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Segundo Manifesto pela Filosofia

Alain Badiou

1
Conteúdo

0. Introdução
0.1 Contorno geral
1. Opinião
2. Aparência
3. Diferenciação
4. Existência
4.1 Existência da Filosofia
5. Mutação
6. Incorporação
7. Subjetivação
8. Ideação

Conclusão
Notas

2
0. Introdução

Escrever um Manifesto, mesmo por algo cuja pretensão intemporal é


tão poderosa quanto a da filosofia, é declarar que chegou o momento
de fazer uma declaração. Um Manifesto sempre contém um “é tempo
de dizer...” que faz com que, entre sua proclamação [propos] e seu
momento, não se poderia distinguir. O que me autoriza julgar que um
Manifesto pela filosofia está na ordem do dia, e, além do mais, um
segundo Manifesto? Em qual tempo do pensamento vivemos?

É preciso conceder sem hesitação ao meu amigo Frédéric Worms1 que


houve na França, entre os anos 60 e 80 - dos últimos grandes trabalhos
de Sartre às obras capitais de Althusser, Deleuze, Derrida, Foucault,
Lacan, Lacoue-Labarthe ou Lyotard, para mencionarmos apenas os
mortos -, um forte "momento" filosófico. A prova desse ponto pelo
"exemplo negativo", como dizem os Chineses, é a obstinação da
aliança de meia-dúzia de vedetes midiáticas e de sorbonnards
presunçosos em negar que tenha se passado nesses anos longínquos
qualquer coisa grandiosa ou mesmo aceitável. Essa aliança empregou
todos os meios para impor à opinião pública sua vingança estéril, aí
compreendido o sacrifício inapelável de uma geração inteira de jovens
acuados numa escolha detestável: ou bem o carreirismo selvagem
temperado com Ética, Democracia, e, se preciso, Piedade, ou bem o não
menos selvagem niilismo dos gozos imediatos ao molho no future. O
resultado dessa obstinação foi que, entre os esforços heroicos da
juventude para reencontrar uma voz que carregue tanto o pelotão
enfraquecido dos sobreviventes quanto os herdeiro da grande época2,
há, em filosofia, uma lacuna aberta que desconcerta nossos amigos
estrangeiros. No que diz respeito à França, só a eleição de Sarkozy
chega à espantá-los tanto quanto o faz o rebaixamento de nossos
intelectuais nos últimos vinte anos. É que nossos "amigos americanos"
estão sempre prontos demais a esquecer que a França, se é lugar de
algumas histerias populares grandiosas, que acompanham poderosas

1
Worms, F. La Philosophie en France au XXe Siècle. Moments (Paris, Gallimard, 2009)
(N.T.)
2
Existe na França uma geração vigorosa de verdadeiros filósofos, que não são nem
papagaios da moral portátil, nem acadêmicos das ciências soporíficas, e que têm um
pouco mais de trinta anos e um pouco menos de quarenta. Entre os antigos, numerosos
são aqueles que chegam a perpetuar na cena pública o esplendor dos anos faustosos,
mesmo se divergem sobre a natureza e as referências desse esplendor. A situação no
estrangeiro, onde se sustentou mais tempo o elã francês inicial, é ainda melhor. Não é o
momento de desesperar. Primeiramente a partida se joga ao nível do que é transmitido
que supõe outra coisa que supõe algo diferente da comunicação ou do academicismo, em
segundo lugar, operações de transformação aplicadas a essa transmissão o que supõe uma
contemporaneidade nova. Os dois processos são suficientemente avançados para que
saibamos que a aliança dominante do cientificismo e da fenomenologia, ou seja, da
"realidade" constrangedora e da moral vulgar, será vencida.
3
invenções conceituais é também aquele de uma reação versalhesa e
servil tenaz, cuja adesão propagandista de regimes de intelectuais
jamais fez falta.

"No que vocês se tornaram, filósofos franceses que tanto amamos,


durante esses sombrios anos 80 e ainda mais nos 90?" nos perguntam
com insistência. Pois bem, prosseguíamos o trabalho em diversos
lugares protegidos que tínhamos construído com nossas mãos.

Mas eis que signos cada vez mais numerosos, a despeito ou devido ao
fato de que a situação histórica, política e intelectual da França parece
extremamente degradada, indicam que vamos, velhos sobreviventes
dedicando nosso fiel labor ao assalto descontente e instruído das novas
gerações, encontrar um pouco de ar livre, de espaço e de luz.

Publiquei meu primeiro Manifesto pela Filosofia3 em 1989. Não era


um bom momento, podem acreditar! O enterro dos "anos vermelhos"
pós-Maio de 1968 por intermináveis anos de Mitterrand, a arrogância
dos "novos filósofos" e seus paraquedistas humanitários, os direitos do
homem combinados com direito de ingerência como única viático, a
fortaleza ocidental de barriga cheia, dando lições de moral aos
esfomeados da terra inteira, a crise sem glória da URSS acarretando a
vacância da hipótese comunista, os Chineses que retornaram ao seu
gênio do comércio, a "democrácia" por toda parte identificada à
ditadura ligada a uma estreita oligarquia de financista, de políticos
profissionais e de apresentadores de televisão, o culto das identidades
nacionais, raciais, sexuais, religiosas, culturais, tentando desfazer os
direitos do universal… Manter nessas condiçoes o otimismo do
pensamento, experimentar em relação estreita com os proletários
vindo da África, novas formas políticas, reinventar a categoria de
Verdade, se engajar nas veredas do Absoluto, segundo dialética
inteiramente refeita da necessidade das estruturas e da contigência

3
Manifieste pour la pbilosopbie, París, Seuil, 1989. Este livro foi traduzido: - Em espanhol, por
V. Alcantud, Madrid, Cátedra, 1989; Buenos Aires, Nueva Visión, 2007. - Em dinamarquês, por
K. Hyldegaard e O. Petersen, Arthus, Slagmark, 1991. - Em português, por M. D. Magno,
Angélica, Río de Janeiro, Aoutra, 1991. - Em italiano, por F. Elefante, Milán, Feltrinelli, 1991. -
Em alemão, por J. Wolf e E. Hoerl, Viena, Turia + Kant, 1998. - Em inglês, por N. Madarasz,
Nova York, Suny, 1999. - Em coreano, Seúl, 2000. - Em croata, por K. Jesenski i turk, Zagreb,
2001. - Em russo, por V. E. Lapitsky, San Petersburgo, Machina, 2003. - Em esloveno, por R.
Riha e J. Sumic-Riha, Liubliana, Zalozba ZRC, 2004. - Em japonês, Tokio, 2004. - Em sueco, por
D . Moaven Doust, Estocolmo, Glánta produktion, 2005. - Em turco, por Nilgün Tutal y Hakki
Hünler, 2005. - Em grego, por Ada Klabatséa e Vlassis Skolidis, Atenas, Psichogios Pub.
Gostaria de dizer de passagem que a quase totalidade dos filósofos vivos, meus
contemporâneos, que citava e discutia neste primeiro Manifesto, agora estão mortos: Deleuze,
Derrida, Lacoue-Labarthe, Lyotard… Pode-se ter alguma idéia do que me ligava a eles
percorrendo o Petit Panthéon portatif [Pequeno Pantheon portátil] que publiquei em 2008 nas
edições La Fabrique, dirigidas pelo meu amigo Éric Hazan.
4
dos eventos, nada ceder... Que tarefa! É deste labor que testemunhava
de modo sucinto e alegre ao mesmo tempo, este primeiro Manifesto
pela Filosofia. Ele era, este livrinho, como memórias do pensamento
escritas do subterrâneo.

Vinte anos depois, vista a inércia dos fenômenos, é ainda pior, toda a
noite acaba por deter a promessa da aurora - mas toda noite acaba
com a promessa de um amanhecer. Seria difícil nos rebaixarmos mais:
no registro do poder estatal, nos rebaixar mais do que o governo de
Sarkozy; no registro da situação global, mais do que a forma bestial do
militarismo americano e de seus lacaios; no registro da polícia, mais
do que os incontáveis controles, do que as leis vis, a brutalidade
sistemática, os muros e o arame farpado dedicado à proteção dos
ocidentais ricos e presunçosos de seus inimigos naturais e incontáveis
- a saber, os bilhões de destituídos pelo mundo, especialmente na
África; no registro ideológico, nos rebaixar mais do que essa miserável
tentativa de opor ao tal ‘barbarismo islâmico’ um secularismo em
trapos e uma cômica democracia salpicada, para dar um toque trágico,
por uma exploração nauseante da exterminação dos judeus pelos
nazistas europeus4; e, finalmente, no registro do saber, mais do que a
estranha mistura, que somos supostos engolir, de um “cientismo”
tecnologizado - cuja coroação é a visualização estereoscópica e à cores
do cérebro - combinado com um “legalismo” burocático - cuja
manifestação suprema é a ‘avaliação’ de tudo por especialistas, que
surgem do nada e invariavelmente concluem que o pensamento não
serve para nada e é até mesmo danoso. No entanto, apesar do quanto
afundamos, existem, eu repito, sinal que nos permitem sustentar a
principal virtude deste momento: a coragem, numa forma que se apóia
na certeza de um retorno iminente - e, na verdade, já efetivo - do poder
afirmativo da Ideia. É a esse retorno que o presente livro se dedica. A
questão em torno do qual ele é estruturado é precisamente essa: o que
é uma Ideia?

Do ponto de vista do meu próprio trabalho, especificamente, posso


evidentemente afirmar que esse Segundo Manifesto pela Filosofia
mantém a mesma relação com o segundo volume de Ser e Evento,
publicado em 2006 sob o título de Lógicas dos Mundos, que o meu
primeiro Manifesto mantinha com o primeiro volume, publicado em
1988: ele apresenta uma versão simples e imediatamente mobilizável
dos temas que ‘a grande obra’ meticulosamente desenvolve em sua
forma completa, formalizada e exemplificada. De uma perspectiva
mais geral, no entanto, é possível também afirmar que o objetivo

4
Nesse ponto, é possível consultar o dossiê que coordenei juntamente com Cécile Winter,
Portées du mot “juif”, como o terceiro volume da série Circonstances que venho
publicando nos últimos cinco anos com a editora Lignes, de meu amigo Michel Surya.
5
daquela versão curta e clarificada, em 1988, era atestar o fato de que o
pensamento perseverava no submundo, enquanto que, em 2008, o
objetivo se tornou a demonstração de que talvez existam meios de
fazê-lo retornar à superfície.

Portanto, não é exatamente uma coincidência que a questão central do


Ser e Evento de 1988 era a do ser das verdades, pensado através do
conceito de multiplicidade genérica, enquanto que, em 2006, em
Lógicas do Mundos, a questão se tornou aquela do aparecer das
verdades, que pode ser articulada através do conceito do corpo de uma
verdade, ou de um corpo subjetivável.

Simplifiquemos, e tenhamos esperança: vinte anos atrás, escrever um


Manifesto era o mesmo que dizer: ‘A filosofia é algo completamente
diferente do que te disseram que ela é. Tente portanto ver aquilo que
você não está enxergando.’ Hoje, escrever um Manifesto é, na verdade,
uma questão de dizer: ‘Sim! A filosofia pode ser o que você deseja que
ela se torne. Tente realmente ver o que você está vislumbrando.’

6
0.1 Contorno geral

Um Manifesto pela filosofia declara filosoficamente, assim, a


existência da filosofia num dado momento dessa existência. Ele o faz
de acordo com certas regras que comandam imanentemente a
declaração de existência, seja ela qual for. Segue daí um requisito de
ordem metodológica:

1. A necessidade de declarar filosoficamente a existência da filosofia


parte da dúvida, ou mesmo da refutação, desse ponto por parte da
opinião. Qual seria a relevância dessa uma declaração se não fosse
esse o caso? Assim, é necessário começarmos pela questão da opinião,
que é o que governa no momento em que essa declaração se faz
necessária. Quais são os temas da opinião e por que, afinal, ela implica
numa negação da existência da filosofia? Nosso primeiro capítulo será,
portanto: Opinião.

2. Como o que está em questão é a existência da filosofia em nossa


época e não em sua essência intemporal, a declaração deve incidir
sobre a existência da filosofia no mundo tal como ele é, e não sobre o
seu ser transhistórico. A existência é, no entanto, uma categoria do
aparecer em um mundo determinado, enquanto que o ser é uma
categoria daquilo que constitui qualquer mundo, independentemente
de sua singularidade. Preocupado com a existência da filosofia aqui e
agora, o Manifesto deve, assim, explicar o que significa o aparecer de
uma dada realidade. Nosso segundo capítulo será, assim,
necessariamente: Aparência.

3. No entanto, se o aparecer daquilo que está presentemente em jogo


na filosofia é justamente o que a opinião nega, é impossível identificar
o aparecer do qual falamos (que comanda a existência da filosofia)
com o aparecer em geral. De fato, o aparecer ‘em geral’ é precisamente
o que fornece os argumentos que a opinião apresenta para justificar
que nada de propriamente filosófico (na minha concepção do termo)
aparece, é capaz de aparecer ou deveria aparecer no mundo tal como
ele é e como deveria ficar. Por conta disso, a investigação conceitual
em que esse Manifesto se apóia foca naquilo que, diferenciando as
aparências, demarca suas formas e apresenta ali objetos distintos e até
mesmo contraditórios. Resumindo, a lógica dos mundos precisa ser
pensada com aquela da diferença das diferenças. Daí segue nosso
terceiro capítulo: Diferenciação.

4. Nós não podemos, de qualquer maneira, nos confinar à regulação


lógica das diferenças, dado que não é só a relação da filosofia com
aquilo que ela não é que conta, mas sua existência e, assim, sua relação

7
consigo mesma dentro do destino que determina se ela existe ou
desaparece. É preciso demonstrar a consistência existencial da
filosofia hoje e, para fazê-lo, nós precisamos que o aparecer da
filosofia seja idêntico à força de sua existência. Mas o que é existir?
Essa será nossa quarta questão, o que nos impõe o seguinte capítulo:
Existência.

4.1 Uma vez definida a categoria da existência, nós a aplicaremos à


existência da filosofia, comparando sua existência no mundo atual
àquela orquestrada pelo mundo de vinte anos atrás.

5. Mas isso não é o suficiente se queremos mostrar que há uma


urgência filosófica particular que nada na apresentação do mundo por
si só justifica. Que nós, filósofos, possamos declarar que esse é o caso,
sem que isso constitua um convencimento ‘geral’, indica claramente
que mapear aquilo que existe de uma maneira urgente e intensa -
mapeamento sobre o qual fundamos a legitimidade de nosso
Manifesto - não é a mesma coisa que elaborar a lei do mundo tal como
ele aparece. É preciso, assim, afirmar e estabelecer racionalmente que
existem momentos em que mudanças fundamentais afetam aquilo
que organiza o modo como intensidades de existência e urgências de
ação são distribuídas. Alguma coisa passa a ter uma existência
máxima, algo que, até então, para todos, não existia, por assim dizer.
O momento do Manifesto é o momento em que aquilo que torna a
filosofia possível, como inovação e negação do regime da aparência,
surge no contexto de uma reordenação fundamental (ainda que, a
princípio, localizada) da distribuição de intensidades no mundo, de
modo que ‘algo’ passa a aparecer no mundo - algo que demanda
atenção filosófica e cujo aparecimento é tal que pode ser dito dessa
‘coisa’: ‘ela era nada, agora é tudo’. Ou seja, todo Manifesto afirma que
há, na extensão do mundo em que essa declaração é feita, uma espécie
de tênue e implacável ruptura nas leis que governam o aparecer. Isso
nos força a chamar nosso quinto capítulo de Mutação.

6. Podemos razoavelmente dar o nome de ‘corpos’ (sou um


materialista) para aquilo que aparece em um mundo. Se a ‘coisa’ que
interessa à filosofia surge em um mundo, ela o faz na forma do devir
de um corpo. O que o Manifesto convida seus leitores a fazer, portanto,
é experimentar com a existência desse corpo de modo a se tornarem
cientes de porque, nessa existência inteiramente nova, é a existência
reafirmada da filosofia que está em jogo. Experimentar com a
existência desse corpo é uma prática, não uma representação. Isso
involve partilhar do seu devir, com todas as vicissitudes que isso
implica, e fazer do indivíduo que se é, talvez juntamente com milhões
de outros, talvez quase solitariamente, um componente do

8
desdobramento desse corpo num mundo que, até então, o julgava
inexistente. Sem dúvida, é justificado chamarmos esse processo de
uma Incorporação.

7. A incorporação não pode ser reduzida à dimensão puramente


objetiva da crescente existência de um novo corpo, que é, afinal, uma
espécie de corpo glorioso5. O que está em jogo é a orientação desse
corpo, e é isso que demanda filosofia. O que é que devemos entender
por ‘orientação’? A questão estritamente subjetiva é a daquilo ao qual
sujeitamos esse corpo em seu devir intramundano. Enquanto seu
poder pode ser demonstrado através de uma sucessão de testes e
processos, sua existência também pode ser limitada, ou mesmo
negada, de dentro desse mesmo devir ou, ainda, transformada em uma
mera cópia servil, ou mesmo no inimigo, um Corpo sacralizado, extra-
mundo. Resumindo, a incorporação pode ser positiva, negativa ou
mesmo ter a forma de uma contra-incorporação. Sendo uma questão
de como alguém conduz sua própria vida em relação ao que acontece,
essas variações da relação entre um indivíduo e o novo corpo estão no
cerne da investigação filosófica. Não há como chamar essas variantes
por outro nome senão o de Subjetivação.

8. O tema último da filosofia é aquele da Ideia, daquilo que organiza a


subjetivação, de modo que indivíduos possam imaginar a si mesmos
como propulsores desse novo corpo. Essa é, simplificando as coisas, a
resposta para a principal pergunta filosófica: o que é uma vida digna
desse nome? O Manifesto reafirma, sob as condições do presente, que
a filosofia pode dar a resposta, ou ao mesmo a forma da resposta, para
essa questão. O imperativo do mundo, que é o imperativo dos prazeres
efêmeros e imediatos, simplesmente afirma: ‘Viva somente para a sua
satisfação e viva, portanto, sem Ideia’. Contra a abolição do
pensamento vivo, a filosofia declara que viver é agir de tal modo que
não haja distinção entre vida e Ideia. Essa indiscernibilidade entre vida
e Ideia se chama: Ideação.

Assim, a declaração do Manifesto se divide em: Opinião, Aparência,


Diferenciação, Existência, Mutação, Incorporação, Subjetivação e
Ideação.

5
Eu gosto das grandes metáforas que vem da religião: milagre, graça, salvação, corpo
glorioso, conversão... é claro que, como consequência, muitos concluíram que minha
filosofia é um cristianismo disfarçado. O livro que publiquei sobre São Paulo, em 1997,
também não ajudou. De qualquer forma, eu prefiro ser um ateu revolucionário camuflado
pelo o vocabulário religioso do que um “democrata”-barra-perseguidor de muçulmanos
ocidental disfarçado de feminista secular.
9
Chegará assim o momento de concluir: viver ‘como um Imortal’, como
os Antigos queriam, está, não importa o que se diga, ao alcance de
qualquer um6.

6
Esse ponto está desenvolvido em maior extensão no capítulo conclusivo de Lógicas dos
Mundos, ‘O que é viver?’. Apesar de concentrar as elaborações de um livro complexo e
longo, esse texto é essencialmente compreensível por si só.
10
1. Opinião

Tornou-se difícil desafiar a opinião, mesmo esse sendo, desde Platão,


o dever da filosofia. Primeiramente, não seria justamente esse o
conteúdo imediato daquilo que nossos países - isso é, os estados que
tem a forma de uma ‘democracia’ parlamentar - consideram a mais
importante das liberdades: a liberdade de opinar? Segundo: não seria
esse um outro nome para aquilo que é medido, mimado e, se possível,
comprado - a saber, a opinião pública? Afinal, as pesquisas de opinião
certamente levaram a criação daquela curiosa expressão: ‘a França
pensa que...’ - que é estranha pelo menos por dois motivos. Por um
lado, é claro que ‘a França’, não constituindo um Sujeito, não é
realmente capaz de ‘pensar’. Por outro, mesmo assumindo que a
‘França’ compõe um grupo coerente, seria necessário resumir a
pesquisa nos termos do que ela realmente figura, e especificar o
resultado da seguinte maneira: ‘De acordo com as últimas pesquisas,
após deduzirmos o efeito produzido pela estupidez da questão
colocada, tantos por cento dos franceses tem a seguinte opinião, tantos
porcento tem a opinião contrária e tantos porcento não tem opinião
nenhuma’. No entanto - e essa é a terceira razão para o fetichismo da
opinião - ao invés de considerar a tríade de opinião conformista,
contra-opinião anárquica e não-opinião prudente como uma reação a
um questionário duvidoso, a atitude corrente considera que essas
opiniões determinadas devem servir de orientação para as medidas de
ordem pública. Tomemos o exemplo do incontestável democrata
Michel Rocard, o primeiro ministro socialista que Mitterrand adorava
censurar e manter na rédea curta. Ele tinha um dom para inventar
maravilhosos slogans políticos, que seus sucessores nunca se cansam
de repetir. ‘A França não pode abrigar todos os miseráveis da terra’ é
um exemplo, um que serviu para assegurar o sucesso das perversas
leis contra trabalhadores imigrantes. O slogan que nos interessa aqui,
em linguagem igualmente férrea, propõe para a França e seus líderes
uma outra proibição: ‘Não se governa contra as pesquisas’. Pior para o
filósofo-rei de Platão e sua obsessão com o Justo e o Verdadeiro!
Contra a autoridade da opinião não é possível a ‘boa governança’ -
para usar o jargão ético da moda. A opinião manda!

Basicamente, todo esse papo sobre opinião e liberdade, sobre


pesquisas e autoridade se reduz, no que diz respeito à política (mas,
como veremos, isso se estende para todas as instâncias que dependem
do pensamento), à afirmação de que nenhum princípio pode ser
promovido senão aquele que proclama que não há princípios. O
democrata irá, além do mais, alegremente completar que se aferrar a
princípios como se esses fossem absolutos é o estofo do totalitarismo.

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‘Só os tolos não mudam de ideia’ ele lembrará, enquanto sorri
caridosamente frente ao nosso pensamento retrógrado. Ele citará
como evidência a extrema velocidade com que o mundo muda, o que
por si só condenaria a inflexibilidade desses supostos princípios: tão
logo é anunciado, o princípio já está ultrapassado! Ele concluirá que
essa é a razão pela qual só existem, de um lado, as regras oportunistas
da ‘gerência flexível’ e, por outro, as regras jurídicas que defendem a
liberdade da obsessão por princípios, do outro. A liberdade do
empreendedorismo tem evidentemente a prioridade - ‘começar um
negócio’ ou escolher um banco estão logo no início da lista, do lado da
flexibilidade prática. Mas, logo em seguida, do lado jurídico, existe a
liberdade de se ter qualquer opinião que se queira, a menos que isso
negue o direito dos outros de ter uma opinião diferente. Tudo é uma
questão de gerência e de lei: todo o resto são só palavras.

‘Uau!’ exclama o filósofo, perplexo com as atitudes correntes. ‘Isso


tudo é muito impressionante! Vamos ver isso mais de perto.’ E aí o
filósofo pergunta ao democrata: se não existem princípios, o que é que
permite que a diversidade de opiniões se relacione com alguma coisa
real? Ou, em que sentido uma decisão é diferente de ser carregado pela
correnteza como um cachorro morto? De onde que a sua lei sem
princípios extrai a sua autoridade, e por que é que essa ‘administração
flexível’ não passa, na maioria das vezes, de simplesmente propagar a
correlação de forças? Para usar um pouquinho de jargão: qual é a sua
ontologia?

Aqui o democrata responde que existem, primeiramente, indivíduos


com suas opiniões e o direito de ter opiniões e, segundo, comunidades
ou culturas com seus costumes e o direito de ter costumes. A lei regula
as relações entre indivíduos e comunidades, enquanto que a
administração assegura o desenvolvimento das comunidades de
maneira vantajosa aos indivíduos. A primeira garante harmonia, a
segunda, crescimento, e, de ambos, saem o crescimento harmonioso e
o desenvolvimento sustentável.

Recuperando-se do baque desse ‘desenvolvimento sustentável’, o


filósofo não tem o que fazer se não confessar que, mesmo frente a
todos esses argumentos, infelizmente ele não pode concordar com
essa posição. Os axiomas da filosofia, tais como primeiro propostos
por Platão, não podem ser aqueles do ‘democrata’ - isso é, os do sofista,
o proponente da liberdade de opinião, e inclusive, da liberdade de
mudar completamente de opinião.

Dito isso, o filósofo não deixa de concordar com o democrata que, em


um certo sentido, é correto dizer que só indivíduos e comunidades

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existem. Nem Deus, nem Anjos, nem o Espírito da História, nem as
Raças, nem as Tábuas da Lei... tudo bem. Multiplicidades individuais e
culturas complexas é tudo com o que lidamos no que diz respeito à
existência. Sim, o filósofo compartilha hoje com o democrata (ou com
o sofista - afinal, é a mesma coisa) esse postulado materialista e que
pode ser generalizado da seguinte maneira: ‘Só existem corpos e
linguagens’. Podemos declarar que é essa a máxima do materialismo
democrático e o cerne ativo da ideologia dominante. Que uma
ideologia dominante tenha que dominar não é algo que o filósofo
conteste, cujo consentimento nesse ponto não poupa nem ele mesmo:
o filósofo, ele também, é dominado pelo materialismo democrático.
Em geral, assim, só existe aquilo que o axioma do materialismo
democrático afirma existir: corpos e linguagens.

No entanto, esse é o caso só em termos gerais, pois em uma análise


extremamente detalhada existem exceções. Existem também ‘coisas’ -
sejamos vagos por enquanto - que não podem ser identificadas nem
como singularidades individuais ou como construções culturais. Essas
‘coisas’ são imediatamente universais, pois possuem um valor - um
tipo particular de resistência - que pode ser apropriado por um outro
mundo, por uma outra cultura ou indivíduos do que o mundo, cultura
ou indivíduos que participaram de sua emergência e desenvolvimento,
e isso apesar daquilo que permanece estrangeiro nos corpos e
linguagens que compõe a sua materialidade. Em suma, esse tipo de
‘coisa’ funciona de maneira trans-mundana - e por ‘mundo’ nós
entendemos a totalidade materialista composta de corpos e
linguagens. Criada em um mundo, ela é efetivamente válida em outros
mundos e virtualmente para todos. Ela é, podemos dizer, uma
possibilidade suplementar - dado que não pode ser deduzida somente
a partir dos recursos materiais do mundo que a apropria - que está
disponível para todos. Ainda assim, seu processo de criação é de tal
natureza que ele pode ser compreendido e utilizado em contextos
individuais e simbólicos extremamente distantes entre si, no tempo e
no espaço.

Esse tipo de ‘coisa’ pode ser: arte (as pinturas rupestres nas cavernas
de Chauvet, as operas de Wagner, os romances de Murasaki Shikibu,
as estátuas da ilha da Páscoa, as máscaras de Dogon, as coreografias
balinesas, poemas indianos...); ou ciência (a geometria grega, a álgebra
arábica, física galileana, Darwinismo...); ou política (a invenção da
democracia na Grécia, o movimento camponês na Alemanha, no
tempo de Lutero, a revolução francesa, o comunismo soviético, a
revolução cultural chinesa...); ou da ordem do amor (por todo canto,
de maneira inumerável). Existiriam ainda outras coisas, outros tipos

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de coisas? Talvez. Eu não conheço nenhum outro, mas, se essa outra
coisa existir, eu ficaria muito feliz de ser convencido de sua existência7.

Sob a forma das ciências, das artes, da política e do amor, essas ‘coisas’,
dotadas de um valor transmundano e universal, são o que eu chamo
de verdades. O ponto todo - e que é, por fim, muito difícil de elaborar,
e que vai nos ocupar pelo restante desse livro - é que verdades existem
tanto quanto corpos e linguagens. Segue-se daí, portanto, a exceção
que o filósofo introduz no contexto dominante do materialismo
democrático8.

De fato, as verdades não constituem uma objeção ao materialismo


democrático, mas uma exceção a ele. Podemos propor, assim, a
formulação de uma máxima filosófica que é tanto interna quanto
externa - ou melhor, como Lacan diria, é ‘êxtima’ - ao protocolo do
materialismo democrático: existem somente corpos e linguagens
exceto que existem verdades.

Obviamente, essa leve transformação altera o o estatuto da opinião.


Podemos dizer que a opinião é o que pode ser dito de corpos ou
linguagens em uma dada linguagem no momento em que corpos e
linguagens são apreendidos como parte de um mesmo mundo. Uma
verdade não pode, portanto, ser reduzida a uma opinião porque ela
tem um valor trans-mundano, de tal modo que ela só pode ser
apropriada ao ser apreendida, não no mesmo mundo, mas através da
aceitação de uma certa - e considerável - indiferença ao mundo
particular ou, o que quer dizer a mesma coisa, uma certa afirmação da
unidade dos mundos quando considerados do ponto de vista das
verdades.

Tudo depende do fato de que, apesar de criadas em um mundo


particular com os materiais (corpos e linguagens) desse mundo, as
verdades não são marcadas como pertencendo exclusivamente a esse
mundo e, por isso, transmitem a possibilidade de que mundos que
diferem entre si em muitos aspectos sejam, ainda assim, o ‘mesmo’ do
ponto de vista das verdades em questão.

7
Os quatro tipos de ‘procedimentos genéricos’, para usar o jargão desenvolvido em Ser e
Evento, a saber, a política, o amor, a arte e as ciências, não podem ser racionalmente deduzidos
como os únicos tipos de produção humana capazes de reivindicar para si uma certa
universalidade. No entanto, não considero nenhuma das outras propostas que surgiram (o
trabalho, a religião, a lei, e por aí vai) satisfatórias. Alguns estudos detalhados desses quatro
tipos fundamentais podem ser encontrados em Condições, e, sobretudo, em três livros
publicados em 1998: Breve Tratado de Ontologia Transitória, Metapolítica, e Pequeno Manual
de Inestética.
8
Veja o último capítulo do Breve Tratado de Ontologia Transitória para uma introdução acessível
a essa equivalência entre teoria do aparecer e lógica.
14
Marx se perguntava como é que, em nosso mundo industrial, nos
podemos nos emocionar tanto com os mitos gregos quando os raios
de Zeus são tão insignificantes quando comparados à potência de uma
usina elétrica. Sua resposta - de que o mundo grego representa a nossa
infância e que há sempre algo de charmoso sobre a infância em si - é
tão frágil quanto tocante. É também uma história de origem bastante
alemã. Na verdade, a questão está mal formulada. Não devemos partir
da diferença entre os mundos - o mundo arcaico contra o mundo
industrial - e então colocar como enigma aquilo que eles tem em
comum (uma tragédia de Sófocles, por exemplo). Ao contrário,
devemos partir das verdades, pois essas nos permitem ver que, do
ponto de vista da tragédia de Sófocles, os dois mundos podem
realmente ser tomados como o mesmo.

Verdades, e somente verdades, unificam mundos. Elas transfixam as


composições discrepantes de corpos e linguagens de modo que, nem
que por um instante, essas, por assim dizer, se soldam. É por isso que
todas as verdades introduzem no jogo das opiniões estabelecidas uma
repentina mudança de escala. Aquilo que é Um em termos do
fechamento mundano obtém, através da solda dos mundos, uma
unidade vastamente superior.

Contra o democrata, o filósofo evoca a exceção das verdades como


uma mudança no pensamento. A opinião é limitada, sua liberdade
consiste, normalmente, do direito de repetir aquilo que é dominante, a
lei do mundo. Somente uma verdade abre o mundo para o Um de um
além-mundo, que é também um mundo-por-vir, mas tal que já existe
como o Verdadeiro.

Isso demonstra igualmente que, se a norma democrática da opinião é


a liberdade dentro da arena de sua limitação, o pensamento e a norma
filosófica das verdades é a igualdade na arena do ilimitado. Pois,
quando confrontados com uma verdade, tal como com um teorema, é
possível dizer que, se por um lado ninguém é livre, por outro, ninguém
é excluído. E é possível dizer também que quem quer que se mantenha
em uma relação como essa é livre - no que diz respeito a uma nova
liberdade, que se desdobra no nível transmundano, e não de um só
mundo.

É por isso que, ao contrário da opinião do democrata comum, existem


bons e verdadeiros princípios. Iremos assinalar alguns deles mais para
frente, pois esses só podem ser desenvolvidos de acordo com verdades
específicas e não de um ponto de vista formal. Existem princípios
matemáticos, ou musicais, princípios amorosos ou revolucionários... a

15
filosofia, no entanto, formula uma espécie de princípio dos princípios:
para poder pensar, tome sempre como seu ponto de partida a exceção
restritiva das verdades e não a liberdade de opinião.

Esse é um princípio do trabalhador, no sentido que o pensamento é


aqui uma questão de trabalho e não de expressão pessoal. Processo,
produção, constrição e disciplina é o que o pensamento procura; não
um consentimento despreocupado com o que o mundo propõe.

O filósofo é um trabalhador em outro sentido também: detectando,


apresentando e associando as verdades de seu tempo, revivendo
aquelas que foram esquecidas e denunciando a opinião inerte - ele é o
soldador de mundos separados.

16
2. Aparência

Se verdades existem, elas estão em exceção às leis particulares de um


mundo; isso, de modo algum, nos dispensa de obedecer ao nosso
axioma materialista: tudo o que existe sendo tecido de corpos e
linguagens, devemos poder pensar como uma verdade vem à
existência enquanto corpo num mundo determinado. Como, em suma,
uma verdade aparece.

Eu sou um platônico sofisticado, e não um platônico vulgar. Eu não


sustento que as verdades preexistem ao seu devir mundano num
“lugar inteligível” separado, e que seu nascimento é só uma descida do
Céu para a Terra. Certamente, uma verdade é eterna, mas na medida
em que ela jamais está confinada num tempo particular. Como ela
poderia suportar esse gênero de restrição, não sendo prisioneira de
nenhum mundo, nem mesmo daquele onde nasceu? O tempo é
sempre o tempo de um mundo. Como já vimos, isso foi o que desviou
Marx: a tragédia de Sófocles, como ele o acreditava, não nos toca
porque pertence a um velho mundo morto. Ela só nos toca na medida
em que o que a liga materialmente ao seu mundo de aparição não
esgota o seu alcance. É, de resto, por isso que a apresentação “cultural”
das obras de arte, com restituição cuidadosa do contexto, obsessão da
História e relativização das hierarquias de valor, tão em moda hoje,
não é finalmente senão um amortecimento: ela opera em nome da
nossa concepção do tempo (a concepção histórica e relativista do
materialismo democrático) contra a eternidade das verdades. Mais
vale a bricolagem das coleções anárquicas, tal como se a via outrora
nos pequenos museus de província, ou a perturbação das analogias (o
anjo de Reims colado a uma deusa Apsarás), tal como Malraux
compunha seu museu imaginário91. Entretanto, a eternidade das
verdades deve ser compatível com a singularidade de sua aparição.
Sabemos que Descartes afirmava que Deus tinha criado as verdades
eternas. Nosso paradoxo é ainda mais radical: criadas sem nenhum
Deus, com os materiais particulares de um mundo, as verdades não
são por isso menos eternas. Precisamos, então, tornar racional nada
menos do que a aparição da eternidade no tempo.

Começaremos naturalmente por uma doutrina geral do aparecer.

Em O Ser e o Evento, como no Primeiro Manifesto, eu mostrei que,


despojado de todos os predicados qualitativos que o fazem uma coisa
singular (ou o que chamaremos mais adiante um objeto), reduzido só

91

17
ao seu ser, o “il y a” (há)10* se deixa pensar como multiplicidade pura.
Esta árvore que há diante de mim, se tento inicialmente subtrair dela
a presença efetiva em tal mundo (seu entorno, o horizonte, as outras
árvores, a campina próxima etc.), depois o entrelaçar das
determinações que a fazem consistir diante de mim como árvore (a
cor verde, a extensão dos ramos, o jogo na folhagem de sombra e de
luz etc.), não restará no fim senão uma multiplicidade infinitamente
complexa e composta de outras multiplicidades. Nenhuma unidade
primordial, ou atômica, virá interromper essa composição. A árvore
enquanto tal não tem átomos de árvore que fundariam sua essência
qualitativa. No fim, não se cai sobre o Um, mas sobre o vazio. Esta
árvore é um entrelaçamento particular de multiplicidades tecidas só
de vazio, de acordo com produções formais das quais só a matemática
dá conta. Tal era a tese axial da ontologia que eu propunha há vinte
anos: o ser é multiplicidade extraída do vazio, e o pensamento do ser-
enquanto-ser não é nada de outro que a matemática. Ou
simplesmente: a ontologia, pensada etimologicamente como discurso
sobre o ser, se realiza historicamente como matemática das
multiplicidades.

Daí o que é questão a propósito da árvore, por exemplo, no poema de


Valéry:

Tu penches, grand platane, et te proposes nu


Blanc comme um jeune Scythe.
Mais ta candeur est prise et ton peid retenu
Par la force du site112.

não é o que da árvore se deixa pensar (matematicamente) como a


forma pura de seu ser, mas outra coisa, seja esse ser tal como ele
aparece num mundo, ou constitui por sua aparição um componente
desse mundo. O poema não é o guardião do ser, como o pensa
Heidegger, ele é a exposição na língua dos meios do aparecer. E essa
exposição ela mesma não é ainda o pensamento do aparecer, o qual
não se constitui, como iremos ver, senão como lógica.

Seja uma multiplicidade qualquer. O que pode significar que ela


aparece? Simplesmente que, além de seu ser-enquanto-ser,
intrinsecamente determinado como multiplicidade pura (ou
multiplicidade “sem Um” uma vez que não há átomos de ser), há o fato
de que essa multiplicidade está aí. Hegel tem razão de encadear uma
doutrina do ser-aí à sua doutrina do ser puro. Pois o fato, para um
múltiplo, de estar de algum modo localizado, de ver a indiferença-

10*
Possível nota de tradução?
112

18
múltipla de sue ser assinalado a um mundo, ultrapassa o recurso desse
ser-múltiplo tal como o pensa a matemática. Uma espécie de impulso
de essência topológica faz com que o múltiplo não se contente em ser
o que é, uma vez que, como aparência, é aí que ele vem a ser o que é.
Mas o que quer dizer esse “ser-aí”, esse ser que vem a ser enquanto ele
aparece? Não temos a possibilidade de separar uma extensão disso que
a povoa, ou um mundo dos objetos que o compõem. O ser-enquanto-
ser é absolutamente homogêneo: multiplicidade pura
matematicamente pensável. Não há o ser localizador dos mundos e o
ser localizado dos objetos. Não há tampouco o Universo como lugar
absoluto de tudo o que é. Como efeito, demonstramos,
matematicamente, que o tema de uma multiplicidade total, ou
multiplicidade de todas as multiplicidades, é incoerente, o que quer
dizer que, sendo insuportável ao pensamento, não pode tampouco dar
lugar a um ser (pois Parmênides tem razão: ser e pensamento são o
Mesmo).

Resulta de tudo isso que o ser-aí, ou aparecer, tem por essência pura,
não uma forma do ser, mas formas da relação. Nossa árvore aparece
como tal enquanto seu ser puro (uma multiplicidade) é diferenciado
da árvore vizinha, da campina, da telha vermelha da casa, do corvo
negro empoleirado sobre um ramo etc. Mas também diferenciado de
si mesmo quando, no vento, ela “pende”, sacode sua folhagem como
um leão a sua juba, e modifica assim seu aspecto geral, ainda que seja
também sempre a mesma enquanto “mantida pela força da paisagem”.
O mundo onde a árvore aparece é assim, para cada multiplicidade que
aí figura, o sistema geral das diferenças e identidades que a liga a todas
as outras.

Podemos racionalmente chamar “lógica” uma teoria formal das


relações. Por isso o pensamento do aparecer é uma lógica. Podemos
mesmo sustentar que dizer que uma coisa “aparece” ou dizer que ela
é “constituída numa lógica” é dizer a mesma coisa. O mundo onde a
coisa aparece é essa lógica mesma enquanto desdobrada de todas as
multiplicidades que aí se encontram inscritas.
A forma técnica dessa lógica será um pouco esclarecida no próximo
capítulo. Mas o essencial, o que nos importa, é que uma verdade, na
medida em que ela aparece, é um corpo singular que entra em relação
diferencial com uma infinidade de outros corpos, segundo as regras de
uma lógica da relação.

O processo de uma verdade que aparece num mundo toma


necessariamente a forma de uma incorporação lógica.

19
3. Diferenciação

Para pensar a diferença entre um corpo banal e um corpo de verdade,


ou corpo subjetivável, e consequentemente, a diferença entre o
aparecer de uma verdade e o aparecer, enquanto objeto de um mundo,
de uma multiplicidade qualquer, é necessário apreender os protocolos
de diferenciação que constituem a identidade lógica desse mundo. Se
o aparecer consiste na apreensão de múltiplos logicamente definidos
a partir do vazio por uma rede de diferenças e identidades, então uma
singularidade intramundana, como é o caso do processo de uma
verdade, deve ser definível segundo critérios puramente lógicos,
internos ao formalismo da regulação das diferenças, ou mais
geralmente das relações entre multiplicidades.

Para chegar a essa definição que comanda o que quer dizer que
verdades existem, tentemos nos representar a situação de um mundo.

Podemos traçar as multiplicidades que coexistem nesse mundo, tais


como dadas em seu ser puro, sob a forma de círculos de tamanho
variável (em seguida é suposto que se lance um olhar sobre o esquema
1). A noção de “tamanho” é aqui muito aproximativa, pela seguinte
razão: duas multiplicidades quaisquer são diferentes desde que um
elemento de uma delas não seja elemento da outra. É possível então
que duas multiplicidades sejam ontologicamente distintas ainda que
tenham o mesmo “tamanho”, quer dizer, o mesmo número de
elementos. Basta que as multiplicidades em questão difiram apenas
em um ponto: elas têm os mesmos elementos, com a exceção de que α
pertence à uma e não à outra, a qual possui β
, que não está na primeira.
Apenas disso, de que α é diferente de β , segue-se que as duas
multiplicidades são absolutamente diferentes. Essa dimensão local da
diferença, que se diz também extensional, faz com que a diferença
entre dois múltiplos não seja redutível à questões quantitativas. Mas,
enfim, imaginemos que círculos diferentes representem
multiplicidades diferentes. Eu quero dizer: ontologicamente
diferentes. É um ponto crucial e delicado: a diferença ontológica não
coincide necessariamente com a diferença no aparecer. É assim que
uma árvore na margem de uma estrada difere sem nenhuma dúvida
de sua vizinha, mas que, aos olhos do viajante apressado, todas essas
árvores formam uma série monótona, constituída pela identidade. Elas
aparecem numa esmagadora similitude, ainda que elas sejam
absolutamente diferentes. No aparecer, elas repetem o mesmo padrão
enquanto o seu ser-múltiplo não repete nada, uma vez que toda
diferença, mesmo atestada, em um único ponto, é ontologicamente
absoluta. Se, ao contrário, fixamos a escala do mundo ao campo de

20
visão de um indivíduo frouxamente deitado na campina entre duas
árvores, e que enumera o rendilhado das folhas sob o céu azul, ou a
inclinação dos altos ramos, é claro que as duas árvores aparecem como
elas são: essencialmente diferentes. Assim, é possível que o que vale
para o ser-enquanto-ser valha para o ser-aí, e é possível também que
a avaliação das diferenças no aparecer não tenha nada a ver com
aquela que rege o substrato do ser desse aparecer. O laço entre “ser” e
“aparecer” (ou existir) é contingente. O que o platonismo verdadeiro
sempre afirmou, mas o que de modo algum significa, como se o crê,
quando se assume o platonismo vulgar, que o aparecer seja da ordem
do falso ou da ilusão. A diferença entre o ser e o aparecer é bem antes
aquela que distingue a matemática (como ontologia) e a lógica (como
fenomenologia). Duas disciplinas tão formalizadas e rigorosas tanto
uma quanto a outra.

Mas retomemos a exegese do esquema 1. Representemos o quadro


lógico do mundo por um plano situado em baixo dos círculos. Esse
quadro “contém” elementos especiais que chamaremos de graus.
Sendo dados dois elementos de uma multiplicidade (representados por
dois pontos num círculo), lhes corresponde um grau no plano. Esse
grau é aquele da identidade dos dois elementos. Suponhamos, por
exemplo, que um dos círculos seja o múltiplo das árvores na margem
da estrada. Às duas árvores da série monótona que a estrada inflige às
árvores corresponde um grau de identidade, coloquemos o grau p.
Diremos então que, na medida em que elas aparecem nesse mundo, as
duas árvores são “idênticas ao grau p”. Nós vimos que é possível que
esse grau seja muito elevado se o mundo e sua lógica fossem aqueles
do motorista cansado: em função de ver desfilar as árvores, ele as
confunde umas com as outras. Todas se tornam “árvores e ainda
árvores”. De modo que muito fortemente as árvores são idênticas,
mesmo se, ontologicamente, elas difiram absolutamente. Uma
diferença ontológica absoluta pode aparecer na lógica do mundo sob
as espécies de uma quase identidade. Para o sonhador deitado entre as
duas árvores e que observa os contornos e a iluminação, as duas
árvores são, ao contrário, evidentemente muito diferentes, de modo
que o grau p de sua identidade é muito fraco. Dessa vez, a diferença
ontológica aparece sob as espécies de um grau de identidade fraco, e
então em maior harmonia com a estrutura do ser subjacente.

Começamos a ver que os graus de identidade que inscrevem – e só eles


– multiplicidades no tecido das relações que compõem um mundo
obedecem a regras particulares. Por exemplo, deve poder existir um
princípio de comparação entre certos graus para que se possa dizer
que dois múltiplos que aparecem num mundo, e cuja identidade é
medida por um grau, são “muito idênticos”, ou ao contrário, “muito

21
diferentes”. Pois, com efeito, isso significa dizer que o grau p que mede
a identidade dos dois primeiros múltiplos é nitidamente “maior” que
o grau que mede a identidade dos dois últimos. Assim as duas árvores
apreendidas pelos faróis do motorista apressado e as duas árvores
observadas pelo dorminhoco do vale. Se as duas primeiras são
idênticas ao grau p, e as duas outras ao grau q, acabamos de explicar
que é preciso poder dizer que p é nitidamente superior à q. Conclusão:
no essencial, a estrutura dos graus é uma estrutura de ordem.

Vemos também que, se dois múltiplos aparecem inteiramente


diferentes é porque seu grau de identidade, no mundo concernido, é
praticamente nulo. Mas, para que isso tenha sentido, é necessário que
exista um grau que “marque” essa nulidade, então um grau menor que
todos os outros, um grau que prescreva uma identidade mínima de
dois múltiplos, o que implica, relativamente à lógica do mundo
concernido, uma diferença absoluta, como é o caso para as duas
árvores sob as quais sonha nosso dorminhoco. Inversamente, se dois
múltiplos, ainda que ontologicamente diferentes, aparecem como
inteiramente idênticos, é que seu grau de identidade é máximo, maior
que todos os outros. É necessário para isso que exista tal grau. Em
suma, a estrutura de ordem dos graus admite um máximo e um
mínimo.

Um exame cuidadoso das condições lógicas do aparecer, ou ser-aí,


mostra que os graus de identidade obedecem ainda a duas regras que
não detalharei aqui e que se encontra amplamente deduzidas,
analisadas e exemplificadas nos livros II e III de Lógicas dos mundos.
Trata-se da existência da conjunção de dois graus, e da existência do
envoltório de um conjunto infinito de graus. Essas regras fazem com
que o espaço dos graus, constitutivo da lógica de um mundo, tenha a
estrutura geral de uma álgebra de Heyting122, bem designada em inglês
de “locale”133. Bem designada, uma vez que se trata, com efeito, da
localização dos múltiplos do qual todo ser se compõe, do “aí” do ser.

Existem numerosas estruturas desse tipo que não são isomorfas. Essa
diversidade é tomada numa tensão entre álgebra e topologia, entre
teoria das operações e teoria das localizações, que creio desde muito
tempo estar no coração de todo pensamento dialético144. Digamos que
aqui ele assume a seguinte forma: a estrutura dos graus de identidade
que rege o aparecer pode pertencer seja ao registro “clássico” das
álgebras de Boole, seja ao registro das aberturas de um espaço
topológico. No primeiro caso, o aparecer, via a medida dos graus de

122
133
144

22
identidade, obedece à lógica ordinária, com terceiro excluído, o que é
também o caso do ser enquanto tal, do qual se sabe desde Parmênides
que ele não tolera um terceiro termo entre o ser e o não-ser. No
segundo caso, trata-se em geral de uma lógica intuicionista, sem
terceiro excluído, que vem impor ao ser-aí para se afastar do ser puro.

O que nos importa aqui, para além dos apaixonantes detalhes da lógica
(ou antes, das lógicas) do aparecer, é que se esgote sua infinita
complexidade aparente com uma legislação simples de identidades e
diferenças. Ordem, máximo e mínimo, conjunção e envoltório, bastam
para pensar a distância entre o ser e o ser-aí. Eu propus chamar
transcendental o sistema dessas regras. No esquema 1, o plano de corte
onde todas as diferenças locais são indexadas sobre graus de
identidade representa o transcendental do mundo. Como Kant tinha
tido intuição disso, seguido nesse ponto por Husserl, o tema do
transcendental é essencialmente um tema lógico. O erro, entretanto, é
falar de lógica transcendental opondo-a a lógica formal. Pois a lógica
dos mundo é de cabo a rabo levantada sobre algumas inflexões da
lógica formal.

Sabe-se que Heidegger prescrevia o destino da metafísica a um


desconhecimento da diferença ontológica, pensada como diferença
entre ser e ente. Se se interpreta o ente como o “aí” do ser, ou como a
localização mundana de um múltiplo puro, ou como o aparecer de ser
múltiplo – o que é em todo caso possível -, se dirá que é do afastamento
imanente entre matemática e lógica que é questão nisso que Heidegger
chama a diferença ontológica. Conviria, então, para continuar a segui-
lo, chamar de “metafísica” toda a orientação do pensamento que
confunde sob a mesma Ideia a matemática e a lógica. Ora, existem
duas maneiras de incorrer nessa confusão. Seja reduzindo a
matemática a não ser senão um pensamento lógico, como o faz no seu
registro próprio Frege, Russell ou Wittgenstein155. Seja considerando
que a lógica é apenas um ramo especializado da matemática, como o
fazem numerosos positivistas modernos. Dir-se-á então que existem
duas metafísicas, a primeira dissolvendo o ser no aparecer, a segunda
negando que o aparecer seja distinto do ser. Reconheceremos
facilmente na primeira as variantes do empirismo; na segunda, as
variantes do dogmatismo.

A filosofia só existe se segurar firme na dupla consistência do ser e do


ser-aí, na dupla racionalidade do ser-enquanto-ser e do aparecer, no
valor intrínseco e a separação da matemática e da lógica. Sobre seus
dois extremos, empirismo moralizante e teologia dogmática, agitam-

155

23
se desde sempre agressivos fantasmas. Eu faço aqui manifesto dos
métodos contemporâneos de seu exorcismo.

24
4. Existência

SEGUNDO MANIFESTO PELA FILOSOFIA - CAP. 4 EXISTÊNCIA

Um problema fundamental da filosofia desde seus inícios é o de distinguir, por uma parte,
o ser (aquele que Aristóteles, antes de todos, quer pensar "enquanto ser"), e por outra a
existência , categoria que, precisamente, não é redutível a do ser. Não é exagerado dizer
que, mesmo hoje em dia, a elaboração desta diferença comanda o destino de uma
construção filosófica.

O sentido da palavra "existência" resulta com muita frequência de levar em consideração


um tipo de ser especial. Tal é o caso em Heidegger, quando distingue entre Sein e Dasein.
Se nos ativermos a um ponto de vista etimológico, observaremos que "existência", que
depende do Dasein, é um conceito topológico. Significa ser (estar) aí, ser no mundo. É
evidente que, no contexto do aparecer tal como o defino, há que conceder a Heidegger a
determinação do conceito muito geral de existência pela necessidade de pensar o lugar, o
mundo onde cada coisa vem a ser, ou antes a existir seu ser (?). Que esse lugar não seja
dedutível do ser como tal funda a diferença Sein/Dasein, ou ser/ser-aí. Entretanto, para
Heidegger, "Dasein" - e, finalmente, "existência" - é um nome para a "realidade humana",
para o destino histórico do pensamento, para a experiência crucial e criadora do devir do
próprio ser. Hoje vou propor, em troca, um conceito do ser-aí e da existência sem referir-
me no mínimo que seja a algo como a consciência, a experiência ou a realidade humana.
Desde este ponto de vista, sigo na linha antihumanista de Althusser, de Foucault ou de
Lacan. "Existência" não é um predicado particular do animal humano.

Na obra de Sartre, a distância entre ser e existência é uma consequência da diferenciação


dialética entre ser e nada. De fato, a existência é o efeito do nada no marco da plena e
estúpida brutalidade do ser enquanto ser, ela nomeia a relação complexa entre o ser-em-
si - que se esgota sendo sem ek-sistir, sem sair de si - e o ser-para-si, que difere de si
nadificando o em-si que ele correria o risco de ser. O ser-para-si é o sujeito absolutamente
livre para o qual a existência precede a essência. Por minha parte, vou determinar também
o conceito de existência sob a condição de algo como a negação, e também da diferença
a respeito de si. Ontologicamente, essa é para mim a questão do vazio, a questão do
conjunto vazio. Fenomenologicamente, é a questão da negação nos diversos sentidos que
pode tomar em lógica (clássica, intuicionista, paraconsistente), e que pode aplicar-se ao
aparecer de um múltiplo desde o momento em que se mede num mundo o grau de
identidade entre ele e a sua negação. Mas tramarei esses vínculos sem estabelecer
nenhuma relação com o sujeito consciente, e menos ainda com a liberdade. "Existência"
não é um predicado particular do sujeito livre ou da ação moral.

Vimos que, para pensar o ser-aí, tomo algo de Kant: o fato de que o aparecer de uma
multiplicidade supõe a noção de um grau, ou de uma intensidade que mede as relações
explícitas entre ela e tudo que coaparece no mesmo mundo. Encontramos esta ideia na
famosa passagem da primeira Crítica que concerne às antecipações da percepção. Mas
vou tomar também algo de Hegel, a saber, que a existência deve ser pensada como o
movimento que vai do ser puro ao ser-aí, ou da essência ao fenômeno, ao aparecer, tal
como ele o explica em dois profundos e obscuros capítulos de sua Lógica. Não obstante,
esforçarei-me por desdobrar estas fidelidades limitadas e diversas (Heidegger, Sartre,
Kant e Hegel) sem recorrer nem a uma noção historial do Ser, nem a uma consciência
transparente, nem a um sujeito transcendental, nem ao devir da Ideia absoluta.

25
Será esta uma boa ocasião para recapitular nosso trajeto.

Partamos da pergunta: "O que é uma coisa?". É o título de um famoso ensaio de


Heidegger. Que é uma coisa enquanto "há" (il y a) sem nenhuma determinação de seu
ser, salvo precisamente seu "ser enquanto ser" (ou ser como ser?) ? Podemos falar de um
objeto do mundo. Podemos distingui-lo no mundo por suas propriedades ou seus
predicados. De fato, podemos fazer a experiência da rede complexa de identidades e
diferenças que fazem com que esse objeto seja manifestamente não idêntico a outro objeto
do mesmo mundo. Mas uma coisa não é um objeto. Mas uma coisa não é todavia um
objeto. Como o herói do grande romance de Robert Musil, uma coisa é algo "sem
qualidades". Devemos pensar uma coisa antes de sua objetivação num mundo preciso.

A coisa é Das Ding, talvez mesmo das Ur-Ding. Quer dizer, essa forma do ser que se
situa certamente depois da indiferença do nada, mas igualmente antes da diferença
qualitativa do objeto. Por fim, temos que formalizar o conceito de coisa entre, por uma
parte, a prioridade absoluta do nada (o vazio de que se tece toda a multiplicidade) e, por
outra, a complexidade dos objetos. Uma coisa é sempre a base pré-objetiva da
objetividade. É a razão pela qual uma coisa não é senão uma multiplicidade. Não uma
multiplicidade de objetos, não um sistema de qualidades, uma rede de diferenças, mas
uma multiplicidade de multiplicidades, e uma multiplicidade de multiplicidade de
multiplicidades. E assim sucessivamente. Tem um fim este tipo de "disseminação", para
falar como Jacques Derrida? Sim, há um ponto de detenção. Mas esse ponto de detenção
não é um objeto primitivo, ou um componente atômico, não é uma forma do Um. O ponto
de detenção é necessariamente também uma multiplicidade. É a multiplicidade que não é
a multiplicidade de nenhuma multiplicidade, a coisa que é também nada, o vazio, a
multiplicidade vazia, o conjunto vazio. Se uma coisa está entre indiferença e diferença,
entre nada e objetividade, é porque uma pura multiplicidade se compõe de vazio. o
múltiplo como tal tem que ver com a indiferença e a ausência total de objeto.

Desde a obra de Cantor, em fins do século XIX, sabemos que é perfeitamente racional
propor esse tipo de construção de puras multiplicidades a partir do vazio como marco
para a matemática. Essa é a origem e a justificação da tese que recordei anteriormente: se
a ontologia é a ciência da coisa, do puro "algo", devemos concluir disso que a ontologia
é a matemática. A coisa é formalizada como conjunto; os elementos desse conjunto são
conjuntos, e o ponto de partida de toda a construção é o conjunto vazio.
Nosso problema agora, na via que nos leva à existência, é compreender o nascimento da
objetividade. Como pode uma pura multiplicidade (um conjunto) aparecer num mundo,
em uma rede muito complexa de diferenças, de identidades, de qualidades, de
intensidades, etc.?

É impossível deduzir algo deste tipo de pensamento matemático das multiplicidades


enquanto conjuntos compostos, em última instância, de puro vazio. Se a ontologia,
enquanto teoria das coisas sem qualidades, é a matemática, então a fenomenologia,
enquanto teoria do aparecer e da objetividade, concerne à relação entre as diferenças
qualitativas, os problemas de identidades, e é ali onde encontramos problemas de
existência. Tudo isso exige o pensamento de um lugar para o aparecer, ou para o ser-aí,
um lugar que denominamos um mundo e que, por sua parte, não existe, já que é condição
de toda a existência.

Depois da matemática do ser enquanto ser, começamos a desenvolver, nos capítulos


precedentes, a lógica dos mundos. contrariamente à lógica das coisas, que se compõem
de conjuntos de conjuntos, a lógica dos mundos não pode ser puramente extensional. Esta
26
lógica deve ser a da distribuição das intensidades no campo em que as multiplicidades
não se contentam em ser, e sim que além do mais aparecem, aí, num mundo. a lei das
coisas é ser enquanto puras multiplicidades (coisas), mas igualmente ser aí enquanto
aparecer (objetos). A ciência racional que concerne ao primeiro ponto é a ontologia,
desdobrada historicamente como a matemática. A ciência racional do segundo ponto é a
fenomenologia lógica, num sentido muito mais hegeliano que husserliano. Contra Kant,
devemos sustentar que conhecemos o ser enquanto ser e que conhecemos assim mesmo
a maneira em que a coisa em si aparece no mundo. Matemática das multiplicidades e
Lógica dos mundos nomeiam, se adotamos as denominações kantianas, nossas duas
primeiras críticas". A terceira crítica é a teoria do acontecimento, da verdade e do sujeito,
cujo desenvolvimento esboço a partir do capítulo 5 deste livro, e que é a verdadeira meta
de toda a filosofia contemporânea digna de tal nome, a saber, responder à pergunta: como
viver uma vida que seja comensurável com a Ideia? Em tudo isto, a existência é uma
categoria geral da lógica do aparecer, da segunda crítica, e é possível falar da existência
independente de toda consideração acerca da subjetividade. No ponto em que estamos,
"existência" vai ser um conceito a-subjetivo.

Suponhamos que temos uma pura multiplicidade, uma coisa, que pode ser formalizada
como múltiplo ou conjunto. Nós desejamos compreender exatamente que é exatamente o
aparecer, o ser-aí, dessa coisa num mundo determinado. A ideia exposta nos capítulos 2
e 3 é que quando a coisa (o conjunto) é localizada num mundo, é porque os elementos do
conjunto estão inscritos numa novíssima avaliação de suas identidades. De tal modo que
é possível dizer que esse elemento, por exemplo, x, é mais ou menos idêntico a outro
elemento, y. Na ontologia clássica não mais que duas possibilidades: ou bem x é o mesmo
que y, ou não é em nada idêntico a y. Se tem já a identidade estrita, já há diferença.
Inversamente, num mundo concreto enquanto lugar do ser-aí das multiplicidades, temos
uma grande variedade de possibilidades. Uma coisa pode ser muito semelhante a uma
outra, ou semelhante em certos pontos e diferente em outros, ou um pouco idêntica, ou
muito idêntica mas não totalmente a mesma, etc. Assim, todo o elemento de uma coisa
pode ser posto em relação com outros pelo que chamaremos um grau de identidade. A
característica fundamental de um mundo é a distribuição deste tipo de graus sobre todas
as diferenças que aparecem nesse mundo.

Em consequência, o conceito mesmo de aparecer, ou de ser-aí, ou de mundo, possui duas


características.

Em primeiro lugar, um sistema de graus, com uma estrutura elementar que permite a
comparação entre graus. Temos de ser capazes de observar se tal coisa é mais idêntica a
tal outra que uma terceira. Por isso os graus tem, com toda a evidência, a estrutura formal
de uma ordem. Admitem, talvez no marco de certos limites, o "mais" e o "menos". Esta
estrutura é a disposição racional dos matizes infinitos de um mundo concreto. Recordo
que chamei a esta organização dos graus de identidades o transcendental de um mundo.
Em segundo lugar, temos uma relação entre as coisas (as multiplicidades) e os graus de
identidade. Esse é precisamente o sentido de "ser-num-mundo" para uma coisa.

Providos dessas duas determinações, teremos a significação do tornar-se-objeto da coisa,


logo de sua existência.

Repitamos a construção do que, adiante, denominaremos um objeto, ou seja, um múltiplo


associado a uma avaliação das identidades e diferenças imanentes a esse múltiplo.
Suponhamos que temos um par de elementos de um múltiplo que aparece num mundo. A
esse par lhe corresponde um grau de identidade. Esse grau expressa o "mais" ou o
27
"menos" de identidade entre os dois elementos desse mundo. Assim, a todo par de
elementos lhe vai corresponder um grau no transcendental do mundo. Chamamos a esta
relação uma função de identidade. Uma função de identidade, ativa entre certas
multiplicidades e o transcendental do mundo: tal é o conceito fundamental da lógica do
ser-aí ou do aparecer. Se uma pura multiplicidade é uma coisa, uma multiplicidade
acompanhada de sua função de identidade é um objeto (do mundo).

Assim, a lógica completa da objetividade é o estudo da forma do transcendental enquanto


ordem estrutural e o estudo da função de identidade ntre multiplicidades e o
transcendental.

Formalmente, o estudo do transcendental é o estudo de alguns tipos de ordem estrutural,


é uma questão de técnica. Há aqui interação entre fragmentos formais do matemático-
lógico e uma intuição filosófica fundamental. Quanto ao estudo da função de identidade,
se reduz ao de um problema filosoficamente importante, o da relação entre as coisas e os
objetos, entre as multiplicidades indiferentes e seu ser-aí concreto. Limito-me aqui a
estudar três pontos.

Em primeiro lugar, é muito importante manter presente no espírito que há muitos tipos
de ordens, e, por consequência, muitas possibilidade para a organização lógica de um
mundo. Nós devemos assumir a existência de uma infinidade de mundos diferentes, não
somente ao nível ontológico (uma multiplicidade, uma coisa, é, num mundo e não em
outro), e sim também ao nível lógico, ao nível do aparecer, e portanto também, como
veremos, da existência. Dois mundos com as mesmas coisas podem ser absolutamente
diferentes um do outro porque seus transcendentais são diferentes. A saber: as identidades
entre os elementos de uma mesma multiplicidade podem diferir radicalmente a nível de
seu ser-aí num mundo ou em outro.

Em segundo lugar, como vimos, há sempre, num mundo, certo número de limites de
intensidade de aparecer. Um grau de identidade entre dois elementos varia entre dois
casos limite: os dois elementos podem ser "absolutamente idênticos , praticamente
indiscerníveis no marco lógico de um mundo; podem ser absolutamente não idênticos,
absolutamente diferentes um do outro, não ter nenhum ponto em comum. Entre esses dois
limites, a função de identidade pode expressar o fato de que os dois elementos não são
nem absolutamente idênticos, nem absolutamente diferentes. É fácil formalizar esta ideia.
Em uma ordem transcendental, você tem um grau mínimo e um grau máximo de
identidade. A maioria das vezes, tem uma quantidade de graus intermediários. Se num
mundo, para um par de elementos, a função de identidade toma o valor máximo, diremos
que os dois elementos são absolutamente idênticos nesse mundo, ou que têm o mesmo
aparecer, o mesmo ser-aí. Se a função de identidade toma o valor mínimo, diremos que
os dois elementos são absolutamente diferentes um do outro, e se a função de identidade
toma um valor intermediário, diremos que os dois elementos são idênticos numa certa
medida, medida que está marcada por esse grau transcendental intermediário.

Em terceiro lugar, um transcendental, além da ordem, incluindo seu máximo e seu


mínimo, tem leis estruturais que a lógica permite pensar e que nos levam a falar mais
finamente das determinações globais de um objeto. Podemos, por exemplo, examinar a
intensidade de ser-aí de uma parte do mundo, mesmo infinita, e não só de alguns
elementos. Ou podemos desenvolver uma teoria das partes menores de um objeto, as
quais denomino átomos de aparecer. Nesta teoria intervem um princípio totalmente
crucial, que chamo o princípio fundamental do materialismo. Seu enunciado é muito
simples: "Todo átomo de aparecer é real". este princípio indica que, a nível atômico (o
28
que quer dizer: quando o que está em jogo é só um elemento do múltiplo que aparece) se
podem identificar o átomo de aparecer e um elemento real do múltiplo considerado (no
sentido ontológico: esse elemento lhe "pertence"). estamos aqui nas mais profundas
considerações sobre a conexão entre ontologia e lógica, entre ser e aparecer. Adotar o
princípio do materialismo é admitir que, no ponto mínimo do aparecer, há uma espécie
de "fusão" com o ser que aparece. Um átomo de aparecer é de certo modo "prescrito" por
um elemento real do múltiplo.

Infelizmente, ainda que o enunciado do princípio seja simples, sua formalização e o


exame rigoroso das suas consequências superam o marco de nosso Manifesto. Que se
retenha, de todo modo, que toda filosofia autêntica do aparecer se declara aqui
materialista, no sentido do princípio. No primeiro Manifesto, eu escrevia que a filosofia ,
reatando com o motivo da Verdade, deve assumir um "gesto platônico". O segundo
Manifesto declara que está na ordem do dia, com todo o rigor conceitual requerido, um
materialismo platônico que, como se verá mais adiante, é um materialismo da Ideia.

Temos assim uma compreensão extensa e difícil do que ocorre a uma multiplicidade
quando aparece verdadeiramente em um mundo, ou quando ela não é simplesmente
redutível a sua pura composição imanente. A multiplicidade que aparece deve ser
compreendida como uma rede muito complexa de graus de identidade entre seus
elementos, suas partes e seus átomos. Isso é o que, em Lógicas dos mundos, denomino
"lógica atômica", e que é a parte mais sutil da teoria do aparecer. Aqui temos que prestar
atenção na lógica das qualidades, não só na matematicidade das extensões. Temos que
pensar, para além do puro ser-múltiplo, algo como uma "intensidade existencial".

Eis-nos aqui pois no ponto onde era preciso chegar: qual é o processo de definição da
existência no marco transcendental do aparecer ou do ser-aí? Indico imediatamente minha
conclusão: A existência é o nome que porta o valor da função de identidade quando se o
aplica a um só e mesmo elemento. É, por assim dizer, a medida da identidade de uma
coisa consigo mesma.

Dados um mundo e uma função de identidade que toma seus valores no transcendental
desse mundo, chamaremos "existência" de um múltiplo que aparece nesse mundo o grau
transcendental atribuído à identidade desse múltiplo consigo mesmo. Assim definida, a
existência não é uma categoria do ser (matemática), é uma categoria do aparecer (lógica).
Em particular, "existir" não tem sentido em si. Em conformidade com uma intuição de
Heidegger, retomada por Sartre e Merleau-Ponty, só pode se dizer "existir" relativamente
a um mundo. Com efeito, a existência é um grau transcendental que indica a intensidade
do aparecer de uma multiplicidade num mundo determinado, e essa intensidade não é em
nenhum caso prescrita pela pura composição do múltiplo considerado.

Podemos aplicar à existência as observações formais enunciadas anteriormente. Se, por


exemplo, o grau de identidade de um múltiplo consigo mesmo é o grau máximo, esse
múltiplo existe no mundo sem nenhuma limitação. Nesse mundo, a multiplicidade afirma
completamente sua própria identidade. Simetricamente, se esse grau é o grau mínimo,
esse múltiplo não existe nesse mundo. A coisa-múltipla está (é) no mundo, mas com uma
intensidade que é igual a zero. Sua existência é uma não-existência. A coisa está no
mundo, mas seu aparecer no mundo é a destruição de sua identidade. Por fim, o ser-aí
desse ser é um inexistente do mundo.

De ordinário, a existência de uma multiplicidade num mundo não é máxima nem mínima.
A multiplicidade existe "em uma certa medida".
29
O poderoso plátano do poema de Valery se dá como uma existência completa,
indubitável, uma afirmação existencial ilimitada. Dir-se-á dele que "se propõe" no
mundo, absolutamente idêntico a si mesmo, e tanto mais afirmativo quanto seu "candor é
capturado [...] pela força do sítio". No mundo fugaz dos faróis de automóvel, o plátano,
que não faz mais que passar, quase idêntico a qualquer outro e desaparecendo como uma
sombra tão logo aparece, possui um grau de identidade consigo - e por fim da existência
individual - débil, ainda que não nula. É um caso de existência intermediária. Enfim, para
o sonhador recostado entre duas árvores, a presença das outras árvore da fileira, ainda que
pressentida, formando o fundo indistinto das folhagens percebidas, não é menos dotada
de uma identidade a si mínima, na falta de individuação, de recorte notável da forma sobre
o fundo soalheiro. Um plátano dessa indistinta e murmurante fileira é um inexistente do
mundo.

A teoria do inexistente é muito importante: que haja o inexistente comanda com efeito,
como nós o veremos no próximo capítulo, que um evento possa sobrevir, que transforme
localmente a relação entre os múltiplos de um mundo e a legislação transcendental de
suas identidades e diferenças imanentes.

Esta teoria tem em seu centro um verdadeiro teorema metafísico. "Teorema", porque se
pode demonstrá-lo a partir da versão um pouco formalizada da lógica do aparecer.
"Metafísico", porque se trata de um enunciado que liga intimamente o aparecer de uma
multiplicidade e a não-aparição de um elemento dessa multiplicidade. "Metafísico"
também, nisso que esse teorema é sob a condição do princípio fundamental do
materialismo, que eu mencionava mais acima, e depende então de uma orientação no
pensamento que é uma escolha filosófica, e não o resultado de um argumento.

Esse teorema se enuncia muito simplesmente assim:

Se uma multiplicidade aparece num mundo, um elemento dessa multiplicidade e um só é


um inexistente do mundo.

Notemos bem que o inexistente não tem caracterização ontológica, não é de modo algum
esse nada de ser-múltiplo que é o vazio. "Inexistir" é uma caracterização existencial, e
então inteiramente interna ao aparecer. O inexistente é somente isso cuja identidade a si
é mesurada, num mundo determinado, pelo grau mínimo.
Demos um exemplo a grosso modo e arqui-conhecido. Na análise que Marx propõe das
sociedades burguesas ou capitalistas, o proletariado é o inexistente próprio das
multiplicidades políticas. Ele é "o que não existe". Isso não quer dizer de modo algum
que ele não tem ser. Marx não pensa um instante que o proletariado não tem ser, uma vez
que ele vai empilhar volume após volume para explicar o que ele é. O ser social e
econômico do proletariado não é duvidoso. O que é duvidoso, que sempre foi e o é hoje
mais que nunca, é sua existência política. O proletariado, é o que é inteiramente subtraído
à esfera da apresentação política. A multiplicidade que ele é pode ser analisada, mas, se
tomamos as regras da aparição do mundo político, ele não aparece lá. Ele está lá, mas
com o grau de aparição mínimo, a saber, o grau de aparição zero. É evidentemente o que
canta a Internacional : "Nós não somos nada, sejamos tudo!" O que quer dizer "nós não
somos nada"? Aqueles que proclamam "nós não somos nada" não estão afirmando o seu
nada. Eles afirmam simplesmente que eles não são nada no mundo tal qual é, quando se
trata de aparecer politicamente. Do ponto de vista do seu aparecer político, eles não são
nada. E o tornar-se "tudo" supõe a mudança de mundo, ou seja, a mudança de
transcendental. É preciso que o transcendental mude para que a assinalação de existência,
30
logo o inexistente, o ponto de não aparecer de uma multiplicidade num mundo, mude por
sua vez.

Do mesmo modo, até à invenção pelos algebristas italianos de um manejo regular dos
números 'imaginários", a raiz quadrada de um número real negativo é assinalada por um
grau de identidade a si nulo, pois interditado pela legislação transcendental do mundo
"cálculo sobre os números reais". Uma tal raiz quadrada é um inexistente conceitual desse
mundo. aí ainda, é preciso uma mutação no mundo do cálculo para que, a regulação
transcendental da existência vindo localmente a mudar, se possa escrever o símbolo "i"
como marca da existência da raiz quadrada de - 1.

A demonstração da existência e da unicidade do não existente para todo múltiplo vindo


ao aparecer, ou a ser aí, ultrapassa o quadro desse livro. Eu insisto sobre o fato de que tal
demonstração depende do axioma do materialismo, a saber que todo átomo é real. Talvez
se deva ver nessa dependência um enunciado dialético : se o mundo é regulado ao nível
do Um, ou nível atômico, por uma prescrição materialista do tipo; aparecer = ser, então a
negação é, sob a forma de um elemento tocado de inexistência. Ponto onde se atesta ao
mesmo tempo a distância entre ser e existência, e que essa distância, pela cláusula de
unicidade, concentra a potência de aparecer do múltiplo que ele afeta. O que esclarece a
ligação, centrada sobre o inexistente e do qual nós veremos a amplitude, entre um
múltiplo do mundo e a potência, imanente a esse múltiplo, das consequências de um
acontecimento que o toca (frappe?).

Desse ponto de vista, a doutrina das verdades que eu proponho pode a bom direito se
reclamar de uma dialética materialista.

4.1. IV bis
Existência da filosofia

Se toda a existência se extrai de uma avaliação transcendental da identidade


a si de um termo, que se pode dizer da existência da filosofia? E o que é que
diferencia essa existência há vinte anos (à época do meu primeiro Manifesto)
disso que se pode dizer dela hoje (segundo Manifesto)?

Sem dúvida, em 1989 ainda, o transcendental sobre o qual se levantava a


filosofia restava marcado por uma lógica geral da suspeita que normatizava
toda existência no mundo intelectual. Digamos que, a partir dos anos 50/60,
o grau de existência das disciplinas herdadas -particularmente daquelas que
propunha então a Universidade, logo a filosofia - era quase por definição
declarado nulo, pela razão de que elas eram suspeitas de não ser senão
inconsistentes validações da ordem estabelecida. Na descendência da
psicanálise, Lacan decifrara uma proximidade da sistematização filosófica
com a paranóia. Ele descrevera o discurso da filosofia como sempre
distribuído entre a arrogância precária da posição do Mestre e a fraqueza
repetitiva da Universidade. Ele tinha desconsiderado a expressão "o amor
da verdade" como destituída de qualquer sentido outro que não neurótico.
Ele tinha acusado a metafísica de só servir para "tapar o buraco da política".
As variantes modernas da política revolucionária marxista tinham, quanto a
31
elas, severamente subordinado a filosofia à política. O próprio Althusser
definira a filosofia, reduzida aos gestos quase intemporais do conflito entre
materialismo e idealismo, como sendo a "luta de classes em teoria". A
corrente analítica tinha atacado, como o fizera com brio Wittgenstein desde
o início do século XX, a filosofia como conjunto de proposições "destituídas
de sentido". Ele tinha empreendido estabelecer que o pensamento tinha
sobretudo necessidade de um controle sintático das frases, cujo modelo se
achava na lógica formal, e de uma vigilância semântica, que remetia seja às
evidências sensoriais, seja às exigências da ação: empirismo de um lado,
pragmatismo do outro. Enfim, numa interpretação atormentada de
Nietzsche, Heidegger tinha declarado o fim da metafísica, realização técnica
do esquecimento do ser, e a necessidade aleatória de um retorno para a
origem que, em diálogo com o dizer dos poetas, restauraria para além de toda
a filosofia a figura do pensador. Após a segunda guerra mundial, as
interpretações francesas de Heidegger tinha agravado esse veredicto
colocando o pensamento do lado da livre existência e da praxis
revolucionária (Sartre), mas também do lado dos grandes proferimentos
poéticos (Beaufret, Char, depois Lacoue-Labarthe) e de um trabalho de
desconstrução na língua assim como na distribuição sensorial da experiência
(Derrida e Nancy).

É impressionante ver que, contra a filosofia, todos esses dispositivos


acabavam por mobilizar a fonte completa dos tipos de verdade: amor, desejo
e pulsões na tradição psicanalítica, política na tradição marxista, ciência na
tradição analítica, arte na tradição nietzscheana.

Pode-se então descrever o transcendental em nome do qual se afirmava a


trinta ou quarenta anos o pouco de existência da filosofia: ele avaliava as
existências diretamente ao nível dos processo de criação, ou processos de
verdade, e concluía disso que a filosofia não era nem uma ciência, nem uma
política, nem uma arte, nem uma paixão existencial, que ela estava
condenada a desaparecer, se é que já não estava morta. No fundo, a
revolução, o amor louco, a lógica matemática e a poesia moderna,
multiplicidades dotadas no século XX de uma intensidade de existência
excepcional, praticamente máxima, se interpunham entre a tradição
filosófica e sua continuação. Razão pela qual a identidade a si mesma da
filosofia, tornando-se temporalmente quase nula, se podia significar sua
inexistência.

Meu primeiro Manifesto se elevava contra esse veredicto dispondo as


verdades como condições da filosofia, rejeitando, sob o nome de "sutura",
toda vontade de confundir a filosofia com uma de suas condições, e fazendo
da categoria de Verdade, de suas elaborações sucessivas e de seu destino
prático, o coração do trabalho filosófico. Retirada de sua inexistência pela

32
separação transcendental de suas condições, restituída a uma operação
própria, a filosofia podia continuar. À problemática de seu fim, eu propunha
substituir a palavra de ordem: "um passo a mais". Ou pela do inomeável de
Beckett: "é preciso continuar".

Pode-se então descrever assim a necessidade de algum modo existencial de


um segundo Manifesto: assim como se declarava mínima, há vinte anos, a
existência da filosofia, poder-se-ia sustentar hoje que ela está igualmente
ameaçada, mas por uma razão inversa - ela é dotada de uma existência
artificial excessiva. Singularmente na frança, a "filosofia" está por toda a
parte. Ela serve de razão social a diferentes paladinos midiáticos. Ela anima
cafés e oficinas de auto-ajuda (officines de remise en forme). Ela tem suas
revistas e seus gurus. Ela é universalmente convocada, desde os bancos às
grandes comissões de Estado, para dizer a ética, o direito e o dever.

A razão de ser dessa transformação é uma mudança de transcendental


concernente não tanto à filosofia quanto seu sucedâneo social, que é a moral.
Efetivamente, desde os "novos filósofos" e a queda dos Estados socialistas,
só se qualifica de filosofia o sermão moralizante mais elementar. Toda
situação é julgada pela medida do comportamento moral de seus atores, o
número dos mortos é o único critério de avaliação das tentativas políticas, a
luta contra os maus é o único "Bem" apresentável - enfim, chama-se
"filosofia" os argumentos disso que Bush nomeava a luta contra o "Império
do Mal", misto confuso de escombros socialistas e grupúsculos fascisto-
religiosos, em nome do qual nosso Ocidente trava sangrentas campanhas e
defende por toda a parte sua indefensável "democracia". Digamos que não é
possível existir como "filósofo" a não ser que se adote sem a menor crítica,
em nome do dogma "democrático", da cantilena dos direitos do homem e
dos diversos costumes de nossas sociedades concernentes às mulheres, as
punições ou a defesa da natureza, a tese tipicamente yankee da superioridade
moral do Ocidente. Poder-se-ia formalizar assim essa reversão: se, há vinte
anos, a filosofia, acuada em ruinosas suturas com suas condições de verdade,
se via asfixiada pela inexistência, hoje, a filosofia, acorrentada à moral
conservadora, se vê prostituída por uma sobreexistência vazia. Daí que não
se trate mais de reafirmar sua existência por operações que visam a desuturá-
la de suas condições, mas de dispor sua essência tal como ela se manifesta
no mundo do aparecer, a fim de distingui-la de suas contrafações morais.
Contrafações que, eu já o indiquei, são tanto mais virulentas quanto elas
duplicam o impulso do positivismo grosseiro (neuro-ciências, cognitivismo,
etc.) lhe fornecendo seu indispensável suplemento de alma.
Trata-se em suma hoje de des-moralisar a filosofia. O que remete a tomar o
risco de expô-la novamente aos juízos dos impostores e dos sofistas, juízo
que resume, como fez a experiência um certo Sócrates, a acusação mais
grave: "tu corrompes a juventude". Ainda recentemente, um crítico

33
americano fez aparecer numa prestigiosa revista novaiorquina um ataque que
podia se permitir ser de um nível conceitual inteiramente medíocre, visto que
seu objetivo era exclusivamente o de ortopedia moral. Em relação aos jovens
estudantes e professores mal informados, filósofos como Slavoj Zizek ou eu
somos reckless, o que se pode traduzir como "desprovidos de toda a
prudência". É um tema tradicional dos piores conservadores, da Antiguidade
até nossos dias: os jovens correm graves riscos se são postos em contato com
os "maus mestres", que vão desviá-los de tudo que é sério e honrável, a saber
a carreira, a moral, a família, a ordem, a democracia e o capitalismo. Para
não ser reckless, é preciso começar por uma subordinação rigorosa da
invenção conceitual às evidências "naturais" da filosofia tal como as pessoas
a entendem. A saber: uma mole moral, ou o que Lacan, em sua língua
abrupta, chamava "o serviço dos bens".

Em relação à superabundância de existência que ameaça hoje fazer evaporar


a filosofia numa figura conservadora e rabugenta ao mesmo tempo, se
assumirá uma avaliação transcendental de sua existência que a reconduz para
perto de sua essência. Por definição, a filosofia, quando ela aparece
verdadeiramente, é reckless ou não é nada. Potência de desestabilização das
opiniões dominantes, ela convoca a juventude para alguns pontos onde se
decide a criação contínua de uma verdade nova. É bem porque seu Manifesto
trata hoje do movimento, tipicamente platônico, que conduz das formas do
aparecer à eternidade das verdades. Esse processo perigoso, ela se engaja
nele sem restrição.

No mundo onde nós estamos, a filosofia só pode aparecer como o inexistente


próprio de toda moral e de todo o direito, na medida em que moral e direito
permanecem - e só podem permanecer - sob o golpe da inacreditável
violência desigualitária infligida ao mundo pelas sociedades dominantes, sua
economia selvagem e os estados que, mais que nunca, não são, segundo a
fórmula de Marx, senão os "fundados pelo poder do Capital". Ou mais
precisamente; a filosofia aparece em nosso mundo quando ela escapa do
estatuto de inexistente de toda moral e de todo direito. Quando, invertendo
esse veredicto que a entrega à vacuidade de "filosofias" tão onipresentes
quanto servas, ela adquire a existência máxima do que ilumina a ação das
verdades universais. Iluminação que a porta bem além da figura do homem
e de seus "direitos", bem além de todo moralismo.

Só nessas condições, com efeito, é possível que uma fração da juventude


reconheça um surgimento filosófico verdadeiro, sem que o que a atava à pura
e simples persistência do que é seja duravelmente corrompido. Sócrates é
julgado eternamente.

34
5. Mutação

Sabemos agora que uma verdade, se ela existe plenamente num mundo, se
deixará determinar aí como grau máximo de identidade a si mesma, ou em
todo caso se organizará em torno de um múltiplo que tem essa propriedade
existencial. Mas essa condição é de estrutura: todo corpo existindo
plenamente num mundo a ela satisfaz. Nós ainda não chegamos a identificar
o que, de uma verdade, faz suficiente exceção às leis do aparecer para poder
valer universalmente, ou de um mundo para outro.
A ideia que se impõe é que tudo o que faz exceção às leis do mundo resulta
de uma modificação local dessas próprias leis. Ou, de modo mais forte,
ainda que aproximativo: toda exceção às leis é o resultado de uma lei de
exceção. Dito de outro modo, nós devemos supor que uma verdade não é um
corpo que é subtraído às prescrições transcendentais do aparecer, mas a
consequência de uma modificação local dessas prescrições.

Para bem compreender isso de que se trata, definamos o que é uma mudança
regular, ou interna às leis do aparecer. Se, por exemplo, um plátano tem uma
doença viral, de tal modo que ele perde suas folhas e se resseca, pode ocorrer
que o sistema de suas relações com o mundo - por exemplo, a espessura da
sombra que ele prodiga, superior àquela que dispensam as pequenas árvores
vizinhas - se veja modificado. Lá onde, atestando a extensão muito superior
de sua folhagem, o grau de identidade de sua sombras às sombras vizinhas
era frágil, eis que ele aumenta, e mesmo tende para o grau máximo, como se
a grande árvore se visse nivelada ao nível de um aborto. Essa modificação
não somente não incide sobre a disposição transcendental, mas a supõe. É
em relação à estabilidade das relações entre graus, e da pertinência da ligação
entre os múltiplos que aparecem no mundo e esses graus, que se pode falar
da decrepitude da árvore quanto ao seu passado próximo. A mudança resta
imanente às leis. É uma simples modificação, interna à disposição lógica do
mundo, um pouco como, em Spinoza, o "modo" é uma inflexão imanente e
necessária dos efeitos da única potência existente, a da Substância.

Aliás, não se suporá tampouco uma mudança sofrida pelo próprio


transcendental. Pois o transcendental para falar propriamente não existe. Ele
é a medida de toda existência, sem ter, ele, de se apresentar como tal. Um
pouco como em Spinoza, a Substância só existe enquanto produção interna
de seus efeitos, e em particular da multiplicidade infinita de seus atributos,
de modo que se pode tanto dizer que só a substância existe, ou que só existem
os atributos e os modos. A segunda hipótese remete ao fato de que a
Substância não existe. Ocorre o mesmo com o transcendental como lugar das
relações identitárias ou diferenciantes pelas quais alguns múltiplos "fazem"
mundo. Ora, o que não existe não pode mudar.

35
É preciso então finalmente, para abrir o pensamento de uma exceção no que
aparece (ou no que acontece, é a mesma coisa, pois ser propriamente não
acontece, ele se contenta em ser), localizá-la na relação entre uma
multiplicidade e o transcendental. Uma multiplicidade, por que o que
acontece é sempre local: a ideia de uma exceção global é desprovida de
sentido, pois a que faria exceção uma vez que tudo mudou? Sua relação com
o transcendental, posto que é isso que declina as possibilidades do aparecer
como tal. Mas a relação entre um múltiplo fixado e o transcendental é
precisamente o aparecer desse múltiplo, avaliando as relações imanentes de
identidade e de diferença entre todos os seus elementos. Não se vê que essa
relação como tal possa mudar em seu princípio sem que o mundo seja
mudado.

É preciso então necessariamente admitir que a mudança verdadeira, a


mutação, não é nem uma mudança global do transcendental, nem uma
mudança do modo segundo o qual um múltiplo vê seus elementos
diferencialmente avaliados por graus transcendentais. A única possibilidade
é que um múltiplo entre de modo suplementar em alguma medida no regime
do aparecer.

Mas como um múltiplo já aí no mundo, e então já avaliado quanto aos seus


recursos imanentes no registro do aparecer, pode ele suplementar a operação
das regras transcendentais? Ou então, deve-se imaginar que um múltiplo se
acrescenta de fora do mundo, como um aerólito do aparecer? Por que este
antes que um outro? Isso parece inteiramente miraculoso. Nós devemos bem
antes racionalmente supor:

1. que o múltiplo que localiza a mutação decerto já está no mundo, que ele
aí aparece;
2. que o transcendental do mundo concernido não é modificado em suas
regras internas;
3. que a suplementação pelo múltiplo concernido entretém alguma relação
com sua ligação com o transcendental, na falta do que ela seria flutuante, ou
desenraizada em relação ao aparecer desse múltiplo tal como se supõe na
condição 1 acima.

A única saída que nos é deixada é de admitir que há uma mutação local no
aparecer quando um múltiplo cai sob a medida das identidades que autoriza
a comparação dos seus elementos. Ou quando o suporte de ser do aparecer
vem localmente a aparecer.

Normalmente, a inscrição de um múltiplo num mundo se faz (ver esquema


1 página 37) pela assinalação de um grau de identidade a todo par de
elementos desse múltiplo. Entretanto, uma lei ontológica fundamental

36
(iniciada no Ser e o evento, meditação 18) proíbe a todo múltiplo ser
elemento de si mesmo. Por conseguinte, a avaliação transcendental das
identidades e das diferenças para um múltiplo dado se faz em imanência a
esse múltiplo, sem tomá-lo ele próprio em consideração. A medida do grau
de identidade entre os elementos do plátano (tal ou qual folha, ou um ramo
e uma raiz, etc.) opera de elemento em elemento, mas não compromete o
plátano propriamente dito. Não há, de modo interno à inscrição do plátano
no mundo, fixação de um grau de identidade entre, digamos, o plátano e um
fragmento de sua casca. Bem entendido, um tal grau de identidade pode fazer
parte do aparecer de um múltiplo no mundo, mas esse múltiplo não será o
plátano, nem tampouco a casca: ele deverá conter um e outro como
elementos.

Se então ocorre que um múltiplo cai sob o protocolo que avalia de modo
imanente as redes das relações que constituem seu aparecer, há uma
transgressão evidente do complexo ontológico e lógico que faz vir ao
aparecer um ser-múltiplo. Essa transgressão, todavia, não supõe nem um
múltiplo suplementar, nem uma modificação do transcendental, nem uma
indiferença arbitrária da ligação entre o múltiplo e sua nova "entrada" no
aparecer, uma vez que é sob sua própria lei de aparição que ele vem a se
contar. Nós obedecemos então às três condições deduzidas mais acima.
Nós chamaremos "sítio" um múltiplo que vem a aparecer de modo novo,
enquanto ele cai sob a medida geral dos graus de identidade que prescrevem,
elemento por elemento, seu próprio aparecer. Digamos que um sítio (se) faz
aparecer a si mesmo.

Tal é o princípio formal de uma mutação no aparecer. Uma analítica cerrada


mostra que há três tipos de mutação. Inicialmente, segundo o grau de
existência que é aquele do múltiplo quando ele cai sob sua própria conexão
transcendental. Se esse grau não é máximo, diz-se que a mutação é um fato.
O fato, que implica uma anomalia local na distribuição das relações do
aparecer, é mais que a mudança regular, ou modificação "a la Spinoza", da
qual nós falamos mais acima. Mas ele resta amplamente interno ao aparecer
em sua forma geral. Em seguida, a demarcação entre os sítios cujo valor
existencial é máximo se opera a partir das consequências, e então da
potência, da mutação local. Nós vimos no capítulo 4 que todo múltiplo detém
um e um só elemento inexistente. Se esse elemento inexistente permanece
invariável ou, sob o efeito da mutação, não adquire senão uma existência
inferior ao máximo, nós qualificaremos a situação de singularidade fraca.
Se o inexistente adquire um valor existencial máximo, nós diremos que a
mutação é um evento.

Dito de outro modo, um evento é um sítio (um múltiplo cai sob ele próprio
e sob a lei que faz aparecer seus elementos) que está em excesso sobre o fato

37
(pois o valor de existência do sítio é máximo) como sobre a singularidade
fraca (pois o inexistente vem a existir, ele também, com valor máximo).

Notar-se-á cuidadosamente as características do evento: reflexividade (o


sítio pertence a si mesmo, ao menos fugidiamente, de modo que seu ser-
múltiplo vem "em pessoa" à superfície de seu aparecer); intensidade (ele
existe maximamente); potência (seu efeito se estende a um completo relevo
do inexistente, do valor mínimo ou nulo ao valor máximo: "Nós não somos
nada, sejamos tudo", como se canta na Internacional).

Decerto, nós não podemos, para dar um exemplo de acontecimento, nos


atermos aos plátanos empíricos. Eu propus e detalhei, em Lógicas dos
mundos, numerosos exemplos. Citemos, em política, a insurreição dos
escravos sob a direção de Spartacus, ou a primeira jornada da Comuna de
Paris; nas artes, pinturas de cavalos pelos artistas da gruta Chauvet, ou a
arquitetura de Brasília; no amor, Julie e Saint-Preux no romance de
Rousseau, A Nova Heloísa, Dido e Enéias na ópera Os troianos de Berlioz;
em ciência, a invenção por Galois da teoria dos grupos, ou a apresentação
por Euclides da teoria dos números primos. Vê-se aqui em filigrana
despontar a tese decisiva de todo esse pequeno livro: uma verdade não pode
se originar senão de um evento.

Se uma verdade é universal, será preciso então sustentar que seu processo
liga a universalidade à pura contingência, aquela do acontecimento. Uma
verdade aparece no mundo como conexão supranumerária do acaso e da
eternidade.

É por isso que se pode retornar ao plátano em seu viés poético. Não é nessa
conexão que pensa Valery quando o plátano responde furiosamente a quem
quer reduzi-lo a sua aparência particular? Quando ele opõe a essa
particularidade sua própria inclusão no universal? Leiamos sua resposta.
entendamos, na "tempestade", a ação evental, e na "cabeça soberba", a
incorporação do plátano às consequências universais da tempestade, à vinda
ao mundo de uma verdade. Essa "cabeça soberba" é o corpo glorioso da
árvore transfigurada, que é também, de golpe, o igual genérico de tudo o que
cresce, a fraternidade, segundo a dobra do Verdadeiro, da árvore e da erva:
— Non, dit l’arbre. Il dit : Non ! par l’étincellement
De sa tête superbe,
Que la tempête traite universellement
Comme elle fait une herbe !

— Não, diz a árvore. Ela diz: Não! pelo brilho


De sua cabeça soberba,
Que a tempestade trate universalmente
Como ela faz uma erva!

38
39
6. Incorporação

Assumindo a ocorrência de um evento. Este enquanto tal evanesce:


a patologia transcendental que vem a superfície do meio de aparecer
(um múltiplo, sujeito a avaliação identitária de seus elementos) não
pode ser estabelecida ou última. Permanecem apenas as
conseqüências, e entre eles, o que define o valor do evento local: ao
longo de seu elemento inexistente, que vai do grau zero ou mínimo ao
grau máximo.

Toda verdade procede da chegada do brilho desta aparência, cuja


existência fora completamente encoberta: na política, dos antigos
escravos ou dos proletários contemporâneos; na arte, aquilo que não
possuía valor formal e que de repente se encontra transfigurado por
uma imprevisível mudança das fronteiras daquilo reconhecido
enquanto forma, até mesmo a deformação (morte-da-forma ou fim da
forma), daquilo que sem forma; no amor, toda efração da solidez do
Um por um improvável Dois a muito negado, que experimenta mundo
por si mesmo e se dedica ao infinito desta experiência; na ciência, a
submissão à letra matemática ao longo de toda extensão de uma vida
ou de material vitais que aparentavam ser seu oposto. Com os nomes
próprios ligados ao seu surgimento: Spartacus ou Lênin, Ésquilo ou
Nicolas de Staël, Heloise e Abelardo, assim como Edith Piaf e Marcel
Cerdan, Arquimedes ou Galileo.

Chamaremos de enunciado primordial a inexistência de um estado


prévio de mundo identificado, elevado à potencia máxima da aparição
pela mutação evental. Isto não se dá por se tratar de um discurso, mas
sim pelo valor deste termino é uma sorte comando. Ele nos diz , do alto
da autoridade que dá seu relevo: “Veja o que acontece, não apenas o
que é. Trabalhe com as conseqüências do novo. Aceite a disciplina
apropriada para o futuro dessas conseqüências. Faça de todo múltiplo
que você é, corpo em um corpo, a matéria indelével da Verdade”. Estes
imperativos materiais nos dizem coisas como: “Trabalhadores do
mundo, uni-vos!” (Marx); “O mundo é escrito na linguagem da
matemática” (Galileu); “O lançar de um dado nunca irá abolir a
chance” (Mallarmé); ou “Amor é um pensamento” (Pessoa).

Iniciado pelo enunciado primordial, se forma no mundo um novo


corpo que será o corpo da verdade, ou corpo subjetivável e que nós
vamos habitualmente, quando o contexto permitir, chamar
simplesmente de corpo. Como este corpo é formado? Se forma das
afinidades entre os outros corpos do mundo e o enunciado primordial.
Os múltiplos que se comprometem no processo de implantação das
40
conseqüências do evento se agrupam em torno deste enunciado, que
concentra a origem e autoriza o novo destes conseqüências. Pensemos
nas formações “esquerdistas”, até o final dos anos setenta, o grupo
inumerável e heterogêneo daqueles fieis ao Maio de 68. Pensemos nos
apaixonados concebidos no mundo pelos efeitos transportados
daquele “Eu te amo” que fixa o enunciado primordial no desvanecer
de um encontro. Imagine o asceticismo artístico e mundano de
grandes alunos e discípulos de Schöenberg, Berg e Webern, depois da
virada dodecafônica da primeira década do século vinte. Notemos o
deslumbramento dos matemáticos franceses dos anos 30, ao
descobrirem a inovação radical da álgebra radical, introduzida pela
escola alemã, primeiramente Emmy Noether. Mil outros exemplos
mostram que é, para um individuo que se junta a autoridade de um
enunciado primordial, ao se declarar de corpo e alma, partindo deste
enunciado enquanto voluntário definitivo implantando no corpo
(“encore!”) de seus efeitos161.

Por este processo consiste na adjunção, a um corpo em vias de


constituição, de tudo que testará uma afinidade essencial com o que
esse corpo implantará por meio da conseqüências da declaração e,
portanto, o evento que atingiu como um raio, um ponto preciso, as leis
do aparecimento. É por isto que o nome convencionado para este
processo é: incorporação.

Se pode formalizar a incorporação a partir dos detalhes do uso mais


intricado da lógica do aparecimento. Esta tarefa é conduzida em Lógica
dos Mundos, particularmente no Livro VII, onde contém a teoria do
corpo da verdade, mas que pressupõe todos os refinamentos da
“Grande Lógica”, notavelmente explicitada no Livro III. Aqui nós
apenas iremos descrever o que está em questão.

O que significa uma “afinidade” entre um corpo qualquer e o


enunciado primordial que é o traço de um evento no mundo? Os
rudimentos da teoria do aparecimento descrita no capítulo 3 e 4 deste
livro são tudo o que precisamos para compreender isto. O enunciado
Assim, o enunciado, relevo de um inexistente, é agora um múltiplo
que aparece no mundo com o valor máximo. Assim, o enunciado
primordial de um amor, o “Eu te amo” das chamadas “declarações de
amor”, existem no mundo subjetivo dos amantes, ou dos futuros
amantes, com uma intensidade que nada mais pode ultrapassar.
Considere então qualquer múltiplo do mundo concernido, por
exemplo, o gosto de um dos amantes em caminhar ao longo da praia.
Se dirá que este elemento se incorporará ao corpo da verdade amorosa
no seu processo constitutivo, se sua relação de identidade ao

161
Do original em francês: ‘le déploement en corps (‘encore!’) de ses effets’
41
enunciado primordial for mensurado pelo mais alto nível possível.
Praticamente, isto claramente, quer dizer que o amante em questão
deseja que o outro lhe acompanhe nestas caminhadas, incluí-lo em
sua paixão pelas praias desertas, para re-avaliar seu amor pelos
múrmuros do oceano sob o ponto de vista do amor e nada mais, e por
assim em diante, etc. Formalmente, isto quer dizer que o nível de
identidade entre um dado “gosto pelos passeios às margens do mar” e
o enunciado primordial do amor não pode ser inferior ao nível de
existência deste gosto. O significado portanto é claro: doravante, um
afeto pessoal apenas pode entrar na composição do corpo do amor se
sua identidade à declaração amorosa primordial não for inferior que
sua própria intensidade ou se ela não puder ser “composta” com o
amor sem perder sua força. Isto então, enriquece o corpo do amor, o
que quer dizer que entra no processo de uma verdade: o litoral, como
um fragmento do aparecimento, é re-avaliado pelo ponto de vista do
Dois e não é mais enclausurado no gozo narcísico do mundo172.

A análise formal consolida esta visão empírica. Provamos que, se de


fato, um mundo múltiplo aparece com uma intensidade máxima de
existência (como é o caso, por definição, em todo enunciado
primordial), a relação de identidade de qualquer múltiplo , seja qual
for, aparecendo no mesmo mundo tem com este primeiro múltiplo,
não pode ter um nível maior ao da existência do segundo múltiplo: o
nível de identidade de um múltiplo qualquer com um enunciado
primordial é no máximo igual ao nível de existência do múltiplo em
questão. Se for igual, então é tão alto quanto se pode ser: tem com o
enunciado primordial uma relação de identidade máxima. É isto o que
se o que sua profunda “afinidade” com o enunciado designa.

Diremos então que um múltiplo de mundos é incorporado ao


processo de uma verdade, ou torna-se um componente do corpo desta
verdade, se seu nível de identidade ao enunciado primordial for
máximo. Assim é o caso da jovem esquerdista elevado a cima de si
mesmo pela sua adesão aos limites dos efeitos do evento ‘Maio de 68’,
cujo enunciado primordial pode-se dizer como “Vamos reinventar a
política”. Ou pelo gosto do amante por suas caminhadas pelas bordas
do mar, se seus passeios tornam-se, sob a injunção do “Eu te amo”,
momentos estáticos do amor em si.

Incorporar-se a si mesmo em uma verdade é reportar ao corpo que


suporta tudo que, em você é de intensidade comparável ao que se
autoriza identificar-se ao enunciado primordial, este estigma de um
evento donde o corpo vem.

172
Sobre amor, pode-se ler dois textos:
42
A simplificação que aqui é necessária, nos leva finalmente ao
seguinte: o processo de uma verdade, é a construção de um corpo novo
que aparece no mundo ao passo em que se agrupa em torno do
enunciado primordial todos os múltiplos que mantém com este
enunciado uma autentica afinidade. E como o enunciado primordial é
a energia do traço de um evento, se pode dizer: um corpo de verdade é
o resultado da incorporação das conseqüências de um evento de tudo
o que, no mundo, em sua máxima potencia.

Uma verdade é um evento ausente cujo mundo faz surgir pouco a


pouco nos materiais díspares do aparecimento, o imprevisível corpo.

43
7. Subjetivação

44
8. Ideação

Chamo de “Ideia” isso a partir de que um indivíduo se representa o


mundo, e compreendido aí ele mesmo, de modo que, por incorporação
ao processo de verdade, ele está ligado ao tipo subjetivo fiel. A Ideia é
isso que faz com que a vida de um indivíduo, de um animal humano,
se oriente segundo o Verdadeiro. Ou ainda: a Ideia é a mediação entre
o indivíduo e o Sujeito de uma verdade – “Sujeito” designando aqui
isto que orienta no mundo um corpo pós-evental.

Este sentido da palavra “Ideia” carrega minha própria interpretação da


ideia platônica, e singularmente dessa “ideia de Bem” a qual é
consagrada uma passagem tão famosa quanto enigmática d'A
República. Se se substitui a palavra “Bem” que, a partir dos
neoplatônicos da Antiguidade, muitos teólogos moralizantes têm
usado, pela palavra “Verdadeiro”, pode-se obter da frase de Platão a
seguinte tradução:

É só na medida em que o cognoscível o é em verdade que se


pode dizer dele que é conhecido em seu ser. Mas é à Ideia do
Verdadeiro, ou Verdade, a qual deve, não apenas o ser
conhecido em seu ser, mas também seu ser-conhecido
mesmo, ou seja, aquilo que, de seu ser, só pode dizer-se “ser”
na medida em que está exposto ao pensamento. Não
obstante, a Verdade mesma não é da ordem do que se expõe
ao pensamento, já que é o relevo dessa ordem, e se lhe
confere assim uma função distinta, tanto segundo a
anterioridade quanto segundo a potência 181.

O problema de Platão, que permanece o nosso, é de saber como nossas


experiências de um mundo particular (isto que nos é dado a conhecer,
o “cognoscível”) pode nos abrir um acesso a verdades eternas,

181

45
universais e, nesse sentido, transmundanas. Para isso é preciso, diz ele,
que essa experiência seja disposta “em verdade”, imanência que é
preciso entender no sentido estrito: é na medida em que se dispõe no
elemento da verdade que um objeto particular do mundo de nossa
experiência pode ser dito conhecido não somente em sua
particularidade, mas em seu ser mesmo. E, acrescenta ele, se esse
objeto é então apreendido em seu ser, é [por]que se mantém “na”
verdade esta parte do objeto que não é senão quando é exposta ao
pensamento. Estamos, pois, no ponto onde são indiscerníveis o ser do
objeto e isso que, deste ser, é pensado. Esse ponto de indiscernível
entre particularidade do objeto e universalidade do pensamento do
objeto é exatamente o que Platão denomina a Ideia. Por fim, no que
concerne à Ideia ela-mesma, como ela não existe senão em seu poder
de fazer advir “em verdade” o objeto e, assim, de sustentar que há o
universal, ela não é ela-mesma apresentável, já que ela é a
apresentação-ao-verdadeiro. Em uma palavra: não há Ideia da Ideia.
Podemos de resto denominar “Verdade” essa ausência. A Ideia é
verdadeira [por] expor a coisa em verdade; então ela é sempre ideia do
Verdadeiro, mas o Verdadeiro não é uma ideia.

O dispositivo (configuração?) que proponho, à guisa de salvação da


filosofia, é no fundo uma transposição materialista (a menos que
Platão ele-mesmo seja já materialista, que ele tenha criado um
materialismo da Ideia) desta visão platônica. Primeiramente nós,
suportes individuais de um pensamento possível, animais humanos
capazes de eternidade, nós existimos na aparição de mundos, os quais
não expõem por eles-mesmos nada de verdadeiro. Os mundos são
apenas a matéria da lógica transcendental deste, e nós somos os
exemplos entre outros do jogo de diferenças e identidades entre
múltiplos que regulam estas lógicas. Em segundo lugar, acontece de

46
(evento, ou para Platão: “conversão”) podermos entrar na disposição
de uma verdade. Certamente esse processo não é para nós nem uma
ascensão, nem ligado à morte de um corpo e à imortalidade de uma
alma. Ele é, como Platão também o sabe, uma dialética: a da
incorporação da nossa vida individual ao novo corpo que se constitui
em torno do enunciado primordial, traço do evento. Fazendo isso,
passamos da figura do indivíduo à do Sujeito, exatamente como no
mestre grego passamos da sofística (acomodação astuta e sem verdade
às leis diferenciais do mundo) à filosofia. Exceto que, no lugar da
filosofia, temos a arte, a ciência, a política ou o amor, dos quais a
filosofia é apenas uma apreensão segunda, à luz de um conceito de
Verdade.

Entrar na composição de um Sujeito orienta nossa vida individual,


enquanto em Platão a conversão dialética torna possível uma vida
justa. É este “entrar na verdade” que assinala [de-signa: signe] a Ideia.
Se substituímos as metáforas ascendentes (se “sobe” em direção à
Ideia a partir do sensível) por metáforas horizontais (o processo de
desenvolvimento do corpo de verdade orienta no mundo, segundo uma
lei heterônima, as vidas individuais que se incorporam aí, produzindo
assim uma verdade universal cujo material é todavia inteiramente
particular), compreende-se que a Ideia não é outra coisa que isso pelo
que o indivíduo localiza [repara (dá se conta): repère] nele-mesmo a
ação do pensamento como imanência ao Verdadeiro. Essa localização
[“Esse reparar”: Ce repérage] indica de pronto [de imediato] que deste
pensamento o indivíduo não é o autor, somente o lugar de passagem,
mas que, todavia, ele [o pensamento; tradução possível para ficar
claro: “aquele”] não teria existido sem todas as incorporações que lhe
constituem a materialidade. Assim como Platão pode dizer que
somente a abertura dialética às Ideias realiza a vida, direi: é na medida

47
em que o indivíduo vivente entra em verdade, portanto na composição
de um corpo subjetivável, que ele experimenta o universal. Pois ele
sabe a cada vez que isso em que ele participa vale por todos, que sua
participação não lhe dá portanto nenhum direito particular, e que,
todavia, sua vida é elevada e completa por ter assim participado de
algo [algum: quelque] além de sua simples subsistência. Esse saber é
o da Ideia.

Dizemos que uma vida veraz é o resultado de uma Ideação.

Deleuze sustenta com força – contra, para dizer a verdade, todas as


interpretações espontaneístas e “anarco-desejantes” de sua filosofia –
que a gente não pensa jamais por decisão voluntária, nem por
movimento natural. A gente é, diz ele, forçado a pensar. O pensamento
é como um impulso que se exerce à nossa volta [em volta de nós]. Ele
não é amável ou desejável, o pensamento. Ele é uma violência que nos
é feita. Estou perfeitamente de acordo com essa visão. Ela me parece
bastante platônica. Quem não vê a violência, charmosa e sutil sem
dúvida, mas implacável, que Sócrates exerce sobre seus interlocutores?
Nisso que proponho, o constrangimento é duplo. Há de início a
contingência brutal do evento que nos expõe a uma escolha que nós
não teríamos desejado: a incorporação, a indiferença ou a hostilidade?
O sujeito fiel, o sujeito reativou ou o sujeito obscuro? Há depois a
construção, ponto por ponto, do corpo, que submete o indivíduo a
disciplinas anteriormente desconhecidas, quer se trate de novas
formas de demonstração em matemática, da fidelidade amorosa, da
coesão do Partido, ou do abandono das velhas e deliciosas formas
artísticas pela aridez sacrificial das vanguardas. É também isso, a
Ideação: a representação da potência universal disso cuja

48
particularidade imediata é perigosa, instável, angustiante à força de
não estar garantida por nada.

Gostaria de tornar o mais concreta possível essa teoria da Ideia como


exposição do indivíduo simples a seu devir-Sujeito. Tomemos, por
exemplo, o caso de Cantor, o inventor, no final do séc. XIX, da teoria
matemática dos conjuntos. O evento do qual se origina seu trabalho é
a historia da Análise e de suas dificuldades com a noção de infinito.
No começo deste século, o trabalho de Cauchy consistiu em
desembaraçar o cálculo diferencial e integral de toda menção aos
“infinitamente pequenos” [“infinitesimais”], os quais, durante todo
século XVIII, lhe haviam constituído a metafísica subjacente e já
haviam sido severamente criticados pelos filósofos, em particular
Berkeley. Dizia-se que uma quantidade a era “infinitamente próxima”
de uma quantidade b se a diferença a – b fosse uma quantidade
“infinitamente pequena”. Mas o que significa uma quantidade
infinitamente pequena? Não se sabia. Cauchy substitui tudo isso pela
noção dinâmica de limite de uma sucessão, que dá à Análise
fundamentos axiomáticos fiáveis e rechaça para fora do pensamento
matemático toda ideia de infinito atual. Todavia, com Bolzano e
Dedekind, compreende-se que a ontologia de tudo isso é fraca demais,
e sobretudo que ela é amplamente física, ou empirista. Quando você
diz que uma sucessão “tende a” um limite, o esquema subjacente é o
do movimento. As matemáticas estão de fato sob o jugo de intuições
ligadas à representação do espaço. Para retornar aos esquemas
puramente matemáticos, é preciso se confrontar de novo com o
conceito de infinito atual, assumir que existem quantidades infinitas.
Mas como fazer, se nossa ideia de infinita permanece muito vaga,
como era o caso nos “infinitamente pequenos”?

49
Cantor resolve esse problema criando o conceito genérico de conjunto
e fazendo-o corresponder aos conjuntos infinitos, por procedimentos
estritamente racionais, “números” novos, os ordinais e os cardinais.
Trata-se [aí] certamente de uma das mais admiráveis criações
universais de toda a história humana. É claro que o corpo de verdade
é aqui isso que realiza, no mundo do cálculo, uma nova apropriação
do predicado “infinito” para os números, dos quais este predicado era
racionalmente separado (com efeito, todo número, tomado a rigor,
media por definição uma quantidade finita)192. Como Cantor realiza
sua incorporação ao processo desta verdade nova? Por uma Ideação
extraordinariamente atormentada. Com efeito, ele sabia muito bem
que o pensamento que o atravessa, e do qual ele é um dos primeiros
organizadores, perturba igualmente as relações da racionalidade
matemática com a filosofia e a religião. Para ele, o Infinito era ligado
ao Um na forma conceitual do Deus das religiões e das metafísicas. O
domínio do pensamento humano era o finito, éramos essencialmente
criaturas condenadas à finitude. É, de resto, por isso que Cauchy
separava estritamente a noção de limite de todo compromisso com um
infinito atual. Com Cantor, o infinito entra no domínio do múltiplo.
Não apenas ele assume a existência atual das multiplicidades infinitas,
mas demonstra que existe uma infinidade de infinitos diferentes.
Como tratar a partir de agora a relação entre o pensamento do animal
humano (o indivíduo Cantor, tal que incorporado à implantação da
teoria racional dos números infinitos) e a suposição de uma
Transcendência (o indivíduo Cantor, cristão fiel) se não pode ser
suficiente a oposição do finito e do infinito, ou do múltiplo e do Um?
A Ideação cantoriana é inteiramente [como tal? no todo?: tout entière]
o tratamento deste ponto e, portanto, a exposição ao pensamento da
novidade radical, transgressiva, universal, de sua própria invenção. A

192

50
partir daí, Cantor vai tentar fazer passar a diferença entre o infinito
matemático e o infinito teológico no conceito mesmo de infinito, sem
estar ele-mesmo muito convencido. Vai escrever à Cúria romana para
pedir conselho. Vai enlouquecer também... Compreende-se bem aí
como a Ideação, de um golpe, organiza sua determinação heróica, sua
disciplina demonstrativa até as fronteiras do inteligível: depois de ter
dado uma prova rigorosa de que o conjunto dos números racionais –
as frações – é enumerável [contável], portanto que esses números,
contrariamente a toda nossa intuição imediata, não são “mais
numerosos” que os números inteiros naturais, ele exclama: “Eu vejo,
mas não acredito!” Todavia, compreende-se também como, por outro
lado, a Ideação organiza e remaneja a relação do indivíduo Cantor com
o mundo ordinário, exprime sua qualidade de animal deste mundo,
atormentado e quase desfeito pela violência ontológica de sua
incorporação pensante, mas que não cede.

O esquema 2 apresenta a totalidade do percurso das verdades; é,


portanto, como uma espécie de concentrado de toda Lógica dos
mundos. Não é o caso, aqui, de comentá-lo em seus detalhes.
Marcaremos somente que a linha que vai de “multiplicidades
indiferentes” às rupturas eventais organiza os suportes objetivos,
realmente dados em um mundo, da construção de uma verdade. Já a
linha que do evento a “verdades eternas” dispõe as categorias
subjetivas induzidas pela incorporação dos indivíduos ao devir dessa
verdade. Há uma correspondência vertical entre as dias linhas. Por
exemplo, como havíamos explicado, o traço subjetivo de um evento
não é outra coisa que o relevo de um inexistente. Ou a condição de
uma existência, relevo do transcendental. Ou os órgãos de um corpo
de verdade servem para tratar os pontos do mundo sob a forma de uma
escolha radical, etc.

51
Se admite-se que a Ideação é isso que assume, no indivíduo em vista
da incorporação ao processo de uma verdade, a ligação dos
componentes deste percurso, compreende-se então que ela é isso
através de que uma vida humana se universaliza, ao preço,
evidentemente, de difíceis problemas com sua particularidade.

A Ideia é a severidade do sentido da existência.

52
Conclusão

Se comparo este segundo Manifesto ao primeiro, como já procurei


fazer sobre a questão da filosofia no capítulo 4 bis, cinco pontos me
inquietam, me chamam atenção cinco pontos, que são outros tantos
traços que se tornam [marcam] sintomas da mudança do mundo em
vinte anos:

1. Como já disse, a posição filosófica que combatia há vinte anos era


principalmente a posição heideggeriana nas suas variantes francesas
(Derrida, Lacoue-Labarthe, Nancy, mas também Lyotard), a saber, o
anúncio do fim irremediável da filosofia sob sua forma metafísica, e a
consideração das artes, poema, pintura, teatro, como recurso supremo
para o pensamento. Meu “gesto platônico” era o de reafirmar a
possibilidade da filosofia em seu sentido originário, ou seja, a
articulação, certamente transformada, mas também reconhecível, de
uma tríade categorial maior, a do ser, do sujeito e da /110/ verdade. Eu
sustentava que a filosofia de subtrair ao pathos do fim, que ela não
estava em um momento particularmente novo e dramático de sua
história e que ela devia, como sempre, tentar dar um passo a mais nas
proposições que a constituem, principalmente a construção de um
novo conceito da verdade, ou das verdades. Opunha-me, em suma, ao
ideal crítico da desconstrução.

Hoje em dia os adversários principais não são mais os mesmos. Depois


de um dos meus últimos encontros com Derrida – havíamos nos
reconciliado –, ele tinha dito: “Em todo caso, hoje em dia temos os
mesmos inimigos.” Isso era totalmente exato. O alvo deste segundo
Manifesto não é mais o ultrapassamento da Metafísica na forma da

53
desconstrução. É muito mais a reconstituição – como a cada vez que a
reação intelectual, carregada pela reação tout court, se sente com asas
[ganha asas, põe as manguinhas de fora] – de algo como um pobre
dogmatismo via filosofia analítica, o cognitivismo e a ideologia da
democracia e dos direitos humanos. A saber, uma especie de
cientificismo (é preciso naturalizar o espírito, estudá-lo segundo os
protocolos experimentais da neurologia), acompanhado, como
sempre, de um moralismo simplório com verniz religioso (em
substância: é preciso ser gentil e democrático mais que perverso e
totalitário). Daí que se ponho sempre o acento sobre a tríade do ser,
do sujeito e da verdade, é sua aparição efetiva que está em questão, sua
ação observável no /111/ mundo, já que é disso que o cientificismo (que
não conhece senão a naturalidade dos objetos, jamais a imortalidade
dos sujeitos) e o moralismo (que não conhece senão o sujeito da lei e
da ordem, jamais aquele da escolha radical e da violência criativa)
querem negar a existência. Digamos que, a um Manifesto pela
existência continuada da filosofia (contra o pathos de seu
acabamento), segue-se um Manifesto dedicado à sua pertinência
revolucionária (contra o dogmatismo servil que faz dela um dos
componentes das propagandas do Ocidente).

2. No primeiro Manifesto, eu declarava pela primeira vez que a


existência da filosofia depende de quatro tipos de condições genéricas,
ou procedimentos de verdade: a política da emancipação e suas
variantes, as ciências formais e experimentais (as matemáticas e a
física), as artes (artes plásticas, música, poesia e literatura, dança,
cinema), e o amor. Formulava a modernidade de algumas dessas
condições: o leninismo e o maoismo, a revolução cantoriana, a era dos
poetas entre sua abertura por Hölderlin e seu fechamento por Paul
Celan., a psicanálise de Freud a Lacan... Sustentava que aí estão os

54
procedimentos de verdade efetivos a partir dos quais a filosofia tenta
construir um conceito disso que é uma verdade.

Mantenho hoje em dia esse sistema de condições. Todavia, sua


ilustração se tornou muito mais obscura. No que se refere às ciências,
elas são cada vez mais /112/ reduzidas à dimensão mercantil das
tecnologias. Isso que recobre a palavra “arte” se encontra diluído entre
a ideia débil de “comunicação”, o desejo “multimidiático” de compor
todos os meios sensíveis em novas construções imaginárias e o
relativismo cultural, que dissolve toda norma. Em verdade, a palavra
“cultura” parece dever pouco a pouco interditar todo uso claro da
palavra “arte”. Sob o nome de democracia, e depois do
desmoronamento do comunismo de Estado, a política é reduzida em
geral a uma espécie de mistura entre economia e gestão, salpicada com
muita polícia e controle. Quanto ao amor, ele está, já o disse,
encurralado entre uma concepção contratual da família e uma
concepção libertina da sexualidade. Digamos, para sermos breves, que
a técnica, a cultura, a gestão e o sexo vêm ocupar o lugar genérico da
ciência, da arte, da política e do amor.

Resulta daí que seria preciso também, além de recordar as condições


e a figura moderna delas, defender sua autonomia ativa. O que conduz,
de fato, a dispô-las na história contemporânea de seus processos. Não
fiz aqui esse trabalho mais descritivo que teórico.

As pistas, entretanto, são bastante claras.

Seria preciso mostrar que um novo quadro teórico transtorna a


apresentação matemática, e singularmente a matematização da lógica.
Esse quadro é a teoria das categorias. No campo da física, as hipóteses

55
que generalizam a relatividade /113/ considerando que todo fenômeno
inclui, na sua singularidade fenomenal, a escala de sua existência, são
as mais promissoras, tanto mais quanto têm, com a geometria fractal,
um referente matemático moderno e sólido.

No que concerne à arte, seria preciso mostrar como, na pegada do


cinema (a maior invenção artística do século passado), surgem
possibilidades novas, sem que, por enquanto, a exploração delas tenha
pesado decisivamente na direção de um remanejamento fundamental
da classificação e da hierarquia das atividades artísticas. O advento de
imagens sem referente, ou virtuais, sem dúvida nenhuma abre uma
nova etapa das questões da representação. A partir de agora, em todo
caso, as formas concentradas da pintura, compreendida aí a
monumental, indicam isso que é preciso entender pela afirmaçãoi em
arte, depois de décadas de negação crítica. A arte pode e deve tomar
posição sobre a História, fazer o balanço do século passado, propor as
novas formas sensíveis de um pensamento não somente rebelde, mas
que unifique em torno de afirmações que se podem chamar de
“princípios sensíveis”.

Em política, a extensão (prevista por Marx) do mercado mundial


modifica o transcendental (o mundo, a cena ativa) da ação
emancipatória, e talvez apenas hoje que estão reunidas as condições
de uma Internacional comunistaii que não /114/ seja estática ou
burocrática. Em todo caso, já há experiências políticas continuas,
carregando [consigo] o balanço da história política do século passado
e enraizadas no obrar real e popular, mostrando duas coisas: primeiro,
[que] é possível desdobrar uma política que se mantém à distância do
Estado, que não tenha nem o poder como o que está em jogo [a meta,
enjeu], nem o parlamentarismo como âmbito [cadre]; em seguida,

56
[que] essa política propõe formas de organização bastante distantes
do modelo do partido que dominou todo o século XXiii.

Finalmente, seria preciso se interrogar sobre a significação dos


ataques encarniçados lançados contra a psicanálise há dez ou vinte
anos, que acompanham uma espécie de normalização insípida de
todas as práticas sexuais, reportando esses fatos à transformação dos
processos amorosos.

Trata-se de um trabalho proposto a todos...

3. No primeiro Manifesto, nomeava minha tentativa um “gesto


platônico”, caracterizava minha filosofia com a expressão paradoxal
“platonismo do múltiplo”. A referência a Platão mantém-se
fundamental no segundo Manifesto, mas sua orientação é diferente.
Há vinte anos, desejava convocar Platão contra o antiplatonismo de
todo o século XX. Para fazer isso, mobilizava dois temas: primeiro, a
referência à significação ontológica das matemáticas, contra o recurso
retórico e linguageiro da sofística, antiga ou moderna, à /115/ poesia;
em seguida, a convicção de que existem verdades que podemos dizer
“absolutas” e, nesse sentido, a manutenção das ambições da metafísica
clássica, contra o motivo do seu fim ou de sua superação. Hoje em dia,
aparecem dois temas suplementares, que reforçam a filiação
platônica. O primeiro é a suspeita filosófica que deve golpear a
propaganda, hoje em dia tão hegemônica quanto guerreira, da
“democracia”. Platão propõe a primeira crítica sistemática da
democracia e somos compelidos a retomar esse trabalho. Bem
entendido, é de um ponto de vista inteiramente diverso que devemos
fazê-lo, mas é surpreendente que, ao menos no que concerne a
aristocracia dirigente, a solução proposta por Platão seja de tipo

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comunista. Pois a questão fundamental do mundo contemporâneo
poderia muito bem ser: capital-parlamentarismo (“democracia”,
portanto) que conduz à guerra ou renovação da hipótese comunista?
O segundo tema novo é o da Ideia. Como vimos no capítulo
precedente, com efeito tento sustentar que a via verdadeira é uma via
sob o signo da Ideia e que, em muitos aspectos, podemos interpretar
no meu sentido a construção dialética de Platão. Enfim, esse segundo
Manifesto é sustentado por um segundo gesto platônico. Não mais o
platonismo do múltiplo (sempre mantido, entretanto), mas um
comunismo da Ideia.

/116/ 4. Em O ser e o evento assim como no primeiro Manifesto, que


concentra o argumento daquele, o conceito fundamental era o de
“genérico”. É este, de resto, o título de seu último capítulo. Essa palavra
indicava a principal característica ontológica das verdades: se, como
tudo que é, seu ser enquanto ser é pura multiplicidade, as verdades são
os múltiplos genéricos. Entre as multiplicidades que compõem um
mundo (eu dizia, na época, uma “situação”), elas são caracterizadas
pela ausência de características. Elas testemunham para o mundo todo
– e é por isso que elas são a verdade dele – porque, não sendo definíveis
a partir de nenhum predicado particular, seu ser pode se pensar como
idêntico ao simples fato de pertencer a este mundo. É nesse sentido
que Marx sustenta que o proletariado, despojado de tudo salvo sua
força de trabalho, representava a humanidade genérica e devinha, por
esse fato, a verdade da situação histórico-política moderna. Eu
mostrava que a universalidade das verdades, que, todavia, são criadas
nos mundos particulares, se liga precisamente a sua ausência de
particularidades. O ponto central era demonstrar que multiplicidades
genéricas podiam existir – para isso serve um famoso teorema do
matemático Paul Cohen – e, em seguida, de dar como norma a toda

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ação que se quer produtora de verdades (ou de universalidade, o que é
a mesma coisa) a capacidade de criar, em situações díspares,
subconjuntos genéricos dessas situações.

/117/ No segundo Manifesto, o conceito central é o de corpo


subjetivável. Trata-se sempre de verdades, mas o que importa não é
mais seu ser pensado no formalismo matemático das multiplicidades
genéricas. O que importa é o processo material de sua aparição, de sua
existência e de seu desenvolvimento em um mundo determinado e,
igualmente, o tipo subjetivo ligado a esse processo. Se a essência de
uma multiplicidade genérica é uma universalidade negativa (a
ausência de toda identidade predicativa), a essência do corpo de
verdade reside em capacidades, em particular a capacidade de tratar
no real toda uma série de pontos. O que é um ponto? É um momento
crucial do desenvolvimento do corpo, um momento onde escolher
uma orientação e não uma outra decide sua sorte. É, caso se queira, a
contração do processo todo em uma alternativa simples: isso ou
aquilo. Para tratar vitoriosamente um tal ponto, é preciso que o corpo
disponha disso que eu chamo de “órgãos” apropriados. Por exemplo:
para resistir ao choque da contrarrevolução armada, um partido
revolucionário (na sequência leninista da política) deve ser organizado
segundo uma disciplina de tipo militar. Essa disciplina é o órgão
apropriado do corpo político no momento em que é preciso decidir
(como vemos no texto de Lênin A crise está madura) escolher
positivamente entre a insurreição e o esperar-para-ver [o imobilismo,
attentisme]. Ou, quando Jackson Pollock decide, contra toda a tradição
imitativa ou expressiva, tornar a pintura diretamente /118/ transitiva
ao gesto de pintar e não mais a algum referente objetivo ou
sentimental que seja, ele deve dispor de superfícies e de instrumentos
de projeção de cores adequadas, e também de uma espécie de

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disposição corporal, orientada em direção à prontidão nervosa, à
saturação do instante. Esses são os órgãos da verdadeira pictórica de
tipo action painting.

Enfim, vemos que o complexo do corpo, da orientação subjetiva, dos


pontos e dos órgãos, constrói nesse segundo Manifesto uma visão
afirmativa da universalidade. É que, se o genérico designo isso que
uma verdade é, de modo que a distinguimos assim de todo outro tipo
de ser, o corpo e sua orientação designam isso que faz uma verdade e,
portanto, a maneira segundo a qual ela desmembra [?] as espécies de
objetos do mundo, ao mesmo tempo em que se separa delas. O
primeiro Manifesto é sustentado, quanto às verdades, por uma
doutrina separativa do ser; o segundo, por uma doutrina integrativa do
fazer. A uma ontologia da universalidade-verdadeira sucede-se uma
pragmática de seu devir.

5. No momento do primeiro Manifesto e nos anos que se seguiram,


até, sem dúvida, a metade dos anos noventa, a batalha se encarniçou
em torno da universalidade das verdades. Meus três livros mais lidos
desta sequência foram, além do já mencionado Manifesto, meu ensaio
sobre são Paulo (São Paulo ou a fundação do universalismo) e o
pequeno manual intitulado Ética. Todos esses tiveram como centro de
gravidade a oposição entre /119/ o culto da particularidade,
compreendida aí a apologia “democrática” do indivíduo, e a dimensão
genérica e universal das verdades. É nesse sentido, de resto, que eu
falava de uma “ética das verdades”, que eu opunha radicalmente à
logomaquia dos direitos do homem como [também] ao relativismo
cultural.

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Há alguns anos, como se vê em particular em diversas passagens de
Lógica dos mundos, insisto mais sobre a eternidade das verdades. É
que a universalidade é uma questão de forma (a forma da
multiplicidade genérica), enquanto a eternidade se refere ao resultado
efetivo do processo. O que me interessa é que uma verdade é, ao
mesmo tempo, produzida com materiais particulares, em um mundo
definido, e que, todavia, uma vez que ela é compreendida e utilizável
em um mundo inteiramente diferente, e a distâncias temporais que
podem ser imensas – compreendemos a potência artística de pinturas
rupestres realizadas há 40.000 anos –, é preciso que elas sejam
transtemporais. Chamo de “eternidade” das verdades esta
disponibilidade inesgotável que faz com que elas possam ser
ressuscitadas, reativadas em mundos que são heterogêneos a este em
que elas foram criadas, atravessando assim oceanos desconhecidos e
milênios obscuros. A teoria deve absolutamente tornar possível essa
migração. Ela deve explicar como existências ideais, amiúde
materializadas em objetos, podem ao mesmo tempo ser criadas em um
ponto preciso do espaço-tempo e ter essa forma de eternidade.
Descartes falava da /120/ “criação de verdades eternas”. Eu retomo
esse programa, mas sem a ajuda de Deus...

Em definitivo, esse segundo Manifesto resulta do fato de que o


momento atual, confuso e detestável, nos impõe dizer que há verdades
eternas na política, na arte, na ciência e em amor. E que se nos
armamos dessa convicção, se compreendemos que participar, ponto
por ponto, no processo de criação de corpos subjetiváveis é o que torna
a vida mais potente que a sobrevida, possuiremos isso que Rimbaud,
no fim de Uma estadia no inferno, desejava mais que tudo: “A verdade,
em uma alma e um corpo.” Então seremos mais fortes que o Tempo.

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i Sobre o retorno da afirmação em arte e sobre a doutrina
estética que se liga a ela, pode-se ler o texto “Terceiro esboço de
um manifesto do afirmacionismo” (em Circonstances 2, Lignes,
2004).

ii As palavras “comunismo” e “comunista” devem ser


tomadas no sentido genérico que elas têm na obra do jovem
Marx. Por razões históricas, esse sentido foi largamente recoberto, no
século XX, pela ressonância que a palavra assume nas expressões
“partido comunista” ou “movimento comunista internacional”.
Como estamos na época da política sem partido – o que, entre
parênteses, mostra que a criação de um “partido
anticapitalista” é natimorto, o que quer dizer: imediatamente
absorvido pelo capital-parlamentarismo –, “comunismo” não
deve mais ser pensado como o adjetivo acoplado a “partido”,
mas, muito pelo contrário, como uma hipótese reguladora que
envolve os campos variáveis e as organizações novas da política da
emancipação. Sobre tudo isso, reenvio aos capítulos 8 e 9 de
Circonstances 4 (De quoi Sarkozy est-il nom?) e a
Circonstances 5 (L'Hipothèse communiste), dois livros
publicados nas edições Lignes em 2007 e 2009.

iii Sobre a experiência política mais importante nessa


direção na França, reportar-nos-emos às publicações da Organisation
politique [Organização política] e do Rassemblement des
Collectifs des Ouvriers San Papier des Foyers [Reunião dos
Coletivos dos Operários Sem Papel dos Albergues]. Recomendo
a esse respeito a coleção dos números de Le Journal politique.
Escrever ao seguinte endereço: Le Perroquet, BP 84, 75462 Paris,
Cedex 10, e também: journal.politique@laposte.net .

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Esquema 2:

MULTIPLICIDADES INDIFERENTES

Ser-aí, Aparecer
Consistência lógica Região do ser
Transcendental
Inexistente
Pontos
Desvanecimento
HÁ EVENTOS
Consequências
Órgãos
Traço
Condição de existência
Novo corpo Região do Sujeito
Presente criador

VERDADES ETERNAS

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