriedade da obra Canções do Lar para que eu pudesse
fazer essa análise. A princípio eu pensava em se tratar de um opúsculo, de um pequeno
livro com poucas páginas e quando eu recebo trata-se de um extenso livro com quase
trezentas páginas. Como o título refere-se ao lar, muitos dos poemas são dedicados aos
familiares e aos amigos mais próximos, o tema da escravidão também tem destaque,
como também temas relacionados ao seu cotidiano, a natureza e os locais onde ela
viveu.

Pelo que eu já li o livro apresenta muitos poemas autobiográficos, os quais


poderemos conhecer melhor a professora, escritora, espírita tão conhecida pelo romance
fantástico A Rainha do Ignoto, que tinha muita sensibilidade poética e que via poesia
nas paisagens, na natureza, na vida e na espiritualidade.

REFERÊNCIAS

CAVALCANTE, Alcilene. Uma escritora na periferia do império: vida e obra de


Emília Freitas. SC: Editora Mulheres, 2008.

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