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FILOSOFIA

GERAL E
JURÍDICA

Cássio Vinícius Steiner de Sousa


Filosofia do Direito
na Antiguidade
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Apontar a importância do estudo da filosofia grega para a compre-


ensão do Direito.
„„ Explanar como as teorias de Sócrates, Platão e Aristóteles são impor-
tantes para o estudo do Direito.
„„ Explicar o objeto e método da filosofia.

Introdução
Somos herdeiros daquilo que pode ser chamado de “a aposta grega” —
a ideia de que existe o bem, o belo, o justo e a verdade, e de que somos
capazes de conhecê-los. Essa aposta, que ecoa ainda nos dias de hoje,
foi concebida pelo esforço conjunto de grandes filósofos como Sócra-
tes, Platão e Aristóteles. Ela foi a mola propulsora que nos mobilizou em
direção a novos horizontes, preenchendo a lacuna deixada pelos mitos
e determinando as bases para o desenvolvimento cultural, científico e
tecnológico da humanidade.
Neste capítulo, você aprenderá sobre o marco fundamental da filosofia
do Direito na Antiguidade grega, algumas das ideias centrais de Sócrates,
Platão e Aristóteles, e um pouco sobre o objeto e método em filosofia.

A superação dos mitos e o problema


da justificação das normas jurídicas
Existem pelo menos duas razões que justificam a importância do estudo da
filosofia grega para a compreensão do Direito. Em primeiro lugar, é no contexto
da filosofia antiga que surgem as primeiras respostas para perguntas como “o
que é o Direito?”, “no que o Direito se fundamenta?” e “qual é a finalidade
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do Direito?”. Em segundo lugar, os responsáveis pela própria formulação de


tais questionamentos são justamente os filósofos gregos. Assim, na medida
em que foram eles que estabeleceram as bases do debate, não seria exagero
afirmar que toda a história da filosofia do Direito não passa de uma reação
aos questionamentos levantados e às respostas oferecidas por filósofos como
Sócrates, Platão e Aristóteles. Para que você possa avaliar melhor tanto as
respostas quanto os questionamentos levantados pelos antigos acerca do
Direito, propomos uma pequena reflexão acerca do contexto histórico do seu
surgimento — a crise da visão mitológica da realidade.
Embora seja impossível saber de modo incontestável e definitivo se o
surgimento da filosofia é consequência do abandono dos mitos ou a sua pró-
pria causa, é inegável que há uma relação íntima entre ambos. São muitos os
fatores que marcam o declínio de uma concepção mitológica da realidade e o
surgimento da filosofia na Grécia Antiga. Entre eles, um dos mais importantes
é o surgimento da política nas pólis gregas (termo utilizado para denominar
cidades-Estado como Atenas). Tais pólis eram organizadas com base em uma
série de leis ou normas, fruto do debate entre os cidadãos que a compunham.
Assim, o discurso mitológico, embasado na revelação de conjunto, dado de
dogmas estáveis e inquestionáveis, passou a dar lugar para o discurso dos
cidadãos no interior da pólis. Este que, por sua vez, caracterizava-se por
crescente abandono dos dogmas, certa instabilidade social e confronto de
opiniões divergentes acerca do conteúdo das leis.
Dito isso, convidamos você a se imaginar um cidadão ateniense do século
VI a.C. Suponha que não possa justificar mais as suas crenças, opiniões e
propostas de lei com base nos antigos mitos. Além disso, suponha que você
precise convencer aqueles que acreditam piamente nos deuses do Olimpo e
nas velhas histórias contadas por Homero de que os deuses nunca existiram
e tais histórias não passam lendas. Como você procederia?
Talvez, em um primeiro momento, você pudesse pensar que a solução
do problema repousa na arte da retórica — tal qual fizeram os sofistas.
Procuraria, assim, uma série de frases de efeito com palavras bonitas.
Tentaria distorcer ou desvalorizar as ideias dos adversários. Agora, di-
gamos que você tenha sido bem-sucedido, que tenha vencido o debate. O
problema é que, em um segundo momento, mesmo depois de convencer
todos os seus concidadãos, você ainda precisaria ser capaz de convencer a
si mesmo. Pois se é verdade que a retórica é um ótimo instrumento quando
queremos persuadir os outros de nossas opiniões, ela não é de grande valia
quando precisamos justificá-las para nós mesmos. É por isso que Sócrates
não prega a máxima “persuade-te a ti mesmo”, mas sim a ideia da busca
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pelo autoconhecimento, e que, na mesma linha, Aristóteles não afirma que


todo ser humano deseja, por natureza, convencer, mas que, ao contrário,
desejamos o conhecimento.
Com o crescente abandono do paradigma mitológico como fundamento
e justificação da realidade, surge justamente o problema de como entender o
mundo a despeito de explicações fantasiosas, fantásticas e ficcionais. É na busca
por novos horizontes de explicação que aparece a necessidade de se recorrer
à razão, à lógica e à experimentação — marco inicial da reflexão filosófica.
Nesse contexto, perguntas como “qual é a origem do universo (kosmos)?”,
“quais são os princípios que regem e governam a natureza (physis)?” e “qual
é a função (ergon) do homem?” começam a demandar novas explicações ou
pontos de ancoragem.
Nesse mesmo momento, no que concerne especificamente à filosofia do
Direito, há a passagem de uma estrutura social estabilizada pela crença em
uma ordem dada por um panteão de deuses olimpianos para a ideia de que são
os próprios homens que, responsáveis pela manutenção da ordem social, criam
as suas leis e se autogovernam — o que gera, por sua vez, um problema para
a justificação da validade das normas. Se as leis não são dadas (de cima para
baixo) por uma ordem superior de deuses imortais, mas são positivadas ou
construídas por humanos (imperfeitos, falíveis, meros mortais), como garantir
a aceitação geral e qualidade delas? Haveria algum critério suficientemente
poderoso para fundamentar a validade de leis criadas por mortais para mortais?
Como distinguir uma norma justa de uma injusta?
Ainda na época das narrativas de Homero (Ilíada e Odisseia), o Direito
era representado por Themis. Segundo os mitos gregos, essa divindade seria
responsável por legar ao homem (com base na autoridade e na força) as normas
e garantir a ordem social no mundo grego. Posteriormente, a vinculação do
Direito com Themis deu lugar à ideia de que as normas estavam mais ligadas
ao comprimento dos desígnios da justiça — representada pela deusa Dike.
Assim, mesmo que o Direito ainda não fosse considerado a despeito dos mitos,
é importante que você tenha em mente a passagem que vai de Themis até Dike,
pois ela marca a mudança do paradigma do Direito fundado na autoridade
para um de Direito mais ligado à concretização da justiça.
Embora os maiores avanços na área de filosofia do Direito tenham ocorrido
na fase socrática, é digno de nota a contribuição dos filósofos pré-socráticos
na superação da visão mitológica de realidade. Nesse período, a preocupação
central repousava sobretudo em questões de ordem cosmológica. Isto é, o
interesse dos pré-socráticos consistia em compreender o cosmos e a natureza
— a sua existência, origem, causas e os seus princípios fundamentais.
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A própria ideia de que os mitos surgem como um modo de explicar a realidade só


surge com o advento da filosofia, pois é no contexto da reflexão filosófica que o próprio
caráter mitológico dos mitos se revela (como uma explicação de mundo ingênua e
sem bases na realidade). Afinal de contas, se hoje consideramos os mitos como algo
fantástico e ficcional, isso se deve ao fato de os primeiros filósofos pré-socráticos
atribuírem tais características aos mitos.

Já na fase socrática houve uma passagem das reflexões cosmológicas para


a questão sobre o homem no cosmos. Nesse momento, o homem passou a
ser definido em função da necessidade de viver em sociedade, criando as
próprias normas de convivência. Isto é, a pólis e as normas que os homens
criavam para a reger não eram tratadas como algo artificial ou antinatural,
mas como algo que faz parte da própria natureza do homem. É com isso
em mente que temos, por exemplo, a caracterização aristotélica do homem
como um animal político (zoon politikon), pois é por natureza que o homem
se organiza socialmente (em torno das pólis), constituindo as suas próprias
normas de convívio. Além disso, essas regras deveriam espelhar ou estar em
harmonia com as regras que regem o cosmos. Agora, se isso garante a acei-
tação e a validade das normas, resta entender qual é o critério utilizado para
avaliar se uma norma espelha ou não o cosmos. Qual foi o critério utilizado
pelos filósofos antigos para distinguir a justiça ou injustiça das normas?
Nesse período, a noção de justiça (Dike) ligada à mitologia é substituída
por uma noção fundada em preceitos éticos. É da essência do homem agir,
segundo critérios racionais, tendo em vista certos fins.

A ética é a disciplina que trata da capacidade de avaliar e discernir, na ação humana, o


correto e o incorreto, o justo e o injusto. Por sua vez, a justiça é considerada uma virtude
que deve ser cultivada pelo hábito. Assim, do mesmo modo que o corajoso é aquele
que se acostuma a praticar atos de coragem, o justo é aquele que educou o seu caráter
para agir com justiça e criar leis justas. Em função disso, torna-se possível fundamentar
na ética das virtudes o critério de avaliação da qualidade das leis, garantindo assim
um horizonte para a sua elaboração pelos cidadãos/políticos.
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A título de conclusão parcial, é possível compreender que os gregos, a


propósito das questões sobre fundamento de validade e do critério de cor-
reção das normas jurídicas, entendiam que, de um lado, as normas jurídicas
deveriam estar em harmonia com os princípios gerais que regem o universo
e a natureza, e, de outro, que uma norma jurídica é boa ou justa se, e somente
se, vai ao encontro de preceitos éticos ligados à virtude.

Os três grandes filósofos da Antiguidade


As ideias filosóficas de Sócrates, Platão e Aristóteles são a base e o ponto de
partida da reflexão sobre Direito. Até os dias de hoje suas ideias inspiram e
instruem juristas e filósofos do Direito a pensar com seriedade e rigor sobre
os diversos questionamentos que eles nos legaram. Quanto a isso, convido-o
a conhecer algumas de suas muitas ideias.

Figura 1. Os três grandes filósofos da Antiguidade: Sócrates, Platão e


Aristóteles.
Fonte: Imagens de domínio público.

Sócrates
Sócrates, que acreditava que a filosofia era uma atividade que deveria ser
realizada nas ruas da pólis e em conversa com os seus concidadãos, não
nos legou qualquer texto de sua autoria. A despeito disso, as suas ideias
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são encontradas fundamentalmente nos diálogos escritos por seu maior


discípulo, Platão, e em textos de historiadores da época (como Xenofonte).
Embora nem sempre seja claro distinguir a figura histórica de Sócrates
do personagem que comparece nos diálogos escritos por Platão, é comum
atribuir a Sócrates, tido como patrono do pensamento filosófico ocidental, o
marco inicial de toda uma filosofia fundada em preceitos éticos e na busca
pelo autoconhecimento.
Sócrates é sempre lembrado pela icônica frase “Só sei que nada sei”. Ele
pensava que, quanto mais alguém compreende que nada sabe, aceitando a sua
própria ignorância sobre as coisas, mais sábio será. Contrariamente, quanto
mais a pessoa acha que sabe algo sem de fato o saber, maior o seu grau de
tolice. Não por acaso, Sócrates também é associado à famosa inscrição no
tempo de Delfos “Conhece-te a ti mesmo”. Conta-se que alguém, ao perguntar
para o oráculo de Delfos, quem é o homem mais sábio dos homens, teve
como resposta: “Sócrates”. Ao ficar sabendo disso, Sócrates não acreditou.
Como poderia ele, cuja única certeza era saber que nada sabe, ser o mais
sábio dentre os homens?
Inconformado e decidido a desabonar a afirmação do oráculo, Sócrates
foi atrás daqueles que eram reputados pela sociedade como os mais sábios
nas suas respectivas áreas de saber. Qual não foi a sua surpresa quando, ao
conversar com esses supostos sábios, percebeu que, em verdade, eles não
detinham aquele conhecimento que eles julgavam deter? Eles não demoravam
a se perder obscuridades ou contradições e, incapazes de sustentar as suas
certezas, uns se irritavam, outros abandonavam o debate. Assim, Sócrates foi
obrigado a reconhecer a procedência das palavras do oráculo. Era, afinal de
contas, o mais sábio dos homens por ser o único a reconhecer a sua própria
ignorância. Se todos eram tolos por achar que sabiam o que não sabiam, ele
era o mais sábio por ser o único a saber que nada sabia.
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O método socrático foi chamado por ele mesmo de maiêutica. No grego antigo,
tal palavra significa “a arte de dar à luz” e faz referência à atividade da parteira.
Inspirado na atividade da sua mãe, Fenareta, cuja profissão consistia em fazer o parto
de crianças, Sócrates entendia que a atividade do filósofo era parir o conhecimento
nos homens. Em linhas gerais, é possível explicar a maiêutica como uma técnica
fundada em três etapas:
1. perguntar para o interlocutor questões como “o que é o conhecimento?”, “o que
é a justiça?”;
2. após a definição do interlocutor, apresentar uma série de problemas e questio-
namentos que fazem o interlocutor duvidar da própria resposta ou entrar em
contradição;
3. estimular o interlocutor para que encontre novos caminhos de resposta, de modo
que, em função da repetição continuada de tal processo, o interlocutor seja capaz
de chegar a respostas mais elaboradas e complexas do que aquelas que possuía
no início do diálogo.

O pensamento de Sócrates se caracteriza, em parte, como uma reação às


doutrinas cosmológicas dos filósofos que o antecederam (os pré-socráticos),
aos sofistas (que chamava de embusteiros ou vigaristas) e à visão homérica,
cuja explicação da realidade está fundada na mitologia. Quanto a isso, é im-
portante que você saiba que, na fase socrática da filosofia, há uma passagem
das preocupações de ordem cosmológica (tipicamente pré-socráticas) para
questionamentos sobre a essência do ser humano — tal virada é geralmente
chamada de antropocentrismo socrático. Além disso, Sócrates é considerado
o grande inimigo da retórica relativista dos sofistas. Os sofistas, homens que
ensinavam aos cidadãos técnicas de retórica e argumentação em troca de
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dinheiro, defendiam uma espécie de relativismo moral. Isto é, conforme os


sofistas, não existem valores intrinsecamente bons, corretos ou justos — os
valores são puramente relativos, variáveis de acordo com cada homem e
convencionados pela sociedade.
Na época, o regime político de Atenas era a democracia. Além disso, o
exercício da cidadania era representado diretamente pelos cidadãos (diferente-
mente do Brasil, que adota um sistema de representação semirrepresentativo).
Nesse caso, se os cidadãos que compunham a democracia eram ensinados pelos
sofistas, cujo lema era que não existe algo certo ou errado em si mesmo, não
estariam as próprias leis que regiam a pólis sendo contaminadas por essa ideia?
Não estariam as leis sendo editadas apenas com base no interesse daqueles
que detinham mais poder de convencimento?
Percebendo isso e tentando combater esse tipo de situação, Sócrates
defendeu, pelas ruas de Atenas, que valores éticos não são relativos ou
convencionais, mas existem objetivamente e podem ser conhecidos por
meio da razão. No entanto, os apetites, as aparências e os preconceitos
acabam por cegar o pensamento dos homens, fazendo com que ajam de
modo irracional e inconsequente. Para ele, o homem ético ou virtuoso é
aquele que compreende o que significa e quais são as consequências dos
seus atos, de modo que há uma correlação entre agir eticamente e agir
racionalmente. Com isso em mente, propôs que os homens cultivassem
as virtudes e promovessem uma busca pelo autoconhecimento — como
caminho para a felicidade. Afinal de contas, ele pensava que, se as leis
fossem feitas por pessoas moralmente retas, então a pólis, no lugar do
caos moralmente questionável de interesses antagônicos, seria um local
que propiciaria o bem comum.
Não por acaso, Sócrates foi julgado e condenado à pena de morte (beber uma
dose letal de cicuta) sob a dupla alegação de corromper a alma dos jovens com
ideias subversivas e pregar a inexistência dos deuses. Mesmo com os diversos
pedidos dos seus amigos para que fugisse ou pedisse a pena alternativa de
banimento, preferiu cumprir a pena. Segundo ele, fugir significaria abandonar
todos os preceitos que ele defendeu e pelos quais viveu, como o dever cívico
dos homens perante as leis da pólis (mesmo que injusta). Além disso, preferia
morrer como um cidadão do que viver como um bárbaro.
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Figura 2. A morte de Sócrates, por Jacques Louis David, 1787.


Fonte: Everett — Art/Shutterstock.com.

Platão
Platão foi maior discípulo de Sócrates. Notabilizado pelos seus diálogos, Pla-
tão foi o grande responsável por manter as ideias de Sócrates vivas até hoje.
Credita-se a ele a fundação da primeira instituição de ensino, a Academia,
cujo modelo serviu de inspiração para a criação das universidades. Os diálogos
platônicos são muito ricos e variados, tratando de diversos temas, como o
conhecimento, a ética, a política, a lógica, a linguagem, etc.
Embora não seja fácil separar aquilo que é propriamente platônico
daquilo que é puramente socrático, a tradição distingue os diálogos em
três fases:

„„ a fase socrática, em que Platão descreve as desventuras de Sócrates


em debate com pessoas ilustres ou jovens de Atenas;
„„ a fase propriamente platônica, em que o filósofo avança no legado
socrático e contribui com ideias originais;
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„„ a fase de maturidade, em que, já inf luenciado pelas ideias de


Aristóteles, o seu aluno mais ilustre, começa a tecer críticas às
suas ideias anteriores e busca novos modos de lidar com diversas
questões pendentes.

Entre as várias contribuições de Platão para o estudo do Direito, destacam-


-se a sua famosa teoria das ideias (apresentada em vários diálogos) e a sua
concepção ideal de sociedade (apresentada no diálogo República).
Platão apresenta a sua concepção da verdade na teoria das ideias para dar
conta do problema do conhecimento (e da possibilidade de se fazer ciência
sobre as coisas). A solução platônica de tal problema repousa na distinção
entre “mundo sensível” e “mundo das ideias”. No mundo das ideias, teríamos
os modelos eternos, imutáveis e perfeitos das coisas perecíveis, mutáveis e
imperfeitas que percebemos no mundo sensível. Nesse contexto, para cada
objeto natural do mundo, há uma ideia correlata e perfeita no mundo das
ideias. Assim, as ideias das coisas sensíveis não estão nelas mesmas, mas
em um plano superior e fora delas, cujo único acesso se dá pelo intelecto.
Com efeito, o conhecimento genuíno das coisas viria apenas quando fôsse-
mos capazes de ir além das aparências para encontrar a verdade no mundo
superior das ideias.
No que diz respeito à teoria política, Platão era um crítico do regime
democrático de governo. Ele acreditava que a democracia gerava diversas
desigualdades e injustiças inaceitáveis, pois as leis não eram construídas
com vistas ao bem comum ou à felicidade dos cidadãos, mas em função
do interesse dos detentores do poder. Tendo isso em mente, e com vistas a
superar os problemas intrínsecos da democracia, ele concebeu uma sociedade
ideal, em que existiam apenas três categorias de cidadãos: os comerciantes,
os guardiões e os governantes-filósofos. Os primeiros (artesãos, agricultores,
etc.) seriam responsáveis por realizar os serviços necessários para a manu-
tenção da cidade; os segundos (guerreiros e militares) seriam responsáveis
pela proteção da cidade; os terceiros (educadores, magistrados, etc.) seriam
responsáveis por organizar e governar a sociedade. Nessa cidade ideal, não
existiria a instituição da família nem do casamento, tampouco qualquer
discriminação entre os sexos e cidadãos. Todos seriam filhos de todos,
criados sem privilégios ou discriminação. Além disso, a função de cada um
na sociedade seria selecionada por meio da educação igual para todos e das
inclinações naturais dos cidadãos.
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Figura 3. A escola de Atenas (Rafael, 1509–1511, afresco, Vaticano). Perceba Sócrates apon-
tando para cima, em clara referência à teoria das ideias, e Aristóteles apontando para baixo,
referindo-se ao conceito de que as ideias das coisas são extraídas das próprias coisas.
Fonte: Serato/Shutterstock.com.

Aristóteles
Se é verdade que Sócrates foi o homem mais sábio do seu tempo, é difícil competir
com Aristóteles (o grande discípulo de Platão) pelo posto de maior gênio da história
da humanidade. Não é de graça que ele é e sempre será mencionado no estudo
de praticamente qualquer campo do conhecimento. Além de ser o idealizador da
estrutura científica em áreas do saber tal qual conhecemos, ele também foi o grande
organizador do conhecimento. Assim como Platão, também fundou um centro
de ensino, o Liceu, cujo foco central era ensinar as ciências (possuindo biblioteca
e uma espécie de museu de ciências naturais). Embora a maioria das obras de
Aristóteles tenha se perdido e tudo que a história nos legou não passe das notas
que utilizava para apresentar as suas aulas, o que restou é suficiente para atestar
o seu brilhantismo. Para o presente momento, basta que você guarde duas coisas:

1. a superação da teoria platônica das ideias;


2. a concepção aristotélica de ética, política e Direito.
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Aristóteles foi um crítico ferrenho da teoria das ideias de Platão. Ele en-
controu nela um problema que hoje é conhecido como “o problema do terceiro
homem”. Isto é, se precisamos postular um mundo das ideias para conhecer as
coisas do mundo sensível, então também precisaríamos de um terceiro mundo
para fazer a ligação entre o primeiro e o segundo. Porém, se precisássemos de
um terceiro mundo para ligar os dois primeiros, também seria necessário um
quarto mundo para estabelecer a conexão entre o terceiro e os dois primeiros.
Assim, um regresso ao infinito seria inevitável e, a rigor, o conhecimento das
coisas seria impossível. Contra isso, Aristóteles defendeu que as ideias das
coisas são extraídas, por abstração, das experiências que temos das próprias
coisas. Com base nisso, entre outras coisas, ele formulou a famosa ideia de
definição por gênero próprio e diferença específica, que serviu para categorizar
as coisas e que utilizamos até os dias de hoje (por exemplo, que o gênero do
homem é animal e a diferença específica é ser racional).
No que diz respeito à ética, à política e ao Direito, o filósofo as concebia
como complementares. No momento, basta que você saiba que Aristóteles
entendia a ética como a disciplina que estuda a conduta humana com vista à
felicidade. Esta, por sua vez, só seria possível no contexto de uma sociedade
que educasse e propiciasse os homens a cultivar as virtudes. É por isso que,
como mencionado anteriormente, Aristóteles considerava o homem um animal
político. Além disso, a propósito do Direito e da justiça, assim como os seus
antecessores, Aristóteles a entendia como uma virtude. Entre outras coisas, ele
é o responsável por distinguir uma série de acepções do termo justiça (justiça
universal, particular, distributiva, corretiva, doméstica, política, legal e natural).

Objeto e o método da filosofia


Não existe consenso entre os filósofos e especialistas acerca de qual é o objeto,
tampouco de qual é exatamente o método da filosofia. Se você pensar na origem
etimológica da palavra, terá a ideia de que a filosofia é uma junção das palavras
gregas philia, cujo significado é amizade ou amor fraternal, com a palavra
sophia, que significa sabedoria. Nesse caso, resulta a ideia segundo a qual o
filósofo é um “amigo do saber”. Tendo isso em mente, se você parar e pensar na
cruzada de Sócrates contra a ignorância e a sua busca pelo autoconhecimento,
verá que o objeto abordado pela filosofia são aquelas coisas que fazem alguém
não ser uma pessoa sábia: as grandes questões sobre a existência.
São muitas as razões que fazem com que você acabe não se dispondo a
pensar a fundo nas grandes questões sobre a existência como “qual é o sentido
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da vida, do universo e tudo mais?”, “o que é a justiça?”, “como viver uma


vida feliz?” e “qual é o melhor modo de estruturar a nossa sociedade?”. Elas
parecem tão grandes, gerais e abstratas que dá até medo de começar. Se você
não tem medo delas, pode ser que simplesmente falte tempo, pois a vida é
corrida e você precisa trabalhar, estudar, cuidar da casa, sair com os amigos,
etc. Seja como for, a falta de reflexão filosófica traz uma série de consequ-
ências práticas para a sua vida. Por exemplo, você se torna uma pessoa mais
suscetível a adotar respostas prontas, dadas pelo senso comum.
Você não precisa se voltar para os ensinamentos dos filósofos antigos
para perceber que o senso comum tem os seus problemas. Vivemos em uma
sociedade democrática, em que o que vale é a vontade da maioria. Porém,
nem sempre essa vontade está em conformidade com aquilo que é melhor ou
que trará o bem comum. O senso comum é recheado de incoerências, incon-
sistências e preconceitos. Herdamos dos nossos pais uma visão de mundo que
raramente nos damos ao trabalho de examinar. Muitas vezes isso é tomado
como um dogma inquestionável e acima de qualquer suspeita. Pense, por
exemplo, no caso da discriminação de gênero que afeta até hoje as mulheres
em nossa sociedade.
Quando você começa a levantar perguntas sobre o que é uma sociedade
justa e defende que ela deve propiciar a igualdade, você está fazendo filosofia.
É nesse tipo de contexto que surge um confronto entre o que o senso comum
diz e aquilo que você pensa que deveria ser. Com efeito, se você para de aceitar
as coisas como ela são, tão somente porque sempre foram assim, e começa
a utilizar a razão para sustentar as suas crenças, você começa a jornada da
filosofia. Porém, para filosofar, não basta lidar com as grandes questões da
existência — você também precisa de um método.
A palavra método, cuja origem remonta à palavra grega methodos, significa
“o caminho para alcançar algum fim”. Assim, dado um objeto qualquer, o
método equivale ao conjunto de processos e procedimentos empregados na
busca e na aquisição de conhecimento sobre esse objeto, do que resulta a
ideia segundo a qual o método é a ponte que liga o sujeito ao conhecimento
do objeto de investigação. Além disso, é importante que você tenha em mente
que o emprego do método x ou y está intimamente ligado ao objeto que se
deseja conhecer.
O método filosófico é, por excelência, a argumentação. Diferentemente
dos cientistas da natureza, que podem confirmar as suas teorias com base na
experimentação e na observação, os filósofos não podem recorrer aos dados
empíricos para verificar ou falsificar as suas teses. Por isso, as questões filosó-
ficas são muito mais ligadas aos conceitos que utilizamos para compreender e
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interpretar a realidade. Assim, um dos métodos típicos da filosofia é a chamada


análise conceitual, segundo a qual o filósofo procura estabelecer relações e
distinções entre termos para, com isso, compreender melhor a realidade. Por
exemplo, no lugar de ter uma ideia confusa e rudimentar sobre a justiça, o
filósofo se engaja em distinguir acepções da palavra, como justiça distributiva
e justiça corretiva. Com base na pura análise conceitual, não é raro que você
seja capaz de mostrar que a concepção do senso comum sobre alguma coisa
está fundada na sua confusão e incapacidade de perceber a diferença entre
um termo x e um termo y.
Outro método comum na filosofia é o dialético, quando há uma discussão
sobre uma questão ou conjunto de questões, cujo objetivo é obtenção de
conhecimento. Nesse caso, apresenta-se uma tese que será posta em análise.
Contra ela, são apresentadas críticas, contrapontos e, eventualmente, uma
antítese. Por fim, a título de conclusão, há a extração de uma síntese. Com
relação ao modo de apresentação, perceba que o método dialético pode ser
apresentado na forma de um diálogo, tal qual os diálogos platônicos, mas isso
não é necessário. Quando você está avaliando e “discutindo” consigo mesmo
qual é a melhor tese e qual é o melhor caminho para sustentá-la, você está
raciocinando dialeticamente. Você avalia possíveis contra-argumentos e tenta
superá-los — o que, por vezes, faz com que você adote teses mais sofisticadas;
por vezes, leva você a simplesmente mudar de opinião.
Muitos filósofos também adotam o método dos experimentos mentais.
Embora os filósofos geralmente não possam recorrer aos fatos do mundo para
sustentar as suas posições, é comum que se valham de experimentos mentais,
tal qual Platão fez ao conceber a sua sociedade ideal. Esses experimentos
vêm para trazer esclarecimento, contraexemplos ou novas perspectivas para
abordar uma questão.
Um último método que gostaria que você tivesse em mente é o famoso
método da dúvida. Em função dele, o filósofo coloca sob suspeita tudo
Filosofia do Direito na Antiguidade 15

aquilo que não possui razões indubitáveis para acreditar. É valendo-se desse
método que Descartes, em Meditações, chega na famosa conclusão “Penso.
Logo, existo”. Pois, mesmo que possa duvidar de tudo, enquanto duvido não
posso duvidar que estou duvidando. E como duvidar é um modo de pensar,
também é incontestável que, enquanto duvido, estou pensando. Agora, se não
é possível pensar sem existir, e dado que estou pensando ao colocar tudo em
dúvida, existo indubitavelmente.

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