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Relações de gênero e violência contra a mulher:

dois campos em diálogo


Lourdes Maria Bandeira

Dedico este texto à Professora Mireya Suarez, exemplo de


acadêmica competente, pesquisadora dedicada e singela,
que nos inspira cotidianamente!1

Introdução

Este texto tem o objetivo de estimular a reflexão crítica sobre


a construção social da categoria de sexo/gênero em suas hierarquias,
assim como as decorrentes expressividades sobre as violências contra
as mulheres que se instituem nos jogos de poder e de dominação entre
os sexos/gêneros. É a intenção na análise aqui proposta.
Historicamente, foi a partir de meados da década de 1980 que os
estudos de gênero ganharam visibilidade, passando a se constituírem
em uma área acadêmica e institucionalizando-se no domínio das
Ciências Sociais. Processo semelhante veio a ocorrer com os estudos
relativos à violência contra as mulheres.
Ademais, estas duas áreas de estudo progrediram em função
da forte atuação do movimento feminista que, desde meados dos
anos 1970, visibilizou a importância do papel desempenhado pelas
mulheres na modernização da sociedade brasileira, assim como
das sociedades latino-americanas, especialmente no que se refere
ao controle populacional, ao acesso das mulheres ao mercado de
trabalho e ao sistema educacional (HEILBORN; SORJ, 1999); também
ao denunciar a exclusão histórica das mulheres nos espaços públicos.

1 Registro um agradecimento especial pela leitura minuciosa do texto feita por Ana Paula
Martins, doutoranda do Programa de pós da Sociologia.

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Assim, a proposta é de refletir, articuladamente, com estes temas
a partir dos seguintes eixos: i) aportes sobre as diferenças entre sexo/
gênero; ii) a institucionalização do campo de estudos de gênero no
Brasil e, mais especificamente, no Departamento de Sociologia da
Universidade de Brasília (UnB); iii) os usos do conceito de gênero e
seus desdobramentos; iv) as contribuições que os estudos de gênero
trouxeram ao fenômeno da violência de gênero; e, por fim, explicitação
dos desafios que restam.

Aportes sobre as diferenças entre sexo e gênero


Aquelas pessoas que se propõem a codificar os sentidos
das palavras lutam por uma causa perdida, porque as
palavras, como as ideias e as coisas que elas pretendem
significar, têm uma história (SCOTT, 1995).

Até a década de 1980, de modo geral, as categorias de sexo e


de gênero eram consideradas opostas. O sexo, que é caracterizado
como biológico e centrado em um sistema de bicategorização se
refere às características biológicas de homens e mulheres, ou seja,
às características específicas dos aparelhos reprodutores femininos e
masculinos. Diferencia-se do gênero que é posto como da condição
social, isto é, de provocar uma ‘‘explosão’’ sobre as visões essencialistas
da diferença entre os sexos, que consistia em atribuir características
‘‘imutáveis’’ às mulheres e aos homens em função, sobretudo, de suas
caraterísticas biológicas.
Pois, até os anos 1980 sobrevivia com força a ideia de uma dualidade
entre sexo e gênero, sendo o primeiro para informar sobre a natureza e
o segundo sobre a cultura. Nicole-Claude Mathieu (2009, p. 223) coloca
que “a humanidade faz parte das espécies de reprodução sexuada, por
isso ela tem dois ‘sexos’ anatômico-fisiológicos com uma única função
de sua perpetuação física: a reprodução de novos indivíduos”2.

2 Vale lembrar que o conceito de sexualidade se refere ao fato sexual, isto é, o qual se de-
fine por suas práticas erótico-sexuais nas quais as pessoas se envolvem, bem como pela
importância do desejo e atração que levam a sua expressão (ou não) através de determi-
nadas práticas. Esse dado também é chamado por alguns(mas) de “orientação sexual”, e

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Ademais, nas sociedades humanas é demasiadamente valorizada
a diferenciação biológica, uma vez que são atribuídos aos dois sexos
funções e/ou papéis diferenciados, geralmente, hierarquizados e com
significados prescritivos. Em algumas sociedades atuais, embora não os
ocidentais, as fronteiras estabelecidas entre sexo e gênero não são tão
explícitas (MATHIEU, 2009) como na nossa, pois aqui o conceito de
gênero é compreendido como a ‘‘desnaturalização do sexo’’, delimitando
outras formas de relações entre os sexos, sobretudo de poder.
Segundo Berini et. al. (2008, p. 5), Simone de Beauvoir, quando
escreveu O Segundo Sexo (1949), afirmou: ‘‘não se nasce mulher, torna-
se’’, quis sinalizar que não há ‘‘essência’’ de feminino, mas o que existe
é um aprendizado ao longo da vida nos comportamentos socialmente
esperados por uma mulher. Portanto, as diferenças sistemáticas entre
homens e mulheres não são produtos de um determinismo biológico,
mas de construções sociais.
Uma das críticas feministas que abalou essa concepção essencialista
binária, ao trazer novas perspectivas com os estudos de gênero, foi a
historiadora estadunidense Joan Scott, quando da publicação de seu
célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica, publicado
originalmente em 19863. Assumidamente pós-estruturalista, propôs-se
a desconstruir os vícios do pensamento ocidental, tal como a oposição
[sexual-essencialista] tida como universal e atemporal entre homem
e mulher (KOFES, 1993; PISCITELLI, 2002), que estendia um olhar
binário sobre o mundo, a saber: diferença-identidade. Igualdade-
desigualdade; dominação-submissão entre homens e mulheres, em
todos os diversos contextos sociais.
A partir de então, o termo gênero aparece como contraponto
sociocultural do sexo biológico, deixando profundas marcas na análise
comumente tipifica as pessoas em “heterossexuais”, “homossexuais” e “bissexuais”.
3 O Texto de Joan Scott foi incialmente traduzido por Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila, em 1989. Posteriormente, foi publicado pela Revista Educação e Sociedade,
POA/RS. (1995).

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dos estudos das relações entre homem e mulher na sociedade. Na
época, instalou-se uma densa crítica pelas acadêmicas feministas
que trataram de evidenciar como os significados que são dados às
diferenças sexuais entre homens e mulheres são bem mais complexos
do que ‘‘uma divisão ontológica irredutível’’ (MATHIEU, 2009), pois
variam no tempo e no espaço e dependem não da natureza, mas da
organização social e da dinâmica da cultura. Para Scott (1995, p. 3), a
admissão da categoria de gênero:
Indicava uma rejeição ao determinismo biológico
implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença
sexual”. O “gênero” sublinhava também o aspecto
relacional das definições normativas de feminilidade.
As que estavam mais preocupadas com o fato de que
a produção dos estudos femininos se centrava sobre as
mulheres de forma muito estreita e isolada, utilizaram
o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional
no nosso vocabulário analítico.

Vale dizer que a crítica feminista demarcou os estudos sobre as


mulheres para além do sexo e da sexualidade biológica, avançando
em relação aos estudos de gênero, ao denunciar a naturalização dos
corpos nas diferenças entre os sexos, em suas partes genitais. Ainda, vale
dizer que os estudos de gênero não se ‘‘ocupam’’ apenas das mulheres
e do feminino, mas os articulam/relacionam com os homens e o
masculino. Com essa crítica, evidenciou como a cultura se apropria
dessas diferenças para justificar as situações de desigualdades e as
relações de poder entre os gêneros e a posição subordinada que as
mulheres ainda ocupam em diferentes situações e culturas. Pelo olhar
conservador, tanto o corpo como a sexualidade feminina aparecem
como objetos fixos, sem história, sem movimento, sem pluralidade,
sem experiência, o que obscurece a importância das diferenças sexuais,
como também de outras diferenças ‘‘localizadas’’ tais como as raciais,
étnicas, religiosas, regionais e geracionais entre as mulheres e os homens

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(HARAWAY, 1993), assim como também desconsiderou as diferenças
entre outras diferentes sexualidades. Scott (1995, p. 4) diz:
O interesse pelas categorias de classe, de raça e de
gênero assinalava inicialmente o compromisso do(a)
pesquisador(a) com uma outra história que incluía a
fala dos(as) oprimidos(as) e com uma análise do sentido
e da natureza de sua opressão; assinalava também que
esses(as) pesquisadores(as) levavam cientificamente
em relação ao fato de que as desigualdades de poder
estão organizadas segundo, no mínimo, estes três eixos
(...) E, havendo uma relação inseparável entre saber e
poder, gênero estaria imbricado a relações de poder,
sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar
sentido a estas relações.

Portanto, resumidamente, Kabeer (2013, p. 3) explicita a distinção


entre os conceitos acima:
O sexo é tomado como referência àqueles atributos
biológicos do macho e da fêmea da espécie humana,
que se relacionam a seus órgãos reprodutivos. O macho
e a fêmea da espécie humana são muito semelhantes
um ao outro em outros aspectos da sua biologia: ambos
necessitam de comida, de água, descanso, vestimentas
e abrigo para sua sobrevivência básica; ambos são seres
totalmente dependentes quando pequenos e tornam-se
gradualmente mais dependentes com a velhice. Ambos
são capazes de dar sentido a seu mundo e de agir com o
propósito de mudar suas condições de vida.

A categoria de gênero, por sua vez:


Refere-se ao conjunto de normas, valores, costumes e
práticas através das quais a diferença biológica entre o
macho e a fêmea da espécie humana é transformada e
exagerada em uma diferença social muito mais ampla.
A tendência a se confluir diferença sexual, de ordem
biológica, com diferença de gênero, de ordem social, dá

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lugar à noção de que todas as diferenças observáveis nos
papéis, capacidades e habilidades atribuídas a homens
e mulheres em um dado contexto estão enraizadas na
biologia e, portanto, não podem ser transformadas.

Portanto, a categoria de gênero não é tão somente um ‘‘sistema’’


divisor entre os sexos, mas sobretudo, é um ‘‘sistema de significado’’
que estrutura fortemente as categorias de pensamento. Pois a dicotomia
feminino-masculino subentende uma série de outras dicotomias
fundamentais do pensamento, em modalidades variáveis em função de
cada dinâmica social. Nas sociedades ocidentais, feminino-masculino
‘‘inspirou’’ outras tantas dicotomias que atuam de maneira estruturada,
por exemplo – fraco-forte; sensível-racional; altruísta-individualista;
tradicional-moderno; concreto-abstrato, entre muitas outras (BERINI
et. al., 2008). Ou seja, tais dicotomizações aportam dimensões simbólicas
que permitem pensar fenômenos sociais, muitos tidos como neutros
da perspectiva de gênero. Uma visão dicotômica tem contribuído para
explicar a reprodução das desigualdades materiais entre mulheres
e homens, grosso modo, no âmbito do trabalho. As primeiras são
‘‘destinadas’’ à esfera reprodutiva-doméstica; os segundos, à esfera
produtiva-pública.
Por fim, a categoria de gênero permite apreender que as relações
sociais desiguais estabelecidas entre homens e mulheres são o resultado
da construção social relativa aos papéis desempenhados pelos homens
e mulheres, e que se estabelecem como relações de poder, isto é,
evidenciando as hierarquizações, sobretudo, quando são ‘‘atravessadas’’
por clivagens raciais, de classe e geracionais, entre outras. Por exemplo,
ser mulher negra, heterossexual, trabalhadora doméstica, e habitar
na periferia, não caracteriza a mesma experiência estando na mesma
condição/situação de um homem negro.
Como já mencionado, diferentes sociedades podem atribuir
outros significados, seja em relação ao sexo, seja em relação à categoria

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de gênero e aos demais marcadores sociais, pois a distribuição de
papéis sociais pode passar por outras lógicas de organização de cada
sociedade.

A institucionalização dos estudos de gênero no Brasil e


na Universidade de Brasília (UnB)

De início, falava-se dos ‘‘estudos sobre a mulher’’, especialmente


no contexto da militância feminista. Porém, nos espaços acadêmicos no
Brasil, uma das autoras pioneiras a tratar das ‘‘imbricações’’ entre sexo,
raça e classe social foi Heleieth B. Saffioti – A Mulher na Sociedade de
Classes: Mito ou Realidade, com primeira edição em 1969, acresceu nos
estudos sobre as mulheres a articulação com as categorias raciais e de
classe social. Foi a partir dos anos 1980 que nos EUA instituíram-se os
gender studies e, na década seguinte, na Europa, sobretudo na França,
os études sur le genre, sem, no entanto, haver uma forte resistência
que, preferencialmente, se utilizou da categoria “relações sociais de
sexo” (KERGOAT, 1992), assim como de “sexo social” (BERENI et
al., 2008). Vale lembrar que o conceito de “gênero” em seu início foi
‘‘apropriado’’ pelas Ciências Sociais a partir do campo linguístico da
Literatura Inglesa (KUCHEMANN et. al., 2015).
No Brasil, desde então, a categoria de gênero conheceu terreno
fértil, pois de imediato foi ‘‘incorporada’’ pelas pesquisadoras acadêmicas.
Sobre a institucionalização da categoria, Heilborn (1999) enfatiza que,
diversamente do que ocorreu nos Estados Unidos da América, cuja
peculiaridade dos estudos de gênero foi de terem emergido juntamente
com os estudos raciais, aqui no Brasil, tal emergência se configurou
com a concomitância dos estudos sobre a violência contra a mulher,
que se impuseram como um forte fenômeno social desde meados
da década de 1970. Enquanto as feministas americanas referiam-se
a feminist ou women’s studies; no Brasil, a maior visibilidade política

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recaiu sobre o emergente ‘‘Movimento de Mulheres no Brasil’’ composto,
em sua maioria, por mulheres feministas acadêmicas localizadas,
principalmente, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Assim,
Na década de setenta, “estudos sobre a mulher” foi a
denominação mais comum utilizada para caracterizar
esta nova área. Livros, artigos, jornais e seminários
fazem constar de seus títulos o termo mulher e
pretendem, principalmente, preencher lacunas do
conhecimento sobre a situação das mulheres nas mais
variadas esferas da vida e ressaltar/denunciar a posição
de exploração/subordinação/opressão a que estavam
submetidas na sociedade brasileira (HEILBORN et al.,
1999, p. 4).

A partir da década seguinte, o termo mulher – uma categoria


empírica e descritiva, passa a ser ‘‘substituída’’ por uma categoria
analítica, isto é, o termo gênero (HEILBORN et al., 1999). O uso da
categoria de gênero desencadeia sentidos não unívocos, pois, como
categoria de análise relacional, amplia e complexifica a capacidade
cognitiva de compreensão de fatos sociais, assim como “agrega em uma
única palavra um conjunto de fenômenos sociais, históricos, políticos
econômicos e psicológicos ...”. (KUCHEMANN et al., 2015, p. 65).
No Brasil foi, sobretudo, no campo das Ciências Sociais stricto
sensu que se formaram equipes de pesquisadoras, que se proliferaram
pesquisas, foram ofertadas disciplinas nos cursos de graduação, a
exemplo do que vinha ocorrendo em outros países europeus como
da América Latina, caso da Argentina e do Chile, entre outros.
Obviamente que muitas áreas apresentaram resistência a incorporar
o uso dessa categoria, sobretudo as Ciências Econômicas e o Direito
(BERENI et al., 2008); assim como a expansão de seu uso ocorreu
nos espaços acadêmicos, ao ‘‘possibilitar’’ questionar as categorias
de análise fundamentais das disciplinas constituídas. Por exemplo,
a Sociologia do Trabalho começa a questionar a hegemonia do uso

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tradicional do ‘‘trabalho’’, isto é, da atividade remunerada centrada na
expressão trabalhador, operário, e passa a considerar que o trabalho
doméstico tem um sexo4, assim como a política, a saúde, etc. Daí que
emerge a discussão sobre a divisão sexual do trabalho que separa e
hierarquiza homens e mulheres em tempos, espaços públicos e privados,
qualificações, profissões, salários, etc.
Portanto, a incorporação do conceito de gênero veio a se constituir
em uma ferramenta analítica cuja dimensão do social nos fenômenos
que podem nos parecer “naturais” deixa de ser negligenciada. Ao
mesmo tempo,
torna visível realidades desiguais entre homens e
mulheres que não eram percebidas sob a presença de
estratégias de poder que constituíam em naturalizar
as relações sociais entre homens e mulheres com o
intento de mascarar as relações de poder subjacentes.
(KUCHEMANN et al., 2015, p. 65).

Em outras palavras, o conceito de gênero possibilita questionar


os fenômenos que são percebidos (ou tidos) como naturais sob a ótica
segundo a qual toda a produção do conhecimento é permeada por
relações de poder (HARDING, 1996; KUCHEMANN et al., 2015, p. 65).
O pioneirismo sobre os Estudos de Mulheres e de Movimento
de Mulheres, posteriormente denominados de Estudos de Gênero
ocorreram na UnB a partir de meados de 1986, a partir da criação do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM), vinculado ao
Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM). A criação
do NEPEM por um grupo de professoras da área das Ciências Sociais
deveu-se ao fato de que naquele momento formava-se um campo
intelectual e político que incluía, de início, os estudos sobre a mulher.

4 Elisabeth Souza-Lobo foi uma pioneira dos estudos de gênero na esfera do trabalho no
Brasil. Publicou A Classe Operária Tem Dois Sexos. Trabalho, Dominação e Resistência.
São Paulo, Editora Brasiliense, 1991.

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Estes conceitos fundadores do campo foram seguidos pelos estudos
de gênero e pela epistemologia feminista, sua evolução conceitual
mais recente.
No cerne desse campo intelectual e político, o NEPEM desenvolveu
a crítica cultural feminista (às desigualdades entre mulheres e homens;
à convergência das discriminações de gênero, raça, etnia e classe, aos
alicerces androcêntricos dos direitos jurídicos e consuetudinários,
e à sonegação do direito à diferença, entre outras). Desse modo,
consolidou-se como um grupo de pesquisa que submeteu inovações
à experiência de investigação e de ensino para visualizar os caminhos da
mudança: a prática interdisciplinar e a abordagem situada da realidade
que caracteriza o ‘‘modo de conhecer feminista’’ desde sempre tem
constituído a parte principal da missão.
Ao longo de seus 30 anos de existência, o Núcleo desenvolveu
numerosos projetos de pesquisa, dentre os quais os de maior envergadura
foram “Relações de Gênero e Raça: Hierarquias, Poderes e Violências”,
com apoio do CNPq; “Violência e Cidadania no Distrito Federal”,
com apoio da FAP/DF; e “A Resolução Institucional de Conflitos –
Acesso aos Direitos Humanos das Mulheres no Brasil”, apoiado pela
Fundação Ford. Esses projetos que recobriram toda a década de 1990
e que resultaram em diversas publicações.
Embora a atividade central do Núcleo tenha sido a pesquisa,
as atividades de ensino tornaram-se crescentemente importantes,
na medida em que aumentava o número de assistentes de pesquisa a
serem treinadas, como, também, a demanda discente por formação nas
abordagens feminista e de gênero. Centenas de estudantes de graduação
e pós-graduação receberam formação teórica e metodológica nessas
abordagens por meio do engajamento nos projetos de pesquisa, da
participação nos Seminários de Pesquisa do NEPEM, da oferta de
disciplinas em cursos disciplinares, e da orientação de graduandas(os),
mestrandas(os) e doutorandas(os) das áreas de Sociologia, Antropologia,

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Comunicação, Psicologia, Serviço Social, Ciências Sociais, História e
Direito, sobretudo.
No Departamento de Sociologia, apesar das inúmeras resistências,
mais pelo desconhecimento sobre a área emergente do que por outras
expressividades, foi criada, em meados de 1996, uma linha de pesquisa,
inicialmente denominada “Estudos Feministas e Relações de Gênero”.
O que demarcou a existência de uma linha de pesquisa à época foi a
oferta de disciplina, assim como as publicações. As primeiras ocorreram
na chamada ‘‘Série Sociológica’’ do Departamento de Sociologia,
que divulgava textos e pesquisas de professoras cujas linhas eram
materializadas em textos para discussões. O primeiro texto desta
linha publicado foi A Construção da Cidadania Social das Mulheres
no Brasil5. Série Sociológica n. 135 (1996); na sequência à Série n. 153
(1998), publicou o título: Mulheres e Relações de Gênero no Sindicalismo
Rural Brasileiro6. Outras tantas foram publicadas, mas com relação
direta ao conteúdo deste artigo, menciono ainda: Série n. 162 (1999):
Relações de Gênero, Corpo e Sexualidade7; Série n. 163 (1999): Violência,
Sexualidade e Saúde Reprodutiva8; e, por fim, Série n. 191 (2001):
A Politização da Violência contra a Mulher e o Fortalecimento da
Democracia9. Publicações modestas, mas pioneiras sobre os estudos de
gênero no Departamento de Sociologia da UnB, que já à época tanto
mobilizava bastante interesse por parte das estudantes, como serviram
de referência a formação de futuras pesquisadoras.
Já com a entrada no século XXI, a linha veio a sofrer mais duas
alterações nominais: em 2003, passou a ser denominada de Feminismo
e Relações de Gênero; e, em 2010, com o concurso para a linha10 e com

5 Autora: Lourdes Bandeira.


6 Autoras: Deis Siqueira e Lourdes Bandeira.
7 Autora: Lourdes Bandeira .
8 Autoras: Mireya Suárez, Lia Zanotta Machado e Lourdes Bandeira.
9 Autoras: Mireya Suárez e Lourdes Bandeira.
10 A profª Tânia Mara de Almeida que ingressou, via concurso, para a linha, no
Departamento de Sociologia da UnB.

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a chegada de outro professor11, foi ampliada para Feminismo, Relações
de Gênero e de Raça, assim permanecendo.
Por fim, a revista do Departamento de Sociologia – Sociedade e
Estado, que completou 30 anos em 2016, tem publicado com frequência
textos e dossiês que envolvem o uso da categoria de gênero em pesquisas
e reflexões, com destaque para as seguintes publicações: Dossiê:
Feminismos e Gênero12. Sociedade e Estado. V. XII, n. 2, dez./jul. Brasília,
UnB, 1997. Em 2006, foi publicado um texto instigante e questionador
da historiadora francesa de Marie-Victoire Louis: Diga-me: o que
significa gênero?13; mais recentemente, o Dossiê: Gênero e feminismo(s):
novas perspectivas teóricas e caminhos sociais14. Sociedade e Estado. V.
29, n. 2, Brasília, UnB, 2014. A oferta de disciplinas referentes à categoria
de gênero ainda não se tornou obrigatória junto ao Departamento de
Sociologia, embora seja ministrada anualmente, tanto nas disciplinas
de graduação como de pós-graduação.
Uma última iniciativa a ser mencionada refere-se à publicação,
pelas editoras da Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), do livro, originalmente
publicado em francês pela Editora Découverte (2010): O gênero nas
Ciências Sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour, em
2014, cuja tradução da obra para o português evidencia a importância
para os estudos de gênero15.
Embora possam ser diversas as vertentes teóricas e metodológicas
que vêm sendo empregadas nos estudos de gênero, sua inteligibilidade
e usos estão associados a campos teóricos e políticos específicos, o que
permite determinadas análises e aplicações do significado do termo ao

11 Ingresso do prof. Joaze Bernardino Costa.


12 Organizado por Lourdes Bandeira e Deis Siqueira.
13 Sociedade e Estado. Vol. 21. n. 3, set./dez. Brasília, 2006.
14 Organizado por Lourdes M. Bandeira e Tânia Mara de Almeida.
15 O livro foi prefaciado pelas profªs do Departamento de Sociologia Lourdes M. Bandeira
e Tânia Mara C. de Almeida.

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se eleger uma perspectiva (KUCHEMANN et al., 2015). Mais do que
isso, o que importa é que os estudos de gênero podem vir a desestabilizar
o uso de categorias empiricamente já fixadas (sexualidade, trabalho,
política, etc.), assim como o potencial de trazer à compreensão aspectos
ou dimensões teóricas que ainda carecem de aprofundamento.
Como já foi afirmado em texto citado por colegas da Sociologia,
na verdade, a própria categoria insere-se em um jogo
de forças e de disputas entre tradições acadêmicas e
políticas que visam a legitimar, cada uma, com suas
respectivas articulações com o movimento social.
(KUCHEMANN et al., 2015, p. 67).

Portanto, a institucionalização dos estudos de gênero na Sociologia


passou, por um lado, a constituir-se em uma irradiadora à formação de
novas gerações, como a influenciar outras áreas disciplinares da UnB;
por outro, como uma ferramenta analítica que nos possibilita ‘‘captar’’
atores sociais assim como as múltiplas dimensões do sociopolítico,
histórico-cultural nos fenômenos que nem sempre são visíveis e audíveis,
fenômenos que se constituem na própria condição de existência das
Ciências Sociais.

Usos do conceito de gênero: seus desdobramentos e


críticas

Não se pretende buscar um sentido ‘‘definitivo’’ da categoria de


gênero por tratar-se de uma categoria polissêmica, usada tanto no
âmbito da pesquisa acadêmica como nos espaços da militância dos
movimentos sociais16. Evidentemente que aqui não se pode contemplar
os múltiplos usos da categoria, no entanto, o que se faz é distinguir

16 A propósito, consultar o texto de Marie-Victoire Louis. Diga-me: o que significa gênero?.


In: Sociedade e Estado. Vol. 21. n. 3, set./dez. Brasília, 2006.

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como é usada para diferenciar-se do ‘‘biológico’’. É esse o sentido que lhe
confere ‘‘originalidade’’, pois possibilita, além de considerar a polissemia
ou a pluralidade do social, apreendê-lo como um domínio autônomo,
dotado de causalidade e irredutível às leis biológicas (BERENI et al.,
2008; DELPHY, 2001).
Observada essa ruptura inicial, em sequência, a categoria de
gênero incorporou também os homens, podendo sinonimizar-se na
relação entre mulheres e homens. Nesse caso, gênero adquire um caráter
relacional e desestrutura a ideia de que estudar mulher é adentrar em
uma esfera única e separada. Pelo contrário, só faz sentido falar em
mulher se se falar também em homem:
É necessário entender o gênero enquanto uma categoria
de análise, relativizando o que entendemos por homens
e mulheres (e não só os inserindo como categorias
já dadas) e nos aprofundando nas maneiras como o
corpo, o sexo e a biologia são “generificados”, ou seja,
trazidos para a prática social, para a história, ao invés
de permanecerem intocáveis na natureza, que nos é
apresentada como a-histórica, essencial e imutável.

Tal ‘‘desnaturalização’’ é abordada na perspectiva da ‘‘relação


social’’ conferindo-lhe também uma dimensão política, isto é, que seja
percebido o princípio de ‘‘organização’’ das diferenças de normas e de
direitos desiguais na sociedade entre homens e mulheres. Trata-se de
usar a categoria de gênero como um ‘‘divisor’’ no centro de um sistema
de relações sociais, avançando para além de ser um simples produtor
de dois grupos colocados como antagonistas. Para a compreensão além
dos antagonismos, faz-se necessário analisar a estrutura do sistema
social sob o qual se constroem os ordenamentos hierárquicos em
relação às mulheres e aos homens. Assim, não é suficiente deslocar
o olhar sobre o princípio da partição, mas é fundamental analisar
como a categoria de gênero vai além da divisão da humanidade em

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dois grupos distintos e como o faz de maneira hierárquica (BERENI
et al., 2008; DELPHY, 2001).
Conforme apontado, se a categoria de gênero surgiu como
uma forma de distinguir entre diferença biológica e desigualdades
socialmente construídas, o conceito de relações de gênero procurou
desviar atenção de um olhar centrado na e para as mulheres e homens
como categorias isoladas, deslocando-se para um olhar mais amplo,
que se fixa nas relações sociais através das quais elas vão mutuamente
sendo constituídas como categorias sociais desiguais (KABEER, 2013).
Assim, o uso de relações de gênero se constitui em relações sociais
mais amplas e complexas:
E, como todas as relações sociais, são constituídas
por meio de regras, normas e práticas pelas quais
recursos são alocados, tarefas e responsabilidades são
designadas, valor é dado e poder é mobilizado. Em
outras palavras, as relações de gênero não operam em
um vácuo social, mas são produtos das maneiras pelas
quais as instituições são organizadas e se reproduzem
ao longo do tempo (KABEER, 2013, p. 10).

Isso nos faz lembrar que as desigualdades de gênero estão


profundamente arraigadas e institucionalizadas nas estruturas e
práticas de gestão organizacional na esfera do trabalho – público e
privado, em que, além de serem pouco questionadas, levam a profundas
desigualdades, a saber, por exemplo, que, apesar de serem mais
escolarizadas e de trabalharem mais horas por semana, as mulheres
do Distrito Federal recebem R$ 997 a menos que os homens, em média,
cuja diferença salarial de 26% é a maior do País17. Se se considerar a

17 Enquanto os homens ganham em média R$ 3.965, contra R$ 2.968 das mulheres – uma
diferença de R$ 997,00 (equivalente a 26%), situação que se estende em nível nacional
com pequenas variações, segundo dados do IBGE. Disponível em: <https://g1.globo.
com/distrito-federal/noticia/df-possui-maior-diferenca-salarial-do-pais-entre-ho-
mens-e-mulheres.ghtml>. Acessado em

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condição racial, as mulheres negras recebem em média 40% menos
do que os trabalhadores brancos, segundo a PNAD – IBGE (2014). O
estudo analisou dados da inserção das mulheres no mercado na última
década (2004 a 2014) e traçou um diagnóstico que serviu de partida
para ações e políticas públicas que promovam e ampliem a igualdade
de gênero no mundo do trabalho.
Tais situações de desigualdades de gênero são ainda pouco
questionadas, muitas vezes aparentam ser naturais e imutáveis, uma
vez que as desigualdades de gênero atravessam diferentes instâncias
institucionais e são vistas como dadas, de modo que “as ideologias que
justificam essas práticas e sua permanência são altamente poderosas
e tidas como ‘‘eternas’’” (KABEER, 2013, p. 13).
Desse modo, parafraseando Joan Scott (2013, p. 163-4), se você
usa a categoria de gênero como uma ferramenta crítica expondo não
só o fato da presença das mulheres na história, mas as razões para sua
invisibilidade ou marginalização da política e da vida pública, então
você está avançando na “causa” da emancipação das mulheres. Como as
mulheres estão sendo definidas e entendidas em relação aos homens?
Como as mulheres entendem a si mesmas? Que significados (no
plural) esses entendimentos têm para a maneira como elas conduzem
suas vidas?
Pode-se afirmar que a partir do uso da categoria de gênero
para refletir no campo da teoria social emerge um novo paradigma
teórico-metodológico, não apenas pelos argumentos já mencionados,
mas, sobretudo, pelas razões apresentadas por Machado (op. cit. s/p):
porque se está também diante da afirmação da
transversalidade de gênero, isto é, do entendimento
de que a construção social de gênero perpassa as
mais diferentes áreas do social [disciplinares, culturais
e políticas] (...) o que permite diferenciar a proposta

| 40
paradigmática dos estudos de gênero frente à proposta
metodológica dos estudos sobre mulheres.

Ademais, envolve o propósito de averiguar – no quadro analítico,


como as desigualdades entre mulheres e homens e entre as próprias
mulheres e os próprios homens estão fortemente institucionalizadas
em nossa sociedade, sobretudo quando associadas a outros marcadores
sociais, como classe, raça, etnia e geração, assim como das relações de
poder que expressam e de sua relevância para o domínio das políticas
públicas (KABEER, 2013).
Por fim, vale salientar algumas observações a propósito das
questões trazidas pela filósofa Judith Butler, uma das teóricas do
gênero de maior evidência atualmente, cuja primeira obra publicada
no Brasil foi Problemas de Gênero, Feminismo e Subversão da Identidade
(2003). A autora se dedica a retraçar significados e usos da categoria
de gênero. Pode-se afirmar, com certa parcimônia, que Butler (2013)
evidencia algumas das reconfigurações que a categoria de gênero vem
sofrendo atualmente.
A autora enfatiza sua explícita discordância em relação a
estabelecer uma dicotomia entre natureza e cultura similar à que se
estabelece entre sexo e gênero. Propõe reformular o entendimento
da estrutura sexo – gênero, mostrando a operação pela qual o gênero
não pode ser ‘‘considerado’’ ‘‘isolado’’ do sexo biológico, pois postular
a construção social de um fenômeno implica, como uma premissa
oculta, a existência de uma natureza estável e anterior a ser construída
socialmente (BERENI et al., 2008).
Para Butler, em nossa sociedade estamos diante de uma ‘‘ordem
compulsória’’ que exige a coerência total entre um sexo, um gênero e
um desejo/prática que são obrigatoriamente heterossexuais (2013). Ao
contrário, subverter essa ‘‘ordem compulsória’’ do desejo, da sexualidade
e de gênero é a expectativa da autora, pois “a hipótese de um sistema

41 |
dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética
entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito”
(BUTLER, 2003, p. 24). A crítica da autora baseia-se em argumentos
similares, isto é, próxima ao pensamento exposto por Philippe Descola
no seu livro Par-delà Nature et Culture [Para além de Natureza e
Cultura]18, cuja
ideia fundamental é de que o dualismo natureza-cultura
(isto é, o princípio segundo o qual a possibilidade de
distinguir entre aquilo que pertence ao mundo natural
e aquilo que, pelo contrário, deve ser atribuído a uma
esfera da cultura seria um atributo intrínseco do ser
representa, na realidade, apenas uma entre as possíveis
modalidades de organização ontológica (...).19

Muitas são as críticas feitas aos significados e usos da categoria de


gênero. Uma delas tem sido elaborada sobre o uso da categoria de gênero,
que, em boa medida, continua sendo empregada como um sistema de
classificação de forma binária/dicotômica – homem x mulher; raramente
em formato tripartite ou mais plural – para referir-se à “lógica das
diferenças entre o feminino e o masculino, e homo e heterossexualidade,
em relação à orientação sexual...” (MATOS, 2015, p. 154).
No entanto, a nosso ver ainda e parafraseando Joan Scott, é uma
categoria útil à análise, apesar de sua ‘‘cooptação’’ por muitas agências
internacionais, ONGs, governos e afins. A autora afirma:
Para mim, gênero representa uma pergunta a ser feita
por qualquer sociedade, em qualquer momento: como
mulheres e homens estão sendo definidos, um em
relação ao outro? (...) como as sociedades têm tentado

18 Publicado em Paris, pela Gallimard, 2005.


19 A propósito, consultar o texto: A Ontologia dos Outros. Entrevista com Philippe Descola.
Philippe Descola e Davide Scarso. In: Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 28, n. 43, p. 251-
276, jan./abr. 2016. Disponível em: <file:///C:/Users/Lenovo/Downloads/346-439-1-
SM.pdf>. Acessado em: 17/10/2017.

| 42
impor significados e mantê-los no lugar? Como os
indivíduos têm se imaginado, não se encaixando nessa
categoria? (...) assim, as perguntas interessantes são:
quem estabelece as definições? Para que fins? Como elas
são aplicadas? Como indivíduos e grupos resistem às
definições? Se usada dessa maneira, como um conjunto
de perguntas cujas respostas não sabemos de antemão,
o gênero ainda é uma categoria útil de análise (SCOTT,
2013, p. 164).

Por fim, vale enfatizar que a incorporação da perspectiva de gênero


ao campo conceitual e epistemológico produziu críticas e rupturas que
‘‘obrigaram’’ as Ciências Sociais a fazer uma revisão de seus fundamentos
até então considerados evidentes. Ainda segundo Apfelbaum (2009),
o gênero desestabiliza de modo radical os pressupostos ‘‘naturalistas’’
que predominaram por bom tempo nas teorizações das Ciências
Sociais, nas quais as categorias de homens e de mulheres são tratadas
socialmente de maneira ‘‘homogênea’’, negando suas ‘‘diferenças’’, cuja
cisão se tornou irredutível a partir dos estudos de gênero.

As contribuições que os estudos de gênero trouxeram


ao fenômeno da violência contra a mulher

Por muito tempo, a violência contra a mulher era considerada


um ‘‘problema’’ de família que se manteve quase como um ‘‘segredo’’
no âmbito do privado. Porém, com a emergência e visibilidade de
denúncias realizadas pelo movimento feminista, a partir da década
de 1970, tornou-se parte do debate público com legitimidade política
e jurídica20. Apesar dos múltiplos esforços, o fenômeno é persistente
e contínuo.
Inicialmente, vale assinalar que o conceito “violência contra a
mulher”, segundo Almeida (2007, p. 23), “enfatiza o alvo contra o qual a

20 Ver texto de Bandeira, Lourdes M., cit., 2014.

43 |
violência é dirigida”. Porém, é frequentemente utilizado como sinônimo
de violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero. A
partir de 1990, com o desenvolvimento dos estudos de gênero, outras
autoras passaram a utilizar “violência de gênero” como um conceito mais
amplo do que o uso restrito de “violência contra a mulher” (SAFFIOTI
& ALMEIDA, 1995), uma vez que pode envolver também meninas
e mulheres jovens – todas objeto da violência masculina. No Brasil,
todas são constitutivas das relações de gênero, pois se pode dizer que
a violência contra a mulher é uma das principais formas de violência
de gênero (ARAÚJO, 2007).
Portanto, verifica-se que há sobreposição existente entre esses
conceitos, assim como há especificidades nos seus usos como categorias
analíticas relacionadas seja a uma perspectiva teórico-metodológica
específica, seja em relação às dimensões das práticas sociais (ALMEIDA,
2007; ARAÚJO, 2008; BANDEIRA, 2014). Aqui, a referência à violência
contra as mulheres está posta na compreensão da perspectiva das
relações de gênero, ao contemplar que a violência é produzida em
um contexto das relações sociais de poder que se “sustentam em um
quadro de desigualdades de gênero” (ALMEIDA, 2007, p. 27).
Despertamos nos últimos meses com o noticiário matinal que
alardeia:
País registra 10 estupros coletivos por dia; as notificações
dobraram em 5 anos”21

O Estado de São Paulo registra um caso de feminicídio


a cada quatro dias; 63% das vítimas morrem em casa,
mostram dados da Secretaria da Segurança Pública22;

A cada 10 minutos uma mulher é vítima de violência


em Santa Catarina23.

21 In: Folha de S. Paulo, 21/8/2017.


22 In: Folha de S. Paulo, 23/8/2017.
23 In: Notícias do Dia, 18/8/2017.

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Casos de homicídio, estupro e tentativa de homicídio
crescem no DF. O primeiro teve alta de 6,7%. Os crimes
sexuais tiveram aumento de 9,2%, em julho. Já as
quantidades de tentativas contra a vida subiram cerca
de 35%..24

Brasil tem 12 assassinatos de mulheres e 135 estupros


por dia, em 2016, com aumento de 4,3% em relação ao
ano anterior, chegando a um total de 4.657 registros
de assassinato de mulheres, sendo que 533 deles foram
classificados como crime de feminicídio25.

Diante de tamanha barbárie em nossa realidade cotidiana, e


do volume dos dados que registram o aumento dos assassinatos de
mulheres, a primeira pergunta que se coloca é: por que as mulheres
continuam sendo as “vítimas preferenciais” da violência? A bem da
verdade essa pergunta já vem sendo feita há mais de três décadas e
até o momento não se tem uma resposta em definitivo. Pois se trata
de um fenômeno histórico complexo multicausal, com dimensões
sociopolítico-culturais que assume múltiplas formas, razões e causas que
englobam todos os atos que, por meio da ameaça, coação
ou força, lhes é infligido [na mulher ao feminino] na
vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou
psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las,
humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua
subjetividade. (ALEMANY, 2009, p. 271).

Em outras palavras, historicamente as mulheres foram


‘‘condicionadas’’ a uma posição hierarquicamente inferior na escala
‘‘material’’ e ‘‘ontológica’’ que produziu um campo de força persistente
de relações assimétricas de poder entre homens e mulheres em nossa
sociedade (SILVA, 2010). Elizabeth Grosz (2000) salientou que a

24 In: Correio Braziliense, 3/8/2017.


25 In: Folha de S. Paulo, 30/11/2017 (Cotidiano, p. 9). Houve 4.657 registros de mulhe-
res assassinadas, em 2016, segundo os dados do Relatório apresentado pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, e divulgados em 30/10/2017).

45 |
filosofia ocidental ajudou a construir a compreensão de que o corpo
feminino era objeto de vigilância e controle da mente, a qual simbolizava
a razão e era tida como propriedade masculina.
Pode-se argumentar, a partir de uma razão simplista, mas que
não é banal, como persiste uma razão histórica centrada em uma lógica
da “dissimetria estrutural que é, simultaneamente, o efeito e o alicerce
da dominação” (APFELBAUM, 2009, p. 76); pois a dissimetria que
é constitutiva das relações de dominação entre os gêneros se coloca
não apenas nas práticas sociais, mas, também, está presente seja no
campo da consciência, seja na constituição/formação das identidades
(APFELBAUM, 2009). Assim, ao tratar do fato de como os homens
e as mulheres se comportam em sociedade, este corresponde a um
intenso processo de socialização, isto é, de aprendizado sociocultural
que ensina a agir – homens e mulheres conforme as prescrições e
as normas sociais e de gênero que lhes foram estabelecidas como
determinantes e hegemônicas para ‘‘atribuir’’ papéis, desempenhos,
atitudes, comportamentos e, até mesmo, formas de pensar e de olhar
a vida e o mundo.
Como já bem explicitado por várias autoras, Kuchemann et al.
(2015, p. 73), resumidamente, enfatiza que:
há uma expectativa social e de gênero em relação às
maneiras como os homens e as mulheres devem atuar
seja nos espaços privados, seja nos públicos: seja no
vestir, no andar, no mostrar o corpo, na prática da
sexualidade, no exercício dos cuidados, no gasto e
na administração do dinheiro, no lazer, no modo de
ingerir bebidas, dentre outras.

Portanto, evidencia-se como componentes decisivos da


dominação masculina instituem-se sobre as mulheres.
Hoje vigora o pressuposto de que a violência contra mulheres
é um tipo de violência apreendida no decorrer dos processos

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primários de socialização no interior da privacidade da família e que
se desloca para a esfera pública, cujas sociabilidades acabam por serem
‘‘contaminadas’’. Portanto, não se trata de uma ‘‘patologia’’, como o
senso comum justifica e nem como um desvio individual, assinalado
por alguns membros da área da Saúde e do Judiciário, mas pode-se
afirmar que há, sim, uma “permissão social” concedida e acordada
com os homens na sociedade (SOARES, 1996; BANDEIRA, 2014).
Por outro lado, as pesquisas informam que, dentre os motivos que
dificultam o rompimento da relação violenta, estão atos e sentimentos
apreendidos socioculturalmente, tais como a esperança de que o
agressor poderá mudar seu comportamento, o medo de represálias
e novas agressões, o risco de perder a guarda dos filhos, a censura
familiar e da comunidade, a dependência afetiva e econômica, dentre
outros problemas (BANDEIRA, 2014).
Diante de tantas dificuldades para combater a violência contra a
mulher e de gênero, os primeiros avanços ocorreram com a demanda da
agenda feminista, que resultou na criação das Delegacias Especializadas
no Atendimento à Mulher (DEAM). Criadas inicialmente em São Paulo,
em 1985, tinham o intuito de acolher as mulheres agredidas com um
atendimento bem mais qualificado (MACHADO, 2009). A criação
das DEAMs foi uma experiência inédita no Brasil, resultando, dentre
outros contextos, do processo de redemocratização nacional, no qual
os movimentos de mulheres e feminista constituíram-se enquanto
atores políticos.
Outro avanço em relação ao estabelecimento de políticas públicas
de combate à violência contra a mulher como resposta legislativa e
jurídica foi a elaboração da Lei nº 11.340/2006, que passou a ser nominada
de Lei Maria da Penha (LMP). Resultou de uma ação articulada entre
os operadores jurídicos e o consórcio feminista, cuja representatividade
era composta por seis organizações não governamentais, além de
representantes da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) e de

47 |
organismos internacionais. Na LMP, é incorporada, nos termos de
seu art. 5º, a incidência da violência “baseada no gênero” praticada
contra as mulheres no âmbito da unidade doméstica, da família e em
qualquer relação íntima de afeto. Essa expressão foi adotada a partir da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, realizada em Belém do Pará, em 1994, e pelas Nações
Unidas, na Plataforma de Ação da IV Conferência Internacional da
Mulher, realizada em Beijing, em 1995. Note-se que a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (CEDAW), adotada pelas Nações Unidas, em 1979, referia-
se à “distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo”, segundo bem
explicitou a subprocuradora Ela Wiecko, em 2013.
Em suma, a LMP amplia a abrangência conceitual do entendimento
sobre o que é a violência contra a mulher, baseada na definição mais
complexa e multidisciplinar, conforme explicita no art. 7º:
De acordo com a Convenção de Belém do Pará
(Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela
OEA, em 1994), violência contra a mulher é qualquer
ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado.

No panorama estatístico atual sobre a violência contra as


mulheres, dados recentes informam que no cenário nacional há fortes
evidências de desigualdades estruturais em relação às mulheres. Tais
desigualdades centram-se predominantemente nas condições raciais e
de classe social. Exemplificando, com os dados do ‘‘Mapa da Violência
2015. Homicídio de mulheres no Brasil’’26.

26 Dados estatísticos retirados do texto elaborado por Waiselfitsz, Julio Jacobo. Mapa da
Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, Flacso, 2015.

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Os crescentes índices de violência contra as mulheres fizeram
com que o Brasil aparecesse em destaque no cenário mundial com uma
taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres, conforme dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS), localizando-se na 5ª colocação
no ranking composto por 83 países com maiores taxas de homicídios de
mulheres. A grave evidência se localiza nas desigualdades raciais, uma
vez que o número de mortes violentas de mulheres negras aumentou
54% em 10 anos, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.
No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres
brancas diminuiu 9,8%, caindo de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013.
Outro dado do Mapa da Violência que impressiona aponta que, no
Brasil, 55,3% de crimes contra mulheres foram cometidos no ambiente
doméstico, e em 33,2% dos casos de homicídios, os principais suspeitos
eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
A efetivação da Lei Maria da Penha incentivou o crescimento
do número de denúncias, mas muitas vítimas ainda se recusam a
procurar ajuda por medo de sofrerem mais algum tipo de violência
ou por estarem abaladas psicologicamente.
Outra perspectiva de combate à violência contra a mulher remete
à tipificação de casos de feminicídio, cuja característica é de assassinatos
violentos e mortes trágicas de mulheres – tipificadas recentemente pela
Lei Ordinária de nº 13.104/201527 como crimes de feminicídio, isto
é, o homicídio de mulheres em decorrência da sua ‘‘condição de ser
mulher’’. A gravidade está posta exatamente no fato de que a mulher é
assassinada, e o é pela sua condição de ser mulher. Remete a relações de
gênero desiguais e hierárquicas manifestas na dominação masculina,
seja em relação ao controle dos corpos femininos, seja em relação à
expressividade do desejo sexual, ou pela manifestação de autonomia e
liberdade das mulheres (ROMERO, 2014; SEGATO, 2011). Ao mesmo
tempo, entende-se que um dos ‘‘entraves’’ do sistema de justiça e de

27 Lei do Feminicídio aprovada em 9/3/2015.

49 |
segurança pública se coloca na compreensão desses fenômenos, isto é,
do que se denomina como ‘‘as razões de gênero’’ que estão por detrás
desses crimes. Pois, no geral, o feminicídio é um crime que acontece
com requintes de crueldade, e a lei mostra que o Estado brasileiro não
deve tolerância em relação à violência contra as mulheres e, sobretudo,
em relação a esse tipo de crime.
As relações de gênero se fazem presentes neste tipo de
criminalidade, uma vez que a ‘‘posse’’ e o ‘‘controle’’ sobre as mulheres
reforça a crença na ideologia viril, como afirma a antropóloga Lia
Z. Machado (1998, p. 11). O controle da vida sexual e moral das
mulheres é o que constitui ainda o cerne da masculinidade no Brasil.
Por isso, quando a mulher tenta se desfazer do laço amoroso, acontece
a violência, as agressões e, muitas vezes, é levada à morte. Vale lembrar
que em torno de 50% dos assassinatos cometidos contra as mulheres
ocorrem tendo como motivo o pedido de separação ou a suspeita de
adultério, decorrendo daí a maioria dos crimes tipificados. O crime de
feminicídio íntimo ocorre, no geral, pelo viés das relações interpessoais,
isto é, das relações que se estabelecem na convivência cotidiana entre
os sexos/gêneros. No geral, quando ocorre o assassinato da mulher
é porque esta já passou por um continumm de violências, desde as
menos graves às mais graves, se é que seja possível assim classificá-las.
Por fim, vale destacar que nas universidades brasileiras a violência
em relação às estudantes tem sido muito frequente e são inúmeras
as denúncias de assédios, estupros, agressões físicas e até mesmo
de assassinato. Como estratégias de resistência, o trabalho recente
publicado por Almeida (2017, p. 386) informa que
Coletivos feministas vêm sendo criados para acolher
as vítimas, tirar os casos da invisibilidade, exigir
providências dos(as) gestores(as) universitários(as)
e das autoridades policiais e jurídicas, bem como
criar mecanismos de resistência e proteção às vítimas

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e calouras. Esses casos totalizam cifras numéricas
expressivas e apresentam tramas sorrateiras de abusos e
vários tipos de violência, que não só agridem as mulheres
como as excluem do convívio universitário, impacta na
evasão escolar e em suas carreiras profissionais.

Pesquisas vêm sendo realizadas para identificar e buscar


compreender como tem proliferado a violência de gênero no interior
dos campi universitários, fenômeno que não exclui, praticamente,
nenhuma universidade pública, segundo noticiário cotidiano vinculado
nas redes sociais28. As práticas de violência de gênero ocorrem há
muitas décadas nas universidades, através dos denominados trotes.
A propósito, estudos vêm sendo realizados pelo pesquisador Almeida
Junior (2006, 2016)29, que analisa não apenas as manifestações atuais
de violências, mas as suas componentes históricas.
Fato que ocorre também na Universidade de Brasília, o que
levou a equipe de pesquisadoras do NEPEM/UnB, juntamente com as
estudantes, a organizarem, em 7 de novembro de 2016, uma audiência
pública em parceria com o Ministério Público Federal e do DF para
analisar este fenômeno. Na ocasião, propôs-se que fosse encaminhado
relatório à administração superior da Universidade, a fim de subsidiar
política de combate à violência de gênero. Atualmente, há um grupo
de trabalho do NEPEM, o FEMIVIDA, composto por estudantes de
graduação e de pós-graduação, que está realizando uma pesquisa para
identificar as situações de violência contra as estudantes no Campus

28 Uma das pesquisas pioneiras foi realizada pelo Instituto Avon juntamente como o
Data Popular (set./out., 2015): “Violência contra a mulher no ambiente universitário”.
Envolveu a coleta de informações com 1.823 estudantes universitárias(os) matricula-
das(os) em cursos de graduação e pós-graduação. Destes, 60% eram estudantes mulhe-
res e 40% eram estudantes homens envolvendo as cinco regiões do País.
29 Consultar, a propósito: Antônio Ribeiro de Almeida Junior e Oriowaldo. Universidade
Preconceito e Trote. São Paulo, Hucitec, 2006. ALMEIDA JUNIOR, Antônio Ribeiro de.
Anatomia do Trote Universitário. São Paulo, Hucitec, 2016.

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Darcy Ribeiro, com vistas a buscar compreender o fenômeno, assim
como articular redes institucionais e administrativas, a fim de sua
erradicação.

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