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A concepção de Demiurgo, os mundos sensível e inteligível e sua relação com a teoria

das três almas em Platão

Quanto à espécie de alma que nos domina, é necessário ter em conta o seguinte: um
deus deu a cada um de nós um daimon, aquilo que dizemos habitar no alto do
nosso corpo – e dizemo-lo muito correctamente – e nos eleva desde a terra até
àquilo que é nosso congénere no céu, porque somos uma planta celeste e não
terrena. Foi desse lugar, onde se engendrou a primeira génese da alma, que a parte
divina fez depender a nossa cabeça, que é como uma raiz e mantém todo o nosso
corpo da posição erecta. Assim, quando alguém se entregou aos apetites e às
ambições e cultivou excessivamente esses vícios, é inevitável que todos os seus
pensamentos sejam mortais; em tudo se tornou mortal, tanto quanto possível, e
nada nele deixa de ser mortal, pois foi essa a natureza que desenvolveu. Por outro
lado, para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos
verdadeiros, exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo, é absolutamente
inevitável que nele surjam pensamentos imortais e divinos, já que se ateve ao que é
verdadeiro. E tanto quanto é permitido à natureza humana participar da
imortalidade, dessa condição não deixe de lado nem a mínima parte. Ao cuidar
sempre da parte divina que contém em si, tenha em ordem o daimon que habita
dentro de si, bem como seja particularmente feliz. (PLATÃO, 2011, pp. 206)

A concepção de mente em Platão possui uma relação intrínseca com a religião de sua época.
Platão utiliza da teoria da metempsicose e mistura elementos da poesia homérica e de Hesíodo para
desenvolver sua própria teoria da mente – que em sua época era considerada uma ontologia da
psyché. Abordaremos nesse capítulo, de uma forma geral, como Platão desenvolve sua teoria da
mente, qual é sua relação com o mundo das ideias e como a concepção de Demiurgo – ou Uno –
está correlacionada com sua teoria da mente. É claro que nomear a teoria das três almas ou a teria
da psyché de Platão como um teoria da mente é uma questão de anacronismo, pois, tal como foi
abordado no Capítulo 1, em sua época a concepção de mente estava relacionada ao plano de fundo
que o onmós e a psyché se manifestavam. Quando nos referimos a mente, estamos nos referindo a
psyché ou alma escrita nos textos de Platão.
No desenvolvimento de sua filosofia, como um todo, Platão busca ora realizar uma síntese
entre Parmênides e Heráclito e ora se utiliza dos outros pensadores pré-socráticos. O objetivo desse
capítulo não é realizar uma análise das influências que Platão teve para desenvolver sua teoria
psicológica, antes disso, é demonstrar como Platão desenvolve sua teoria da mente para fazer uma
análise entre o seu pensamento e o pensamento dos filósofos posteriores, sobretudo, os filósofos
idealistas dos XVII.
Este capítulo promove uma síntese das principais obras de Platão que possuem diálogos
sobre sua teoria das três almas – ou teoria tripartite das almas – e sua relação com o mundo das
ideias, dentre elas: Fédon (1973a), Teeteto (1973c), Timeu (2011), Parmênides (2019), A República
(2000), Íon (1988) e Crátilo (1973c). Buscou-se correlacionar uma genealogia sobre a teoria das três
almas em Platão, sua relação com o mundo sensível e o mundo inteligível e qual é o papel da
linguagem em relação a psyché – alma racional.
Platão, usualmente, utiliza o diálogo socrático para desenvolver a sua filosofia, isto é, ele
utiliza a personagem Sócrates como seu principal interlocutor para desenvolver suas concepções
filosóficas. Ora, Sócrates é a personagem principal dos diálogos de Platão quem irá ensinar os
outros interlocutores sobre um tema em questão que é abordado durante todo o desenvolvimento da
obra, ora e meia ele utiliza outra personagem para centralizar a argumentação de seu ponto de vista
e utiliza Sócrates como interlocutor desta personagem principal, como é o caso da obra Parmênides
(2019), por exemplo. Por mais que Platão utilize figuras históricas para desenvolver sua escrita,
suas obras não possuem caráter histórico em que o autor se reduz a apresentar os diálogos de
pessoas que estavam discutindo sobre determinados temas filosóficos, tal como os escribas o faziam
no Egito antigo. As personagens históricas que aparecem nas obras de Platão, portanto, são
interpretadas como personagens fictícias que são uma alusão às figuras históricas que existiram na
época, essa prática era comum entre as peças de teatro, em sua maioria comédias, pode-se
mencionar As Núvens de Aristófanes como um exemplo desta prática de incorporar figuras
históricas nas peças de teatro como personagens fictícias.
Praticamente, em todas as suas obras o autor desenvolve de forma direta ou indireta a
concepção de que as ideias das coisas que existem no mundo são eternas e estão em uma relação de
transcendência com o mundo sensível, pois fazem parte de outro plano denominado mundo
inteligível ou popularmente conhecido como mundo das ideias. Neste contexto, a mente –
mencionada na maioria de seus textos como alma e em outras vezes como psyché – possui sua
essência no mundo das ideias e, quando um indivíduo nasce, ela utiliza o corpo como uma espécie
de hospedeiro para habitar o mundo sensível. Além da mente existem outras duas almas – colérica e
concupiscente – que são corpóreas e, portanto, fazem parte do mundo sensível, sendo-as,
respectivamente, responsáveis pelas emoções e desejos do indivíduos. Quando o indivíduo morre,
as almas corpóreas perecem com o indivíduo enquanto a mente – psyché – retorna ao mundo
inteligível e, se realizou o processo de purificação habita eternamente o local juntamente com as
ideias eternas das coisas que existem no mundo. O papel da mente na teoria psicológica de Platão é,
portanto, governar o corpo e os estímulos mundanos que são enviados constantemente pelas duas
outras almas corpóreas até a mente, governar no sentido de que o papel da mente é animar o corpo
com a consciência, em um sentido muito próximo do que é a concepção homérica de onmós, tal
como foi abordado em XXXXXXXXXXX. (ROHDE, 1938, 242-4)
Todos esses elementos, as almas tripartidas – psyché, colérica e concupiscente – o corpo dos
indivíduos que possui uma alocação ideal para as almas em formato triangular, os mundos sensível
e inteligível, o Uno, o Ser e o conhecimento – episteme – assim como todo o cosmos foram
desenhados por uma entidade atemporal que é anterior aos próprios deuses denominada demiurgo,
tal entidade teria um princípio motriz criador de retirar do caos a ordem e a forma das coisas em si
mesma por meio das ideias eternas e lançá-las ao mundo sensível. Sendo assim que as coisas no
plano sensível teriam sido originadas de acordo com suas respectivas finalidades.
Apesar da teoria psicológica platônica ser considerada transcendental, sua filosofia como
num todo, como abordamos no primeiro parágrafo, é contaminada pela visão de mundo religiosa de
sua época, onde sempre que o filósofo não encontrava uma resposta metafísica para as questões das
quais ele perseguia, ele incorporava elementos da religião grega de sua época, dessa forma, ele
incorporou tanto as concepções homéricas e de Hesíodo quanto as visões de mundo do orfismo e
dos cultos dionisíacos para desenvolver sua filosofia de uma forma geral. Logo, podemos dizer que
seu ponto de vista também é imanente, porque a própria religião grega da época era imanente e se
estabelecia em um horizonte em que os deuses caminhavam entre os mortais, se era possível ter
acesso ao mundo dos mortos ou reanimar o onmós da psyché dos mortos através do uso do sangue
como oferenda e as entidades imortais – os deuses e titãs – manifestavam suas vontades, desejos e
emoções por meio das forças da natureza e invadiam a psyché dos mortais para conceder virtudes
majestosas ou sentimentos avassaladores que perseguiam o indivíduo até a sua morte. Este capítulo
irá abordar (i) a natureza das almas tripartite em Platão; (ii) qual é sua origem ontológica; e (iii)
como a psyché platônica se comunica e governa o corpo mortal. Além disso, nos propomos a
realizar uma breve discussão anacrônica sobre (iv) a relação entre o problema mente-corpo e a
teoria da psicológica platônica.

O Demiurgo e o Uno

O demiurgo, nos textos de Platão é uma entidade geradora de todo o cosmos e da primeira
geração dos primeiros deuses e dos titãs no ethos religioso na Grécia antiga. Esta entidade é anterior
até mesmo à geração dos deuses e dos titãs e é ele quem vai desenvolver os arquétipos que existem
no mundo e dar forma as propriedades existentes, tanto no mundo físico quanto no mundo
inteligível: “[…] o demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando
dá a forma e as propriedades ao que cria.” (PLATÃO, 2011, pp. 94) Sob uma influência de
Parmênides e Heráclito, o demiurgo é interpretado por Platão como o primeiro artífice do mundo,
aquele quem fabrica todos os conceitos do mundo inteligível e ao lança em direção ao mundo físico.
Sendo a primeira, o demiurgo é considerado: “a mais perfeita das causas.” (PLATÃO, 2011, pp. 95)
Ao fabricar o conceito de todas as coisas existentes e lançá-las no mundo físico, o demiurgo
estabelece que o intelecto está na psyché e a psyché está no corpo, ou seja, que todo o indivíduo já
nasce com uma certa propensão para adquirir o conhecimento que está no mundo. Isso porque a
essência da psyché é originária do mundo inteligível, logo, quando um indivíduo está nomeando
alguma coisa, ele o faz porque sua psyché já tinha uma noção do conceito daquela coisa quando sua
psyché estava no mundo inteligível. Este processo é reconhecido em sua filosofia como teoria das
reminiscências. (PLATÃO, 2011, pp. 95-8)
Com efeito, o Uno estaria associado ao mundo inteligível, a alma do mundo ou o
conhecimento gerador de todas as coisas em si mesma que tem como sua essência o mundo
inteligível. Na metafísica platônica, o conhecimento – ou o Uno – é considerado uma entidade
transcendente ao mundo sensível e que está no mesmo plano do mundo inteligível, é por meio da
psyché que conhecemos as coisas que estão no mundo sensível, pois são sombras dos conceitos
perfeitos existentes por meio do Uno – conhecimento. A psyché – alma racional – possui também a
mesma essência do que o Uno e o mundo inteligível e nós, seres humanos, somos dotados do
intelecto e da linguagem porque nossa psyché originalmente veio do mundo das ideias, logo, o ato
de conhecer é um rememorar um conhecimento transcendente que faz parte da essência da nossa
psyché. Esse processo é denominado como teoria das reminiscências, e se tem como pressuposto de
que a psyché é um catalisador para o acesso ao conhecimento objetivo, que é proveniente do mundo
inteligível.
O Uno, por essência, está associado a unidade não o sendo, nem o todo ou as suas partes.
Por ser uma unidade e não possuir partes, ele não possui começo, meio ou fim, visto que se
possuísse algumas dessas definições, ele poderia ser dividido em partes. Por não possuir começo,
meio ou fim ele é ilimitado e não possui formas geométricas, porque se ele as possuísse, ele poderia
ser divido em partes. O Uno não pode ser se quer em si mesmo, porque nessa relação sempre é
necessário algo como a própria referência, no caso ele para se referenciar como ele mesmo,
consequentemente, o Uno não está em parte alguma, nem em si mesmo nem pode ser encontrado no
que quer que seja, pois se fosse o contrário, o Uno seria divisível. Ele é, ao mesmo tempo, imóvel e
nunca se apresentaria no mesmo lugar: “Mas o que nunca se acha no mesmo lugar, não está em
repouso nem fica estacionário.” (PLATÃO, 2019, n.p) O Uno também não está associado a
identidade, porque se ele assim o estivesse, não seria uma unidade, se associar a identidade implica
em destruir a concepção de unidade inerente ao Uno. Como veremos a seguir, O Uno também não
pode estar em uma relação de semelhança ou dissemelhança com ele mesmo, porque possuir esta
relação implica em estar numa relação de identidade e não ser mais considerado uma unidade. Ele
também não está numa relação de espaço e tempo, porque se assim o estivesse, ele poderia ser
comparado com ele mesmo em uma relação de tempo, não possuindo mais uma unidade:

Logo, se o Uno não participa em absoluto de nenhum tempo, ele nunca foi no
passado, nem era nem se tornou, como no presente nem é nem chega a ser nem se
forma, e também não chegará a ser nem se formará nem será no futuro.
Nada mais verdadeiro.
Poderá haver participação do ser, fora dessas modalidades?
Não pode.
Logo, o Uno não participa absolutamente do ser.
Parece mesmo que não participa. (PLATÃO, 2019, n.p)

Ele não poderá ser de modo que se equivalesse a um, se assim o fosse ele participaria da
existência e, consequentemente, seria divisível em partes, em sua relação com o Ser: “[…] o Uno
nem é um nem é” (PLATÃO, 2019, n.p) Isto implica em afirmar que ele não pode ser conhecido
nem avaliado, por não possuir correspondência com a existência. Mas o Uno possui uma relação
com o Ser, podendo-se admitir que o Uno é e admitindo isso, pode-se admitir que há o ser do Uno e
que este ser não é idêntico ao Uno nem o Uno participa de seu ser nele mesmo, caso o contrário se
poderia identificar o Uno com o um e, consequentemente, com sua própria existência.

Uno, psyché e as ideias das coisas em si mesmo

Para se compreender a definição de Uno enquanto conhecimento universal, ou


conhecimento do todo, é necessário se compreender algumas noções que Platão (2019) elabora em
consonância com a definição de Uno, sendo elas: semelhança e dissemelhança; Uno e múltiplo; e
pluralidade e unidade. Para Platão os conceitos das coisas em si mesmo que existem no mundo se
aproximam ou se dissociam em relação ao sua definição de acordo com a semelhança que estas
coisas em si mesmo possuem entre si, portanto, se duas coisas são semelhantes em si mesmo se diz
que elas fazem parte de uma unidade ou do Uno enquanto que se elas possuem uma relação de
dissemelhança, elas fazem parte da multiplicidade e podem estar em uma relação de contrários –
como frio e calor, inverno e verão, por exemplo. Se as ideias possuem uma relação de semelhança,
elas são Unas e possuem unidade e se elas possuem uma relação de dissemelhança, as ideias são
múltiplas e possuem uma relação de pluralidade. O Uno, por sua vez, estaria associado à soma de
toda a forma daquilo que pode ser conhecido por meio do conhecimento – episteme:

[…] não reconheces a existência em si mesma da idéia de semelhança, e a de uma


outra, oposta a essa, de dissemelhança em si mesma, e que delas duas eu e tu
participamos e todas as coisas a que damos a denominação de múltiplo? E que as
coisas que participam da semelhança se tornam semelhantes, a esse respeito e na
medida em que participam da dissemelhança, e uma e outra coisa as que participam
das duas a um só tempo? Se todas as coisas participam dessas idéias, contrárias, e,
pelo próprio fato dessa participação, ficam, no mesmo passo, semelhantes e
dissemelhantes a elas mesmas: que há de surpreendente em tudo isso? Se alguém
mostrasse semelhantes no ato de se tornarem dissemelhantes, ou o inverso:
dissemelhantes passando a ser semelhantes, isso sim, eu tomaria como verdadeira
maravilha! Porém dizer que as coisas que participam de uma e de outra apresentam
ambos os caracteres, é o que não se me afigura, Zenão, contraditório; é como se
alguém afirmasse que tudo é um pela participação da unidade e que esse mesmo
todo é múltiplo por sua participação da pluralidade. Mas se me provassem que é
múltipla a simples unidade, ou que o múltiplo é um: eis o que me surpreenderia
sobremodo. [...] Se me demonstrassem, outrossim, que os gêneros e as espécies
apresentam em sua esfera própria esses caracteres opostos, haveria de que
maravilhar-me. Mas, que há de extraordinário dizer alguém que eu sou ao mesmo
tempo uno e múltiplo? (PLATÃO, 2019, n.p)

Essa relação entre semelhança e dissemelhança e as ideias das coisas em si mesmo existe
para que seja possível nomear as coisas, com auxílio da psyché, nós rememoramos através das
reminiscências das ideias das coisas que existem no mundo e colocamos estas coisas em uma
relação de semelhança ou dissemelhança entre elas mesmas para saber se elas podem estar
associadas em um mesmo gênero ou espécie. Para Platão (2011, 2019), quando observamos um
objeto no mundo e o definimos por meio da linguagem, nós o nomeamos segundo ideias que
existem em si mesmas enquanto conceitos no mundo inteligível, estas ideias fazem parte do mundo
inteligível e a soma de todos os gêneros, conceitos e espécies existentes no mundo sensível constitui
o Uno – ou conhecimento científico. Se, portanto, alguém nomeia que um determinado objeto é um
cavalo ou um corta-papel, ele o faz segundo ideias em si mesmas que preexistem no mundo das
inteligível e são capazes de ser acessadas através da psyché porque esta última possui a mesma
essência do que o mundo inteligível e o Uno – episteme:

- E em troca, penso, poder-se-ia supor que perdemos, ao nascer, essa aquisição


anterior ao nosso nascimento, mas que mais tarde, fazendo uso dos sentidos a
propósito das coisas em questão, reaviveríamos o conhecimento que num tempo
passado tínhamos adquirido sobre elas. Logo, o que chamamos de “instruir-se” não
consistiria em reaver um conhecimento que nos pertencia? E não teríamos razão de
dar a isso o nome de “recordar-se”?
[…]
- É possível, com efeito – e assim pelo menos nos pareceu – que ao percebermos
uma coisa pela vista, pelo ouvido ou por qualquer outro sentido, essa coisa nos
permita pensarmos num outro ser que tínhamos esquecido, e do qual se aproximava
a primeira, quer ela lhe seja semelhante ou não. Por conseguinte, torno a repetir, de
duas uma:ou nascemos com o conhecimento das idéias e este é um conhecimento
que para todos nós dura a vida inteira – ou então, depois do nascimento, aqueles de
quem dizemos que se instruem nada mais fazem do que recordar-se; e neste caso a
instrução seria uma reminiscência. (PLATÃO, 1973a, pp. 85)

Logo, ao nomearmos um objeto existente no mundo se a psyché do indivíduo que a nomeia


encontra uma relação de similaridade entre ele e algum outro objeto – como, por exemplo, o
vermelho do morango e o vermelho da maçã –, Platão (2019) afirma que: “É o que admitimos para
cada idéia, se tiver de ser idêntica a si própria e estar presente em todas as coisas.” (PLATÃO, 2019,
n.p). Isto implica em afirmar que dois objetos que se assemelham estão em uma relação de unidade
e, portanto, em alguma medida eles são idênticos neles mesmos. Quanto maior a relação de
similaridade, tão mais idênticos os objetos serão neles mesmos. Platão (2019) realiza a analogia da
nau para exemplificar como o Uno – conhecimento científico – pode constar, ao mesmo tempo, o
todo e suas partes. Nesta analogia, ele cria o exemplo de uma nau que joga sua vela contra muitos
homens, se isto ocorresse, a unidade – da vela – recobriria suas partes – os muitos homens. A
resposta para essa analogia é positiva, no sentido de que a vela englobaria cada uma das partes – os
muitos homens – e é utilizada para demonstrar que as ideias em si mesmas são divisíveis, mas as
coisas que participam destas ideias são parcialmente divisíveis, no caso elas podem se unir por
similaridade, mesmo podendo ser divisíveis em múltiplas ideias:

Agrada-me, Sócrates, a maneira como fazes uma só coisa estar presente em toda a
parte. É o mesmo que se jogasses uma vela de navio em cima de muitos homens e
dissesses que a unidade recobria o múltiplo. Não foi assim, mais ou menos, que te
exprimiste?
Talvez, teria respondido.
E a vela inteira, recobriria cada pessoa, ou, de preferência, cada uma de suas partes
esta ou aquela pessoa?
Sim, cada uma de suas partes.
[...] as idéias em si mesmas são divisíveis, e as coisas que delas participam só o são
parcialmente, não adquirindo nenhuma delas toda a idéia, mas apenas uma parte de
cada idéia.
[...]
Não quererás, então, Sócrates, admitir que a idéia é realmente divisível, sem deixar
de ser una?Em absoluto, falou. (PLATÃO, 2019, n.p)

A analogia tem, de forma implícita, a concepção de grandeza e pequenez quando associamos


a nau e sua vela com a ideia de grandeza e os homens à ideia de pequenez. Essas duas concepções
são utilizadas por Platão (2019) para demonstrar que uma ideia é em si mesma una
independentemente das partes que a compõem. As ideias dos objetos – ou das coisas em si mesmo –
por serem em essência pensamento – ou, melhor dizendo, espírito – e habitarem o mundo
inteligível, são partes – ou multiplicidades – do Uno, que estaria associado a soma de todas as ideias
dos objetos que existem no mundo sensível. Logo, podemos afirmar que uma ideia é sempre a
mesma que está presente em todas as coisas que a compõe e são iguais em si mesmo, isso significa,
por exemplo, utilizando o exemplo das páginas anteriores, que o vermelho que é encontrado tanto
na maçã quanto no morango é o mesmo para ambas as frutas, por mais que elas estejam em um grau
de dissemelhança enquanto espécie, a noção de vermelho é aquilo que une ambas as frutas por
similaridade. (PLATÃO, 2019, n.p)
Ao identificarmos um objeto com uma ideia provinda do Uno – episteme – o indivíduo que
referencia, ao mesmo tempo, identifica uma cópia ou sombra de uma ideia essencial que tal objeto
se assemelha por similaridade. Da mesma forma, é impossível que o indivíduo que referencie um
objeto no mundo seja capaz de pensar sobre o nada, pois o pensamento, por natureza, é aquilo que
pensa em algo que está em consonância com o Uno:
[…] essas idéias se encontram na natureza à maneira de paradigmas; as coisas se
lhes assemelham como simples cópias que são, consistindo a participação das
idéias com relação às coisas em se assemelharem estas àquelas. (PLATÃO, 2019,
n.p)

Esse processo de similaridade de ideias acontece em Platão (2019) com a finalidade das
ideias das coisas surgirem como conceitos em si mesmos dos objetos que existem no mundo e ser
utilizados como forma de nomear as coisas. Uma vez que o processo de semelhança ou
dissemelhança é realizado temos, então, a unidade de duas partes com o objetivo de referenciar um
objeto – ou um gênero – por meio de uma ideia ou, no caso da dissemelhança, temos a
multiplicidade e o processo de contrariedade onde existem duas ideias que são ela mesma e o
contrário. Tal processo não é utilizado por Platão (2019) para se criar novas ideias até o infinito,
mas para usar como um instrumento para nomear as ideias das coisas existentes no mundo sensível
por meio da similaridade – ou a falta dela. As ideias que encontramos devem ser finitas pois cada
ideia demonstra uma essência em si mesmo de uma coisa que há no mundo e que pode ser nomeada
quando atingimos essa ideia essencial através da psyché – como a ideia de cavalo ou a ideia de
vermelho. As coisas que existem no mundo sensível só são nomeados por estarem em uma relação
de similaridade umas com as outras e não por causa das ideias em si mesmo. E isto porque, pensar a
ideia de uma coisa e a percebê-las com os órgãos dos sentidos constituem processos distintos. Não é
porque pensamos em uma ideia que estamos a concebendo a coisa da qual a ideia se refere com os
órgãos dos sentidos, de maneira análoga, não é porque percebemos um objeto sensível com os
órgãos dos sentidos que nós possuímos alguma ideia sobre o objeto sensível em si mesmo. Para
conseguirmos chegar a uma definição sobre aquilo que é percebido é necessário que o indivíduo
que percebe estabeleça uma relação de semelhança ou dissemelhança sobre aquilo que é percebido
em relação à outros objetos sensíveis que ele mesmo percebeu e encontre a semelhança entre os
gêneros e as espécies. Dessa forma, por mais que consigamos conceber as ideias das coisas que
existem no mundo por meio do intelecto, ele não afeta, em um primeiro momento, a nossa
percepção sobre aquilo que é percebido no mundo. Nós veremos esse problema abordado de uma
maneira similar com o problema da relação entre sujeito e objeto no empirismo de Hume no
Capítulo XXXXXXXXXXX e sobre a incapacidade da razão conhecer a essência das coisas em si
mesmo, sendo esta apenas capaz de apreender os fenômenos dos objetos sensíveis, quando
abordarmos a concepção de mente em Kant no Capítulo XXXXXXXX. (PLATÃO, 2019, n.p)

Episteme – conhecimento – e doxa – opinião e sua relação com o Uno


O conhecimento das ideias em si mesmo, para Platão (2019) é o conhecimento da verdade
em si mesmo. Algo análogo ao conhecimento científico ou conhecimento objetivo e o conhecimento
particular estariam associados ao conhecimento dos seres em si mesmo – como o conhecimento que
possuímos ao nomearmos um cavalo ou uma nau. Logo aquilo que conhecemos por meio da psyché
é caracterizado como o conhecimento da verdade sobre o nosso mundo, o conhecimento que
nomeia determinadas coisas no mundo. Mas, nós não possuímos as ideias das quais nomeamos as
coisas pelo processo de semelhança ou dissemelhança, nós apenas as rememoramos por meio do
processo das reminiscências, elas não existem entre nós de fato. Como já dissemos nas páginas
anteriores, a essência desse conhecimento das ideias em si mesmas é a mesma que o do mundo
inteligível, do Demiurgo e do Uno, mas isso não garante ao Demiurgo conhecer as coisas que
existem no mundo sensível, porque as ideias em si mesmo não atuam nas coisas do nosso mundo e,
ao mesmo tempo, as coisas do nosso mundo não atuam nas ideias elas mesmas; este processo ocorre
de forma separada são as próprias coisas do mundo que atuam por similaridade ou dissemelhança
entre elas mesmas e o mesmo ocorre entre as ideias que utilizamos para nomear as coisas elas
mesmas. Isto significa que as ideias possuem existência independente das coisas que por elas são
nomeadas: “[…] e muito mais ainda está implícito nas idéias, no caso de terem estas existência
própria e concebê-las alguém como algo independente.” (PLATÃO, 2019, n.p)
Mas, é na obra Teeteto (PLATÃO, 1973c) que o autor irá definir qual é a natureza do
conhecimento, o que é conhecimento em si mesmo, como é possível que haja conhecimento
particular e como ele formam as partes do todo do conhecimento em si mesmo. A obra se inicia com
Platão (1973c) já afirmando que o conhecimento é sensação em toda a sua argumentação no diálogo
socrático, ele associa indiretamente o conhecimento com o Uno, com praticamente os mesmos
argumentos mencionados em sua obra Parmênides (2019); a principal diferença é que ele, ao se
referir ao Uno, utiliza a palavra conhecimento. Em sua argumentação, ele define que o
conhecimento é aquele que em volume e quantidade mantém-se igual a si mesmo, que pode e não
pode ser captado em movimento, que não se é possível adicionar ou retirar o conhecimento, que
todos as ideias de conceitos e definições sempre continuarão as mesmas – e são encontradas, como
mencionamos em Uno, psyché e as ideias das coisas em si mesmo por meio de semelhança e
dissemelhança – e aquilo que não existe não pode ser formado ou formar algum tipo de
conhecimento. (PLATÃO, 1973c, pp. 32-7)
A principal questão postulada por Platão (1973c) no diálogo socrático é quando alguém
afirma ou nega algo a respeito de um estado de coisas, como distinguir se esta afirmação ou
negação é um conhecimento – episteme – ou uma opinião – doxa? Se o que é tido como verdade
para cada indivíduo é aquilo que ele apreende do mundo através das sensações e tudo aquilo que um
determinado indivíduo apreende do mundo já é em si mesmo valorado pelo próprio indivíduo como
uma verdade, porque em sua ontologia em primeira pessoa ele é, ao mesmo tempo, o observador e o
juiz quem atribuirá o valor de verdade daquilo que é observado; como estabelecer que uma
afirmação ou negação é uma forma de conhecimento se aquilo que é considerado uma verdade para
um indivíduo o pode ser considerado falso por outro, se as verdades que um indivíduo toma para si
em relação à uma determinada coisa em si mesma só o é para ele mesmo, o que pode ser tomado
como falso para outro indivíduo em relação a mesma coisa em si mesma que é experimentada pelos
sentidos:

Sócrates - […] Se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação;
se as impressões de alguém não encontram melhor juiz senão ele mesmo, e se
ninguém tem autoridade para dizer se as opiniões de outra pessoa são verdadeiras
ou falsas, formando,ao revés disso, cada um de nós, sozinho, suas opiniões, que em
todos os casos serão justas e verdadeiras […] (PLATÃO, 1973c, pp. 46)

Para solucionar essa questão Platão (1973c), novamente, se utiliza da teoria das
reminiscências como argumento do indivíduo obter acesso ao conhecimento de forma segura.
Segundo, a teoria das reminiscências, as coisas que os indivíduos experimentam por meio das
sensações são caracterizadas como conhecimento porque ao indivíduo ter contato com a coisa que é
experimentada, ele, ao mesmo tempo, se recorda da ideia da coisa em si mesma que possui sua
essência no mundo inteligível, esse ato de recordar só é possível porque tanto o conhecimento –
episteme – quanto a psyché do indivíduo possuem a mesma essência. Além disto, ao experimentar
uma coisa através dos sentidos, o indivíduo que a experimenta o faz por similaridade em relação à
outras coisas que são semelhantes ou dissemelhantes a coisa em si mesma que é experimentada:

Sócrates – É a seguinte: No caso de nos perguntarem se é possível a alguém que


conheceu determinada coisa cuja lembrança ainda não se lhe apagou da memória,
no momento em que recorda dela não conhecer aquilo de que se lembra? Parece
que fiz um rodeio muito grande só para perguntar se quem aprendeu alguma coisa
não sabe do que se trata, quando se lembar dessa coisa?
[…]
Sócrates – Ora, de acordo com o que acabamos de expor, quem viu alguma coisa,
adquiriu o conhecimento dessa coisa.[…]
Sócrates – E depois? Não admites que há o que denominas memória?
[…]
Sócrates – Memória de nada ou de alguma coisa?
Teeteto – De alguma coisa, evidentemente.
Sócrates – De coisas apreendidas e sentidas, não será isso?
[…]
Sócrates – Por vezes, a gente se lembra do que já viu.
(PLATÃO, 1973c, pp. 48-9)

Quando um indivíduo exprime uma afirmação ou negação de alguma coisa a respeito do


mundo, nem sempre ele expressa a verdade sobre o que ele está inferindo. Quando alguém informa
uma opinião sobre um determinado estado de coisas ela o faz, em primeira instância, como uma
verdade para ela mesma e isso não significa que esta verdade individual será verdadeiro de fato.
Aqui podemos esclarecer as concepções de opinião – doxa – e conhecimento – episteme –
desenvolvidas por Platão (1973c, 2019) como auxílio para melhor compreender afirmações e
negações que podem ser tomadas com verdades para aquele que as declara e os outros indivíduos
que podem realizar o mesmo processo de semelhança ou dissemelhança para se chegar a ideia em si
mesma da coisa que é observada:

Sócrates – Em muitos outros pontos, também, Teodoro, pode ser atacada a tese de
que a opinião de qualquer pessoa é verdadeira. Porém quando se trata das
impressões presentes de alguém, fontes de sensações e de opiniões correlatas, é
mais difícil demonstrar que não são verdadeiras. É possível que o que eu digo não
tenha consistência e que elas sejam, de fato, irrefutáveis, estando com a verdade os
que as consideram evidentes e iguais a conhecimento. Não deixou, pois, o nosso
Teeteto de acertar no alvo, quando formulou a identidade entre sensação e
conhecimento. É de mister, assim, atacar de mais perto a questão, como nos
recomendou, aliás, o discurso em defesa de Protágoras, e examinar de novo este ser
inquieto e movediço, para percuti-lo e ver se emite som cheio ou de taboca
rachada. A batalha travada ao redor dele não é importância secundária nem
mobiliza pouca gente. (PLATÃO, 1973c, pp. 70)

O diálogo socrático, vai contra a máxima sofística de Protágoras de que “[…] o homem é a
medida das coisas [...]” (PLATÃO, 1973c, pp. 59), quando Platão (1973c) menciona opinião – doxa
– em sua obra Teeteto, ele o faz afirmando implicitamente que o indivíduo que opina leva seu
próprio julgamento e consciência como um critério para atribuir a verdade ou falsidade de uma
afirmação ou negação que ele o faz das coisas a respeito do mundo. Essa é a ideia geral de opinião –
doxa –, quando alguém opina, ela opina levando em consideração o seu próprio ponto de vista como
o parâmetro para trata aquilo que é dito como verdadeiro ou falso. A ideia de conhecimento –
episteme – é diametralmente oposta para Platão (1973c, 2019), ao se conhecer alguma coisa em si,
o indivíduo primeiro cria uma relação de similaridade da coisa que é experimentada pelos sentidos
em relação as outras coisas que podem ser semelhantes ou dissemelhantes àquilo que é
experienciado. Uma vez que o gênero e a espécie da coisa em si mesma que é experienciada é
apreendida e fixada na memória, o indivíduo é capaz de ter acesso e tomá-la como parâmetro
sempre que entra em contato novamente com a coisa em si mesma ou com outra coisa que pode ser
analisada pelo mesmo processo de similaridade. Nesse processo, não é o homem quem valora se
uma afirmação, por exemplo, é verdadeira ou falsa. Mas, é a própria ideia da coisa que é apreendida
por meio do processo de similaridade quem vai dizer se o que está sendo declarado é verdadeiro ou
falso. Logo, por mais que os indivíduos tenham opiniões – doxa – adversas a respeito das mesmas
coisas e cheguem a conclusões completamente opostas, há sempre algo que permanece o mesmo
para que as ideias das coisas em si mesmo sejam capazes de ser definidas por um grupo de
indivíduos chegue as mesmas conclusões a respeito daquilo que é experienciado por meio dos
sentidos: “[…] do encontro de ambos é que se geram as sensações e seus respectivos objetos,
passando a haver, de um lado, uma coisa com certa qualidade, e do outro, um sujeito que percebe.”
(PLATÃO, 1973c, pp. 74) Conhecer pressupõe algo além do que opinar, conhecer é um processo de
acessar com a psyché essas ideias universais que dão origem ao significado das coisas que existem
no mundo. (PLATÃO, 1973c, pp. 59-74)
Platão (1973c), por sua vez, distingue duas formas de opinião, uma associada ao
conhecimento – episteme – e a outra associada a opinião – doxa. Quando nos referimos a algo
levando em consideração apenas a nós mesmos como meio para se chegar a tal concepção, nós
estamos utilizando uma opinião – doxa – para formular um juízo. Mas, quando nossa opinião se
baseia na natureza das coisas – ou seja na essência das ideias que fazem parte do Ser e do
conhecimento –, nossa opinião é sempre verdadeira e fruto do conhecimento – espiteme –, além de
ter como base o conhecimento das ideias que figuram no mundo inteligível. No caso da opinião
falsa – doxa –, o indivíduo que pensa confunde seu pensamento em duas coisas existentes
afirmando que algo que ele está percebendo é outra coisa distinta: “[…] quer se pense nos dois, quer
num apenas, não será possível tomar um pelo outro. Quem define, por conseguinte, opinião falsa
como troca de representação, não diz coisa com coisa.” (PLATÃO, 1973c, pp. 86-7)
Logo, quando um indivíduo possui uma opinião falsa – doxa – a respeito de alguma coisa, o
indivíduo possui um desajuste entre o pensamento e a experiência de perceber o determinado objeto
e isto porque quem emite a opinião falsa se confunde, com duas ideias distintas a respeito de coisas
que ele conhece, ao aplicar o processo de similaridade. De forma análoga, quando um indivíduo
possui uma opinião verdadeira – episteme – a respeito de alguma coisa, o indivíduo realiza o
processo de similaridade, além de rememorar com sua psyché as ideias em si mesmas que
configuram aquilo que é percebido. Além de se utilizar o processo da similaridade e da teoria das
reminiscências, o indivíduo que possui a opinião verdadeira a deve enunciar aos outros indivíduos
por meio de uma explicação racional que possua sentido, com sílabas e sentenças conhecíveis por
todos. (PLATÃO, 1973b, pp. 93-103)

O argumento da cera e a analogia com a opinião falsa – doxa

Platão (1973c) sugere que exista uma cera limpa na alma que possua boa consistência e
associa a opinião fala – doxa – como a deixar dois selo de anel impressos na cera e estes selos
possuem a face de dois indivíduos distintos. Ao se avistar a marca que é impressa de longe, o aquele
que percebe as marcas dos selos busca conciliar as marcas que o selo deixou na cera com os traços
fisionômicos de cada indivíduo que possuem a face que é impressa na cera por meio dos selos dos
anéis, com o objetivo de tentar reconhecer qual é a marca impressa na cera e associá-la com sua
respectiva face. No entanto, pode ocorrer do indivíduo que percebe os traços fisionômicos dos selos
que imprimiram as marcas na cera se confunda e associe a impressão visual de um indivíduo na
marca da cera do segundo indivíduo ou que caia num truque de espelhos e se confunda enquanto o
lado direito e o esquerdo que estão impressas as marcas na cera. Ou, ainda, pode acontecer do
indivíduo que percebe a cera perceber apenas uma marca e associá-la ao indivíduo correspondente
sem conseguir associar o segundo indivíduo a sensação correspondente na marca da cera. Isso
implica que quando o indivíduo que percebe conhece e percebe aquilo que é percebido e se
confunde associando as marcas de cera com as faces erradas dos indivíduos, ele está produzindo
uma falsa opinião – doxa – por se confundir ao realizar o processo de similaridade e encontrar a
semelhança entre o que é percebido e aquilo que o objeto sensível se refere, enquanto que na
hipótese do indivíduo não perceber a segunda marca de cera e conseguir associar apenas a primeira
com a face do indivíduo correspondente, o indivíduo não pode estar enganado, visto que se ele
sequer percebeu a marca de cera, não há possibilidade dele se enganar-se sobre aquilo que ele não
conhece e, consequentemente, o é impossível de gerar opinião falsa – doxa:

Sócrates -Por isso, quando se tem a sensação do selo de um de vós, faltando a do


outro, e se aplica à sensação presente o selo ou marca da ausente em semelhantes
casos o pensamento erra. Em resumo: acerca do que nunca se soube nem nunca se
percebeu, não é possível, me parece, nem enganar-se nem formar opinião falsa, se
for realmente saudável nossa proposição. Mas justamente nas coisas que sabemos e
que percebemos é que a opinião vira e se muda, ficando revezes, falsa e verdadeira:
quando ela ajusta direta e exatamente a cada objeto o cunho e sua imagem, é
verdadeira: será falsa, quando os liga de través e obliquamente. (PLATÃO, 1973c,
pp. 91)

No caso do indivíduo conseguir identificar e gravar as sensações daquilo que é percebido


com as faces correspondentes, ele consegue, por meio das sensações, transmitir aquilo que é
percebido e imprimir aquele conhecimento na psyché. Quanto mais semelhança um indivíduo
possui daquilo que é percebido, mais profunda e nítida ficará a marca daquele conhecimento na
psyché do indivíduo, ou, utilizando a analogia da cera, com mais exatidão ele associará a marca da
cera com aquilo que a marca se refere. Quando o indivíduo perceber novamente, portanto, um
objeto sensível análogo aquele que ele percebeu e conseguiu imprimir seu significado na psyché,
com tão mais facilidade ele conseguirá se recordar daquele conhecimento sem se confundir com
aquilo que é percebido. Esta analogia da cera é revisitada por Descartes (1973d) em seu argumento
da cera em Meditações Metafísicas (DESCARTES, 1973d) e será abordado em um dos seguimentos
do Capítulo XXXXXXXX.

A loucura, a vigília e o sonho e sua relação com a apreensão das coisas pelo indivíduo
Platão (1973c), segue argumentando sobre a influência da loucura e dos sonhos sobre como
nós absorvemos e transmitimos o conhecimento, se uma pessoa que se julga louca ou que está
sonhando ao interagir com as ideias das coisas, sua psyché estará se relacionando com o
conhecimento – episteme – ou com a opinião – doxa. Ele afirma que em ambos os casos as opiniões
que se pode concluir com o auxílio das sensações são falsas porque as coisas no mundo que são
apresentados aos sentidos daquele que é louco ou está sonhando nunca são tal como elas parecem
para as outras pessoas. Quando as ideias se apresentam para os indivíduos, elas devem ser
apresentadas por uma relação de similaridade para que possam ser nomeadas e organizadas em
gêneros e espécies, essa é a forma de se produzir conhecimento com auxílio da psyché. No caso de
quem sonha ou é louco, as ideias se apresentam de forma distorcida o que faz com que as
conclusões que eles cheguem sobre as sensações que o mundo lhe apresentam sejam opiniões
falsas. No caso do sonho e da vigília, Platão (1973c) indaga que podemos quando estamos
dormindo nós nunca sabemos que aquilo é realmente um sonho e sempre julgamos estar acordados:

Sócrates – A que, a meu ver, já deves ter ouvido com frequência, sobre o
argumento decisivo que poderias apresentar a quem perguntasse de improviso se
neste momento não estamos dormindo e se não é sonho tudo o que pensamos, ou se
estamos realmente acordados e entretidos a conversar?
Teeteto – Em verdade, Sócrates, sinto-me indeciso na escolha do argumento, pois
em ambos os estados tudo se passa exatamente do mesmo modo. Nada impede de
admitir que o que acabamos de conversar tivesse sido dito em sonhos; e quando
imaginamos em sonhos contar que sonhamos, é admirável a semelhança com o que
se passa no estado de vigília.
Sócrates – Como vês, não é difícil suscitar controvérsia nesse terreno, pois é
possível duvidar até mesmo se estamos acordados ou dormindo. Além do mais,
como é igual o tempo que dedicamos ao sono e o que passamos acordados, em
ambos os estados sustenta nossa alma que são absolutamente verdadeiras as noções
do momento presente, de sorte que numa metade do tempo batemo-nos pela
veracidade de determinadas noções, e na outra metade pela de noções em todo o
ponto diferentes, mas em ambos os casos com igual convicção. (PLATÃO, 1973c,
pp. 41)

Em ambos os casos, Platão (1973c) admitirá que é a relação de semelhança ou


dissemelhança que definirá aquilo que pode ser tomado como conhecimento – espisteme – e aquilo
que pode ser tomado como opinião – doxa. Se o louco ou o sonhador ao nomear uma coisa, ele o
faz em uma relação de semelhança segundo o gênero ou a espécie da coisa em si mesma; estas
relações, como já abordamos anteriormente, não podem gerar novas ideias; mas dessa relação de
semelhança se deve chegar às ideias nelas mesmas – no caso da semelhança – ou no seu contrário –
no caso da dissemelhança. Além disso, esta parte do diálogo socrático será tomada como inspiração
por Descartes, como veremos em XXXX em seu argumento dos sonhos quando ele desenvolve o
processo da dúvida metódica para argumentar que os sentidos podem nos enganar e, devido a isto,
não são uma fonte confiável de transmitir e produzir o conhecimento.

A relação entre o mundo sensível e o mundo inteligível

O mundo sensível é uma representação do mundo inteligível. No mundo inteligível estariam


todos os conceitos originários o mundo sensível seria uma representação do mundo inteligível no
sentido de que todos os seres existentes no mundo físico seriam cópias imperfeitas dos conceitos
existentes no mundo inteligível, quando o demiurgo ambos os mundos ele o fez à sua imagem e
semelhança, mas não à semelhança das coisas particulares, desta forma, o demiurgo criou o mundo
à imagem e semelhança do universo. Se levarmos em consideração as coisas ou seres particulares o
demiurgo consiste na soma de todas os seres que existem no mundo:

Então, será correcto declarar que há um único céu ou será mais correcto dizer que
há vários ou até infinitos? Há um único, já que foi fabricado pelo demiurgo de
acordo com o arquétipo. É que aquele que abrange todos os seres inteligíveis não
pode, de modo algum, vir em segundo lugar, a seguir a outro. Caso contrário,
deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois, do qual esses dois seriam
uma parte, e seria mais correcto dizer que o mundo não se assemelharia a esses
dois, mas sim àquele que os abrangia. Portanto, foi para que se assemelhasse ao ser
absoluto na sua singularidade, que aquele que fez o mundo não fez dois nem uma
infinidade de mundos; deste modo, o céu foi gerado como unigénito – assim é e
assim continuará a ser.(PLATÃO, 2011, pp. 99)

De forma análoga ao pensamento de Empédocles, Platão (2011) afirma que o mundo


sensível tenha surgido a partir dos quatro elementos: “Foi a partir da totalidade do fogo, da água, do
ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu [...]” (PLATÃO, 2011, pp. 199)
Haveriam mais sete mundos iguais ao mundo sensível, todos esses mundos estariam em constante
movimento de rotação e translação e dos sete mundos somente o nosso possuiria intelecto, porque
apenas ele estaria mais próximo do intelecto e do pensamento. O mundo sensível teria sido
construído por meio da harmonia das músicas que deram origem a constituição dos quatro
elementos e ao movimento dos corpos celestes no firmamento. A harmonia musical é um elemento
chave que os gregos utilizam para explicar a relação do cosmos, em Platão (2011), essa influência é
notoriamente pitagórica, quando Pitágoras descobriu a relação entre os graus das escalas musicais,
ele teria associado que o número era o princípio gerador do cosmos. Além disto, utilizar a harmonia
como o elemento motor do cosmos e dos elementos para a constituição do mundo sensível e do
universo possui uma grande influência da cultura órfica e dos deuses ctônicos na filosofia platônica,
lembrando que, como vimos em XXXXXXXXX Orfeu era um semi-deus bardo que tocava lira e
foi incorporado nos cultos dionisíacos. (PLATÃO, 2011, pp. 99-103)
Haveria uma alma individual e geradora do mundo das ideias, tal alma seria gerada e
constituída através do intelecto do demiurgo, é responsável por gerar o mundo das ideias e por tudo
aquilo que é divino e racional. Possuem dois componentes denominados: o Mesmo, o Outro. Além
destes elementos serem divididos e unidos de tal forma que as almas girariam em torno de si
próprio. Ambos os componentes que teriam a alma origem e estariam associados a origem do
mundo sensível, se moveriam em linha reta e disseminando pelo corpo as crenças, e estariam
associados na forma da psyché – a alma racional . Além disso, de conceber o saber e o intelecto em
relação a como definir os outros seres, sendo, assim, formas de conhecer o mundo sensível.

Deste modo, entrelaçada em todas as direcções, desde o centro até à extremidade


do céu, abarcando-o do exterior num círculo, e ela girando em torno de si mesma, a
alma deu início ao começo divino de uma vida inextinguível e racional para todo o
sempre. Assim foi gerado o corpo do céu, que é visível, e a alma, invisível e que
participa da razão e da harmonia e é a melhor das coisas engendradas pelo melhor
dos seres dotados de intelecto que são eternamente.
(PLATÃO, 2011, pp. 107-8)

Platão denomina o mundo inteligível em Timeu (PLATÃO, 2011) como o Ser, que é eterno e
este seria o local onde os conceitos eternos e imperecíveis, tais conceitos seriam considerados a
essência de todas os seres que habitam o mundo sensível. Demiurgo, dessa forma, tornou também o
mundo sensível eterno, isso porque o segundo é uma representação imperfeita do primeiro: “Como
acontece que este é um ser eterno, tentou, na medida do possível, tornar o mundo também ele
eterno.” (PLATÃO, 2011, pp. 109) A natureza do Ser ou mundo inteligível é ser eterno, enquanto
que apenas o mundo sensível em si mesmo é eterno e estaria em constante movimento, como sendo
uma imagem móvel da da eternidade, ele constituiu o tempo no mundo sensível, assim se é possível
estabelecer os dias, meses e as estações. O deveniente, por sua vez, seria o componente responsável
pelo movimento nas coisas em relação à passagem de tempo. Deveniente e devir são conceitos
distintos, pois o primeiro está relacionado aos acontecimentos em relação aos seres no mundo e o
segundo estaria relacionado ao tornar-se em um sentido de se transmutar para outro ser – a semente
que, se torna a árvore, por exemplo. (PLATÃO, 2011, pp. 109-10)
A alma do universo – cosmos – teria sido originada a partir da harmonia entre três espécies
de seres vivos que não podem ser dissolvidos e é composto de harmonia. As três espécies seriam
mortais e estão indiretamente associadas ao Sol, a Lua e a Terra – Rheia ou Géia. Estas três espécies
de seres vivos teriam o mesmo poder do que o demiurgo. A necessidade da mortalidade desses seres
está na união do universo como um todo, além disso eles as três espécies de seres vivos seriam
responsáveis pela formação dos outros seres-vivos, proporcionando-os o alimento. Após a
constituição do todo do universo, sua alma se dividiu em um número proporcional ao número de
astros no céu. (PLATÃO, 2011, pp. 116-8)
A concepção de mente em Platão

Os indivíduos, por sua vez, seria um dos frutos dessa criação da alma do universo. O corpo
dos indivíduos estariam dividas em três partes: uma sensação cogênita associada a violência –
psyché –, uma sensação que promove um desejo amoroso associado ao prazer e sofrimento –
concupiscente – e uma última sensação responsável pelo temor e a cólera – colérica. O indivíduo
que conseguir comandar as duas últimas em detrimento da primeira viverá uma vida justa e
harmoniosa enquanto que o indivíduo que for comandado pelas duas últimas viverá de forma
injusta. Se o indivíduo conseguir controlar as duas últimas retornará a morada do Ser – o mundo das
ideias – e nesta morada terá uma vida feliz e conforme. Mas se for dominada pelas duas últimas
será dominado por uma natureza animal de acordo com todo o mal que o pratique, além de sua alma
regressar ao mundo sensível. Platão (2011) aqui faz uma referência indireta a teoria da
metempsicose, em que se é necessário negar os prazeres do mundo sensível para se garantir a
eternidade no mundo das ideias. (PLATÃO, 2011, pp. 118-20)
O demiurgo criou a psyché anterior ao corpo, que possui a mesma natureza do que o Ser ou
mundo das ideias e, consequentemente, anterior à própria criação do mundo físico. Da forma que a
psyché é indivisível e imutável enquanto o corpo é divisível e mutável. No corpo haveriam duas
outras almas, além da psyché, denominadas colérica e concupiscente e é uma característica da
psyché dominar e governar as duas outras almas, assim como, todo o mundo sensível. Quando o
demiurgo criou as três almas ele o fez de forma que ele criou uma unidade a partir das três almas.
Estando a psyché alocada na cabeça do indivíduo e tendo como função a nossa consciência, a
colérica está alocada no tórax do indivíduo e sendo responsável pelo controle das emoções do
indivíduo e a concupiscente na pélvis está alocada na pélvis do indivíduo e é responsável pelos
desejos do indivíduo. As três almas são invisíveis enquanto que o corpo é visível:

Por meio de uma das partes, digamos, o homem aprende; com a outra, encoleriza-
se; quando à terceira, dada a variedade de formas, e por não termos encontrado um
nome único que lhe convenha, designamo-la pelo que apresenta de mais notável e
predominante: damos-lhe o nome de apetitiva, por causa da veemência dos desejos
relacionados com o comer, o beber, o amor e demais apetites do mesmo gênero.
Denominamo-la, também, amiga do dinheiro, por ser principalmente com dinheiro
que se satisfazem os desejos dessa espécie. (PLATÃO, 2000, pp. 413)

Apesar de o demiurgo ter criado três almas que habitam o corpo, há uma relação hierárquica
em que a psyché é alma que governa o corpo enquanto que a alma colérica e a concupiscente são
responsáveis pelas emoções e os desejos do indivíduo. Ambas as últimas almas são capazes de
enviar seus estímulos para tentar influenciar na psyché, no entanto. Como já temos mencionado
indiretamente, a psyché possui a mesma essência que o mundo inteligível, não fazendo parte,
portanto, por essência do mundo sensível; enquanto que a alma colérica e a concupiscente são
corpóreas, fazem parte do mundo sensível e morrem junto ao corpo quando este perece. É papel da
psyché negar as emoções e os desejos que são fornecidos com estímulos pelas duas outras almas –
colérica e concupiscente – se for de seu intuito se desprender do mundo sensível para retornar ao
mundo inteligível sem nunca mais voltar, se acaso ela não negar os estímulos das duas outras almas
corpóreas, a psyché do indivíduo que não realizou esse processo voltará para o mundo sensível.
Esse processo de negação dos desejos e das emoções com o objetivo de acessar o mundo inteligível
com sua psyché após a morte é denominado metempsicose.(PLATÃO, 2000, 170-1)
Assim como na criação do mundo sensível, como vimos em A relação entre o mundo
sensível e o mundo inteligível, a psyché e sua ação sobre o corpo com o intuito de gerar
movimento acontece em uma relação de harmonia musical. O movimento do corpo físico, assim
como a sua formação tripartida com o objetivo de alocar as três almas no corpo – psyché, colérica e
concupiscente – foi criada a partir de uma relação harmônica. Platão (2011), afirma que a harmonia
é parte dos movimentos de nossa psyché e configura a racionalidade e a concordância da mesma, é
através dessa relação harmônica que se estabelece o intelecto na psyché:

Os movimentos congéneres do que há de divino em nós são os pensamentos e as


órbitas do universo. É necessário que cada um os acompanhe, corrigindo, através
da aprendizagem das harmonias e das órbitas do universo, as órbitas destruídas nas
nossas cabeças na altura da geração, tornando aquilo que pensa semelhante ao
objecto pensado de acordo com a natureza original, e, depois de ter feito esta
assimilação, atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses
e para o presente e para o futuro. (PLATÃO, 2011, pp. 207-8)

Em Fédon (PLATÃO, 1973a), o argumento da psyché interpretada como uma harmonia é


enfatizado por Platão (1973a). Neste argumento, ele compara o corpo há uma lira e a psyché com
uma harmonia executada pela lira – corpo. Por mais que a lira se quebre – corpo – ou se lhe estoure
uma corda, em uma alusão a morte física do corpo, a harmonia – psyché – que é executada pela lira
sempre existirá e não é destruída juntamente com a lira ou a corda que é arrebentada, podendo ser
executada sempre que alguém se lembrar da composição da harmonia: “Não, seria o que diriam; é
necessário que a harmonia continue ainda a existir em alguma parte, embora a madeira da lira e suas
cordas apodreçam, à harmonia nada sucederá!” (PLATÃO, 1973a, pp. 98) Este argumento é traçado
por Platão (1973a) com o objetivo de se ilustrar a imortalidade da psyché em relação ao corpo e,
como veremos em A teoria da metempsicose e o domínio da psyché em relação às duas outras
almas, é utilizada para ilustrar a imortalidade da alma e a forma com que a psyché, após passar pelo
processo de purificação, atinge eternamente o mundo inteligível. Novamente, tal como abordamos
em XXXXXXXXXX, Platão (1973a) estabelece indiretamente em sua argumentação uma
proximidade com a religião órfica de sua época, os deuses ctônicos e os cultos dionisíacos ao
utilizar a lira como exemplo. (PLATÃO, 1973a, pp. 97-8)
Depois de fabricar a psyché, o demiurgo fabricou cada corpo de cada indivíduo e introduziu
a psyché imortal no corpo de cada indivíduo e o sob uma influência de Empédocles, o movimento
do corpo seria responsável em absorver as sensações para o corpo através do sangue para a mente –
terra, fogo, água e ar. A psyché, por sua vez, é capaz de acessar o conhecimento e das sensações das
coisas através da imitação. Esse movimento estaria em direção ao contrário do movimento do
Mesmo, o impedindo de progredir e controlar a psyché, além de desestabilizar o Outro. Toda essa
relação que gera o movimento na psyché é gerada primeiramente sem o intelecto no corpo que e ao
se alocar no corpo físico ela tem o poder de governar as duas outras almas – colérica e
concupiscente – se conseguir governá-las, a psyché não mais se alocaria no corpo físico, vivendo
eternamente no Ser – ou mundo das ideias. (PLATÃO, 2011, pp. 120-3)

Psyché, a alma consciente

Psyché, a primeira alma das três que foram criadas pelo demiurgo para habitar o corpo do
ser humano, é responsável pelo intelecto e a consciência do indivíduo, de tal forma que se levarmos
em consideração o que foi discutido no Capítulo 1 se pode concluir que a psyché para Platão está
mais próxima da concepção religiosa de onmós por que ambas são responsável pela consciência e
são responsáveis pela manifestação de crenças, desejos e volições por meio da manifestação das
entidades ou dos daemons. (PLATÃO, 2011, pp. 107-8)
O principal componente que distingue a psyché das duas outras almas – colérica e
concupiscente – é o intelecto e este é responsável de perseguir o saber e buscar as causas primeiras
da racionalidade da natureza enquanto que as duas outras almas produzem coisas sem ordem. O
intelecto possui uma natureza idêntica ao demiurgo e o mundo das ideias – ou o Ser – e esta seria a
característica principal que tornaria a psyché sendo originária e possuindo a mesma natureza do que
o mundo das ideias. Outro ponto que, na filosofia de Platão (2011), é uma alusão indireta a teoria da
metempsicose no sentido de que só é possível a psyché transmigrar para o mundo das ideias ao
negar as dua outras almas – colérica e concupiscente. (PLATÃO, 2011, pp. 126-7)
O demiurgo, por sua vez, concede a visão como principal componente corpóreo como
instrumento de análise do intelecto. Isto significa que à visão está intrinsecamente associada à
atividade intelectiva, mesmo que a visão, de alguma forma, seja alterada. Através da visão
conseguimos analisar o movimento dos outros indivíduos e do demiurgo e, assim, conseguir imitá-
los. A voz e a audição e o raciocínio seguem a mesma óptica de análise. A fala, por sua vez, tem um
papel fundamental em nossa interação com os outros, quando ela é utilizada como um meio da
psyché. (PLATÃO, 2011, pp. 126-9)
Através do intelecto da as ideias são incapazes de serem sentidas por meio do mundo das
ideias, apenas são capazes de ser inteligidas e esta relação acontece de forma contrária se levarmos
em conta a opinião. A opinião não é diferente da intelecção e aquilo que apreendido por um dos
nossos sentidos é, ao mesmo tempo, apreendido de uma forma segura. Mas, opinião e a intelecção
possuem naturezas diferentes, por a primeira estar associada a persuasão e a segunda estar associada
a aprendizagem. Logo, as ideias são provenientes, portanto, do intelecto e são imutáveis, não
estando sujeitas ao devir ou a destruição e a opinião e os sentidos gera apreensões sensíveis e
devenientes, isto é, que estão associadas ao movimento e as passagens de tempo em uma linha
cronológica. Nesta parte, podemos encontrar uma tentativa de unificar o pensamento de Parmênides
e Heráclito o que, posteriormente, será reelaborado por Platão (2011) como doxa – opinião – e
espisteme – conhecimento. Ao tentar unificar o pensamento de ambos os autores, Platão (2011)
demonstra uma grande afinidade para com o pensamento de Parmênides. Ambas as ideias e a
opinião são características intrínsecas da psyché e são manifestas pela mesma apenas quando
estamos conscientes – nunca por meio dos sonhos. A característica intrínseca das ideias – daquilo
que é – esta em promover o discurso verdadeiro por meio da exatidão, visto que para algo ser
definido ele deve ser apenas a mesma coisa e nunca duas coisas ao mesmo tempo:

Sendo assim, convenhamos que há uma primeira espécie que é imutável, não está
sujeita ao devir nem à destruição, que não recebe em si nada vindo de parte alguma
nem entra em nada, seja o que for; não é visível nem de outro modo sensível, e
cabe ao pensamento examiná-la. Há uma segunda, que tem um nome igual àquela,
que é sensível, é deveniente, está sempre em movimento, é gerada num
determinado local, para, de seguida, se dissolver de novo, além de que é apreendida
pela opinião e pelos sentidos. (PLATÃO, 2011, pp. 137)

A psyché é a alma que deve nos dominar, para isto, o demiurgo dotou cada um dos
indivíduos com um daemon para habitar o nosso corpo. Nesse local ele desenvolveu a gênese da
psyché como um alicerce incorpóreo que mantém o nosso corpo de forma erecta. A psyché, por sua
vez, é conectada com as duas outras almas – colérica e concupiscente –, o que faz com que ela
possa ser dominada pelas emoções ou pelos desejos do mundo sensível. Se o indivíduo conseguir
controlar as emoções e os desejos proporcionados pelas duas outras almas, então, ele é capaz de
acessar os conceitos divinos do mundo inteligível.

A percepção do mundo por meio da psyché


Segundo Platão (1973c), nós percebemos as coisas que estão no mundo por intermédio da
psyché, isto é, quando conseguimos diferenciar um som grave ou agudo, quando temos um objeto
percebido pelo nosso campo de visão ou quando tateamos alguma coisa e conseguimos definir o
aspecto de sua composição, é por meio da psyché que nós acessamos as ideias das coisas em si e
conseguimos nomear aquilo que é percebido. Os nossos órgãos dos sentidos apreendem aquilo que
é percebido e, como abordamos em Uno, psyché e as ideias das coisas em si mesmo, utiliza o
processo de semelhança e dissemelhança para associar aquilo que é percebido com as ideias nelas
mesmas. Dessa forma, é por semelhança de espécie e gênero que conseguimos identificar com
auxílio da nossa psyché que aquilo que enxergamos possui a coloração verde, ou o que estamos
tocando com nossas mãos está molhado ou é áspero:

Teeteto – Referes-te a ser e a não-ser, semelhança e dissemelhança, identidade e


diferença, e também à unidade e aos mais números que se lhe aplicam.
Evidentemente, tua pergunta abrange, outrossim, o par e o ímpar e tudo o mais que
lhes vem no rastro, desejando, tu saber por intermédio de que parte do corpo
percebemos tudo isso com a alma. (PLATÃO, 1973c, pp. 79)

Podemos afirmar que, no caso dos objetos percebidos por alguns dos órgãos dos sentidos, os
órgãos dos sentidos transmitem aquilo que é percebido para a nossa psyché que, encontra a
semelhança ou a dissemelhança de acordo com a memória que temos das experiências dos objetos
que experimentamos por meio dos sentidos anteriormente. Se acaso não houver uma memória
prévia em relação aos objetos, nós buscamos encontrar por similaridade algum outro objeto que
mais se aproxima daquele que nós buscamos identificar – é assim, por exemplo, que conseguimos
identificar as cores, mesmo que nós não saibamos qual é o objeto que possui a coloração em si.
Além disso, as ideias das coisas em si mesmas não possuem uma relação direta com aquilo que está
sendo observado no mundo, essa relação só acontece por meio de similaridade com auxílio da
memória. (PLATÃO, 2019, n.p)
Em relação aos números e aos conceitos da matemáticos, o processo ocorre de uma forma
distinta, porque estas ideias não estão no mundo sensível, essas ideias fazem parte exclusivamente
do mundo inteligível e é através da psyché que conseguimos concebê-las e defini-las. Isto é,
podemos aplicar a definição de um, dois ou três ao numerarmos objetos que percebemos por meio
da visão, mas os numerais que aplicamos a realidade em si mesmos não existem no mundo sensível,
eles são abstrações de nossa psyché e não possuem uma correspondência com a realidade, ao
contrário da ideia de vermelho ou da ideia de cavalo, por exemplo, que possuem correspondência
com a realidade e, por mais que possuam sua definição enquanto essência no mundo das ideias, nós
conseguimos encontrar esses objetos no mundo sensível, identificá-los e percebê-los por meio dos
nossos órgãos dos sentidos: “[...] se te parece realmente que algumas coisas a alma investiga por si
mesma e outras por meio das diferentes faculdades do corpo.” (PLATÃO, 1973c, pp. 79)
Ao perceber, seja objetos externos por meio dos órgãos dos sentidos, seja por meio do
raciocínio no caso das abstrações matemáticas, aquele que percebe examina o Ser com sua psyché e
as compara por meio do processo de similaridade com o contato que já teve com aquelas ideias
através da memória do passado, com a ideias que estão no presente e com as experiências que
podem vir a ser no futuro. Ao realizar esse processo, o indivíduo que percebe está identificando a
essência do objeto que é percebido e identificar a essência do objeto percebido é, ao mesmo tempo,
encontrar a sua verdade em relação ao conhecimento – no sentido do conhecimento que possui sua
essência no mundo das ideias. A verdade em relação ao objeto nunca é obtida através dos sentidos,
sendo necessário utilizar a psyché, que possui a mesma essência que o mundo inteligível e,
consequentemente, o conhecimento e o Ser, para relembrar a essência das coisas que percebemos no
mundo e, então, nomeá-las e produzir um significado:

Sócrates – O seguinte, tomando o assunto do começo e depois de fazer algumas


distinções. O que se sabe por ter a lembrança impressa na alma, porém não se
percebe, não é possível tomar por outra coisa que se sabe e de que se tenha a
impressão, porém não se percebe; como também não o será tomar o que se sabe
pelo que não se sabe nem possui a impressão, ou o que não se sabe, por algo que,
do mesmo modo, não se sabe, ou, ainda, que o que não se sabe seja o que se sabe.
Não é, também possível imaginar que o que se percebe realmente seja outra coisa
também percebida, ou que o que se percebe seja o que não se percebe, ou o que não
se percebe, o que se percebe; e o inverso: o que não se percebe seja o que se
percebe. Há mais: o que se sabe e se percebe e possui a marca conforme a
respectiva impressão, imaginar que seja outra coisa que se conhece e percebe e
possui a marca de acordo com a impressão é ainda mais impossível do que os casos
anteriores. Mais: não é possível do que os casos anteriores. Mais: não é possível
confundir o que se sabe e percebe e de que se conserva a impressão fiel, como
aquilo que se sabe, como também o que se sabe e percebe e de que se conserva a
impressão fiel, com aquilo que se sabe, como também o que se sabe e percebe e
possui a impressão exata com o que se percebe, nem ainda, o que não se sabem
nem se percebe com o que não se sabe nem se percebe, como também o que não se
sabe nem se percebe com o que não se percebe. (PLATÃO, 1973c, pp. 88-9)

Novamente, o ato de perceber um objeto sensível, para Platão (1973c), envolve se recordar
das ideias das coisas que nós entramos em contato no mundo sensível. A psyché do indivíduo que
percebe tem a mesma essência que a do mundo inteligível e tanto o conhecimento em si mesmo –
episteme – e as ideias das coisas que podem ser percebidas no mundo sensível também possuem a
sua essência no mundo inteligível, isto é, psyché, conhecimento e as ideias das coisas são
originárias do mesmo plano e, portanto, possuem a mesma natureza. Quando nossos órgãos dos
sentidos percebem um determinado objeto, nossa psyché rememora as lembranças que ela possui
das ideias das coisas em si mesmo. Além disso, ela também rememora toda a experiência que o
indivíduo teve em contato com aquele determinado objeto pelo processo de similaridade. Mesmo
que a ideia da coisa que é percebida e a coisa nela mesma estejam separadas e a primeira não
possua influência causal em relação à segunda, necessitando, dessa forma, do processo de
similaridade para se chegar à ideia da coisa em si mesma, o indivíduo que percebe, ainda assim,
possui as recordações das ideias das coisas, porque estas fazem parte do mundo inteligível e,
consequentemente, possuem a mesma essência. O processo de se relembrar das ideias das coisas
que existem no mundo quando percebidas chama-se teoria das reminiscências. Nesta parte, temos
uma aproximação com a filosofia kantiana, como veremos no Capítulo XXXXXX, quando Kant
infere que ao se compreender as razões do fenômeno que é percebido, o indivíduo imprime um
significado sobre aquele fenômeno ao conseguir compreendê-lo por meio da razão. (PLATÃO,
1973c, pp. 80-9)

A relação entre a psyché e a nomeação das coisas em si mesma enquanto sentido e


referência

De acordo com o que abordamos em Uno, psyché e as ideias das coisas em si mesmo e no
seguimento anterior A percepção do mundo por meio da psyché, Platão (1973b) desenvolve uma
teoria a respeito de como nomear por gênero e espécie as coisas que existem no mundo. Em Crátilo
(1973b), ele desenvolve a concepção de que se o indivíduo que nomeia as coisas utilizar o processo
de similaridade e o fizer utilizando o intelecto da psyché como um instrumento de análise e não
exclusivamente os sentidos, ele conseguirá chegar ao conhecimento verdadeiro – espisteme – em si
mesma e, consequentemente, chegara sua essência. Portanto, para Platão (1973b) nomear um
objeto, além de ser considerado uma ação como cavalgar ou tocar um instrumento, é explicitamente
identificar a sua essência e apresentar a sua essência para o mundo, para que os outros indivíduos
sejam capazes de conhecer a essência daquele objeto:

Sócrates – Como! Se eu dou nome a uma coisa qualquer, digamos, se ao que hoje
chamamos homem, eu der nome de cavalo, a mesma coisa passará a ser
denominada homem por todos, e cavalo por mim particularmente, e, na outra
hipótese, homem apenas para mim, e cavalo para todos os outros? Foi isso o que
disseste?
[…]
Sócrates – Logo, é possível dizer por meio de palavra o que é e o que não é.
[…]
Sócrates – E a proposição verdadeira, é verdadeira no todo, não sendo verdadeira
em suas partes?
Hermógenes – Não; as partes também o são.
Sócrates – Porventura só serão verdadeiras as partes grandes, sem que o sejam as
pequenas, ou todas o são igualmente?
[…]
Sócrates – E achas que em qualquer proposição pode haver parte menor do que o
nome?
Hermógenes – Não; o nome é parte menor.
[…]
Sócrates – Assim, o nome por que todos designam um objeto é o nome desse
objeto.

Dessa forma, o nome seria a menor parte de uma proposição e, quando aplicado de forma
adequada, apresentaria a essência do objeto que é nomeado e isto porque o indivíduo que nomeia
utiliza os processos de similaridade por meio das recordações das memórias que ele teve de acordo
com as experiência passadas que ele tem do objeto sensível e porque a psyché, por ter a mesma
essência que as ideias das coisas do mundo sensível e o Ser, ao nomear alguma coisa ela nomeia
necessariamente a essência daquilo que é nomeado e isto se, é claro, a psyché não se confundir em
relação a rememoração do objeto em relação as suas experiências passadas e nomear o objeto
sensível de acordo com as recordações de outro objeto em questão. Platão (1973b) associa, de
maneira indireta, o ato de nomear as coisas com o destino, em uma metáfora de se referir a essência
de um objeto enquanto ao seu destino – ou sua finalidade –, isso é perceptível na passagem de
Crátilo (1973b) quando ele associa o ato de nomear com a prática de tecer:

Sócrates – E, agora, se te perguntasse: que instrumento é a lançadeira? Não é um


instrumento de tecer?
[…]
Sócrates – E que fazemos, quando tecemos? Não separamos da trama a urdidura,
que estão misturadas?
[…]
Sócrates – E a respeito do nome, poderias dar resposta idêntica? Se dizemos que o
nome é instrumento, que fazemos quando designamos alguma coisa?
[...]
Sócrates – Não damos informações uns aos outros, e não distinguimos as coisas,
conforme sejam constituídas?
[…]
VIII – Sócrates – O nome, por conseguinte, é um instrumento para informar a
respeito das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da teia.
(PLATÃO, 1973b, pp. 125)

Como foi abordado em XXXXXXXX no Capítulo 1, fazia parte da visão de mundo


religiosa da época a crença de que as três Moiras, mulheres cegas que possuíam apenas um olho que
era por elas compartilhado, teciam o destino dos indivíduos em seu tear e quando elas julgassem
que algum desses indivíduos devesse morrer, ela removeria o fio do tear. Platão (1973b) utiliza o
tear como forma de analogia em relação ao ato de nomear porque ele é justamente o instrumento
utilizado pelas Moiras para tecer o destino dos indivíduos na visão de mundo da religião na Grécia
antiga, sua analogia entre o ato de tecer e o ato de nomear os objetos está indiretamente relacionado
em associar a concepção de essência ou natureza das coisas com a concepção de destino no sentido
de finalidade. Como se ao nomear um objeto, você estivesse, ao mesmo tempo, definindo o sentido
da existência dele em relação ao mundo. Além disso, no seguimento do diálogo socrático, ele
associa o ato de nomear um objeto com o ato de furar com um furador e o ato da forja, o segundo,
em uma alusão indireta ao deus Hefesto. Todas essas comparações em sua analogia são utilizadas
para, no diálogo socrático proposto por ele, associar o ato de nomear um objeto com o ato de criar
um objeto. Logo, quando um artífice – seja um forjador ou um tecelão – cria um objeto – aquilo que
é tecido ou forjado – ele não faz segundo suas fantasias pessoais, mas ele o faz segundo sua
natureza – essência –, isto é, quando ele pensa em fabricar um objeto, ele o faz segundo uma
finalidade fixa no mundo – no caso da roupa é para aquecer no frio, no caso da espada é para se
proteger contra invasores –, de forma análoga, quando alguém nomeia um objeto no mundo, ele o
faz com o objetivo de identificar a essência da coisa em si mesma. (PLATÃO, 1973b, pp. 122-30)
Dessa forma, quando um indivíduo conhece o nome de um objeto que é percebido e, então,
nomeado por este, ele, ao mesmo tempo, conhece a coisa em si mesma ou, em outras palavras, ele é
conhecedor da essência daquilo que é percebido. Consequentemente, nomear um objeto é
reconhecer a finalidade daquele objeto no mundo. Novamente, tudo isso acontece, como abordamos
em Uno, psyché e as ideias das coisas em si mesmo, por meio do processo de similaridade, onde o
indivíduo que percebe o objeto sensível o identifica através da semelhança ou dissemelhança que
este possui em relação às experiências que ele possui do passado em relação ao gênero e a espécie
do objeto e às reminiscências que sua psyché possui das ideias em si mesmo daquilo que é
percebido. (PLATÃO, 1973b, pp. 187)

Daemon e sua relação com a psyché

Outro elemento que Platão (1973a, 1988) retira da religião grega é a concepção de daemon
associada a psyché humana. O daemon era interpretado como um gênio, uma entidade, que
acompanhava a psyché do indivíduo no decorrer de sua vida e conduziria a psyché do morto até o
Hades após a sua morte. Dessa forma, as virtudes que um indivíduo possuísse, em sua grande
maioria não eram de fato originárias da psyché do indivíduo, mas elas eram qualidades concedidas
pelo próprio daemon que segue o indivíduo à sua psyché:

[…] a divindade demonstra-nos de um modo que não deixa dúvidas, que estes
belos poemas não são humanos nem são obras de homens, mas que são divinos e
dos deuses, e que os poetas não passam de intérpretes dos deuses, sendo possuídos
pela divindade, de quem recebem a inspiração. (PLATÃO, 1988, pp. 55)

Quando um músico executava uma composição, um ator interpretava um papel em uma peça
de teatro ou um orador proferisse um discurso em praça pública, não era o onmós do indivíduo
quem estava animando sua consciência para que ele realizasse sua função, mas sim o próprio
daemon que estava se manifestando no indivíduo através da sua mente e concedendo a habilidade
de executar aquela função em específico. Além disso, os daemons poderiam influenciar os
indivíduos até que eles manifestassem vícios ou defeitos irreversíveis no onmós dos indivíduos, as
Queres são um exemplo de entidades que manifestam sentimentos mortais que são levados até as
últimas consequências e culminam com a morte do indivíduo que manifesta esses sentimentos, a
hybris – que não é o único sentimento dessa espécie, mas é o mais famoso pelo episódio homérico
da ira e vingança de Aquiles – é um exemplo clássico de manifestação de vícios no onmós de um
indivíduo. (PLATÃO, 1988, pp. 49-55)

A teoria da metempsicose e o domínio da psyché em relação às duas outras almas

Platão (1973a), sobre forte influência pitagórica, utiliza a teoria da metempsicose como
forma de estabelecer o domínio que a psyché deve possuir em relação às duas outras almas –
colérica e concupiscente. Segundo essa teoria, se é necessário negar a manifestação das duas outras
almas corpóreas em detrimento de uma vida voltada para a contemplação do intelecto, uma vez que
o indivíduo consegue negar a manifestação das emoções, dos desejos e dos sentidos e utiliza
somente a razão como meio para se contemplar a vida, sua psyché, ao morrer, é capaz de se
desprender do mundo sensível de uma forma em que ela nunca mais retornará e acessará o mundo
inteligível eternamente para viver com o Ser e as ideias das coisas que existem no mundo sensível:

Sim, quando estivermos mortos, tal como o indica o argumento, e não durante a
nossa vida! Se, com efeito, é impossível, enquanto perdura a união com o corpo,
obter qualquer conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível
conseguir de nhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando
estivermos mortos, porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em
si mesma e por si mesma – mas nunca antes. Além disso, por todo o tempo que
durar nossa vida, estaremos mais próximos dos aber, parece-me, quando nos
afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em situações
de necessidade premente quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados
por sua natureza, mas pelo contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim
até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E quando dessa
maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados da demência
do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres parecidos conosco;
e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. (PLATÃO,
1973a, pp. 74)

O processo da psyché se desprender dos desejos, das emoções e das influências do aparato
perceptivo em detrimento de uma vida voltada única e exclusivamente para a contemplação do
intelecto é um processo que, para Platão (1973a) é denominado purificação. Ao se purificar, a
psyché se desliga do próprio corpo para viver no mundo inteligível. Cabe lembrar, que é uma
tradição socrática interpretar a vida como uma doença que só tem sua cura a partir da negação dos
prazeres materiais e com a própria morte. O processo da purificação e da cura com a morte fica
evidente nas palavras de Sócrates no final da obra de Fédon (1973a) em que ele, enquanto discute
sobre o amor e o destino da psyché, decide encerrar o diálogo e tomar cicuta, pois já estava
condenado a morte pelo tribunal ateniense, suas últimas palavras antes de tomar o veneno foram:
“Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida.” (PLATÃO, 1973a, pp.
132) Asclépio, é um deus grego responsável pelas grandes curas na medicina e sempre que um
cidadão grego antigo se sentia curado de uma grande enfermidade, ele sacrificava um galo como
oferenda religiosa ao deus que lhe havia concedido a cura. Ao dizer para seu discípulo pagar a sua
dívida com a divindade, ele afirma a sua crença de que a vida é uma doença e que a morte é o
processo de purificação da psyché enquanto passagem para o mundo inteligível. (PLATÃO, 1973a,
pp. 75-8)

Colérica, a alma corpórea responsável pelas emoções

Platão (2011) define a alma colérica como uma forma de alma corpórea, isto é, que surge
com o corpo no mundo sensível e é responsável pelas emoções do indivíduo. Ela está alocada no
tórax do indivíduo, entre o diafragma e os pulmões. Ela também possui uma ligação direta com a
psyché – alma racional – e isto, porque, a psyché está alocada na cabeça enquanto a alma colérica
está alocada no tórax. Este é um motivo pelo qual, segundo Platão (2011), às vezes deixamos que
nossa capacidade racional se deixe levar pelas fortes emoções, como a raiva ou o orgulho, em sua
analogia são os vasos sanguíneos e o coração os responsáveis por transmitir as emoções – tanto da
alma colérica como da concupiscente – para a psyché. (PLATÃO, 2011, pp. 171-2)
A alma colérica é responsável pelas emoções de um indivíduo, se o mesmo, portanto, se
manifesta violentou ou se manifesta amável, ou ainda, covarde e inseguro, é a alma colérica a
responsável por gerar essa emoção e a transmitir para a psyché para que a segunda consiga
manifestar a emoção que é gerada pela alma colérica. Como mencionamos no parágrafo anterior, a
transmissão da emoção à psyché ocorre por meio do coração e dos vasos sanguíneos, esta
explicação sobre como a psyché interage com a alma colérica – que corpórea –, como veremos no
Capítulo XXXXX, será reelaborada por Descartes (2009) na obra O Mundo ou Tratado da Luz: O
Homem (2009). (PLATÃO, 2000, pp. 209-11)

Concupiscente, a alma corpórea responsável pelos desejos


A alma concupiscente é uma forma de alma corpórea responsável pelos desejos do
indivíduo, se uma pessoa tem apetite sexual ou a falta dele ou se uma pessoa possui vontade de
comer ou interesse de interagir com outras pessoas é a alma concupiscente a responsável por
manifestar esse desejo e transmiti-lo à psyché. Ela é uma alma física e está alocada entre o
diafragma e o fígado do indivíduo, sendo fixada aproximadamente na região do abdome do
indivíduo. Ela transmite os desejos para a psyché por meio de uma bílis produzida pelo fígado que é
transmitida pelo coração e vasos sanguíneos até a psyché:

[…] esta espécie de que falamos participa da terceira forma de alma, que está
estabelecida entre o diafragma e o umbigo, como dissemos, e nada tem que ver
com a opinião, com o raciocínio ou com o intelecto, mas sim com a sensação de
prazer ou de dor que acompanha os apetites. (PLATÃO, 2011, pp. 182)

Neste contexto, quando um indivíduo deseja alguma coisa, seja querer comer alguma coisa,
possuir algum objeto ou deseja algum outro alguém, é a alma concupiscente a responsável por
manifestar esse desejo e transmiti-lo para psyché. Sempre que alma concupiscente deseja algo ela
pode tencionar a psyché para o objeto que é desejado e que deseja possuir. Logo, se alguém deseja
uma bebida, a alma concupiscente transmite esse desejo da bebida em questão para a psyché, como
explicamos no parágrafo anterior, também por meio dos vasos sanguíneos, a diferença de
transmissão entre a alma colérica e a concupiscente é que enquanto a primeira utilizará o coração, a
segunda utilizará a bílis para manifestar sua influência na psyché. Ao tencionar a psyché ao objeto
desejado, a alma concupiscente não se importa com o objeto desejado, mas com a realização do
desejo em si mesmo. (PLATÃO, 2000, pp. 211-3)

O problema mente-corpo na abordagem da mente em Platão

Tecnicamente, o problema mente-corpo é uma questão na filosofia que surge com Descartes
e sua filosofia e, se utilizássemos uma interpretação mais ortodoxa da abordagem em filosofia e os
seus problemas filosóficos, esse problema não poderia ser trazido par a filosofia de platônica, por
uma questão pura e simples de anacronismo. Mais de um milênio se passou até o desenvolvimento e
a construção do problema. Os antigos e os medievais não enxergavam o problema mente-corpo
dentro de suas concepções psicológicas sobre a origem da mente e sua relação com o corpo, eles,
em sua grande maioria, se limitavam a construir um esquema conceitual sobre a relação da mente –
às vezes intitulada como alma e outras vezes intitulada como espírito, ou no jargão grego, intitulada
como onmós e psyché – com o corpo do indivíduo. Esse esquema conceitual era sempre baseado em
uma mescla de diversos autores anteriores ao autor que escreve a teoria psicológica sobre a mente e
concepções religiosas que faziam parte do paradigma religioso de sua época. No caso de Platão, por
exemplo, por parte dos autores anteriores nós temos a nítida influência de Pitágoras, Empédocles,
Parmênides e Heráclito na construção de sua abordagem de filosofia da psicologia tanto quanto em
sua abordagem metafísica e em relação à influência da religião de sua época, há uma clara
influência do orfismo, dos cultos ctônicos, de Homero e Hesíodo, dos cultos dionisíacos, além de
outros poetas mais recentes em uma escala cronológica que também escreveram poesias épicas
sobre a religião grega como Píndaro. Logo, as lacunas que os filósofos do início da idade moderna
deixaram sobre o problema mente-corpo não fazem sentido na filosofia antiga e medieval, se
utilizarmos uma interpretação histórica e ortodoxa de que essas lacunas eram preenchidas pela visão
de mundo religiosa da época de cada autor. Mas, em uma abordagem não-ortodoxa e muito
anacrônica, porque analisa uma concepção filosófica – no caso a teoria psicológica de Platão – da
antiguidade sob o prisma de problemas filosóficos que foram criados e desenvolvidos mais de um
milênio depois do desenvolvimento da concepção filosófica em si, podemos encontrar uma lógica
por trás de como a mente – psyché – se relaciona com o corpo na teoria psicológica platônica.
Primeiro, Platão (1973a, 2000, 2011) afirma que existem três almas alocadas no corpo em
uma relação tripartida – em uma espécie de triângulo –, onde uma dessas almas possui sua natureza
no mundo inteligível – a psyché – e as outras duas são corpóreas e possuem sua natureza no mundo
sensível – colérica e concupiscente. Há uma relação hierárquica entre essas três almas onde a
psyché, por ser responsável pelo intelecto do indivíduo, governa o corpo e, consequentemente, as
duas outras almas – colérica e concupiscente. Quando o ser humano morre, as almas corpóreas
perecem com o corpo do indivíduo enquanto a psyché ou acessa o mundo dos mortos e em algum
momento retorna para o mundo sensível ou, se o indivíduo realiza o processo de purificação em
vida, ela transcende até o mundo inteligível e vive eternamente com as ideias das coisas em si
mesmas. Segundo, as três almas estão interconectadas através das veias e a corrente sanguínea e
cada uma das duas almas corpóreas possuem um órgão responsável por mandar os estímulos que
cada uma é responsável, no caso, a alma colérica possui o coração para enviar as emoções para que
a psyché a manifeste e a alma concupiscente possui a bílis para enviar os desejos para que a psyché
o manifeste. A psyché, por sua vez, governa o corpo e deve ter o controle sob as duas outras almas
corpóreas, nessa concepção psicológica a psyché possui o papel do onmós homérico, onde ela além
de ser responsável pelo intelecto do indivíduo, também é responsável por animar o corpo do
indivíduo e governá-lo – tencioná-lo – em suas ações de acordo com a vontade do indivíduo. Como
um capitão de uma nau que utiliza o leme para orientar sua embarcação durante a navegação, as
duas outras almas seriam análogas aos tripulantes que utilizam os remos para impulsionar a
embarcação mar adentro.
Terceiro, a vontade – traduzida contemporaneamente como intencionalidade ou livre arbítrio
– não é proveniente da psyché, mas sim das duas outras almas – colérica e concupiscente –, na
maioria das vezes, é por meio dos desejos que a vontade é manifesta, por exemplo, se um indivíduo
possui vontade de tomar vinho, é por meio da alma concupiscente que ele manifesta a psyché essa
vontade que, por sua vez, deve deliberar se o desejo deve ou não ser realizado pelo corpo – de
encher um cálice de vinho. Por outras vezes, a alma colérica pode manifestar a vontade sob a
psyché por meio das emoções, como por exemplo, podemos utilizar a vingança de Aquiles como
exemplo, onde ele tomado pela hybris, e mata Hector para se vingar do assassinato de seu melhor
amigo Pátroclo realizado por Hector. Segundo a teoria psicológica platônica, é a alma colérica quem
envia a manifestação de ódio contra Hector para a psyché de Aquiles que delibera a favor desta
manifestação de ódio e utiliza a sua vontade para entrar em um combate mortal contra Hector. O
papel da psyché, em ambos os casos – tanto na manifestação de desejos quanto na manifestação de
emoções – é deliberar sobre a possibilidade de tencionar o corpo para realizar a ação.
Quarto, além da comunicação entre as duas outras almas corpóreas e a psyché para a
manifestação da vontade do indivíduo, temos também a influência de entidades como as Queres –
ilustrado no exemplo de Aquiles por meio de sua hybris que o leva a assassinar Hector em combate
por vingança – e os daemons que são gênios responsáveis por gerar as virtudes e os vícios nos
indivíduos, logo, quando Aquiles é tomado por um sentimento de orgulho e arrogância
incontrolável ao se recusar a lutar contra os troianos e outro sentimento de ódio incontrolável que
engendrará em sua vingança contra Hector, segundo a visão de mundo religiosa da época, não é
Aquiles quem executa a ação em ambos os casos, mas é uma Quere quem se manifesta na psyché de
Aquiles com o objetivo de consumi-lo através da hybris até que ele tencione seu corpo para
executar tais ações – de sair do combate contra os troianos e assassinar Hector em um combate
mortal. Da mesma forma, se um grego desempenhasse um papel magistralmente em uma peça de
teatro ou executasse uma composição de forma que encantasse toda a plateia, não única e
exclusivamente a sua psyché quem está no controle da ação de seu corpo, mas é o daemon que
acompanha a psyché do indivíduo que está manifestando aquela ação por ele.
Agora, em cada um dos casos, como a psyché tenciona o corpo do indivíduo para realizar
uma ação se ambas as substâncias – no caso, a psyché e as duas outras almas coléricas e
concupiscente – são incomunicáveis por estarem em planos distintos? No caso a psyché possui sua
essência no mundo inteligível enquanto que as duas outras almas – colérica e concupiscente – são
corpóreas e, consequentemente, possuem sua essência no mundo sensível. Como é possível que as
duas outras almas corpóreas se comuniquem com a psyché, se a psyché não se encontra no plano
físico. Além disso, como é possível que a psyché seja dominada por outras entidades – como
Queres e daemons – que são capazes de tencionar o corpo do indivíduo ao ponto deste realizar
ações que não são de sua vontade? Ou lhes atribuir qualidades que não seria possível que o
indivíduo as realizasse sem a influência da entidade – como é o caso dos daemons? A resposta para
essas perguntas não é encontrada, de forma direta, nas obras de Platão, mas sim na visão de mundo
religiosa do cidadão grego de sua época, primeiro, a relação entre os planos material e imaterial no
ponto de vista dos gregos não era transcendente, mas sim imanente e isso porque, como já
abordamos no Capítulo 1 XXXXXXXXXX, o onmós da psyché dos indivíduos que morriam
poderiam ser ativados através do sangue, existiam portais que uniam e davam acesso entre o plano
material e o mundo dos mortos, além disso, os deuses e as entidades caminhavam entre os homens e
eles manifestavam a sua vontade na psyché dos indivíduos – como é o caso das Queres, das Moiras
e dos daemons – e também utilizavam a natureza para manifestar suas emoções a respeito das
decisões humanas. Portanto, uma vez que a divisão entre os planos não era incomunicável, no ponto
de vista religioso da época, a psyché pode sim se comunicar com as duas outras almas corpóreas
mesmo metafisicamente possuindo uma essência distinta da essência das almas corpóreas.
Lembrando aqui, que o processo de purificação e o controle da psyché sobre as duas outras almas é
outro aspecto essencial na teoria psicológica platônica, no sentido de que a psyché deve governar o
corpo, assim como o capitão do navio toma o controle da nau por meio do leme. Finalmente, o
anacronismo da questão é o aspecto chave para se compreender a impossibilidade de se propor tais
questões sob as teorias psicológicas antigas e medievais e isto porque o conceito de eu subjetivo –
isto é, do eu que existe, pensa e se reconhece enquanto indivíduo único no mundo – não existia em
tais períodos históricos, sendo esfacelado pela manutenção da tradição do ethos da comunidade, o
indivíduo tanto na antiguidade quanto na idade média se reduz a um guardião da tradição do ethos
de sua pólis. Mesmo assim, utilizaremos o problema mente-corpo com o objetivo de encontrar estes
hiatos teóricos que são respondidos com auxílio da visão de mundo religiosa de cada época.

Da formação do corpo e sua relação com a psyché

Tal como veremos nos capítulos posteriores, no que diz respeito a formação do corpo de
Platão (2011) e como o corpo transmite as sensações do mundo sensível até o a psyché que tem
como sua natureza o mundo inteligível, essa transmissão acontece, para Platão (2011) por meio de
quatro formas distintas: (s) salivação, (p) paladar, (v) visão e (a) audição. Pode-se concluir que, de
uma forma geral, elas foram fontes de inspiração para o racionalismo francês – principalmente com
Descartes –; o empirismo inglês e idealismo alemão. A maneira com que cada corrente filosófica
interpreta e chega as suas conclusões divergirá em relação a como cada movimento interpretará a
transmissão das sensações ao cérebro e como o cérebro transmitirá essa informação à mente – alma.
Parte dessa divergência consiste nas diferentes concepções sobre a natureza da mente e dos
componentes que a constituem.
O racionalismo francês se inspirara por formular uma concepção de que a mente está em um
estado de transcendência em relação ao corpo e, por sua vez, possui a mesma natureza do que Deus
– ou res divina –, o que, para Platão (2011) será interpretado como a alma – mente – possuir uma
mesma natureza que o mundo inteligível – que, como já vimos em A concepção de mente em
Platão. O empirismo inglês buscará buscar uma síntese entre a concepção de mente de Platão e
Aristóteles, principalmente quando ele afirma que as ideias não são originárias do mundo das ideias,
mas uma relação de nexo causal entre aquilo que é apreendido no mundo e internalizado pela mente
– alma – por meio do hábito. Já o idealismo alemão, proporá uma síntese entre essas duas
concepções – racionalista e empirista – ao admitir que corpo e alma são, por natureza,
irreconciliáveis no sentido de que se é incapaz de conhecer a natureza dos objetos do mundo físico,
sendo apenas que ela consiga apreender o fenômeno das coisas em si e transmiti-las a alma, onde
estão as leis universais das coisas como elas devem ser. Como o cérebro faz parte do corpo físico, o
fenômeno das coisas em si mesma é apreendido pelos sentidos através do aparato perceptivo
corpóreo, transmitidas ao cérebro que, por sua vez, transmitem a captação dos fenômenos das coisas
pelo aparato perceptivo até o aparato intelectivo – mente ou alma.

Da transmissão das sensações apreendidas pelo corpo em relação à psyché

Se formos criar uma análise das impressões, causas e agentes da formação do corpo. Platão
(2011) afirma que (s) a saliva e as (p) impressões dos gostos da língua acontecem por meio de
associações e dissociações e estão relacionadas com a rugosidade e lisura da língua. A língua é
constituída por partículas terrosas que entram pelos vasos sanguíneos e se prologam até o coração,
essa formação configura um instrumento de teste. As partes úmidas da saliva e da carne e: “ ao
dissolverem-se, contraem e secam os vasos sanguíneos” (PLATÃO, 2011, pp. 163) (p) As rugosas
são responsáveis pelo sabor amargo, as menos rugosas são responsáveis pelo azedo e as que limpam
os vasos sanguíneos estão localizadas na superfície da língua. As partes que limpam, se dissolvem
em uma substância denominada salitre para limpar a região da língua. Também existem (p)
partículas de putrefação que se misturam com os vasos sanguíneos por possuir a mesma dimensão
que as partículas terrosas e a mesma quantidade de ar que existe nos vasos sanguíneos. (PLATÃO,
2011, pp. 162-3)
A (a) audição, para Platão, é constituída de impressões de pancadas sonares infligidas pelo
ar aos ouvidos, quando esta pancada de som atinge os ouvidos, elas são transmitidas pelo sangue até
o cérebro e, consequentemente, transmitidas até a alma. As pancadas se iniciam na cabeça e
finalizam na região do fígado. Quando o som é agudo, o movimento de atingir os ouvidos é rápido e
se a o som é grave, o movimento de atingir a região dos ouvidos é lento. A manifestação do som
pode ser suave ou áspera, no primeiro caso os sons são constantes e uniformes enquanto que no
segundo caso os sons serão breves e disformes. A duração do som acontece de acordo com o
volume em que ele é executado, quando o som é amplo seu volume e duração são mais longos, já se
o som for breve acontecerá o contrário.

Analisemos agora a terceira parte sensível que há em nós: a que diz respeito à
audição. Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressões que lhe
dizem respeito. Estabeleçamos que, de um modo geral, o som é uma pancada
infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos, cérebro e sangue até à alma, enquanto
que a audição é o movimento dessa pancada que começa na cabeça e termina na
região do fígado. Quando o movimento é rápido, o som é agudo; quando é mais
lento, o som é mais grave; se o movimento for constante, o som é uniforme e
suave; no caso contrário será áspero. (PLATÃO, 2011, pp. 166)

A quarta e última forma de sensação analisada por Platão (2011) envolve a (v) visão e como
nós apreendemos as cores. Segundo o seu ponto de vista, as cores emanam de todos os corpos, essa
emanação acontece por meio de partículas que tem a mesma dimensão que os raios da visão e estas
partículas promovem a sensação, que é transmitida ao cérebro de maneira análoga a que a audição é
transmitida. Essa transmissão acontece por meio da verossimilhança, pois nós conseguimos
apreender a natureza das coisas do mundo sensível porque ele é uma cópia imperfeita das ideias que
fazem parte do mundo das ideias – estas ideias tem a mesma natureza que o demiurgo ou o uno. As
partículas das cores que são do mesmo tamanho das partículas do raio de visão, e denominadas
transparentes, não são apreendidas pelo indivíduo. As partículas maiores do que as partículas do
raio de visão constituem as cores quentes e as menores constituem as cores frias. A exceção
acontece entre o branco e o preto que, respectivamente, dilatam e reprimem o raio visual. Assim
como a (a) audição, a transmissão do mundo sensível até o corpo na (v) visão ocorrem na mesma
lógica, a principal diferença é que o movimento se choca com o raio de visão que transmite através
do sangue a coloração para o cérebro e este, por sua vez, transmite a coloração para a psyché:

As partículas que vêm de outros corpos e chocam com o raio de visão são por
vezes mais pequenas, por vezes maiores e por outras têm a mesma dimensão que as
do raio de visão. (PLATÃO, 2011, pp. 166-7)

Após as sensações terem sido criadas, elas foram colocadas no corpo para serem apreendidas
pela psyché e a natureza das sensações é necessária e, consequentemente, fazem parte do mundo
sensível. As sensações se prendem às ideias das coisas por meio da semelhança. Na concepção
platônica – o que exercerá uma forte influência na concepção cartesiana –, todas essas percepções
serão apreendidas pelo sangue e através do sangue as sensações são transmitidas para o cérebro que,
por sua vez, transmitirá as sensações para a alma. (PLATÃO, 2011, pp. 168-9)
As três almas que existem no corpo e sua relação com a mortalidade e a imortalidade

Quando o demiurgo fabricou os mortais, ele o fez à partir de três almas, duas destas que
perecem com o corpo e uma que possui o princípio imortal e uma mesma natureza que a do Ser ou o
mundo das ideias. As duas que possuem a mesma natureza que o corpo e, portanto, perecem junto
com ele após a morte estão alocadas no tórax e na pélvis do indivíduo. A colérica, que se situa no
tórax é responsável pela vida emocional do indivíduo enquanto que a concupiscente, alocada
próximo ao fígado do indivíduo, é responsável pelo desejo. Aquilo que ambas estas duas almas
mortais possuem em comum é o seu vínculo com a necessidade. A psyché, por sua vez, é a terceira
alma e possui a mesma natureza que o Ser ou o mundo das ideias e, consequentemente, uma
natureza mesma que a do demiurgo e é responsável pela vida racional e a vida consciente do
indivíduo:

E ele mesmo se tornou demiurgo dos seres divinos, enquanto que atribuiu o
encargo de fabricar os mortais àqueles que tinham sido gerados por si. Estes,
imitando-o, depois de terem recebido o princípio imortal da alma, tornearam para
ele um corpo mortal a que deram como veículo todo o corpo e nele construíram
uma outra forma de alma, mortal, que contém em si mesma impressões terríveis e
inevitáveis: primeiro, o prazer, o maior engodo do mal; em seguida, as dores, que
fogem do bem; e ainda a audácia e o temor, dois conselheiros insensatos; a paixão,
difícil de apaziguar, e a esperança, que induz em erro. Tendo misturado estas
paixões juntamente com a sensação irracional e com o desejo amoroso que tudo
empreende, constituíram a espécie mortal submetida à Necessidade. (PLATÃO,
2011, pp. 170)

Ao alocar as três almas no corpo, o demiurgo divide a parte divina da parte corpórea da alma
e constrói um istmo entre a cabeça e o peito com o objetivo de separar a psyché das duas outras
almas que são mortais. A alma colérica está alocada no tórax e fica entre o diafragma e os pulmões,
enquanto que a alma concupiscente está alocada entre o diafragma e o umbigo, ficando na região da
próximo ao fígado do indivíduo. O fígado produz uma espécie de bílis que é responsável por
transmitir tanto o sono quanto as emoções à psyché, mas não participa da produção do pensamento.
(PLATÃO, 2011, pp. 172-5)
A psyché, por sua vez, está unida ao corpo por meio da medula. Os ossos foram misturados
e umedecidos com a medula, colocados no fogo e mergulhados na água incessantes vezes. Essa
repetição fez com que o demiurgo desenvolvesse a esfera óssea em volta da cabeça que é oca. As
vértebras foram feitas em seguida, que se estendem pela cabeça e atravessam todo o dorso. A carne,
segundo Platão (2011) é constituída de uma combinação harmoniosa de água, fogo e terra, além de
fermento composto de ácido e sal. Os tendões são feitos por um composto de fermento de cor
amarela. A proporção de alma nos ossos é o contrário a quantidade de carne que os envolve, quanto
menos carne há numa região óssea, tão mais alma o envolve. (PLATÃO, 2011, pp. 175-81)
Existem triângulos em torno da medula que a envolvem, quando os elos dos triângulos se
esfacelam em torno da medula e são separados, eles desprendem os laços da alma que é libertada do
corpo com a sua natureza – o Ser ou o mundo inteligível. Há três espécies de fleumas que
promovem a morte de um indivíduo: (i) o fleuma branco são bolhas de ar que são exaladas fora do
corpo e promovem erupções brancas e distúrbios congêneres e ao ser misturada com a bílis negra, a
fleuma branca é difundida até à órbita da cabeça, ela entra em desordem quando estamos no sono e
se instala quando se está acordado; (ii) a fleuma ácida e (iii) salgada é a fonte de todas as doenças,
sempre que há uma inflamação no corpo, essa inflamação é gerada pela bílis, quando a bílis entra
em ebulição e invade a medula, ela desata os vínculos da alma, em uma alusão a teoria da
metempsicose, levando-a para o mundo das ideias: “[…] penetra na medula e depois de a incendiar,
desata daí os vínculos da alma, como se fossem amarras de um barco, e solta-a par a liberdade.”
(PLATÃO, 2011, pp. 198) Há, também, segundo Platão (2011) dois gêneros de doenças que afetam
a psyché, sendo elas: a loucura e a ignorância. Além disso, tudo o que é experimentado em excesso,
seja um prazer ou uma dor, pode também ser chamado de doença – Platão (2011), aqui desenvolve
uma analogia pré-epicurista de prazer sem excessos enquanto ataraxia. Não obstante, o prazer
sexual também é considerado uma forma de doença para Platão (2011), porque gera uma
dependência da psyché em relação às duas outras almas – colérica e concupiscente.

Considerações Finais

A teoria psicológica platônica consiste em uma relação tripartite de almas onde há uma alma
responsável pela vontade e o intelecto denominada psyqué, além de animar o corpo em que ela
habita, esta alma possui sua do mundo inteligível onde estão as ideias perfeitas das coisas que
existem no mundo sensível. Pode-se concluir que a concepção de psyché é análoga a concepção de
mente. Além da psyché, Platão admite que existem duas outas almas corpóreas – colérica e
concupiscente – responsáveis, respectivamente, pelas emoções e desejos dos indivíduos. Por serem
corpóreas essas duas outras almas possuem sua essência no mundo inteligível. A vontade – também
denominada como livre arbítrio ou intencionalidade – para Platão é uma relação que envolve as três
almas, sempre que o indivíduo é tencionado de acordo com uma emoção ou um desejo, esta
sensação é comunicada para a psyqué – que é responsável por animar o corpo – e a psyqué delibera
se a ação será realizada ou não de acordo com a racionalidade. Este processo de deliberação
acontece devido a influência da crença do processo de purificação, onde o indivíduo que quisesse
que sua psyché acessasse eternamente o mundo inteligível, onde estão as ideias perfeitas das coisas
que existem no mundo, ele deveria negar as vontades provindas do mundo sensível, isto é, das duas
outras almas corpóreas, caso o contrário em um cenário em que ele não seguisse o processo de
purificação, a psyché do indivíduo, em algum momento, retornaria a habitar o mundo sensível
animando outro corpo físico. De um ponto de vista fisiológico, as três almas estão alocadas no
corpo do indivíduo em uma forma triangulas, estando a psyché alocada na cabeça do indivíduo, a
alma colérica entre o coração e a região superior do tórax do indivíduo e a alma concupiscente entre
diafragma e o umbido do indivíduo. Ainda sob o ponto de vista fisiológico, as almas corpóreas se
comunicariam com a psyché – e vice versa – por meio dos vasos sanguíneos, o canal responsável
pela comunicação da alma colérica seria o coração e o canal responsável pela comunicação da alma
concupiscente seria uma bílis, ambos estes canais utilizariam os vasos sanguíneos para comunicar
as suas respectivas sensações à psyqué. Todos os elementos mencionados até aqui, além do mundo
sensível e inteligível – que é constituído pelas ideias perfeitas das coisas que existem no mundo
sensível, o Ser, o Uno, o conhecimento e a psyqué tanto dos indivíduos quanto uma psyqué que
engendra todo o mundo inteligível –, foram criadas por uma entidade anterior aos panteões
conhecidos pela visão de mundo da religião grega antiga denominada demiurgo, esta entidade teria
desenhado o mundo segundo a sua vontade e retirado as formas – as ideias eternas – do caos
lançando-as no cosmos até constituir todo o mundo conhecido. Por causa das ideias eternas das
coisas que existem no mundo sensível e a psyqué dos indivíduos possuírem a mesma essência, os
indivíduos percebem o mundo por meio da teoria das reminiscências onde, quando um indivíduo
percebe um objeto sensível por meio de seus órgãos dos sentidos, ele rememora os conhecimentos
passados sobre aquele objeto utilizando o processo de similaridade, além de rememorar as ideias
eternas das quais aquele objeto são constituídos para uma finalidade para o mundo. A teoria
psicológica platônica pode ser considerada transcendente, apesar de absorver elementos da visão de
mundo religiosa de sua época, que possui caráter imanente no sentido de que as entidades – isto é,
os deuses e os titãs – andaram entre os mortais, manifestarem suas crenças, desejos e emoções por
meio dos fenômenos naturais e manifestarem na psyché dos indivíduos talentos majestosos, destinos
inalteráveis e sentimentos avassaladores que perseguem seus possuidores até a morte.

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