A antropologia de Platão tem, naturalmente, de partir da sua cosmologia. Com
efeito, a Teoria da Participação serve de base para muitos textos do filósofo grego que abordam profundamente outros temas. Esta teoria parte tanto das ideias de Parménides como de Heraclito e pode ser explicada como uma ponte entre as duas. De facto, Platão defende que a realidade é constituída por dois mundos: o mundo inteligível, ou seja, o mundo das ideias e o mundo sensível, ou seja, o mundo dos seres concretos. Os seres deste último mundo participam das ideias do mundo inteligível sem nunca as esgotarem. Para além disso, todas as ideias participam do Bem que é, consequentemente, a ideia superior. Assim, o mundo inteligível é constituído por ideias unas, imutáveis e inesgotáveis. Já o mundo sensível é constituído por seres múltiplos, mutáveis e que não esgotam a ideia de que derivam. Poder-se-ia dizer muito mais sobre a cosmologia de Platão, mas neste contexto penso ser suficiente para partir para a sua antropologia. Tal como no caso da realidade, o discípulo de Sócrates também julga que o ser humano é formado por duas realidades diferentes: o corpo e a alma, o primeiro fazendo parte do mundo sensorial e a segunda do mundo inteligível. Platão considera que a alma é imortal e sem qualquer ligação ao corpo a priori. Para além disso, julga que este último, embora não seja “mau”, deve servir apenas como instrumento ao serviço da alma para esta atingir o seu objetivo. Portanto, é necessário explicar porque é que o ser humano é esta ponte entre duas realidades tão diferentes e qual é a natureza da alma. Estas duas questões estão, obviamente, intimamente ligadas. O filósofo grego afirma que existem almas perfeitas e imperfeitas, isto é, umas superiores e outras inferiores a estas. As primeiras fazem parte dos seres vivos imortais, ou seja, dos deuses. A existência destes é impossível de explicar de uma forma racional, podemos apenas fazer suposições sobre os mesmos: são seres vivos imortais, constituídos por corpo e alma, que estão unificados para sempre. As suas almas existem no céu, onde os deuses habitam. Contudo, ambicionam chegar a outro lugar (tanto as almas dos deuses, como as dos seres vivos mortais), descrito como o “zénite da abóbada celeste”. É neste local que as almas experienciam uma “alegria suprema”, pois entram num movimento circular eterno, de onde podem contemplar todas as realidades abaixo da tal abóbada celeste, por outras palavras, as realidades verdadeiras. É neste local que Platão julga que se encontra a Verdade, “que é património do verdadeiro saber”, ou seja, é aqui que se encontram as Ideias das quais as coisas sensíveis, e mesmo os deuses, participam. Irei abordar mais à frente o conceito de Verdade em Platão, pois está especialmente ligado à sua teoria do conhecimento. Depois de contemplarem a essência das coisas e de saciarem o seu conhecimento (o conhecimento verdadeiro que só é atingível através do intelecto), as almas regressam ao céu, onde repousam. “Logo que regressa, o cocheiro põe os cavalos à manjedoura e dá-lhes ambrósia para comer, e néctar para beber”. No entanto, como é o filósofo grego propõe que as almas possam chegar a este sítio? Para descrever o caminho que as almas têm de percorrer para atingir esse local, o filósofo grego utiliza uma alegoria: a alegoria da carruagem. Nesta, é descrita uma série de carruagens, que representam as diversas almas, que têm, cada uma, um cocheiro e dois cavalos. Os cocheiros, neste caso, são as almas dos deuses e os dois cavalos são de boas raças. Consequentemente, a subida do céu para a abóbada celeste é suave e dócil. Assim se explica o caminho que as almas dos deuses percorrem; mas o que acontece ao resto das almas? As almas dos seres vivos mortais, segundo Platão, perderam as suas asas e caíram pelo espaço até encontrarem um corpo sólido que tomam e revestem, encarnando na matéria. Para além disso, transmitem a sua força a este corpo que, por conseguinte, se começa a mover. Todavia, as almas continuam a ansiar a chegada à abóbada celeste antes referida, pois só lá “encontram o alimento que as pode satisfazer inteiramente, desenvolver as asas, esse alimento que, enfim, liberta as almas das terrenas paixões”. É aqui que entra novamente a alegoria da carruagem, para explicar porque é que as almas dos seres vivos mortais têm dificuldade em atingir tal lugar. Neste caso, os cocheiros somos nós, existe um cavalo de boa raça, suave e disciplinado e outro que é mestiço, indisciplinado e de mau feitio. Consequentemente, existe uma enorme desarmonia entre os cavalos, o que dificulta o trabalho do cocheiro e, assim, a chegada das almas à verdade. Dessa forma, estas almas apenas vislumbram algumas realidades, não conseguindo ver muitas outras. Contudo, existe uma hierarquia dentro das almas dos seres vivos mortais. Não penso que faça sentido enumerar os diferentes graus e “recompensas”, mas o mais importante a reter é que as almas que mais realidades vislumbraram estão destinadas a encarnar num filósofo, enquanto as que menos realidades vislumbraram estão destinadas a encarnar num tirano. Depois de descrita e elaborada a natureza das almas, é pertinente analisar a sua composição, segundo Platão. Segundo o mesmo, a alma de todas as pessoas é composta pelos mesmos três elementos: a razão, a concupiscência e a ira. A razão consiste no elemento racional, aquele pelo qual o indivíduo raciocina, calcula (439d república) e, acima de tudo, pode chegar à verdade. A concupiscência é aquele pelo qual o indivíduo tem os desejos mais básicos e impulsivos, como a sede (exemplo dado explicitamente por Platão na República), fome, desejos sexuais, entre outros. É também aquele que constitui a maior parte da alma e o mais insaciável. Por fim, a ira, ou o elemento irascível, é o mais difícil de descrever. É através dele que nos irritamos. Apesar de inicialmente não parecer, o filósofo grego não considera nenhum destes elementos inerentemente mau. Com efeito, julga que têm todos de trabalhar em conjunto para que a alma chegue à Verdade. Contudo, isso é algo difícil de atingir. Isto acontece, porque o elemento irascível pode estar tanto “do lado” da razão como do irracional. Só quando a ira e a razão se unem e dominam a concupiscência é que se torna possível a alma atingir a sabedoria. Aqui entra, de novo, a alegoria da carruagem: o cavalo indisciplinado representa a concupiscência. Para além disso, é importante referir que o discípulo de Sócrates afirma que a ira auxilia, por natureza, a razão. Só quando é corrompida através de má educação é que se alia à concupiscência. Este caso é o mais comum entre todas as pessoas, já que Platão julga que algumas pessoas nunca atingem a razão e maioria só a atinge muito tarde. No entanto, voltando atrás, é válido perguntar como é que algo como a irascibilidade ou a cólera poderá, alguma vez, estar ao serviço da razão (quanto a estar ao serviço da concupiscência penso que não seja necessário elaborar mais). Com efeito, o filósofo grego explica tal fenómeno através de uma história e de um exemplo. Na verdade, utilizou a história de Leôncio, filho de Agláion, que “ao regressar do Pireu, pelo lado de fora da muralha norte” se apercebeu “que havia cadáveres que jaziam junto do carrasco”. Por muito estranho que pareça, teve um desejo enorme de os ver; todavia, a ira lutou contra tal desejo, demonstrando que é distinta da concupiscência. Para além disso, Platão dá o exemplo de que quando se é vítima de uma injustiça, existe uma cólera que encoraja o indivíduo a lutar. Por fim, quando a razão e a ira dominam o irracional (ou concupiscência), o indivíduo “adquire” as virtudes de cada um destes elementos. De facto, quando tal acontece, o indivíduo é sábio (elemento racional), corajoso (elemento irascível) e temperado (elemento concupiscente). Em suma, a alma é constituída por três elementos: o racional, o irascível e o concupiscente, sendo que este constitui a maior parte da alma. Para esta conseguir atingir a Verdade (alegoria da carruagem) é necessário que a razão e a ira governem em conjunto, de forma a controlarem a concupiscência. Apesar disso, julgo ser pertinente reforçar que, para a alma atingir a Verdade, não é necessário que o elemento concupiscente desapareça, mas sim que seja controlado (pois o ser humano nunca deixará de ter desejos ou necessidades). Ao longo deste ensaio referi várias vezes os conceitos de Verdade ou Sabedoria, usando-os como sinónimos. Mas o que é que significa este conceito e como é que Platão pensa que se pode atingi-la? Para responder a esta pergunta é preciso aprofundar aquela que é a sua teoria do conhecimento. Para o discípulo de Sócrates, o conhecimento, tal como o universo e o ser humano, divide-se em duas realidades: o conhecimento do sensível e o conhecimento do inteligível. Ele considera que o primeiro corresponde apenas a opiniões e não ao verdadeiro conhecimento. Apenas conhecendo as coisas que participam das Ideias, um indivíduo nunca chegará, de facto, ao conhecimento. Por exemplo, alguém poderá ter observado diversas árvores ao longo da sua vida; no entanto, sem conhecer a Ideia de árvore, só poderá formular opiniões sobre esse conceito, nunca verdadeiro conhecimento. Isto acontece, pois a matéria é mutável e múltipla, logo, qualquer juízo que se forme sobre ela será específico a um certo contexto (tempo, espaço, entre outros…). Por outro lado, as Ideias são imutáveis e eternas, logo, qualquer conhecimento que se desenvolva a partir delas também o é. Todavia, é necessário explicar como é possível atingir o tal conhecimento das Ideias. Como foi referido anteriormente, as almas, antes da sua queda e de encarnarem na matéria, encontravam-se num movimento circular a contemplar as Ideias. Consequentemente, adquiriram o seu conhecimento e, segundo Platão, ainda o têm guardado inconscientemente. Com efeito, para o filósofo grego, o verdadeiro conhecimento consiste “numa recordação das verdades eternas contempladas pela alma” (fedro). Logo, dizer que um indivíduo aprende algo de novo não está inteiramente correto, porque, segundo Platão, a sua alma está apenas a recordar algo que já sabia. Na verdade, no Ménon é dado o exemplo dum diálogo de Sócrates com um escravo, onde o último vai chegando a conclusões sobre geometria através, apenas, de perguntas efetuadas pelo primeiro. Resumidamente, Platão defende que o conhecimento das Ideias é o verdadeiro conhecimento e que é a priori, ou seja, precede o mundo sensível e as experiências dos diversos indivíduos nele. Assim, o processo de conhecer é, “apenas”, um processo de recordar. Por fim, penso ser interessante comparar Platão com um autor que, embora posterior, retirou muito de si: Santo Agostinho. De facto, Santo Agostinho foi fortemente influenciado pelo filósofo grego, tendo em conta que é, atualmente, considerado o fundador do Platonismo Cristão. Com efeito, o filósofo da Roma Antiga aceita quase por completo a Teoria da Participação de Platão, sendo que as mudanças que efetua são feitas de forma a conciliar a teoria com o cristianismo. Na verdade, Santo Agostinho considera que a realidade está dividida entre o mundo sensível e o inteligível e que as coisas materiais participam das ideias do mundo inteligível. Contudo, substitui o conceito de Bem (aquilo do qual as próprias ideias participam) por Deus. Assim, Este é o exemplar perfeito, aquele do qual tudo o que existe deriva e, ao contrário do Bem, é o criador de tudo o que existe. Em relação à composição do ser humano, o platonista cristão, como era tradicional na sua época, defende que o Homem é composto por alma e corpo. Contudo, afirma que a culpa da corrupção dos indivíduos não está no corpo, pois tanto este como a alma são criações divinas, logo, a culpa tem de ser dos próprios indivíduos. Assim, considera que o corpo é um bem, ao contrário de Platão que afirma que é apenas um instrumento que deve ser, eventualmente, descartado. Para além disso, também julga que apenas a alma é criada à imagem de Deus, portanto, é ela que deve governar o corpo. No que diz respeito ao conhecimento, Santo Agostinho também parte da teoria de Platão e torna-a compatível com o cristianismo, assim nascendo a teoria da Iluminação Divina. Na verdade, o filósofo da Roma Antiga também acredita que todas as pessoas já nascem com todo o conhecimento inconscientemente nas suas almas e que o conhecimento adquirido através dos sentidos (mundo sensível) é extremamente limitado. Todavia, diferenciando-se do filósofo grego, afirma que todo o conhecimento verdadeiro (mundo inteligível) vem de Deus e que as pessoas só lhe ganham acesso (ou recordam-se) quando Ele decide. Em suma, Concluindo, tanto Platão como Santo Agostinho dividem a realidade em dois mundos: o sensível e o inteligível. Para além disso, esse dualismo mantém-se na composição do ser humano e na epistemologia. Contudo, a principal diferença nestes dois autores consiste na importância dada a Deus nas suas teorias. Em Platão não existe um importância muito grande, enquanto que em Santo Agostinho é a fonte de todas as suas teorias.