Você está na página 1de 20

DEUS

quer falar
CONTIGO
Gerência geral: Rafael Cobianchi
Preparação e revisão: Decápole/Bruno Castro
Capa e Diagramação: Diego Rodrigues
 
 
 
 
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
 
 
 
 
 
Editora Canção Nova
Rua João Paulo II, s/n
Alto da Bela Vista
12.630-000
Cachoeira Paulista – SP
Tel.: [55] (12) 3186-2600
E-mail: editora@cancaonova.com
loja.cancaonova.com
Twitter: @editoracn
Instagram: @editoracancaonova
 
Todos os direitos reservados.
 
ISBN: 978-65-88451-84-7 
 
© EDITORA CANÇÃO NOVA, Cachoeira Paulista, SP, Brasil, 2021
Pe. Anderson Marçal

DEUS
quer falar
CONTIGO
Princípios para uma maior intimidade com Deus
Sumário
Introdução.................................................................................. 7
Capítulo I: Para falar do Amor de Deus............................. 13
Capítulo II: Para falar da alegria em Deus......................... 25
Capítulo III: Para falar sobre a adoração a Deus.............. 35
Capítulo IV: Para falar sobre a contemplação................... 43
Capítulo V: Para falar sobre o júbilo................................... 49
Capítulo VI: Para falar sobre a fé através da Teologia..... 55
Capítulo VII: Para falar concretamente: dois testemunhos
bíblicos de fé.............................................................................. 67
Capítulo VIII: Para falar sobre a fé através da Liturgia... 73
Capítulo IX: Para falar sobre a fé através de algumas
celebrações litúrgicas................................................................ 79
Capítulo X: Para falar da comunicação da fé ao longo dos
tempos......................................................................................... 91
Capítulo XI: Para falar sobre a fé na era digital................. 101
Conclusão................................................................................... 111
Referências bibliográficas........................................................ 119
Introdução

D
eus quer falar contigo! Na insignificância da existência
humana, diante da grandeza infinita de Deus, o que será
que Ele quer falar com cada um de nós?
Diante desta pergunta, poderíamos responder: “Bem, Deus
não tem nada a falar comigo”. Mas por incrível que pareça, Ele
não só quer falar conosco, como já fala há muito e muito tempo,
desde que criou o ser humano (cf. Gn 1,28), pelo simples fato
de que Deus é relação. Deus não tem uma relação, mas Ele é
relação, desde toda a eternidade.
Saltando do Gênesis ao Apocalipse, temos outra passagem
que mostra este interesse de Deus de falar com cada um de nós:
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a
porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele
e ele comigo” (Ap 3,20). Com esta passagem, podemos concluir
que Deus é incansável em nos buscar, em nos procurar, em
falar conosco. Toda esta procura se dá por um único motivo:
Deus é amor (1Jo 4,8).
Com uma provocação tamanha, podemos então, nos per-
guntar: “Se Deus é incansável em nos buscar, por que não somos

7
DEUS quer falar CONTIGO

incansáveis em buscar Aquele que nos busca?”, ou então: “Se


Deus é relação e amor, será que O conhecemos o bastante, para
nos relacionar com Ele, por amor?”, ou ainda: “Se temos algum
tipo de relação com Ele, qual é o real motivo para isso?”. Por
fim, faço uma pergunta em forma de desabafo pessoal: “Por
que eu não me convenço logo de que Deus me ama e quer
falar comigo?”.
Partindo agora para o título do livro, tendo já sido provo-
cados pelas perguntas acima, resta-nos saber: o que Deus quer
falar comigo? Que Ele está à nossa procura, já sabemos; que
nos ama, também sabemos; que quer relação conosco... bem, é
justamente sobre este assunto que Deus quer nos falar. Ou seja,
Ele quer nos falar para podermos ter relação com Ele. E não
somente uma relação superficial, mas uma relação de intimidade.
Ótimo! Chegamos ao porquê desta conversa: Deus quer
ter relação conosco, ou seja, criar entre nós uma intimidade,
uma amizade. Mas e o assunto desta conversa? Que pontos Ele
que tratar comigo e com você, caro leitor? Ter esta conversa
com Deus mudará realmente alguma coisa na nossa vida? Não
bastaria apenas sermos pessoas que rezam, que dizem a Ele
alguma coisa vez ou outra?
Antes de avançarmos, ainda fica um questionamento: o
Deus que tudo criou, o Deus que tudo sabe e conhece, o Deus
que basta pensar, e tudo se transforma, o Deus que tem todo
o controle sobre tudo aquilo que existe, o Deus que é Senhor
de tudo aquilo que criou... o que este Deus quer falar comigo?
Se pensássemos que a pessoa mais importante do nosso país

8
Pe. Anderson Marçal

quisesse falar conosco, uma pessoa que jamais imaginaríamos


que fosse perguntar sobre nós, isso já seria surreal. Imagine, por
exemplo, que a maior celebridade que você conhece chegasse
à sua casa de forma totalmente inesperada, batesse à porta e
dissesse: “Preciso falar com você”. Qual seria a sua reação?
Provavelmente seu coração aceleraria, suas mãos começariam
a suar... enfim, seu corpo sinalizaria todo o seu espanto por
receber uma visita ilustre.
Tendo viajado nesta imaginação, tenhamos agora uma
certeza: mesmo que a maior celebridade de todos os tempos
não vá à nossa casa, nem jamais nos procure, há uma pessoa
importantíssima que certamente o fará. É Aquele que salvou a
humanidade, Aquele que venceu o pecado e a morte, Aquele
que andou sobre as águas, Aquele que saciou a fome de uma
multidão, Aquele que ressuscitou Lázaro, Aquele que curou
o cego, o surdo e o mudo, Aquele de quem saiu uma força
curativa para aquela mulher que tocou no seu manto, Aquele
que ressuscitou a filha de Jairo, Aquele que morreu por mim e
por você e, ressuscitando ao terceiro dia, subiu aos céus e está
sentado à direita do Pai, Aquele que enviou em Pentecostes
Seu Espírito, Aquele mesmo, presente em cada Santíssimo
Sacramento, nos tabernáculos das Suas igrejas, espalhadas pelo
mundo todo. Sim, é Ele mesmo que nos procura, que me pro-
cura, que te procura, para falar ao nosso coração, daquilo que
aumenta a nossa intimidade com Ele.
Nas páginas que seguem, não queremos, em hipótese
alguma, limitar aquilo que Deus quer falar com cada um da-

9
DEUS quer falar CONTIGO

queles que darão ouvidos a Ele – seria uma petulância da nossa


parte. O que se segue é o resultado de alguns anos de estudo e
de algumas, pouquíssimas experiências com Deus. Falo “pou-
quíssimas” pois, hoje, me sinto buscado por Deus, mas poucas
vezes encontrado por Ele. Não por culpa ou incompetência de
Deus, mas por cegueira e insensibilidade da minha parte.
Esta obra é uma coletânea de artigos que me foram pedi-
dos ao longo de alguns anos como padre, e do tempo em que
ainda era apenas um seminarista. Os textos foram resgatados
em um determinado momento de retiro espiritual, que nos
prepara para a nossa morte, ao qual chamamos de Retiro da Boa
Morte. Esta prática, ensinada por São João Bosco, consiste em
fazer uma boa limpeza em nossas coisas, tirando tudo aquilo
que é entulho. Ao executar tal atividade me deparei, nos meus
arquivos, com todo este material; então, Alguém me falou ao
coração, com voz doce e firme: “Isso não é lixo”.
Em obediência a esta Voz, eis aqui aquilo que foi fruto
de vários momentos, sejam pedidos de artigos para falar sobre
determinado assunto, sejam estudos e preparação de aulas que
ministrei nestes anos ou, ainda, resultado de alguns retiros que
preguei e que, por graça, consegui digitalizar e transformar
aquilo que foi uma palestra falada, em um artigo escrito.
O texto se divide em onze capítulos que abordam temas
diversos, mas que obedecem a uma sequência lógica.
Como o próprio título nos provoca, Deus quer falar con-
tigo. Mas sobre o quê? Sobre Seu Amor, Sua Alegria, sobre o
adorá-Lo sobre todas as coisas, sobre a contemplação, o júbilo,

10
Pe. Anderson Marçal

a fé na liturgia e nas celebrações litúrgicas, sobre como Ele se


comunicou através dos tempos, e como se comunica nos nossos
tempos, na era digital.
Eu gostaria, se o caro leitor me permite, de chamar a
atenção para o sexto capítulo, pois ele é um verdadeiro curso
de Teologia Espiritual. Fiz questão de incluí-lo nesta coletânea,
pois ele servirá como uma dobradiça de porta ou janela, para
nos ajudar a entender e praticar aquilo que Deus vai querer
falar conosco nas páginas que se seguem.
Tendo dito tudo isso, nosso desejo é que o caro leitor possa
mais do que ler, estar atento, com os ouvidos bem abertos, a
tudo aquilo que Deus quererá falar ao seu coração, através das
páginas seguintes. Como dissemos anteriormente, não é nossa
intenção limitar os desígnios de Deus para ninguém, mas apenas
provocar a escuta, e que esta aconteça com o coração, mais do
que com os ouvidos.
Que as páginas que se seguem sejam apenas trampolim
para uma escuta aguçada e atenta à voz de Deus, para que a
nossa resposta seja ainda mais rápida e generosa. São estes os
nossos desejos ao escrever e organizar o que se seguirá agora, na
certeza de que Deus quer falar contigo! Ótima leitura.

11
Capítulo I: Para falar
do Amor de Deus

1. O amor perdido se reencontra

A
s nossas solidões nascem não do isolamento dos outros,
mas da nossa incapacidade de atravessar a soleira do nosso
eu e abrir-nos plenamente a nós mesmos. Só assim se inicia
o processo do amor; assim se recupera a capacidade de amar
a si mesmo e aos outros, porque se reencontra o Deus-Amor
dentro de nós.
Essa maravilhosa verdade nos recorda uma das mais belas
parábolas de Jesus. É aquela comumente chamada de Parábola
do Filho Pródigo (Lc 15,11-32). Acontece a este filho, que
reencontra a misericórdia divina, algo que a cada um de nós
também é dado experimentar. Ele fugia do próprio coração (a
casa de seu pai), para buscar uma casa fora do verdadeiro amor,
que ele já possuía e que estava na história da sua vida.

13
DEUS quer falar CONTIGO

O amor de Deus se encontra, então, na própria casa. E é


reencontrado quando aquele jovem entra em si mesmo, isto
é, quando ouve de novo a voz do Espírito que o chama mais
uma vez à vida interior. Para reencontrar a via do amor perdida,
ele precisa voltar a casa (cf. Lc 15,18). Lá o filho reencontrará
a alegria de ser amado: gozará da alegria de uma festa, dada
como presente pelo pai, uma inesperada alegria da qual se
torna protagonista. Quanta honra, quantas atenções, quantos
privilégios se revelam quando “Deus permanece em nós e o
amor dele é perfeito em nós” (1Jo 4,12b)!

2. Um amor que permanece

Jesus, em um momento de especial intimidade espiritual


com o seus, disse: “Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Per-
manecer é o contrário de fugir, que é a atitude tomada por
muitos quando se dão conta da qualidade que este amor reclama.
Jesus nos convida a não escapar. Ele conhece a difícil arte de
perseverar, quando as nossas razões humanas se chocam com
as razões ensinadas pelo seu amor.
São Paulo assim explicou esse tema aos cristãos de Corinto:
Nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito de
Deus para conhecer tudo isso que Deus nos deu. Destas coisas nós
falamos, não com linguagem sugerida pela sabedoria humana, mas
ensinada pelo Espírito de Deus, exprimindo coisas espirituais em
termos espirituais. O homem natural, porém, não aceita as coisas
do Espírito de Deus; essas são loucura para ele. Nem as pode com-
preender, porque só se podem julgá-las por meio do Espírito de
Deus. (cf. 1Cor 2,2-14)

14
Pe. Anderson Marçal

“Permanecei” é um verbo do Espírito de Deus, que implica


o trabalho de acolher o grande desafio posto pela sabedoria de
Deus ao nosso coração, à nossa inteligência, à nossa vontade!
Em um tempo no qual é grande a tentação de escapar, Jesus
nos convida a permanecer, a aceitar as categorias do seu amor,
a entrar nele com a ajuda do Espírito de Deus.
Trata-se de um convite de acolher, um apelo a reforçar a
unidade com Ele e entre nós; afinal, o amor de Jesus gera esta
grande família que é a comunidade cristã. Nossa resposta a esse
convite deve ser: Sim, Senhor!
Jesus, de resto, se coloca em condição de extrema fami-
liaridade conosco. Fala de si como um amor recebido, o amor
do Pai que Ele partilha conosco: “Como o Pai me ama, assim eu
também vos tenho amado. Permanecei no meu amor” (Jo 15,9).
Jesus esclarece, assim, a dinâmica do permanecer, pedindo
que nos amemos de forma semelhante à divina, com a mesma
substância e intensidade do amor que há entre o Filho e o Pai.
A nossa inteligência é limitada para entender isso, mas com o
Espírito Santo conseguimos nos aproximar dessa graça.
Quem está apto a penetrar esse mistério? Quem nos pode
dar explicações sobre ele? Quem pode compreender esse amor,
vislumbrando sua “amplitude, distância, altura e profundidade”
(Ef 3,18)? Estamos falando de um amor que só se pode viver.
Muitos continuam a fugir de Cristo e não têm alguém que lhe
diga para permanecer diante da dor, da solidão, das decepções
e mazelas do dia a dia.

15
DEUS quer falar CONTIGO

Permanecei significa entrar em profundidade no mais íntimo


de Deus, ao qual só temos acesso pelo seu Espírito.
Está escrito de fato: aquelas coisas que olhos não veem, nem
ouvidos ouvem, nem nunca entraram no coração do homem, estas
coisas Deus preparou para aqueles que o amam. Mas a nós Deus as
revelou por meio do Espírito Santo. É ele de fato que penetra cada
coisa, também as profundezas de Deus. Quem conhece os segredos
do homem senão o espírito do homem que está no homem? Assim
também os segredos de Deus ninguém jamais conheceu senão o
Espírito Santo. Agora nós não recebemos o espírito do mundo, mas
o de Deus, para conhecer tudo isso que Deus nos deu. (1Cor 2,9-12)

Permanecei: essa palavra interpela os verdadeiros discípulos


de Cristo com o passar dos anos. Ela sela a maturidade espiritual
de um cristão, provocando-o a se manter constante na oração,
na Palavra de Deus e nos sacramentos.

3. Um super amor

Por ocasião do Pentecostes de 1975, o Santo Papa Paulo


VI pronunciou uma incisiva definição sobre a obra do Espírito
Santo em nós:
Nós queremos não só possuir rapidamente o Espírito Santo,
mas experimentar os efeitos sensíveis e maravilhosos desta presença
do Espírito em nós. Ele vive na alma, e a alma velozmente se sente
invadida de uma imprevista necessidade de abandonar-se ao Amor,
a um super amor, e se sente maravilhada de uma extraordinária
coragem, a coragem própria de quem é feliz e de quem é seguro;
a coragem de falar, de cantar, de anunciar aos outros, a todos, as
maravilhas de Deus.

16
Pe. Anderson Marçal

O amor, quando mobilizado pelo Espírito Santo, se faz


super, isto é, ele nos supera. Podemos também afirmar que
ele supera a nossa capacidade de imaginá-lo ou de prever seus
efeitos sensíveis. Ele é super, porque sobrecarrega docemente
a nossa natureza humana, preenchendo-a além do que a nossa
condição terrena permitiria.
Para um amor novo é necessário um coração novo: “Eu
vos darei um coração novo, colocarei dentro de vós um espírito
novo” (Ez 36,26). O profeta chama a atenção dos homens para
o fato de que a ternura quer ternura! Não se pode gozar das
delicadezas de Deus se o coração se mantiver inflexível diante
do mal, da dor, das ofensas recebidas. O nosso coração pode
estar predisposto à alegria, mas não poderá experimentá-la se
não aceitar ser afagado pelo Espírito de Deus.
“O amor do Senhor é uma chama devoradora, que se te pega
te envolve todo, ainda antes que tu te percebas” – assim diz o
teólogo Hans Urs von Baltazar em uma célebre definição no
livro Coração do Mundo. É pequeno, em princípio, o amor de
Deus, mas quando ele nos atinge, torna-se um incêndio vigo-
roso, que ninguém pode apagar. É uma chama que devora sem
interrupção, que não deixa espaço livre.
Observemos ao nosso redor: muitos morrem por dentro,
por falta de amor. E, mais triste ainda, depois disso eles conti-
nuam a viver uma vida de moribundos. Que desconforto deve
gerar a percepção de estar condenado à infelicidade! Mas não
é isso que Jesus quer; Ele nos convida a estar na escola do seu

17
DEUS quer falar CONTIGO

amor: “Aprendam de mim, que sou manso e humilde de coração”


(Mt 11,29b).
Somos impelidos pelo Espírito de Deus a aprender com
Jesus, porque só Ele é o Amor e nos coloca em relação com
Aquele que tem Amor (o Pai) e dá Amor (o Espírito Santo).
Aprendamos, então, a ser como Jesus. Isso requer o contato
com a sua Pessoa, e não somente com uma lição ou coleção
de preceitos, contando sempre com a intervenção do Espírito
Santo. Assim, viveremos aquilo que João atesta: “Nós conhecemos
e cremos no amor que Deus tem para conosco” (1Jo 4,16).
Aqueles que, com a ajuda do Espírito, descobrem o amor
verdadeiro, ganham acesso ao Coração de Deus e podem viver
a fé cristã e o desapego das coisas deste mundo. Só assim é
que se abre o entendimento para vislumbrar aquilo que Santo
Agostinho nos ensina:
Deus é amor. Que face tem o amor? Que forma tem? Que
estatura tem? Que pés têm? Que mãos têm? Ninguém pode dizer.
Mas, todavia, tem pés que conduzem à Igreja. Tem mãos que se
estendem piedosas para o pobre. Tem olhos: por estes, de fato, se
pode compreender quem é necessitado. Tem ouvidos: qual diz o
Senhor, “quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (Lc 8,8). Não se
trata de partes do corpo separadas em lugares diversos: quem tem a
caridade vê com a mente ao mesmo tempo o todo. Você, portanto,
habita na caridade, e essa habitará em você; fica nessa e essa ficará
em você. (Santo Agostinho em comentários sobre a Primeira Carta
de São João 7,10)

“Sede perfeitos como perfeito é o Pai vosso que está no céu” (Mt
5,48), pede Jesus aos seus discípulos, depois de ter reescrito a lei

18
Pe. Anderson Marçal

à luz do amor de Deus. Ele está nos chamando a ser perfeitos


no amor perfeito do Pai, isto é, um amor sem reservas nem
obstáculos.

4. Uma prática sempre aberta

O cristianismo é uma prática de amor, que compromete


e satisfaz todos os nossos sentidos:
Isto que nós ouvimos, isto que nós vemos com os nossos olhos,
isto que nós contemplamos e isto que as nossas mãos tocaram...
nós o anunciamos também a vós, porque também vós estais em
comunhão conosco. (1Jo 1,1.3)

É vontade de Deus que todos os homens pratiquem este


amor. O homem que assume esta mentalidade e se exercita na
linguagem espiritual do amor vê, de modo claro, como a fé
volta à vida, como os carismas ressurgem, como muda o modo
de ler a realidade e de reagir a ela. Eis que os projetos apostó-
licos começam a tomar forma e cada decisão de vida é como
uma planta de raízes profundas, que não cessam de suportar
as fraquezas vitais.
Ítalo Calvino escreveu um dia: “O amor conhece só os confins
que o entregamos”. Apliquemos esta frase ao amor de Deus: ele
é infinito, mas quantas limitações lhe dão! Nós fomos ama-
dos desmedidamente, como recorda João Batista (cf. Jo 3,34),
depois que a efusão do Espírito Santo abrangeu cada confim,
cada reserva ou limite à imersão neste amor.

19
DEUS quer falar CONTIGO

Contudo, precisamos arrancar cada obstáculo a este amor,


para que ele possa fluir como uma corrente de graça. São João
da Cruz dizia: “A alma que não caminha no amor comete dois
grandes pecados: aborrece a si mesmo e aborrece os outros”.
Quanta gente interrompe e abandona o caminho de fé,
porque perde a admiração pelo amor de Deus e parece cair no
aborrecimento! Eles se dizem entediados pelos mesmos cantos,
as mesmas orações, as mesmas pessoas, os mesmos encontros...
mas Cristo nunca é o mesmo, e nunca deixa de amar!
Como se pode cansar do amor de Deus, antes de expe-
rimentá-lo por um bom tempo? Poderia um atleta cansar-se
de vencer, antes de ter iniciado a sua carreira no esporte? Ou
uma mãe dizer-se cansada de amar o próprio filho, quando ele
é apenas um recém-nascido?
O coração de Deus, por ser um e indiviso, bate em sinto-
nia com a multidão de corações dos homens que estão sobre
a terra, e para cada um deles é capaz de conceder uma larga
medida de caridade! Para entender isso, podemos recorrer a
alguns eficazes comentários sobre o amor de Deus de São João
Paulo II e Bento XVI:
Faz-se experiência viva da promessa de Cristo: “Quem me ama
será amado por meu Pai e também eu o amarei e me manifestarei
a ele” (Jo 14,21). Se trata de um caminho inteiramente sustentado
na graça, que pede, todavia, um forte compromisso espiritual e co-
nhece também dolorosas purificações (a noite escura), mas prepara
em diversas formas, a indicada alegria vivida pelos místicos como
união esponsal. (João Paulo II, Carta Apostólica Novo Millennio
Ineunte, n.33)

20
Pe. Anderson Marçal

O Senhor por primeiro nos amou e continua a amar-nos por


primeiro; por isso também nós podemos responder com o amor.
Deus não nos ordena um sentimento que não podemos suscitar em
nós mesmos. Ele nos ama, nos faz ver e experimentar o seu amor e,
deste primeiro amor de Deus, pode como resposta despontar o amor
também em nós. Na transformação deste encontro se revela com
clareza que o amor não é somente um sentimento. Os sentimentos
vão e vêm. O sentimento pode ser uma maravilhosa faísca inicial,
mas não é a totalidade do amor... O encontro com as manifestações
visíveis do amor de Deus pode suscitar em nós o sentimento da
alegria, que nasce da experiência de ser amados. (Bento XVI, Deus
Caritas Est, n.17)

André Frossard, um convertido, ofuscado com o amor de


Deus, escreve no seu livro-testemunho Deus existe, eu o encon-
trei: “O cristianismo é uma história de amor”. Esta é uma grande
verdade, e deve bem aplicar-se à nossa vida, em cada paróquia,
cada família, cada movimento, pois tudo que fazemos deve
fazer parte da narrativa de uma história de amor.
Trata-se de uma história já escrita por Deus, como um
compêndio que se presta, depois, às interpretações diversas de
cada um de nós, coprotagonistas. De certo, Deus interpretará
fidelissimamente o seu papel nessa narrativa; quanto a nós... sem
dúvida improvisaremos muito, especialmente nos momentos
em que precisarmos esperar com fé a ação de Deus.

5. Experimentar o Amor Divino e Trinitário

Quando o homem olha para dentro de si, a fim de analisar


sua experiência religiosa, tem a sensação de estar diante de um

21
DEUS quer falar CONTIGO

abismo de profundeza infinita. Essa profundeza inatingível


reflete um pouco a essência da nossa vida, a fonte do nosso ser,
a meta de todos os nossos esforços. Esse fundo íntimo do nosso
ser manifesta-se na abertura do nosso “eu” para um “tu”, e na
seriedade dessa inclinação. Assim, vemos impressa em nosso ser
a realidade profunda e grandiosa do Deus cristão, a Trindade,
isto é, o mistério de um Deus que é comunidade e comunhão
de vida – um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo.
Diante deste mistério, podemos chegar a algumas conclu-
sões para nossa caminhada, pois o mistério total, se descoberto
na sua totalidade, deixaria de ser mistério, e nós nos tornaríamos
deuses. Primeiramente, notamos a comunhão com Deus como
fim do homem. O próprio Deus vem ao homem, manifesta-se
a ele como Senhor, mas cheio de bondade e misericórdia, rico
em graça e liberdade. Na exuberância de seu amor pelo mundo,
manifestado no dom de seu Filho único enviado para salvá-lo,
o Deus do amor e da paz derrama sobre nós sua graça e nos
chama à comunhão com Ele no Espírito Santo.
Em seguida, constatamos que temos a necessidade de
buscar a Deus. Em nossa vida cotidiana tão complicada, em
que devemos cuidar de mil coisas, sofrendo pressão de toda
parte, o que nos deve guiar é a luz de Deus, que é o amor. De-
vemos nos voltar para esta luz se não quisermos nos desviar do
verdadeiro fim da nossa existência. Gostaríamos até de poder
dizer: “Aqui está Deus; Deus é assim…”. Mas não é possível. O
próprio Deus sai dos quadros e das imagens e se oculta naqueles
que precisam de nós, e diz: “Aqui estou”! Ele se esconde nos

22
Pe. Anderson Marçal

pequeninos da terra e diz: “Buscai-me aqui”! Quem quer viver


com Deus não chegará a uma conclusão sozinho, pois Deus é
comunidade perfeita, e ninguém sozinho conseguirá explicá-lo.
Deus se faz experiência no Filho e pelo Espírito, revelando-nos
que seu amor é de Pai.
A Santíssima Trindade é de fato um mistério muito grande,
mas alguns escritores nos tranquilizam, dizendo que o mistério
não se explica, mas se experimenta. Pois bem, devemos expe-
rimentar a Santíssima Trindade como canal para fazermos
nossa experiência com a Misericórdia Divina. Afinal, o Pai das
Misericórdias envia Seu Filho para nos revelar que podemos ter
acesso a Deus porque somos filhos, pela ação do Espírito Santo.
Este Espírito, por sua vez, nos faz buscar o próprio Deus. E,
se buscamos a Deus, é por graça e misericórdia Dele próprio.

23

Você também pode gostar