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Revista UNIRB Volume I Número 1 janeiro a abril de 2006

GÊNERO, MULTISSEXUALIDADE E CONSTITUIÇÕES FAMILIARES


CONTEMPORÂNEAS: DESAFIOS PARA UMA ATUAÇÃO ÉTICA

Giovana Dal Bianco Perlin*

RESUMO:
O objetivo do trabalho foi problematizar a atuação ética em psicologia como ciência e
profissão considerando a categoria gênero de análise como subsídio crítico-reflexivo.
Através de revisão de literatura o artigo apresenta gênero como dimensão fundamen-
tal e estruturante das múltiplas e complexas constituições subjetivas e identitárias
presentes na contemporaneidade.

Palavras-chave: gênero, psicologia, ética, identidade.

ABSTRACT:
The purpose of this study was to depict the problems of an ethical acting in psychology
as science and profession considering the gender analysis category as a critical-refle-
xive subsidy. Through a review of the existing literature this paper presents the gender
as a fundamental dimension, structuring the multiple and complex subjective constitu-
tions and identities in modern times.

Keywords: gender, psychology, ethics, identity.

1 ANTECEDENTES E CONCEITOS

Ao consultarmos a palavra gênero em um dicionário da língua portuguesa en-

contramos geralmente referências voltadas à biologia, à gramática portuguesa e à lite-

ratura, dentre outras áreas:

gê.ne.ros. m. 1. Grupo de seres que têm iguais caracteres essenciais. 2. Lóg. A


classe que tem mais extensão e portanto menor compreensão que a espécie. 3.
Biol. Grupo morfológico intermediário entre a família e a espécie. 4. Gram. Flexão
pela qual se exprime o sexo real ou imaginário dos seres. 5. Espécie, casta, raça,
variedade, sorte, categoria, estilo etc. 6. Lit. e Bel.-art. Assunto ou natureza comum
a diversas produções artísticas ou literárias. S. m. pl. Com. Quaisquer mercadorias
(Michaelis, DTS Software)

O gênero que pretendemos abordar nesse trabalho não se encontra definido

na maior parte dos dicionários. De origem e desenvolvimento cercados por muita

polêmica esta categoria juntamente com raça, classe e etnia passou a ser vista como
* Doutora em Psicologia.

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fundamental para a compreensão das construções identitárias, relacionais e sociais.

Gênero atravessa, transpassa, constrói e dá sentidos às relações interpessoais e so-

ciais, sendo considerado por alguns autores (BREUNLIN, SCHWARTZ e KUNE-KAR-

RER, 2000) como uma metacategoria ou um metaconceito. A idéia de que gênero

constitui um marco de construção de narrativas, significados e comportamentos em

nossa sociedade é, portanto, essencial. Gênero é dimensão fundante e estrutural das

construções identitárias de nossa sociedade e, como aponta Diniz (2003, 2000, 1999),

não pode ser negligenciado.

A utilização de gênero como categoria de análise teve início a partir da segun-

da metade do século XX. Do século XVIII, onde se observa o surgimento de algumas

abordagens da teoria social, até meados do século XX, esta perspectiva esteve na

penumbra. Até então, grande parte das discussões e teorias formuladas pelos/as estu-

diosos/as eram construídas e alicerçadas em uma lógica das analogias da binaridade

masculino/feminino. Outras ainda enfatizavam a importância do estudo da construção

da identidade sexual subjetiva - além sexo biológico. Gênero, como ferramenta teórica

para o estudo dos sistemas de relações sociais ou sexuais, não havia se consolidado

no cenário acadêmico-científico (SCOTT, 1995).

Foi por intermédio de estudiosas feministas norte americanas que gender -

gênero - passou a ser utilizado como distinto de sex - sexo (LOURO, 1997; SCOTT,

1995). Tal distinção possibilitou que as discussões extrapolassem a ênfase nas carac-

terísticas propriamente sexuais e passassem a compreender a forma como essas ca-

racterísticas são representadas ou valorizadas dentro de diferentes sociedades, assim

como o correspondente processo de construção das mesmas. Descartando a preten-

são de negação de componentes biológicos, o conceito de gênero adentra o repertório

de discussões teóricas enfatizando a construção social e histórica dos sexos, proble-

matizando o modo como as características sexuais são trazidas para a prática social

e de que forma são incorporadas ao processo de desenvolvimento cultural (FAUS-

TO-STERLING, 2001; LOURO, 1995; 1997). A configuração das relações de gênero

como relações sociais acentua seu caráter histórico e enfatiza que as distinções entre

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homens e mulheres, embora se manifestem no plano pessoal, ultrapassam as singula-

ridades individuais. Estudar gênero passa a ser um estudo das relações de homens e

de mulheres construídas histórico e culturalmente partindo do pressuposto, enfatizado

por Joan Scott, de que “(...) qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente

informação sobre os homens” (SCOTT,1995, p. 75).

Como recurso para ampliar a análise e incorporar a constituição complexa da

categoria gênero, alguns conceitos têm-se mostrado fundamentais para a inteligibili-

dade e problematização das configurações de gênero contemporâneas. Os conceitos

referentes à identidade de gênero, identidade sexual e papel de gênero reportam-se a

fatores e componentes quantitativos e qualitativos - em constituições inter-relacionadas

- das combinações identitárias, sexuais e de conduta social encontradas em diferentes

estruturas grupais e/ou individuais. Apesar de alguns autores criticarem a utilização

dessas categorias (FAUSTO-STERLING, 2001) elas ainda se fazem importantes para

que se possa enfatizar a complexidade da questão.

Identidade de gênero refere-se à parcela de constituição identitária – e portanto

inter-relacionada e co-construída com etnia/raça e estatus social/classe – organizada

segundo um processo de pertencimento e separação das estruturas sociais fundan-

tes das diferenças sexuais. Segundo Matos, a posição identificatória de gênero “(...)

é constitutiva e necessária ao prosseguimento do processo de organização subjetiva

(...)” (MATOS, 2000, p. 68). A identidade de gênero não é definida pelo sexo biológico.

Podemos observar isto ao lidarmos com pessoas do sexo masculino – anátomo-fisio-

logicamente masculinas – que desenvolvem identidade de gênero feminina.

Utilizando a mesma perspectiva de discussão, a identidade sexual não implica

necessariamente em uma consonância tradicional - socialmente construída - com a

identidade de gênero ou com o sexo biológico. Identidade sexual ou orientação eróti-

ca/sexual diz respeito à escolha de objeto erótico e busca de satisfação sexual, não

estando necessariamente vinculada à identidade de gênero ou à anátomo-fisiologia


sexual. Tal recorte, se por um lado fragmenta componentes que estão imbricados e

inter-relacionados, por outro nos permite desmitificar a idéia de que a pessoa com

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orientação homoerótica configura uma caricatura ou imitação do sexo oposto. Como

exemplo, podemos citar mulheres que são homossexuais, mas não se travestem de

homens ou adotam comportamentos estereotipados vistos como tipicamente masculi-

nos. Da mesma forma implica em aceitar que nem toda pessoa do sexo masculino com

orientação homoerótica deva ser “afeminada” ou deva travestir-se.

O último conceito a ser apresentado é o de papel de gênero, referindo-se ao

conjunto de condutas esperadas associadas à sexualidade e socialmente exigidas do

indivíduo de acordo com o seu sexo (FAGUNDES, 2001), seu contexto histórico e

cultural. Os papéis são normas arbitrárias ou padrões estabelecidos socialmente que

definem o comportamento dos membros de uma sociedade, sua forma de vestir-se,

maneira de estabelecer relações, de ocupar posições, etc (LOURO, 1997). Em outras

palavras é a tradução social - constituída de valores, normas, moral, crenças, com-

portamentos, expectativas – do que é ser homem ou mulher em determinado contexto

social. Da mesma forma que os conceitos anteriormente descritos não estão necessa-

riamente concordantes com o sexo biológico, com a identidade de gênero e/ou com a

identidade sexual. É importante enfatizar que estes conceitos estão imbricados um no

outro, são co-construtores da subjetividade, estão inter-relacionados, mas são distin-

tos. Não se anulam e não se excluem. Não são fixos e nem permanentes podendo ser,

inclusive, contraditórios.

A distinção entre os termos sexo e gênero é fundamental. Diniz (1999) aponta

que sexo refere-se à configuração anatomofisiológica das pessoas e gênero a uma

construção sócio-histórica. De acordo com Fausto-Sterling (2001) poderíamos propor

três possibilidades de sexo: sexo feminino, masculino e intersexo. Mas essa autora,

bióloga, problematiza a forma arbitrária como o sexo é definido em uma pessoa, su-

gerindo que as variações biológicas são tantas, que a própria noção de sexo poderia

ser diferente, respeitando-se tais variações. Problematiza ainda a tendência a asso-

ciar comportamentos, preferências e condutas sexuais em categorias estanques. Para


a autora, a variação entre homossexualidade, bissexualidade e heterossexualidade é

grande demais, plástica e dinâmica, o que comportaria a extinção de tais terminologias.

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Sem dúvida a binaridade feminino-masculino pode ser ultrapassada, e vem sendo, em

alguns aspectos, como podemos observar em diferentes momentos na trajetória de

estudos sobre os sexos.

2 PARADIGMAS DA DISCUSSÃO DE GÊNERO: UM CRESCENTE DA COMPLEXI-


DADE

No decorrer do processo de discussão científica sobre as diferenças entre

homens e mulheres, podemos observar três momentos sócio-históricos com perspec-

tivas analíticas fundamentalmente distintas (LAQUEUR,1991). Em um primeiro momen-

to, que dura aproximadamente até o século XVIII, podemos observar a primazia do

pensamento anatômico – um neoplatoniosmo (MATOS, 1999) - na produção e discurso

científicos. Denominado one sex-model – modelo do sexo único – este paradigma re-

trata um período sócio-histórico marcado pela hegemonia masculina na comunidade

científica ainda em processo de formação. A mulher era o sexo invertido apoiado no

modelo masculino: o útero era correspondente ao escroto, os ovários aos testículos,

a vulva ao prepúcio, e a vagina a um pênis interior - onde o clitóris podia ser tomado

como um pênis mal desenvolvido ou atrofiado. A religião utilizava viés aproximado,

com a imagem de um Deus homem – o homem como imagem e semelhança de Deus

e o primeiro a ser criado – e uma mulher desviante ou secundária – advinda da costela

do homem e subproduto do mesmo.


Em estudo que reconstitui a visibilidade da mulher no desenvolvimento da hu-

manidade, Melo, Freitas e Ferreira (2001) relembram como Platão e Aristóteles vali-

davam o conceito de inferioridade da mulher ao “comprovarem cientificamente” que o

líquido seminal era o único responsável pela concepção, sendo o útero um mero recep-

táculo e depósito. Tal crença permaneceu vigente até meados do século XIX quando

foi investigado e disseminado o processo de ovulação da mulher. O conhecimento era

construído por homens e as pequenas tentativas de investida das mulheres no âmbito

da ciência – principalmente na medicina, teologia, filosofia – foram vistas como amea-

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çadoras da ordem, como desviantes e como pecado. A caça às bruxas durante a inqui-

sição constitui um exemplo.

Um segundo momento discursivo vai entrar em vigor a partir do século XVIII.

O Iluminismo irá introduzir a discussão do corpo de dois sexos. Designado de two

sex-model – modelo de dois sexos – começa a discutir a questão das diferenças de

forma dicotômica, binária, em uma época onde a sexualidade passa por questiona-

mentos e problematizações. Transformações importantes em termos sócioeconômicos

são iniciadas e a posição das mulheres na sociedade é reavaliada. São marcantes as

contribuições da teoria psicanalítica clássica – estruturas femininas e masculinas e

conceitos de ativo e passivo –, os trabalhos de Marx, Engels e Reich - questionando a

estrutura patriarcal de família e criticando as relações entre capital e trabalho -, o fim

da realeza e o início da era democrática, os movimentos feministas, entre outros.

A ciência ainda era produzida principalmente por homens, o que implicava em

um discurso baseado na experiência masculina do mundo (JAGGAR, 1997) que dire-

cionava a maior parte da tecnologia construída na época para manipulação masculina.

O carro configura um exemplo típico de tecnologia desenvolvida e aperfeiçoada para

ser operada por homens. Trocar o pneu de um carro exige um critério que vai além

de habilidade motora e competência cognitiva: exige força física. Na época de sua

invenção não era considerado como normal e real a possibilidade de que as mulhe-

res viessem a operar tal máquina, pensamento que acompanhou o desenvolvimento

tecnológico do carro por muito tempo. Mas, como aponta Fausto-Sterling (2001), em

termos de força física e explosão muscular vamos encontrar variações anatômicas e

fisiológicas muito grandes em homens e mulheres. Enfatiza o fato de que é muito fácil

encontrar homens mais fracos fisicamente do que mulheres.

Matos (2000), utilizando como subsídio lógico a análise iniciada por Laqueur

(1991), propõe a denominação da suposta terceira e atual perspectiva científica para a

discussão acerca dos sexos: o plural sex-model – modelo da pluralidade sexual. Para
esta autora, a análise encontra subsídio em um paradigma corpóreo complexo imbri-


O triciclo de Carl Benz é considerado o primeiro automóvel da história. Criado em 1886, na Alemanha
(A história do Automóvel. http://www.fortunecity.com/silverstone/garage/560/automovel.html)

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cado na contemporaneidade.

(...) o corpo de uma revolução cibernética e informacional é agora marcado, não por
um único sexo masculino e dominante, também, não apenas por uma oposição dual
mulher/homem, mas sobretudo pela pluralidade, multiplicidade e heterogeneidade
sexual nas organizações identitárias de gênero (Matos, 2000, p. 62).

A grande variedade de estruturas generificadas e relacionais da atualidade

levou estudiosos da área a questionarem a binaridade – masculino e feminino - como

base de composição das complexas combinações generificadas. Ou seja, pessoas do

sexo masculino e do sexo feminino – independente da orientação sexual – desenvol-

vem e exercem comportamentos e atitudes que extrapolam a divisão identitária e de

papéis até então compreendidos como masculinos e femininos. Os homens, por exem-

plo, adentram no mundo das atividades domésticas – campo majoritariamente feminino

até a década de 1960 – e do cuidado dos filhos. As mulheres adentram em diversas

posições na força de trabalho e em diferentes níveis na contribuição para o orçamento

doméstico. Os espaços conquistados demandam várias flexibilizações e transforma-

ções, o que dificilmente ocorre livre de conflitos e desafios.

3 PLURALIDADE DE GÊNERO E MULTISSEXUALISMO

Na análise de gênero contemporânea um movimento sócioeconômico mos-

trou-se fundamentalmente importante para o entendimento das relações de homens

e mulheres. A partir do final da década de 60 constatou-se um aumento significativo

do número de mulheres casadas e com filhos trabalhando nos países desenvolvidos

como Inglaterra e Estados Unidos. Este processo tornou-se mais evidente no Brasil no

período que vai de 1981 a 1990. Nessa década, as mulheres cônjuges foram as que

mais incrementaram a participação na força de trabalho. Enquanto os homens chefes

de família permaneceram ocupando o lugar mais elevado nas taxas de trabalho, mas

sem uma variação significativa do percentual - 87.9 em 1981 e 87.5 em 1990 - as mu-

lheres casadas aumentaram significativamente sua atuação variando esse percentual

de 27.4 em 1981 para 37.6 em 1990. Isto significa que o aumento da participação da
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mulher casada no mercado de trabalho foi 25 vezes maior do que a dos homens chefes

de família (IBGE/DEISO/PNAD, 1994).

Tal fenômeno gerou um impacto profundo sobre a interação relacional conju-

gal e familiar principalmente devido ao estremecimento da divisão sexual do trabalho

socialmente estabelecida na então vigente organização tradicional dos papéis de gê-

nero. No arranjo familiar tradicional ocidental o homem era o principal encarregado de

garantir a sobrevivência da família através do trabalho, ou seja, era visto como o pro-

vedor material da família encarregado de lidar com o mundo externo. À mulher cabia

cuidar do ambiente familiar interno, incluindo o cuidado da casa, a educação dos filhos

e o fornecimento de carinho e aconchego, caracterizando-se assim como a provedora

afetiva e mantenedora da saúde mental da família (DINIZ, 1993; 1999; RAMPAGE e

AVIS, 1998).

O estilo de vida contemporâneo provoca uma crise no arranjo funcional e emo-

cional previamente estabelecido entre homens e mulheres. Conseqüentemente cresce

a necessidade de reformulações dos papéis sociais a partir de questionamentos aos

estereótipos de gênero que os justificaram. Questões até então resolvidas - como quem

lava a louça é a mulher, quem conserta o encanamento é o homem - são colocadas

na berlinda e desnaturalizadas pela própria demanda social de flexibilização acerca do

que é tarefa masculina e tarefa feminina.

Concomitantemente novas configurações conjugais e familiares ganham es-

paço e adeptos/as. Famílias recasadas, famílias sem filhos, famílias com cônjuges

homossexuais, monoparentais, entre outras, adentram no rol de possibilidades rela-

cionais emergentes, demandando transformações e reformulações nos conceitos de

saúde e modelos familiares saudáveis, assim como uma avaliação crítica da forma de

apoio, intervenção e prevenção até então praticados.

A flexibilização do exercício dos papéis de gênero, a multiplicidade de possibili-

dades em arranjamentos relacionais e a complexidade das identificações generificadas


da atualidade deram margem à postulação de uma terceira identidade de gênero, além

da masculina e da feminina: a andrógina. A identidade andrógina seria constituída por

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uma incorporação não contraditória de características predominantemente atribuídas

ao sexo masculino e ao sexo feminino. Em outras palavras, emerge a flexibilização de

identidades e papéis generificados que, até a modernidade, eram muito rígidos, deli-

mitados e excludentes. Rotheram e Weiner (1983) baseiam-se na definição construída

por Bem a partir do Bem Sex Role Inventory (BSRI) em 1974. Para estes estudiosos,

androginia é um termo utilizado para descrever indivíduos que são menos restringidos

por papéis de gênero convencionais. Pessoas andróginas integram atributos de mas-

culinidade e feminilidade em seu autoconceito possibilitando um extenso e diversifica-

do repertório de comportamentos sociais. Em seus estudos sobre androginia, estres-

se e satisfação em casais de duplo-trabalho (onde ambos os cônjuges trabalham) e

casais tradicionais (onde apenas o marido trabalha), Rotheram e Weiner encontraram

relações significativas entre estresse no trabalho, satisfação pessoal e pessoas com

identidade de gênero andrógina. Enquanto a androginia pareceu aumentar o nível de

estresse no ambiente laboral, está relacionada, por outro lado, ao aumento de satis-

fação no relacionamento. A flexibilidade já se apresentava como uma demanda nos

relacionamentos conjugais – espaço privado - mas ainda era vivida com dificuldade

em estruturas mais avaliáveis e expostas socialmente, como é o caso do ambiente de

trabalho (ROTHERAM e WEINER, 1983).

Além da discussão acerca da incorporação de uma terceira identidade de gê-

nero ainda aparece como fonte de polêmica e discussão a multiplicidade das opções,

configurações e estruturas relacionais eróticas e afetivas da atualidade. Homoerotismo,

heteroerotismo e bissexualidade demandam uma problematização sob uma perspecti-

va menos patologizante e mais relacional e sistêmica. As mudanças que se processam

no plano da subjetividade não são perceptíveis de forma imediata e não se dão na

mesma velocidade do que aquelas percebidas no plano “objetivo” (VITALE, 1995). Per-

cebem-se mudanças importantes nos discursos sociais, mas não tão significativas na

experiência social. Para Matos “o ‘multissexualismo’ é uma forma clara de resistência


– crítica e subversiva – à homogeneização de tal empreitada social, cultural e política”

(MATOS, 2000, p. 68).

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4 IMPLICAÇÕES ÉTICAS E CONFIGURAÇÕES RELACIONAIS CONTEMPORÂNEAS

Assim como a sexualidade possui caráter e constituição provisórios e dinâmi-

cos que acompanham o desenvolvimento e discursos sociais a ética passa por trans-

formações imbricadas no contexto sócio-histórico vigente. A ética é histórica e precisa

adaptar-se às necessidades e demandas temporais (PASSOS, 2001). Morin enfatiza a

dimensão complexa e móvel da ética distinguindo a moral da falsa moral. Para o autor

a falsa moral transforma o conflito de valores em uma discussão dicotômica – bem e

mal - e indiferencia normalidade e norma privilegiando as pessoas e fenômenos nor-

mais – “standard” (MORIN, 2000, p.131). Continua sua tese reafirmando que o proble-

ma ético é um conflito de valores que surge quando existem demandas contraditórias.

Ilustra sua idéia com a problemática do aborto. Se atentarmos para a perspectiva do

direito e da liberdade da mulher em optar por não ter um filho implica em uma pers-

pectiva de valor ético. Se olharmos pelo lado de uma sociedade que passa por uma

crise demográfica importante, esta também possui o direito de sobreviver através da

procriação. Conclui sua tese afirmando sua descrença em uma nova ética. Para Morin,

a sociedade só pode procurar estabelecer uma moral provisória e compromissos arbi-

trários. Atenta para a necessidade de se perceber o caráter estritamente arbitrário de

decisões como, por exemplo, a assunção do momento de existência de uma pessoa:


se o indivíduo passa a existir no momento da fecundação, aos dois meses de gesta-

ção, aos seis meses ou ao nascimento, não passa de uma decisão arbitrária.

No decorrer do desenvolvimento da humanidade, as relações entre gêneros

também passaram por momentos de arbitrariedades e indiferenciação entre norma-

lidade e norma. Durante muito tempo não se ousou questionar o modelo normal de

família como norma social e como conduta relacional ética. A própria psicologia multi-

plicava discriminações de gênero dentro e fora do âmbito familiar.

Mesmo depois de grandes avanços no campo da atuação com famílias algu-

mas críticas ainda são erigidas a respeito do sexismo implícito nas definições de famí-

lia e de papéis familiares. De acordo com Rampage e Avis (1998) os delineadores da

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terapia familiar – décadas de 1950 e 1960 – eram em sua maioria homens brancos e

advindos da classe média (com exceção de Virgínia Satir). Para estes pioneiros, o mo-

delo saudável de família era definido estruturalmente por um casal heterossexual e sua

prole. Famílias monoparentais, homossexuais, recasadas ou qualquer família com con-

figuração diferente do modelo normal era considerada anormal ou patológica. A ética

inerente à atuação clínica junto a essas famílias tomava como base a necessidade de

ajudar estas famílias disfuncionais ou desorganizadas a enquadrarem-se novamente

no modelo “saudável”.

De forma similar, na década de 1990, muitos terapeutas criticaram e denun-

ciaram a rigidez e ineqüidade envolvidas nos papéis apropriados para homens e para

mulheres, mas não chegaram ao ponto de avaliar a implicação destes exercícios e

condutas como parcela importante do problema levado para a clínica. O fato de a

mulher perceber-se e ser percebida por marido e filhos como a principal mantenedora

emocional da família quase nunca é encarado como problemático. A posição primor-

dialmente e geralmente periférica adotada pelo marido em relação à emocionalidade

dos filhos e esposa também é abordada como normal. Mas no momento em que a

mulher ultrapassa os limites da responsabilidade e adentra em uma atitude invasiva as

exigências advindas do papel que está desempenhando não são questionadas, e sim,

a capacidade e desempenho dessa mulher (RAMPAGE e AVIS, 1998).

A terapia familiar com orientação teórica sistêmica foi de fundamental impor-

tância para a dissolução do modelo rígido e único de família saudável. Questionando

a importância dos sintomas trazidos como a queixa principal, distribuindo parcelas

de responsabilidade para todos os membros da família e apresentando ferramentas

interventivas revolucionárias, desafiou clientes e terapeutas a um novo entendimento

de suas respectivas funções no processo terapêutico e da própria definição de famílias

saudáveis. Se por um lado trouxe modelos interventivos importantes, por outro abriu

espaço para críticas quanto a problemas conceituais e equívocos envolvendo as rela-


Entendendo que exitem várias correntes de orientação sistêmica da primeira e segunda cibernética
– estratégica, estrutural, narrativa, transgeracional, entre outras – apresentamos uma perspectiva
geral, cientes dos limites impostos pelas especificidaeds de cada uma.

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ções de gênero.

O longo processo histórico ocidental de distribuição desigual de poder, de des-

valorização da mulher e de rigidez de papéis e identidades de gênero contribuiu para

uma “naturalização” das diferenças. Esta “naturalização” constitui uma das maiores

barreiras para o desenvolvimento de uma eqüidade social, já que encobre alguns pres-

supostos mantenedores do status quo.

Rampage e Avis (1998) relacionam alguns conceitos sistêmicos que podem

mascarar o sexismo e as relações coercitivas de poder. São eles a noção de comple-

mentaridade, a circularidade e a neutralidade ou parcialidade multilateral. A comple-

mentaridade é um termo que explica a desigualdade em relacionamentos como um

fenômeno superficial e temporário onde um papel exercido é sustentado por um outro

papel complementar. Na visão de Rampage e Avis este conceito apoia-se no pressu-

posto de uma igualdade entre os parceiros, mesmo que experimentada em papéis apa-

rentemente desiguais. Essa superficial igualdade encobre o fato de que a desigualdade

é impetrada não apenas no nível do sistema familiar, mas deriva e estende-se a um

sistema macro, de uma desvantagem estipulada por leis e pelas normas e costumes

sociais.

De acordo com esse conceito, o marido que insiste em verificar com antecedência
todos os gastos efetuados por sua esposa pode aparentemente ser o detentor de
maior poder no relacionamento, mas, no nível mais profundo, sistêmico, parte-se do
princípio de que os parceiros ocupam uma posição de igualdade. Em tal cenário o
poder da mulher poderia ser visto como fundamentado em sua capacidade de ser de
fato a responsável pelas compras da família, uma análise que também ignora que
essa capacidade deriva e é contingenciada pela aprovação do marido (RAMPAGE
e AVIS, 1998, p. 192).

O conceito de circularidade refere-se ao caráter recursivo dos padrões de com-

portamento familiares onde todos os membros são responsáveis e estão implicados na

manutenção de determinado problema. Prosseguindo com a análise crítica, Rampage

e Avis (1998) ressaltam o fato de que muitas vezes divide-se a responsabilidade quan-
do, na verdade, existe um principal responsável. Um exemplo seria o caso de estupro

contra a mulher por seu marido. A noção de circularidade pode abafar um crime que é

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cometido e que tem subsídio em séculos de perpetuação da visão do corpo da mulher

como um objeto que o homem passa a possuir quando se casa – faz parte da sua

propriedade privada e ele tem o direito de uso. Dividir a responsabilidade do homem

pelo estupro com a mulher é, no mínimo, fechar os olhos e contribuir para perpetuar

um enorme passado de estrutura patriarcal de organização da sexualidade e para a

parcela de responsabilidade do agressor.

Outro conceito que desgasta a parcela de responsabilidade individual e per-

petua a desigualdade é a neutralidade ou parcialidade multilateral, que diz respeito à

postura dos terapeutas ante os membros da família. Esta deve garantir que nenhum se

sinta mais ou menos apoiado do que o outro evitando coalisões sustentadas.

Em todas as ocasiões em que as questões trazidas à terapia apresentam um caráter


sexista, por sua imparcialidade o terapeuta perpetua a desigualdade. Pode, por
exemplo, tentar manter as igualdades das mudanças que sugere ou tentar igualar
suas conseqüências. Mesmo que duas pessoas que se encontrem em uma relação
desigual de poder abram mão de 10% deste, ainda se encontrarão na mesma
relação de desigualdade em que estavam antes (RAMPAGE e AVIS, 1998, p.193).

Em movimento similar deu-se a problematização acerca da homossexualida-

de. Ante a impossibilidade – incoerência e ingenuidade - de se analisar uma história

universal da homossexualidade, tal comportamento demanda uma compreensão histó-

rico-contextual. De acordo com MacRae a homossexualidade tem sido discutida pela

maior parte dos/as estudiosos/as das ciências sociais como um problema social (MA-

CRAE, 1986) e por áreas como medicina e psicologia como um problema de saúde

e/ou comportamental. Mas nem sempre foi assim.

Como analisa Michel Foucault em sua obra A História da Sexualidade, na

Grécia antiga não existia “homossexualidade” e sim sexo e prazer com homens e/ou

mulheres – o gosto pelo belo independente do sexo. O que para a análise social do

século XIX era uma questão do âmbito do desvio, da doença, para os gregos antigos

era uma questão de conduta moral, do âmbito jurídico. O movimento de patologização


do comportamento sexual homossexual e a respectiva construção de uma “identidade”

ou categoria homossexual localizam-se no século XIX no apogeu do cientificismo nor-

mativo (GUILLEBAUD,1999). A partir de então a homossexualidade adquire um papel

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social que envolve expectativas, no caso dos homossexuais, muito limitadas em torno

de funções sociais. Para grande parte da sociedade uma pessoa homossexual se des-

creve mais pela sua orientação sexual do que pelas outras funções e papéis exercidos,

como o profissional, o familiar, o parental, etc. No caso de homossexuais masculinos

as principais expectativas sociais são de que eles tenham uma postura afeminada; que

na maior parte das relações com os outros homens esteja envolvido o componente

ou interesse sexual; e que eles possuam interesse por meninos e rapazes jovens e os

tente seduzir ou transformar em homossexuais.

No caso das mulheres homossexuais – cuja significação e processo histórico

de desenvolvimento apresentam percurso diferente, merecendo outra e aprofundada

discussão – espera-se que sejam masculinizadas e que “atendam” a mulheres solitá-

rias e “viúvas”. O papel desempenhado na sociedade é confundido com a própria ma-

neira de conduzir o sexo e o prazer, reduzindo essas pessoas às suas condutas e/ou

práticas sexuais.

Apesar de a discussão ter-se iniciado muito antes só em 1999 o Conselho

Federal de Psicologia adicionou uma resolução em seu Código de Ética Profissional

onde o conteúdo principal dispõe sobre a não patologização da orientação homoeró-

tica, assim como sobre as implicações éticas imbricadas em participações públicas

dos/as profissionais em movimentos e discursos com conteúdos discriminatórios e/ou

patologizantes. A homossexualidade passa a não mais ser vista como uma patologia

– ao menos no discurso e na lei. Nos consultórios psicológicos e psiquiátricos ainda

transitam pais e mães desesperados com a possibilidade de o filho ou de a filha apre-

sentarem características ou preferências homoeróticas. Estes familiares muitas vezes

se apóiam em uma esperança de tratamento para o/a filho/a. Há denúncias de que

alguns profissionais ainda se dispõem a “curar a doença”.


Em 1985 o Conselho Federal de Medicina decide orientar os médicos brasileiros a utilizarem o códi-
go V-62 como categoria para a homossexualidade – “Outras Circunstâncias Psico-Sociais”. Dentro
desta categoria estão outras condições não patológicas como o desemprego.

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Revista UNIRB Volume I Número 1 janeiro a abril de 2006

5 ATUAÇÃO ÉTICA E A PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO: DESAFIOS


E DIREÇÕES

Assumir uma postura que reconheça a perspectiva das relações de gênero

na clínica psicoterápica – como também em outros setores de atuação da psicologia

como nas organizações, nas escolas, hospitais, entre outros – implica na assunção de

vários desafios e armadilhas que se não forem bem analisados podem se desdobrar

em problemas de ordem ética. Podemos, de forma geral, incorrer ao menos em três

riscos fundamentais - que são extremos: omitir a questão gênero do contexto interven-

tivo – que inclui a ilusão da neutralidade do/a terapeuta; olhar para o cliente com uma

visão baseada em estereótipos de papéis de gênero, orientação sexual e/ou identidade

de gênero rígidos e patologizantes; e confundir perspectiva das relações de gênero

com perspectiva da mulher.

No primeiro caso, o problema está em olhar para homens e mulheres como

“pessoas” ou “seres humanos”. As pessoas só apresentam sentido quando inseridas

em um contexto e em relação. Durante muito tempo a ciência adotou uma leitura posi-

tivista muito rígida, a qual implicava em abuso de análises quantitativas que buscavam

a generalização e a universalização. Pesquisas realizadas com amostras muito espe-

cíficas da população tinham seus resultados ampliados para a humanidade: homens,

mulheres, crianças, negros, judeus, entre outros, eram colocados no mesmo patamar

da ampliação e eram analisados a partir de indicadores enviesados. As pessoas eram

analisadas sem levar em conta categorias básicas como gênero, etnia e status/classe

social. Perguntas como: “a depressão da qual se fala é a mesma para a mulher branca

de classe média e para a mulher negra pobre?” Outro exemplo: “o ninho vazio também

acontece para o casal da favela?” e “a propaganda da camisinha feminina deve seguir

o mesmo modelo da propaganda da camisinha masculina?” exemplificam o quanto es-

tas categorias básicas colocam limites em boa parte das propostas universalistas.

Admitindo as dimensões específicas de cada grupo outro desafio é impetrado:


Fenômeno constantemente observado em casais heterossexuais no advento da saída dos filhos jo-
vens adultos de casa para uma vida independente demandando reformulações dos papéis e funções
de cada um na vida doméstica e uma resignificação do relacionamento conjugal.

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GÊNERO, MULTISSEXUALIDADE E CONSTITUIÇÕES FAMILIARES CONTEMPORÂNEAS Giovana Dal Bianco Perlin

o reconhecimento da condição de não neutralidade do/a profissional. Da mesma forma


que o/a cliente o profissional que realiza a análise ou a intervenção também possui

um posicionamento identitário que implica em visão diferenciada do mundo. É impor-

tante não tentar assumir uma suposta neutralidade - impossível - tendo cuidado com

o significado da própria identidade na terapia, a fim de que uma regra ou valor do/da
terapeuta não seja passado como norma ou modelo saudável. A idéia principal é des-

vencilhar-se da armadilha colocada pela suposta neutralidade e realizar um movimento


contrário: tendo ciência de seus valores e crenças o/a terapeuta terá mais condições
de diferenciá-los e identificá-los na intervenção.

Tal conduta é bem diferente da tentativa enganosa de “desvencilhar-se de

crenças, moral e valores ao entrar no consultório para atender a clientela”. Um psicólo-

go do sexo masculino, por exemplo, que possua uma identidade de gênero masculina

e identidade sexual heteroerótica deve ter o cuidado de reconhecer sua configuração

identitária para atender um homem com identidade sexual homoerótica. É comum que
psicoterapeutas postulem hipóteses sobre a etiologia do comportamento homoerótico

assim que adentra no consultório uma pessoa com tal conduta sexual.
Quando aquele rapaz afeminado e de aparência frágil entrou em meu consultório
e sentou à minha frente, a primeira questão que veio à minha mente foi a de que
ele teria sofrido abuso sexual na infância. Mas a queixa principal deste cliente não
girava em torno de sua orientação sexual, mas sim de uma tristeza profunda advinda
de um rompimento de relacionamento romântico com seu parceiro .

O outro entrave interventivo é adotar uma visão estereotipada de gênero tan-

to em relação ao discurso socialmente desejável na contemporaneidade quanto ao


discurso tradicional. Nem todas as mulheres querem trabalhar fora e nem todos os

homens querem trocar fraldas. Não se pode impor a uma família uma maneira ideal

de viver, nem querer “libertar” as famílias de suas escolhas, arranjamentos e funcio-

nalidade. Uma mulher deprimida não está necessariamente com este problema por

trabalhar em casa com afazeres domésticos. Da mesma forma nem todos os homens
sustentam o patriarcalismo e nem todas as mulheres são subjugadas. Homens e mu-

lheres recebem mensagens contraditórias da sociedade. Por um lado, sofrem pressão

para manterem valores e padrões morais tradicionais, como: pressão para casar e ter

Relato de um psicólogo em um curso sobre gênero.

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Revista UNIRB Volume I Número 1 janeiro a abril de 2006

filhos, para valorizarem o meio familiar como o locus realizador de todas as expectati-

vas emocionais e pessoais, pressão para adoção de modelos rígidos de sexualidade e

de divisão de papéis entre homens e mulheres. Por outro lado, encontram-se obriga-

dos a adequarem-se às transformações nas tendências sociais, como: multiplicidade

dos papéis exigidos no mercado de trabalho, valorização do crescimento individual, da

independência financeira e da flexibilidade no exercício dos papéis de gênero, além do

incentivo à vivência plena da sexualidade. Estes dilemas normativos (O’ NEIL, FISH-

MAN & KINSELA-SHAW, 1987) podem ser agravados se a atitude dos/as terapeutas

for rígida. O objetivo da terapia, neste sentido, é ajudar as pessoas a configurarem

relações baseadas em vivências equitativas na família e pela família.

Na clínica psicoterápica temos atendido mulheres que questionam sua identi-

dade de gênero por não desejarem ter filhos. Elas receberam mensagens e instruções

sociais rígidas do que é ser mulher incorporando a idéia de que o maior sinalizador da

feminilidade era a maternidade. Quando atingem uma idade limite – geralmente a reco-

mendada pela OMS – entram em um conflito importante: “ser mulher é ser mãe; logo,

se eu não for mãe, não serei uma mulher normal”. Por outro lado atendemos mulheres

com problemas relacionados à auto-estima por preferirem dedicar-se completamente à

família em uma sociedade que brada que mulheres inteligentes e competentes devem

trabalhar fora de casa.

Por último, um problema que levanta ainda muita discussão e polêmica: a in-

diferenciação entre gênero e mulher. Durante algum tempo – e ainda hoje em algumas

orientações teóricas - a Psicologia do Gênero foi utilizada como sinônimo da Psicologia

da Mulher. Em verdade, ambas estão imbricadas, mas se distinguem em vários aspec-

tos. A principal e mais evidente diferença está na intenção da Psicologia do Gênero

em estudar a relação entre a identidade e o sexo dos indivíduos e as relações entre as

pessoas constituídas nas combinações generificadas.

Esta diferenciação se faz importante devido a uma tendência – muito importan-


te para o impulso inicial e para a manutenção do movimento e estudos feministas – em

enfatizar as necessidades das mulheres excluindo as necessidades dos homens. Mas

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GÊNERO, MULTISSEXUALIDADE E CONSTITUIÇÕES FAMILIARES CONTEMPORÂNEAS Giovana Dal Bianco Perlin

a supervalorização do legado feminino e a exclusão dos homens nas reflexões femi-

nistas podem levar a uma visão equivocada de que os homens não estão participando

dos dilemas identitários e relacionais envolvidos na contemporaneidade. Da mesma

forma que as mulheres, os homens também pagam ônus em determinados aspectos

na sociedade. Um exemplo é a exclusividade experienciada pelas mulheres e atribuí-

das a elas em relação à parentalidade, implicando na dificuldade de juízes proferirem

uma decisão de guarda de filhos para o pai. A discussão é profícua – e muito polêmica

– e deve ser levada em conta ante a proposta de relações equitativas enfatizada pela

perspectiva de gênero.

Estamos problematizando gênero para superar a rigidez dos estereótipos e

papéis erigidos pela sociedade que acompanham a pessoa de acordo com seu sexo, e

não para a construção de novos modelos rígidos. O fundamental é o estabelecimento

de relações baseadas na eqüidade ao invés de uma inversão ou nova padronização

dos papéis sociais. Uma atuação responsável e ética envolve o conhecimento crítico-

reflexivo sobre a complexa e dinâmica rede de possibilidades de configurações identi-

tárias envolvendo sexo e gênero.

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