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Alain Badiou
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Conteúdo
0. Introdução
0.1 Contorno geral
1. Opinião
2. Aparência
3. Diferenciação
4. Existência
4.1 Existência da Filosofia
5. Mutação
6. Incorporação
7. Subjetivação
8. Ideação
Conclusão
Notas
2
0. Introdução
1
Worms, F. La Philosophie en France au XXe Siècle. Moments (Paris, Gallimard, 2009)
(N.T.)
2
Existe na França uma geração vigorosa de verdadeiros filósofos, que não são nem
papagaios da moral portátil, nem acadêmicos das ciências soporíficas, e que têm um
pouco mais de trinta anos e um pouco menos de quarenta. Entre os antigos, numerosos
são aqueles que chegam a perpetuar na cena pública o esplendor dos anos faustosos,
mesmo se divergem sobre a natureza e as referências desse esplendor. A situação no
estrangeiro, onde se sustentou mais tempo o elã francês inicial, é ainda melhor. Não é o
momento de desesperar. Primeiramente a partida se joga ao nível do que é transmitido
que supõe outra coisa que supõe algo diferente da comunicação ou do academicismo, em
segundo lugar, operações de transformação aplicadas a essa transmissão o que supõe uma
contemporaneidade nova. Os dois processos são suficientemente avançados para que
saibamos que a aliança dominante do cientificismo e da fenomenologia, ou seja, da
"realidade" constrangedora e da moral vulgar, será vencida.
3
invenções conceituais é também aquele de uma reação versalhesa e
servil tenaz, cuja adesão propagandista de regimes de intelectuais
jamais fez falta.
Mas eis que signos cada vez mais numerosos, a despeito ou devido ao
fato de que a situação histórica, política e intelectual da França parece
extremamente degradada, indicam que vamos, velhos sobreviventes
dedicando nosso fiel labor ao assalto descontente e instruído das novas
gerações, encontrar um pouco de ar livre, de espaço e de luz.
3
Manifieste pour la pbilosopbie, París, Seuil, 1989. Este livro foi traduzido: - Em espanhol, por
V. Alcantud, Madrid, Cátedra, 1989; Buenos Aires, Nueva Visión, 2007. - Em dinamarquês, por
K. Hyldegaard e O. Petersen, Arthus, Slagmark, 1991. - Em português, por M. D. Magno,
Angélica, Río de Janeiro, Aoutra, 1991. - Em italiano, por F. Elefante, Milán, Feltrinelli, 1991. -
Em alemão, por J. Wolf e E. Hoerl, Viena, Turia + Kant, 1998. - Em inglês, por N. Madarasz,
Nova York, Suny, 1999. - Em coreano, Seúl, 2000. - Em croata, por K. Jesenski i turk, Zagreb,
2001. - Em russo, por V. E. Lapitsky, San Petersburgo, Machina, 2003. - Em esloveno, por R.
Riha e J. Sumic-Riha, Liubliana, Zalozba ZRC, 2004. - Em japonês, Tokio, 2004. - Em sueco, por
D . Moaven Doust, Estocolmo, Glánta produktion, 2005. - Em turco, por Nilgün Tutal y Hakki
Hünler, 2005. - Em grego, por Ada Klabatséa e Vlassis Skolidis, Atenas, Psichogios Pub.
Gostaria de dizer de passagem que a quase totalidade dos filósofos vivos, meus
contemporâneos, que citava e discutia neste primeiro Manifesto, agora estão mortos: Deleuze,
Derrida, Lacoue-Labarthe, Lyotard… Pode-se ter alguma idéia do que me ligava a eles
percorrendo o Petit Panthéon portatif [Pequeno Pantheon portátil] que publiquei em 2008 nas
edições La Fabrique, dirigidas pelo meu amigo Éric Hazan.
4
dos eventos, nada ceder... Que tarefa! É deste labor que testemunhava
de modo sucinto e alegre ao mesmo tempo, este primeiro Manifesto
pela Filosofia. Ele era, este livrinho, como memórias do pensamento
escritas do subterrâneo.
Vinte anos depois, vista a inércia dos fenômenos, é ainda pior, toda a
noite acaba por deter a promessa da aurora - mas toda noite acaba
com a promessa de um amanhecer. Seria difícil nos rebaixarmos mais:
no registro do poder estatal, nos rebaixar mais do que o governo de
Sarkozy; no registro da situação global, mais do que a forma bestial do
militarismo americano e de seus lacaios; no registro da polícia, mais
do que os incontáveis controles, do que as leis vis, a brutalidade
sistemática, os muros e o arame farpado dedicado à proteção dos
ocidentais ricos e presunçosos de seus inimigos naturais e incontáveis
- a saber, os bilhões de destituídos pelo mundo, especialmente na
África; no registro ideológico, nos rebaixar mais do que essa miserável
tentativa de opor ao tal ‘barbarismo islâmico’ um secularismo em
trapos e uma cômica democracia salpicada, para dar um toque trágico,
por uma exploração nauseante da exterminação dos judeus pelos
nazistas europeus4; e, finalmente, no registro do saber, mais do que a
estranha mistura, que somos supostos engolir, de um “cientismo”
tecnologizado - cuja coroação é a visualização estereoscópica e à cores
do cérebro - combinado com um “legalismo” burocático - cuja
manifestação suprema é a ‘avaliação’ de tudo por especialistas, que
surgem do nada e invariavelmente concluem que o pensamento não
serve para nada e é até mesmo danoso. No entanto, apesar do quanto
afundamos, existem, eu repito, sinal que nos permitem sustentar a
principal virtude deste momento: a coragem, numa forma que se apóia
na certeza de um retorno iminente - e, na verdade, já efetivo - do poder
afirmativo da Ideia. É a esse retorno que o presente livro se dedica. A
questão em torno do qual ele é estruturado é precisamente essa: o que
é uma Ideia?
4
Nesse ponto, é possível consultar o dossiê que coordenei juntamente com Cécile Winter,
Portées du mot “juif”, como o terceiro volume da série Circonstances que venho
publicando nos últimos cinco anos com a editora Lignes, de meu amigo Michel Surya.
5
daquela versão curta e clarificada, em 1988, era atestar o fato de que o
pensamento perseverava no submundo, enquanto que, em 2008, o
objetivo se tornou a demonstração de que talvez existam meios de
fazê-lo retornar à superfície.
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0.1 Contorno geral
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consigo mesma dentro do destino que determina se ela existe ou
desaparece. É preciso demonstrar a consistência existencial da
filosofia hoje e, para fazê-lo, nós precisamos que o aparecer da
filosofia seja idêntico à força de sua existência. Mas o que é existir?
Essa será nossa quarta questão, o que nos impõe o seguinte capítulo:
Existência.
8
desdobramento desse corpo num mundo que, até então, o julgava
inexistente. Sem dúvida, é justificado chamarmos esse processo de
uma Incorporação.
5
Eu gosto das grandes metáforas que vem da religião: milagre, graça, salvação, corpo
glorioso, conversão... é claro que, como consequência, muitos concluíram que minha
filosofia é um cristianismo disfarçado. O livro que publiquei sobre São Paulo, em 1997,
também não ajudou. De qualquer forma, eu prefiro ser um ateu revolucionário camuflado
pelo o vocabulário religioso do que um “democrata”-barra-perseguidor de muçulmanos
ocidental disfarçado de feminista secular.
9
Chegará assim o momento de concluir: viver ‘como um Imortal’, como
os Antigos queriam, está, não importa o que se diga, ao alcance de
qualquer um6.
6
Esse ponto está desenvolvido em maior extensão no capítulo conclusivo de Lógicas dos
Mundos, ‘O que é viver?’. Apesar de concentrar as elaborações de um livro complexo e
longo, esse texto é essencialmente compreensível por si só.
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1. Opinião
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‘Só os tolos não mudam de ideia’ ele lembrará, enquanto sorri
caridosamente frente ao nosso pensamento retrógrado. Ele citará
como evidência a extrema velocidade com que o mundo muda, o que
por si só condenaria a inflexibilidade desses supostos princípios: tão
logo é anunciado, o princípio já está ultrapassado! Ele concluirá que
essa é a razão pela qual só existem, de um lado, as regras oportunistas
da ‘gerência flexível’ e, por outro, as regras jurídicas que defendem a
liberdade da obsessão por princípios, do outro. A liberdade do
empreendedorismo tem evidentemente a prioridade - ‘começar um
negócio’ ou escolher um banco estão logo no início da lista, do lado da
flexibilidade prática. Mas, logo em seguida, do lado jurídico, existe a
liberdade de se ter qualquer opinião que se queira, a menos que isso
negue o direito dos outros de ter uma opinião diferente. Tudo é uma
questão de gerência e de lei: todo o resto são só palavras.
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existem. Nem Deus, nem Anjos, nem o Espírito da História, nem as
Raças, nem as Tábuas da Lei... tudo bem. Multiplicidades individuais e
culturas complexas é tudo com o que lidamos no que diz respeito à
existência. Sim, o filósofo compartilha hoje com o democrata (ou com
o sofista - afinal, é a mesma coisa) esse postulado materialista e que
pode ser generalizado da seguinte maneira: ‘Só existem corpos e
linguagens’. Podemos declarar que é essa a máxima do materialismo
democrático e o cerne ativo da ideologia dominante. Que uma
ideologia dominante tenha que dominar não é algo que o filósofo
conteste, cujo consentimento nesse ponto não poupa nem ele mesmo:
o filósofo, ele também, é dominado pelo materialismo democrático.
Em geral, assim, só existe aquilo que o axioma do materialismo
democrático afirma existir: corpos e linguagens.
Esse tipo de ‘coisa’ pode ser: arte (as pinturas rupestres nas cavernas
de Chauvet, as operas de Wagner, os romances de Murasaki Shikibu,
as estátuas da ilha da Páscoa, as máscaras de Dogon, as coreografias
balinesas, poemas indianos...); ou ciência (a geometria grega, a álgebra
arábica, física galileana, Darwinismo...); ou política (a invenção da
democracia na Grécia, o movimento camponês na Alemanha, no
tempo de Lutero, a revolução francesa, o comunismo soviético, a
revolução cultural chinesa...); ou da ordem do amor (por todo canto,
de maneira inumerável). Existiriam ainda outras coisas, outros tipos
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de coisas? Talvez. Eu não conheço nenhum outro, mas, se essa outra
coisa existir, eu ficaria muito feliz de ser convencido de sua existência7.
Sob a forma das ciências, das artes, da política e do amor, essas ‘coisas’,
dotadas de um valor transmundano e universal, são o que eu chamo
de verdades. O ponto todo - e que é, por fim, muito difícil de elaborar,
e que vai nos ocupar pelo restante desse livro - é que verdades existem
tanto quanto corpos e linguagens. Segue-se daí, portanto, a exceção
que o filósofo introduz no contexto dominante do materialismo
democrático8.
7
Os quatro tipos de ‘procedimentos genéricos’, para usar o jargão desenvolvido em Ser e
Evento, a saber, a política, o amor, a arte e as ciências, não podem ser racionalmente deduzidos
como os únicos tipos de produção humana capazes de reivindicar para si uma certa
universalidade. No entanto, não considero nenhuma das outras propostas que surgiram (o
trabalho, a religião, a lei, e por aí vai) satisfatórias. Alguns estudos detalhados desses quatro
tipos fundamentais podem ser encontrados em Condições, e, sobretudo, em três livros
publicados em 1998: Breve Tratado de Ontologia Transitória, Metapolítica, e Pequeno Manual
de Inestética.
8
Veja o último capítulo do Breve Tratado de Ontologia Transitória para uma introdução acessível
a essa equivalência entre teoria do aparecer e lógica.
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Marx se perguntava como é que, em nosso mundo industrial, nos
podemos nos emocionar tanto com os mitos gregos quando os raios
de Zeus são tão insignificantes quando comparados à potência de uma
usina elétrica. Sua resposta - de que o mundo grego representa a nossa
infância e que há sempre algo de charmoso sobre a infância em si - é
tão frágil quanto tocante. É também uma história de origem bastante
alemã. Na verdade, a questão está mal formulada. Não devemos partir
da diferença entre os mundos - o mundo arcaico contra o mundo
industrial - e então colocar como enigma aquilo que eles tem em
comum (uma tragédia de Sófocles, por exemplo). Ao contrário,
devemos partir das verdades, pois essas nos permitem ver que, do
ponto de vista da tragédia de Sófocles, os dois mundos podem
realmente ser tomados como o mesmo.
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filosofia, no entanto, formula uma espécie de princípio dos princípios:
para poder pensar, tome sempre como seu ponto de partida a exceção
restritiva das verdades e não a liberdade de opinião.
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2. Aparência
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ao seu ser, o “il y a” (há)10* se deixa pensar como multiplicidade pura.
Esta árvore que há diante de mim, se tento inicialmente subtrair dela
a presença efetiva em tal mundo (seu entorno, o horizonte, as outras
árvores, a campina próxima etc.), depois o entrelaçar das
determinações que a fazem consistir diante de mim como árvore (a
cor verde, a extensão dos ramos, o jogo na folhagem de sombra e de
luz etc.), não restará no fim senão uma multiplicidade infinitamente
complexa e composta de outras multiplicidades. Nenhuma unidade
primordial, ou atômica, virá interromper essa composição. A árvore
enquanto tal não tem átomos de árvore que fundariam sua essência
qualitativa. No fim, não se cai sobre o Um, mas sobre o vazio. Esta
árvore é um entrelaçamento particular de multiplicidades tecidas só
de vazio, de acordo com produções formais das quais só a matemática
dá conta. Tal era a tese axial da ontologia que eu propunha há vinte
anos: o ser é multiplicidade extraída do vazio, e o pensamento do ser-
enquanto-ser não é nada de outro que a matemática. Ou
simplesmente: a ontologia, pensada etimologicamente como discurso
sobre o ser, se realiza historicamente como matemática das
multiplicidades.
10*
Possível nota de tradução?
112
18
múltipla de sue ser assinalado a um mundo, ultrapassa o recurso desse
ser-múltiplo tal como o pensa a matemática. Uma espécie de impulso
de essência topológica faz com que o múltiplo não se contente em ser
o que é, uma vez que, como aparência, é aí que ele vem a ser o que é.
Mas o que quer dizer esse “ser-aí”, esse ser que vem a ser enquanto ele
aparece? Não temos a possibilidade de separar uma extensão disso que
a povoa, ou um mundo dos objetos que o compõem. O ser-enquanto-
ser é absolutamente homogêneo: multiplicidade pura
matematicamente pensável. Não há o ser localizador dos mundos e o
ser localizado dos objetos. Não há tampouco o Universo como lugar
absoluto de tudo o que é. Como efeito, demonstramos,
matematicamente, que o tema de uma multiplicidade total, ou
multiplicidade de todas as multiplicidades, é incoerente, o que quer
dizer que, sendo insuportável ao pensamento, não pode tampouco dar
lugar a um ser (pois Parmênides tem razão: ser e pensamento são o
Mesmo).
Resulta de tudo isso que o ser-aí, ou aparecer, tem por essência pura,
não uma forma do ser, mas formas da relação. Nossa árvore aparece
como tal enquanto seu ser puro (uma multiplicidade) é diferenciado
da árvore vizinha, da campina, da telha vermelha da casa, do corvo
negro empoleirado sobre um ramo etc. Mas também diferenciado de
si mesmo quando, no vento, ela “pende”, sacode sua folhagem como
um leão a sua juba, e modifica assim seu aspecto geral, ainda que seja
também sempre a mesma enquanto “mantida pela força da paisagem”.
O mundo onde a árvore aparece é assim, para cada multiplicidade que
aí figura, o sistema geral das diferenças e identidades que a liga a todas
as outras.
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3. Diferenciação
Para chegar a essa definição que comanda o que quer dizer que
verdades existem, tentemos nos representar a situação de um mundo.
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visão de um indivíduo frouxamente deitado na campina entre duas
árvores, e que enumera o rendilhado das folhas sob o céu azul, ou a
inclinação dos altos ramos, é claro que as duas árvores aparecem como
elas são: essencialmente diferentes. Assim, é possível que o que vale
para o ser-enquanto-ser valha para o ser-aí, e é possível também que
a avaliação das diferenças no aparecer não tenha nada a ver com
aquela que rege o substrato do ser desse aparecer. O laço entre “ser” e
“aparecer” (ou existir) é contingente. O que o platonismo verdadeiro
sempre afirmou, mas o que de modo algum significa, como se o crê,
quando se assume o platonismo vulgar, que o aparecer seja da ordem
do falso ou da ilusão. A diferença entre o ser e o aparecer é bem antes
aquela que distingue a matemática (como ontologia) e a lógica (como
fenomenologia). Duas disciplinas tão formalizadas e rigorosas tanto
uma quanto a outra.
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diferentes”. Pois, com efeito, isso significa dizer que o grau p que mede
a identidade dos dois primeiros múltiplos é nitidamente “maior” que
o grau que mede a identidade dos dois últimos. Assim as duas árvores
apreendidas pelos faróis do motorista apressado e as duas árvores
observadas pelo dorminhoco do vale. Se as duas primeiras são
idênticas ao grau p, e as duas outras ao grau q, acabamos de explicar
que é preciso poder dizer que p é nitidamente superior à q. Conclusão:
no essencial, a estrutura dos graus é uma estrutura de ordem.
Existem numerosas estruturas desse tipo que não são isomorfas. Essa
diversidade é tomada numa tensão entre álgebra e topologia, entre
teoria das operações e teoria das localizações, que creio desde muito
tempo estar no coração de todo pensamento dialético144. Digamos que
aqui ele assume a seguinte forma: a estrutura dos graus de identidade
que rege o aparecer pode pertencer seja ao registro “clássico” das
álgebras de Boole, seja ao registro das aberturas de um espaço
topológico. No primeiro caso, o aparecer, via a medida dos graus de
122
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identidade, obedece à lógica ordinária, com terceiro excluído, o que é
também o caso do ser enquanto tal, do qual se sabe desde Parmênides
que ele não tolera um terceiro termo entre o ser e o não-ser. No
segundo caso, trata-se em geral de uma lógica intuicionista, sem
terceiro excluído, que vem impor ao ser-aí para se afastar do ser puro.
O que nos importa aqui, para além dos apaixonantes detalhes da lógica
(ou antes, das lógicas) do aparecer, é que se esgote sua infinita
complexidade aparente com uma legislação simples de identidades e
diferenças. Ordem, máximo e mínimo, conjunção e envoltório, bastam
para pensar a distância entre o ser e o ser-aí. Eu propus chamar
transcendental o sistema dessas regras. No esquema 1, o plano de corte
onde todas as diferenças locais são indexadas sobre graus de
identidade representa o transcendental do mundo. Como Kant tinha
tido intuição disso, seguido nesse ponto por Husserl, o tema do
transcendental é essencialmente um tema lógico. O erro, entretanto, é
falar de lógica transcendental opondo-a a lógica formal. Pois a lógica
dos mundo é de cabo a rabo levantada sobre algumas inflexões da
lógica formal.
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se desde sempre agressivos fantasmas. Eu faço aqui manifesto dos
métodos contemporâneos de seu exorcismo.
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4. Existência
Um problema fundamental da filosofia desde seus inícios é o de distinguir, por uma parte,
o ser (aquele que Aristóteles, antes de todos, quer pensar "enquanto ser"), e por outra a
existência , categoria que, precisamente, não é redutível a do ser. Não é exagerado dizer
que, mesmo hoje em dia, a elaboração desta diferença comanda o destino de uma
construção filosófica.
Vimos que, para pensar o ser-aí, tomo algo de Kant: o fato de que o aparecer de uma
multiplicidade supõe a noção de um grau, ou de uma intensidade que mede as relações
explícitas entre ela e tudo que coaparece no mesmo mundo. Encontramos esta ideia na
famosa passagem da primeira Crítica que concerne às antecipações da percepção. Mas
vou tomar também algo de Hegel, a saber, que a existência deve ser pensada como o
movimento que vai do ser puro ao ser-aí, ou da essência ao fenômeno, ao aparecer, tal
como ele o explica em dois profundos e obscuros capítulos de sua Lógica. Não obstante,
esforçarei-me por desdobrar estas fidelidades limitadas e diversas (Heidegger, Sartre,
Kant e Hegel) sem recorrer nem a uma noção historial do Ser, nem a uma consciência
transparente, nem a um sujeito transcendental, nem ao devir da Ideia absoluta.
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Será esta uma boa ocasião para recapitular nosso trajeto.
A coisa é Das Ding, talvez mesmo das Ur-Ding. Quer dizer, essa forma do ser que se
situa certamente depois da indiferença do nada, mas igualmente antes da diferença
qualitativa do objeto. Por fim, temos que formalizar o conceito de coisa entre, por uma
parte, a prioridade absoluta do nada (o vazio de que se tece toda a multiplicidade) e, por
outra, a complexidade dos objetos. Uma coisa é sempre a base pré-objetiva da
objetividade. É a razão pela qual uma coisa não é senão uma multiplicidade. Não uma
multiplicidade de objetos, não um sistema de qualidades, uma rede de diferenças, mas
uma multiplicidade de multiplicidades, e uma multiplicidade de multiplicidade de
multiplicidades. E assim sucessivamente. Tem um fim este tipo de "disseminação", para
falar como Jacques Derrida? Sim, há um ponto de detenção. Mas esse ponto de detenção
não é um objeto primitivo, ou um componente atômico, não é uma forma do Um. O ponto
de detenção é necessariamente também uma multiplicidade. É a multiplicidade que não é
a multiplicidade de nenhuma multiplicidade, a coisa que é também nada, o vazio, a
multiplicidade vazia, o conjunto vazio. Se uma coisa está entre indiferença e diferença,
entre nada e objetividade, é porque uma pura multiplicidade se compõe de vazio. o
múltiplo como tal tem que ver com a indiferença e a ausência total de objeto.
Desde a obra de Cantor, em fins do século XIX, sabemos que é perfeitamente racional
propor esse tipo de construção de puras multiplicidades a partir do vazio como marco
para a matemática. Essa é a origem e a justificação da tese que recordei anteriormente: se
a ontologia é a ciência da coisa, do puro "algo", devemos concluir disso que a ontologia
é a matemática. A coisa é formalizada como conjunto; os elementos desse conjunto são
conjuntos, e o ponto de partida de toda a construção é o conjunto vazio.
Nosso problema agora, na via que nos leva à existência, é compreender o nascimento da
objetividade. Como pode uma pura multiplicidade (um conjunto) aparecer num mundo,
em uma rede muito complexa de diferenças, de identidades, de qualidades, de
intensidades, etc.?
Suponhamos que temos uma pura multiplicidade, uma coisa, que pode ser formalizada
como múltiplo ou conjunto. Nós desejamos compreender exatamente que é exatamente o
aparecer, o ser-aí, dessa coisa num mundo determinado. A ideia exposta nos capítulos 2
e 3 é que quando a coisa (o conjunto) é localizada num mundo, é porque os elementos do
conjunto estão inscritos numa novíssima avaliação de suas identidades. De tal modo que
é possível dizer que esse elemento, por exemplo, x, é mais ou menos idêntico a outro
elemento, y. Na ontologia clássica não mais que duas possibilidades: ou bem x é o mesmo
que y, ou não é em nada idêntico a y. Se tem já a identidade estrita, já há diferença.
Inversamente, num mundo concreto enquanto lugar do ser-aí das multiplicidades, temos
uma grande variedade de possibilidades. Uma coisa pode ser muito semelhante a uma
outra, ou semelhante em certos pontos e diferente em outros, ou um pouco idêntica, ou
muito idêntica mas não totalmente a mesma, etc. Assim, todo o elemento de uma coisa
pode ser posto em relação com outros pelo que chamaremos um grau de identidade. A
característica fundamental de um mundo é a distribuição deste tipo de graus sobre todas
as diferenças que aparecem nesse mundo.
Em primeiro lugar, um sistema de graus, com uma estrutura elementar que permite a
comparação entre graus. Temos de ser capazes de observar se tal coisa é mais idêntica a
tal outra que uma terceira. Por isso os graus tem, com toda a evidência, a estrutura formal
de uma ordem. Admitem, talvez no marco de certos limites, o "mais" e o "menos". Esta
estrutura é a disposição racional dos matizes infinitos de um mundo concreto. Recordo
que chamei a esta organização dos graus de identidades o transcendental de um mundo.
Em segundo lugar, temos uma relação entre as coisas (as multiplicidades) e os graus de
identidade. Esse é precisamente o sentido de "ser-num-mundo" para uma coisa.
Em primeiro lugar, é muito importante manter presente no espírito que há muitos tipos
de ordens, e, por consequência, muitas possibilidade para a organização lógica de um
mundo. Nós devemos assumir a existência de uma infinidade de mundos diferentes, não
somente ao nível ontológico (uma multiplicidade, uma coisa, é, num mundo e não em
outro), e sim também ao nível lógico, ao nível do aparecer, e portanto também, como
veremos, da existência. Dois mundos com as mesmas coisas podem ser absolutamente
diferentes um do outro porque seus transcendentais são diferentes. A saber: as identidades
entre os elementos de uma mesma multiplicidade podem diferir radicalmente a nível de
seu ser-aí num mundo ou em outro.
Em segundo lugar, como vimos, há sempre, num mundo, certo número de limites de
intensidade de aparecer. Um grau de identidade entre dois elementos varia entre dois
casos limite: os dois elementos podem ser "absolutamente idênticos , praticamente
indiscerníveis no marco lógico de um mundo; podem ser absolutamente não idênticos,
absolutamente diferentes um do outro, não ter nenhum ponto em comum. Entre esses dois
limites, a função de identidade pode expressar o fato de que os dois elementos não são
nem absolutamente idênticos, nem absolutamente diferentes. É fácil formalizar esta ideia.
Em uma ordem transcendental, você tem um grau mínimo e um grau máximo de
identidade. A maioria das vezes, tem uma quantidade de graus intermediários. Se num
mundo, para um par de elementos, a função de identidade toma o valor máximo, diremos
que os dois elementos são absolutamente idênticos nesse mundo, ou que têm o mesmo
aparecer, o mesmo ser-aí. Se a função de identidade toma o valor mínimo, diremos que
os dois elementos são absolutamente diferentes um do outro, e se a função de identidade
toma um valor intermediário, diremos que os dois elementos são idênticos numa certa
medida, medida que está marcada por esse grau transcendental intermediário.
Temos assim uma compreensão extensa e difícil do que ocorre a uma multiplicidade
quando aparece verdadeiramente em um mundo, ou quando ela não é simplesmente
redutível a sua pura composição imanente. A multiplicidade que aparece deve ser
compreendida como uma rede muito complexa de graus de identidade entre seus
elementos, suas partes e seus átomos. Isso é o que, em Lógicas dos mundos, denomino
"lógica atômica", e que é a parte mais sutil da teoria do aparecer. Aqui temos que prestar
atenção na lógica das qualidades, não só na matematicidade das extensões. Temos que
pensar, para além do puro ser-múltiplo, algo como uma "intensidade existencial".
Eis-nos aqui pois no ponto onde era preciso chegar: qual é o processo de definição da
existência no marco transcendental do aparecer ou do ser-aí? Indico imediatamente minha
conclusão: A existência é o nome que porta o valor da função de identidade quando se o
aplica a um só e mesmo elemento. É, por assim dizer, a medida da identidade de uma
coisa consigo mesma.
Dados um mundo e uma função de identidade que toma seus valores no transcendental
desse mundo, chamaremos "existência" de um múltiplo que aparece nesse mundo o grau
transcendental atribuído à identidade desse múltiplo consigo mesmo. Assim definida, a
existência não é uma categoria do ser (matemática), é uma categoria do aparecer (lógica).
Em particular, "existir" não tem sentido em si. Em conformidade com uma intuição de
Heidegger, retomada por Sartre e Merleau-Ponty, só pode se dizer "existir" relativamente
a um mundo. Com efeito, a existência é um grau transcendental que indica a intensidade
do aparecer de uma multiplicidade num mundo determinado, e essa intensidade não é em
nenhum caso prescrita pela pura composição do múltiplo considerado.
De ordinário, a existência de uma multiplicidade num mundo não é máxima nem mínima.
A multiplicidade existe "em uma certa medida".
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O poderoso plátano do poema de Valery se dá como uma existência completa,
indubitável, uma afirmação existencial ilimitada. Dir-se-á dele que "se propõe" no
mundo, absolutamente idêntico a si mesmo, e tanto mais afirmativo quanto seu "candor é
capturado [...] pela força do sítio". No mundo fugaz dos faróis de automóvel, o plátano,
que não faz mais que passar, quase idêntico a qualquer outro e desaparecendo como uma
sombra tão logo aparece, possui um grau de identidade consigo - e por fim da existência
individual - débil, ainda que não nula. É um caso de existência intermediária. Enfim, para
o sonhador recostado entre duas árvores, a presença das outras árvore da fileira, ainda que
pressentida, formando o fundo indistinto das folhagens percebidas, não é menos dotada
de uma identidade a si mínima, na falta de individuação, de recorte notável da forma sobre
o fundo soalheiro. Um plátano dessa indistinta e murmurante fileira é um inexistente do
mundo.
A teoria do inexistente é muito importante: que haja o inexistente comanda com efeito,
como nós o veremos no próximo capítulo, que um evento possa sobrevir, que transforme
localmente a relação entre os múltiplos de um mundo e a legislação transcendental de
suas identidades e diferenças imanentes.
Esta teoria tem em seu centro um verdadeiro teorema metafísico. "Teorema", porque se
pode demonstrá-lo a partir da versão um pouco formalizada da lógica do aparecer.
"Metafísico", porque se trata de um enunciado que liga intimamente o aparecer de uma
multiplicidade e a não-aparição de um elemento dessa multiplicidade. "Metafísico"
também, nisso que esse teorema é sob a condição do princípio fundamental do
materialismo, que eu mencionava mais acima, e depende então de uma orientação no
pensamento que é uma escolha filosófica, e não o resultado de um argumento.
Notemos bem que o inexistente não tem caracterização ontológica, não é de modo algum
esse nada de ser-múltiplo que é o vazio. "Inexistir" é uma caracterização existencial, e
então inteiramente interna ao aparecer. O inexistente é somente isso cuja identidade a si
é mesurada, num mundo determinado, pelo grau mínimo.
Demos um exemplo a grosso modo e arqui-conhecido. Na análise que Marx propõe das
sociedades burguesas ou capitalistas, o proletariado é o inexistente próprio das
multiplicidades políticas. Ele é "o que não existe". Isso não quer dizer de modo algum
que ele não tem ser. Marx não pensa um instante que o proletariado não tem ser, uma vez
que ele vai empilhar volume após volume para explicar o que ele é. O ser social e
econômico do proletariado não é duvidoso. O que é duvidoso, que sempre foi e o é hoje
mais que nunca, é sua existência política. O proletariado, é o que é inteiramente subtraído
à esfera da apresentação política. A multiplicidade que ele é pode ser analisada, mas, se
tomamos as regras da aparição do mundo político, ele não aparece lá. Ele está lá, mas
com o grau de aparição mínimo, a saber, o grau de aparição zero. É evidentemente o que
canta a Internacional : "Nós não somos nada, sejamos tudo!" O que quer dizer "nós não
somos nada"? Aqueles que proclamam "nós não somos nada" não estão afirmando o seu
nada. Eles afirmam simplesmente que eles não são nada no mundo tal qual é, quando se
trata de aparecer politicamente. Do ponto de vista do seu aparecer político, eles não são
nada. E o tornar-se "tudo" supõe a mudança de mundo, ou seja, a mudança de
transcendental. É preciso que o transcendental mude para que a assinalação de existência,
30
logo o inexistente, o ponto de não aparecer de uma multiplicidade num mundo, mude por
sua vez.
Do mesmo modo, até à invenção pelos algebristas italianos de um manejo regular dos
números 'imaginários", a raiz quadrada de um número real negativo é assinalada por um
grau de identidade a si nulo, pois interditado pela legislação transcendental do mundo
"cálculo sobre os números reais". Uma tal raiz quadrada é um inexistente conceitual desse
mundo. aí ainda, é preciso uma mutação no mundo do cálculo para que, a regulação
transcendental da existência vindo localmente a mudar, se possa escrever o símbolo "i"
como marca da existência da raiz quadrada de - 1.
Desse ponto de vista, a doutrina das verdades que eu proponho pode a bom direito se
reclamar de uma dialética materialista.
4.1. IV bis
Existência da filosofia
32
separação transcendental de suas condições, restituída a uma operação
própria, a filosofia podia continuar. À problemática de seu fim, eu propunha
substituir a palavra de ordem: "um passo a mais". Ou pela do inomeável de
Beckett: "é preciso continuar".
33
americano fez aparecer numa prestigiosa revista novaiorquina um ataque que
podia se permitir ser de um nível conceitual inteiramente medíocre, visto que
seu objetivo era exclusivamente o de ortopedia moral. Em relação aos jovens
estudantes e professores mal informados, filósofos como Slavoj Zizek ou eu
somos reckless, o que se pode traduzir como "desprovidos de toda a
prudência". É um tema tradicional dos piores conservadores, da Antiguidade
até nossos dias: os jovens correm graves riscos se são postos em contato com
os "maus mestres", que vão desviá-los de tudo que é sério e honrável, a saber
a carreira, a moral, a família, a ordem, a democracia e o capitalismo. Para
não ser reckless, é preciso começar por uma subordinação rigorosa da
invenção conceitual às evidências "naturais" da filosofia tal como as pessoas
a entendem. A saber: uma mole moral, ou o que Lacan, em sua língua
abrupta, chamava "o serviço dos bens".
34
5. Mutação
Sabemos agora que uma verdade, se ela existe plenamente num mundo, se
deixará determinar aí como grau máximo de identidade a si mesma, ou em
todo caso se organizará em torno de um múltiplo que tem essa propriedade
existencial. Mas essa condição é de estrutura: todo corpo existindo
plenamente num mundo a ela satisfaz. Nós ainda não chegamos a identificar
o que, de uma verdade, faz suficiente exceção às leis do aparecer para poder
valer universalmente, ou de um mundo para outro.
A ideia que se impõe é que tudo o que faz exceção às leis do mundo resulta
de uma modificação local dessas próprias leis. Ou, de modo mais forte,
ainda que aproximativo: toda exceção às leis é o resultado de uma lei de
exceção. Dito de outro modo, nós devemos supor que uma verdade não é um
corpo que é subtraído às prescrições transcendentais do aparecer, mas a
consequência de uma modificação local dessas prescrições.
Para bem compreender isso de que se trata, definamos o que é uma mudança
regular, ou interna às leis do aparecer. Se, por exemplo, um plátano tem uma
doença viral, de tal modo que ele perde suas folhas e se resseca, pode ocorrer
que o sistema de suas relações com o mundo - por exemplo, a espessura da
sombra que ele prodiga, superior àquela que dispensam as pequenas árvores
vizinhas - se veja modificado. Lá onde, atestando a extensão muito superior
de sua folhagem, o grau de identidade de sua sombras às sombras vizinhas
era frágil, eis que ele aumenta, e mesmo tende para o grau máximo, como se
a grande árvore se visse nivelada ao nível de um aborto. Essa modificação
não somente não incide sobre a disposição transcendental, mas a supõe. É
em relação à estabilidade das relações entre graus, e da pertinência da ligação
entre os múltiplos que aparecem no mundo e esses graus, que se pode falar
da decrepitude da árvore quanto ao seu passado próximo. A mudança resta
imanente às leis. É uma simples modificação, interna à disposição lógica do
mundo, um pouco como, em Spinoza, o "modo" é uma inflexão imanente e
necessária dos efeitos da única potência existente, a da Substância.
35
É preciso então finalmente, para abrir o pensamento de uma exceção no que
aparece (ou no que acontece, é a mesma coisa, pois ser propriamente não
acontece, ele se contenta em ser), localizá-la na relação entre uma
multiplicidade e o transcendental. Uma multiplicidade, por que o que
acontece é sempre local: a ideia de uma exceção global é desprovida de
sentido, pois a que faria exceção uma vez que tudo mudou? Sua relação com
o transcendental, posto que é isso que declina as possibilidades do aparecer
como tal. Mas a relação entre um múltiplo fixado e o transcendental é
precisamente o aparecer desse múltiplo, avaliando as relações imanentes de
identidade e de diferença entre todos os seus elementos. Não se vê que essa
relação como tal possa mudar em seu princípio sem que o mundo seja
mudado.
1. que o múltiplo que localiza a mutação decerto já está no mundo, que ele
aí aparece;
2. que o transcendental do mundo concernido não é modificado em suas
regras internas;
3. que a suplementação pelo múltiplo concernido entretém alguma relação
com sua ligação com o transcendental, na falta do que ela seria flutuante, ou
desenraizada em relação ao aparecer desse múltiplo tal como se supõe na
condição 1 acima.
A única saída que nos é deixada é de admitir que há uma mutação local no
aparecer quando um múltiplo cai sob a medida das identidades que autoriza
a comparação dos seus elementos. Ou quando o suporte de ser do aparecer
vem localmente a aparecer.
36
(iniciada no Ser e o evento, meditação 18) proíbe a todo múltiplo ser
elemento de si mesmo. Por conseguinte, a avaliação transcendental das
identidades e das diferenças para um múltiplo dado se faz em imanência a
esse múltiplo, sem tomá-lo ele próprio em consideração. A medida do grau
de identidade entre os elementos do plátano (tal ou qual folha, ou um ramo
e uma raiz, etc.) opera de elemento em elemento, mas não compromete o
plátano propriamente dito. Não há, de modo interno à inscrição do plátano
no mundo, fixação de um grau de identidade entre, digamos, o plátano e um
fragmento de sua casca. Bem entendido, um tal grau de identidade pode fazer
parte do aparecer de um múltiplo no mundo, mas esse múltiplo não será o
plátano, nem tampouco a casca: ele deverá conter um e outro como
elementos.
Se então ocorre que um múltiplo cai sob o protocolo que avalia de modo
imanente as redes das relações que constituem seu aparecer, há uma
transgressão evidente do complexo ontológico e lógico que faz vir ao
aparecer um ser-múltiplo. Essa transgressão, todavia, não supõe nem um
múltiplo suplementar, nem uma modificação do transcendental, nem uma
indiferença arbitrária da ligação entre o múltiplo e sua nova "entrada" no
aparecer, uma vez que é sob sua própria lei de aparição que ele vem a se
contar. Nós obedecemos então às três condições deduzidas mais acima.
Nós chamaremos "sítio" um múltiplo que vem a aparecer de modo novo,
enquanto ele cai sob a medida geral dos graus de identidade que prescrevem,
elemento por elemento, seu próprio aparecer. Digamos que um sítio (se) faz
aparecer a si mesmo.
Dito de outro modo, um evento é um sítio (um múltiplo cai sob ele próprio
e sob a lei que faz aparecer seus elementos) que está em excesso sobre o fato
37
(pois o valor de existência do sítio é máximo) como sobre a singularidade
fraca (pois o inexistente vem a existir, ele também, com valor máximo).
Se uma verdade é universal, será preciso então sustentar que seu processo
liga a universalidade à pura contingência, aquela do acontecimento. Uma
verdade aparece no mundo como conexão supranumerária do acaso e da
eternidade.
É por isso que se pode retornar ao plátano em seu viés poético. Não é nessa
conexão que pensa Valery quando o plátano responde furiosamente a quem
quer reduzi-lo a sua aparência particular? Quando ele opõe a essa
particularidade sua própria inclusão no universal? Leiamos sua resposta.
entendamos, na "tempestade", a ação evental, e na "cabeça soberba", a
incorporação do plátano às consequências universais da tempestade, à vinda
ao mundo de uma verdade. Essa "cabeça soberba" é o corpo glorioso da
árvore transfigurada, que é também, de golpe, o igual genérico de tudo o que
cresce, a fraternidade, segundo a dobra do Verdadeiro, da árvore e da erva:
— Non, dit l’arbre. Il dit : Non ! par l’étincellement
De sa tête superbe,
Que la tempête traite universellement
Comme elle fait une herbe !
38
39
6. Incorporação
161
Do original em francês: ‘le déploement en corps (‘encore!’) de ses effets’
41
enunciado primordial for mensurado pelo mais alto nível possível.
Praticamente, isto claramente, quer dizer que o amante em questão
deseja que o outro lhe acompanhe nestas caminhadas, incluí-lo em
sua paixão pelas praias desertas, para re-avaliar seu amor pelos
múrmuros do oceano sob o ponto de vista do amor e nada mais, e por
assim em diante, etc. Formalmente, isto quer dizer que o nível de
identidade entre um dado “gosto pelos passeios às margens do mar” e
o enunciado primordial do amor não pode ser inferior ao nível de
existência deste gosto. O significado portanto é claro: doravante, um
afeto pessoal apenas pode entrar na composição do corpo do amor se
sua identidade à declaração amorosa primordial não for inferior que
sua própria intensidade ou se ela não puder ser “composta” com o
amor sem perder sua força. Isto então, enriquece o corpo do amor, o
que quer dizer que entra no processo de uma verdade: o litoral, como
um fragmento do aparecimento, é re-avaliado pelo ponto de vista do
Dois e não é mais enclausurado no gozo narcísico do mundo172.
172
Sobre amor, pode-se ler dois textos:
42
A simplificação que aqui é necessária, nos leva finalmente ao
seguinte: o processo de uma verdade, é a construção de um corpo novo
que aparece no mundo ao passo em que se agrupa em torno do
enunciado primordial todos os múltiplos que mantém com este
enunciado uma autentica afinidade. E como o enunciado primordial é
a energia do traço de um evento, se pode dizer: um corpo de verdade é
o resultado da incorporação das conseqüências de um evento de tudo
o que, no mundo, em sua máxima potencia.
43
7. Subjetivação
44
8. Ideação
181
45
universais e, nesse sentido, transmundanas. Para isso é preciso, diz ele,
que essa experiência seja disposta “em verdade”, imanência que é
preciso entender no sentido estrito: é na medida em que se dispõe no
elemento da verdade que um objeto particular do mundo de nossa
experiência pode ser dito conhecido não somente em sua
particularidade, mas em seu ser mesmo. E, acrescenta ele, se esse
objeto é então apreendido em seu ser, é [por]que se mantém “na”
verdade esta parte do objeto que não é senão quando é exposta ao
pensamento. Estamos, pois, no ponto onde são indiscerníveis o ser do
objeto e isso que, deste ser, é pensado. Esse ponto de indiscernível
entre particularidade do objeto e universalidade do pensamento do
objeto é exatamente o que Platão denomina a Ideia. Por fim, no que
concerne à Ideia ela-mesma, como ela não existe senão em seu poder
de fazer advir “em verdade” o objeto e, assim, de sustentar que há o
universal, ela não é ela-mesma apresentável, já que ela é a
apresentação-ao-verdadeiro. Em uma palavra: não há Ideia da Ideia.
Podemos de resto denominar “Verdade” essa ausência. A Ideia é
verdadeira [por] expor a coisa em verdade; então ela é sempre ideia do
Verdadeiro, mas o Verdadeiro não é uma ideia.
46
(evento, ou para Platão: “conversão”) podermos entrar na disposição
de uma verdade. Certamente esse processo não é para nós nem uma
ascensão, nem ligado à morte de um corpo e à imortalidade de uma
alma. Ele é, como Platão também o sabe, uma dialética: a da
incorporação da nossa vida individual ao novo corpo que se constitui
em torno do enunciado primordial, traço do evento. Fazendo isso,
passamos da figura do indivíduo à do Sujeito, exatamente como no
mestre grego passamos da sofística (acomodação astuta e sem verdade
às leis diferenciais do mundo) à filosofia. Exceto que, no lugar da
filosofia, temos a arte, a ciência, a política ou o amor, dos quais a
filosofia é apenas uma apreensão segunda, à luz de um conceito de
Verdade.
47
em que o indivíduo vivente entra em verdade, portanto na composição
de um corpo subjetivável, que ele experimenta o universal. Pois ele
sabe a cada vez que isso em que ele participa vale por todos, que sua
participação não lhe dá portanto nenhum direito particular, e que,
todavia, sua vida é elevada e completa por ter assim participado de
algo [algum: quelque] além de sua simples subsistência. Esse saber é
o da Ideia.
48
particularidade imediata é perigosa, instável, angustiante à força de
não estar garantida por nada.
49
Cantor resolve esse problema criando o conceito genérico de conjunto
e fazendo-o corresponder aos conjuntos infinitos, por procedimentos
estritamente racionais, “números” novos, os ordinais e os cardinais.
Trata-se [aí] certamente de uma das mais admiráveis criações
universais de toda a história humana. É claro que o corpo de verdade
é aqui isso que realiza, no mundo do cálculo, uma nova apropriação
do predicado “infinito” para os números, dos quais este predicado era
racionalmente separado (com efeito, todo número, tomado a rigor,
media por definição uma quantidade finita)192. Como Cantor realiza
sua incorporação ao processo desta verdade nova? Por uma Ideação
extraordinariamente atormentada. Com efeito, ele sabia muito bem
que o pensamento que o atravessa, e do qual ele é um dos primeiros
organizadores, perturba igualmente as relações da racionalidade
matemática com a filosofia e a religião. Para ele, o Infinito era ligado
ao Um na forma conceitual do Deus das religiões e das metafísicas. O
domínio do pensamento humano era o finito, éramos essencialmente
criaturas condenadas à finitude. É, de resto, por isso que Cauchy
separava estritamente a noção de limite de todo compromisso com um
infinito atual. Com Cantor, o infinito entra no domínio do múltiplo.
Não apenas ele assume a existência atual das multiplicidades infinitas,
mas demonstra que existe uma infinidade de infinitos diferentes.
Como tratar a partir de agora a relação entre o pensamento do animal
humano (o indivíduo Cantor, tal que incorporado à implantação da
teoria racional dos números infinitos) e a suposição de uma
Transcendência (o indivíduo Cantor, cristão fiel) se não pode ser
suficiente a oposição do finito e do infinito, ou do múltiplo e do Um?
A Ideação cantoriana é inteiramente [como tal? no todo?: tout entière]
o tratamento deste ponto e, portanto, a exposição ao pensamento da
novidade radical, transgressiva, universal, de sua própria invenção. A
192
50
partir daí, Cantor vai tentar fazer passar a diferença entre o infinito
matemático e o infinito teológico no conceito mesmo de infinito, sem
estar ele-mesmo muito convencido. Vai escrever à Cúria romana para
pedir conselho. Vai enlouquecer também... Compreende-se bem aí
como a Ideação, de um golpe, organiza sua determinação heróica, sua
disciplina demonstrativa até as fronteiras do inteligível: depois de ter
dado uma prova rigorosa de que o conjunto dos números racionais –
as frações – é enumerável [contável], portanto que esses números,
contrariamente a toda nossa intuição imediata, não são “mais
numerosos” que os números inteiros naturais, ele exclama: “Eu vejo,
mas não acredito!” Todavia, compreende-se também como, por outro
lado, a Ideação organiza e remaneja a relação do indivíduo Cantor com
o mundo ordinário, exprime sua qualidade de animal deste mundo,
atormentado e quase desfeito pela violência ontológica de sua
incorporação pensante, mas que não cede.
51
Se admite-se que a Ideação é isso que assume, no indivíduo em vista
da incorporação ao processo de uma verdade, a ligação dos
componentes deste percurso, compreende-se então que ela é isso
através de que uma vida humana se universaliza, ao preço,
evidentemente, de difíceis problemas com sua particularidade.
52
Conclusão
53
desconstrução. É muito mais a reconstituição – como a cada vez que a
reação intelectual, carregada pela reação tout court, se sente com asas
[ganha asas, põe as manguinhas de fora] – de algo como um pobre
dogmatismo via filosofia analítica, o cognitivismo e a ideologia da
democracia e dos direitos humanos. A saber, uma especie de
cientificismo (é preciso naturalizar o espírito, estudá-lo segundo os
protocolos experimentais da neurologia), acompanhado, como
sempre, de um moralismo simplório com verniz religioso (em
substância: é preciso ser gentil e democrático mais que perverso e
totalitário). Daí que se ponho sempre o acento sobre a tríade do ser,
do sujeito e da verdade, é sua aparição efetiva que está em questão, sua
ação observável no /111/ mundo, já que é disso que o cientificismo (que
não conhece senão a naturalidade dos objetos, jamais a imortalidade
dos sujeitos) e o moralismo (que não conhece senão o sujeito da lei e
da ordem, jamais aquele da escolha radical e da violência criativa)
querem negar a existência. Digamos que, a um Manifesto pela
existência continuada da filosofia (contra o pathos de seu
acabamento), segue-se um Manifesto dedicado à sua pertinência
revolucionária (contra o dogmatismo servil que faz dela um dos
componentes das propagandas do Ocidente).
54
procedimentos de verdade efetivos a partir dos quais a filosofia tenta
construir um conceito disso que é uma verdade.
55
que generalizam a relatividade /113/ considerando que todo fenômeno
inclui, na sua singularidade fenomenal, a escala de sua existência, são
as mais promissoras, tanto mais quanto têm, com a geometria fractal,
um referente matemático moderno e sólido.
56
[que] essa política propõe formas de organização bastante distantes
do modelo do partido que dominou todo o século XXiii.
57
comunista. Pois a questão fundamental do mundo contemporâneo
poderia muito bem ser: capital-parlamentarismo (“democracia”,
portanto) que conduz à guerra ou renovação da hipótese comunista?
O segundo tema novo é o da Ideia. Como vimos no capítulo
precedente, com efeito tento sustentar que a via verdadeira é uma via
sob o signo da Ideia e que, em muitos aspectos, podemos interpretar
no meu sentido a construção dialética de Platão. Enfim, esse segundo
Manifesto é sustentado por um segundo gesto platônico. Não mais o
platonismo do múltiplo (sempre mantido, entretanto), mas um
comunismo da Ideia.
58
ação que se quer produtora de verdades (ou de universalidade, o que é
a mesma coisa) a capacidade de criar, em situações díspares,
subconjuntos genéricos dessas situações.
59
disposição corporal, orientada em direção à prontidão nervosa, à
saturação do instante. Esses são os órgãos da verdadeira pictórica de
tipo action painting.
60
Há alguns anos, como se vê em particular em diversas passagens de
Lógica dos mundos, insisto mais sobre a eternidade das verdades. É
que a universalidade é uma questão de forma (a forma da
multiplicidade genérica), enquanto a eternidade se refere ao resultado
efetivo do processo. O que me interessa é que uma verdade é, ao
mesmo tempo, produzida com materiais particulares, em um mundo
definido, e que, todavia, uma vez que ela é compreendida e utilizável
em um mundo inteiramente diferente, e a distâncias temporais que
podem ser imensas – compreendemos a potência artística de pinturas
rupestres realizadas há 40.000 anos –, é preciso que elas sejam
transtemporais. Chamo de “eternidade” das verdades esta
disponibilidade inesgotável que faz com que elas possam ser
ressuscitadas, reativadas em mundos que são heterogêneos a este em
que elas foram criadas, atravessando assim oceanos desconhecidos e
milênios obscuros. A teoria deve absolutamente tornar possível essa
migração. Ela deve explicar como existências ideais, amiúde
materializadas em objetos, podem ao mesmo tempo ser criadas em um
ponto preciso do espaço-tempo e ter essa forma de eternidade.
Descartes falava da /120/ “criação de verdades eternas”. Eu retomo
esse programa, mas sem a ajuda de Deus...
61
i Sobre o retorno da afirmação em arte e sobre a doutrina
estética que se liga a ela, pode-se ler o texto “Terceiro esboço de
um manifesto do afirmacionismo” (em Circonstances 2, Lignes,
2004).
62
Esquema 2:
MULTIPLICIDADES INDIFERENTES
Ser-aí, Aparecer
Consistência lógica Região do ser
Transcendental
Inexistente
Pontos
Desvanecimento
HÁ EVENTOS
Consequências
Órgãos
Traço
Condição de existência
Novo corpo Região do Sujeito
Presente criador
VERDADES ETERNAS
63