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APRESENTAÇÃO
O livro é lançado num momento de crescente visibilidade das mulheres em seus combates e
suas conquistas nos espaços público e privado. A autora interroga o passado tomando como
referência questões que fazem parte de nossa vida, como a existência de desigualdades de
gênero, os significados das aparências, as manifestações da sexualidade, a luta por direitos, o
papel da família, do Estado e das religiões no cotidiano das pessoas, as dificuldades e
possibilidades de acesso à cultura, entre outras.
O SILÊNCIO ROMPIDO
Escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam confinadas. Mas por que
esse silêncio? Ou antes: será que as mulheres têm uma história?
As mulheres ficaram muito tempo fora desse relato, como se, destinadas à obscuridade de uma
inenarrável reprodução, estivessem fora do tempo, ou pelo menos, fora do acontecimento.
Confinadas no silêncio de um mar abissal.
A INVISIBILIDADE
As mulheres são menos vistas no espaço público, o único que, por muito tempo, merecia
interesse e relato. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte
da ordem das coisas. Sua aparição em grupo causa medo. Sua fala em público é indecente. Até
mesmo o corpo das mulheres amedronta.
Porque pouco são vistas, pouco se fala delas. Elas próprias deixam pouco vestígios escritos ou
materiais. Quanto aos observadores e/ou cronistas, em sua grande maioria homens, a atenção
que dispensam às mulheres é reduzida ou ditada por estereótipos. Tem-se portanto além do
silêncio, a dissimetria sexual das fontes.
Mas o silêncio mais profundo é o do relato. A História trata basicamente do espaço público,
masculino por natureza. A partir do século XVIII, a História torna-se mais científica e profissional,
mas um espaço apenas um pouco maior lhes é concedido nos relatos, e as descrições sempre se
prendem ao papel de cada sexo. Apenas no século XIX aparecem escritoras contando a biografia
de mulheres célebres.
O advento da história das mulheres se deu na Grã-Bretanha e nos EUA nos anos 1960, e na
França uma década depois, devido a fatores:
1) Científicos – com a crise dos sistemas de pensamento (marxismo, estruturalismo), começa-
se a apreender a dimensão sexuada dos comportamentos. Incidentalmente, colocava-se a
questão das mulheres como sujeitos. Pelos viés da famílias, colocavam-se novos
personagens (crianças, jovens) e novos questionamentos (as idades da vida, a dimensão da
vida privada), nas quais as mulheres estavam necessariamente presentes.
2) Sociológicos – a presença das mulheres nas universidades, como estudantes e docentes.
3) Políticos – o movimento de libertação das mulheres, que criticava o saber constituído de
caráter predominantemente masculino → mudança de paradigma
Para escrever a história, são necessárias fontes, documentos, vestígios. E isso é uma dificuldade
quando se trata da história das mulheres. Sua presença é frequentemente apagada, seus
vestígios, desfeitos, seus arquivos, destruídos. Inicialmente, por ausência de registro. Na própria
língua. A gramática contribui para isso. As estatísticas quase sempre são assexuadas. Pelo
casamento, as mulheres perdiam seu sobrenome, sendo muito difícil reconstituir linhagens
femininas. Seu modo de intervenção é geralmente coletivo (mães, donas-de-casa) e seus
arquivos provados muitas das vezes são destruídos por elas próprias (autodestruição da
memória, com queima de cartas, fotografias, etc).
As mulheres são descritas e representadas desde o início dos tempos, mas o que se diz sobre as
suas vidas e os seus desejos?
As mulheres são construção do imaginário dos homens; elas não se representavam a si mesmas.
Ainda hoje é um olhar de homem que se lança sobre a mulher, na publicidade por exemplo. Isto
é antes de mais nada uma tirania, porque as põe em confronto com um ideal físico ou de
indumentária ao qual devem se conformar. Mas também é uma celebração, fonte possível de
prazeres, de jogos sutis. Um mundo a conquistar pelo exercício da arte.
FONTES: AS MULHERES NOS ARQUIVOS
As vias da escrita para as mulheres foram inicialmente a religião e o imaginário: a via mística e a
literária; a meditação, a poesia e o romance; os conventos e os salões; o claustro e a
conversação.
Desde a Idade Média os conventos favoreciam a leitura e a escrita de mulheres, a ponto delas
serem mais letradas que os homens da mesma época.
O misógino século XIX tentará em vão contê-las. As de origem aristocrática, quando
empobrecidas, usavam da pena para ganhar a vida, contando com as ávidas leitoras de
romances, livros de cozinha, etiqueta, pedagogia e moda principalmente.
O feminismo foi um incentivo poderoso a partir desse período, e muitas mulheres se dedicaram
à imprensa, sendo leitoras e produtoras de jornais e revistas.
A primeira imprensa feminina especializada é a de moda, embora ainda de início escrita por
homens.
No mesmo século, as biografias tornam-se populares. Aconselha-se às jovens para que estudem
línguas estrangeiras, pois a tradução é uma ocupação conveniente para a mulher.
As revistas femininas do século XX, que desejam fazer das donas-de-casa profissionais bem
informadas, abrem brecha para artigos feministas que pregam a emancipação das mulheres.
Aqui se defendem desde os direitos civis das mulheres até a liberdade sexual. As tribunas de
leitoras, especialmente, suscitam interesse e a manifestam a vontade de criar uma rede.
Jornais exclusivamente feitos por e para mulheres também surgem nesse século, e o jornalismo
torna-se também uma profissão feminina. Muitas delas utilizam apenas o seu prenome,
deixando de lado o sobrenome do marido.
A essas fontes deve-se acrescentar aquelas da história oral, gravada em fitas, especialmente a
partir dos anos de 1970 (“a história das que não escrevem”), e os museu que cuidam da
arqueologia do cotidiano das mulheres.
Apesar de atualmente a longevidade feminina ser superior à masculina, sabemos que a taxa de
mortalidade das mulheres era superior à dos homens na Idade Média e Moderna, por conta da
alta mortalidade nos partos e, no caso das mulheres do povo, da subnutrição crônica.
A menina é menos desejada, e o infanticídio das meninas é prática antiga que ainda perdura na
Índia e na China, por exemplo.
A pequena infância era, até o século XIX, relativamente assexuada. Após esses primeiros anos,
as meninas passam mais tempo dentro de casa e são mais vigiadas que seus irmãos. São
requisitadas para todo o tipo de tarefa doméstica e mais educadas do que instruídas,
principalmente nos países católicos. Mesmo quando a escola se laiciza, por questão moral os
sexos estudam em classes separadas.
As jovens são muito mais visíveis, embora a puberdade seja pouco celebrada na cultura
ocidental. O que se vê é o silêncio do pudor, ou mesmo da vergonha, ligado ao sangue das
mulheres, visto como perda e sinal de morte. A diferença dos sexos hierarquiza as secreções de
homens e mulheres. A virgindade das moças é cantada, vigiada e cobiçada à obsessão; a
violação é um grande risco e a jovem deflorada estava marcada como condescendente, mesmo
em caso de estupro, que só será considerado crime a partir de 1976. ²
O casamento é a condição “normal” para a maioria das mulheres, seja “arranjado” (combinação
entre famílias) comum até o século XIX, ou “por amor”, modernidade do século XX,³ mas a
beleza feminina sempre foi considerada um capital.
A mulher casada é, ao mesmo tempo, dependente e dona-de-casa. Dependente
juridicamente, pois perde seu sobrenome; sexualmente, reduzida ao “dever conjugal” e da
maternidade; em seu corpo, por serem tolerados os “corretivos” aplicados por maridos e pais,
desde que não sejam excessivos; economicamente; ou em relação à educação dos filhos. Ao
mesmo tempo, dispõe de influência e poderes na administração da casa, que pode usar em seu
favor. Sempre muito ocupadas, podem encontrar a felicidade no cumprimento das suas tarefas
e na harmonia do seu lar.
A vida de uma mulher dura pouco: a menopausa, tão secreta quanto a puberdade, marca o final
da sua vida fértil e, por conseguinte, o término da feminilidade.
A viuvez atinge grande parte das mulheres. É um período ambivalente, vivido de acordo com os
meios sociais: de um lado, a velha camponesa vive “de favor” com genros e noras, tornando-se
uma boca inútil; de outro, a burguesa tem boa renda, vida social e costuma ser respeitada como
patronesse de várias atividades. São geralmente as primeiras a povoar os asilos que vão se
multiplicando no século XIX.
A morte das mulheres é tão discreta quanto suas vidas. Apesar de serem elas que geralmente
cuidam e conservam os túmulos dos homens, não lhes é dedicado um grande funeral, com
raríssimas exceções.
A mulher é antes de tudo uma imagem. Um rosto, um corpo vestido ou nu. A mulher é feita de
aparências. Ela é constrangida ao silêncio público. O primeiro mandamento das mulheres é a
beleza. “Seja bela e cale-se”. A beleza é um capital na troca amorosa ou na conquista
matrimonial.
A partir do século XX, surge a ideia de que a beleza está ao alcance de todas (cosméticos, moda).
A estética é uma ética.
A diferença dos sexos é marcada pela pilosidade e seus usos: o cabelo para as mulheres, a barba
para os homens. Há um simbolismo viril na barba. Ela significa potência, calor e fecundidade,
coragem (a juba dos leões), sabedoria. Mas ela deve ser domesticada.
A representação dos cabelos das mulheres é um tema maior de sua figuração, principalmente
quando se quer sugerir a proximidade da natureza, da animalidade, do sexo e do pecado. Há
uma erotização dos cabelos das mulheres, principalmente no século XIX, o grande século do
“esconder/mostrar”, que fortalece o erotismo. O cabelo curto é sempre ligado às loucas e
criminosas.
O véu era de uso corrente no mundo mediterrâneo antigo, mas sem obrigação religiosa. O
apóstolo Paulo inova, escrevendo que nas assembleias os homens devem se descobrir e as
mulheres se cobrir. “Por que ela foi criada para o homem, deve trazer o sinal de submissão
sobre a sua cabeça”. O véu torna-se sinal de dependência, pudor e honra. A mulher casada é a
propriedade de alguém, portanto deve ser velada
Sinal de virgindade, o véu figura o hímen, e apenas o marido deve retirá-lo. No dia em que
professa, a religiosa oferece a sua cabeleira a Deus, e coloca o véu por ele.
As relações entre o islã e o véu são controversas: o Corão em si não o estabelece como
obrigação. Entretanto, cresce no seio de uma cultura mediterrânea, que ocultam as mulheres e
as mantém confinadas. Num mundo de homens, o véu é para elas a única possibilidade de
circular no espaço público. Hoje em dia, sob o véu elas se vestem como quiserem.
No século XIX, uma mulher “de respeito” traz a cabeça coberta, uma mulher de cabelos soltos
geralmente é uma figura do povo. Essa “cobertura” se faz por chapéus ou penteados;
comprimento, corte ou cor dos cabelos são objetos de códigos e de modas.
Por volta de 1900, o feminismo europeu ganha nova força, se desenvolve e reivindica a
libertação do corpo. Os espartilhos caem em desuso, as saias ficam mais curtas, assim como os
cabelos. A guerra acelera o movimento.
Delineia-se uma silhueta andrógina. Os casais homossexuais se multiplicam. As mulheres
aspiram a novos papeis, entram para a universidade, se apoderam de novas disciplinas, exercem
profissões que até então lhes eram vedadas. Tais avanços foram brutalmente detidos ou freados
pela crise e pela ascensão dos totalitarismos, francamente antifeministas.
TOSQUIAR AS MULHERES
A “tosquia” dos cabelos é, de longa data, um sinal de ignomínia imposto aos vencidos,
prisioneiros e escravos. Depois da 2ª GG e da Ocupação, ela começou a ser imposta contra
mulheres suspeitas de colaboração, tanto nas grandes cidades como nos campos. As tosquias
públicas eram praticadas sobre estrados, acompanhadas de desfiles, o que dava vazão à
caçoada, ao insulto, à desforra sobre as mulheres, tomadas como bode expiatório das fraquezas
de todos. O que chama a atenção é, uma vez mais, a importância simbólica dos cabelos – o
desejo de destruir a imagem da feminilidade, de impor uma dessexualização.
A MATERNIDADE
CORPOS SUBJUGADOS
Desejado, o corpo das mulheres é também, no curso da História, dominado, subjugado, muitas
vezes roubado em sua própria sexualidade. Corpo comprado, também, pelo viés da prostituição.
Idade Média: o direito de defloração do senhor medieval (que atualmente se põe em dúvida), o
estupro coletivo como ritual de virilidade, o assédio, que permanece forte até hoje.
O ambiente considerado “pouco feminino” das fábricas do século XIX.
Os castigos corporais naturalizados, desde que aplicados “com moderação”. A reprovação
dessas práticas só aparece no século XIX, e inicialmente relacionada às crianças.
A sexualidade venal (prostituição), motivada pela miséria e solidão, é um sistema antigo e quase
universal. A reprovação da sociedade é bastante diversa, e depende do valor dado à virgindade
e da importância conferida à sexualidade em cada sociedade: enquanto a cristandade reprova o
sexo, os orientais não estigmatizam as suas gueixas.
Na Paris pós-Revolução Francesa, existiam duas categorias de prostitutas: as “de
carteira”, registradas e submetidas a controle médico para evitar o alastramento de doenças
como a sífilis, e as clandestinas, perseguidas pela polícia.
Atualmente, as mulheres dividem-se basicamente entre as que defendem o
direito de cada mulher a vender seu corpo se o desejar, e as que condenam a sua prática. A
globalização também influenciou as rotas conhecidas das prostitutas, abastecidas nos bolsões
de miséria.