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Introdução
1 Registro um agradecimento especial pela leitura minuciosa do texto feita por Ana Paula
Martins, doutoranda do Programa de pós da Sociologia.
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Assim, a proposta é de refletir, articuladamente, com estes temas
a partir dos seguintes eixos: i) aportes sobre as diferenças entre sexo/
gênero; ii) a institucionalização do campo de estudos de gênero no
Brasil e, mais especificamente, no Departamento de Sociologia da
Universidade de Brasília (UnB); iii) os usos do conceito de gênero e
seus desdobramentos; iv) as contribuições que os estudos de gênero
trouxeram ao fenômeno da violência de gênero; e, por fim, explicitação
dos desafios que restam.
2 Vale lembrar que o conceito de sexualidade se refere ao fato sexual, isto é, o qual se de-
fine por suas práticas erótico-sexuais nas quais as pessoas se envolvem, bem como pela
importância do desejo e atração que levam a sua expressão (ou não) através de determi-
nadas práticas. Esse dado também é chamado por alguns(mas) de “orientação sexual”, e
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Ademais, nas sociedades humanas é demasiadamente valorizada
a diferenciação biológica, uma vez que são atribuídos aos dois sexos
funções e/ou papéis diferenciados, geralmente, hierarquizados e com
significados prescritivos. Em algumas sociedades atuais, embora não os
ocidentais, as fronteiras estabelecidas entre sexo e gênero não são tão
explícitas (MATHIEU, 2009) como na nossa, pois aqui o conceito de
gênero é compreendido como a ‘‘desnaturalização do sexo’’, delimitando
outras formas de relações entre os sexos, sobretudo de poder.
Segundo Berini et. al. (2008, p. 5), Simone de Beauvoir, quando
escreveu O Segundo Sexo (1949), afirmou: ‘‘não se nasce mulher, torna-
se’’, quis sinalizar que não há ‘‘essência’’ de feminino, mas o que existe
é um aprendizado ao longo da vida nos comportamentos socialmente
esperados por uma mulher. Portanto, as diferenças sistemáticas entre
homens e mulheres não são produtos de um determinismo biológico,
mas de construções sociais.
Uma das críticas feministas que abalou essa concepção essencialista
binária, ao trazer novas perspectivas com os estudos de gênero, foi a
historiadora estadunidense Joan Scott, quando da publicação de seu
célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica, publicado
originalmente em 19863. Assumidamente pós-estruturalista, propôs-se
a desconstruir os vícios do pensamento ocidental, tal como a oposição
[sexual-essencialista] tida como universal e atemporal entre homem
e mulher (KOFES, 1993; PISCITELLI, 2002), que estendia um olhar
binário sobre o mundo, a saber: diferença-identidade. Igualdade-
desigualdade; dominação-submissão entre homens e mulheres, em
todos os diversos contextos sociais.
A partir de então, o termo gênero aparece como contraponto
sociocultural do sexo biológico, deixando profundas marcas na análise
comumente tipifica as pessoas em “heterossexuais”, “homossexuais” e “bissexuais”.
3 O Texto de Joan Scott foi incialmente traduzido por Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila, em 1989. Posteriormente, foi publicado pela Revista Educação e Sociedade,
POA/RS. (1995).
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dos estudos das relações entre homem e mulher na sociedade. Na
época, instalou-se uma densa crítica pelas acadêmicas feministas
que trataram de evidenciar como os significados que são dados às
diferenças sexuais entre homens e mulheres são bem mais complexos
do que ‘‘uma divisão ontológica irredutível’’ (MATHIEU, 2009), pois
variam no tempo e no espaço e dependem não da natureza, mas da
organização social e da dinâmica da cultura. Para Scott (1995, p. 3), a
admissão da categoria de gênero:
Indicava uma rejeição ao determinismo biológico
implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença
sexual”. O “gênero” sublinhava também o aspecto
relacional das definições normativas de feminilidade.
As que estavam mais preocupadas com o fato de que
a produção dos estudos femininos se centrava sobre as
mulheres de forma muito estreita e isolada, utilizaram
o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional
no nosso vocabulário analítico.
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(HARAWAY, 1993), assim como também desconsiderou as diferenças
entre outras diferentes sexualidades. Scott (1995, p. 4) diz:
O interesse pelas categorias de classe, de raça e de
gênero assinalava inicialmente o compromisso do(a)
pesquisador(a) com uma outra história que incluía a
fala dos(as) oprimidos(as) e com uma análise do sentido
e da natureza de sua opressão; assinalava também que
esses(as) pesquisadores(as) levavam cientificamente
em relação ao fato de que as desigualdades de poder
estão organizadas segundo, no mínimo, estes três eixos
(...) E, havendo uma relação inseparável entre saber e
poder, gênero estaria imbricado a relações de poder,
sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar
sentido a estas relações.
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lugar à noção de que todas as diferenças observáveis nos
papéis, capacidades e habilidades atribuídas a homens
e mulheres em um dado contexto estão enraizadas na
biologia e, portanto, não podem ser transformadas.
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de gênero e aos demais marcadores sociais, pois a distribuição de
papéis sociais pode passar por outras lógicas de organização de cada
sociedade.
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recaiu sobre o emergente ‘‘Movimento de Mulheres no Brasil’’ composto,
em sua maioria, por mulheres feministas acadêmicas localizadas,
principalmente, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Assim,
Na década de setenta, “estudos sobre a mulher” foi a
denominação mais comum utilizada para caracterizar
esta nova área. Livros, artigos, jornais e seminários
fazem constar de seus títulos o termo mulher e
pretendem, principalmente, preencher lacunas do
conhecimento sobre a situação das mulheres nas mais
variadas esferas da vida e ressaltar/denunciar a posição
de exploração/subordinação/opressão a que estavam
submetidas na sociedade brasileira (HEILBORN et al.,
1999, p. 4).
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tradicional do ‘‘trabalho’’, isto é, da atividade remunerada centrada na
expressão trabalhador, operário, e passa a considerar que o trabalho
doméstico tem um sexo4, assim como a política, a saúde, etc. Daí que
emerge a discussão sobre a divisão sexual do trabalho que separa e
hierarquiza homens e mulheres em tempos, espaços públicos e privados,
qualificações, profissões, salários, etc.
Portanto, a incorporação do conceito de gênero veio a se constituir
em uma ferramenta analítica cuja dimensão do social nos fenômenos
que podem nos parecer “naturais” deixa de ser negligenciada. Ao
mesmo tempo,
torna visível realidades desiguais entre homens e
mulheres que não eram percebidas sob a presença de
estratégias de poder que constituíam em naturalizar
as relações sociais entre homens e mulheres com o
intento de mascarar as relações de poder subjacentes.
(KUCHEMANN et al., 2015, p. 65).
4 Elisabeth Souza-Lobo foi uma pioneira dos estudos de gênero na esfera do trabalho no
Brasil. Publicou A Classe Operária Tem Dois Sexos. Trabalho, Dominação e Resistência.
São Paulo, Editora Brasiliense, 1991.
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Estes conceitos fundadores do campo foram seguidos pelos estudos
de gênero e pela epistemologia feminista, sua evolução conceitual
mais recente.
No cerne desse campo intelectual e político, o NEPEM desenvolveu
a crítica cultural feminista (às desigualdades entre mulheres e homens;
à convergência das discriminações de gênero, raça, etnia e classe, aos
alicerces androcêntricos dos direitos jurídicos e consuetudinários,
e à sonegação do direito à diferença, entre outras). Desse modo,
consolidou-se como um grupo de pesquisa que submeteu inovações
à experiência de investigação e de ensino para visualizar os caminhos da
mudança: a prática interdisciplinar e a abordagem situada da realidade
que caracteriza o ‘‘modo de conhecer feminista’’ desde sempre tem
constituído a parte principal da missão.
Ao longo de seus 30 anos de existência, o Núcleo desenvolveu
numerosos projetos de pesquisa, dentre os quais os de maior envergadura
foram “Relações de Gênero e Raça: Hierarquias, Poderes e Violências”,
com apoio do CNPq; “Violência e Cidadania no Distrito Federal”,
com apoio da FAP/DF; e “A Resolução Institucional de Conflitos –
Acesso aos Direitos Humanos das Mulheres no Brasil”, apoiado pela
Fundação Ford. Esses projetos que recobriram toda a década de 1990
e que resultaram em diversas publicações.
Embora a atividade central do Núcleo tenha sido a pesquisa,
as atividades de ensino tornaram-se crescentemente importantes,
na medida em que aumentava o número de assistentes de pesquisa a
serem treinadas, como, também, a demanda discente por formação nas
abordagens feminista e de gênero. Centenas de estudantes de graduação
e pós-graduação receberam formação teórica e metodológica nessas
abordagens por meio do engajamento nos projetos de pesquisa, da
participação nos Seminários de Pesquisa do NEPEM, da oferta de
disciplinas em cursos disciplinares, e da orientação de graduandas(os),
mestrandas(os) e doutorandas(os) das áreas de Sociologia, Antropologia,
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Comunicação, Psicologia, Serviço Social, Ciências Sociais, História e
Direito, sobretudo.
No Departamento de Sociologia, apesar das inúmeras resistências,
mais pelo desconhecimento sobre a área emergente do que por outras
expressividades, foi criada, em meados de 1996, uma linha de pesquisa,
inicialmente denominada “Estudos Feministas e Relações de Gênero”.
O que demarcou a existência de uma linha de pesquisa à época foi a
oferta de disciplina, assim como as publicações. As primeiras ocorreram
na chamada ‘‘Série Sociológica’’ do Departamento de Sociologia,
que divulgava textos e pesquisas de professoras cujas linhas eram
materializadas em textos para discussões. O primeiro texto desta
linha publicado foi A Construção da Cidadania Social das Mulheres
no Brasil5. Série Sociológica n. 135 (1996); na sequência à Série n. 153
(1998), publicou o título: Mulheres e Relações de Gênero no Sindicalismo
Rural Brasileiro6. Outras tantas foram publicadas, mas com relação
direta ao conteúdo deste artigo, menciono ainda: Série n. 162 (1999):
Relações de Gênero, Corpo e Sexualidade7; Série n. 163 (1999): Violência,
Sexualidade e Saúde Reprodutiva8; e, por fim, Série n. 191 (2001):
A Politização da Violência contra a Mulher e o Fortalecimento da
Democracia9. Publicações modestas, mas pioneiras sobre os estudos de
gênero no Departamento de Sociologia da UnB, que já à época tanto
mobilizava bastante interesse por parte das estudantes, como serviram
de referência a formação de futuras pesquisadoras.
Já com a entrada no século XXI, a linha veio a sofrer mais duas
alterações nominais: em 2003, passou a ser denominada de Feminismo
e Relações de Gênero; e, em 2010, com o concurso para a linha10 e com
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a chegada de outro professor11, foi ampliada para Feminismo, Relações
de Gênero e de Raça, assim permanecendo.
Por fim, a revista do Departamento de Sociologia – Sociedade e
Estado, que completou 30 anos em 2016, tem publicado com frequência
textos e dossiês que envolvem o uso da categoria de gênero em pesquisas
e reflexões, com destaque para as seguintes publicações: Dossiê:
Feminismos e Gênero12. Sociedade e Estado. V. XII, n. 2, dez./jul. Brasília,
UnB, 1997. Em 2006, foi publicado um texto instigante e questionador
da historiadora francesa de Marie-Victoire Louis: Diga-me: o que
significa gênero?13; mais recentemente, o Dossiê: Gênero e feminismo(s):
novas perspectivas teóricas e caminhos sociais14. Sociedade e Estado. V.
29, n. 2, Brasília, UnB, 2014. A oferta de disciplinas referentes à categoria
de gênero ainda não se tornou obrigatória junto ao Departamento de
Sociologia, embora seja ministrada anualmente, tanto nas disciplinas
de graduação como de pós-graduação.
Uma última iniciativa a ser mencionada refere-se à publicação,
pelas editoras da Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), do livro, originalmente
publicado em francês pela Editora Découverte (2010): O gênero nas
Ciências Sociais: releituras críticas de Max Weber a Bruno Latour, em
2014, cuja tradução da obra para o português evidencia a importância
para os estudos de gênero15.
Embora possam ser diversas as vertentes teóricas e metodológicas
que vêm sendo empregadas nos estudos de gênero, sua inteligibilidade
e usos estão associados a campos teóricos e políticos específicos, o que
permite determinadas análises e aplicações do significado do termo ao
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se eleger uma perspectiva (KUCHEMANN et al., 2015). Mais do que
isso, o que importa é que os estudos de gênero podem vir a desestabilizar
o uso de categorias empiricamente já fixadas (sexualidade, trabalho,
política, etc.), assim como o potencial de trazer à compreensão aspectos
ou dimensões teóricas que ainda carecem de aprofundamento.
Como já foi afirmado em texto citado por colegas da Sociologia,
na verdade, a própria categoria insere-se em um jogo
de forças e de disputas entre tradições acadêmicas e
políticas que visam a legitimar, cada uma, com suas
respectivas articulações com o movimento social.
(KUCHEMANN et al., 2015, p. 67).
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como é usada para diferenciar-se do ‘‘biológico’’. É esse o sentido que lhe
confere ‘‘originalidade’’, pois possibilita, além de considerar a polissemia
ou a pluralidade do social, apreendê-lo como um domínio autônomo,
dotado de causalidade e irredutível às leis biológicas (BERENI et al.,
2008; DELPHY, 2001).
Observada essa ruptura inicial, em sequência, a categoria de
gênero incorporou também os homens, podendo sinonimizar-se na
relação entre mulheres e homens. Nesse caso, gênero adquire um caráter
relacional e desestrutura a ideia de que estudar mulher é adentrar em
uma esfera única e separada. Pelo contrário, só faz sentido falar em
mulher se se falar também em homem:
É necessário entender o gênero enquanto uma categoria
de análise, relativizando o que entendemos por homens
e mulheres (e não só os inserindo como categorias
já dadas) e nos aprofundando nas maneiras como o
corpo, o sexo e a biologia são “generificados”, ou seja,
trazidos para a prática social, para a história, ao invés
de permanecerem intocáveis na natureza, que nos é
apresentada como a-histórica, essencial e imutável.
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dois grupos distintos e como o faz de maneira hierárquica (BERENI
et al., 2008; DELPHY, 2001).
Conforme apontado, se a categoria de gênero surgiu como
uma forma de distinguir entre diferença biológica e desigualdades
socialmente construídas, o conceito de relações de gênero procurou
desviar atenção de um olhar centrado na e para as mulheres e homens
como categorias isoladas, deslocando-se para um olhar mais amplo,
que se fixa nas relações sociais através das quais elas vão mutuamente
sendo constituídas como categorias sociais desiguais (KABEER, 2013).
Assim, o uso de relações de gênero se constitui em relações sociais
mais amplas e complexas:
E, como todas as relações sociais, são constituídas
por meio de regras, normas e práticas pelas quais
recursos são alocados, tarefas e responsabilidades são
designadas, valor é dado e poder é mobilizado. Em
outras palavras, as relações de gênero não operam em
um vácuo social, mas são produtos das maneiras pelas
quais as instituições são organizadas e se reproduzem
ao longo do tempo (KABEER, 2013, p. 10).
17 Enquanto os homens ganham em média R$ 3.965, contra R$ 2.968 das mulheres – uma
diferença de R$ 997,00 (equivalente a 26%), situação que se estende em nível nacional
com pequenas variações, segundo dados do IBGE. Disponível em: <https://g1.globo.
com/distrito-federal/noticia/df-possui-maior-diferenca-salarial-do-pais-entre-ho-
mens-e-mulheres.ghtml>. Acessado em
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condição racial, as mulheres negras recebem em média 40% menos
do que os trabalhadores brancos, segundo a PNAD – IBGE (2014). O
estudo analisou dados da inserção das mulheres no mercado na última
década (2004 a 2014) e traçou um diagnóstico que serviu de partida
para ações e políticas públicas que promovam e ampliem a igualdade
de gênero no mundo do trabalho.
Tais situações de desigualdades de gênero são ainda pouco
questionadas, muitas vezes aparentam ser naturais e imutáveis, uma
vez que as desigualdades de gênero atravessam diferentes instâncias
institucionais e são vistas como dadas, de modo que “as ideologias que
justificam essas práticas e sua permanência são altamente poderosas
e tidas como ‘‘eternas’’” (KABEER, 2013, p. 13).
Desse modo, parafraseando Joan Scott (2013, p. 163-4), se você
usa a categoria de gênero como uma ferramenta crítica expondo não
só o fato da presença das mulheres na história, mas as razões para sua
invisibilidade ou marginalização da política e da vida pública, então
você está avançando na “causa” da emancipação das mulheres. Como as
mulheres estão sendo definidas e entendidas em relação aos homens?
Como as mulheres entendem a si mesmas? Que significados (no
plural) esses entendimentos têm para a maneira como elas conduzem
suas vidas?
Pode-se afirmar que a partir do uso da categoria de gênero
para refletir no campo da teoria social emerge um novo paradigma
teórico-metodológico, não apenas pelos argumentos já mencionados,
mas, sobretudo, pelas razões apresentadas por Machado (op. cit. s/p):
porque se está também diante da afirmação da
transversalidade de gênero, isto é, do entendimento
de que a construção social de gênero perpassa as
mais diferentes áreas do social [disciplinares, culturais
e políticas] (...) o que permite diferenciar a proposta
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paradigmática dos estudos de gênero frente à proposta
metodológica dos estudos sobre mulheres.
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dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética
entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito”
(BUTLER, 2003, p. 24). A crítica da autora baseia-se em argumentos
similares, isto é, próxima ao pensamento exposto por Philippe Descola
no seu livro Par-delà Nature et Culture [Para além de Natureza e
Cultura]18, cuja
ideia fundamental é de que o dualismo natureza-cultura
(isto é, o princípio segundo o qual a possibilidade de
distinguir entre aquilo que pertence ao mundo natural
e aquilo que, pelo contrário, deve ser atribuído a uma
esfera da cultura seria um atributo intrínseco do ser
representa, na realidade, apenas uma entre as possíveis
modalidades de organização ontológica (...).19
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impor significados e mantê-los no lugar? Como os
indivíduos têm se imaginado, não se encaixando nessa
categoria? (...) assim, as perguntas interessantes são:
quem estabelece as definições? Para que fins? Como elas
são aplicadas? Como indivíduos e grupos resistem às
definições? Se usada dessa maneira, como um conjunto
de perguntas cujas respostas não sabemos de antemão,
o gênero ainda é uma categoria útil de análise (SCOTT,
2013, p. 164).
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violência é dirigida”. Porém, é frequentemente utilizado como sinônimo
de violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero. A
partir de 1990, com o desenvolvimento dos estudos de gênero, outras
autoras passaram a utilizar “violência de gênero” como um conceito mais
amplo do que o uso restrito de “violência contra a mulher” (SAFFIOTI
& ALMEIDA, 1995), uma vez que pode envolver também meninas
e mulheres jovens – todas objeto da violência masculina. No Brasil,
todas são constitutivas das relações de gênero, pois se pode dizer que
a violência contra a mulher é uma das principais formas de violência
de gênero (ARAÚJO, 2007).
Portanto, verifica-se que há sobreposição existente entre esses
conceitos, assim como há especificidades nos seus usos como categorias
analíticas relacionadas seja a uma perspectiva teórico-metodológica
específica, seja em relação às dimensões das práticas sociais (ALMEIDA,
2007; ARAÚJO, 2008; BANDEIRA, 2014). Aqui, a referência à violência
contra as mulheres está posta na compreensão da perspectiva das
relações de gênero, ao contemplar que a violência é produzida em
um contexto das relações sociais de poder que se “sustentam em um
quadro de desigualdades de gênero” (ALMEIDA, 2007, p. 27).
Despertamos nos últimos meses com o noticiário matinal que
alardeia:
País registra 10 estupros coletivos por dia; as notificações
dobraram em 5 anos”21
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Casos de homicídio, estupro e tentativa de homicídio
crescem no DF. O primeiro teve alta de 6,7%. Os crimes
sexuais tiveram aumento de 9,2%, em julho. Já as
quantidades de tentativas contra a vida subiram cerca
de 35%..24
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filosofia ocidental ajudou a construir a compreensão de que o corpo
feminino era objeto de vigilância e controle da mente, a qual simbolizava
a razão e era tida como propriedade masculina.
Pode-se argumentar, a partir de uma razão simplista, mas que
não é banal, como persiste uma razão histórica centrada em uma lógica
da “dissimetria estrutural que é, simultaneamente, o efeito e o alicerce
da dominação” (APFELBAUM, 2009, p. 76); pois a dissimetria que
é constitutiva das relações de dominação entre os gêneros se coloca
não apenas nas práticas sociais, mas, também, está presente seja no
campo da consciência, seja na constituição/formação das identidades
(APFELBAUM, 2009). Assim, ao tratar do fato de como os homens
e as mulheres se comportam em sociedade, este corresponde a um
intenso processo de socialização, isto é, de aprendizado sociocultural
que ensina a agir – homens e mulheres conforme as prescrições e
as normas sociais e de gênero que lhes foram estabelecidas como
determinantes e hegemônicas para ‘‘atribuir’’ papéis, desempenhos,
atitudes, comportamentos e, até mesmo, formas de pensar e de olhar
a vida e o mundo.
Como já bem explicitado por várias autoras, Kuchemann et al.
(2015, p. 73), resumidamente, enfatiza que:
há uma expectativa social e de gênero em relação às
maneiras como os homens e as mulheres devem atuar
seja nos espaços privados, seja nos públicos: seja no
vestir, no andar, no mostrar o corpo, na prática da
sexualidade, no exercício dos cuidados, no gasto e
na administração do dinheiro, no lazer, no modo de
ingerir bebidas, dentre outras.
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primários de socialização no interior da privacidade da família e que
se desloca para a esfera pública, cujas sociabilidades acabam por serem
‘‘contaminadas’’. Portanto, não se trata de uma ‘‘patologia’’, como o
senso comum justifica e nem como um desvio individual, assinalado
por alguns membros da área da Saúde e do Judiciário, mas pode-se
afirmar que há, sim, uma “permissão social” concedida e acordada
com os homens na sociedade (SOARES, 1996; BANDEIRA, 2014).
Por outro lado, as pesquisas informam que, dentre os motivos que
dificultam o rompimento da relação violenta, estão atos e sentimentos
apreendidos socioculturalmente, tais como a esperança de que o
agressor poderá mudar seu comportamento, o medo de represálias
e novas agressões, o risco de perder a guarda dos filhos, a censura
familiar e da comunidade, a dependência afetiva e econômica, dentre
outros problemas (BANDEIRA, 2014).
Diante de tantas dificuldades para combater a violência contra a
mulher e de gênero, os primeiros avanços ocorreram com a demanda da
agenda feminista, que resultou na criação das Delegacias Especializadas
no Atendimento à Mulher (DEAM). Criadas inicialmente em São Paulo,
em 1985, tinham o intuito de acolher as mulheres agredidas com um
atendimento bem mais qualificado (MACHADO, 2009). A criação
das DEAMs foi uma experiência inédita no Brasil, resultando, dentre
outros contextos, do processo de redemocratização nacional, no qual
os movimentos de mulheres e feminista constituíram-se enquanto
atores políticos.
Outro avanço em relação ao estabelecimento de políticas públicas
de combate à violência contra a mulher como resposta legislativa e
jurídica foi a elaboração da Lei nº 11.340/2006, que passou a ser nominada
de Lei Maria da Penha (LMP). Resultou de uma ação articulada entre
os operadores jurídicos e o consórcio feminista, cuja representatividade
era composta por seis organizações não governamentais, além de
representantes da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) e de
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organismos internacionais. Na LMP, é incorporada, nos termos de
seu art. 5º, a incidência da violência “baseada no gênero” praticada
contra as mulheres no âmbito da unidade doméstica, da família e em
qualquer relação íntima de afeto. Essa expressão foi adotada a partir da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, realizada em Belém do Pará, em 1994, e pelas Nações
Unidas, na Plataforma de Ação da IV Conferência Internacional da
Mulher, realizada em Beijing, em 1995. Note-se que a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (CEDAW), adotada pelas Nações Unidas, em 1979, referia-
se à “distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo”, segundo bem
explicitou a subprocuradora Ela Wiecko, em 2013.
Em suma, a LMP amplia a abrangência conceitual do entendimento
sobre o que é a violência contra a mulher, baseada na definição mais
complexa e multidisciplinar, conforme explicita no art. 7º:
De acordo com a Convenção de Belém do Pará
(Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher, adotada pela
OEA, em 1994), violência contra a mulher é qualquer
ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à
mulher, tanto no âmbito público como no privado.
26 Dados estatísticos retirados do texto elaborado por Waiselfitsz, Julio Jacobo. Mapa da
Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, Flacso, 2015.
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Os crescentes índices de violência contra as mulheres fizeram
com que o Brasil aparecesse em destaque no cenário mundial com uma
taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres, conforme dados da
Organização Mundial da Saúde (OMS), localizando-se na 5ª colocação
no ranking composto por 83 países com maiores taxas de homicídios de
mulheres. A grave evidência se localiza nas desigualdades raciais, uma
vez que o número de mortes violentas de mulheres negras aumentou
54% em 10 anos, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.
No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres
brancas diminuiu 9,8%, caindo de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013.
Outro dado do Mapa da Violência que impressiona aponta que, no
Brasil, 55,3% de crimes contra mulheres foram cometidos no ambiente
doméstico, e em 33,2% dos casos de homicídios, os principais suspeitos
eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
A efetivação da Lei Maria da Penha incentivou o crescimento
do número de denúncias, mas muitas vítimas ainda se recusam a
procurar ajuda por medo de sofrerem mais algum tipo de violência
ou por estarem abaladas psicologicamente.
Outra perspectiva de combate à violência contra a mulher remete
à tipificação de casos de feminicídio, cuja característica é de assassinatos
violentos e mortes trágicas de mulheres – tipificadas recentemente pela
Lei Ordinária de nº 13.104/201527 como crimes de feminicídio, isto
é, o homicídio de mulheres em decorrência da sua ‘‘condição de ser
mulher’’. A gravidade está posta exatamente no fato de que a mulher é
assassinada, e o é pela sua condição de ser mulher. Remete a relações de
gênero desiguais e hierárquicas manifestas na dominação masculina,
seja em relação ao controle dos corpos femininos, seja em relação à
expressividade do desejo sexual, ou pela manifestação de autonomia e
liberdade das mulheres (ROMERO, 2014; SEGATO, 2011). Ao mesmo
tempo, entende-se que um dos ‘‘entraves’’ do sistema de justiça e de
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segurança pública se coloca na compreensão desses fenômenos, isto é,
do que se denomina como ‘‘as razões de gênero’’ que estão por detrás
desses crimes. Pois, no geral, o feminicídio é um crime que acontece
com requintes de crueldade, e a lei mostra que o Estado brasileiro não
deve tolerância em relação à violência contra as mulheres e, sobretudo,
em relação a esse tipo de crime.
As relações de gênero se fazem presentes neste tipo de
criminalidade, uma vez que a ‘‘posse’’ e o ‘‘controle’’ sobre as mulheres
reforça a crença na ideologia viril, como afirma a antropóloga Lia
Z. Machado (1998, p. 11). O controle da vida sexual e moral das
mulheres é o que constitui ainda o cerne da masculinidade no Brasil.
Por isso, quando a mulher tenta se desfazer do laço amoroso, acontece
a violência, as agressões e, muitas vezes, é levada à morte. Vale lembrar
que em torno de 50% dos assassinatos cometidos contra as mulheres
ocorrem tendo como motivo o pedido de separação ou a suspeita de
adultério, decorrendo daí a maioria dos crimes tipificados. O crime de
feminicídio íntimo ocorre, no geral, pelo viés das relações interpessoais,
isto é, das relações que se estabelecem na convivência cotidiana entre
os sexos/gêneros. No geral, quando ocorre o assassinato da mulher
é porque esta já passou por um continumm de violências, desde as
menos graves às mais graves, se é que seja possível assim classificá-las.
Por fim, vale destacar que nas universidades brasileiras a violência
em relação às estudantes tem sido muito frequente e são inúmeras
as denúncias de assédios, estupros, agressões físicas e até mesmo
de assassinato. Como estratégias de resistência, o trabalho recente
publicado por Almeida (2017, p. 386) informa que
Coletivos feministas vêm sendo criados para acolher
as vítimas, tirar os casos da invisibilidade, exigir
providências dos(as) gestores(as) universitários(as)
e das autoridades policiais e jurídicas, bem como
criar mecanismos de resistência e proteção às vítimas
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e calouras. Esses casos totalizam cifras numéricas
expressivas e apresentam tramas sorrateiras de abusos e
vários tipos de violência, que não só agridem as mulheres
como as excluem do convívio universitário, impacta na
evasão escolar e em suas carreiras profissionais.
28 Uma das pesquisas pioneiras foi realizada pelo Instituto Avon juntamente como o
Data Popular (set./out., 2015): “Violência contra a mulher no ambiente universitário”.
Envolveu a coleta de informações com 1.823 estudantes universitárias(os) matricula-
das(os) em cursos de graduação e pós-graduação. Destes, 60% eram estudantes mulhe-
res e 40% eram estudantes homens envolvendo as cinco regiões do País.
29 Consultar, a propósito: Antônio Ribeiro de Almeida Junior e Oriowaldo. Universidade
Preconceito e Trote. São Paulo, Hucitec, 2006. ALMEIDA JUNIOR, Antônio Ribeiro de.
Anatomia do Trote Universitário. São Paulo, Hucitec, 2016.
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Darcy Ribeiro, com vistas a buscar compreender o fenômeno, assim
como articular redes institucionais e administrativas, a fim de sua
erradicação.
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