P arafraseando Lucien Febvre — para quem o conhecimento
histó rico deve ter como referê ncia “os homens, nunca o Homem” — torna-se inadequado falar-se, hoje, em uma “histó ria da mulher”. Diversas em sua condiçã o social, etnia, raça, crenças religiosas, enfim, na sua trajetó ria marcada por inú meras diferenças, cabe, portanto, abordar-se a “histó ria das mulheres”. A grande reviravolta da histó ria nas ú ltimas dé cadas, debruçando-se sobre temá ticas e grupos sociais até entã o excluídos do seu interesse, contribui para o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres. Fundamental, neste particular, é o vulto assumido pela histó ria cultural, preocupada com as identidades coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais: os operá rios, camponeses, escravos, as pessoas comuns. Pluralizam-se os objetos da investigaçã o histó rica, e, nesse bojo, as mulheres sã o alçadas à condiçã o de objeto e sujeito da histó ria. Ainda que escassos, alguns historiadores chegam, antes da citada reviravolta, a desenvolver estudos sobre as mulheres. Michelet deté m-se nesse tipo de enfoque, realçando, de forma coerente com o pensamento dominante no seu tempo, a identificaçã o deste sexo com a esfera privada. Na medida, poré m, em que a mulher aspire à atuaçã o no â mbito pú blico, usurpando os papé is masculinos, transmuta-se em força do mal e da infelicidade, dando lugar ao desequilíbrio da histó ria. Respeitada, poré m, a identificaçã o mulher natureza, em oposiçã o à quela de homem cultura, Michelet vê na relaçã o dos sexos um dos motores da histó ria.1 A histó ria positivista, a partir de fins do sé culo XIX, provoca um recuo nessa temá tica, em funçã o de seu exclusivo interesse pela histó ria política e pelo domínio pú blico. Privilegiam-se as fontes administrativas, diplomá ticas e militares, nas quais as mulheres pouco aparecem. A Escola dos Annales, por sua vez, busca desvencilhar a historiografia de idealidades abstratas, preferindo voltar-se para a histó ria de seres vivos, concretos, e à trama de seu cotidiano, em vez de se ater a uma racionalidade universal. Embora as mulheres nã o fossem logo incorporadas à historiografia pelos Annales, estes, poré m, contribuem para que isto se concretize num futuro pró ximo. O marxismo considera a problemá tica que divide homens e mulheres uma contradiçã o secundá ria, que encontrará resoluçã o com o fim da contradiçã o principal: a instauraçã o da sociedade sem classes com a mudança do modo de produçã o. Nã o se justifica, portanto, uma atençã o especial do historiador para a questã o feminina. A partir da dé cada de 1960, correntes revisionistas marxistas, engajadas no movimento da histó ria social, apresentam uma postura diversa ao assumirem como objeto de estudo os grupos ultrapassados pela histó ria, as massas populares sem um nível significativo de organizaçã o, e, també m, as mulheres do povo.2 O desenvolvimento de novos campos como a histó ria das mentalidades e a histó ria cultural reforça o avanço na abordagem do feminino. Apó iam-se em outras disciplinas — tais como a literatura, a lingü ística, a psicaná lise, e, principalmente, a antropologia — com o intuito de desvendar as diversas dimensõ es desse objeto. Assim, a interdisciplinaridade, uma prá tica enfatizada nos ú ltimos tempos pelos profissionais da histó ria, assume importâ ncia crescente nos estudos sobre as mulheres.3 A onda do movimento feminista, ocorrida a partir dos anos 60, contribuiu, ainda mais, para o surgimento da histó ria das mulheres. Nos Estados Unidos, onde se desencadeou o referido movimento, bem como em outras partes do mundo nas quais este se apresentou, as reivindicaçõ es das mulheres provocaram uma forte demanda de informaçõ es, pelos estudantes, sobre as questõ es que estavam sendo discutidas. Ao mesmo tempo, docentes mobilizaram-se, propondo a instauraçã o de cursos nas universidades dedicados ao estudo das mulheres. Como resultado dessa pressã o, criaram-se nas universidades francesas, a partir de 1973, cursos, coló quios e grupos de reflexã o, surgindo um boletim de expressã o focalizando o novo objeto: Penélope. Cahiers pour l’histoire des femmes. Multiplicaram-se as pesquisas, tornando-se a histó ria das mulheres, dessa forma, um campo relativamente reconhecido em nível institucional. Na Inglaterra, reuniram-se os historiadores das mulheres em torno da History Workshop e, nos Estados Unidos, desenvolveram-se os Women’s Studies, surgindo as revistas Signs e Feminist Studies.4 Tais estudos estenderam-se, ainda nos anos 70, a outras partes da Europa e do mundo, incluindo o Brasil. Esse reconhecimento, no entanto, ainda é frá gil, nã o se podendo afirmar que as relaçõ es entre os sexos sejam vistas como uma questã o fundamental da histó ria. Questõ es teó rico-metodoló gicas
A emergê ncia da histó ria das mulheres como um campo de
estudo nã o só acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condiçõ es profissionais, como envolveu a expansã o dos limites da histó ria. No artigo citado, Joan Scott enfatiza a importâ ncia das contribuiçõ es recíprocas entre a histó ria das mulheres e o movimento feminista. Os historiadores sociais, por exemplo, supuseram as “mulheres” como uma categoria homogê nea; eram pessoas biologicamente femininas que se moviam em contextos e papé is diferentes, mas cuja essê ncia, enquanto mulher, nã o se alterava. Essa leitura contribuiu para o discurso da identidade coletiva que favoreceu o movimento das mulheres na dé cada de 1970. Firmou-se o antagonismo homem versus mulher que favoreceu uma mobilizaçã o política importante e disseminada. Já no final da dé cada, poré m, tensõ es se instauraram, quer no interior da disciplina, quer no movimento político. Essas tensõ es teriam se combinado para questionar a viabilidade da categoria das “mulheres” e para introduzir a “diferença” como um problema a ser analisado. A fragmentaçã o de uma idé ia universal de “mulheres” por classe, raça, etnia e sexualidade associava-se a diferenças políticas sé rias no seio do movimento feminista. Assim, de uma postura inicial em que se acreditava na possível identidade ú nica entre as mulheres, passou-se a uma outra em que se firmou a certeza na existê ncia de mú ltiplas identidades. Scott acentua, ainda, que o enfoque na diferença desnudou a contradiçã o flagrante da histó ria das mulheres com os pressupostos da corrente historiográ fica polarizada para um sujeito humano universal. Assim, as especificidades reveladas pelo estudo histó rico desses segmentos demonstravam que o sujeito da histó ria nã o era uma figura universal. Dessa forma, os estudos sobre as mulheres dã o lugar à derrocada daqueles pressupostos que norteavam as ciê ncias humanas no passado. Um outro aspecto a ser ressaltado refere-se ao predomínio de imagens que atribuíam à s mulheres os papé is de vítima ou de rebelde. De acordo com Mary Nash, o debate em torno da opressã o da mulher e seu papel na histó ria teria se inaugurado na dé cada de 1940, por iniciativa da historiadora norte-americana Mary Beard, que, na sua obra Woman as force in history, aborda a questã o da marginalizaçã o da mulher nos estudos histó ricos. Beard atribui as escassas referê ncias à mulher ao fato de a grande maioria dos historiadores, sendo homens, ignorarem-na sistematicamente. Esse argumento provocou uma ré plica do historiador J.M. Hexter, para quem a ausê ncia das mulheres deve- se ao fato de elas nã o terem participado dos grandes acontecimentos políticos e sociais. Simone de Beauvoir em sua pioneira obra, O segundo sexo, assume postura similar à de Hexter, ao argumentar que a mulher, ao viver em funçã o do outro, nã o tem projeto de vida pró pria; atuando a serviço do patriarcado, sujeitando-se ao protagonista e agente da histó ria: o homem.5 Até a dé cada de 1970, muito se discutiu acerca da passividade da mulher, frente à sua opressã o, ou da sua reaçã o apenas como resposta à s restriçõ es de uma sociedade patriarcal. Em oposiçã o à histó ria “miserabilista” — na qual se sucedem “mulheres espancadas, enganadas, humilhadas, violentadas, sub- remuneradas, abandonadas, loucas e enfermas...” — emerge a mulher rebelde. Viva e ativa, sempre tramando, imaginando mil astú cias para burlar as proibiçõ es, a fim de atingir os seus propó sitos. Surge daí a importâ ncia de enfoques que permitam superar a dicotomia entre a vitimizaçã o ou os sucessos femininos, buscando- se visualizar toda a complexidade de sua atuaçã o. Assim, torna-se fundamental uma ampliaçã o das concepçõ es habituais de poder — para o que cabe lembrar a importâ ncia das contribuiçõ es de Michel Foucault. Hoje é praticamente consensual a recomendaçã o de uma revisã o dos recursos metodoló gicos e a ampliaçã o dos campos de investigaçã o histó rica, atravé s do tratamento das esferas em que há maior evidê ncia da participaçã o feminina, abarcando as diversas dimensõ es da sua experiê ncia histó rica. Tais recomendaçõ es convergem para a necessidade de se focalizar as relaçõ es entre os sexos e a categoria de gê nero.
A questã o do gê nero
Gê nero tem sido, desde a dé cada de 1970, o termo usado
para teorizar a questã o da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas que queriam insistir no cará ter fundamentalmente social das distinçõ es baseadas no sexo. A palavra indica uma rejeiçã o ao determinismo bioló gico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”. O gê nero se torna, inclusive, uma maneira de indicar as “construçõ es sociais” — a criaçã o inteiramente social das idé ias sobre os papé is pró prios aos homens e à s mulheres. O “gê nero” sublinha també m o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, que nenhuma compreensã o de qualquer um dos dois pode existir atravé s de um estudo que os considere totalmente em separado. Vale frisar que esse termo foi proposto por aqueles que defendiam que a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas da disciplina; acrescentaria nã o só novos temas, como també m iria impor uma reavaliaçã o crítica das premissas e crité rios do trabalho científico existente. Tal metodologia implicaria nã o apenas “uma nova histó ria das mulheres, mas uma nova histó ria”.6 A maneira como esta nova histó ria iria incluir e apresentar a experiê ncia das mulheres dependeria da maneira como o gê nero poderia ser desenvolvido como uma categoria de aná lise. Tornam- se explícitas as preocupaçõ es de articular o gê nero com a classe e a raça. O interesse por estas categorias assinala nã o apenas o compromisso do historiador com uma histó ria que inclua a fala dos oprimidos, mas també m que esses pesquisadores consideram que as desigualdades de poder se organizam, no mínimo, conforme estes trê s eixos. Um outro aspecto que se ressalta dos estudos sobre gê nero reside na rejeiçã o ao cará ter fixo e permanente da oposiçã o biná ria — masculino versus feminino — que, por tanto tempo, alimentou as demandas feministas. Para isso, enfatiza-se a importâ ncia de uma desconstruçã o autê ntica, nos termos de Jacques Derrida; revertendo-se e deslocando-se a construçã o hierá rquica, em lugar de aceitá -la como ó bvia ou como estando na natureza das coisas — antevendo-se para o futuro a transcendê ncia dessa dualidade cultural. Dentre os historiadores que frisam a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos do gê nero, buscando-se a utilizaçã o de formulaçõ es teó ricas, destaca-se a já citada Joan Scott, que tece uma sé rie de consideraçõ es a respeito. Argumenta que, no seu uso descritivo, o gê nero é , apenas, um conceito associado ao estudo das coisas relativas à s mulheres, mas nã o tem a força de aná lise suficiente para interrogar e mudar os paradigmas histó ricos existentes. Já Maria Odila da Silva Dias discorda da necessidade da construçã o imediata de uma teoria feminista, pois, a seu ver, mais cabe ao pensamento feminista destruir parâ metros herdados, do que construir marcos teó ricos muito nítidos. Assim, para melhor integrar a experiê ncia das mulheres em sociedade, sugere partir de conceitos provisó rios e assumir abordagens teó ricas parciais, pois, segundo a mesma, o saber teó rico implica també m um sistema de dominaçã o.7 Pretendendo fazer uma histó ria de gê nero temos a obra A história das mulheres no Ocidente, surgida em fins de 1991, sob a direçã o de Georges Duby e Michelle Perrot, que busca incorporar muitas das inovaçõ es apresentadas. A obra cobre o período que vai desde a Antigü idade até nossos dias, assumindo os autores a periodizaçã o habitual da histó ria ocidental. Os autores, apó s afirmarem ser esta prá tica a ú nica possível, questionaram, poré m, a sua pertinê ncia conceitual; ou seja, se aos principais marcos da histó rica tradicional — como o Renascimento, a Reforma, as guerras mundiais — correspondem os acontecimentos decisivos na histó ria das mulheres e das relaçõ es entre os sexos. Ao que responde negativamente Silva Dias, uma das críticas de tal postura. Considera insensatas obras de histó ria universal das mulheres, alegando que a adoçã o da moldura da histó ria evolutiva, linear, implica a incorporaçã o de categorias de dominaçã o que a crítica feminista pretende neutralizar e a historiografia contemporâ nea já abandonou.8
Mulheres numa perspectiva micro-histó rica: alguns
enfoques O desenvolvimento da histó ria das mulheres, articulado à s inovaçõ es no pró prio terreno da historiografia, tem dado lugar à pesquisa de inú meros temas. Nã o mais apenas focalizam-se as mulheres no exercício do trabalho, da política, no terreno da educaçã o, ou dos direitos civis, mas també m introduzem-se novos temas na aná lise, como a família, a maternidade, os gestos, os sentimentos, a sexualidade e o corpo, entre outros. Serã o analisadas a seguir as principais contribuiçõ es historiográ ficas relativas a algumas dessas temá ticas.
Ação e luta das mulheres
No tocante à s pesquisas sobre a açã o e luta das mulheres,
configuram-se duas vertentes. Uma preocupada com os movimentos organizados com vistas à conquista de direitos de cidadania — os movimentos feministas — e a outra com manifestaçõ es informais que se expressam em diferentes formas de intervençã o e atuaçã o femininas. O primeiro caso mereceu espaço nas abordagens iniciais relativas à s mulheres. Em geral, apresentam-se como uma histó ria das mulheres notá veis, atravé s de uma abordagem biográ fica. Numa perspectiva positivista, focalizam-se algumas mulheres excepcionais que se destacam no campo da política, da cultura e da religiã o. É este o mé todo utilizado pelas feministas do sé culo XIX em suas revistas e diversos dicioná rios. Buscam apresentar modelos femininos alternativos à imagem do tradicional feminino — passivo, fú til, sem maior iniciativa. A feminista alemã Louise Otto, no prefá cio de sua obra Einflussereiche Frauen aus dem Volke (Mulheres influentes do povo), publicada em 1869, critica os crité rios de seleçã o dos bió grafos masculinos de seus sujeitos femininos. Fazem-no, segundo ela, nã o por sua açã o consciente e refletida, mas pelos laços que as uniam aos grandes homens, seja pelo nascimento seja pela beleza. Em contraponto a esta postura, dispõ e-se a apresentar mulheres que nã o tiveram necessidade desses atributos para se destacarem — apesar das circunstâ ncias desfavorá veis que excluíam o sexo feminino das atividades pú blicas, das quais contudo participaram em sua é poca. Eleni Varikas assinala que a funçã o dessas biografias, mesmo que nã o explicitada, foi a de provar a capacidade feminina, idê ntica à masculina, de fazer a histó ria, de construir a civilizaçã o. Segundo ela, isto nã o implicou, poré m, um questionamento dessa forma de “fazer histó ria”. Donde reproduzem a definiçã o é pica da histó ria, opondo aos feitos dos homens à queles das mulheres. Por outro lado, aponta aspectos positivos nessas iniciativas das mulheres, decorrentes de uma tentativa de subversã o subterrâ nea dos modelos recebidos, o que sugere a busca de outros valores, alé m de se constituírem numa arma na defesa do gê nero contra as tradiçõ es misó ginas. E, hoje, quando a biografia tem despertado interesse crescente, tem surgido obras desse tipo, buscando compreender o condicionamento social e sexual das mulheres focalizadas e a interaçã o entre sua vida pú blica e privada. Por exemplo, certas biografias sobre Mary Woolstonecraft, autora da primeira denú ncia sistemá tica das condiçõ es de subordinaçã o feminina, condizem com esta perspectiva.9 Num outro tipo de abordagem, destacam-se aquelas obras que creditam especial atençã o ao momento da Revoluçã o Francesa, quando as mulheres se vê em despojadas da cidadania por uma ordem que ajudaram a fundar. As reivindicaçõ es se mantê m latentes, manifestando-se em outros momentos críticos da histó ria francesa, quando vislumbram a possibilidade de brechas no sistema de poder. No tocante aos movimentos feministas da virada do sé culo, alguns autores ressaltam o seu moralismo, a diversidade de correntes, suas aspiraçõ es em torno da igualdade de direitos, e, em especial, do voto.10 Um aspecto original dos movimentos de mulheres nesse período é tratado por Gisela Bock, que analisa seu papel no estabelecimento dos Estados-providê ncia ou welfare states, fato ignorado nos estudos sobre o assunto. Assim, alé m das reivindicaçõ es relativas aos direitos políticos, esses movimentos feministas reivindicariam, com ê nfase, os direitos sociais e a proteçã o social, especialmente no que tange à s mã es e à maternidade. Uma preocupaçã o essencial desses movimentos recaiu sobre as necessidades e interesses das mulheres das classes inferiores e sobre a pobreza feminina. Reivindicam o direito das mã es a uma renda, opondo-se à coexistê ncia entre maternidade e emprego, ao menos, durante a gravidez e primeiros anos da criança. A partir da dé cada de 1960, continua Bock, as feministas nã o retomaram essa bandeira, que se revelou enganosa. Hoje, a libertaçã o, a justiça e a igualdade sã o pensadas mais em termos de uma açã o positiva no domínio profissional e da divisã o das tarefas domé sticas com os homens, do que com o “reconhecimento pú blico da maternidade como funçã o social”.11 O movimento liderado pela dra. Bertha Lutz no Brasil, nas dé cadas de 1920 e 1930, foi objeto de alguns estudos. O referido movimento, que examino em trabalho anterior, teve como alvo o acesso das mulheres à cidadania plena e, apesar de limitaçõ es, comuns aos demais movimentos feministas da é poca, algumas de suas propostas, como a dos direitos civis, só recentemente vê m sendo implementadas. Branca Moreira Alves, igualmente, focaliza- o em estudo de 1980, e, instigada pelo movimento em que militava na dé cada de 1970, enfatiza o cará ter conservador do movimento liderado por Lutz, pelo mesmo nã o questionar a opressã o da mulher no seio da família. No tocante à luta empreendida pela conquista do voto, considera que este só foi concedido “quando assim interessou à classe dominante”.12 Uma outra contribuiçã o à histó ria do feminismo no Brasil deve-se a Miriam L. Moreira Leite que elabora uma biografia sobre Maria Lacerda de Moura, abrangendo o período 1919-1937. A pesquisadora ressalta as reflexõ es de Lacerda de Moura sobre os diversos aspectos da condiçã o feminina, assim como suas avançadas posiçõ es, similares em muitos aspectos à s das feministas a partir da dé cada de 1960. Tal aspecto, aliado ao seu aguçado espírito crítico, manteve-a numa posiçã o algo marginal, afastando-se do movimento hegemô nico na é poca, liderado por Lutz.13 No tocante à atuaçã o informal das mulheres, a segunda vertente de nossa aná lise, destacam-se as abordagens posteriores à irrupçã o da histó ria social e da histó ria cultural — quando alguns historiadores se voltaram para o enfoque do cotidiano e de manifestaçõ es no plano pú blico até entã o desconsideradas. Nesse particular, ressalta o pioneirismo de abordagens como as de Natalie Zemon Davis, Michelle Perrot e Arlette Farge que, em seus trabalhos, tê m buscado desmitificar concepçõ es veiculadas sobre a mulher como submissa, dó cil, mostrando as atitudes de resistê ncias por estas desenvolvidas em seu duro cotidiano. Davis, estudando o sé culo XVI, assinala habilmente a capacidade de grupos aparentemente destituídos de poder em forjar autoridade dentro das brechas existentes. Mostra como as mulheres tiravam proveito das imagens de fraqueza e histeria que lhes eram atribuídas para ampliar seu poder e liberdade na família e em diferentes situaçõ es comunitá rias. Seguindo uma pista assinalada por E.P. Thompson, acerca da liderança feminina nos motins de alimentos, outros historiadores sugerem, igualmente, que a atuaçã o das mulheres lhes teria conferido uma base de poder na comunidade.14 Focalizando as mulheres da classe trabalhadora francesa, no sé culo XIX, mostra Perrot o papel por elas desempenhado nos motins, nos quais intervinham coletivamente. Suas intervençõ es assemelhavam-se aos “charivaris”, em que as mulheres, aliadas aos marginais, estavam na vanguarda e aos gritos, batendo panelas e caldeirõ es protagonizavam ruidosas aglomeraçõ es.15 No Brasil, alguns estudos buscam exumar as formas sub-reptícias assumidas pelas mulheres, face à opressã o que sobre elas incidia. Nessa perspectiva destaca-se o estudo de Silva Dias, Cotidiano e poder em S. Paulo no século XIX, no qual procura reconstruir a histó ria das mulheres que aí viviam, durante o incipiente processo de urbanizaçã o do período. Alerta que, embora institucionalmente informal e socialmente pouco valorizada, sua presença era ostensiva na cidade. Igualmente, no meu trabalho Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana, sã o inú meras as situaçõ es apresentadas nas quais se evidenciam as iniciativas e estraté gias de resistê ncia das mulheres pobres no Rio de Janeiro, entre 1890 e 1920. Um outro estudo na mesma linha é o de Mô nica Pimenta Velloso sobre as mulheres negras de origem baiana que se estabeleceram, com seus conterrâ neos, no Rio de Janeiro nos fins do sé culo XIX e início do XX. Líderes de suas comunidades — numa inversã o do esquema dominante que atribuía ao homem este papel — recorrendo a inú meras estraté gias para garantir a sobrevivê ncia de seu grupo e de sua cultura, terminaram por fazer sentir sua influê ncia també m entre os dominantes, como é o caso do carnaval.16 Nesse espaço cabe mençã o à s “visioná rias”, mulheres de origem humilde, que se sobressaíram enfrentando a intolerâ ncia reinante em seu tempo, à s vezes ao preço de sua pró pria vida. Sã o abordadas pelos historiadores Laura de Mello e Souza e Luiz Mott. Mello e Souza focaliza beatas portuguesas nos sé culos XVI e XVII, que associavam ao misticismo, pró prio de sua é poca, características da cultura popular. Os inquisidores, homens imersos em outras coordenadas culturais, nã o apenas lhes negaram a santidade, como també m reservaram-lhes um desfecho trá gico, ao identificarem-nas à s bruxas. Já Luiz Mott deteve-se na rica trajetó ria da visioná ria Rosa Egipcíaca. De origem africana, esta veio para o Brasil em 1725 com seis anos, onde fez-se escrava, mais tarde prostituta e, por força de suas visõ es místicas, tornou-se beata. Dominando a leitura e a escrita — fato raro entre as mulheres de sua é poca — fundou no Rio de Janeiro o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto. Seus devotos nã o se limitaram aos populares, mas incluíram, també m, membros da elite; chegou a ser exaltada pelo alto clero do Brasil, que a nomeou “a maior santa do cé u”. A interpenetraçã o cultural era sua tô nica. Rezava em latim, sabendo cantar comoventes hinos litú rgicos, embora nã o dispensasse seu cachimbo. Igualmente, nã o poucas vezes louvava seu Divino Esposo, Jesus Cristo, dançando ao ritmo do batuque. Terminou por atrair o braço da Inquisiçã o, sendo presa e enviada para Lisboa.17 També m importa lembrar as mulheres reclusas em conventos e recolhimentos que conseguiram reverter alguns dos propó sitos punitivos e supostamente opressivos destas instituiçõ es. Nã o poucas perceberam que ali se desenhava a possibilidade de uma vida autô noma, frente aos rigores da família e da sociedade, inclusive permitindo o exercício do poder. Inú meras foram aquelas que, a fim de expressar sua devoçã o, enfrentavam a oposiçã o da política metropolitana ao enclausuramento de mulheres, preocupada com a questã o do povoamento. Os trabalhos de Susan Soeiro e de Leila Mezan Algranti pautam-se nesta linha.18
Mulheres e trabalho
Os efeitos da industrializaçã o e da modernizaçã o, no que
tange ao trabalho das mulheres, tê m sido amplamente discutidos, assumindo um vulto significativo na historiografia anglo-saxô nia. Uma importante contribuiçã o nesse particular decorreu das pesquisas de J. Scott e Louise A. Tilly, presentes no seu clá ssico trabalho “Women’s Work and the Family in Nineteenth Century Europe”. As autoras criticam as posturas evolucionistas que assumem a existê ncia de uma ú nica e similar experiê ncia para todas as mulheres, assim como as concepçõ es mecanicistas, segundo as quais a mudança numa esfera corresponderia, necessariamente, à mudança nas demais. Referem-se especificamente aos trabalhos de Engels e William Goode, alinhados, respectivamente, com o marxismo e o liberalismo.19 Criticam o economicismo de Engels, quando este afirma que a inserçã o feminina na indú stria moderna libertaria a mulher trabalhadora da opressã o familiar, argumentando que às mulheres excluídas de participaçã o na produçã o social restaria o papel de servas do lar. Quanto a Goode, contrapõ em-se ao seu otimismo — presente nas suas afirmaçõ es acerca do status elevado da mulher ocidental nos dias de hoje, devido à sua grande participaçã o no trabalho fora do lar. Scott e Tilly lembram que as concepçõ es de Goode representam uma universalizaçã o das experiê ncias e valores específicos da classe mé dia. As mulheres dos segmentos populares sempre trabalharam, tanto na cidade como no campo. Tais crenças de que as mulheres nã o trabalhavam, ou de que o trabalho pesado nã o era pró prio do sexo feminino, foram pró prias do período vitoriano, momento de supervalorizaçã o da esfera pú blica. Pautavam-se tais estereó tipos na invisibilidade atribuída ao trabalho domé stico e ao cuidado com as crianças, que apareciam como algo instintivo e emanado do amor. Nos Estados Unidos, historiadores do trabalho feminino enfatizam a variedade de trabalhos essenciais e nã o-remunerados realizados pelas mulheres, tais como o trabalho domé stico, a atividade no campo, costura, cozinha e a criaçã o de filhos. Muitas adaptaram ao novo contexto urbano estraté gias rurais de acré scimos à renda familiar, criando e vendendo galinhas, ovos e vegetais. Faziam o parto, vigiavam crianças para mulheres que trabalhavam fora de casa, manufaturavam e vendiam bebidas alcoó licas, mascateavam, penhoravam e ainda aceitavam pensionistas. Apesar disso, introjetavam a visã o dominante e nã o reconheciam suas atividades como trabalho, mesmo quando recebiam remuneraçã o. Pesquisadoras descobriram que muitas dessas mulheres respondiam aos censos que nã o trabalhavam.20 No início do sé culo XIX, nas primeiras fá bricas tê xteis, as mulheres predominavam entre os 4% de norte-americanos que nelas trabalhavam; mais tarde afastaram-se do trabalho industrial, ao contrá rio da Europa, onde constituíam a maioria nas indú strias. Uma forte razã o para o seu afastamento foi a oposiçã o masculina; quer como maridos, quer como trabalhadores, buscaram proteger seus privilé gios na chefia da família e monopolizar os melhores trabalhos. As mulheres empregadas, apenas 20% em torno de 1900, passaram a atuar, em sua maior parte, no setor de serviços e de escritó rio. Os historiadores das mulheres tê m assinalado o papel dos sindicatos na exclusã o da mulher. Alice Kessler-Harris mostra que muitos sindicatos funcionaram como clubes masculinos, cujos membros consideraram que a presença feminina impediria sua liberdade. E o assé dio sexual, tanto por parte de supervisores quanto dos colegas de trabalho, constituiu uma sé ria afronta que as mulheres trabalhadoras tiveram que suportar e que contribuiu para que se sentissem indesejadas nos “espaços dos homens”. Igualmente, na França, Madeleine Rebé rioux registra problema similar. Ela explica o baixo índice de sindicalizaçã o das operá rias, com relaçã o ao do homens, desde fins do sé culo XIX, nã o apenas devido à sobrecarga de suas tarefas familiares, mas, principalmente, devido à hostilidade dos líderes sindicais à sua entrada nessas entidades.21 No que tange à s mulheres escravas norte-americanas, novas contribuiçõ es tê m demolido inú meros estereó tipos, como, por exemplo, o de que estas se acomodavam com mais facilidade à escravidã o. As pesquisas tê m demonstrado que as mulheres, sujeitas à s mesmas condiçõ es que o escravo homem em termos de trabalho pesado e puniçõ es, reagiam de forma idê ntica, tanto em termos de resistê ncia cotidiana, como de imediata rebeliã o. Jacqueline Jones e Deborah White detalham o pesado trabalho requerido da escrava. Alé m dos trabalhos no campo e domé stico para os senhores, també m delas dependia a vida familiar dos escravos. Consideram-na a principal responsá vel pela guarda da cultura africana e, assim, pela preservaçã o da identidade cultural desses grupos. Diversas acadê micas feministas negras tê m trazido à tona uma rica histó ria do ativismo político da mulher negra, começando com o movimento antiescravista e continuando na campanha pelos direitos civis.22 Na França, os estudos sobre o trabalho feminino progrediram, de início, em razã o das contribuiçõ es de soció logas como Madelaine Guilbert e Evelyne Sullerot. Esta ú ltima tomou a iniciativa de realizar uma histó ria do trabalho feminino, desde a Antigü idade até nossos dias, buscando trazer à tona as suas especificidades.23 As historiadoras Anne Martin-Fugier e Genevieve Fraisse trazem elementos decisivos sobre a condiçã o das domé sticas, setor fundamental de emprego e de aprendizagem femininos, peça mestra do contato sociocultural. Domé sticas e operá rias tê m merecido mais atençã o do que aquelas do setor terciá rio, embora algumas pesquisas interessantes venham surgindo neste â mbito. Deve-se ressaltar ultimamente, també m na França, a preocupaçã o de historiadores e soció logos de nã o separar o trabalho assalariado do trabalho domé stico.24 Rose Marie Lagrave desenvolve uma reflexã o acerca da educaçã o e do trabalho feminino no sé culo XX, na qual assinala a persistê ncia das mulheres nas posiçõ es mais desvalorizadas. O aumento atual na taxa de atividade das mulheres em toda a Europa deve-se, em grande parte, à progressã o de empregos precá rios, como o trabalho em tempo parcial — o uso do computador na pró pria residê ncia, por exemplo, é hoje uma dessas modalidades. Estes trabalhos parciais sã o apresentados como sendo uma escolha, quando, na verdade, resultaram de um constrangimento que lhes impede uma profissã o em termos integrais. Um aspecto positivo desse tipo de aná lise é o de possibilitar a desmitificaçã o das versõ es de uma histó ria das mulheres calcadas em sua promoçã o social no sé culo XX.25 També m no Brasil as primeiras abordagens sobre o trabalho feminino deram-se nos terrenos da sociologia e antropologia. Hoje, poré m, a historiografia brasileira tem dado mostras de extrema fecundidade neste campo, assinalando sua presença de modo marcante. Inclusive, de acordo com tendê ncias mais recentes, o cotidiano das mulheres dos segmentos populares, no qual o privado mescla-se com o pú blico, penetrou com ê nfase nestas abordagens. Como se tem feito com os demais subalternos, busca- se trazer à tona as tá ticas de sobrevivê ncias e de resistê ncias desenvolvidas pelas mulheres. Nessa perspectiva destaca-se o estudo já citado de Maria Odila da Silva Dias, que discorre sobre mulheres pobres, chefes de família, vivendo precariamente do trabalho temporá rio em atividades malvistas pelos poderosos, como o artesanato caseiro e o comé rcio ambulante. A autora ressalta a luta dessas mulheres pela sobrevivê ncia, em meio a redes de solidariedade e de vizinhança que se improvisavam e modificavam continuamente; essenciais frente ao sistema de poder e à estrutura de dominaçã o que as oprimiam. Igualmente, no meu citado Condição feminina, busquei mostrar mulheres que, alé m da sua labuta cotidiana do trabalho domé stico e do cuidado com os filhos, ainda produziam para o mercado, em sua maioria, exercendo tarefas extensivas à atividade domé stica. O trabalho era uma atividade ligada visceralmente à s referidas mulheres, o que se pode depreender dos instrumentos por elas utilizados para agredir seus oponentes, de acordo com os processos criminais consultados: vassoura, copo, tampa de panela, garfo, ferro de engomar, tesoura, enxada, pá de lixo, guardiã o de mó vel etc. As diversas modalidades de trabalho das mulheres pobres em Minas colonial sã o objeto da abordagem de Luciano Figueiredo. Sandra Lauderdale Grahan, por sua vez, debruça- se sobre as relaçõ es entre patrõ es e criadas no Rio de Janeiro, de 1860 até 1910. Explica esse relacionamento em termos do atendimento aos padrõ es das exigê ncias de trabalho e obediê ncia, em troca de proteçã o. Maria Izilda Santos de Matos examina tais relaçõ es em Sã o Paulo e Santos, entre 1890 e 1930. Reconstró i a dura rotina de trabalho dessas mulheres, via de regra mal remuneradas, e busca apontar as ambigü idades dessa convivê ncia. Fuga, indolê ncia, mau humor, entre outros, foram algumas das tá ticas utilizadas para afirmarem sua insatisfaçã o, intervindo na moldagem cotidiana dessas relaçõ es. Ainda, Maria Izilda realiza uma aná lise extremamente acurada e original sobre a costura de sacaria para o café , realizada à mã o e na pró pria moradia por mulheres de Sã o Paulo e Santos, entre 1890 e 1930. Desmitifica a autora as concepçõ es acerca do cará ter residual desse tipo de atividade, assinalando o crescimento desse setor informal de forma integrada ao desenvolvimento capitalista. Embora desse margem à forte exploraçã o, tal atividade permitia às mulheres uma certa autonomia, uma das explicaçõ es para sua disponibilidade face à mesma. Podiam administrar seu tempo e o ritmo do trabalho, longe dos condicionamentos da fá brica, compatibilizando-os com as ocupaçõ es familiares e comunitá rias. O que nã o lhes impediu, contudo, de desenvolver modalidades surdas de resistê ncia e mesmo de organizar associaçõ es, participando de movimentos grevistas. Mudanças no sistema produtivo, aliadas à s campanhas higienistas contrá rias à poluiçã o do espaço domé stico pelos odores e poeira pró prios do ambiente fabril, teriam contribuído para a extinçã o dessa modalidade de trabalho.26 No tocante à mulher operá ria, alguns trabalhos se destacam a partir do pioneirismo de Heleieth Saffioti, em fins da dé cada de 1960, que discorre sobre a marginalizaçã o, com o advento do capitalismo industrial, de um grande contingente de mulheres do sistema de produçã o de bens e serviços. O estudo de Alice Rosa Ribeiro, por seu turno, demonstra a demanda e a presença maciça de mulheres nas indú strias, ultrapassando a presença masculina, de 1870 até 1920. Apó s essa data, segundo revela Maria Valé ria Junho Pena, predomina uma tendê ncia diversa, de expulsã o das mulheres do mercado de trabalho industrial. Tal tendê ncia, segundo Margareth Rago, foi acompanhada da vitó ria de concepçõ es duvidosas que enfatizavam a fragilidade de corpo das operá rias e os perigos morais que as espreitavam nas fá bricas. Formulado ao final do sé culo XIX, estes mitos sobre a sexualidade feminina se mantiveram vigentes até meados da dé cada de 1960.27
Mulheres, família e maternidade
A histó ria da família conta, desde a dé cada de 1970, com
trabalhos significativos, como os de Philippe Ariè s, Jean Louis Flandrin, Le Roy Ladurie, André Burguiè re e Edward Shorter, entre outros. Deve-se a estes um melhor conhecimento acerca da posiçã o da mulher, a partir de novos achados sobre seus papé is nessa instituiçã o. Via de regra os comportamentos femininos nã o se amoldavam aos padrõ es normativos. Debates se estabeleceram sobre as repercussõ es do processo de industrializaçã o, urbanizaçã o e modernizaçã o na estrutura familiar. A mudança da família “tradicional”, extensa, típica do período pré -industrial, para a família nuclear seria a resultante desse processo. Nestes nú cleos, segundo algumas interpretaçõ es, a participaçã o da mulher no processo produtivo resultaria num maior igualitarismo entre o casal. Edward Shorter é um dos paladinos dessa corrente, ao afirmar que, desde a primeira revoluçã o industrial, as mulheres lançaram-se com enorme entusiasmo ao mercado de trabalho. E seu acesso aos recursos econô micos modificaria, em seu proveito, a relaçã o de forças no seio da família. Joan Scott e Louise Tilly contrapõ em-se a Shorter, quanto ao determinismo do capitalismo na autonomia feminina. Nesse sentido, realçam o papel desempenhado pelas mulheres na economia familiar pré - industrial que lhes teria dado grande margem de poder; sendo tratadas com deferê ncia e tendo preponderante influê ncia nas questõ es familiares. Por outro lado, mesmo com a industrializaçã o, a vasta maioria das mulheres nã o teria trabalhado imediatamente em fá bricas, mas nas costumeiras tarefas femininas. Posteriormente, a elevaçã o dos padrõ es de vida e crescentes salá rios teriam capacitado os trabalhadores homens a sustentar suas famílias. Num movimento inverso ao das mulheres da burguesia, muitas das trabalhadoras preferiram manter-se no lar, perdendo o controle sobre as finanças do casal; ocorrendo, portanto, um retrocesso em relaçã o à sua situaçã o anterior.28 Outros estudos tê m mostrado que a mudança dos modos de produçã o nã o determina, automaticamente, uma transformaçã o nos padrõ es familiares. A instauraçã o do socialismo nã o teria representado a libertaçã o das mulheres como pensavam Engels e outros marxistas. Mark Poster refere-se à autonomia relativa da família em relaçã o à s mudanças econô micas, bem como à persistê ncia da variá vel “poder” no seio das famílias, mesmo nos regimes socialistas.29 No seu estudo “La sé paration de corps de 1837 à 1914”, Schanapper registra que coube à s mulheres a maioria dos pedidos de separaçã o: cerca de 80%; espancamentos e injú rias eram os motivos invocados, na maior parte das vezes. També m, com base em documentaçã o criminal, destaca-se o trabalho de Anne-Marie Sohn, relativo à família e papé is femininos atravé s da criminalidade, abrangendo o período final do sé culo XIX até a dé cada de 1930. Anne Martin-Fugier voltou-se para o estudo da mulher burguesa em Paris, focalizando seus papé is familiares e sociais, entre 1880 e 1920.30 No Brasil, devem-se a Gilberto Freyre as primeiras abordagens sobre a família brasileira. O modelo patriarcal teria se estendido do início da colonizaçã o até o sé culo XIX. Freyre deté m- se, minuciosamente, na abordagem dos papé is femininos; as mulheres brancas sã o dadas como submissas, embora fiquem evidenciadas manifestaçõ es de seu poder — o que é revelado, por exemplo, nos maus-tratos infligidos à s escravas suspeitas de atrair a atençã o de seus maridos. Em que pese as generalizaçõ es de Freyre, quando assume a família patriarcal como o ú nico modelo, deve-se acentuar o seu pioneirismo e sensibilidade ao focalizar questõ es como a sexualidade, o corpo e o cotidiano, só há pouco objeto do interesse dos historiadores.31 Embora reconhecendo os privilé gios do marido no modelo patriarcal, pesquisas recentes tê m relativizado a sujeiçã o feminina, ao trazer à tona algumas de suas rebeldias e transgressõ es. També m, nã o raro, mulheres assumiam o mando da casa, gerindo negó cios e propriedades; e entre os segmentos populares, as mulheres desfrutaram de inequívoca liberdade de movimentos. Mesmo entre as mulheres casadas, segundo Eni de Mesquita, nã o poucas foram aquelas que trouxeram situaçõ es de conflito para o casamento, sugerindo um distanciamento entre a normatizaçã o e as vivê ncias concretas. Por outro lado, apó s a dé cada de 1970, estudos demonstraram diversas formas de organizaçã o familiar entre os diferentes segmentos sociais — no início do sé culo XIX, por exemplo, a família patriarcal nã o chegava a representar 26% dos domicílios; predominando nos demais outras formas de composiçã o. Donald Ramos indica que em Vila Rica, à s vé speras da Inconfidê ncia, grande parte dos lares eram chefiados por mulheres; fato igualmente observado por Elizabeth Kusnetsof em Sã o Paulo, aí devido à freqü ente movimentaçã o da populaçã o masculina.32 Em se falando de família seria oportuna uma referê ncia aos trabalhos sobre a maternidade. Uma obra importante é aquela de Yvone Kniebiejler e Catherine Fourquet, que trata da histó ria das mã es desde a Idade Mé dia até nossos dias. No Brasil, Mary Del Priore mostra criativamente como as mulheres na Colô nia reverteram em seu favor uma limitaçã o que lhes foi imposta pelos mé dicos e moralistas, com vistas aos interesses do povoamento. Apenas a casa, a maternidade e a família eram os lugares que definiam como possíveis para as mulheres. Se, de um lado, as mulheres obedeceram a este processo de ordenamento da sociedade colonial, por outro, uniram-se aos filhos, o que lhes garantiu, alé m do respaldo afetivo e material, o exercício, dentro de seu lar, de um poder e uma autoridade que raramente dispunham no restante da vida social.33 A outra face da maternidade, simbolizada nos males provocados ou na sua recusa, está igualmente presente em alguns trabalhos. Cabe lembrar, nesse sentido, a lucidez de Simone de Beauvoir, em fins da dé cada de 1950, em perceber e denunciar os encargos da veneraçã o generalizada da maternidade. Alerta para os perigos que espreitam os filhos, a partir das crenças da exemplaridade de toda mã e, que em sua maioria procura compensar atravé s destes todas as suas frustraçõ es. Jean Louis Flandrin, no começo dos anos 80, assinala a presença na Europa, até o sé culo XVIII, da prá tica do infanticídio. Esta era uma das formas de as mã es livrarem-se de um bastardo que denunciaria o seu pecado. Tais ocorrê ncias també m resultavam, em parte, de razõ es econô micas e do fato de a criança ainda nã o ser objeto de sacralizaçã o. Tais motivaçõ es concorreriam para formas de infanticídio disfarçado, presentes no descuido e negligê ncia dos casais para com os filhos, o que dava ensejo a elevado nú mero de acidentes e à prá tica do aleitamento mercená rio.34 Uma abordagem original sobre o aborto é a de Angus McLaren, que vê o aborto, cada vez mais praticado pelas mulheres casadas em fins do sé culo XIX, como uma forma de feminismo popular. Era levado a efeito por mulheres que recusavam os horrores do infanticídio mas que també m se dispunham a reagir ao peso de nascimentos nã o desejados. Tanto o infanticídio como o aborto foram focalizados no meu estudo já referido. Examinei o discurso mé dico de fins de sé culo XIX e início do XX, que exige o agravamento da pena com relaçã o à quelas que incorriam na prá tica do infanticídio. As devassas, adú lteras e as intelectuais — características indesejá veis para as mulheres naquele momento — eram apontadas como as ú nicas capazes de realizar tal crime. Analisando os processos criminais, pude verificar que tais hipó teses mé dicas nã o correspondiam à realidade. A maioria das mulheres que recorriam ao infanticídio eram recé m-vindas da á rea rural e empregadas domé sticas. Abandonadas pelos parceiros, temiam a perda do emprego, ú nica referê ncia na cidade grande.35
Mulher e sexualidade
Na dé cada do ressurgimento do movimento feminista e da
consolidaçã o da histó ria das mulheres como ramo autô nomo, a reflexã o de Juliet Mitchell obteve grande repercussã o. No artigo “Mulheres. A Revoluçã o Mais Longa”, escrito em 1966, Mitchell afirma que a libertaçã o feminina condicionava-se à transformaçã o das quatro estruturas em que se integra a mulher: produçã o, reproduçã o, socializaçã o e sexualidade. Embora ressalte o cará ter determinante das exigê ncias econô micas, enfatiza a necessidade de estas serem acompanhadas por políticas coerentes para os outros trê s elementos. Estas políticas, em conjunturas particulares, podem até ocupar o papel dominante na açã o imediata. Naquele momento no Ocidente, o aspecto sexual parecia constituir o elo mais fraco. A sexualidade feminina, alvo de tabus e ignorada pelas diversas abordagens, torna-se o centro das atençõ es. As pesquisas sobre a temá tica assumem maior vulto em fins da dé cada de 1970, despontando os Estados Unidos na liderança dessas abordagens.36 Ainda em 1966, naquele país, dentre os estudos sobre os estereó tipos de feminilidade da classe mé dia no sé culo XIX, Barbara Welter publicou o trabalho The cult of true womanhood. Nele relata como ministros e outros moralistas tentaram impor uma ideologia da “verdadeira feminilidade”, prescrevendo para a mulher quatro virtudes: piedade, pureza (no seu significado sexual), domesticidade e submissã o. Segundo Welter a ideologia teria funcionado, pelo menos entre a classe mé dia urbana, para definir os limites de respeitabilidade para as mulheres e para estigmatizar à s que deles se desviassem. Seu artigo provocou inú meras críticas, principalmente por utilizar literatura normativa — como, por exemplo, sermõ es — para tirar conclusõ es acerca das atitudes femininas.37 Vá rias discussõ es ocorreram em torno dos significados da expressã o True womanhood (verdadeira feminilidade). Uma das vertentes desse debate centrou-se nos aspectos ligados à sexualidade feminina Contrapondo-se à afirmaçã o de Welter acerca da assunçã o pelas mulheres da crença em sua fraca sensualidade. Tais estudos rejeitam a “naturalizaçã o” atribuída à sexualidade humana, quer em termos da maior inclinaçã o masculina para o sexo ou do menor vigor sexual feminino. Na verdade, concluem pela estreita vinculaçã o da sexualidade com as normas culturais que a formam.38 Outras pesquisas confirmaram os enganos decorrentes de se considerar a literatura prescritiva sobre a moral feminina vitoriana como índice do comportamento sexual feminino. Nesse sentido, destaca-se o estudo de Carl Degler, que apresenta o relato de um mé dico sexó logo da virada do sé culo, acerca dos freqü entes orgasmos de muitas mulheres “vitorianas”. Ressalta-se, igualmente, o trabalho de Peter Gay, que apresenta testemunhos femininos de plenitude eró tica com mandos e amantes, algumas narrando em detalhes suas experiê ncias.39 Dentre os estudos sobre relaçõ es homossexuais femininas, destaca-se à quele sobre a comunidade lé sbica de Buffalo; tais mulheres, temendo perseguiçõ es, construíram para si um novo tipo de comunidade — base do movimento de libertaçã o das lé sbicas dos anos 70.40 Na historiografia francesa, na qual sã o mais raros os trabalhos sobre a sexualidade feminina, destaque-se a abordagem de Marie-Jo Bonnet sobre a lé sbicas. A pesquisadora utiliza-se de textos literá rios e de prá ticas mé dicas para a aná lise de atitudes dessa natureza no sé culo XIX.41 O descortínio da intimidade amorosa de mulheres, que viviam romances homossexuais, na Bahia do sé culo XVI, é objeto da abordagem de Ligia Bellini, que se pautou na consulta aos documentos inquisitoriais. Assim, reconstró i o cotidiano das mulheres da é poca, narrando modos de sentir e de amar no passado. Deté m-se nos impasses dos moralistas cató licos em definir tais comportamentos, face ao desconhecimento corrente na é poca acerca do funcionamento da sexualidade feminina. Tal comportamento contrastava com as postulaçõ es acerca dos papé is femininos, conforme a aná lise desenvolvida por Lana Lage da Gama Lima dos Discursos político-morais de Souza Nunes, letrado do sé culo XVIII. No campo intelectual, este revela-se extremamente avançado para os padrõ es brasileiros do momento ao afirmar a igualdade de capacidades e aptidõ es entre homens e mulheres. No que tange à sexualidade, poré m, exigia que a mulher fosse “virtuosa, honesta, honrada e discreta”, qualidades que, como esclarece a autora, confundiam-se com o recato. Tal fato reforça os cuidados, referidos acima, para nã o confundir normas prescritas com as prá ticas dos sujeitos concretos.42 A menor sensibilidade sexual da mulher “normal” — que subordina sua sexualidade à maternidade, em contraposiçã o à quelas dotadas de erotismo intenso que se afiguravam como altamente perigosas, dada como criminosas, loucas, prostitutas — constituiu-se, durante o sé culo XIX e parte do XX, na visã o dominante apregoada por autoridades como filó sofos, mé dicos e juristas. Essa nã o era uma concepçã o nova, pois em grande medida já se apresentava no ideá rio cristã o, apenas atualizava-se com o respaldo da ciê ncia, sinô nimo de verdade nos novos tempos. A aná lise desses discursos tem sido alvo da produçã o historiográ fica també m no Brasil. Nessa linha ressalta a abordagem pioneira de Magali Engel que se deté m na aná lise do discurso mé dico sobre a prostituiçã o no Rio de Janeiro, no período 1840-1890. Aponta a autora a fidelidade desses discursos aos princípios cristã os, em que pese o seu tom anticlerical. Para evitar a prostituiçã o, a mulher deveria ser submetida a uma educaçã o que incluísse princípios morais, que buscasse o fortalecimento do sentimento de pudor e que impedisse a indolê ncia, a vaidade e a ambiçã o. Outros trabalhos reservam um espaço a essas representaçõ es. As concepçõ es de Lombroso, dos positivistas comteanos e dos mé dicos acerca da sexualidade feminina foram por mim analisadas no já citado trabalho. Margareth Rago refere- se, igualmente, ao discurso mé dico, alé m de deter-se no pensamento do jurista Viveiros de Castro. Discorre sobre o “direito ao prazer”, postulado pelos anarquistas à s mulheres, alé m de apontar para algumas visõ es tradicionais na imprensa operá ria. També m Luiz Carlos Soares vale-se de teses mé dicas como de documentaçã o policial, literatura de viajantes e romances de é poca na sua abordagem sobre a prostituiçã o. A relaçã o estabelecida pelo pensamento psiquiá trico entre sexualidade femi- nina e loucura emerge da abordagem de Maria Clementina Pereira Cunha, que assinala a crença na incurabilidade das mulheres imorais ou onanistas.43 Em alguns desses trabalhos, sã o apresentadas situaçõ es em que as prá ticas sexuais das mulheres contrapunham-se aos discursos analisados. Este é o caso daquele de Martha Abreu, que em seguida a uma minuciosa aná lise dos discursos jurídicos sobre a moralidade das mulheres pobres, volta-se para o exame de processos de defloramento. Com base nessa documentaçã o, traz à tona as contradiçõ es vividas por essas mulheres frente à s normas e valores morais que os juristas lhes pretendem impor, diversos daqueles que correspondem ao seu universo cultural. Por outro lado, Joana Maria Pedro analisa o processo de construçã o de imagens idealizadas de mulheres e veiculadas pela imprensa de Desterro/Florianó polis, a partir do ú ltimo terço do sé culo XIX. Assinala o seu significado político, apontando a íntima relaçã o entre o comportamento sexual das mulheres da elite com a honra familiar e a hierarquia social; já que qualquer “deslize” no seu comportamento expunha tais grupos à exclusã o do poder, num contexto economicamente estagnado. A relativa introjeçã o dessas imagens pelas mulheres dos segmentos elevados contrasta com as prá ticas daquelas das camadas populares, fornecendo argumentos para a sua repressã o.44
Rastreando o feminino
A escassez de vestígios acerca do passado das mulheres,
produzidos por elas pró prias, constitui-se num dos grandes problemas enfrentados pelos historiadores. Em contrapartida, encontram-se mais facilmente representaçõ es sobre a mulher que tenham por base discursos masculinos determinando quem sã o as mulheres e o que devem fazer. Daí a maior ê nfase na realizaçã o de aná lise visando a captar o imaginá rio sobre as mulheres, as normas que lhes sã o prescritas e até a apreensã o de cenas do seu cotidiano, embora à luz da visã o masculina. Nos arquivos pú blicos sua presença é reduzida. Destinadas à esfera privada, as mulheres por largo tempo estiveram ausentes das atividades consideradas dignas de serem registradas para o conhecimento das geraçõ es subseqü entes. Fala-se das mulheres, sobretudo, quando perturbam a ordem pú blica, destacando-se, nesse caso, os documentos policiais, aliados aos processos criminais. Constituem- se numa fonte privilegiada de acesso ao universo feminino dos segmentos populares, inclusive atravé s dos seus pró prios depoimentos. També m os jornais nã o devem ser esquecidos. Os arquivos privados, de acordo com Michelle Perrot, sã o mais generosos. Referem-se aos Livres de raison, espé cie de “atas” da vida familiar, nos quais as mulheres anotavam o dia-a-dia domé stico. As cartas, os diá rios íntimos, sã o exemplos de outros registros femininos, que, quando encontrados, sã o da maior importâ ncia para o historiador. Impressiona o alto índice de destruiçã o dessa documentaçã o. Nã o poucas foram aquelas que os rasgaram ou os queimaram, temendo ser objeto de zombadas. As obras literá rias, a escrita religiosa — cató lica ou protestante — també m aparecem como formas de expressã o feminina. Encontram-se arquivos de mulheres nos Estados Unidos, na França e em Amsterdã . Mais comuns sã o os objetos por elas deixados — entre outros, dedais, jó ias, roupas, bibelô s, caixas, missais e as fotografias, fruto do encargo que lhes foi atribuído de transmitir a histó ria da família. Hoje busca-se com esse material constituir uma arqueologia feminina da vida cotidiana. Ressalta-se, també m, a histó ria oral, instrumento dos mais adequados para registrar a memó ria feminina, na medida em que o acesso feminino à escrita nã o se deu no mesmo ritmo dos homens. As dificuldades de penetrar no passado feminino tê m levado os historiadores a lançarem mã o da criatividade, na busca de pistas que lhes permitam transpor o silê ncio e a invisibilidade que perdurou por tã o longo tempo neste terreno. Assim, có pias heliográ ficas arquitetô nicas foram utilizadas para interpretar as relaçõ es de poder na vida domé stica, tal como relatos de assistentes sociais para investigar relaçõ es domé sticas ou diá rios de mé dicos para conhecer o comportamento das mulheres durante o parto. Enfim, acompanhando a renovaçã o teó rica dos estudos histó ricos, refinaram-se os mé todos, as té cnicas, desenvolvendo-se a inventividade com relaçã o à s fontes, o que tem possibilitado maior intimidade com aqueles segmentos e a ampliaçã o dos horizontes da histó ria.