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O PENSAMENTO
DE DIREITA, HOJE
rum os da c u l t u r a m o d e r n a
Direção de Moacyr F élix
Volume 4
Simone de Beauvoir
O Pensamento
de Direita,
H oje
2^ edição
Tradução de
Mantjix S aumento B abata
Paz e Terra
Simone de Beauvoir
O Pensamento
de Direita,
Hoje
2* edição
Tradução de;
M anuel S abmento B abata
Paz e Terra
Capa de
R agnar L agehblad
19 7 2
Im presso no B rasil
Printed in Brasil
Sumário
1
“Entre as ruínas já se chora sobre as ruínas futu
ras” — escrevia Fabre Luce, cerca de 1945.
“Hoje, o excesso de desastres leva o homem1 a in
quietar-se pela sua obra e a duvidar do valor da própria
civilização. Ele não apenas se interroga: desespera-se
logo e zomba de si mesmo.” (Caillois: Liberté de Vesprit.
1949).
“A sociedade necessita de super-homens, porque já
não é capaz de dirigir-se, e a civilização do Ocidente
está abalada até os seus alicerces.” (Alexis Carrel:
Réflexions sur la conduite de la vie, 1950.)
“Encontramo-nos hoje entre um fim e um começo.
Também nós temos os nossos terrores. O processo em
que estamos engajados será longo e terrível.” (Soustelle:
Liberté de Vesprit, 1951.)
“Todos conhecemos a ameaça que pesa sobre a civi
lização ocidental no que ela tem de mais precioso: a li
berdade do espírito.” (Rémy Roure: Preuves, 1951.)
Etc.
O fenômeno não é inteiramente novo. Em todos os
tempos os conservadores, com espanto, previram, no fu
turo, a volta das barbáries passadas12. “Ser da direita
é temer pelo que existe” —■escrevia com acerto Jules
Romains quando ainda não compartilhava desse temor.
2
N a form a que hoje assum e, este “pequeno medo do sé
culo XX”, denunciado por Mounier, começou a difun
dir-se desde o fim da Primeira Guerra M undial, Então,
o otim ism o da burguesia foi seriam ente abalado. No sé
culo passado, ela acreditava no desenvolvimento harmo
nioso do capitalism o, n a continuidade do progresso, na
sua própria perenidade. Quando se sentia disposta à
justificação, podia invocar em seu proveito o interesse
geral: o avanço das ciências, das técnicas, das indús
trias — tudo isso fundado sobre o capital — assegurava
abundância e felicidade para a hum anidade futura.
Sobretudo, a burguesia confiava no futuro, sentia-se for
te . $ verdade que não ignorava “o perigo operário”, mas
— contra ele — possuía todas as espécies de armas.
“À força das guarnições podemos acrescentar a onipo
tência das esperanças religiosas” — escrevia gravemen
te Chateaubriand.
No início do século X X , a situação já tinha mudado
bastan te. Ao regim e da livre concorrência sucedeu o dos
monopólios, e o capitalism o assim transformado come
çou a tom ar consciência das suas próprias contradições.
Além disso, “o perigo operário” se agravou consideravel
m ente, as esperanças religiosas perderam sua onipotên
cia, e o proletariado se tom ou um a força capaz de me-
dir-se com as guarnições. A burguesia se pôs a duvidar
das ilusões que ela própria forjara: os progressos da
técnica e da indústria se revelaram m ais ameaçadores
do que promissores; aprendeu-se não a fertilizar a terra,
m as a devastá-la. É verdade que os economistas burgue
ses sustentam que só o capitalism o é capaz de realizar
a prosperidade universal. Contudo, concordam que seria
preciso atenuar consideravelm ente suas formas primiti
vas. À cu sta das guerras e das crises, descobriu-se que
o desenvolvim ento do regim e não se assemelhava, de
form a algum a, a um a nova idade de ouro. Começou-se
até a suspeitar que, n a história da humanidade, ele po
dería não ser m ais do que um a forma perecível. Confun
dindo a sua sorte com a do m undo inteiro, a burguesia
passou a profetizar negros apocalipses, e os seus ideó-
3
iogos acabaram por adotar a catastrófica visão da His
tória que Nietzsche sugerira.
“Depois da Primeira Guerra Mundial — escreve
Jaspers — caiu o crepúsculo sobre todas as civilizações.
Pressentia-se o fim da humanidade nessa encruzilhada
em que voltam a fundir-se, para desaparecer ou nascer
de novo, todos os povos e todos os homens. Ainda não
era o fim, mas em toda parte já se admitia esse fim
como uma possibilidade. Cada um vivia nesta espera,
com uma angústia espantosa — ou com um fatalismo
resignado. Reduzíamos o acontecimento a leis naturais,
históricas ou sociológicas, ou então o interpretávamos
metafisicamente, atribuindo-o a uma perda de substân
cia. Essas diferenças de atmosfera são particularmente
sensíveis em Klages, Spengler ou Alfred Weber; mas
nenhum deles duvida que a crise esteja aí, e jamais foi
tão grave” 1.
Também na França levantam-se, nessa época, vozes
angustiadas. Em um ensaio que provocou então grande
celeuma, Valéry faz soar um som fúnebre: nossa civi
lização acaba de descobrir que é mortal. Drieu La Ro-
chelle escreve em 1927, em Le jeune européen : “Desa
parecem todos os valores em que vivíamos” . E ainda:
“Esforço-me por me aproximar dos caracteres da minha
época até tocar-lhes com os dedos, e os acho tão abo
mináveis e tão dominadores, que o homem, debilitado,
já não poderá subtrair-se à fatalidade que anunciam, e
nela perecerá logo” . Depois disso, passa a profetizar a
morte do humano.
Entretanto, a burguesia encarava o fim da huma
nidade — isto é, sua própria liquidação como classe —
apenas como uma “eventualidade” . É que lhe restava
uma esperança: o fascismo.
A ideologia nazista convertia o pessimismo em von
tade de poder. Quando Spengler anunciava a decadên
cia do Ocidente, fazia um desconto ao sugerir que seu
4
livro poderia “servir dc base para a organização do nosso
porvir” . Propunha ao homem do Ocidente a seguinte
alternativa: “Fazer o necessário, ou nada” . Vale dizer
que o exortava a aceitar um novo cesarismo.
Drieu sublimava no Partido Popular Francês as
sombrias previsões da sua juventude; saudava no fas
cismo um moderno Renascim ento. “O totalitarismo ofe
rece as possibilidades de uma dupla restauração, cor
poral e espiritual, ao homem do século X X ” — escrevia
ele em sua Notes pour comprendre ce siàclc. Em 1940,
felicita a Europa por ter, afinal, descoberto “o sentido
do trágico”; declara que “é preciso introduzir novamen
te o trágico no pensam ento francês” . Mas na verdade
o que ele quer dizer com isto é, simplesmente, que a
França deve integrar-se num a Europa nazificada.
No presente, eis que o necessário foi feito, e em vão.
O fascismo foi vencido, e essa derrota pesa amargamen
te sobre a burguesia de hoje. No "crepúsculo” que banha
a civilização, ela já não vislumbra nenhum lampejo he
róico, nenhum César. Nada mais a defende contra as
dúvidas que a assaltam . “Foram precisas duas guerras
mundiais, os campos de concentração, a bomba atôm i
ca, para solapar nossa boa consciência” — escrevia Ja-
eques Soustelle em La liberté de Vesprit. “Começamos
a fazer a terrível pergunta: será possível que nossa ci
vilização não seja a Civilização?
A pergunta está feita. E eis que um imenso coro
responde: não, não o é . Todos os povos que não perten
cem ao Ocidente, isto é, que não reconhecem a hegemo
nia dos Estados Unidos, e também todos os hom ens que
no Ocidente não são burgueses, rechaçam a civilização
do burguês ocidental. E o que é m ais grave ainda: estão
em vias de criar uma nova civilização.
Antes da últim a guerra, o burguês pressentia que
alguma coisa ia terminar, mas não sabia o que nasccria
logo em seguida. Agora a barbárie tem um nome: o co
munism o. Esta ê a “cara da Medusa", cuja visão faz
gelar o sangue dos civilizados. Já reina sobre a quinta
parte do globo: é um câncer que não tardará a devorar
o
a terra to d a . Os ún icos rem édios que a direita concebe
sào a bom ba e a cu ltu ra . U m é radical dem ais c o outro
pouco d em ais. N a cólera e no terror, ela aceita as pro
fecias m arxistas, e sen te-se .perdida.
P ensam ento de vencidos, pensam ento vencido. Com
efeito, para decifrar as ideologias de direita contempo
râneas, deve-se recordar sem pre que elas se elaboram sob
o sig n o da derrota. D esde logo, vinculam -se ao passado
por m ú ltip las características, u m a das quais conserva
ain d a tod a a su a im portância desde os tempos em que
M arx a denunciava: o idealism o. Separado de todo con
ta to com a m atéria, por cau sa de seu trabalho e pelo
seu gênero de vida, protegido contra a necessidade, o
burguês ignora as resistências do m undo real: é idea
lista com a m esm a naturalidade com que respira. Tudo
o estim u la a desenvolver sistem aticam ente essa tendên
cia em que se reflete, de im ediato, a su a situação: fun-
dam cntalm ente interessado em negar a lu ta de classes,
ele n ão pode desm enti-la senão recusando em bloco a
realidade. Por isso, tende a su b stitu í-la por Idéias cuja
com preensão e extensão delim ita, arbitrariamente, se
gun d o seu s in teresses. Considerado n a sua generalidade,
este m étodo é por dem ais co n h ecid o 1. Marx e Lênin o
denunciaram com tan to brilho, que é desnecessário in
sistirm os m ais a respeito. B asta-nos assinalar que todas
as derivações do pensam ento burguês implicam uma
atitu d e idealista e tendem a confirm á-la.
Sobre esta base construíam -se outrora belos e arro
gan tes sistem a s. M as já passaram esses tempos em que
prosperavam um Joseph de M aistre e um B onald. Mes
m o a doutrina de M aurras, m algrado a su a debilidade, é
ainda dem asiado positiva, e a enterraram . <3 teórico
burguês sabe que o futuro lhe escapa, e já não tenta
m ais construir: define-se a partir do com unismo, contra
ele, de m aneira puram ente n egativa.
B aym ond Aron, por exem plo, concluindo Le grana
schisme, não se pergunta “Em que crem os?”; ele per-
6
gunta apenas: “Que opor ao comunismo?0 . E responde:
"A afirmação dos valores cristãos c humanistas0 . Mas,-
para quem leu os seus livros é evidente que tais valores
constituem a última das suas aspirações: o que lhe in
teressa é unicamente a derrota do comunismo.
De igual maneira, nessa espécie de manifesto que
inicia o segundo número da revista Prcuves, Denls dc
Rougemont começa por declarar: “Estamos antes de
tudo fracos diante da propaganda totalitária0 . E, à gui
sa de propaganda, propõe temas de contrapropaganda.
As coisas chegaram a tal ponto, que respondendo
em 1950 em La liberté de Vesprit, Léon Wcrth pôde de
clarar: “Em 1950 um regime de liberdade se define pelo
seu contrário, que é o regime stollnista0 . E seus amigos
louvaram calorosamente esta resposta.
Tudo isto equivale a confessar que a direita con
temporânea já não sabe mais o que defende: ela se de
fende contra o comunismo, e isso é tudo. E tíefende-sc
sem esperança. Aqueles que Paul Nizan chamava dc
“cães de guarda” da burguesia, tratam hoje dc justificar
a sobrevivência de uma sociedade cuja morte próxima
eles mesmos anunciam.
Tal justificação não é tarefa fácil: seu fracasso his
tórico mostra à burguesia as contradições teóricas em
que seu pensamento se enreda. Jules Romains, em ar
tigo publicado em março dc 1952 na revista Preuves , ex
pôs pateticamente seu drama ideológico: a burguesia é
vitima dos principos que ela mesma criara para uso
interno, e que estão se difundindo indlscretamente por
toda a terra. “Todas as civilizações se constituiram até
o presente, e sobretudo puderam sobreviver, n a medida
em que souberam preservar as diferenças, as conquistas,
as desigualdades que haviam acumulado lentam entc em
seu proveito; na medida cm que podiam parecer iníquas
e monstruosas aos olhos dos bárbaros, dos selvagens,
famintos e piolhentos que as rodeavam0 . Ora — acres
centa Romains — “a idéia de justiça, ou melhor, a idéia
de igualdade de direitos, é como um fogo n a brenha.
Queremos detê-lo em alguns fossos, porém cie salta por
cima. A destruição dos privilégios, das diferenças vanta-
/
losas. das conquistas localizadas, 6 uma reação em
dcia que só terminará no dia cm que não restar
nada para ser devorado”. Inala
Este texto ingênuo coloca, sem rodeios, o proble
que tím a resolver nossas modernos cães de g u a r d a i
Pacto do Atlântico obrigou os burgueses a superar o
lho nacionalismo e fazê-lo convergir para o que
chamam a Europa, o Ocidente, a Civilização, Não vêp
nenhum inconveniente em aceitar tudo isto: enquam
se trate de permanecer entre privilegiados, até que 10
possa abolir certas fronteiras. Mas, justamente, qUe n
que tudo “entre eles” . Eis, porém, que “a barbárie a sei
vageria, os famintos e piolhentos que estão em torno’»
se agitam, atuam, falam, ameaçam. Como negar ainda
que existem? 9 a»
Rougemont houve por bem declarar que “a Eurooa
é a consciência do mundo”, porém o burguês do Oci
dente é forçado a admitir que já não é a única consciên
cia, o sujeito absoluto: há outros homens. A estes o '
privilégios dos civilizados aparecem iníquos: como d£-
sipar esta aparência? Até agora, graças às trincheiras
que a burguesia soube erguer, ela conciliava sem maior
dificuldade a idéia de justiça e a realidade dos seus in
teresses. Pode fazê-lo ainda? Não cogita, evidentemente'
de renunciar às proveitosas desigualdades. Seria preciso
jogar fora a idéia de justiça? Dadas as tradições da
ideologia burguesa, é de convir que o dilema se torna
doloroso.
Toda a dificuldade está no fato de que a burguesia
pensa. A nobreza combatia por seus privilégios e pouco
se importava em legitimá-los. Àquela época, como nos
talgicamente recorda Drieu la Rochelle, “pensar era, afi
nal, dar ou receber golpes de espada” . Para a burguesia,
ao contrário, o pensamento foi um instrumento de libe
ração, e hoje ocorre que essa ideologia, forjada ao tempo
em que ela era uma classe ascendente, lhe estorva.
‘Toda classe nova — escreve Marx — é obrigada a dar
às suas idéias a forma de universalidade, representá-las
como as únicas razoáveis e unlversalmente válidas.” Sua
pretensão — acrescenta ele — se justifica na medida em
8
que esta classe se sublcva revoluclonariamentc, Porém,
a burguesia por sua vez transformou-se cm classe domi
nante, c aos invés de lutar contra privilégios alheios,
defende hoje seus próprios privilégios contra o resto da
humanidade. Kl a não pode renegar inteiram ente esta
filosofia das luzes cuja verdade pôde comprovar n a Re
volução FTonccsa. E, no entanto, ó um a faca do dois
gumes, que agora se volta contra ela. Com efeito, como
Justificar universalmentc a reivindicação de particulari
dades vantajosas? É natural que cada um se prefira,
mas é impossível erigir essa preferência cm um sistema
válido para todos.
A burguesia tem consciência desse paradoxo. Dai
que assuma, ante o pensamento, um a atitude ambiva
lente. Marx observa que h á certo antagonism o entre os
“membros ativos" da classe dominante e "os ideólogos
ativos e conceptivos que têm a especialidade de forjar
as ilusões dessa classe a respeito do si m esm a". Estes
especialistas são vistos com desconfiança. N a direita, a
palavra intelectual assume facilm ente um sentido pejo
rativo. É verdade que também o proletariado suspeita
dos intelectuais, m as só na medida em que são burgue
ses; e entre os burgueses são os intelectuais, justam en
te, aqueles a quem Marx reconhece a capacidade de elc-
var-se à “compreensão teórica do movimento histórico
em seu conjunto” . O burguês, porém, desconfia do pró
prio pensamento. “Todo bom raciocínio ofende" — dizia
Stendhal.
Todo regime progressista combate o analfabetismo;
os regimes reacionários — como os de Franco ou Sala-
zar — o favorecem deliberadamente. Tão logo sc sente
forte, a direita substitui o pensam ento pela violência:
bem o vimos na Alemanha nazista. Também na França
os camelots du r o i1 e outros fascistas acreditavam que,
sendo mais numerosos» era melhor agredir que argu
mentar.
9
“H oje, os h o m en s já n ão têm espada’* — lastimava
B r ie u . E n a verdade, a b u rgu esia sente-se m ais desar
m a d a h o je d o que h á v in te a n o s. Os am ericanos, é certo,
tê m a b om ba a tôm ica, e servem -se dela, precisamente,
à g u isa d c p e n sa m en to . M as n a F rança e n a Alemanha
m a is do q u e n u n c a sã o necessárias as sublimações espi
r itu a is . A b u rgu esia quer convencer aos outros c a si
m e sm a qu e, ao d efender se u s interesses particulares,
te m e m v ista fin s u n iv ersa is. A tarefa confiada aos seus
“id eólogos ativos e conceptivos** é inventar um a justiça
superior e m n o m e da q u al a in ju stiça seja justificada.
P ra tica m en te vencido, teoricam ente encurralado
por con trad ições insuperáveis, cabe perguntar por que
o in te le c tu a l do O cidente se obstina em defender uma
civilização con den ad a e que duvida de si m esm a. Já que
a n o ssa civilização n ão é a Civilização, m as apenas um
m o m en to da h istó r ia h u m an a, por que então não trans-
cen d ê-lo a té à totalid ad e da h istória e da humanidade?
M ounier observa ju sta m en te, em L a p etite peur du X X
siècle, que a n oção de A pocalipse através da qual se ex
pressa “a m á con sciên cia européia**, está falsificada pelo
m ed o . P ois, n a verdade — diz ele — o Apocalipse não é
u m ca n to de catástrofe, m as “um poem a de triunfo, a
afirm ação d a vitória fin al dos justos, e o canto delirante
do reino fin a l d a plenitude**.
N o q u e con cern e aos “m em bros ativos** da burgue
sia , a razão d esta fa lsificação é m anifesta; o reino final
d a ju stiç a e da p len itu d e aparecería como um desastre
a o s o lh os dos privilegiados que teim am em defender seus
in ju sto s p rivilégios. M as con tra o partícularism o de uma
sociedade condenada, seria n atu ral que os intelectuais
__ com o ta is, devotos da universalidade — tomassem o
partid o d a h u m an id ad e em geral. Por que muitos deles
s e ob stin a m e m id en tificar o H om em ao burguês, sem
deixar de profetizar, tem erosos, o fim do hom em ?1
10
Esta atitude 6 tão paradoxal que Thlerry Maulrtler
chega a ficar espantado com e la . Ém m aio d e 1053. cm
La táble ronde, ele pergunta aos burgueses do O ciden
te: afinal dc contas, o que tendc3 para opor ao com u
nismo? A té agora lutávam os con tra ele cm n om e do
terror que nos inspirava. E sc este terror cessasse? “S c
o comunism o renunciar ao terror, se puder, s c se atre
ver a renunciar ao terror, será necessário, en tão, que
renuncieis a buscar nele m esm o a s arm as para com batê-
lo, e que as encontreis em vós m esm o s. . . A defesa do
Ocidente, a té agora, foi n eg a tiv a . O O cidente n ão quer
o com unism o. Certo. M as isto n ã o pode valer com o fu
turo proposto ao 3 hom ens, com o sen tid o atribuído a esse
fu tu ro .” Parecería lógico concluir: sc as razões p ara scr
anticom unista só se encontram n o com unism o, c se p re
cisam ente Já não existem , deverem os ren u n ciar ao a n ti
com unism o. Porém o sen tid o do artigo de M aulnicr é
diferente: o que ele deseja m esm o é que o ajudem os a
encontrar um a Justificação positiva p ara esse com bate.
Mais um a vez, perguntam os: por que e sta obstinação?
Responder que os in telectu ais an tico m u n istas são
também burgueses, n ão basta: m u itos deles quarc n ã o
aproveitam as vantagens m ateriais reservadas à burgue
sia, e por outro lado os “m em bros ativos” d e su a classe
li
procuram mantê-los, de certo modo, à distância* Mas,
predsam ente ao reagir contra esta situação, esses inte
lectuais criaram interesses ideológicos que se empenham
apaixonadamente em preservar. A justiça superior que
se incumbiram de inventar — e que contradiz a justiça
terrestre — eles só podem situá-la no céu. Ê, aliás, lá
no céu que eles mesmos se situam . Lá, forjam verdades
eternas. Valores absolutos. Sentem mais apego por essas
ilusões de universalidade que os outros burgueses, já que
foram eles mesmos que as fabricaram. E, por outro lado,
o mundo inteligível é p ara eles um orgulhoso refúgio
contra a mediocridade da sua condição. Graças a isto,
escapam à sua classe, reinam idealmente, acima de to
das as classes, sobre a humanidade inteira.
Isto explica que o horror ao marxismo seja muito
mais entranhado nos intelectuais do que nos burgueses
ativos: o marxismo só se interessa pelo que ocorre na
terra, e torna a fazê-los descer brutalmente ao plano dos
demais hom ens. É claro que não revelam logo a verda
deira razão do seu ódio; preferem confessar até mesmo
os seus pesadelos mais pueris: “Se o exército vermelho
entrasse n a França, se o PC tomasse o poder, me de
portariam , me fuzilariam” . Escrevem romances de ante
cipação que não devem ser lidos à noite, e gemem com
Thierry M aulnier: “O marxismo quer a minha morte**.
Na verdade, o que eles temem é ser ideologicamen
te liquidados; ou melhor, sabem que essa liquidação é
um fato consumado. O marxismo vê neles, não media
dores sagrados entre as Idéias e os homens, mas uns
parasitas burgueses, simples emanação dos poderes ca
pitalistas, um epifenômeno, um nada. E isto não é acei
tável p a ra quem, não tendo encontrado seu lugar neste
m undo, se alienou à eternidade.
Assim, em bora m antendo a pretensão universalizam
te do seu pensam ento, o ideólogo burguês não desiste
da vontade p articu larista de sua classe. Não lhe resta
o u tra saída senão negar a particularidade do momento
12
exato cm que a form ula. Todo burguês está praticam en.
te interessado cm dissimular a lu ta de c la sse 1; o pen
sador burguês é obrigado a isto, se quer aderir a seu
próprio pensam ento. Recusa, pois, atribuir qualquer
im portância à s singularidades empíricas da sua situa
ção, e, correlatamente, ao conjunto das singularidades
empíricas que definem as situações concretas. Assim, o>
fatores m ateriais só têm um papel secundário nas socie
dades. O pensam ento transcende essas contingências. A
hum anidade é idealm ente homogênea. E é o homem, tal
como paira n o céu inteligível, o hom em único, indivisí
vel, unânim e, acabado, que se expressa pela boca do
pensador.
Toda a filosofia do hom em elaborada pelos intelec
tuais burgueses, e em particular, su a teoria do conhe
cim ento, visa, como veremos, a fundam entar esta pre
tensão. Porém, dada a atitude negativa que ressaltei, a
su a doutrina positiva conta m uito m enos do que as suas
autodefesas. A primeira das suas preocupações é desem-
baraçar-se do m arxismo: só poderão considerar seria
m ente as idéias m arxistas, desde que hajam anulado
previamente o sistem a que as form ula. Assim o seu pen
sam ento é, antes de tudo, essencialm ente um contra*
pensam ento. E, de fato, a maior parte dos seus escritos
são ataques contra o com unism o.
Observa-se um curioso paradoxo: como a direita
vive as profecias do m arxismo com terror, o pensador
burguês empenha-se em negar ao m arxismo todo valor
profético ou apenas m etódico. Elude, porém, esta con
tradição por meio dc um pessimismo catastrófico que
transform a a necessidade em acidente. O socialismo
triunfará: m as, ao m enos, o seu advento não será o ter-
13
mo de uma dialética racional, e sim um cataclismo
carente de sentido. Eis porque o intelectual do Ocidente
se compraz em tremer, e converte o Apocalipse em um
canto de horror: prefere condenar a humanidade ao
absurdo, ao nada, do que pôr-se a sl mesmo em
discussão.
14
O Anticomunista
((n rf
1 ocos 03 problemas são questões de opinião" —
afirma Brlce Paraín. Isto 6 o que postulam todos 03 sis
temas anticomunistas. Através dc diferenças secundá
rias, 6 notável a sua convergência nesto ponto.
A realidade material dos homens c da sua situação,
não conta. Só importam suas reações subjetivas. O so
cialismo se explica não pela força de um sistema de
produção, mas pelo jogo dc vontades cujo3 móveis são
éticos ou afetivos. A necessidade econômica é apenas
uma abstração: a economia, em última análise, depende
15
da psicologia. As classes em geral, o proletariado em
particular, se definem como estados de esp írito1.
Nietzsche foi o primeiro a propor uma interpretação
psicologista da História e da sociedade: “O fraco está
possuído pelo desejo de vingança, pelo ressentim ento; o
forte tem o caráter agressivo” .
Esta noção de ressentimento teve um a extraordiná
ria acolhida entre os pensadores da direita. M ax Scheler
a utilizou não para atacar o cristianismo — que é, se
gundo ele, uma doutrina positiva de amor — m as para
derruir toda ética socialista: o socialismo expressa neces
sariamente um ressentimento contra Deus e contra tudo
o que há de divino no homem. Com algum as nuances,
Scheler adota a afirmação de Rathenau: “A idéia de
justiça repousa sobre a inveja” . Consciente da su a bai
xeza, o “proletariado moral” deseja reduzir ao seu nível
aqueles que lhe são superiores. A impugnação do direito
de propriedade, particularmente, “funda-se n a inveja
dos classes operárias com relação ás classes que não
obtiveram sua riqueza pelo próprio trabalho” . A idéia
revolucionária se reduz à “sublevação dos escravos ani
mados pelo ressentimento” 1.
Esta psicologia poderia parecer um tanto sum ária:
para lhe dar alguma profundidade, recorreu-se à psica
nálise. Max Eastman, em La Science de la révolution,
interpreta a mentalidade operária a partir de Freud.
Henry de Man, cujo livro Au-dc là du marxismo teve
considerável êxito na França por volta de 1928, prefere
Adler: psicanalisando o proletariado, ele diagnostica um
complexo de inferioridade muito acentuado. O espírito
da luta de classes é gerado por um instinto profundo: a
auto-avaliação. O operário se defende de um sentim ento
de deficiência por meio de “reações compensadoras” . A
16
atitude revolucionária 6 um a dessas reações. Em nume*
roso3 estudos posteriores, o complexo de inferioridade é
explicado como a conscgüência de um fenômeno afetivo
mais geral: a frustração, O sentim ento dc frustração
provoca no trabalhador certo desalento c neurose que são
sublimados na atitude revolucionária. Em suma, toda a
desgraça do poletário provém de que elo se crô prole
tário. Esta conclusão coincide com a afirmação de
Spengler: “Economicamente, a classe operária não exis
te” 1. Toynbee desenvolve a mesma tese3: “O proleta
riado, efetivamente, é um estado de espírito mais do
que conseqüência de condições exteriores., , (É) um ele
mento ou um grupo social que, estando no interior dc
uma dada sociedade, verdadeiramente* não faz parte
d e la ... O que realmente distingue o proletariado não
é a pobreza nem o nascim ento humilde, m as a consciôn*
cia e o ressentimento de ser um deserdado” . Jules Mon-
nerot, em La guerre en question , repete quase literal
mente esta definição. Segundo ele, a palavra proletário
designa “aqueles que, n o campo de poder e de ação de
uma civilização, se sentem deserdados” .
O leitor ingênuo se sentiria tentado a perguntar:
por que se sentem deserdados? Monnerot, em Sociologie
du com m unism c\ esboça um a resposta. Desenvolve in*
definidamente a idéia de que a lu ta de classca se reduz
a um conjunto de reações psíquicas cuja origem é q res*
sentimento. O marxismo se constitui dc “uma mescla
2
1 Dtclin dc iOccidrnt, t. I], pâg. 440,
UIlistobe, pág, 416.
3 Em outra passagem, Toynbcc cscrcvc wotàUntmt cm ver dc vet-
dadeiramente.
4 Citarei muitas vezes este livro, que parece ser uma das tunus <ia
anticomunismo contemporâneo. Monnerot pretende ser original pelo
cuidado que põe cm dissimular suas fontes nunca cita. nera sequer
quando transcreve textualmcnte, Na verdade, sc aqui noi interesaa, c
pela quantidade de lugares-comunt que explora: entre outros, o tema
do ressentimento.
17
explosiva: a dialética c o ressentim ento...” O ressenti
mento que em si mobiliza a dialética, coincide com o
ressentimento de uma categoria social cujo nascimento
é espantoso, e cujo ressentimento é, historicamente, ne
cessário.
"...Foi preciso que um ressentimento individual
servido por uma grande força de penetração intelectual
c de síntese, interpretasse um ressentimento coletivo,
para que nascesse esta doutrina da revolução” 0.
Monncrot concorda, pois, cm que o ressentimento
do proletariado é "historicamente necessidade”. Esta
concessão, se a levássemos a sério, bastaria para arrui
nar todas as suas teorias. Pois só há necessidade onde
está a realidade. Se admitimos que esta impõe ao prole
tariado uma tomada de consciência revolucionária, en
tão todo o psicologismo cai por terra, e tornamos a nos
encontrar em face do esquema marxista.
Para agravar a confusão, Monnerot acrescenta uma
nota: “Aqui, estamos de acordo com Hegel sobre a fun
ção do mal como motor histórico". Esta associação torna
escandalosamente manifesta a sua má fé: o mal é uma
realidade objetiva, e ver nele um motor histórico é de
finir a História como um processo objetivamente fun
dado. E, no entanto, ao assimilar a idéia de mal à de
ressentimento, Monnerot a psicologiza. De fato, em todo
o resto do livro, ele, cautelosamente, silencia a respeito
da necessidade histórica. Explica-se o “poder explosivo"
do ressentimento por meio de fatores radicalmente ex
teriores à situação vivida.
E que fatores são esses? Bem, antes de tudo, a ação
dos agitadores, isto é, dos comunistas. O partido comu
nista, que Monnerot batiza de a Causa, dedica-se a ex
plorar e organizar os descontentamentos difusos. “A
Causa utiliza, instiga, trata de levar a um grau decisivo
de virulência ativa os ressentimentos das classes das
massas e dos indivíduos, e consiste precisamente em or-
18
ganizar do exterior os descontentam entos e os descon
tentes de toda e sp é c ie .”
N aturalm ente, estas m anobras não se explicam tam
pouco por um a finalidade objetiva, O Partido, radical-
m ente estranho ao proletariado, n ão persegue fim algum
que possa interessar a este: a tu a sobre ele desde lora,
de form a m ecânica e absurda. Por exem plo, se ele "agita
as m assas coloniais”, n ã o 6 porque tom a a peito seu
desejo de em ancipação; é para "agravar e envenenar
todas as contradições do m undo capitalista” 1.
S eja . M as, por que essa política? Aqui Monnerot
pede em prestada a resposta a B urnham . Jam ais Bur-
nham aprendeu com os “m aquiavélicos” e ensinou aos
pensadores da direita, admirados, esta verdade profun
da: chefes, E stados, partidos, não buscam Jamais no
poder outra coisa senão o poder m esm o. Se um homem
de ação propõe um a finalidade objetiva, como o bem
comum ou a liberdade, é só para m lstificar o sou povo,
e seria ingênuo acreditar n ele. N a verdade, o único tema
da ciência política é “a lu ta pelo poder em sua 3 diversas
formas, confessadas ou dissim uladas". Este postulado
permite a B urnham definir o comunismo como “uma
conspiração m undial tendente à conquista de um mono
pólio do poder, n a época de declínio do capitalismo". E
o próprio M onnerot tam bém identifica a Causa a uma
sociedade secreta que só quer reinar por reinar. Até o
nom e com que a batiza é escolhido para sublinhar o seu
caráter privado e egoísta.
O m aquiavelism o com pleta harmoniosamente a psi
cologia do ressentim ento. Subjetiva nos seus móveis, a
ação revolucionária o é tam bém nos seus fins. Homens
movidos por um a “vontade de poder” amplificam naque
les que se sabem im potentes sentim entos de inferiori
dade, de inveja, de ódio.
J á se percebe as vantagens de tal interpretação.
Em sum a, todas as desventuras dos hom ens são imagi
nárias. É suficiente aplicar-lhes remédios ideais. Inútil
1 Pág. 19.
19
transformar o mundo: 6 suficiente modificar a ldóla que
alguns fazem dele. Nietzsche propunha que se desse aos
deserdados uma ilusão de dignidade^ Henry do Mcm su
gere que se reduzam os complexos de inferioridade de
que sofrem os operários, concedendo-lhes certas vanta
gens sociais; a direita esclarecida reconhece espontanea
mente que é preciso integrar moralmente o proletaria
do na sociedade.
Em suma, se tratará de transformar a m entalidade
dos oprimidos, e não a situaçao que os oprime. Assim
procede cinicamente, nos Estados Unidos, o Big Busi
n e ss1. Serve-se das Public Relations para propagar en
tre os explorados os slogans que interessam aos explo
radores. Criou a técnica da H um an Engineenng , que
serve para dissimular a realidade m aterial da condição
operária por meio de mistificações m orais e afetivas.
Através de um a educação apropriada, de métodos de
mando culdadosamente estudados, esforça-se por con
vencer o proletário de que ele não é um proletário, m as
um cidadão americano. E se ele recusa deixar-se m ano
brar, é considerado como um anormal, e inventou-se
para ele um a terapêutica de “desrecalque” .
É, evidentem ente, um dever de hum anidade comba
ter os agitadores interessados em exasperar a neurose
revolucionária. E é claro que a doutrina que invocam
para servir aos seus tenebrosos desígnios não pode as
pirar a verdade algum a. Nossos anticom unistas não são
tão ingênuos a ponto de lh e atribuir um conteúdo em
que se refletisse algum a realidade. Aprenderam com
George 3 Sorel que o m ito é um a força dinâmica que ava
liam os não intelectualm ente, m as em termos de eficá
c ia . E sabem , pelos maquiavélicos, que as idéias são ar
m a s de guerra com as quais se promovem atitudes afe
tiv a s e a tiv a s. Certos especialistas alegam conhecer c
criticar cien tificam en te o m arxism o, m as a grande maio
ria dos seu s adversários desdenha conhccê-lo. A doutri-
20
n a do M arx, E ngels, L ênln — confessa Thierry M aulnícr
— “é, sem dúvida, quase desconhecida por aqueles que
a com batem , ou crêem fazê-lo". B u m h a m cita, concor
dando, esta frase de Pareto: "Quanto a determinar o
valor social do m arxism o, saber se a teoria m arxista da
m als-valla é verdadeira o u falsa, 6 quase tão Importante
como saber se o batism o ap aga o pecado quando se quer
determ inar o valor social d o cristianism o. Isto não tem
a m enor Im portância” .
O m arxism o, ta n to com o a situação que ele preten
de interpretar, se explica por coincidências subjetivas,
É um a das form as desse hum anitarism o moderno que,
segundo Scheler, “é apenas o efeito de u m ódio reprimi
do contra a fam ília e o m elo". O am or a "tudo o que
tem aspecto hum ano", traduz u m ódio a D eu s. É tam
bém "um protesto contra o am or à p átria” .
Maíg fun d am en talm en te, é u m a m aneira de escapar
a si m esm o e de satisfazer o ódio que alguém sente por
si m esm o. D e M an en cara o socialism o com m ais bene
volência: o sen tid o m oral-lndlvidual seria o seu verda
deiro móvel. Por razões táticas, o socialista deve atribuir
à su a doutrina u m alcance objetivo; m as Isto não ó se
não um a dissim ulação. E ntre outros, M arx “só apresen
tou o socialism o com o necessário porque o considerava
— em virtude de um juízo m oral tacitaracntc suposto
— como desejável". E ncontram os um a Idéia análoga em
Spengler: “Os partidos políticos, hoje com o nos tempos
helênicos, enobreceram de algum a m aneira certos gru
pos cujo nível de vida visavam tornar m ais satisfatório,
elevando-os ao p lano de um a ordem política, como o fez
Marx para os operários da Indústria” . M ais que a uma
preocupação ética, M onnerot calcu la que Marx obede
ceu a um im pulso irracional. Marx, e depois dele 03
m arxistas, se deixaram Impressionar dem ais pelo surgi
mento e apogeu do cap italism o. "O contragolpe de um
traumatism o afetivo determ inou a perspectiva que lhes
6 própria.” Conclui-se, pois, que Marx 6 um homem do
ressentimento, assim com o aquelc3 a quem se dirige e
que aderem n ele.
21
Ressentimento, vontade Ética, traumatismo: do
qualquer modo, há, na origem do marxismo, uma meta
morfose individual. A sua fortuna se explica por razões
extrínsecas. Segundo Pareto, 6 um fato social que pode
explicar-se por leis sociológicas; em particular, a lei das
“derivações” e a do “resíduo”, Inventadas pelo próprio
Pareto. Toynbee vé no marxismo “a transposição do
Apocalipse Judeu”. Caillols, uma ortodoxia; Aron atribui
seu poder explosivo à combinação de um tema cristão
com um tema prometéleo e um tema racíonalista. Po
rém, sobretudo, o que todo3 eles repetem incansavel
mente é que o marxismo estimula o instinto religioso
das mascas: é uma religião.
“líão há socialismo sem uma religião qualquer” —
escreve Be ila n . A tendência psíquica para o socialismo
tem sua causa mais além de toda realidade no mundo” .
“A UEss é uma superstição” — escreve Aron. E,
em Les guerres en chccíne desenvolve amplamente esta
idéia temada de Toynbee: “O marasmo é uma heresia
cristã”.
Em La liberte de Vesprit, em julho de 1949, Stanislas
Fumei agradece a Berdiaefí por lhe haver revelado, há
muitos anos, que o marxismo é uma religião. E conclui
â maneira de Pareto: “Pouco importam seus dogmas;
o que conta é o domínio sobre as almas, enquanto hou
ver almas. £ a operação mágica ou tática, a ação do
sacerdote que subjuga 03 espíritos para estar em condi
ções de dobrar as vontades em nome de uma divindade
qualquer”.
Todo o livro de Monnerot funda-se nessa identifi
cação. O comunismo é “0 Islã do século XX” . “A Causa
é a imagem religiosa de uma divisão da humanidade” .
“A empresa comunista é uma empresa religiosa”. “O
comunismo se apresenta, ao mesmo tempo, como reli
gião secular c como Estado universal. Religião secular,
ele drena os ressentimentos, organiza e toma eficazes os
1 PÍ£>. 13Cm.
22
impulsos que rebelam oa hom ens contra as sociedades
cm que nasceram , acelera C3sc estado de separação de
«1 mcsmo3 c de cisão de um a parte de suas forças vivas,
o qual precipita os ritm os da dissolução c da destruição.”
O socialismo é um "messianismo da espécie h u m ana” .
Cabo citar ainda o artigo "Fanatism e des M ands-
tes”, no qual Thierry M aulníer se em penha em transpor
o marxism o em termos religiosos. O Paraíso — diz ele
— ío l transportado do céu para o Futuro; com o a cria
ção histórica foi elevada por M arx ao absoluto do valor,
encontramos em su a doutrina um a transcendência su-
pra-histórica dos valores e a prom essa de u m a salvação
em outro m undo. H á, pois, um a religião m arxista: "a
religião da hum anidade por conquistar, ou da h u m an i
dade por fazer” .
O método que consiste em separar o com unism o de
suas bases reais e deGnl-lo com o u m a pura forma, evi-
dencia-se ainda m ais em outro escrito de Thierry Maul-
nler: La face de m édusc d u com m unism e. O autor sc
pergunta: Por que toda revolução im plica u m terror?
Afasta desdenhosam ente todas a s razões objetivas: en
tre outras, a idéia de que um a ten tativa de expropriação
não se pode cumprir sem violência, lh e é com pletam ente
estranha. Segundo ele, é preciso buscar a exnllcação do
Terror nas “forças tenebrosas do hom em coletivo” o
Terror é "o próprio fundo do inconsciente coletivo, sobre
o qual se edifica o aparato da justiça revolucionária”
& houve um Terror em 1793, 6 porque pelos fins dó
século X V m “com eçava-se a sentir tédio” . O Terror
nasce de urna “fascinação tTágica da m orte” c da “má
consciência Intelectual que 6 Inerente a todo fanatism o”'
suas fontes sao o m edo e a vontade de poder. Também
é a explosão vitoriosa do
ressentim ento . É um a questão de “bruxaria social” c
como tal exige vitim as expiatórias. O Terror representa
conjuI ^ ? e de Purificação, o aparato litúr-
gico, o ofício e o M istério”. “Terminada a festa, se íns-
T ^ o r 0» ^ * 0, A .oreÍa d0 Terror so torna a Igreja do
Terror. Já se vo que esta Igreja 6 maquiavélica: trata
23
tíe realizar “um confisco total do indivíduo em proveito
da sociedade”.
Ei3, portanto, acertadas as contas d o m arxism o: ele
sc reduz a um fenômeno psicossoeiológico d estitu íd o de
significação interna; é uma religião em qu e n ã o con tam
nem a Divindade nem os dogmas, m a s so m en te o m a -
quiavelismo dos sacerdotes, e não p assa d e m ero in str u
m ento da Causa que explora em seu proveito a credu
lidade humana.
Entretanto, permanece um problem a que m o lesta
singularmente os intelectuais de direita: a e x istên cia de
intelectuais de esquerda. Não são deserdados com o 0 3
proletários, não manifestam essa vontade d e poder que
anim a 03 agitadores: como se explica su a aberração?
Inútil procurar mais adiante: bastarão a lg u m a s adap
tações, e ainda aqui a noção de ressen tim en to terá ser
ventia. Dccreta-se que os membros da Intclligentzia __
nascidos que fossem em algum a fam ília b u rgu esa d a
França — se sentem exilados n a socied ad e. E m todo
caso. nela não ocupam os lugares m ais im p ortan tes, c
l:>lo basta paru que a odeiem e odeiem a sl m esm o s.
O Intelectual — diz Aron — d etesta 0 3 b u rgu eses.
Aron não imagina nem por um Instante que essa hosU -
lidndc possa scr 0 reverso dc um sen tim en to p ositivo cm
relação 1103 outros J io m e n 3 se g u n d o ele, decorre evid en -
tem ente dc um complexo dc inferioridade. O s in te le c
tuais "não podem chegar ao primeiro p la n o se n ã o e li
m inando a categoria rociai que no O cidente, devo seu
poder u fortuna e esta á sorte nos negócios, à h eran ça
ou aos ta le n to recepcionais". Assim, "íoge-sc pura a 1
24
metrópole vermelha porque se detesta a sociedade em
que se vive” 3/
M onncrot ten tou explicações um pouco m ais sutis,
m as sô conseguiu dissimular a complexidade à custa de
um a obscuridade tota l. Ê preciso citar, entre outras, a
passagem em que ele evoca a m aneira como os comu
nistas lograram controlar a bomba atôm ica: “Usando
métodos psicológicos, jogando com pretextos religiosos,
morais, m etafísicos, os com unistas atraem para si 03
sábios que permitiram fabricar estas arm as. Trabalham
no sentido de que constitua um imperativo moral, para
aqueles cujos cálculos e descobrimentos possibilitaram
as novas armas, a entrega de suas fórmulas, não dire-
tam ente à Rússia e aos soldados jrussos, mas aos servi
dores , aos emissários, aos protagonistas de um a concep
ção do m undo “mais justa"
Como se opera este trabalho? E m que consistem
tais métodos? M onnerot 0 explica mai 3 adiante: “Os
políticos com unistas sabem que se surpreende cada ho-
2 Lcs guerrtM en chtilne, pigi. 46M 65. Pode causar espanto qus
Aron faça 0 mesmo conceito do intelectual que u n u Vrançoiíc Guí-
roíul (cronista social), c o represente como um amargurado que ta
wníc fascinado pela riqueza c o prestígio social. livldcntemcnter c>u
é u lógica dc imt subjctlvismo ievado até o absurdo. Separado de
>ua atividade, c esta «parada de seus fJm, o intelectual uuo é, m n n
perspectiva maquiavélica, mah do que uma vontade de poder medio-
crcmcntc satisfeita, Mas 6 assim, verdadeiramente, que o próprio Aron
interpreta os seus projetos? Será que acredita sinceramente que Iicrrj
Jolfet Curic trema dc despeito ao pensar na duquesa dc VYindJor, o
que Üfiittcin so morda dc raiva por i i j o ser o Aga-Khan? Sc tais sen
tlincnioi existem, J>u> tó pode ocorrer entre 01 intelectuais burgueses,
M efelívamente reconhecem 01 valores burgueses. Por outro lado, ó
verdade que “01 membros ativos'* dc sua ciasse manifestam certo dev
dém por esses Ideólogos conccptlvos, c apenas entreabrem (4 estes o\
« uh m IOm . Ü intelectual dc esquerda, por sua vez, nau tem nenhum
desejo de freqücntádos, pois não admite, absolutamente, que o poder
0 n fortuna bastem para colocar um homem no primeira plano. Só
por um fenômeno dc projeção 6 que Aron ou Monncrot podem utrfr
bulrdhc um gãncro do vuloi fração que lhe é ínteiraments estranho,
t SoM oafc dti communistnc, pág. 130, ti o autor qds sublinha,
25
mem na necessidade, n a p aixão, n o v ício, n a fraqueza
que o seduz; o ponto fraco de ca d a in d ivíd u o, c u ja co
operação se quer conquistar, c o n stitu i o ponto forte de
tais grupos.”
Supomos, portanto, que u m a eq u ip e d e psicotécnir
cos comunistas percorre os E stados U n id os, oferecendo
aos cientistas atôm icos dinheiro, h o n ra s, m u lh eres, dro
gas, uísque, efebos, conform e o p o n to fra co de ca d a u m .
Como a exploração deste ponto fraco con segu e desper
tar no coração dos cien tistas o “im p erativo m oral”? O
processo continua sendo m isterioso. P ara elu cid ar este
mistério, convém recorrer a u m a p sico lo g ia em profun
didade. No capítulo consagrado à “p sico lo g ia das reli
giões seculares”, M onnerot ex p lica q u e os indivíduos
atacados por um a neurose privad a e n co n tra m alívio
para os seus m ales ao p articiparem de u m a n eu rose co
letiva. Descreve copiosam ente os delírios de qu e são víti
mas coletivam ente os in telectu a is c o m u n ista s. M as, é de
perguntar outra vez: como se p eg a a doença? Por que
Monnerot não foi contagiado por ela? C om o ú ltim o re
curso, M onnerot se vale da exp licação d e A ron: o in te
lectual de esquerda é m ovido p elo r essen tim en to .
O comunismo “se apresenta co m o u m a prom oção
para aqueles que crêem n ão ter n a d a a perder e tudo
a ganhar num a m udança radical: tra ta -se e n t ã o .. . de
todos aqueles que, sem serem rea lm en te deserdados, se
sentem entretanto à m argem (é o caso p a rticu la r dos
que constituem a Intelligentzia) ” .
Apesar do jargão soeiológico-p sican alítico qu e em
prega* M onnerot não oferece, p ois, n e n h u m a solu ção
precisa ao problema: por que certos in te le c tu a is se v in
culam à esquerda? A rthur K oestler procurou as respos
tas na fisiologia; segundo ele, con vém recorrer “à fad iga
das sinapses” *. T al fadiga provém de “u m d eb ilitam en to
geral das conexões entre as célu la s cerebrais p elas quais
deveria passar a im pulsão n e r v o s a .. . O violentam erito
indefinido da consciência do su jeito p od e produzir e sta I
26
fadiga” . Em um recente número da revista Preuves,
Koestler se deu o trabalho de redigir um Pequeno guia
das neuroses políticas2. Mas, no conjunto, todas estas
explicações parecem insuficientes aos próprios elemen
tos da direita. Então, se limitam a observar que a xrass
e os comunistas possuem “métodos psíquicos”, tanto
mais temíveis quanto mais secretos.
Para explicar a carta que Geneviève de Galard, a
famosa enfermeira de Dien Bien Phu, enviara a Ho Chi-
Minh, e certas declarações da esposa do General de Cas-
tries, o jornal Dimanche-Matin mencionava as técnicas
de “lavagem do cérebro”. Possuindo drogas, filtros, ma
lefícios e prestígios, o Partido Comunista é um bruxo
pelo qual as massas e certos indivíduos são obscuramen
te fascinados.
27
A Teoria da Elite
30
Paul Léautaud encontram nela uma pressurosa aco
lhida.
Há, porém, uma grave dificuldade: aqueles mesmo
que denunciam a abjeção do homem, não são também
homens? Se toda consciência é alucinada, toda ação
interessada, como nos vão convencer de que eles pos
suem a verdade e que seus fins são objetivamente váli
dos? Levando o cinismo às suas últimas conseqüência3,
seríamos obrigados a concluir com Sade: “Todas as pai
xões têm dois sentidos, Jullette, um muito injusto, rela
tivo à vítima, e o outro, slngularmente justo, em rela
ção àquele que a exerce". Mas então renunciamos a toda
pretensão de justiça universal: cada qual luta por si
mesmo.
Este realismo conduziría ao reconhecimento da luta
de classes. E é, precisamente, o que se quer evitar, A
burguesia deseja ter o Direito ao seu lado. E para isto
é preciso que os seus pensadores a elevem acima da
humanidade.
Durante muito tempo, a religião fez as vezes de
ideologia para os privilegiados. Pervertido pelo pecado
original, cego, culpado, o homem aparece à luz do cris
tianismo como um antivalor. Não há para ele senão
uma salvação: submeter-se à vontade divina, E esta se
manifesta através do mundo, tal como é. O privilegiado
aceita, sem dúvida, com toda humildade, o lugar que
lhe está reservado neste mundo: Deus o escolheu, e isto
basta para fundar o seu direito. Quanto aos deserdadas,
só a resignação lhes permitirá merecer as compensações
celestiais que restabelecem a justiça atravé3 da eterni
dade.
“Todo poder vem de Deus" — escrevia um monge
de Saint-Laud, pelo ano 1000. “Deus mesmo quis que
entre os homens uns fossem senhores e os outros servos,
de tal modo que o senhores devem venerar e amar a
Deus, c os servos devem venerar e amar 03 seus se
nhores.”
A burguesia capitalista, por sua vez. logo lomáu
Deus a seu serviço. Em 1701, falando aos que e!e cha
mava “os ecônomos da Providência", 0 Rev, Pe. Hyácin-
31
the de Gasquet declarava: “Jesus Cristo m esm o é a vos:
sa caução; é ainda entre as suas m ãos divinas e sobré
a sua cabeça adorável que vás colocais o capital” .
Os filósofos lutaram no século XVIII pela liberdade
de pensamento; mas a burguesia, um a vez n o poder,
compreendeu o quanto era necessário entreter o povo
com “esperanças religiosas”, ao m esm o tem po que, as
sim, garantia para si uma boa consciência. Ainda hoje
existe um pensamento cristão que se vale de Deus para
justificar a exploração do homem pelo hom em . “O ho
mem — escreve Paul Claudel, em suas Mémoires impro
vises — é uma matéria-prima a que é preciso formular
as perguntas necessárias para tirar dele tudo o que pode
dar. Por conseguinte, é uma tolice condenar a explora
ção do homem pelo homem. Ao contrário, o hom em é
uma coisa que necessita ser explorada.”
Entretanto, o cristianismo tornou-se um a doutrina
ambígua. Considerando que todo hom em é um a criatura
de Deus, certos cristãos insistem sobre a dignidade de
cada um e a fundamental igualdade de todos: negam
que Deus esteja a soldo dos poderosos deste m u n d o. De
qualquer modo, o recurso à religião não pode bastar ao
burguês, pelo fato de que concebe Deus à su a im agem:
não como um grão-senhor de vontade arbitrária, m as
como um espírito lúcido cujas decisões são racionalm en
te motivadas. Aliás, não deixa de invocá-lo como caução
da ordem estabelecida, embora antes seja preciso de
monstrar que esta ordem mereça um apoio divino. En
fim, o fato é que a cotação de Deus baixou m uito. Sua
existência é incerta demais, longínqua demais, seus de
sígnios são por demais ocultos para que se possa fazê-lo
intervir de forma convincente como garantia das hierar
quias terrestres. É preciso achar outra coisa.
É preciso achar. Cairiamos num a indiferença niilis
ta se, depois de ter aviltado o homem, fracassássemos
em salvar o burguês. Tendo negado a im portância das
diferenças materiais que opõem concretam ente as clas
ses, restabeleceremos entre elas um a outra espécie de
heterogeneidade; a classe privilegiada participa^ de uma
realidade transcendente que sublima su a existência. O
32
cinismo reacionário se acompanha necessariamente de
uma m ística, Drieu o compreendia multo bem quando
deplorava não acreditar em Deus: “Não h á senão uma
escusa para fugir dos homens; Deus” *. Havia nisso um
excesso de boa íé . Mais tarde, ainda sem crer, ele saiu
desse embaraço, subordinando a “coisa humana” a al
guma coisa diferente que chamava o divino. Em suas
Notes pour comprendre ce siècle, querendo demonstrar
que se deve aceitar o fascismo, escreve: "O homem, ao
perder o sentido da glória, perde o sentido da imorta
lidade, e ao perder o sentido da imortalidade, perde o
da divindade. Mas se a divindade morre, a natureza per
de esplendor, e a coisa humana imperceptivelmente sc
degrada e torna-se fastidiosa” .
Ateu, Drieu evidentemente não concebe a divindade
como uma realidade positiva e concreta: para ele. como
para muitos outross, é a projeção transcendente de uma
qualidade imanente a certos homens e que os eleva aci
ma da humanidade. Conforme as circunstâncias, esta
virtude singular assume diversas aparências: já veremos
como a derrota nazista provocou, neste plano, curiosas
metamorfoses. Mas, em todo o caso, sua definição é ne
gativa: é considerada sobre-humana porque é inumana;
ela é outra coisa que o homem, aquilo que não se encon
tra entre os hom ens. E o pensador burguês converte
essa falta em uma misteriosa substância que unicamen
te a burguesia possulria. Pela sua mediação, os interes
ses da burguesia se convertem em valores; a existência
do privilegiado vem a ser sagrada; suas posses, um di
reito; seu exercício, um dever. Os privilegiados se cha
mam “a Elite”; os privilégios são superloridades; seu
conjunto é a Civilização. A massa, porém, é nada. E
pode-se então afirmar que a desigualdade satisfaz a
justiça.1
33
A atitude m ais radicalm ente aristocrática consiste
cm cindir a hum anidade em duas, e considerar essa cisão
como coisa dada. N ietzsche tom ou de M aquiavel e de
Gobineau a hierarquia que opõe os senhores aos escra
vos e, como eles, fu n d a e sta oposição sobre u m a questão
de raça. S ó a existên cia dos grandes — os nobres, os
heróis — tem um a significação; os outros hom ens cons
tituem a m assa: “A areia da hum an id ad e: todos muito
iguais, m uito pequenos, m u ito redondos” . N ietzsche de
clara: “A m assa não m e parece m erecer atenção senão
sob três pontos de v is t a .. . com o cópia difusa dos gran
des h o m e n s.. . com o resistência que encontram os gran
d e s ... com o instrum ento dos gran d es. No m ais, que o
diabo e as estatísticas os carreguem ” .
Antes da ú ltim a guerra, a tradição nietzschiana
estava ainda viva. Spengler, particularm ente, adota a
idéia de que a nobreza se explica pelos “fatos elem enta
res do sangue", e que só ela possui um a experiência his
tórica, um a existên cia real. “O acaso cham ado hom em ”
não é m ais do que um m om en to da história planetária;
depende do insondável m istério das flutuações cósmi
ca s. A vida e a H istória são um a m esm a coisa. “No
sentido supremo, a p olítica é a vida e a vida é a polí
tica” . Mas seria prim ário crer que a vida, que é a subs
tância m esm a d a realidade hum ana, habite em todo in
divíduo vivo. A vida se en carn a n a s raças. Em sua
forma im ediata, a raça se realiza n a hum anidade cam
ponesa, que é, por assim dizer, a natureza; nas alta 3
culturas, ela se eleva à m aior p otência, e n a nobreza se
realiza cabalm ente. “A nobreza é a ordem propriamente
dita, a quintessência da raça e do san gu e, um a corrente
existencial sem form a acabada p o ssív e l.” H á um a pro
funda afinidade entre a nobreza e o povo, fundada nas
realidades da raça, da lín gu a, da paisagem , que é dotada
de um a alm a e possui tam bém u m a realidade substan
cial. M as n as dem ais ordens essa realidade se degrada.
O clero é, n a verdade, um a não-ordem , se opõe à nobre
za como o espaço ao tem po: é “a não-raça, o ser que
desperta livre, a-tem poral, a-histórico” . Q uanto à bur
guesia, surgiu do con flito entre as cidades c o povo cam
34
ponês, su a unidade 6 “sim plesm ente de contradição” e
não possui su b stân cia a lg u m a . Com ela desenvolvem -se
a econom ia e a ciência; e la se con stitu i em partidas;
ocorre, en tão, o su rgim en to d a m assa, com o que a His
tória se d estrói. “A m assa é o inform e absoluto, que
persegue com ódio cada espécie de form a, assim com o
todas as diferenças de posição, a propriedade con stitu í
da, o saber co n stitu íd o ." É a expressão d a H istória que
acaba n a não-H istória: a m assa é o fim , o n ad a radical".
Opondo ao hom em de Elite, a o Herói, o hom em das
m assas, o indivíduo considerado n a su a existên cia m a te
rial, enquanto subm etido à necessidade, Spengler es
creve: “N utrir-se e com bater: a diferença de grau e n
tre estes dois aspectos da vida n o s é dada p ela sua rela
ção com a m o r te .. . 1 N ão h á oposição m aior do que a
que existe entre a m orte p ela fom e e o m orte do herói.
Econom icam ente, a vida é am eaçada, degradada, rebai
xada pelo h o m e m ... A p olítica sacrifica 03 h om ens por
um f i m . . . a econom ia apenas o s fa z m orrer, A guerra
cria, a fom e destrói todas as grandes c o is a s .. . A fom e
excita essa espécie de a n g ú stia desprezível, vulgar, in-
teiram ente a-m etafísica, sob a qual se quebra de repente
o m olde form al de um a cultura, e com eça a pura lu ta
da besta hum ana pela existência''.
A burguesia faz coro com Spengler cada v ez que
acusa de “m aterialism o sórdido” os h om en s que se p*er-
m item sen tir fom e. E ntretanto, essa altiva m oral guer
reira lhe em baraça um pouco, porque N ietzschc Incluía,
entre os grãos de areia que com põe a m assa, prcclsa-
m ente os burgueses. Na confusão deliberada da ideolo
gia nazista, m uitos burgueses associaram a su a causa
h causa da “raça dos senhores": os senhores perderam
a guerra. Por respeitosa que con tin u e sendo para com
as hierarquias de sangue, a burguesia n ão tem m ais m o
tivos para subordinar a estas todas a s dem ais hierar
quias: o csplrltualism o leva vantagem sobre 0 racism o.
35
E, sob csíc ponto de vista, ela está m ais próxim a de
Scheler do que de Spengler. Com efeito, para Scheler,
o valor so define como "certa nobreza vital que nos apro
xima do divino”. Scheler sustenta um ponto essencial:
o vaiar não é coisa que se adquira; enquanto vital, está
vinculado à raça, é inato, embora só o fator racial não
baste para fundar o valor, Ele aparece com o m ediação
para uma transcendência: certas graças espirituais são
dispensadas aos homens de acordo com um a predestina
ção orgânica. Entre as figuras exem plares cuja irradia
ção ajuda os homens a se elevarem até D eus, o Herói
ocupa um alto lugar, m as a figura do Gênio está ainda
mais alto e a do Santo situa-se no cim o da hierarquia.
Com estas diferenças de m atiz, a m oral de Scheler
é tão implacável para com a "besta h u m an a” quanto as
de Níetzsche e Spengler. Já vimos que ele só pode atri
buir ao ressentimento “o amor por tudo o que ten h a
aspecto humano”. Efetivamente, para Scheler, esse amor
“se fixa primeiro sobre os aspectos mais baixos e ani
malescos da natureza humana, isto é, precisam ente o que
todos os homens têm em comum ” i 2 . E acrescenta: “S en
timos despontar sob esta hum anidade u m verdadeiro
rancor dos valores positivos, que precisam ente n ão têm
nada de genérico” . O conjunto genérico dos h om ens é
o “proletariado moral” que, por ódio ou ressentim ento
contra os que possuem valores, presum e-se criador de
valores: presunção ridícula! “A m assa é regida absoluta
mente pelas mesmas leis que regem os rebanhos de an i
mais. Numa massa em estado bruto, o hom em voltaria
a ser. simplesmente, um anim al” 8.
A transição do racismo para o espiritualism o se
completa com Jaspers. Alemão, vivam ente interessado
pelo nazismo, Jaspers hoje professa su as idéias em um a
Alemanha vencida: traduz, pois, as idéias arrogantes de
Spengler, de Scheler, para um a linguagem de ven cid o. O
36
homem, reduzido a si mesmo, lhe parece — como parecia
àqueles — destituído de significação. "Não é o homem
como exemplar de existência empírica que é digno de
amor: é a nobreza possível em cada indivíduo." Mas a
idéia de nobreza se modificou profundamente; agora, já
não é monopólio de uma classe, de um a raça, de uma cas
ta: é uma qualidade da alma, certa "abertura ao Trans
cendente” . Porque, acima do mundo empírico h á o
Transcendente: só ele existe verdadeiramente, só ele va
le. Os homens só têm dignidade na medida em que
participam do seu Ser. Todos -podem participar dele:
neste sentido, a moral de Jaspers ganha uma aparência
democrática. Porém, n a verdade, essa moral reclama
uma sociedade pluralista e hierarquizada; o Transcen
dente não se “abre” senão às formas individualizadas:
ao “povo” que “tem uma alm a”, e não à m assa infor
me; aos indivíduos arraigados a essas formas substan
ciais que são a pátria, a fam ília, a raça, a civilização —
e não ao homem das m assas. Assim, a nobreza está re
servada a um punhado de seres. “O problema da nobre
za humana consiste hoje em preservar a atividade dos
melhores, e estes se reduzem a um a minoria .”
Encerrados n a sua existência empírica, não tendo
entre si senão vínculos contingentes, os hom ens na sua
imensa maioria não são m ais do que uma m assa na qual
a substância humana é negada. “O homem como mem
bro da massa já não é ele m esm o. A m assa é, antes de
tudo, um elemento dissolvente.” “A m assa não admite
hierarquia; é inconsistente, uniforme, quantitativa, sem
tipo e sem tradição, amorfa, vazia. É o terreno apropria
do para a propaganda, sugestionável, irresponsável, seu
nível de consciência é o m ais b aixo.”
Há, pois, unanimidade no pensam ento de direita: o
homem no qual não se encarna outra coisa do que ele
mesmo — sangue, vida, transcendência — é “o nada ra
dical” . Trata-se, então, de demonstrar que ele não pos
sui existência em nenhum domínio. Sua própria histó
ria lhe escapa, e ele é incapaz de transcendê-la.
37
A. História
39
são a s m assa s que fazem a H istória, m a s o s Estados-
M aiores. Se ela m u d a e se ren ova é só porque h á con
flitos entre as elites que am b icion am o poder: algum as
são liquidadas, outras triu n fa m . A e sta diversidade cor
responde o pluralism o das civilizações: en tre esta s exis
tem relações de causalidade, m a s s u a su cessão n ão deixa
de ser descon tín u a; a su b stitu içã o de u m a equipe por
outra é um avatar se m n e n h u m a finalid ad e.
D e u m a parte, os indivíduos que conduzem o m un
do n ã o visam a n en h u m fim objetivo: querem o poder
pelo poder. D e o u tra p arte, n e n h u m a evolução social
poderia m elhorar a sorte do h om em : pretender libertá-
lo da necessidade é m a is u m a m istificação, já que ele é,
por definição, “um a n im al que deseja” 1. T al doutrina
não é exatam en te catastrófica, n ã o fa la de decadência
nem de Apocalipse. B u rn h am prevê u m a evolução racio
nal do capitalism o: ao regim e que p rivilegia os possui
dores deve suceder “a era dos organizadores”, que subor
dinará o cap ital à tecnocracia. M as, em com pensação,
esta doutrina n eg a todo sentido à H istória, que parece
ser um a agitação im becil. As elites disp u tam absurda
m ente um poder que n ã o lh es servirá para nada: os ho
m ens jam ais g a n h am nada.
Quando querem n os desiludir da p olítica e desacredi
tar a idéia de revolução, os an ticom u n istas de bom gra
do usurpam as idéias de B urnham : Aron e Monnerot,
entre outros, o copiam ao lon go de páginas. Para com
bater o “rom antism o revolucionário”, Aron repete inde
finidam ente que a revolução se reduz a u m a m udança
do pessoal dirigente. O ceticism o desabusado que inspira
seus artigos em ana diretam ente da visão maquiavélica
40
de Burnham, Quanto a Monnerot, escreve1: "Revolução
mundial significa transtorno mundial na circulação das
elites” . "As revoluções denotam o fato de que as elites
deixam a desejar”. Etc.
No entanto, já vimos que o pessimismo da cüreita
se faz acompanhar, necessariamente, de uma mística.
Ora, se Burnham fornece armas polêmicas contra as
"ilusões” do socialismo, a contrapartida positiva de sua
obra é nitidamente deficiente. Depois de mostrar que a
História é absurda, em nome de que salvará esta Elite
que precisamente faz a História? Sc o que pretendem
cegamente é um poder vazio, como nos interessariam o;
Eleitos pela sua causa? Na verdade, Burnham está tuo
freneticamente alienado pelo anticomunismo, que nem
sente necessidade de justificá-lo. É norte-americano:
quer que os Estados Unidos dominem o mundo, c i3to 6
tudo. Entretanto, lhe ocorre uma vez perguntar, ccm
fingida ingenuidade: “Não será desejável um império
mundial comunista?” 2 Sua resposta é visivelmente em*
baraçosa. “Uma economia comunista não aumentaria o
bem-estar material da maioria da humanidade.” Portou
duas páginas adiante admite que: “Mais da metade doi
habitantes da terra já estão no nível mais baixo possí
vel, sua condição material não poderia piorar mais ain
da, poderia até melhorar”. Mais da metade, não é a
maioria? A menos que um Eleito valha por dois ou dez
habitantes ordinários da terra. Burnham abandona às
pressas o terreno incerto das matemáticas. Há outros
valores econômicos, e não apenas o bem-estar material:
a segurança, a liberdade. E além dos valores econômi
cos, há em nossa civilização “ideais” — cuja abolição,
por outro lado, “pode ser julgada preferível” (sic) —
mas que enfim são ideais “ao menos, parcialmentc cpc-
rantes". São cies: o valor absoluto da pessoa humana,
41
o ideal de liberdade e de dignidade individual, como
também o ideal de um a verdade objetiva. B urnham con
clui: “Embora em nossa história e em todas as histórias
a força haja decidido n a prática o que as leis declaram
justo, sempre nos rebelamos contra a idéia de que a
força possa ser verdadeiramente ju sta ”. M anter a idéia
de uma justiça praticam ente inexistente não é um
“ideal” nada admirável, e não parece lógico condenar
“mais da metade dos habitantes da terra” a permane
cer “no nível mais baixo possível” em nom e do “valor
absoluto da pessoa hum ana”. Q uanto à “verdade obje
tiva”, nos perguntamos em que pode ela interessar a um
maquiavélico convicto. N a verdade, os discípulos de
Burnham se sentem tão perturbados quanto ele quando
se lhes pergunta por que combatem. Aron só se sente
à vontade quando golpeia as pueris ilusões dos seus
adversários; m as quando deve apresentar razões morais
para defender os Estados Unidos e o capitalism o, lhe
falta convicção. “Os velhos valores cristãos e hum anis
tas”, que se podem opor ao com unism o, ele nem tenta de
finir nem sequer fundam entar. “A verdade é para mim
o valor suDremo” — diz um a vez. Por que? E de que
verdade se’ trata? De fato, o pessim ism o maquiavélico é
tão severo com a Elite quanto com as m assas; nessa
perspectiva só se pode contem plar com um cinismo sem
esperança o jogo absurdo das paixões hum anas. Para
inventar um a m ística, é m elhor procurar em outra
parte.
Os sistem as de Spengler e de Toynbee oferecem
mais recursos. Sua visão do m undo é m ais trágica que
a dos maquiavélicos. Ao subordinar a História ao Cos
mos, e condenando à morte todas as civilizações cujo
nascimento se rege por casualidades inum anas, privam
a humanidade de todo porvir e proclam am su a insigni
ficância. Porém, justam ente porque existe para eles
outra coisa além do hom em , podem propor a certos ho
mens um a salvação sobrenatural. D entro de cada ciclo
histórico, exaltam form as que transcedem a História e
cuja existência se liga harm oniosam ente aos interesses
do3 privilegiados.
42
“N a História, trata-se da vida, sempre e unicam ente
a vida, a i-aça, a vitória da vontade de poder, n ão a das
verdades, das invenções ou do dinheiro” — escreve
Spengler n a conclusão do seu livro. N ão som ente o papel
da técnica e da econom ia lhe parece secundário, m as
adem ais o hom em , enquanto produtor e “produto do seu
produto”, é jogado fora da História. O objeto da H istó
ria, su a realidade, nada tem a ver com “a existência da
besta hum ana".
“Vejo n a H istória vivente — escreve — a im agem
de um a perpétua form ação e transform ação, de um
futuro e de um a hecatom be m ilagrosa das formas or
gân icas”.
E stas form as são as culturas, as quais apresentam ,
todas, analogias entre si, fundadas no “insondável m is
tério das flutuações cósm icas", em bora se desenvolvam
separadam ente, de m aneira descontínua: um a após
outra, elas crescem a té o m om ento em que tendo reali
zado seu destino, isto é, u m a civilização, declinam um a
depois da outra. “U m a cu ltu ra nasce n o m om ento em
que desperta um a grande alm a; u m a cultura morre,
quando a alm a realizou a su m a in teira das suas p ossi
bilidades sob a form a de povos, línguas, doutrinas reli
giosas, artes, Estados, ciências, e assim volta ao estado
psíquico prim ário”. Em su a conclusão, Spengler assim
resum e o dram a desses nascim entos e m ortes: "O dra
m a de um a alta cultura, todo esse m undo m aravilhoso
de divindades, de artes, de pensam entos, de batalhas, de
cidades, term ina novam ente nos fatos elem entares do
sangue eterno, que é u m a só e a m esm a coisa que a
onda cósm ica em eterna circulação. O ser que havia des
pertado n a claridade, rico em plasticidade, torna a cair
no silêncio, a serviço do ser, com o no-lo ensinam os im
périos da China. O tem po triu n fa sobre o espaço e é ele,
em su a m archa inexorável, que canaliza sobre este p la
n eta o acaso passageiro cham ado cu ltu ra no acaso
cham ado hom em , form a n a qual o acaso cham ado vida
transcorre um m om ento enquanto no m undo lum inoso
dos nossos olhos os horizontes fluidos da história ter
restre e da história planetária se abrem diante de n ós”.
43
O q u e so b ressa i c o m c la r e z a d e s ta evocação cósmica,
a tr a v é s d o jo g o in in te lig ív e l d o s a c a so s, é a im portân
c ia a tr ib u íd a a o s “fa to s e le m e n ta r e s d o sa n g u e ”, A vida,
j á o v im o s, s e e n c a r n a n a n o b reza , q u e é “a História
fe ita c a r n e ”. A d erro ta d a n ob reza, o a d v en to das m as
sa s, g era m o fim d a H istó r ia : a h u m a n id a d e soçobra
n o silê n c io , n a in c o n sc iê n c ia , n o n a d a .
H á c e r ta s d ife r e n ç a s e n tr e S p e n g le r e Toynbee: o
p rim eiro c o n ta o ito c iv iliza çõ es, c a d a u m a das quais dura
m il a n o s e cu jo fim é fa ta l; p a r a o se g u n d o , são vinte
e n o v e, c u ja d u ra çã o é v a r iá v e l e c u ja evolução deixa
m a r g e m a o liv re a rb ítrio h u m a n o e à von tad e divina.
T oy n b ee a d m ite c e r ta s in flu ê n c ia s e n tr e ela s e alude
v a g a m e n te a u m a id é ia d e p ro g resso : m a s se trata de
u m p ro g resso esp ir itu a l, q u e s ó D e u s p ode apreciar, e
n ã o u m a c o n q u is ta h u m a n a . N o e sse n c ia l, os dois siste
m a s co n v erg em . P a r a T o y n b ee e su cessã o das civiliza
çõ es é ta m b é m d e sc o n tín u a , os fa to r e s econôm icos só
tê m u m a im p o r tâ n c ia se c u n d á r ia ; a H istória depende
d e u m fa to r c ó sm ic o : o r itm o a lte r n a tiv o estatism o-dina-
m ism o (e m lin g u a g e m p r é -c h m e sa , o y in e o ya n g ). O
y a n g é a r e sp o sta a u m d esa fio la n ça d o pelo meio, a
ra ça , e tc . M a s d ep ois de u m p erío d o de ascensão a civi
liz a ç ã o se q u eb ra: su rg em , e n tã o , u m “proletariado in
terio r” e u m “p ro leta ria d o ex te r io r ”. É o tem po das per
tu rb a çõ es, ao q u a l a civ iliza çã o resp on d e criando um
E sta d o u n iv ersa l; m a s e ste , dividido en tre os dois prole
ta ria d o s, m orre. S e u m a civ iliza çã o sobrevivesse para
sem p re, n o s co n d u ziría a té à s c u lm in â n c ia s do sobre-hu
m a n o . P orém , a m e n o s q u e D eu s n o s co n ced a um adia
m e n to , o p orvir d o O cid en te p a rece e sta r com prom eti
d o: “O E sp írito d a T erra, e n q u a n to tece e dispõe seus
fio s n a c a d eia d o tem p o , co m p õ e a h istó ria do homem
ta l co m o se m a n ife s ta n a g ên ese, n o crescim ento, no
d e c lín io e n a d esa g reg a çã o d a s so cied ad es hum anas. Em
to d a e s t a co n fu sã o d e v id a , n e s t a tem p esta d e de ações,
p od em o s o u vir a b a tid a de u m ritm o elem entar. Esse
ritm o é o m o v im e n to a lte r n a d o do y in e do yang; o m o
v im e n to e n g e n d ra d o p or e sse ritm o n ã o é n em a flutua
ção de u m a b a tid a in d ecisa , n e m o ciclo de um m oinho
44
pré-regulado. A rotação perpétua de um a roda n ão 6
um a repetição vã, se a cada revolução aproxim a o veí
culo do objetivo; a m ú sica que em ite o ritm o do y in c
do ya n g é o canto da criação”1.
O sím bolo da roda, proposto por Toynbee, tem hoje
m u ita aceitação. F oi retom ado, en tre outros, por Ray-
m ond Abellio-, cujas profecias são consideradas com se
riedade por certos in telectu ais da direita. A seu ver^ a
História se apresenta sob a form a de ciclos: Involução-
Evolução, separados por Dilúvio3. O con ju n to todo com
preende um ciclo único que term in a pelo Apocalipse. A
totalidade dos ciclos co n stitu i u m a espiral: h á, com o em
Toynbee, u m vago fu tu ro d a hum anidade, m as n ão te
m os n en h u m poder prático sobre esse processo cósm ico;
o hom em de hoje está encerrado em seu D ilúvio sin g u
lar e lh e é vedada a ação, p ois seria necessariam ente um
gesto vão, ou u m a traição. O ú n ico recurso é construir
um a “arca" para passar de um m u n d o ao outro; essa
arca deveria reunir em um a espécie de ordem espiritual
“os espíritos ansiosos de lu z m ais que de poder”. "Esta
sociedade de espíritos se m an tém em u m a igu al indife
rença face aos regim es p olíticos, e os ín teg ra a todos,
com um a clara consciência de su a relatividade."
É surpreendente que hoje qualquer elucubração do
tipo pluralista-cíclico-catastrófico p ossa contar, desde
logo, com certo público. T entou-se a té cercar de sucesso
as fan tasias nebulosas de um R ené G uém on, que decifra
através de obscuros sim bolism os o fim , próxim o, do Oci
dente. Redescobre-se a filosofia h indu, n a m edida em
que é cosm ológica, an ti-h istórica e prega a não-ação: a
Roda de Siva projeta a su a grande som bra sobre a vida
e a m orte das civilizações. Tendo definido a natureza 12
45
humana como im utável, o conservador se compraz em
crer, além disso, que a H istória gira n o m esm o lugar,
como uma roda: n unca m uda nada. N ão que se aceite
exatamente a idéia n ietzschiana do eterno retorno, m as
admite-se que h á entre as culturas tão profundas ana
logias, que toda tentativa de reform ar o m undo está
previamente condenada. Mesmo se se deplorasse, sob o
ponto de vista ético, que a estrutura da sociedade seja
como é, as aspirações a um m undo m elhor são, em todo
o caso, consideradas utópicas: o realista lúcido se incli
na diante da necessidade m orfológica que leva as socie
dades futuras a repetir as injustiças e os abusos da
atual. Que a História descreva um círculo ou um a espi
ral, toda evolução comporta decadência, todo porvir
está coagulado no seio do Cosmos. A hum anidade se
agita em vão, perdida em um a im ensidade que a sub
merge; a relação do hom em com a sociedade é enten
dida como secundária: o essencial é su a relação com o
Universo, sobre o qual ele nada pode.
Entretanto, no meio desses ciclos fatídicos, h á m o
mentos mais ou menos sombrios. O Ocidente entrou, há
muito tempo, em decadência: contudo, Spengler acre
ditava ainda que o cesarismo podería retardar-lhe a
morte, e pregava em termos m al velados a adesão ao
fascismo. Desmentidas todas as suas esperanças, a direi
ta agora julga iminente a catástrofe, considera impo
tente toda forma de ação. Através de Jaspers, a Alema
nha vencida tenta assumir esse pessim ism o. Jaspers
ainda lhe empresta um sem blante m ais definitivo, em
bora menos dramático que Spengler. Em vez do deses
pero cívico, agressivo ou resignado de Burnham , Spen
gler ou Toynbee, propõe ao hom em um a sabedoria trans
cendental. Sim, a História é Frustração, m as está bem
que seja assim.
Segundo Jaspers, a realidade histórica é constituída
por uma pluralidade de formas substanciais: raças, ci
vilizações, povos. Esse pluralismo é que condena a His
tória ao fracasso; malgrado um a certa possibilidade de
comunicação entre estas formas, su a diversidade gera
necessariamente conflitos, destruições. Mas, por outro
46
lado, pretender unificar a humanidade seria um pecado
contra o Transcendente. Abolir as fronteiras que sepa
ram classes e nações, eis “uma obra de nivelamento que
não se pode imaginar sem espanto”. Vimos, efetivamen
te, que o homem só se abre ao Transcendente e se rea
liza como existência, graças à sua integração em uma
comunidade que possua a unidade imanente de uma
alma: portanto, lim itada e diferenciada. A m assa está
fechada para o Transcendente. Não saberia buscar se
não fins terrestres, tais como a felicidade da humani
dade. Ora, “a Finitude, enquanto felicidade imanente, é
aviltante quando se transforma em objetivo final: o ho
mem perde su a transcendência”. A humanidade só seria
feliz em detrimento da dignidade da Existência. Em
nome dos interesses superiores do Ser, é preciso, portan
to, que se perpetuem o fracasso da História e a infeli
cidade dos homens. Empiricamente, essa frustração é
evidentemente perturbadora, e a História não tem um
sentido claro: “Uma corrente arrasta a humanidade,
com suas antigas culturas, para não se sabe qual des
truição ou renovação”. Porém, de um ponto de vista su
perior, devemos nos felicitar, porque este fracasso ter
restre é a últim a “cifra da transcendência". Precisa
mente, na medida em que não leva a parte alguma, “a
História é a revelação progressiva do Ser”. “O que é
histórico é o que fracassa, mas é a presença do eterno
no tempo.” Para responder às exigências do Transcen
dente, devo assumir m inha historicidade, isto é, reivin
dicar m inhas raízes e considerar a História como o hori
zonte do m eu presente, como a maneira como o eterno
se dá a mim. Mas eu não devo me empenhar n a ação;
esta não é senão a aparência, continuamente ameaçada
de ruína, da certeza do ser.
Assim, a perversidade da natureza hum ana, a fata
lidade cósmica, as exigências do Transcendente, coinci
dem em repudiar a ação. Não resta mais do que pensar
lucidamente no destino, rogar a Deus com Toynbee„ re
fugiar-se com Abellio num a “arca”, ou abrir-se ao
Transcendente, conforme o exemplo de Jaspers. Porém
sobretudo para os que têm interesse em m anter o sta tu
47
quo, o desespero é um excelente pretexto1 o n •
catastrófico serve à ordem estabelecida. E estas UletIsm°
perspectivas, ao menos, oferecem a um a c la s J 0inbrias
sabe condenada uma consolação m e la n c ó lic - ^Ue se
liquidação será um desastre espiritual Ca: a sua
48
Missão da Elite
49
fazer triunfar seus princípios p olíticos — m esm o que se
trate de princípios respeitáveis em s i m esm os”. Mircea
Éliade declara: “A ú n ica ju stificação d as coletividades
organizadas sociedade, nação, E stado — é, em últim a
instância, a criação e a conservação de valores espiri
tuais. A própria H istória universal n ão leva em conta
senão os povos criadores de cu ltu ra s”. Para exaltar os
valores e as verdades eternas, já o vim os, os m ais ma
quiavélicos dos nossos pensadores, ta is com o Burnham
e Aron, revelam-se op ortunam ente com alm a de
platônicos.
Há um a tese com um a todos os sistem as que exa
minamos, a qual m uito ajuda ao burguês a reivindicar
como dever a defesa de seus interesses: o pluralismo. É
0 pluralism o que funda o pessim ism o histórico — mas
é ele tam bém que perm ite erigir sobre esse pessimismo
uma ideologia de combate. Toda a direita pensante de
cidiu considerá-lo com o um a verdade definitivam ente
adquirida. “Mas, para nós — escreve, entre outros, Mon-
nerot1 — h á as escravidões, os feudalism os, os capita-
lismos, e cada um tem su a história, n o curso da qual
mudou profundam ente, chegando a diferir tanto de si
mesmo quanto difere dos outros.” Ao esquem a “simplis
ta ” de Marx, que opõe exploradores e explorados, se
substitui um desenho tão com plexo, que os opressores
entre si diferem tanto quanto diferem dos oprimidos, a
tal ponto que esta ú ltim a distinção perde su a impor
tância.
Porém, sobretudo o pluralism o autoriza ao civiliza
do a cavar aqueles “fossos” com que sonhava, nostálgi
co, o Sr. Jules R om ains. Ele com preendia perfeitamente
que é difícil defender a Europa cap italista em nome do
universal. Só a enorm e ingenuidade de um Rougemont,
podería levá-lo a escrever que se trata, para nós, euro
peus, de “nos sentirm os responsáveis por um a cultura
m uito particular. E sta cultura é o centro12 de uma civi-
50
lizacão que, e s fa 1 sim, tornou-se realmente universal
para o melhor e para o pior”. Spengler declara com mui
to mais lógica: “Não há verdades eternas. O único cri
tério de »ma doutrina é a sua necessidade para a vida".
E efetivamente, um pensamento pluralista não podería,
sem contradição, anexar-se à eternidade. Mas o plura
lismo nos fornece o meio de contornar a dificuldade que
suscita: bastará substituir o ideal de universalidade pelo
reconhecimento de um a multiplicidade de verdades. De
vemos nos acantonar naquela que nos é imposta por
uma necessidade vital.
A civilização burguesa ocidental é a única a que
estamos substancialmente vinculados; não só a de ama
nhã não implicará progresso algum em relação a ela,
como também nós estamos separados deste longínquo
futuro por um abismo radical. Como não temos poder
sobre ele, não é m ais do que um conceito vazio para nós.
Nosso único interesse é esta Forma a que pertencemos:
a decadência que a ameaça não contém a promessa de
uma forma nova; pelo contrário, anuncia o triunfo do
informe. Mais além, tudo é noite e silêncio. Preocupe-
mo-nos, pois, com a Europa, com o Ocidente: nada m ais
nos concerne.
Ainda aqui, Jaspers confirma a tese spengleriana.
Há — segundo ele — um a pluralidade de verdades que
se comunicam entre si pela sua relação com o Ser, mas
que precisam ser vividas na su a separação. “Minha ver
dade, aquela que eu sou como liberdade, n a medida em
que existo, se choca com outra verdade enquanto exis
tente; é pela m inha verdade e com ela que venho a ser
eu mesmo; ela não é a única, porém é única e insubsti
tuível enquanto está em relação com outrem." Ser si
mesmo é a lei moral suprema; é abrir-se ao Transcen
dente. Eu não alcanço esta autenticidade senão assu
mindo a m inha finitude, em vez de pretender ultrapas
sá-la. Portanto, m eu dever de burguês ocidental é que
rer incondicionalm ente a civilização burguesa ocidental.
51
Já se vê que a salvação da civilização se operará
contra as massas, pois estas só intervém no curso do
mundo como elementos de dissolução: elas desintegram
as ordens, provocam os cismas, negam o Transcendente
e esvaziam a realidade hum ana de sua substância; por
elas, tudo se perde e nada se cria. Cabe à Elite salvar
“ o mundo maravilhoso” das culturas. O homem ociden
tal sente-se hoje incumbido de uma missão; por outro
lado, procura-se demonstrar que o não-privilegiado não
merece o nome de homem. Privada de suas pretensões
como agente histórico, a m assa é, ademais, excluída do
mundo do pensamento, como também do mundo dos
valores éticos e estéticos. Já veremos que ardis são em
pregados para isto.
52
O Pensamento
s
53
rioso que depende parcialmente de fatores de ordem ex
terna, mas que expressa antes de tudo um a determ inada
essência: há uma alma negra, um caráter judeu, um a
sabedoria amarela, uma sensibilidade fem inina, um
bom-senso camponês, etc. A natureza de su a essência
define a região do ser que é acessível a cada um . Porque
esta filosofia subjetivista é também antüntelectualista:
é uma filosofia não da consciência, m as do ser. O conhe
cimento — ou, segundo a expressão am bígua de Clau-
del, no original francês: co-naissance1 *— é com unhão;
não depende do entendimento nem da razão. O hom em
da direita despreza, como “primário”, o saber sistem a
tizado, que se comunica m etodicam ente e pode-se abe-
berar nos livros; só lhe merece crédito a experiência vi
vida, que une singularmente um sujeito e um objeto que
participam de uma mesma substância2. E ntre os indi
víduos conscientes existe, pois, um a hierarquia: os que
possuem mais “nobreza vital”, u m a m aior “riqueza
substancial”, realizam a m ais perfeita com unhão. A
massa, privada de substância, está condenada a u m tor
por animal, entrecortado de alucinações e delírios. Os
indivíduos radicados em uma ordem su b stan cial — ou
seja, os que aceitam a ordem burguesa — têm , todos
eles, alguma coisa valiosa a revelar: no seu lugar, dentro
dos seus limites, captam verdades que escapam ao teó
rico racionalista. A mulher, que põe san gu e e d á à luz,
terá das coisas da vida um “in stin to” m ais profundo
do que o biólogo. O camponês tem u m a in tu ição m ais
certeira da terra do que um agrônomo formado. O colo-
54
nizador ouve com Ironia a s teorias d o etn ó g r a fo : é su r
rando um n eg ro q u e s e ap ren d e v erd a d eira m en te a
com preendê-lo. S p en g ler e x p lic a q u e e s t a fo rm a co n cre
ta, a raça, n ã o se d eix a ca p ta r p e lo sáb io q u e a n a lisa e
pesa, m a s em com p en sação s e rev ela ao h o m e m de ra ça :
“A s pu ras ra ça s h u m a n a s — escrev e — d iferem e n tr e
si ab solu tam en te d a m e sm a m o d a lid a d e e sp ir itu a l q u e
a s im puras. U m m esm o e le m e n to q u e s ó s e r ev ela a o
gosto m a is delicado, doce a ro m a p r e se n te e m ca d a fo r
m a, u n e por debaixo de to d a s a s a lta s c u ltu r a s, n a C au -
cásia, os etru scos com a R en a scen ça , e n o T ig re, o s s u
mários do an o 3000 a os p ersa s d o a n o 500 e a o s o u tro s
persas da época is lâ m ic a .. . T u d o isto é in a cessível ao
sátno que m ed e e qu e pesa, E x iste p a ra o s e n tim e n to q u e
o apercebe a o prim eiro golp e de v ista , co m u m a c e r te za
não engan osa, m as n ã o p a ra a a n á lise c ie n tífic a . P or isso ,
concluo d a í que a raça, com o o te m p o o d estin o , e
um a co isa d ecisiva p ara to d a s a s q u estõ es v ita is, a lg o
de que todos tem os u m co n h ecim en to claro e d is tin to
desde que ren u n cia m o s ap reen d ê-lo p e lo e n te n d im e n to ,
e, p ortan to, p ela a n á lise e c la ssific a ç ã o q u e d is s o c ia m .. .
É por isso que o ú n ic o m e io d e a p ro fu n d a r o lad o to te-
m ico d a vid a é o ta to Jisiognom ônico, e n ã o a c la ssi
ficação”.
A través d a fra seo lo g ia sp e n g le r ia n a se r e co n h ecerá
um dos lu g a res-co m u n s m a is ca ro s a os h o m e n s d e d i
reita. C harles M aurras e n sin a v a q u e u m ju d eu n u n c a
sabería s e n tir u m verso de R a c in e 1. E m s e u ro m a n ce,
G illest D rieu la R o ch elle d e n u n c ia v a o c a r á te r “ m od er
n o” dos ju d eu s, cu jo p e n sa m e n to r a c io n a l d eix a e sc a
par o q u e h á d e in s tin tiv o e d e co m p lex o n o m u n d o . U m
desenraizado, u m sem c la sse, ja m a is p o d e com p reen d er
a classe ou a r a ç a e m que e s tá co m o in tr u so . E m L cs
Déracinés, de M aurice B arrès, R e c a d o t, a p esa r d e to d a a
55
su a inteligência, cai n o erro porque é um ãesenraizado,
en q u an to que o débil Saint-P hlin, bem instalado n a ter
ra de seu s antepassados, se move facilm ente n a verdade.
O s pais burgueses se convencem , de bom grado, que seu
filh o, m esm o sendo o pior aluno da classe, possui esse
‘*não s e i que” de que carece o estudante bolsista m ais
brilhante.
E ste sistem a convém perfeitam ente aos “ideólogos
ativos e conceptivos” que o elaboraram. Pois lh es perm i
t e restabelecer, em se u proveito, o critério d a autorida
de. O indivíduo superior — pelo sangue, a nobreza, ou
p ela su a abertura ao T ranscendente — é capaz de sentir
n a su a quase totalidade o conjunto das form as que cons
titu em a realidade: apenas ele. G raças a este postulado,
o pensador da direita supera facilm ente as aparentes
contradições de su a atitude: quando se aplica a comba
ter os m arxistas, o anticom unista só vê n a s idéias um a
racionalização superficial de in stin tos inconscientes e
de forças tenebrosas; quando se trata de si, ele as decla
ra fundadas objetivam ente. P luralista quando aborda as
verdades dos outros, considera su a verdade como um
absoluto.
M as essa falta de reciprocidade — segundo ele —
se ju stifica perfeitam ente: a singularidade de certos h o
m en s — os eleitos, de que ele faz parte — consiste pre
cisam en te em atin gir o universal. Encerrando seu s
adversários em um a im an ên cia vazia, seu s inferiores em
u m a particularidade estreita, se levan ta por sobre eles
com o uni am o cujas revelações devem ser aceitas por
u m ato de fé. E is um a posição, ao m esm o tem po, in fin i
tam en te débil e inexpugnável. O verdadeiro Abraão
n u n c a está seguro de ser Abraão, m as n in g u ém pode de
m onstrar aos N apoleões de hospício que n ã o são Napo-
leão. E sta am bigüidade explica o tom categórico que
ad otam os escritores de direita. Não su b m etem suas
idéias ao juízo dos outros: enunciam verdades cujo va
lor p essoal é a ú n ica e su ficien te garantia. D em onstrar
seria rebaixar-se: o M estre se situ a m ais além do toda
con testação possível, reclam a u m a adesão incondicio-
56
hal*. Que verdade lh e oporemos, se a verdade suprema
é precisam ente à que se revela diante dele?
E sta teoria do conhecim ento implica, necessaria
m ente, que o real m esm o seja irracional. Encontramos
aqui um dos paradoxos do pensam ento burguês: 03
“membros ativos” da burguesia crêem n a ciência e a
aplicam , porém seus ideólogos procuram desconsiderá-la.
Um exem plo disso é a interpretação fan tasista que de
ram ao princípio de indeterm inação: pretendem que a
m atéria seja desordem e contingência. A crença nas
necessidades naturais é, com efeito, a primeira condição
de um a liberação hum ana. D o contrário, em um univer
so caótico, im possível de dom inar pelo pensam ento, o
hom em está esm agado, é passivo, escravo; sua miséria
salta aos olhos: decididam ente ele n ão é m ais do que
um a besta desprezível. E se sen te perdido, e está pronto
a escutar docüm ente a voz do eleito que se propõe a
guiá-lo. Eis por que o pensador de direita afirm a que a
natureza é capricho e m istério; a ciência, que analisa e
classifica, só lhe apreende as aparências superficiais, pois
ela é anim ada por um a vida secreta, penetrada por flui
dos invisíveis. S u a realidade profunda não é este mundo
empirico tal com o se nos m an ifesta: é u m Ser oculto,
substância cósm ica ou espírito transcendente. Segundo
Spengler, a realidade exterior é, apenas, "uma expressão
e um sím bolo”. “A m orfologia da h istória universal se
torna necessariam ente um sim bolism o u n iv ersa l”
Jaspers que, com o vim os, espiritualiza as teses de
Spengler conform e as necessidades d a A lem anha pós-
fascista, tom a dele a idéia do tato fisiognom ônlco c a
utiliza para decifrar a transcendência n a fisionom ia das
coisas. Em vez de dissociar 0 real como faz a ciência, é 1
57
preciso — diz ele — compreendê-lo através das “cifras"
que ncs revelam totalidades. A natureza é um a cifra,
indefinidamente equivoca. A História também, enquanto
ê frustração. A consciência em geral é cifra, e a últim a
cifra é a própria existência.
Este esoterismo confirma a importância do Mestre.
A revelação dos segredos está reservada a alguns ini
ciados, dotados de uma certa graça inata. Não é de es
tranhar que a partir dai certos pensadores se orientem
para o ocultismo, a alquimia, a astrologia. Hitler acre
ditava nos horóscopos: se, graças ao “teto íisiognomô-
nico”, pode-se conhecer todo um homem pela form a do
seu crânio, por que não também pelas Unhas de sua
mão, ou pela configuração do céu? A onda cósmica pe
netra em tudo e tudo conjuga: pode-se conhecer o que
quer que seja. Se o homem ê determinado não pelos ou
tros homens, m as pelo espírito da Terra, seu destino
está em jogo nas estrelas ou n a borra de café, antes que
nas praças públicas. A m ística conduz à magia. Assim
se explica o sucesso que a direita atribui a simbolismos
mais ou menos inspirados no Oriente, a calorosa acolbi-
da que tiveram os livros de Guénon, Daumal, Schmidt,
AbeUio, assim como o crédito que encontrou em
Gurdjieíí.
A mística conduz também ao silêncio. O antiinte-
lectualismo da direita se manifesta na sua atitude com
relação à linguagem. Confiar na palavra que é comum
a todos é um a atitude vilmente democrática; a Verdade,
oculte por trás dos símbolos e cifras, é inefável. Nietzsche
considerava a linguagem como uma traição: “Que bela
loucura a palavra!” Spengler escreve: “Linguagem e
verdade terminam por se excluir. ( . . . ) Quanto mais
profunda ê um a comunicação, mais ela chega a renun
ciar, por esta razão, ao signo. ( . . . ) O mais puro simbolo
de entendimento que a linguagem tenha concebido é
nm velho par de camponeses sentados à noite, ante
sua granja, entretendo-se em silêncio’’1.1
58
Brice Paraln conclui seu ensaio sobre a linguagem,
afirmando: “Quanto mais perto estamos do silêncio,
tanto mais perto estamos da liberdade”. Segundo Jas-
pers, as cifras desembocam no inefável. A tríplice lin
guagem da transcendência ressoa finalmente no silên
cio. Esta paz muda é a revelação suprema. "O não-ser
revelado pelo fracasso de tudo o que nos é acessível é
o Ser da transcendência.” Com efeito, a palavra, adap
tada à vida em sociedade, à existência empírica, não
pode expressar a verdade do homem, que é sua relação
com o Cosmos, com o Transcendente. A conversação ar
ticulada só convém à massa; os homens autênticos se
comunicam através da substância na qual, em conjunto,
estão enraizados: um mesmo fluido misterioso os atra
vessa, uma mesma Forma os deslumbra. A literatura de
direita se exime na descrição desses encontros sem pala
vra e n a exaltação dessas sabedorias mudas. A verdade
dos humildes — camponeses, mulheres, indígenas, ser
vidores, pobres artesãos — não podería expressar-se
melhor do que através do silêncio.
E, no entanto, os intelectuais de direita falam mui
to; a liberdade de expressão é um a das que reivindicam
com mais ardor. E em geral, eles não acreditam muito
em mesas que giram movidas por forças ocultas. A maio
ria deles se m a n té m fiel a um certo racionalismo: po
rém, sempre concedem ao irracional o que for preciso
para impor sua autoridade. Se a verdade fosse univer
salmente demonstrável, o pensamento estaria democra
ticamente aberto a todos: assim, substituem as relações
rigorosas, necessárias, que a ciência estabelece, por rela
ções tênues e contestáveis. Para eles, a tarefa do pen
sador consiste em alcançar, mais além do dado empírico,
aquelas “formas” só acessíveis ao “tato fisiognomôni-
co”, e sentir as relações singulares que há entre elas. É
assim que Spengler se propõe a criar uma morfologia, e
todo o seu sistema repousa sobre aproximações formais
entre formas: sobre a Analogia.
A Analogia desempenha um papel imenso entre to
dos os doutrinários de direita. É o único tipo de explica
ção que nos concede Monnerot, por exemplo, na Socio-
59
logie dn communisme: no primeiro capítulo assimila o
comunismo ao Islã, e todo o resto do livro não faz mais
do que desenvolver as consequências dessa aproximação,
Além disso, insiste em analogia mil vezes assinaladas
entre o comunismo e a Igreja, o século X X e a alta
Idade Média. Quer explicar Lênin? Escreve: “O proble
ma da impotência da plebe já tinha recebido uma solu
ção análoga1 à de Lênin, que é mutatis mutanãis, a mi-
iitarização, .• A analogia• serve também neste c a so ...
Lênin íoi, sem o saber, o primeiro teórico e o primeiro
prático do cesarismo do nosso tempo”. Para explicar por
que certas civilizações progridem e outras estacionam,
Toynbee se limita a nos propor uma imagem: no curso
das suas escaladas, ocorre aos alpinistas fatigados re
pousar sobre um patamar; alguns adormecem, outros
tomam a partir: eis a chave da História.
Já se vê quanta liberdade reclama o teórico para
os seus caprichos: os fatos não lhe impõem nenhuma
Interpretação; cada um desses pensadores, de Spengler
a Jaspers, passando por Toynbee e muitos outros, aco
moda os fatos à sua fantasia.
A propósito das idéias de Aron sobre a História, Jean
Pouillon demonstrou cabalmente, num artigo publicado
em Les temps modemesa, como a idéia de contingência
objetiva está a serviço do arbitrário subjetivo: “Não sua
viza, pois, o determinismo histórico, mas se limita a im
pugnar sua unidade, a cortá-lo em pedaços. £ isto o que
ele chama a contingência: não implica, para ele, uma
concepção nova da relação causai, senão que é, pura e
simplesmente, uma solução de continuidade que ele in
troduz em algumas direções escolhidas, em função do
que ele quer provar”. Mais uma vez, uma das vantagens
do pluralismo é que ele introduz no universo desconti-
nuidades que favorecem as intervenções interessadas do
sujeito pensante.
1 0 grifo í meu.
2 £ Monnerot que sublinha.
3 , Junho de 1954.
60
A teoria das form as satisfaz, além disso, a esta ten
dência fu n d am en tal do p en sa m en to burguês que já a s
sinalam os: o idealism o. A sseguram -nos qu e as form as
existem su b stan cialm en te; contudo, é u m a e x istên cia
subterrânea, in acessível; se as con fron tam os com o
m u n d o em pírico, se revelam com o sim ples m itos. Já em
1914, É m ile B ou trou x oferecia u m adm irável exem p lo de
com o o m ito perm ite eludir eleg a n tem en te a guerra: "A
lu ta de D escartes co n tra K a n t”. D o m esm o m odo, em
nosso tem po se d efin iu a gu erra d a Coréia: a lu ta da
Civilização con tra a barbárie. E e is os coreanos escam o
teados. Q uem reconhecería, em L‘Islam du X X .’ siècle,
os proletários de carne e osso qu e aderem ao partido
com unista? A dem ocracia in g lesa , a obra colonizadora
francesa, a cu ltu ra: por trá s d esses gran d es ídolo3, os
exploradores, os colonos, os privilegiados crêem esta r bem
escondidos.
O idealismo transcendental completa de modo feliz,
no conservador, o idealismo psicofisiológico: este isola as
coisas da consciência, aquele que as substitui por abstra
ções. Privadas, tanto de presença quanto de existência, as
coisas não são absolutamente nada. A partir dai, cada
qual pode florear à sua maneira no céu inteligível. Te
mos direito de traçar nele relações ideais que não cor
respondem a nenhuma encarnação terrestre: assim
Burnham justifica o regime capitalista pelo ideal de um
direito não fundado na força, embora reconhecendo que,
de fato, é a força que hoje funda o direito. Outros vin
culam o capitalismo com a Verdade, a Honra, a Liber
dade: as Idéias no céu, assim como as palavras sobre o
papel, coexistem sem conflito.
Contudo, a sublimação idealista não é, em geral,
completamente arbitrária. Valendo-se de um substancia-
lismo pluralista para destituir o homem das massas de
sua dignidade pensante, o doutrinário burguês utiliza o
idealismo para excluí-lo do mundo dos valores. As “belos
categorias” que projeta no céu são, na verdade, as cate
gorias burguesas: será fácil comprovar que elas estão
vinculadas à sorte dos privilegiados e que o oprimido
nada tem a ver com cias.
61
Bem sabemos que o conceito de liberdade, por exem
plo, sc define, em extensão e em compreensão, a p a rtir das
liberdades burguesas. A liberdade existe onde os burgue
ses são livres: é o que diz sem rodeios um corresponden
te de Paris-Presse na sua reportagem intitulada Q uinze
dias em Hanóu Escreve: “Haiphong é um a das cidades
mais feias do m undo... Seus cheiros são atrozes, a mi
séria e a sujeira saltam aos olhos, a prostituição flores
ce. Mas, mesmo assim, é a liberdade”. As prostitutas, os
sujos, os miseráveis não poderiam contestar a liberdade
de que gozam em Haiphong o jornalista e um punhado
de privilegiados: é a liberdade.
Por outro lado, o sentido da palavra se define posi
tivamente pela condição burguesa: Léon Werth, n a
frase já citada, o confessa claramente. Definir um regi
me de liberdade pelo seu contrário, que é o regime sta-
linista, é defini-lo positivamente pelo regime capitalista.
Outrora, para o escravagista americano, a idéia de Li
berdade envolvia o direito de possuir escravos: p ara o
burguês de hoje, envolve o direito de explorar
os proletários.
Do mesmo modo, a cultura, a inteligência, se defi
nem a partir das normas burguesas: é, pois, entre os
burgueses que as encontramos. Michel Crozier1 observa
que nos Estados Unidos os testes de inteligência — que
chamamos Q I — provam fatalmente que os ricos são
mais inteligentes que os pobres: “Os filhos dos ricos têm
sempre, em média, QI superiores aos dos filhos
de pobres* Como os conhecimentos e as atitudes cota
dos nos QI são conhecimentos e atitudes dos ricos, o
contrário seria surpreendente. Até a normalidade norte-
americana é uma normalidade para ricos”23.
62
A c o n te c e q u e c e r ta s Id é ia s b r ilh a m co m im p la cá v el
pureza se m q u e a b u r g u e sia d e sc u b r a n e la s n e n h u m a
en carn a çã o q u e lh e c o n c e r n e : p o r ex e m p lo , h o je s e p r o
clam a com ír e q ü ê n c ia q u e a M u lh e r s e p erd e, q u e e stá
perdida, M as, e o H o m em ? H a v erá a in d a , n e s ta m e ta d e
do sécu lo , ura e x e m p la r v á lid o ? S e , p o r v ezes, a E lite
c a ta str ó fic a p a r e c e d is p o s ta a e x c lu ir -se d a h u m a n id a d e ,
é so m e n te p o rq u e s e s e n te e m p erig o ; f ic a fa sc in a d a com
a im a g em d o q u e e la fo i, p o is c o n d e n a co m n o s ta lg ia
o p resen te e m n o m e d e u m p a ssa d o m a is c le m e n te . S u a
p reten são, n o e n ta n to , n ã o é m e n o r d o q u e a n te s . M ais
além d a s c a te g o r ia s sin g u la r e s , e la m o n o p o liz a a c a te
goria su p r e m a : o h u m a n o . O s p e n sa d o r e s b u rg u eses, já
o vim os, p r e c isa m crer q u e o H o m e m fa la p e la s u a b oca,
o H om em in d iv isív e l, u n â n im e , ú n ic o . A b u r g u e sia se
em p en h a e m a p r e se n ta r -se c o m o c la s s e u n iv ersa l. A
p artir d a p a r tic u la r id a d e b u r g u e sa , s e c o n s titu ir á , p o is,
a id éia do H o m em . “O h o m e m é o q u e s ã o o s h o m e n s ” —
diz M arx; e s te r e a lis m o im p e d e to d a ta p e a ç ã o . M a s o
id e a lista ele v a -se à Id é ia e lim in a n d o e m s u a s e n c a r n a
ções tu d o o q u e c o n sid e r a c o m o a c id e n ta l; ca b e a e le
63
decidir o que olliar como essencial E uma vez estabe
lecido que só ele encarna o liomem, quem terá o direito
dc contradizé-lo?
Entre os pensadores ocidentais, o homem é desig
nado írcqüentcmcnte pela expressão “pessoa humana”.
Esta Idéia nos introduz no dominio ético: examinan-
doo, veremos que manobras são feitas para impedir à
massa o acesso a este dominio.
64
A M oral
A
J- xntes DA ultim a guerra, a moral da direita era
íogosamente heróica1. Spengler, seguindo a Nletzsche,
faz uma idéia arrogante do herói: “Só o herói, o homem
do destino, está, em definitivo, no m undo real’’. É ele
quem faz a História, ele atua, ele guerreia. Spengler se
65
encarrega de repetir o elogio que Nletzsche fizera da
vida do guerreiro e da morte militar.
A verdadeira comunicação entre os homens, aquela
que a linguagem não consegue realizar, se obtém pela
violência. “A espada é o caminho mais curto de um
coração a outro” — escreve Claudel. O pluralismo das
raças, das culturas, a separação radical dos indivíduos
implicam que a verdade do homem não é a amizade, mas
a luta. “Não é verdade que o universo queria ser feliz e
unido. Está dividido, oposto em suas partes” — escreve
Drieu. E ainda; “A luta dos existentes não é feita para
ser superada". Nessa época se aplaudia a violência, mes
mo que fosse destituída de heroismo: o Homem se afir
ma nos massacres, nos pogroms. A separação, que é a
mesma coisa que a existência, se realiza plenamente no
sangue do próximo: provamos nossa verdade matando,
ou pelo menos sonhando matar. “Nada se faz senão com
sangue” — escreve ainda Drieu, em Le jeune européen,
e acrescenta: “Confio em um banho de sangue como
um velho acuado pela morte". Depois de buscar-se du
rante quatrocentas páginas, o personagem Gilles — no
romance do mesmo nome — chega ao momento em que
toma um fuzil para disparar contra os operários espa
nhóis. Drieu admira o dinamismo dos jovens nazistas,
se alista ao lado de Jacques Doriot. Então, Mussolini e
Hitler eram saudados como as encarnações do Herói.
De nada serviu à burguesia o sangue derramado.
O fuzil se tomou, como a espada, uma arma superada:
o morticínio anônimo e genérico que a bomba atômica
realiza não pode ser entendido como uma afirmação da
oriQtpnrift Hoje, se certos ocidentais desejam positiva
mente a guerra, é apenas por uma vertigem de terror.
A direita vencida tem uma imagem muito mais modes
ta da grandeza, do que outrora. Seus moralistas já não
pregam o heroísmo, mas a sabedoria. Esta transmuta
ção da turbulência fascista em espiritualismo burguês,
foi Jaspers, já o vimos, quem se encarregou de concebê-
la. Da sua filosofia do Transcendente decorre a moral
prática que ele propõe à elite de após-guerra.
66
Jaspers ainda considera o homem de elite um herói,
e a virtude suprema do herói continua sendo, para ele,
a nobreza. Porém estas palavras mudaram bastante de
sentido: "O único heroísmo que continua acessível ao
homem de hoje é o de um a obra sem brilho, de uma
ação sem glória. ( . . . ) O verdadeiro herói se caracteriza
pela fidelidade que m antém para com a sua vocação.
Hoje o herói resiste à prova a que o submete a massa
inapreensível. O herói moderno, enquanto mártir , nao
pode ver seu adversário, e ele mesmo permanece invisí
vel no que verdadeiramente é”.
Assim, o herói passou a ser mártir, e se define nega
tivamente, por sua resistência à massa: uma resistência
cega. Não sabe muito bem contra o que luta, nem que
sentido tem sua luta: é bem a situação de muitos anti
comunistas. Jaspers pretende, entretanto, dar um con
teúdo positivo à idéia de vocação: “Os melhores, no sen
tido de uma nobreza da hum anidade. . . são. . . os homens
que são eles mesmos”. Esclarece: “O maravilhoso, o
único ser autêntico que encontro é o homem que é ele
mesmo.. . Ao questionar tudo, n a reflexão sobre si, en
contra-se consigo mesmo no instante concreto, apoian
do-se em si m esm o.. . Chega a si mesmo como um dom.
A reflexão sobre si mesmo transcende a ponto de alcan
çar a Existência de fato”. Esta é, pois, a finalidade desse
obscuro combate: é preciso manter a possibilidade de ser
si mesmo. Mas aqui não se trata de um individualismo
anárquico, análogo ao de Gide quando exortava Natha-
nael a fazer de si “o m ais insubstituível dos seres”. A
autenticidade é — para Jaspers — um a ultrapassagera
para o Transcendente: “Ai onde sou eu mesmo, não sou
somente eu”. Ela se adquire, não pela execução de atos
mais ou menos gratuitos, m as pela fidelidade. Aqui Jas
pers se aproxima de Barrès, que pregava o enraizamen
to do indivíduo na “terra e nos mortos". Para realizar-
se, cada um deve reivindicar seus laços com sua raça,
sua família, seu país, suas tradições, suas amizades;
deve assumir, a partir do seu passado,, a particularidade
de sua situação presente. Pela aceitaçao de sua finitude.
67
atinge a profundidade e se abre ao Transcendente Este
êxito não é solitário: "A verdadeira nobreza não écoisa
de um ser isolado. Está na ligação dos homens indepen-
dentes A nobreza dos espíritos que são eles mesmos sa
acha dispersa pelo mundo. A unidade desta dispersão é
como a Igreja universal, feita de um corpus mysticum
constituído por uma cadeia anônima de amigos”.
O Preceito de Jaspers — ser si mesmo — constitui
um dos lugares-comuns mais complacentemente repeti
dos pela direita. Cito ao acaso: “É preciso devolver sua
personalidade ao ser humano estandardizado pela vida
moderna. Os sexos devem ser nitidamente definidos ou-
tra.vez.......... É importante, ademais, que ele (o homem)
se desenvolva na riqueza específica e múltipla de suas
rf in tííf i* Cairei: O homem, esse desconhecí-
no, 1939). “A desforra contra uma época que só preten
de contar pelas massas... é que algumas individualida-
des nela continuem inexpugnáveis como fortalezas.
Nada pode nada contra elas. Aqui um inglês, ali um ale-
mao e alguns outros dispersos, sozinhos, terão ‘domina
do o debate’. Todo o resto não é senão bazófia.” (Bras-
part, 1948, em La tdble ronde, a propósito de Jünger.)
Claude Elsen, em La liberté de Vesprit, em 1949,
gaba: “O único compromisso que vale: aquele que se
tem consigo mesmo, só consigo, a lúcida realização de
si mesmo e de seu destino solitário — insubstituível”.
Jacques Laurent escreve em 54, em La parisienne:
Para o escritor, o problema não é aceitar ou ignorar
a política, m as... ir mais além da política. Só assim é
ele mesmo. E um escritor que não é ele mesmo, está
sobrando”.
Etc.
Em muitos desses indivíduos insubstituíveis encon
tramos também o sonho de um corpus mysticum. Abellio
deseja congregá-los numa espécie de arca. Monnerot
propõe a criação de uma ordem, destinada evidentemen
te a combater o comunismo. Já se conhece a fórmula
que passou a ser usada com freqüência nos dez últimos
anos: “Ainda somos alguns poucos q u e ...”: quem a
68
enuncia afirma sua filiação a uma elite heroicamente
minoritária.
Mas, afinal, que conteúdo concreto tem a divisa:
ser si mesmo? A resposta é unânime: devemos diferir.
A fidelidade pregada por Jaspers é a afirmação da nossa
finitude singular, por isso, a reivindicação da nossa di
ferença. A importância desta noção foi ressaltada, entro
outros, por Rougemont. Ele tomou de Scheler a oposi
ção entre o indivíduo, simples elemento da massa, e a
pessoa, que é assim definida: “O indivíduo encarregado
de uma vocação que o distingue da massa, mas o vin
cula praticamente à comunidade". Ser livre, ser si pró
prio, é uma só e mesma coisa: ainda e sempre, desta
car-se. “A única liberdade que conta para mim, dirá
todo verdadeiro1 europeu, é a de realizar-me, de buscar,
de encontrar, de crer em minha verdade... Nunca have
rá, pois, liberdade real senão na necessidade, no direito
e na paixão de diferir do meu vizinho.” É cm nome da
Pessoa e, portanto, da Diferença, que Rougemont prega
com este zelo a defesa da Europa contra a barbárie.
Toda a direita lhe faz coro. O próprio Aron, abandonan
do seu ceticismo maquiavélico, fica romanticamente exal
tado para gabar “a vocação insubstituível de cada ser
humano, essa centelha que é tudo"12. E é evidentemente
no sentido de Pessoa que é preciso entender a palavra
indivíduo nas declarações de Claudel34: "O Indivíduo
antes de tudo, e a sociedade só existe precisamente para
tirar do indivíduo tudo o que pode dar... O indivíduo é
insubstituível... Não se trata de realizar a humanidade
em geral, mas de realizar o indivíduo”. A nostalgia de
uma civilização na qual todo indivíduo esteja “encarre
gado de uma vocação" — inspirou a Paul Sérant* um
1 Se não o diz, não é verdadeiro, não c europeu; suponho que nem
sequer c um homem. Eis um exemplo da maneira como a direita fa
brica as Idéias. Publicado em Preures.
2 I.es guerres cn chaint, pig. 479.
3 Mémoircs improvhis.
4 La parislenne, junho de 1954, O grifo é meu.
69
notável pot-pourrí de lugares-comuns utilizados pela
direita. Escreve, a propósito dos soldados de Dien-Bien-
Phuh: “São testemunhas de uma civilização onde o que
quer que fosse não era feito por quem quer que fosse,
onde havia vocações e a deles, soldados, era justamente
honrada, entre as mais altas. O mundo moderno jurou
acabar com esta civilização.,. O conceito de vocação foi
desonrado, ao mesmo tempo que a própria honra, pois
há honra encarnada no cumprimento de uma vocação.
Mas esta horrível desordem não é aceita pelos melhores:
a despeito da empresa de nivelamento e uniformização,
a despeito de tudo, as personalidades se afirmam e as
castas destruídas se reconstituem”.
Apesar de tudo, há algo de torturante nesta ques
tão. Curiosamente, Rougemont fala de indivíduos en
carregados de uma vocação: encarregados por quem?
Esta palavra que lhe escapa é significativa. Uma voca
ção, para merecer este nome, deve ser um chamado feito
por alguém a si mesmo; mas se compreendemos muito
bsm que os privilegiados reivindiquem as diferenças
vantajosas como condições de sua autenticidade e de
sua liberdade, quem, pois, reclamará as diferenças des
vantajosas? Ora, umas não poderíam existir sem as ou
tras: não há ricos sem que haja pobres, não há senho
res sem que haja escravos. Em que tempo os homens
reclamaram com paixão a liberdade de se distinguir pela
pobreza e pela escravidão?
Na verdade, é uma pilhéria sinistra pintar o passa*
do como uma época em que os servos, os artesãos, os
obreiros, em suma, os oprimidos, viviam honrados, se
gundo o chamado de uma vocação. E é preciso uma ver
gonhosa má-fé para sugerir que em uma Europa capi
talista um proletário pode procurar e encontrar sua in
substituível verdade1. Alexis Carrel, apesar de tudo, con
71
xnam posição contra *#o mundo moderno”, contra o pre
sente e o futuro, em nome de um passado imaginário.
Porém, seus desígnios são bastante transparentes
para que nos demoremos em julgá-los sob este aspecto.
Trata-se, ainda e sempre, de negar as massas em bene
fício da Elite. No domínio da estética, pelos mesmos pro
cessos, busca-se o mesmo fim.
72
A Arte
1 Uhomme à chcval.
73
verdade do Humano, e que é preciso manter contm „
homens. “Manter o Humano, fazer d e t a l f o m a n , ^
perdure ainda, através dos cantos, das d a n ç a d o s
aumentos, uma expressão humana do mundo” * tal /.
para Drleu, a finalidade suprema. Ora, as massas cons.
venh^rtTrhí134401110
venha de Chicago ou dekt0: poIs "a humanidade é feia*
Pontolse".
A sorte da Beleza está lmedlatamcnte ligada à da
Arte: ela é uma realidade dada que se deixa apreender
pela contemplação estética. Porém, a Beleza só se rea
liza plenamente na Arte, que a recria. É na Arte que
o homem transcende dcfinltlvamente seu próprio ser-
essa transcendência é mais importante do que as cria
turas vivas, que são seu instrumento. É este o sentido
da seguinte passagem de André Malraux, em La psycho-
logic de lart: “Que os deuses, no dia do Juízo Pinai,
eiW n* eln\ i.ace, das formas que foram vivas, o povo das
estatuas! Nao é o mundo criado por eles que dará tes
temunho da sua presença: é o mundo das estátuas I”
As formas nas quais se expressa a existência humana
superam a contingência das suas encarnações; estas são
Joguetes do destino; a Arte, ao contrário, é um anti-
destino, nos faz lançar âncoras na eternidade. O que
vale em face do eterno o Indivíduo efêmero? Os estetas
ocidentais não só^ reprovam este mundo empírico pelo
seu caráter perecível, mas também pela sua desordem,
pelo seu absurdo. A arte substitui este caos por um
universo ordenado, significativo. É assim que Roger
Gaillois felicita o poeta Salnt-John Perse por ter feito
com que “o universo só exista distribuído em gêneros
e espécies, cm escalões, graus, categorias e promoções” .
Pela graça de sua poesia, “o rito e a cerimônia, por um
tempo e em certo lugar, refreiam o tumulto universal” .
E aos interesses da Arte que os defensores do Oci
dente preferem dar mais importância; os outros valores
eternos são equívocos, inapreensíveis. A Arte possui
uma irrefutável realidade. O homem de esquerda a re
conhece, tanto como o conservador, atribuindo-lhe a
mais alta importância: porém, Justamente por essa
74
mesma razão, ele se pergunta, estupefato: com que di
reito a burguesia — nas revistas, congressos e íestivaÍ3,
que tem feito proliferar nos últimos anos — confunde
a causa da Arte com a sua própria causa?
Esta confusão é um fenômeno bem recente. No sé
culo passado, e inclusive no começo deste século, a lite
ratura constituiu, freqiientemente, uma autêntica re
volta contra a burguesia: basta citar os casos de Rlm-
baud, Mallarmé, os surrealistas. Então, o momento ne
gativo da revolução — que é precisamente a revolta —
ainda não fora ultrapassado; uma insurreição indivi
dual, na ordem intelectual, moral ou estética, tinha sen
tido e alcance. Hoje não é mais possível ser contra a
burguesia sem se aliar positivamente aos seus adversá
rios; de bom ou malgrado, o artista se acha engajado:
se pretende salvaguardar uma independência anárqui
ca, a burguesia logo o incorpora, e até aceita as suas
insolências, os seus exageros, com uma indulgência ma
ternal, demonstrando assim quanta liberdade concede à
cultura. Retrospectivamente, a burguesia recuperou
Rimbaud e Mallarmé. O revoltado de hoje não pode
ignorar esse estado de coisas: ou adere à revolução ou
consente em servir à causa da civilização ocidental. A
poesia, que no passado se construía sobre a ruína dos
valores burgueses, hoje serve de corpo e alma à burgue
sia contra as m assas.
Ainda um a vez, 6 de perguntar: com que direito?
É explicável que os últimos pagãos tenham defendido
desesperadamente, contra a barbárie cristã, uma civili
zação que julgavam única. O burguês ocidental, contu
do, admira tanto as catedrais quanto os templos; ele sa
be, de acordo com uma frase de Soustelle, que “sem
pre se é bárbaro de alguém". Como, pois, so vale de uma
cultura singular para rejeitar o que vai surgir amanhã?
O civilizado responde que só lhe importa esta civiliza
ção, e que seu destino o arrasta para uma era que será
o triunfo do informe; nossa tarefa consiste em retardar
esta morte: o que vai nascer no futuro, nos séculos dos
75
séculos, não nos afeta. Este argumento, com o qual Já
deparamos em linhas gerais, aparece n este domínio de
modo singularmente formal; revela a m esm a perversão
que encontramos no terreno da ética. Como a moral,
uma arte autêntica afronta o m undo em seu devir cons
tante: pretender imobilizar o hum ano e reproduzir-lhe
as formas mortas indefinidamente, é trabalhar contra
a arte. E, com efeito, as obras que hoje os intelectuais
burgueses mais apreciam são pastiches. sten d h a l ou
Madame de Lafayette, que eles agora parodiam, foram
grandes, precisamente, pela sua novidade. Se a arte é
um antidestino, tanto amanhã como hoje ela se sobre
porá ao tem po. A primeira preocupação de um novo
Rim baud1 deveria ser saltar fora dessas barreiras que
pretendem protegê-lo.
. Replicam-nos que o homem n ão pode contrariar o
destino senão em um certo mom ento do seu destino, e
que o futuro próximo ressuscitará a barbárie da alta
Idade Média. Este futuro, segundo as profecias da Elite
catastrófica, é o comunismo: e entre com unism o e cul
tura h á incompatibilidade. Muitos intelectuais e artis
tas não concordam com isto. Aron e M onnerot, então,
os acusam de aderir ao comunismo para obter um a
“promoção” . Iria, pois, favorecê-los o regim e com unis
ta? O fato de que o creiam não prova nada: ficou esta
belecido que era falso o seu espírito, e sua opinião, per
vertida pelo ressentimento, não vale n ad a. Às suas
aberrações, são opostas evidências infalíveis: pela boca
do Sr. Stanislas F u m et2, a Arte em pessoa tom ou a pa-
76
lavra: “Não somos nós, escritores, artistas, que rejeita
mos a servidão que se nos promete, é a essência da arte,
a pureza de sua intenção que a isto se esquiva. Se a
vossa filosofia não o recon h ece.. . a Arte o diz, com su a
infalibilidade, que ela é um erro, e que sua aplicação'
moral é uma impostura. A estética m anifesta o ridículo
da ética” .
A liberdade que a Arte exige é a liberdade burgue
sa, aquela que transaciona com a sujeira, a miséria, a
corrupção; a sobrevivência dessas mazelas lhe é, inclu
sive, necessária. Porque a liberdade é a diferença: 6
preciso, pois, o mal ao lado do bem, e os pobres ao lado
dos ricos. Eis um a nova maneira de justificar a injus
tiça: o artista ocidental afirma que ela é necessária à-
sua obra. Escutemos M ontherlant >: “Sou poeta, não sou
mesmo mais do que isto, e necessito amar e viver toda
a diversidade do mundo, todos os seus pretensos con
trários, porque eles são a matéria da m inha poesia, que
apodrecería de inanição em um universo onde só rei
nassem o verdadeiro e o justo, assim como nós morre
riamos de sede se só bebêssemos água quimlcament&
pura” . ■ ■I
É hmw, portanto, que milhões de hom ens morram
de inanição para evitar que isto aconteça à poesia de
Montherlant. Uma profusão de gênios ocidentais lhe fa
zem coro: que os fam intos, piolhentos e bárbaros se
uerpetuem se é este o preço da m inha obra! Os espíri
tos distintos os aprovam: suprimir o m al seria eníear
a terra, eliminar este “sal picante” 12 que dá o gosto pró
prio da vida. Uma das virtudes da nossa civilização é,
precisamente, o fato de que é culpada — explicou
Thierry Maulnler. A infelicidade dos hom ens é necessá
ria ao Transcendente — afirma Jaspers: nos asseguram,
ademais, que é necessária à Beleza e à Arte. As dou-
77
trinas e as políticas que visam à felicidade humana são
rilmente a-metaíísicas e grosseiramente antiestéticas
Conservemos, pois, este mundo tal como é.
Não percebemos por que uma humanidade renova
da seria incapaz de se manifestar por “cantos, danças,
monumentos”. E os conservadores repetem tão insisten
temente que “haverá sempre infelicidade sobre a terra”,
que podemos lhes devolver o argumento: varrida â
opressão, começará a verdadeira história da humanida
de, e ninguém disse que será fácil; na verdade, nos é
impossível prevê-la. Todo aquele que desconfia a priori
da novidade é, talvez, um acadêmico: seguramente não
um artista. Mascolo1 observa com acerto: “Qualquer
que seja o grau a que possamos reduzi-lo, não é dema
siado^ otimismo pensar que sempre restará bastante
“destino” para provocar o ato artístico que consiste em
figurar sua negação”. E acrescenta: “Esta arte cúmpli
ce da infelicidade não pode ser uma grande arte. Ela
termina por trair a infelicidade e, assim, trair-se a si
mesma".
Aliás, seria ingênuo levar a sério a falação interes
sada dos gênios ocidentais: seu propósito é por demais
manifesto. Drfeu, que em sua juventude se deixava em-
bair por essas concepções, confessou francamente: “Não
sei amar. O amor à beleza é um pretexto para odiar os
homens”. Estas palavras confirmam o que Sartre pôs a
descoberto em Saint-GenetJ: “O esteticismo não proce
de, de modo algum, de um amor incondicionado ao belo:
nasce do ressentimento”. É uma arma que se utiliza
para justificar a ordem estabelecida, e por outro lado
para se permitir desprezar aqueles que esta ordem opri
me e sacrifica.
Membros da Elite norte-americana me apresenta
ram um dia o seguinte raciocínio: “Os livros de Heming-12
1 Le communisme.
2 Saint Genet, comédien et martyr.
78
way são best-selers; ora, o grande público só gosta de
má literatura; logo, Hemingway faz m á literatura". O
silogismo é rigoroso desde que se aceite a premissa;
massa e valor se excluem . É este princípio de exclusão
que funda a estética da direita. Só o raro é valioso: ao
vulgarizá-lo o destruímos. É o que ocorre, por exemplo,
com a elegância. É uma noção puramente negativa: a
elegante se afirma diferindo das outras mulheres; se
todas se tornassem elegantes, nenhuma o seria mais, e
a própria noção de elegância desaparecería. Daí que,
dentre os valores estéticos, seja a elegância o que a elite
mais exalta. E ainda a distinção, que é por definição
apanágio de uns poucos. A própria beleza é concebida
como difícil, secreta, inapreensível para os vulgares.
Quem aprecia o que é vulgar, fica logo desacreditado.
Há, no entanto, um conceito estético cujo conteúdo
parece mais positivo: a qualidade. De fato, sua sorte
está estreitamente vinculada à das sociedades hierar-
quizadas. Cada pessoa hum ana, se permanece pruden
temente em seu lugar, possui um certo valor substan
cial: este se manifesta n a graça de um gesto feminino,
na nobreza do gesto de um camponês e, sobretudo, na
qualidade do objeto feito pelo artesão. Mas o artesanato
produz pouco: o objeto de qualidade é raro, reservado a
um pequeno grupo de colecionadores, únicos capazes de
apreciá-lo. E o que lhe confere seu valor não é tanto
sua beleza sensível, mas o seu caráter aristocrático. Um
vinho velho traz ao conhecedor que o degusta uma
forma substancial: a França real. Tivesse exatamente
o mesmo sabor, o mesmo bouquet, esse vinho, produzido
em série, já não daria pretexto aos conhecedores para
se distinguir: mesmo que ainda o bebessem com prazer,
já não teriam o mesmo interesse.
Assim, também as rendas feitas a máquina — cópias
tão exatas das rendas a mão, a ponto de imitar-lhes até
os defeitos — sendo produzidas em série e acessíveis às
massas, não possuem nenhum valor: nem econômico
nem estético, já que os dois se dão juntos. Apesar das
79
aparências, a Idéia de qualidade encerra também um
principio de exclusão: pode-se afirmar que em uma hu
manidade massiíicada, a arte e os valores estéticos esta
riam ausentes, pois se define como válido somente o aue
se recusa às massas1. ’
so
Valor e Privilégio
SI
se sentem de todo Iguais. Sua indisciplina os íaz cair na
massa, cuja grosseira existência empírica não pode ser
legitimada por nada. A massa não chega ao Verdadeiro,
nem ao Bem, nem ao Belo. O divino se tomaria huma
no, e então pereceria, se fosse comum a todos. Mas ele
não corre este risco, pois que é definido a partir de um
princípio de exclusão. Já vimos como, sob o pretexto de
defender os valores, a civilização veda à generalidade dos
homens os direitos e vantagens a que empresta seu no
me. O pensador ocidental pretende, contudo, que os
valores são universais: graças ao seu zelo, o universo fica
reduzido a uns poucos.
Mesmo assim há uma passagem difícil de efetuar:
que vinculo sintético une os valores vitais ou espirituais
aos valores materiais? E estas duas últimas palavras não
se conflltam, já que a materialidade é coisa indigna?
Os santos consideravam que a virtude tem seu fim em
si mesma; se esperavam uma recompensa, imaginavam-
na de ordem espiritual, como a virtude mesma. A rigor,
poder-se-ia conceber que o Sábio e o Herói pretendam
guiar os demais homens e ser honrados por eles: mas
não que reclamem ser melhor pagos. Através da idéia
de mérito, entretanto, a moral burguesa associa miste
riosamente o valor ao gozo. Scheler não vacila em de
clarar: “Os valores de prazer como os objetos ou as re
lações que os representam, não devem, pois, ser repar
tidos entre os homens segundo a “justiça”, mas de tal
modo que os homens possam pretendê-los na proporção
do seu valor de vida. E toda justa distribuição dos va
lores de prazer realizada ou latente, constituiría uma
injustiça clamorosa para com aqueles que representam
os valores de vida superiores.”
A reinvindlcação de bens materiais em nome de vir
tudes imateriais raramente se apresenta numa forma
tão ingenuamente cínica. Por exemplo, prefere-se sus
tentar que a fortuna, o ócio, as liberdades burguesas são
necessárias à promoção das virtudes superiores, das
qualidades mais elevadas. Assim, era preciso surrar os
índios para que as mãos da famosa Camilla fossem tão
82
perfeitas. Mas esta manobra é perigosa; quando se co
meça a introduzir em um sistem a a m aterialidade, é
difícil poder dar a parte que lh e cabe. S e os m éritos que
a Elite se atribui dependem das condições em píricas da
sua existência, não pode supor, então, que todos os h o
mens, igualmente favorecidos, seriam capazes de elevar-
se às mesmas culm inâncias? Já se vê aonde u m a hipó
tese dessa ordem poderia nos levar.
O argumento m ais sério é o apontado por Jaspers.
A sobrevivência de um a “nobreza da hum anidade”, as
exigências do Transcendente, requerem a m an ten ça de
uma sociedade hlerarquizada, im plicando, portanto, de
sigualdades m ateriais. Se a E lite n ão tivesse um a força
econômica suficiente para controlar a coletividade, esta
se massificaria. A alm a nobre, portanto, n ão reclam a
diretamente vantagens em píricas: só deseja que se per
petue, para o benefício espiritual de todos, essa situação
que lhe é vantajosa.
O sistem a é por dem ais coerente: tem a coerência
de uma tautologia. E o postulado sobre o qual se funda
é tão arbitrário como um ato de violência: declara-se a
massa privada de substância, e tu d o o m ais decorre d aí.
Mas, em que se reconhece a riqueza ontológica de um
grupo ou de um indivíduo? A su b stân cia não pertence
ao mundo empírico, e só se m an ifesta n ele por sin a is.
Ora, o único sinal que distingue o Eleito é o privilégio:
é através dos privilégios que a E lite se reconhece, se
afirma, se separa.
Toda a astúcia consiste em fazer do privilégio a m a
nifestação de um valor cuja presença conferiría precisa
mente ao privilegiado o direito ao privilégio: é-lhe n e
cessário ter um poder econôm ico para defender o bem
que se encarna nele, e cujo sin al é ju stam en te esse po
der. Em outras palavras: o E leito m erece os valores do
prazer pelo fato m esm o de que os p ossu i. A conclusão
é normal, pois a escalada de m éritos foi elaborada pelos
possuidores com o fim de legitim ar suas possessões. Dis
simulada na espessura de vastos sistem as, a ideologia
S3
“burguesa se resume neste truísmo: o privilégio pertence
ao privilegiado.
Um anticom unista dos m ais encarniçados, Guido
Piovene, demonstrando a necessidade da “guerra fria”1,
confirma exatam ente estas conclusões: confessa que as
justificações propostas pela inumerável literatura anti
com unista são todas mero palavrório: “Na sua maior
parte esses argumentos nos deixam perplexos, e — se
vamos além de um a adesão de caráter prático — se re
velam pouco explícitos, superficiais e provisórios, tanto
como os que o adversário lan ça contra nós. Apontam
sempre ou m uito para cim a ou m uito para baixo. . . Dei
xarei de lado os argum entos que decorrem do idealismo
em qualquer de suas formas, e que invocam a “priori
dade” e a “superioridade do espírito” e “o espírito que
faz a história”, argum entos que já caíram na banalida
de. É igualm ente in ú til insistir nas razões patrióticas...
M as h á um argum ento caro aos intlectuais, que ocupa
com suas variantes m ilhares de obras e opúsculos: refe
re-se às m entiras do m undo com unista, ao seu desprezo
pela verd a d e.. . “Ora, todos sofremos, em maior ou me
nor grau, a m esm a crise da verdade e da alma, e nin
guém pode fazer u m a afirm ação categórica.” Piovene
conclui: “Em nossos países, a burguesia está pouco con
vencida, e quase não tem razões válidas para defender-
se , salvo o in stin to de conservação e o propósito dos
seus membros de m anterem -se nas posições, dotados dos
valores que trazem em si m esm os pelo simples fato de
viver” .
84
A Vida dos Eleitos
85
pcnhados nesse combate se superariam autenticamente
num plano de realidades transcendentes. No entanto,
Já vimos que a luta é hoje mais negativa do que con-
quístadora e que, em conseqüéncia, a moral da bur
guesia se inclina para o quietísmo: sua visão do mundo
c sua psicologia imanentista estão orientadas neste sen
tido.
O pensador burguês Justifica o quietism o pelo ca-
tastrofismo histórico; esse pessim ism o n ão raro, vem
acompanhado de um otimismo cosmológico: a História
está condenada, m as, em sum a, o universo é bom; em
todo caso, o recuo estético permite vê-lo assim . Níetzs-
che pregava o amor fati; ensinava ele que é preciso "di
zer sim à vida” . Seguindo-o, os que ocupam os m elho
res lugares neste mundo, corajosamente se resignam
a essa aceitação: Montherlant, por exemplo, não deixou
de proclamar ao longo da sua vida: “Tudo está bem” .
Escrevia ele, em 1925 *: “Sim, todo m undo tem razão,
sempre. O marroquino e o governo que o m etralha. O
caçador e a caça. A lei e o seu transgressor. E eu, quan
do escrevo tranqiiilamente estas coisas. E eu se as m al
dissesse no calor de uma exaltação” . Torna a dizer isso
cm 1938, nos seus Camets: “Com que espírito podemos
suportar — nós, os felizes — a miséria do mundo? As
sim como suportamos que seja noite em New York à
hora em que há sol em Paris” . E em 1951 ele pronun
ciava as seguintes palavras: “Que outra coisa fiz eu em
quarenta anos senão aceitar? Aceitar os outros, aceitar
a mim mesmo, aceitar as circunstâncias: aceitar apro-
y vando.. . Agora vivo em um mundo onde tudo está m a r ,
cado pelo triplo sinete da loucura, da baixeza e do hor
ror. E, não obstante, esta adesão universal me faz estre
mecer ainda hoje ante aquela frase que já me comovia
misteriosamente aos vinte anos: Malgrado as minhas 1
86
desventuras, m inha idade avançada e a grandeza da m i
nha alma, levam-me a julgar que tudo está bem” 1.
Tudo está bem se temos a alma bastante grande
para suportar a miséria dos outros e os nossos próprios
privilégios. A comparação de Montherlant sugere discre
tamente que o destino dos homens imite os grandes ci
clos naturais: amanhã o vadio será por sua vez milio
nário, e Montherlant descerá ao fundo das minas para
extrair carvão. E se a roda não gira tão depressa, muitos
sábias nos pregam a equivalência de tudo e nada: a
ausência de Deus equivale à sua presença, o nada da
consciência nos remete à plenitude do Ser, a miséria do
homem constitui a sua grandeza, pelo despojamento se
atinge a verdadeira riqueza. É uma dialética mutilada,
na qual a tese e a antítese são imediatamente identifi
cadas, sem que se opere a sua ultrapassagem conjunta
para uma síntese superior. Tal é o método que a direita
emprega deliberadamente para confundir as cartas e
deter a História. O escravo não tem por que converter-
se em senhor: já o é, ou pelo menos assim o afirma o
senhor. Essa filosofia pode tomar ainda muitas outras
aparências; mas de uma forma ou de outra — estoicis-
mo, mística, naturalismo — essa atitude de consenti
mento que encanta Montherlant, está muito difundida
entre os privilegiados.
É também isto que prega Pingaud no seu Éloge du
consentement2: “O consentimento é o contrário da con
quista”. O homem que consente “não pode admitir liga
ção com ninguém . . . , recusa-se a pertencer a quem quer
que seja, nem sequer a si m esm o .. . não procura reali
zar nenhuma obra, não m ilita por nenhum a causa, nem
propõe regra alguma. Tem a eternidade para si, porque
já vive, arbitrariamente, na eternidade. Não teme mor-
87
rer, porque já está morto. E como já está morto, como
já vive na eternidade, este homem pode assumir a his
tória sem remorso e sem cálculo. E a assume não como
uma tarefa da qual tirará proveito, nem como uma con
quista de que sairá mais forte, mas como uma evidência
que não -pode senão constatar. .. O homem do consen
timento será, pois, o amigo e o servidor de to d o s.. . Seu
amor, sua fidelidade, são universais” .
Vemos neste texto como as idéias de consentimento
e de ataraxla estão intimamente ligadas: trata-se de não
tomar partido, de não fazer nada. Esta maneira de as
sumir a história, limitando-se a constatá-la, é quase a
mesma que ensina Jaspers; interessa-lhe a recusa sob a
tripla forma do suicídio, da mística e da ironia, e não
uma ação revolucionária. É a fidelidade que, em essên
cia, ele acentua; ela consiste em ancorar no passado e
suportar a finitude da nossa situação presente, tal como
nos é dada. Com as tintas da ironia, da melancolia, ou
iluminada por uma mística, a sabedoria burguesa geral
mente propõe esta divisa: aceitar.
Mas, exclui completamente a ação? Neste ponto,
nem todos os intelectuais da direita estão de acordo.
Claude Elsen e Claude Mauriac debateram amplamente
sobre isto, anos atrás, em La liberté de Vesprit, e mais
recentemente, também o fizeram Jacques Laurent e
Thierry Maulnler. Elsen e Laurent são quietistas intran
sigentes: a menor ação implicaria sujar-se e bastaria pa
ra interromper o puro milagre de ser eles mesmos. Clau
de Mauriac admite que para preservar os valores que
excedem a ação, é preciso, às vezes, atuar. E Thierry
Maulnier acha que certos princípios eternos devem ser
efetivamente defendidos. O certo é que, de qualquer ma
neira, todos concebem o indivíduo como uma coisa dis
tinta dos seus atos, não definida por eles: a sua verda
de está em outra parte.
Com efeito, o valor que distingue o homem de elite
não 6 uma coisa que so adquira: vital ou espiritual, a
nobreza é uma graça inata. E como uma causa poderia
interessar serlamenlc a um indivíduo lúcido, já que elo
88
se sabe fech a d o n a su a im a n ên cia ? N ão h á relação au
tên tica sen ã o com o se u próprio eu : tod o fim exterior
perm anece estra n h o a ele; se b u sc a a lg u m fim , n ão é
porque seja o b jetiv a m en te so licita d o por este, m a s por
u m capricho su b jetiv o . A ssim , a c r ític a que os a n tico
m u n ista s fa zem do m a rx ism o é — com o já vim os — in
teiram en te fu n d a d a sobre e s ta ra d ica l d issociação do
sujeito em relação aos se u s fin s; a s a ções que se p reten
dem d esin teressa d a s n ã o sã o m a is do q u e u m d isfarce
de desígn ios e g o ís ta s . E sta in terp reta çã o é evid en te
m en te p rojetiva: é p a r a a b u rg u esia , cu ja situ a çã o já
está com od am en te a sseg u ra d a e q u e se a c a n to n a fu n
d a m en ta lm en te n o eg o ísm o , q u e a a ç ã o c o n stitu i um
luxo su p érflu o, u m jogo g r a tu ito . D rieu ex p ressou com
ênfase, em L a s u ite d ans les idées, e ssa in d iferen ça com
respeito ao co n teú d o d a p o siçã o a ssu m id a :
“E por q u e n ã o h a v eria m o s de m u d a r de bandeira?
Por que n ã o p refeririam os o v erm elh o ao b ranco? É a s
sim que procede o a m o r . Q u erem os o n o v o . S e n o s é
oferecido, devem os t o m á - lo .”
“O novo, o novo.' L an cem o s a s b om b as I”
E, de fa to , G illes, o h e r ó i de D rieu , esco lh e u m a
ideologia com o escolh e u m a c a m isa n u m a lo ja de lu x o .
Opta a n tes p elo com u n ism o; dep ois o aborrece e se tor
n a fa sc ista . R a m ó n F ern a n d ez, que d eu u m a “virad a”
sem elhante, d eclarava n e s s a m e sm a ép oca: “S ó go sto dos
trens que p a rtem ” . Com qu em viaja v a ? Q ual era o d es
tino do trem ? P ou co lh e im p o r ta v a . S e a g im os é para
obter sa tisfa çõ es su b jetiv a s: u m a im p ressã o de n o v id a
de, ou de m ovim en to, ou de c o r a g e m . Q uem im a g in a sse
visar a u m fim exterior a s i seria u m to lo . É o que afir
m a M onth erlan t em Service in u tile : “V ocê m e d irá que
n enhu m a cau sa vale que se m orra p or e la . É bem p ro
vável. Mas n ã o so frem os o u m orrem os por e ssa c a u sa .
É pela idéia que esse so frim en to e e s s a m o rte n o s d ão de
nós m e s m o s . , . É preciso ser absurdo, m e u a m igo, m a s
não scr in c a u to . N e n h u m a p ied ad e com o s in c a u to s” .
M on th erlan t torn a a pregar e s ta sab ed oria m a q u ia
vélica em Lc solstice de ju iii: “A p esso a do adversário
89
e as Idéias que se supõe que ele representa, não têm
pois, nenhuma importância” . “O combate sem fé é a
fórmula a que chegamos forçosamente, se queremos
manter a única idéia aceitável a respeito do homem:
aquela era que ele aparece ao mesmo tempo como herói
e como sábio.”
Quando, numa entrevista, Roger Nimier disse subs
tancialmente: “Não, não fui miliciano: o azul não me
senta bem”, ele continuava essa tradição. A frivolidade
afetada do seu achado significava que ele negava toda
verdade ao mundo exterior, para não atribui-la senão a
ele mesmo. Jacques Chardonne caminha na mesma di
reção, quando escreve nas suas Lettres à Roger
Nimier:
“Nossas opiniões significam que somos feitos assim,
e isso é tudo!
“ . . . Olho minhas próprias opiniões e as dos outros
como criancices, é a esta conclusão que me levaram
meus estudos. Atualmente, as opiniões políticas do fran
cês são as opiniões de uma mulher nervosa; e as_ idéias
de uma mulher nervosa, bem sei de onde vêm. Não gos
to disso.”
O desprezo pelos fins objetivos se manifesta tam
bém na mitologia do chefe, tal como é concebido pela
direita: não é a sua obra que interessa, mas a sua figu
ra. Os poemas de Drieu sobre “o Ditador”, seu romance
Uhomme à cheval, são significativos. O herói desse ro
mance se converte em ditador por acaso, sem motivo
algum; não tem um programa definido. E, sendo dita
dor, inventa uma causa, pois precisa de um pretexto
para se manifestar. Mas, na realidade, ele é indiferente
a todos os partidos, alheio ao seu próprio país e ao mun
do inteiro. A ditadura só lhe serve, afinal, para exaltar
a nobreza da sua alma. Medíocre, um príncipe se limi
ta a exercer o poder pelo poder; mas se é de boa qua
lidade, o chefe converte o poder em uma ascese; chega
a ser o maior de todos, porque é o mais solitário. Não
tendo nenhum igual, difere dos outros mais do que qual
quer outro, é mais ele mesmo. Nele, o homem de elite
90
alcança a m ais a lta in d ivid u alid ad e. E 6 prcclsam ente
dal que vem a su a autoridade: seu s partidários o obe
decem n ão porque ten h a m cm co n ta os fin s objetivos
que ele persegue, m as porque sen tem a ascendência da
sua personalidade. Com o o Senhor, p elas m esm as razões,
ele reclam a u m a adesão incondiclonada em nom e de
um a certa G raça que o h a b ita .
M ax Weber propunha, a n te s da ú ltim a guerra, um
retrato do ch efe “carism ático”, que Aron resum e assim *r
“Inteiram en te devotado à su a m issão, apaixonado e não
obstante lúcido, ele é o senhor das su a s tropas, ele triun
fa pela ascen d ên cia d a su a personalidade, não pela adu-
lação ou dem agogia” . É com o o profeta Judeu “que fus
tig a o povo e que se im põe com o chefe porque é dotado
de virtudes extraordinárias” . O m ito perdeu m uito do
seu brilho depois d a m orte de M ussolinl e de H itlcr.
M as sobrevive a in d a . É sign ificativo, por exem plo, que
M alraux falando n o Paris-M atch sobre o general De
G aulle, n ã o te n h a tid o u m a palavra para indicar que
o program a ou a cau sa d egau llista o interessaram:
ele se declara, sim plesm ente, seduzido pela grandeza do
h om em .
O sentido e o alcance dessa atitude subjetivista têm
su a m an ifestação m a is evidente n o ensaio em que
Thierry M aulnier reinvindica para o hom em “o direito
de errar” 2. D eclara ele: “O direito de errar é o direito
fun d am en tal do ser hum ano, e envolve todos os outros” .
É claro que o reconhecim ento desse direito implica n e
cessariam ente u m a concepção global do homem: aquela
que, reduzindo-o à su a im anência, autoriza todas as rei
vindicações egoístas do burguês. Para um hom em que
creia n a im portância dos seus fins, o fracasso é uma
desventura absoluta: é im possível salvá-lo, senão com
u m a reparação objetiva. Sem dúvida Thierry Maulnier
91
não aceitaria m anter em seu posto, em nom e do direito
de errar, um ferroviário que tivesse provocado um grave
acidente: m esm o que houvesse razões para escusá-lo, es
taria objetivamente desqualificado. O direito de errar
implica, pois, que a m oral não se situ a neste mundo
empírico, m as em um plano transcendente, isto é, de
fato subjetivo. O bem está em algum céu: e a qualidade
da alm a que o busca não depende do seu êxito, mas da
pureza de su a intenção. A m oral da intenção sintoniza
com o subjetivismo burguês, m as ela contradiz a pró
pria idéia de tentativa: por que perseguir fins empíri
cos, se não têm em si nenhum a significação ética? A
contemplação é então a ú n ica relação com o Transcen
dente que podemos conceber. O m ais deplorável neste
caso é que os “erros” defendidos por M aulnier são de
caráter m uito concreto: são faltas políticas que puse
ram em jogo vidas hum anas. Será preciso admitir que
o m orticínio não tem nada a ver com a ética? Talvez,
se a existência empírica dos seres hum anos não conta
para nada; m as então consentir nos crimes que se co
m etem contra eles não é sequer um “erro”; neste caso,
seria melhor adotarmos o ponto de vista de Sade e nos
declararmos autorizados a esmagá-los com os pés.
Contudo, o subjetivismo burguês não chega a assu
mir esta forma extrema. O burguês está integrado na
ordem que defende, e mesmo se estim a que, em defini
tivo, não tem de prestar contas a ninguém, ajusta-se a
essa ordem através das suas relações com o próximo. À
falta de atos, se lhe exige uma conduta. Que lei seguirá
essa conduta?
A hierarquia social oferece uma resposta: no m un
do burguês, as relações que os indivíduos têm entre si
nunca são im ediatas. Cada um é reconhecido pelos ou
tros através da função que desempenha e que o valoriza;
esse reconhecimento é regulado por ritos e cerimônias,
tem um caráter institucional. Os costumes, as leis, defi
nem as relações dos pais com os filhos, do marido com
a mulher, do chefe com os seus subordinados, e vice-
92
versa. A cortesia, o saber viver, lembram constantemente
aos burgueses que devem se comunicar exeluslvamente
por intermédio da sociedade. O respeito que mutuamen
te demonstram os pares manifesta sua deferência para
com a forma ou a instituição que se encarna em cada
um deles: dois generais que se saúdam estão saudando
o exército. Na medida em que as circunstâncias singu
lares excedem as previsões do código estabelecido, os
seres de qualidade se reconhecem por inventar instinti-
vamente uma conduta adequada: esse instinto é o sen
tido da honra. “A honra é questão de sangue, não de
entendimento — declara Spengler. Não se reflete sobre
isto, ou então já se está desonrado.” A honra assume
diversas características: no inferior é fidelidade, devo
ção; entre pares, é lealdade; no Amo, a virtude essen
cial é a justiça. São bastante conhecidas as mitologias
em que se exalta esta moral; a simples dignidade dos
humildes, a abnegação das mulheres e dos bons servido
res, as disciplinas aceitas, as obrigações assumidas, o
filho e o pai, o soldado e o chefe, o casamento, o lar, a
família. De Henri Bergson a Claudel, uma inumeráve1
literatura louva as instituições burguesas e as altas vir
tudes que elas fazem florescer.
O enjoado é que hoje estes mitos envelheceram um
pouco. As velhas hierarquias estremecem, a ordem do
mundo está incerta, a honra desfalece: eis o tema de
muitas lamentações. Face às massas que nenhum ele
mento inumano transfigura, o Eleito volta ao sollpsis-
mo: “Tudo o que é humano me é estranho” — conclui
o herói de Hussard Bleu. É lógico, já que a direita só
admite relações medlatizadas entre os homens: quando
a instituição sucumbe, quando a mediação se desvane
ce, não restam senão átomos isolados. Henri Bordeaux
conduz em linha reta a Nimler.
Cética, e não mais bem-pensante, a literatura de
direita se fecha, pois, no subjetivismo. Nenhuma comu
nicação real entre os seres humanos. O amor, por exem
plo, não é união mas solidão: um idealismo psicológico
93
inspirado em Proust, certa interpretação da psicanálise,
autorizam a considerar o amor como um fenômeno ima-
n en te. É o tipo m esm o da “alucinação falsa” . O objeto
é só um pretexto; n a verdade, o enamorado está só
com seu prazer, seu desejo, seus mitos, seus complexos,
seus delírios. Portanto, a sua conduta para com o ser
amado só concerne a ele próprio: assim Costals, em
Les jeunes filies (de M ontherlant), através de Solange
Dandillot e dos miúdos cuidados e prazeres que ela lhe
proporciona, não tem relação senão consigo mesmo: ele
regula seus gestos de acordo com o papel que deseja
representar. O sistem a se estende a todas as relações
hum anas. Com respeito aos inferiores, por exemplo, uma
virtude apreciada é a generosidade; porém o ato gene
roso, ta l como o concebe a direita, não é um a resposta
a um apelo vindo de fora, nem sequer é motivado pelas
necessidades do próximo: é um pretexto para o homem
superior m anifestar a sua “nobreza vital”; ou ainda —
como no rei de Nápoles, de Claudel — para que prove
seu desprendimento ante os bens deste m undo. Mas o
Eleito pode igualm ente ter o capricho de recusar a ge
nerosidade: se divertirá em demonstrar sua indiferença
para com o próximo, ou a soberania do seu livre arbí
trio, ou o seu desgosto pelas virtudes convencionais.
De qualquer modo, como não está fundada em nada,
sua conduta é gratuita. É o que significa, também em
Montherlant, o apólogo dos insetos: o forte pode
jogar com os fracos o jogo que lhe aprouver, só ele é
o am o,
A única preocupação do Eleito será pois o culto do
seu "eu”: vale dizer, o cultivo das suas diferenças. A
Elite m asculina afirma orgulhosamente sua virilidade,
de acordo com um a mitologia sexual bastante conhe
cida A maioria dos eleitos se atribui uma especificidade 1
95
substituiu o heroísmo pela vida interior. Instruída pela
historia, a Elite catastrófica sabe que é mais prudente
confrontar-se secretamente consigo mesma do que afron
tar abertamente um adversário. A nobreza de sangue
se inscrevia no sangue derramado; a nobreza da alma
se oculta nas dobras da alma.
As filosofias do Transcendente são elaboradas ex-
pressadamente para permitir que o indivíduo se refugie
na sua própria imanência. Aquele que acredita sincera-
mente no Transcendente experimenta a sua fé na an
gústia; os santos sabiam que é difícil distinguir a voz
de Deus da do diabo, a graça do orgulho; nenhum da
queles que passaram por santos se jactou de sê-lo, pois
só esta pretensão teria bastado para corromper as suas
virtudes. Se os nossos modernos heróis têm menos es
crúpulo, é porque o Transcendente não é mais que um
fantasma que lhes serve de nexo entre eles e si mesmos.
Eles o tiraram de si mesmos, projetando nele as suas
particularidades mais eminentes: voltam, pois, a encon
trar em si mesmos a evidência de sua presença, e ela
basta para justificá-los. Na verdade, somente a ação
empírica, a superação prática de um homem através dos
fins terrestres, podem arrancá-lo de sua imanência e
defini-lo objetivamente; o Eleito, porém, desdenha arris
car-se na terra, definir-se nela e nela medir-se. Prefere
afirmar, apoiado apenas na sua própria autoridade, que
no silêncio e na solidão da sua alma conhece o seu va
lor, seu mérito, sua participação no inumano que divi-
niza o homem.
Nenhuma contestação lograria atingir esta evidên
cia íntima. Até mesmo a vida intelectual escapa a ela,
já_ que a verdade só se dá numa experiência singular,
não raro inefável, jamais inteiramente comunicável. O
homem de direita se refugia de bom grado na força —
tão irrefutável quanto injustificável — de sua intuição
subjetiva: ó preciso que haja mesmo alguma coisa dife
rente nos judeus, uma vez que eu não posso suportá-los.
Sem oferecer nenhuma prova objetiva, cada um pode sò
crer o mais clarividente, o mais sutil, o mais profundo
96
dos homens: basta a sua própria aquiescência1. As qua
lidades éticas e estéticas — nobreza, delicadeza, gran
deza, autenticidade — são as m ais fáceis de reivindicar
para si, pois n este caso nenhum objeto 6 posto em
questão; o sujeito se ocupa som ente dos seus estados de
alma: os compara, os combina, os contem pla e os m e
dita de tal modo que possam engendrar outros. O exam e
de consciência, a análise psicológica são pretextos de
que se vale para, sem risco, distinguir-se aos seus pró
prios olhos. Aí está a grande vantagem da vida interior:
ela permite que cada um de nós se prefira a todos 03
outros.
Não obstante, essa vida oculta se exterioriza à von
tade em conversas, cartas, diários íntim os, ensaios e
romances. A certa altura, o sujeito se cansa do silêncio,
da solidão, do vazio, e então encontra um recurso:
apropriar-se disso sob a forma de literatura. A litera
tura é, pouco m ais ou m enos, a única atividade sufi
cientem ente afastada do real para que um quictlsta in
transigente aceite consagrar-se a ela .
É preciso, ainda, que escrever não constitua uma
ação: nada inspira m ais horror à direita de hoje que a
literatura "comprometida”. Tam bém nesse plano as
coisas mudaram desde 1944. Drleu, antes e durante a
últim a guerra, tinha-se lançado de corpo c alm a n a lite
ratura política. Num a conferência pronunciada durante
a ocupação, M axence reprovava com violência os "confra
des” que, no período de entre-duas-guerras, se m antive
ram à margem da contenda. Ê que então os intelectuais
de direita julgavam estar ao lado dos vencedores: era na
D7
época do heroísmo. Agora, enojados da ação, querem
uma literatura que se mantenha fora do mundo, que
os ajude a dissimular, a negar, ou pelo menos a fugir
da realidade. Uma vida sem conteúdo exige evidente
mente livros sem conteúdo. A literatura tem valor en
quanto distingue do vulgo escritores e leitores; tanto
mais esotérica, melhor ela desempenha este papel. Re
servada à Elite, serve-lhe de pretexto para se justificar.
É preciso, pois, que exista, e até se lhe atribui grande
importância: mas com a condição de que não diga nada.
Assim, Jacques Chardonne foi multo felicitado por ter
sabido tão bem, em suas Lettres à Roger Nimier, falar
sobre nadas, isto é, não falar de nada.
E não é tão fácil. Mascolo1 observa a respeito do
escritor: “É sempre do homem que ele fala. Pode não
se interessar senão pelas formas. Mas é sempre a forma
humana que termina por ganhar relevo em seus escri
tos. E essa forma transporta consigo mesma todo o saco
das idéias, dos valores e princípios, que precisamente
ele não queria encontrar... É impossível, contudo, falar
do homem — isto é, falar — sem falar do que o homem
transporta. Ele é portador de algo. Nem sequer as artes
plásticas escapam a esta lei”.
O fato é que até os mais encarniçados adversários
da literatura comprometida se deixam arrastar por ela
quando se arriscam a fazer obra positiva. Os ensaios de
Thierry Maulnier versam sempre sobre temas políticos.
La maison de la nuit é o tipo mesmo da peça teatral
de intenção militante. Quando Jacqces Laurent, em Le
petit canard, tenta nos comover com a sorte de um
jovem miliciano, escreve um romance pelo menos ten
dencioso. Sua revista, pretensamente descomprometida,
La parisienne, é tendenciosa até ao fanatismo. Claudé
Elsen, por sua vez, não vive numa torre de marfim: po
lemiza no Dimanche-Matin. Em suma, eles não conse-
1 Le communisme.
98
g u e m lev a r a t é a o fim o se u so lip sism o , n e m escrever
u m liv r o sem co n teú d o .
M as e sse c o n te ú d o pode, p e lo m en o s, ser tã o d esti
tu íd o d e s ig n ific a ç ã o q u e se c o n fu n d a com o n a d a . A n
te s d a d errota n a z ista , a jo v em d ir e ita d in â m ica d ese
ja v a u m a lite r a tu r a d e co m b a te, m a s a m a io ria dos es
critores co n servad ores ex p lo ra v a m te m a s q u e lh e s p er
m itia m a lin h a r fra ses se m n a d a por e m jo g o: o in v e n
tá rio q u e d eles fe z E m m a n u e l B erl1, p or v o lta d e 1927,
p erm a n ece h o je q u a se tã o v á lid o co m o à q u ela época.
É verdade q u e h o je n ã o é tã o c o m p la c e n te a d escri
çã o d a s d oçu ras d a v id a b u r g u e sa : d eix a -se esse filã o
p a ra o s r o m a n c ista s d o o u tro la d o d a M a n ch a . E m co m
p en saçã o , n u n c a fo ra m tã o a p recia d a s a s v irtu d es do
ch a m a d o ro m a n ce p sico ló g ico . “A p sic o lo g ia — obser
vava B e r l — sa b e su b stitu ir o ju lg a m e n to q u e a s co isa s
recla m a m p o r u m a co leçã o , a liá s in fin ita , de fa to s sep a
rados, dos q u a is n ã o p od e su r g ir n e n h u m ju ízo . T orn ou -
se, assim , u m a c e r ta m a n e ir a de d esq u a lific a r o esp íri
to .” O r o m a n c is ta p sic o ló g ic o b u r g u ê s n ã o s e in teressa
p e la situ a ç ã o d o s s e u s h e r ó is: e s tu d a o co ra çã o h u m a n o ,
em g er a l, e o e s tu d a n a s u a p u r a im a n ê n c ia . S e n o s
c o n ta u m a h is tó r ia d e a m o r, o o b jeto a m a d o m a l ex iste ,
e m e n o s a in d a o m u n d o em q u e v iv e m o s a m a n te s. Ou
s ã o d isseca d o s o s e sta d o s d e a lm a d e u m a lu c in a d o so li
tário, o u e n tã o , fo c a liz a n d o v á r io s a lu c in a d o s sem c o m u
n ic a ç ã o p o ssív e l — j á q u e a lin g u a g e m é m e n tir a —
d escrevem -se o s c u r io so s fe n ô m e n o s q u e r e s u lta m d a su a
c o ex istê n c ia .
A ú n ic a r e a lid a d e q u e o e sc r ito r b u r g u ês decid e
lev a r e m c o n ta é a v id a in te r io r . F o r a d e la , só p rocu ra
evadir-se: o u n o p a ssa d o , o u a tr a v é s d o esp a ço , o u n o
irreal. A s r e c o rd a çõ es d a in f â n c ia o c u p a m n a s b ib lio te
cas b u r g u e sa s u m lu g a r e sc o lh id o ; g r a ç a s a e la s, sã o
d esen volvid os m u ito a p r o p ó sito o s t e m a s d o arra ig a -
m en to : p a is a g e m , c a sa , a n te p a s s a d o s . Irresp o n sá v el,
99
a-social, separado, o m enino é o m odelo que o intelec
tual de direita gostaria de perpetuar ao lo n g o da vida.
Sua visão ingênua do m undo elim in a as duras resistên
cias e o descobre com o algo m aravilhoso. Q u antas vezes
não foi im itado o fam oso Le grand M eaidnes, de Alain-
Fournier!1 É tam bém um vago m aravilhoso que ofere
cem os especialistas em exotism o: p in ta m p aíses estra
nhos em seu m istério incom unicável; através do irredu
tível pitoresco das paragens, ou d a m en talid ade impe
netrável dos seus habitantes, eles fazem o hom em apa
recer diferente do hom em . R elatos de son h os, de aven
turas, evocações fa n tásticas: trata-se de n o s fazer es
quecer este m undo e a nós m esm os2.
Naturalm ente, não cabe aqui u m a análise, nem se
quer aproxim ativa, da literatu ra bu rgu esa de hoje.
Limitamo-nos, portanto, a algu m as observações. Apenas
consideraremos m ais d etidam ente dois tem as freqüen-
tes no pensam ento e n a m oral da E lite: são — estrei
tamente associados, u m ao outro — o tem a da natureza
e o da morte.
100
tom a irrisória a idéia de revolução e m anifesta o eter
no. Drieu, entre os personagens “m odernos” e absurdos
do seu romance Gilles, instalou um a “bela figura” de
velho campesino francês; este participa do grande silên
cio da terra, m as de quando em quando arranca de si
umas palavras cheias de sabedoria, em benefício de
Gilles. Mostrando um a faia, diz o velho: “H á algo eterno
n o homem. O que diz esta faia, tornará a ser dito sem
pre, de uma forma ou de outra”.
Entre essas verdades e essências im utáveis que a
natureza revela, está em primeiro lugar a natureza hu
mana; concebe-se então a hum anidade como um a espé
cie dada, e não como um produto do seu produto: a
idéia de natureza contradiz a de praxis.
Assim, a ação não tem efetivam ente senão um a in
fluência secundária no desenvolvimento das espécies
naturais: quando muito, ajuda n a expansão das possi
bilidades que dormem no germe, no ovo, m as não po
dería criá-las nem modificá-las. É preciso apelar para
a natureza se se quer afirmar o pluralismo das raças,
das castas, assim como a sua desigualdade: a espécie
hum ana se dividiría, como as outras espécies anim ais,
em variedades originariamente diferenciadas, cujas qua
lidades seriam transm issíveis por herança.
Mas a Elite, embora tenha espiritualizado a idéia
de nobreza, quer pensar que a sua superioridade é ina
ta: é tão impossível ao vulgo adquiri-la quanto um a
semente de cevada produzir um a espiga de trigo. Em
compensação, basta semear o grão de trigo em boa terra
para que germine m aravilhosam ente: o privilegiado
gosta de im aginar que o conforto e o ócio de que goza
favorecem, sem esforço de sua parte, um lento e secreto
enriquecimento de si mesmo. Pouco importa fazer: é
necessário ser. O ideólogo burguês pede à natureza a
confirmação desta verdade.
Não som ente o conservador assim ila aos frutos
da terra a hum anidade enquanto espécie, e cada indi
víduo humano; mas também as sociedades como tais.
101
FreqUentemente1, tem sido notada a preem inência que
a direita atribui às im agens organicistas. Spengler,
Toynbee, concebem as sociedades como organism os: as
sim o exigem o pluralism o e a noção correlativa de for
ma substancial. Som ente os organism os vivos possuem
uma individualidade radicalm ente d istin ta de qualquer
outro e positivamente unificada. Ao subordinar os h o
mens a uma forma hierarquizada e subm etê-los a uma
ordem preestabelecida, a ideologia da direita os conce
be, portanto, necessariam ente, n a relação dos membros
com o estômago, das abelhas com a colm eia. Nega, com
essas imagens, a autonom ia dos indivíduos, su a capaci
dade de realizar entre si solidariedades im ediatas, como
nega, sobretudo, as lutas que os separam . Todos apare
cem assim, igualm ente interessados em m anter a forma
a que pertencem; a violência se dissim ula sob o tran-
qüilo rigor de um a necessidade vital.
O otimismo naturalista pretende ser ainda m ais
universal: a natureza é harm onia, como o provava o
melão de Bem ardin de Saint-Pierre; em Claudel, ela
canta louvores ao Criador, e proclam a pelo seu esplen
dor que o que é deve ser. A cada um, indica o seu lugar
nesse concerto. O nacionalism o, por exem plo, se exaltou
através da natureza: o indivíduo não se realiza senão
modelando-se sobre o seu torrão. A substância de um
país _ nos diz Spengler — se m anifesta n as suas pai
sagens. Barres queria que os jovens franceses se nutris
sem de paisagens francesas: nos m ostra Sturel e Saint-
Phlin a descobrir de bicicleta, ao longo do Mosela, a
realidade da Lorena. N a Áustria, n a Alem anha, os jovens
nazistas alternavam alegrem ente jiogrorns e passeios
pelos bosques. Os neofascistas do A lto Adige ainda hoje
se comprazem em colher o eãelweiss.
102
O nacionalismo já não serve. Hoje, quando Heideg-
ger passeia através dos bosques, ele busca uma comu
nhão, não mais com um país particular, m as com o Ser.
,Ora, o Ser é hoje o grande álibi do civilizado ocidental:
ele justifica a sua indiferença a respeito dos outros ho
mens, ao pretender-se votado ao Transcendente. So
nhando solitário, entre os m ontes e os vales, se persuade
de que está em comunhão com o Todo. No silêncio das
coisas, capta a afirmação feliz dessa Realidade oculta,
a única que vale.
Essa calma imagem da natureza não é, porém, a
única que se propõe: também pode-se ver nela uma sel
va desordenada, onde a desigualdade nega a idéia de
justiça, onde a força derruba todo direito. O homem é
lobo do homem, a vida é uma luta em que vencem os
mais fortes. Se esta concepção parece contradizer a pre
cedente, na prática presta os mesmos serviços aos opres
sores: lhes permite fazer com que a natureza endosse
as suas próprias responsabilidades. Assim, as desigual
dades não são injustas, já que são dadas; a infelicidade
dos homens não é um crime se ninguém é o seu autor.
Aos utopistas que pretendessem modificar o curso do
mundo, a natureza opõe sua imutável fatalidade: “Nun
ca se acabará com a injustiça de que este mundo está
cheio; a sociedade será sempre, como a natureza, um
caos de iniqüidades” — escreve Jacques Chardonne nas
suas Lettres à Roger Nimier.
A bem dizer, a natureza é fácil: ela diz as palavras
que lhe ditam. Na voz do vento, do mar, de uma palma
que balança, o homem escuta a sua própria voz. Lorena
ensina a Barrès a grandeza da propriedade fundiária:
é que — como bem o notou Berl1 — ele preferiu con
templar somente as suas colinas cobertas de vinhas e
de ameixeiras: não quis ver os altos fornos que flam e
jam ao longo da planície. Jean Giono, em recente entre
vista, declarava que aprecia o valor de um livro lendo-o
103
ao ar livre: são raros, acrescentava, os que resistem a
esse confronto com o céu e a terra. Isto sig n ifica , de
lato, que, a partir do gênero de vida que esco lh eu para
si, poucos livros interessam a G iono: a recu sa vem dele
mesmo e não da paisagem provençal.
Na realidade, a natureza oferece u m alibi m uito
cômodo aos eleitos que pretendem só depender de si
mesmos; procuram nela um a im agem sen sível p ara as
abstrações que forjam e para os seu s fu gid ios estados de
alma. Ela passa a ser um dos sem b lan tes do T ranscen
dente que eles invocam para negar os h om en s. Sem
dúvida que para quem am a os hom ens não h á n a d a que
impeça o amor à natureza; m as convém desconfiar de
quem vai buscar lições nela.
O inverno engendra o verão, e o verão o inverno.
A natureza iguala a vida à m orte. E m B arrès, o culto
oo solo ancestral está in tim am en te ligado ao cu lto p e
los mortos: a terra é um im enso cem itério. S e os escri
tores de direita veneram tão sign ificativam en te a n a tu
reza, é sobretudo porque ela lh es serve para afirm ar a
preeminência da morte sobre a vida.
105
Vaidade das vaidades. És pó e ao pó retornarás. A
Elite catastrófica, de bom grado, empurra para a gran
de noite terminal este mundo que a condena. “Este
mundo que um dia deixará de ser, como todo planeta,
um mundo habitável, será que nos concerne realmen
te?" — pergunta Chardonne1. O privilegiado prefere
pensar que está fora de qualquer implicação: assim pode
continuar cultivando tranqüilamente seu jardim diante
dos “famintos, piolhentos e bárbaros” que estão na peri
feria. À luz da grande igualdade funerária, seria muito
frívolo disputar-lhe as efêmeras vantagens de que goza.
A meditação da morte é a suprema sabedoria dos
que já estão mortos.
106
Conclusão
107
ideologia burguesa como um fenômeno original, funda
do na investigação da Verdade. Sua ambivalência nos
adverte que não nos deixemos enganar: todo pensa
mento se desenvolve, não entre as Idéias, mas sobre a
terra, pondo a descoberto uma prática. Se o pensamen
to dos burgueses é tão embaraçado, é que há contra
dição entre os termos que o expressam e a prática.
A primeira das suas dificuldades provém da própria
natureza do pensamento: este quer incidir sobre as coi
sas e aspira a ser universal. Mas já sabemos a que ina
ceitáveis conclusões leva a apreensão do real sob a for
ma de universalidade: em vez de gradações entre os
homens, um espantoso nivelamento. O ideólogo da direi
ta dissocia as duas exigências que não pode satisfazer
ao mesmo tempo. Realista, tenderá a particularizar o
pensamento pela natureza do objeto pensado e a do
sujeito pensante: os mediterrâneos pensam a realidade
mediterrânea, concreta e singularmente. De modo simé
trico, quando visa à universalidade, desrealiza seu objeto
e o converte em pura Idéia: fala do Homem em nome
de todos, a todos, mas do Homem abstrato, tal como o
construiu na sua mente.
O esquema que sugere esta dissociação é o seguin
te: no fundo do dado empírico há uma substância-valor;
acima do dado, reinam as Idéias-Valores. Situando-se
ora em um plano, ora em outro, o pensamento burguês
salta do real para o universal, e inversamente. Mas sem
jamais conseguir reuni-los. Entre um e o outro h á uma
cisão. E tal como o número irracional, o mundo dos
homens fica fora de uma e de outra região: não tem
existência legítima.
A superposição ao mundo subterrâneo de um céu de
“formas substanciais”, em que reina o Uno, reflete
outra hesitação da direita: ela defende esta civilização
em nome de verdades e valores eternos. O pluralismo
histórico dificilmente se coaduna com um monismo
platônico.
É no plano moral que este dualismo parece mais
curioso. A direita é ao mesmo tempo naturalista e arti-
108
licialista. Há, segundo ela, uma natureza hum ana, e é
por uma eleição natural que os privilegiados foram ele
vados acima da espécie. O próprio da Elite, no entanto,
é impor uma ordem fundada no artifício: enfrenta “a
insurreição universal” com idéias, cerimônias, leis éticas
e estéticas. Este trabalho difere m uito de uma prática:
trata-se de regular e não de criar, de m anter um a or
dem estática e não de progredir. A moral e a arte visam
a perpetuar o passado, e não a transcender o presente
rumo ao porvir. Nessas operações entra um a boa parte
de mistério. Como se explica a passagem dos valores
vitais aos valores espirituais? Como alguém pode estar
naturalmente dotado de uma atitude singular para cap
tar o Transcendente e fazê-lo descer à terra pela arte
e o artifício? Nenhum sistem a responde a esta pergunta.
O que é certo é que o artificialismo, pelo qual se
evoca uma transcendência, aparece como necessidade
devido à perversidade da natureza hum ana. E com efei
to, freqüentemente assinalamos o contraste entre o fer
vor estético-místico da direita e o seu amargo cinismo.
Ela combate as ilusões que neste m undo empírico os
homens forjam sobre si mesmos, denuncia seu egoísmo
e trata seus projetos com frivolidade; m as a desenvol
tura se transforma em gravidade logo que a Elite fala
de si mesma e da ordem que sustém . A burguesia crê
em Clément Vautel e vibra ante um a canção patriótica
de Paul Déroulède. Mas faz os m ais negros retratos do
homem para demonstrar a necessidade de um Deus que
ela concebe à sua imagem.
Quando tenta compreender a sociedade, o pensa
mento burguês sente-se despedaçado também por duas
tendências opostas. Se, de bom grado, lança m ão de
comparações organicistas, é porque vê a sociedade atra
vés de conjuntos sintéticos; supõe a existência de for
mas, apreensíveis por um a intuição sincrética e cuja
verdade excede a dos seus elementos. Entretanto, insiste
sobre a descontinuidade da História: entre suas dife
rentes formas, nenhum a relação ou apenas algumas
vagas analogias. E os indivíduos são isolados como áto-
109
mo3, cada um fechado sobre si mesmo e separado de
todos. Simone Weil — cujo pensamento foi abusivamen
te explorado pela direita, mas que lançou muitas acusa
ções contra a burguesia — insistiu com freqüência so
bre esta atitude do burguês que consiste em negar as
relações: é — diz ela — uma fuga ante a responsabili
dade. O atomismo permite, com efeito, desconhecer as
responsabilidades do sistem a capitalista, no que concer
ne à condição daqueles que são desfavorecidos por ele;
estes não aparecem como as vítimas do regime, mas
como joguetes do azar, e talvez até como os próprios
autores dos seus males. A direita quer ignorar as leis
estatísticas: a estas ela opõe as possibilidades abstratas
do indivíduo; julga que a exceção desmente a regra,
mesmo se sua singularidade fosse normalmente previ
sível. Um bilhete em cada cem ganha na loteria:
a direita deduz que todos podem ganhar, em vez de re
conhecer que noventa e nove devem necessariamente
perder. A noção de mérito reforça a de possibilidade:
se é inteligente, trabalhador, o filho do operário se ele
vará acima de sua classe. Mas, mesmo supondo que seja
fundada, a idéia de um concurso aberto a milhares de
indivíduos e em que só o mais meritório triunfa, impli
ca a fatalidade de milhares de fracassos. Uma das maio
res mistificações do liberalismo é considerar a contin
gência dos casos individuais submetidos globalmente a
uma necessidade estatística, como sendo o prêmio de
uma autêntica liberdade. A vantagem desta mentira é
que, ao tornar o próximo responsável pela sua sorte,
tenho o direito de lavar as mãos. Haveria outra maneira
de se escapar à responsabilidade: considerar-se a si
mesmo como determinado. Porém a burguesia timbra
em se conceber soberanamente livre; só o atomismo in
dividualista lhe permite conciliar liberdade e irrespon
sabilidade; um homem de esquerda, ao contrário, se
considera ao mesmo tempo condicionado e responsável.
Todas as contradições do pensamento burguês se
reduzem a uma só: é impossível à burguesia assumir
110
pelo pensam ento su a atitude prática1. Tal é a m aldição
que pesa sobre a sua ideologia. O proletariado reconhece
sua particularidade como classe, m as trabalha pela su a
supressão: assim se m anifesta como classe universal; a
burguesia se esforça praticam ente para m anter sua
particularidade; é, porém, obrigada a negá-la em idéia
a fim de se apresentar como universal e, portanto, tem
de voltar as costas para a realidade. Seus ideólogos en
tram em desacordo com seus membros ativos, porque
devem disfarçar com ilusões — e não exprimir — a ver
dade que estes últimos vivem. Praticam ente, a burgue
sia está engajada na luta de classes, defende e até im
põe um a política, atua; porém seus ideólogos pregam
o catastrofismo, o quietismo, o ceticism o, um a filosofia
da imanência que condena todo projeto. A burguesia crê
na ciência: seus ideólogos a contestam . Os burgueses se
interessam fortemente pela su a existência em pírica:
seus moralistas a desprezam em favor do Transcendente,
e até exaltam a morte. A burguesia quer espelhos para
se contemplar: m as exige que sejam espelhos defor-
mantes.
O ilusionista burguês não ignora que está disfar
çando a verdade da sua classe; ele a odeia porque des
mente na prática os m itos que inventa para ela, e tam
bém porque sabe que é suspeito aos seus olhos. Brutal-
rnente desautorizado em /suas pretensões pela classe
adversa, que só vê nele um epifenômeno, está condenado
a uma solidão que erige em sistem a. É a ele que se apli
ca a idéia de ressentimento. S eu esteticism o, seu ceti
cismo, sua religiosidade são dirigidos contra os hom ens.
Só se impede de odiá-los obrigando-se ao desprezo.
Cabisbaixo ou arrogante, é o hom em da recusa: suas
1 Ê por isto que ela sc esforça sempre por confundir as cartas, por
rejeitar esta decisão do pensamento que 6 o juízo. Como assinalava
Berl, nela “a reflexão já não é o que permite julgar, mas o que permi
te aprazar o juízo. Diante de qualquer problema, trata-sc, antes de
tudo, de encontrar o atalho graças ao qual possamos escapar do
centro víyo em que esse problema comporta um sim ou um não”.
u i
verdadeiras certezas sã o tod as n eg a tiv a s. D iz n ã o ao
“m undo m oderno”, não ao porvir, isto é, ao m ovim en to
vivo do m undo: sabe, porém , que o m u n d o poderá m ais
do que ele. Tem m edo: que pode esperar d esses h o m en s
de am anhã, dos quais se fez adversário? A rm a-se con tra
eles com princípios abstratos: tod a vid a h u m a n a deve
ser respeitada; respeitai, pois, a m in h a ! F a la em n om e
do universal porque n ã o o u sa fa la r e m se u próprio
nom e. Ou ainda — com o T hierry M au ln ier em L a m a i -
son de la n u it — p reven tivam en te, ex o rta os dem ais
hom ens à piedade. M as duvida que o escu tem . Então,
seu recurso suprem o é arrastar con sigo, para a m orte,
a hum anidade inteira. A burguesia quer sobreviver; m as
seu s ideólogos, sabendo-se condenados, p rofetizam o
naufrágio universal. A expressão “id eologia b u rgu esa”
hoje não designa nada m ais de positivo. A. b urguesia
ainda existe, m as seu pensam ento, ca ta strófico e vazio,
não é m ais que um contrapensam ento.
112
COMPÔS E IMPRIMIU
RUA PEDRO ALVES. 60 - RIO DE JANEIRO - OD
OUTROS LANÇAMENTOS
DE PAZ E TERRA
Para Q ue eu V ivo?
de J . Hromadka
P sicologia I nfantil
de Alberto L . Merani
Psicologia e A lienação
de Alberto L . Merani
A R evolução da I nformática
Diversos autores
O R omantismo no B rasil
de Fausto Cunha
As U topias o y a j T u c idade
I maginada
de Jerzy Szaki
O P ensamento de D ireita , H o je
de Simone Beauvoir
O Pensamento de Direita, Hoje