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Gerência geral: Rafael Cobianchi

Gerência Editorial: Camila Lamins


Projeto Editorial: Ana Carolina Nascimento
Preparação e revisão: Vanessa da Conceição
Direção de Arte: Kallel Moreira Capucho
Projeto gráfico, diagramação e capa: Thayná da Silva Santiago
 
 
 
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
 
 
 
Editora Canção Nova
Rua João Paulo II, s/n
Alto da Bela Vista
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Cachoeira Paulista – SP
Tel.: [55] (12) 3186-2600
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Todos os direitos reservados.
 
ISBN: 978-85-9463-125-1
 
© EDITORA CANÇÃO NOVA
Cachoeira Paulista, SP, Brasil, 2023.
Pe. Felipe Pavão de Souza

 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Agradecimentos
Agradeço a Deus Pai que enviou seu filho Jesus Cristo para
santificar a debilitada e sofrida natureza humana. Graças ao
evento Pascal do esvaziamento de Cristo na Cruz, o sofrimento
humano deixa de ser maldição e torna-se elemento salvífico de
ressurreição para vida eterna. Graças ao humilde sofredor da
cruz, os que são marginalizados e incompreendidos pelo mundo,
podem se abrigar na chaga amorosa do Salvador.
Agradeço ao Espírito que procede do Pai e do Filho, por lutar
a minha frente quando as forças se esvaem e por me carregar nos
braços quando as pernas não reagem ao cansaço do labor da vida.
Agradeço a todos que não olham para um sofredor com olhar
de pena, mas são capazes de enxergá-lo e respeitá-lo como o próprio
Cristo, tendo em vista que ele também chorou, irou-se, teve medo,
solidão, angústia e, no fim, foi glorificado na perseverança do amor.
Em especial, demonstro minha gratidão ao meu pai funda-
dor, padre Jonas Abib, um homem que apesar de tanta tribulação
vivida, sempre levou a vida com um olhar de esperança. Um
homem que foi muito solícito nos momentos que mais precisei
de acolhimento paterno.
Também agradeço a Mônica de Castro, uma amiga que
compartilha a vida comigo, que me apoia e apoiou este projeto,
mulher que da tragédia extraiu riquezas como: generosidade,
amor, bondade e, sobretudo, empatia para com o próximo.
Ela se superou e vê em todos a capacidade de fazer o mesmo.

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Prefácio
A língua portuguesa é muito dinâmica. Algumas palavras
podem ter mais de um significado. Dizendo isto mencionamos
aqui a palavra sentido. E ao pensarmos sentido relacionado à
vida, e perguntarmos “qual o sentido que temos dado à nossa
vida?”, temos diante de nós uma dupla pergunta. Primeiro, o
que temos feito como busca de realização, prazer e felicidade
no decorrer de nossa existência? Segundo, para onde estamos
direcionando o nosso existir, ou, para onde nossas escolhas e/
ou decisões têm-nos levado? Percebemos, portanto, que sentido
aqui traz consigo significados de preenchimento existencial e
rumo ou condução, ao mesmo tempo.
Nosso querido Felipe Pavão nos dá a possibilidade de
adentrarmos nessa questão tão fundamental em relação ao
sentido da vida, passeando pelas trilhas das linguagens psico-
lógica, antropológica, filosófica e teológica. Não pretendendo
ser exaustivamente uma resposta em nenhum desses campos,
muito menos tornar cansado o leitor que, como eu, terá o prazer
do contato com a obra. Mas trazendo a contribuição dessas
correntes de pensamento que distintas em sua especificidade
de estudo, são inseparáveis em seu campo de reflexão que é o
terreno da vida. O autor aqui com maestria nos faz saber sobre
o sentido da vida, com o sabor de caminhos que convergem
para o mesmo rumo.

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De uma forma geral, nosso autor faz um provocante convite


àqueles que desejam conhecer o projeto que Deus tem para cada
um. Há que se considerar, para isto — dirá o autor —, a busca
de um autoconhecimento, um pensamento maduro sobre a vida,
tendo em vista que se evite possíveis desperdícios na realização
desse projeto ou obra de Deus, como plano de salvação para cada
pessoa. Dentro desta perspectiva, entra também a realidade do
sofrimento nesta aventura existencial como algo real e concreto,
diante do qual cada um necessita e posiciona-se de forma que
sua travessia e superação torne sempre o agente humano mais
forte e constante nesta busca de sentido.
Tema como a liberdade também será abordado pelo nosso
jovem autor. Sim, porque em se tratando de busca de sentido
para a vida e/ou conduzi-la para o rumo certo onde haja uma
real e constante satisfação nesta busca, não se pode prescindir
de atitudes, escolhas e decisões que sejam verdadeiramente
livres. A tal liberdade é muito cara ao ser humano diante do
seu Criador. Tanto é verdade que entre o nascer e o morrer,
nascente e poente da vida humana, podemos nos conformar
com o querer de Deus que tudo sabe de nós, e para nós o melhor
tem preparado. Aqui poderíamos dizer que de tão livres que
somos entregamo-nos ao plano de Deus; bem como podemos
privar-nos do âmbito da fé e, sem perspectiva alguma, trilhar
uma história construída ao nosso bel-prazer. É claro que, cons-
cientes de que colhemos o que plantamos, se o ser humano é
tão maduro para saber o que planta e onde o faz, que não esteja
imaturo quando a colheita chegar.

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Ora, existência precisa ser assumida com bastante res-


ponsabilidade. Aqui o autor trata da responsabilidade em dois
aspectos: primeiro, quando se responsabiliza naquilo que per-
mite Deus realizar em si por sua Graça; segundo, quando se
responsabiliza por ser agente desse feito de Deus em sua vida
concreta, a saber, em seu testemunho. E assim nos recordará
que o protagonista da vida, isto é, cada um de nós é pleno na
medida em que permite em si ação da Graça de Deus, ao mesmo
tempo que corresponde à mesma na sua realização cotidiana. O
que não desconsidera a presença dos conflitos (ou sofrimentos)
a que somos submetidos pelo simples fato de estarmos vivos.
No entanto, ao que crê e se entrega em verdadeira liberdade, a
máxima será sempre esta: a vida assim só pode ser feliz.
Todo escrito deixa traços inconfundíveis do seu autor.
Digo mais, que neste belo e frutuoso escrito que ajudará a
muitas pessoas a mergulhar em sua temática, pude me iden-
tificar bastante em muitos momentos. Felipe Pavão, você se
lembra muito bem, daquele nosso 28 de agosto de 2016; onde
nós dois e mais alguns missionários da Comunidade Canção
Nova vivenciamos um acidente trágico, que ceifou a vida do
nosso querido Thiago Antunes, e que, se não soubéssemos dar
sentido, depois daquele momento, nossa vida teria se estragado
tanto quanto aquela Kombi onde estávamos. Este livro, mais
que teorias, mostra-me sua superação, sua fé, sua liberdade
após aquele acidente e como você tão confiante e cheio de fé
chegou até aqui. Você é um exemplo vivo do que seja uma vida
cheia de sentido. Se este seu livro nos ensina como é a aventura
do viver, a arte de saber não somente existir; suas superações
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me ensinaram a saber como lidar com a vida e como fazê-la


boa apesar das curvas surpreendentes que o caminho nos traz.
Justamente como foi naquele dia…
Queridos leitores, é colocado em suas mãos uma seta
indicativa para uma possível resposta de uma pergunta que é
de todos: que sentido estou dando à minha vida? A pergunta
continuará sendo sua, minha, do nosso Felipe Pavão, de todos
quantos querem não somente existir, mas viver. E a resposta
passará pela experiência pessoal de cada um. Garanto, com
certeza, que estas páginas os iluminarão nesta busca, em seus
caminhos, porque uma coisa nosso autor deixou claro: o CA-
MINHO não pode ser um qualquer, muito menos atalhos; a
VERDADE não pode ser qualquer discurso, por isso Felipe
abordou tantas áreas fundamentais em seu escrito; VIDA com
tudo o que ela significa em plenitude não se faz ou se encontra
de qualquer jeito. A saber, o mistério da vida em plenitude se
desvela no encontro com uma pessoa concreta, Jesus Cristo, nosso
Senhor. Somente Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jó 14,6).

Boa leitura!

Pe. Carlos César de Sousa

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Sumário
Agradecimentos........................................................................ 5
Prefácio.................................................................................... 7
Introdução.............................................................................. 13

Parte I — As metáforas da vida............................................... 15

Capítulo 1 — Queda livre sem paraquedas...............................16

Saltando para a vida........................................................ 17


Sem paraquedas...............................................................23
Salto para a liberdade......................................................27

Capítulo 2 — A tela de Penélope.............................................36

Fluindo como um rio......................................................38


A estratégia......................................................................47
Resumo das principais lições do capítulo......................... 52

Parte II — Os dois lados da mesma moeda............................ 54

Capítulo 3 — Sofrer conscientemente...................................... 55

Uma queda sem sentido..................................................60


O sentido do sofrimento para o cristão............................68
O sentido elevado do sofrimento.....................................73
Resumo das principais lições do capítulo.........................75

Capítulo 4 — Amor ao Destino...............................................77

“Amor Fati” em Nietzsche................................................ 81


A vida é tua embarcação, não tua morada .......................89
Resumo das principais lições do capítulo.........................97

Capítulo 5 — O modo cristão de viver o sofrimento...............100

Força que flui................................................................. 102


A força da unidade......................................................... 107
A força do testemunho................................................... 110
Da teoria à prática, um testemunho real......................... 114

Conclusão............................................................................. 126
Bibliografia............................................................................ 132
Anotações.............................................................................. 135
Introdução
Nenhuma obra pode ser bem edificada, se não ceder
à vontade do seu criador, portanto: “[…] como pedras vivas,
formai um edifício espiritual […]” (1 Pedro 2:5). Se fôssemos
elencar os elementos básicos para construção de um edifício
— mesmo sem qualificação técnica —, qualquer pessoa de boa
vontade lembraria do cimento, ferro, areia e pedra. Porém,
poucos pensariam no projeto como um elemento primordial,
tendo em vista que muitos mestres de obra conseguem realizar
boas construções usando apenas a experiência. Ainda assim, se
pararmos para pensar, o projeto faz com que o edifício a ser
erguido já exista antes mesmo de ser construído, claro que no
plano ideal, tendo como vantagem a redução de erros e des-
perdícios na hora da execução da obra. Todavia, a vantagem
principal e que realmente nos interessa, para o início desta
abstração, é que a longo prazo tal construção pode passar por
reformas profundas, na qual, através do projeto de engenharia,
o proprietário pode ver além do revestimento estético.

Falando de edifícios, construções e projetos, refiro-me


a pessoas, indicando que a proposta do texto é levar o leitor a
uma reflexão profunda sobre um projeto de vida, que come-
çou a ser construído antes mesmo que ele tivesse consciência
de sua própria existência no mundo. A questão é abordar os

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elementos primordiais dessa construção com um único ob-


jetivo, encontrar o Autor, o Engenheiro, o Mestre que pode
orientar tanto a edificação quanto as reformas, que necessaria-
mente precisam ser realizadas ao longo da história temporal a
que somos submetidos.

Liberdade, individualidade, responsabilidade, tempo


e fé, são algumas das matérias-primas deste edifício espiritual
que nos fala São Pedro. Apesar de tudo, o sofrimento encon-
tra-se numa categoria especial. De dentro para fora, ele é ca-
paz de moldar e fortalecer, ao passo que, de fora para dentro,
funciona provando a durabilidade da estrutura. Não existe
uma regra certa, existe a medida do Construtor a ser acrescen-
tada ou retirada do projeto. Cabe, portanto, à construção o
empenho de se deixar construir.

Por fim, a leitura deste texto é um convite para aqueles


que desejam conhecer mais do projeto de Deus a seu respeito.
Um convite à busca de autoconhecimento e, sobretudo, de
pensar na vida, tudo isso a fim de evitar desperdícios na cons-
trução da obra sonhada por Deus, compreendendo, pois, que
o sofrimento nessa dinâmica não é uma vontade sádica e cruel
do Construtor, é apenas uma consequência de se estar vivo.
Olhar para dentro é ir além das aparências e falsas convicções
teimosas que paralisam a obra.

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PARTE I

AS METÁFORAS DA
VIDA

Se não quisermos afogar-nos numa


corrente de estímulos, e nem perecer numa
promiscuidade completa, então devemos
aprender a distinguir entre o que é essencial e o
que não é, entre o que tem sentido e o que não
tem, entre o que é responsável e o que não é1.

1
FRANKL, Viktor E. O sofrimento de uma vida sem sentido: Caminhos
para encontrar a razão de viver. 4.ed. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 26.
15
Parte 1 — Capítulo 1

Capítulo 1

Queda livre sem paraquedas


Imagine-se nesta situação: você acordou cedo, tomou um
café reforçado e, antes mesmo de ler o jornal, resolve ir à varanda,
para respirar um ar fresco. É quando se dá conta do belo dia
que está fazendo: céu azul, com pouco vento e temperatura de
uns 22 graus. Condições perfeitas para quê? Andar de bicicleta?
Fazer um piquenique? Talvez pescar? Não, não e não. Você é
uma pessoa radical e, em dias como esse, não pode abrir mão
de um excitante salto de paraquedas. Rapidamente, liga para
o amigo da escola de paraquedismo e acerta os detalhes. Toma
um banho frio, veste uma roupa confortável, põe comida para
o cachorro, sobe numa moto turbinada de 600 cilindradas e
parte para aventura.
Perceba que as coisas estão super favoráveis, nada pode
dar errado. Considerando que você é uma pessoa bem-sucedida,
experiente, pode pagar pela melhor escola de paraquedismo,
assim como pelos melhores equipamentos, dificilmente algo de
ruim poderia acontecer. O único possível infortúnio e, claro,
bastante improvável, seria o paraquedas não abrir, todavia,
isso é apenas um detalhe que pertence ao risco que se corre
pelo prazer de viver.

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Pronto! Você chegou ao local indicado, já tem uma equipe


te esperando, agora é só se preparar, entrar no avião e viver uma
incrível experiência de liberdade numa altura de 3.650 metros,
podendo chegar até 220 quilômetros por hora em queda livre.
No avião, prestes a saltar, a maioria das pessoas faria uma re-
trospectiva de suas histórias, pensaria sobre as escolhas feitas até
aquele instante ou sobre o legado que iria deixar, caso alguma
coisa acontecesse. No entanto, impressionantemente, você
mantém a cabeça vazia, pois o salto nesse instante é a única
sentença a preencher as elucubrações da mente.
Finalmente, o objeto da sua ansiedade se realizará. Contudo,
o instrutor te surpreende ao anunciar que seu salto será solo,
você já é experiente o suficiente, não precisa saltar acoplado a
outra pessoa. A notícia dá um pouco de frio na barriga, mas,
sem problema, é só dizer para si mesmo que é competente
e que o salto terá grande êxito, isso ajuda muito a manter o
equilíbrio. Você assina um termo de responsabilidade, dirige-se
à porta do avião e, friamente, olha o ambiente em volta como
quem diz: adeus prisão, vou me libertar. Arruma bem os óculos,
equipamento importante não só para proteger os olhos, mas
para contemplar a vista das alturas e, por fim, transbordante
de coragem, você salta.

Saltando para a vida

Uma máxima bem conhecida no Ocidente, atribuída a


Sócrates, pai da filosofia clássica, diz que: “A vida não examinada

17
Parte 1 — Capítulo 1

não vale a pena ser vivida pelo homem”. Geralmente, as pesso-


as não refletem muito sobre seu próprio nascimento, porque
comumente damos relevância apenas às coisas que estão na
memória declarativa2. Um bebê recém-nascido ainda não tem
consciência de sua própria existência. Dessa forma, seria como
se não estivéssemos presentes em nosso próprio começo. Com
efeito, a vida começou antes mesmo que tivéssemos capacidade
de perceber. O problema é que muitas pessoas ainda não toma-
ram consciência ou não se apropriaram do seu ser no mundo.
Elas sabem que existem, mas vivem como se não soubessem.
Toda história tem um começo. Estudamos desde cedo sobre
a história, do país, dos pais fundadores da nação, da igreja, ou
até mesmo da própria escola, mas e a nossa? Parece que, ao
ignorar o princípio, estamos historicamente fragmentados.
Tal constatação analogamente se assemelha a ler um livro
pela metade, de fato, é isso mesmo, a falta de compreensão
que temos sobre nós mesmos é fruto de uma leitura equi-
vocada da própria vida.

O salto de paraquedas será a “metáfora do nascimento”


e nos ajudará a conectar-nos com esse momento tão signi-
ficativo que abandonamos.

2
“Memórias explícitas ou memórias declarativas são um tipo de memória
de longo prazo da qual você se lembra depois de pensar conscientemente
sobre isso, por exemplo, o nome do seu cachorro de infância ou o número
do telefone da casa do seu melhor amigo”. Disponível em https://www.
ecycle.com.br/memoria/ . Acesso em 27 de março 2023.
18


Antes do nascimento, estávamos seguros em uma redoma


uterina cheia de líquido amniótico3, feito sob medida para cada
um de nós. É certo dizer que, o útero da mãe é a primeira casa
de uma pessoa e as primeiras 38 semanas de vida são marcadas
por segurança, paz e amor. O mundo externo pode afetar o
bebê, afinal de contas, ele é parte da mãe e sente muito do que
ela sente, porém, não é possível estimar sistematicamente até
que ponto o feto é impactado e o que realmente pode absorver
ou não. Por mais difícil que seja a gravidez de uma mulher,
tais dificuldades não podem determinar a vida futura desta
criança. Ao que se sabe, o cérebro utiliza-se da inconsciência
como o mecanismo superador dos traumas que ainda não
temos capacidade de processar.
Mesmo que, por inúmeras causas, uma pessoa venha a
ser portadora de alguma deficiência por complicações gestati-
vas, não são poucos os casos daqueles que vieram ao mundo
com algum tipo de má formação e não foram insuficientes na
hora de contribuir para o crescimento da sociedade em que
foram concebidos. Seguindo o conselho socrático, que diz ser
importante meditar sobre o próprio existir, faremos isso pelo
nascimento, reconhecendo haver uma fronteira que abriga o

3
“O líquido amniótico é o fluido que envolve o bebê em desenvolvimento e
preenche a bolsa e a cavidade uterina. Quando a bolsa rompe, é esse líquido
que escoa pelas pernas da gestante”. Alterações no volume de líquido
amniótico podem trazer complicação à gravidez (ALBUQUERQUE,
2021). Disponível em https://www.gndi.com.br/saude/blog-da-saude/
liquido-aminiotico. Acesso 27 de março de 2023.
19
Parte 1 — Capítulo 1

feto em seu próprio mundo, até que o rompimento deste limite


inaugure um caminho de total incerteza.
O avião utilizado para o paraquedismo geralmente é pe-
queno, confinado, escuro, no qual a permanência é limitada,
já que ninguém pode viver voando para sempre. Em algum
momento, o combustível acaba, sendo preciso descer, não
há para onde fugir, o jeito é saltar. No contexto intrauterino,
acontece o mesmo: você cresce, desenvolve-se, cria força e se
prepara para saltar. Não pode ficar no útero para sempre, por
mais aconchegante e confortável que seja, não há escolha. O
início da vida humana, nesse sentido, é radical por natureza,
tanto pelo fato de abandonar um lugar seguro e confortável,
onde tudo funciona bem, quanto por estar sempre modificando
a si e o mundo a sua volta.
Mas isso não acontece do nada, na metáfora do salto, as
condições precisavam estar favoráveis, pois saltar sem treino,
ou num dia de vento forte e chuvoso, poderia resultar em
tragédia. Para que viéssemos a este mundo, fomos submetidos
a um longo processo evolutivo que nos capacitou para o nasci-
mento. Precisamos assumir que nascemos prontos — não digo
prontos para viver no sentido metafísico —, mas para nascer
no sentido físico-biológico. Fomos treinados para o salto, nossa
concepção se deu quando as condições estavam favoráveis e a
gestação seguiu o mesmo rumo. O útero da nossa mãe, além
de ser o avião, é também a escola de paraquedismo, na qual,
por processos bioquímicos, adquirimos o potencial de aprender,
raciocinar e fazer perguntas. Pois, quem teria ensinado nosso
corpo a renovar as células? A crescer? A cicatrizar feridas? Lem-
20


brar o que é importante e esquecer as irrelevâncias? A gestação


nos preparou para o salto (vida) e o salto nos prepara para a
queda (morte). Não se trata de uma reflexão no âmbito da
epistemologia4, mas de entender que houve um dia em que,
no útero da sua mãe, você despertou para a vida e lá mesmo
foi treinado para tal. Apesar disso, somente a queda realmente
ensina a viver e consequentemente a morrer.
Podemos concluir, com base nesta reflexão, que nosso viver
está enquadrado num processo trifásico, visto que a última fase
é a mais importante, porque se encerra na dimensão espiritual.
Da concepção ao nascimento, passamos pela milagrosa fase da
formação humana, em que recebemos todo potencial para a
segunda fase. O salto para a vida ou nascimento inaugura uma
espécie de gestação para a maior maturidade que alguém pode
alcançar: a vida eterna. Ou seja, o caminho percorrido até a
queda (morte) pode tanto concluir-se em um renascimento
para a vida eterna (vida após a morte), quanto para um aborto
eterno (perda da alma).
Saltando para vida, precisamos seguir algumas regras que
podem nos prevenir de determinados sofrimentos, frutos de
más escolhas. Esse é o único tipo de sofrimento que podemos
evitar, sofrimento oriundo da nossa própria inconsequência.
A deturpação das leis naturais gera consequências por vezes
irreparáveis. Por exemplo: o corpo foi projetado para o movi-
mento; na contramão dessa necessidade, a vida humana está
cada vez mais remota e sedentária. Temos um corpo que evoluiu

4
Área da filosofia que estuda o conhecimento e a sua formação.
21
Parte 1 — Capítulo 1

para abater animais ferozes e muito maiores que nós, porém,


não nos levantamos do sofá nem para aumentar o volume da
televisão. Por consequência, o corpo começa a funcionar mal
e sucumbe à doença, ou seja, causamos nosso próprio sofri-
mento. Embora alguns problemas de saúde nos acompanhem
geneticamente, pergunto-me se as pessoas seriam tão doentes se
respeitassem a necessidade corporal de se exercitar. Sem contar
que muitas doenças podem até ser curadas pela prática regular
de exercícios. Nascemos prontos enquanto matéria-prima, mas
desperdiçamos na hora da construção.
Alguns nascimentos foram mais turbulentos que outros.
Famílias mais estruturadas oferecem um começo de queda livre
mais tranquilo. Assim deveria ser para todos, esse é o ideal, e
muitos traumas seriam evitados se assim fosse. Entretanto, o
exagero de cuidado e superproteção em determinada fase do
desenvolvimento pode se tornar um malefício na medida em que
não permite que o sujeito perceba que o tempo de gestação acabou.
Aqueles que precisaram sobreviver em meio as turbulências
do salto, logo nos primeiros anos de vida, tiveram que enten-
der quanto antes que estavam entregues às suas escolhas. Para
estes desafortunados ou afortunados, dependendo do ponto de
vista, a turbulência fez o papel de tesoura, cortando o cordão
umbilical que ligava a estabilidade do útero e o mundo exterior.
Com efeito, alguns sofrimentos na vida provocam danos
irreversíveis, mas o excesso de segurança e conforto não faz di-
ferente. O ideal é que esse corte seja controlado, ou seja, que o
indivíduo tenha tranquilidade nos seus primeiros anos de vida,

22


sucedidos por momentos de desinstalações pedagogicamente


causadas pelos progenitores, a fim de fazer com que o filho se
perceba responsável por si mesmo. Esse corte obviamente não é
realizado no nascimento, mas ao longo do crescimento da criança.
Já pensou em um homem adulto, casado, que corre chorando
para a mãe todas as vezes que se desentende com a esposa? É
disso que estou falando, talvez você conheça alguém assim.
Nesse ponto da reflexão, é preciso perceber que a gestação
é o treino; o nascimento é o salto. A gestação nos prepara para
o salto, e este nos prepara para a queda. O aconchego do útero,
ou a vida confortável na segurança protetora de alguém, pode
nos dar uma ilusão de que ainda estamos seguros, que a vida
não acaba e que a qualquer momento podemos puxar a cordi-
nha e abrir o paraquedas. Não é verdade. A dura realidade que
apresento é que as mães, ao dar à luz, lançam o filho para um
salto em queda livre sem paraquedas. É esse o principal ponto
da reflexão existencial. Alguns, depois de passarem por uma
tragédia ou perda, têm a oportunidade de perceberem de fato
essa dura realidade, outros precisam que alguém lhes diga, mas
nunca é tarde para esse despertar.

Sem paraquedas

Qual será a conexão objetiva entre nossa gestação e o


nascimento? Na gestação apenas existimos. Com o nascimento
passamos a viver como um sujeito individual, desincorporado
da mãe e quando crescemos tomamos consciência da existência.

23
Parte 1 — Capítulo 1

Longe de mim dizer que o feto não tem a mesma dignidade


que qualquer pessoa, porém, ao nascer vive-se por si só. Talvez
você esteja pensando: “ele ainda depende da mãe”. Pois eu lhe
pergunto: se a mãe morrer no parto, ele morre também? Não
necessariamente, isso significa que sua existência não depende
mais dela e que, agora, ele está totalmente entregue à queda.
O bebê depende das pessoas como todos nós em sociedade
dependemos uns dos outros. Suas capacidades evoluirão como
estamos a todo momento evoluindo. Caso ele não chegue à fase
adulta, isso significa que o avião estava baixo demais quando
ocorreu o salto e que sua vida deveria ser curta. Não é possível
determinar o tempo da queda, o que se pode dominar são os
momentos que antecedem o impacto.
Podemos associar ainda o paraquedas à placenta. No en-
tanto, este foi cortado na hora do salto e, quando olhamos
para o umbigo, só podemos lembrar que, enquanto alguns
celebravam nossa chegada ao mundo, chorávamos pela perda
da maior segurança que alguém já teve.
Em certa ocasião, ouvi falar de uma comunidade indígena
que fazia um ritual um tanto peculiar durante o nascimento
das crianças. O ritual consistia em reunir os membros da co-
munidade em volta da oca, para chorar e lamentar pelo sofri-
mento que aquela criança passará na vida; em contrapartida,
um ritual parecido era efetuado no funeral de seus membros,
porém, no lugar de lágrimas, uma grande festa era celebrada,
comemorando a passagem daquela vida para um plano melhor.
Este me parece um ritual um tanto pessimista em relação ao

24


nascimento, contudo, se tivéssemos tal consciência da vida, a


morte não seria tão assustadora.
Antes de saltar do avião, você assinou um termo de res-
ponsabilidade por tudo que lhe acontecer. Apesar disso, na
ordem do salto para vida as coisas são inversas. Primeiro vem
o salto, depois a responsabilidade. Embora não tenhamos es-
colhido nascer, nossos pais assinaram por nós esse contrato,
cujas cláusulas são bem claras: “tens direito a um salto, uma só
vida e uma oportunidade. Podes até se arrepender, mas o que
fez está feito”. Não obstante, os pais carregam o compromisso
primaz de dar aos filhos subsídio educacional, moral, humano
e espiritual, para que este, que veio ao mundo sem pedir, seja
capaz de viver bem nele. Mas o fato é que nem todos os pais
possuem essa consciência, o que não te isenta das exigências da
vida. Não são poucas as pessoas que, na ausência de bons pais,
extraíram sabedoria através de seus próprios erros ou dos erros
dos outros, significando que a própria vida é uma tremenda
fonte de conhecimento.
A pessoa que durante a queda mantém os óculos bem
limpos goza de uma grande lucidez em relação ao tempo que
lhe resta. Com toda certeza, ninguém é capaz de prever o fim,
mas não é disso que se trata. Ter lucidez em relação ao tempo
que resta é manter uma forte convicção da finitude que se im-
põe à natureza humana, assim como das fases que a precedem.
Podemos cometer erros e cometemos, contudo, temos o dever
de, antes da queda, aperfeiçoarmo-nos enquanto pessoas.

25
Parte 1 — Capítulo 1

Alguns, com medo da morte, não conseguem se localizar


em meio ao processo vivencial-temporal e acabam se perdendo.
Com a chegada da queda, a pessoa não percebeu que a vida
passou, sem sentir o prazer de ser, existir, realizar, ganhar, perder
e toda complexidade que cerca o ciclo humano. Com efeito,
não poucas vezes, homens se comportam como adolescentes,
crianças como adultos e idosos tentando ludibriar o fim, assu-
mindo comportamentos destrutivamente capazes de abreviar
o impacto definitivo.
Um bom exemplo é o que acontece na crise da meia idade,
quando uma voz lá do fundo diz: “chegastes no topo da vida,
a partir de agora é só descida e o que você fez? Como viveu?”.
Uns perceberão com maturidade que tudo aquilo construído
até o momento é fruto do seu esforço, portanto, motivo de
orgulho e continuidade. Outros podem se decepcionar con-
sigo mesmos, tomar consciência do tempo perdido e dedicar
o tempo que falta a algo que valha a pena. Há ainda aqueles
cegos pelo egoísmo e autossuficiência. Estes abandonam tudo
que fizeram de bom, para viver em torno do seu próprio ego e
acabam apostando mal a parcela da vida que lhes cabe. Neste
caso, ter uma conduta distorcida não afeta apenas uma pessoa,
tudo que empreendemos na vida envolve os outros. Não pensar
nelas na hora das decisões difíceis significa nosso isolamento
em uma realidade alternativa, criada pela frustração de não ter
sido ou feito o que deveria.
Quando se tem compreensão do contrato assinado no dia
do salto para a vida, além do conjunto de responsabilidades
advindos com ele, é possível dar valor a cada centímetro ou
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metro que se aproxima do chão. Sem querer fazer apologia ao


jogo de azar, mas é inegável que um jogo apostado tem muito
mais valor e emoção do que um jogo apenas recreativo, ou
seja, ter clareza da finitude — longe de ser um gesto mórbido
—, é atitude que agrega virtude e valor aos momentos da vida.
É o mesmo que levar a vida a sério. Estamos a todo instante
apostando em algo que nenhum dinheiro nesse mundo pode
comprar: o tempo.

Salto para a liberdade

Os maiores filósofos da história discorreram sobre o tema


da liberdade humana. Não cabe aqui apresentar ideias novas,
tendo em vista que nem os clássicos já foram completamente
esgotados ou superados. O que convém é questionar o princí-
pio da liberdade como causa eficiente dos males da vida, ou a
liberdade enquanto fundamento de sucesso e realização. Embora
seja um tema complexo, muita riqueza dele pode ser extraída.
Ao invés de ambicionar resolver o problema da liberdade, fo-
caremos em nos apropriar dela.
Será que estamos destinados à liberdade desde o dia do
nosso nascimento? Somos tão livres quanto num salto de pa-
raquedas? Considerando o modelo metafórico do paraquedista
que está sujeito às leis gravitacionais e não tem outra possibi-
lidade senão cair, dificilmente, neste caso, dá para concordar
com a hipótese da total liberdade. Talvez o paraquedista não
seja tão livre quanto pensa, embora as alterações bioquímicas

27
Parte 1 — Capítulo 1

que ocorrem em seu organismo no momento da queda, como


a liberação de adrenalina e endorfina, sejam apenas uma falsa
prazerosa sensação de liberdade. O uso de drogas também se
enquadra nessa categoria em termos de estímulos sensoriais,
visto que o entorpecente promove um sentimento de liberdade,
quando na realidade o usuário está sujeito a escravizar-se pelo
vício. Contudo, ainda nesses dois casos, podemos afirmar que
há um mínimo de liberdade por causa da escolha inicial de
praticar tais atos.
O filósofo romano, Cícero, acreditava que, para sermos
livres, deveríamos ser escravos da lei. Podemos concordar com
ele, se pensarmos que as leis positivas5 nos fazem mais elevados e
organizados enquanto sociedade, salvaguardando a convivência
sadia em detrimento das tendências animalescas, antissociais
e destrutivas. Talvez, a escritora francesa, Simone de Beauvoir
tenha expressado melhor a ideia de Cícero ao dizer que: “o
homem é livre, mas ele encontra a lei na sua própria liberda-
de”6. Significa que, perante uma correta compreensão da lei,
sua execução depende da liberdade individual das consciências,
ao passo que, sem leis que regulem o comportamento e o mal
uso da liberdade alheia, estamos todos suscetíveis e sem prote-
ção contra o mal discernimento alheio. O mais forte poderia
escravizar o mais fraco, caso não houvesse o direito.

5
Leis criadas pelo homem, por exemplo: estatutos, constituições, códigos
penais etc.
BEAUVOIR; Simone. Pour une morale de l’ambiguïté: suivi de
6

Pyrrhus et Cinéas. Paris-FR: Gallimard, Collection Folio, 1962, p. 226.


28


No entanto, Cícero está correto ao considerar que somos


livres no pensamento, pois no mundo real estamos cheios de
condicionamentos naturais e sociais necessários para nossa
subsistência, enquanto a imaginação não tem limites para
produzir ideias, que podem em certa medida influenciar o
mundo real, desde que façam sentido e signifiquem algo
relevante para os homens.

“A condição de um homem superior é tripla. Virtuoso,


ele está livre das ansiedades. Sábio, ele está livre das perple-
xidades. Corajoso, ele está livre do medo”.

Esta máxima confuciana julga que liberdade é a qualidade


dos homens superiores, de modo que somente homens expe-
rimentados na vida adquirem sabedoria, virtude e coragem. O
interessante nessa passagem é pensar que nossa sociedade se
considera livre e democrática, ao mesmo tempo que está cada
vez mais ansiosa e desesperada. O medo tem tomado conta; a
depressão, acompanhada de centenas de síndromes, tornou-se a
pandemia deste milênio. Mais interessante ainda, é a crescente
tendência autoritária manifestada nas redes sociais, geralmente
por parte de pessoas que dizem defender a liberdade de opinião,
desde que esta opinião não seja diferente da dela. Será que nossa
geração entendeu o que é liberdade?
A palavra de Deus notadamente possui uma abordagem
parecida com a de Cícero, pois o Salmo 119:45, na tradução da
CNBB, assim canta: “Caminharei com segurança, pois procuro

29
Parte 1 — Capítulo 1

observar teus preceitos”. Prefiro para este contexto a tradução


utilizada pela Bíblia de Jerusalém: “Andarei por um caminho
largo, pois eu procuro teus preceitos”. Ao dizer “Andarei por
um caminho largo”, possivelmente o salmista está falando de
liberdade, isso porque o hebraico — diferente do que as pessoas
pensam —, é mais concreto que abstrato, usando de imagens
que podem ser tocadas pela imaginação, visto que estão pre-
sentes na natureza; tais palavras são expressas sempre usando
fenômenos concretos. Dessa forma, “andarei por um caminho
largo” significa “andarei em liberdade”.
Para o salmista, essa liberdade acontece mediante o cum-
primento dos preceitos de Deus, tal qual Cícero diz do cumpri-
mento das leis civis. A tradução da CNBB pastoralmente prefere
usar a palavra “segurança”, o que também é muito conveniente,
se pensarmos que a lei transmite de fato segurança, quando esta
não transgrida a lei natural7.
Ao verificar o livro dos Provérbios, veremos que ele segue
a mesma tendência de todo o Antigo Testamento: “O temor
do Senhor conduz a vida: quem o teme pode descansar em paz,
livre de problemas” (Provérbios 19:23). Sempre que o conceito
de liberdade aparece, está acompanhado da lei. Podemos intuir
tanto pela sabedoria humana quanto pela divina que a liberdade
é indissociável da responsabilidade implícita na lei. Nesse caso,
temer e seguir a lei garante ao fiel uma vida sem problemas?
Sabemos que as coisas não são tão simples assim, a concepção

7
Leis que regem a natureza e não foram criadas pelo homem, por
exemplo: gravidade, morte, procriação, evolução, ciclo da vida etc.
30


veterotestamentária de prosperidade e paz segue uma ideologia


comum aos povos semitas mesopotâmios.
A bondade e misericórdia divina na religião judaica estão
condicionadas ao cumprimento do mitzvot, que é o conjunto
de todos os mandamentos que constam na Torá, segundo o
judaísmo. Na realidade, Deus faz nascer o Sol para os maus e
para os bons, disse Jesus (Mateus 5:45). A chuva não escolhe
em que plantação vai cair, da mesma forma, a doença e a dor
também chegam para bons e maus. No Cristianismo, de fato,
este problema hermenêutico será mais bem interpretado.
Vimos que o ideal de liberdade como fenômeno ilimita-
do de possibilidades é uma fantasia. Se fôssemos plenamente
livres no tocante ao poder de modificar as realidades cósmicas,
seriamos onipotentes. Porém, gozamos sim de certa liberdade,
que é o fundamental argumento para exprimir a predileção de
Deus pela humanidade enquanto espécie.
Deus quis ‘deixar ao homem o po-
der de decidir’ (cf. Eclo 15:14), para que as-
sim procure espontaneamente o seu Criador,
a ele adira livremente e chegue à perfeição
plena e feliz. Portanto, a dignidade do ho-
mem exige que possa agir de acordo com
uma opção consciente e livre, isto é, movido
e levado por convicção pessoal, e não por
força de um impulso interno cego ou debai-
xo de mera coação externa8.

8
PONTÍFICO CONSELHO — JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da
Doutrina Social da Igreja: A liberdade da pessoa; valores e limites da
liberdade., n. 135. São Paulo: Paulinas., 2005.
31
Parte 1 — Capítulo 1

O Novo Testamento reinterpreta a noção de pecado que


faz perder a graça e a bênção de Deus do Antigo Testamento.
O que está em jogo não é exatamente a perda da prosperidade
em decorrência do mal praticado, mas a própria liberdade que
sucumbe ao vício. “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou.
Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter nova-
mente a um jugo de escravidão” (Gálatas 5:1). Quer dizer que,
toda vez que o uso da liberdade se orienta para o mal, a própria
liberdade — cedendo ao vício —, acaba comprometida. Foi o
próprio mestre quem plantou tal ensinamento no coração dos
discípulos: “Respondeu-lhes Jesus: em verdade, em verdade
vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pe-
cado. Ora o servo não fica para sempre em casa. O Filho fica
para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente
sereis livres” (João 8:34–36).
Liberdade consiste em submeter-se à razão ontológica
do existir humano, que se orienta sempre para seu Criador. A
escolha por uma vida de pecado se assemelha a um girassol que
se decide pela sombra, perde sua vitalidade, seu movimento
e morre. O girassol não pode escolher pela sombra, porque
isto o levaria à morte, mas o homem pode fazer tal escolha.
Um grande mistério que desafia o conhecimento é o suicídio,
pois nenhuma criatura é capaz de voluntariamente aniquilar-
-se. Fazendo referência à cultura pop, o pecado é a criptonita
do homem, nós não pertencemos ao mundo do pecado, por
isso sua reação em nós provoca inflamação, como um corpo
estranho faz no organismo. Sem medo de ser redundante, é
preciso afirmar muitas vezes que o homem espontaneamente
32


entrega sua liberdade ao pecado, que é por consequência vício


e afastamento de Deus.
Se o pecado tem o poder de nos aprisionar, o que seria
o pecado? Pecado é toda desobediência à vontade de Deus e
aos seus mandamentos. O pecado afasta-nos da amizade com
o Criador, justamente porque quando abandonamos seus pre-
ceitos, colocamos outras coisas no lugar, e Deus é ciumento,
dirá o livro de Êxodo.
Na carta aos Gálatas, Paulo explica sobre a origem da
nossa liberdade e de como potencializá-la: “Irmãos, vocês foram
chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar
ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros
mediante o amor” (Gálatas 5:13). O chefe do primeiro colégio
apostólico, São Pedro, em nada discorda, aliás, corrobora o
ensinamento de Paulo: “Vivam como pessoas livres, mas não
usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; vivam como
servos de Deus” (1 Pedro 2:16). Tanto um quanto o outro,
ao falarem sobre o uso dessa dádiva divina que nominamos
liberdade, superam a concepção tradicional da lei enquanto
condicionante da graça.
A liberdade em si é graça dada por Deus, e o que a torna
maior em nós é o direcionamento dela para o amor e serviço de
Deus. Isso vai ao encontro do princípio sociológico cristão de
que o homem não foi feito para viver só, e é mais feliz quando
no uso da sua autonomia, vive em prol do próximo, gerando
uma cadeia de liberdade altruísta e caridosa. O pecado escraviza,

33
Parte 1 — Capítulo 1

enquanto a caridade atrai o calor do sol para o girassol, que por


sua vez torna-se realizado e feliz.
Há também outra forma de perder a liberdade. O após-
tolo dos gentios alerta para o perigo das ideologias alienantes:
“Tenham cuidado para que ninguém os escravize às filosofias
vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas
e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo”
(Colossenses 2:8). Alguns acusam a Igreja de ser alienante, mas
tal acusação me parece um tanto injusta, basta ver a formação
dos sacerdotes. Estes são introduzidos ao mundo da ciência de
Deus aprendendo a fazer bom uso da razão por meio da filoso-
fia. Antes mesmo da teologia ou do aprofundamento técnico
da bíblia, o seminarista se prepara para lidar com o mundo, o
homem e seus questionamentos. Apesar disso, concordo que a
religião pode ser alienante, tal qual a política, o conhecimento
filosófico e até a própria ciência. Acontece que pessoas de razão
fraca se deixam escravizar por ideias, um caráter malformado
não consegue alcançar autonomia de pensamento, por isso
estão sempre procurando alguém ou algo para seguir. Seguir
a Deus não deve ser um ato somente preceitual, na verdade é
um prazer de amar e fazer o bem.
Com três palavras poderíamos definir a liberdade humana:
“limite, dom e perigo”. Quando o homem salta para a vida,
está entregue à sua própria liberdade, por isso tal reflexão é
tão importante. Ninguém é totalmente livre quanto gostaria,
entretanto, a liberdade está no pensamento e em como con-
tornar criativamente os infortúnios da vida. Ninguém é livre
para escolher nascer, ninguém pode definir qual será sua altura,
34


sexo, biótipo (magro, gordo, alto, baixo, largo, estreito, cor dos
olhos e cabelo) ou progenitores.
Nosso desenvolvimento na infância configura comporta-
mentos que refletem na vida adulta. Tais comportamentos, se
forem ruins, podem ser superados ou se tornam condiciona-
mentos aprisionantes com os quais lutaremos por toda a vida.
Apesar disso, olhamos para a criação e, sem dúvida, vemos
que a liberdade é uma benção, somos os únicos com o poder
de pensar sobre o destino da própria vida, os animais apenas
possuem alma — não no sentido espiritual, mas metafísico
— instintiva e por ela vivem. Quando a liberdade é mal com-
preendida, o indivíduo vive inconsequentemente como se não
houvesse um fim.
Essa irreverência à finitude da vida, presente principal-
mente nos jovens, vem de um desejo de imortalidade plantado
no coração do homem desde os primórdios. Fomos feitos
para a eternidade, e para chegar lá é preciso finalizar o salto
e cair, de modo que o que determina o trajeto do salto é o
bom uso da liberdade.

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