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SCRIPT FILOSOFIA, ARTHUR MIGUEL ROSA MACHADO

Teologia Platônica e Perspectivas Mitológicas


Ao contrário do que se pensa, há em Platão uma teologia mística. Separar Platão dos
mistérios órficos e délficos e revesti-lo de um caráter racionalista puro é como chamar
Aristóteles de materialista por este segundo imanentizar as Ideias (eide) e negar o Mundo das
Ideias. Assim, podemos observar que não há espaço para interpretações que afastem o caráter
teológico dos diálogos platônicos, pois em vários momentos o Divino Platão fala dos deuses e
cita os divinos poetas (como Homero e Hesíodo, considerados divinos pelo próprio, e.g., em
Íon 530c e no Banquete em 209d) para fundamentar suas doutrinas. O Banquete, por seu
caráter teológico, foi preferido para que tal atributo da obra platônica pudesse ser exposto de
modo mais claro. Quando, no Crátilo, Platão cita um legislador (nomothétou, 388e) e um
dialético (dialektikón, 390d), ele está falando de duas figuras olímpicas: respectivamente, Zeus
e Crono.

Com efeito, acredito que as razões para minha tese já foram justamente distribuídas.
Podemos, logo então, falar de uma teologia platônica e não será mais absurdo para nosso
leitor/ouvinte que explanemos o filósofo dialógico de um modo mais mítico e místico. Aos
nossos críticos, há inúmeras interpretações errôneas e absurda das quais estes deveriam se
preocupar mais: a) Platão conciliou Heráclito e Parmênides (nunca houve desacordo entre
ambos); b) Platão se configura como dualista (Parm. 109c, 144e e Tim. 29b contradizem isso);
c) que a República é um livro de política (é um livro sobre a alma, como comenta Proclo); e
outras mais ou menos relevantes.

Em primeiro lugar, o sentido mitológico deve ser despido do caráter naturalista que o
impregnou nos últimos séculos. O mito não deve ser reduzido à fábula de povos ignorantes,
tampouco deve ser considerado oposto ou inferior à filosofia, e muito menos tomar a posição
positivista de August Comte em que os mitos configuram uma inferioridade geral e sinalizam
um estágio pejorativamente primitivo da humanidade — sendo este estágio superado pelos
aparatos tecno-científicos. É mister citar o filósofo Vicente Ferreira da Silva para superar tais
interpretações. Este defende que: a) o mito tem maior valor ontológica e é expressão máxima
da realidade; b) ao cont´rario, a mitologia e a filosofia não se derivam ou se opõem uma em
relação a outra, mas são cifras de um mesmo pensamento originário e suas atividades são
decodificações de caráter alterno; c) e que, portanto, não há nada de inferior no pensamento
mitológico. Ademais, resta citar o filósofo neoplatônico Salústio, amigo pessoal do imperador
romano Juliano, o Apostata: “os mitos representam os próprios deuses e sua bondade”1.

Agora, partiremos para uma breve explanação da divindade Eros, segundo alguns
trechos do próprio Platão e dos poetas considerados por este como divinos. Em primeiro lugar,
que os deuses não são representações de idealizações. Não é o Deus do Amor uma ficção
criada pelos gregos, que interpretavam um Deus a partir das paixões que viam e faziam
analogias de tal maneira. Em suma, não é o Deus do Amor uma representação da idealização
de um sentimento, mas é o Deus do Amor que causa tal sentimento, sendo anterior a ele. Esta
interpretação é importante pois atualmente há uma tendência para que os deuses sejam
tomados como idealizações, mas o Amor (Eros) precede todo e qualquer sentimento
apaixonado. Em segundo lugar, devemos saber que Platão discrimina entre três tipos de Eros,
dois quais dois são henadas2 e outro é daemoníaco3. Sobre tal divisão, devemos começar pelo
seguinte: que Platão divide aqueles que sofrem de amor entre “amado” e “amante”. O amado
1
Sobre os Deuses e o Mundo. Cap III: Sobre os Mitos; por que são divinos
é relativo aos Deuses. O amante é relativo ao daemon. Pois o amante é mais ativo e procura
algo que não tem, e o amado já tendo o Amor é tomado como mais estável e mais próximo do
imutável. E que entre os Deuses, também há uma bipartição: o Amor Celestial e o Amor
Vulgar.

Eros Celeste
Conta-se que Afrodite Celeste, filha de Crono, não tem mãe. E que esta recebe o nome
de celestial pois é neta de Uranos, tendo uma ligação mais direta com o Céu. Que é o Céu?
Deus. Que é Crono? O intelecto. Sobre Crono, acrescenta-se que nos mitos esta divindade gera
seus filhos e os devora. Isto representa a atividade da Mente Divina, pois esta gera as coisas
intelectuais (os deuses, as almas, as Ideias, etc.) e então contempla-as. Quando as contempla,
devolve para si (como se estivesse as devorando). Esta Afrodite fora mãe de Eros Celestial. E
este Eros mira mais nas coisas intelectuais, é o amor pelos deuses e, nas relações humanas,
provoca o amor divino devido às almas. Que quer dizer “nascer sem mãe”? Na tradição
platônica e pitagórica, a mulher representa “passividade” (devir), motivo pelo qual esta foi
identificada com o número par (quando dividimos um número par por dois, nada sobra e isto
representou para os pitagóricos “maior facilidade em ser movido”, ou seja, maior passividade).
Daí surge a matéria prima (khôre) como o aspecto femino. Afrodite Celeste não é daqui de
baixo, do mundo da geração dos corpos, mas dos Céus. Eros Celestial também não é daqui,
mas das coisas intelectuais, pois é gerado de uma mãe que está sempre em contato com o
Intelecto Divino. Este Eros urânico é o olho de Afrodite, pois somente amando Crono, seu pai,
ela o procura. E como para amar o Intelecto é necessário um amor divino, ela necessitou de
Eros Celeste.

Eros Vulgar
Sobre o segundo Eros, conta-se que é filho de Afrodite Vulgar. Esta foi gerada por Zeus
(o demiurgo) e Dione, e ter mãe representou que é a beleza vulgar que habita nos corpos e nas
coisas transitórias. Este Eros representou um amor de espécie semelhante. Mas por que,
sendo relativos às coisas transitórias, este Eros e esta Afrodite ditos “vulgares” são ainda
divinos? Esta Afrodite Vulgar é uma contração de Afrodite Celestial, que entrou na ordem de
Zeus (o demiurgo é responsável por unir forma e matéria). Este Eros é uma contração do outro
Eros, que também entrou na habitação de Zeus. Ora, mas por que necessitam entrar em tal
comando demiúrgico? Pois o Eros Celestial necessita de descer no mundo material para que
possa inflar em nossos corações o amor pelo divino. E isso não pode ser feito sem um contato
com a matéria, motivo pelo qual precisa também de uma mãe mundana. Pois o feminino nem
sempre parece representar passividade, mas também geração.

Mas o que é amor? Quando amamos, queremos algo. Este algo sempre nos parece
bom e belo, pois sempre queremos os melhores parceiros. Por isso o amor é a busca pelo bem
e pelo belo. O Amor Celeste ama a Beleza em si mesma (Afrodite) e o Amor Vulgar ama a
Beleza que existe nos corpos — pois realmente existem muitas moças e rapazes bonitos.
Aqueles que amam o Belo em si mesmo miram nos arquétipos, na alma e nos deuses; aqueles
que amam a beleza dos corpos miram apenas na alma e no corpo, ou só no corpo. E este amor

2
Segundo os neoplatônicos, henádas são as unidades que participam do Uno. O Uno é Deus, as henádas são os deuses. Desta forma, creio ter ficado claro o sentido que se dá
aqui.
3
Preferi chamar de “daemoníaco”, acrescentado o “a” na sílaba “de” de “demoníaco”, pois pode haver uma intervenção do imaginário cristão que torne os daemones seres
maléficos.
do corpo é menos duradouro, e quando bem guiado resulta num amor pela alma. Pois o corpo
nunca é belo em totalidade, sempre há algo desarmônico no corpo. Mas a alma boa, que busca
os deuses, é sempre bela. Daí que o amor só é devido quando mira uma pessoa boa. Aqueles
que amam os torpes fazem mal uso do erotismo, pois só vale a pena encontrar a outra metade
do andrógeno primordial (mito contado no Banquete) quando a outra metade é boa.

Eros Demoníaco

Resta o terceiro Eros, o daemon. O amor daemoníaco é um intermediário entre os


deuses e os homens. Conta-se que nasceu da união entre Poros (o Recurso) e Pênia (a
Pobreza), quando o primeiro se embriagou de néctar no Jardim de Zeus durante a
comemoração do nascimento de Afrodite e a Pobreza se aproveitou para abusar do Recurso.
Nascendo no mesmo dia que Afrodite, e sendo filho da pobreza, passa a vida ao lado dela
procurando uma Beleza que não possui (por isso é representante dos amantes e não dos
amados). E nisto Sócrates tem razão: desejar algo é desejar o que não possui; amar algo é
amar algo que não possui. Por isso o filósofo diz que Eros daemoníaco não é belo e nem feio,
nem mal e nem bom, nem sábio e nem ignorante. O que representa o néctar? Que Poros é
intelectual, pois geralmente os deuses mundanos se embebedam de vinho. Eros não sendo
nem deus e nem homem, pois o homem aponta mais para a ignorância e os deuses para a
sabedoria, é o melhor filosofo. Pois o filosofo é amante da sabedoria. E o amante procura
aquilo que não tem. Portanto, Eros daemoníaco procura a sabedoria. E realmente Platão
pareceu estar correto em dizer que o Amor é um mediador (daemon), pois há algo entre o
objeto de desejo (como uma moça bonita) e a natureza desejante (a alma de um rapaz
apaixonado) que os guia e aproxima. Ora, o amor daemoníaco está mais próximo de Afrodite
Vulgar, que é filha de Zeus. É que Afrodite Vulgar, sendo uma queda de Afrodite Celestial,
anseia para retornar à Crono e ser Afrodite Celestial. Assim, Poros dormindo embriagado
simbolizou a Razão ausente no nascimento de Afrodite. E o Eros daemoníaco não é material,
pois nasceu antes de existir vinho. Assim, Afrodite também não é material, mas a falta de
Razão em seu nascimento simbolizou a indeterminação que esta tinha. A falta de
consentimento por parte de Poros também sinalizou tal indeterminação. Por ser filho da
Pobreza, sempre que atinge algum tipo de bem ou perfeição ele a perde. Daí que “nasce e
morre num mesmo dia”.

Significado Último
Que Eros Vulgar e Eros Celestial são o mesmo. Pois Eros Vulgar é só uma
expansão de Eros Celestial querendo chegar aos homens. E que Eros Celestial é uma
contração de Eros Vulgar, que chegando aos homens quer leva-los consigo para o
Olimpo. O mesmo com Afrodite. Eros Celestial, sendo o primeiro Eros, é grande causa.
Portanto, quando Eros Celestial se expande ele gera Eros Vulgar. E Eros vulgar, sendo
efeito, olha para a causa (pois o efeito ganha sua razão, logos, de existir a partir da
causa) e retorna a ela.
Que Eros daemoníaco é mais uma contração, é o próprio Eros Celestial
contraído em Vulgar e inerindo na alma humana individual que existe no composto.
Pois, realmente, nascemos com a possibilidade de amar. E em segundo lugar, nós
amamos primeiro o que está mais visível, que são os corpos. Por isso atingimos o Eros
Vulgar primeiro, queremos nos relacionar com outras pessoas e até nos casar. Por fim,
o Eros celestial surge da contemplação da Ideia do Belo. Como Platão diz no Banquete,
nós percebemos a Ideia do Belo a partir da meditação da beleza que há nos corpos
particulares.
Por fim, que Eros é “Ágil e duplo, guardião das chaves”, “seu fogo unificador
vestido com chamas, para misturar as tigelas”. Eros é o próprio guardião da expansão
(emanação) e da contração (reversão) na existência, pois ele une as cadeias de causas
e efeitos, e também une as essências e existências. Une a identidade da coisa consigo
mesmo. Isto é, A = A pois Eros fixa e determina essa identidade, mas A = B pois Eros
une a coisa com seus predicados. Portanto, Eros é tanto senhor da simplicidade quanto
da complexidade. E suas asas simbolizam essa facilidade que Eros tem de sair a partir
das expansões e de voltar a partir das contrações.

URANO

(O CÉU)
EXPANSÃO

CRONO

(O INTELECTO)

ZEUS AFRODITE
IDEIAS/FORMAS
(O DEMURGO) (A ALMA
UNIVERSAL)

EROS
ALMAS
MUNDO (O AMOR
PARTICULARES
DIVINO)

CONTRAÇÃO
COMPOSTOS EROS

(ALMAS NO (AMOR
MUNDO DAEMONÍACO)
MATERIAL)

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