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14/01/2022 15:04 Com Ciência - Mulheres na Ciência

Editorial História das mulheres e relações de gênero: debatendo algumas


questões
A Bela e a Fera

Carlos Vogt
Rachel Soihet
Mulheres entram
em pauta As contribuições recíprocas decorrentes da explosão do feminismo e das
Mariluce Moura transformações na historiografia, a partir da década de 1960, foram
fundamentais na emergência da História das Mulheres. Nesse sentido,
Reportagens
ressaltam-se as contribuições da História Social, da História das
Nas humanas, elas
Mentalidades e, posteriormente, da História Cultural, articuladas ao
s�o maioria. Mas crescimento da antropologia, que tiveram papel decisivo nesse
chegar ao topo processo, em que as mulheres são alçadas à condição de objeto e
ainda � dif�cil
sujeito da História. Fato relevante, se considerarmos a despreocupação
F�sicas enfrentam
da historiografia dominante, herdeira do iluminismo, com a participação
preconceito em diferenciada dos dois sexos, já que polarizada para um sujeito humano
�rea universal.
predominantemente
masculina
A partir da década de 1970, "gênero" tem sido o termo usado para
Pesquisas revelam teorizar a questão da diferença sexual. Foi inicialmente utilizado pelas
a generaliza��o feministas americanas, sendo inúmeras as suas contribuições. A ênfase
da informalidade
entre as mulheres
no caráter fundamentalmente social, cultural das distinções baseadas
ocupadas no sexo, afastando o fantasma da naturalização; a precisão emprestada
à idéia de assimetria e de hierarquia nas relações entre homens e
Delegacias da mulheres, incorporando a dimensão das relações de poder; o relevo ao
mulher extrapolam
fun��es legais
aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, de que
nenhuma compreensão de qualquer um dos dois poderia existir através
Fisiologia feminina de um estudo que os considerasse totalmente em separado,
ainda � constituem-se em algumas dessas contribuições. Acresce-se a
atravessada por
enigmas
significação, emprestada por esses estudos, à articulação do gênero
com a classe e a raça/etnia. Interesse indicativo não apenas do
Mulher pode ter compromisso com a inclusão da fala dos oprimidos, como da convicção
rea��o diferente a de que as desigualdades de poder se organizam, no mínimo, conforme
medicamentos
estes três eixos.
Artigos
Todas essas reflexões das mais fecundas não excluem, porém, críticas à
No que o mundo da continuidade nos estudos de gênero dos dualismos, especialmente, da
ci�ncia difere dos divisão binária da humanidade, a partir das construções baseadas no
outros mundos?

L�a Velho e
sexo. Reflexões e pesquisas têm se desenvolvido com vista a
Maria Vivianna ultrapassar tais impasses, questionando-se a utilização de uma
Prochazka categoria que tem como referência a diferença sexual quando as
discussões 'politicamente corretas' parecem exigir, cada vez mais
As mulheres na
ci�ncia regional:
privilegiar outras marcas na explicação das desigualdades. Uma
diagn�stico e proposta seria partir de uma perspectiva pluralista, considerando-se
estrat�gias para a uma multiplicidade identitária.
igualdade

Mar�a Elina

Est�banez A historiadora Joan Scott, entusiasta da categoria gênero, alinha-se


entre as pioneiras que acentuam a necessidade de se ultrapassar os
As desigualdades seus usos descritivos, buscando a utilização de formulações teóricas,
de g�nero e o novo
C�digo Civil

com o que concordam muitas das pesquisadoras. Uma exceção, nesse


Fabiane Simioni particular, é Maria Odila da Silva Dias que discorda da necessidade da
construção imediata de uma teoria feminista, pois, a seu ver, tal
Estudos da ci�ncia reconstrução significa substituir um sistema de dominação cultural por
na �tica feminista

Claudia Fonseca
outra versão das mesmas relações, talvez invertidas de poder, já que o
saber teórico implicaria, também, num sistema de dominação. Sugere
G�nero e ci�ncias partir de conceitos provisórios e assumir abordagens teóricas parciais.
no pa�s: Scott argumenta que, no seu uso descritivo, o gênero é apenas um
exce��es �
regra?

conceito associado ao estudo das coisas relativas às mulheres, mas não


Maria Margaret tem a força de análise suficiente para interrogar e mudar os paradigmas
Lopes históricos existentes. Assim, não teria sido suficiente às historiadoras
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O g�nero na das mulheres provar que as mulheres tiveram uma história, ou que as
ci�ncia: os mulheres participaram das mudanças políticas principais da civilização
interesses da ocidental. Após um reconhecimento inicial, a maioria dos historiadores
medicina na mulher
Fab�ola Rohden descartou a história das mulheres ou colocou-a em um domínio
separado. Esse tipo de reação encerra, segundo Scott, um desafio
As mulheres e a teórico. Ele exige a análise não só da relação entre experiências
filosofia como masculinas e femininas no passado, mas também a ligação entre a
ci�ncia do
esquecimento
história do passado e as práticas históricas atuais. Scott ressalta, ainda,
Marcia Tiburi que as análises de gênero, no seu uso descritivo, tem incidido apenas
nos trabalhos sobre temas em que a relação entre os sexos é mais
Hist�ria das evidente: as mulheres, as crianças, as famílias etc. Aparentemente,
mulheres e
rela��es de temas como a guerra, a diplomacia e a alta política não teriam a ver
g�nero: debatendo com essas relações. O gênero parece não se aplicar a esses objetivos e,
algumas quest�es
portanto, continua irrelevante para a reflexão dos historiadores que
Rachel Soihet
trabalham sobre o político e o poder. O resultado é a adesão a uma
O futuro da f�sica visão funcionalista baseada sobre a biologia e a perpetuação da idéia
depende das das esferas separadas na escrita da história: a sexualidade ou a política,
mulheres
a família ou a nação, as mulheres ou os homens.
Marcia Barbosa

Poema Por outro lado, a polêmica entre Joan Scott e as historiadoras Louise
Tilly e Eleni Varikas oferece um panorama da pluralidade de concepções
Par�bola de Mulher acerca da questão do gênero. Ao reforçar a necessidade de se
Carlos Vogt ultrapassar os usos descritivos do gênero, buscando a utilização de
formulações teóricas, Scott afirma a impossibilidade de uma tal
 
conceitualização efetuar-se no domínio da história social, segundo ela,
Cr�ditos marcado pelo determinismo econômico. Salienta a necessidade de
utilizar-se uma "epistemologia mais radical", encontrada, segundo ela,
no âmbito do pós-estruturalismo, particularmente, em certas
abordagens associadas a Michel Foucault e Jacques Derrida, capazes de
fornecer ao feminismo uma perspectiva analítica poderosa. Nesse
sentido, segundo Scott, os estudos sobre gênero devem apontar para a
necessidade da rejeição do caráter fixo e permanente da oposição
binária "masculino versus feminino" e a importância de sua
historicização e "desconstrução" nos termos de Jacques Derrida -
revertendo-se e deslocando-se a construção hierárquica, em lugar de
aceitá-la como óbvia ou como estando na natureza das coisas (Scott,
1994, 16) .

Louise Tilly contrapõe-se a tal postura, com o que concorda Eleni


Varikas, ao afirmar que a vontade política de conceder às mulheres o
estatuto de sujeitos da história contribuiu para o encontro das
historiadoras feministas com as experiências históricas das mulheres. E,
para muitas, este encontro teve lugar no terreno da história social, do
que resultaram análises notáveis de relações entre gênero e classes
sociais. Desse modo, as críticas formuladas por Joan Scott contra a
história social, quanto à marginalização das experiências femininas, a
redução do gênero a um subproduto das forças econômicas, a
indiferença pela influência do gênero na constituição do sentido na
cultura e na ideologia política foi, segundo Varikas, precisamente o que
desapareceu nas tentativas bem sucedidas de re-escrita feminista da
história. Também, Tilly e Varikas manifestam seu ceticismo quanto ao
potencial de epistemologias situadas no âmbito do pós-estruturalismo
para elaborar uma visão não determinista da história e uma visão das
mulheres como sujeitos da história. Nesse particular, ocorre-me uma
opinião sobre o assunto das mais ponderadas: "se a linguagem
constitui-se num dado ou obstáculo inevitável, ela não é o começo e o
fim de tudo. Assim, importa não substituir a tirania do logos por uma
nova tirania", ou seja, a da linguagem, do discurso.

Varikas critica, porém, as restrições de Tilly ao que denomina "uso mais


literário e filosófico do gênero", atentando para a importância de se
refletir com mais precisão, acerca da influência do paradigma lingüístico
sobre a história das mulheres. Acentua Varikas a importância das
abordagens no âmbito da história das idéias e das mentalidades, que
concederam um lugar privilegiado para a análise das representações,
dos discursos normativos, do imaginário coletivo; as quais chamaram a
atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos do masculino
e do feminino, reconstruindo as múltiplas maneiras pelas quais as
mulheres puderam re-interpretar e re-elaborar suas significações. E os

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estudos feministas não esperaram o pós-estruturalismo para sublinhar a
importância das representações e dos sistemas simbólicos na análise e
na compreensão da construção do gênero e das relações sociais que os
sustentam.

Ainda, Scott propõe a política como domínio de utilização do gênero


para análise histórica. Justifica a escolha da política e do poder no seu
sentido mais tradicional, no que diz respeito ao governo e ao Estado
Nação. Especialmente, porque a história política teria se constituído na
trincheira de resistência à inclusão de materiais ou de questões sobre as
mulheres e o gênero, vistos como categoria de oposição aos negócios
sérios da verdadeira política. Acredita que o aprofundamento da análise
dos diversos usos do gênero para justificativa ou explicação de posições
de poder fará emergir uma nova história que oferecerá novas
perspectivas às velhas questões; redefinirá as antigas questões em
termos novos - introduzindo, por exemplo, considerações sobre a
família e a sexualidade no estudo da economia e da guerra. Tornará as
mulheres visíveis como participantes ativas e estabelecerá uma
distância analítica entre a linguagem aparentemente fixada do passado
e a nossa própria terminologia. Além do mais, essa nova história abrirá
possibilidades para a reflexão sobre as atuais estratégias feministas e o
futuro utópico.

A análise de Scott é de extrema relevância, pois incorpora contribuições


das mais inovadoras no terreno teórico, como no do próprio
conhecimento histórico. Considero, porém, que, a partir do modelo de
análise proposto, alguns elementos essenciais ao desvendamento da
atuação concreta das mulheres tornam-se dificilmente perceptíveis.
Importa, portanto, examinar contribuições de outras historiadoras,
entre elas Michelle Perrot e Arlette Farge que, com esse objetivo, não se
limitam a abordar o domínio público. Recorrem a outras esferas, como o
cotidiano, no afã de trazer à tona as contribuições femininas.

Nessa perspectiva, ressaltam a necessidade de se buscar às mulheres


nos domínios nos quais ocorria maior evidência de participação
feminina. Os estudos sobre a sociabilidade feminina que deram lugar a
importantes trabalhos sobre o lavadouro, o forno, o mercado, a casa,
assim como os estudos sobre os tempos marcantes da vida, tomando
como objetos o nascimento, o casamento e a morte são destacados. Daí
não se aterem unicamente à esfera pública - objeto exclusivo, por largo
tempo, do interesse dos historiadores impregnados do positivismo e de
condicionamentos sexistas. Explica-se, assim, a emergência do privado
e do cotidiano, nos quais emergem com toda força a presença dos
segmentos subalternos e das mulheres. Longe está o político, porém,
de estar ausente dessa esfera, na qual se desenvolvem múltiplas
relações de poder.

Tais historiadoras evitam o binômio dominação/subordinação como


terreno único de confronto. Apesar da dominação masculina, a atuação
feminina não deixa de se fazer sentir, através de complexos contra-
poderes: poder maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e
"compensações" no jogo da sedução e do reinado feminino. Sua
proposta metodológica é estudar o privado e o público como uma
unidade, assaz renovadora frente ao enfoque tradicional "privado versus
público".

Advertem as pesquisadoras que tais conclusões, acerca dos poderes


femininos, não devem, porém dar lugar a enganos, em termos de uma
perspectiva conciliadora, de justaposição de culturas, ao mesmo tempo
plurais e complementares, esquecendo-se da violência e da
desigualdade que marcam a relação entre os sexos. Inúmeros exemplos
são apresentados, assinalando-se a presença da complementaridade na
divisão sexual das tarefas, o que não exclui uma hierarquização dos
papéis exercidos por homens e mulheres. Assim, reiteram a existência
da dominação masculina, instrumento indispensável para captar a lógica
do conjunto de todas as relações sociais. Entretanto, na perspectiva que
adotam, a "dominação masculina" não é mais uma constante sobre a
qual toda reflexão tropeçaria, mas a expressão de uma relação social

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desigual que pode desvendar engrenagens e marcar especificidades de
diferentes sistemas históricos.

Voltando à proposta de Scott, esta não abre espaço para que emerjam
as diversas sutilezas presentes nas relações entre os sexos, das quais
não estão ausentes as alianças e consentimentos por parte das
mulheres. Nesse particular são muito adequadas as considerações de
Roger Chartier, pautado em Pierre Bourdieu, que destaca na dominação
masculina o peso do aspecto simbólico, que supõe a adesão dos
dominados às categorias que embasam sua dominação. Utiliza-se
Chartier do conceito de violência simbólica que ajuda a compreender
como a relação de dominação - que é uma relação histórica, cultural e
lingüisticamente construída - é sempre afirmada como uma diferença de
ordem natural, radical, irredutível, universal. Outrossim, alerta Chartier,
uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de variações
e manipulações, por parte dos dominados. O que significa que a
aceitação pelas mulheres de determinados cânones não significa,
apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente,
construir um recurso que lhes permita deslocar ou subverter a relação
de dominação. As fissuras à dominação masculina não assumem, via de
regra, a forma de rupturas espetaculares, nem se expressam sempre
num discurso de recusa ou rejeição. Definir os poderes femininos
permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa
entendê-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos
simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio
dominador.

A noção de resistência torna-se, dessa forma, fundamental nas


abordagens sobre as mulheres, revelando sua presença e atuação no
seio de uma história construída pelos homens, com vistas a reagir à
opressão que sobre elas incide. Historiadoras, como aquelas mais uma
vez citadas, M. Perrot, Natalie Davis, A. Farge, Silva Dias, eu própria,
têm se baseado nesse referencial na obtenção de pistas que
possibilitem a reconstrução da experiência concreta das mulheres em
sociedade, que no processo relacional complexo e contraditório com os
homens têm desempenhado um papel ativo na criação de sua própria
história.

Importa esclarecer que tais observações não visam excluir a abordagem


das mulheres do terreno da política formal, sem dúvida da maior
importância no estudo da movimentação feminina, na luta por direitos e
de sua participação como sujeitos na sociedade. Afinal, penetrar na
esfera pública foi um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres.
Passavam as mulheres, segundo Hannah Arendt, a garantir sua
transcendência, pois o espaço público, afirma aquela filósofa, não pode
ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os
que estão vivos: deve transcender a duração da vida dos homens
mortais, aos quais acrescentamos, também, a das mulheres mortais.

Rachel Soihet é professora do Programa de Pós-Graduação em História


da Universidade Federal Fluminense - UFF e pesquisadora do CNPq.

Atualizado em 10/12/2003
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� 2003
SBPC/Labjor
Brasil

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