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RESUMO:
O objetivo do trabalho foi problematizar a atuação ética em psicologia como ciência e
profissão considerando a categoria gênero de análise como subsídio crítico-reflexivo.
Através de revisão de literatura o artigo apresenta gênero como dimensão fundamen-
tal e estruturante das múltiplas e complexas constituições subjetivas e identitárias
presentes na contemporaneidade.
ABSTRACT:
The purpose of this study was to depict the problems of an ethical acting in psychology
as science and profession considering the gender analysis category as a critical-refle-
xive subsidy. Through a review of the existing literature this paper presents the gender
as a fundamental dimension, structuring the multiple and complex subjective constitu-
tions and identities in modern times.
1 ANTECEDENTES E CONCEITOS
polêmica esta categoria juntamente com raça, classe e etnia passou a ser vista como
* Doutora em Psicologia.
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construções identitárias de nossa sociedade e, como aponta Diniz (2003, 2000, 1999),
abordagens da teoria social, até meados do século XX, esta perspectiva esteve na
penumbra. Até então, grande parte das discussões e teorias formuladas pelos/as estu-
da identidade sexual subjetiva - além sexo biológico. Gênero, como ferramenta teórica
para o estudo dos sistemas de relações sociais ou sexuais, não havia se consolidado
gênero - passou a ser utilizado como distinto de sex - sexo (LOURO, 1997; SCOTT,
1995). Tal distinção possibilitou que as discussões extrapolassem a ênfase nas carac-
matizando o modo como as características sexuais são trazidas para a prática social
como relações sociais acentua seu caráter histórico e enfatiza que as distinções entre
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ridades individuais. Estudar gênero passa a ser um estudo das relações de homens e
por Joan Scott, de que “(...) qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente
tes das diferenças sexuais. Segundo Matos, a posição identificatória de gênero “(...)
(...)” (MATOS, 2000, p. 68). A identidade de gênero não é definida pelo sexo biológico.
ca/sexual diz respeito à escolha de objeto erótico e busca de satisfação sexual, não
inter-relacionados, por outro nos permite desmitificar a idéia de que a pessoa com
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exemplo, podemos citar mulheres que são homossexuais, mas não se travestem de
nos. Da mesma forma implica em aceitar que nem toda pessoa do sexo masculino com
indivíduo de acordo com o seu sexo (FAGUNDES, 2001), seu contexto histórico e
social. Da mesma forma que os conceitos anteriormente descritos não estão necessa-
riamente concordantes com o sexo biológico, com a identidade de gênero e/ou com a
tos. Não se anulam e não se excluem. Não são fixos e nem permanentes podendo ser,
inclusive, contraditórios.
três possibilidades de sexo: sexo feminino, masculino e intersexo. Mas essa autora,
bióloga, problematiza a forma arbitrária como o sexo é definido em uma pessoa, su-
gerindo que as variações biológicas são tantas, que a própria noção de sexo poderia
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to, que dura aproximadamente até o século XVIII, podemos observar a primazia do
científicos. Denominado one sex-model – modelo do sexo único – este paradigma re-
a vulva ao prepúcio, e a vagina a um pênis interior - onde o clitóris podia ser tomado
manidade, Melo, Freitas e Ferreira (2001) relembram como Platão e Aristóteles vali-
líquido seminal era o único responsável pela concepção, sendo o útero um mero recep-
táculo e depósito. Tal crença permaneceu vigente até meados do século XIX quando
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çadoras da ordem, como desviantes e como pecado. A caça às bruxas durante a inqui-
forma dicotômica, binária, em uma época onde a sexualidade passa por questiona-
ser operada por homens. Trocar o pneu de um carro exige um critério que vai além
invenção não era considerado como normal e real a possibilidade de que as mulhe-
tecnológico do carro por muito tempo. Mas, como aponta Fausto-Sterling (2001), em
fisiológicas muito grandes em homens e mulheres. Enfatiza o fato de que é muito fácil
Matos (2000), utilizando como subsídio lógico a análise iniciada por Laqueur
discussão acerca dos sexos: o plural sex-model – modelo da pluralidade sexual. Para
esta autora, a análise encontra subsídio em um paradigma corpóreo complexo imbri-
O triciclo de Carl Benz é considerado o primeiro automóvel da história. Criado em 1886, na Alemanha
(A história do Automóvel. http://www.fortunecity.com/silverstone/garage/560/automovel.html)
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cado na contemporaneidade.
(...) o corpo de uma revolução cibernética e informacional é agora marcado, não por
um único sexo masculino e dominante, também, não apenas por uma oposição dual
mulher/homem, mas sobretudo pela pluralidade, multiplicidade e heterogeneidade
sexual nas organizações identitárias de gênero (Matos, 2000, p. 62).
papéis até então compreendidos como masculinos e femininos. Os homens, por exem-
como Inglaterra e Estados Unidos. Este processo tornou-se mais evidente no Brasil no
período que vai de 1981 a 1990. Nessa década, as mulheres cônjuges foram as que
de família permaneceram ocupando o lugar mais elevado nas taxas de trabalho, mas
sem uma variação significativa do percentual - 87.9 em 1981 e 87.5 em 1990 - as mu-
de 27.4 em 1981 para 37.6 em 1990. Isto significa que o aumento da participação da
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mulher casada no mercado de trabalho foi 25 vezes maior do que a dos homens chefes
garantir a sobrevivência da família através do trabalho, ou seja, era visto como o pro-
vedor material da família encarregado de lidar com o mundo externo. À mulher cabia
cuidar do ambiente familiar interno, incluindo o cuidado da casa, a educação dos filhos
AVIS, 1998).
estereótipos de gênero que os justificaram. Questões até então resolvidas - como quem
paço e adeptos/as. Famílias recasadas, famílias sem filhos, famílias com cônjuges
saúde e modelos familiares saudáveis, assim como uma avaliação crítica da forma de
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identidades e papéis generificados que, até a modernidade, eram muito rígidos, deli-
por Bem a partir do Bem Sex Role Inventory (BSRI) em 1974. Para estes estudiosos,
androginia é um termo utilizado para descrever indivíduos que são menos restringidos
estresse no ambiente laboral, está relacionada, por outro lado, ao aumento de satis-
relacionamentos conjugais – espaço privado - mas ainda era vivida com dificuldade
nero ainda aparece como fonte de polêmica e discussão a multiplicidade das opções,
mesma velocidade do que aquelas percebidas no plano “objetivo” (VITALE, 1995). Per-
cebem-se mudanças importantes nos discursos sociais, mas não tão significativas na
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cos que acompanham o desenvolvimento e discursos sociais a ética passa por trans-
dimensão complexa e móvel da ética distinguindo a moral da falsa moral. Para o autor
mais – “standard” (MORIN, 2000, p.131). Continua sua tese reafirmando que o proble-
direito e da liberdade da mulher em optar por não ter um filho implica em uma pers-
pectiva de valor ético. Se olharmos pelo lado de uma sociedade que passa por uma
procriação. Conclui sua tese afirmando sua descrença em uma nova ética. Para Morin,
ção, aos seis meses ou ao nascimento, não passa de uma decisão arbitrária.
lidade e norma. Durante muito tempo não se ousou questionar o modelo normal de
família como norma social e como conduta relacional ética. A própria psicologia multi-
mas críticas ainda são erigidas a respeito do sexismo implícito nas definições de famí-
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terapia familiar – décadas de 1950 e 1960 – eram em sua maioria homens brancos e
advindos da classe média (com exceção de Virgínia Satir). Para estes pioneiros, o mo-
delo saudável de família era definido estruturalmente por um casal heterossexual e sua
inerente à atuação clínica junto a essas famílias tomava como base a necessidade de
no modelo “saudável”.
ciaram a rigidez e ineqüidade envolvidas nos papéis apropriados para homens e para
mulher perceber-se e ser percebida por marido e filhos como a principal mantenedora
dos filhos e esposa também é abordada como normal. Mas no momento em que a
exigências advindas do papel que está desempenhando não são questionadas, e sim,
saudáveis. Se por um lado trouxe modelos interventivos importantes, por outro abriu
Entendendo que exitem várias correntes de orientação sistêmica da primeira e segunda cibernética
– estratégica, estrutural, narrativa, transgeracional, entre outras – apresentamos uma perspectiva
geral, cientes dos limites impostos pelas especificidaeds de cada uma.
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ções de gênero.
uma “naturalização” das diferenças. Esta “naturalização” constitui uma das maiores
barreiras para o desenvolvimento de uma eqüidade social, já que encobre alguns pres-
posto de uma igualdade entre os parceiros, mesmo que experimentada em papéis apa-
sistema macro, de uma desvantagem estipulada por leis e pelas normas e costumes
sociais.
De acordo com esse conceito, o marido que insiste em verificar com antecedência
todos os gastos efetuados por sua esposa pode aparentemente ser o detentor de
maior poder no relacionamento, mas, no nível mais profundo, sistêmico, parte-se do
princípio de que os parceiros ocupam uma posição de igualdade. Em tal cenário o
poder da mulher poderia ser visto como fundamentado em sua capacidade de ser de
fato a responsável pelas compras da família, uma análise que também ignora que
essa capacidade deriva e é contingenciada pela aprovação do marido (RAMPAGE
e AVIS, 1998, p. 192).
e Avis (1998) ressaltam o fato de que muitas vezes divide-se a responsabilidade quan-
do, na verdade, existe um principal responsável. Um exemplo seria o caso de estupro
contra a mulher por seu marido. A noção de circularidade pode abafar um crime que é
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como um objeto que o homem passa a possuir quando se casa – faz parte da sua
pelo estupro com a mulher é, no mínimo, fechar os olhos e contribuir para perpetuar
postura dos terapeutas ante os membros da família. Esta deve garantir que nenhum se
maior parte dos/as estudiosos/as das ciências sociais como um problema social (MA-
CRAE, 1986) e por áreas como medicina e psicologia como um problema de saúde
Grécia antiga não existia “homossexualidade” e sim sexo e prazer com homens e/ou
mulheres – o gosto pelo belo independente do sexo. O que para a análise social do
século XIX era uma questão do âmbito do desvio, da doença, para os gregos antigos
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social que envolve expectativas, no caso dos homossexuais, muito limitadas em torno
de funções sociais. Para grande parte da sociedade uma pessoa homossexual se des-
creve mais pela sua orientação sexual do que pelas outras funções e papéis exercidos,
as principais expectativas sociais são de que eles tenham uma postura afeminada; que
na maior parte das relações com os outros homens esteja envolvido o componente
ou interesse sexual; e que eles possuam interesse por meninos e rapazes jovens e os
neira de conduzir o sexo e o prazer, reduzindo essas pessoas às suas condutas e/ou
práticas sexuais.
patologizantes. A homossexualidade passa a não mais ser vista como uma patologia
Em 1985 o Conselho Federal de Medicina decide orientar os médicos brasileiros a utilizarem o códi-
go V-62 como categoria para a homossexualidade – “Outras Circunstâncias Psico-Sociais”. Dentro
desta categoria estão outras condições não patológicas como o desemprego.
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como nas organizações, nas escolas, hospitais, entre outros – implica na assunção de
vários desafios e armadilhas que se não forem bem analisados podem se desdobrar
riscos fundamentais - que são extremos: omitir a questão gênero do contexto interven-
tivo – que inclui a ilusão da neutralidade do/a terapeuta; olhar para o cliente com uma
em um contexto e em relação. Durante muito tempo a ciência adotou uma leitura posi-
tivista muito rígida, a qual implicava em abuso de análises quantitativas que buscavam
mulheres, crianças, negros, judeus, entre outros, eram colocados no mesmo patamar
analisadas sem levar em conta categorias básicas como gênero, etnia e status/classe
social. Perguntas como: “a depressão da qual se fala é a mesma para a mulher branca
de classe média e para a mulher negra pobre?” Outro exemplo: “o ninho vazio também
tas categorias básicas colocam limites em boa parte das propostas universalistas.
Fenômeno constantemente observado em casais heterossexuais no advento da saída dos filhos jo-
vens adultos de casa para uma vida independente demandando reformulações dos papéis e funções
de cada um na vida doméstica e uma resignificação do relacionamento conjugal.
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tante não tentar assumir uma suposta neutralidade - impossível - tendo cuidado com
o significado da própria identidade na terapia, a fim de que uma regra ou valor do/da
terapeuta não seja passado como norma ou modelo saudável. A idéia principal é des-
go do sexo masculino, por exemplo, que possua uma identidade de gênero masculina
identitária para atender um homem com identidade sexual homoerótica. É comum que
psicoterapeutas postulem hipóteses sobre a etiologia do comportamento homoerótico
assim que adentra no consultório uma pessoa com tal conduta sexual.
Quando aquele rapaz afeminado e de aparência frágil entrou em meu consultório
e sentou à minha frente, a primeira questão que veio à minha mente foi a de que
ele teria sofrido abuso sexual na infância. Mas a queixa principal deste cliente não
girava em torno de sua orientação sexual, mas sim de uma tristeza profunda advinda
de um rompimento de relacionamento romântico com seu parceiro .
homens querem trocar fraldas. Não se pode impor a uma família uma maneira ideal
nalidade. Uma mulher deprimida não está necessariamente com este problema por
trabalhar em casa com afazeres domésticos. Da mesma forma nem todos os homens
sustentam o patriarcalismo e nem todas as mulheres são subjugadas. Homens e mu-
para manterem valores e padrões morais tradicionais, como: pressão para casar e ter
Relato de um psicólogo em um curso sobre gênero.
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filhos, para valorizarem o meio familiar como o locus realizador de todas as expectati-
de divisão de papéis entre homens e mulheres. Por outro lado, encontram-se obriga-
incentivo à vivência plena da sexualidade. Estes dilemas normativos (O’ NEIL, FISH-
MAN & KINSELA-SHAW, 1987) podem ser agravados se a atitude dos/as terapeutas
dade de gênero por não desejarem ter filhos. Elas receberam mensagens e instruções
sociais rígidas do que é ser mulher incorporando a idéia de que o maior sinalizador da
feminilidade era a maternidade. Quando atingem uma idade limite – geralmente a reco-
mendada pela OMS – entram em um conflito importante: “ser mulher é ser mãe; logo,
se eu não for mãe, não serei uma mulher normal”. Por outro lado atendemos mulheres
família em uma sociedade que brada que mulheres inteligentes e competentes devem
Por último, um problema que levanta ainda muita discussão e polêmica: a in-
diferenciação entre gênero e mulher. Durante algum tempo – e ainda hoje em algumas
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nistas podem levar a uma visão equivocada de que os homens não estão participando
uma decisão de guarda de filhos para o pai. A discussão é profícua – e muito polêmica
– e deve ser levada em conta ante a proposta de relações equitativas enfatizada pela
perspectiva de gênero.
papéis erigidos pela sociedade que acompanham a pessoa de acordo com seu sexo, e
dos papéis sociais. Uma atuação responsável e ética envolve o conhecimento crítico-
REFERÊNCIAS
tensão, 2001.
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Tempos, 1997.
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PASSOS, E. Reflexões Sobre Ética e Gênero. Em: FAGUNDES, T. (org.) Ensaios So-
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